Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A RECONSTRUÇÃO DO TEMPLO - P.2 / Zé Rodrix
A RECONSTRUÇÃO DO TEMPLO - P.2 / Zé Rodrix

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A RECONSTRUÇÃO DO TEMPLO

Segunda Parte

 

Não faço a menor idéia do que aconteceu à minha volta enquanto os esbirros me mantinham imprensado entre seus corpos vestidos de armadura: não eram meninos, como eu e meus amigos o fôramos, mas homens feitos, de má catadura e olhar brutalizado. Não sei como eram escolhidos nem com que objetivo, agora que não havia mais Belshah'zzar para selecionar os mais interessantes corpinhos como membros de sua guarda pessoal. Parecia que, debaixo dos uniformes que abriam um espaço imenso à sua simples passagem, estavam corpos mais rudes e fortes, bem preparados para o trabalho que deviam executar, porque sem dificuldade me mantinham manietado e curvado para a frente, sem que ninguém pudesse sequer perceber quem estava sendo levado por eles. Não andamos muito: estávamos bem perto do Palácio Real, e percebi pela inclinação das rampas e pelo vislumbre do caminho que estávamos descendo para seus subterrâneos. O terror que me assomara ao ser preso começou a se multiplicar cada vez mais, a cada passo que dávamos na direção das entranhas do palácio, onde eu sabia estarem as masmorras fedorentas onde eu perderia a minha vida, rápida ou lentamente, dependendo da maior ou menor misericórdia de meus algozes. Dobrado violentamente para a frente, enquanto os guardas me suspendiam os braços fortemente atados às costas, eu esticava o pescoço, vendo apenas os pés calçados nas grosseiras e pesadas botas, marcando os passos ritmados no chão. O ar foi ficando mais e mais pesado, a luz se tornando baça e acinzentada: estávamos descendo muito abaixo do que eu podia imaginar, e a água das grandes rodas que a elevavam para terraços mais altos, caía de altura quase vertiginosa, com grande estrondo, umedecendo o ar viciado.

A pressão de meus guardas mostrou que o corredor onde estávamos ficara estreito, e subitamente, a um grito de Na'zzur, estancamos: eu, como não esperava por isso, tropecei e caí ao chão, sendo brutalmente erguido e jogado na direção de uma abertura escura, à borda da qual tentei me segurar. O guarda das masmorras bateu a porta com toda a violência, fechando-a sobre meus dedos: com a dor, soltei um berro que foi respondido com violenta pancada no alto da cabeça, o que me fez perder o equilíbrio e cair sobre o solo de barro socado, aqui e ali coberto de uma palha viscosa e cheirando a estrume. A porta se fechou atrás de mim, e a voz de Na'zzur, cuja sombra eu pude ver enchendo a pequena abertura no alto da porta, disse:

— Economiza teu choro, ladrãozinho... breve terás razões verdadeiras para chorar, porque, enquanto eu não te arrancar tudo o que tens escondido aí dentro, não ficarei satisfeito. Hei de te ver seco, por dentro e por fora, um bagaço espremido por mim...

Na'zzur se foi e fiquei sozinho, pior do que se estivesse morto. O destino mais uma vez mudava violentamente, e sempre sem que eu entendesse por que isso me acontecia. Desesperadamente me esgoelei, gritando como se precisasse colocar para fora todo o desespero que me preenchia, e o eco de meus gritos refletidos no pequeno espaço onde me encontrava quase me ensurdeceu. Não sei quanto tempo fiquei nessa completa agitação: quando dei acordo de mim, estava encolhido em um canto da cela, a garganta doída pelo tanto que gritara, sentindo-me ainda pior por não obter resposta a meus pedidos de socorro. Estava sozinho, e a temperatura abafada e ao mesmo tempo úmida me fazia perder a noção de frio ou calor; além disso, a pressão física me comprimia, como se o peso do palácio estivesse apoiado sobre minha cabeça, enterran-do-a em meus ombros. Não havia nada à minha volta, a não ser o terror quase palpável.

O que seria de mim? Na'zzur parecia ter mais poder do que quando o conhecera: seu batalhão era imenso, e era como se estivesse esperando que eu caísse em suas mãos para fazer de mim aquilo que quisesse. Eu era um peixe em sua rede, e me debatia, procurando o que já não estava mais em mim: atravessara a fronteira que separava um mundo de outro, onde já era um cadáver, esperando apenas que meu corpo começasse a se deteriorar, a pele a se carcomer, a carne embaixo dela a se esgarçar, o sangue a se transformar em pó, os ossos a tornar-se pedra...

Ergui a cabeça, num susto. Não sabia quanto tempo se passara, e estava delirando, antecipando aquilo que certamente me aconteceria: quase pudera enxergar a deterioração de meu corpo, na escuridão que já era um pouco menos densa. Podia ver os contornos das coisas do lado de fora da cela: alguns archotes, com seu cheiro característico de nafta, bruxuleavam amarelados. Pensei que, se havia archotes, era porque a luz do sol não entrava pelas aberturas costumeiras, portanto devia ser noite; mas não sentia que tivesse se passado tanto tempo assim, a não ser que meu momento de desespero tivesse durado mais do que eu podia acreditar. Estava completamente perdido: não sabia o que sentia, onde estava, não percebia sequer o que meu corpo me dizia, porque o medo que me cobria era maior que tudo. Fechei os olhos com força, para que a decisão de não ver transformasse minha realidade e ao abrir os olhos eu me encontrasse fora dali, na rua ensolarada em que tivera meu último momento de felicidade antes que a pesada mão de Na'zzur descesse sobre meu ombro...

Não havia solução: a imagem de felicidade seria para sempre substituída pela perda absoluta que meu inimigo me impusera. Perdera tudo: pai, liberdade, vida. O Anjo da Morte estava sobre meus ombros, não se afastara de mim, era a mim que ele buscava: meu pai fora apenas o pretexto que ele usara para se aproximar de mim. Na verdade, tudo em minha vida fora pretexto para minha morte: olhando com honestidade, veria que meu pai era o culpado de tudo...

Ergui a cabeça novamente: cada vez que me entregava a um fluxo qualquer de pensamentos, eles se transformavam em delírio, reiterando sem cessar no meu espírito desgraçado o sofrimento que se avizinhava. A imagem de meu pai estava de novo em minha mente, como eu dele me recordava: firme, ereto, a cabeça coberta pelo manto azul e branco, o olhar profundo e triste, e a frase que estava sempre em seus lábios: "Assumi o compromisso? Morro, mas faço."

Um choque me sacudiu corpo e alma: era isso que se esperava de mim? Que eu mantivesse o compromisso da missão a executar, mesmo que meu corpo fosse transformado em pasta sanguinolenta? Era para isso que meu pai havia morrido, ocupando meu corpo como um dibbuk para que eu cumprisse o compromisso assumido? Eu não podia, não tinha forças, e nem mesmo compreendia por que me havia sido dada essa missão, que rejeitava mais do que nunca!

Na escuridão da parede à minha frente, uma mancha mais clara me chamou a atenção: eu não podia precisar se já estava ali desde que eu caíra na cela, ou se meus olhos lentamente acostumados às trevas me estivessem fazendo ver coisas que antes não havia visto. Não era isso; a mancha não estava na parede, mas um pouco à sua frente, a cada instante se definindo mais. Era como se afundasse no centro, formando um funil que lentamente fosse se esticando para trás, para dentro dos tijolos, enquanto suas bordas giravam cada vez mais rapidamente, alargando-se e vindo em minha direção, e subitamente eu estava envolvido por essa mancha de luz, um imenso tubo dourado e girante que me cercava e através do qual eu flutuava, vendo à minha volta as letras de fogo negro com que todo o Universo era criado: dentre elas, três se destacaram, e pairaram à minha frente, formadas por labaredas de fogo negro, nun, lamed e khaf, unidas umas às outras sem que seu fogo se misturasse, mostrando o que eu não compreendia, e de súbito em minha mente surgiu a certeza de que só através dessas letras eu poderia superar minhas fraquezas e ultrapassar meus limites, e que só aquela palavra que eu não sabia ler me daria a força necessária para ser como meu pai, assumir um compromisso e cumpri-lo, mesmo que à custa de minha própria vida. Estendi a mão para as três letras e, quando estava quase tocando suas chamas, tudo se apagou, e eu, com um baque, caí ao chão da cela onde estava. A sua porta, que se abria lentamente, estavam dois soldados armados de espadas e cordas: um deles me laçou o pescoço, puxando-me para fora até que eu caísse no corredor, de onde me ergueram e me arrastaram, enquanto me atavam com requinte, deixando-me totalmente imobilizado, a não ser dos joelhos para baixo, de forma que eu podia apenas saltitar com passos ridiculamente curtos.

Eu ainda estava sob a influência do que acabara de ver: meus olhos fitavam o nada, porque as imagens tão reais, tão vivas, tão diferentes dos delírios que vinha experimentando, eram suficientes para apagar de minhas retinas a fealdade dos corredores que íamos trilhando. Um dos soldados disse ao outro:

— Este é que é feliz: enlouqueceu antes de Na'zzur pôr as mãos sobre ele...

Fui arrastado por todo o caminho: quando entramos na sala de torturas, minha visão se aclarou, ao ver os instrumentos e ferramentas de que Na'zzur e seus auxiliares fariam uso: era a mesma sala onde Belshah'zzar havia durante noites sem conta excitado seus sentidos com os maus-tratos impostos a outrem, dali saindo para alcançar o mais violento orgasmo enquanto recordava das visões e sons e perfumes que havia acabado de presenciar. Sobre um trono que se destacava, erguido em um degrau bastante alto, Na'zzur bebia vinho e ria de algum comentário feito por seus auxiliares, dois homens com casquetes de couro negro sobre a cabeça, sendo um deles extremamente magro e alto, quase cadavérico. Este me olhou e lambeu os beiços, como se eu fosse um pitéu à sua disposição. Insensivelmente, tremi, e Na'zzur, gargalhando, gritou do alto de seu trono:

— Vamos, atem-no à mesa de trabalhos... é preciso descobrir onde ele é mais sensível, para que nossa tarefa seja mais efetiva...

— Não é preciso, comandante: rapazes dessa idade sempre temem mais que tudo que os impeçamos de ser homens quando crescerem... olhando para a cara desse aí, tenho certeza de que toda a sua vida se resume ao prazer que seu pênis pode lhe dar. Portanto, que melhor área de ação para a nossa arte do que a parte do corpo que ele considera mais importante?

O magro parecia ser muito competente em sua especialidade. Na'zzur riu mais alto ainda:

— Parece que o conheces tão bem quanto eu, Bal'amun: sabes que já fomos companheiros? Há pouco mais de um ano, ele também trabalhava para nossa querida BePCherub, e estava para ser brinquedo noturno do finado Belshah'zzar quando a situação se transformou... ele e seu assecla Daruj se aproveitaram da confusão reinante para fugir de nós.

Enquanto seus dois auxiliares me atavam à mesa, Na'zzur levantou do trono e veio até mim, pondo sua cara retorcida pela crueldade a tão pouca distância da minha, que senti o cheiro azedo do vinho em sua respiração:

— Pensas que me esqueci do desafio que me fizeste? Nunca! Foi a certeza de aceitá-lo no futuro que nos fez estar juntos, hoje, aqui, tu nessa posição tão comprometedora, à minha mercê...

O ódio que Na'zzur sentia por mim era quase palpável, e eu me retesei nas cordas que me atavam, olhando diretamente em seus olhos. Não importava mais nada: se estava à sua disposição, tinha que dizer-lhe o que me ia na alma antes que sua brutalidade me calasse para sempre:

— Teus novos patrões sabem que eras homem de Belsha'zzar, Na'zzur? Como caíste nas graças dos conquistadores? Deves ter mentido muito, fingindo ser o que não és, como na última vez em que nos vimos... trocas de farda com muita facilidade...

— Não falemos de trocas de uniforme, ladrãozinho: da última vez, também deixavas de ser quem eras e te transformavas em acólito de Ishtar, esqueceste? A diferença entre nós é que eu sou necessário, e tu és dispensável. Nenhum poderoso pode prescindir de gente como eu, disposta a fazer as coisas com que detestam sujar as mãos, ao passo que tu, animal sem valor, serás sempre vítima, porque dentro de ti não existe a capacidade de ser amo e senhor.

— Falando em amo e senhor, Na'zzur, como vai tua senhora Bel'Cherub? O poderoso Cyro sabe que serves a dois senhores, ou tu o enganaste com teus préstimos de devoção absoluta?

A bofetada de Na'zzur estalou em minha face, toldando-me a visão, enquanto seus auxiliares riam. Com um esgar de seus dentes trincados, ele falou, em voz bem baixa:

— Não percebeste ainda que não é a Cyro que devo obediência, mas sim a seu ve'zzur Darius, cuja única função é livrar o Império daqueles que de alguma maneira possam ameaçá-lo? Darius conhece meus talentos e confia plenamente em mim. Quando Cyro estiver novamente entre nós, a Grande Baab'el já será um paraíso, sem nada que ameace seu poder. É para isso que Darius me utiliza, e a responsabilidade de decidir quem serve ao Império e quem não serve, dispondo dos sem-serventia da maneira como melhor me aprouver, garantindo sua extinção, é toda minha. Meu prazer tu já sabes qual é: gosto de ver os corpos se desmanchando, reduzindo-se a uma massa informe de carne e sangue, liqüefazendo os ossos, rasgando a pele, queimando os cabelos. Este é o verdadeiro poder, e quem o possui não é nem Cyro nem Darius: sou eu! Nesta hora me igualo aos deuses, porque sou capaz de destruir tudo aquilo que eles criaram! Tu, ladrãozinho sem valor, hás de curvar-te a mim! Hás de me reconhecer teu deus, primeiro para livrar-te da dor, e depois porque realmente acreditarás nisso! Comecemos. Chegando ainda mais perto de mim, sussurrou:

— Quando estiveres pronto, convidarei Bel'Cherub para que venha ver-te transformado num fiel devoto do deus Na'zzur...

O terror se aproximava, e me debati enquanto o outro auxiliar de Na'zzur, mais baixo e gordo, com um olho voltado para cada lado de sua cabeça e a boca tremendo de excitação, pegou meu pênis, atando-lhe uma corda de couro na base, por detrás dos testículos, manipulando-o com verdadeira volúpia. Confesso que, por maior que fosse o meu terror, meu corpo reagiu como sempre: a manipulação de meu membro fez com que ele se intumescesse e erguesse, ficando cada vez mais rígido, deixando-me desesperado de vergonha. Na'zzur e seus auxiliares riam despregadamente, e o mais alto recuou até um braseiro, de onde pegou com a mão muito calosa um longo espeto de metal, rubro até a metade. Trouxe-o até perto de meu rosto, tão perto que eu pude sentir o calor e o cheiro do metal quente, temendo que ele quisesse marcar-me a face com aquilo. Torci o rosto, e Na'zzur, com uma mão muito úmida, acariciou-me a testa:

— Acalma-te, belo ladrãozinho: não te estragarei o rostinho. O que quero que conheças é a dor absoluta, aquela que só tu podes saber como é, tão forte que dela nunca te esqueças. A princípio, nada te perguntarei: só te apresentarei à tua companheira eterna, a dor. Depois que tu e ela já estiverem bem íntimos, a simples lembrança será suficiente para que faças tudo o que eu quiser... e se em algum momento eu desconfiar que estás te esquecendo dela, volto a mostrá-la, porque é através dessa dor que serás meu para sempre.

Urrei violentamente antes mesmo que o magro enfiasse o arame incandescente pela minha uretra adentro, porque a certeza do que aquilo era já fazia com que eu sentisse um horror que não acreditava ser possível. Desmaiei antes que o arame entrasse em meu pênis mais que um terço de seu comprimento, flutuando dentro do cone de luz dourada forrado de labaredas de fogo negro, finalmente tocando as três letras que me haviam escapado da primeira vez, e que entraram por meu braço adentro, tornando-se parte de mim.

Voltei a mim com o choque da água fria sendo jogada em meu rosto, quase me afogando, e a dor lancinante em meu ventre dando-me a certeza de que me haviam aleijado para sempre. Não seria capaz de suportar outro ataque desses, e chorei, pedindo perdão por tudo o que ainda me iriam fazer sentir. Na'zzur ria em meu ouvido, perguntando coisas que eu não sabia o que fossem, enquanto seus acólitos, alternadamente, torciam meus testículos até quase o ponto da ruptura, e essa dor trazia a lembrança da dor que eu acabara de sentir:

— Vamos, conta: por que voltaste à Grande Baab'el? O que te trouxe aqui? Pretendes tomar o lugar de teu pai? Tens algum plano que ameace a estabilidade do Império? Vamos, coragem... falta tão pouco para que te livres da dor...

Por trás de meus olhos fechados, eu só enxergava as três letras de fogo negro, nun, lamed e khaf, enquanto em meus ouvidos a voz de meu pai soava claramente como se ele estivesse falando pela minha boca: "Assumi o compromisso! Morro, mas faço! Morro, mas faço! MORRO, MAS FAÇO!"

Quando Na'zzur me deu uma forte bofetada na orelha, sacudindo meu cérebro dentro do crânio, foi que percebi ser eu mesmo quem gritava a frase de meu pai. Não sei de onde vinha essa força, mas alguma coisa em mim impedia que o segredo de minha presença na Grande Baab'el fosse revelado, toldando minha compreensão das coisas quase como se não fosse a mim que a tortura estivesse sendo aplicada. Os dois auxiliares de Na'zzur, suados, ainda seguravam meus testículos com firmeza, esperando que seu chefe lhes desse a ordem final para extirpá-los a frio, com as próprias mãos ansiosas pelo meu sangue. Dentro de mim, ao lado do animal amedrontado em que a dor me transformara, havia outra coisa, que sustentava meu empenho de resistir um pouco mais, ainda um pouco mais, só mais um instante, consciente de que em algum momento isso teria que parar, com a minha desistência ou a deles, não importava qual. Em minha cabeça, as três letras de fogo negro brilhavam cada vez com mais intensidade, meu pai se impondo em meio a elas, me fortalecendo, enquanto Na'zzur gritava:

— Fala, imbecil! O que é que fazes mesmo morto? Que compromisso é esse? O que me estás escondendo? Fala!

O animal queria contar tudo, o menino temia a dor, o pai repetia a frase mágica, e as letras brilhando cada vez mais me enchiam de uma força que eu não sabia que tinha: ela me trancava os dentes e eu pensava "só mais um pouco, um pouco mais apenas, ele vai desistir antes que eu desista, tenho que agüentar só mais um pouco".

Foi o que aconteceu: Na'zzur entrou em desespero, sacudindo-me pelos ombros o máximo que as cordas apertadas permitiam:

— Fala, chacal, senão te mato! Sei que vieste à Grande Baab'el porque Cyro está para chegar! É tudo um plano sinistro para deses-tabilizar o Império! Se não falares, eu te mato!

Não sei de onde arranquei forças para encará-lo nos olhos e dizer:

— Se me matares, nunca saberás...

Na'zzur quase enlouqueceu, sapateando pela sala escura e atirando o capacete ao chão, com fúria: depois se aproximou de mim e me esbofeteou a cara não sei quantas vezes, em seqüência, até que eu não conseguia mais enxergar uma sala só, e ele perdeu o fôlego. Olhou-me com profundo ódio e sibilou:

— Sei que vais dizer que ainda te resta meio dia para que o segredo que trazes aí dentro te seja arrancado. O pior da dor não é senti-la, mas esperar por ela, e sua lembrança tem muito mais poder do que ela. Vais voltar para tua masmorra e esperar que eu me recupere: nesse meio tempo, teu corpo jovem vai parar de sentir dor, e te sentirás quase curado, quase feliz. Nesse momento, volto para te recordar da dor que já é tua conhecida, e posso te garantir: cada vez que ela volta, é muito pior. Levem-no!

Os dois esbirros de Na'zzur me desataram e arrastaram para fora da sala, onde dois guardas, sem interromper seu movimento, guindaram-me para a cela onde eu estivera, atirando-me ao chão e aferrolhando a porta.

Minha cabeça estava vazia, leve, como se eu tivesse fumado vários narg'hillas de tam'bakha: o corpo dolorido parecia não ser o meu, mas o de uma outra pessoa, e a dor que explodia no centro do pênis e se espalhava pelo baixo-ventre, refletindo-se em cada órgão do meu corpo, eu a sentia como que pertencendo a outra pessoa, que era e não era eu.

Cada vez que eu fechava os olhos via as três letras de fogo negro brilhando contra o fundo avermelhado de minhas pálpebras; assim, era melhor ficar de olhos abertos, pois em meu interior essa palavra poderosa gerava tanta luz que era quase insuportável.

Eu vencera uma primeira batalha contra a vontade de Na'zzur, mas, e a próxima? Reconhecia não ter forças suficientes para enfrentar outra vez o que já enfrentara: ele me dissera que cada sessão dessas era pior que a anterior, e chegaria o momento em que eu revelaria o que não devia. Ele também tinha pressa: segundo suas próprias palavras, Cyro certamente estava por chegar, e, pelo que, me dissera, se não me arrancasse o segredo em meio dia, não o faria mais. Provavelmente, a presença de Cyro inibiria o seu poder, e ele, como um rato de esgoto, recuaria para as sombras mais profundas, esperando nova ausência do conquistador para voltar a exercer seu mister execrável. Eu precisava resistir pelo menos mais doze horas, achando uma maneira de me apresentar a Cyro como Rei de Jerusalém. Sem Cyro, minha tarefa estava perdida: esse rei a quem eu não conhecia era a única esperança de sobrevivência que me restava. Apalpei-me a medo, para reconhecer meu estado: ter sido amarrado sobre a mesa me deixara dores em todos os músculos. Fui descendo a mão para o ventre, tateando com o máximo de cuidado, pois o dano que me haviam causado era bem maior do que seria aceitável; o simples roçar dos dedos na pele da barriga já me fazia sentir pontadas lancinantes, levando-me a trincar os dentes. Eu precisava saber o que me haviam feito; por isso, mesmo com a dor que a cada toque aumentava vertiginosamente, fui descendo até meu membro.

Quando meus dedos encostaram nele, não pude conter um grito: a dor se espalhou pelo corpo inteiro, fazendo-me ver clarões de luz cegante dentro da cabeça. Estava inchado e sangrava. Segui até a sua base e percebi que a tira de couro que me atava os testículos ainda lá permanecia: era preciso desatá-la. Busquei com a outra mão e encontrei um nó meio bambo, que tentei soltar, e a cada puxão a dor era tanta, que as lágrimas me vinham aos olhos. O saco escrotal estava intumescido, mas, quando enfim consegui soltar as duas pontas da tira de couro, senti um certo alívio, que me encheu de esperança. Tudo estava imensamente congestionado, e as dores que se espalhavam em todas as direções a partir desse lugar me fizeram ter a certeza de que nunca mais eu seria o homem que um dia fora. Mantive as pernas abertas, para que nada encostasse em meu membro ferido e gotejan-te, enquanto buscava nas roupas sujas que me cobriam um pedaço mais macio com o qual pudesse me limpar.

Foi muito estranho: ao correr a mão pela bainha do manto, senti um nó, e dentro desse nó, algum objeto que eu não sabia o que fosse. A custo, ergui-me do chão onde estava e, levantando o manto até o postigo da pesada porta, desatei o nó, usando os dentes, pois estava muito apertado. Quando o pano se abriu, vi em seu interior uma moeda, que a princípio não reconheci, mas que subitamente, como num susto, percebi ser a moeda que girara em toda a volta do salão de Belshah'zzar na noite do milagre de Yahweh, e que eu guardara comigo naquela noite, quase um ano atrás. Como poderia estar ali, se tanto tempo se havia passado e as roupas que eu usava nem por sombra eram as que eu vestira ao sair da Grande Baab'el? Tentei traçar o percurso da moeda desde o dia em que ela entrara em meu poder: eu a guardara na mão durante toda a luta para escapar dos soldados de Nabunfdush, ficara com ela junto a mim e a atara no manto de acólito de Ishtar que vestira ao sair da Grande Baab'el. A última vez que a vira fora no acampamento dos pedreiros à beira do Eufrates, quando a exibira aos homens que agora eram meus irmãos. Não me recordava mais dela, depois desse dia, e com certeza o ano que passara em Jerusalém a tinha apagado de minha memória. Como podia estar no manto? Quem a atara dessa maneira, imitando com precisão o nó que eu mesmo fazia cada vez que precisava esconder coisas na bainha de minhas roupas? A lembrança de minha última manhã em Jerusalém antes da viagem de volta surgiu com precisão em minha mente: o manto com o qual eu havia fugido, alguém o desentranhara de seu baú de guardados para que eu pudesse passar como apenas mais um babilônio. Não era meu manto original, com certeza, nem o manto com o qual fugira de minha cidade. Era bem diferente, um manto de homem mais velho, em formato triangular, com as franjas e barrado azul-escuro, idêntico ao que meu pai sempre usava. Quem arrumara minhas roupas na noite anterior à viagem, como a moeda poderia estar atada em sua bainha? Quem a colocara ali? A lembrança de Feq'qesh em meus aposentos de Jerusalém, no pobre palácio de madeira, acariciando as cordas da harpa e dizendo que, quando parecesse não haver mais solução, confiasse no inesperado, no milagre, na mão de Yahweh surgindo do nada e traçando um novo destino para suas criaturas

Era isso! A mão de Yahweh! Surgia, dessa vez na sujeira de minha cela, fazendo com que a moeda rompesse todas as leis naturais e desse a prova de que milagres existem. Seria isso o que eu esperava e agora só precisava libertar-me? Apertei a moeda com toda a força, 'como a fizera no dia em que a apanhara do chão, no lugar para onde éla rolara quando voltara a ser uma simples moeda, depois da tempestade a portas fechadas que quase destruíra o salão principal do palácio. Orei com toda a devoção: ao abrir os olhos, ainda estava em minha cela, minhas partes pudendas inchadas e tremendamente doloridas. Não havia milagre algum. Aquela moeda, que surgira em minha roupa sem uma explicação coerente, não ia ajudar na minha missão, nem daria prova de que existia alguma coisa acima de mim ou de minhas dores, e eu não tinha a menor idéia do que fazer com ela.

O corredor do lado de fora de minha cela de repente se encheu de ruídos de passos, grandes imprecações proferidas em voz alta, ruídos de botas e portas sendo destrancadas. Alguém se aproximou de minha cela, vi sua silhueta na abertura do postigo, e meu coração se confran-geu ao pensar que minha tortura recomeçaria antes mesmo que eu pudesse esquecer a dor que me ferira. Arrastei-me para o fundo da cela, ficando o mais longe possível da porta, tentando sumir na escuridão' mas a porta se escancarou e dois homens me apanharam por sob os braços, levando-me aos arrancos para fora: eu decidira lutar, para que me matassem ali mesmo, antes de ser novamente humilhado por meu inimigo. Do lado de fora, no corredor estreito, à luz dos archotes, fui posto junto com outros homens como eu, de todas as cores e feitios todos tão machucados quanto eu mesmo. Os guardas usavam um uniforme bastante diferente do que eu vira no corpo de Na'zzur e seus soldados, e do meio deles uma voz alta e forte soou:

— Prisioneiros! O Imperador Cyro concede a todos os prisioneiros sob seu domínio um julgamento justo e imparcial! Preparai-vos porque sereis imediatamente levados à presença de vosso senhor, para que cada um apresente seu caso de voz própria!

Enquanto o grupo, manquitolando e sem nada compreender, arrastou-se pelos corredores, subindo para a superfície, achei que talvez esse fosse o meio pelo qual a mão de Yahweh me faria realizar minha missão. Seria ao próprio Cyro que eu apresentaria meu caso, como sempre desejara, e em suas mãos repousava minha única oportunidade de mostrar quem realmente era. Apertei a moeda e segui para a sala do julgamento, esperando que Cyro também soubesse que sem sabedoria não existe justiça.

 

Não há ser humano que consiga rememorar as dores sentidas e as sinta novamente: mas em alguns casos a memória dessas dores, quando causadas tanto na mente quanto no corpo, é violenta como a dor-ela-própria, da qual o corpo benevolentemente prefere esquecer. Meu membro inchado e extremamente dolorido roçava em minhas coxas quando eu andava, e eu me movia o mais lentamente que podia, tentando minorar o desconforto. Com isso, fui ficando para trás no grupo de prisioneiros, enquanto subíamos as rampas em espiral. Os corredores estavam repletos de soldados com os uniformes que eu não conhecia, e os que se vestiam como Na'zzur mantinham para com eles uma postura subalterna. Nossa subida foi lenta, porque havia muitos entre nós feridos e depauperados, e dentre eles sem dúvida o mais afetado era eu, tanto que em determinado momento, no plano imediatamente inferior ao da sala do trono, tive que me apressar, arrastando os pés e trincando os dentes, para não me perder de meus companheiros de infortúnio.

Um pouco antes de chegarmos à sala do trono, Na'zzur surgiu à nossa frente, altivo como sempre, mas com uma sombra de preocupação no olhar culpado. Estava acompanhado por um grupo de soldados sobraçando correntes e interrompeu nosso caminho com sua voz metálica:

— O que é isso? Pensam que podem chegar diante do Senhor Cyro dessa maneira? Só se estiverem muito bem acorrentados! Soldados, atai esses criminosos, e Marduq vos proteja se alguém tomar qualquer atitude agressiva contra nosso Senhor na sala do trono. Nela entrareis calados, obedecereis a todas as ordens e só falareis quando o Senhor Cyro assim vos ordenar! E se algum de vós tiver qualquer reclamação a fazer de mim, atenção: que seja bem-feita, porque, se assim não o fizer e depois voltar a meu poder, há de verdadeiramente conhecer minha fúria!

Essa última frase, Na'zzur disse olhando em minha direção. Quando os soldados chegaram perto de mim com as longas correntes de material avermelhado, ele fez questão de supervisionar pessoalmente meu atamento, caminhando a meu lado durante todo o percurso, sorrindo com crueldade a cada esgar de dor que eu fazia. Quando estávamos quase à porta da sala do trono, de onde vinha uma balbúrdia imensa, chegou bem perto de mim, sussurrando:

— Espero que te devolvam às minhas mãos, ladrãozinho: se houver justiça no mundo, serás somente meu.

— Se houver justiça no mundo, Na'zzur, tu é que sairás desta sala acorrentado! — urrei eu, movido pelo ódio e pela dor. — Eu te denunciarei a Cyro como meu torturador assim que estiver à frente dele! E ele te castigará!

— Duvido muito: mesmo os mais justos entre os justos têm necessidade de homens como eu, para fazer-lhes o trabalho sujo. Garanto-te que Cyro, ainda que venha a me detestar, há de encontrar utilidade para mim. E nós nos reencontraremos, ladrãozinho, se não hoje, em outro dia, pelo sol de Marduq!

Com o cabo de seu chicote, deu-me um pequeno peteleco no bai-xo-ventre, fazendo uma onda de dor tão forte subir por meus nervos, que quase caí ao chão. Passamos pelo arco gigantesco que dava entrada ao salão onde pela primeira vez eu vira a moeda que agora apertava na mão, como se dela dependesse minha sobrevivência.

Era a mesma sala abobadada de um ano atrás, agora limpa dos detritos, a cúpula de seu teto perfeitamente recuperada, os archotes de nafta acesos no alto de cada grossa coluna de sustentação, os soldados de Cyro espalhados dois a dois por toda a volta do grande espaço. Voltei meus olhos para a parede onde a mão gigantesca escrevera as letras hebraicas: ainda estavam lá, profundamente queimadas sobre o material das paredes, uma sentença definitiva e perpétua, destacando-se como se tudo o que ali existia tivesse sido construído à volta dela. Olhando sobre as cabeças e ombros dos que estavam à minha frente, vi, sobre a plataforma do trono recuperado e recoberto por novos tijolos de barro vitrificado azuis e dourados o homem a quem devia revelar-me, sentado com naturalidade e ouvindo o que um ruivo de barba e cabelos frisados lhe dizia. Cyro era um tipo escuro e grande, barba cerrada mas muito curta, e um olhar de genuíno interesse e atenção a tudo que lhe era dito, sobrancelhas franzidas abaixo da coroa cilíndrica que lhe encimava a cabeça, o queixo apoiado no punho fechado, meio que lhe escondendo a boca. Seu traje de púrpura franjada era mais curto que o normalmente tisado pelos grandes senhores, deixando ver as canelas marcadas por cicatrizes de antigos ferimentos. O outro era seu ve'zzur, o babilônio Darius, muito pouco à vontade, prestando-lhe contas públicas de seus atos:

— Grande Cyro, nossa preocupação com o teu bem-estar e o bem-estar de teu Império exige vigilância constante. Estamos impregnados de inimigos, rebeldes e assassinos, e antes que tomem alguma atitude contra a grande obra do Grande Cyro, é nosso dever impedi-los, dar-lhes fim!

— Se é uma grande obra, não há como ser prejudicada pelos pequenos — disse Cyro, erguendo o queixo. — Considero teu zelo um tanto exagerado: temo mesmo que seja a negação de tudo o que determinei como sendo minha maneira de governar. Deixei bem claro que todos os habitantes de meu Império têm direito absoluto a suas próprias crenças, sem que seja necessário tentar impor-lhes a minha. Já houve excessos desse tipo quando da prisão de Daniel: por que insistir nessa atitude, que só leva ao conflito?

— Grande Cyro, perdão, mas nunca há excesso de zelo na defesa de um Império como o vosso. Os inimigos não dormem, e quando menos esperamos, saem de nosso seio para morder-nos a garganta.

Cyro riu com o canto da boca, e, virando-se para o meio do salão, dirigiu-se a todos que ali estavam, amigavelmente:

— Meu ve'zzur confunde atenção permanente com vigilância desnaturada. Prefiro ser conhecido por meus súditos como justo e bom, porque só isso garante nossa convivência. Os vícios de crueldade para com os adversários, de que tantos já fizeram uso, não são a maneira como me recordarão os que vierem depois de mim. Sou firme, mas não pretendo ser cruel desnecessariamente. A liberdade ainda é a maior bênção que os deuses concedem a um ser humano. Sendo eu o maior de todos os imperadores, sou apenas um homem e não um deus, portanto não está em meu poder dispor dela.

A audiência no grande salão reagiu de forma incrédula, sem perceber o que Cyro dizia: afinal, estávamos todos acostumados a reis e imperadores com poder absoluto, e um poderoso que reconhecia nosso valor, sem que fôssemos tão poderosos quanto ele, era certamente algo inesperado. Movidos pelo velho hábito do elogio permanente a quem quer que estivesse ocupando o trono, ergueram suas vozes de admiração e louvação a esse senhor tão diferente de todos os outros:

— Glória ao Grande Cyro! Salve o libertador da Grande Baab'el! O Imperador do Mundo está entre nós!

A moeda em minha mão começou a esquentar. Olhei para ela, que se avermelhava, ficando em brasa, queimando minha palma. Soltei-a com um grito, e ela, por motivos inexplicáveis, movida por uma força incompreensível, rolou em linha reta pelo chão até os pés de Cyro, ficando de pé à beira do primeiro degrau do trono enquanto lentamente voltava à sua cor de metal frio.

O salão inteiro se paralisou, enquanto à minha frente um grande espaço se abriu, deixando-me cara a cara com Cyro. Este, apertando os olhos, baixou-os para a moeda e desceu três degraus para pôr um joelho em terra e apanhá-la entre os dedos. Olhou-a longamente: depois, erguendo as vistas para o grupo de prisioneiros onde eu estava, gritou:

— A quem pertence isto? Quem é o dono desta moeda?

Ali estava minha oportunidade: o milagre que eu esperava se realizara. Apertando os maxilares para controlar a dor que sentia, dei um passo à frente, jogando toda a minha vida num grito:

— É minha! Foi com essa moeda que deus escreveu a sentença nas paredes deste salão! Eu estava presente e dou testemunho disso!

Um urro de horror percorreu os cortesãos, pois entre eles certamente havia sobreviventes daquela noite de portentos, e essa lembrança incomodava menos quando oculta nos recônditos da memória. Trazê-la à tona dessa maneira, com o impossível se tornando possível, era demais para eles: quando na natureza das coisas surge algo que nem a razão da mente humana nem o poder de nossos corpos pode compreender ou reproduzir, e é certamente maior, mais poderoso e infinitamente mais forte que qualquer homem, temos a presença inevitável de deus, porque não pode ser nenhuma outra coisa. Cyro olhou longamente a moeda, virando-a por todos os lados, sentando-se em seu trono sem desviar sua atenção dela: um de seus cortesãos chegou ao seu ouvido e nele sussurrou longamente, e ele permaneceu olhando para a moeda, sem dar sinais de que ouvia o que estava sendo dito. Quando o cortesão se afastou, ergueu os olhos em minha direção e perguntou, com voz calma e suave:

— Quem és tu?

Não havia como recuar: eu tinha que enfrentar o momento para o qual vinha sendo preparado desde que se revelara minha identidade, em Jerusalém. Andei para a frente e puxei meu manto por sobre a cabeça, permanecendo em escuridão total durante alguns instantes, recuperando forças que não tinha para revelar minha missão. Nas trevas a que me impus durante esses momentos, busquei uma força que não conhecia, vendo claramente a figura de meu pai, com o manto sobre a cabeça, coroado por três letras de fogo negro, ain, resh, yud, sentindo um calor imenso, que subiu pela minha espinha dorsal e explodiu em meu peito, garganta e boca:

— Sou Zerub ben-Salatiel-ha-David, filho e herdeiro do rosh'ha'golah da Grande Baab'el, Príncipe de Jerusalém e futuro Rei dos Judeus.

Todas as bocas reagiram, e do meio delas pude ouvir perfeitamente o grito que saíra da boca de Na'zzur, a esta altura já pensando em como reverter essa situação perigosa em seu próprio benefício. Minha boca queria denunciá-lo, mas minha alma atropelava essa vontade, e por um átimo pensei se não estaria cedendo à covardia, como o próprio Na'zzur havia previsto. O fogo que queimava dentro de mim era quase insuportável, sentia como se a qualquer momento as línguas de fogo fossem atirar-se pelos sete buracos de minha cabeça e tudo pôr em chamas. Cyro era o único que me olhava com tranqüilidade, mas por trás de seus olhos negros eu podia pressentir uma mente trabalhando celeremente para entender o que eu dizia, enquanto se dirigia a mim:

— Sede bem-vindo, Príncipe Zerub. Sois filho de Jerusalém?

— Não, Grande Cyro: sou nascido na Grande Baab'el, para onde meus avós foram trazidos como escravos de Nebbuchadrena'zzar. E já conheci tanto o lado bom quanto o lado mau deste grande Império.

A dor de meu corpo era grande, mas o poder do fogo que me queimava por dentro era ainda maior: de minha boca saiu a narrativa célere de minha conscrição à guarda pessoal de Belshah'zzar, da noite do milagre, do massacre executado por Nabuni'dush, da fuga pelo Eufrates cada vez mais rápido. Nesse momento, Cyro sorriu:

— Invadi a Grande Baab'el pelo leito do Eufrates, e para isso tivemos que represá-lo. Deve ter sido nesse dia que fugiste daqui. E depois?

Narrei-lhe rapidamente nossa viagem até Jerusalém, mas omiti qualquer menção à fraternidade da pedra, da qual era membro. Não tinha como contar-lhe sobre nossa existência, por isso simplesmente disse ter sido reconhecido como o Príncipe de Jerusalém, e também como os habitantes daquela cidade me haviam enviado de volta à capital do Império.

O interesse com que Cyro me olhava era impressionante: seus olhos meio cerrados fixavam os meus sem desviar-se nem dar qualquer sinal do que minhas palavras significavam para ele. A corte reagia a cada uma de minhas palavras das maneiras mais diversas, mas Cyro não parecia se influenciar por nenhuma dessas reações, mantendo ar firme e atento. Quando narrei minha chegada à Grande Baab'el, a morte de meu pai e minha prisão, houve murmúrios de depreciação, como se o fato de ter estado preso deixasse uma nódoa indelével em mim. Nesse exato momento, Cyro ergueu os olhos e percorreu com eles o salão: os murmúrios se extinguiram quase que imediatamente, e ele voltou a fixar-se em mim, enquanto eu suava de dor e de medo. O momento de denunciar Na'zzur havia passado, e eu não sentira nenhuma vontade de me aproveitar dele. Estava verdadeiramente esgotado, e quase desmaiando.

Cyro, percebendo isso, bateu palmas e gritou:

— Um banco para o Príncipe de Jerusalém! Tragam-lhe também algo para beber... desejas vinho?

— Prefiro a água, Grande Cyro — respondi, sentindo que meu estado físico era pior do que eu queria acreditar. Cyro sorriu e disse:

— Também prefiro a água. Ainda muito pequeno, vivendo com meu avô Astyages, percebi que o vinho era um veneno que causava desordem nos corpos e nas mentes dos que o bebiam. Mas, senta-te, Príncipe Zerub: estou curioso para saber o verdadeiro motivo que te trouxe de volta aos perigos da Grande Baab'el.

Um escabelo foi posto às minhas costas e me sentei nele, no momento exato em que minhas forças me abandonaram e eu estava à beira de um desmaio, vendo pontos negros na frente dos olhos, o coração disparado dentro do peito. A dor no ventre era insuportável, e quando baixei a cabeça para tomar fôlego, percebi um filete de sangue escorrendo pelo lado interno de minha perna esquerda. Sentia meu membro e meu saco escrotal pesando pelo menos dez vezes mais do que o normal. Tudo o que queria era deitar-me e dormir, esquecendo o que acontecera: a cabeça cambaleava, e eu apoiei os cotovelos firmemente sobre as coxas, tentando não cair para a frente. Cyro me olhava com muito interesse, sua face entrando e saindo de foco. Respirei fundo, pensando o mesmo que pensara na sala de torturas, "só mais um pouco, um pouco mais apenas, tenho que resistir só mais um pouco". A taça de água fresca que me foi posta nas mãos deu-me certo alento: tomei-a vagarosamente, sentindo o frescor dentro da boca e garganta crestadas, e, com o pouco que sobrou no fundo, umedeci a testa, tentando refrescá-la. Cyro inclinou-se para a frente, com o cenho franzido:

— Tu te sentes mal, Príncipe Zerub? Há algo que eu possa fazer para ajudar-te?

Respirei fundo e arranquei de meu peito o discurso tantas vezes ensaiado, o pedido que temia fazer, pois se encontrasse um não como resposta teria perdido a oportunidade que tanto desejava:

— Grande Cyro, tanto tu quanto eu fomos escravos dos senhores da Babilônia. Tua vitória sobre eles encerra os anos de dominação sobre nossos povos. Agora que nem medos nem persas nem judeus somos mais escravos de ninguém, e porque Cyro é um homem justo, crente na liberdade de todos os homens, vim a este palácio procurar-te para pedir...

A voz se me travou na garganta, e eu caí para a frente, apoiando-me sobre um joelho, ao som do espanto de toda a corte: o próprio Cyro se ergueu de seu trono, estendendo um braço em minha direção. Eu ergui a mão esquerda para o alto, sem fitá-lo, como que pedindo paciência, e depois de um tempo que me pareceu imenso continuei:

— ... para pedir-te que permitas que o povo judeu volte a Jerusalém e reconstrua o Templo de nosso Deus Yahweh.

Pronto, eu o fizera! O destino de meu povo e o meu próprio estavam jogados ao chão, como astrágalos à frente de Cyro, para que ele decidisse seu resultado. Eu me aliviara de um peso imenso, e quase me sentia bem, comparativamente a meu estado de antes. O suor me escorria pelo rosto em grossas bagas, e a tontura de fraqueza era quase uma bênção, porque, perdendo a consciência, livraria-me da dor e da missão que me havia sido imposta. Não conseguia nem mesmo compreender o que estava fazendo ali: a abençoada escuridão do desmaio foi-me cobrindo lentamente, e só me recordo de ter ouvido, longe como se em outro Universo, a voz de Cyro gritando que me segurassem antes que resvalasse para o frio chão de tijolos onde decidi dormir para sempre, na paz dos que não têm mais nenhuma responsabilidade.

Só dei acordo de mim em outro lugar, deitado em fino leito de al-mofadas olorosas, cercado por penumbra benfazeja. Ao tentar mover-me, percebi minhas pernas paralisadas e soltei um grito de preocupação: mas quando se acercaram de mim as mulheres, que decerto ali estavam para cuidar-me, pude ver que tinha sido amarrado ao leito, e que meu membro e escroto já não estavam tão magoados e inchados quanto antes. Alguma coisa se projetava de minha glande: soube depois que o médico de Cyro havia-me enfiado pela uretra magoada um fino caniço perfurado, para que minha bexiga pudesse aliviar-se da urina, pois o arame em brasa havia deixado uma ferida que criava um refluxo em meu organismo, já que eu não tinha como aliviar-me dos líquidos que se acumulavam. O que o médico fizera fora romper essa calosidade com seu caniço, permitindo que a urina gotejasse para fora da bexiga, enquanto a uretra se recuperava, e, para que eu não me prejudicasse, havia imobilizado a parte inferior de meu corpo.

Era o segundo dia, desde que eu caíra em frente ao Grande Cyro, e, por mais que tentasse saber de que maneira minhas afirmativas haviam sido encaradas, ninguém me dizia coisa alguma. O silêncio era total, rompido apenas por meus gemidos, que imediatamente punham a meu lado alguém que cuidava de mim. Só recordo de ter ingerido líquidos, todos eles com alguma coisa que me deixava a boca dormente: presumo que isso também tenha sido usado para amortecer minha parte de baixo, fazendo com que as dores da micção fossem menores. A urina saia gota a gota, e a cada gota que percorria meu sistema eu me sentia menos ferido, se bem que ainda amedrontado pela possibilidade do sofrimento. Dormi mais do que de costume, nos cinco dias que passei nesses aposentos, e na última noite em que lá estive, uma das mulheres, usando um manto azul-marinho sobre a cabeça, disse-me ao ouvido, sem que eu pudesse ver-lhe o rosto:

— Minha senhora Ishtar te manda lembranças.

A recordação de Sha'hawaniah veio intensa, e até cogitei se os aposentos em que estava não seriam os mesmos em que com ela estivera na noite anterior à minha fuga desse palácio. Logo adormeci, de forma muito diversa das noites anteriores, segundo minha memória muito enevoada. Na manhã seguinte, o médico de Cyro veio ver-me, examinou-me o pênis com atenção, moveu o caniço em seu interior com delicadeza e, vendo que eu reagia normalmente, retirou-o com firmeza mas sem pressa de dentro de mim, mandando que minhas pernas fossem desatadas. Duas das mulheres esfregaram meus pés e pernas com algum ungüento, porque estavam quase que atrofiados pelos dias sem movimento, mas logo consegui movê-los e dei sinal de que queria me levantar. O médico permitiu que eu o fizesse e me perguntou se eu queria urinar. Disse-lhe que sim, e, ainda que todo o meu interior estivesse profundamente sensível, foi com certo prazer que senti a urina descendo dos rins, juntando-se na bexiga no centro de meu ventre e passando daí para fora, em seu caminho para a liberdade. Ainda doía um pouco quando atravessava o lugar onde a queimadura com o arame havia criado a calosidade, uma dor ácida e cortante, mas o médico me garantiu que a cada dia ela seria menor, pois minha urina estava fluindo de forma razoavelmente direta. Recomendou-me muita água e que ingerisse muitos líquidos, porque esse sistema do corpo só se recupera na medida em que é usado com constância, aconselhando-me que fizesse sexo assim que tivesse a oportunidade, ou me aliviasse por mim mesmo, porque, sendo nos homens os dois sistemas tão integrados um ao outro, era preciso fazer com que ambos estivessem em forma, por ordem de seu senhor Cyro.

Quando me ergui, percebi o alívio dos que me cercavam, compreendendo que minha saúde tinha sido objeto de ordens expressas de Cyro, especulando mesmo se suas vidas e bem-estar não teriam sido vinculados ao meu próprio bem-estar e vida. Cheguei até a varanda de meus aposentos por sobre o Eufrates, num dos andares mais altos do palácio, divisando abaixo de mim os jardins suspensos, de luxuriante beleza e cor. Minha varanda se projetava para fora do corpo da construção como a proa de um barco, e os cheiros trazidos pelo vento mostravam claramente que eu estava de volta à vida. Recordei-me de Ragel, o médico dos pedreiros, seus olhos apertados e seu olfato incomparável, e desejei tê-lo ali comigo: por mais que o médico de Cyro demonstrasse competência, era difícil confiar em gente desconhecida.

As notícias de minha recuperação correram celeremente pelo palácio, pois tão logo saí da varanda, voltando para dentro dos aposentos, vi à porta dois soldados de Cyro: esses homens me saudaram e informaram que o Grande Cyro me esperava, para que continuássemos nossa entrevista. As mulheres me ajudaram a vestir por sobre uma túnica curta os longos e flutuantes trajes finos, de tecido de algodão misturado com seda, com cores brilhantes, enfeitando-me os braços e o pescoço com colares e braceletes de ouro e esmalte. Duas delas se aproximaram com uma peruca de grande tamanho, enquanto outras duas estavam por adornar-me o rosto com cremes brancos, mas achei que isso seria demais: não pretendia tornar-me um arremedo do que não era nem sabia ser. Minha identidade de Príncipe de Jerusalém devia ser preservada a todo custo pela imposição do que eu era sobre aquilo que pretendiam que eu fosse. Não insistiram: tentei o tempo todo reconhecer entre as mulheres aquela que havia sido mensageira de Ishtar, mas nada consegui, porque nenhuma delas dava qualquer sinal de ter-me dito qualquer coisa. Estranhei que não me tivessem colocado nenhum tipo de calçado, acreditando ser esse o costume entre os medos. Pensando todo o tempo se não estaria perto de Sha'hawaniah, segui os dois soldados, esperando que descêssemos até o salão onde eu perdera a consciência: mas subimos mais ainda, até pelo menos dois andares acima de onde eu me curara, chegando no topo do palácio a um aposento quadrado e largo, com grandes janelas abertas e uma imensa mesa de madeira onde se espalhavam grandes mapas e desenhos que Cyro estudava com atenção. Alguns homens e mulheres o cercavam, atentos a todos os seus desejos, mas quando ele me viu, bateu palmas e cada uma dessas pessoas se curvando para o chão e se afastando de costas, até que no grande aposento estávamos apenas eu e ele, que me mandou sentar a um dos dois escabelos que nos aguardavam, perto de uma mesa redonda e baixa feita de cobre trabalhado, onde estavam dois púcaros de barro vidrado e uma jarra, da qual Cyro serviu-nos água fresca e cristalina.

Marcas de soldado cobriam todo o corpo de Cyro: pequenas e grandes cicatrizes, manchas arroxeadas e amareladas, nós dos dedos ralados. Notei também que sua juventude era muito desgastada, e seu rosto parecia precocemente envelhecido pelo sol e o vento, como acontece com os agricultores. A agricultura de Cyro era outra: ele plantava batalhas e colhia vitórias, com safras mais ou menos marcantes, mas nunca inferiores ao que decidira ser sua meta. O sorriso em seu rosto era de segurança absoluta: não parecia reconhecer nada mais poderoso que ele mesmo, e ainda assim, com todas as marcas que exibia, havia em seu olhar uma qualidade etérea que eu não conseguia captar, como se seu corpo fosse apenas a fachada de algo indefinido:

— Grande Cyro, estou a teu dispor: agradeço-te o médico que me pôs em forma. Se não fosse por ele, não sei se conseguiria sequer pôr-me de pé.

— Meu cirurgião disse que estavas impedido de urinar, e em meu país, talvez por causa da água, muitos morrem quando a urina, impedida de sair pelas vias normais, reflui para o sangue. Dei a ele uma opção clara: salvar-te a vida ou salvar-te a vida. Ele não fez mais do que escolher acertadamente.

Era interessante a maneira como Cyro encarava o próprio poder: um riso de galhofa pairava em sua boca, como se estivesse brincando, ou soubesse de algo que ninguém mais conhecesse. Sua frase seguinte, dita no mesmo tom, no entanto, foi assustadora:

— Tu me enganaste, Príncipe de Jerusalém: por que não me con-taste toda a história?

Fiquei mudo: em momentos como esse, sobrevém uma imensa vontade de justificar as próprias atitudes, mas eu ainda estava por demais enfraquecido para fazer uso desse artifício. Permaneci olhando para Cyro, que continuou:

— Por que não me revelaste que és membro da fraternidade da pedra? Ou pensavas que por estar longe de Jerusalém eu não saberia da existência desses homens, que fizeram do Templo de Salomão o objetivo de sua vida?

Balbuciei, desculpando-me:

— Grande Cyro, estou aqui como representante do povo de Jerusalém, que deseja reerguer o templo de nosso deus Yahweh. Os homens que trabalham a pedra são todos gente de nosso povo, e viveram todo esse tempo entre as ruínas, para que um dia a morada de nosso deus fosse reerguida. Não sei a que te referes quando mencionas uma fraternidade da pedra.

Cyro debruçou-se mais ainda em seu assento, fixando os olhos muito negros nos meus, como que me examinando a alma, e sua boca se alargou em um sorriso ainda mais jocoso, enquanto apoiava a face barbada na palma da mão esquerda:

— Seria melhor que me dissesses a verdade, Príncipe de Jerusalém: os homens que tudo sabem sobre todas as coisas mencionam essa fraternidade como a verdadeira força por trás da construção do Templo, e também que em seus subterrâneos existem vastos e impressionantes segredos, prova real de todo o poder de teu deus, aos quais apenas os homens que fazem parte dessa fraternidade têm acesso. É verdade?

— Grande Cyro, se isso é verdade, eu o desconheço: como já te disse, sou apenas o representante da vontade de meu povo, vindo à tua presença para ...

Cyro, sem afastar os olhos dos meus, ficando subitamente sério, varreu o ar com a mão direita, atirando longe a jarra e os dois púcaros de barro, que se quebraram na parede lateral do aposento com grande estardalhaço. Seu olhar tornou-se gélido como o metal de uma espada:

— Fala a verdade, Zorobabel! Conta-me tudo! Se pretendes sair daqui com vida, conta-me tudo! Eu sei que tu sabes o que se oculta sob as ruínas! Eu sei que conheces o triângulo de ouro que Enoch incrustou em um cubo de ágata! Por que insistes em fazer-te de ignorante?

Fiquei sem ação. Cyro já sabia mais do que eu podia crer, colocando -me em posição insustentável: como poderia eu trair a confiança de meus irmãos, se dessa confiança, nascia a minha força? Eu abominava a missão que recebera, mas era minha missão, da qual não podia escapar, sob pena de perder o que aprendera a prezar acima de tudo, meu respeito próprio. Aceitara a tarefa, e a figura de meu pai pairava sobre minha alma, com seu manto azul e branco e sua frase pétrea sobre compromissos e morte. Não me restava outra coisa a fazer: se cedesse ao medo e revelasse o que não devia, não poderia sequer conviver comigo mesmo. Respirei fundo e resolvi ganhar tempo:

— Grande Cyro, perdão: é verdade que faço parte da fraternidade da pedra, mas não podia revelá-lo, e o Grande Cyro deve entender meus motivos. Somos unidos por um laço de segredo que é a razão de nossa existência, e eu não tenho permissão para romper o laço que nos une. Podeis pedir-me qualquer coisa, menos que traia os que confiaram em mim.

Cyro ergueu-se e olhou para fora da grande varanda, com as pernas abertas e as mãos para trás: depois de um tempo, sempre de costas para mim, falando com voz bastante alta, disse:

— Não creio que sejas assim tão resistente à tortura, ainda mais agora que já sabes como ela é. O que quero saber, saberei, de uma maneira ou de outra, leve o tempo que levar. Se me revelares o que desejo conhecer, teu futuro estará garantido. Restituir-te-ei os tesouros da Judéia, permitirei que reconstruas o templo de teu deus, concederei plena liberdade a ti e a teu povo. Basta que me digas que nome está escrito no delta sagrado de Enoch. Se não o fizeres, sinto muito: teus dias estarão contados, e no fim deles extrairei de ti a verdade que me interessa, sem que nada possas contra mim. A decisão é tua: ou me contas a verdade ou retornas para as masmorras.

O sangue me ferveu nas veias: com que então, era este o homem de quem se dizia ser justo? Um tirano, como todos os outros, um animal idêntico ao mais baixo dos animais, tão baixo quanto Na'zzur e seus esbirros, a quem se igualava em crueldade e egoísmo. Minhas palavras duras saíram como cusparadas, enquanto eu olhava fixamente as costas desse maldito Cyro:

— Se é com a violação de meus segredos e sentimentos que me concedes a liberdade, prefiro morrer escravo! Não trairei de forma alguma os que confiam em mim.

Cyro, ainda de costas, ergueu os ombros e as mãos, num gesto de desalento:

— Tu é que sabes o que farás de tua vida e teus segredos. Minha cólera não é nem grande nem pequena, mas sempre do tamanho exato para os fins a que se destina.

Eu nada mais tinha a perder:

— Tua honra de Imperador não vale nada, Cyro! O "grande" que colocam antes de teu nome é um exagero sem sentido! Na verdade, és igual ao torturador que me ensinou na carne a verdadeira justiça dos impérios: entre tu e ele não existe nenhuma diferença.

Cyro bateu palmas, e imediatamente dois guardas entraram na sala e me seguraram pelos braços. Cyro virou-se lentamente e, sem olhar em meus olhos, disse-lhes:

— Levai-o para as masmorras que mandei preparar hoje cedo: lá, ele terá tempo de pensar e decidir se me revela ou não o que quero saber.

— Covarde! És um covarde! O poder que tens de nada vale! Olha-me nos olhos, Grande Cyro, olha-me nos olhos! Encara sem medo o homem que vai sofrer a tua covardia!

Enquanto os soldados me arrastaram para fora dos aposentos no alto do palácio, Cyro relanceou seu olhar sobre mim, e eu vi o temor dentro dele: eu era mais forte, e essa consciência me encheu de decisão. Nunca falaria, e minha vida terminaria sem que a missão se realizasse, por culpa de outro poderoso. Um deles destruíra meu povo e meu país, escravizando-nos por setenta anos, e o outro agora perpetuava essa escravidão, exigindo de mim o que eu não podia dar. Fui arrastado pelos corredores, para baixo, cada vez mais para baixo, já sentindo o cheiro de terra úmida que impregnava os porões do grande palácio. Não importava quantas vezes eu me erguesse, meu caminho constante era para baixo, sempre para baixo, e ele me encontrava sempre mais baixo que na vez anterior.

Algo de diferente havia, no entanto: ao descer para os porões, tomamos um caminho diferente do que eu conhecia, e, em vez de ir para o norte, entramos em um corredor na direção sul, bem iluminado, no qual o ar circulava com uma facilidade que eu não imaginava fosse possível nessa profundidade. Cyro certamente teria feito obras no palácio, abrindo novas masmorras a seu prazer e gosto, onde podia exercer sua crueldade de senhor do mundo de uma maneira totalmente nova, levando as fronteiras da maldade humana a patamares nunca antes percorridos. Minha alma degradada amargava a certeza de minha morte, e quando fui colocado em uma escura e profunda cela, custei a perceber que era limpa, de chão de pedra muito lisa, com as paredes perfeitamente esqüadrejadas, iluminada por uma estranha luz que vinha do alto, através de um longo túnel vertical no fim do qual eu podia ver o céu longínquo, o mesmo céu que nunca mais veria em liberdade. Essa luz, no entanto, era forte demais para que viesse de tão longe, chegando à cela difusa e suave, como se refletida por alguma superfície brilhante, recordando-me uma vez em que, ainda menino, brincara com a superfície polida de uma escudela de metal prateado, ficando por longo tempo a lançar uma bola de luz pelas paredes da casa de meu pai. O silêncio era profundo, e de vez em quando o som surdo de uma avalanche soava em meus ouvidos.

Ajeitei-me da melhor maneira possível num canto, olhando a faixa de luz que descia do túnel vertical, onde bailavam as partículas de pó de que o ar estava cheio. As paredes tinham muitas inscrições, certamente ali deixadas pelos pobres infelizes que, como eu, houvessem caído no desagrado do poderoso Cyro: apertando os olhos, pude ver uma série de rabiscos e desenhos, entre eles o de um galo com o bico aberto, como se estivesse cantando. Ao aproximar-me mais, na tentativa de enxergar melhor, meus pés chutaram alguma coisa que rolou algumas braças e parou: olhei em sua direção e, com um frêmito, vi que era um crânio humano, com órbitas vazias e dentes mal ajuntados, sorrindo para mim. Recuei com um susto: aquilo me dava a certeza de que ali só se produzia a morte.

De costas para a parede, fixando os ossos descarnados, fiz um apanhado geral de minha vida, percebendo que, até o surgimento de minha missão, ela de nada valera: eu a vivera movido apenas por impulsos e instintos, sem cogitar que houvesse outra coisa além da satisfação dos prazeres mais imediatos, aqueles que não levam em consideração nem o dia seguinte nem os que de mim estivessem próximos. Perdera todos os companheiros de juventude, de um ou outro modo, e até os que ganhara junto a esta missão irrealizável estavam irremediavelmente perdidos, inclusive o único entre eles que era velho e novo ao mesmo tempo, e que ocupara junto a meu pai o lugar que eu deveria ter ocupado. Sem amigos, sem pai, sem ninguém, sozinho nesse antro de morte, daria qualquer coisa para poder escapar disso que me parecia o final inglório de minha curtíssima vida.

Para minha surpresa, ouvi ao longe um sino de tonalidade muito grave, cujas badaladas se prolongaram como se nunca mais fossem terminar, deixando-me sem movimentos, porque junto a elas comecei a ouvir uma estranhíssima música cantada, cujas palavras não me eram claras, mas que se repetia sem que eu percebesse onde seu início se emendava a seu fim. Confesso que nada me amedrontou mais em toda a minha existência do que ouvir essas vozes masculinas entoando a estranha melodia que eu quase conseguia apreender, mas que me escapava incessantemente, na penumbra difusa de minha cela perfeitamente cúbica. O sino soou novamente, muito longe: eu não compreendia como sua sonoridade podia se multiplicar dessa maneira, chegando até mim de forma tão possante. E então, sem que eu imaginasse por quê, com um estalido muito baixo e um movimento delicado, a porta de minha cela se abriu.

Continuei paralisado: não podia acreditar no que via, sabendo que por trás dessa porta que se abria devia estar qualquer coisa muito mais cruel e destrutiva do que eu pudesse imaginar. O tempo passou, o hino continuou soando, e nada aconteceu. Cheguei até a porta e com muito cuidado olhei por sua fresta para o corredor iluminado por archotes: não havia ninguém à vista em qualquer de suas extremidades. Puxei a porta para que a fresta aumentasse, temendo que a qualquer momento ela girasse violentamente de volta em seus gonzos e me esmagasse: estava tão bem construída, que girou sozinha para fora da cela, escan-carando-se sem produzir qualquer ruído, encostando na parede e deixando-me livre.

Hesitei durante um tempo que me pareceu demasiadamente longo, mas não podia me permitir qualquer engano: se a porta se abrira, alguma razão havia, e certamente desejavam que eu seguisse em direção a algum lugar, por minha própria vontade, como se fazia com os ratos famintos nos labirintos das salas de jogo da Grande Baab'el, apostando naqueles que primeiro alcançassem a comida, depois de estraçalhar com seus dentes afiados os companheiros de infortúnio. A diferença é que eu estava só: o cântico continuava sem cessar, vindo da direção em que o corredor permanecia iluminado, exatamente oposta àquela pela qual eu tinha chegado. Era para onde eu deveria seguir, não me restando outra alternativa: ou ficava paralisado em plena masmorra, ou me movia para a frente, mesmo que isso significasse apenas um adiamento de minha morte, para divertir os poderosos que certamente me observavam.

Quando dei o primeiro passo para fora da cela, duas palavras na língua de meu povo explodiram em minha mente: uma com seis letras, vadaut, e outra com quatro, emun, certeza e confiança, e enquanto eu me indagava por que teria pensado nisso, as chamas negras que formavam as dez letras se fundiram e formaram uma palavra de apenas três letras, que eu já vira em meu vôo dentro do delta dourado, enchendo-me de certeza e confiança no que estava por fazer, como um tônico que me sustentasse na decisão de seguir em frente: ain, resh, yud. Qualquer que fosse o resultado, eu iria em frente: era o que se esperava de mim, era a minha missão, seguir em frente, sempre em frente, mesmo que meu coração pedisse outra coisa. O poder das letras de fogo negro me tomava o corpo com sua força inacreditável, e eu dei o primeiro passo na direção do corredor iluminado, que fazia uma curva muito suave para a direita e para cima, parecendo não ter fim. O primeiro passo me trouxe à mente as palavras de meu mestre Feq'qesh, durante uma aula de música: "Yahweh não exige que ninguém faça aquilo que não pode fazer. Se a tarefa for maior que as tuas forças, começa e vai até onde puderes. Yahweh não te pede que a termines, mas sim que não te desobrigues dela."

Eu deveria ir até onde suportasse, porque, quando chegasse a este ponto, aí estaria o fim de minha jornada. Assim pensando, segui o corredor, enquanto as letras de fogo negro dentro de mim bruxuleavam tanto quanto as chamas dos archotes perfeitamente idênticos que iluminavam o caminho.

 

O corredor fazia longa curva para a direita, ascendendo suavemente, sem que nada nas paredes perfeitamente esqüadrejadas desse sinais de diferença: os tijolos vidrados se interrompiam a cada seis ou sete braças para criar uma coluna mais grossa em ambas as paredes, feita dos mesmos tijolos colocados de través, formando uma protuberância na qual a ponta inferior dos archotes se apoiava, ficando presa a meio por um anel de metal escuro que se incrustava na parede. Quando percebi essa semelhança contínua, recordei meu treinador Théron, contando como os gregos entendiam a criação do mundo:

— Tudo nasceu do Kaós. — E quando lhe perguntei o que queria dizer isso, ele franziu as sombrancelhas, dizendo: — É a platitude infinita, a infinita repetição da igualdade, da qual saiu a nossa infinita variedade e conformação.

Ao recordar disso, voltei rapidamente ao início do corredor, onde a porta de minha cela marcava o limite entre a luz e a escuridão, e daí em diante retomei o caminho, contando archotes e colunas para marcar o momento onde a diferença surgisse para que eu pudesse me nortear, pois tanta similitude me dava a impressão exata de estar caminhando em pleno Kaós de Théron. Contei vinte e oito archotes até que surgisse à minha frente uma abertura quadrada, no limite da qual estava um lugar de imensa escuridão, na qual eu nada enxergava: um vento fortíssimo soprava nesse lugar, frio e úmido, e depois, ao longe, eu via que o corredor continuava, exatamente igual ao que eu percorrera até agora. O cântico não se interrompera, trazido pelo vento incessante, vindo de algum lugar ao longo do corredor que eu enxergava do outro lado do abismo. Já entendera: era preciso atravessar essa escuridão para seguir. O problema era um só: o que se ocultaria nessa treva tão absoluta?

Cheguei à beira da abertura e tateei com o pés o chão à minha frente. Nada encontrei. Estendi as mãos para dentro da escuridão, e só o vazio e o vento me tocaram a pele. Recuei, sentando-me no chão e refletindo se alguém me estaria testando. Tinham me levado até esse lugar para que eu provasse ser capaz de superar os obstáculos à minha frente, e o desconhecido trevoso era certamente bem pior do que a realidade, pois minha mente multiplicava por mil o abismo sem fundo nem limites que eu pressentia depois da abertura. Deitei-me ao chão e tateei com a mão direita rente à parede, para tentar alcançar seu fundo, e então percebi uma grossa corda atada a uma grande argola de metal, que se dirigia, pelo que pude perceber, até o outro lado da escuridão. Testei-a com um forte puxão: estava bem firme. Pensei que se me pendurasse nela poderia, mão após mão, levar-me até o outro lado, mas não tinha certeza de que o conseguiria. Ergui-me, numa súbita inspiração, e tateei para cima por dentro do abismo: na mesma posição que a primeira, encontrei outra corda idêntica, tão firme quanto a de baixo, e vi que podia apoiar meus pés na de baixo enquanto me pendurasse na de cima, atravessando o abismo insondável. Em minha alma inepta, as emoções eram turbilhão: o medo avassalador vinha em ondas como as tempestades de areia no deserto, e de cada vez essas ondas eram subjugadas pela certeza e confiança que as três letras de fogo negro me insulavam, ainda que eu não soubesse nem como nem por quê. Depois de alguma hesitação, sem outra saída, segurei a corda superior, colocando a planta do pé descalço na corda de baixo, sentindo a sua resistência por algum tempo antes de dar o primeiro passo para dentro do abismo.

Quando me pendurei na corda de cima, pisando na inferior com o pé esquerdo, a abertura por onde eu saíra se fechou com rapidez: a parede desceu como se estivesse presa por alguma coisa muito frágil que tivesse cedido ao peso dos tijolos. A escuridão era completa, e eu só enxergava ao longe a abertura que marcava o outro corredor iluminado. Não havia mais volta: tremendo, eu tinha que seguir em frente. O vento, logo depois que a abertura se fechou, começou a aumentar sensivelmente, balançando-me como se eu fosse um estandarte no alto de alguma torre. Temendo que a corda se rompesse a qualquer momento, fui-me agüentando como pude, passo a passo, mão a mão, enquanto o vento forte, frio e úmido me empapava as roupas já molhadas com meu próprio suor. Depois de alguns passos, não tinha mais como saber onde estava: perdera a noção do início, e a abertura parecia ficar mais longe a cada passo. Eu temia também que o mesmo poder que me fazia passar por isso decidisse fechar a abertura assim que eu me aproximasse dela, e acelerei meus movimentos.

O vento fortíssimo soprava cada vez mais, assoviando em meus ouvidos, as cordas balançavam cada vez mais, e eu segui seus movimentos, sentindo os músculos distendidos como cordas de lira, lembrando de Théron pelo treinamento que recebera e que me deixara apto a fazer este esforço, que ainda assim me enchia de dores lancinantes. Meu baixo-ventre estava como que anestesiado, mas enquanto eu progredia lateralmente entre as duas cordas, fixando o olhar na abertura, senti o cansaço. Pensei não conseguir dar os últimos passos, e quando ouvi mais uma interminável pancada do sino, temi que marcasse o momento em que a abertura se fecharia, deixando-me pendurado entre a treva e o nada: acelerei meus movimentos, até que, subitamente, meus pés encostaram na parede e atravessei o umbral, caindo extenuado no chão de um corredor em tudo idêntico ao que deixara para trás ao sair de minha cela. O vento soprava menos que antes, e subitamente esta parede também começou a mover-se para baixo, lentamente, encostando de tal forma no chão e com ele se embebendo tanto, que era como se ali nunca tivesse havido qualquer abertura.

Fiquei caído, arquejando, livre do terror que pensei nunca mais tivesse fim. Havia terminado, e concluí que nada poderia haver de pior que o que havia experimentado: meu corpo tremia de cansaço, eu precisava me recuperar. Tinha ficado cinco dias sobre um leito, e não me sentia capaz de dar mais nenhum passo. O estranho cântico prosseguia sem cessar, e eu já o ouvia com mais detalhes, ainda que sua origem estivesse sempre mais longe. Quando meu fôlego retornou, segui o corredor, continuando sua curva para a direita, que descia suavemente. No meio do caminho, comecei a ouvir, junto com o cântico, o ruído de água corrente cada vez mais forte, e especulei se não estaria indo para um dos portões que se abriam para o Eufrates, pelo qual poderia escapar.

Essa idéia me animou, e acelerei meu passo, ouvindo o ruído de água cada vez mais alto, até enxergar outra abertura quadrada na parede à minha frente. Não havia escuridão, mas sim uma penumbra difusa, e ao atravessar essa abertura descobri extasiado que todos os ruídos do mundo se apagavam frente ao caudaloso rio subterrâneo que corria da esquerda para a direita, vindo das trevas e para elas se dirigindo, em flagrante queda. A minha frente, as corredeiras de água barrenta eram fortes e violentas, levantando-se e quebrando com grande ruído e muita espuma amarelada: ergui meus olhos para o enorme teto abobadado, cobrindo uma câmara tão imensa quanto escura. O lugar de onde as águas jorravam era uma abertura bem menor, e o buraco onde caíam, com estrondo, era aparentemente muito profundo, na parte de baixo de um muro de tijolos escuríssimos mofados pela umidade.

Eu não conseguia definir em meu espírito se aquele rio era natural ou artificial: suas águas corriam em velocidade muito maior que as do Eufrates, e a luz difusa o enchia de sombras. Pela cor, eram águas do grande rio, canalizadas para conseguir essa velocidade quase impossível. O lugar onde eu pisava era apenas um pequeno degrau, no qual eu não poderia dar mais que dois passos antes de mergulhar nas escuras águas revoltas, um arremedo de varanda que se debruçava sobre a cau-dalosa torrente, e quando, depois de mais um toque do sino, a parede às minhas costas começou a se fechar, descendo em direção ao chão, percebi tudo. Teria que enfrentar essa torrente que me arrastaria para o esquecimento da garganta sem fim. Só me restava atravessá-la da melhor maneira possível: abaixei-me e coloquei a mão nas águas, tentando encontrar o fundo. Não havia fundo palpável, mas toquei uma grossa barra de metal firmemente embebida na pedra bruta, e que ia diretamente para a outra margem, por baixo d'água. Poderia usar essa barra como apoio para não ser arrastado, mas não sabia se ainda teria forças para me agüentar em meio nado durante a tarefa. E se a barra se interrompesse no meio da torrente, com vinte côvados de largura, como poderia suportar a força das águas para chegar à outra margem, onde o cântico persistia, cada vez mais definido?

A parede às minhas costas se fechou completamente, deixando-me em precário equilíbrio na estreita platibanda, envolvido pelo ruído das águas violentas. Só me restava entrar na água, e fui afundando lentamente na torrente, apoiando primeiro os pés, depois a barriga, abraçando a grossa barra de metal com as mãos, sentindo sua aspereza. A força das águas era imensa, cobrindo-me com facilidade a cabeça, e por duas vezes me levou para o outro lado da barra, a que me segurei desespera-damente, temendo ser arrastado para o sumidouro. Não sei como meus braços doloridos conseguiram me levar de volta a meu apoio, ao longo do qual me arrastei penosamente, tossindo e cuspindo, sentindo o gosto de lama que a água deixava em minha boca, apoiando o peito e avançando lentamente em direção ao outro lado, onde a abertura exibia mais um corredor idêntico, do qual o cântico saía cada vez mais alto. Pensei em desistir e deixar que esse rio me carregasse para o esquecimento, lavando minha presença da face da terra, livrando-me de mim mesmo. O instinto de sobrevivência, porém, ergueu-me a cabeça acima da espuma escura e enchi os pulmões de ar, e não sei como o lado direito de meu corpo encostou na margem oposta. Estendi o braço, sem largar a barra de metal, e me pendurei na margem mais alta, galgando a parede até o piso onde me atirei, extenuado e ofegante. A cabeça quase explodia com o esforço feito, mas a respiração foi-se acalmando, e me sentei, percebendo o silêncio, abismado ao ver que o rio caudaloso que acabara de atravessar era agora uma superfície calma e serena, ainda que certamente muito profunda, não havendo nenhum sinal de sua violência anterior. Foi essa mudança inexplicável que me deu a certeza de que aquilo era um teste, no qual eu deveria dar provas de minha força física, meu denodo ou minha determinação. Acreditava estar sendo vitorioso, porque, se pretendiam derrotar-me ou matar-me, não o haviam conseguido, ainda. A força das letras de fogo negro ainda corria em minhas veias: sua presença era poderosa, e cada vez que necessitava de alguma coisa que estivesse além de minhas forças ou de minha compreensão, elas surgiam, diversas umas das outras e sempre capazes de arrancar de mim alguma coisa que eu não sabia possuir.

Não me restava mais a fazer: antes que essa próxima abertura se fechasse, teria que atravessá-la, no temor do que viria a meu encontro e também na profunda certeza de que venceria mais essa prova. Bastou que eu atravessasse o umbral entrando em outro corredor idêntico aos anteriores, e um toque do sino soou, marcando a descida lenta e silenciosa da parede. A luz tremulava, e dei o primeiro passo no corredor iluminado por outros vinte e oito archotes, sem atinar com o que ainda estava por vir. Depois de ter passado pelo abismo aéreo e pela torrente de água violenta, o que ainda me faltava enfrentar para escapar dessa cruel masmorra cuidadosamente planejada? O cântico soava cada vez mais perto, e eu já ouvia os sistros e flautas que o acompanhavam: a impressão que tive foi de que a qualquer momento estaria entre os cantores. Ao mesmo tempo, sentia-me como um animal levado ao encontro da morte e destruição, para deleite de meus algozes. Meus sentimentos e emoções estavam à flor da pele, o coração batendo doidamente, a boca seca, enquanto a água enlameada do rio caudaloso secava sobre mim. O lugar desconhecido à minha frente fazia meus passos cada vez mais lentos, como se assim eu pudesse encompridar o corredor, empurrando cada vez mais para o futuro o momento que temia.

Quando enxerguei a abertura no fim do corredor, descortinei do outro lado uma paisagem que nunca havia sonhado ver: céu de entardecer, grandes e altas nuvens, árvores retilíneas de copa regularíssima, uma luminosidade que nunca vira. Dali vinha o cântico, e eu apertei o passo, na ânsia de livrar-me do corredor opressivo e respirar o ar puro do mundo exterior. Assim que dei o primeiro passo, no entanto, o sino soou mais uma vez, e à minha frente ergueu-se uma altíssima parede de fogo vivo, em cujo cimo se apoiavam grandes rolos de fumaça negra, impossível de atravessar: dei dois passos para trás, mas a abertura às minhas costas já se tinha fechado, transformando-se em parede. Através das imensas línguas de fogo, eu vislumbrava a paisagem que vira, e que, cada vez que o fogo diminuía e eu avançava em sua direção, era engolfada pelo aumento das labaredas, variando de acordo com minha atitude: se eu avançasse, aumentavam, se eu recuasse, diminuíam. Eu via meu objetivo do outro lado delas, sem poder alcançá-lo.

A parede de fogo não era muito larga: se eu vencesse o medo natural das chamas, saltando através delas, talvez pudesse chegar incólume ao outro lado. Mas não tinha como recuar para tomar impulso e ganhar velocidade suficiente, encostado na parede às minhas costas, sentindo o calor das chamas afoguear-me a face. Olhei para o chão, tentando descobrir de onde as chamas vinham, vendo que saíam de pequenas aberturas quadradas colocadas em fila, uma ao lado da outra, separadas por distâncias bem pequenas. Em minha frente, uma dessas aberturas demorava mais que as outras a lançar suas chamas para o alto, e notei que, a cada impulso de meu corpo para a frente, era ali que as chamas cresciam menos. Se tivesse ímpeto suficiente para saltar exatamente nesse ponto, com certeza conseguiria chegar ao outro lado sem mais que alguns chamuscos, pois minha roupa, mesmo ainda úmida pela travessia do rio, já estava mais seca do que antes.

Era preciso proteger o rosto: fixei meu olhar no chão de tijolos lisos que ficava do outro lado da barreira e, puxando o manto por sobre a cabeça, atirei-me através das flamas, exatamente no ponto onde elas mais tardavam a crescer. Fazê-lo às cegas encheu-me o coração de um terror indescritível, ainda mais quando senti que uma mão forte e firme me pegava pelo pulso esquerdo, com decisão. Temi que fosse alguém desejoso de ver-me esturricado, tentando puxar-me para o meio das chamas: com um grito e um repelão, avancei para a frente, sem pensar em nada a não ser minha sobrevivência.

O sino tocou, e fez-se um silêncio total no lugar onde eu estava. Arranquei o manto de sobre a cabeça, olhando para a esquerda, querendo ver a quem pertencia a mão que ainda me segurava o pulso. Meu coração deu um salto quando vi a meu lado o próprio Cyro, um sorriso nos lábios, os olhos brilhando de alegria. O grande conquistador do Império da Babilônia me estreitou com emoção contra seu peito e, dan-do-me o mesmo beijo na face esquerda que eu aprendera a dar em meus irmãos pedreiros, disse-me:

— Reconheço-te como tu me reconheces, Zerub: somos ambos irmãos na pedra.

Nada mais inesperado que isso: o grande senhor de todo o mundo era também um pedreiro, como eu? A nossa volta a sala estava cheia de homens com mantos negros: e só então percebi que a paisagem que vira era a decoração da sala, feita com tal maestria, que se parecia mais com a Natureza que a própria Natureza. Um templo erguido como se fosse ° universo, iluminado por uma luz etérea, com colunas como árvores, encimadas por um céu de beleza inacreditável, onde boiavam corpos celestes de diversos tipos e tamanhos, e um piso de mosaico muito brilhante, organizado em quadrados negros e brancos absolutamente idênticos: no centro, um altar de sacrifícios absolutamente limpo, feito de Pedra, com quatro cornos pontiagudos nos ângulos de sua superfície horizontal, e uma brisa perfumada de olíbano, enchendo meu coração de alegria.

A cerimônia continuou, e agora eu era o centro dela: todos os movimentos feitos dentro dos corredores, de espanto em espanto, tomaram sentido, encaixando-se no incompreensível mosaico de minha vida. Cada passo, cada gesto, cada elemento se articulou, ficando claro por que me haviam feito realizá-los. As palavras ditas, os movimentos cuidadosamente executados, os sons, as cores, os perfumes, a presença de Cyro a meu lado como um igual deram-me a compreensão súbita de que o que ali experimentara era uma continuação do que já fizera em outras oportunidades e circunstâncias, mas desta vez livre do medo. Não posso dizer mais que isso, já que um laço de segredo me une a meus irmãos pedreiros: mas, com certeza, a iniciação pela qual eu passara em Jerusalém e estas provas que enfrentara sob o palácio da Grande Baab'el eram uma e a mesma coisa, complementando-se para fixar-se de forma permanente em meu espírito.

Quando a cerimônia terminou e os homens deixaram o recinto, suas vozes se perdendo gradativamente pelos corredores, Cyro me levou até um banco de pedra do lado mais claro da grande sala, apenas um pedaço de pedra mais ou menos lisa, apoiado sobre duas outras pedras menores. Estávamos entre quatro colunas de tamanho idêntico e cores diferentes, nas quais corriam cortinas de pano muito diáfano, quase transparente em seu tom amarelo-dourado, abertas e soltas, uma brisa as fazendo adejar. O grande senhor do mundo me olhava com verdadeira alegria, certamente por estar percebendo meu espanto com o que havia acontecido:

— Ah, Zorobabel, meu irmão, se soubesses o quanto temi por tua vida... em meus aposentos, quando virei as costas para ti, achei que não estavas preparado para a tarefa que te fora dada, e que obedecerias à minha ordem sem sentido. Quando insisti sobre nossa fraternidade, e revelaste ser efetivamente um de nós, tive a certeza de que, por medo, tudo me revelarias. Por isso virei as costas, para não mostrar o que sentia: se tivesses revelado o segredo do Delta Sagrado, eu te mataria ali mesmo, e nada existe que eu tema mais do que ser obrigado a tirar a vida de um irmão.

— Mas como pode ser isso, Grande Cyro? Como pode o senhor de todo o mundo ser um pedreiro?

— Da mesma forma que tu o és, Príncipe Zerub — disse Cyro. — O trabalho na pedra, que dá nome à nossa fraternidade, é apenas o símbolo do trabalho incessante que cada um realiza dentro de si, para ser a cada dia um homem melhor.

— Meu irmão, existe muita diferença entre nós. Tu és o senhor de imensos impérios, enquanto eu sou apenas o príncipe de um povo desgraçado e sem importância.

Cyro gesticulou, batendo-me com familiaridade nas mãos:

— Nossa importância, um dia, será medida pelo que fizermos pelo mundo, não pelo que fazemos por nossa aldeia ou tribo. Aprendi muito cedo que existem coisas maiores que o poder absoluto, e mesmo esse poder não faz sentido se não for utilizado para uma causa nobre. Orgulho-me de nunca ter combatido um rei que não fosse cruel e mesquinho, e até hoje sempre lutei mais para libertar que para escravizar. No calor da batalha, sempre tentei manter inteira a minha humanidade: se o atrito é necessário até mesmo para que aconteça o fogo, também o é para que se produza alguma virtude entre os homens. Num campo de batalha, em meio aos gritos e ao sangue, sempre penso na virtude que existe em cada lutador, apostando nessa virtude ao permitir que os povos vencidos vivam da maneira que melhor entenderem, cultuando o deus que seu coração tiver escolhido, sem lhes tentar impor nem minha crença nem minha maneira de viver.

Era inacreditável: depois de enfrentar torturas e testes, correndo o maior risco de vida possível, estava sentado lado a lado com o homem mais poderoso do mundo, bebendo palavras que nunca esperara ouvir, por serem o oposto exato de tudo o que outros diziam. Cyro não tinha nem um grama da empáfia dos reis que eu conhecera: o poder, que nos outros era apenas exibição do que não possuíam, em Cyro dava a verdadeira noção do poder que ele tinha e a força de que dispunha, nascida da vontade férrea que ele aplicava em primeiro lugar sobre si mesmo. A idéia da liberdade alheia, que ele prezava acima de tudo, era uma novidade tão inesperada, que eu o invejei, desejando ser como ele para distribuir o poder que possuísse. Cyro pareceu ler meus pensamentos, porque sorriu e disse:

— Também tens uma tarefa a realizar, Zorobabel: não te esqueças que o destino te obriga a pôr em prática aquilo de que teu povo precisa, mesmo sem o saber. Também tens a vantagem de não estares sendo movido por nenhum tipo de culpa: o poder que nasce da culpa nunca é bom. As provas pelas quais te fiz passar, as mesmas que também enfrentei quando de minha ascensão, dão sinais evidentes de tua capacidade: posso ver em teus olhos que também és movido por responsabilidade, essa que nem sempre se deseja, mas da qual não se pode escapar facilmente, não é verdade?

— Grande Cyro, dizes exatamente o que está dentro de minha alma, mas não me reconheço capaz para essa tarefa: não a quis, não a desejo, ela não me traz nada a não ser a sensação de que sou a pessoa errada para realizá-la, mas dentro de mim existe tudo aquilo que meu pai me ensinou, e de que não consigo escapar.

— Comigo se dá o mesmo, Zerub — disse Cyro, entristecendo o sorriso. — Meu avô Astyages, com quem vivi desde pequeno, ensinou-me essa noção de dever, tanto pelo que fazia de certo quanto pelos erros que cometia. Percebi muito cedo que isso seria pouco: o que eu realmente queria era espalhar pelo maior território possível aquilo que intuía ser certo, como a fraternidade dos pedreiros me confirmou. Passando pelas mesmas provas que acabaste de enfrentar, fui definitivamente revestido dessa responsabilidade, da qual não posso mais fugir.

Dessa vez, o sorriso triste se espalhou pela minha própria face:

— Eis a diferença entre nós, Grande Cyro: tua alma desejava isso, enquanto a minha deseja outra coisa. O pior de tudo é que também não posso mais rejeitar essa missão. Mas se pudesse, ah, Grande Cyro, se pudesse...

— O que farias, o que serias, Zorobabel, meu irmão? Contei-lhe rapidamente sobre minha harpa, as aulas que Feq'qesh me dava, como me sentia verdadeiro cedendo aos desejos de minha mente e corpo: a música era uma linguagem natural em mim, e nela eu me refugiava. Cyro me ouviu com grande interesse, comentando:

— Teu antepassado David também foi um músico, arte que aprendeu quando ainda pastor, e que nunca abandonou, nem nos momentos mais difíceis. O que a alma pede nem sempre é o que o corpo deseja, e só a vida nos ensina a diferença entre uma coisa e outra. O homem que não é senhor de seus desejos e vontades acaba se tornando escravo deles. Pensa, Zerub: nós que pretendemos governar o mundo, como podemos ser escravos do que existe de pior dentro de nós?

O sino tocou, causando-me um sobressalto: haveria ainda provas a enfrentar? O sorriso de Cyro me tranqüilizou, e quando ele se ergueu do banco eu o acompanhei. Saímos do grande salão, que foi-se apagando às nossas costas: cheguei a olhar para o lugar onde estivera, e nada enxerguei, como se fosse um outro mundo que existisse apenas para o ritual que se realizara. Seguimos lado a lado pelo corredor curvo, que subia imperceptivelmente, e entramos em uma sala iluminada pelo sol, onde mulheres adornadas à moda persa nos perfumaram e vestiram com trajes de seda, calçando-nos os pés com sandálias abotinadas de couro macio. Tanto eu quanto Cyro tivemos mantos pesados colocados sobre os ombros, e enquanto ele se envolveu com o seu, eu cobri a cabeça com o meu: lado a lado, vestidos com trajes idênticos, encaminhamos-nos para o grande salão do palácio, o mesmo onde eu enfrentara momentos inesquecíveis de minha vida, e que sempre seria para mim o cenário dos grandes acontecimentos.

Ao cruzarmos o umbral desse grande salão, fomos recebidos com gritos de regozijo e saudação, e eu pude ver na audiência não apenas os notáveis que nela estiveram quando de minha ousada apresentação a Cyros, mas também muitos de meus compatriotas judeus, vestidos com os trajes de nosso povo, erguendo as mãos para o céu em agradecimento, ao ver-me com a cabeça coberta. Na parede do fundo, as marcas do primeiro milagre de Yahweh a que eu assistira se destacavam, e as letras sagradas me recordavam todas as letras de fogo negro que eu via dentro de minha mente. Atravessamos o salão, e bem próximo ao imenso trono de pedra estava um escabelo de madeira negra coberto por almofadas forradas de grosso tecido carmesim. Divisei no meio das faces ansiosas os rostos espantados de Heman e Iditum, meus guardiões, e logo atrás deles vi Jael e Yeoshua, tão semelhantes em sua identidade de judeus, mais ainda por serem os únicos amigos que eu tinha na mixórdia da Grande Baab'el. Fiz um movimento em sua direção, mas Cyros me segurou pelo cotovelo e me impulsionou para a frente, murmurando, entre dentes:

— Ainda não, Zorobabel, ainda não: agora é a hora de vivermos a liturgia dos cargos que nos foram impostos. Um pouco de paciência.

Ouvindo isso, lancei um longo e sentido olhar a meus conhecidos, enquanto Cyro me conduzia como um seu igual para o trono, onde me sentei a seu lado, entre as sonoridades dos sinos e das trombetas de guerra. O burburinho era infernal, e interrompeu-se bruscamente quando Cyro, erguendo a mão direita, calou a todos, fazendo sua voz ecoar pelas paredes da grande sala onde o deus de meu povo havia dado provas de sua existência:

— Sou Cyro, rei do Mundo, Grande Rei, Legítimo Rei, filho de Cambyses, neto de Astyages, senhor dos Aquemênidas, chefe dos Busa, dos Partacenos, dos Struchates, dos Anizantes, dos Budos e dos Magos, dominador da Hircânia e da Párcia, conquistador da Dragiana, da Aracosia, da Margiana e da Báctria, vencedor e dominador do Egito e do Império da Babilônia. Minhas leis têm a proteção e o amor de Nebo, Marduq e Ishtar. Quando entrei na Grande Baab'el como amigo, estabeleci meu trono neste palácio sob grande júbilo e regozijo, já que por minha mão todos os santuários de todos os deuses deste e do outro lado do Eufrates e do Tigre continuam sendo respeitados e reconstruídos, e fui brindado com a profecia de um grande entre os grandes, que reconheceu em mim aquele que faria felizes a todos os homens, por reconhecer em cada um deles a imagem do Único e Verdadeiro Deus!

Era outro homem, de poder incalculável, este em que Cyro se transformara: os olhos lançavam chispas, o corpo marcado pelas mazelas da guerra crescia, dizendo coisas inacreditáveis, sendo-nos impossível dele desviar o olhar. Como poderia o Senhor do Mundo reconhecer que um único deus morava dentro de todos? Cada um dos homens que ali estava tinha certeza absoluta de que era a seu deus pessoal que Cyro se referia, sentindo em sua alma o impulso reconhecer todos os outros homens como seus iguais.

Cyro continuou, erguendo novamente a mão para calar o burburinho:

— O Deus Único deu-me todos os reinos da Terra, como na profecia de Jeremias, e o templo que devo recuperar e reconstruir é o da cidade de Jerusalém, em Judah. Ordeno a todos que façam parte desse povo e sejam filhos do Deus Único que dêem um passo à frente1.

Um murmúrio de incredulidade tomou o lado esquerdo do salão, onde eu via meus compatriotas com as cabeças cobertas por mantos, paralisados a princípio, mas depois, cada vez mais rápido, dando um passo à frente, destacando-se dos que ali exibiam sua imensa variedade de cabelos, peles, trajes e fisionomias, com os olhos cheios de surpresa e agradecimento:

— Que vosso Deus esteja convosco! Que todos os sobreviventes, escravizados pelos cruéis senhores da Grande Baab'el, onde quer que tenham vivido, sejam auxiliados com prata, ouro, matérias-primas e oferendas dadas de boa vontade para a reconstrução da morada de vosso Deus!

Entre gritos de alegria, Cyro levantou os dois braços para o alto e começou a falar com voz calma e grave, que vibrava em todos os corações que ali estavam:

— Em um sonho, vi três homens, dois deles acorrentados, e por sobre eles o terceiro, como uma águia que os sobrevoava, proferindo o nome do deus dos hebreus: os dois acorrentados eram Nebbucha-drena'zzar e Belshah'zzar, reis da Grande Baab'el, que experimentaram na própria carne a ira do deus dos hebreus. O terceiro, o que lhes sobrevoa as cabeças enquanto profere o nome de seu Criador, está aqui a meu lado: é Zorobabel, a semente da Babilônia, herdeiro do rei David e Príncipe de Israel e Judah! Ei-lo entre nós, para cumprir a profecia depois das dez semanas de anos de cativeiro! Ergue-te, Príncipe Zorobabel, para que vossos súditos vos conheça!

Todos os olhares na sala se voltaram para mim, enquanto Cyro me erguia pelo cotovelo, levantando meu braço direito para o alto, ao que todo o grande salão se pôs a gritar-me o nome. O barulho era indescritível, e eu, os olhos enevoados pelas lágrimas que os enchiam, só via minha própria alma, nela se destacando as letras que um deus havia marcado com Sua própria mão nas paredes da grande sala onde me era dado poder para realizar a obra de minha vida. Os que ali estavam me reconheciam como seu líder, prontos a ser guiados no caminho de volta à nossa terra natal, onde Deus esperava que Lhe reerguêssemos a morada. Acreditei por um instante ter chegado ao fim de minha tarefa, mal sabendo que dela não realizara nem a mais ínfima das menores partes, e que minha alma e corpo ainda teriam muitos caminhos a percorrer antes que o descanso pelo qual ansiava pudesse finalmente ser-me concedido.

 

Como é fácil enganar-se com a aclamação pública, na qual apenas nossas qualidades são exibidas! A emoção que me assomara durante o discurso de Cyro me fizera acreditar ter chegado ao ponto máximo de minha vida, pois a alegria com que o povo judeu da Grande Baab'el se regozijou pela notícia de que finalmente retomaria seu verdadeiro papel pareceu definitiva, absoluta, incontestável. Vi amigos novos e antigos na multidão, e em cada rosto se refletia a alegria pela vitória: devia ter olhado também para o outro lado, onde estavam outros habitantes da Grande Baab'el, a quem a notícia não satisfizera nem um pouco. Havia de tudo, e as opiniões sobre minha existência e missão se tornaram, assim que a notícia ganhou as ruas da cidade, tão numerosas quanto as pessoas que se interessavam por ela: por sorte, não me foram ocultadas, como se costuma fazer com os reis. Era preciso conhecer a verdade, e não fui poupado de nada. Meu hábito de andar pelas ruas, principalmente agora que nada mais tinha a temer, foi importante, porque, se havia quem me saudasse como a um verdadeiro messias, também havia quem virasse a cara à minha passagem, ou me invectivasse com palavras ásperas, por receio da mudança que eu trazia. Meus dois guardiões, Heman e Iditum, que depois do desespero com minha prisão estavam de volta a suas funções oficiais, andavam tontos, tentando impor autoridade sobre os que me ofendiam, o que só fazia com que os mais desrespeitosos recrudescessem. Certas coisas que ouvi me fizeram retornar a meio caminho de meus planos, não chegando nem mesmo ao teVavivo, onde esperava ser recebido como um verdadeiro mashiach, ainda que soubesse não sê-lo.

Acompanhado por Yeoshua e Jael, voltei ao grande palácio, onde era hóspede, com o humor bastante prejudicado: não tinha idéia de que minha missão pudesse gerar tanta discórdia. Fora recolher a glória de ser salvador e, em vez disso, só encontrara gente mal-agradecida. Yeoshua percebeu minha amolação e, sem hesitar, disse-me:

— Amigo, o poder tem seu preço, e é o que se paga para conhecer a verdade sobre os que o sofrem e os que o aplicam. Esqueces do que pensávamos quando jovens, quando a Grande Baab'el nos valia mais que uma terra abandonada e esquecida? A maioria dos de Judah que aqui vivem pensa dessa maneira: por que trocar o brilho certo pela escuridão duvidosa, ainda mais quando já se passaram setenta anos e ninguém se recorda do que lá havia?

— Mas como pode ser isso? — Minha mente não compreendia o que estava acontecendo. — Fui trazido até aqui pelo próprio Yahweh, para libertar o povo de meus antepassados. Eles não desejam voltar ao berço de sua verdadeira existência? Afinal, que papel estou eu fazendo nessa tolice que a cada instante se revela mais claramente a meus olhos?

Yeoshua sorriu, e em sua face barbada eu vi o reflexo do rapazola que deixara no cais, proferindo uma bênção sobre minha cabeça, mais amedrontado que qualquer um de nós:

— Querias que tudo te caísse nas mãos como o manah dos céus? Impossível, Zerub: mesmo o manah, quando aparecia todas as manhãs no deserto para alimentar o povo de Israel, precisava ser recolhido. Não caía diretamente nas bocas de ninguém: as colheitas, mesmo as sagradas, devem ser fruto de esforço, paciência, determinação. Quem te disse que ia ser fácil? O próprio Moisés, depois que conseguiu a permissão do Faraó para tirar nosso povo do Egito, teve que enfrentar a oposição da maior parte deles, acostumados à vida de escravos, preferindo a desgraça que já conheciam à realidade que era totalmente desconhecida de todos. Imaginas que os que moram aqui sejam diferentes desses?

Sacudi a cabeça, com incredulidade: as incertezas voltavam a se acumular, erguendo uma torre tão alta quanto a que eu via pela janela:

— Começo a duvidar da escolha de Yahweh, e não tenho a paciência e a determinação que a tarefa me exige. Cada remoque que ouvi hoje foi um furo no tecido da minha decisão. Minha vontade neste exato momento é deixar tudo como está e esquecer a história toda!

Jael interferiu:

— Zerub, acalma-te: ainda terás muitos momentos como este a enfrentar. Estamos apenas no início da jornada. Uma vez iniciada, será um grande bloco de pedra que rola pela encosta de uma montanha, e que ninguém lhe fique no caminho!

— Temo apenas que este bloco, uma vez posto em movimento, encontre somente a mim na sua frente: no que depender dos judeus da Grande Baab'el, ao que tudo indica, farei a viagem de volta completamente só...

Meu espírito estava verdadeiramente negativo, e nada que meus companheiros dissessem mudava meu humor. Eu não conseguia ver nem objetivo nem vantagem no que estava por fazer, e a sensação de inutilidade se avolumava a cada instante: estava preso no círculo vicioso de meus sentimentos depressivos, a cabeça entre as mãos, dando longos suspiros espaçados, sem enxergar saída para um dilema insolúvel.

Alguém bateu à porta de minha câmara, e um de meus guardiões a abriu. Do lado de fora estava uma mulher morena, vestida de azul-marinho, e a visão de sua figura foi um baque em meu coração, recor-dando-me Sha'hawaniah, o verdadeiro motivo pelo qual aceitara a coroa real, e de quem inexplicavelmente havia esquecido. Avancei em sua direção, e a mulher se ajoelhou à minha frente, estendendo-me um pequeno tablete de argila onde alguma coisa estava garatujada. Peguei o tablete, e a mulher, erguendo seus olhos sombreados para mim, sussurrou, de forma que apenas eu pudesse ouvir:

— Minha senhora Ishtar te manda lembranças...

Quase saltei para trás, mas me recompus e olhei o tablete, dando-lhe toda a atenção. Estava marcado pelos pequenos sinais em forma de cunha, e eu percebia a leveza com que haviam sido impressos. Trazia apenas uma frase, que fez meu coração saltar doidamente dentro do peito: "Sha'hawaniah saúda a Zerub, Príncipe de Israel, a quem concede uma visita quando lhe for mais conveniente."

Não sei quanto tempo fiquei mirando o tablete, mas, quando Yeoshua se aproximou, ocultei-o sob meu manto, mantendo-o junto a meu corpo, sentindo-o aquecer-se no contato com minha pele, enquanto minha mente fervia com imagens de prazeres sem medida. Ao voltar-me para a mulher, percebi que a porta se fechava sem que eu pudesse dar-lhe a minha resposta. Melhor assim, pensei: deve ter percebido meu pouco à-vontade, deixando por minha conta a decisão sobre o momento dessa visita. Eu teria que fazer o próximo movimento em direção ao desejo enraizado em meu baixo-ventre. Outra batida na porta, que dessa vez se abriu para revelar um soldado de Cyro, informando que seu senhor me aguardava para uma conversa, à qual só nós dois estaríamos presentes. A alegria de meus amigos foi imensa ao saber dessa benesse de Cyro, desviando sua atenção da mensagem que eu recebera antes, e que continuava sendo o centro de minha atenção, ainda que eu fingisse a seriedade de um verdadeiro rei, dizendo que Cyro podia aguardar-me em seus aposentos assim que o sol se pusesse.

O que na Grande Baab'el marcava o fim do dia e o começo de um outro era o momento em que o último raio de sol brilhava sobre a reluzente estátua de Marduq, no alto da grande Torre, tão carregada de lembranças para mim. Desta vez, no entanto, eu estava em outro nível, e quando as trombetas começaram a soar por toda a metrópole uma nota correspondente à aparição de cada uma das estrelas do céu, com a alma cheia de ansiedade me dirigi ao Grande Cyro.

Os aposentos eram os mesmos onde eu havia sido recebido pela primeira vez, convalescendo da tortura, onde Cyro insistira que lhe revelasse o segredo de que ambos éramos depositários. Nesse dia, minha vida tinha tomado mais um rumo inesperado, como acontecia quando um desses momentos de mudança se dava. Os instantes que os antecediam eram sempre muito desagradáveis, mas os resultados traziam prazer suficiente para que eu esquecesse a dor que os gerara, pois estava aprendendo a enfrentar as dificuldades que estão na raiz de toda obra.

Cyro estava sentado à sua mesa, entre mapas e editos, extremamente atento ao que estava lendo: quando percebeu minha chegada, ergueu a mão em minha direção sem tirar os olhos do pergaminho que decifrava, ficando com ela erguida até terminar de ler. Recostou-se para trás, de olhos fechados, digerindo o que havia apreendido, e depois de algum tempo abriu os olhos e me fixou, convidando-me a sentar, enquanto dizia:

— Irmão Zorobabel, aprende: os negócios de estado são infinitos, constantes e avassaladores, a tal ponto que nem mesmo durante o sono um governante tem como livrar-se deles. Passaste bem a noite?

— Magnificamente, irmão Cyro: estou muito feliz. O que me torna menos feliz do que deveria é o que fica fora do palácio: não imaginas o que o povo diz a meu respeito...

Cyro soltou uma sonora gargalhada:

— Não é nada pior do que dizem sobre mim: não existe povo que respeite seu governante, porque todos sempre sabem exatamente como conduzir o governo, e sempre de forma completamente diferente da que o governante aplica. Ainda não viste nada: tua tarefa nem começou. Tens uma missão a cumprir por teu povo, por teus irmãos na pedra e até mesmo por mim, também profetizado como reconstrutor do Templo. É meu dever auxiliar-te nessa tarefa, porque prevejo grandes dificuldades, e devo te preparar para que as enfrentes da melhor maneira possível. Se tiveres paciência, te ajudarei a cumprir teu objetivo, dando notícias das coisas que eu mesmo vivi e experimentei, que já foram vividas por tantos outros antes de nós e que ainda o serão por muitos outros que nos sucederão.

Suspirei, cansado, e lhe disse:

— Nada tenho feito senão aprender, irmão Cyro: desde que fui designado como Reconstrutor do Templo, passo todos os meus dias estudando, aprendendo, sendo corrigido, vivendo por conta dos desejos alheios, de forma tão absurda, que até durante o sono pareço estar recebendo instruções. É insuportável!

— Essa é a vida, Zorobabel: primeiro aprender, depois ensinar. No caso de um governante, a coisa se complica: como tantos dependem de nós, nosso aprendizado é sempre mais intenso. Exigem-nos aprendamos muito mais do que seria humanamente possível, aguardando, às vezes inutilmente, que chegue o momento de ensinar. Poucos têm o privilégio de repassar o que lhes foi ensinado: muitos dos que o fazem, não vendo valor naquele que aprende, tornam-se amargos, negativos, tristes. A verdade é uma só, meu irmão: mais vale o que se aprende que o que nos ensinam. A mim foi ensinada a força das armas, a violência como forma de conquistar poder, a satisfação dos desejos carnais como único uso do poder amealhado. Por que então, eu não uso para isso o poder que tenho?

Fiquei calado: minha pouca experiência dizia que o poder só tem sentido se for usado: mas Cyro era surpreendente, com uma visão totalmente nova do papel do senhor do mundo. Em muitos momentos me lembrava Feq'qesh, ensinando mais que apenas as canções e a maneira de arranhar as cordas da harpa. Em cada frase dita, surgia uma coisa totalmente nova, e Cyro com certeza sabia disso:

— Medos e Persas sempre fomos tribos absolutamente desgarradas umas das outras. Por mais que nos déssemos o pomposo nome de "reinos", éramos apenas um bando de gente desorganizada, vivendo da mão para a boca, lutando hoje contra o aliado de ontem. A tribo dos Pasárgadas, onde nasci, sempre foi a tribo do maior número de chefes dos Medos: minha mãe, Mandane, é filha de Astyages, chefe dos Medos, e meu pai Cambyses, que passou a fazer parte do reinado de meu avô, aceitando que pela primeira vez um Medo governasse os Persas. A união era muito artificial, pois antes de meu nascimento não havia ninguém que fosse ao mesmo tempo Medo e Persa, capaz de unir os dois grupos em um só. Meu avô acreditava estar realizando o desejo divino de união entre os dois reinos.

Cyro ria consigo mesmo, pelas lembranças que o assunto lhe trazia:

— Quando fui levado para conhecer meu avô, espantei-me com a capacidade de chafurdar em luxo e riqueza que os Medos exibiam, pois onde eu nascera a vida era frugal. Foi na soma dessas experiências que notei haver mais coisas ocultas pelo poder do que as que me saltavam aos olhos, e jurei que me tornaria senhor dos dois reinos e nunca os desuniria, e que traria para meu aprisco as ovelhas desgarradas que encontrasse espalhadas, fossem simples indivíduos ou tribos inteiras. Eu desejava mais poder que qualquer outro, porque pensei que, se podia ser senhor de muitas tribos, podia perfeitamente sê-lo de todas, estendendo meu braço em todas as direções e transformando-me em Senhor do Mundo. Encontrei em meu caminho, quando já era senhor dos dois reinos, um grupo de pedreiros viajantes, que me falaram de erguer nas terras de minha tribo uma cidade digna desse nome, aventando a hipótese de que eu um dia me tornasse um deles, para que a obra fizesse sentido. Confesso que achei uma diminuição a idéia de transformar um rei em pedreiro: mas quando vi as obras, percebi que as construções de pedra tinham um objetivo acima e além do que se via. Aceitei tornar-me um deles, a quem unia um laço mais profundo que a simples lida na pedra, e a prova disso é Pasárgada.

Cyro colocou seus profundos olhos nos meus, dizendo, com intensidade:

— O deus que criou este Universo tem diversas facetas, e eu devo encontrar em cada homem a verdadeira faceta divina, para que minha obra possa fazer-se perfeita, sem deslizes. De cada um, quero apenas o melhor que tenha a dar, e nunca o que não possui: não exijo de ninguém que seja mais do que pode ser, mas não aceito que seja menos. Meu irmão me entende?

As coisas custavam a se concretizar em minha mente, levando bastante tempo até que eu as compreendesse. Tenho no entanto a vantagem de manter essa compreensão para sempre, pois ela se torna parte de mim. Com Cyro não foi diferente: o destino sempre me coloca à frente aquilo que devo aprender, e me dá todas as oportunidades para que esse aprendizado se faça. Nessa primeira conversa com Cyro, minha alma só percebia de forma muito tênue o que ele queria dizer, e foi no decorrer de minha vida que o entendimento do que ele disse me tomou. Acenei com a cabeça: Cyro, espreguiçando-se na cadeira de ébano e couro, falou, antes de me dispensar:

— Não desejo te entupir de idéias, meu irmão: mas hás de ser meu homem de confiança em Jerusalém, e somarei meu poder ao teu, se o teu não for suficiente.

Não sei como agradeci a Cyro pela confiança, e, depois de nos beijarmos à moda dos irmãos na pedra, saí em direção a meus aposentos, seguido por meus dois guardiões. Sabia que essa era a primeira das muitas oportunidades em que aprenderia com ele, ao mesmo tempo profundamente orgulhoso de ver por ele reconhecido o meu valor. Eu por certo estava fazendo o que devia fazer: com essa certeza no coração, decidi que a recompensa deveria ser recebida imediatamente, e eu sabia exatamente qual era ela.

Ao entrar em minha câmara, encontrei Yeoshua e Jael, que me aguardavam. Vesti-me com apuro, colocando em meus pulsos os braceletes que antes rejeitara e que Cyro mandara entregar em meu quarto. Perfumei-me e ordenei aos guardas que me levassem imediatamente aos aposentos de Sha'hawaniah. Yeoshua fechou a cara quando ouviu minha ordem ao guarda:

— Não te recomendo o contato com essa mulher, Zerub: ela é uma sacerdotisa de Ishtar, a mesma deusa que causou a queda de teu avô Salomão. Não creio que, em momento como este, pretendas satisfazer teus desejos pessoais...

— E por que não, Yeoshua? — Jael franziu o cenho, com um ar de incompreensão. — O fato de ter uma missão a cumprir o afastará para sempre da vida real? Deverá cessar todas as atividades que o igualem ao comum dos homens? Ele não vai ao encontro dela por nenhum motivo religioso, Yeoshua: suas intenções são rigorosamente outras...

— As de Salomão também foram, Jael: ele queria apenas satisfazer sua necessidade de prazer, e por causa disso rompeu o pacto com Yahweh, mergulhando Jerusalém em quatro séculos de trevas!

— Yeoshua, Salomão teve mais de mil mulheres em seu harém. Até parece que pretendes que Zerub se torne um desses profetas que abandonam o corpo, transformando-se em puro espírito! Essa mulher neste instante é apenas a satisfação dos desejos, nada mais! Que mal pode haver em alguns momentos de delicioso contato físico?

— Mas se é exatamente através do físico que elas dominam os reis! — Yeoshua tinha a face vermelha. — O poder dessa abominação está exatamente em seu corpo sensual, em seu conhecimento das maneiras pelas quais se nubla a mente de um homem, para retomar o poder que um dia foi seu! Zerub devia pensar mais como rei do que como homem!

Nesse momento, ficou claro que meus dois amigos estariam sempre opostos um ao outro: nunca houve um momento sequer em que concordassem, quando o assunto fosse minha vida. Yeoshua diria sempre não, Jael diria sempre sim, e eu decidiria com mais facilidade o que fazer, já que as contradições que todo homem tem dentro de si estavam representadas com clareza nesses dois amigos. As vantagens de ser rei são estas: todas as opções nos caem às mãos, mas a escolha é sempre e indiscutivelmente pessoal, intransferível, restando-nos decidir bem, o que nem sempre acontece. Calei a boca dos dois com um gesto:

— Basta, meu amigo, meu irmão: entendo o que me dizeis, mas não posso recusar um encontro com o qual sonho faz mais de um ano. Tu te recordas, Yeoshua, quando ela nos ajudou a fugir? Se não fosse essa infiel, provavelmente estaríamos mortos hoje! Que motivos teria ela para nos ajudar, se nem sabia quem éramos? Foi movida pela bondade natural de seu coração, e também um pouco, é lógico, por seu interesse físico em mim...

Yeoshua ergueu as mãos para o céu, num gesto de desalento que eu ainda o veria fazer muitas vezes, com a cara emburrada. Virei-me para Jael:

— Nem por isso estarei sob o domínio dela, meu irmão: sei o poder que ela tem, mas também sei que não poderá recusar-se a mim, como da outra vez. A situação é bem diferente, e ela já sabe disso: que outro motivo haveria para que me enviasse esse recado? Não nos enganemos, meu irmão, meu amigo: neste encontro, eu dito as regras, e creio que não me sairei mal.

Com essa frase, eu escondia meu temor: deixei meus aposentos com o ar elevado de um poderoso rei, inseguro como uma criança a quem não se diz a verdade. Jael me saudou com um sorriso nos lábios, enquanto Yeoshua cobriu a cabeça com o manto, em mais uma de suas intermináveis orações. Segui o soldado e, depois de algumas braças, me vi em frente à porta dos aposentos de Sha'hawaniah, de onde se evolava o inesquecível perfume que me penetrou, dissipando-me toda decisão e controle. Mesmo antes de vê-la, eu já havia esquecido o último ano de minha vida, tornando-me novamente o adolescente que se encantara com sua dança, seus olhos profundos, suas unhas negras. A porta se abriu e, com um baque, descortinei a mesma câmara em que passara a inesquecível noite antes de minha fuga da Grande Baab'el.

Os acólitos com as faces pintadas de azul se espalhavam pela sala escurecida pelos reposteiros que impediam a entrada da luz do sol, em tal número que as sombras pareciam fervilhar com eles. A minha frente, atrás dos véus de cores variadas, havia um degrau razoavelmente alto, onde pressenti a mulher com a qual sonhava pelo menos uma vez por dia desde que a conhecera. A grande quantidade de pessoas me incomodou, pois em minha fantasia estava seguro de que a encontraria absolutamente só e disponível: mas mesmo assim meus olhos e sentidos se dirigiam a ela, em meu baixo-ventre os sinais de que meu corpo sabia onde estava o prazer pelo qual ansiava. Os olhos de Sha'hawaniah brilhavam entre as sombras que lhe velavam o rosto, e quando ela estendeu um braço moreno terminado pela mão esguia de unhas negras, tive uma vertigem, caindo para a frente sobre um joelho e encostando meus lábios na pele acetinada e doce. Crótalos e sistros soavam mansamente, sem cessar, girando pelo ambiente, e quando Sha'hawaniah me puxou em sua direção, fazendo-me atravessar os véus que me separavam de seu lugar sagrado, esqueci-me de quem era, de onde vinha, do que desejava e principalmente do que sonhara.

Andei de quatro por sobre as almofadas onde ela se recostava, até chegar a dois palmos da face com a qual sonhara durante tantas noites. Quando ela me pôs a mão na testa, como se medisse a minha febre, as lágrimas escorreram de meus olhos, sem que eu entendesse por que isso acontecia. Sha'hawaniah mergulhou a mão em uma tigela de metal cheia de água fria e perfumada e, passando-a sobre meu rosto, disse:

— Príncipe Zerub, recebeste as lembranças que te enviei? Ou te esqueceste de mim?

Em minha mente, a confusão era completa, porque meu corpo estava em plena atividade, meus humores todos acumulados em meu baixo-ventre, onde eu acreditava que o prazer nunca mais aconteceria. Atirei-me para a frente, em direção a meu objetivo, sendo impedido de colar meus lábios aos seus pela mão que ela pôs em meu peito, seguran-do-me a dois dedos do hálito doce que soprou em minha face:

— Calma, meu príncipe, calma: o que te disse há um ano continua sendo verdade absoluta. Serei tua, completamente tua, assim que fores rei, e nada haverá que nos impeça de consumar o desejo que nos assoma...

A princípio, não compreendi o que ela me dizia, mas depois, lentamente, a estranheza da frase começou a penetrar-me a mente, reforçando a incompreensão das coisas:

— Como assim, quando eu for rei? Já o sou, não soubeste? Fui escolhido como Rei de Jerusalém por ser o último descendente de David: o próprio Grande Cyro assim o reconheceu, em público.

Sha'hawaniah riu, colocando-me os dedos finos sobre a boca, inebriando-me com seu perfume de canela, cravo e mais alguma outra erva que eu não reconhecia:

— Ainda não, meu príncipe, ainda não: enquanto não fores ungido pelos teus sacerdotes e não cavalgares o jumento branco pelas ruas de teu país, não serás rei.

Meu ar de incredulidade deve ter sido imenso, porque o sorriso dela se apagou, dando lugar a um ar de preocupação que eu não sabia dizer se era verdadeiro:

— Não sabias disso, meu príncipe? Não te disseram ser necessário todo um ritual para que teu Deus te reconheça rei? Por Ishtar, eles vêm te enganando todo esse tempo? Tu te deixaste convencer de que já eras rei, sem verdadeiramente sê-lo?

A mão que estava em meu peito empurrou-me com imensa força, fazendo-me cair para trás, boquiaberto pelo que ouvia. Sha'hawaniah recostou-se em suas almofadas macias, exibindo o corpo enlouquecedor, semicerrando os olhos, com uma voz que era o sibilo de uma serpente:

— As exigências de teu deus são muito estritas, meu príncipe: se fosses devoto de Ishtar, como eu, já estaríamos cumprindo o rito do amor entre deusa e rei, e estaríamos para sempre unidos. Mas tu esco-lheste esse deus ciumento, exclusivista, violento e agressivo, que só pretende reconstruir o mundo para demonstrar poder sobre suas criaturas. é uma pena...

A música cessou, repentinamente, quando Sha'hawaniah bateu palmas, as cortinas se abriram, rompendo a penumbra com a luz dura do sol, mas mesmo assim custei a entender que ela me estava despedindo: afinal, eu era apenas um homem, com desejos comuns a todos os homens, e não concebia que as exigências de deuses diferentes pudessem nos impedir de sermos iguais em desejo e busca de prazer. Vários acólitos se aproximaram, e sua presença, junto ao frio olhar de Sha'hawaniah, afastavam de mim o prêmio cor de carne que já desejara por tantas noites, e que ainda continuaria desejando violentamente. Ergui-me sobre os joelhos, numa súplica:

— Minha deusa, minha rainha, por que me torturar dessa maneira cruel? Somos o que somos, e nossos corpos juntos podem mais que um milhão de deuses separados...

— Não neste caso, Príncipe de Israel. —A voz dela vinha de algum lugar profundo dentro de seu peito, e seus olhos fixos nos meus como que apagavam a realidade à nossa volta. — Meu poder vem da dedicação exclusiva à minha deusa, e não posso abrir mão do que tenho simplesmente porque o desejo que me assoma está mais próximo do que Ela. É melhor que nos separemos, antes que percamos o controle de nossos atos...

Sha'hawaniah bateu palmas mais uma vez, os véus se abriram: eu não conseguia compreender por que estava sendo dispensado dessa maneira, recebendo uma lição para nunca mais esquecer. Mesmo cercado por seus acólitos, relutei, tentando defender o que considerava meu direito absoluto, por ser minha vontade mais forte:

— Assim não, minha senhora! Não neguemos nosso desejo em nome do absurdo controle de nossos atos. Se era para rejeitar-me mais uma vez, então por que chamar-me a teu convívio? Tenho pensado em ti durante todo o ano que se passou, e nada me deu maior alegria do que receber teu chamado! Não entendo ... de alguma maneira te ofendi, ou à tua deusa?

Dois acólitos me seguraram pelos cotovelos, afastando-me de Sha'hawaniah: quando me dei conta, estava com os pés firmemente plantados em pleno chão, tentando segurar-me onde estava, à vista dessa mulher que me enlouquecia, e a quem meu corpo e minha alma desejavam mais do que tudo. Gritei-lhe:

— Mulher! Por que prometer-me as delícias do paraíso e dar-me de beber apenas dessa taça de amargor? O que queres que eu faça? Dize-me, e eu o farei!

Fui arrastado para fora dos aposentos, sendo deixado só do outro lado da porta, que se fechou bruscamente, permitindo-me apenas ver na face inesquecível de Sha'hawaniah um estranho sorriso de vitória, que não compreendi senão muitos anos mais tarde. O soldado que me acompanhara e me ficara aguardando estava tão boquiaberto quanto eu: o inesperado desse acontecimento me fizera perder toda a compostura, e eu esmurrei a porta, aos gritos. Trocaria qualquer coisa, meu papel de rei, meu compromisso, minha vida, por um momento apenas de prazer junto àquele corpo inesquecível, que me tantalizara e me rejeitara.

Em vão: a porta permaneceu fechada, enquanto eu a esmurrava cada vez mais lentamente, deixando que lágrimas de frustração e raiva fluíssem amargas. Naquele instante, percebi que seria capaz das maiores iniqüidades apenas para que minha vontade e minha paixão fossem satisfeitas: mas esse prazer eu não teria, porque não dependia apenas de mim. Não havia mais em mim qualquer resquício da meia honra que me era dada, impedindo-me de realizar meus desejos. Se era rei, exigia ser tratado como tal. Se não era, que me deixassem em paz para viver minha própria vida, sem deveres nem sofrimentos inúteis.

Voltei-me para o soldado, bruscamente, enxugando com violência os olhos molhados:

— Vamos! Leva-me de volta a meus aposentos.

Saí pelo corredor pisando duro, caminhando celeremente à frente do soldado, que tinha verdadeiramente que fazer muito esforço para me acompanhar. Estava fulo de ódio, e, nas duas vezes em que errei o caminho, odiei ainda mais o que tinha acontecido. O soldado finalmente desistiu de passar-me à frente, seguindo-me com dificuldade. Houve um momento em que tive que refrear minha intensidade, pois o coração estava disparado e eu sentia o sangue bater nas têmporas como um tambor. Diminuí o passo, mas não a ira: sentia-me enganado pela vida, a rejeição de Sha'hawaniah fazia meu estômago se contorcer como uma serpente ferida, lançando uma bile ácida em minha garganta, que só servia para me irritar mais ainda. Quando finalmente descobri o corredor onde ficavam meus aposentos, avistei meus dois guardiões, os gêmeos que nunca me deixavam, prontos a percorrê-lo em minha procura. Passei por eles, batendo a porta atrás de mim, jogando-me em um escabelo ao centro do quarto.

Yeoshua e Jael me olhavam com espanto: não esperavam que eu retornasse tão cedo. Yeoshua estava com o manto cobrindo a cabeça, e seus lábios, mesmo depois que seus olhos se abriram e me perceberam, não cessaram de articular a oração que proferia. Jael, de pé na varanda da câmara, quando se virou e me viu, teve no rosto um momento de desânimo, logo transformado em preocupação:

— Irmão Zerub, já de volta?

Cuspi-lhe a resposta, sem tirar os olhos de Yeoshua:

— Passei momentos muito interessantes e educativos com a sacerdotisa de Ishtar. É sempre melhor ir buscar a resposta longe de onde somos senhores, não é verdade, Yeoshua?

O ar de incompreensão de Yeoshua não me convenceu nem um instante: ergui-me do escabelo e avancei em sua direção, mantendo-o sentado pelo peso de meu braço:

— Dize-me agora toda a verdade, Yeoshua: sou ou não sou o verdadeiro Rei dos Judeus?

Jael fez cara de espanto:

— Quanto a isso não resta nenhuma duvida. Sois o descendente de David, a semente da Grande Baab'el, aquele que estava descrito nas profecias! Não te recordas do momento em que os irmãos da pedra te reconhecemos como o homem que reerguerá o templo de Yahweh?

Interrompi-o, rispidamente:

— Que sou vosso jumento de carga, isso não se discute. — Voltei-me para Yeoshua, que permanecia orando. —Vamos, Yeoshua, fala francamente: sou ou não sou o verdadeiro Rei dos Judeus?

Yeoshua ergueu os olhos claros, vazios de qualquer emoção, retornando de algum lugar onde eu não podia tocá-lo: então seus olhos se firmaram em minha face, e ele corou, ficando com o rosto avermelhado, como quando ainda éramos crianças. Essa lembrança amainou o ódio de meu coração, mas ao mesmo tempo me cobriu de uma tristeza mais amarga que a rejeição que sentira. Meu semblante deve ter dado sinais disso, porque os olhos de Yeoshua também se encheram de lágrimas, enquanto ele unia as mãos à frente do rosto:

— Queres a verdade, Zerub? Não, tu não és o Rei dos Judeus. És o primeiro na lista sucessória, mas não o atual possuidor do direito. Nem tu te recordaste disso, mas teu tio Sheshba'zzar, o irmão mais velho de teu pai, continua vivo, e o direito é dele, por mais que te tenham dito ser teu. Sábio foi Yahweh ao não permitir que fosses ungido rei antes de vires à Grande Baab'el, porque, se o tivesses sido, não haveria quem te respeitasse, e te encarariam apenas como um usurpador do trono. Serás o Rei dos Judeus quando teu tio morrer, já que ele não tem nenhum descendente: mas enquanto Sheshba'zzar estiver vivo, o rei é ele.

Enquanto Yeoshua falava, fui recuando, até cair ao chão completamente transtornado: meus sentimentos se sucediam e opunham sem ordem nem sentido, movendo minha alegria e minha tristeza em ondas de força cada vez mais gigantescas, e quando uma delas crescia, imediatamente a sua oposta se erguia, submetendo-a e logo após sendo submetida por uma outra, também oposta e de valor ainda maior. Eu não sabia se ria de alívio ou se chorava pela perda: sem a responsabilidade de governar um povo destruído, podia finalmente perseguir o que desejava, mas só teria o que desejava se fosse rei, e não o era. A perda se misturava à liberdade, tornando-a mais pesada que as correntes de um cativo. Eu me tornara prisioneiro de minha própria indecisão, paralisado, incapacitado, praticamente morto, por não saber em que direção me mover, reconhecendo que qualquer atitude significaria mais perda do que podia suportar. Cobri o rosto com as mãos, esperando que a escuridão me desse alento: e no mesmo instante em que, no silêncio de minha alma ferida, pedi por ajuda, ouvi a porta abrir-se atrás de mim, e uma voz familiar, como a de um pai a quem se recorre para auxílio, determinada e incisiva como a luz numa tempestade de areia:

— Zerub?

Era Feq'qesh, meu mestre, mais uma vez se apresentando em meu socorro, antes que eu me afogasse em meu dilema de degradação e medo.

 

Cair aos pés de Feq'qesh, abraçando-o, era abraçar meu pai, realizando o que a morte me tirara do alcance. A criança abandonada e órfã dentro de mim precisava desse apoio que só a presença física pode dar. Feq'qesh surgiu magicamente em minha presença, deixando boquiabertos Jael e Yeoshua, enquanto eu começava um pranto derramado que não sabia capaz de ter. Minha alma se infantilizava, sem qualquer controle das emoções. Feq'qesh, ainda com as empoeiradas roupas de viagem, colocou ao chão o saco de pano grosso onde guardava sua harpa e tirou o manto de sobre a cabeça e a face, mostrando os olhos vivos e cheios de profunda compaixão:

— Tive a intuição de que precisarias de mim mais do que eu mesmo queria crer, e, assim que pude, segui teus passos. O que te aconteceu, filho?

A voz suave de Feq'qesh, tratando-me com tanto carinho, moveu mais ainda dentro de mim a corda que regulava as emoções, e eu me rojei ao leito com a cara oculta nas almofadas. Mais do que em qualquer outro momento, percebi estar marcado pela divisão: nada em minha vida tinha apenas uma face. Tudo era duplo e contrário ao mesmo tempo, e cada coisa que eu vivia ou desejava trazia em si seu próprio oposto, sendo Bem e Mal, Escuro e Claro, Certo e Errado ao mesmo tempo, fazendo com que nada fosse absoluto e tudo se movesse de um lado para outro, deixando-me paralisado no centro do Universo, sem ação nem direção. Uma estreiteza imensa me oprimia o peito, e quando Feq'qesh, como nunca antes havia feito, colocou sua mão sobre minha cabeça, uma explosão de luz preencheu-me o espaço entre os olhos e o cérebro, fazendo-me ler nas letras de fogo negro com as quais já quase me acostumara as palavras kibel've'akav, aceitar e seguir, que imediatamente se transformaram em uma outra palavra que eu não sabia ler, composta das letras mem, tsadík e resh. Elas me preencheram com uma força inacreditável, e meu pranto cessou instantaneamente. Olhei para Feq'qesh e percebi que ele sabia o que se passava dentro de mim quando eu tinha essa fantástica visão das letras, que nunca revelara a ninguém. Isso me deu novo alento, e sem esperar revelei-lhe tudo o que me ia na alma, fatos, pensamentos, medos, desejos, frustrações. Falei da perda de meu pai, e como por apenas um átimo não lhe pudera ver a vida ainda brilhando nos olhos. Contei como fora vencido e torturado pelo antigo inimigo, Na'zzur, e de como não pudera denunciá-lo a Cyro, como qualquer um teria feito. Narrei o teste pelo qual passara, e que acabara revelando o Senhor do Mundo como mais um de nossos irmãos. Disse-lhe de meu malogro no encontro com Sha'hawaniah, de como através dela descobrira vir sendo enganado todo o tempo em que me faziam acreditar que eu seria o Rei dos Judeus. Quando terminei de falar, mais calmo, arranquei do peito um longo suspiro, e Feq'qesh disse, com voz calma e pausada:

— Cada coisa que viveste é mais uma coisa que aprendeste, Zerub. O Universo de Yahweh é uma escola onde os homens enfrentam os desafios que seu espírito lhes apresenta, simplesmente para instruir-se sobre a vida. Não há nada que aconteça neste Universo que não tenha sido gerado dentro da mente de Yahweh, com objetivos claros e definidos. Os homens, somos todos testados permanentemente, pelo que a vida nos apresenta, e apenas um deus de poder tão imenso poderia articular em uma só realidade os testemunhos de todos os homens como se fossem um só. Somos o pensamento de Yahweh, permanentemente fixo e mutável, em que nada tem apenas um lado, mas quase sempre dois, e de vez em quando até mesmo três.

O sol ia-se deitando sobre o horizonte. Jael se aproximou de nós, sentando-se ao pé do leito, e meu amigo Yeoshua, sem intimidade com esse mestre que chegara tão inesperadamente, foi lentamente aquietando seu coração, dando a cada instante mais mostras de interesse pelo que Feq'qesh dizia:

— A razão pela qual perdeste teu pai depende muito de sabermos por que passaste a precisar dele: se bem me recordo, eras independente, aventureiro, livre de quaisquer laços familiares, sem povo, sem tribo, sem língua própria. Estavas feliz, sendo assim?

Fiquei sem palavras, tentando rever dentro de mim a meu pai, minha mãe, minha família e meu povo, não conseguindo descobrir outro motivo para minha alegada independência que não fosse minha vontade de negar-lhes a importância que tinham. Num susto, perguntei:

— Feq'qesh, será essa perda que sofro exatamente quando dele mais precisava alguma espécie de vingança de Yahweh?

O riso de Feq'qesh foi franco:

— Fala-se muito de Yahweh como um deus de vingança: mas Ele é um deus de amor. Quando pela primeira vez se tentou erguer a Torre da Grande Baab'el, esta mesma que hoje existe na Esagila como templo de Marduq, os homens desejavam alcançar o céu, achando que assim chegariam a ser deuses.

— E Yahweh os castigou pela audácia! — Yeoshua falou em voz alta. — Confundiu-lhes as línguas, obnubilou-lhes as mentes, e espalhou-os pelo mundo, como castigo!

Feq'qesh olhou para Yeoshua, com curiosidade:

— Tens certeza de que foi um castigo? Os homens da Torre da Grande Baab'el, entre os quais estava o neto de Noé, viviam de maneira correta e decente: não eram como os que habitavam o mundo entre-rios antes do dilúvio, e que se tratavam pior do que animais! Os que pretendiam erguer a Torre eram homens de valor, cheios de sonhos e anseios, dando mostras, pela primeira vez na história da Criação, de que podiam ansiar por mais. Não te esqueças, Yeoshua: Yahweh Se basta a Si mesmo, e não precisa temer às Suas criaturas. Ao perceber que algumas delas já podiam querer mais do que Ele lhes havia determinado, viu que estavam prontas para uma nova etapa, e entregou-lhes de presente o mundo inteiro, para que o ocupassem e nele crescessem e se multiplicassem. —Antes que Yeoshua pudesse retrucar, Feq'qesh continuou. — Separou-lhes as línguas, sim, mas exclusivamente para que nunca mais tivessem como voltar a se reunir na pequenez da antiga vida: não foi castigo, mas sim a garantia de que já haviam crescido e não podiam mais voltar atrás.

Feq'qesh me olhou, com grande carinho:

— A morte de teu pai, Zerub, é essa separação forçada: se ele ainda estivesse vivo, estarias sob seu domínio, sem vontade nem poder. Um homem só o é verdadeiramente depois que seu pai morre: quer queiras ou não, tens que seguir em frente como um adulto, livre, caminhando por teus próprios pés, não podendo voltar ao que eras antes. Agora és um homem por inteiro, Zerub, e teu pai continua vivo dentro de ti, porque só morre definitivamente aquele de quem nos esquecemos completamente. Como na Torre antiga, essa separação radical é a tua garantia de crescimento.

— E a tortura pela qual passei, é prova de quê, Feq'qesh? De que esse poder que me dizes que eu tenho não existe verdadeiramente, e que estarei sempre à mercê dos inimigos do passado?

__ Só estarás à mercê de teus inimigos se assim o acreditares: eles não são nem por sombra mais poderosos que tu, a não ser que tu lhes dês esse poder, dentro de tua própria mente. Teu verdadeiro inimigo é um só: tu mesmo. Aqueles a quem chamas de inimigos são apenas os que te apontam teus próprios defeitos, dando-te também a oportunidade de corrigi-los. Enfrentaste a tortura nas mãos de Na'zzur? E o que ele conseguiu com isso? Disseste o que ele queria saber, ou provaste ser mais forte que ele, cumprindo o compromisso assumido?

- Mas por que nem mesmo consegui denunciá-lo a Cyro, quando pude? Terei sido um covarde de alma servil, que mesmo depois de livre teme aquele que o escravizou?

- Pelo contrário. — disse Feq'qesh com veemência. — Foste mais bravo que o teu torturador! Não compreendes que venceste a batalha? E mesmo se tivesses morrido, permanecendo em silêncio até que a vida se esgotasse dentro de ti, teu algoz estaria derrotado, como está.

Um momento de pausa, e Feq'qesh continuou, com voz mais suave:

- No dia em que não fores mais teu próprio inimigo, quando o adversário que vive dentro de ti estiver destruído, não haverá mais inimigos à tua volta.

Suspirei, desacorçoado:

— Tu o dizes, eu te ouço, mas não consigo compreender-te. Meu inimigo existe, é de carne e osso, quando caio em suas garras tem poder sobre mim1. E não pude aproveitar o momento em que podia denunciá-lo, vencê-lo e destruí-lo.

— Espera, então, que o tempo te dará as provas do que digo. Quando conseguires olhá-lo sem ira nem temor, ele deixará de ser teu inimigo, porque dentro de ti já não existirá mais nenhuma reação a ele. Para vencer um inimigo, é preciso primeiro que tudo vencê-lo dentro de ti mesmo, e poder olhá-lo como se olha a um amigo.

Dessa vez foi Jael quem riu:

— Irmão Feq'qesh, como posso dar minha amizade àquele que me pretende destruir?

— Exatamente assim: amando-o. A mais perfeita maneira de destruir um inimigo não é matando-o, mas tratando-o com bondade até que deixe de ser inimigo. Neste momento teu inimigo estará destruído. Um inimigo derrotado pode se erguer novamente: um inimigo transformado estará verdadeiramente vencido. Mas não falemos mais disso: o que me dizes do que Cyro te fez experimentar, nos labirintos deste palácio?

Fiquei em baldas: estávamos entrando em assunto que não podia ser livremente debatido, porque Yeoshua não era irmão da pedra como nós, e, mesmo sendo o meu mais antigo e dileto amigo, eu não poderia falar francamente como desejava sobre o que me ocorrera nos subterrâneos. Olhei para Feq'qesh, sem ação, e neste exato momento as trombetas que marcavam o último raio de sol e o acendimento da primeira estrela soaram pela Grande Baab'el. Yeoshua se ergueu de onde estava sentado, como que acordando de um sonho:

— É tarde, e eu deveria estar junto a nosso povo, para as orações do final do dia... meu amigo Zerub, entenderás que eu saia tão depressa? Precisamos estar juntos durante as orações, como fazemos todos os dias.

Levei-o até a porta, e ele me disse, em voz baixa:

— Meu amigo, meu príncipe, perdoa-me, mas não podia revelar-te o engano em que estávamos envolvidos, tu e eu. Posso contar com teu perdão?

— Yeoshua, se devemos perdoar os inimigos, por que eu não perdoaria a ti, meu amigo mais antigo?

— Sei que acreditavas ser o Rei dos Judeus, mas não tenho culpa de vosso tio ainda estar vivo: fui apenas o portador de notícias tão más.

— Ou tão boas, Yeoshua, quem sabe? Durmamos sobre o assunto, e assim que tiver decidido o que faremos, direi.

— Se assim queres, meu amigo, aceito, mas espero que saibas que sempre poderás confiar em mim.

Yeoshua estava envergonhado por ter ocultado minha verdadeira situação, e levou algum tempo até que ele fosse em paz, caminhando com passo acelerado. Retornei para os aposentos: Heman e Iditum já acendiam as lâmpadas de cobre cheias de nafta, pendurando-as à volta da sala. Feq'qesh aproveitara o momento em que eu conversava com Yeoshua para tirar o manto empoeirado e lavar o rosto vincado. Percebi que suas sandálias não mostravam o menor sinal de ter pisado os caminhos empoeirados que o haviam trazido até a Grande Baab'el, estando limpas, secas e brilhantes, como novas: cheguei a pensar como pudera aparecer tão longe de casa exatamente no momento em que seria necessário, mas logo ele me fez um sinal e eu voltei a me sentar a seu lado, junto a Jael, pronto a ouvir nosso mestre, e ele disse:

— Então, compreendeste o que se passou contigo nos labirintos?

Tentei dizer que sim, mas a não ser por uma sensação de semelhança entre o que acabara de viver e a segunda parte de minha iniciação na irmandade da pedra, não tinha nenhum entendimento sobre os perigos que enfrentara. Disse isso a Feq'qesh, que foi preciso e claro:

— Zerub, os testes pelos quais passaste são aqueles pelos quais todos os reis devem passar, com risco de sua integridade física. Para ser rei, é preciso morrer e renascer como um homem novo, depois das devidas provas de coragem, audácia, determinação. Os irmãos da pedra, antigamente, também passavam por essas provas, mas, desde que se começou a fazer uso da linguagem simbólica em nossa fraternidade, elas se transformaram em simples rituais, nos quais ninguém verdadeiramente corre qualquer risco. Só os reis precisam disso, porque seu direito de governar não se baseia apenas no que o sangue lhes dá: reis têm que ser homens especiais, e só um teste radical pode indicar quem realmente o é.

Fiquei seriamente assustado com aquilo:

— Feq'qesh, queres dizer então que eu realmente poderia ter morrido ou me ferido gravemente durante minha passagem pelos subterrâneos?

— Sem dúvida. O que te salvou foi a verdade que os testes indicaram: tu és aquele que se esperava como Príncipe da Paz, o profetizado que reerguerá o Templo de Yahweh.

— Irmão Feq'qesh, estávamos enganados — disse Jael, com ar compungido. — O próprio Yeoshua revelou a existência do antecessor de Zerub no direito ao trono, seu tio Sheshba'zzar, irmão mais velho de seu falecido pai. Enquanto esse homem existir, Zerub não é nada.

Feq'qesh o olhou como se já soubesse disto. Depois, colocou seus sorridentes olhos sobre mim, perguntando-me:

— E tu, Zerub, crês no que te dizem as profecias ou no que te revela a realidade?

Eu me embaracei: tudo em mim dizia que a realidade era mais forte que qualquer profecia, mas ao mesmo tempo havia a sensação indelével que me acompanhava, fonte da tristeza que sentira. A maneira como o conhecimento que eu renegara voltara a ser parte de mim, as letras de fogo negro que me enchiam a mente sem que eu tivesse qualquer controle sobre elas, a viagem dentro do triângulo de ouro vendo-as unir-se três a três, cada vez que perdia meu rumo, tudo isso me dava alguma certeza de ser o escolhido. Não desejava, na verdade nem mesmo o queria, mas me havia acostumado com isso, e sua ausência certamente tiraria de minha vida o objetivo que ela nunca tivera.

Feq'qesh percebeu-me o dilema, e tranqüilizou-me:

— Ainda é cedo, Zerub. Segue o caminho que te surge à frente, e as respostas te aparecerão a cada passo. Pensa se sabes verdadeiramente o que significa ser rei, e o que farás com isso quando o fores.

Em minha mente só restava Sha'hawaniah, que me rejeitara, desta vez com escárnio: mas assim que o poder real estivesse em minhas mãos, ela teria que ceder-me o que me prometera, e desta vez sob meu comando e segundo meus desejos. Ergui a cabeça, colocando minhas paixões e minhas vontades sob o controle que vinha aprendendo a exercer. Havia até certo prazer nisso, e eu quase me satisfazia em ser senhor de mim mesmo.

Foi com surpresa que vi meu mestre Feq'qesh estender a mão para sua harpa e, erguendo-se de onde estava sentado, perguntar-me:

— E tua harpa, Zerub, onde está?

Jael se moveu, mas Heman adiantou-se a ele, pegando o saco de pano grosso onde meu instrumento dormia desde que saíramos de Jerusalém, com exceção das três noites que passáramos na hospedaria em Dimashq, antes de enfrentar o Eufrates. Eu a tomei nas mãos, supondo que meu mestre queria dar-me mais uma aula, mas ele se dirigiu à porta e, abrindo-a, falou:

— Tomai vossos mantos: vamos visitar a noite da Grande Baab'el. Eu e Jael nos entreolhamos, e meu irmão me estendeu o manto debruado de azul, que coloquei sobre a cabeça, como Feq'qesh o fizera, pondo às costas, à bandoleira, o instrumento. Saímos em fila pelo corredor fortemente guardado, com Heman e Iditum, silenciosos e constantes, fechando o grupo, e atravessamos o palácio, descendo até o rés-do-chão, onde o grande portão, à vista do novo protegido de Cyro, abriu-se. Ganhamos a rua da cidade, sob o bafo alternadamente quente e frio da brisa que soprava do rio, do vale e do deserto atrás dele. Descemos a grande avenida da Esagila rumo ao sul, e quando Feq'qesh fez menção de subir a escadaria de uma ponte conhecida, desconfiei e, in-terrompendo-lhe o passo, perguntei:

— Feq'qesh, aonde vamos?

Ele me olhou com o mesmo olhar em cujo fundo brilhava uma centelha de riso:

— Vamos à mais famosa das tabernas da Grande Baab'el, a Taberna do Boi Gordo.

Empaquei como um animal de carga:

— Feq'qesh, isso não faz sentido! Como posso entrar no lugar onde se reúnem todos os meus inimigos, onde certamente não serei bem-vindo? Eu me recuso.

Feq'qesh me encarou com muita ironia:

— Mas não confias em teu poder pessoal, em tua capacidade de atravessar abismos, entrar em torrentes caudalosas, atravessar paredes de fogo, Zerub? Perto do que passaste, a Taberna do Boi Gordo é uma brincadeira de criança. Ou temes tanto assim o que ali se esconde?

— Não é questão de temor, Feq'qesh, mas de cuidado! — Minhas faces deviam estar mais rubras que as de Yeoshua. — Sabemos que o que ali se esconde é o pior que pode haver nesta grande cidade, e aqueles que me detestam não perderão nenhuma chance de me fazer mal, se puderem pôr as mãos em mim!

— Mas que poder teriam eles sobre ti, Zerub? Temes realmente a essas pessoas ou temes o que dentro de ti é tão igual a elas? A cova de serpentes está dentro de ti, não na Taberna do Boi Gordo: se confiares em teu poder pessoal, nascido da partícula de Yahweh que vive dentro de todas as criaturas, pássaras incólume por mais esta prova.

Feq'qesh tinha razão: o que me parecia perigoso era estar de novo em contato com a vida que eu abandonara, e pela qual, para ser honesto, ainda ansiava. Tinha sido minha realidade durante longo tempo, e, mesmo estando separado dela por pouco mais de um ano, lembrava com certa saudade da Taberna do Boi Gordo. Os velhos hábitos acordavam dentro de mim, tentando erguer suas cabeças de fascinante feiúra no caminho de volta à luz. Era isso o que eu temia: as delícias de que essa vida pregressa estava cheia ainda encontravam eco em meu coração.

Jael colocou-me a mão no braço:

— Irmão Zerub, não há o que temer, se estamos todos juntos: além de Feq'qesh, tens a mim e a teus dois guardiões para te proteger, porque este é o nosso dever. Se Feq'qesh diz que deves entrar nesse lugar, por que não fazê-lo?

— Tu não sabes o que ali se esconde, Jael! Não conheces essa taberna nem os hábitos e costumes dos que a freqüentam! Para essas pessoas, só existe respeito pela força, pela violência, pelo desregramento! Temo mais por vós que por mim, pois posso causar-vos problemas que sequer imaginais!

O rosto de Feq'qesh era um primor de ironia, olhando-me sem piscar enquanto eu tentava explicar o inexplicável: a vergonha atropelava minhas palavras de tal maneira, que eu já começava a ficar incoerente. Minha língua foi-se travando junto com minha mente. Fiquei calado, ao pé da escadaria que nos levaria ao lugar que eu temia enfrentar mas de que não podia escapar. Percebendo isso, Feq'qesh voltou-se para os degraus e disse apenas:

— Vamos?

Nós o seguimos escadaria acima, pela ponte estreita, descendo outra escada em caracol e chegando ao beco onde logo em frente estava a porta da Taberna do Boi Gordo, de onde saíam luz, música, altos brados e a mais forte sensação de degradação que eu conhecia. Perguntei-me como pudera passar a maior parte de meu tempo entre aquelas pessoas, e como fizera para sobreviver em lugar tão corrompido. Quando cruzei o umbral, descobri a resposta: eu ali vivera porque gostava do que experimentava, e uma nostalgia imensa do tempo em que eu lá vivera me tomou a alma, quase me sufocando. Entramos sem que ninguém nos desse muita atenção: a visão de Bel'Cherub sentada em seu trono, cercada pela escória da Grande Baab'el, foi um mergulho no passado, pois o momento era tão fielmente idêntico aos que eu já conhecia, que cheguei a pensar se não tinha voltado no tempo para reviver noites que já vivera. Sentamo-nos a um canto do salão, em sujas almo-fadas de couro cru: não tirei meu manto de sobre a cabeça, abraçando-me à harpa como se ela fosse o escudo contra o que me cercava, ocultando-me para que ninguém me visse.

O que eu temia era ser reconhecido, e que alguém revelasse aos que me cercavam a pessoa que eu tinha sido: ladrão, bêbado, viciado em tamba'kha, observador do sexo cruel e violento que era a especialidade desse lugar. Essa idéia me enchia de vergonha, pois eu não tinha nenhum prazer na possibilidade de ver meu passado revelado aos que me respeitavam. Minha alma se retorcia, alojada na boca do estômago, e quando uma das mulheres que serviam as mesas se aproximou de nós, trazendo três jarras de metal, senti o perfume de pão fermentado da bou'zza, o cheiro de benjoim do dzintu'hum e o forte olor de meimendro do kikirenVhum, e minha boca se encheu de água, pois o corpo ainda se recordava de tudo o que a alma pretendia esquecer. Feq'qesh pediu bou'zza, jogando sobre a mesa algumas moedas que a mulher recolheu com enorme rapidez, sem sequer olhar-nos as faces, deixando os encardidos púcaros de barro vidrado cheios até a borda. Apenas Jael provou dela, fazendo um esgar e piscando os olhos, e eu me recordei das quantidades inacreditáveis que eu e meus amigos tomávamos a cada noite em que nesse lugar estivéramos.

A lembrança dos amigos encheu-me o coração, a face de Daruj com seu ar de eterna vitória, a de Mitridates com seu braço parecendo a asa de um filhote de passarinho, e até mesmo as de Re'hum e seu eterno escudeiro Sam'sai, com sua cara de roedor submisso, exatamente como éramos pouco mais de um ano atrás, sobrepujaram em minha mente o desagrado de estar nesse lugar que não queria visitar nem mesmo em sonhos. Em meio a esse devaneio, percebi, no grande divã de Bel'Cherub, o mesmo onde uma vez nos sentáramos, três figuras do passado, como se tivessem se materializado tão logo eu pensara neles: Na'zzur, com seu uniforme enodoado e sua cara de perversidade infinita, ladeado por um Re'hum de barbas hirsutas frisadas à moda assíria, usando um manto como o meu, e Sam'sai, enfeitado e pintado à moda dos grandes senhores da Babilônia, olhando para todos os lados, certificando-se de que ninguém ouvia o que sussurravam, planejando mais um de seus trabalhos cheios de prazer, enganos, mentiras, roubos, ferimentos, morte. Ocultei-me ainda mais dentro de meu manto e por trás de minha lira, temendo ser visto, reconhecido e revelado: quando seu olhar passou por mim, o calafrio que me percorreu foi o maior que já sentira.

Bel'Cherub, ainda mais imensa do que quando eu freqüentava seu antro, a face cianosa e lívida perlada de suor, dormitava, em flagrante contraste com a alaúza que a cercava. Sua mão frouxa, na qual os anéis se perdiam em um mar de gordura, mantinha em equilíbrio precário uma taça de metal cravejada, que caiu sobre uma bandeja de cobre e com o ruído a acordou. Ela, num primeiro momento, pareceu não saber onde estava, e seu olhar se encheu de medo: mas logo que reconheceu o ambiente de sempre, sentiu-se segura: quais seriam os temores que habitavam seu corpo gigantesco, raramente afastado de seu território de poder? Ela olhou para todos os lados e gritou:

— Música. Não temos música?

Nesse exato momento, Feq'qesh se ergueu de onde estava, sobraçan-do sua harpa, que já começava a sair de dentro do saco de pano carmesim, tirando dela uma rápida sucessão de notas aparentemente impossível de ser realizada com apenas uma das mãos, gerando um forte murmúrio de aprovação por parte da audiência. Meu mestre, percebendo a boa vontade dos que ali estavam, voltou-se para mim, estendendo-me a mão e dizendo:

— Vamos, Zerub: chegou o momento em que poderás mostrar em público tudo aquilo que te ensinei.

Fiquei paralisado: como se não bastasse estarmos em meio aos inimigos, meu mestre ainda me colocava em posição de destaque, para que todos me pudessem ver. Não consegui sequer erguer-me, e o aplauso soava como se viesse de muito longe. Feq'qesh, adiantou-se e me tocou o ombro, com a maior naturalidade, fazendo explodir dentro de minha cabeça o universo de luz intensa no qual as letras de fogo negro bruxu-leavam, adejando em espiral na minha direção: do meio delas se destacaram novamente heh, zain e quf, e enquanto eu ouvia a voz de meu pai dizendo-me que fosse forte, elas se transformaram empeh, heh e lamed, cobrindo-me com sua luz negra: quando dei acordo de mim, já estava ao lado de Bel'Cherub, ali onde pela primeira vez vira Feq'qesh, com seus asquerosos trajes de mendigo cego, encantando a todos com a beleza de seus cânticos.

Eu e meu mestre sentamos um à frente do outro, e quando ele passou os dedos pelas cordas de sua lira, minha mão direita se recordou do que ele me ensinara e repetiu esse movimento seu, que ele reiterou mais rapidamente e eu imitei, até que subitamente estávamos os dois gerando um ritmo quase que marcial com nossas liras. De súbito, Feq'qesh se pôs a cantar, com voz tonitruante e grande cinismo na interpretação, a ponto de fazer com que a platéia gargalhasse a cada frase, entreolhando-se e reconhecendo-se mutuamente como aquele a quem o cântico se referia:

— "Por que te vanglorias do mal, ó, herói de infâmia, e ficas o dia todo planejando ciladas? Tua língua, essa autora de fraudes, é como a navalha afiada. Preferes o mal ao bem? Preferes a mentira à franqueza? Gostas de palavras corrosivas? Fala, ó, língua fraudulenta!"

Enquanto meu mestre criava o ritmo saltitante dessa música, perfurando os espaços entre suas palavras, percebi que podia colocar por sobre as frases de sua lira uma outra. Timidamente a princípio, e logo vendo que não só essa frase como muitas outras que me vinham à mente se encaixavam perfeitamente no que ele tocava e cantava, fui empilhando-as uma sobre a outra, quase como comentário ao que ele cantava:

— "É por isso que Deus te demolirá, e te destruirá até o fim! Ele irá te arrancar de tua tenda, e te extirpará da terra dos vivos!"

As alucinadas criaturas que estavam na taberna, a um sinal de Feq'qesh, repetiram quatro vezes as frases, como um refrão, batendo palmas e se divertindo muito. A nossa frente, sobre um divã de grandes proporções, que eu me lembrava de ser ocupado apenas pelos mais ricos fregueses de Bel'Cherub, estava um velho muito enfeitado, completamente bêbado, cercado por raparigas de todas as idades e feitios, e que se pôs a jogar anéis de ouro em nossa direção, enquanto apalpava lascivamente as coxas e seios das que lhe estavam mais próximas. Sua boca amolecida e sem nem um dente se abria toda babujada, num sorriso idiota. Pensei com desagrado que, se tivesse continuado a freqüentar a taberna, talvez tivesse o mesmo fim que ele. Feq'qesh, depois de tocar o ritmo alucinante da canção só por alguns instantes, atraindo a atenção da platéia, continuou:

— "Os justos verão e temerão, e como rirão à custa dele, dizendo 'Eis o homem que não colocou a Deus como sua fortaleza, fortifican-do-se apenas com ciladas e confiando apenas em sua grande riqueza!' Os justos verão e temerão, e como rirão à custa dele!"

Toda a platéia da taberna se voltou para o velho, apontando e rindo, como se finalmente tivesse descoberto a quem Feq'qesh se referia com seu canto: o velho, centro das atenções, ergueu-se cambaleantemente de seu leito e, com inúmeras curvaturas, agradeceu às homenagens que acreditava estar recebendo, atirando anéis de todos os tamanhos e fei-tios em todas as direções possíveis. A platéia ensandeceu, atirando-se aos anéis, brigando por eles, disputando até mesmo o menor deles, enquanto Feq'qesh ampliava as subdivisões de suas frases rítmicas, atraindo um tocador de adufe e um de sistro, que estavam ao canto do salão e que se incorporaram ao que tocávamos. Quando a disputa por anéis cessou, e a platéia novamente voltou sua atenção para nós, Feq'qesh já era outro: foi diminuindo o volume de seu toque, fazendo-me um sinal para que me mantivesse tocando a frase principal, sem interrupções, levando os tocadores de percussão a também diminuir seu volume e chamando a atenção da platéia para os sons poéticos com que agora envolvia o que antes fora um paroxismo de emoções, e que se transformava em momento de rara beleza:

— "Quanto a mim, igual à verdejante oliveira, plantada na casa de Deus, confio em Teu amor, para sempre, e eternamente! A Ti celebro para sempre, porque agiste em meu favor, e diante de todos celebro Teu nome, porque Teu nome é bom!"

A platéia estava entorpecida pela voz de Feq'qesh, a melodia que ele cantava se tornando gradativamente mais e mais grave, dando todos os sinais de que terminaria com um sussurro: mas, subitamente, Feq'qesh atingiu com violência as cordas da lira, e os percussionistas e eu, entendendo o que ele desejava, novamente aumentamos nossa energia, enquanto Feq'qesh, imediatamente acompanhado por toda a platéia, repetia à exaustão o refrão que tanto a agradara:

— "É por isso que Deus te demolirá, e te destruirá até o fim! Ele irá te arrancar de tua tenda, e te extirpará da terra dos vivos!"

Cada um dos que ali estava, por seus motivos e suas razões, cantava esse refrão como a verdade absoluta. Era impressionante ver o quanto cada homem que existe sempre tem em si a certeza de estar falando do Verdadeiro Deus, não importa em que deus esteja pensando nesse momento. Meus olhos se desviaram do velho babujento para Na'zzur, Re'hum e Sam'sai, hirtos e frios, olhando fixamente em minha direção. Sustentei-lhes o olhar, sem deixar de ferir minha harpa: e um bom tempo se passou, até que eles desviaram seus olhos dos meus, baixando-os, como que envergonhados por me terem reconhecido. Eu sentia, dentro de mim, que os vencera, pelo menos nessa pequena batalha: tinha sido descoberto, mas não havia sido revelado, porque isso não interessava a ninguém. Talvez a Bel'Cherub, que me olhava com ar de escárnio em sua face subitamente afogueada, e pôs seus olhos alternadamente em mim e no velho que ali estava, degradado em meio ao que quer que tivesse consumido. Depois, com um estranho ar de compreensão, re-costou-se em seu divã, fechando os olhos, como que me alijando de seu campo de visão.

Algum tempo depois, sem que ninguém nos percebesse ou desse atenção, como eu acreditava, saimos da taberna. Eu me sentia como que premiado por Deus: havia enfrentado meus inimigos cara a cara, e eles haviam se curvado perante meu olhar. Só a atitude de Bel'Cherub me causava espécie: por que teria ela agido dessa maneira? Quando nos preparávamos para subir os degraus da primeira escada, eu, muito cansado, entreguei minha lira a Jael, que a passou para Heman e Iditum, já no alto dos degraus. Eu e Feq'qesh havíamos ficado para trás, e quando eu pus o pé no primeiro degrau ele me segurou pela manga e disse:

— Sabes quem é o velho que jogava anéis de maneira tão perdulária? Ê o irmão de teu pai, teu tio Sheshba'zzar...

E ante minha cara de completo espanto, Feq'qesh sorriu com enorme sabedoria, como se pudesse ler tudo o que se me passava dentro da cabeça:

— Aquele é o verdadeiro Rei dos Judeus.

 

Estanquei, um pé no primeiro degrau, enquanto a lua flutuava no céu estrelado, formando sombras no chão de lama endurecida. Então aquele decadente velho de maus hábitos era quem tinha direito ao trono de Rei dos Judeus? Era aquele o irmão mais velho de meu pai, a quem as honras que me tinham sido oferecidas deviam ser prestadas? Se eu tivesse continuado na Grande Baab'el, terminaria como ele: o que com meu tio se passara certamente se daria comigo, porque a Grande Baab'el a ninguém perdoava. Era uma prostituta exigente, a Grande Baab'el, ansiando por tudo que tivéssemos, e quando isso acabasse, por tudo o que pudéssemos tomar dos outros, e quando já nem isso houvesse, por nossa carne e sangue e vida, sugando-nos para perpetuar-se como senhora do Universo. Foi aí que entendi não haver ali felicidade possível: os laços que me ligavam a essa cidade eram de matéria imponderável, enchendo-me da nostalgia do que ainda não conhecia, e que seria meu verdadeiro lar, quando o encontrasse.

Feq'qesh mantinha o sorriso misterioso, olhando-me como se se condoesse: mas antes que eu pudesse expressar meu estranhamento, o ruído de passos rápidos se aproximou de nós, na escuridão do beco, e um de meus dois guardiões, não sei se Heman ou Iditum, pressentindo o perigo, saltou do alto da escada para o chão, colocando-se à minha frente, o porrete em riste. Recuei, encostando as espáduas na escada, apertando os olhos para ver quem de nós se aproximava. Como eu previa, mais do que temia, eram Re'hum e Sam'sai, andando em nossa direção com as mãos ocultas sob os mantos. Pouco mais de um ano antes dessa noite, estivéramos exatamente nesse lugar, a uma pedrada da Taberna do Boi Gordo, agredindo-nos de tal forma, que Daruj levaria para sempre as marcas do embate traiçoeiro enquanto estivesse vivo, se vivo estivesse. Gritei a meus companheiros:

— Cuidado com as mãos deles1.

Re'hum, rindo de maneira muito cínica, ergueu os braços para o alto, com as mãos espalmadas, exibindo-as nuas, dando uma cotovelada em Sam'sai, que, por baixo de sua pintura muito carregada, repetiu o gesto, com um esgar, dizendo:

— Nada temas, protegido de Cyro: não somos ladrões nem assassinos... não te recordas de nós, amigo?

O ódio ferveu em mim, e a imagem do caco de vidro ferindo o antebraço de Daruj me veio à lembrança. O cheiro de sangue que eu senti podia ser uma memória desse momento, ou então meu próprio sangue ocupando o lugar de minha razão, esmagada pelo ódio que me embebia:

— Pequeno chacal, o terreno onde pisas bebeu o sangue daquele a quem chamaste de amigo antes de rasgar-lhe o braço, desejando rasgar-lhe a garganta. Como pensas que eu poderia me esquecer de ti? Continuas sendo o porta-voz de teu senhor Re'hum?

Nas sombras atrás deles, pressenti um movimento, ficando certo de que Na'zzur, a mando de Bel'Cherub, havia enviado seus dois prebostes para arrostar-me. Meus dois guardiões, ambos a meu lado, já se haviam adiantado, e um deles olhou com curiosidade para as sombras, apertando os olhos, pronto para atacar quem quer que lá estivesse. Eu o impedi com um movimento da mão, enquanto me dirigia a Re'hum:

— E então, Re'hum, folgo em ver-te com saúde e tão elegante: esse manto te cai muito bem. Onde o roubaste?

Re'hum teve um movimento impulsivo de raiva, que logo arrefeceu, transformando-se num sorriso que era a negação do que seus olhos mostravam:

— Não sou ladrão, Zerub: sou um cidadão importante da Grande Baab'el, um dos trezentos wasib'kussim que formam o conselho do Império, e estava na sala do trono quando te declaraste rei de Israel e Judah. Parabéns pelo teu sucesso1.

— Quando Cyro te deu aposentos no melhor lugar do palácio, entendemos que estás sob sua proteção imperial. — Sam'sai ainda sibila-va, como uma cobra. — É nosso dever dar-te, portanto, as boas-vindas e estender-te a proteção de toda a nossa grande cidade.

— E te pedir que perdoes o excesso de zelo de quem, a serviço da segurança do Império, possa porventura ter-te magoado...

A voz de Re'hum, ao dizer isso era dura e ao mesmo tempo carregada de uma emoção que eu finalmente desvendei: Na'zzur queria garantir seu bem-estar e poder, certificando-se de que eu não faria queixas a Cyro, prejudicando-o. O ódio dentro de mim borbulhava, subindo pela garganta acima, fervendo em minha língua, pronto a explodir em minha boca como um sopro destruidor, quando a mão de Feq'qesh em meu ombro me fez ver as letras resh, heh e ain, que passaram sobre mim como um raio muito forte de luz branca, esvaziando meu íntimo da emoção violenta que estava sentindo, deixando queimadas em minhas retinas as letras, shin, lamed, vau e mem, formando Shalom, a Paz absoluta. Estes inimigos sem valor nada podiam contra mim, e como ninguém percebera meu mergulho para dentro de mim mesmo, retruquei, amigavelmente:

— Re'hum, cada um de nós tem um papel a cumprir no grande ritual do Universo... prefiro guardar em minha algibeira o nome dos que me desagradam, para usá-lo se e quando o momento chegar. Mantido o respeito mútuo de agora em diante, isso nunca será necessário. Mais alguma coisa?

Feq'qesh riu com alegria, e eu compreendi por quê: minha segurança frente a essa dificuldade era uma vitória inegável. Eu tinha o poder de manter a cabeça funcionando quando tudo em volta me impunha uma reação brutal e contrária, e esse poder de que as letras me vinham dotando estava dentro de mim. Com ou sem o toque físico de Feq'qesh, o poder desses grupos de letras estaria sempre à minha disposição, bastando que eu me permitisse enxergá-los, recebendo deles a energia incomensurável de que me dotavam. A paz que me envolvia não era um desejo de futuro, mas sim uma ferramenta a ser usada diariamente, que poderia se espalhar e converter os impulsos. Meus dois velhos inimigos, e mais o que se ocultava nas sombras, estavam desarmados: eu era senhor da situação, só lhes restando vivê-la de acordo com meu desejo.

Re'hum fechou a cara, mas Sam'sai se aproximou dele, cochichando em seu ouvido, como era seu desagradável costume: e então, com uma risada gutural, deu um passo atrás, curvando-se com excessiva bonomia:

— Pois, boa noite, protegido de Cyro, meu velho amigo Zerub. A Grande Baab'el te saúda e recebe com alegria!

Ao que Sam'sai adicionou, com todo o duplo sentido de que era capaz:

— Ainda nos veremos muitas e muitas vezes, grande Rei Zerub! Andando de costas, os dois foram mergulhando nas sombras das muralhas que nos cercavam, e eu os saudei com alacridade genuína e sarcástica:

— Boa noite, Re'hum, Sam'sai... boa noite, Na'zzur!

Não houve nenhuma resposta: os dois desapareceram em silêncio na escuridão, sem responder minha saudação. Virei-me para subir a escada, consciente de minha vitória. Não sei, no entanto, se foi o vento que redemoinhava, mas alguma coisa saída das sombras soprou em meus ouvidos, como se estivesse sendo dita pela boca asquerosa de Bel'Cherub:

— Minha senhora Ishtar te manda lembranças...

Hesitei por um instante, sem compreender o que estava acontecendo, e me mantive em silêncio durante todo o caminho até o Grande Palácio, onde meus aposentos me aguardavam para mais uma noite de sono, interrompido pela lembrança do que experimentara e o temor do que ainda me aguardava. Tomei a decisão de não pensar mais em Sha'hawaniah, até que ela estivesse pronta para ser minha sem nenhuma reserva: viveria minha vida desse dia em diante como se ela nunca tivesse existido. Minha mente racional se achava perfeitamente capaz disso: mas meu corpo jovem ainda a desejava mais do que tudo, e só depois que manipulei meu pênis até me esvair em um gozo nervoso e entrecortado, é que conciliei o sono, recordando apenas de ter mergulhado em um profundo abismo, do qual foi muito difícil sair na manhã seguinte.

Assim que o dia nasceu, e os sons dos sacerdotes fazendo as libações no Templo de Marduq encheram o ar que o vento do deserto esquentava e esfriava, dirigi-me aos aposentos de Cyro, buscando a coragem que não tinha para dizer-lhe que havia mentido, involuntariamente, e que não era o Rei dos Judeus. Não sabia como o grande senhor do mundo encararia esse inesperado: pensando bem, nem eu mesmo consegui encará-lo sem me sentir em um beco sem saída, ainda que não tivesse sido o responsável pela fantasiosa invenção. Cyro, apanhado de surpresa, respirou profundamente, exalando o ar por três vezes, cada uma delas mais lenta que a anterior, até estar novamente em pleno controle de suas emoções e pensamentos. Mirou-me fixamente e disse:

— Meu irmão, todos temos uma tarefa a cumprir, coisas a realizar, influências a exercer, e essas são sempre inegavelmente nossas, porque nenhuma consciência as pode ensinar. Os costumes e hábitos do tempo e lugares em que vivemos não são fortes o suficiente para modificá-las, se estiverem enraizadas em uma decisão firme do dever a cumprir, esse o teu caso?

Eu ia dizer sim, sem pensar, mas alguma coisa me fez hesitar, e Cyro franziu o cenho, fixando seu olhar; perturbado, falei, com a maior sinceridade de que fui capaz:

— Meu senhor Cyro, a cada dia que passa me reconheço menospreparado para essa tarefa; cada vez que encontro certezas suficient para continuar, alguma coisa me derruba, demolindo tudo que construí, fazendo-me recomeçar do início, como se tudo ainda estivesse por fazer. Cada vez que isso se dá, percebo ser apenas um joguete na mão do destino, e envelheço dez anos, ficando cada vez mais cansado, porque a tarefa nunca termina...

— Irmão Zorobabel, nenhuma tarefa termina, nem mesmo com a morte do responsável. — Cyro recostou-se, o ar tão cansado quanto meu. — A responsabilidade sempre anda de mãos dadas com a capacidade e o poder, e esses têm que ser equivalentes a ela, mesmo contra nossos desejos. Todos os que me antecederam nas tentativas de domínio do mundo tinham razões para fazer o que fizeram, mas a grande maioria não era responsável nem por si próprio, quanto mais pelas pessoas e lugares que pretendiam dominar. Por isso, a história do mundo se repete: atrás de um poderoso sempre vem outro, ansioso pelo mesmo poder, só enxergando aquilo que existe de mais aparente, não percebendo o que se oculta por detrás.

— Mas eu não quero nenhum poder, meu senhor!

— Não te enganes, o poder é tudo o que todos querem: o que Tu não desejas é a responsabilidade que vem com ele! Pensa, Zorobabel: existe coisa melhor que ser senhor do destino de tudo, sem precisar consultar ninguém a não ser a si mesmo sobre o que fazer, exercendo a vontade sem peias de nenhuma espécie? Não é isso a coisa mais próxima da divindade que existe?

Cyro levantou-se do banco, erguendo a barra da longa camisa que estava vestindo, pisando com seus pés calejados o grosso tapete que cobria o chão, andando de um lado para outro, enquanto falava:

— Quando existe consciência, o poderoso vê que nenhum poder é maior que aquele que tem sobre si mesmo: mas enquanto não se torna senhor de si mesmo, dominando todas as suas paixões e se tornando mestre de todas as suas vontades, não tem poder verdadeiro sobre nada nem ninguém.

Essa comparação tão racional entre poder e responsabilidade soava completamente nova a meus ouvidos, e muitos anos se passariam até que eu pudesse compreendê-la e vivê-la. Cyro, desde a primeira vez em que conversamos, extasiou-me com suas idéias completamente diversas das que existiam nessa época de desejos incontroláveis, tão mais perigosos quanto mais animalescamente gerados. Foi assim nesse dia: Cyro retornou para perto de mim, tomando minhas duas mãos nas suas, calejadas e marcadas por toda uma vida de batalhas:

— Todos os seres, meu irmão, somos filhos de uma mesma verdade. Toda a Criação tem a mesma origem, não importa que deus responsabilizemos por ela: quando o destino dá sofrimentos a um de nós, não existe paz em nenhum dos outros. Um homem que observa sem se perturbar a dor de um semelhante não merece o título de homem, porque cada ferimento e dor e sofrimento e morte de qualquer das criaturas do mundo empobrece a todas.

Cyro fechou os olhos, esfregando a testa como querendo apagar as rugas que a recobriam:

— Foi de tanto ver poderosos que decidi ser senhor do mundo, fazendo minha parte na construção do respeito entre todos os seres. Meu próprio avô foi um desses: quando visitou um oráculo que lhe disse que seu neto o derrubaria do trono, mandou matar-me, para que seu poder nunca fosse ameaçado. Não funcionou: o súdito de meu avô não teve coragem de cumprir a ordem dada, deixando-me longe de onde eu nascera, aos cuidados de um casal de pastores. Quando cresci, sabendo da história, fui até meu avô, que me enfrentou com ira demoníaca, não me deixando outra alternativa senão matá-lo.

Eu senti o tremor da alma de Cyro, porque para ele a vida tinha valor incalculável. Ele esfregou mais uma vez a mão sobre a testa, tentando apagar não as rugas, mas as lembranças doloridas:

— Foi a primeira vez que matei um homem, e jurei não mais fazê-lo ou permitir que alguém o fizesse, a não ser em último caso, quando já não restasse nenhuma outra alternativa.

Uma lágrima escorreu de seu olho esquerdo, e ele a esfregou para fora da face, com brusquidão. Eu estava mudo, recebendo a lição de poder que me seria útil, ainda que contra a vontade dos que me cercavam. Cyro continuou, o maxilar projetado para a frente, em extremo controle de si mesmo:

— Quando meus soldados entraram pacificamente na Grande Baab'el, não permiti que nenhum deles aterrorizasse o povo. Preocupo-me o tempo todo com seus pontos de vista, suas crenças, seus santuários, pois é neles que reside seu bem-estar, e portanto o bem-estar de todo o Império. A consciência é o maior bem que um homem pode almejar, e meu dever é aumentar essa consciência até seu ponto máximo, para que todos sejam livres e alcancem a felicidade em vida. Cada poderoso que me antecedeu diminuiu a felicidade possível: pretendo ser o oposto deles, dando a todos os que estão sob meu comando a oportunidade de ser quem desejem ser, da maneira que pretendam ser, sem que eu lhes imponha nada, a não ser a consciência!

Os olhos de Cyro se abriram, e neles pude ver meu próprio reflexo, como se lá dentro morasse aquele que eu deveria ser. Apertei-lhe as mãos, sufocado de espanto e alegria: aprendera mais nessa curta conversa do que em todo o ano que a antecedera, durante meu treinamento para ser rei. Quando o momento de emoção passou, Cyro voltou a ser o brilhante estrategista de sempre:

— Com que então, existe um antecessor com direito ao trono de Israel, teu tio Sheshba'zzar? E ele sabe disso?

— Irmão Cyro, ele não sabe nem mesmo de sua própria existência: vive bêbado em meio à ralé da Grande Baab'el, buscando o prazer que mais se esgota quanto mais se aproxima dele. O trono não é nem mesmo a última de suas preocupações: eu fui designado para cumprir sua tarefa, e quando a aceito, percebo que nada vale.

— Não é verdade, Zorobabel. — Cyro sorriu, mansamente. — Quem tem uma vontade forte molda o mundo à sua própria imagem, e mais ainda quando molda a si mesmo antes de moldar os outros. É a vontade o que torna uma ação boa ou má, ao agir sobre as idéias e os desejos. Quando age sobre as idéias se torna plano, projeto, caráter, obstinação: quando age sobre os desejos, é apenas paixão. Idéias fixas sempre podem ser positivas, dependendo de como se estabelecem: mas desejos fixos sempre levam à frustração, à loucura, ou a ambas.

A imagem de Sha'hawaniah passou por minha mente: ela era o meu desejo fixo, e eu temia pela loucura a que a frustração sucessiva e constante de minha vontade me estaria levando. Cyro, no entanto, era homem extremamente prático, sem o costume de chafurdar no pântano das indecisões mais que o estritamente necessário:

— O poder de um rei de Israel, nesse momento, é bem pouco: e tu, meu irmão, precisas de todo o poder possível para executar tua missão, que se tornou também a minha, já que surgiu como resposta a um anseio de liberdade que eu não podia satisfazer. Cada homem deve perseguir sua própria crença no deus que melhor lhe aprouver. Eu acabo por crer em todos, porque todos os deuses são apenas aspectos mais ou menos claros do Único Deus, e portanto o templo do teu deus é o templo do meu.

Indo até a porta, Cyro abriu-a e gritou para fora:

— Escriba!

Deixando a porta aberta, Cyro me olhou fixamente, colocando suas ásperas mãos sobre meus ombros:

— Devo viver e agir de acordo comigo, e todos os meus decretos têm que refletir essa verdade. Já determinei a construção de estradas que unam todo o Império, para que os alimentos produzidos possam chegar a todos os lugares: ninguém deve passar fome. A idéia que alguns gregos tiveram de usar moedas como símbolos da riqueza também me pareceu boa, e eu as estou decretando obrigatórias em todos os lugares que governo, mandando cunhar pequenos círculos de ouro, prata e cobre com minha efígie, para que minha riqueza possa chegar até mesmo onde eu não for capaz de ir. Como vês, sou obrigado a fazer o bem, quando mais não seja para equilibrar o mal que porventura tenha causado ou possa vir a causar.

Eu estava sem fala: num mundo em que o poder servia exclusivamente para a satisfação de seu possuidor, um homem como Cyro era um inesperado espantoso. A responsabilidade podia ser exercida de várias maneiras, só dependendo da escolha consciente, e eu queria ser como Cyro, por ser essa a única maneira pela qual um rei se torna digno do título. Se não nos ligasse o fato de sermos irmãos numa mesma fraternidade, estaríamos unidos pela vontade de tratar a todos como iguais, colocando todo nosso poder a serviço dessa idéia.

O escriba entrou pelos aposentos de Cyro, com certa pressa, e Cyro, sentando-se em seu escabelo de batalha, disse-lhe:

— Marca aí em teus tabletes, e que logo após terminado seja gravado em pedra muito dura, para que as palavras nunca se percam: assim fala Cyro, Rei da Pérsia, Imperador do Mundo, dominador de Hircana, Partia, Drangiana, Aracósia, Margiana e Báctria, vencedor de Babilônia e Egito, provedor da paz dos Aquemênidas para todo o mundo sobre o qual reina. Yahweh, o Deus do Céu, entregou-me todos os reinos da terra, e em troca disso encarregou-me de construir-lhe um templo em Jerusalém, na terra de Judah. Todo aquele dentre meus súditos que pertença ao povo de Yahweh, que o Deus do Céu esteja com ele, e que suba a Jerusalém, na terra de Judah, para que lá se construa o Templo de Yahweh, o Deus de Israel, que mora em Jerusalém.

Cyro olhou-me com um ar divertido:

— Aonde quer que eu tenha ido e vencido, mandei traçar este mesmo documento: não há quem eu tenha subjugado que não esteja ocupado erguendo templos a seu deus particular, sob minhas bênçãos e à minha custa... Já o ditei tantas vezes, que meu escriba deve sabê-lo de cor, também: dize, escriba, quantos documentos desses eu já expedi?

— Dezoito, Grande Cyro. — O escriba parecia mais entediado que interessado. — E junto a eles seguem as cartas determinando que todas as despesas sejam debitadas a vosso tesouro.

— E neste caso também, assim que eu e o Príncipe Zerub estabelecermos as necessidades da obra: mas isso fica para depois. Prepara outro documento.

O escriba lançou mão de outro tablete, e Cyro começou a ditar, com voz fria e calculada:

— Por ordem de Yahweh, Deus dos Judeus, reconhecendo-O como o deus que me deu todos os reinos da terra e me encarregou de edificar-lhe um templo, estabeleço meu representante Zerub ben-Salatiel-ha-David, príncipe da Paz e de Jerusalém. Tendo testado sua fidelidade, reconheço-o como irmão na Verdadeira Luz dos Mestres, nomeando-o tarshatta de toda a Judéia, para que governe em meu nome e com minha autoridade a satrapia de Jerusalém, e que reerga o Templo de Yahweh com a colaboração de todo o povo da região. Dou-lhe a espada, o anel e a faixa de tarshatta, decretando que em sua pessoa eu mesmo seja reconhecido como se ali estivesse, e que se obedeça às suas ordens como se eu mesmo as estivesse dando.

Cyro me dava um poder muito maior do que qualquer sangue real me garantia. Com esse documento, fazia de mim seu representante em Jerusalém, tornando-me essencial à construção do Templo de Yahweh, exatamente como a Irmandade da Pedra havia determinado. Minha alma pequena e sem valor enxergava o Universo de que aquele irmão me dotava, e Cyro, reconhecendo esse momento em minha alma enfraquecida, foi generoso o bastante para não fixar o olhar em mim, permitindo que eu me regozijasse sem ser observado.

O escriba, bufando, terminou de marcar os sinais desse segundo decreto e olhou para Cyro, como que aguardando suas ordens: e então Cyro, inexplicavelmente, lhe disse:

— Preciso que vás imediatamente buscar meu aVmusharif, para que eu lhe dê as ordens necessárias. Traze-o aqui sem demora.

Não fui o único a estranhar essa ordem: afinal, havia mensageiros para levar ordens e trazer pessoas à presença de Cyro, e no Império cada homem executava sua função, sem exorbitar dela nem se imiscuir nas tarefas alheias. O escriba também franziu a testa, enquanto recolhia seu material, mas Cyro lhe disse:

— Deixa tudo sobre a mesa: quando retornares, hei de precisar de ti para traçar outros documentos. Vai, e traze imediatamente o almo-xarife de meus tesouros.

O escriba saiu da sala, curvando-se, e Cyro trancou a porta com o ferrolho, coisa que estranhei muito: mais estranho ainda foi quando Cyro, sentando-se à mesa, começou a marcar uma placa de argila com suas próprias mãos, como nenhum rei se dispunha a fazer. Cyro escrevia com certa dificuldade, pois suas mãos deformadas pelas batalhas não estavam afeitas à escrita, que requer traquejo e talento. Estava profundamente concentrado, com pequenos filetes de suor escorrendo por sua fonte, enquanto, diligentemente, marcava com atenção a superfície da placa, a língua entre os dentes, procurando não errar. O silêncio da sala só era quebrado pelo ruído das pancadas que forçavam o pequeno cin-zel na superfície de argila, marcando-a com os pequenos sinais em forma de cunha que eram a língua babilônia, que eu não sabia ser do conhecimento do grande Cyro.

Ao terminar, Cyro depôs o malhete e o cinzel, passou a mão sobre a fonte molhada, bufando, olhando-me com um sorriso cansado:

— Não sei o que exige mais de um homem, se as artes da guerra ou a batalha com as palavras. O que está traçado nesta placa não deve ser do conhecimento de ninguém, a não ser nós dois e os Irmãos da Pedra, em Jerusalém, a quem darás conhecimento do que nela está escrito.

Cyro pegou da placa e leu com voz grave:

— Assim fala Cyro: A meus Irmãos na Pedra, residentes em Jerusalém, onde labutam para reerguer o Templo de Yahweh, destroçado pelos que me antecederam no domínio do mundo: este documento serve como reconhecimento de que, mais que como casa do deus de um povo, esse templo deve reerguer-se como prova da tolerância entre os homens. Os Irmãos da Pedra temos a grandeza da Sabedoria, que gera a Justiça absoluta, e, sendo dessa Fraternidade, somos os únicos que ainda conservamos as tradições da Razão, tão difíceis de defender ante a violência da multidão e os ataques dos que exploram a ignorância alheia. Recordai-vos sempre que, entre os habitantes de vossa cidade, não sois apenas vós que conheceis o Deus Único, diferente de outros deuses que são cheios de cólera, ciúme, injustiça e crueldade. No lugar de onde venho, os sábios também estudam Deus como a Causa Primeira e Única de Todas as Coisas, por isso vos digo que nem todos os Iniciados na Verdadeira Luz residem em Jerusalém. Muitos existem onde se exerce a liberdade de pensamento, e a sabedoria desses homens, igualando-se à dos Irmãos da Pedra, é superior à dos habitantes de vossa cidade. O Deus que reconhecemos é o Pai Comum de Todas as Nações, o Fogo Eterno que anima a todos os homens. Reedificai o templo, não para ser a casa do Deus de apenas um povo, mas sim o Templo da Liberdade para todas as crenças, e principalmente Morada da Tolerância Absoluta, único alicerce da verdadeira Fraternidade...

Cyro pousou o tablete de argila e me mirou, nossos olhos igualmente enevoados pelas lágrimas, os meus pelo fascínio de encontrar naquele conquistador de povos a alma de um Irmão compassivo e justo. Abraçamo-nos e beijamo-nos, como era o hábito em nossa Fraternidade, e depois desse momento Cyro me entregou o tablete:

— Guarda-o com cuidado; os documentos públicos que levarás são essenciais para que executes a obra de tua vida, sendo reconhecido por todos como o depositário de meu poder. Este é aquele que dará a essa obra o fundamento de que ela necessita. Agora, ajuda-me a limpar a mesa, para que meu escriba continue certo de que seu senhor Cyro é incapaz de escrever, e que só graças a seu trabalho é que o Império ainda se move...

Enfiei o tablete em meu manto, deixando-o em contato com minha barriga, enquanto tirávamos de cima da mesa os restos de argila endurecida, e que Cyro jogou dentro de um vaso que enfeitava as grandes janelas que se abriam sobre o Eufrates. Meu poderoso irmão destrancou o ferrolho, e imediatamente alguém bateu à porta. Com o ar de uma criança que foi apanhada em uma travessura, ele sentou-se rapidamente em seu escabelo, engolindo uma risada quase incontrolável, e gritou, com voz séria:

— Que entre!

A porta se abriu: por trás do escriba, que se curvava com sofregui-dão, estava uma figura vestida à moda da Grande Baab'el, barbas frisadas e cabelos ocultos sob um barrete enfeitado com lápis-lazúli, que também se curvou, deixando aparecer, pelas dobras do manto, um braço esquerdo mirrado e encolhido, com o formato de uma asa de pássaro. Um grito escapou de minha garganta: ali estava o companheiro de juventude, surgindo inesperadamente à minha frente:

— Mitridates!

Meu velho amigo, como raríssimas vezes eu o vira fazer, sorriu em minha direção, e o sol do mundo, o sol do Grande Cyro, o sol de Yahweh, brilhou dez vezes mais forte sobre minha alma: o reencontro desse a quem eu havia perdido aumentava minha felicidade e diminuía minha tristeza, multiplicando por dez minha alegria e dividindo em pedaços infinitamente pequenos minha miséria.

 

Foi grande a minha felicidade ao rever o amigo que não sabia por onde andava: Mitridates apertou-me estreitamente ao peito, antes de controlar-se e novamente olhar-me com seu semblante impenetrável:

— Ouvi falar de tua volta, Zerub, mas aguardei que os acontecimentos nos pusessem frente a frente.

— Ninguém, nem mesmo Yeoshua, me deu notícias tuas, Mitridates! Com que então, continuaste no almoxarifado do palácio?

— Foi o que se pôde arranjar: quando um homem conhece a ciência dos números e sabe usá-la a serviço de quem dela precisa, torna-se cada dia mais útil, como o Grande Cyro pode atestar.

— Tua utilidade é grande, aVmusharif. — Cyro se aproximou de nós, sorridente. — Quando percebi que dominavas o cálculo e que, diferentemente dos outros, não tinhas nenhuma vontade de ser dono do que contabilizavas, coloquei-te na posição que agora ocupas. Até este momento não me contradisseste.

— Grande Cyro, é impossível contradizer-te: parece que dominas os cálculos melhor do que eu mesmo. Quando te apresento os resultados de minhas contas, eles só servem para que se confirme o que tua mente já havia descoberto...

Cyro soltou uma gostosa gargalhada: fez a mim e a Mitridates um sinal para que nos sentássemos e continuou:

— Pois nunca foste tão necessário quanto hoje, aVmusharif: temos que descobrir quanto devemos ao príncipe Zorobabel e como a dívida será paga.

Tanto eu quanto Mitridates olhamos Cyro com grande espanto, e ele mais uma vez irrompeu em saborosa gargalhada:

— Não te darei nada que não te seja devido, Zorobabel: as boas contas fazem os bons amigos, e tenho conseguido manter a amizade dos que estão ligados a mim simplesmente agindo com correção. O que parece ser generosidade não é nada mais que a maneira de recompensar os que hoje domino pelos maus-tratos que meus antecessores lhes deram. Não te esqueças que teu povo foi escravizado, suas propriedades tomadas, suas riquezas incorporadas ao tesouro real de Neb-buchadrena'zzar. Esse rei fez o mesmo com meu povo: se consegui libertar-me, libertando a todos, é justo que as riquezas voltem a seus verdadeiros donos, não te parece?

Mitridates deu um longo suspiro, que fez Cyro gargalhar mais uma vez, falando-me logo após:

— Teu velho amigo sofre muito sempre que pago uma dívida dessas.

— Com razão, meu senhor. — Mitridates mantinha-se isento, expressando sua opinião da maneira mais direta. — Tesouros não são infinitos: cada vez que deles se tira algo, deixam de valer o quanto valiam. Diminuir é perder poder, dividir é elevar essa subtração a um grau assustador: não gostaria de arriscar o futuro de vosso tesouro.

— Meu verdadeiro tesouro não se divide nem diminui, aVmusharif: está para sempre dentro de mim, e, cada vez que cumpro meu dever, aumenta incomensuravelmente. Os que domino precisam recuperar sua dignidade, voltando a viver de acordo com seus corações, sem ter de se preocupar com as vicissitudes da vida. Não admito que se diga que um súdito do Grande Cyro passa fome ou é infeliz: se isso acontecer, não mereço o título de Grande.

— Enquanto isso, tuas riquezas diminuem a olhos vistos: se não fosse o que entra em teus cofres, estaríamos em situação muito embaraçosa... a sangria que teu jeito de governar impõe ao tesouro é imensa...

— Mas as bênçãos que são dirigidas à minha pessoa as compensam, sem sombra de dúvida. Não tergiversemos: é preciso descobrir onde estão os tesouros de Jerusalém, de que Nebbuchadrena'zzar se apossou.

Mitridates, sem mudar de ares, tirou de dentro de suas vestes um grande rolo de papiro egípcio e desenrolou-o à nossa frente, enquanto dizia:

— Eu já previa teu desejo, Grande Cyro: como te tenho visto fazer o mesmo de cada vez que me chamas com urgência, e sabendo que o famoso Príncipe de Jerusalém estava em tua companhia, trouxe a lista dos tesouros de Israel e Judah que estão nos cofres deste palácio, junto a outros tesouros recolhidos por este ou aquele poderoso assírio ou babilônio nos anos que antecederam ao teu ataque.

Cyro mais uma vez soltou sua sonora gargalhada, e, passando-me o braço pelo ombro com familiaridade desconcertante, pôs-se a examinar a lista de bens que Mitridates apresentava. Fiquei impressionado com o tesouro que se havia acumulado, mesmo em meio a revoltas, secessões e ataques externos: segundo a lista, dormiam nos cofres cinqüenta bacias de ouro e quatrocentas de prata, todas finamente lavradas, acompanhadas dos respectivos jarros de ouro e prata. Havia também inúmeros baldes, imensos pratos sobre os quais se apresentavam as oblações para o sacrifício, milhares de vasos de todos os tamanhos e diversas taças, entre as quais certamente estaria a taça de ouro da qual a mão de Yahweh surgira durante o festim de Belshah'zzar, para traçar-lhe a sentença. O total desses objetos preciosos chegava a cinco mil e quatrocentas peças, intocadas em meio a tantas outras de tantos povos vencidos.

Cyro me apertou os ombros:

— Viste? O impulso de amealhar cada vez mais tesouros salvou a riqueza de teu povo, permitindo-me devolvê-la para maior engrandeci-mento de meu nome...

— Grande Cyro, é inacreditável! E pensar que os que habitam Jerusalém vivem na miséria extrema, sem saber que o tesouro que lhes pertence dorme intocado em teus cofres! — Eu estava radiante, pensando que finalmente poderia ser valioso ao povo da cidade em ruínas, cuja reconstrução era a missão de minha vida. — Com isto que nos devolverás, poderemos reiniciar nossa vida como povo rico e produtivo1.

— Com certeza, não, Zorobabel: essas riquezas são parte do templo que tens que reconstruir, parte dos serviços de devoção, e devem ser usadas exclusivamente com esse fim.

— Mas então, de que vale essa riqueza para o meu povo? Nosso deus e nosso templo serão ricos em meio à miséria das pessoas? Morreremos de fome olhando as riquezas que possuímos?

Cyro me encarou, fixamente:

— Crês realmente que eu seria capaz disso, Zorobabel? O maior inimigo de qualquer conquistador é a fome dos que subjugou, porque, quando a barriga está vazia, nada se sustenta, e os conflitos se sucedem. Em nenhuma parte de meu território há quem reclame de fome e miséria. Por que deixaria que isso acontecesse com teu povo?

Virando-se para Mitridates, Cyro lhe ordenou que anotasse no papiro:

— Fica ordenado que concederemos aos de Jerusalém as mesmas rendas de que seus antecessores gozavam, e que além disso, como compensação, lhes sejam entregues animais, vinho e óleo em quantidade suficiente para um ano de vida digna. Inclua-se aqui também duzentas e cinqüenta mil dracmas durante cinco anos, e para que possam reiniciar sua vida sem que lhes falte pão à mesa, duas mil e quinhentas medidas de trigo, que devem ser recolhidas em nossos celeiros da Samaria, perto o suficiente de Jerusalém para que não haja atrasos. Isso deverá ser coordenado pelo tarshatta que acabo de indicar, aquele que governará Jerusalém em meu nome: o Príncipe Zorobabel.

Era o poder para realizar, dado por quem o tinha, pelos motivos mais inesperados: Cyro me auxiliava nesse transe, tornando-me representante de sua força, dividindo-a comigo. Nem por isso ela se tornava menor: como o amor, a felicidade e a paz, o poder também é um atributo que mais aumenta quanto mais se divide. Os documentos foram registrados, o escriba aplicou o selo real, rolando sobre a argila um cilindro de metal marcado em alto-relevo, levando-os para os que perpetuariam em pedra essa decisão de Cyro. Meu irmão, o senhor de todo o mundo conhecido, deu-me o suave e emocionado beijo fraternal e disse:

— Cuida-te, irmão Zorobabel: chegou a hora de fazeres o que deves fazer, com todo o meu apoio. Parto para Fars, onde estou construindo a grande cidade de Pasagard, que deverá ser o centro de meu Império, e depois o percorrerei por inteiro, já que ainda há muito que conquistar para ampliar suas fronteiras até o limite, e mais além. Os Helenos serão os próximos que libertarei de seus tiranos, e para isso devo estar preparado.

— Mas, meu irmão, eu nada sei da arte de governar! Sem teu apoio, certamente meterei os pés pelas mãos, conspurcando teu Império!

Eu estava sinceramente preocupado, e Cyro me tranqüilizou:

— Acalma-te, Zorobabel: contas com amigos fiéis e muito competentes. Entrego-te meu aVmusharif, para que ele te auxilie na programação das tarefas: é difícil abrir mão de Mitridates, mas tu necessitas dele mais do que eu. Confia nele, porque seus cálculos são perfeitos. Confia também em teus irmãos pedreiros, como eu tenho feito, para que o Templo de Yahweh se erga: esta é nossa tarefa, e deves fazer tua parte. Cerca-te de amigos sinceros que te possam ajudar a ser líder de teu povo: mas, acima de tudo, confia na tua intuição. Ela te revela o tempo todo o que deves fazer e como deves agir: basta apenas que aprendas a atender à voz que fala dentro de tua alma, essa mistura de razão e emoção que todos ouvimos mas a que raramente damos atenção. Sê feliz, meu irmão. Quem sabe se eu não estarei a teu lado quando o Templo estiver novamente de pé?

Saímos dos aposentos do Grande Senhor do Mundo, eu e Mitridates, e a última visão que tive de Cyro foi a de um homem que não se abatia, como um jâmal sobre cujas costas fosse posta uma carga cada vez maior, e que mesmo assim não se curvava. Caminhamos pelos corredores em direção a meus aposentos, para depois voltar ao teVaviv e convencer meu povo a retornar a Jerusalém. Encontrei a todos, menos Feq'qesh: seu hábito de surgir e desaparecer sem aviso já não me assustava tanto, mas dessa vez eu sentia muito a sua falta, por não saber como me mover no território que deveria trilhar. Yeoshua estendeu-me um pequeno rolo de papiro:

— Feq'qesh pediu-me que te entregasse este rolo, ordenando que eu nunca te deixasse só.

— E isso te agasta, amigo?

— Pelo contrário, Zerub! — Yeoshua tinha os olhos brilhantes. — O que ele me pede já é o desejo de meu coração.

Desviei os olhos de Yeoshua, envergonhado em minha alma confusa, e abri o rolo, onde, com as pequenas labaredas de fogo negro congeladas na página, cada vez mais vivas em minha alma, pude ler:

"Moisés libertou seu povo e o fez atravessar o deserto: David cantou as canções que elevam o espírito em meio à guerra: Salomão foi amante e poeta enquanto enriquecia seu povo: mas só Zorobabel pode reconstruir o Templo de Yahweh."

Olhei durante longo tempo as palavras de meu mestre, como quem lê a própria sentença de morte: enrolei o pergaminho, olhando as faces dos amigos, onde se refletiam todas as emoções que eu sentia. Era hora de ir em busca de meu destino, que mesmo não sendo a verdade de meu coração, já se tornara parte de mim, como uma faca que se me tivessem enfiado no peito e, sem conseguir matar-me, fosse pouco a pouco se transformando em carne.

Retornei à casa de meu pai, no teVaviv, lá estabelecendo minha morada e centro da campanha de convencimento de meus compatriotas: a vida cotidiana se me tornara pouco familiar, mas, com a ajuda de meus amigos e do treinamento intenso que havia recebido em Jerusalém, pude lentamente tornar-me um deles. Tive que primeiro estabelecer-me como chefe de minha própria família, ocupando seu comando da melhor forma possível, como tantos faziam, e, segundo a tradição, deixando a casa aos cuidados de minha mãe e irmãs. No final do primeiro mês, já era cumprimentado nas ruas com naturalidade, havendo mesmo quem viesse pedir-me conselhos, certamente para compará-los com os que meu pai daria, em circunstâncias idênticas. Não devo ter-me saído mal dessas provas, pois a cada dia o número de pessoas que me tratava com familiaridade aumentava, e a faixa de tarshatta que Cyro mandara entregar-me em casa, depois de ter partido, chamava a atenção de todos. Era uma larga fita verde com as bordas em fio de ouro, para usar atravessada sobre o peito. Na ponta havia uma caixa feita de ouro e esmalte, que eu abri, descobrindo dentro dela a pequena moeda do milagre, com seu brilho baço de cobre gasto, perfeitamente acomodada em uma depressão exatamente de seu tamanho, fundida no ouro do relicário. As apagadas letras e desenhos gregos em sua superfície eram indecifráveis, e pensei mostrá-la a Théron, assim que o encontrasse, para que me revelasse o que significavam.

Com a faixa e os documentos oficiais, haviam vindo muitas caixas de moedas de ouro e prata, todas gravadas com a face de Cyro, e que eram agora o dinheiro oficial do Império. As pessoas já se acostumavam a usá-las, mas ainda havia quem insistisse nos tradicionais anéis, mais fáceis de carregar e guardar. Tentando tornar-me indispensável a meu povo, comecei a distribuí-las prodigamente, até que Mitridates me chamou a atenção exibindo contas assustadoras que me refrearam o ímpeto e me obrigaram ao exercício diário do planejamento. Era preciso decidir com antecedência a melhor maneira de fazer uso dessa riqueza, não apenas para suprir as necessidades dos menos afortunados, mas principalmente para convencer os do teVaviv a retornar a Jerusalém, para reconstruir a cidade, o país e o povo de Yahweh.

Cinqüenta e seis dias se passaram, e nada avancei nesse caminho: Todos me admiravam muito, os mendigos do teVaviv acorriam em bando à minha passagem, as bênçãos sobre minha cabeça se multiplicavam, mas, cada vez que eu puxava o assunto de Jerusalém, as platéias iam-se esgarçando, esvaziando, minguando até se extinguir, deixando-me sempre com uma última frase solta no ar, junto à sensação de estar sendo cada vez mais inoportuno. Minha casa vivia cheia de gente que pedia ajuda para todos os negócios que envolvessem o Grande Cyro, e eu fiz tudo o que pude para que se realizassem: mas assim que falava em Jerusalém, os olhares se desviavam, as atenções se perdiam, e eu me encontrava tão só quanto antes, e nem um palmo mais próximo de minha meta.

Uma noite, após a última refeição, fiquei sozinho: minha mãe e irmãs em outro cômodo da casa, meu irmão com seus amigos do bairro, meus próprios amigos ocupados com seus afazeres, Heman e Iditum ressonando, as cabeças apoiadas uma na outra. Vislumbrei no canto da sala o volume vermelho-escuro de minha harpa, que não dedilhava desde a noite na Taberna do Boi Gordo. Apanhei-a com cuidado, para não acordar meus guardiões tão cansados: tirando-a dos panos, abracei-a com carinho, como se faz com os amigos de quem só se percebe ter tido saudade quando se os revê. Esfreguei as cordas de tripa, que mesmo dando sinais de ressecamento mantinham a afinação de sempre. Corri os dedos sobre elas: a escala simples de doze sons deu-me um nó na garganta. Eu tinha certeza de que no toque desse instrumento residia minha verdadeira capacidade, e não na canhestra liderança que insistiam em me impor. Minha mente devaneava e meus dedos agitaram as cordas com melodias às quais pouca atenção prestei, tomado pela sensação da inutilidade que minha vida efetivamente era: eu não possuía nada que desejava, e bastava desejar alguma coisa que me estava próxima para vê-la imediatamente fora de meu alcance. As frases fluíam por vontade própria, enquanto minha mente refazia o percurso do último ano: se Mitridates fizesse esses cálculos, certamente encontraria prejuízo, desperdício, e me recomendaria encontrar outra coisa que fazer, porque esta já havia fracassado.

Assustei-me ao perceber à janela uma figura que não distingui bem, e quase larguei a harpa com sua presença súbita, reconhecendo-o logo após: era Ageu, o idiota do teVaviv, sorrindo com a beatitude dos que já perderam toda a ligação com o mundo, pairando em algum lugar entre o chão e o céu, falando de coisas que nem os anjos conheciam nem os homens entendiam. Depois de nos entreolharmos em silêncio, fingi não estar percebendo sua presença e continuei a tocar minha harpa. Era assim que Ageu sempre era tratado, por tradição: sua presença inconstante e mansamente ensandecida tinha lugar garantido dentro do teVaviv, como se fosse invisível, e nunca tomávamos conhecimento de sua presença, seguindo com nossos afazeres como se ele não estivesse ali. Ageu ficou à janela, com sua barba e cabelos hirsutos, balançando o cajado no mesmo ritmo de minha música, e quando me envolvi com as notas a ponto de quase esquecê-lo, começou a trautear de boca fechada, com voz muito grave, uma melodia simples e repetitiva que a princípio me incomodou, mas que com espanto percebi estar de acordo com tudo o que eu tocava. Assim permanecemos, nesse estranho dueto, seus olhos afo-gueados fixos em mim, enquanto a baba lhe escorria pelo queixo.

O berro inesperado de Ageu me fez soltar a harpa: imediatamente, Heman e Iditum estavam a meu lado, com suas espadas em riste, apontadas para Ageu, que revirava os olhos para cima como se quisesse enxergar o que lhe acontecia dentro do cérebro, soltando o grito lancinante que se prolongava sem fim. Lembrei de uma série de momentos de minha infância em que esses gritos haviam interrompido o dia-a-dia do bairro, recordando o medo que me haviam instilado.

A rua imediatamente se encheu de pessoas que saíram de suas casas e ocuparam a frente de minha porta, formando um círculo em volta de Ageu, caído para trás e formando um arco muito tenso com o corpo, tocando o chão com as pontas dos pés e o alto da cabeça, a espinha tão curvada que os ossos de suas costelas pareciam um fole a ponto de rasgar-se, enquanto os gritos lancinantes saíam de sua boca sem cessar. Ninguém dizia nada: minha mãe chegou por trás de mim, dizendo, com voz trêmula:

— Ele vai profetizar, meu filho... faz algum tempo que não profetiza, e ele nunca erra... os anjos falam por sua boca... foi assim com a morte de teu pai...

Os gritos de Ageu começavam a transformar-se em palavras ditas de maneira muito rápida, entremeadas de respirações tão curtas que ele parecia estar soluçando. Ninguém conseguia tirar os olhos dele, e Yeoshua, à frente de alguns outros homens do bairro, abriu caminho no círculo de assistentes e se ajoelhou ao lado de Ageu, segurando-lhe a cabeça com uma das mãos e colocando-lhe a outra mão no peito. O arco do corpo de Ageu se desfez, e ele segurou com força a mão de Yeoshua, virando bruscamente a face em minha direção. Tomei um choque brutal, pois, na penumbra da rua mal iluminada, os sons que ele proferiu pareciam ser ditos por outrem, já que sua boca não se movia:

— Yahweh está no exílio! Salvemos Yahweh! Nosso deus precisa de ti para reerguer sua casal Ela está em ruínas. Subi a montanha, trazei madeira e reconstruí minha casa. Eu estou convosco.

E enquanto todos ficavam congelados com suas palavras, Ageu começou a tremer como que tomado de alguma febre dos pântanos, suando em profusão enquanto gritava as frases que mudariam mais uma vez a minha vida:

— Moisés libertou seu povo e o fez atravessar o deserto. David cantou as canções que elevam o espírito em meio à guerra. Salomão foi amante e poeta enquanto enriquecia seu povo. Mas só Zorobabel pode reconstruir o Templo de Yahweh.

As exatas frases que Feq'qesh me endereçara, palavra por palavra, saíram da boca em sombra de Ageu: um arrepio me percorreu o corpo, como se a febre também me quisesse tomar. As pessoas à nossa volta se puseram a gritar, saltar, rojar-se ao solo, orar em altos brados, todos fazendo questão de tocar-me a fímbria do manto. Estávamos eu e Ageu nos focos de uma grande elipse formada pelos transeuntes, que giravam em torno de nós, na dança coreografada por alguma mente insana, e as frases que ele gritara eram repetidas por cada boca, espalhando-se por todo o teVaviv mesmo depois que ele caiu desmaiado e foi carregado para a casa da mikhvàh. Retornei para dentro, ouvindo as palavras que se repetiam do lado de fora, enquanto as pessoas passavam em longa procissão pela janela, olhando para mim com ar de espanto, como se jamais me tivessem visto antes. Meu irmão Shimei, pela primeira vez desde minha volta, olhava-me com algum orgulho, e do meio dos anciãos de cabeça coberta Yeoshua sorria com ar enlevado, enquanto Jael, acompanhado por Heman e Iditum, organizava do lado de fora a fila de pessoas que passava em frente à janela, encarando-me como se eu fosse alguma relíquia divina.

Na manhã seguinte, quando acordei, a fila era ainda maior, só que desta vez para que cada um entrasse na sala e me tocasse o manto: eu nada entendia, e quando os homens mais ricos do bairro invadiram minha sala acanhada, sorrindo de orelha a orelha, comecei a perceber que a realidade havia mudado radicalmente. O ataque de Ageu, encarado como a mais confiável profecia, fizera-me passar de um incômodo sem valor algum a homem mais importante dos hebreus. A maneira como me tratavam quase me fazia acreditar haver um poder verdadeiro por trás dos acontecimentos, convencendo-me de que eu era um joguete nas mãos do deus que me escolhera para seus próprios e insondáveis objetivos. Tinha que aceitar isso, de qualquer forma: não dominava minha vontade, curvando-me aos desígnios de Yahweh, cuja obra realizaria mesmo que à custa de minha própria vida. Ergui-me do leito para enfrentar a realidade que se apresentava, cercado por uma onda de boa vontade como nunca imaginara, tudo graças aos delírios do idiota do bairro. Os argumentos racionais de que me armara para convencer o povo a retomar seu caminho não tinham funcionado: mas bastou que um louco dissesse três ou quatro palavras mal alinhavadas, e a situação se invertia. Restava-me apenas aproveitar a oportunidade, acreditando mais uma vez que os fins justificam os meios.

Passei as semanas seguintes como fantoche, enquanto os apoios ao retorno a Jerusalém cresciam, tornando-se um movimento intenso e quase incontrolável, a que eu assistia com ar sorridente, ocultando meu tédio. Meus amigos e irmãos também cumpriam sua parte nesse jogo: Yeoshua arrebanhava os antigos crentes, que cultuavam a Yaweh como se nunca tivessem saído da Cidade Sagrada, convencendo-os a todos de que eu era o Príncipe da Paz que a profecia revelava, e que os levaria ao Sião para que retomassem sua glória de povo escolhido. Enquanto Jael ficava o tempo todo debatendo a reconstrução do Templo com os pedreiros que encontrava, Mitridates passava os dias em conversa com os poderosos e ricos do teVaviv, para melhor envolvê-los nos investimentos necessários à renovação de Jerusalém, mostrando-lhes como isso seria vantajoso caso a comunidade contribuísse. Eu fazia minha tarefa, mantendo a cabeça erguida de Poderoso Príncipe da Paz e tarshatta de Jerusalém, tornando-me, para os que viviam no teVaviv, a figura mais importante da Grande Baab'el.

Numa dessas manhãs, Mitridates veio apanhar-me logo cedo, levan-do-me para o meu primeiro dia no Parlatório Real, um velho celeiro reformado, repintado e coberto com panos de Dimasha e tapeçarias da Pérsia, que não apagavam do ar o cheiro polvorento dos grãos que ali haviam dormido. Ao entrar, vi dois tronos de pedra, um menor que o outro: a dúvida sobre qual deles deveria ocupar foi dissipada quando meu tio Sheshba'zzar, bêbado como sempre, adentrou o salão, amparado por seis de suas jovens acompanhantes, que o arrastaram até o maior dos tronos, onde se deixou cair, ressonando. Enquanto ele estivesse vivo, eu seria apenas uma espécie de ve'zzur, pois, mesmo com toda a autoridade que Cyro me punha à disposição, nada seria feito com meu povo sem a anuência formal do verdadeiro rei. Éramos apenas figuras decorativas: enquanto Sheshba'zzar ressonava, eu mantinha o ar de autoridade que todos esperavam de mim, meu pensamento voando cada vez mais longe, e por diversas vezes me assustei quando alguém me trazia documentos onde o selo de tarshatta deveria ser firmado. Era o que me restava fazer: meu entendimento dos negócios de estado era mínimo, e meus amigos insistiam em me poupar deles, deixando-me livre para sonhar acordado.

De todos os negócios, o que mais me magoou foi o dos contratos de casamento, urdido por Yeoshua e Mitridates com grande requinte, e que me tornaram de um dia para o outro o ser humano mais cobiçado da região. Os homens mais importantes de nossa terra subitamente perceberam que com a simples doação de uma de suas filhas poderiam tornar-se não apenas genros do tarshatta, mas também avós de um futuro Rei de Israel. Essa idéia tomou o teVaviv como fogo na palha, e quando eu seguia em direção ao Parlatório, sentia-me como um carneiro premiado, de quem se espera que emprenhe as melhores fêmeas, garantindo uma progênie excelsa. Os risos de alegria e os preitos de submissão que me acompanhavam eram facas em minha carne dolorida: eu queria, precisava amar, e sabia a quem amar, mas o que o destino me punha nas mãos era apenas a mentira piedosa sobre meu poder, impondo-me seus desejos como se eles um dia pudessem ser os meus. A princípio, tive nojo do que estava fazendo, mas acabei por compreender a necessidade disso: assim que se espalhou a notícia de que o Príncipe da Paz estava buscando esposas para seu harém na Jerusalém reerguida, o apoio ao retorno se ampliou como que por milagre, começando a haver grande interesse em participar do empreendimento, com diversas listas de adesão correndo pelo teVaviv e até mesmo bairros e aldeias próximos, onde habitavam outras tribos. A idéia de voltar a Jerusalém começava a se tornar não apenas palatável, mas saborosa.

Primeiro conheci meus sogros, os avós dos príncipes que eu produziria em suas filhas. A forma como me tratavam, movidos por orgulho e superioridade, era de dar engulhos: mas Yeoshua e Mitridates, cada vez mais alegres com os resultados, faziam-me aceitar as homenagens interesseiras que me prestavam, enquanto entregavam os dotes correspondentes. Eu me tornava cada vez mais rico, e quanto mais isso acontecia, mais chefes de famílias tradicionais da Grande Baab'el vinham a meu encontro oferecer a flor de suas casas em holocausto à minha realeza.

Quando as moças finalmente começaram a ser trazidas à minha presença, o constrangimento que senti foi insuportável, mas nem um pouco menor que o delas, é verdade: eu já não sabia mais com quantas havia me casado, quantas ainda precisava conhecer, e como faria para ter com elas a intimidade que meu coração sonhava em dar a apenas uma, de quem nunca mais ouvira falar nem tivera notícias. Ficava calado em meio aos que riam e me bajulavam, enquanto outros oravam ungidamente a Yahweh, para que o próximo rei fosse de sua carne e sangue, quando eu conseguisse realizar esse milagre em suas próprias filhas, antes de fazê-lo nas dos outros. De cada lado do salão se amontoavam, a cada dia, as mais diversas meninas e mulheres, dos mais variados talhes, cores e alturas, tons de pele que iam do terroso escuro ao leite luminoso, cabelos de texturas variadas e cores sem par, infinitas mãos, pés, bocas. A grande maioria delas, com exceção de algumas mais atiradas e sensuais, mostrava-se tão infinitamente sem jeito quanto eu: éramos todos crianças jogadas numa rinha de adultos, para uma luta que não compreendíamos nem dominávamos. Mesmo tendo alguma noção do que isso significava em termos de prazer e poder, eu a cada dia me fechava mais e mais em mim mesmo, querendo estar longe de toda essa mixórdia que me desagradava e diminuía.

Graças a meu espírito curioso, isso não durou muito: comecei a observar melhor os detalhes das meninas que me eram apresentadas, e se algumas não tinham mais que onze ou doze anos de idade, com suas formas ainda infantis, outras havia que, por vontade própria ou bem treinadas pelos parentes, já exibiam facetas que me chamaram a atenção. Num universo de quase trezentas moças, entre filhas das famílias oriundas das cidades de Judah e Israel e as descendentes dos kohaním, levitas, cantores, porteiros, doados e outros, tive meus olhos despertados por algumas, que me deixaram uma impressão mais duradoura no espírito, e de quem eu fiz questão de saber imediatamente o nome: alguma coisa em meu baixo-ventre dera sinal de vida quando surgiram à minha frente. Pedi a Yeoshua que me informasse sobre elas, o que ele fez com grande preocupação:

— Zerub, cuidado: um Príncipe de Jerusalém não pode dar sinais de preferência por esta ou aquela de suas esposas prometidas, pelo menos enquanto não estivermos estabelecidos em nossa terra e elas efetivamente já sejam tua propriedade! Não vês que qualquer predileção nesse momento pode soar como ofensa aos pais de todas as outras? É um risco muito grande!

— Yeoshua, acalma-te: quero apenas reconhecer algumas delas como gente igual a mim, para favorecê-las quando o momento certo chegar... não tenho nenhuma pressa... pelo menos, não tanta pressa assim...

Yeoshua riu, e eu também: meu espírito estava bem diferente. Eu já começava a vislumbrar alguma vantagem em minha posição de marido desejado, e a imagem de Sha'hawaniah, se não se apagara de minha mente, tornara-se pelo menos mais tênue, porque eu me sentia cada vez mais cobiçado pelos que me cercavam, jurando que, quando fosse Rei de Israel, seria ela que viria a meu encontro, pedindo os meus favores, e eu a faria sofrer muito antes de tomar-lhe o que me negara. Essa idéia me avivou o humor e eu comecei a gostar de ser quem era. Quando chegou o momento em que nos consideramos prontos para enfrentar a grande jornada dos judeus de volta à nossa cidade natal, passei a ansiar pelas noites no deserto quente, onde experimentaria uma a uma as benesses que o destino me oferecia, comparando-as entre si para ter a certeza de que nada delas me escaparia, e com as quais geraria grande descendência, povoando o mundo conhecido e deixando para sempre a minha marca na sociedade dos homens de poder.

As paixões e os desejos, como duas cordas que formam uma corda mais grossa, misturam-se mutuamente, enrolando-se inextricavelmente à volta do coração, produzindo o Bem e a Alegria, quando moderadamente usufruídas, e gerando Miséria e Destruição, sempre que se tornam incontroláveis. Eu ainda não sabia disso, mas as lições que se tem a receber chegam inevitavelmente a cada um de nós: se, quando pequenas, não as percebemos e nada aprendemos, elas retornam maiores de cada vez, até que delas não possamos dizer que as desconhecemos, pois somos fatalmente obrigados a enfrentá-las como realmente são, sentindo sem perdão todos os seus efeitos.

 

Nunca imaginei que as exigências fossem como foram: levar meu povo de volta a nosso país certamente daria imenso trabalho, mas quando as listas dos que se dispunham a fazer o trajeto de volta a Jerusalém foram somadas, a face de Mitridates ficou branca como a cal. Quando assim o vimos, calamo-nos, e Jael perguntou:

— AVmusharif, que mal te aflige?

Mitridates ergueu seu rosto assustado em nossa direção, mostrando uma tabuinha de argila onde havia somado os números dos que estavam dispostos à viagem: Jael, olhando os rabiscos de Mitridates, abriu a boca num susto, olhando-me com a mesma face vazia. Eu não vi o resultado da soma, e quando a tabuinha me foi estendida, o que estava anotado nas cinco colunas de sinais específicos demorou um tempo até cair como uma bomba sobre mim:

— Quarenta e duas mil, trezentas e sessenta pessoas? Yeoshua, cada dia mais e mais o devoto crente, ergueu os olhos e as mãos para o céu:

— Bendito é o Senhor! Somos vitoriosos!

Também tive um momento de orgulho, mas as faces de Jael e Mitridates, repletas de preocupação, interromperam-me a alegria. Meu amigo pôs as mãos na cabeça, e pela primeira vez na vida o vi dar sinais de desespero. Jael olhava com incredulidade as listas, como se a atenção que lhes dava pudesse modificá-las, enquanto Yeoshua proferia bênçãos sobre o Senhor Deus de Israel. Não era possível permanecer sem entender, por isso eu disse:

— Mas o que significa isso? Por que o resultado alcançado vos deixa tão desesperados, amigos? Não foi para isso que lutamos o tempo todo?

— Meu irmão Zerub, a situação é bem diferente do que aparenta ser. — Jael buscava a melhor forma de me dizer o que lhe ia na mente, e eu quase podia ver seus pensamentos revoluteando por detrás dos olhos. — Estamos num desses casos em que o maior sucesso é a causa do maior fracasso.

— Tolice! — Yeoshua estava em seu momento de triunfo. — Vencemos com a ajuda de Yahweh, Jerusalém será novamente o centro do mundo! Basta que a ocupemos com essas quarenta e duas mil pessoas, e o poder de Yahweh estará restabelecido na região!

Mitridates arregalava cada vez mais os olhos:

— Sim, quarenta e duas mil, trezentas e sessenta pessoas... mas, a menos que Yahweh seja capaz de transportá-las por milagre da Babilônia a Jerusalém em um átimo de segundo, não há maneira de levá-las até lá! Como faremos o caminho? Como transportaremos nossos bens, nossos corpos, nossas riquezas? Como levaremos o que devemos comer e beber?

— Quantas milhas pode uma caravana desse imenso tamanho andar por dia? — Jael também se desesperava. — Se bem percebo, acabaremos por morrer de inanição no meio do deserto, porque um homem não pode levar consigo mais do que lhe é possível carregar! Quanto mais formos, mais lentos seremos, e quanto mais lentos formos, de mais precisaremos, e de quanto mais precisarmos, mais teremos que carregar, o que nos tornará ainda mais lentos... Impossível!

Yeoshua continuava cada vez mais exultante:

— O Senhor proverá! Somos o povo escolhido! Mitridates voltou-se para Yeoshua:

— Estás delirando, Yeoshua! Não vês que é impossível? Se sairmos da Grande Baab'el em direção a Jerusalém com uma caravana de quarenta e duas mil pessoas, não conseguiremos chegar nem à metade do caminho! Quantos anos levaremos para percorrer a distância que nos separa? Não sobreviveremos, e se o conseguirmos, certamente será para ver os ossos de nossos pais e filhos branqueando ao sol do deserto, antes que Jerusalém seja alcançada! É impossível!

— Nada é impossível para o Senhor Yahweh. Já atravessamos o imenso deserto do Faraó durante quarenta anos, e quando alcançamos a Terra Prometida, estávamos mais fortes do que nunca! Não temais! O Senhor proverá! O manah cairá dos céus, e as colunas de fogo e fumaça nos ocultarão dos inimigos e nos guiarão a nosso destino!

A cada instante, o sangue se me congelava mais dentro das veias: eu começava a compreender o temor de Mitridates e Jael. Havíamos iniciado um movimento irrecusável, que seria a nossa derrota. Eu tremia com o que Jael e Mitridates diziam: quantos mais fôssemos, maior seria a possibilidade de nos destruirmos em plena travessia do deserto, só que agora não podíamos mais recuar. O movimento de triunfo em direção a Jerusalém tomara a Grande Baab'el com imensa força, e qualquer recuo no que prometêramos seria a desgraça de um povo, que exigia a liberdade de fazer seu próprio destino. Seriam capazes de enfrentar a morte em pleno deserto, pelo menos enquanto a crença em Jerusalém os movesse: mas quando a morte começasse a nos rondar em meio às areias causticantes, eu seria o único culpado pela destruição de quem acreditara em nós. A responsabilidade era insuportável, porque de qualquer lado que olhasse o resultado era sempre o mesmo: morte e destruição de mais de quarenta mil pessoas. Yeoshua perorava:

— Somos quarenta mil apenas por enquanto! Quando nossa jornada se iniciar conseguiremos libertar todos os judeus que aqui habitam!

— Por todos os deuses, desta e de outra cidade, Yeoshua, tudo menos isso! — Jael brandia a tabuinha de argila. — Os filhos de Judah que habitam a Grande Baab'el são mais de cento e cinqüenta mil almas, três vezes mais do que estes quarenta e dois mil, que já são encrenca suficiente! Não estás satisfeito com o problema que Yahweh nos causou?

A face de Yeoshua tornou-se quase roxa: ofendidíssimo, começou a gritar com Jael, que gritou de volta, enquanto Mitridates tentava provar matematicamente aos dois a absoluta impossibilidade de qualquer ação com aquele número de pessoas. Eu estava em baldas: a tarefa a cada momento se tornava mais assustadora, e foi com muito medo no coração que voltei os pensamentos para Yahweh, esperando que ele me tirasse da armadilha em que me tinha colocado. Fechei os olhos, colocando a cabeça entre as mãos, ornado para que o deus que me manipulava indicasse a direção em que deveria olhar para encontrar a solução de meus problemas.

No fundo de minhas pálpebras, quase como acontecera na parede da cela quando um grande tubo dourado me enchera da força necessária para suportar as torturas de Na'zzur, uma mancha de luz começou a surgir, e a grande espiral de letras que formava o Universo surgiu à minha frente, em movimento muito lento e imensamente rápido. A diferença, desta vez, é que eu continuava consciente do mundo à minha volta, ouvindo cada palavra e grito da discussão entre meus três amigos, ao mesmo tempo em que estava longe dela, observando a beleza da Criação, aguardando a resposta que as letras certamente me dariam, como era costume. Quatro delas se destacaram da grande espiral, formando a palavra gvul, mostrando-me claramente que minha condição humana me impunha um limite que eu não sabia superar. Repentinamente, de dentro da espiral surgiram três grandes letras feitas com as familiares labaredas de fogo negro, nun, lamed e khaf, esta última com um formato diferente, como um cajado que se fincasse no espaço. Quando as três letras desse novo Nome de Deus atravessaram a palavra gvul, esta se transformou em gavar, e eu senti minha alma se enchendo da força necessária para superar o limite que separa os seres humanos dos que querem ser mais que apenas isso. Numa torrente que se derramava dos céus, as letras foram-se transformando em diversas somas de cem, e de centena em centena se organizando em fila, umas atrás das outras, plenamente integradas ao ritmo natural da espiral do Universo, fazendo uma longa curva pela beira verdejante de um grande rio, longe das areias escaldantes do deserto que eu mesmo já havia atravessado e cuja lembrança me atemorizava. A frente delas, as letras maiores se erguiam, e se transformaram no nome de Abrão, que se transformou em Abraão, e depois em Moisés, e depois em Zerub, meu próprio nome, enquanto eu escutava claramente a voz de Feq'qesh dizer em meus ouvidos:

— Moisés libertou seu povo e o fez atravessar o deserto. Mas só Zorobabel pode reconstruir o Templo de Yahweh.

Abri os olhos com um grito, enquanto minhas mãos batiam com força sobre os braços do trono de pedra. Meus três amigos, quase a ponto de engalfinhar-se, olharam-me com espanto, e eu me ergui em meus próprios pés, gritando:

— Um mapa! Quero um mapa do Império!

Houve um instante de hesitação entre eles, mas a decisão com que proferi as palavras deve ter sido suficiente para impulsioná-los, pois, quando gritei pelo mapa uma segunda vez, Mitridates já o estendera em minha direção, e eu o joguei ao chão, ajoelhando-me a seu lado, com a mão sobre a superfície rugosa do couro onde as linhas que indicavam os caminhos do Império de Cyro estavam traçadas, acompanhando com o dedo uma grande curva que inúmeras aldeias marcavam à beira do Eufrates, sempre para noroeste, até o lugar onde eu havia tomado o barco que me depositara na Grande Baab'el exatamente no instante em que meu pai morria. Minha mão esquerda substituiu a direita, traçando uma curva para oeste na direção de Dimashq onde uma linha vermelha e dourada indicava o Caminho do Rei, que Cyro construíra para facilitar o percurso de seus mensageiros, de lá descendo para o sul até o ponto onde um grande círculo negro indicava a cidade de Jerusalém. Não havia nenhuma mancha de desolação no arco que eu traçara: as aldeias e cidades se multiplicavam nesse trajeto, muito usado por todos os tipos de caravanas e negociantes: percebi que um caminho mais longo poderia ser percorrido com sucesso, pois, mesmo aumentando enormemen-te o tempo de viagem, garantia nossa sobrevivência, sendo povoado e cheio de fontes de água, alimento e vida. Meu povo necessitava experimentar mais uma vez suas raízes nômades antes de poder estabelecer-se na terra de seus antepassados. Não haveria deserto nessa travessia entre escravidão e liberdade: estaríamos dentro do mundo habitado, cercados pelos que nele viviam, e por maior que fosse o tempo de nossa viagem, isso seria um simples atraso em nossos planos. Jerusalém seria nossa assim que a ela chegássemos: como ninguém a queria, não tínhamos qualquer motivo para temer que se tornasse o objeto do desejo de quem quer que fosse. Era assim que víamos a ruína que queríamos salvar, sem perceber que o verdadeiro valor das coisas está no interesse que elas despertam, e que esse interesse é tão mutável quanto a alma dos homens.

A princípio, meus três amigos ficaram atônitos com minha proposta do caminho quatro vezes mais longo, e antes que saíssem de seus espantos e começassem a acumular argumentos contra minha proposta, pus-me a defendê-la com a sofreguidão de um faminto. As palavras saíam de minha boca sem que as pudesse conter, como se eu fosse um canal pelo qual fluíssem como uma torrente. Isso nunca me havia acontecido antes: palavras não eram meu território preferido, e eu sempre preferia calar ao invés de expressar meus pensamentos. Desta vez, não havia como conter as idéias que me surgiam da mente, explodindo para fora de minha boca. Jael e Mitridates tentavam interpor uma ou duas palavras em meu discurso, Yeoshua se mantinha de boca aberta, como que assistindo a um inesperado milagre, e, vagarosamente a possibilidade real de execução de minha idéia, com suas características e vantagens específicas, foi-se tornando mais sólida e coerente, mais palpável e possível, e finalmente mais exeqüível que qualquer outra. Mitridates veio até meu lado e, olhando o mapa, caminhou sobre ele com os dedos, ligando as aldeias que ali estavam marcadas, percebendo que entre elas não havia nenhuma distância superior a quatro milhas:

— Tua idéia é estranha, Zerub, mas nos permite pensar em sobreviver ao caminho, mesmo que por um tempo enormemente aumentado.

— Isso é o que me incomoda, Zerub! — disse Jael, sem muito empenho. — Perdermos um tempo enorme de nossas vidas, dando praticamente a volta ao mundo... quando lá chegarmos, provavelmente nem nos lembraremos mais do que lá fomos fazer.

— Sem exageros, Jael! Para quem esperou setenta anos, o que são sete meses?

Mitridates já tinha feito uma conta rápida, de cabeça, e os sete meses que mencionou me deixaram com o peito apertado: eu pensava em menos do que isso, mas ele se explicou:

— Esse percurso que traçaste, cruzando campos férteis e atravessando pequenos trechos de deserto exatamente onde correm os rios mais poderosos, tem por volta de seiscentos milhas. Seremos uma cidade que anda, não te esqueças, e a maior parte do tempo de um dia passaremos acampados, alimentando-nos e descansando. Uma caravana comum pode percorrer cinco a seis milhas por dia, mas uma como essa que estamos armando dificilmente vencerá mais do que três, devido a suas características tão especiais. Portanto, três milhas ao dia, durante seis dias por semana...

— Seis dias? Onde aprendeste isso, Mitridates? A semana tem sete dias, uma fase da lua completa!

— É uma caravana de judeus, Jael: esqueceste que o dia de descanso é sagrado?

Yeoshua riu, deliciado, debruçando-se sobre o mapa, olhando para o território ali traçado. Mitridates continuou, com os olhos semi-cerrados:

— Três milhas ao dia, durante seis dias, são dezoito milhas por semana: para percorrer quase seiscentos milhas de território desconhecido, com folga, precisaremos de trinta a trinta e três semanas, não mais do que isso. Não aposto em mais que trinta e uma semanas, exatamente sete meses lunares, mais a correção do adicional de Adar necessária. Garanto que, mantidas as condições desejadas, se sairmos daqui no início do mês de Nisan, dentro de quatro meses estaremos em Jerusalém no início da quarta semana de Kislev, em onze meses justos.

— Deveríamos sair imediatamente! — Yeoshua, visionário, animara-se todo. — Basta que ponhamos os pés no caminho, e ele se fará suave e limpo, com as bênçãos de Yahweh...

Eu via minha idéia surtir efeito entre meus companheiros: mas nem por isso me permitiria perder a noção das coisas possíveis e sua diferença das coisas apenas desejáveis:

— Yeoshua, não triunfemos antes da hora: o simples trabalho de organizar a caravana não tomará menos que um mês, e pelo menos mais um será gasto por cada viajante na arrumação de seus negócios. Há compras e vendas a ser ali feitas, equipamentos a serem arrumados e construídos, animais a criar, tratados de colaboração com todas as aldeias do caminho, que devem se preparar para receber um contingente de mais de quarenta mil pessoas, gafanhotos que invadirão seu território e provavelmente comerão tudo de que dispõem em seus celeiros. Ninguém deve prejudicar-se por nossa causa, por isso devemos levar o máximo de alimento possível, sem que isso nos atrase ou paralise. Também deveremos estar dispostos a gastar algum dinheiro nessas aldeias, comprando o que tiverem para vender, de forma a tornar nossa passagem o mais agradável possível, para que nos dêem suas bênçãos e não o ódio que sempre gera maldições.

— Mas, Zerub, isso será uma coisa inédita! Um povo inteiro viajar de um lado a outro do mundo sem causar nenhum desagrado por onde passar, trazendo apenas alegria e bons negócios? Inacreditável!

Jael duvidava da possibilidade que eu apresentava, mas Mitridates e Yeoshua já a tinham assumido como possível e viável, um pelo seu aspecto eminentemente técnico e matemático, o outro pelos detalhes que lhe garantiam que a obra de Yahweh seria realizada a qualquer custo. Se os números davam a Mitridates a certeza de que tudo era possível, porque os números assim o diziam, Yeoshua tinha certeza absoluta, porque Yahweh assim o queria. Só me faltava convencer Jael de meu plano, para que ele batalhasse por ele com o mesmo empenho com que batalharia por um que fosse seu. Pus-lhe as mãos sobre os ombros, como Cyro havia feito comigo, olhando-o profundamente nos olhos:

— Meu irmão, acredita que podemos! Se nos organizarmos em pequenos grupos, de feição mais ou menos parecida, com um número equilibrado de pessoas, animais e carga, poderemos aproveitar melhor a força de cada grupo e estender nossa caravana entre a Babilônia e Jerusalém como se não tivéssemos feito outra coisa em toda a nossa vida! As cidades e aldeias pelas quais passarmos acabarão por saudar nossa presença, porque lhes traremos negócios, sem ser invasivos. É melhor sermos lentos e seguros em nosso trajeto, movendo-nos poucas milhas por dia: com paciência, atravessaremos o caminho mais fácil, de aldeia em aldeia, de rio em rio, de acampamento em acampamento, e com tal tranqüilidade, que a partir de certo instante ninguém sequer se recordará de estar em viagem!

Jael, ainda com dúvidas em seu coração, acabou por abrir um sorriso, convencido por minha argumentação poderosa, nascida não sei de onde. Minhas palavras eram mais fortes que quaisquer outras que eu já tivesse dito, quentes como as labaredas com que se formavam dentro de mim, nascendo do alto de meu peito, escorregando por minha língua e saindo de minha boca como phelah, o sopro da própria Criação. Abracei meus três companheiros com verdadeira alegria, sentindo-me pela primeira vez senhor não apenas de meu próprio destino, mas também dos destinos de meu povo, a quem levaria para a Terra eternamente Prometida.

Yeoshua, sorridente, disse:

— Zerub, fizeste-me recordar nossa infância, e o amigo que sempre nos empurrava para a frente, convencendo-nos a fazer o que quer que fosse preciso, com seu entusiasmo contagiante. Tu te lembras dele?

— É impossível esquecê-lo, Yeoshua. Não existe dia em que a lembrança de Daruj não me venha à mente, por este ou aquele motivo: mas não creio que algum dia voltemos a vê-lo. A volúpia do abismo que lhe enchia o coração certamente foi causadora de sua destruição...

— É pena — disse Mitridates, arrebanhando seus papéis. — Se aqui estivesse, certamente já teríamos partido, sem nem um segundo de hesitação, sozinhos, se preciso fosse...

— E certamente já estaríamos mortos sob o sol do deserto inclemente! — ajuntou Yeoshua, com as mãos erguidas sobre a cabeça. — Daruj era incapaz de pensar antes de agir. Prefiro a ousadia calculada de Zerub ao impulso sem controle de Daruj!

Yeoshua tentou manter-se íntegro, mas seus olhos se encheram de lágrimas:

— Mesmo assim, sinto muita falta dele, muita falta...

Meus olhos também se enevoaram: a saudade do amigo que nunca mais se vai rever é uma das mais fortes emoções que tomam a alma. Em mim, não era diferente: meu amigo Daruj teria sido extremamente útil na tarefa que requeria um grande comandante, e eu tentava ser como ele, recordando sua maneira de agir, tentando pensar como ele pensaria, de alguma maneira buscando em minha memória a sua presença. Como dissera Feq'qesh, "aqueles de quem não se esquece continuam vivos dentro de nós". Daruj não estava mais em nosso meio, mas continuava vivo dentro de mim, amparando-me com sua experiência de guerreiro, alimentada pela falta que me fazia.

Foi assim que comecei a cuidar da grande viagem de volta a Jerusalém, cheio de um novo e borbulhante fervor, que me levava a acordar cada vez mais cedo para inventar os meios de fazê-la acontecer. Havia mil e uma coisas de que devia me ocupar: precisava estabelecer um sistema de alimentação para mais de quarenta mil pessoas, decidir como transportá-las e abrigá-las, construir e comprar as carroças e animais que nos transportariam, e principalmente definir em termos políticos os níveis hierárquicos dos viajantes e a forma como seriam tratados durante a viagem e na vida em Jerusalém, depois que lá chegássemos. Os homens grados da comunidade judaica da Grande Baab'el, quase todos no conselho de notáveis do ve'zzur Darius, insistiam nisso, e até mesmo a ordem com que entravam no Parlatório para falar comigo levava em conta essa hierarquia, baseada em suas posses e riquezas, e também naquilo que cada um acreditava valer a mais que os outros.

Não me restou senão jogar com essas crenças e expectativas: tratava cada um desses senhores como se ele fosse mais importante do que eu mesmo, arrancando dele o que quer que fosse necessário para a viagem. Fui tão feliz nessa manipulação benfazeja dos que me cercavam, que em menos de uma semana já havia na comunidade uma disputa acirrada pelo lugar de primeiro homem de Jerusalém. Acostumados à exibição de bens materiais como prova de sua importância, os homens ricos do teVaviv se puseram a dar de suas fortunas para a viagem e a reconstrução de nossa sociedade futura, buscando o reconhecimento público de seu prestígio junto ao futuro rei e a Yahweh. Com isso, a preparação da viagem se acelerou muito, e os carpinteiros da Grande Baab'el se viram às voltas com a construção de inúmeras carroças de quatro rodas, que seriam puxadas por até doze bois, como no caso das que transportariam o tesouro sagrado que Cyro havia devolvido. Mitri-dates calculou que cinco carroças seriam suficientes para essa riqueza sagrada, e enquanto elas eram construídas, os grandes homens do teVaviv começaram a exigir carroças idênticas para si mesmos, tendo um deles, de nome Belsã, vencido a todos em sua necessidade de mostrar-se importante quando conseguiu que, em vez de apenas dez bois, o máximo que se poderia usar para não superar nem afrontar as carroças de Yahweh, lhe fizessem uma que seria puxada por onze, destacando-se dos outros com esse artifício.

Eu me mantinha sério e compenetrado durante as audiências que dava a esses homens, nas quais o futuro de minha missão se concretizava, e depois que me recolhia a meus aposentos, na solidão do quarto em casa de minha mãe, ria a bandeiras despregadas da vaidade desses homens: só pelo exemplo se aprende, e eu ia aprendendo diariamente, pelo exemplo de ridículo a que esses homens se expunham. A vaidade, diferentemente de outras paixões, mantém-nos perpetuamente em movimento, para satisfazer-se, pois não tem nem descanso nem interrupção: eu, de cada vez que encontrava o flagrante exercício da vaidade alheia, tornava-me extremamente crítico de minha própria.

A cada dia que passava, mais e mais moças de todos os feitios eram trazidas à minha presença, porque seus pais também queriam ser sogros do futuro Rei de Israel, como tantos outros já se orgulhavam de ser. Isso aumentava em muito o tesouro de que dispúnhamos, pois Mitridates era estrito na exigência de dote, deixando bem claro que, quanto maior a fortuna que cada um desse ao Príncipe da Paz, maior seria a chance de que sua filha fosse a primeira a ser coberta e em-prenhada por mim. Senhores de terras, chefes de tribos e aldeias próximas, sabendo haver um rei disponível para casamento, chegavam à Grande Baab'el diariamente, trazendo riquíssimos presentes, com os quais apresentavam suas filhas para consumo do rei, garantindo o acordo de cooperação. Mitridates a todos analisava, erguendo um imenso harém, o maior sinal de poder que o Príncipe da Paz poderia ter. Os homens ricos apostavam no poder que eu teria assim que assumisse o trono de Jerusalém: cada um deles seria parente próximo do Rei de Israel, e, dependendo da vontade dos deuses em que acreditavam, avô do próximo soberano, que era o que verdadeiramente lhes interessava. Mitridates, sabiamente, usava esse desejo quase insano para aumentar o tesouro de que dispúnhamos para viajar e iniciar nossa vida lá onde nos fixaríamos definitivamente: eu exerceria o poder real, acompanhado por mais de trezentas esposas, como um verdadeiro senhor do mundo.

Nosso trabalho não cessou, cada um de nós cuidou de sua parte, sem perder a noção de tudo o que deveria ser feito, acordando e dormindo a cada dia com a naturalidade do que já se tornara hábito, reiniciando na manhã seguinte a tarefa necessária, como se nada mais importasse a não ser sua realização. Passou-se o mês de Kislev, veio o mês de Tebet com as chuvas de primavera, o mês de Shebat trouxe os figos, o mês de Adar trouxe o linho, e uma manhã, assim que o mês de Nisan se iniciou e a colheita da cevada se fez, Jael e Mitridates me acordaram, dizendo:

— Tudo pronto, Zerub, nada do que falta ser feito nos tomará mais que alguns dias. Quando ordenares, podemos partir.

Meu coração deu um salto: então era verdade! Tudo o que havíamos planejado, plantado, incentivado, começava agora a dar frutos, concretizando-se na realidade da grande marcha que faríamos de volta a nosso país. Meu projeto da viagem mais longa, que pela lógica deveria ser recebido com escárnio, tranqüilizara a todos, pois nossa vida aparentemente não seria abalada com a série de pequenas jornadas, quase passeios, que não tomariam mais de algumas horas por dia. Regozijei-me pela inspiração, pois eu a usara com sabedoria e a fizera concretizar-se: tudo o que as letras me mostraram poderia ter-se perdido se eu não tivesse insistido em fazer o que elas me indicavam, e que certamente era bom, por vir do lugar desconhecido onde residem as boas coisas da Criação.

Mitridates me rodeava, com uma série de papiros nas mãos, enquanto eu andava pelo teVaviv, dando minha aprovação de Príncipe da Paz a todas as pequenas e grandes coisas que me eram trazidas à apreciação: desde que Ageu, o delirante, dera-me seu aval divino, meu papel se tornara mais definido, ganhara importância, e crescera mais ainda quando, percebendo o acerto de meu planejamento, todos se uniram em prol de sua realização, contando com minha aprovação em tudo. No caminho de volta para o Parlatório, Mitridates se pôs a meu lado, e enquanto caminhávamos, eu lhe perguntei:

— Diz, aVmusharif, o que te abala?

Mitridates suava em bicas, e, apoiando os papiros na curva de seu braço mirrado, falou, em voz baixa:

— As contas, Zerub, os números exatos: o sucesso de nosso empreendimento depende de nossa precisão nas contas e nos números. Queres ver o que me assusta? Olha esta relação de posses dos poderosos da Grande Baab'el, a lista completa de todas as coisas que levarão consigo por não saber nem pretender abrir mão delas...

Na poeira do caminho, com gente de todos os matizes me tratando como se eu fosse um mashiach de suas relações, movimentando-me com alguma pressa, meus olhos tinham dificuldade em fixar-se nos rabiscos que Mitridates me exibia:

— Amigo, é melhor que me reveles o resultado de tuas contas: hoje não tenho cabeça para números...

Mitridates continuou caminhando a meu lado, e eu curvava cada vez mais a minha cabeça para ouvi-lo, pois a cada instante sua voz parecia ficar mais baixa:

— Somos ao todo quarenta e duas mil, trezentas e sessenta pessoas dispostas à viagem, entre homens, mulheres e crianças. Suas posses deverão ser levadas ao lombo de setecentos e trinta e seis cavalos e duzentas e quarenta e cinco mulas, além do que seguirá dentro das carroças que mandamos construir e que já são quase mil, cada uma delas puxada por uma média de cinco juntas de bois, num total de aproximadamente dez mil animais. Há ainda quatrocentos e trinta e cinco camelos e seis mil, setecentos e vinte jumentos de todas as idades, além do rebanho de carneiros e cabras, com mais de dezessete mil animais.

Eu não percebia aonde Mitridates queria chegar, e apressei-o com a mão, enquanto olhava o caminho à frente, cheio de gente na azáfama dos momentos que antecediam a viagem. Meu amigo suspirou fundo e continuou:

— Além dessas posses animais que caminham por si mesmas e das posses materiais que irão em seus lombos ou nas grandes carroças, eles ainda relacionam sete mil, trezentos e trinta e sete escravos, isso sem mencionar os duzentos e quarenta e cinco cantores e cantoras do templo, que são defensores e zeladores do tesouro de Yahweh.

Eu não conseguia atinar com o que Mitridates me dizia, e ele me segurou pela manga da túnica, enquanto à nossa volta as pessoas gritavam e falavam sem cessar, criando uma balbúrdia tal que quase não me deixava pensar: meu amigo aproximou-se de minha orelha e gritou, fa-zendo-me estancar:

— Não vês? O que os senhores da Grande Baab'el relacionam como suas posses são gente, são pessoas, mais de sete mil delas, que mesmo sendo escravos precisam se alimentar! Com mais os cantores e cantoras, formaremos uma caravana de quarenta e nove mil, oito-centas e noventa e sete pessoas, quase cinqüenta mil pessoas que precisam comer duas refeições por dia, durante sete meses, atravessando mais de seiscentas milhas de território! Eu tenho que refazer todos os cálculos das necessidades da caravana, porque essas sete mil e tantas pessoas com quem não contava acabam de desfazer toda a precisão deles!

Eu estanquei, olhando para Mitridates com tal preocupação que até mesmo ele, que me conhecia tão bem, temeu por meus sentimentos. Minha voz estava rouca quando eu disse:

— Isso não muda nada, meu amigo: já estamos em pleno movimento e não podemos mais parar. Recalcule o que for preciso, veja a fortuna de que dispomos, redivida o trigo que Cyro nos prometeu, garanta a capacidade de produção das cidades que atravessaremos, e coloquemos o pé no caminho. Não há mais como recuar: o destino foi posto em movimento e ninguém pode rejeitá-lo sem correr riscos incalculáveis. Mitridates me observou com os olhos semicerrados por causa da poeira e do sol:

— Recalcular não é problema, Zerub: o problema é a realidade que os números indicam, e que nem sempre pode ser corrigida pela vontade de um rei.

Eu ri, e amarfanhei o pano que ele trazia sobre a cabeça, como fazíamos quando jovens:

— Não te preocupes, Mitridates: não percebeste que eu sou apenas o executor da vontade de Yahweh? Ageu disse, do alto de toda a sua loucura, que o próprio Yahweh assim o quer: por que nós, suas criaturas, deveríamos desobedecer a suas ordens? Como disse Yeoshua, o que nos faltar certamente será provido por Yahweh, pessoalmente, derramando o manah dos céus sobre nossas cabeças...

Mitridates sorriu, e me acompanhou pelo resto do caminho, em silêncio, calculando mentalmente as necessidades que esses novos números nos traziam. Eu, senhor do destino de cinqüenta mil pessoas, sem sê-lo do meu próprio, fiava-me na vontade e no poder divinos, sem reparar que os objetivos de um deus raramente são os de suas criaturas, e que aquilo que me parecia certo na pequenez de meu dia-a-dia tinha grande chance de ser um imenso erro na escala infinita do Universo, onde eu era apenas a mais ínfima das coisas criadas, que, na ânsia de realizar a vontade de Deus, em nenhum instante atentara em discutir Seus planos para isso, ou mesmo se seriam para minha felicidade ou meu desespero.

 

O dia de nossa partida foi quente e abafado, sem nenhuma aragem que refrescasse nosso afogueamento. Vivíamos uma situação inesperada: o projeto da viagem longa e lenta transformara a própria jornada em objetivo, e percorrer o longo caminho se tornara mais importante que chegara onde queríamos. Isso, de certa maneira, simplificava muito nosso esforço. Os problemas de movimentação tão grande foram relegados a um plano longínquo: as cinqüenta mil pessoas que partiriam emitiam um misto de nervoso e excitação, e esses sentimentos se transferiam para os animais, deixando o ambiente tão áspero como o ar que antecede as tempestades de raios.

O grande problema parecia ser a ordem em que a caravana seguiria: havia os que desejavam estar à frente dela e os que insistiam em ficar à sua retaguarda, assim como os que pensavam ser lugar de destaque o que estivesse mais próximo ao tesouro de Yahweh, e outros que insistiam em cercar as carroças onde eu e meu tio Shesba'zzar seguiríamos. Como não existe possibilidade de dois corpos ocuparem um mesmo lugar na ordem geral das caravanas, só nos restava exortar competidores a trilhar o caminho lado a lado: isso não os agradou muito, e eventualmente foram se afastando e tomando as posições que a conveniência da viagem lhes permitia.

A Esagila, pela primeira vez na história da Grande Baab'el, ficou vazia: mais de um quarto da população se preparava para deixá-la, e os outros três quartos precisavam marcar presença, não havendo ninguém que não estivesse mobilizado por nossa partida, aplaudindo, vociferando, rindo ou chorando, ao norte da cidade, na grande praça em frente ao Palácio, junto à Porta de Ishtar. A Grande Baab'el, com seus imensos prédios e estranhos hábitos, era verdadeiramente uma cidade de escravos hebreus: os cinqüenta mil que partiríamos na caravana estávamos cercados pelo dobro de nossos compatriotas, exibindo as mais diversas reações, algumas delas muito violentas, a maioria apenas melancólica, pois negócios, amizades e laços familiares ali se desfaziam. Um em cada três hebreus da cidade queria estar de volta à sua terra natal, idéia que os outros dois abominavam, por puro comodismo. Havia mesmo quem dissesse que> se as coisas dessem certo, poderiam até voltar a Jerusalém, mas que sem garantia de sucesso não abandonariam a vida que já conheciam e que, má ou boa, era a única de que dispunham. A ousadia necessária para enfrentar o que essa viagem prometia não era atributo geral: a maioria de meus compatriotas não possuía bravura maior que a necessária para enfrentar um inseto de tamanho razoável, ocultando a cabeça sob o manto sempre que alguma coisa mais perigosa se avizinhava. A busca pelo prazer era a marca da vida na Grande Baab'el, e de tal forma se acostumaram com ele, que o consideravam o maior dos bens sobre a face da terra, e a dor como o maior dos males. Como eu já percebera, meus compatriotas em grupo eram infinitamente mais covardes e mesquinhos que solitariamente, até mesmo quando faziam o que era necessário à sua sobrevivência.

Além do auxílio inestimável de Mitridates, a viagem só se realizou graças a meus dois outros amigos, Jael e Yeoshua. O primeiro, natural de uma aldeia entre a Grande Baab'el e a cidade de Qornah, integrara-se de tal forma à vida do teVaviv que parecia ter sempre morado ali: mas seu trabalho como meu secretário íntimo se ampliara, para buscar entre os habitantes do bairro aqueles que, por suas características pessoais, pudessem ser membros da fraternidade de pedreiros de que fazíamos parte, convencendo-os a fazer a viagem conosco e prometendo-lhes a revelação de mistérios em que nunca haviam pensado. Eram todos mais ou menos jovens, ficando conhecidos como "os de Jael", por segui-lo constantemente pela cidade, realizando alguma tarefa que ele lhes tivesse dado. Ele, além disso, fizera chegar ao conhecimento dos pedreiros de Qornah a notícia de que Jerusalém seria reconstruída, e irmãos pedreiros de todas as redondezas se uniram à caravana, desejando reerguer o Templo que antigos irmãos haviam construído para maior

glória de nossa fraternidade. Eram quase trezentos pedreiros, carpinteiros, tecelões, tapeceiros, gente de vários ofícios, que se uniu a nós, dispondo-se ao serviço pela paga mais ínfima, certos de que a tarefa a realizar seria sua verdadeira recompensa.

Yeoshua, por outro lado, havia se tornado o verdadeiro líder religioso da comunidade, reunindo todos que estivessem dispostos a conservar vivas as tradições mantidas com esforço durante a escravidão na Babilônia. Não fossem esses que insistiam em manter a vida anterior ao cativeiro, haveria entre nós apenas babilônios, movidos exclusivamente pela possibilidade de mais poder e riqueza. Os que cercavam a Yeoshua, cheios de fogo e paixão, pareciam-se com os que me haviam ensinado a ser rei, durante meu período de treinamento: tinham no entanto alguma coisa a mais, achando-se capazes de fazer o tempo não apenas cessar seu percurso inexorável, mas também retornar aos tempos de esplendor, quando Salomão fizera sua cidade o centro do mundo.

Eu estava cercado pelos melhores e pelos piores, esperando que os melhores dessem o melhor de si, e que os piores, decididos a mudar, agissem da melhor maneira que pudessem, abandonando costumes que só nos prejudicariam. Não era fácil, mas com o apoio intempestivo das palavras de Ageu, dando-me o aval sagrado, eu faria o que devia ser feito.

Quando as trombetas de chifre de carneiro tocaram, assim que a última estrela se apagou dos céus, seu toque foi repetido como eco por toda a imensa extensão da caravana, que se espalhava pela borda da Esagila, tomando o espaço à beira do canal nos fundos do Templo de Ishtar, a frente ocupada por uma série de cavalos e jumentos ajaezados de azul e branco, e logo após eles as carroças gigantescas que os fedorentos bois puxariam. Havia uma carroça para mim, logo à frente da que levava o Tesouro de Yahweh, mas eu preferi a liberdade de um jâmal. Mesmo, deixando claro que o lugar para onde íamos era uma ruína que teríamos que reconstruir, a visão da terra de leite e mel que os sacerdotes impunham ao povo se tornara o sonho coletivo desse novo êxodo. Era melhor assim: a ilusão da Jerusalém de benesses e delícias serviria aos objetivos da viagem. Eu só temia que, uma vez terminada, a realidade de penúria e destruição fosse dura demais para os que dela dependiam.

Yeoshua, à frente dos sacerdotes, usando um manto que havia sido preservado durante setenta anos, fazia as orações: era impressionante vê-lo oculto sob uma patina de respeitabilidade, que levava até mesmo os mais velhos a ceder-lhe o lugar de destaque. Ele o ocupava com voz vibrante, recitando o que Moisés dissera quando o povo de Israel vira o mar milagrosamente aberto fechar-se sobre as cabeças dos soldados do Faraó:

— Cantarei a Yahweh, porque se vestiu de glória, lançando ao mar o cavalo e o cavaleiro.Yahweh é minha força e meu canto, a Ele devo a salvação. É meu Deus e eu O glorifico, é Deus de meu pai e eu O exalto. Yahweh é um guerreiro, Yahweh é Seu Nome!

Um frêmito de excitação agitou a caravana, como se ela fosse um trigal soprado pelo vento, e subitamente era para mim que todos olhavam, esperando ordens. Era meu o direito de comandar o povo em direção ao futuro sonhado, e essa não era uma vantagem trazida pela Natureza, mas sim fruto de meus esforços. Por um instante, tremi, pensando no que seria de todos se eu estivesse equivocado: mas esse momento logo passou, porque em frente a meus olhos surgiram as letras vau, shin e resh, removendo como que por encanto toda a negatividade de meus pensamentos, enchendo-me de uma coragem que eu não sabia ter, mesmo tendo pago por ela o maior de todos os preços. Ergui o braço, mantendo-o suspenso no ar por um tempo quase infinito, até ficar repleto do poder que as três letras me davam: quando elas finalmente se apagaram de minha vista, lancei o braço para a frente, espicaçando minha montaria e dando o primeiro passo no caminho sem volta, sentindo que atrás de mim todos se moviam. A imensa caravana se pôs a caminho, enquanto as vozes de Yeoshua e dos sacerdotes soavam:

— Tu os conduzirás e plantarás sobre a montanha a Tua herança, Yahweh, no lugar onde fizeste a Tua residência, no santuário que Tuas mãos prepararam. E aí reinarás para sempre e eternamente!

Como um rio represado que se houvesse finalmente libertado de seus diques, abandonamos a Grande Baab'el, atravessando o Portão de Ishtar, seguindo rumo noroeste pela margem esquerda do Eufrates, buscando um vau onde pudéssemos atravessar para a outra margem, por onde seguiríamos em terreno mais suave. Na passagem pelo teVaviv, muitas portas e janelas se fecharam, quando alguns dos que haviam decidido ficar se recusaram a ver nossa partida, virando o rosto para o outro lado, deixando-nos por nossa própria conta e risco no caminho desconhecido. Muitos parentes, no entanto, vieram dar adeus a seus entes queridos, e alguns deles, intempestivamente, aprestaram alguma bagagem, movidos por impulso incontrolável, e se uniram a nós, apertando o passo de suas montarias para alcançar o grosso da caravana: eram em sua maioria rapazes muito jovens, como eu mesmo havia sido, que rompiam seus laços familiares e se atiravam ao desconhecido junto conosco. Os gritos de suas mães e pais encheram o ar de tensão, mas esta logo passou, à medida que a caravana foi deixando para trás o teVaviv, se aventurando lentamente pelo primeiro dia de viagem. Minha montaria balançava, estabelecendo-se no passo lento que seria o ritmo constante da jornada, e gradativamente o silêncio foi-se instalando entre todos, cada um ocupado com seus próprios afazeres e pensamentos.

Minha cabeça clareava com o ar puro do dia, úmido pela proximidade com o Eufrates, que logo atravessaríamos, no território onde se havia construído um dique, na terra pantanosa. Logo abaixo desse dique, que de vez em quando era sangrado para que a cheia não inundasse demasiadamente as terras férteis rio acima, a caravana virou à esquerda, atravessando o terreno enlameado com cuidado. Eu me pus ao lado do caminho, sentado sobre meu camelo, aguardando que a imensa caravana chegasse à outra margem, pensando se seria possível alcançarmos a pequena aldeia de Hindyah, ou se seria melhor acamparmos do outro lado do Eufrates, seguindo caminho apenas na manhã seguinte. O sol se apressava no céu, e quando se colocou a pino, olhei para o final da caravana, que se perdia na distância. Era melhor começarmos a nos preparar para passar ali nossa primeira noite: dei essa ordem a Jael e Mitridates, que não a discutiram, saindo a espalhar a notícia entre os que já haviam atravessado o terreno encharcado, pondo-os a acampar imediatamente, onde quer que estivessem. A margem oposta foi-se enchendo de pessoas, animais, carros, cargas, tendas começaram a se erguer, e logo a fumaça das fogueiras e fogões subiu para o ar, enchendo-o com os mais interessantes odores. Yeoshua saltou de sua carroça e se postou a meu lado, fazendo-me descer da montaria para conversar com ele, sendo quase que imediatamente acompanhado pela presença ubíqua de Ageu, que saltitava pelo caminho, dando cabriolas sobre as pedras molhadas, nunca se afastando de nós mais que algumas braças. A nossa frente passava a caravana, e tive uma súbita surpresa ao ver em uma carroça de bois finamente ajaezados, cobertos por mantas de vermelho vivo, as figuras de Re'hum e Sam'sai, que nos saudaram com seus sorrisos gélidos e seus olhos de cobra. Virei-me para Yeoshua, boquiaberto, sem entender, e meu amigo, com um suspiro desencantado, disse:

— Sim, são eles: na última hora, decidiram participar da reconstrução de Jerusalém, formando um grupo de quase duzentos samaritanos, trazendo muitas riquezas e tesouros.

— Mas o que fazem entre nós, Yeoshua, se não são descendentes dos escravos de Judah e não crêem em Yahweh? Por que seguem conosco para Jerusalém?

Yeoshua deu um profundo suspiro:

— Zerub, se fizéssemos a exigência de crença em Yahweh, não seríamos nem cinco mil nesta viagem. Tu sabes que mesmo dentro do teVaviv há quem cultue a Marduq e a Ishtar, tentando ser mais babilônios que os próprios babilônios. Nosso povo perdeu a crença em seu deus original, Zerub, e o que move a maioria dos que seguem nesta viagem é a possibilidade de reiniciar suas vidas por cima, estabelecendo-se como poderosos na terra de onde seus avós saíram como escravos.

— Inacreditável: quando me dizes isso, penso se não estamos equivocados em nosso esforço. Reconstruir a terra de Yahweh sem que os construtores creiam n'Ele parece tarefa fadada ao insucesso.

— Nem tanto. — Yeoshua tinha o ar cansado. — Quando entrarmos em Jerusalém, cumprindo a profecia, e iniciarmos a reconstrução do Templo, o poder do único e verdadeiro deus tomará a terra, as plantas, e a todos os seres que ali estiverem pisando. Tranqüiliza-te: já me acostumei a essa idéia, e esperarei até que estejamos em terra santa. Não posso exigir que sejam aquilo que ainda não sabem que serão: até lá, aceito o que me é dado, fazendo o melhor que posso.

Não era um mau conselho: afinal de contas, se era Yahweh quem de tudo nos provia, esta também era uma de suas benesses, e deveríamos fazer dela o melhor que pudéssemos. Aceitaríamos o que havia por trás da vida e agiríamos a favor dela, mesmo que a princípio nos parecesse estranha. A caravana continuava, vadeando o Eufrates: só quando o sol já se punha, os últimos viajantes cruzaram o rio. Subi em minha montaria e entrei no acampamento, uma verdadeira cidade de madeira e pano, atu lhada de gente de todas as cores e feitios. A sonoridade de suas vozes ásperas e alegres, excitadas pela novidade da primeira noite fora de casa, enchia o ar, cobrindo o ruído do Eufrates. Atravessei os espaços entre as tendas, sentindo odores de comida e bebida, ouvindo choros de crianças e gritos de animais, vozes agudas de mulheres e risadas e imprecações de homens, cada pequeno grupo preocupado única e exclusivamente com suas próprias necessidades e desejos. Nesse sentido, éramos todos iguais: viajantes com um destino muito remoto, teríamos que viver a vida um dia de cada vez, uma noite após a outra, deixando o futuro para depois, sem tentar determiná-lo além de nossas forças.

Minha tenda ficava no centro do acampamento, ao lado das carroças dos kohanim e dos levitas, e já estava montada, porque os irmãos pedreiros se haviam organizado para ajudar qualquer viajante que precisasse, colocando as necessidades alheias à frente até mesmo das suas próprias: circulavam por todo o acampamento, cuidando de tudo o que precisava ser cuidado, numa azáfama incessante e com um desprendimento quase inacreditável. A diferença entre esses homens e os outros era tão acentuada quanto a que separava os kohanim e levitas do resto das pessoas. No caso dos pedreiros, era uma diferença natural, geradora de respeito, nascido do reconhecimento imediato de suas qualidades inesperadas. Os levitas e os kohanim não tinham essas qualidades, e sempre exigiam o respeito que consideravam merecer, sem perceber que o respeito não se pede nem se dá, mas tão-somente se conquista.

Jael, meu irmão e secretário íntimo, ganhara esse respeito como líder dos pedreiros da caravana: minha mãe e irmãs, desde que eu voltara a ocupar a casa de minha família no teVaviv, tratavam-no como da família, e ele retribuía esse carinho e atenção com mais atenção e carinho, fazendo o meu papel em reuniões familiares das quais eu me afastava, envolvido com o negócio de ser rei. Mesmo meu irmão Shimei, rompendo a adolescência, preferia conversar com Jael a conversar comigo, perpetuando a distância que eu mesmo lhe impusera ao abandonar o círculo familiar. Agora que eu era senhor dos destinos de todo um povo, essa distância se cristalizava cada vez mais em formalismo e silêncio mútuos, como se fosse a relação entre mim e meu pai. A idéia de família me era pouco cara, eu sempre fora um solitário. O pouco que aprendera em matéria de viver em grupo, fizera-o entre os pedreiros, experimentando uma saudável diluição de minha personalidade dentro da personalidade do grupo. A única família que eu podia me orgulhar de ter era a fraternidade da pedra, na qual entrara inadvertidamente e da qual emergira com muito mais do que algum dia imaginara ter. Nela, eu encontrara um rumo, um objetivo e uma maneira de perseguir esse objetivo e esse rumo.

Assim que o acampamento começou a funcionar, chegaram vários homens da aldeia de Hyndiah, que ficava mais à frente, colocando-se à nossa disposição para o que quer que necessitássemos, pois o Grande Cyro havia dado ordens a todas as aldeias pelas quais passaríamos para que a caravana liderada pelo tarshatta de Jerusalém tivesse todas as suas necessidades satisfeitas, à custa do tesouro do Império, sem que isso representasse nenhuma despesa adicional para nós. Fiz minha aparição formal, e o chefe desses homens insistiu antes de tudo para olhar-me a fita verde e dourada, na ponta da qual estava o relicário com o timbre do Império, só então curvando-se respeitosamente, como se eu fosse o próprio Cyro. O imperador do mundo, dando-nos esse presente, demonstrava sua atenção inesperada. Deixei por conta de Mitridates as negociações sobre nossas necessidades, garantidas da melhor forma possível, sem prejudicar a vida dos lugares por onde passaríamos: tudo de que precisássemos, e que estivesse além do ordenado por Cyro, seria honestamente pago com as riquezas de que dispúnhamos. As trom-betas soavam marcando o fim do dia, e eu me dirigi para minha tenda, ladeada pelos abrigos de minha família e de meu tio Sheshba'zzar. Quando entrei no espaço iluminado, ele estava ocupado por um grande grupo de mulheres, que ao me ver fizeram uma parede com seus corpos, ocultando alguém que eu não sabia quem fosse. Fiquei sem ação, até que Jael, às minhas costas, sussurrou, com bom humor:

— É uma de tuas mulheres, a primeira com quem deves deitar, meu rei. Esqueceste de vossa tarefa?

Assustei-me, pois não esperava por isso tão cedo, mas, sendo a organização de minha vida cada dia mais e mais feita pelos outros, meu tempo e minha vontade acabavam sendo tratados como se fossem seus:

— Não nos basta estar em viagem, Jael, e ainda tenho que agir como um garanhão que deva impregnar a todas as fêmeas que me apresentem?

— Meu rei, os teus súditos têm pressa: precisam que tua descendência se estabeleça o mais rápido possível, pois precisam ser avós do próximo Rei de Israel e Judah. Essa será a tua obrigação diária, e não me parece tão desagradável assim: afinal, ser obrigado ao prazer ...

O perfume de muita envolveu-me toda a cabeça, esvaziando-a de qualquer outro pensamento. Evolava de um incensário colocado no ponto mais alto da tenda, sobre nossas cabeças, e eu já estava francamente pronto para o que deveria fazer, quando a parede de mulheres se abriu e, à frente das almofadas de meu leito, pude ver minha companhia para aquela noite, vestida com uma túnica simples de pano claro, macio e diáfano, que ia de seu colo a seus pés. A cabeça estava coberta por um manto do mesmo tecido, mas assim que ela ergueu o queixo e fixou seus olhos em mim, as mulheres que lhe estavam mais próximas puxaram o véu de sobre sua cabeça, revelando cabelos cacheados cor de castanha, e os olhos de um verde muito claro na face rosada, talvez pelo constrangimento, o mesmo que eu sentia, pois em todos havia uma pequena dose de malícia, dirigida a mim e a essa mulher tão jovem quanto eu.

Quando ficamos frente a frente, depois que as mulheres tiraram a parte mais pesada de minhas vestes, deixando-me apenas de túnica e passando panos úmidos em minha pele para refrescá-la do suor da viagem, alguma coisa aconteceu entre nós. Meu ventre se transformou em um nó, e ela deve ter percebido isso, porque sua pele se ruborizou ainda mais, tornando ainda mais encantador o seu sorriso. Quando percebi, estávamos sozinhos na tenda, os reposteiros fechados a nossas costas, e me dirigi para a borda do leito de almofadas, chamando-a para sentar-se a meu lado. Ela o fez, e eu lhe perguntei o nome, que ela disse graciosamente:

— Haddasah, meu senhor, filha do sacerdote Jedaías. Coloquei-lhe a mão sobre os lábios:

— Aqui não sou teu senhor, apenas teu marido. Tens o nome desse perfume que nos envolve... já tinhas percebido isso?

Ela tomou minha face entre ambas as mãos e me beijou os lábios, de forma a princípio suave, mas que logo nos encheu de fogo, fazendo com que arrancássemos nossas roupas e nos envolvêssemos um no outro, com um prazer tão grande que eu pensei que nunca se repetiria, mesmo tendo alguma dificuldade em romper-lhe a barreira natural. Repetiu-se, no entanto, logo após, e de maneira mais fácil, calma e tranqüila, e quando ela se recostou nas almofadas, eu me recordei de minha harpa, indo buscá-la e sentando-me junto a ela para cantar-lhe uma das canções de Salomão que Feq'qesh me ensinara, e que falava de um jardim em que se colhia a muita com especiarias, sorviam-se os favos de mel, bebia-se o vinho com leite. Devo tê-la agradado, pois ela me puxou contra si e me acariciou até que eu me esvaí de prazer entre seus dedos. Quando me ajeitei nas almofadas para dormir, ela chegou a boca perto de meu ouvido e disse, suavemente:

— Minha senhora Ishtar te manda lembranças...

Num salto, tomei-lhe o pulso, subitamente desperto, fixando seu rosto assustado. Ela havia dito a frase terrível que me recordava os fracassos de minha vontade, e a ira que cresceu dentro de mim quase se derramou sobre ela. Foi então que, movido por súbita inspiração vinda não sei de onde, afrouxei meu aperto sobre seu braço e lhe disse, sem deixar de fitá-la:

— Que Yahweh te cubra com Sua Luz.

Ela arregalou os olhos e, de um salto, arrebanhou o manto caído ao solo e saiu da tenda, deixando-me infinitamente mais poderoso. Compreendi nesse instante que o poder que Sha'hawaniah tinha sobre mim era única e exclusivamente aquele que eu lhe permitia ter: por artes da deusa Ishtar, tantas mulheres em minha vida repetiam a frase que ela me havia dito, e que tinha a capacidade de esgotar-me a vontade própria, deixando-me à mercê de quem a dissesse. Eu descobrira um antídoto poderoso para o veneno dessas palavras: o nome do deus de meu povo e a menção à Sua infinita luz. Deitado no leito que agora era exclusivamente meu, cerrei os olhos, vendo bailar nas pálpebras as quatro letras do nome sagrado de Yahweh, yod, he, vau, he, pela primeira vez formadas por labaredas de fogo branco, que me encheram de alegria. Na manhã seguinte, a primeira pessoa que observei no caminho foi o sacerdote Jedaías, pavoneando-se entre os outros kohanim, que o saudavam com tapinhas nas costas, a que ele respondia com um sublime ar de orgulho e auto-importância, já se sentindo avô de um Rei de Israel.

Sorri intimamente: se ele soubesse que sua filha era uma das ferramentas de Ishtar, não estaria assim tão orgulhoso.

Os próximos dias foram todos iguais: partíamos cedo, e nem bem a caravana estava se movendo de forma constante, já era hora de parar, e os da frente começavam a estabelecer seus pousos e tendas, enquanto os últimos mal haviam se acostumado a caminhar. Horas se passavam até que estes estivessem acampados, dando a impressão de que o movimento de erguer e desmontar o acampamento nunca cessava. Eu fazia de tudo para dar atenção a toda a caravana, mas isto era coisa quase impossível: ainda assim, eu tentava pelo menos ser visto pelo maior número de pessoas, para que nunca pensassem que seu rei não experimentava as mesmas vicissitudes, os mesmos cansaços, o mesmo calor. Quando as trombetas soavam marcando o início da manhã, eu me dirigia à praça central do acampamento, para reunir-me com os homens mais importantes da caravana e decidir as pequenas disputas e problemas que surgiam, sumamente importantes para os que neles estivessem envolvidos, ainda que extremamente tolas e sem sentido. Era no entanto preciso dar-lhes atenção, para que não crescessem além da conta e se transformassem em monstros invencíveis, ao mesmo tempo detectando as verdadeiras complicações que nos podiam atrasar ou deter, destruindo nosso ímpeto.

Andar as três milhas diárias não era fácil, e várias vezes ficamos bem abaixo dessa cota. Caravanas custam a mover-se, uma vez paradas, e nossa imensa multidão levava tanto tempo para estabelecer impulso constante, que chegava a dar pena ter que acampar, interrompendo o progresso. Era maravilhoso, no entanto, ver as ordens benfazejas de Cyro amparando nosso esforço: aonde quer que chegássemos, lá estava um grupo de moradores desta ou daquela aldeia, prontos para nos ajudar na satisfação de nossas necessidades, até o dia seguinte, quando nossa cidade em movimento mais uma vez se estendesse em direção noroeste, margeando o Eufrates. Quando as trombetas soavam marcando o final de um dia e o início de outro, ao surgir das primeiras estrelas, lá ia eu para minha tenda, ladeado pelos silenciosos Heman e Iditum, acompanhado na maioria das vezes por Mitridates, Jael e Yeoshua, além do ubíquo

Ageu, cuja voz eu não mais ouvira desde o dia em que construíra o apoio de que eu precisava. Chegando à tenda de minha mãe, simples e frugal como todas, recebia o alimento que me havia sido reservado, tomava uma taça de vinho e seguia para minha própria tenda, onde mais uma esposa prometida me esperava, tudo metodicamente organizado para que eu tivesse uma nova mulher a cada noite.

Depois de algum tempo, separei-as era três grupos, baseado exclusivamente nas sensações que me causavam. A maioria era de meninas e moças colocadas em minhas mãos simplesmente como parte de um negócio, usadas por seus pais como mercadoria de troca e possibilidade de ganho, todas absolutamente desgraciosas e sem energia, a tal ponto que eu cumpria a minha obrigação de marido com a maior rapidez possível, dispensando-as imediatamente, para poder tocar minha harpa, que, com tantos estudos contínuos e aplicados, começou a ser verdadeiramente bem executada. Tive a proteção da juventude, que não me permitiu falhar com nenhuma delas, mas com nenhuma delas tive qualquer vontade de repetir o ato, correndo para a harpa imediatamente, pois já estava com meus olhos voltados para ela assim que percebia que nada de fascinante resultaria daquela noite.

O segundo grupo, bem menor, era o de mulheres absolutamente deliciosas, e tão capacitadas a dar e receber prazer, que me faziam esquecer completamente a existência da música: nessas noites, minha harpa ficava abandonada a um canto da tenda, enquanto eu me refeste-lava e satisfazia não uma, mas várias vezes, obtendo grande prazer na junção estreita de meu corpo com as maravilhosas e variadas peles e cabelos e perfumes e sabores que cada uma delas tinha, tão interessantes que fiz uma lista de seus nomes, para que, uma vez terminada a tarefa, pudesse a elas retornar em busca de mais um pouco desse prazer intensamente físico.

O terceiro grupo, no entanto, era especial, formado por pouquíssimas mulheres, menos que meia dúzia, com as quais tive a fenomenal experiência de satisfação do corpo, da mente e do espírito ao mesmo tempo. Estas foram a tal ponto singulares, que entre um e outro momento de prazer eu fazia questão de mostrar-lhes minha outra arte, a da música, dedicando-lhes o melhor que tinha, deixando que a emoção de meu prazer fluísse de meus dedos e de minha garganta. A exibição de meus talentos artísticos era sempre recompensada por mais prazer, passando ambos a noite em claro, envolvidos por música e amor. Seus nomes não precisaram ser anotados, ficando indelevelmente gravados em minha mente: Haddasah, a filha de Jedaías, com quem eu revelara meu poder sobre a deusa de que era devota oculta; Lia, filha de Naamani, um rico comerciante que estava entre o grupo liderado por Re'hum; Eliá, filha de Selum, com seus olhos amendoados e sua pele escura, capaz de movimentos inacreditáveis ao dançar enquanto se livrava das roupas; Noemi, filha de Mardoqueu, uma mulher alguns anos mais velha que eu e que teve a particularidade de molhar-me todo o corpo com os líquidos de seu ventre quando alcançamos o orgasmo juntos: e finalmente Rhese, filha de Belsan, um dos anciãos do teVaviv, seguidor de meu pai, a quem prometera a filha como nora quando ainda éramos crianças de colo, de todas aquela por quem tive o maior amor e por quem passei pelos maiores sofrimentos.

A todas tratei sempre com o máximo carinho que minha natureza permitia, mas já no segundo dia, antes que qualquer uma delas dissesse alguma coisa, fiz questão de proferir as palavras com que havia sido inspirado quando de meu encontro com Haddasah. Muitas se espantaram com minhas palavras, porque certamente esperavam dar-me as lembranças de Ishtar, mas quando eu dizia as palavras sobre a Luz de Yahweh, perdiam o pé da situação. Foi assim que a frase "Que Yahweh te cubra com Sua Luz" tornou-se a saudação de todos os momentos de minha vida, principalmente aqueles em que algum desconhecido se aproximava, sem que eu soubesse qual era seu objetivo.

Andamos mais de cento e sessenta dias, descansando um em cada sete, como ditavam as tradições de nosso povo: esse sétimo dia era usado para um descanso ampliado, durante o qual recuperávamos as forças para mais seis dias de caminhada contínua. Nossa imensa cidade ambulante foi ganhando terreno em direção à grande curva ao norte do Eufrates, onde alcançaríamos metade de nossa jornada, finalmente entrando na Estrada do Rei, que Cyro construíra na maior parte de seu Império, para unir os povos e facilitar o comércio e os transportes. Desse ponto em diante, a viagem certamente seria mais fácil, não só por causa dessa estrada tão ampla, mas também porque ela já não atravessaria apenas aldeias, vilas e poços, como tinha sido comum em toda a margem direita do Eufrates. A região sob a influência da grande cidade de Tadmur, início da grande estrada que levava a Dimashq, havia sido centro do poder assírio, que depois de dominado por babilônios fora reduzido à sua verdadeira importância, sendo mesmo assim a região mais rica do Império. Seus habitantes agiam com a mesma empáfia de quando tinham sido senhores de um império menor que o de Cyro, mas não menos importante.

O grupo de samaritanos liderados por Re'hum e o sibilante Sam'sai não se envolvia com a caravana mais que o estritamente necessário: caminhavam em bloco isolado, todos juntos, formando uma espécie de bairro separado dentro da cidade semovente, mantendo-se sempre afastados das decisões que tomávamos, recusando-se a dar opinião ou apoiar qualquer das decisões possíveis. Não tomavam partido, não se aliavam a ninguém, sempre aos cochichos nas raras vezes em que compareciam a alguma reunião, como se seu destino não estivesse ligado ao dos outros. O olhar de ódio contido que Re'hum sempre me dirigia era incomodativo ao extremo, mas nunca pude chegar perto dele o suficiente para dizer-lhe as palavras sobre a luz de Yahweh, que certamente o desarmariam. Isso me preocupava, como disse a meus amigos mais chegados, quando alcançamos a grande aldeia de Abu-Kâmal, logo acima do poço de AlQâim e das aldeias de Ankah e Husaibah:

— Não me sinto à vontade com os seguidores de Re'hum em nosso meio. Tenho certeza de que preparam alguma manobra insensata para nos prejudicar. Se assim não fosse, por que se comportariam dessa maneira isolacionista, mantendo-se afastados de todos?

— Não se sentem bem entre nós, isso é claro — disse Jael. — Mas não podem nos prejudicar; que poder teriam duzentos homens contra uma caravana de mais de cinqüenta mil pessoas?

Mitridates comentou:

— Notei que seu grupo cada vez se coloca mais para o fim da caravana. Em breve, serão os últimos, certamente para nos abandonar na primeira oportunidade. Isso, aliás, nos aliviaria muito: não estão conosco a não ser na hora de usufruir da comida, e são tremendamente vorazes, passando na frente de todos para pegar sua parte, que cozinham e comem afastados de todos, como se nunca tivessem sido parte de nós. Se nos deixassem, seria muito melhor.

Eu pensava o mesmo: mas com tão pouco tempo de viagem, e uma série de problemas muito maiores, não fazia sentido dedicar minha preocupação aos samaritanos. Três dias depois dessa conversa, já dentro do antigo território assírio, quando nos preparávamos para atravessar a larga ponte de pedra que ficava sobre o arroio perene de Gabbarah, construída com a grandiosidade que os Dinastas impunham a todas as suas obras, tivemos uma ingrata surpresa: do outro lado da ponte, espalhando-se quase que até seu centro, estava um imenso batalhão de homens escuros e barbudos, trazendo em suas roupas de combate as marcas do velho Império Assírio, e que nos receberam com gritos ferozes e grandes pancadas das armas nos escudos que traziam. A caravana quase atropela a si mesma, pois uma parada inesperada costuma desorganizar todo o seu movimento. Sem compreender os motivos da confusão, espicacei meu jâmal e atravessei as fileiras de carroças e animais, percebendo ao longe a animosidade dos que nos barravam o caminho, o que me fez reduzir a marcha enquanto pensava no que aquilo podia significar.

Um dos chefes do batalhão, homem marcado por imensas cicatrizes, berrou:

— Escravos dos babilônios! Aqui ninguém passa se não pagar o tributo! Podeis pagá-lo com ouro ou com sangue! Se nos déreis ouro, talvez deixemos que o sangue continue dentro de vossas veias, mas se insistirdes em nos combater, derramaremos esse sangue no leito do Gabbarah, e depois que estiverdes todos mortos, tomaremos o ouro! Onde está vosso chefe?

Era comigo que desejavam falar. Eu, responsável pelas vidas de mais de cinqüenta mil pessoas, não tinha a quem recorrer, a não ser a Yahweh. Arrumei a faixa verde e dourada de tarshatta na diagonal do peito, sentindo o relicário de ouro bater-me no quadril: era meu símbolo de autoridade, o que me colocava na linha de frente do enfrentamento, por mais que minha vontade fosse exatamente o oposto disso. Do fundo de minha mente, nenhuma letra de fogo surgiu. Estava só, à frente de meu povo, tendo que liderá-lo na mais terrível de todas as atividades humanas, a guerra, e teria que enfrentar a guerra contra meu povo, comandando cinqüenta mil escravos covardes, desarmados e sem preparo. Meu nariz sentiu o cheiro do medo, que eu já conhecia de outras ocasiões, e que nunca estivera tão forte à minha volta: quando ergui a cabeça e prestei atenção ao claro sol que doloridamente iluminava a paisagem à nossa volta, descobri que esse terrível fedor era todo meu.

 

O medo me paralisou, enquanto os assírios gritavam cada vez mais, fazendo tremer as almas da multidão covarde que se escudava atrás de mim, o mais covarde de todos. Alguns entre nós, principalmente meu irmão Shimei e seus amigos, adolescentes ainda, cheios do fogo de experimentar o combate pela primeira vez em suas vidas, chegaram por trás de mim, gritando impropérios em altos brados na direção dos assírios: eram apenas uma gota d'água num mar de homens cheios de vontade de matar: mas sua coragem inconsciente ofendia minha fenomenal covardia, que me fazia suar, os olhos arregalados, sem que um músculo sequer de meu corpo desse sinal de vida.

Só me vinha à mente Daruj, meu amigo desaparecido, em tudo e por tudo mais adequado ao combate que eu: sua capacidade de enfrentar o próprio medo, transformando-o em coragem, eu nunca tivera, e certamente precisava dela nesse instante. Meu espírito sempre soube que essa tarefa de comandante e guerreiro um dia me seria exigida, porque a sobrevivência de meu povo dependeria dela, mas eu não era o líder mais indicado, porque minha única vontade era fugir. Não o fiz: a vergonha que senti por minha covardia era bem mais poderosa que ela. Engoli em seco, cutuquei a barriga de meu jâmal, que se projetou para a frente, e ergui a mão direita, fazendo com que os assírios se calassem, interessados em saber o que tinha a dizer o imbecil que os enfrentava de peito aberto e com um sorriso suave no rosto. Eu tentava imitar Daruj, como dele me recordava, sua inesperada tranqüilidade frente a qualquer perigo, sua capacidade de impor coragem a quem estivesse a seu lado, e principalmente sua frieza quase inumana ao enfrentar situações como esta.

O comandante assírio deu dois passos à frente, bruscamente, esticando uma grossa lança em minha direção. Fui o único que não recuou, meu sorriso congelado pela paralisia do medo, e ele me olhou com as sobrancelhas fechadas, sem entender por que alguém não se desmanchava em urina e fezes simplesmente ao vê-lo. Atrás de mim, já começavam a se juntar os menos covardes da caravana, dispostos a tudo para preservar seu patrimônio e suas vidas, erguendo velhas espadas, pedaços de pau e pedras, sabendo que a vontade de vencer não era garantia de vitória. Meus eternos guardiões Heman e Iditum, a quem eu quase nem percebia mais, por sua silenciosa e constante presença, colocaram-se um de cada lado de meu jâmal, e atrás deles os homens e rapazes da caravana se aglutinaram, dispostos a tudo. Se em número não éramos menos do que os assírios, em organização não havia comparação entre nós e eles: ao nos ver juntos e prontos para o que desse e viesse, um único grito do comandante fez com que os assírios se colocassem em ordem unida, protegidos por seus escudos redondos de couro e bronze, pelas frestas dos quais se projetavam espadas de lâmina larga, feitas de ferro, tornando-se um só animal de metal e ódio, pronto para nos esmagar a todos.

Eu não entendia por que não nos haviam atacado de surpresa, garantindo a vitória: homens como esses, que fazem da violência e crueldade o seu meio de vida, sempre preferem humilhar suas vítimas, fazendo-as sentir por antecipação o sofrimento a que estão condenadas, porque isso parece adicionar à sua existência uma altíssima dose de diversão. Na caravana, não havia nem prazer nem diversão: estávamos tensos, sentindo o cheiro da morte vencendo o cheiro do medo, e apenas uma minoria se dispunha a esse enfrentamento. Eu era a exceção, porque minha vontade de enfrentar a luta não existia. No entanto, eu teria que enfrentá-la, pois vinha junto com a maldita missão que eu nunca deveria ter aceitado!

O comandante se pôs a gritar:

— Ordena teus caravaneiros a nos entregar o ouro que desejamos, antes que comecemos a destroçá-los um por um.

Bati no peito por sobre a faixa de tarshatta, para chamar a atenção dos soldados para ela, na vã esperança de que, reconhecendo uma autoridade maior que a sua, desistissem de seu intento sanguinário:

— Não sei a que ouro te referes. Somos a caravana dos hebreus da Babilônia, a caminho de Jerusalém, e viajamos sob a proteção do senhor Cyro, o Grande!

Nem bem eu disse isto, e o comandante riu:

— Grande aqui, só eu, porque estou à tua frente e sou mais forte que tu!! Não te enganes, escravo! Sei muito bem da fortuna em ouro que está guardada na maior carroça de todas, cercada pelos devotos de teu deus, e é essa que queremos! Claro que também vamos ficar com tudo o que nos agradar, mas essa é a que queremos antes de tudo!

Um de seus lugar-tenentes gritou:

— Se nos derem o que está dentro dessa carroça, pode ser que deixemos que se vão sem muito sofrimento!

A turba armada gargalhou ao ouvir essa frase, enquanto nós tremíamos: mais atrás, com seus ouvidos atentos, os kohanim e levitas, desesperados, já tinham começado a urrar de desespero, sentindo a ameaça ao tesouro sagrado. Os assírios, vendo a nossa débil disposição ao combate, enchiam o ar com seus urros e gargalhadas, dando-me certeza de meu engano, minha culpa e minha morte. Enquanto meus seguidores se aproximavam cada vez mais, escorreguei de cima da montaria, e Jael de mim se aproximou, a face branca como o leite, os olhos arregalados:

— Não podemos dar-lhes o que querem: o fundamento de nossa viagem está dentro da carroça. Precisamos defendê-la a qualquer custo.

— Jael, somos poucos, somos despreparados, e nem mesmo a maior das bravuras pode salvar-nos o ouro e a pele. Será um massacre!

Eu estava à beira do desespero, ainda que falasse baixo para que ninguém o percebesse: minhas mãos tremiam, e tanto, que tive que cruzar os braços, afivelando no rosto uma expressão fechada. Imagens de prisões, torturas, sofrimentos, lembranças difusas de dores quase esquecidas cercavam-me como uma névoa, e tudo o que desejava era não estar ali, nunca ter saído da Grande Baab'el, talvez nem mesmo ter nascido. O burburinho do pequeno exército à nossa frente recrudesceu quando alguém me pôs nas mãos uma espada de lâmina larga, muito parecida com as que eu usara em Jerusalém durante meu treinamento com Théron. Quando me viram tomar da espada, os assírios tiveram certeza de que desejávamos dar-lhes combate, e a excitação que sentiam era palpável sobre o chão que ficava entre nós. As pedras dessa ponte em breve se manchariam de sangue, assim que todos retornássemos ao estado animalesco em que havíamos deixado de viver quando nos tornáramos homens, e nos destroçaríamos uns aos outros como feras incontroláveis. Ergui a espada, sopesando-a na mão esquerda, enquanto pensava se não havia uma maneira de escapar disso sem sofrimento.

Não havia: inúmeras setas partiram do fundo do batalhão assírio, cortando o ar com seu sibilo aterrorizante, atingindo alguns de nós, e os gritos dos feridos fizeram com que algumas pedras, as menores delas atiradas por fundas de couro, passassem por sobre minha cabeça em direção à cabeça dos inimigos. Isso de nada adiantou, pois os assírios, mais treinados que nós, protegiam-se de maneira quase que perfeita por detrás de seus escudos, que resistiam muito bem ao ataque desorganizado que lhes tentávamos fazer. As braças de chão de pedra que nos separavam, cada grupo de um lado do calmo Rio Gabbarah, foram diminuindo, porque o exército inimigo avançava passo a passo, com lentidão enervante, enquanto nós, barrados pela massa dos que estavam atrás de nós, não tínhamos como recuar. O encontro dos corpos era inevitável, e os feridos de nosso lado iam sendo arrastados para trás enquanto nos fixávamos onde estávamos, condenados a ser destruídos pelas circunstâncias.

Quando a primeira linha de soldados assírios avançou, suas espadas de metal escuro erguidas sobre a cabeça, um arquejo de terror escapou de todas as gargantas da caravana, pois certamente cortariam caminho através de nós, até chegar à carroça dos tesouros de Yahweh, que seus condutores tentavam levar para o fundo da caravana. Heman e Iditum, como se fossem um só, colocaram-se à minha frente, defendendo meus dois flancos, e vi por cima de seus fortes ombros, com a precisão de detalhes que o terror concede, a aproximação da própria morte. As faces congestionadas dos assírios, suas bocas escancaradas, as veias de seus rostos e pescoços brutalmente saltadas, e a ensurdecedora gritaria que enchia o ar da manhã eram um pesadelo de que eu não conseguia acordar por vontade própria, paralisado em vigília interminável. Ergui o braço da espada automaticamente quando senti que alguém me atirava alguma coisa: era um dardo pequeno, que eu afastei por impulso com a lâmina, sem saber direito o que fazia, enquanto os dois gêmeos abriam um semicírculo de defesa à minha frente. À nossa volta, os hebreus gritavam de ódio e de desespero, defendendo-se como podiam, avançando atabalhoadamente do fundo da caravana para a frente, assim que os que haviam chegado primeiro ao combate caíam ao solo ou recuavam feridos e em sofrimento. O exército organizado avançava lenta mas seguramente, tão firme quanto seu objetivo único, enquanto nós, despreparados e apanhados de surpresa, tínhamos tanto a defender que não nos era possível discernir o que fazer, ficando perdidos entre nossa incapacidade bélica e nosso desejo de sobrevivência.

O cheiro do sangue derramado na terra seca subia até minhas narinas, quase superando o fedor de medo que eu mesmo exsudava, suando profusamente, a ponto de o sal de meu suor me fazer arder os olhos, e eu os esfreguei com força, para mantê-los abertos. Houve um momento em que, não suportando o ardor, abaixei a cabeça, passando a mão pela testa numa tentativa de tirar o suor que me escorria pelas faces abaixo. Isto foi minha salvação, pois uma maça de madeira escura, manejada por um gigantesco assírio barbudo, passou a centímetros de minha face, fazendo-me sentir o vento de seu movimento. O assírio foi imediatamente atacado por Heman e Iditum, mas, desgraçadamente, uma outra volta de sua maça acertou Heman na testa, fazendo-o cair ao solo com o crânio rachado, em convulsões. Iditum, cuja voz ouvi nesse momento pela primeira e última vez, berrou e avançou para o assírio com a espada erguida, sem medir o que fazia, sendo alcançado em pleno ventre pela maça impulsionada na horizontal, curvando-se apenas para receber um golpe mortal na parte de baixo do rosto, o que lhe rompeu o maxilar com ruído tão alto, que era como se o meu próprio maxilar estivesse sendo quebrado. Iditum caiu ao solo por sobre o corpo do irmão, que ainda tremia, enquanto lhe escorriam o sangue quase negro e a matéria que tinha dentro da cabeça. O assírio, vendo-os caídos, olhou em minha direção, mas, depois de três golpes tão violentos, seus músculos já não tinham a mesma força de antes, e foi com enorme lentidão que ergueu a maça sobre a cabeça, intentando achatar-me ao solo. Avancei meio abaixado, sem pensar, colocando o joelho da perna direita no solo, e enfiei-lhe a espada na barriga, atravessando-lhe o ventre, sentindo quando a lâmina roçou em sua espinha dorsal, ao sair pelas costas.

Foi o primeiro homem que matei em minha vida, e confesso que naquele instante o animal que mora dentro de mim se regozijou: o sangue fedorento do ventre do assírio espirrou em meu braço, empapan-do-o, e se não recuo, sentando no chão, seu cadáver teria caído sobre mim, de olhos abertos, a boca ainda escancarada em um último grito mudo, mantendo-me preso sob seu peso morto. Arranquei com esforço a espada de seu ventre, sustentando-o antes que caísse de borco no chão, e avancei para o próximo, enfiando-lhe a espada no flanco direito e misturando seu sangue ao sangue do primeiro com minha lâmina. Eu agora era meu próprio defensor, e cada um de nós se tornara responsável por si mesmo, atacando como podia, dando o máximo de si para escapar dos golpes assírios, tentando infligir-lhes danos que os impedissem de consumar seu intento.

Éramos, no entanto, apenas mutucas sobre o lombo de um boi: bastava que o grande animal tremesse para que dezenas de nós caíssemos ao solo, destroçados. Enfiei-me pelo meio da luta, batendo a espada em todas as direções, acertando a quem estivesse em meu caminho. Já não sabia mais onde ficavam os amigos ou o inimigo, o sol girava em volta do campo de batalha, ofuscando-me a vista, e de repente fiquei cego para o mundo em que caminhava, enxergando apenas as letras de fogo negro sobre o fundo luminoso do Universo de Yahweh. Gritei de terror, pois a qualquer instante um golpe mortal que eu não veria me tiraria a vida, e meu grito fez com que três dessas letras se destacassem do fundo luminoso: nun, iod e tav, afastando a morte e dando-me a certeza de que ainda não seria desta vez que minha alma abandonaria meu corpo. Isso não me bastava: eu precisava fazer com que essa certeza de sobrevivência se tornasse realidade para todos os que ali lutávamos contra os assírios. Repentinamente, enquanto a visão da realidade brutal e sangrenta voltava a aparecer à minha frente, um impulso incontrolável de violência e destruição fez com que minha boca se abrisse e de minha garganta escapasse um grito altíssimo, longo, maior até mesmo que minha própria vontade:

— Z'az-M'avetJW

Os que estavam a meu lado, após um instante, por imitação, começaram também a gritar essas palavras, exigindo que a Morte se afastasse, e quando nossas vozes, em meio ao fragor da batalha, começaram a ser mais altas que o ruído de armas se entrechocando e os rugidos e uivos dos lutadores, por trás dos assírios se ergueu o som de cavalos e trombetas de chifre soando interminavelmente, cada vez mais próximos. Ergui meus olhos, para ver, no meio da poeira amarela, um imenso batalhão de homens com peitorais de metal prateado, aos pares, sobre carros de combate muito ágeis e leves, com espadas e arcos e longas lanças, aproximando-se dos assírios pela retaguarda. Quando o primeiro deles ergueu seu braço para defender-se de um retardatário assírio, o capacete lhe caiu e vi o rosto amigo de Théron, meu instrutor grego, surgindo inesperadamente na estrada que levava a Dimashq, como resposta ao desejo de que a Morte se afastasse. Era um batalhão de soldados de Jerusalém, meu instrutor à frente, atacando os assírios e dividindo-lhes a atenção, forçando-os a um movimento essencial de defesa para o qual não se haviam preparado, atacados pela frente e por trás.

O rumo da batalha se inverteu: agora os assírios se transformavam em vítimas, e os que haviam chegado sob o comando de Théron os pisoteavam com seus cavalos e as rodas de seus carros, muitos deles sendo atirados pela borda da ponte, caindo nas águas do Gabbarah, que logo se tingiram de sangue. Imprensados por duas forças, começaram a cair sob os golpes cada vez mais seguros e destrutivos de nossas armas, pois a Morte mudara de lado neste jogo de que nem ela conhecia o resultado final. Avançamos por sobre o inimigo desacorçoado, e até mesmo os mais covardes dentre nós, antes ocultos sob seus mantos ou dentro de suas carroças, ao perceberem que o inimigo estava em desatino, caíram sobre ele com paus e pedras e panelas e porretes. Alguns se dedicaram a destruir os que já estavam caídos, dando vazão a toda a sua fúria, esmagando cabeças e ossos, transformando ventres e membros em pastas sanguinolentas, e refestelando-se nos despojos que recolhiam até mesmo dos que ainda se moviam.

Pouco tempo depois, eu e Théron já podíamos olhar um nos olhos do outro, porque a linha de assírios que nos separava era cada vez mais tênue: ele avançou e eu me permiti recuar, coberto de pó e sangue, até que ele parou em frente a mim e curvou a cabeça, saudando-me, ambos alheios ao fragor da batalha à nossa volta:

— Tua coragem vai se tornar lenda, meu rei. Lideraste teu povo na guerra e venceste: o que mais se pode esperar de um rei?

— Neste momento, nada, meu mestre: se não fossem tuas aulas, meu corpo certamente estaria agora rojado ao solo, reduzido a nada.

Continuamos lutando, lado a lado, e nossos esforços combinados atiraram muitos assírios pela borda da ponte, tornando-se quase um jogo vê-los espatifar-se na água escura, já repleta de corpos destroçados. Alguns dentre os assírios fizeram um último esforço para escapar, e, certamente por benesse de vencedor, as hostes de Théron abriram caminho para que escapulissem, tomando bordoadas e pontapés enquanto tropeçaram para fora de nosso alcance, ao som de nossos gritos de vitória cada vez mais altos. Quando desapareceram, e já não havia nada entre nós, os judeus e os soldados comandados por Théron ergueram suas armas para o céu e, gritando, saudaram-se e abraçaram-se como irmãos que se tivessem perdido uns dos outros. Havia entre eles, pelo que minha memória mostrava, muitos irmãos-pedreiros de Jerusalém, dispostos a tudo em nome de seu ideal, sendo a maioria composta de desconhecidos de todas as cores e matizes. Quando questionei Théron, ele me disse:

— São mercenários, esses que dormitam debaixo de cada pedra do Império: basta sacudir algumas moedas no ar e imediatamente surgem como insetos, dispostos a tudo em nome da batalha e do butim...

— Desta vez se enganaram: não existe nenhum butim, a não ser nossas próprias vidas...

— Engano teu, meu rei: a maioria deles tem grande orgulho de ser parte do exército de Israel e Judah, do Príncipe de Jerusalém, sob cujo comando se tornarão senhores do mundo...

Não pude deixar de rir:

— Eu? Não faz nenhum sentido: se não fossem eles, eu agora certamente seria novamente parte da natureza, reduzido à minha expressão mais simples, e os vermes já estariam se refestelando em minhas carnes...

— Certo, meu rei: tu sabes disso, eu sei disso, e alguns poucos outros também sabem, mas a maioria crê piamente que só alcançou a vitória porque lutou a teu lado, e que as benesses que lhes estenderás serão imensas, exatamente de acordo com o valor que te dão.

Fomos caminhando em direção ao grosso da caravana, onde os festejos de vitória já começavam a se tornar intensos. Minha mente aliviada pelo final da batalha se regozijava com a presença de Théron, e enquanto nos dirigíamos para o centro da caravana em festa, perguntei-lhe:

— Que milagre foi esse que colocou a salvação em nosso caminho através de teus soldados, meu irmão, meu amigo?

Théron, muito feliz, manteve o ar respeitoso que nunca abandonava:

— Nenhum milagre, meu rei: partimos de Jerusalém faz quase três meses, dirigindo-nos a Dimashq para encontrar-te no meio do caminho e auxiliar-te na tarefa do êxodo.

Eu estranhei:

— Como assim encontrar-nos, Théron? Quem dentre vós sabia de nossa viagem, se não trocamos mensagens nem emissários com as notícias de nossa partida?

— O assunto surgiu em uma reunião da fraternidade da pedra, em Jerusalém: foi lá que decidimos pela organização deste exército, ainda que naquele instante não soubéssemos verdadeiramente os motivos pelos quais Feq'qesh o considerava tão útil...

Feq'qesh. Mais uma vez o estranho poder de meu mestre se fazia sentir, como em tantas outras ocasiões anteriores, nas quais ele surgia como mensageiro de deus para solucionar o que, sem seu concurso, seria apenas fonte de fracasso, destruição e morte. Théron continuou:

— Ele insistiu muito para que saíssemos num dia determinado, nem antes nem depois. Foi mesmo uma milagrosa coincidência que nos encontrássemos exatamente hoje e aqui, onde fomos úteis na salvação da caravana.

Eu não compreendia o poder de antecipação que Feq'qesh exibia de quando em vez: era como se o tempo lhe fosse totalmente transparente, e sua mente tivesse acesso direto ao futuro antes mesmo que este ocorresse, vendo-o tão facilmente como se passado fosse. Eu não compreendia, mas aceitava esse insólito como parte da vida. A mão de Yahweh sempre a preenchia de sentido, direcionando-a para um objetivo que ainda me era desconhecido.

Ao penetrar no âmago da caravana, percebi que o que me parecera comemoração era exatamente o seu oposto: famílias choravam seus mortos na batalha, e subitamente me recordei de Heman e Iditum, caídos ao solo em defesa de minha integridade, destruídos para que eu vivesse mais um dia.

Estanquei: meu espírito se confrangeu ao perceber que suas presenças constantes, das quais eu já nem mais me dava conta, haviam deixado de existir. Meus passos eram sempre acompanhados por eles, eternamente presentes, como as colunas de fogo e de nuvens que haviam acompanhado os escravos em sua saída do Egito, protegendo-os dos inimigos. Cobri o rosto com as mãos, livre da tensão da batalha, vendo que as batalhas são um instrumento muito pouco adequado para a correção do mal, porque, em vez de extingui-lo, apenas o multiplicam. Nossa salvação representou não apenas a destruição do inimigo, mas também a morte de tantos dos nossos que haviam entregado suas vidas em holocausto à necessidade de defendê-las, ficando sem nada do que tinham tentado preservar. Os dois tinham sido bem-sucedidos em preservar minha vida, protegendo-a em troca de suas próprias, por ser este o seu dever. Ergui a cabeça, enxugando as lágrimas que me corriam dos olhos: se eles podiam dar suas vidas pelo dever, era meu dever também fazê-lo, justificando suas mortes com a minha, se assim fosse necessário. O povo chorava, mas ao mesmo tempo me aplaudia e se regozijava com a vitória que havíamos tido.

Meus companheiros mais próximos se aproximavam, e eu ordenei a Jael:

— Manda que recolham do campo de batalha os corpos de Heman e Iditum, e que sejam cuidados e tratados para que nenhuma mancha lhes desfigure o corpo: ordeno que sejam reconduzidos ao estado de perfeição física que sempre tiveram, para que sejam enterrados, junto com todos os mortos nessa batalha, do outro lado do Gabbarah, que só atravessamos graças a seus esforços.

Uma súbita inspiração me fez interromper o movimento de Jael:

— Espera: quero que Heman e Iditum sejam os primeiros a ser enterrados no terreno que vamos atravessar, ficando um de cada lado da ponte, como as colunas protetoras que eram, e que, após eles, todos os mortos ladeiem o caminho que trilharemos, marcando para sempre a nossa passagem com o alto preço que pagamos. Que essas covas sejam marcadas, para que de hoje em diante todos que aqui passem saibam estar atravessando terreno sagrado para o povo judeu, já aqui plantamos nossa liberdade. Montemos acampamento para que as cerimônias de homenagem a nossos mortos sejam feitas com o máximo de correção, e daqui só sairemos quando nossas devoções estiverem completas.

Jael saiu silenciosamente para executar minhas ordens, e eu coloquei a mão no ombro de Théron, muito espantado com a segurança que eu exibia e que nem eu mesmo sabia possuir:

— Théron, meu amigo, trouxeste contigo as ferramentas de pedreiro que usas para esculpir a pedra?

Théron assentiu, e eu continuei:

— Pega-as, então, e prepara-te para esculpir na pedra assíria dessa ponte a frase Liberdade de Passar, como marca indelével do que aqui conquistamos. Que todos que por aqui passem leiam as palavras e se recordem do que conquistamos.

O povo à minha volta me olhava com admiração: eu estava sendo seu rei, meu poder estava enraizado em seus corações. Os murmúrios de aprovação por minhas ordens tomou todo o campo, acalmando os ânimos dos que tinham parentes e amigos por quem chorar, recolocando nossa vida diária na trilha costumeira, porque a vida sempre seguiria em frente, mesmo depois que todos estivéssemos reduzidos a pó. Meu coração entristecido pela perda de meus guardiães também entendeu que nada existe no mundo que não tenha sua utilidade, e que nada permanece nele quando essa utilidade termina, deixando-me pronto para encarar minha própria destruição quando minha utilidade sobre o mundo estivesse terminada.

Os sete dias seguintes passamos nessa planície árida à beira do Gabbarah, enterrando nossos mortos, fazendo nossas orações por suas almas, pensando nossas feridas, e ao fim de tudo retomando o rumo de nossas vidas. Limpamos o rio de seus cadáveres assírios, erguendo uma imensa pira onde os queimamos: mas nossos próprios mortos foram todos limpos e envolvidos em seus mantos, enterrados lado a lado em grande parte do caminho que ficava do outro lado da ponte, que só atravessaríamos quando a piedosa tarefa estivesse concluída. A vida foi lentamente retomando seu processo normal, e já se notava em toda a caravana a excitação pela continuação da viagem, porque o povo de certa maneira tinha recuperado suas raízes nômades, não pretendendo fixar-se em nenhum outro lugar que não fosse a Jerusalém de seus sonhos.

O primeiro Shabbath depois da batalha marcou nosso último dia nesse lugar ao qual nunca mais voltaríamos, uma passagem no caminho em direção a nosso destino: o preço pago por ele estava enterrado no solo, como sementes no campo arado, regadas pelo sangue e prontas a florescer em sucesso nas almas dos sobreviventes. Quando as trombetas soaram marcando o reinicio da jornada, mais um dia de lento movimento em direção a nosso sonho, a caravana se atirou para a frente, renovada, numa excitação em tudo semelhante à do primeiro dia, e eu me coloquei ao lado da ponte, aguardando que todos passassem, enquanto conversava com meus companheiros mais próximos, entre eles Théron, calmo como sempre. O acampamento das tropas ficava pouco mais à frente, onde a Estrada do Rei já havia fixado suas imensas lajes de pedra, marcando o caminho para Sukhnah, uma aldeia de bom tamanho, provavelmente o lugar de onde os assírios tinham vindo nos atacar. Nossos inimigos deviam estar nos esperando havia algum tempo, e em minha mente permanecia uma dúvida: como haviam sido informados de nossa viagem e dos tesouros que carregávamos conosco? Essa dúvida se desvaneceu como fumaça quando o grupo de samaritanos liderados por Re'hum, que eu não vira desde antes do ataque assírio, atravessou a ponte, passando por mim em completo silêncio, e eu li em seus olhos o ressentimento que nunca antes tinha sido tão pronunciado. O que eu até esse dia só vira nas faces de Re'hum e de sua serpente de estimação, o untuoso Sam'sai, estava em cada olhar de cada membro de seu pequeno grupo, e não foram poucos os que, olhando em minha direção, cuspiram ao chão, como se eu fosse a escória do mundo. Jael também viu isso, e disse:

— Meu rei, está mais do que na hora de nos livrarmos desses inimigos disfarçados. Por que alimentar serpentes em nosso meio?

Théron, com a mão no punho da espada, rogou-me:

— Por favor, meu rei, permita que eu e meus soldados destrocemos esses desrespeitosos: seu sangue pode purgar a traição que certamente cometeram.

— Penso da mesma forma. — disse Yeoshua, a barba rala cada vez mais longa em seu queixo outrora arredondado. — Tenho certeza absoluta de que foram eles que avisaram os assírios sobre o tesouro que carregamos. São verdadeiramente o que existe de pior entre nós: falsos crentes em Yahweh, ladrões de deuses e de templos, cuja ausência nunca será sentida.

Nas carroças, as crianças samaritanas também olhavam em minha direção, tentando com muita dificuldade imitar o ódio de seus pais: seus olhares me confrangeram o coração, e eu me voltei para Mitridates, que os olhava friamente:

— E então, meu al-musharif, o que faremos com eles e com os filhos deles?

— Todos têm tanto direito à vida, a Jerusalém e a Yahweh quanto nós: quem sabe os filhos um dia não enxergarão a verdade com mais facilidade que os pais?

Era o que eu precisava ouvir. Sorri para as crianças, que foram imediatamente levadas para dentro de suas carroças, não fossem se enternecer com a amizade desse falso rei que deviam odiar. O tempo me daria razão: talvez seus descendentes conseguissem vencer dentro de seus espíritos a animosidade inexplicável que nos desunia. Meus outros companheiros não ficaram felizes, mas minha decisão de deixar os samaritanos viverem era soberana, e eu a mantive.

A caravana foi passando, a caminho de Sukhnah, e já era meio da tarde quando seus últimos membros pisaram o chão de pedra da imensa ponte. Eu estava sozinho com Jael e Théron, certificando-me de que ninguém havia ficado para trás, e quando finalmente os últimos animais atravessaram a ponte, espicacei meu jâmal para seguir viagem. Olhei o arco de pedra que sustentava o pilar do lado direito da ponte, e nele vi a escultura de Théron, as belas letras hebraicas enredadas umas nas outras como labaredas congeladas em pedra, lembrança eterna de nossa batalha e travessia. Chegando mais perto, no entanto, notei um engano: eu havia ordenado que as palavras chofesh've'ma'avar fossem marcadas na pedra, mas o que ali estava não era Liberdade de Passar, como eu queria. Questionei Théron, com dureza:

— O que aconteceu? Que é isso que esculpiste aqui? Foi isso que mandei que fizeste?

Os olhos de Théron se encheram de lágrimas:

— Meu rei, não compreendo tua irritação: o que fiz de errado, se cumpri exatamente vossas ordens? Não te agrada o meu trabalho?

Saltei do jâmal, possesso, e fui até o pilar, passando a mão com desagrado pelas marcas traçadas pelo cinzel de Théron. Eram belas, mas estavam erradas: minhas ordens estritas haviam sido mal realizadas, e eu não podia admitir isso, sob pena de perder minha autoridade e meu poder. Fui mais duro ainda:

— Não compreendo que dificuldade pudeste ter para realizar o que te ordenei, se o que te disse foi claro como água! É tão difícil assim fazer o que se ordena? Por que nunca sou obedecido?

Minha irritação era maior que o simples fato de não ver esculpida no pilar a frase que ordenara: eu estava aproveitando esse instante para, sem nenhum motivo maior, descarregar todo o veneno que me ia na alma, nascido dos desacertos e desagrados de toda uma vida, configurados nesse simples engano como se nele residissem todos os enganos do Universo. Fui ríspido, gritando violentamente, a tal ponto que as faces dos que me cercavam ficaram rubras de vergonha. Derramei-lhes o fel de minha ira sem sentido, e empurrei o pilar com força, como se desejasse derrubá-lo, colocando por terra aquela prova de desobediência:

— Como se pode ser tão inepto? Em vez de Liberdade de Passar, como ordenei, tu esculpiste Liberdade de Pensar, que é coisa completamente diferente]

Assim que disse isso, fiquei em súbito silêncio, percebendo o que ainda não vira. Tentei manter minha aparência de poder, mas já sem nem um décimo da violência de antes, quando perguntei a Théron:

— Quem te informou sobre as letras?

Théron me indicou com a mão esquerda um pedaço de chão, logo atrás do pilar, onde alguém escrevera as letras que ele diligentemente copiara. Lá estavam traçadas no chão, quase apagadas, as letras da frase chofestive'machshavah, Liberdade de Pensar, quase igual à que eu ordenara, mas sutilmente diferente. Théron, envergonhado e sem nada compreender, disse:

— Um velho me informou, e ele mesmo traçou as letras, que eu copiei uma a uma antes de aplicar o cinzel à pedra. Podes ver que são idênticas ao que ele traçou, e mantive até mesmo a proporção entre elas, para que meu desconhecimento dessa língua que apenas falo não prejudicasse o trabalho.

Calei-me, olhando as garatujas no solo seco, apagando-se pela ação do tempo. O velho que escrevera para Théron a frase que eu pedira, por motivos insondáveis, ouvira uma palavra diferente, e a liberdade de passagem que experimentáramos se transformara na liberdade de pensamento que eu agora divisava. Olhando as letras belamente cortadas na pedra antiga da ponte, tive a súbita compreensão de que, de alguma maneira misteriosa, o Universo acrescentara sua vontade à minha, mo-dificando-a e enriquecendo meu desejo de futuro com a sabedoria inesgotável que reside dentro de todos nós. O acaso havia acrescentado à minha ordem um valor insuspeito, e o velho, talvez num acesso de surdez, dera-me o presente de seu engano, transformando em acerto ainda maior aquilo que eu ordenara como certo.

É sempre assim: na vida, é preciso aprender a aceitar o acaso como parte de um projeto desconhecido, que de alguma maneira sempre nos acrescenta, mesmo quando parece equivocado. Não existem enganos, a não ser para quem pretenda ser senhor de tudo e de tudo estar no controle. Isso é impossível, porque é sempre preciso nos deixarmos levar pelo movimento ininterrupto da Criação, sendo parte integrante dela. Meu silêncio foi longo: eu tinha que encontrar dentro de mim a melhor maneira de dizer o que devia dizer. Finalmente, percebendo que não existia outra maneira senão a única possível, olhei para Théron e falei:

— Perdão, meu amigo: quem se enganou fui eu: tu fizeste mais ainda do que eu te pedi, e me deste a melhor lição de todas. Isso já me havia sido mostrado, mas só hoje, e graças a ti, é que o pude compreender. Nem o sangue, nem a vitória, nem o regozijo de meu povo valem o que essas letras me deram. Graças a ti, hoje sei que só a liberdade de pensamento faz com que possamos atravessar a ponte de nossa existência.

Abracei meu general, ambos chorando, e a planície à nossa frente subitamente se cobriu de nova luz, novas cores, tornando-se o mais belo lugar de todo o Universo, pois era lá que, pelo menos nesse momento, morava a Verdade.

 

A travessia das trezentas milhas que ainda nos separavam de Jerusalém consumiu quase noventa dias de viagem, descontando-se cada Shabbath que comemoramos em meio à Natureza. Os soldados que Théron comandava nos protegiam, e fomos sempre recebidos pelas populações que nos observavam passar, hieraticamente organizados, levando o tesouro de Yahweh, o poderoso deus a quem o Grande Cyro devolvera o poder e o território. As notícias de Cyro eram variadas: ele continuava o processo de conquista que aumentava cada vez mais seu império. Quando chegamos a Dimashq, a cidade mais antiga do mundo, uma imensa construção urbana inúmeras vezes erguida por sobre as ruínas de outra Dimashq mais antiga, um mensageiro de Cyro nos esperava. Uma placa de argila com seu selo pessoal, escrita por suas próprias mãos, como eu reconheci, dava notícias de suas conquistas na Báctria, sua decisão de espalhar o império mais para o leste, avançando sobre o planalto Índico, e da construção cada vez mais acelerada de sua cidade ideal, Pasargad, exatamente no lugar onde sua tribo original se havia fixado. Meu irmão Cyro fazia grandes préstimos de estima e consideração, pondo-se à disposição para o que quer que fosse necessário, pedindo-me apenas um obséquio: era preciso que eu, sem que ninguém o soubesse, reconstruísse uma Jerusalém forte e inexpugnável que servisse como tampão entre seu Império e o reino do Faraó Khnemibre, atual Senhor do Egito, única nação ainda forte o suficiente para ameaçar-lhe a unidade territorial que havia conquistado.

Cyro não me tratava como um de seus tarshatin, mas sim como um de seus irmãos na pedra, recordando-me de quando atravessáramos juntos a barreira de fogo nos subterrâneos, certificando-se de que eu estaria à sua disposição como garantia de segurança na fronteira. Eu não tinha como negar-lhe isso, pela proteção que me concedera durante toda a viagem. Tomei de um papiro quando entramos em nosso acampamento, e com muita dificuldade e lentidão narrei-lhe os acontecimentos de nossa viagem até esse ponto, fazendo pouca monta das desgraças, principalmente do encontro inesperado com os assírios de Sukhnah, a quem havíamos vencido sem grandes perdas. Falei-lhe francamente do remorso que sentia ao recordar os homens a quem havia matado nessa batalha, por não ter outra alternativa, e no geral pus-me à sua disposição para o que quer que ele de mim precisasse, garantindo-lhe que faria de minha cidade uma fortaleza em defesa de sua fronteira ao sul, sem que ninguém soubesse o verdadeiro motivo das obras. O muro que um dia protegera Jerusalém de seus inimigos externos seria reerguido em toda a volta da cidade, ou talvez mais longe ainda, impedindo que exércitos inimigos entrassem em Judah e Israel, os reinos separados que eu deveria reunir em um só reino, como havia sido na época de meus avós David e Salomão.

Estava quase terminando de escrever minha missiva para Cyro, quando pela porta de minha tenda vi a figura doentia de Ageu, havia muito silencioso. Como sempre, não lhe dei nenhuma atenção: ele detestava quando se o olhava nos olhos, e a melhor maneira de mantê-lo calmo era agir como se ele não estivesse ali. Buscando o relicário que estava na fita de tarshatta que Cyro me havia concedido, estendi a mão para o flanco direito e nada encontrei: olhei para o peito, e não vi a fita verde e dourada. Ergui-me bruscamente, procurando-a à minha volta, e depois comecei a revirar a tenda onde havia dormido, na esperança de que estivesse perdida entre as roupas da cama. Nada encontrei: a fita havia desaparecido, e com ela a moeda que já tanto fizera por mim. Gritei por Jael, que imediatamente entrou na tenda:

— Meu rei, o que se passa?

— A fita de tarshatta, Jael, onde a colocamos? Quando a viste comigo pela última vez?                    

A face de Jael era uma interrogação só, enquanto ele pensava e depois me dizia:

— Só me recordo dela em teu peito antes da batalha contra os assírios, meu rei... ou a terei visto depois disso? Não, não a vi: durante o enterro de nossos entes queridos e a reorganização da caravana, não me recordo dessa fita em teu peito. Só na batalha...

Um frêmito de terror nos sacudiu a ambos: a fita certamente fora perdida no calor da batalha, e ninguém se lembrara de sua existência, até esse momento em que eu dela necessitava. Esfreguei os cabelos, em desespero:

— Não posso tê-la perdido, Jael, não posso. É a prova de minha autoridade. Corre por todo o acampamento e pergunta por ela a todos os que estavam perto de nós... não! melhor não fazer isso, pois ninguém deve saber que a fita não está mais em meu poder. Chama por Théron, quero que alguns soldados dele voltem à ponte de Gabbarah para procurar por essa fita...

Jael tinha um ar triste:

— Meu rei, será um trabalho perdido: não te recordas que limpamos o campo de batalha de todos os sinais de sangue e destruição, tornando-o terreno sagrado para receber nossos mortos? Se a fita lá estivesse alguém a teria encontrado. Se meu rei deseja, enviarei imediatamente alguns homens para procurá-la em Gabbarah, e também por todo o caminho de lá até aqui. Fica tranqüilo, meu rei, havemos de encontrála!

Uma gargalhada ensandecida de Ageu nos calou, e quando o olhamos ele estava caído ao chão com a espinha torcida, como havia feito da primeira vez que profetizara a meu favor, os olhos tão revirados que deles só se via o branco, a boca escancarada, apoiado nas pontas dos pés e na parte superior da cabeça, e sua face invertida parecia a de uma aranha venenosa que me viesse atacar, gritando:

— Busca segurança, não poder, busca respeito, não temor, busca verdade, não engano! David lutou contra os amonitas que se tornaram odiosos a seus olhos! Salomão lutou contra seu irmão que se tornou odioso a seus olhos! Zerubbabel lutará contra todos os que o cercam porque se tornará odioso aos olhos de todos eles!

Caí sentado ao solo, numa síncope: se este era o futuro que me estava reservado, era como se eu já estivesse morto. Jael me amparou em meu desatino enquanto Ageu, babando uma espuma sanguinolenta, caiu ao solo, tremendo. A tapeçaria da entrada da tenda se abriu, e por ela entrou Théron, com sua espada desembainhada. Do lado de fora estavam muitas pessoas que, atraídas pelos gritos de Ageu, tinham vindo ver o que se passava. Gritei, desvairado:

— Fechem a tenda! Não quero que ninguém entre!

Théron, colocando a mão esquerda para trás, segurou as abas da tapeçaria, mantendo fechada a abertura da tenda. Ageu cessou todo o movimento de seu corpo e se aquietou, ficando deitado no solo como se dormisse, e eu cobri os olhos com as mãos, desesperado:

— Preciso da fita, preciso da moeda, não posso abrir mão de nada! Théron, por Yahweh, pega o cavalo mais rápido que tivermos e volta à Ponte de Gabbarah, procura a fita de tarshatta que Cyro me deu como sinal do poder em mim investido! Cava a terra, se for preciso, exuma cada cadáver, revira as cinzas dos assírios, mas encontra meu símbolo de poder!

Jael me abraçou, e eu tremi entre seus braços, mais aterrorizado que qualquer outra vez em minha vida. A perda da fita e da moeda não eram nada perto do que Ageu me dissera, antes de ficar ao solo como morto, a baba espumante escorrendo lentamente pelos cantos da boca. Eu podia suportar tudo, as perdas, as dores, a morte, mas não pretendia ser odiado por ninguém: o ódio que me devotassem certamente me corroeria a carne e os ossos, e me mataria, e eu não pretendia ser a vítima dessa destruição sem sentido. Se Yahweh me dera uma missão, por que não concedia junto com ela a proteção infinita de que só Ele era capaz, permitindo que eu a realizasse sem dificuldades?

Nessa noite, não quis ter contato com nenhuma das esposas que ainda me faltava conhecer: a promessa de ódio coletivo que Ageu fizera esgotara em mim toda e qualquer capacidade de prazer no contato humano. Enrodilhei-me em minhas almofadas, ouvindo durante toda a noite os ruídos da caravana que se aquietava e rearrumava em seu descanso, percebendo todo e cada pequeno ruído que os outros faziam, imersos no sono. Ansiei durante toda a noite e madrugada por este estado, dentro do qual poderia ser mais do que realmente era: em mim, o desligar do corpo era sempre o despertar da alma, apagando a lógica e libertando a razão, fazendo com que as fantasias de meu sonho não estivessem de acordo com o mundo real, satisfazendo-me tanto por serem quanto por não serem verdadeiras. Em vão: a madrugada veio, inclemente, e esta foi a primeira de uma longa série de noites insones que se tornaram novamente o meu natural, a tal ponto que daí em diante eu não sabia mais distinguir o que era real e o que não era, imerso num estado que não era nem dormir nem despertar, e que me impunha ora um sono desperto, ora um despertar delirante.

Seguimos para Jerusalém, e eu ordenei que os encontros que tínhamos com os chefes das aldeias, que me receberiam como ao próprio Cyro, fossem cancelados, alegando febre contagiosa, pedindo que lhes fosse exibida a placa de argila que trazia o decreto com o sinete imperial, para que nos fizessem a entrega do cereal como havia sido ordenado. Alguns, ofendidos com minha ausência, recusaram-se a isso, e não houve jeito de fazê-los cumprir sua obrigação: mas a maioria, temerosa do poder que eu possuía, fazia o que devia ser feito, dando-nos o alimento de que necessitávamos, parte como doação, parte como negócio. Théron voltou de Gabbarah desolado, pois obviamente nada encontrara. Eu me conformei em ter perdido para sempre não apenas o sinal de minha autoridade imperial, mas principalmente a moeda que era o fulcro de minha vida. Meu mutismo por sobre o jâmal era total, não me interessando nada que não fossem meus próprios problemas: acabei por pedir, alegando mal-estar, que à minha volta fosse erguida uma tenda de viagem, para que eu andasse sobre a montaria completamente separado dos olhares de meu povo. Um cesteiro e um tapeceiro da fraternidade dos pedreiros fizeram o serviço, e o trecho final da viagem passei cercado por listras azuis, amarelas e brancas, sentindo apenas meu próprio odor e o balanço de minha montaria, da qual descia exatamente ao lado de minha tenda já armada, para comer mal e mal o que se me punha à frente, cobrir por obrigação as esposas que se sucediam em meu leito, e na manhã seguinte, depois de mais uma noite insone, erguer-me até a sela e repetir tudo da mesma maneira, por dias sem fim, em progressão infinita.

Meus amigos e companheiros, mesmo os que nada sabiam de meus temores, libertaram-me das atividades necessárias, por reconhecer que eu não tinha como exercê-las. No fundo, foi um alívio: eu não tinha estofo para comandar nem a mim mesmo, quanto mais a um povo inteiro. Deixei que cuidassem dos negócios, dando-lhes apoio absoluto Para que fizessem o necessário, colocando-me na mesma posição de meu tio Sheshba'zzar, cada um em sua tenda, imersos em nossas próprias vidas, ele anestesiado pelo vinho e a velhice, e eu depauperado pela juventude e o terror.

As esposas se sucediam idênticas como os dias da viagem, e eu as impregnava com minha seiva real: nenhuma ainda havia dado sinais de gravidez, e seus pais só aguardavam que a primeira dentre elas surgisse com sinais inequívocos de prenhez para colocar-se imediatamente no papel de avô do futuro Rei, exercendo o poder que essa autoridade lhe daria. As esposas acabaram por ser todas experimentadas, e eu já começara a pensar em escolher as que poderiam dar-me o prazer que eu desejava e não conseguia alcançar: mesmo que algumas delas me levassem a um patamar superior ao de outras, meu ensimesmamento fazia com que eu novamente sonhasse com Sha'hawaniah e os prazeres que não conhecera, na certeza de que seriam infinitamente maiores. O poder que essa mulher tinha sobre mim era inversamente proporcional à minha segurança: quanto mais inseguro eu estivesse, ou triste, ou preocupado, ou insatisfeito, mais intensamente sua imagem se fixava em meu espírito, e mais fraco eu me tornava, sofrendo o efeito das armas que ela usava na guerra que sua deusa e meu deus travavam pela posse de minha vontade.

Numa determinada manhã, Jael e Yeoshua entraram em minha tenda, eu ainda enrodilhado sobre as almofadas do leito, olhando para o nada. Yeoshua pôs as mãos sobre mim e me sacudiu, nada gentilmente:

— Acorda, Zerub. — Não estou dormindo, Yeoshua — disse eu, com tal cansaço na voz que espantei até a mim mesmo. — Nunca estou dormindo.

— Pois parece que sim: anda, levanta, e vem cuidar de teus deveres. Os samaritanos liderados por Re'hum estão abandonando a caravana.

— Como assim? Vão deixar de caminhar conosco e ficar para sempre no meio do deserto? De que viverão?

Jael riu, mansamente:

— Meu rei, já saímos do deserto faz muito tempo: estamos em território gaaladita, e os samaritanos insistem em atravessar o Jordão perto de Sartã, em vez de, como pretendíamos, fazê-lo no vau tradicional entre Bet'haram e Bet'Jesimot. Disseram que não nos preocupemos com isso: não pretendem mais seguir viagem conosco, porque vão se estabelecer na terra de seus antepassados, a Samaria, do outro lado do monte Ebal.

— Deixá-los, pois: nenhuma falta nos farão, e se morrerem todos, pelo menos estarão longe de nós o suficiente para que não sintamos seu fedor...

Yeoshua me sacudiu mais violentamente, cheio de compostura sa-cerdotal:

— Acorda, Zerub. Não percebes que nada é assim tão fácil? Eles insistem em ter o que chamam de "sua parte" no tesouro que Cyro nos legou, e és tu quem tem que ordenar que nada levarão... ou pretendes dividir o que temos com esses traidores?

Passei a mão no rosto, com força, tentando esfregar para fora de mim o sono, pensando como poderia me livrar daquela tarefa sem sentido. Por que isso caberia a mim? Não tinha mais nenhuma autoridade, fosse a que meu sangue me dava, fosse a que Cyro me concedera, e não me sentia apto a enfrentar a multidão que certamente já se reunia do lado de fora, para exibir-lhes minha falta de preparo.

A insistência de Yeoshua, equilibrada pela presença firme de Jael, fizeram com que eu me erguesse e ataviasse, colocando na fonte a pequena coroa pontuda de esmalte azul com estrelas de ouro, cobrindo-me o mais possível com o grosso manto de tecido suave, tentando esconder a ausência da faixa de tarshatta. Quando cheguei à porta da tenda, e Yeoshua se colocou à minha esquerda, demos alguns passos e Ageu se pôs atrás de nós, exatamente entre um e outro, e foi formando esse triângulo que nos encaminhamos para os seguidores de Re'hum.

Temia pelo destino de nossa caravana, ainda mais com a presença do incontrolável Ageu: temia que ele dissesse algo controverso, ampliando o conflito que já tomava os participantes. Não havia o que eu pudesse fazer nesse sentido: enchi o peito de ar, apertei os punhos e acelerei o passo em direção ao ajuntamento à minha frente. Se era preciso enfrentar essa dificuldade, eu pretendia livrar-me dela o mais rapidamente possível, e se para isso tivesse que conceder aos partidários de Re'hum uma parte de nossos fundos, eu o faria. Cyro me ensinara o valor absolutamente igual de todos os homens, e eu não tinha motivo nenhum para tratá-los diferentemente, apenas por não gostar deles ou não partilhar de suas opiniões e crenças. Esta era a minha opinião como homem: como comandante dos hebreus, no entanto, teria que seguir-lhes os desígnios, tentando equilibrar as vontades da maioria com as da minoria, que nem por isto deve ser desconsiderada.

Sobre a carroça dos samaritanos, de pé sobre o assento do condutor, Re'hum estava explodindo, a face púrpura de raiva. Atrás dele, meio escondido por seu corpo, ficava o indefectível Sam'sai, cochichando em seu ouvido: quando me percebeu chegando, sacudiu a manga de seu chefe, que voltou os olhos injetados em minha direção:

— O Rei dos Judeus se digna a comparecer a essa assembléia, certamente para nos tratar pior do que já estamos sendo tratados!

Seu grupo resmungou alto, gerando gritos dos que os cercavam, em muito maior número: a situação estava verdadeiramente incontrolável, porque em ambos os grupos já havia gente sopesando porretes e com as espadas meio desembainhadas. Um conflito naquele lugar apertado traria prejuízos a todos: eu tinha que resolver o assunto da melhor maneira possível. Afivelei ao rosto, com muita dificuldade, o sorriso de sempre, e ergui a mão direita, conseguindo silêncio suficiente para ser ouvido:

— Re'hum, se queres ir embora com os teus, esse direito é teu. Os samaritanos são poucos, e não farão qualquer diferença em nosso número. Se desejais ir, tendes a minha bênção, e meus votos de felicidade no lugar que escolherdes para viver.

Sam'sai cutucou Re'hum, que, sem tirar os olhos de mim, curvou-se para ouvi-lo, e imediatamente voltou a gritar:

— Não desejamos tuas bênçãos, porque elas de nada nos servirão! O que queremos é a nossa parte no tesouro da Grande Baab'el, porque fomos todos roubados pelos babilônios quando eles nos venceram e escravizaram, e é nosso direito indiscutível recuperar o que nos pertence!

— O tesouro foi devolvido aos hebreus para reconstruir Jerusalém, capital de Judah e Israel! — gritou Yeoshua. — Nada além disso! Samaritanos nunca foram hebreus, nunca viveram em Jerusalém! Por que motivo deveríamos agora dividir com eles o que não lhes pertence?

Um velho samaritano saltou à frente:

— Somos mais dignos que qualquer um! Entre nós se encontram mais devotos de Yahweh que no resto dos escravos da Grande Baab'el! Nenhum de nós rende homenagens a Baal nem a Ishtar nem a nenhum desses deuses pagãos! O tesouro do templo também é nosso, porque o deus desse templo é mais nosso que do resto de vós!

Os gritos cresceram, os ânimos se acirraram, a qualquer instante o sangue poderia começar a espirrar para fora dos corpos. Ergui a mão novamente, e só depois de algum tempo o silêncio se fez, carregado de ódio, enquanto eu dizia:

— Na verdade, estamos confundindo as coisas: o tesouro que estava no Templo erguido por Salomão a ele retornará, assim que estiver reerguido, pois lá é seu verdadeiro lugar, onde serão bem-vindos todos os que desejarem demonstrar sua devoção a Yahweh. O tesouro que pertence a todos, e não apenas a Yahweh, é o que Cyro nos deu, a fortuna que amealhamos para nos locomover da Grande Baab'el até aqui e da qual não sobra muito, presumo. Essa pequena fortuna pode e deve ser dividida entre todos, porque cada um de nós tem direito indiscutível a uma parte dela. Estamos de acordo?

A cobiça anuviou a mente dos que deblateravam, e os samaritanos tornaram-se satisfeitos e ávidos, porque o rei inimigo se mostrava propenso a dar-lhes o que desejavam, enquanto os hebreus se mostraram avaros e cheios de desagrado, ao ver seu rei disposto a abrir mão de uma fortuna em benefício do inimigo. Yeoshua me olhava com franco desagrado, mas não lhe dei atenção: essa situação me era extremamente vantajosa, e eu não queria perder território conquistado:

— Encontremos dentre vós quem seja de confiança para, junto com meu aVmusharif, fazer a contabilidade do tesouro e da parte que cabe a cada samaritano, para que ambos cheguem a um resultado justo e perfeito.

— Isso não será necessário, Príncipe de Jerusalém! — sibilou Sam'sai, com o pérfido sorriso de sempre no rosto. —Vosso aVmushariff é um de nós]

Olhei para o lado, com espanto, dando-me conta de que Mitridates, amigo de infância e juventude também havia vindo da Samaria, alguns anos antes de nos conhecermos em plena Grande Baab'el. Procurei-o entre os que me cercavam, e o vi, segurando suas anotações entre o corpo e o braço mirrado, o olhar frio de sempre, dentro do qual nenhuma emoção sobrenadava. Chamei-o com um gesto, e ele se aproximou de mim, com um aceno de cabeça: seus olhos traziam imensas olheiras, pois também ele sofria com a falta de sono, ainda que não pelos mesmos motivos que eu. Pus-lhe a mão no ombro, pedindo-lhe:

— AVmushariff, temos um problema que deve ser calculado, e só tu podes fazê-lo.

Mitridates, sem hesitar, olhou-me tristemente:

— Meu rei, o cálculo já está feito: temos apenas que reconhecer-lhe a existência. Somos um número finito de pessoas, e o tesouro de que falamos também é uma quantidade finita. Basta dividir uma pela outra, anotar quanto caberia a cada membro da caravana e multiplicar essa quantia pelo número de samaritanos que vão partir.

A gritaria foi infernal: não só os hebreus se sentiam roubados no que ainda não sabiam quanto seria, mas os samaritanos se ofendiam com a idéia de que a divisão fosse justa. Tinham o hábito de exigir vantagens para si em detrimento do bem-estar alheio, e uma oportunidade como essa não poderia ser perdida. Tive que erguer minha voz com violência, para que se calassem:

— Não existe motivo para não ser dessa maneira: somos todos iguais! Um esgar de espanto se fez ouvir, principalmente dos seguidores de Yeoshua, que dentre eles me parecia o mais assustado. Eu, sabendo bem o que significava seu espanto, aproveitei o silêncio e determinei:

— É minha ordem, como Príncipe da Paz e chefe desta caravana: que os cálculos sejam feitos, e a parte de cada um distribuída entre os que se vão.

— Já estão feitos, meu rei. — Mitridates me olhava com firmeza. — Somos cinqüenta mil, menos os escravos, que somam sete mil. Portanto, quarenta e três mil homens livres. Nosso tesouro disponível, depois de todos os gastos e ganhos feitos durante quase seis meses de viagem, é agora de trezentas e trinta e duas mil dracmas de ouro e sete mil minas de prata. Divididas pelos quarenta e três mil que somos, resultam em quase oito dracmas e pouco mais de um décimo de mina por pessoa. Os samaritanos somam cento e noventa e sete pessoas, portanto a parte que deve ser dada aos que aqui deixam a caravana é de mil quinhentas e vinte dracmas de ouro e trinta e uma minas de prata.

Urros, gargalhadas, recusas, abalos, ninguém tinha clareza do que aquilo significava: uns achavam bom, uns achavam mau, alguns queriam mais do que isto, outros achavam que os samaritanos nada deveriam levar, e a situação se complicaria mais ainda, levando os dois grupos às vias de fato, se não fosse a palavra de Jael, meu secretário íntimo:

— Falo em nome dos membros da fraternidade dos pedreiros, também incluídos na conta de homens livres, e como tal com direito à mesma parte que todos. Somos trezentas e doze pessoas, e neste momento abrimos mão de nossa parte em benefício dos samaritanos, para que tenham certeza da boa vontade de Zerubabel!

Achei aquilo muito acertado, e disse:

— Como também sou membro dessa fraternidade, podem aí incluir a minha parte.

— Já está incluída, meu rei. — Jael me olhava com um sorriso. — Vossa parte foi a primeira que coloquei disponível.

Não havia como manter ânimos exaltados depois dessa exibição de justiça: mesmo com o sobrecenho fechado, ambas as partes tiveram que aceitar o resultado que se apresentava, e que eu arredondei para quatro mil dracmas de ouro e sessenta e seis minas de prata, que Mitridates imediatamente pôs à disposição de seus compatriotas. Ao ver o que lhes seria dado, a maioria dos samaritanos se acalmou, pondo-se imediatamente a contar a riqueza recebida, calculando o melhor uso que lhe dariam. Os únicos que não fizeram isso foram Re'hum e Sam'sai, ainda com o ar de eterna insatisfação no rosto:

— Continuamos nos sentindo roubados, Príncipe de Jerusalém! Deveríamos pôr as mãos em vasos de ouro e prata suficientes para podermos em nossa própria cidade cultuar Yahweh!

— Nunca! — Yeoshua estava possesso, em meio aos velhos que o cercavam. — Se desejam cultuar e homenagear a Yahweh, que o façam em Seu templo único, que reergueremos em Jerusalém, Seu território sagrado! Já estais levando mais do que seria honesto! Não queirais transformar Yahweh em matéria de ganho!

Aquilo precisava terminar, e eu, submetendo minha própria vontade, pus as mãos sobre os ombros de meus inimigos, que nada compreenderam, tornando-se paralisados pelo inesperado. Eu estava firmemente disposto a encerrar a disputa, sem perceber que ela ainda daria frutos mais amargos nos anos que se seguiriam:

— Podeis ter certeza disso, Re'hum. O Templo de Yahweh, quando estiver novamente de pé, abrigará as orações de todos os que nele se dispuserem a entrar com o coração limpo. Sendo este o vosso caso, sereis eternamente bem-vindos em Jerusalém.

Dito isto, virei as costas ao grupo, sentindo em minha nuca a verruma de seus olhares malfazejos. A visão das crianças samaritanas, no colo de suas mães, olhando-me como se eu fosse um Moloch capaz de esmagá-las entre os maxilares, apertou-me o coração a tal ponto que tive que apressar o passo, ocultando minha emoção. Passei pelo grupo de Yeoshua, lendo em seus olhares a mesma raiva insensata dos seguidores de Re'hum, sentindo um tremor no espírito. Não pretendia ser objeto do ódio de ninguém, mas nesse dia vi como é fácil ser odiado, principalmente quando se tem a responsabilidade de decidir e impor a decisão tomada. A profecia de Ageu, que permanecera calado durante toda a disputa, girava em minha cabeça, e sofri mais um momento de tristeza quando Mitridates, vindo por trás de mim, tocou-me a manga com a mão, interrompendo minha caminhada:

— Meu rei, devo dizer-te adeus.

O choque foi brutal, trazendo de volta o dia em que meus amigos me haviam deixado à beira do Eufrates, esgarçando o tecido de nossas vidas em comum. Era a repetição da caminhada em direção ao abismo de mim mesmo, à beira do qual eu me mantinha em permanente equilíbrio instável, joguete dos deuses numa guerra da qual não sabia o motivo, apesar de perfeitamente consciente de que dela era território e butim:

— Meu amigo, isso não faz sentido. O fato de seres samaritano não te obriga a seguir teu povo: não sabes que ainda tens muito a fazer por mim?

— Não, meu rei: só sei que sendo responsável pela divisão do tesouro entre vós e meu povo, devo assumir a verdade de meus cálculos da mesma maneira que meu rei o fez. Ao numerar os samaritanos para calcular a fração do tesouro que deveria ser-lhes dada, incluí a mim próprio nesse número. Tenho grande respeito pelos cálculos, meu rei, e não posso abrir mão dos que eu mesmo executei. Se me pus entre eles, com eles devo seguir.

— Mas, Mitridates, ouve: sabes que quem comanda teus compatriotas deseja antes de tudo ameaçar Jerusalém. Por que pretendes ir em companhia deles, deixando-me sem tua amizade?

Mitridates tinha o olhar baixo como a voz, quase um fio:

— Minha amizade é tua para sempre, meu rei, e eu devo fazer o que deve ser feito. Meu povo há de precisar de mim: na pior das hipóteses, serei a única voz racional entre eles, defendendo sem emoção o cálculo que mantém em funcionamento o Universo. Podes ter a ( certeza de que eu serei entre os samaritanos tudo aquilo que meu rei desejar que eu seja: e mesmo quando isso não acontecer, crê que estarei sempre a teu dispor, para tudo que for necessário.

Mitridates, subitamente, abraçou-me e beijou-me a face esquerda virando-se rapidamente, fugindo para além de meu alcance. Tentei segui-lo, mas os muxoxos dos seguidores de Yeoshua à minha volta resmungando como se eu fosse um traidor do povo, fizeram-me estancar. Olhei para Yeoshua, esperando dele algum reconhecimento da situação en que eu sentia, mas só vi em seus olhos a dureza do fanatismo religioso que, desejando unir todos os homens a Yahweh, acaba apenas afastando-O deles. Baixei a cabeça, sentindo-me mais só do que nunca, me dando o abandono que meu pai me impusera desde a infância, a ida de Daruj para o deserto do Faraó, a ausência de Sha'hawaniah e seu prazer, entendendo que perdera os dois únicos amigos de infância que me restavam. Olhei para os lados buscando o apoio de meus guardiões Heman e Iditum, recordando num tranco que já estavam mortos, os ossos branqueando em uma cova perto da ponte de Gabbarah, ciosos como sempre. Avancei cabisbaixo pelo caminho, sentindo a presença de Yahweh queimar-me a pele, desejando ser outra pessoa ou estar em outro lugar, mais absolutamente abandonado que nunca.

Chegando à porta de minha tenda, uma surpresa: Jael, meu secretário íntimo, lá estava, acompanhado de todos os irmãos na pedra que faziam parte da caravana. Ao ver-me, esses irmãos me cercaram, abraçando-me estreitamente, e foi dentro desse círculo de fraternidade que me envolvia que pude chorar copiosamente, expulsando de meu peito dores muito antigas que nunca até esse momento tinham sido purgadas. Meus irmãos me protegiam dos olhares do mundo, suportando minha tristeza e dando-me o benefício de seu apoio físico, uma qual proteção indescritível que eu raras vezes havia percebido no mundo tão conspurcado em que vivia.

Experimentei muitos dos confortos que a vida pode dar, do essencial do corpo, e a nenhum deles considero menos ou mais important que os outros. E ainda assim devo confessar não conhecer nenhum que seja tão caro, que tão completamente satisfaça os desejos de mente e espírito, que tão perfeitamente reviva, refine e eleve minha natureza, quanto o que recebi de meus irmãos na pedra. Esses sempre foram meu refúgio e conforto absoluto, com sua infinita capacidade de perceber a dor de qualquer de seus irmãos e, dividindo-a entre si, torná-la menor e mais fácil de suportar, sem que jamais seja preciso pedir-lhes auxílio. Conhecem como ninguém a alma de cada irmão em sofrimento, a ele se dirigindo com todo o amor que têm em seu coração, de maneira tão natural que sua amizade se multiplica por cem. Somos sempre exatamente aquilo de que cada um necessita, e nesse momento em que minha vida novamente parecia estar em franco descenso, foram meus irmãos que sustentaram meu espírito. Quando finalmente entrei em Jerusalém, sendo recebido por sua triste e faminta população, eram eles que estavam a meu lado, impassíveis, irre-movíveis, incapazes de dar-me menos que seu carinho e amizade, e quando pela primeira vez me deitei para descansar na terra onde minha missão se daria, foi a sombra de sua presença e seus cânticos do lado de fora de meu palácio que me permitiram, pela primeira vez em muitos meses, mergulhar num sono profundo e sem sonhos, do qual eu acordaria para enfrentar aquilo que deveria ser feito.

 

Iniciei, depois da volta a Jerusalém, o período mais estranho e controverso de minha vida, do qual saí sem nenhuma das certezas que tinha, minha existência virada e logo após desvirada não sei quantas vezes. Os acontecimentos se sucediam uns após os outros, substituindo-se com tal rapidez, que na maior parte do tempo eu sequer pude percebê-los, tomando conhecimento deles apenas muito mais tarde, e sempre tarde demais para revertê-los. A atividade diária como Príncipe de Jerusalém e tarshatta do Grande Cyro não deixava nenhum tempo livre para mim mesmo: os "negócios de estado", assim chamados pelos que me cercavam, exigiriam atenção ininterrupta de minha parte, já que Jerusalém, a cidade sagrada, precisava urgentemente reerguer-se de suas ruínas, estabelecer-se como a cidade mais importante da região, tornando a ser o centro de poder e riqueza que fora quando Salomão era vivo e reinava sobre os que aí viviam suas vidas.

A cidade original era terra estranha aos recém-chegados: eu já conhecia o céu plúmbeo que nunca deixava ver o sol, e o peso incalculável das nuvens sobre nossas cabeças. Ao atravessarmos as últimas montanhas, a cidade em ruínas surgida no horizonte era baça, escura e tão desagradável à vista, que o ritmo da caravana se tornou sensivelmente mais lento, como se os cinqüenta mil judeus que a compunham estivessem começando a se arrepender de tê-la desejado. Eu nunca tinha observado a cidade desse ponto de vista privilegiado, sobre as montanhas entre Gaba e Anatot: era muito feia, suja, sem atrativos. O peso do céu doentio ampliava esse sentimento de rejeição dos que aguardavam a visão das benesses prometidas, e que teriam que ser arrancadas de dentro da terra, com trabalho, suor e dedicação extremados.

Fomos recebidos à Porta das Águas pela comitiva dos habitantes mais grados da cidade, entre eles Ananias e Ragel. Ananias, com sua voz grave, ergueu os braços em minha direção quando apeei de meu jâmal, saudando-me à moda dos pedreiros, com um beijo na face esquerda, repetido por todos os que o cercavam e que, como eu, eram também irmãos da pedra. As rugas de cansaço e penúria se multiplicavam na face grave de Ananias, e ao virar-me para a caravana, para não ver sua degradação física, percebi Yeoshua de pé sobre a carroça dos sacerdotes, em pose idêntica à de Re'hum, olhando-me como quem olha um inimigo. Fiquei completamente sem ação ao entender que meu amigo mais querido tinha contra mim alguma coisa mais forte que nossa antiga amizade. Baixei os olhos para o chão, esquecendo por um instante meu papel de responsável pela viagem e ocupação da velha cidade. Quem me ergueu a cabeça foi Ragel, os olhos mais apertados que nunca, o nariz erguido no ar, tentando enxergar-me pelo cheiro, como sempre fazia:

— O que tens, Zerub? O que te abala o espírito?

Abracei-me a ele, ocultando a face em seu ombro, sentindo o cheiro da poeira no tecido. Se pudesse, não ergueria nunca mais a face: tinha duros tempos a enfrentar, e a cada dia me percebia mais isolado. A missão a que Yahweh me obrigava me dava a certeza de que terminaria a vida sozinho, sem um amigo sequer. Ragel ergueu-me mais uma vez o queixo, e, com voz ríspida, admoestou-me:

— Domina-te! És o chefe desses homens e mulheres, que em ti confiam e de ti dependem! Não podes de maneira nenhuma dar qualquer sinal de emoção! Apruma-te!

O som da voz de Ragel fez algum ânimo me encher o coração: ergui os olhos, e a carroça dos kohanim, rolando em direção ao terreno do Templo, já havia passado por mim, como tudo sempre passa, deixando marcas somente nas emoções. O povo tinha os olhos arregalados, e ninguém estava muito satisfeito, a não ser as crianças, que nunca temem as novidades, e que imediatamente se puseram a explorar as ruínas, dentro das quais viviam os habitantes da cidade. Fiquei ao lado de Ragel e Ananias, vendo passar a caravana da Babilônia, todos sujos, cansados e desesperançados pela visão da Jerusalém que nunca haviam imaginado tão degradada. As trombetas do fim do dia tocaram, e a caravana ainda não estava toda dentro da cidade: subi as ruas poeirentas com Ragel e Ananias a meu lado, sua presença silenciosa me recordando Heman e Iditum, enquanto nos dirigíamos para o terreno da Mishneh, onde havia um grande espaço aberto no qual pela última vez a caravana ergueria suas tendas, antes de morar dentro da cidade. Passeei entre as tendas, e se em algumas fui saudado com respeito e amizade, na maioria recebi muxoxos e esgares de insatisfação: afinal, a terra de leite e mel para a qual eu os havia trazido era tudo menos isso, e, em suas mentes e corações deprimidos, a responsabilidade já era toda minha.

A noite ia a meio quando finalmente me dirigi a meu pobre palácio, como sempre exageradamente iluminado, logo atrás da Porta das Águas: ao chegar à escadaria, olhei para a direita, vendo as sombras da Necró-pole Real, um mar de tumbas de pedra que me chamaram a atenção, como um presságio. Baixei a cabeça e subi os degraus gastos, sem olhar para nada, a não ser para dentro de mim mesmo, perguntando-me sem cessar o que estava fazendo aqui...

Cruzei o portal do palácio e pisei o assoalho de madeira, indo em direção a meu salão, o mesmo onde fora instruído e aceitara a missão que me violentava, pois, mesmo que me forçasse a executá-la segundo os desígnios de Yahweh, não conseguia compreendê-los. O trono de pedra lá estava, suas formas familiares quase um alento. Sentei-me nele, sentindo a superfície fria nas coxas, costas e braços, recostando a cabeça para trás e fechando os olhos. Meu corpo cansado não era mais a morada perfeita para minha alma jovem, e talvez por isso ela viesse envelhecendo celeremente, fazendo-me perder o viço. Tudo o que amava não possuía, e nada do que possuía me era caro ao coração. Eu era certamente o homem mais infeliz do mundo, como se Yahweh impusesse a infelicidade aos que escolhe para realizar Sua tarefa. As lágrimas me brotaram pelas perdas que havia sofrido graças a essa missão, pois de nada que me fora tomado desejara abrir mão. Cada passo no caminho de realizar o que me fora imposto tinha preço mais alto que o anterior, e haveria de chegar o dia em que eu não poderia mais pagar esse preço.

Sozinho no acanhado salão real, ouvi, trazido pelo vento que circulava pelos corredores, o toque familiar de uma harpa babilônia, e quanto mais essa música se aproximava de mim, mais meu coração se desanuviava, até que as cortinas do outro lado se abriram e a figura sorridente de Feq'qesh atravessou o umbral, executando uma saltitante melodia com seus dedos cada vez mais ágeis. Ergui-me com alegria, pretendendo abraçá-lo, mas ele se curvou à minha frente, sem deixar de tocar sua canção, sentando-se ao chão com as pernas cruzadas, enquanto Jael, que o seguia sobraçando a minha própria kinn'or, atirou-a de seu invólucro de pano rubro e a entregou em minhas mãos. Meus dedos hirtos e endurecidos não sabiam o que fazer com ela: desde que descobrira ter perdido a fita de tarshatta, abandonara completamente o instrumento, tornando-me escravo de minha própria depressão. A melodia que Feq'qesh tirava de sua harpa era contagiante, e meus dedos, quase como por vontade própria, se puseram a acariciar as cordas de minha harpa, timidamente a princípio, mas logo após com cada vez mais vigor e segurança: cruzei as pernas sobre o trono de pedra, apoiando a harpa na curva do joelho esquerdo, e deixei que meu espírito, falando através de meus dedos, dialogasse com a música de Feq'qesh, fazendo-a também ser minha.

Não sei quanto tempo tocamos: mas me recordo que a última das canções era uma que eu nunca tinha ouvido, e que, apesar de sua forma em tudo similar à de um salmo religioso, certamente não o era, pois tinha alguma coisa a mais, e os versos que Feq'qesh entoava com voz poderosa e suave me caíam no espírito como um bálsamo:

— Profeta não é o conhecedor de tudo que se dará, mas sim o poeta que nos mostra um dos muitos futuros possíveis...

Em meio à estranha melodia que sustentava esses versos, percebi com um susto serem eles o bálsamo de que meu coração ferido necessitava: a mágoa que Ageu me havia plantado na alma, com sua promessa de ódio absoluto por parte de meu povo, desvanecia-se lentamente, à medida que a compreensão do verdadeiro papel do profeta a substituía dentro de mim. O que Feq'qesh me dizia, através de sua música, era que Ageu não tinha a última palavra sobre o meu futuro, mas me alertava para a possibilidade de que ele acontecesse, e que estava em meu poder aceitá-lo ou modificá-lo. Finalmente eu compreendia o livro de infinitas páginas onde residiam infinitas histórias, que eu uma vez imaginara: se uma das histórias que nele estavam escritas não me fosse agradável ou satisfatória, eu poderia perfeitamente saltar para outra, escolhendo em meio a tudo o que já estava escrito o que me seria melhor e mais adequado. Ergui minha voz, juntando-a à de Feq'qesh, e quando terminamos a canção com um floreio, minha alma estava em paz. Pelo menos naquela noite, a música me havia feito compreender que, para que a vontade de Yahweh se realize, basta que desejemos o mesmo que Ele, pois todas as vontades são a Vontade de Yahweh.

Feq'qesh falou muito pouco, enquanto eu, movido por extrema e inesperada lucidez, narrei o que acontecera desde a última vez que nos víramos, tirando por mim mesmo as conclusões sobre tudo o que se passara. Cada vez que eu questionava meu mestre sobre uma dessas conclusões, era recebido apenas por seu estranho sorriso, que me levava a revê-la e reorganizá-la no território de meu interior, transformando-a em mais uma conclusão sólida, organizando-as todas umas sobre as outras, como se fossem as paredes de um templo que se erguesse dentro de mim, do qual todas as conclusões e certezas fossem pedras essenciais, e algumas delas as pedras de canto, fundamentais para seu erguimento perfeito.

A boca de Feq'qesh só emitiu palavras quando, ao ouvirmos as trom-betas que indicavam o início da manhã, vimos que eu passara a noite inteira dando-lhe notícias de mim, sem que o sono me tivesse coberto com seu manto, e mesmo assim me sentindo leve e descansado como desde muito antes não me sentia. Meu mestre pôs a mão sobre meu braço e disse:

— Teu talento como músico cresce a cada dia, e quanto mais tu te compreendes, maior ele se torna.

— Me compreendo tão pouco, meu mestre: nunca, antes desta noite, havia perscrutado de tal maneira o que me forma o espírito. Hoje, vejo que se o que tenho em minha vida não me agrada, também já não me enoja...

Feq'qesh riu mais ainda, erguendo-se do chão sem nenhum cansaço:

— Fizemos algum progresso, portanto: recordo-me de um tempo em que nada do que vivias te dava prazer ou alegria. Essa tua satisfação é muito nova, e muito interessante.

Suspirei, resignado:

— E o que me resta ser, meu mestre: se não encontrar nenhuma satisfação no que tenho, de que maneira viverei? Se minha vida se limitar a ser um embate infinito entre o que tenho e o que desejo, nada farei, porque se não desejo tudo o que tenho, a verdade é que não tenho nada do que desejo.

— Mas isso não deve ser verdade: o que desejas tanto assim que não podes ter?

Pensei em mudar de assunto, mas não pude: sempre que minha alma se confrangia, a figura de Sha'hawaniah nela se instalava, enfraquecen-do-me com suas promessas nunca realizadas, preenchendo-me do mais alucinante vazio, que me impedia até mesmo de fruir o que me era dado. E por não suportar mais isso, abri meu coração para Feq'qesh, dizendo-lhe do poder que essa mulher tinha sobre mim, e de como esse poder aumentava cada vez que eu me encontrava enfraquecido. Meu mestre me ouviu com extrema atenção e, depois de uma pausa, disse:

— Ela sobrevive da tua fraqueza, pois é dessa fraqueza que se alimenta. Portanto, quando estás forte ela se enfraquece, e és tu que dela te alimentas. O que tu sentes ela também sente, pois sois opostos e complementares, Sol e Lua a perseguir-se eternamente pelo Universo, sem nunca tocar-se. A Lua depende do Sol, pois é dele que vem a sua luz, mas o Sol, sem a Lua, não tem em quem refletir-se. Pensa nisso.

Feq'qesh se ergueu, deixando-me atônito: não havia compreendido nada de Sol e Lua refletindo-se um no outro, mas percebia muito bem o que meu mestre queria dizer ao me mostrar que eu e Sha'hawaniah talvez fôssemos sempre caça e caçador, e que nosso encontro talvez estivesse determinado a nunca ocorrer. Feq'qesh pegou minha harpa, guardando-a em seu invólucro de pano vermelho, colocando-a ao lado de Jael, que dormia a sono solto sobre um tapete: havia ficado a nos ouvir, e quando o sono o assomara, entregara-se a ele, embalado por nossa música, que me fizera esquecer sua existência. Parei ao lado dele, olhando-o, e Feq'qesh me disse:

— Os amigos que perdeste te farão muita falta, é verdade, mas outros surgirão que ocuparão seu lugar, para que não lhes sinta tanto assim a ausência. Acredita em teus irmãos da pedra: o que te dão é a coisa mais próxima da amizade. E mesmo quando essa amizade estiver parecendo destruída, lembra-te que acima dela existe a fraternidade dos que trabalham na pedra, que está acima de tudo, e não se confunde com os pedreiros que dela fazem parte.

Tocou no ombro de Jael, que se moveu em seu sono, exibindo a marca triangular de nascença em sua coxa, enquanto espreguiçava e se erguia, estremunhado. Feq'qesh sorriu e entregou-lhe a harpa, para que a carregasse, enquanto me dizia:

— Aproveita todos os momentos de solidão para trabalhar tua música: ela por vezes te será o único alento, e não te faltará nem mesmo quando te sentires abandonado por teus irmãos. E se mesmo assim ela for incapaz de te aplacar a alma, lembra-te de Yahweh e daquilo que Ele te deu para que faças o que deves fazer.

As palavras de Feq'qesh nunca tinham sido tão categóricas: parecia uma lição diferente das que sempre dera. Por trás de seu eterno sorriso de mofa, havia um brilho triste, refletido em seus olhos. Jael se ergueu e abriu os reposteiros de minha câmara pessoal, por trás do trono, onde os trajes que eu deveria usar nessa manhã já me esperavam, dobrados sobre um escabelo, encimados pela coroa de ouro e esmalte. Entrei, e a jarra de água fresca que ali estava serviu para que eu matasse a imensa sede que sentia, além de encher a bacia na qual lavei as mãos e o rosto, refrescando-me para enfrentar meu primeiro dia como senhor da Jerusalém reocupada. Vesti-me, ouvindo por trás das pesadas cortinas, que antes eram permanentemente marcadas pelas sombras protetoras de Heman e Iditum, o burburinho dos que entravam na sala do trono para ter comigo uma audiência.

Esse primeiro dia foi um desastre: ao atravessar os reposteiros, fui recebido por uma alaúza imensa, gritos e imprecações, punhos erguidos, já que todos consideravam seus próprios problemas mais importantes que os dos outros, exigindo que eu lhes desse toda a minha atenção antes de ouvir a quem quer que fosse. A meu lado, um Yeoshua carrancudo, sentado no trono que deveria ser meu, já que eu ocuparia o de meu tio Sheshba'zzar, sequer me dirigia o olhar: cercado por seus acólitos mais conservadores, mantinha um ar de impenetrabilidade irritada, e a cada palavra minha ouvia o que seus seguidores lhe diziam ao ouvido, provavelmente fundamentando suas palavras numa antiga lei que ninguém conhecia mais que eles. Atrás de nós, acocorado e girando o cajado entre os dedos, estava Ageu, a quem ninguém dava atenção direta, mesmo que de sua boca saísse a palavra divina que solucionaria todas as questões. Éramos rei, sacerdote e profeta, o triângulo de poder que comandaria o reerguimento de Jerusalém, ainda que eu soubesse de antemão ser isso impossível.

Meu sogro Jedaías, descendo do patamar onde estava, ao lado de Yeoshua, vociferou:

— Como sacerdote de Yahweh e sogro do Príncipe da Paz, exijo ser atendido imediatamente. — Pois eu morava na mesma rua que a mãe do tarshatta, na Grande Baab'el, e nossas famílias eram muito amigas! — Uma mulher muito gorda enfrentou Jedaías, com a voz esganiçada. — Não te reconheço nenhum direito maior que o meu! Onde estavas quando eu e a mãe dele freqüentamos juntas a mikhvah do teVaviv?

Jedaías ia responder, mas um velho de longas barbas e vestes babilônias ergueu sua voz cansada:

— Não tenho onde morar! Desocupados invadiram a casa de minha família e se recusam a sair!

— Dobre a língua ao chamar-nos de desocupados! — Dois labregos de cabelos hirsutos saltaram à frente do velho, e o maior deles ergueu um punho à frente de seu rosto. — Nossos avós já viveram naquela casa, e depois nossos pais, e nós também, e agora nossos filhos! Se foste para a Grande Baab'el e abandonaste tua casa, o problema não é nosso!

— Exijo que seja respeitado o antigo direito de propriedade! Tenho testemunhas de que ainda no tempo de Salomão a casa era nossa!

Jedaías fez um ruído de menosprezo:

— Isso não tem a menor importância! Se a casa é tua, entra nela! E deixa que assuntos mais importantes possam ser tratados!

— As terras de minha família foram tomadas por gente que nem sequer conhecemos, meu príncipe! — Uma família de plantadores abriu caminho à força, a mulher com dois filhos pequenos, um em cada anca, e o marido tinha o rosto picadinho de bexiga. — Eram terras de qualidade, onde vicejavam figueiras e amendoeiras...

— Meu pai sempre falava dessas terras, e dizia que, no dia em que retornássemos a Jerusalém, elas estariam nos esperando!

Essa frase do irmão mais jovem do plantador foi recebida com escárnio por alguns homens que carregavam cajados, principalmente um muito suado e de olhos arregalados:

— As figueiras e amendoeiras secaram todas! Tivemos que plantar oliveiras e videiras, que não precisam de terra úmida. Foi o melhor que pudemos fazer com aquela terra amaldiçoada onde nada nascia!

— Terra amaldiçoada? É assim que tratas o campo de minha família? Não sei onde estou que não te amaldiçôo com meu cajado em tua cabeça dura...

Avançaram uns para os outros, e toda a assembléia tomou partido, enquanto outros esganiçavam seus pedidos de novas casas, novas terras, dinheiro, mais comida, roupas novas, expulsão de inimigos, em suma, uma confusão sem fim, onde cada um exigia apenas o que considerava ser seu direito indiscutível, sem pensar no que seria o direito alheio.

Foi difícil organizá-los: tive que mandar separar homens de mulheres, depois pedi que cada família trouxesse apenas um representante, capaz de defender seu caso frente a seu rei, e que os outros ficassem do lado de fora da esplanada, aguardando pacientemente que eu fizesse a distribuição da justiça. Essa idéia foi muito mal recebida, mas a presença de Théron e de seus soldados armados, que organizadamente se colocaram entre mim e a assembléia descontrolada, acabou por tirar do salão aqueles que eram supérfluos e serviam apenas para complicar ainda mais uma situação que já era suficientemente confusa. Quando conseguimos algum silêncio, eu lhes disse:

— Povo de Jerusalém, é preciso calma e muita paciência. Cada vez que tentarmos apressar a solução de um problema sem que ele tenha sido completamente entendido, estaremos correndo o risco de dar-lhe um fim inglório, pela pressa.

Yeoshua gritou, de seu lugar:

— A solução de todos os problemas está em Yahweh! Basta ouvir o que Ele tem a dizer, e imediatamente todos os problemas estarão resolvidos!

Um gosto amargo de inadequação me assomou a alma: meu velho amigo parecia colocar-se contra mim, advogando uma posição de respeito submisso àquilo que ele chamava de "Vontade de Yahweh", sem que nada garantisse a verdade dessa afirmativa. Passei a mão na testa, emoções intensas girando em meu coração: perdera não só a amizade que tanto prezava, mas também o apoio oficial dos mais velhos entre os mais velhos, que só estariam a meu lado se eu lhes fosse submisso e obediente. Decidi fazer exatamente o que deveria fazer, da maneira mais racional possível, e lhe disse:

— Yeoshua, a vontade de Yahweh está em todos nós: basta ouvi-la com os ouvidos do coração, se estiver limpo de preconceitos, Como posso julgar sem conhecer cada caso? Só depois de ouvir todas as partes, posso permitir que Yahweh fale através de minha boca: não desejo correr o risco de ser injusto por desconhecimento.

Yeoshua mordeu os lábios, olhando-me com frieza, enquanto a assembléia, na sua maioria, aplaudia minhas palavras. E eu, durante todo o dia, fiquei sentado ao trono, ouvindo um lado e outro de inúmeras questiúnculas, todas envolvendo valores materiais, posses de terra, direito de compra e venda sobre animais e colheitas, a mixórdia de sempre. De uma coisa no entanto tive certeza absoluta: pelo menos metade dos que vieram à minha frente ficaram satisfeitos, porque os que não foram aquinhoados com a realização de sua vontade saíam pisando duro e vociferando contra mim. Creio até que nem mesmo a metade, porque vários casos houve em que nenhuma das partes se mostrou satisfeita com minha decisão: mas isso teve um lado positivo, porque imediatamente, à minha frente, uniram-se contra mim, saindo a deblaterar contra minha pessoa, depreciando minha capacidade de dar-lhes julgamento justo, sem perceber que, ao unir-se contra mim, estavam mais unidos que nunca uns aos outros. Todas as vezes em que isso acontecia, eu olhava para Ageu, que não tirava os olhos de mim, e sua profecia me bailava na memória: eu a parecia estar realizando a cada instante, e com precisão, ao me fazer odiar pelos que me passavam à frente.

O coração se me foi amargando no peito, e quando as trombetas do final do dia soaram, a sala ainda cheia foi esvaziada, restando para o dia seguinte os inúmeros casos que eu não tivera tempo de analisar e julgar. Quando se fez silêncio, coloquei o rosto entre as mãos, sacudindo a cabeça com violência, e ouvi a voz de Yeoshua:

— Se me ouvisses, certamente sofrerias menos: aprende que os devotos de Yahweh merecem ser tratados com mais consideração que os outros.

Olhei meu amigo, uma face quase que completamente desconhecida, graças às palavras que me dizia:

— Yeoshua, isso não é verdade: somos todos criaturas de Yahweh, e ele não faz nenhuma distinção entre nós...

— Isso é o que tu pensas: nós que o glorificamos a cada momento merecemos ser tratados de acordo. Como podemos ser confundidos com esses que só se recordam de Yahweh para exigir-lhe a realização de seus desejos mesquinhos, sem sequer recordar-se de agradecer-lhe as benesses com que Ele os cobre?

Suspirei, subitamente seguro de mim: a distância entre mim e Yeoshua multiplicava-se gradativamente, e eu já me sentia a milhas dele, mais longe do que quando o vira ficar para trás, ao descer o Eufrates pela primeira vez, fugindo da Grande Baab'el. Não havia como encurtar essa distância, por mais que eu o desejasse, e era preciso que ali, naquele momento e lugar, ficasse definido de uma vez por todas o papel que cada um de nós exerceria desse dia em diante:

— Pior que o preconceito, Yeoshua, é o privilégio que nasce de ter se somos todos iguais, segundo as leis de Yahweh, tens que aceitar que eu, como governante de Jerusalém, preciso procurar o equilíbrio dessa igualdade entre todos os que de mim se aproximam.

— Errado, Zerub, totalmente errado! Os melhores devem sempre estar colocados acima dos piores... assim tem sido o mundo, desde seu início!

— Tens certeza disso, Yeoshua? — Minha voz era um fio, de cansaço. — Crês verdadeiramente que existam diferenças entre as criaturas, aos olhos de nosso Criador?

Yeoshua abriu a boca para responder-me, mas o que viu em meus olhos o calou, e o que restava de nossa cada vez mais tênue amizade o encheu de pena de nós ambos: ele também sofrerá por não ser um dos mais capazes, e agora se via na posição de algoz dos que também não o eram. Envergonhado, cobrindo a cabeça com o manto, desceu os degraus do trono e saiu da sala, acompanhado por um Ageu sem pressa nenhuma, que cabriolou atrás de seu grupo, esticando o cajado em sua direção como se fossem um rebanho de ovelhas que se devia cuidar muito atentamente, porque a cada dia se mostravam mais incapazes de agir como delas se esperava. Eu fiquei imerso em meus pensamentos tristes, e a sensação de estar colocado no lugar errado voltou a perfurar-me a mente. Minha decisão de enfrentar a missão que me havia sido imposta permanecia dentro de mim: mas eu compreendia cada vez menos a razão pela qual eu, um inadequado, um incompetente, um incapaz, havia sido posto por Yahweh numa posição em que poderia causar mais dano que progresso. Se algo desse errado, a responsabilidade seria toda minha, e essa idéia me esmagava o peito e me fazia suar de terror.

Eu não estava sozinho, contudo: ao longo das paredes, em silêncio total, restaram meus irmãos pedreiros, olhando-me fixamente, como que desejando livrar-me das dúvidas que se estampavam em minha face. Ananias, com sua voz grave, deu dois passos à frente. Olhei para ele e fiz-lhe um sinal para que se sentasse à minha direita, o que ele fez, sem hesitar. Quando me virei para falar-lhe, percebi que entre nós, sem que eu o visse, colocara-se Feq'qesh, que nos pôs as mãos sobre os ombros, dizendo:

— Irmãos pedreiros de Jerusalém, unamo-nos na realização da tarefa para a qual fomos destacados.

Todos os pedreiros da sala deram-se as mãos, e eu pude ver-lhes as faces iluminadas pelos archotes do salão, e não apenas pela sua luz. De dentro de cada um deles brotava um brilho inefável, e quando se deram as mãos, esse brilho aumentou consideravelmente. Os que estavam à minha esquerda se moveram para mais perto de mim, assim como os que estavam à direita de Ananias, e quando nos demos as mãos, foi como se uma corrente de energia nos atravessasse, acalmando meus temores, fazendo-me esquecer de minha insegurança e mais uma vez, ainda que momentaneamente, enchendo-me o coração de paz.

As coisas que aconteceram enquanto nossas mãos estavam dadas são indescritíveis, principalmente porque cada um de nós, certamente as percebe de uma maneira pessoal e indescritível. Palavras foram ditas, saudações foram trocadas, e quando nos sentimos repletos da alegria de estar entre irmãos pedreiros, Feq'qesh disse, com voz pausada:

— Vamos, irmãos pedreiros de Jerusalém: o lugar sagrado onde outrora se ergueu o Templo de Yahweh nos aguarda.

Feq'qesh deu-me um impulso às costas, que me fez levantar, e eu, tendo-o atrás de mim junto a Ananias, atravessei o salão do palácio saindo para o exterior, seguido por todos os irmãos pedreiros que estavam no salão, sem sentir meus pés pisando o solo. Descemos as escadarias do palácio, entrando na esplanada deserta em frente a ele, cobertos pelo manto escuro do céu fechado, vendo à nossa esquerda os archotes que marcavam a Porta do Vale, para a qual nos dirigimos. Do outro lado dela estavam Théron e seus soldados, todos também irmãos pedreiros, que nos lideraram por todo o caminho ascendente e estranhamente deserto entre o palácio e a esplanada do Templo.

Enquanto andávamos, recordei que esse caminho era o mesmo que eu havia pisado em outra noite como esta, seguindo uma procissão à luz de archotes exatamente igual a esta de que agora fazia parte. O caminho em espiral cada vez mais estreito se repetia, e por um instante senti-me revivendo meu passado. Se soubesse o que estaria por me ocorrer, da primeira vez, certamente teria voltado para a tenda e tomado todo o vinho batizado com narcóticos, como fizera meu amigo Daruj. Desejei ardentemente, enquanto dava os passos que me levavam ao local do Templo, estar de volta àquela outra noite, e dela recuar infinitamente para longe dali, longe de Jerusalém, longe da caravana de pedreiros, longe do mundo, cada vez mais mergulhado em meu próprio ser, cada vez mais afastado de meus semelhantes, a quem não podia ajudar, por ser incapaz disso. O Templo, que se desejava reerguer, era obra acima e além das forças de qualquer um, e se havia quem necessitasse dessa ilusão para encontrar um objetivo em sua vida mais ou menos vazia, eu não era um desses, pois sabia que nada podia fazer nesse sentido. Se dependesse de mim, o Templo de Yahweh permaneceria destruído e espalhado pelo solo: eu não podia erguê-lo, era o mais impotente dos impotentes, e a consciência disso me enchia de uma tristeza mansa, dolorida. Mais uma vez, o homem errado no lugar errado: Yahweh se equivocara totalmente ao me escolher para essa tarefa impossível de ser realizada.

Quando pisamos no terreno sagrado, logo após atravessar a Porta da Mishneh, algumas braças depois das ruínas de um muro, viramos à esquerda, deixando atrás de nós as ruínas do que fora o suntuoso palácio de Salomão e ladeando a parte traseira do terreno do Templo proprianente dito. Caminhando lenta e hieraticamente, viramos mais uma vez i direita, e outra, e outra vez, ficando de frente para o oeste, olhando o mar de pedras espalhadas, como se uma criança birrenta houvesse erguido um brinquedo e depois, entediada, o houvesse derrubado com o golpe de sua mão. Ali se erguera o Templo de Yahweh, e nosso silêncio era eco no imenso silêncio da Jerusalém reocupada, estranhamente adormecida nessa noite. Eu sentia os olhares de todos os meus irmãos pedreiros, ao mesmo tempo uma cobrança e uma sustentação. Não sabia o que esperavam de mim, e fiquei aguardando que alguma coisa acontecesse e me indicasse o que fazer.

À minha frente, um enxame de vaga-lumes subiu de um buraco no solo, bem no centro das ruínas do Templo, e voou em nossa direção. Eu os conhecia da Grande Baab'el, e muitas vezes quando criança os prendera em sacos de fino pano egípcio, para me divertir com seu brilho esverdeado. Mas estes que agora via eram diferentes: não piscavam como os da Babilônia, e sua luz era branca, e cada vez mais forte, à medida que se aproximavam de mim. Quando chegaram mais perto, meu coração disparou: não eram vaga-lumes, mas sim as letras do alfabeto hebraico, feitas de luz branca, voando em minha direção, subitamente me envolvendo com seu brilho, circulando à minha volta em espiral infinita. Ergui os olhos para o céu sobre a cabeça: a espiral se projetava para cima, sem fim. Eu esquecera das letras e de que através delas tantas coisas em minha vida tinham sido realizadas. Já me haviam revelado o Universo composto por elas, todas as coisas reduzidas a suas partes mais simples, e todas essas partes sendo letras como as que eu via, não de fogo negro, como antes, mas luminosas e brilhantes como pequenas janelas que desvendassem a Luz de Yahweh. Olhei para minhas mãos, banhadas pelas letras, enxergando em cada uma delas as outras letras que as formavam, umas sobre as outras, e o sangue que corria em minhas veias, também feito desse fogo divino, espalhava-se do centro de meu peito para todas as minhas extremidades.

Feq'qesh, atrás de mim, iniciou um cântico grave, imediatamente repetido por todos os pedreiros que ali estavam, e o ritmo desse cântico se articulou com o movimento das letras que a tudo cobriam e tudo formavam, numa espiral de beleza infinita. Levei as mãos à face, coberta de lágrimas e luz, e quando novamente olhei o mundo, as letras retornavam para o centro do terreno, pairando por sobre as ruínas do Templo e lentamente, uma a uma, caindo por sobre as pedras, traçando no ar linhas retas de luz, desenhando na escuridão da noite o Templo de Salomão como ele tinha sido, quando se erguia em toda a sua glória e beleza. O fantasma luminoso do esplendor do Templo me mostrava o que ele fora e o que deveria voltar a ser, e eu dei dois passos à frente, para enxergar melhor o espetáculo divino que me era dado de presente nessa noite.

Havia no buraco ao centro das ruínas um grande bloco de pedra, e era dele que a luz se projetava, como uma fonte de onde as letras de fogo fluíssem. A pedra brilhava como que iluminada por dentro, e eu vi em seu interior, ao mesmo tempo sólido e transparente, a seiva de luz percorrendo-o exatamente como percorria a mim. De repente, como algo que se rompesse, as letras se espalharam em todas as direções, molhando de fogo vivo as pedras cúbicas desordenadamente jogadas ao solo, e em cada uma de suas arestas uma letra se colocou, indicando perfeitamente o que era alto e baixo, Norte e Sul, Leste e Oeste, ao mesmo tempo que em cada uma das seis faces de cada pedra uma outra letra se inscrevia, maior e mais brilhante. Fiquei olhando as letras de luz sobre as pedras, notando haver letras iguais sobre faces iguais, como marcações que se repetissem.

Um grito escapou de meus lábios, interrompendo o cântico de meus irmãos: eu finalmente compreendia meu papel no reerguimento desse Templo. Eu era aquele que sabia qual pedra iria sobre qual pedra, e em que lugar, e em que posição e orientação, para que o Templo que um dia estivera de pé pudesse ser remontado exatamente da mesma maneira, reintegrando a obra divina que um dia se estilhaçara pela crueldade dos homens. Avancei, fixando meu olhar em uma pedra que estava separada das outras, lendo as marcas de fogo que as letras nela deixaram. Olhei em volta: num monte próximo, vislumbrei, pulsando em luz mais forte que as outras, outra pedra com as mesmas marcas. Com esforço, fui até ela, apanhando-a com as mãos e rolando-a até a primeira. Girei-a com dificuldade, até que encontrei sua posição certa, e, com uma explosão muscular de que não me sabia capaz, coloquei-a por sobre a primeira, vendo que as duas se amolgavam exatamente uma na outra, tal a perfeição de suas faces e o polimento de suas arestas, tornando-se uma só.

Era isso o que se esperava de mim: cada pedra tinha seu lugar exato nessa obra, cada uma deveria ser recolocada nele, e eu era capaz de enxergar isso. Olhei em volta: laços de luz ligavam as pedras a outras pedras, mostrando como elas deveriam unir-se, numa trama que formava uma cúpula trançada por sobre nossas cabeças com tal beleza, que caí ajoelhado ao solo, tomado de uma emoção que jamais tinha experimentado. Eu descobrira minha função no plano geral das coisas, finalmente, e o Universo que considerava inimigo estava agora mostrando-se igual a mim, todas as coisas uma coisa só, eu definitivamente integrado a elas e elas a mim, tudo conhecendo seu lugar no Universo, como eu conhecia o lugar de cada pedra da reconstrução. O pranto corria livre e solto, enevoando minha visão, mas isso não fazia nenhuma diferença: mesmo de olhos fechados, eu ainda via a trama de luz que me cercava e da qual era parte integrante.

Feq'qesh falou mansamente atrás de mim:

— É preciso encontrar a primeira pedra, aquela que fica no canto noroeste, pela qual a obra deve se reiniciar.

Girei a cabeça, procurando, e algumas braças à minha frente uma pedra pulsava mais forte que as outras. Fui até ela, colocando-lhe a mão na face superior, sentindo o calor e vida que corriam por dentro dela, percebendo que essa vida estava tanto nela quanto em mim. Esta pedra também tinha sido esquadrejada por um homem, em quem o poder de Yahweh se manifestara como agora se manifestava em mim: éramos, eu e esse homem, apenas agentes de Yahweh. Pus-me de pé, virando-me para meus irmãos, dizendo:

—É esta a pedra do canto.

Quatro irmãos se aproximaram, e eu os fiz girar a pedra até que estivesse na posição correta, perfeitamente apoiada numa depressão do solo que tinha exatamente as suas medidas. Olhei para o lado e pude ver exatamente que pedras a ela se uniriam e que pedras sobre ela deveriam ser colocadas: bastava apenas remontar o plano original, e todo o Templo seria como que uma pedra só, nunca separado em partes, renascido em glória e beleza.

Quem teria sido esse homem, esse irmão de quem me sentia tão próximo nesse instante quase insuportável? Ajoelhei-me novamente, com a garganta apertada pela emoção, e li as letras que esse irmão havia traçado na pedra ao terminar seu trabalho sobre ela, assinando seu nome: Johaben.

Nesse instante, o Universo tornou-se integralmente um só comigo e com Johaben e com todos os irmãos pedreiros desse lugar, desse tempo, do passado e do futuro, porque a pedra é sempre uma, mesmo que desunida em suas partes, e os pedreiros, não importa o que nos aconteça, também somos todos um só.

 

Como qualquer outro homem, saí dessa noite de indescritíveis emoções certo de que a partir desse instante tudo estaria justo e perfeito, que nada interromperia o caminho de sabedoria, força e beleza pelo qual eu ansiava, e que agora seria feliz para sempre. Como qualquer outro homem, eu estava totalmente equivocado: esse desejo intenso era apenas isso, um desejo. A felicidade é como o manah do deserto, existindo apenas em pequenas quantidades, na medida exata para ser usufruída a cada dia, porque não se conserva nem pode ser acumulada. É preciso lutar por ela a cada dia, praticando-a como se praticam os exercícios físicos ou as escalas em uma harpa, com decisão e firmeza. Se em algum dia esse exercício não é praticado, aquele dia é como um dia sem manah, pois não colhemos a felicidade que deveria cair do céu sobre nossas cabeças.

Acordei em estado de graça, depois de retornar ao palácio iluminado para dormir o raro sono dos justos: a manhã me encontrou com o espírito tão alegre, que nada pôde deteriorar-me o humor. Os julgamentos que tive de proferir, ridículos em sua pequenez humana, pouco me afetaram: minha mente estava ainda nas imagens de luz que as pedras me haviam exibido, mostrando-me como o Templo deveria ser reerguido, e qualquer coisa era menos interessante que isso. Uma ou duas vezes, precisei ser chamado de volta ao mundo real, porque minha mente divagava, enxergando com os olhos da memória as letras nas arestas das pedras cúbicas, sabendo, sem estar consciente disso, que aquela é a maneira como tudo se organiza no Espaço e Tempo do Universo de Yahweh. À noite, quando entrei em meus aposentos, pedi a Jael que me trouxesse pergaminho e tinta egípcia, e diligentemente tracei, exatamente como via em minha mente, um cubo transparente com as letras em suas doze arestas, para garantir que as pedras do Templo estariam em suas posições corretas. A maneira de descobrir quais pedras ficariam ao lado ou em cima de outras era diferente: os conjuntos de duas, três ou mais letras eram essenciais para que pudéssemos fazer a remontagem perfeita, pedra após pedra, reerguendo as paredes com precisão.

O encontro das seis direções, alto, baixo, Norte, Sul, Leste, Oeste, formava as doze arestas de cada pedra cúbica, e eram sempre as mesmas, tendo em cada uma delas as mesmas doze letras: mas as faces tinham sempre uma letra beth inscrita, dando-me a certeza de que tudo sempre se iniciava com beth. A pedra de canto, onde eu encontrara inscrito o nome de Johaben, fulgurava com um imenso beth em cada uma de suas faces, dentro do qual eu pudera ver outras letras de tamanho menor, mas, mais do que isto, era a vibração desta pedra que me indicava ser ela a primeira entre todas.

Jael ficou observando meu traçado, com a atenção que sempre tinha para com meus negócios, e me perguntou:

— Quem teria sido esse Johaben, filho de ninguém, que marcou a pedra de canto que meu rei encontrou?

— Não sei, Jael: se não houver registro entre os irmãos da pedra sobre esse pedreiro, certamente o encontraremos na história e memória de meu avô Salomão. Precisamos descobrir quem foi esse irmão, cuja pedra de canto foi escolhida por sua perfeição para ser a primeira entre todas as pedras do Templo.

Espreguicei, enquanto Jael recolhia meus pergaminhos e me perguntava:

— Meu rei está pronto para receber uma de suas esposas?

Ri, aliviado: havia esquecido que a vida de rei tem tanto prazeres quanto desprazeres, e já não era sem tempo que eu retomasse minha vida saudável, emprenhando minhas mulheres e gerando uma forte casa real para Jerusalém, seguindo o exemplo de meus avós David e Salomão. Ergui-me de meu escabelo e disse a Jael:

— Acompanha-me à sala do harim: hoje pretendo eu mesmo escolher aquela que me fará companhia.

Seguido de perto por Jael, também de bom humor, atravessei os fundos de meus aposentos, seguindo pelo corredor recém-erguido que levava a uma nova ala, construída especificamente para que nela morassem as esposas do rei. Um outro corredor à esquerda levava aos aposentos de meu tio Sheshba'zzar, o eterno ausente, perdido nas brumas de sua idade e seus desregramentos: mas o vestíbulo que atravessamos estava cheio dos ruídos e sons de muitas mulheres juntas, rindo, conversando, gritando e choramingando. Quando cheguei à porta, os dois guardas do harém, percebendo minha presença, puseram-se de prontidão, e um deles gritou para dentro da sala, abrindo as portas de par em par:

— O Príncipe da Paz, tarshatta de Jerusalém, Zerub, ben-Salatiel, ha-David.

A gritaria dentro da sala foi imensa, e os ruídos de passos apressados era quase um tropel de cavalos nervosos: esperei alguns instantes e afastei os reposteiros, entrando em meu harém. A confusão entre as quase trezentas mulheres que ali estavam, a maioria acompanhada de suas servas, fazia com que o harém parecesse mais uma feira que um dormitório. As cores dos panos coloridos que as envolviam e a seus pertences, tudo iluminado por centenas de pequenos candeeiros de cerâmica cheios de óleo, davam ao lugar um ar tão excitante, que me senti o homem mais poderoso do mundo, a ponto de poder escolher entre as melhores aquela a quem daria o prazer de minha companhia. Fui atravessando a sala, e elas, cada uma à sua maneira, buscaram atrair minha atenção, com olhares, meneios de quadril, gestos de pudor e de luxúria, movimentos de dedos e línguas que me fizeram nascer fogo no baixo-ventre. Atravessei o salão, indo até o seu término, e retornei, tendo marcado onde estavam as que poderiam vir a me interessar. Das cinco que havia definido como favoritas, apenas uma não vi, e foi a esta exatamente que procurei, da segunda vez que passei por elas. Virei-me para Jael, que estava no umbral, e perguntei:

— Como se chama a filha de Belsan, o amigo de meu pai?

— Rhese, meu rei.

— Onde está ela? Não a vejo...

Jael gritou o nome de Rhese, gerando nas outras mulheres um muxoxo de desprazer, fazendo-as abrir alas e retornar a seus afazeres interrompidos por minha visita. Em uma janela ao fundo do grande salão, absorta nos cuidados de uma planta mirrada que estava em um vaso, estava a pequena Rhese, de quem agora me recordava, por tê-la visto várias vezes quando ainda éramos crianças e seu pai a havia prometido ao meu, como minha futura esposa. Dirigi-me a ela, com um falso ar de seriedade no rosto:

— Ocupada demais para me dar um pouco de atenção, Rhese? Ela corou, mas curvou a cabeça, ocultando a face com o véu, por ver que Jael, sem passar da porta, a olhava. Depois falou, em voz baixa:

— Tú és meu e eu sou tua, meu senhor. Nada neste mundo pode prender-me a atenção se estiveres presente...

As outras mulheres reagiram, com um muxoxo surdo: virei a cabeça ligeiramente por sobre o ombro, olhando-as de soslaio, e o silêncio que se fez foi imediato. Voltei os olhos para Rhese, que ainda mantinha a cabeça baixa, mas com os olhos firmemente fixos em mim, e avancei na direção dela:

— Que planta é essa que te prendia a atenção como se fosse eu mesmo?

Num vaso de argila, decorado com pequenos sinais feitos de linhas retas e curvas, estava uma planta mirrada, da qual despontavam três folhinhas de verde muito escuro. Era uma muda de vinha, com seu caule retorcido e pequenas espirais de verde mais claro, e Rhese trazia em sua mão direita um pequeno púcaro de água, com a qual regava parcimoniosamente os pedriscos em que a vinha estava plantada:

— É uma estaca do vinhedo que ficava ao fundo de nossa casa, no teVaviv da Grande Baab'el. Foi plantada no dia em que nasci, e não pude me separar dela: por isso, trouxe uma muda, para plantar assim que encontrar lugar adequado.

— Tolice! As vinhas não resistem a uma viagem como a que fizemos! — Era Haddasah, a filha de Jedaías, a primeira que eu havia conhecido, olhando-me com as mãos na cintura e o ventre projetado para a frente, lábios úmidos e sobrancelhas erguidas. Percebi que ela articulava uma disputa, sentindo-me orgulhoso por ser o objeto desta, até notar que Rhese estava mais preocupada com sua muda de vinhedo que comigo. Noemi, a filha de Mardoqueu, mais velha que todas as outras, ergueu a voz de sua experiência:

— Nem sempre: sabe-se de galhos de vinha que ficaram secos durante anos e que, uma vez enfiados no solo e tratados de acordo, vieram a dar frutos de sabor indescritível...

Lia, filha do samaritano Naamani, fez um ruído de desprezo com os lábios, dizendo:

— Alguém te perguntou alguma coisa?

E Eliá, a morena filha do comerciante mais rico da Grande Baab'el, secundou-a:

— Galhos de vinha podem dar frutos mesmo depois de velhos. Mulheres velhas, nunca!

Haddasah deu uma risada esganiçada, e Noemi, irada, avançou em sua direção, as unhas como garras:

— Ishtar te amaldiçoe, cadela!

A confusão das mulheres à minha volta era imensa, porque todas tomavam partido na briga, enchendo o ar de alarido sem tamanho. Senti-me entre elas exatamente como no dia anterior em meu salão, enfrentando adversários que exigiam que eu tomasse partido em seu benefício. Neste caso, enquanto minhas mulheres se ofendiam e quase digladiavam, só tive olhos para Rhese, que, absorta, voltara a cuidar de sua pequena planta. Jael gritava, os dois guardas do harém também, e enquanto isso se dava, eu e Rhese observamos a beleza das tenras folhas de uva, como se nada houvesse no Universo mais importante que elas, ou mesmo como se nelas estivesse todo o Universo.

Os gritos e maldições, por fim, encheram-me as medidas, e eu soltei um grito:

— Basta! É meu direito escolher com quem desejo passar a noite, e já fiz minha escolha! Rhese, acompanha-me.

Rhese, o cenho franzido, disse-me:

— Hoje não, meu senhor: é meu primeiro dia de véhsset...

Um silêncio imenso tomou a sala: se Rhese estava menstruada, uma outra teria que ser a escolhida, e subitamente todas ficaram novamente em paz, suaves, doces, agradáveis, o retrato exato das mulheres perfeitas, cada uma aguardando que eu fizesse minha escolha, usando de todos os artifícios possíveis para ser a escolhida. Haddasah, com seu perfume de mirta, foi mais efetiva, e, ainda que penalizado, despedi-me de Rhese com um beijo, fazendo um sinal para Haddasah, que, sorriso triunfante nos lábios, seguiu em minha companhia pelo corredor até meus aposentos, à porta dos quais Jael se despediu, deixando que usufruíssemos do prazer que nos aguardava.

Era de se esperar que dois seres tão violentamente sensuais como eu e Haddasah passássemos a noite em franco conúbio: mas tão logo eu alcancei o gozo, a imagem de Rhese me veio à mente, e eu despedi Haddasah, pedindo que ela voltasse a seus aposentos, pois queria dormir só. Ela não gostou da idéia, e saiu de minha alcova com um comentário que me deixou extremamente preocupado:

— Dorme bem, meu senhor: vejamos se finalmente plantaste em meu ventre o futuro rei de Israel...

Olhei-a fixamente, e sei que ela pensou em saudar-me em nome de sua deusa, mas minha seriedade lhe deu a certeza de que isso não era uma boa idéia, e que certamente eu retrucaria com uma menção à poderosa luz de Yahweh, coisa que certamente não lhe agradava. Quando se foi, deitei em minhas almofadas, olhando o teto, pensamentos revoluteando dentro da cabeça, como acontecia de cada vez que meu sono era substituído pela insônia, minha companheira mais constante.

Por que, depois de tanto tempo, eu ainda não havia emprenhado nenhuma de minhas mulheres? Não era velho, estava em pleno vigor de minha segunda dezena de anos, não sofria de fastio pelos jogos do amor, sendo deles um adepto mais do que simplesmente adequado, tinha semente em quantidade mais do que suficiente, e várias vezes por dia, se fosse necessário, não sendo portanto possível que pelo menos uma, entre trezentas mulheres completamente diferentes umas das outras, não pudesse engravidar de mim. Quase seis meses já se haviam passado desde que saíramos da Babilônia, e, com poucas exceções, eu as havia encontrado para os jogos do amor pelo menos uma vez: as probabilidades de falha por parte delas beirava o impossível. Se nenhuma delas tivesse qualquer impossibilidade física, o problema certamente deveria ser meu. Suei frio. Era preciso que eu cumprisse o compromisso assumido com os pais dessas mulheres, que as haviam entregado junto com seus dotes para que eu as transformasse em rainhas de Jerusalém, abençoando-as com filhos que me pudessem suceder no trono. Era este o acordo comercial que Mitridates e Yeoshua haviam feito em meu nome, tornando possível o amealhar de riquezas e o êxodo em direção à Jerusalém que pretendíamos reerguer das ruínas. Se não emprenhasse pelo menos uma delas, descumpriria o acordo e estaria em maus lençóis.

A vida é assim: fatos se sucedem a fatos, cada um deles com suas próprias particularidades, e só depois de tudo acontecido e definitivamente colocado no passado é que podemos decidir se foram bons ou ruins. Minha preocupação se ampliou nas semanas seguintes, enquanto as disputas por propriedades na cidade e nos terrenos vizinhos caíam a níveis suportáveis, por haver coisas mais importantes que disputas, a sobrevivência na cidade que lentamente se reorganizava sendo uma delas. Enquanto eu solucionava os problemas legais, observado por Ageu e criticado por Yeoshua e seus seguidores, para quem a justiça nunca era uma questão de equilíbrio, meus pensamentos estavam no não-emprenhamento de minhas mulheres. Mesmo quando eu passava as tardes em companhia de meus irmãos da pedra, colocando os blocos cúbicos em posição e marcando-os com calcário branco, na posição exata para reerguer as paredes do Templo, o fundo de minha alma ficava preenchido por esta preocupação insidiosa, que eu não dividia com ninguém.

O trabalho de seleção e classificação das pedras era intenso: sendo eu o único que sabia reconhecê-las, em alguns casos podia sentir nelas até mesmo a mão de quem as havia trabalhado e polido. Os irmãos que me seguiam as colocavam perfeitamente alinhadas no terreno, em filas que posteriormente seriam acumuladas umas sobre as outras, subindo parede após parede. Só consegui encontrar no terreno três das quatro pedras de canto fundamentais: a quarta, exatamente a do canto sudeste, não estava em lugar nenhum. Um certo dia em que deixei meu palácio para uma reunião na taberna dos pedreiros, passei por uma casa que estava sendo reformada e percebi um estranho brilho em uma parede. Aproximei-me e lá estava a pedra sudeste: eu vi as letras luminosas brilhando em suas arestas. Sustentava um muro, invertida, sua face superior voltada para a rua. Pensei em corrigir esse uso equivocado da pedra que andava procurando, mas quando me dirigi ao dono da casa, que comandava a obra, fui recebido sem nenhum respeito, porque ele não se dispunha a derrubar a parede erguida só por causa de uma pedra que encontrara e que a estava sustentando. Não houve maneira de fazê-lo entender o valor da pedra para o Templo que se reergueria: e quando eu lhe disse que para ele tanto fazia, que as pedras eram todas iguais, ele retrucou:

— Se são todas iguais, o tarshatta bem pode mandar fazer uma outra igual a esta, não pode? Eu certamente não posso: me faltam tempo, dinheiro e poder...

Por um instante, senti o sangue toldar-me a vista, e uma imensa vontade de obrigar o mal-educado a pôr abaixo a parede para devolver a pedra a seu devido lugar. Respirei fundo: eu era rei de meu povo, e não ia me dar ao luxo de bater boca com um egoísta renitente. Virei as costas, deixando-o por conta de seus negócios, disposto a traçar imediatamente um edito que obrigasse todos os habitantes de Jerusalém a devolver as pedras que tivessem tirado da esplanada do Templo, retornando em passo acelerado para o palácio. Théron, a meu lado, me disse:

— Meu rei, será difícil reerguer o Templo apenas com as pedras que antes o formavam. Várias devem ter-se perdido ou quebrado, e será preciso substituí-las. Não seria melhor reabrir as pedreiras de vosso avô, para de lá extrairmos aquilo de que necessitarmos?

Isso não me interessava: eu queria que tudo fosse feito exatamente como eu queria, porque era assim que devia ser:

— Seria a maior prova de nossa incapacidade, Théron! Se as pedras existem, basta termos paciência para reorganizá-las em sua ordem original. Por que eu as substituiria por pedras novas?

— Porque não há outro jeito, meu rei. As coisas mudam, e até mesmo as pedras vivem vidas diversas, e morrem mortes definitivas, se lhes for dado tempo suficiente para isso. Nesse ponto, as pedras e os homens somos todos iguais.

Um relâmpago atravessou minha mente: se pedras e homens mudam, tendo até mesmo eu mudado tanto em tão pouco tempo, a reconstrução do Templo poderia incluir pedras novas, porque a vida continua, sempre, inapelavelmente.

Tomei uma decisão, talvez a mais acertada em face dos acontecimentos: procuraríamos entre os milhares de pedras espalhadas na esplanada do Templo as que seriam recolocadas em seu devido lugar. Se alguma delas não estivesse disponível, ou mesmo não existisse mais, seria substituída por uma de mesmo tamanho e qualidade, que Théron, junto com os irmãos especializados no trabalho de esquadrejá-las, produziriam dentro das pedreiras de Salomão, que mandei reabrir imediatamente. Dinheiro para isso havia, como garantiu Jael, meu secretário, que agora fazia também o papel de tesoureiro, já que Mitridates, meu aVmusharif, ficara ao norte de onde estávamos, junto com seus compatriotas samaritanos, de quem não tínhamos mais tido notícias. As outras tribos em volta de nós, gente misturada e tão sem consciência de suas raízes quanto nós um dia fôramos, sentiram o sopro de renovação que a recuperação de Jerusalém significaria, e muitos dos que moravam ao norte, nos territórios que haviam sido denominados Judah depois que a guerra nos transformara em dois países, demonstraram querer reatar laços políticos e comerciais conosco, o que deu novo alento aos negócios, fazendo com que a vida lentamente fosse entrando nos eixos. Só quem não entrava nos eixos era eu. Entre manhãs de justiça e tardes de trabalho na classificação das pedras, restava-me pouco tempo para mim mesmo, e esse tempo era sempre desperdiçado, até mesmo quando eu o estendia, insone, andando como um fantasma pelos corredores de meu palácio. Se durante as manhãs era necessário que eu fosse puramente racional, não permitindo nenhum resquício de meus sentimentos nos julgamentos que deveria fazer, as tardes eram feitas de pura entrega às imagens das letras de fogo, através das quais eu determinava quais pedras iriam juntar-se a quais pedras, já que apenas eu conseguia enxergar-lhes a estrutura interna, marcada pelas letras que se desenhavam em suas faces e suas arestas. Com exceção das que nunca voltariam a seu devido lugar, substituídas pelas que Théron e meus irmãos pedreiros produziam por encomenda, mais da metade do material disponível já estava alinhado em posição correta, bastando que se iniciassem as obras para que todas as paredes se erguessem continuamente, configurando o Templo de Yahweh em seu lugar original. A harpa jazia no canto, acumulando poeira, e eu temia que quando voltasse a empunhá-la ela me rejeitasse, ficando em silêncio absoluto sob meus dedos. Até mesmo o prazer físico de que dispunha para aliviar-me estava prejudicado, pois lia nas faces de cada uma de minhas mulheres a poderosa dúvida sobre a infertilidade da Casa de David, de que eu era o último representante. Meu irmão Shimei, ainda jovem, levaria alguns anos para estar em idade núbil, e nosso reino não tinha mais como aguardar com paciência que eu finalmente começasse a fertilizar as trezentas mulheres que possuía, isso sem contar as novas, que chegavam em ritmo acelerado a cada acordo feito com cada tribo de que éramos vizinhos, acompanhando o dote que nos fazia tanto bem.

Fui franco com Jael, que me questionou o ar de preocupação:

— Meu irmão, temo que a incapacidade de produzir filhos seja minha. Não vejo nenhum motivo para isso, mas, depois de tanto tempo, não é possível que pelo menos uma delas não esteja grávida...

— Por que não te consultas com Ragel? — Jael não hesitou em me dizer isso. — Seu talento de médico certamente te ajudará a descobrir o que está acontecendo, e quem sabe ele não terá a solução para teu caso?

— E como farei isso? Se mandar chamá-lo ao palácio, isso criará tal comoção, que certamente gerará inúmeros boatos sobre a doença incurável do rei... e como posso sair pelas ruas e entrar em sua oficina de médico sem com isso chamar a atenção de todos?

Estávamos andando pelas ruas entre a esplanada do Templo e meu palácio, e Jael, subitamente, pôs a mão na cabeça e um joelho ao solo, como se estivesse com vertigem. Segurei-lhe o braço e ele disse, alto o bastante para que os que nos acompanhavam pudessem ouvir:

— Não me sinto bem, meu irmão. Leva-me ao médico...

Por um instante hesitei, mas, ao ver o olhar falsamente sofredor de Jael, entendi tudo: ele, com esse fingimento tão tosco, me permitiria ir até Ragel sem perturbar demasiadamente os que nos cercavam. Amparei-o com os braços, eu mesmo fazendo cara de preocupado, e gritei:

— Onde fica a oficina de Ragel, o médico? Vamos! Meu irmão Jael está passando mal!

Em pouco tempo, atravessamos os quarteirões que nos separavam de Ragel, chegando a uma casa ampla perto da antiga Porta das Águas, à beira da fonte de Gion. Quando lá entramos, depois de dispensar nossos acompanhantes, vimos Ragel cuidando de uma ferida com cheiro enjoativo na perna de um velho, mas ele logo ergueu a cabeça enca-necida, os olhinhos apertados, cheirando o ar que nos separava e dizendo:

— Meu rei e meu irmão! A que devo a honra desta visita? Ragel estava cada vez mais magro e curvado para a frente, e seus olhos, quando os abria, mostravam-se cobertos de uma película esbran-quiçada, através da qual ele certamente tinha extrema dificuldade de enxergar. Seu nariz abençoado, no entanto, substituía a visão, e, depois que nos beijamos na face esquerda, ele me apalpou a face, detendo-se em alguns pontos dos zigomas e da fronte. O velho que lá estava, com a perna finalmente enrolada, fez uma reverência e saiu manquitolando, deixando sobre a mesa de trabalho de Ragel um saquinho que devia conter as moedas com a efígie de Cyro, que usávamos agora. Ragel indicou dois escabelos, onde eu e Jael nos sentamos, para ouvi-lo dizer:

— O homem que saiu tem uma ferida que não se fecha na perna que mediquei. Seu cheiro enjoativo me dá a certeza de que alguma coisa em seu sangue vai mal, por estar doce, gorduroso e grosso demais. Se ele não mudar de pasto, certamente vai perder a perna. Mas velhos como eu e ele somos muito teimosos, com extrema dificuldade de deixar de ser quem somos... principalmente depois que nos acostumamos com a dor.

— Ragel, meu irmão, ninguém se acostuma com a dor... —Jael riu, e Ragel ergueu as mãos em sua direção:

— Engano teu, irmão: quando se tem medo de mudar, a dor conhecida é uma bênção, porque é sempre mais familiar que a dor nova, essa que só sentimos quando deixamos de ser quem somos e passamos a ser outra pessoa.

Um instante de silêncio nos cobriu, mas Ragel logo o interrompeu, dizendo:

— Fala, meu rei: o que posso fazer por ti?

Fiquei mudo, envergonhado, sem saber como começar. O assunto era difícil, e foi apenas por estar entre irmãos que finalmente abri meu coração e expus meus temores a Ragel. Meu irmão manteve os olhos fechados o tempo todo: a luz o incomodava, e ele, sem sombra de dúvida, percebia melhor a realidade quando não a via. Meu relato foi feito a medo, envergonhadamente, por meus temores imensos: era preciso que eu, Rei de Israel e Judah, Príncipe da Paz e tarshatta de Jerusalém, deixasse extensa descendência, garantindo a permanência da Casa de David no poder. Ragel esperou que minha narrativa terminasse e disse, suavemente:

— É tudo que me tens a contar? Não me omitiste nada, nem exa-geraste ou modificaste algum fato de tua história?

— Não, Ragel: o que te disse é tudo que sei.

Ragel ergueu-se, pegou de sobre a mesa um pequeno prato de escuro vidro egípcio, lavou-o cuidadosamente com água de um cântaro, cheirou-o longamente e depois o estendeu em minha direção:

— Tenho que examinar-te a semente. Preciso que te masturbes sobre este prato.

Jael soltou um ruído abafado, e eu mesmo fiquei profundamente envergonhado: desde muito pequeno, sabia que a masturbação era um crime contra Yahweh, e os tempos que passara dando-me alívio dessa maneira em nada me ajudavam. Ragel, mesmo sem ver-me as faces coradas, percebeu minha vergonha, dizendo-me, com suavidade:

— Tenho que saber em que estado está a tua semente, e se por acaso ela está defeituosa a ponto de não conseguir florescer dentro do ventre de tuas mulheres.

Dizendo isso, segurou-me pelo cotovelo e me impulsionou para a alcova escura atrás de sua mesa, escondida por um reposteiro vermelho vivo. Quando atravessei esse umbral, a alcova estava em penumbra, mal revelando os contornos de minha própria mão. Mesmo levando-a ao membro, nada consegui: a preocupação era intensa, e durante um bom tempo fiquei desesperado, tentando encontrar em minha memória alguém que servisse para excitar-me a ponto de cumprir esse vergonhoso dever. Só a imagem quase perdida de Sha'hawaniah operou o prodígio necessário: meu membro ficou teso, e com poucos movimentos, menos ainda do que de costume, ejaculei uma grande quantidade de es-perma, com um prazer muito intenso que logo se desvaneceu. Respirei fundo e, erguendo a cortina, voltei à sala, onde Ragel me aguardava, sentado ao lado de Jael. Quando lhe estendi o pratinho, ele avançou a mão em minha direção, errando por várias polegadas: eu percebi que sua cegueira estava mais profunda do que alguma vez já fora, mas nada disse, e coloquei-lhe o pratinho nas mãos. Ele o ergueu até o nariz, aspirando profundamente o odor acre de minha semente, franzindo o cenho: tocou o material com os dedos, esfregando-os, como para testar-lhe a viscosidade. Cheirou novamente o material, virando o rosto em minha direção e dizendo:

— Aqui certamente há alguma coisa errada: o odor, apesar de fresco, não é como devia ser, e me parece rala demais, apesar da quantidade, ou até mesmo por causa disso.

Novamente cheirou o esperma, e virou a face em minha direção, o sobrecenho mais franzido que nunca:

— O cheiro não está certo: parece que aqui falta algo. Tiveste algum problema no membro, dificuldade de urinar, algum golpe violento nos testículos?

Caiu sobre mim a lembrança que se apagara totalmente de minha memória: Na'zzur e seus dois torturadores auxiliares enfiando-me o arame incandescente no canal do pênis, a dor lancinante que sentira, o providencial desmaio, e depois a difícil recuperação, que só se dera graças ao médico particular de Cyro. Meu rosto deve ter ficado sem uma pinga de sangue, porque Jael se ergueu, pressuroso, e veio até mim. Eu o afastei e me atirei sobre o escabelo, a cabeça entre as mãos, na certeza absoluta de estar para sempre desgraçado.

Foi com muita dificuldade que contei o que se passara comigo, a dor, o metal incandescente em minha uretra: sem reconhecer dentro de mim os verdadeiros motivos para isso, preferira esconder esse acontecimento no mesmo lugar onde guardava meus segredos de infância, minhas pequenas e grandes covardias, o estupro de Daruj, que poderia ter sido o meu, a insegurança que Sha'hawaniah me causava, e até mesmo o nojo que sentira quando matara pela primeira vez. Abrir a tampa dessa arca maldita e enxergar a verdade sobre meu lado escuro não foi nada agradável, mas permiti que essa sombra asquerosa saltasse à nossa frente, sentindo-me vítima dos acontecimentos, o que aliviava em parte a minha vergonha.

Jael estava com os olhos rasos d'água, Ragel mantinha o sobrecenho franzido, ouvindo sem nada dizer. Quando terminei minha narrativa, um imenso silêncio desceu sobre nós, e eu me senti o último dos homens, a quem de nada adiantava ser rei ou poderoso. Ragel ergueu-se e me disse:

— Tranqüiliza-te, Zerub: isso pode ser um mal passageiro. O corpo humano tem capacidades inacreditáveis de recuperar-se dos males que lhe foram infligidos, tornando-se novamente são e perfeito, porque somos todos filhos perfeitos de Yahweh. Vou recomendar-te um tratamento à base de emplastros e banhos, mudar toda a tua alimentação e regular-te os horários. Se o dano não tiver sido permanente, creio que em breve poderás fazer filhos.

— E se não puder, Ragel? E se esta capacidade me tiver sido extirpada?

Eu já estava mansamente desconsolado, e Jael me passou o braço pelos ombros, enquanto as lágrimas me corriam pelas faces abaixo. Ragel se pôs à minha frente, dizendo:

— Acalma-te, Zerub: não sabemos se tua incapacidade em procri-ar foi causada pelo dano físico que te impuseram ou se já eras infértil de nascença. Há muitos assim, e só o tempo nos dirá a verdade. Preciso examinar-te todo, não só teu corpo, as linhas de tua mão e os traços de teu rosto, mas também teu espírito, tua carta natal, a maneira como teu destino está traçado. Por ora, tranqüiliza-te: farei tudo que for possível para que a casa de David não feneça em ti. Vais seguir uma dieta específica, e dentro de no máximo sete dias nos encontraremos para outra consulta, na qual te examinarei mais detidamente.

Percebi que Ragel estava tão preocupado quanto eu, ou talvez mais: saímos de sua oficina e ele nem nos saudou, voltando a examinar minha semente sobre o prato de vidro escuro. Caminhei pelas ruas de Jerusalém como uma sombra de mim mesmo, e nenhuma tentativa feita por Jael para que eu abandonasse meu mutismo deu resultado. Subimos as ruas estreitas e empoeiradas: quando avistamos a esplanada de meu palácio, ela estava repleta de homens, samaritanos, em trajes de festa, liderados por Re'hum e Sam'sai, falando em altos brados com Yeoshua e seus acólitos, que também lhes respondiam com gritos violentos, só não chegando às vias de fato graças ao batalhão de soldados de Théron, que os mantinha separados uns dos outros. Aproximei-me deles com um aperto no coração: não era possível que à má notícia de minha possível infertilidade se juntasse um enfrentamento com nossos vizinhos menos queridos.

Quando Théron me viu, fez um sinal a seus soldados, e um pequeno grupo deles imediatamente me cercou, protegendo-me degraus acima até o pátio de pedras em frente aos portões fechados do palácio. Me vi cercado por contendores irritadíssimos, alguns quase apopléticos, liderados pelos amigos do passado, exigindo-me uma tomada de posição. Eu deveria tomá-la por ser, ali onde estávamos, o distribuidor da justiça, mesmo que com isso viesse a me indispor com ambos os lados, como invariavelmente acontecia desde que eu fora guindado a esta posição. Feq'esh me dissera que a justiça perfeita é o maior atributo divino dentro de nós, e que exercê-la com o máximo de nossas habilidades é a maior glória a que um homem pode aspirar. Nesse momento, no entanto, eu desejava apenas estar longe dali, considerando-me incapaz de espalhar uma justiça que não florescia dentro de mim. A verdadeira justiça deve sempre descartar crenças, amizades, opiniões e até mesmo laços de sangue, e eu, com toda a sinceridade, nunca estivera menos preparado para isso: sentia-me o último dos homens, dominado pela vontade incompreensível de um deus incontrolável.

As faces iradas de Re'hum e Sam'sai dançavam em frente aos meus olhos. Qualquer encontro com samaritanos ou seguidores de Yeoshua, guindado à posição de sumo-sacerdote pelos fatos políticos, me era profundamente desagradável. O mormaço constante, as preocupações, o cansaço físico, tudo me deixava ainda mais irritado.

Re'hum esbravejava:

— Somos devotos de Yahweh. Temos o direito de participar da reconstrução de Seu Templo.

— Não sois verdadeiros devotos de Yahweh. —Yeoshua estava bem preparado. — Nascestes assírios e só vos tornastes devotos de Yahweh por medo dos leões que infestavam a Samaria, onde os conquistadores vos obrigaram a viver. Se Yahweh vos livrou dos leões, isso não vos torna verdadeiros filhos d'Ele!

— Então agora a antigüidade é o que define um verdadeiro devoto? — Sam'sai tinha os lábios apertados, enrugados na face lisa. — Quantos de vós passaram mais de cem anos adorando a outros deuses, colocando-se agora na posição de únicos e verdadeiros adoradores de Yahweh?

— É nosso sangue quem nos declara filhos verdadeiros de Yahweh. Descendemos das doze tribos, em nossas veias corre o sangue de José e seus irmãos, filhos de Jacó, filhos de Isaac, filhos de nosso Pai Abraão.

Um velho samaritano saltou à frente:

— Também somos descendentes de Abraão. Somos filhos de seu filho Ismael.

Yeoshua franziu os lábios, num muxoxo:

— O filho da escrava? Isso não vale nada.

A gritaria recrudesceu, ofensas encheram o ar, e eu me sentia um peixe fora dágua. Cyro me ensinara que todos os homens eram iguais, não importa de onde viessem ou quem fossem seus antepassados, e a experiência entre os irmãos da pedra, entre os quais havia de tudo, até mesmo samaritanos, só reforçava a minha crença nessa igualdade, pois ela se faz homem a homem, sem que qualquer outro fator tenha importância. O preconceito que envenenava os dois lados dessa questão sem solução era confortável, no entanto, porque os desobrigava de analisar os fatos, deixando-os impor suas idéias da maneira que podiam, sempre a mais destrutiva possível.

Olhei meus irmãos na pedra, espalhados entre a multidão, sentindo que o laço que nos unia era mais forte até mesmo que os laços de sangue de que Re'hum e Yeoshua se vangloriavam, e vendo que nisto residia nossa força e também nossa fraqueza. Sempre acima das questões religiosas e políticas, havíamos assumido a reconstrução do Templo, e, na disputa entre meu povo e os samaritanos, eu não podia defender a clara igualdade entre todos os homens. A união que praticávamos era estranha aos que não eram pedreiros: se os que agora eram inimigos se unissem contra nós, estaríamos perdidos, pois o questionamento sobre a participação de pedreiros livres na reconstrução do Templo de Yahweh faria com que os dois lados se unissem contra nós, deixando-nos entre duas forças que tudo fariam para nos destruir, por sermos a prova viva de que as diferenças entre os homens não têm nenhum valor.

Ergui os olhos e dei de cara com Feq'qesh, a quem não havia visto aproximar-se, e que me olhava com seu sorriso de sempre. Encaramo-nos por um tempo, e ele acenou afirmativamente com a cabeça, como se pudesse ler o que me ia na mente e concordasse com o que lá estava. Pela primeira vez desde que fora guindado à posição de governante, eu tinha que tomar uma decisão política que ia contra tudo em que acreditava, e faria isso em nome de alguma coisa maior: a reconstrução do Templo de Yahweh e a sobrevivência da fraternidade da pedra.

Sam'sai guinchava:

— Ismael é filho de Abraão, irmão de Isaac, é o primogênito e o primeiro a ser circuncidado como prova da aliança entre Yahweh e seu povo escolhido! Somos descendentes das doze tribos que Ismael fundou no deserto com a semente de seus doze filhos!

— Nosso pai Abraão vos rejeitou, porque Ismael era filho da escrava e não de sua verdadeira mulher! O deserto é vosso lugar!

Yeoshua estava quase apoplético: eu já não reconhecia nele o amigo que tivera na infância, vendo em suas palavras a ira preconceituosa que o tornava a cada instante mais semelhante a Re'hum. Igualados pelo ódio, estariam para sempre separados um do outro, e a mim só restava ser o artífice dessa separação eterna. Havia aprendido que os deuses a que os homens adoram são apenas aspectos diversos da divindade de Yahweh, mas, nesse momento de tristeza e crueldade infinitas, um desses aspectos teria que sobrepor-se ao outro, pois seus partidários só conseguiam entendê-los como deuses separados, inimigos divinos, comandantes da batalha violenta por sobre os corpos e vontades das criaturas.

Ergui a mão, esperando que a discussão se interrompesse, e proferi as palavras que saíam de minha mente e não de meu coração:

— Da reconstrução do Templo de Yahweh só podem participar os que somos descendentes dos nascidos em Jerusalém, porque foi a nós que Yahweh escolheu como seu povo. Agradecemos muito a oferta de nossos vizinhos samaritanos, mas é assim que será.

Gritos encheram o ar, de alegria por um lado e de ódio por outro. Nenhum dos lados sabia os motivos pelos quais eu havia tomado essa decisão, nenhum deles conhecia a verdade. Meu único objetivo era salvar a fraternidade dos pedreiros, para que o Templo de Yahweh, ponto central de nossa existência, pudesse ser reerguido em Ordem e Beleza. Os samaritanos, cercados pelos soldados de Théron, tentaram reagir, mas foram afastados de nós: quando estavam a uma distância segura, voltaram a gritar e atirar-nos tudo o que encontravam no caminho, e antes de ir embora por onde tinham vindo, Re'hum ergueu seu punho para o céu e nos amaldiçoou, reagindo aos acontecimentos que não compreendia:

— Pois se não podemos ser parte do Templo, ninguém o será. Podeis ter certeza, no que depender de nós, que ele permanecerá para sempre no chão! Este é o dever dos samaritanos, de hoje em diante: impedir que os de Jerusalém ergam o Templo de seu Deus! Tudo o que pudermos fazer para isso, faremos, e nem o sangue, a dor, os ferimentos, nem mesmo Yahweh ou a morte nos afastarão de nosso objetivo! Se não pudermos erguer convosco o Templo de Yahweh, esse Templo nunca se reerguerá!

Enquanto a embaixada samaritana retornava a seu lar, para preparar a guerra contra Jerusalém, e os acólitos de Yeoshua me saudavam como seu verdadeiro rei, por havê-los reconhecido como verdadeiros devotos de Yahweh, eu chorei. Para salvar o indispensável trabalho de minha fraternidade, eu havia garantido um futuro de guerra e destruição, e o Templo de Yahweh se reergueria sobre escombros e sangue de combatentes, sem essa Paz de que eu havia sido declarado Príncipe. O sangue seria a argamassa que uniria as pedras do Templo, e eu, o eterno responsável por seu derramamento. A profecia de Ageu era verdadeira: estava próximo o dia em que todos me odiariam.

 

O julgamento que proferi na esplanada do palácio teve efeitos inesperados. Durante algum tempo, o povo de Jerusalém, unido em torno da mais importante de todas as questões, passou a apoiar ferrenhamente a reconstrução do Templo, por causa dos samaritanos que eu havia reduzido a pó. Por alguns dias, fui o melhor rei do mundo, saudado com alegria até por quem antes me tratava como se eu fosse apenas mais um entre eles. Apesar de não ser o desejo de meu coração, acreditei na correção de minha atitude: graças a esse súbito amor de meu povo, era tratado como mélech, e se ainda não era rei efetivamente, na prática e de fato estava sendo reconhecido como tal, recebendo um respeito sem medida. Era tão grande o empenho do povo que, na primeira tarde de trabalho depois que a embaixada samaritana partira, a esplanada do Templo se tornou foco de interesse dos habitantes do lugar, um grande número deles se misturando a meus irmãos pedreiros, simplificando o trabalho que exigia grande esforço. Era belo ver pedreiros e povo unidos em um mesmo mister, como se entre eles não houvesse nenhuma diferença, e cheguei a sonhar com o dia em que não haveria mais diferença entre nós, quando todos que ali estávamos fôssemos irmãos na pedra.

Isso durou apenas uma semana. No oitavo dia de vida laboriosa, fomos surpreendidos por um ataque samaritano a uma caravana que se dirigia a Jerusalém, na travessia entre os montes Ebal e Garizim, perto de Siquém. Os componentes da caravana chegaram a Jerusalém em petição de miséria, sem nada de seu, atravessando a pé trinta milhas entre o lugar onde haviam sido atacados e uma Jerusalém desarvorada pelo inesperado da agressão. Alguns ameaçaram tomar satisfações com os samaritanos, mas Théron, o menos belicoso dos estrategistas, desaconselhou-os a isso. Os atacantes eram gente violenta e profundamente irritada, e os motivos eram claros: haviam feito questão de repetir às suas vítimas, como um aviso, que o Templo de Yahweh nunca se reergueria. Eu pretendia dar tempo ao tempo, para que nossos inimigos encontrassem um novo objetivo em suas vidas. Defendi a idéia de não haver revide, pois a melhor maneira de acabar com uma disputa é ceder, fazendo a disputa deixar de existir. Mas dentro de mim eu sabia que não seria assim, e que breve chegaríamos a um estado de guerra aberta com nossos vizinhos.

Dito e feito: a cada dia, os ataques se multiplicaram, aproximando-se mais e mais de nossas fronteiras, lavradores e pastores atacados em seus campos, casas de fazenda queimadas, plantações e celeiros destruídos e saqueados, para confirmar que o Templo de Yahweh não se reergueria, porque os samaritanos não o permitiriam. Em reunião com meus irmãos, liderados por Ananias, o assunto foi discutido. A sala da velha taberna dos pedreiros estava coalhada de gente, com pedreiros de todas as procedências, inclusive meia dúzia de samaritanos, que se isolaram em um lado da sala, conversando em voz baixa. Aproximei-me deles, que se ergueram à minha chegada, e lhes disse:

— Para que isso, meus irmãos?

— E o sinal de respeito a ti, Rei Zerub...

— Não falo de vosso respeito a mim, mas de vosso respeito a vós mesmos... — Sentei-me a seu lado, enquanto olhavam para todos os lados. — Por que vos mantendes afastados de vossos irmãos? Tendes alguma doença contagiosa, ou sois de alguma maneira diferentes dos irmãos da pedra que aqui nos encontramos?

Um deles, o mais jovem, que depois vim a saber chamar-se Hazael, ficou rubro de vergonha:

— Não se trata disso, Rei Zerub...

— Irmão Zerub, não te esqueças. — Corrigi-o, ainda sorridente. — Aqui não há nem reis nem súditos, apenas irmãos.

— Irmão Zerub, perdão, mas sendo nós samaritanos, e estando nosso povo em guerra contra o vosso, ficamos pouco à vontade entre os habitantes de Jerusalém.

Ananias se aproximou de nós e, ouvindo a última frase de Hazael, retrucou-lhe:

— Algum de vossos irmãos pedreiros vos maltratou, de alguma maneira?

Hazael estava envergonhadíssimo, como suas faces vermelhas mostravam:

— Nem por sombra, mestre Ananias! Entre nós não há nada que não seja fraternidade e respeito.

— Pois se assim é da parte dos outros, assim deve ser também de vossa parte: por que tratar-nos como se fôssemos diferentes de ti, se não te tratamos como se fosses diferente de nós?

Hazael sorriu, mostrando que a vida entre os pedreiros era um ideal que todos poderiam almejar: bastava abandonar a forma imediata e corriqueira de pensar, e logo surgia a verdade por trás dela, simples, direta, mais fácil e muito mais honesta. As verdades irracionais parecem sempre mais poderosas que os enganos racionalizados: estes podem ser corrigidos, mas os frutos da irracionalidade são amargos, perenes e irrecusáveis.

Entre os pedreiros, portanto, não havia isto ou aquilo: éramos todos iguais, e eu me sentia muito mais feliz entre meus irmãos, nem abaixo nem acima das expectativas de ninguém, do que entre meu povo, que a cada acontecimento mudava sua maneira de me encarar, como se eu fosse o responsável último por tudo que a eles ocorresse. Estávamos na esplanada, numa dessas tardes, quando não muito longe de nós um grito soou. Avancei para o local, e quando a poeira baixou, vi um corpo caído ao chão e um homem que se debatia nas mãos de alguns irmãos, enquanto outros urravam de ódio, tentando subjugá-lo: já estava bem machucado, e quando perguntei o que acontecera, disseram:

— É um samaritano que se infiltrou entre nós para nos atacar!

— Vê, Rei Zerub! Ele matou a um de nós!

O corpo emborcado na poeira estava imóvel: virei-o de frente e vi a face de Hazael, exatamente o irmão de origem samaritana que conhecera na taberna e agora ali jazia, os olhos baços fitando o nada. Com o coração estraçalhado, virei-me para o assassino, outro jovem samaritano vestido como nós: no chão, perto dele, estava a faca de metal escuro, suja do sangue de Hazael, que escorria de um buraco em seu ventre morto, empapando a terra. O jovem estava aterrorizado, mas em seus olhos havia alguma coisa além disso. Dirigi-me a ele, com o peso de minha autoridade:

— Por que fizeste isso?

A resposta veio imediata, sem hesitação:

— O Templo de Yahweh nunca será reerguido!

Um urro de ódio saiu da garganta da multidão que nos cercava: o samaritano se disfarçara como um de nós e desgraçadamente havia matado um de seus próprios compatriotas, pensando estar destruindo um inimigo. Quando lhe revelei essa ironia, ele deu um arranco das mãos de seus captores e, pulando sobre a faca que estava no chão, enfiou-a na própria garganta, debaixo do queixo, gorgolejando e morrendo. A ira da turba à nossa volta foi maior ainda: como vingar-se do assassino que já estava morto? Alguns o chutaram, outros jogaram pedras e cuspiram no cadáver, até que eu fiz com que os soldados que se haviam aproximado organizassem dois grupos para transportar os corpos até outro lugar, afastando a multidão.

A cidade fervia quando a atravessei: em todas as casas, lojas, taber-nas, oficinas, só se falava que samaritanos estavam invadindo a cidade, que um batalhão de assassinos havia matado mais de cinqüenta judeus, que havia mulheres e crianças sendo estupradas pelos que invadiam a cidade, que era preciso organizar-se e atacar a Samaria imediatamente. Em suma, a eterna mixórdia nascida do boato e do exagero, distorcendo a verdade, empanando-a com a lama de seu desespero, até que se parecesse mais com a mentira que com qualquer outra coisa.

Não ficou só nisso: os samaritanos, quando lhes devolvemos o corpo de seu assassino, recrudesceram em seus esforços contra nós, e o sítio onde o Templo deveria reerguer-se começou a ser foco de ataques cada vez mais fortes e insuportáveis. A qualquer instante podíamos sofrer o assalto inesperado de inimigos vestidos como nós, às vezes vivendo entre nós durante semanas, até realizar sua missão maldita, matando o maior número de habitantes de Jerusalém que pudessem, e suicidan-do-se logo após, deixando apenas cadáveres em nossas mãos. Durante certo tempo, devolvemos os corpos dos suicidas, deixando-os em um vale entre Shiloh e Akrabi: mas quando os cadáveres começaram a ser violados e desrespeitados, de parte a parte, proibi as devoluções:

Enterrávamos os nossos em terreno abençoado pelo Sumo-Sacerdote Yeoshua, e queimávamos os cadáveres samaritanos em um campo infértil à beira do Deserto de Judah.

Como éramos todos muito parecidos, não havendo senão diferenças muito sutis entre nós que falávamos a mesma língua, não havia como saber quem era quem num primeiro olhar. Um samaritano se vestia como habitante de Jerusalém, imediatamente tornando-se um de nós, até o instante em que se revelasse como inimigo. Se não sabíamos quem o era, qualquer um podia sê-lo, e, por princípio, qualquer desconhecido se tornava uma ameaça. No caso do Templo, era ainda pior, porque os pedreiros nada tínhamos que nos classificasse como pedreiros, a não ser o avental, as ferramentas de ofício e os segredos que nos uniam: quando um pequeno batalhão de samaritanos disfarçados de trabalhadores atacou as pedreiras, matando três dos nossos, percebemos que o Templo que reerguíamos estava sob constante ameaça. A única solução seria retomar o sistema de segurança da fraternidade, reduzindo os trabalhadores do Templo apenas aos irmãos da pedra, constantemente identificados através dos sinais, toques e palavras de nosso costume.

A decisão sobre esses sinais, toques e palavras ficou a meu cargo, e, com a ajuda de Ananias e Ragel, ordenei a Jael que anotasse as senhas e apertos de mão que identificariam os pedreiros e sua função na reconstrução. Os irmãos que trabalhavam nas pedreiras, a cargo de quem ficavam vários voluntários de Jerusalém dispostos a isso, também ganharam um sistema próprio de sinais e palavras, que nos ajudaram a separar, por assim dizer, o joio do trigo.

Enfrentamos alguma reação desmedida por parte de samaritanos infiltrados, imediatamente expulsos da cidade: um ou dois dentre eles agiram com violência e foram mortos, mesmo depois de meu pedido expresso para que se lhes mantivesse a integridade física, como prova de nossas boas intenções. Nem sempre era possível controlar o impulso de quem se sentia ameaçado, e como a postura dos samaritanos era a de constante ameaça, acabávamos por devolver-lhes esse impulso na mesma moeda. A maior rejeição, no entanto, não foi a de nossos inimigos declarados, mas de Yeoshua, a quem, pela distância cada vez maior que se interpunha entre nós, eu não sabia se ainda podia considerar amigo. Uma vez, chegando a meu salão pela manhã, depois de mais uma

insuportável noite insone, encontrei o trono cercado por seus acólitos, formando uma barreira entre mim e os irmãos pedreiros, silenciosos e atentos, aguardando o desenrolar dos acontecimentos. Yeoshua, sentado no trono pequeno ao lado do meu, me olhava com frieza extrema, enquanto atrás de nós adejava a ominosa sombra de Ageu, o profeta louco de quem nada se podia prever. Sentei-me em meu lugar, enquanto os acólitos de Yeoshua, dando-se os braços, formaram sólida parede à frente dos degraus, impedindo que os habitantes de Jerusalém pudessem chamar-me a atenção. Olhei para Yeoshua: a dureza de seus traços lhe impunha uma idade que ainda não tinha. Éramos ambos jovens, e a barba que ele deixara crescer hirsuta, como de hábito entre os religiosos, era bem mais rala que a minha. Ele manteve o olhar sobre o meu, e me disse, com o tom de um mestre a quem eu devesse obediência:

— Yahweh não está nada satisfeito com o rumo das obras do Templo. Tive vontade de perguntar-lhe se o próprio Yahweh havia dito isso, mas me contive: respirei fundo e, com perfeita inocência, questionei:

— Estamos atrasados? Yeoshua gritou:

— Tu sabes bem do que falo, Zerub! Os devotos de Yahweh estão proibidos de aproximar-se do terreno sagrado, enquanto pedreiros mestiços e sem crença definida por lá andam como se fosse sua própria taberna.

Seus seguidores murmuraram em aprovação, e ouvi na audiência outros murmúrios de concordância, como de costume. Sorri, fazendo-me de aliviado:

— Ah, mas isso não é problema: se houver entre os devotos de Yahweh quem esteja capacitado ao trabalho na pedra, estamos prontos a aceitá-lo entre nós...

— Nós não vamos nos misturar com pedreiros. Não são puros nem crêem em Yahweh, como homens decentes. É preciso higienizar o canteiro de obras e só permitir que sirva a Yahweh quem d'Ele for verdadeiramente devoto!

— Yeoshua, se essa é a tua exigência, faríamos melhor em deixar que os samaritanos tomassem conta da obra, já que se declaram mais devotos que nós, sendo inclusive capazes de matar e morrer por Yahweh, como todos sabemos... existe entre vós quem esteja disposto a isso?

O grito por parte dos seguidores de Yeoshua foi imenso, todos vociferando em altos brados, garantindo que sim, eram todos capazes de entregar suas vidas ao reerguimento do Templo de Yahweh, e que os pedreiros não só eram desnecessários, como completamente inaptos para a função. Isso sempre acontece: a turba é por natureza descontrolada e crente em seu poder absoluto, mas entre eles sempre há quem consiga pensar de maneira coerente, e foram exatamente esses os que hesitaram, quando falei:

— Então, estamos combinados: amanhã mesmo, aguardo vossa presença no sítio do Templo, e, assim que estiver provado vosso valor e capacidade, dispensarei imediatamente todos os pedreiros. Também acho melhor que uma obra dessas se faça com devoção, desde que acompanhada da capacidade de trabalho e do conhecimento da matéria.

Os seguidores mais espertos de Yeoshua se entreolharam, percebendo a camisa de onze varas em que eu os tinha metido, enquanto a maioria se regozijava com a solução que eu apresentara. Yeoshua percebeu minha manobra, enchendo-se de ira, mas nada pôde dizer, porque, publicamente, eu fizera exatamente o que ele exigia, concordara com todas as suas alegações, dando a seus seguidores aquilo que desejavam. Na manhã seguinte, nem sequer um deles apareceu no terreno da obra, e o assunto nunca mais voltou a ser debatido. A má vontade de Yeoshua cresceu assustadoramente depois disso: eu havia exposto suas fraquezas. Nunca mais falamos um com o outro sem a presença de outras pessoas, e a intimidade que um dia partilháramos, a da antiga e verdadeira amizade, esgarçou-se e rompeu-se, deixando de existir. O abismo entre nós se ampliou dia a dia, mas isso era parte do preço a pagar para que minha missão se cumprisse.

Feq'qesh me saudou com seu sorriso, quando nos encontramos nessa noite para tocar juntos, logo após o jantar:

— Aprendes rápido, Zerub: nada melhor do que fazer com que mordam as próprias línguas. Sempre que alguém te exigir uma oportunidade de mostrar-se melhor do que realmente é, deves dá-la, e imediatamente verás o acerto de tua decisão.

— Notei que assim seria: Yeoshua e seus baluartes da tradição costumam pavonear-se, como se fossem o supra-sumo da Criação, mas quando chega o momento de concretizar suas alegações, sempre recuam para o silêncio ofendido. Juro, meu mestre, que isso começa a cansar-me: não tenho paciência para ser o que precisam que eu seja.

— Pelo contrário: tens sido excepcionalmente coerente em tuas ações. Desde que retornaste a Jerusalém sua postura é verdadeiramente a de um rei, e como tal tens agido, não para a tua glória pessoal, mas sempre em benefício de tua missão.

Atirei a coroa sobre meu leito, com certa fúria, livrando minhas têmporas de seu aperto:

— Esta missão já me encheu as medidas, Feq'qesh: não há nada que eu deseje mais do que vê-la cumprida, para livrar-me dela e ir cuidar de minha própria vida.

Feq'qesh tocou uma frase jocosa em sua lira, e comentou:

— Estás melhor do que antes: quando te encontrei pela primeira vez no papel que hoje ocupas, não desejavas esta tarefa de jeito nenhum... hoje pelo menos já a aceitas. O que mais se pode desejar?

— Desejaria estar livre, meu mestre: o papel de rei é infinitamente mais árduo que o de qualquer escravo.

— Aprendeste mais do que eu imaginava, Zerub: mas pensa que tens sido feliz em tua tarefa. A maioria dos reis vive cercada de adula-dores que os seduzem, de ambições que os depravam e de desejos que os corrompem, e tu, por obra e graça de Yahweh, estás livre de tudo isso. Às vezes, creio que todos os reis deviam viver como tu, em meio ao povo, para que, uma vez guindados ao poder, soubessem claramente o que suas ações causam. Mas logo depois reconheço que se o caráter não for bom, nada os impede de ser os piores reis que puderem. Toma tua lira e toquemos: lava teu espírito na música.

Tocamos sem trocar palavra, meus dedos seguindo os de Feq'qesh, enquanto meu coração tentava equilibrar nos pratos de sua balança aquilo que era certo e errado, bom e mau, vida e morte. Cada fato em minha vida costumava ser tudo: os flagrantemente bons ou declaradamente maus em pouco tempo se transformavam em seus opostos, e eu nunca sabia, quando alguma coisa me acontecia, se o que ela significava naquele momento permaneceria, nem por quanto tempo. A música terminou, e com ela uma idéia se enraizou dentro de mim: só a atenção perfeita me faria reconhecer o momento em que as coisas se transformassem, deixando de ser o que eram, e qualquer desatenção seria sempre geradora de muita mágoa, incompreensão e tristeza.

Depois que Feq'qesh saiu de meus aposentos, mandei que um dos guardas do harém chamasse Rhese, a filha de Belsan, para fazer-me companhia: desde a noite em que entrara no harém pela última vez, e a vira tão entretida com sua videira mirrada, meu coração pedia a sua presença. Pouco tempo depois, ela entrou na sala, e meu coração se regozijou ao vê-la. Fora dela que eu sentira falta, durante todos os momentos em que não a vira, e sua face morena e compenetrada me dizia mais do que qualquer uma das que prometiam um universo de prazeres. Impressionante como eram opostos os sentimentos que ela e a lembrança de Sha'hawaniah me causavam: se só conseguia querê-la quando estava inseguro, infeliz, descontente com o rumo de minha vida, era sempre o espírito positivo e alegre de PJiese o que me fazia desejá-la a meu lado. Nessa noite não foi diferente: eu me permiti dizer-lhe o que nunca havia dito a ninguém, entregando-lhe meu coração e com ela ficando deitado, depois do amor. Era tudo verdade, ainda que o fosse apenas naquele momento.

Acordei sobressaltado, a cabeça de Rhese pesando sobre meu ante-braço: meus olhos estavam perfeitamente abertos, o sono se desvanecera completamente, e na fímbria do horizonte nem uma risca de luz prenunciava a passagem do tempo. Como sempre, a insônia me dominava, alguns instantes após eu ter adormecido, pois meu espírito, mesmo momentaneamente vitorioso, sobressaltava-se com o que eu não atinava, roubando-me o descanso noturno, sugando-me as energias. Tentei de tudo, em vão: nada era capaz de limpar-me a mente dos pensamentos desordenados que se sucediam, todos de igual importância e valor, como se efetivamente valessem todos a mesma coisa. O futuro de meu reino e o descosido na bainha de uma cortina se tornavam problemas do mesmo jaez, ambos igualmente capazes de destruir-me a vida e tão enormemente prejudiciais à minha integridade mental quanto os outros que os acompanhavam, em desfile grotesco e sem fim dentro de minha cabeça. Ergui-me e pus-me a caminhar pelos corredores do palácio, indo da porta da frente, que a essa hora ficava fechada, até o fundo, fazendo a meia-volta na porta do harém, repetindo esse percurso imutável vezes sem conta. Um problema se mostrava maior que todos os outros: minha incapacidade de fertilizar uma de minhas mulheres. Orei para que nessa noite, graças ao amor de que fora capaz, eu tivesse emprenhado Rhese, com quem verdadeiramente desejava gerar descendência, por sabê-la fruto de um amor verdadeiro, que era o que eu sentia por ela, desejando que ela também o sentisse por mim. As outras eram agora quase trezentas e cinqüenta, pois às que me haviam sido dadas na Grande Baab'el haviam se juntado muitas outras, filhas de chefes tribais e reis das regiões da Síria e da Fenícia, e mais moabitas, amonitas, filistéias e até mesmo uma ou duas etíopes, com suas peles mais escuras e seus rostos marcados pelas cicatrizes de beleza que eram o costume de seu povo. Todas estavam em meu poder especificamente para que através delas eu gerasse prole tão grande e poderosa quanto a de meu avô Salomão: só os filhos consolidariam os laços verdadeiros entre Jerusalém, capital de Israel, e os outros povos cujas filhas aguardavam que minha semente se plantasse vigorosa em seu ventre. Eu não conseguia nada: a dieta e tratamentos que Ragel me fazia seguir não davam o menor resultado, e eu até já perdera o impulso de deitar-me com todas, por considerar a tarefa impossível. Era preciso, segundo Ragel, que eu determinasse as mais promissoras, num primeiro momento, insistindo com elas, deixando um espaço de dois ou três dias entre cada uma para que minha semente se acumulasse e tivesse mais força. Fiz isso: nenhuma de minhas mulheres teve regras interrompidas nem deu sinais de prenhez. A cada instante eu tinha mais certeza de que a infertilidade era minha, e que por minha incapacidade a casa de David se extinguiria, extinguindo definitivamente sua linhagem. Restava-me a esperança de meu irmão Shimei, agora um jovem e alegre adolescente, membro de um bando de rapazes que faziam das ruas de Jerusalém o território de suas brincadeiras e diversões sem sentido, tão semelhantes ao que eu e meus amigos tínhamos sido na Grande Baab'el, que, em várias ocasiões, tendo que tomar medidas efetivas contra seus desmandos, o fiz com muita filosofia. Tendo sido e agido como ele, compreendia perfeitamente o que levava os jovens a reagir contra a sociedade em que viviam, para se formar como indivíduos. Eu pedia que quem pudesse o protegesse, não por ser ele meu irmão, mas por estar nele minha última esperança de continuidade da Casa de David, caso eu fosse incapaz dessa tarefa.

A manhã se aproximou: estava prometida para esse dia a chegada de uma caravana da Grande Baab'el, trazendo outros de nossa comunidade que finalmente decidiram integrar-se a seu país de origem, trabalhando pela cidade de seus antepassados. Lavei-me com muita água fria da Fonte de Gion, usando várias jarras para esfregar o corpo e a face com força e rapidez, acordando do sono que não havia tido, e mandei chamar meu secretário Jael, que chegou estremunhado; eu, que nada dormira, estava mais animado para enfrentar o dia que ele. Era compreensível: o dia real, no mundo real, iluminado pela claridade do sol, cheio de tarefas a serem cumpridas, era sensivelmente mais agradável que as horas de solidão dentro de mim mesmo, em que meus pensamentos me dominavam e não havia como escapar de seu poder maldito. Jael ajudou a vestir-me, e ambos comemos os frutos frescos que a cada dia se mostravam mais doces e melhores ao toque, como se a terra seca à nossa volta, sendo trabalhada mais e mais a cada dia, começasse novamente a ser fértil, mesmo coberta pelas eternas nuvens cor de cinza.

Dirigimo-nos ao salão de audiências, mais vazio que cheio: poucos homens tinham questões a me apresentar, e eu as decidi com rapidez, pois minha experiência já era suficiente para perceber o que fazer em cada um desses casos, sempre me baseando no bom senso. Quando os negócios de estado entram nos eixos porque o povo tem um objetivo claro a realizar, a vida sempre fica mais fácil: pensei se já não seria hora de iniciar a construção do muro que Cyro me havia requisitado erguer, para defender o limite sul de seu Império. Eu precisava encontrar o momento certo e o pretexto indiscutível para esta obra.

Feq'qesh, durante nossos encontros, continuava a ensinar-me coisas essenciais para o cumprimento de minha missão:

— Toma muito cuidado com o que pedes a Yahweh, pois Ele tem o costume de conceder a suas criaturas exatamente aquilo que desejam, mesmo se as conseqüências de seus pedidos forem exatamente o oposto do que anseiam.

Foi o que aconteceu nesse dia: eu tentava visualizar novamente as letras de fogo negro, que haviam sido substituídas pelas letras de fogo branco nas arestas das pedras, mostrando em seu interior a seiva de luz vital que a tudo percorria. As letras de fogo negro, contudo, que me haviam dado ciência de tantas coisas ocultas, nunca mais me vieram à mente: era como se tivessem sido substituídas definitivamente pelas letras de fogo branco. Eu preferia a primeira fase: o conhecimento do Universo que se misturava com o conhecimento de mim mesmo era fascinante, e me fazia muita falta. Quem sabe não seriam elas que me preencheriam do poder de procriar, ou de vencer os inimigos, ou de levar a termo a missão que me havia sido imposta? Enquanto dois homens se digladiavam por uma questiúncula que envolvia um jumento vendido e depois retomado, cerrei os olhos, tentando enxergar na superfície interna de minhas pálpebras o mundo luminoso e profundo que vislumbrara tantas vezes. Uma visão poderia dar-me o pretexto de que necessitava para erguer o muro tal como combinara com meu irmão Cyro, levando meu povo a redescobrir seu orgulho pessoal ao ocupar-se com outra obra meritória. Concentrei-me em Yahweh, como nunca antes havia feito, pedindo-lhe que me desse aquilo de que necessitava para realizar o que me era exigido.

Um burburinho do lado de fora da sala de audiências, mais forte e urgente que os que já experimentara, cresceu, e de repente, como um trovão inesperado, irrompeu na sala um grupo de soldados e de seguidores de Yeoshua, carregando corpos ensangüentados. Atrás deles se acotovelava a turba descontrolada: os olhares de ódio em minha direção eram imensos, enquanto mães, pais e parentes dos mortos me apostrofavam. Ergui-me do trono com autoridade, mas isso de nada valeu:

— Vê, Rei Zerub! Os samaritanos atacaram a caravana que vinha da Grande Baab'el e quase a dizimaram. Mataram até mesmo alguns de nós que tinham ido recebê-la.

Era meu sogro Jedaías quem assim falava, seu braço apontando para os corpos estraçalhados que começavam a empapar de sangue as tapeçarias e o chão. Meu olhar percorreu os mortos e seus corpos vil e cruelmente mutilados, vendo entre eles um corpo conhecido, ao mesmo tempo em que ouvia à porta da sala o grito lancinante de minha mãe. A meus pés jazia meu irmão Shimei, jovem como eu um dia fora, sua vida rompida abruptamente pelos atos insensatos a que a disputa pela posse exclusiva de um deus nos levavam. Minha mãe urrava de dor e sofrimento, e eu dela me aproximei, abraçando-a como nunca antes havia feito, tentando tardiamente dar-lhe o consolo da perda que nunca se repararia. Todas as mortes que eu presenciara em minha curta vida, até as que eu havia causado com minhas próprias mãos, voltaram de cambulhada à minha mente: mesmo imerso nesse festival de recordações fúnebres, eu estava vazio, calmo, sem emoções. Tornara-me um desses que raramente se permitem uma explosão emocional, e as poucas que tivera sempre foram mais externas do que internas. Dentro de mim havia agora um ser de frieza incalculável, que a tudo observava criticamente, considerando todas as minhas reações profundamente ridículas. O medo do ridículo era mais poderoso que qualquer outra coisa, e em muitos momentos tinha sido exatamente esse medo o que me movera.

Minha mente fervia, sem saber como agir a partir desses fatos. Repentinamente, recordei o pedido de Cyro: era preciso que Judah e Israel, novamente reunidos, se tornassem defesa segura contra qualquer tentativa egípcia de invasão do Império. Ergui a voz, abraçando minha mãe sobre o cadáver de Shimei, e proferi o que a muitos soou como rom-pante emocional, mas que era simplesmente o uso político dos fatos para alcançar um fim determinado:

— Devemos urgentemente erguer um muro que nos separe de nossos inimigos! Temos que cercar nosso reino para que nunca o invadam! E quanto mais amplo for o território que cercarmos, maior será nosso poder sobre a Terra Prometida!

O grito de adesão a essa idéia foi imenso, e a palavra real logo se espalhou pela cidade e pelas vizinhanças, mais uma vez unindo o povo em torno de uma idéia que lhes daria motivo suficiente para continuar vivos, tornando-me mais uma vez o melhor rei do mundo. A cada instante mais imerso em dúvidas e mais afastado do comando de minha própria vida, eu passara a agir mecânica e racionalmente, exercendo papel e funções que me haviam sido dadas, sem que meu coração estivesse envolvido nelas. A continuidade da Casa de David dependia agora única e exclusivamente de mim: meu irmão, enterrado depois de três dias de pompas fúnebres, como se rei fosse, não poderia mais perpetuar seu sangue em nenhuma criança, e eu, que o devia fazer, não o conseguia.

Três homens de mais idade haviam retornado a Jerusalém na caravana fatídica: eram os três auxiliares de Daniel — Shedrach, Mezzech e Abdnego —, que eu conhecera no palácio de Belshah'zzar. Apesar de mais velhos que os que normalmente se dedicavam ao trabalho de pedreiro no sítio do Templo, nas pedreiras ou nos alicerces do grande muro, haviam se apresentado na taberna, identificando-se como irmãos e se colocando a serviço do Templo. Estive com eles em uma de nossas reuniões semanais, onde aprendizes recebiam instruções através dos rituais muito antigos que nossa fraternidade ainda preserva. Os três, moven-do-se como se fossem um só, puxaram de um antigo pergaminho, aparentemente feito de finíssima folha de cobre, que se desenrolava e enrolava como papiro, no qual estavam traçadas as informações que nos dariam. Abdnego nos disse:

— Neste rolo está o segredo do subterrâneo do Templo, no qual estão guardados tesouros que não podemos abandonar. É preciso que lá entremos e o busquemos.

— Como faremos isso? — A voz grave de Ananias soou no salão escuro e empoeirado. — Se os seguidores de Yeoshua perceberem que estamos procurando um tesouro, certamente voltarão a nos acusar de estar desrespeitando os desígnios de Yahweh...

Ananias, como tantos outros dos mais velhos pedreiros, andava triste e cabisbaixo com os maus-tratos que nossa fraternidade vinha recebendo da população de Jerusalém, que seguia sem discutir as ordens de Yeoshua e seus acólitos. Esse sanhedrim já não comparecia mais às reuniões no palácio real, só vindo até ele quando o assunto pudesse ser transformado em sua forma exclusiva de vida: nos últimos dias, haviam concordado com tudo que eu ordenara, porque era uma maneira de separar nosso povo de todos os outros, sendo este o mais intenso desejo do Sumo-Sacerdote. Todas as vezes em que tentei uma ação que reconhecesse o valor igual de todos os homens sobre a terra, como me ensinara Cyro, reagiram violentamente, aumentando suas diatribes contra mim.

Sedrach, com o auxílio de Mezzech, abriu o rolo sobre a mesa de refeições dos pedreiros, onde todos tomavam seu alimento depois de nossos trabalhos. Estava escrito em linguagem estranha, e o formato dos rabiscos no papel imediatamente me trouxe à memória as letras de fogo negro que haviam desaparecido de minha vida assim que eu começara a ver as letras luminosas nas arestas das pedras do Templo. Era uma visão petrificada do que se passava por trás de minhas retinas, fixada na superfície maleável de cobre: até mesmo o formato em espiral das colunas de letras me recordava a grande espiral dupla que vira descendo do céu à terra, inundando de palavras e números o mundo onde vivíamos. Toquei a superfície do rolo e ele me transmitiu com um choque o seu poder, em um relâmpago de luz insuportável dentro de minha cabeça, que se apagou quando afastei a mão, mas que não retornou quando novamente o toquei.

Podia haver nesse subterrâneo muito mais que a riqueza que a tantos encantava. A leitura que Abdnego fazia dos textos descrevia um caminho que eu conhecia e já trilhara, ainda que apenas em minha imaginação. Esperei que a certeza se avolumasse dentro de mim, e quando se tornou quase insuportável, ergui a mão, interrompendo a leitura:

— Fica decretado que na primeira oportunidade os pedreiros descerão a esse subterrâneo que o manuscrito descreve, dando apenas a mim as notícias do que lá encontrarem. Quem se dispõe a fazer essa expedição?

Uma infinidade de mãos se ergueu, menos as dos três recém-chegados. Questionei-os:

— Não pretendem descer ao subterrâneo? Sedrach sorriu, brandamente, e me disse:

— Irmão, essa descida ao subterrâneo oculto é obrigação nossa: foi para isso que viemos da Grande Baab'el até aqui, enfrentando as vicissi-tudes da viagem. Não é preciso que nenhum outro irmão se arrisque: somos experientes o suficiente para o que quer que se nos apresente. Foi para isso que nosso mestre Daniel nos instruiu, durante toda a nossa vida.

— Nossa crença em Yahweh é profunda, irmão Zerub. —Abdnego enrolou o manuscrito. — Por ele, enfrentamos a fogueira dos cruéis senhores da Babilônia, escapando dela incólumes. O risco que há nesta tarefa apenas nós podemos correr, porque não o tememos. Permite que cumpramos a missão de nossa vida tal como ela deve ser cumprida!

Compreendi o que ele dizia: as missões que Deus nos impõe são não apenas obrigações a ser cumpridas, mas uma espécie de escravidão voluntária cuja aceitação e realização nos traz estranha alegria, impossível de ser dividida com aqueles a quem não tenha sido imposta. Eu também vivia cheio de obrigações a cumprir, missões a realizar, deveres a observar, devia reinar sobre meu povo e reerguer-lhe o Templo e o orgulho, espalhando pelo mundo a minha semente, enriquecendo a Casa de David com inúmeros rebentos. Eu não devia a Deus apenas a vida, mas também a manutenção da vida daqueles por quem me tornara responsável. Recoloquei a coroa, tornando a ser o Príncipe de Jerusalém, e lhes disse:

— Descei sozinhos ao subterrâneo: que Yahweh vos permita retornar incólumes, para dar-nos ciência de tudo o que lá for encontrado. Nós vos aguardaremos na superfície, prontos a vos auxiliar assim que essa necessidade se apresentar.

Os três baixaram suas cabeças, emocionados: era como se eu os tivesse livrado de um peso, para que pudessem enfrentar um peso ainda maior: Aproximaram-se de mim e nos beijamos na face esquerda, à antiga maneira dos pedreiros, a melhor forma de não nos esquecermos de que somos irmãos na pedra e que é dessa pedra, em cujo profundo ventre entrariam, que nascem nossa força e nossa verdade.

 

Enquanto meus irmãos foram em busca de seu descanso, eu e Jael caminhamos por uma Jerusalém adormecida em direção ao palácio, ambos com a mão no copo da espada que agora todos trazíamos à cinta, para o caso de algum encontro fortuito. A cidade estava cada vez mais cheia, pois as obras do Templo haviam novamente despertado o interesse do mundo, e quando começáramos a erguer os muros que eu ordenara, pretendendo-os gigantescos, muitos quiseram ficar do lado de dentro desses muros, na certeza de que se tornariam donos de uma parte das riquezas a ser protegidas. Os cobiçosos sempre são maioria, formada por tolos que vivem apenas para si mesmos, em perpétua escravidão, medo, suspeita, descontentamento, com mais fel que mel em seus prazeres: é impossível transformar qualquer um deles em coisa diferente, se esta não for sua vontade verdadeira, nascida da necessidade de mudança ou como resultado dos choques que a existência nos impõe. Gente desse tipo pode tornar-se ladra e assassina sem consciência disso, e eu os temia mais que aos inimigos declarados: dos inimigos, podemos conhecer motivos e perceber-lhes no olhar o momento em que esses motivos se tornam mais fortes que sua racionalidade. Dos cobiçosos, não.

Meu mutismo, com a noite, recrudescia: eu odiava as horas noturnas de que minha insônia era fiel companheira, e a simples lembrança de que ia enfrentá-la era extremamente dolorida. Sentia-me como na Grande Baab'el, quando nosso grupo de aventureiros começava a traçar o caminho de volta para casa e cada um se ensimesmava e emudecia, até desaparecer silenciosamente dentro de sua família. Eu nem isso tinha: depois do contato quase forçado com uma de minhas trezentas e cinqüenta mulheres, erguia-me do leito e traçava o caminho solitário que ia da porta de meu palácio à porta de meu harém, atravessando cortinados, encontrando sentinelas caladas, indo e voltando até que o cansaço sem peias me derrubasse sobre o leito, para um sono difícil, entrecortado, que se interrompia com as primeiras luzes baças da manhã atravessando-me as pálpebras cada vez mais finas, sem dar conta das almofadas que colocava sobre a cabeça, tentando barrá-las. Isso me incrementava o mau humor, e dessas noites mal amanhadas resultava um estado de nervos quase que constante durante o resto do dia.

Jael tentava me animar, mas nessa noite em especial, por causa dos acontecimentos, eu não estava muito positivo. Mesmo assim, ele insistiu:

— Meu irmão, meu rei, por que tão amargo?

— Jael, minha vida a cada dia que passa oferece menos atrativos: são apenas embates, problemas, e cada pequena alegria que surge traz em sua esteira uma imensa tristeza, decuplicada.

— A vida de um rei é mais cheia de atribulações que de benesses, irmão, e tu o sabias.

— Não, Jael, não me sinto enganado por ninguém. É apenas o reconhecimento de que não possuo o estofo necessário para ser rei.

Jael pôs-me a mão no ombro, enquanto dávamos a volta ao Ofel, vendo ao longe as luzes bruxuleantes de meu palácio:

— Zerub, posso falar-te francamente?

— É teu privilégio, Jael, senão como secretário íntimo, pelo menos como irmão e amigo.

— Creio que não sabes valorizar o que tens de bom, e que dás um peso exagerado a tudo que acontece diferente do que desejavas...

Sentei-me em uma pedra, na esquina de uma rua, ouvindo os sons de dentro das casas:

— Talvez tenhas razão, meu irmão, mas a verdade é que venho perdendo tudo o que é bom, sendo aliviado de tudo que desejo, sem poder fazer o que me agradaria. Imagino a mim mesmo dentro de alguns anos, velho, cansado, solitário e abandonado.

— Isso é de um exagero, meu rei. —Jael saltou à minha frente. — És dono do maior e mais belo harém da terra, e nenhum poderoso tem sequer uma parte das oportunidades de prazer que teu harém dá! Além disso, tens amigos, irmãos, um povo que te ama... Gargalhei tristemente:

— Meu povo me ama apenas quando lhe dou o que quer, mas, como isso não acontece sempre, acaba por me desprezar e odiar a maior parte do tempo. Meus amigos, tenho-os perdido a todos, pelos mais variados motivos. Só posso mesmo contar com meus irmãos, e mesmo assim os da pedra, porque o único irmão de sangue que tinha...

Minha voz se embargou, e eu esfreguei os olhos com força. Jael sentou-se a meu lado, dizendo:

— Não sei o que fazer para te animar, irmão Zerub: mas crê que eu seria capaz de tudo para que tu tivesses a felicidade que te falta...

— Nada há que me possas dar, irmão: meu reino há de se esvair em solidão e abandono, e dia virá em que algum de nossos inimigos, vendo-me velho e cansado, ousará tomar-me o trono, já que eu não terei nenhum filho a quem chamar de meu, para me defender...

Jael permaneceu em silêncio absoluto, por alguns instantes, e subitamente se ergueu, puxando-me pelo braço:

— Vamos, meu rei: estais cansado como se essa velhice já tivesse chegado, e com certeza uma boa noite de sono te acalmará. Queres que te faça companhia até que durmas?

— Tu, Jael, que tens o sono mais fácil do mundo? Quantas vezes te deitaste e antes de dizer boa noite já estavas dormindo profundamente? Queria ser como tu, meu irmão: mas em minha cabeça gira um universo que não cabe dentro dela. Vamos: estou preparado para mais uma noite de insônia. É o meu natural, pois não?

Dentro do palácio, mandei que arrumassem um aposento para Jael, não muito longe dos meus: desse dia em diante, em vez de retornar todas as noites para a taberna dos pedreiros, ele passaria a dormir dentro do palácio, ao alcance de minha voz. Mandei também chamar Rhese, a única dentre minhas mulheres com quem me sentia tranqüilo, e tanto que por diversas vezes a mantivera a meu lado durante reuniões onde assuntos que não requeressem nenhum segredo estivessem sendo discutidos. Ela e Jael, a cada dia mais meu único amigo verdadeiro, tinham maneiras semelhantes de enxergar a vida: eram otimistas ao extremo, sempre muito preocupados com meu bem-estar, agindo de comum acordo para que, durante minhas horas de descanso, nada viesse interromper-me o lento, raro e difícil mergulho na in-consciência. Eu também tinha grande interesse nela, que de todas me parecia a mais inteligente. Suas companheiras eram todas fúteis, voltadas exclusivamente para a própria satisfação, nunca me deixando à vontade quando de mim se aproximavam: eu sempre tinha a sensação de estar sendo usado por elas para objetivos inconfessáveis, dentre os quais o menos perigoso era sempre o meu domínio por sua senhora Ishtar. Rhese nunca me dava essa sensação, e junto dela a figura de Sha'hawaniah se eclipsava de meu espírito como que por encanto. Além disso, era trabalhadora e ágil: em vez de passar o dia refestelada em almofadas, comendo e dormindo, como faziam as outras, havia começado a cultivar uma parreira a partir da pequena muda de que cuidara com tanto empenho, e que agora começava a se enroscar no caramanchão que me pedira para erguer em um canto mais seco do terreno. Eu, sempre que podia, ia visitá-la, e ficava sentado perto dela, vendo-a cuidar das uvas, podar folhas e direcionar gavinhas. Com o tempo, esse canto se transformou em uma pequena horta, onde ela plantou árvores frutíferas e pequenas moitas de temperos, que de vez em quando fazia chegar à cozinha do palácio, enchendo minha comida de perfumes inesperados. Eram curtos, no entanto, esses momentos: logo surgia alguém com este ou aquele negócio de estado que precisava ser resolvido com a máxima urgência, e eu tinha que abandonar a vida serena junto a Rhese.

Recebi, dias depois, meus sogros, alguns deles preocupados com a construção do imenso muro que eu mandara erguer, e que vinha crescendo lenta mas seguramente, delimitando uma Jerusalém muito maior do que originalmente fora. A maioria deles não se interessava em ficar do lado de fora desse muro, mas alguns, que por razões puramente geográficas não tinham como estar dentro dele, exigiam que sua construção se interrompesse imediatamente, sentindo que quando ela se completasse estariam para sempre fora daquilo que vinha lenta e novamente sendo chamado de Terra Prometida. Minha desculpa, como sempre, foi a existência de nossos inimigos, os samaritanos, que não deixavam de nos atacar sempre que podiam:

— Não podemos nos permitir ser invadidos por quem pretende nos destruir: se depender desses homens sem devoção, o Templo de Yahweh nunca será reerguido.

Os acólitos de Yeoshua, presentes à reunião, fizeram muxoxos de aprovação, e eu percebi a um canto da sala a figura cada vez mais animalesca de Ageu, o profeta ensandecido, ultimamente bastante calado. Seus olhos rútilos, no entanto, não abandonavam minha face, e eu os sentia como se me estivessem queimando.

Joana, um rei-pastor da vila de Jeblaam, ao norte do Mar de Arabá, que havia comparecido ele mesmo à reunião, ergueu a escura face, mostrando rugas adicionais de preocupação:

— Se Zerub não pretende destruí-los, dando-lhes um fim definitivo, nenhum muro será capaz de mantê-los à distância. Meu caso é pior: apesar de sogro do Rei de Israel e Judah, estou mais próximo dos samaritanos que de Jerusalém, e nossa vida diária me obriga a ser aliado deles. Se decidirem impor sua vontade sobre os aliados de Zerub, a quem meu genro acha que atacarão primeiro? A essa Jerusalém defendida pela imensa muralha que se está erguendo, ou ao pobre Joana, que só tem de seu os seus rebanhos?

A maioria dos emissários expressou ruidosa concordância com essa idéia, ao mesmo tempo em que os acólitos de Yeoshua reagiam violentamente a ela. O emissário de meu sogro Naamani, que nos havia abandonado quando a caravana se dividira, tentava mostrar-se neutro em todas as questões entre mim e seus chefes, mas não pôde se furtar a um comentário ácido:

— Se estivéssemos todos juntos participando do esforço de reconstrução do Templo de nosso deus Yahweh, nada disso seria necessário...

A grita na sala foi imensa, e eu percebi que a maioria de meus aliados eventuais também se sentia alijada do que lhes parecia grande oportunidade de comércio e lucro. O emissário de Naamani, cuja aldeia ficava bem ao norte da Samaria, perto de Dor, continuou:

— Sentimo-nos desonrados, Rei Zerub, quando tu mandaste buscar madeiras das florestas da Fenícia sem que disso fôssemos informados: poderíamos ter sido intermediários nesse negócio, e sem dúvida isso estreitaria nossos laços de amizade muito mais que a esperança desse herdeiro que nunca chega...

Era tudo, como sempre, uma questão de riqueza e poder, e os gritos veementes dos presentes mostravam que os problemas causados por minha infertilidade se avolumavam. Houve mesmo alguns risos e co-chichos entre eles, como se eu não fosse o homem que deveria ser. Minhas faces ficaram coradas até a raiz dos cabelos. Outro de meus sogros, Selum, o pai de Eliá, disse:

— O rei podia aplicar-se mais nesse intento. Agora que o reer-guimento do Templo está completamente preparado, bem que poderia dedicar-se mais a seus compromissos com seus aliados e parentes. Há alguma previsão de quando poderemos começar a regozijar-nos pela existência de nossos netos?

Todos os olhares caíram sobre mim, em silêncio profundo, inquisitivo, perfurante. Cofiei a barba, com ar preocupado, pensando no que diria e que desculpas daria, e quando pigarreei, ainda sem ter o que dizer, tentando ganhar mais alguns instantes antes que minha vergonha se tornasse pública, um grito violento surgiu por trás de mim. Ageu, completamente transtornado, com seu corpo retorcido como as oliveiras dos campos, caiu ao chão, babujando. Um círculo se abriu em torno dele, pois ninguém desejava ser tocado pela profecia deste que se acreditava estar em contato com o próprio Yahweh, de cujo poder divino vinham as verdades inegáveis que a boca babujava. Ele caiu ao chão, tremendo convulsivamente, e de repente, de seus lábios imóveis saíram as palavras que todos temíamos, porque nunca sabíamos a quem estariam dirigidas:

— Com as primeiras chuvas se semeia o trigo! No fim do mês de Marsheshvan, haverá um ventre cheio no harém. E quando os figos de inverno estiverem sendo comidos, a criança nascerá! Trigo e chuva por princípio, figos e neve por fim, uvas pisadas aos pés!

A alegria tomou toda a audiência, e puseram a abraçar-se: muitos deles, vendo-me ao trono, impassível, vieram a mim com a familiarida-de dos parentes próximos, saudando-me como seu rei e genro, subitamente felizes, ainda que sem nenhum motivo real. As questões políticas e comerciais foram completamente esquecidas, e até o emissário de meu sogro samaritano comportava-se como uma criança a quem tivesse sido dado um novo brinquedo.

A profecia tomou a cidade, e em meio ao regozijo de meu povo, apenas eu percebia a armadilha em que o insensato profeta me havia metido. Se dentro dos vinte e oito dias do mês de Marsheshvan que se iniciara, eu não pudesse apresentar uma barriga prenhe, minha vida não valeria um grão de sésamo. De minha parte, estava disposto a fazer o que fosse necessário para cumprir a profecia de Ageu, pois sua não-concretização significava para mim a mais profunda vergonha.

No mesmo dia, fui até Ragel, cada dia mais cego, e ainda assim, ou talvez por causa disso, cada vez mais capaz de exercer a medicina. Ele me examinou novamente o esperma, não de uma, mas de duas emissões em prazo relativamente próximo, e balançou a cabeça em desalento:

— Para mim, a tua capacidade de procriar não existe, meu rei: mas posso estar enganado. Recomendo que sigas o regime de banhos e comidas que te indiquei, e que tentes da melhor forma possível, com o máximo de tranqüilidade, levar a tua vida. Se te desobrigares da tarefa, aí dentro de teu coração, é bem possível que teu corpo se permita exercer a função de procriar. Eu penso que não tens em tua semente os filhos que plantarás no vaso de nenhuma mulher, mas o poder de Yahweh é grande. Tenhamos esperança.

Dentro de mim só havia esperança: novamente um ser ao sabor dos acontecimentos, empurrado pelo destino ou pela mão sinistra de Deus para fazer o que Ele desejava, eu só podia esperar que tudo se encaminhasse para o melhor, e que o melhor de Yahweh fosse também o melhor para mim.

Minhas mulheres, sabedoras da profecia, começaram a competir com novo alento para que eu plantasse nelas a semente de um filho, que fermentariam e assariam no forno de seu ventre até que chegasse o momento em que saísse para fora dele, tomando seu lugar no mundo. Não fosse a ponta da preocupação com o fim do mês que fatalmente chegaria, eu teria aproveitado mais dos prazeres que me concederam, e que não eram poucos. A ansiedade, no entanto, era maior que o prazer, cortando-o ao meio, deixando na boca o travo amargo que esse corte dessorava. Jael, tão ansioso quanto eu, não sabia o que fazer para me ajudar a enfrentar o transe, e sempre me recordava das palavras de Ragel, dizendo-me que me tranqüilizasse e esperasse pelo melhor. Eu, sem nenhuma paciência, disse-lhe:

— Não preciso nem mesmo desse prazer físico que a cópula me dá, meu irmão: se houvesse um jeito de emprenhá-las a todas sem me aproximar delas, juro-te que o usaria. Aliás, é o que tenho feito, exi-mindo-me delas sempre que posso, por absoluto fastio.

— Não queres bem a nenhuma de tuas mulheres, meu rei? Não creio nisso...

Tive que sorrir:

— Como sempre, eu exagero, Jael: se tivesse que escolher uma e só uma com quem desejasse ter um filho, esta seria Rhese, a única que nunca me cobrou nada, nem atitudes, nem palavras, nem engrandeci-mento. Esta sim seria a mãe ideal para um príncipe de Israel, pois tem tudo para ser a primeira esposa do rei.

Jael me olhou seriamente, durante longo tempo, e depois, erguen-do-se e beijando-me na face, disse-me:

— Aguarda com esperança então, meu rei: quem sabe se não será efetivamente dela a criança que Ageu prometeu? E dedica-lhe o melhor de teu coração da próxima vez que estiveres com ela: Yahweh há de te ajudar.

No dia seguinte, logo de manhã, recebi a notícia, dada em segredo, de que Shedrach, Mezzech e Abdnego estavam se preparando para descer ao subterrâneo, tendo encontrado sua abertura depois de muitos dias de pesquisa. Fui até o local, a noroeste das fundações do antigo Templo, suas pedras agora postas em ordem sobre o solo, na posição exata para serem reerguidas umas sobre as outras segundo as marcas que eu nelas fizera, seguindo as letras de fogo branco que via em suas arestas. Reencontrá-las, depois de algum tempo sem ir ao sítio da reconstrução, era um prazer inacreditável. Essas pedras me recordavam das letras de fogo negro, que me haviam abandonado, inexplicavelmente e sem aviso, sendo substituídas pela capacidade de enxergar a pedra como se fosse transparente, percebendo-lhe os veios e a estrutura interna, além das marcas que indicavam a posição em que cada uma estaria nas paredes do Templo a ser reerguido. Mas tão logo esse trabalho terminara, nada mais percebi, e nenhum fogo divino me foi aparente aos olhos, a não ser a seiva dourada que fluía por dentro de algumas rochas.

Quando me aproximei, vi uma espécie de muralha provisória erguida com as pedras daquele local, e compreendi que esse monte de pedras servia de anteparo emergencial, para que ninguém visse que três homens desceriam por uma abertura no solo, buscando um subterrâneo de cuja existência ninguém deveria saber. Atrás dela estava uma tenda de trabalho, das que se usavam corriqueiramente para proteger os mestres pedreiros do sol, enquanto faziam seus cálculos, e que agora abrigava grandes rolos de corda de cânhamo, sendo lentamente desenrolados e presos em uma armação de madeira acima de um buraco no solo.

Havia apenas homens mais velhos nesse sítio, e quando me aproximei, saindo do sol e tentando ver na penumbra, tive a impressão de que Feq'qesh ali estava. Logo percebi que não era verdade, pois Feq'qesh andava muito sumido, preocupado com tarefas que nunca sabíamos quais fossem, surgindo inopinadamente sempre que dele se necessitava. Já estávamos acostumados com isso: ele desaparecia e reaparecia com a maior tranqüilidade, comportando-se como se nunca tivesse se afastado, e sempre que surgia era para, de alguma maneira, instruir-nos sobre algum ponto importante daquilo com que estávamos lidando.

Os Três Irmãos da Grande Baab'el, como Shedrach, Mezzech e Abdnego tinham passado a ser conhecidos, estavam com as cabeças unidas, cobertas por seus mantos, orando a Yahweh para pedir-lhe apoio na tarefa. A impressão que eu tinha, ao olhá-los assim, era a de que formavam um só corpo, um só homem, na verdade três facetas de um mesmo ser que se tivesse dividido em partes iguais, sem que nenhuma delas perdesse as características que tinha. Os irmãos que ali estávamos, movidos por impulso incontrolável, nos demos as mãos, formando um círculo à volta dos três, que lentamente desencostaram uns dos outros e começaram a preparar-se para descer pelo buraco que se abria a seus pés, tirando os mantos e desnudando seus corpos.

Quando um archote foi aceso e trazido à boca da abertura, vimos no fundo dela, a umas três braças de profundidade, uma imensa pedra de mármore em cujo centro estava uma argola de metal azinabrado. Uma das grossas cordas foi passada por essa argola e, sendo puxada com certa dificuldade, a tampa se ergueu, deixando perceber uma escura abertura quadrada. Os três se agacharam e, apoiando-se nos lados da abertura, foram lentamente, um após o outro, descendo por ela, pendurados na corda, sem que víssemos onde seus pés se estavam apoiando.

Olhando à minha volta, vi que para mim a pedra onde esse buraco quadrado fora aberto era tão transparente quanto as pedras cúbicas de que o Templo fora feito, e que dentro dela fluía uma seiva de luz formada por infinitas letras de fogo branco, circulando à volta da abertura. Emocionado, olhei para o lado, vendo que esse fluxo vinha diretamente do lugar reservado para o Debir, fluindo através da grande pedra subterrânea que marcava o âmago do Templo. Ali havia algo que me enchia o coração de ansiedade: os três já estavam havia algum tempo dentro do buraco, quando essa ansiedade se tornou insuportável. Ergui-me, sem pensar, e, movendo-me para fora dali, disse:

— Quando tiverem qualquer notícia, chamem-me. Tenho mais o que fazer.

Sem esperar que ninguém me acompanhasse, na manhã baça e pesada de sempre, atravessei o planalto onde estávamos, saindo dele pela antiga Porta dos Cavalos, e desci as ruas estreitas em direção aos fundos do palácio, desejando encontrar Pdiese em seu pomar, para aliviar o estado de nervos em que me encontrava. Quando me aproximei do caramanchão onde suas uvas verdejavam em inúmeras folhas, percebi haver alguém com ela, e, ao atravessar uma imensa moita de coentro, vi meu irmão Jael andando atrás de Pdiese com um balde de madeira cheio de água, do qual ela retirava com uma colher perfurada o líquido que espargia sobre as ervas. Ao perceber-me, os dois tiveram um momento de espanto, pois não me esperavam ali, mas eu imediatamente tomei o grande balde das mãos de meu irmão e lhe disse:

— Descansa, Jael, para que eu deixe por alguns instantes de ser rei e seja jardineiro.

Jael sentou-se em um banco de pedra que eu mandara colocar ali, enquanto eu segui Rhese por toda a volta do pequeno pomar, observando a graça com que ela, faces afogueadas e testa franzida, cuidava de suas plantas. Pedi a Jael que fosse buscar para nós três uma ânfora de vinho verde, e quando ele se afastou de nós aproximei-me de Rhese e roubei-lhe um beijo, que ela devolveu com uma inesperada sofreguidão, dizendo-me aceleradamente, depois de um longo silêncio em que só me olhou, como se as palavras lhe estivessem presas na garganta:

— Senti tua falta, meu senhor, e pensei: estando eu hoje no centro exato de meu ciclo de fertilidade, é bem possível que este seja o melhor dia para que vosso filho seja plantado em mim...

Agarrei-a pela cintura, enlevado com seu pedido, que era feito de maneira muito séria, como se estivéssemos falando dos negócios de estado que tanto me entediavam. Eu, de minha parte, sentia-me feliz por essa demonstração de apreço vinda de Rhese, e logo meu membro deu sinal de vida com tal vigor, que eu, não resistindo ao desejo que me assomava, como havia muito não acontecia, sentei-me ao banco de pedra e, sem me despir nem despir a Rhese, puxei-a para meu colo e penetrei-a profundamente, enquanto nos beijávamos com paixão. Perdi completamente a noção de onde estava e do tempo que passou: só sei que minha semente, mais rapidamente do que eu estava acostumado, escapou explosivamente de meu membro e preencheu a macia cavidade pulsante de Rhese.

Quando voltei a meu normal, ainda ofegante, Rhese continuava em meu colo, de olhos fechados. Quando os abriu, foi para olhar-me com extremo carinho, passando a mão pequena e macia em meu rosto, e dizendo:

— Eu te amo muito, meu senhor, e faria qualquer coisa pela tua felicidade...

Gargalhei, mais enlevado ainda que antes, recompondo-me: e então Jael retornou com a jarra de vinho, de que eu tomei vagarosamente uma taça, saboreando o ácido sabor das uvas adocicadas de que era feito, enquanto Rhese, sem me dar mais atenção, voltou a seu labor entre as plantas. Era um daqueles raríssimos momentos de perfeita felicidade, dos quais eu conhecera tão poucos, tão afastados uns dos outros pelo tempo, que eu não conseguia me recordar do anterior. Ergui-me do banco e, com Jael em meus calcanhares, preparei-me para entrar no palácio, despedindo-me de Rhese, que respondeu a meu aceno sem se virar em minha direção, entretida com os galhos entrelaçados de sua videira.

No palácio, havia alguns poucos casos a resolver, e um dos litigantes, caravaneiro das trilhas entre Dimashq e Jerusalém, acabou por me dar notícias de meu irmão Cyro, de quem eu não ouvia falar desde algum tempo. Seu método de governar era diferente de tudo o que se podia pensar: ele concedia absoluta liberdade a todos os que estivessem sob seu domínio, sem nada exigir-lhes que não fosse a colaboração com seus desejos de igualdade para todos, Nós de Jerusalém, que durante algum tempo havíamos comido o trigo que ele nos concedera, e que chegava regularmente a nossos celeiros, vindo de outros celeiros imperiais à nossa volta, agora já podíamos cooperar com essa distribuição de alimentos, pois estávamos produzindo figos em grande quantidade, e as figueiras em toda a volta da cidade estavam carregadas de brotos que certamente eclodiriam em belos e sumarentos frutos, mais do que suficientes para alimentar-nos e a quem mais estivesse próximo. Fiz uma anotação para que, quando chegasse o mês de Shebat, em que os figos de inverno amadurecem, fizesse chegar um grande carregamento ao próprio Cyro, como prova de seus esforços finalmente recompensados.

O caravaneiro me falava com grande familiaridade, desacostumado aos rapapés das cidades e cortes, e eu me sentia homenageado por isso: era difícil encontrar entre meus compatriotas quem não se revestisse de grande empáfia para falar comigo, até mesmo quando estava me ofendendo. Esse caravaneiro, com sua maneira rude, estava mais próximo de mim que muitos outros que assim o pretendiam:

— O Imperador Cyro está quase terminando seu palácio em Pasar-gad, e agora quer aumentar os limites do Império. As últimas notícias diziam que ele ia invadir a terra dos Massagetai, porque propôs casamento à Rainha Tomyris, e ela o recusou. Ele reuniu o conselho dos chefes, e o rei dos lídios, o riquíssimo Creso, que é seu aliado, o está apoiando nessa empreitada.

Meu irmão Cyro não cessava de ampliar seu território, por quaisquer meios que lhe estivessem ao alcance: temi pela vida dessa rainha, que certamente pereceria em suas mãos, caso não restasse outra alternativa. Com certeza ele preferiria o movimento pacífico que um casamento pode gerar, mas se tivesse que combatê-la com violência, assim o faria, cuidando dos Massagetai como ela própria cuidaria, e talvez ainda melhor, porque colocaria toda a capacidade do Império a serviço dessa terra e povo distantes.

O cheiro de Rhese ainda estava em meu corpo, e a cada movimento de minhas pernas; subia até minhas narinas, fazendo com que eu fechasse os olhos para melhor recordar os momentos de prazer que havíamos tido.

Em minha maneira de entender, deve-se sempre casar por amor, desde que a escolhida seja digna de ser amada. Para um rei, é difícil agir dessa maneira, mas eu havia encontrado amor verdadeiro entre os frutos de meus acordos políticos e comerciais, na figura dessa Rhese, filha de Belsan, a quem meu pai tinha garantido como minha esposa. Tudo poderia ter-se desmanchado no ar, acordos, promessas: mas o destino havia feito com que eu estivesse novamente em condições de realizar os desejos de meu pai, e com espanto percebi que, mesmo se não fosse Rei dos Judeus, estaria casado com Rhese, e ela seria minha preferida.

Uma agitação se aproximou de minha sala, fazendo-me abrir os olhos: era Jael que chegava correndo, dizendo-me:

— Meu rei, estás sendo chamado com urgência ao sítio do Templo! Eu havia esquecido da descida ao subterrâneo, e por um instante temi que alguma desgraça houvesse acontecido. Ergui-me incontinenti do trono e saí em desabalada carreira, subindo as ruas em espiral que me levavam às obras, lá chegando em tempo muito curto, acompanhado de perto por um Jael mais suado que eu.

No canteiro de obras estava tudo calmo, irmãos de todas as nacionalidades erguendo pedras e colocando-as em suas posições, segundo meus desígnios. Passei para trás da parede de pedras mal erguida, que ocultava o subterrâneo e a armação de madeira pela qual passavam as grossas cordas, perdendo-se no fundo do buraco, e entrei novamente na tenda escura, para ver os três velhos da Grande Baab'el, empoeirados e sujos de terra, sentados no chão, ofegantes. Ao me verem, tentaram erguer-se, mas eu os dissuadi com um gesto, acocorando-me ao pé deles:

— E então, meus irmãos, encontrastes o que fostes buscar?

Os três me olharam, e a semelhança entre seus olhos era tanta, que me senti como que olhando um homem só. Shedrach me falou, enquanto os irmãos mais velhos que nos cercavam se punham instantaneamente atentos:

— Assim que descemos pela abertura quadrada, descobrimos dois pilares imensamente belos, irmãos. A pouca luz que se filtrava pela abertura só nos permitiu admirar sua deliciada simetria: avançamos um pouco pelo que nos pareceu ser uma galeria levemente inclinada, e fomos encontrando mais pilares idênticos, sete pares, contando com o primeiro, que pareciam ser parte da galeria subterrânea que levava a Lugar Mais Sagrado, segundo o pergaminho de cobre. Fomos seguindo cuidadosamente por esse corredor, limpando-o dos dejetos e cacos de material que estavam em nosso caminho, e aí demos de encontro con o que nos pareceu ser rocha sólida.

— Eu a toquei acidentalmente com minha ferramenta, meu rei. — Assim falou Mezzech, mostrando um martelo de madeira. — Ela soou oca, e logo percebemos que era apenas uma superfície lisa e trabalhada pelo homem, e que abaixo dela provavelmente haveria mais coisas.

Abdnego continuou:

— Já não estávamos enxergando quase nada, e fomos escavando e retirando todos os detritos do caminho com nossas ferramentas, afastando-os e limpando o lugar onde nos encontrávamos, em forte penumbra. Foi nesse momento que percebemos estar sobre um teto abaulado, que os construtores haviam erigido através de arcos feitos de pedra, e logo conseguimos retirar duas delas, deixando um grande vão, pelo qual decidimos passar.

As imagens que eles descreviam eram de grande poder, e nosso silêncio atestava isso: para mim, no entanto, eram fortemente familiares, ainda que eu não conseguisse precisar como.

— Tiramos a sorte para ver quem desceria pelo vão, e a escolha recaiu sobre mim. — Abdnego falava cada vez mais calmamente, como que recordando com dificuldade do que se passara. — Fiquei sinceramente receoso, porque pressentíamos, pelo eco gigantesco que ouvíamos abaixo da abertura, que fosse um lugar tremendamente espaçoso, e não sabendo o que encontraria, já que o pergaminho de cobre nada revelava, podia estar descendo para nossa destruição.

Mezzech continuou:

— Não havia nenhum ponto de apoio para os pés e mãos, e por isso decidimos amarrar Abdnego pela cintura com uma corda, combinando um sinal para que, se alguma coisa lhe acontecesse, um ferimento ou mal-estar devido a qualquer vapor nocivo, pudesse ser reerguido até nós da melhor maneira possível.

Abdnego cerrou os olhos, como que se recordando das sensações que experimentara na escuridão da abertura:

— Fui descido lentamente, girando para um lado e depois para o outro, e o espaço abaixo de mim parecia não ter fim. Subitamente, cheguei a seu fundo e pedi a meus irmãos mais corda, para que pudesse explorar o lugar onde estava. Tateei pelo espaço até encontrar à minha frente um pedestal de pedra onde estavam gravadas certas marcas e figuras que não consegui decifrar só pelo tato.

A sensação de familiaridade era cada vez maior: eu quase conseguia visualizar o lugar, imerso em trevas também dentro de minha memória. Abdnego continuou:

— Fiz o sinal de que deveriam alçar-me novamente, e ao chegar na parte superior da abóbada relatei a meus companheiros o que havia encontrado. Decidimos, de comum acordo, que eu desceria novamente, e como a esta altura a claridade do sol estava a pino, havendo uma abertura nas nuvens que deixava sua luz descer até o fundo da abertura, fui novamente baixado, e desta vez pude ver com bastante clareza o lugar onde estava. Era uma grande sala formada por nove arcos de incomensurável tamanho, que não compreendo como se mantinham intactos, pois só havia colunas de sustentação em cada extremidade deles, e mais nenhuma que os apoiasse no centro.

Num relâmpago, recordei aquilo que Abdnego descrevia: eu já vira esse lugar: era o salão que surgira dentro de mim, após atravessar o túnel de luz dourada, durante a segunda metade de minha iniciação. O templo onde isso se dera imitava esse lugar mítico, sendo uma cópia infinitamente menor do lugar de portentos que Abdnego descrevia, e foi ecoando suas palavras com as minhas que o ouvi dizer:

— A claridade do sol iluminava indiretamente a sala, mas quando uma nuvem mais forte passou pela frente do sol, lá na superfície, a penumbra não se instalou onde eu estava, porque no centro desse salão está um pedestal triangular de alabastro, sobre o qual um cubo de ágata protege o triângulo de ouro onde se inscreve o Nome Inefável de Yahweh.

Finalmente havia surgido a sala de nove arcos que Enoch havia construído para ocultar o conhecimento que eu sempre buscara. Ergui-me, ansioso, gritando:

— Tragam cordas e archotes! Eu também quero descer a esse subterrâneo! Preciso ver com meus próprios olhos o lugar que Yahweh mostrou, dentro de mim! Tenho que tomar esse cubo com minhas próprias mãos!

Todos os que lá estavam, a começar por Ananias, tentaram de todas as formas demover-me dessa idéia, ciosos do perigo que ela envolvia: mas eu estava completamente tomado pela possibilidade de tocar o que até então fora apenas delírio de meu coração, mas que certamente seria a fonte definitiva do poder absoluto sobre tudo o que eu desejava. Meus três irmãos da Babilônia, vendo que meu desejo não podia ser contornado, dispuseram-se a descer comigo, protegendo-me de todo o perigo. Shedrach falou:

— Segundo o pergaminho de cobre, esse pedestal é apenas o início das maravilhas de que o salão de Enoch está cheio. O irmão deve seguir-nos e obedecer sem hesitar a todas as nossas ordens, para não corrermos riscos desnecessários enquanto estivermos nos subterrâneos.

Concordei sem pensar, já amarrando a corda na cintura e abaixo dos braços, desejando estar no lugar que meu coração conhecia tão bem: Shedrach e Mezzech, juntos na mesma corda, desceram à minha frente, com um archote aceso nas mãos. Eu desci logo atrás deles, girando pendurado no espaço por algum tempo, vendo o brilho do fogo logo abaixo de mim, até que o archote parou de mover-se e logo depois meus pés tocaram uma superfície dura. O ar era ao mesmo tempo úmido e seco, quente e frio, e um estranho suor começou a empapar-me as vestes. Abdnego se juntou a nós, e ele e eu começamos a ser amarrados na mesma corda para sermos descidos juntos, com a força dos braços de Shedrach e Mezzech, quando um estranho tremor me fez perder o equilíbrio. A abóbada em que estávamos pisando, sem motivo aparente, começava a tremer, e, à nossa frente, exatamente no ponto onde as duas pedras de formato oblongo haviam sido extraídas, revelando a abertura que levava ao grande salão que eu apenas vislumbrara em minha mente, começou a ruir. Nossa vida corria mais perigo do que eu desejava, e quando meus três irmãos, aos gritos, pediram que quem estava acima de nós nos erguesse a todos imediatamente, foi com absoluto desespero que fui reerguido para a superfície. Eu queria, mais do que tudo, conhecer o salão de Enoch, que só vira dentro de mim pela magia das letras de fogo negro, mas o tremor e a destruição da abóbada impediram que isso acontecesse, e foi aos gritos de profunda frustração que cheguei à borda do terreno, rojando-me ao solo e soluçando, enquanto ouvia a voz de Mezzech dizendo:

— Tudo ruiu: apenas parte dos nove arcos permanece de pé, mas o salão e tudo que nele se encontrava está coberto de pedras, como se nunca houvesse existido.

Prostrado e aos prantos, eu julgava ter perdido a maior das oportunidades de minha vida, quando um par de mãos fortes me ergueu do chão, dizendo com voz forte as palavras que eu não conhecia:

— Hamelach Gebalim!

Era Feq'qesh, como sempre surgido não se sabe de onde, que me abraçou enquanto eu soluçava convulsivamente em seu ombro. Mais uma vez em desalento e aflição, eu perdera a última oportunidade de salvação: com o poder de Enoch, eu seria o maior dos reis, supremo chefe e comandante do povo de Israel, ganhando para sempre seu respeito e adoração. Isso estava perdido para sempre, e a descoberta que justificaria minha vida era agora uma vaga e triste lembrança, permanecendo em mim cravada qual lança envenenada, destilando em meu corpo o veneno cruel de que estava embebida.

Feq'qesh foi-me afastando do lugar onde eu tivera mais uma de minhas perdas. Seu braço em volta de meus ombros era um consolo pequeno demais: eu perdera o fio de esperança que cristalizara no delírio do poder absoluto. Não havia mais subterrâneo, nem triângulo de ouro, nem salão dos nove arcos, nem poder, nem nada. Eu era novamente apenas o que sempre fora, o pobre rei de um pobre povo, inutilmente crente na obra gigantesca que pretendia erguer, e que estava infinitamente acima de minhas forças.

Abandonado como me sentia, fui saindo do lugar onde estávamos: algumas pedras haviam caído ao chão, certamente derrubadas pelo abalo que fizera ruir o salão de Enoch. Meus pés se arrastavam por sobre o cascalho e a poeira. Desarvorado como estava, acabei por tropeçar, caindo ao chão sobre as palmas das mãos, que se arranharam profundamente na superfície áspera. Ainda deitado, olhei para elas, soprando-as para diminuir a dor, quando um brilho no chão, à minha frente, me chamou a atenção. Alguma coisa metálica brilhava atrás de uma pedra, e quando a afastei, vi uma fita de cor verde, debruada de dourado, um relicário redondo na extremidade, suja de poeira e lama. Ergui-a contra

o sol, sem atinar com o que estava acontecendo, e, como um raio que me irrompesse pelo crânio, reconheci minha fita de tarshatta de Jerusalém, a mesma que o Grande Cyro me dera como sinal de meu poder, e que eu perdera a centenas de milhas dali, durante a batalha contra os assírios na ponte sobre o Gabbarah. Com as mãos trêmulas, abri o reli-cário: lá dentro, brilhando esverdeada, estava a moeda insondável que mais uma vez ressurgia como centro milagroso de minha vida.

 

Nem sei como atravessei o espaço de terreno que me separava de meu palácio: o coração batendo doidamente no peito, as mãos apertando o reencontro com a primeira vez em que a mão de Yahweh me mostrara Seu incomensurável poder. A moeda continuava dentro do escrínio, intacta, apenas um pouco mais azinabrada, e acelerei meus passos em direção ao palácio, sem pensar em quem estava a meu lado, atrás de mim ou à minha frente. O suor me corria pela fonte, e eu tirei a coroa que a apertava, subindo as ruas estreitas de minha cidade, novamente cheio do poder que acreditava ter perdido para nunca mais recuperar. Podia exibir-me não apenas como Rei de Israel, mas também como tarshatta do Grande Cyro, somando sua autoridade suprema à minha, usando-as para realizar o que quer que fosse necessário.

Era impressionante como a balança de minha vida nunca fora capaz de equilibrar-se: ora um, ora outro de seus pratos caía, erguendo o anterior a alturas incomensuráveis, e quando este parecia que ia despregar-se de onde estava e voar pelo infinito, descia celeremente, erguendo o oposto. Nenhum dos lados da balança me servia, e qualquer deles que se sobrepusesse ao outro tornava-se tão maninho quanto o outro o fora, até que esse outro se erguesse e com seu salto transformasse o mau em bom. Chegando à porta de meu palácio, entrei como um vendaval por ele adentro, atirando-me nas almofadas do leito, o coração como o de uma criança, querendo mostrar minha reconquista ao primeiro que de mim se aproximasse.

Ninguém chegou a mim: o silêncio era imenso no palácio, na tarde modorrenta e calma, e eu ouvia apenas os ruídos longínquos da cidade que me cercava. Depois de um tempo, ergui-me, vendo que a claridade diminuía, marcando o aproximar-se do crepúsculo, e decidi buscar companhia, um amigo, um irmão, uma esposa com quem pudesse dividir a alegria que sentia. Pensei em retornar a meu salão, mas a visão da sala vazia não me era agradável: por isso, dirigi-me para o corredor que levava a meu harém, e que, por não ter janelas, ficava sempre mais escuro que o resto do palácio. Tateei pelo corredor, atravessando reposteiro após reposteiro, dirigindo-me para a porta do harém, querendo convocar Rhese para com ela dividir minha alegria. Quando estava quase chegando, percebi que a porta dos aposentos se abria: dois vultos se desenharam em sua soleira, sem que eu pudesse ver quem eram. Avancei ainda mais, perguntando em voz alta:

— Guardas?

Os cochichos dos dois vultos se interromperam, e um deles, o mais alto, disparou em minha direção, dando-me um encontrão e derruban-do-me ao solo, escapulindo por trás de mim, enquanto o outro vulto entrava para o harém, batendo sua pesada porta. Ergui-me sem demora, esbravejando, sem compreender o que acontecera: mas logo meus gritos atraíram a atenção das pessoas, e os guardas, de dentro dos aposentos de meu tio Sheshba'zzar, em frente ao harém, imediatamente saíram para o corredor e vieram em minha direção. Meus gritos atraíram Jael, que se aproximou afogueado por trás de mim, com uma lamparina de azeite nas mãos, com a qual acendeu algumas outras, enquanto me perguntava:

— O que foi, meu rei? O que te aconteceu?

— Havia alguém estranho por aqui! Saiu do harém e me derrubou ao solo, fugindo pelo corredor. Não viste ninguém?

Jael estava ofegante, certamente por causa do susto que meus gritos lhe haviam causado, e disse:

— Não, meu irmão: teus gritos me chamaram a atenção em meus aposentos, ao lado dos teus, e quando vi que vinham deste corredor escuro, apanhei minha própria lamparina, acendendo-a e vindo em tua direção. Não viste quem era?

— O breu deste corredor ainda causará um acidente fatal! — Eu estava possesso. — Como se pode deixar este espaço tão escuro e sem guardas? E se um samaritano ensandecido resolver aproveitar a escuridão para ferir-me, ou matar-me?

O corredor estava cada vez mais cheio de gente, e os guardas que deveriam guardar tanto os aposentos de minhas mulheres quanto a câmara de meu tio, tremiam de medo, esperando que eu os castigasse severamente. Ergui-me, mais ferido em meu orgulho que em qualquer outra parte, recolhendo do chão a faixa que carregava, e voltei para o salão, pisando duro. Mais uma vez, meu humor ficava ao sabor dos acontecimentos: percebendo isso, respirei fundo, olhando para a fita em minhas mãos, mandando chamar Théron, chefe de meus guardas, que andava ocupadíssimo com as decisões sobre a segurança de Jerusalém enquanto o alto muro não estivesse totalmente erguido. O grego entrou em meu salão depois de algum tempo, e minha irritação já tinha quase se desvanecido. Mesmo assim, fiz questão de perguntar-lhe:

— Théron, meu irmão, por que motivo os guardas do corredor dos fundos estavam dentro dos aposentos de meu tio, e não em seu lugar, à frente das portas do harém?

Théron ergueu os olhos com incredulidade:

— É verdade, meu rei? Não entendo os motivos dessa indisciplina. Posso chamá-los para que se expliquem de viva voz?

— Imediatamente.                

Enquanto esperávamos os guardas, abri o escrínio e mostrei a Théron a moeda que estava dentro dele: Théron a olhou longamente, sem tocá-la, e me disse:

— Nunca tinha visto uma dessas: mas é grega com certeza, e a figura é de Hermes, o mensageiro dos deuses.

Sorri, enlevado: a moeda milagrosa trazia gravada em si a figura de um deus mensageiro, como que atestando a verdade de sua existência. Olhei-a novamente: o deus era uma figura masculina que atava ao pé direito uma sandália estranhamente dotada de asas. Talvez fosse a capacidade de voar como os pássaros que desse a essa moeda o poder de transportar-se de um lugar para outro sem que ninguém a levasse. Ergui os olhos, e à minha frente estava Feq'qesh, que chegara silenciosamente como sempre, mais uma vez sorrindo como se soubesse tudo o que se passava em meu pensamento. Ia dizer-lhe isso, mas os guardas chegaram à sala, ainda aterrorizados, e eu deixei essa conversa para depois: era essencial descobrir quem tinha sido o invasor do corredor escuro, que me teria assassinado sem nenhuma preocupação, se este fosse seu desejo. Meu espírito já estava focado em outros assuntos, mas era meu dever como rei interrogá-los:

— Então, guardas, que motivos tendes para não cumprir as ordens que vos dão?

Os dois permaneceram mudos, cabeças baixas, mas percebi que se entreolharam: insisti, e Théron me secundou:

— Vamos, guardas, é nosso rei quem ordena: quereis que vos acusemos de negligência no cumprimento do dever?

Um dos soldados fez um sinal a Théron, que dele se aproximou, ouvindo o que ele lhe disse em voz baixa. Théron fechou o sobrecenho e, chegando perto de mim, disse:

— Seria melhor esvaziar a sala, meu rei: eles não querem falar em público.

Estranhei, mas pedi que saíssem da sala todas as pessoas que ali estavam, exceto os dois guardas, Feq'qesh, Théron e meu irmão Jael, que se sentara em um escabelo a meus pés, como meu secretário íntimo, quando a sala se esvaziou, o primeiro guarda limpou a garganta e falou:

— Preferimos ficar do outro lado da porta de teu tio Shehba'zzar, meu rei, porque do lado de fora podemos ser levados a agir como não queremos.

Não entendi, e bradei:

— Fala francamente, guarda: nada tens a esconder de teu rei.

O guarda, vexadíssimo, ficou com a face inteiramente corada, e o segundo, vendo seu mal-estar, explodiu:

— Tuas mulheres no har´ém não nos deixam em paz, Rei Zerub: a cada instante em que podem, abrem a porta e nos fazem os mais instigantes convites, insistindo para que entremos e lhes façamos companhia. Dizem que ouviram barulhos, que há gente estranha dentro de seus aposentos, que animais ferozes lá entraram, mas os gestos e os risos são claros o suficiente para que percebamos ser mentira, e que o que desejam é outra coisa...

Desta vez, quem corou fui eu, tomado pela mais pura e absoluta vergonha. Quando ergui meus olhos, vi que todos estavam de cabeça baixa, tentando poupar-me dela. Levantei-me do trono, sem nada dizer e, andando rapidamente, percorri o espaço que separava meus aposentos do harém, trilhando o corredor agora iluminado por inúmeras lamparinas de azeite. Eu vi ao fundo as cortinas que marcavam o vestí-bulo onde ficavam as portas de meu tio e de minhas mulheres, e desacelerei meu passo, ao mesmo tempo que rezava para nunca conseguir chegar até elas. Uma mão segurou-me pelo cotovelo: era Feq'qesh, que viera atrás de mim, andando silenciosamente como sempre. Envergonhado, olhei para o chão, vendo suas sandálias sempre limpas, com brilhantes argolas de ouro, que mais uma vez me chamaram a atenção. Fiquei de cabeça baixa enquanto ele me disse:

— Acalma-te, respira fundo e prepara-te: o que vais ouvir não te será nem um pouco agradável. Mas lembra-te sempre que o ódio é vício de almas pequenas, e que sua pequenez não deve infeccionar a tua própria alma. Se souberes controlar teu ódio neste momento, saberás controlá-lo sempre.

Eu sabia disso: o que eu ouviria não me seria nem um pouco agradável, e por isso eu adiava a cada passo a minha chegada. Já fazia algum tempo que eu sequer visitava meu harim, e minhas noites solitárias eram em número cada vez maior. O mau humor de minhas mulheres devia realmente estar em níveis altíssimos: mas eu o havia gerado com minhas ações, e agora tinha que me responsabilizar pelas conseqüências, quaisquer que fossem elas.

Abri a porta, recebido com uma alaúza de guerra: o alarido de vozes que gritavam, acusando-se umas às outras nas mais diversas línguas, atirando ofensas através do ar e quase chegando às vias de fato, seria fascinante de observar, se não fosse eu o motivo dele. Ao ver-me, a maioria das mulheres se aquietou, temendo algum castigo, mas um pequeno grupo delas, vociferante, avançou sobre mim. Tive que dar um forte grito, calando-as com minha autoridade: mas mesmo assim elas permaneceram murmurando em voz baixa, dardejando chispas de um ódio que eu não compreendia. Eliá, a filha de Selum, os olhos injetados de vermelho se destacando no rosto escuro, torceu a boca num esgar, dizendo:

— Ei-lo, o rei que não cumpre suas obrigações! Será que não nos quer?

— Acho que não é caso de não querer, mas sim de não poder... — Lia, a filha do chefe samaritano Naamani, mordia os lábios num muxoxo. — Nunca soube de alguém que, com tantas mulheres à sua disposição, não desejasse pelo menos uma delas, a não ser que...

Olhei à minha volta, envolvido pelos risos cruéis que as frases de Lia haviam produzido: temeroso de que Rhese estivesse envolvida nessa estúpida rebelião.

Noemi, uma das mais velhas, ergueu sua voz:

— Para que nasçam crianças, é preciso que homens e mulheres se deitem juntos e juntos dancem a dança do amor... com reis, não é diferente: para que nasçam príncipes é preciso que os reis se deitem com suas rainhas. Se os reis não fazem isso, os príncipes não nascem...

Eu não sabia o que era pior: ficar conhecido como um homen que não consegue fazer filhos em suas mulheres, ou como aquele que não se interessa por elas. Algumas me olhavam com ironia e crueldade, decerto pensando em qual das duas categorias eu me inscrevia. Haddasah, a filha de Jedaías, com seus olhos fortemente pintados, chegou à frente, coleando os quadris:

— Se pelo menos tentássemos, meu rei, a vida no harém seria mais divertida... mas sem rei que faça uso do que temos para oferecer, só nos restará procurar divertimento em outro lugar...

Recuei, como que tomando forte pancada: Haddasah, percebendo o poder de seu golpe, ergueu as mãos e, meneando ainda mais os quadris, abriu a boca e moveu a língua com rapidez, como fizera em meu corpo, na nossa primeira noite juntos. Fiquei envergonhadíssimo, e ela notou, gargalhando, que me subjugara pela verdade:

— Era melhor que te divorciasses de nós, meu rei. Não somos mulheres que outros homens quisessem desperdiçar dessa maneira. Se não souberes como resolver esse problema, posso garantir que somos capazes de te dar motivos fortes o suficiente para não sermos mais vossas mulheres exclusivas...

Todas riram, enquanto Haddasah continuava a dançar sua dança las-civa, sem tirar os olhos de mim, degradando-me a cada gesto. Tentei encher o peito, mas uma súbita constatação me fez perder a pouca dignidade que ainda tinha: Haddasah estava nesse instante idêntica a Sha'hawaniah, de quem não me recordava havia tempos, mas cuja lembrança inesperada era suficiente para sugar-me a pouca força que ainda tinha. Arrastei-me até um escabelo, sobre o qual me deixei cair, as pernas transformadas em água gelada. As mulheres, a quem já não podia chamar de minhas, cercaram-me, apostrofando-me, rindo de mim, algumas lançando-me maldições em suas línguas: mas a maioria delas, cópias fiéis dessa Sha'hawaniah que morava como roedor no fundo de minha alma, dançava à minha frente, quadris projetados em chicotadas circulares, a língua saltando da boca em movimentos de serpente, a garganta emitindo gritos e gemidos, numa imitação exagerada dos gestos que não fazíamos porque já não nos deitávamos mais. Haveria quem estivesse se aproveitando disso, já que nem todos eram obedientes como os guardas que eu havia interrogado? As tardes e noites nesse harém deviam ser, pelo que eu percebia, cheias de prazer, ainda que eu dele não participasse, a não ser como anfitrião involuntário, cedendo o que era meu a quem quisesse se aproveitar, já que eu mesmo não o fazia.

Uma súbita onda de ódio cresceu em meu peito: mas, antes que explodisse em minha boca e minhas mãos, recordei-me do que Feq'qesh me havia dito alguns instantes antes. Procurei-o: não estava mais entre nós. Fechei os olhos, respirei fundo e me levantei, nos lábios o melhor sorriso que pude arranjar — Haddasah tem razão: negócios de estado não são motivo para que tantos e tão inegáveis talentos sejam desperdiçados. Certamente estareis mais felizes por vossa própria conta, sem fazer parte de um harém inútil. Vejo que pretendi morder mais do que minha boca podia abarcar: mas isso se resolve facilmente. As que não estiverem satisfeitas podem voltar para seus pais: eu lhes darei a separação o mais rapidamente possível.

Um susto as assomou: não esperavam por isso, de minha parte. Percebendo isso, continuei:

— Quanto a todas as outras, o prazo de um mês que concedi a mim mesmo, perante vossos pais, ainda está vigorando. Quando terminar, se nada houver acontecido, se nenhum Príncipe de Israel estiver sendo gerado em um de vossos ventres, todos os acordos estarão desfeitos e todas poderão considerar-se livres, desimpedidas, aptas a reiniciar suas vidas onde quer que desejem, na companhia que mais vos agradar, pois já não haverá nenhum motivo para que permaneçamos juntos como marido e mulheres...

Ergui-me, aparentemente refeito, em meio à gritaria geral de rejeição a minhas palavras. O que elas haviam iniciado não dera exatamente o resultado que pretendiam, porque, movidas pelo ódio, permitiram que seus impulsos as dominassem. Nenhuma delas pretendia, na verdade, ser conhecida como rejeitada pelo Rei de Israel: isso as fez recuar em seus intentos, tornando-se todas imediatamente cordatas e submissas, ainda que verdadeiramente não o fossem. Em várias delas, a chama da discórdia e do despeito tremeluzia no fundo dos olhos, mas os sorrisos de aceitação estavam em todas as bocas, e cada uma voltou a fazer uso de seus talentos pessoais para tentar destacar-se, despertando novamente meu interesse. A energia de Sha'hawaniah, ou de sua deusa, pairava sobre todas elas, num último hausto, uma última tentativa de ser mais poderosa que qualquer outro deus, principalmente este a cujo serviço eu estava, cada vez percebendo menos os motivos que O levaram a escolher-me.

Na saída dos aposentos, em um canto, envolvida em seu manto, vi Rhese. Olhei-a de relance e percebi que havia chorado. Meu primeiro impulso foi o de conversar com ela, buscando saber os motivos de sua emoção: mas achei melhor erguer a cabeça e deixar os aposentos com um mínimo de autoridade. Saí do harém, fechando suavemente as portas, e soltei o ar, como se tivesse vencido uma terrível batalha: esta seria apenas a primeira de muitas, no combate a meus inimigos, que eu já não sabia quem eram.

De volta a meu salão, tive nova surpresa. Havia um mensageiro me aguardando, um dos estafetas do serviço postal que Cyro havia organizado em todo o seu Império, reduzindo o tempo que um edito oficial levava para chegar aos mais distantes lugares. Eu esperava, a qualquer instante, notícias do ataque aos Massagetai da rainha Tomyris, certamente a esta altura já sob o domínio de Cyro, o grande conquistador. O ar compungido do estafeta, suado e empoeirado pela extenuante viagem a cavalo, levou-me a esperar pelo pior. A mensagem oficial estava em minhas mãos, uma cópia em argila da que havia sido traçada em pedra, assinada por um selo que eu não reconhecia:

"Assim fala Cambyses, herdeiro de Cyro, como ele Rei da Pérsia, Imperador do Mundo, dominador de Hircana, Partia, Drangiana, Aracosia, Margiana e Báctria, vencedor de Babilônia e provedor da paz dos Aquemênidas para todo o mundo sobre o qual reina."

Meu peito se apertou, na dor da perda de mais um amigo: Cyro, o Grande Senhor do Mundo, estava morto, e seu filho reinava em seu lugar. Sentei-me ao trono, segurando a placa de argila, que lia com dificuldade, não apenas por não ser o melhor dos leitores, mas por estar tomado de tristeza incalculável. A tentativa de subjugar os Massagetai dera em nada, e Cyro, tentando dominar esse pequeno e aguerrido povo, caíra morto pelas mãos de Tomyris, a rainha vingativa, que lhe dera o mesmo fim por ele imposto a seu filho Spargapises, degolando-o em pleno campo de batalha. A rainha cortara a cabeça de Cyro, mergulhan-do-a em um odre cheio de sangue, para que finalmente matasse sua sede. Cambyses, herdeiro do Império por ser o primogênito, imediatamente tomara o poder, assumindo o trono de seu pai para ser o novo Senhor do Mundo.

Minha preocupação foi evidente a todos: Cyro era minha segurança frente a meus inimigos, graças ao cargo que me havia feito ocupar, tor-nando-me seu representante na terra de meus antepassados. Sem ele, meu futuro e o futuro de Jerusalém estavam em perigo. O final da mensagem era específico para os tarshattas do Império, entre os quais eu me incluía, e não me dava nenhuma segurança quanto à minha permanência no cargo:

"Os editos firmados por Cyro em todo o seu Império serão objeto de estudo por parte do Grande Cambyses, e respeitados na exata medida de sua importância para a continuidade do Poder Imperial em toda parte. Enquanto isso não se dá e nenhuma decisão é tomada, os tarshattas devem continuar a agir em nome do Império exatamente como antes, pois, sem uma palavra definitiva do Grande Cambyses, continua a ser lei tudo o que foi decretado pelo Grande Cyro."

O poder é estranho, principalmente quando somos apenas seus depositários: Cyro havia concentrado o seu, delegando-o em vez de dissipá-lo, mas tudo o que concedera estava fundamentado especificamente em sua pessoa, como Senhor do Império. Agora que estava morto, e que outro homem o sucedia, só podíamos esperar que seu sucessor seguisse seus preceitos, respeitando as concessões de poder que ele fizera. Era quase impossível garantir a continuidade do poder de Cyro: uma vez morto, ele se desvanecia como fumaça, e nosso poder, reflexo do seu, só valeria alguma coisa se seu filho respeitasse seus desígnios à risca.

Na noite seguinte, realizamos uma cerimônia em homenagem a Cyro, durante a reunião da fraternidade dos pedreiros, da qual ele também era membro, seguindo à risca a tradição das pompas fúnebres. Estavam presentes praticamente todos os pedreiros de Jerusalém e redondezas, entre eles os três vindos da Grande Baab'el, Sedrach, Mezzech e Abdnego, que depois da cerimônia se despediram de mim, prontos para sua viagem de volta à cidade de origem. Nossa despedida foi carregada de tristeza, pois tanto eles quanto eu havíamos perdido o objetivo de nossa expedição ao subterrâneo. Eles haviam apenas vislumbrado a grande sala de Enoch, onde certamente jaziam os mais fascinantes segredos do passado: eu, nem isso. No fim das contas, entretanto, a vantagem era minha: graças ao terremoto que fizera ruir o subterrâneo, eu acabara por reencontrar minha moeda milagrosa, junto com a faixa de tarshatta que agora, mais do que nunca, me seria útil.

Abdnego, falando por seus companheiros, despediu-se de mim com o beijo fraterno na face esquerda, dizendo-me:

— Meu irmão, aquilo que juntos vivemos estará para sempre em nossos corações e mentes. Quando um dia nos reencontrarmos, seja onde for, haverá um laço a mais entre nós, do qual nunca esqueceremos.

Os três, como haviam chegado, se foram, deixando-me um travo amargo na boca: eu não entendia como tantas pessoas passavam por minha vida, cruzando meu caminho por maior ou menor tempo, e um dia desapareciam, deixando-me apenas sua recordação, que em certos casos ia-se desvanecendo lentamente, até se tornar mais impressão que lembrança. Pensei que um dia eu também desapareceria da vida de todos: nesse momento, eu é que os perderia a todos, de uma vez só.

Passei os dias seguintes em atenção redobrada: os ataques dos samaritanos haviam cessado como que por encanto, desde a notícia da morte do Grande Cyro, e levei um bom tempo para aceitar que a suspensão das hostilidades não era apenas uma coincidência. O conselho dos mais velhos voltou a se reunir, coisa que não fazia desde algum tempo, e ficávamos tentando compreender o que estava se passando e de que maneira poderíamos nos defender do que o futuro nos traria. Yeoshua, cada vez mais envelhecido por sua postura hierática, voltou a sentar-se a meu lado no grande salão: não falava comigo, mas também não me enfrentava mais, preocupado com a sobrevivência de nosso povo. Ageu de vez em quando entrava na reunião, observava a cada um com seu olhar rutilante e saía, sem nada dizer, aliviando-nos muito. Nada seria mais terrível que uma de suas profecias, num momento como esse.

Os negócios em Jerusalém estavam parados, e pelo que podíamos ouvir das raras caravanas que chegavam até nós, era exatamente o que acontecia em toda parte do Império, um marasmo intenso e inexplicável, enquanto Cambyses não tomasse suas primeiras atitudes como novo Senhor do Mundo. Uma intensa preocupação tornou-se parte do dia-a-dia de todos: sendo verdade a máxima que reza que "atrás de mim virá quem bom me fará", certamente teríamos em Cambyses alguém que serviria, antes de tudo, para glorificar a Cyro. Nós de Jerusalém não imaginávamos de que maneira nossas certezas de grandeza e poder seriam transformadas em pó.

Numa dessas tardes de modorra preocupada, minha mãe surgiu repentinamente à porta da sala de reuniões. Ergui-me, solícito, pois não a via com tanta regularidade quanto devia, e só me recordava disso quando ela me caía sob os olhos: ela entrou no salão, quase sem ser notada, e, em voz baixa, disse-me ao ouvido:

— Maz'al'tovl

Durante um instante, não percebi porque ela me saudava, mas, olhando em seus olhos e vendo seu sorriso, apertei-lhe as mãos: ela me dizia que eu finalmente, com as graças de Yahweh, seria pai. Minha mãe repetiu mais alto a palavra, e de repente todos de mim se acercaram, erguendo as mãos para o céu e saudando-me como pai do futuro Rei de Israel. Até mesmo Yeoshua, tão sério e compenetrado, permitiu que os restos de nossa amizade permeassem seu papel e veio saudar-me, pondo as mãos em meus ombros e dizendo, com voz alta:

— Avibnu Malkhenu, chamol alehnu veal olalehnu vetapehnul Ouvi sua voz emitindo essa prece e imediatamente me veio à mente sua figura rechonchuda, à beira do Eufrates, gritando as bênçãos para mim e Daruj, enquanto nosso barco celeremente descia a torrente. Cercado pelos que me cumprimentavam, perguntei à minha mãe:

— Qual delas, minha mãe, qual delas será a mãe de meu primeiro filho?

E minha mãe, sem o saber, encheu-me o peito de alegria, ao dizer:

— É Rhese, a filha que teu próprio pai escolheu para florescer-lhe a casa...

A alegria foi redobrada, e os cumprimentos passaram a ser dados também a Belsan, velho amigo de meu pai, por ser pai de Rhese, a mãe de meu filho, a mulher que me salvara da maldição da infertilidade, dando-me a certeza de que o reino de Israel seria longo e que, com ele, a Casa de David seguiria existindo para todo o sempre.

A notícia se espalhou por toda a cidade, e logo o alarido das comemorações subiu até as janelas sempre abertas do palácio: até as nuvens pesadas que nunca se afastavam de Jerusalém pareciam menos ameaçadoras, e enquanto as festas se iniciavam e estendiam pela noite adentro provei, pela primeira vez em muitos anos, algumas taças de vinho doce e fresco, que logo me puseram a cabeça a rodar. Eu estava feliz, e essa tontura me pareceu deliciosa, sentindo-me recompensado depois de tanta ansiedade. Dormi ouvindo o regozijo do povo, que se estendeu até de manhã, pois a notícia, como havia predito Ageu, havia chegado exatamente no dia da festa da semeadura do trigo, que se multiplicou graças à notícia de que o futuro Rei de Israel nasceria, sendo com a graça de Yahweh o primeiro de uma longa série.

No dia seguinte, encontrei Rhese, como sempre cuidando de seu pomar, compenetrada. Saudei-a, e ela manteve os olhos baixos, mesmo quando eu, com carinho, afaguei-lhe o ventre, agradecendo-lhe pela criança que ela trazia. Sua face ficou corada, mas mesmo assim ela me abraçou com extremo carinho, dizendo:

— Meu senhor, não há o que eu não seja capaz de fazer para te dar o que desejas.

Graças à notícia da prenhez de Rhese, meus outros sogros ficaram em polvorosa, exigindo que eu, agora que já era capaz disso, lhes emprenhasse também as filhas. Meu coração, encantado com a gravidez daquela que ele mesmo escolhera, nem pensava em ver-me envolvido com outras: mas eram negócios de estado, e eu tive que voltar a recebê-las em meus aposentos. Não digo que isso fosse pouco prazeroso, pelo contrário: mas certamente meu coração não estava nem um pouco envolvido no conúbio e prazer que tínhamos, e eu me deslindava daquilo com certa rapidez, para voltar a meu próprio eu, relaxado e feliz.

A barriga de Rhese foi crescendo, e depois de três meses começaram os comentários: porque só ela havia sido emprenhada? Nenhuma outra de minhas mulheres, trancadas dentro do harém, dava sinais de prenhez, e não foram poucos os comentários durante as reuniões do conselho político de Jerusalém sobre esse estranho fato. Eu passava incólume por eles: minha fertilidade estava garantida, e nada havia que a pudesse tirar de mim.

Pensei assim até que, chegando a meus aposentos uma noite, antes de receber a esposa do dia, vi um rolinho de pergaminho sobre as almofadas. Curioso, abri-o, e ao decifrar as poucas palavras que trazia escritas, soltei-o como se fosse brasa. O rolo entreaberto ficou em meu leito, enquanto as palavras nele escritas giravam incessantemente por minha cabeça: "O filho não é teu."

Depois de algum tempo, impaciente com a maldade dos que me cercavam, rasguei o pergaminho em mil pedaços e decidi esquecer-me dele. A esposa daquela noite, Eliá, já entrava, vestida de carmesim e recendendo a rosas. Deitamo-nos no leito e executamos a bela dança do amor, e o gozo que tivemos aliviou um pouco a opressão que o pergaminho havia deixado dentro de mim. Como de costume, virei-me para o lado e comecei a dormir, tendo a exata sensação de que havia em meu futuro uma felicidade constante, e que só me faltava estender o braço para alcançá-la. Nesse lugar ensolarado e cercado pelo sol e o vento da Grande Baab'el, estiquei a mão, e à minha frente estava Sha'hawaniah, seu sorriso ensombrecido pelo véu azul-escuro, dizendo-me:

— Minha senhora Ishtar manda dizer que o filho não é teu. Saltei do leito, agarrando-lhe o pulso, e quando percebi, estava em meu próprio quarto de dormir, apertando o pulso de Eliá, que me olhava de olhos arregalados. Gritei:

— O que disseste?

— Meu senhor? — Ela não sabia a que eu me referia. — Só vos saudei antes de voltar ao harém...

Eu a sacudi com violência, vendo suas faces ficarem extremamente brancas:

— Repete o que disseste, palavra por palavra, vamos! As lágrimas corriam pelas faces atemorizadas de Eliá:

— Perdão, meu senhor, mas eu te disse que minha senhora Ishtar te manda lembranças...

— Mentira! Disseste outra coisa! Quem te mandou aqui? Confessa! O alarido que eu fazia chamou a atenção dos guardas de meus aposentos, que se moveram entrechocando suas lanças do lado de fora dos reposteiros, e logo depois ouvi a voz de Jael, dizendo meu nome. Sentei-me ao leito, soltando Eliá, que se encolheu em um canto de parede, trêmula, até que ergui o braço e sussurrei, entre dentes:

— Sai daqui.

Ela escorregou para fora de minha câmara, e do lado de fora eu pude ver o semblante preocupado de Jael, a quem mandei entrar. Ele atravessou o umbral, e eu lhe disse:

— De hoje em diante, exijo guardas durante todo o tempo à porta de meus aposentos: ninguém deve entrar aqui sem tua vigilância! Se alguém tentar colocar qualquer objeto estranho dentro dessas quatro paredes, deve ser imediatamente levado até mim para que eu lhe aplique o castigo devido! E quanto a minhas mulheres, nunca mais pretendo ouvir-lhes a voz: devem entrar e sair daqui em silêncio, sem proferir nem uma palavra! Diz-lhes que, se me desobedecerem, pagarão com a própria vida! Vai!

Eu mesmo estava me desconhecendo. Jael, percebendo meu extremo abalo, curvou-se suavemente e saiu da sala, deixando-me sozinho. Tomei grandes goles de água, e lentamente fui-me acalmando, voltando a um estado próximo da normalidade, chegando mesmo a rir de meu descontrole ao fim de algum tempo. Alguma imbecil, certamente movida por ciúme de meu carinho para com Rhese e de sua sorte em estar prenhe do futuro Rei de Israel, decidira empanar-me a alegria com essa maledicência sem sentido: eu, quase adormecido, havia mantido em minha mente a mensagem escrita, ouvindo-a da voz de Eliá como se fosse a de Sha'hawaniah, e sofrendo duas vezes pelo que já havia sido rasgado e destruído.

É terrível pensar que nada seja esquecido, que nenhuma palavra seja proferida que não permaneça soando através do tempo, numa incessante onda de som, e que nenhuma prece seja murmurada que não esteja para sempre estampada na Natureza com a assinatura de Yahweh. O que eu lera no pergaminho e ouvira em meu sonho nunca mais se apagou de minha mente, e desse dia em diante foi-me lentamente envenenando o coração, amargando-me os dias e esgotando qualquer resquício de prazer que eu pudesse experimentar. Quando encontrava pessoas, nas reuniões do conselho ou nas ruas de Jerusalém, e alguma delas me olhava e fazia algum comentário em voz baixa com algum vizinho, eu tinha certeza do que dizia: "O filho não é dele." Durante algum tempo, pensei em reagir, mas depois de algum tempo tive a certeza de que todos sabiam do que me afligia, de que o filho que estava no ventre de Rhese não era meu, e que não havia o que eu pudesse fazer. Por isso, fechei-me, entrando em estado de mutismo quase paralítico, olhos baixos, fonte cerrada, voltado para dentro de mim mesmo, onde só enxergava essa dúvida insuportável.

Não tive coragem de falar dela com ninguém: Feq'qesh, o único dentre os que conhecia com quem me sentiria menos envergonhado de tocar no assunto, havia mais uma vez desaparecido, e como sempre ninguém sabia quando ou mesmo se haveria de voltar. Meu mutismo foi-se acentuando, até a ocasião em que, antes de sair de meus aposentos para mais um dia de absoluta inação à frente de meu reino, os reposteiros se abriram e a pequena figura encurvada de Ragel entrou, olhos semicerrados, cheirando o ar à sua frente. Envelhecera muito, meu irmão médico, e foi com grande alívio que se sentou em um escabelo, tirando o peso de sobre suas pernas e pés cansados. Colocou-me a mão sobre os ombros e apalpou-me os pontos de pulsação do corpo, nas têmporas, na garganta, no peito, em ambos os pulsos, na barriga, nas virilhas, atrás dos joelhos, nos tornozelos. Permaneci calado durante esse exame, e Ragel, percebendo meu mutismo, disse:

— Algo te incomoda, Zerub? Alguma dor constante, algum mal-estar inexplicável, algum amargor na boca?

Como podia dizer-lhe que o amargor estava mais profundamente enraizado? Tomei-lhe as mãos, como se faz com um pai, e eu nunca fizera com o meu, e disse-lhe:

— Meu irmão, existe alguma possibilidade de que o filho de Rhese não seja meu?

Ragel inspirou o ar rapidamente para dentro do peito, retendo-o lá por alguns instantes: depois exalou-o suavemente e, soltando as mãos e cruzando-as no colo, disse-me:

— Queres a verdade ou devo mentir?

Cobri o rosto com as mãos, aterrorizado: Ragel me abraçou ao peito, cobrindo-me a cabeça com seu próprio manto, e enquanto estávamos dentro desse dossel de proteção, disse-me:

— Eu te havia dito que muito dificilmente serias pai. Se tua mulher emprenhou, e é honesta, deve ter sido um dos milagres do poderoso Yahweh. Eu, que já vivi muito, só creio em milagres que eu mesmo tenha experimentado, e certas dúvidas um homem carrega para seu túmulo. Esta será a tua, meu irmão, e nada que eu te diga pode extingui-la, mas pensa que certamente será melhor que nunca se dissipe...

Saí desse encontro absolutamente tomado pela noção de que o que em mim era apenas uma dúvida já se configurava como certeza em todos que me cercavam. Os meses foram passando, uns atrás dos outros, a cada dia sem notícias de que outra de minhas esposas houvesse emprenhado tornava mais poderosa a dúvida terrível, preenchendo-me a alma com seu pântano negro. Os negócios de estado, o reerguimento do Templo, a muralha em torno de Jerusalém, tudo se interrompera, pois minha inação infectava o reino com uma imensa preguiça, e tudo era deixado para amanhã, já que não sabíamos como Cambyses, de quem nada ainda se ouvira, trataria as questões que seu pai havia deixado pendentes.

Rhese a cada dia carregava com mais dificuldade a imensa barriga, e o brilho da pele esticada e rosada a fazia ainda mais bela. Como estava grávida, eu respeitava seu período, e só voltaria a tocar nela quando estivesse parida e purificada pela mikvàh. Eu sentia sua falta, mas todos os dias passava por seu pomar para vê-la e com ela conversar um pouco. A dúvida continuava a verrumar-me o crânio: agora, meus próprios sogros já me chamavam de "arqueiro de uma só seta", e esta piada de mau gosto se espalhara pela cidade, adejando à minha volta cada vez que eu a atravessava. Até mesmo meu amigo Jael, respeitando meu mutismo, pouco aparecia em minha presença: conhecedor dos negócios essenciais, tocava-os sem me incomodar com eles, livrando-me de preocupações das quais eu não tinha como me ocupar. Os únicos que não me tratavam de nenhuma maneira diferente da de antes eram meus irmãos pedreiros, entre os quais me refugiava para purgar meu silêncio e minha extrema solidão.

Numa noite de lua cheia, de que me recordo por estar em frente a uma de minhas janelas comendo os primeiros figos de Shebat, um burburinho ao fundo do corredor chamou-me a atenção, e logo uma das mulheres veio informar-me que Rhese estava iniciando os trabalhos do parto de nosso filho, o único que eu já gerara até esse dia. Tentei entrar no harém, mas fui impedido: a tradição reza que os pais não se aproximem de suas mulheres nessa hora. Por isso fiquei em meus aposentos, aguçando os ouvidos a qualquer ruído diferente, até que adormeci com a cabeça sobre a mesa de trabalho, olhando o embrulho onde minha harpa jazia, esquecida, prometendo a mim mesmo voltar a tocá-la em homenagem a meu filho, assim que ele pudesse escutar-me. Um alarido feliz, risos e gritos soaram no fundo do corredor, e eu aguardei que Jael me viesse avisar que meu filho havia nascido. Quem veio, no entanto, foi um dos guardas, dizendo que a criança logo estaria em meus aposentos, para que eu a pudesse ver.

Duas mulheres mais velhas, acompanhando minha própria mãe, que segurava um bebê embrulhado em panos brancos, entraram na sala, saudando-me aos gritos. Eu era pai. Sentei-me em meu escabelo e esperei que elas o colocassem em meu colo, abrindo os panos para vê-lo por inteiro. Era um menino lindo, de cor trigueira como a minha, os cílios longos e os cabelos castanhos de PJiese. Seus bracinhos e perninhas eram macios e rechonchudos, e os dedinhos dos pés e das mãos beiravam a perfeição. Virando-o de costas, percebi uma mancha em sua perna, que cuidei ser alguma sujeira que tivesse escapado à limpeza de depois do parto: era um sinal de nascença.

Ergui o menino contra a luz da lua, e, para meu horror, vi na parte traseira de sua coxa esquerda um sinal triangular que eu já conhecia, e que por um instante não pude precisar onde o vira. Subitamente recordei, o coração trespassado pela dor que se prenunciava havia meses: era a mesma mancha de nascença de Jael, meu amigo, meu irmão, aquele a quem eu tinha confiado a minha vida. Meu filho não era meu filho: o sinal idêntico ao de seu pai, que a Natureza se encarregara de colocar-lhe no mesmo lugar, era o fim de minhas dúvidas. Eu não as levaria para o túmulo: agora sabia com certeza que o pai dessa criança era Jael, e não eu. Milhares de imagens passaram por minha cabeça, das inúmeras vezes em que eu o vira conversando com Rhese. A noite em que alguém me dera um encontrão, fugindo do harém escuro, saltou-me à frente dos olhos como se eu a estivesse revivendo, só que desta vez eu via quem me derrubara. Era Jael, meu irmão, meu amigo, meu traidor, a serpente que eu criara em minha própria casa para que me mordesse onde a dor era mais profunda e mortal.

Meu ar de desespero não passou despercebido à minha mãe, que me perguntou:

— O que tens, meu filho? Disfarcei, ainda que muito mal:

— Nada, minha mãe: é a emoção de ser pai pela primeira vez. Segura esta criança: devo dar a notícia a meus conselheiros.

Saí de meus aposentos, rumando diretamente para os de Jael, a poucos passos de onde eu estava. Ergui os reposteiros: seu leito estava vazio. Perguntei aos guardas por ele: ninguém o havia visto. As sentinelas do palácio me informaram que havia saído logo depois do pôr-do-sol, com um saco às costas, indo em direção à cidade. Apanhei minha espada e fui atrás dele. Alucinado de dor, atravessei a cidade adormecida aos berros, gorgolejando o nome de Jael, às vezes o de Rhese, às vezes o de Yahweh. Devo ter atravessado toda a cidade umas duas ou três vezes: nenhum sinal havia de meu traidor. Retornei ao palácio como um sonâmbulo, e vendo acima de mim as janelas iluminadas, atrás das quais as pessoas se movimentavam, como numa festa, saudando o nascimento do futuro Rei de Israel, percebi que estava no pomar de Rhese, onde tivéramos a tarde de amor em que eu jurava ter sido gerada essa criança. Enganado, em meu desespero sem limites, ergui a espada e pus-me a derrubar, metodicamente, toda e cada planta que ali se erguia: girassóis, figos, moitas de coentro e salsa, todas caíram ao chão sob o fio de minha espada, que queria ferir carne e ossos. Cheguei a pensar em cortar-me a mim mesmo, para ver se a loucura se esvairia de dentro de mim, mas persisti em minha ira progressiva, e quando o sol começou a nascer sobre a cidade abafada, nada mais havia de pé. Estava em meio às ruínas do que Rhese erguera com suas mãos e seu cuidado, enquanto gerava em seu ventre o filho que não era meu. Com as faces, os braços e as pernas manchadas de pó e pedaços de folhas, subi as escadas de pedra e madeira, buscando esconder-me.

Quando cheguei a meu salão, ele estava cheio, e todos se calaram ao me ver. No meio de soldados do Império, entrevi a Re'hum e Sam'sai, e logo atrás deles meu amigo Mitridates, seu braço mirrado oculto por faixas de pano. Os soldados se perfilaram, Re'hum de um salto sentou-se em meu trono, e antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, Mdates, frio como sempre, estendeu-me uma placa de argila gravada com o sinete de Cambyses, dizendo-me, em voz baixa:

— Perdão, Zerub, ser eu quem te traga essa notícia. Erguendo a voz, proferiu, sem olhar-me:

— De ordem do Grande Cambyses, como está inscrito nesse documento, tu não és mais o tarshatta de Jerusalém.

A sala deu um grito de horror e desaprovação. O único que não o secundou fui eu mesmo: se já havia perdido tudo que me era mais caro, o que mais poderia pretender manter em meu poder?

Tudo ruíra, tudo viera ao chão, nada mais estava de pé: eu era como as ervas que havia arrancado, e jazia morto e decepado sobre os restos de minhas próprias vãs esperanças. Templo erguido, templo derrubado. Quem o haveria de reconstruir?

 

Enfrentei a derrocada como se fosse apenas um observador não envolvido com os fatos. Nunca em toda a minha vida havia percebido de maneira tão absoluta ser a mudança a única força permanente do Universo. O próprio Yahweh, com todo o Seu poder, parecia também estar sujeito a essa força incontrolável: se era verdadeiramente o deus de justiça como me haviam dito, algo mais que o simples capricho deveria movê-Lo em tantas variações de que minha vida vinha sendo alvo, como se nela nada existisse que fosse íntegro, concreto e durasse mais que alguns instantes. Se tudo dependia da vontade de Yahweh, Yahweh dera, Yahweh tomara, Yahweh erguera, Yahweh destruíra. Eu nada podia fazer quanto a isso: era simplesmente Sua marionete, um desses bonecos de madeira que os titereteiros do mercado movem por trás de panos finos, distorcendo os movimentos e as formas de suas sombras e subitamente tirando-os do campo de visão de quem os observa. Quando somem de vista, é como se nunca tivessem existido, e eu era um desses a quem se rouba a existência simplesmente por tirá-lo do alcance da luz.

No salão repleto, os habitantes de Jerusalém rojavam-se ao solo, os samaritanos se regozijavam com sua vitória, os soldados de Cambyses impunham sua presença poderosa, e eu estava vazio. Perdera no mesmo momento o amor, a força, o poder, a honra, atributos que nunca mais seriam meus: mesmo que a roda da fortuna desse mais uma de suas vertiginosas voltas e me reerguesse às alturas das quais fizera parte, eu nunca mais seria o mesmo. Uma parte de mim se quebrara, e eu levaria muitos anos para perceber que parte era essa.

Os samaritanos enviaram uma embaixada a Cambyses, tão logo tiveram certeza de que ele não tinha motivos para proteger-me ou apoiar-me, como seu pai havia feito. Os documentos que chegaram ao novo Senhor do Mundo, assinados por Re'hum, eram uma obra-prima de distorção dos fatos, mas, como tinham a perfeita lógica que as distorções de fatos costumam apresentar, calaram fundo no coração de Cambyses:

— "Grande Cambyses, Senhor do Mundo, teus servos sírios, fenícios, amonitas, moabitas e samaritanos, sempre preocupados com a integridade do Império erguido por teu pai Cyro, agora sob teu comando, vêm a ti reiterar as denúncias que já haviam feito a teu pai, que delas não se deu conta por estar ocupado com as guerras contra os Massagetai. Como em outro documento que já a ele havíamos enviado, Re'hum, tarshatta da Samaria, Sam'sai, seu secretário, e Mitridates, seu escriba, junto a todos os outros oficiais da Síria e da Fenícia, teus servidores, julgamo-nos obrigados a advertir-te que os judeus, que já tinham sido escravizados na Babilônia, voltaram a este país. Eles reconstroem Jerusalém, que havia sido destruída por causa de sua revolta. Erguem novamente suas muralhas, estabelecem seus mercados e também reconstroem seu Templo. Se isso lhes for mesmo permitido, ó Grande Cambyses, e eles continuarem seus trabalhos, logo que os terminarem certamente hão de se recusar a pagar o tributo a ti, e também a fazer o que tu lhes determinares, porque estão sempre prontos a se opor aos reis, pela inclinação que têm de querer mandar e nunca obedecer. Por isso, vendo com que entusiasmo eles trabalham na reconstrução desse Templo e no erguimento das muralhas de seu país, julgamos nosso dever avisar-te que, se te aprouver ler os registros dos reis, vossos predecessores, verás que os judeus são naturalmente inimigos dos soberanos e que é por esse motivo que sua cidade foi destruída. A isso podemos acrescentar que, se tu permitires que eles a reconstruam e cerquem novamente com muralhas, eles vos fecharão a passagem da Fenícia e da Baixa Síria."

Urros de desespero tomaram os que estavam no salão, ouvindo a leitura que Mitridates fazia, friamente como sempre, das inverdades enviadas a Cambyses pelos samaritanos e seus aliados. Permaneci de pé, como se nada tivesse a ver com aquilo: meu coração definitivamente quebrado não me permitia sentir o que quer que fosse. Re'hum, refestelado em meu trono, ouvia os comentários maldosos de Sam'sai, enquanto Mitridates apanhava outra placa de argila, marcada com o selo do Grande Cambyses, e lia dela, sem olhar-me:

— "De Cambyses, Imperador, a Re'hum, da Samaria, a Sam'sai, seu secretário, a Belcem e outros habitantes da Samaria, Síria e Fenícia, nossa saudação. Depois de recebida vossa carta, mandamos consultar o registro dos reis, nossos predecessores, e lá constatamos que a cidade de Jerusalém foi sempre, desde todos os tempos, inimiga dos reis, que seus habitantes são sediciosos, sempre prontos a se revoltar, que ela foi governada por príncipes poderosos, muito empreendedores, os quais exigiram à força grandes tributos da Síria e da Fenícia. Para impedir que o atrevimento desse povo possa levá-lo a novas rebeliões, proibimos que continuem a reconstruir a cidade."

Mentiras, exageros, distorções, gerando novas distorções, exageros, mentiras, tudo com objetivos claramente inconfessáveis, e um móvel apenas: a vingança. A meu redor, o mundo dos habitantes de Jerusalém se esboroava. Eu nada sentia, a não ser a faca de amargor insuportável enfiada em meu peito até o cabo, tornando-se a cada instante parte inegável de mim. O mundo que ruía à minha volta era reflexo do mundo destruído que meu interior se havia tornado: e mesmo sabendo da imensa soma de inverdades cruéis com que os fatos estavam sendo gerados, eu não me abalava. Estava morto, tendo perdido, de uma só vez, amigo, mulher, filho, poder, objetivo.

Das falas de Re'hum, depois da leitura dos documentos que o estabeleciam como tarshatta tanto da Samaria quanto de Jerusalém, não me recordo: eram favas contadas, velhas conhecidas, filhas de suas idéias de mando, as mesmas que eu já conhecera nos tempos de juventude. A volúpia pelo poder encontrara nele e em seus seguidores o mesmo terreno fértil que encontrara em Cambyses, e se lhes faltava fundamento para os atos que realizariam, tinham de sobra em seus espíritos a sofreguidão que move os tiranos. Pouco me recordo do que se passou: sei apenas que, em determinado momento, lembrei da moeda guardada no relicário preso à faixa verde e dourada de tarshatta, que me fora posta ao peito pelo próprio Cyro, agora em meus aposentos, logo atrás do trono onde Re'hum se sentava, tomando posse de Jerusalém e de seu povo. Ele certamente exigiria a faixa, e nada havia que eu desejasse menos que lutar por algo que só me trouxera perdas e sofrimento. Dei dois passos em direção aos reposteiros: dois guardas avançaram em minha direção, as espadas desembainhadas a meio. Meu ar de alheamento, contudo, devia ser tão grande, que eles se limitaram a me acompanhar enquanto entrei naqueles que já não seriam mais meus aposentos, tomando de um pequeno saco de pano, de onde tirei a faixa envelhecida e rasgada. Ao abrir o relicário, não me surpreendi: a moeda não estava lá. Pensei em chorar sua perda, mas entendi que todas as perdas eram parte desse momento de minha vida, e que finalmente estava livre de tudo que me prendesse a meu passado. Pendurei o saco em um dos ombros, de novo atravessando os reposteiros, seguido de perto pelos guardas do Império. Parando à frente de Re'hum, estendi-lhe a faixa, para vê-lo gargalhar e dizer:

— Que quero eu com esse pedaço de lixo?

Seus seguidores riram, enquanto outros ficavam em silêncio: eu estava reconhecendo o poder de Re'hum sobre minha pessoa, entregando-lhe o símbolo de meu poder sobre tudo. Ele não o desejava, no entanto: por isso, abri os dedos e deixei que a faixa caísse ao solo, virando as costas e saindo do salão. A grita da turba atrás de mim era imensa, e tanto os samaritanos e aliados de Re'hum quanto meus próprios compatriotas, em busca de um alvo para sua ira, apostrofaram-me e xingaram-me de todas as formas possíveis, suas faces distorcidas se deformando em frente a meus olhos, enquanto as lágrimas deles porejavam, no caminho para fora do palácio que não era mais meu, talvez porque nunca o tivesse sido.

Atravessei a cidade como um morto ambulante, percebendo de imensa distância as reações do povo aos últimos acontecimentos. Desci ruas, dobrei esquinas, caminhando sobre a poeira das ruas como se caminhasse sobre mim mesmo, arrastando os pés um após outro, até que dei por mim em frente à taberna dos pedreiros, vazia. Entrei em seu interior de penumbra, e num canto mais escuro enrodilhei-me, fechando os olhos e enfiando o saco vazio que trazia ao ombro sobre a cabeça, sentindo o cheiro de poeira que nele havia, mergulhando dentro de minha dor silenciosa. Quando meus irmãos chegaram, mais tarde, encontraram-me na mesma posição, enrodilhado sobre mim mesmo. Ergueram-me, sem que eu desse sinais de percebê-los. Na reunião de pedreiros que se seguiu, ouvi como que vinda de muito longe a discussão sobre meu futuro. Isso não me interessava: na verdade, nada mais me interessava. Não queria saber, recordar, agir: desejava apenas que meu corpo, refletindo o estado de meu espírito, também morresse. Um irmão recém-chegado, que eu não conhecia, disse:

— Nosso irmão Zerub teve sorte em conseguir sair do palácio antes que decidissem prendê-lo. As patrulhas do Império já estão batendo a cidade, perguntando a todos onde ele se escondeu.

Ananias se ergueu:

— É preciso tirá-lo daqui: breve estarão invadindo todas as casas em sua busca.

Ragel, olhos semicerrados, falou:

— Tiveste sorte, irmão Zerub: eu estava lá e percebi isso. Apanhaste a todos de surpresa com tua saída tão inesperada do palácio: só depois que já estavas fora dali, é que pensaram se não seria melhor prender-te, ou matar-te. Mas como o povo todo estava contra ti, naquele instante, iludiram-se com o que acharam ser seu momento de glória, permitindo que andasses pela cidade para ser ofendido como eles desejavam. Só agora perceberam que tua liberdade pode ser um problema, e que precisam ter-te sob as unhas.

Ananias voltou a falar, com sua voz grave e cansada:

— Onde o ocultaremos? Lembrem-se, irmãos, que nosso irmão Zerub tem, junto conosco, uma missão a cumprir. É preciso preservá-lo para que possa, quando chegar o momento certo, retomar sua tarefa.

Théron, meu chefe da guarda, despido de todos os adereços de seu cargo, para não chamar a atenção de ninguém, pôs sua mão em meu ombro:

— Irmão Zerub, nada temas: a fraternidade dos pedreiros é responsável por tua integridade física, já que somos fiadores da tarefa que tens a cumprir. Nós te protegeremos, nem que para isso tenhas que desaparecer da vista dos homens.

O que discutiram nessa noite, não sei: enquanto me levavam para uma alcova sem janelas ao fundo da taberna, barrando-lhe a porta com uma pesada mesa e cobrindo-a com inúmeras coisas pesadas, tateei entre o sono e o delírio, respirando um ar viciado, revivendo tudo o que tivera e perdera. A cada instante, o coração se sobressaltava com a lembrança dos fatos recentes, que doíam como no momento em que aconteceram. Era minha alma não havia diferença entre fato e lembrança: os sentimentos que cada coisa vivida me causava eram idênticos à realidade, em toda a sua força e vigor.

No dia seguinte, abriram a porta da alcova e me retiraram dela. Os irmãos que lá estavam eram poucos, porque a maioria dos pedreiros havia saído para realizar as tarefas necessárias, buscando não chamar a atenção de ninguém sobre a fraternidade de pedreiros e sobre minha pessoa. Era preciso que eu fosse esquecido o mais rapidamente possível, e assim os pedreiros espalharam pela cidade boatos sobre minha fuga para o Egito do Faraó, que alguns dias depois já eram considerados não só verdade mas também prova de minha traição aos desejos de Cambyses. Enquanto isso, minhas barbas foram raspadas, minha pele escurecida com tinta feita de argila, minhas roupas substituídas por trajes mais condizentes com minha nova aparência. Eu fora transformado em simples aprendiz de pedreiro, e quando caminhei pelas ruas de Jerusalém, sem ser reconhecido por aqueles de quem tinha sido rei até poucos dias atrás, não percebi neles nenhuma diferença. Estavam vivendo da mesma maneira que antes, e em alguns até percebi sorrisos de alegria, como se o fato de haver-se livrado de mim os aliviasse profundamente. O grupo em que eu seguia, carregando ferramentas de trabalhar a pedra, passou por uma ou duas patrulhas de soldados do Império, que não nos deram mais que um olhar de soslaio. Eu desaparecia entre meus irmãos como o mais ínfimo e desimportante deles, e quando descemos às profundezas das reabertas Pedreiras de Salomão, onde eu me ocultaria de todos, foi como se estivesse sendo enterrado vivo, desaparecendo definitivamente para o mundo em que vivera.

O trabalho nas pedreiras, depois de alguns dias de interrupção, voltou a ser feito com mais empenho que antes, porque os samaritanos que dominavam Jerusalém pretendiam usar a bela pedra de que dispú-nhamos no erguimento de seu próprio Templo para Yahweh, em lugar não muito distante do sítio do original. Escolheram, para isso, um pedaço de terreno a leste da Torre de Hananeel, em linha direta com a Porta dos Peixes, e lá demarcaram os limites do que seria a sua obra magnífica. Pelo que soube enquanto ainda tive notícias do mundo exterior às cavernas, durante longo tempo esse Templo não passou disso: as marcas de seus alicerces permaneciam no solo onde haviam sido traçadas, e as pedras que cortávamos se acumulavam à sua volta, porque não fora encontrado nenhum pedreiro disposto ao trabalho nesse surrogato da Obra verdadeira. Os pedreiros de Jerusalém desapareceram como que por encanto, e os que se dispunham a trabalhar na obra, não conhecendo o ofício, acabaram por causar mais problemas que qualquer outra coisa. A arte de erguer paredes de pedra, colocando os blocos esqua-drejados e polidos uns sobre os outros, não é para qualquer um: pelo que contavam os poucos irmãos que permaneciam em Jerusalém exercendo outras profissões, nenhuma parede erguida ficava de pé mais que algumas horas, ruindo com fragor e gerando cada vez mais desespero entre os samaritanos. Os hebreus diziam, à boca pequena, que os invasores sofriam esses revezes por não serem verdadeiros filhos de Yahweh, e mesmo quando, para provar-se dignos, os novos senhores de Jerusalém decidiram reconstruir o Templo original como eu o havia reorganizado, o resultado foi o mesmo: paredes que se erguiam e vinham ao solo com estrondo tão grande quanto a frustração que geravam, porque não conheciam os sinais com que eu as marcara, dando-lhes a única ordem possível.

Imerso nos pensamentos que apodreciam meu íntimo, eu sequer dava atenção a isso, quando me traziam notícias do mundo da superfície: deixara de ser rei até de mim mesmo, e nada me interessava. Meu desinteresse foi afastando as pessoas de mim, e eu comecei a viver mais isolado e só a cada dia, sem balbuciar qualquer palavra. Como raríssimos dentro das cavernas sabiam quem eu fora, tomaram-me como um carregador qualquer, e eu confirmei isso levando blocos de pedra bruta de um lado para outro, conforme as necessidades dos artesãos. Não havia outra coisa que eu soubesse fazer: não tinha nenhuma experiência como trabalhador da pedra, não conhecia as ferramentas, e me entregava a esse mister repetitivo e sem criatividade numa tentativa insana de esmagar a alma desagregada que ainda restava em meu interior. As imagens de Rhese e Jael em conúbio amoroso, mais que quaisquer outras, revoluteavam em minha mente o tempo todo, repetindo-se incessantemente, como se eu as tivesse visto com meus próprios olhos e não apenas imaginando-as.

A imaginação, aliás, foi a irrecusável companheira dos tempos que passei nas pedreiras: não era uma imaginação de qualidade, mas apenas constante, perseguindo-me durante o dia. À noite, quando tudo se acalmava e eu deitava em meu canto, ela recrudescia e tomava meu corpo inteiro. Minha insônia se tornou mais poderosa ainda, e os lampejos de cenas que me surgiam na mente durante o dia se concretizavam durante a noite, refletindo-se no escuro das cavernas sem luz, como se as paredes de pedra fossem a superfície onde algum deus mesquinho gravasse as imagens de minha desgraça. Minha vida passava sem parar à minha frente: mesmo quando eu estava acordado, carregando pedras para os outros operários, as imagens se acumulavam em minha mente, surgindo poderosas e vividas no período de escuridão. Os dias foram se repetindo, um após o outro, idênticos em qualidade, e de repente eu já não conseguia mais distingui-los um do outro, mesmo mantendo deles uma contagem que me parecia correta. Só sabia que um dia havia terminado quando o trabalho se interrompia e a refeição da noite chegava a nós. Eu a comia com a mesma falta de apetite da refeição da manhã, deitando em meu canto para assistir ao desfile ininterrupto de meus delírios na parede de pedra à minha frente.

Sucedendo-se sem nada que os diferenciasse uns dos outros, chegou o momento em que meus dias, sendo todos iguais, deixaram de interessar-me, e eu parei de contá-los. Os delírios pelos quais passava eram sempre idênticos em minha mente, finalmente acabando por reduzir-se a um só, constante e eterno, como se o tempo ali passado fosse uma eterna noite de trevas sem fim, caos de repetição absoluta e incontrolável.

Muito tempo depois, vim a perceber que essas imagens já não tinham tantos detalhes. Os traços com que se haviam fixado em meu espírito iam lentamente ficando menos precisos, e mesmo dentro de minha memória magoada e cheia de ferimentos, não eram mais como antes. As imagens dos rostos eram humanas, mas eu não os reconheceria se os visse no mundo real: tornavam-se mais e mais apenas manchas de cor difusa, os olhos dois buracos de sombra, os corpos a cada instante uma representação mais canhestra do que haviam sido, como esculturas que tivessem sido esboçadas e nunca se tornassem prontas e acabadas, desgastando-se pelo abandono. Coisas e pessoas que eu não via tomavam esta característica quase diáfana em minha memória, seus traços lentamente se desvanecendo. Não sei quando chegou o momento em que, deitando-me para tentar dormir, a parede à minha frente nada mostrou. Eu estava vazio, como se nada mais em mim houvesse. Tentei com todas as forças recordar-me do que vivera, vira, experimentara, sentira. Nada. Qualquer memória seria bem-vinda, até mesmo a das dores que sofrera, mas nada me vinha ao espírito. Eu me esvaziara de todo: quando tentava recordar do que me ocorrera, essa recordação não se fixava em meu ser. Tudo era fugidio, nada permanecia, e eu estava vazio. Um de meus últimos pensamentos nesse dia foi se isso não seria a morte, minha inimiga de tantas ocasiões. Hoje, ela nada significava: não era mais nem amiga nem inimiga, mas sim a perfeita estranha que vinha ao meu encontro envolta em nada para me ofertar o nada de que se cobria.

Eu nunca fora daqueles que sonham vividamente, e talvez por isso não tivesse lembranças do que sonhava. No momento em que acordava, ainda tomado pela sensação que o sonho me havia causado, ele se desvanecia rapidamente, escorrendo para dentro de algum buraco escuro de onde nunca mais retornava. Por isso é que guardo dentro de mim o único sonho de que me recordo completamente, integralmente, porque substituiu as imagens de um passado que já não existia nem mesmo como limite de território percorrido. Foi a partir desse sonho que me tornei o que hoje sou, não sei se por obra de minha vontade ou pela sua ausência.

Na vaziez de mais uma noite nas cavernas, deitei-me, a cabeça limpa de todo desejo e memória, o corpo exânime como sempre ficava quando não era preciso que me movesse, as costas sobre a areia fina do trecho onde eu me ocultava dos outros que ali também estavam, enrolado em meu manto a cada dia mais roto, fitando as trevas acima de minha cabeça. Sem que eu percebesse exatamente quando, no centro brumoso de minha visão surgiu um ponto de luz, que eu acreditei a princípio ser uma dessas manchas que vemos quando estamos na escuridão, mas a mancha começou a girar e tomar velocidade, tingindo-se de dourado. Dentro dessa luz, eu vislumbrei minhas velhas e olvidadas companheiras, as letras do alfabeto hebraico, com que Yahweh havia construído a espiral dupla da Criação, que girava lentamente, erguen-do-se e caindo no Universo como a chuva dos céus, desfilando à Sua frente e à minha como seres humanos em passo cadenciado, matéria prima de mundos a construir, saindo de dentro de meu próprio peito, abandonando-o e esvaziando-o mais ainda com cada abandono.

Em primeiro lugar, saiu thau, que, sem deixar de ser a letra feita de línguas de fogo negro, tinha toda a aparência de meu pai, com seu eterno manto e ar severo, carregado de Verdade e ao mesmo tempo recheado de Morte, pois Verdade e Morte eram o oposto uma da outra em sua figura esguia e de olhar brilhante, passando por nós como se não tivesse qualquer utilidade, apesar de tudo o que fizera ter sido bom. Logo após ele, em línguas de fogo tríplices que formavam a letra shin, saiu de meu peito o amigo a quem nunca mais vira e de quem mais falta sentia, Daruj, apoiado sobre um só pé em meio a uma guirlanda de fogo, dividido em duas partes por uma cicatriz quase obscena, um lado feito de Verdade absoluta, e o outro de absoluta Mentira, cercado por um touro, uma águia, um leão e um estranho homem alado. Como surgiu, desvaneceu-se, e o homem alado se transformou em Na'zzur, e as letras tzadi, resh e khaf tomaram a aparência dele e de seus dois asseclas, dentro de uma cova no solo, recheada de instrumentos de tortura, no flagrante exercício da injustiça. Sem que eu pudesse precisar de que sexo eram, abraçaram-se e afundaram no solo, que começou a encher-se de água.

A frente de um lago cujas águas fervilhavam, surgiu de mim a letra peh, que logo tomou a aparência de Feq'qesh, estranhamente sem olhos: seu rosto era liso como se nunca os tivesse tido, e sua lira vertia a água que fervilhava nessa superfície, engolfando-o. Quando essas águas baixaram, vi no horizonte a letra ayin, alta como uma torre, sobre a qual estavam Re'hum e Sam'sai, erguendo os braços vitoriosos, até que um raio imenso desceu dos céus e rachou a torre em duas, atirando-os ao solo, pelo qual foram tragados. O solo começou a tremer, rachando-se, e dele se ergueu, com as formas de samech, a imensa figura de Bel'Cherub, arrastando os animalizados Re'hum e Sam'sai por meio de grossas correntes, um de cada lado de seu corpanzil. Sua boca asquerosa se abriu e ela comeu-se a si mesma, restando em seu lugar a letra nun, que, com um braço mirrado, era idêntica a Mitridates, o amigo cujo Temor e Coragem tão bem se equilibravam, permitindo-lhe, sem maiores abalos, ser tudo o que devia ser, ainda que isso magoasse os que lhe estavam próximos. Mitridates deu um de seus tristes sorrisos, e quando avancei a mão em sua direção, também afundou no solo, ficando apenas com a cabeça de fora: desse mesmo solo, outras cabeças começaram a despontar, junto a mãos, pés, como uma estranha lavoura que estivesse no ponto para ser colhida, e um descarnado Belshah'zzar, estranhamente semelhante à letra mem mas sem nenhum dos atributos de sua Realeza, ergueu uma foice e começou a segar o que estava no solo. Fixei o olhar sobre as cabeças, notando que uma delas era a do próprio Belshah'zzar: mirei a figura descarnada do segador, e ele era Nabuni'dush, que com um golpe mais forte separou a cabeça de seu puhu das raízes e a atirou rolando em minha direção. Olhei-a a meus pés enquanto ela afundava no solo, e de meu bai-xo-ventre, subitamente cheio de dor, rompeu um abscesso que atirou à distância uma letra lamed, enrascada como uma grande serpente das águas. Quando esta serpente se solidificou à minha frente, transformou-se em Ragel, pendurado de cabeça para baixo por um de seus pés, velho, cego, inerte, morto.

Um trovão rolou pelos céus, e do horizonte, avançando para meu peito, surgiu um poderoso leão, trazendo em sua boca uma chave, vindo em minha direção como se fosse atacar-me. Do lugar em meu peito onde o trovão se refletira, irrompeu uma letra khaf, aberta como uma boca, imediatamente transformada em Yeoshua, não como agora era, mas sim como fora em nossa juventude, amedrontado, pequeno e rubicundo. Ele saltou sobre o leão e, abrindo-lhe as fauces com as mãos, tomou a chave que trazia entre os dentes: mas, ao segurá-la, sua aparência se modificou e ele se transformou no Yeoshua hierático que eu viera a conhecer nos últimos anos, e que me virou as costas, colocando-se à minha esquerda, sem me olhar.

Quando eu ia tocá-lo, desejando que falasse comigo, outro trovão soou, e do horizonte veio caminhando de costas sobre as mãos e os pés, como uma aranha, Ageu, a boca escancarada e babosa, os olhos completamente brancos. Andou rapidamente em minha direção, erguen-do-se apoiado em um cajado feito da Vontade de Yahweh, com a forma de uma letra yod. Gargalhando convulsivamente, virou-me as costas e se colocou à minha direita. Minha fonte começou a doer terrivelmente: erguendo as mãos até ela, percebi que o que me apertava o crânio era a coroa de esmalte azul com estrelas de ouro que eu usara enquanto fora rei de meu povo. Atirei-a ao solo, e ela, tomando a forma de um thet, imediatamente começou a parecer-se com Ananias, vestido com os mais pobres andrajos que se pudesse imaginar, segurando nas mãos um candeeiro de pedra que emitia uma luz puríssima. Ele me pôs as mãos sobre a cabeça, exatamente no lugar onde a coroa havia feito surgir a dor fazendo-me virar para trás, para que eu visse o céu se abrir e dele surgirem duas colunas cercando um gigantesco ser. Era um chet, que tomou as feições de meu irmão Cyro, o Grande, sorrindo tristemente enquanto erguia a balança e a espada que segurava. A espada foi colocada em minhas mãos, e sua lâmina tinha um gume de Maldade e outro de Benevolência, e quando a sopesei, apertando-lhe o punho, um grito de milhares de bocas soou em uníssono, e me vi novamente sobre a ponte do Rio Gabbarah, onde um carro de proporções gigantescas vinha em minha direção, trazendo os cadáveres de todos os homens que eu matara na batalha.

Recuei dois passos, segurando a espada à minha frente, e depois os ataquei sem temor, pois estavam mortos, espalhando seu sangue por todo o Universo. Estes cadáveres, tomando a forma de milhares de letras zayin, caíram sobre mim como chuva, lavando-me de todo o sangue que me recobria. Nu como havia vindo ao mundo, de meu peito um estranho ser feito de sombra e luz, as letras vau e heh reunidas em uma só, saiu rodando no espaço, com as formas de Rhese e Jael, em conúbio amoroso, e tudo o que eles sentiam eu também sentia. Meu ventre se distendeu mais uma vez, dessa vez sem dor, e eu acabei por colocar no mundo uma criança também feita de luz e sombra, que eu sentia ser meu filho, mesmo sabendo que não o era. Segurei-o em meus braços e olhei-lhe o rosto, que era ao mesmo tempo o meu e o de Rhese e o de Jael, como se os três houvéssemos colaborado em partes iguais para que nascesse. A criação de que eu fora incapaz se fazia possível em sonho, mais fabulosa ainda quando o recém-nascido, olhando-me com a profundidade de um homem feito, abriu a boca e disse:

— Quem nada possui, nada tem a perder.

Uma música fortíssima começou a soar, e de dentro de meu peito foi vagarosamente saindo a letra beth, com a força da Criação à minha frente transformando-se em Sha'hawaniah, dançando e meneando os quadris com a volúpia de que sempre me recordava, e que mais nada me fazia sentir. Ela, grudada em meu peito por fios de uma matéria que eu não sabia qual fosse, a cada instante fazia mais força para causar-me algum efeito, e quanto mais esforços fazia, menos eu sentia. Os filamentos que me ligavam a ela foram se esgarçando e rompendo, até que restou apenas um, que foi-se afilando e ficando mais tênue, partindo-se e jogando-a no fundo do abismo insondável do Universo, que era o vazio de meu peito, onde ela deixou de valer qualquer coisa digna desse nome. Tudo que eu vira e que saíra de dentro de mim também caiu no vazio desse abismo das eras, desaparecendo e deixando-me vazio, em trevas, sem ver, nem ouvir, nem pensar. Eu era Nada, e o Nada era Tudo.

Lentamente, depois de um tempo que não sei precisar, o brilho dourado ressurgiu à minha frente, e quando o fixei, já não estava mais sonhando: via a pedra verdadeira à minha frente, transparente como se fosse feita do vidro que os egípcios haviam inventado. Eu via as veias dessa pedra, por onde corria a luz que vinha de alguma fonte à minha direita, dentro do subsolo em que me encontrava. A luz dourada que a tudo permeava se espalhava pelos salões sucessivos das cavernas, de lá explodindo no mundo a que iluminava totalmente. Quando olhei para mim mesmo, também estava cheio dessa luz dourada, que fluía do centro de meu peito e se espalhava por meus membros, tomando-me todo, como se eu também fosse feito de vidro egípcio. A luz fluía dentro de mim, e em meu peito havia agora a pedra que não era mais sem forma, mas finalmente, e para sempre, lapidada e polida por tudo que eu vivera. O que eu perdera era exatamente o que nela havia de excesso, cuja retirada a transformara na lápide cúbica absolutamente perfeita que ecoava a Luz de Yahweh. Meu peito vazio era simplesmente o espaço onde brilhava a luz da vida, nada mais sendo preciso para que eu de novo estivesse vivo, ou quem sabe finalmente vivo pela primeira vez.

Seguindo um impulso irresistível de meu espírito, ergui-me e comecei a trilhar os caminhos que me levariam para fora da caverna. Atravessei salões de todos os tamanhos, ocupados ou vazios, alguns deles coalhados dos restos das pedras que neles haviam sido trabalhadas, outros completamente abandonados, depois de explorados pela mão dos homens que os haviam extirpado de pedaços de rocha. Um salão desses era uma abóbada imensa onde havia uma pequena cachoeira e a piscina natural onde eu me banhava quando lá não havia ninguém. Havia outros homens fazendo sua higiene nessa água, nesse dia, e ao me verem não conseguiram reprimir um movimento de susto, fixando-me em estranho silêncio quando passei por eles. O caminho de saída era um tanto íngreme, e eu o galguei com meus pés descalços, sem saber onde estavam as sandálias com que por ele havia entrado. As juntas de meus braços e pernas doíam: enquanto eu galgava essa trilha gasta pelos inúmeros pés que a haviam trilhado, um grande número de trabalhadores na pedra parava o que quer que estivesse fazendo para ver-me passar. Eu ficara oculto no mais profundo das pedreiras durante tempo suficiente para que se esquecessem de minha existência, e minha presença lhes era no mínimo estranha. Olhei minhas mãos, gretadas e enrugadas, a pele estranhamente pálida. Afastei os cabelos que me caíam sobre os olhos, sentindo que minha barba era imensa, indo muito abaixo do peito. Minhas roupas estavam velhas e esburacadas, encruadas com o pó de pedra que a tudo penetrava. O cansaço me permeava por inteiro, mas a luz dourada que eu ainda sentia pulsando em minhas veias me empurrava para a frente, sempre mais para a frente e para cima, em direção à claridade externa que cada vez aumentava mais, enevoando minha visão.

O mundo exterior à caverna já surgia ao longe, fora da abertura que a cada instante ficava maior e mais clara, e eu recrudesci em meus esforços para chegar ao ar livre, de cujo perfume sequer me recordava. A luz difusa da Jerusalém eternamente encoberta por nuvens plúmbeas ficava a cada instante mais forte, mais próxima. Cheguei à abertura da caverna, cuja frente estava coalhada de pedras polidas dos mais diversos tamanhos, arrumadas em montes diligentemente organizados. Minha figura chamou imediatamente a atenção dos que ali estavam, e que pararam imediatamente de fazer o que quer que estivessem fazendo, permanecendo paralisados, olhando meu lento caminhar para fora das pedreiras. Ergui-me sob a luz do céu, colocando a mão sobre os olhos, enquanto o vento quente me sacudia as vestes e os cabelos, refrescando o suor que cobria a superfície de minha pele.

A minha esquerda, vindo da cidade, um grupo de homens andava em passo cadenciado, e quando se aproximaram quase pude reconhecer alguns deles: um era forte e trazia uma espécie de armadura, outro era velho, as barbas totalmente brancas, e outro, cujos traços me escapavam ao olhar, trazia nas mãos um saco vermelho de formato triangular. Todos vestiam aventais de pedreiro, feitos de branca pelica de carneiro, andando sem mudar de ritmo, vindo em minha direção. Quando o homem mais velho me olhou, teve um sobressalto, e, dizendo alguma coisa aos que o acompanhavam, apertou o passo, fazendo com que todo o grupo também se apressasse.

Foram chegando mais perto, e o homem que carregava o saco vermelho deu um sorriso. Recordei seu nome: Feq'qesh. Os que o cercavam também eram meus conhecidos, mas eu não conseguia juntar nomes a pessoas, pelo menos nesse momento: minha mente estava vazia como se tivesse sido lavada. O homem de armadura correu à frente de todos e, colocando um joelho em terra, gesto que me recordou outro gesto idêntico num passado mais que remoto, colocou os lábios na fímbria de meu manto sujo e quase desfeito. Com as mãos em seus ombros, ergui-o, seus olhos cheios de lágrimas. O homem mais velho chegou-se a nós e me disse:

— Irmão Zerub, como sabias que vínhamos à tua procura?

Tentei falar, mas minha garganta seca não respondeu à minha vontade: a saliva não escorria com facilidade: depois de duas ou três tentativas, consegui emitir alguns sons roucos:

— Não sei de nada. Apenas tive vontade de sair da caverna. Quem sois vós, por que me procurais?

O silêncio era de espanto e incredulidade: eu não entendia por que essas pessoas me estranhavam, já que de nada me recordava e ali estava apenas pela vontade de meu corpo, que me trouxera ao exterior da caverna. O homem que segurava o saco vermelho sentou-se ao chão e abriu-o, tirando de dentro dele uma harpa triangular, que colocou ao colo e sobre a qual começou a passar os dedos, dela extraindo sons que me penetraram a alma mais profundamente que qualquer outra coisa. De chofre, como uma tromba-d'agua, a lembrança de quem eu era e do que fora a minha vida até esse momento me cobriu, fazendo-me abrir a boca em busca de ar, como se me afogasse. Eu era Zerub, o rei prescrito de Jerusalém, que os irmãos da pedra haviam escondido nas pedreiras de Salomão para proteger-lhe a vida e a missão. A idéia de que o Templo tinha que ser reerguido caiu-me em cima como uma pedra: nenhuma dessas coisas me tocava de perto, no entanto, sendo como a vida de uma outra pessoa a quem eu tivesse conhecido, e nada além disso, pois nenhum desses acontecimentos, idéias ou possibilidades tinha qualquer ligação mais profunda comigo. Respirei o quente ar da manhã, virando meu corpo de frente para o lugar onde o sol se erguia, por cima das pesadas nuvens, enchendo profundamente o peito. Estar ao ar livre era uma sensação inacreditável, e eu me sentia renascer, depois do tempo que passara enterrado como se estivesse morto, e do qual agora me erguia como se ressuscitasse. O homem mais velho, Ananias, me disse, enquanto Feq'qesh tocava sua lira, com notas cada vez mais curtas e rápidas:

— A situação mudou, a nosso favor: o filho de Cyro, Cambyses, nosso inimigo e protetor dos samaritanos, morreu e foi substituído por outro Senhor do Mundo. Pelas notícias que nos chegam, este novo é inimigo de tudo o que Cambyses representava e fazia; portanto, deve permitir-nos reiniciar a obra de nossas vidas. Tu te sentes pronto para, mais uma vez, ir à Grande Baab'el pedir por nós e por nosso Templo?

A idéia não me causava nada: passava por mim como a água que escorre por nosso corpo, perdendo-se no chão. Meu protetor grego, de quem agora recordava o nome, Théron, disse:

— Desta vez, irás à Grande Baab'el como Rei dos Judeus, apenas para exigir que se cumpra o decreto de Cyro: se este novo imperador segue seus princípios, certamente não se negará a conceder-nos essa justiça.

Ananias chegou mais perto de mim:

— Tu te sentes disposto a isto, Príncipe Zerub?

O céu clareava, e eu passei a língua nos lábios gretados. Meu coração nada sentia, e eu não via por que não fazer o que me pediam, se isto em nada me incomodava. Sorri:

— Se é o que desejam de mim...

Ananias se aproximou mais, falando com voz mais baixa:

— Mas o teu desejo, Príncipe Zerub, qual é?

Olhei para o lado onde o sol se erguia por detrás das nuvens cinzentas e virei meu corpo e face em sua direção, respirando profundamente, sentindo o ar penetrar-me. Como alguém que tivesse morrido e de repente fosse trazido de volta ao mundo dos vivos, não sendo nem uma coisa nem outra, eu estava suspenso entre vida e morte, sem desejos nem anseios. Olhei para dentro de minha alma, e dela retirei uma única vontade verdadeira:

— Quero beber um pouco d'água.

Théron estendeu-me um pequeno odre feito de pele, e eu bebi o líquido refrescante, que me escorreu pela garganta abaixo, enchendo-me de alívio. Recordei-me de uma viagem por um imenso deserto onde me haviam ensinado que o pior que se pode fazer pela sede é saciá-la: afastei o odre dos lábios e disse:

— Creio que também preciso de um banho e roupas limpas.

Alguém me pôs à cintura um avental de couro, e um manto foi atado em meus cabelos, deixando meu rosto muito barbado ao ar livre. Cercado pelos que ali estavam, começamos a nos dirigir para a cidade que se avolumava logo além. Pisei os pedaços de pedra desgastada que calçavam as ruas e os reconheci como idênticos à pedra que eu fora, eles e eu agora polidos e gastos. As ruas de Jerusalém ficavam a cada instante mais cheias, enquanto nos dirigíamos para o centro da cidade, muitas pessoas à minha volta cuidando diligentemente de seus afazeres. Eu, não: traçava meu caminho sem ritmo nem preocupação, e a harpa de Feq'qesh pontuava meu caminhar, tocando uma música solta, leve, quase sem forma.

Virei-me para Ananias e perguntei:

— Quanto tempo fiquei nas cavernas?

Feq'qesh deu na lira um toque brusco que interrompeu a canção que tocava, e ficamos cercados de silêncio. Olhei-o: ele tinha na face o mesmo sorriso misterioso que era o que dele eu mais me recordava. Os homens que me cercavam também haviam interrompido suas conversas e me olhavam, dando-me a sensação de que toda a Natureza à minha volta se calara. Ananias franziu o cenho e disse, com sua voz muito grave:

— Não te recordas, irmão Zerub? Olhei-o sem entender:

— Certamente que não. — Ninguém respondeu. — Quanto tempo? Ananias me olhou e depois falou:

— Sete anos.

Um súbito raio de sol rompeu as nuvens e me atingiu os olhos, fazendo-me cambalear, as pernas subitamente transformadas em lama.

Sentei-me ao solo, exatamente onde estava, cercado pelos rostos preocupados dos que vinham comigo, entendendo após alguns instantes que, por todos os anos em que estivera nas cavernas onde minha alma se modificara, Yahweh me havia dado a bênção da inconsciência, enlou-quecendo-me para que eu não percebesse a passagem do tempo. Assim, eu me tornara nisso que agora era, sem precisar sofrer mais do que já sofrerá.

 

A taberna onde os pedreiros se reuniam foi o lugar seguro para onde me levaram, ainda cambaleante pela descoberta de que o tempo, até então o maior de todos os tiranos, havia passado docilmente e com muito mais rapidez do que eu imaginara. A sucessão de dias e noites absolutamente idênticos nas profundezas das pedreiras me fizera perder a noção dos dias, e o progressivo isolamento em que me refugiara, afundando nas imagens de minha obsessão com os fatos de minha vida, me haviam feito perder mais ainda o sentido de sua passagem. Trancado dentro das cavernas de mim mesmo, tudo fora apenas um dia e uma noite, até que me sobreviesse o desapego de tudo, garantido pelo sonho de que me recordava nos mínimos detalhes, indicando não haver mais nada dentro de meu peito antes repleto. Tudo de mim se esvaíra, nada em mim restara, e era como se eu tivesse renascido em vida nova, absolutamente deslumbrado por tudo o que me cercava. Cada imagem que me entrava pelos olhos, cada som que me preenchia os ouvidos, cada cheiro, cada gosto, cada sensação tátil, tudo me era rigorosamente desconhecido, como se eu nunca tivesse vivido antes, ainda que me recordasse de ter estado vivo. Meus pensamentos também eram estranhamente novos: eu me ocupava com um de cada vez, dando-lhe toda a atenção que podia, até que um novo tomasse seu lugar. Sentia estar experimentando uma mente nova, e queria ver até onde ela podia ir.

Fiquei sem sair ao ar livre até que meus cabelos e barba fossem cortados e minha aparência lentamente trazida de volta ao que se considerava digno do rei que eu deveria voltar a ser para realizar o que de mim se esperava. A pele de minhas mãos e pés estava dura e gretada, e só depois de alguns dias de massagens com mel e sal grosso, é que voltou a ser como antes. Meu corpo se modificara muito, e as roupas que me apresentaram, todas de excelente qualidade, a princípio me caíram muito mal. Eu não tinha mais o hábito de me vestir, mas minha conformação natural imediatamente se pôs a responder ao trabalho, e a musculatura obtida em sete anos carregando pedras acabou por me dar uma nova postura, de que os que me vestiam acabaram por se aproveitar.

Meus irmãos na pedra fizeram tudo isso por mim em absoluto segredo, pois ninguém poderia saber nem de minha existência nem de meus objetivos. Com a morte de Cambyses e depois a queda da democracia dos atenienses experimentada durante um ano pelos Magos da Pérsia, e logo após a subida ao trono do Príncipe Darius, que reconduzia ao poder a dinastia dos Aquemênidas, os samaritanos haviam ficado em silêncio e inativos, como eu mesmo estivera quando da morte de Cyro. O poder central do Império mudava de mãos e a tudo paralisava, até que o poderoso do momento determinasse com precisão o papel de cada um de seus súditos no cômputo geral das coisas.

Depois de minha primeira semana de recuperação, fui examinado dos pés à cabeça por dois irmãos que já conhecia da oficina de Ragel. Estranhando sua ausência, perguntei por ele:

— O irmão Ragel está morto — disse-me um deles, com a face entristecida. — Foi encontrado de manhã em sua oficina, caído para trás em seu banco, os olhos abertos mirando o céu, a boca com um leve sorriso...

Por um instante, recordei-me de sua figura mirrada e franzina, seus olhos a cada dia mais fechados, o nariz que se abria para cheirar o que ele não conseguia ver, muito mais velho e cansado do que queria acreditar. Fiquei triste, mas essa tristeza dentro de mim era diferente. O que me doía era a falta que Ragel me faria: o sofrimento pela morte alheia é sempre profundo egoísmo, mas seu sorriso na hora final era claro. Ela viera como um alívio de suas dores e achaques, libertando-o do sofrimento da mesma forma que ele a tantos havia libertado dos seus. Isso era o mais importante: a obra que ele deixara justificava sua existência sobre a terra, e eu só desejava que isso também ocorresse com a minha.

Numa tarde muito quente, fiquei no pátio interno da taberna dos pedreiros, olhando para o céu nublado, sentindo o mormaço em meu rosto, quando percebi a presença de Feq'qesh, surgindo silenciosamente a meu lado, sua harpa em uma das mãos e a minha na outra, e na boca o sorriso que eu já não achava mais tão misterioso. Meu mestre sentou-se a meu lado, estendendo-me meu instrumento, e começando a fazer soar o seu, instigou-me a dialogar com ele, opondo-me ao que tocava e complementando sua música, como ele certamente faria com a minha.

Experimentei a medo as cordas de minha harpa, velhas conhecidas a quem eu não vira durante tanto tempo, meus dedos engelhados ao contato com elas. Os sons que delas tirei, hesitantemente a princípio, ainda que inseguros e desentoados, entraram por minha alma a dentro como um bálsamo: guiadas pelas melodias e ritmos de Feq'qesh, minhas notas tatearam o caminho dentro de mim até encontrar aquele lugar íntimo onde todos estamos sozinhos. Circulei por este espaço interno, feito da bela pedra cúbica e polida em que minha antiga pedra bruta se havia transformado: era templo e jardim, e o sol que o iluminava morava dentro dele. Eu tocava com Feq'qesh, quase adivinhando seus próximos movimentos e propostas, essas imagens se firmando dentro de mim, e repentinamente percebi que meu mestre havia parado de tocar, apenas me observando e escutando. A música que soava naquele pátio interno da pobre taberna era agora de minha inteira responsabilidade, e eu dei o melhor de mim, como que prestando homenagens a essa luz que aquecia meu íntimo.

Quando eu já havia dito tudo que tinha para dizer, terminei minha música, recostando-me na parede de alvenaria às minhas costas, novamente de olhos fechados, deliciando-me com o calor do sol em meu rosto. Feq'qesh disse:

— Deste um grande e inacreditável salto como tocador de harpa. Certamente pensaste que, depois de tanto tempo, tivesses perdido o traquejo.

— Não sei de onde vem isso, Feq'qesh. Sabes que sequer me recordei dela enquanto estive nas cavernas? Não acredito que depois de tanto tempo de abandono eu tenha conseguido fazer o que fiz.

— Quando a alma tem valor, ela domina nossa vida, e permeia tudo o que fazemos. A tua teve um imenso crescimento, e por isso é que escorre através de teus dedos para soar em tua harpa. Não te enganes: se não tiveres alguma coisa dentro de tua alma, nada terás para tocar. A música é apenas o verdadeiro sentimento que tens a dividir com os outros: se ele não for real, tua música também não será.

Ficamos olhando o nada por um tempo, e Feq'qesh, mudando de tom, perguntou-me:

— Tu te sentes pronto para enfrentar mais uma vez os poderosos deste mundo e realizar aquilo que se espera de ti?

Perscrutei meu próprio interior: o que poderia ser medo, raiva, insegurança não havia mais, e eu me sentia livre de todos as imposições emocionais, para finalmente agir de acordo comigo mesmo. No meu interior, não falava mais nenhuma voz que não fosse a minha, porque ali dentro não havia mais ninguém senão eu mesmo: das palavras de meu pai, de meus amigos, de todos aqueles que me haviam um dia dito "faz isso." ou "fala isso!" ou então "é proibido!", "não deves agir dessa maneira!", "um rei não se comporta assim!", nenhuma restara. Todas as vozes se haviam calado depois do sonho em que meu passado saíra de dentro de mim, e eu agora só escutava o silêncio de meu próprio espírito, sem palavras, indicando-me o caminho da maneira mais suave e gentil. Virei-me para Feq'qesh e lhe disse, com uma calma que eu mesmo desconhecia:

— Meu mestre, não há o que eu não possa fazer, porque nada temo. Só posso temer aquilo que conheço, e tudo o que já conheço está em meu passado. Meu passado não pode mais ser vivido, e o futuro me é totalmente desconhecido. Por que o temeria?

Feq'qesh riu alto e falou:

— Mudaste muito, Zerub: e espero sinceramente que essa tua nova maneira de ser perdure por todo o tempo em que for necessária. Mas... não temes mesmo mais nada? Ninguém em teu passado te causa ainda qualquer emoção, rancor, ódio, desprezo?

— Ninguém.

Feq'qesh debruçou-se sobre mim:

— E se eu te fizer agora uma lista de pessoas e fatos de teu passado, podes dizer-me o que cada um deles te faz sentir?

Percebi um certo abalo em meu interior, mas não tinha mais como recuar: olhei meu mestre, e ele sorria cada vez mais. O desafio era grande: eu tinha que enfrentá-lo, e disse:

— Como quiseres, Feq'qesh. Feq'qesh falou:

— Teu pai?

Uma imensa tristeza me assomou, mas eu resisti e disse:

— Nada.

— Teu irmão?

Uma tristeza um pouco menor:

— Nada.

— Heman? Iditum?

Uma certa saudade, mas nem um pouco digna de nota:

— Nada.

— Os homens a quem mataste?

Percebi que esses nem rosto tinham, e disse, com segurança:

— Nada.

Feq'qesh respirou fundo, e atirou-me em rápida sucessão:

— Re'hum? Sam'sai? Na'zzur? Bel'Cherub? Sha'hawaniah? Jael? Rhese?

Um grito escapou de meus lábios, enquanto as imagens dessas pessoas que me haviam feito tanto mal me vinham à mente, e as lágrimas se projetaram aos borbotões para fora de meus olhos, porque em meu peito ainda havia alguma mágoa, ira, tristeza, represadas e aparentemente esquecidas, mas nem por isso menos doloridas. Feq'qesh me abraçou e, confortando-me, disse:

— Assim é melhor, Zerub, muito melhor. Bota para fora o que ainda resta aí dentro de ti, livra-te desse lixo sem utilidade. Pensa que, como me disseste há pouco, tudo isso está em teu passado e não pode mais te afetar. Por isso, tenta dentro de ti descobrir de onde vem essa raiva e tristeza, e se elas têm existência real no mundo em que vivemos. Se por acaso encontrares alguma dessas pessoas em teu futuro, não deves estar livre de toda emoção em relação a elas, mas sim ser capaz de controlar a emoção que sentires, por compreender que ela não existe, e portanto de nada vale. Examina teu interior, enquanto sofres tanto, e diz-me: consegues saber onde nasce isso que estás sentindo?

Respirei fundo e pus-me a reparar em mim mesmo, vendo que nenhuma de minhas emoções tinha fonte definida, sendo todas causadas diretamente pela perda de que me sentia vítima, a perda de minha dignidade, de minha integridade, meu poder, meu amor. Se alguém me fizera mal, fora eu mesmo: a responsabilidade sobre minha vida era toda minha, e não dessas pessoas em quem projetava tanta culpa. Livre da culpa inexistente, eu não possuía mais nada, e só podia retomar um passado irreal, já que era ele a única coisa que conhecia. Experiência era apenas o nome que eu dava a meus delírios e sofrimentos, e finalmente compreendi o que sentira ao sair da caverna. Só me restava o futuro a viver, e eu só o conheceria quando o encontrasse: o passado não existia mais, e eu estava livre dele.

Meu peito se esvaziou novamente, e fiquei tranqüilo: as emoções pelas quais acabara de passar agora eram todas apenas objetos de estudo, e encará-las dessa maneira era a única forma de enfrentá-las. Olhei para meu mestre, que sorria, e sorri de volta: só me restava a decisão de seguir vivendo, enquanto vida houvesse, e eu a percebia assim. Meu mestre repetiu uma frase que me havia dito muito tempo antes, e que só agora eu compreendia:

— Para que um rei seja rei, precisa antes deixar de sê-lo, tornando-se pedreiro de si mesmo. Com tempo e trabalho, há de acordar numa determinada manhã e perceber que a pedra bruta se transformou em pedra polida.

Olhamo-nos, erguemo-nos de nossos lugares, seguindo em frente para tratar do que devia ser tratado.

Na reunião de pedreiros dessa noite, tentaram dar-me o lugar de honra, entregando-me o malhete de que Ananias, o condutor dos trabalhos, fazia uso, como símbolo de sua autoridade. Recebi-o na entrada do salão, demonstrando reconhecer a deferência que me faziam, mas imediatamente o devolvi a Ananias, sentando-me a seu lado na ponta da grande mesa do fundo, em torno da qual estávamos. Fiquei calado enquanto a assembléia decidia os próximos passos que eu daria na missão de que ainda era portador. Os samaritanos haviam silenciosa e gradativamente abandonado a Jerusalém que nunca os havia aceitado: nada do que tentaram erguer ou implementar, durante os anos em que Cambyses reinou, dera qualquer fruto ou permanecera de pé. Seus hábitos religiosos, muito fiéis aos costumes dos judeus, só se diferenciavam destes por ser mais rígidos e imutáveis, uma versão mais antiga de nossos cultos, preservada para satisfação da curiosidade das futuras gerações, e nada além disso. Seu poder político se fundamentava na força dos soldados de Cambyses, e quando estes partiram da cidade para exercer seu mister onde ele era mais necessário, a única coisa que manteve os samaritanos no papel de senhores dela foi a falta de rebeldia dos habitantes de Jerusalém. Os religiosos, comandados por Yeoshua, haviam erguido a voz alto o bastante para serem ouvidos pelos que lhes estavam próximos, mas nunca o suficiente para que o palácio os escutasse, porque isto criaria um estado de coisas que não seria confortável para ninguém. Ageu, o louco profeta, continuava calado, confinado, mas dizia-se à boca pequena que seus delírios, por ordem de Yeoshua, vinham sendo anotados para uso no futuro.

Quando os samaritanos deixaram o palácio, voltando para suas cidades ao norte de Jerusalém, levaram consigo mais da metade do harém, Rhese inclusive, além de um grande número de crianças que haviam sido geradas dentro dele, entre elas o filho de Rhese. Os judeus mais próximos, sabendo de minha incapacidade de gerar filhos, depois da fuga de Jael somaram dois mais dois e chegaram à conclusão de que a criança não era fruto de minha semente. Esta notícia, ainda que sub-repticiamente, espalhou-se pela cidade e pelo povo. Eu não gerara nenhum herdeiro, e quando desaparecera nas cavernas do esquecimento, tornara clara a necessidade de uma nova dinastia para o reino de Israel e Judah. Yeoshua acabara por assumir esse papel de dirigente do povo, quando da fuga dos samaritanos, mas sua ação, ao que tudo indicava, estava sempre ligada à religião, e nenhuma questão prática conseguia ser enfrentada se não fosse através desse ponto de vista um tanto limitado.

Um dos irmãos ergueu-se e disse:

— Irmãos da pedra, a política e a religião não são problemas nossos. Temos apenas o dever de reerguer o Templo como nos comprometemos a fazer, e nada mais. Quanto mais afastados estivermos dos problemas mundanos do reino e das disputas sectárias entre devotos deste ou daquele deus, melhor estaremos cumprindo nosso papel.

Muitos irmãos bateram com as palmas das mãos sobre a mesa, externando sua aprovação. Mas Feq'qesh, erguendo-se também, falou:

— Quem te disse que estamos acima das questões políticas e religiosas, meu irmão? Tudo o que é humano interessa à fraternidade da pedra, e as disputas religiosas e políticas não devem ser tratadas como se não existissem. A fraternidade não pode nem deve, é verdade, tomar partido em nenhuma delas. Mas cada um de nós, na medida de sua vontade e raciocínio, tem que participar, porque ninguém pode abrir mão da vida da qual faz parte. E é a soma dessas questões políticas e religiosas, portanto questões da vida, que acabará por nortear-nos comportamento e ação.

Ananias, sentado a seu lado, fazendo uso de sua autoridade de chefe da assembléia, continuou:

— Disseste-o bem, irmão Feq'qesh: a soma de todas as questões, e não a rejeição ou o abandono forçado de nenhuma delas. Tudo deve ser levado em consideração, e, ao final da soma, o resultado deve ser encarado como a verdade, ainda que venha a não satisfazer este ou aquele.

— Perdão, irmãos, mas não compreendo... — disse o irmão que havia levantado o assunto. — Se temos pensamentos diferentes sobre a religião e a política, como podemos discuti-las sem prejudicar nossa união?

— Exatamente porque nossa união está acima de todas essas questões, irmão! — respondeu Ananias. — O laço que nos une está acima de tudo isso, porque é mais antigo, mais profundo e mais sólido, além de completamente independente daquilo que pensarmos ou da crença que tivermos. Nossa sobrevivência está em saber agir coletivamente a partir das decisões individuais que tomamos, pois de nada vale uma decisão da fraternidade se ela não tiver nascido da livre vontade expressa de cada irmão que dela faz parte! Somos homens que pensam antes de agir, meu irmão, e o que aprendemos na fraternidade é exatamente isso: moldar nosso espírito para que ele se torne operário das causas justas e perfeitas. Na fraternidade da pedra, aprendemos a ser exatamente os irmãos de que a fraternidade precisa.

Feq'qesh disse esta frase e um silêncio se fez. Do meio deste silêncio, busquei minha própria verdade. O que eu devia fazer, para que a fraternidade cumprisse seu papel, já havia se tornado parte de mim: eu agora era apenas o responsável pela reconstrução do Templo de Yahweh em Jerusalém, por ser esta a parte que me cabia na obra. Não tinham mais importância alguma minha descendência, as profecias, o meu desejo ou a minha recusa: o que devia ser feito, eu faria, porque aprendera a fazê-lo, nada mais. Eu me tornara o artífice de uma obra única. Levantei-me e, sentindo todos os olhares postos em minha face, disse:

— Estou pronto a cumprir o que falta de minha missão. Quando partimos para a Grande Baab'el?

Timidamente a princípio, mas depois cada vez mais alto e rápido, as mãos bateram sobre a mesa em sucessão ininterrupta, os rostos se acenderam em largos sorrisos, e os irmãos presentes se regozijaram. O que nos faltava era apenas isso, a decisão de seguir em frente na consecução de nossa missão, independentemente das questões políticas e religiosas que a cercavam. Todas as discussões eram apenas uma maneira de adiar o momento irrecusável, pois, uma vez posto em movimento o carro de nossa tarefa, nada poderia fazê-lo parar. Quando o burburinho cessou, Ananias tomou a palavra:

— Nosso irmão Zerub tem razão: estávamos perdendo de vista o objetivo desta reunião. Já enviei mensagem para nosso irmão Jerubaal, e sua caravana chegará a Jerusalém nos próximos dias, pronta para levar-nos através do deserto até a Grande Baab'el, onde nosso irmão Zerub se apresentará em nome de Israel para conseguir que os decretos de Cyro sejam honrados por Darius. Este é nosso objetivo, e não descansaremos enquanto ele não for alcançado.

A sorte estava lançada: mais uma vez, a última, eu enfrentaria os desertos da terra e do poder, voltando à minha cidade natal para encontrar o destino de meu povo e de seu Templo, inextricavelmente unidos através das pedras que um dia se reergueriam graças aos esforços da fraternidade dos pedreiros, da qual eu me sentia mais parte que de qualquer outra coisa em minha vida, o que não era vantagem nenhuma, pois depois de minha saída das pedreiras não me sentia mais parte de mais nada.

Quando a reunião terminou, haviam sido tomadas várias decisões: eu sairia de Jerusalém como apenas mais um pedreiro, e só quando estivesse fora do alcance dos samaritanos, é que assumiria o papel de Príncipe da Paz e Rei dos Judeus, para entrar triunfalmente na Grande Baab'el, nela recuperando o poder que Cyro dera e Cambyses tirara. Desta vez, eu estava disposto a tudo, e não seria impedido por nada, porque nada do que queria reaver era meu. A única maneira de vencer é não temer a derrota, e só não se teme a derrota quando ela nada significa. Quando o medo não está presente, nem a cobiça, nem o desejo, a vitória é certa, porque a derrota não existe.

Quando a caravana de Jerubaal chegou a Jerusalém, alguns dias depois, eu estava pronto para a viagem final de minha tarefa: as roupas finas e os adereços de poder que deveria usar frente a Darius, inclusive a coroa de ouro e esmalte que eu abandonara sete anos antes, estavam preparados e guardados sob o fundo falso de um grande arcaz, para que ninguém desconfiasse do que pretendíamos. Estive com Yeoshua, a sós: ele queria saber o que pretendíamos, pois eu falaria em nome de Jerusalém e do povo judeu. Foi um encontro canhestro: meu antigo amigo, olhar duro, maxilar travado, enfrentava-me como se eu fosse um seu inimigo:

— Só te recebo aqui, Zerub, porque temos um objetivo em comum, mas quero que saibas que nada me une nem a ti nem a teus pedreiros, e que não esperes de mim nenhum apoio a nada que ponha essa maldita fraternidade à frente de Yahweh ou de Jerusalém!

Em outros tempos, eu até tentaria argumentar com veemência, na defesa do que acreditava: mas agora, vazio de desejos e de certezas, só me restava fazer o que devia ser feito. Fiquei em silêncio e depois disse:

— Não te preocupes com isso, Yeoshua: só queremos reerguer o Templo de Yahweh, porque essa é nossa obrigação. Uma vez realizada essa tarefa, ele te será entregue. Mas preciso de tua ajuda para ir até o novo senhor do Império, Darius, pedir-lhe que respeite os decretos de Cyro.

— Pedir? Deves exigir! — Yeoshua parecia querer contrariar-me a qualquer custo. — Ainda és o Príncipe da Paz, mesmo que não tenhas sido capaz de distribuí-la a teu povo... ainda és o Rei de Israel e Judah, mesmo não sendo capaz de gerar descendência... essa, sim, é tua obrigação! Deves ir até esse poderoso de ocasião e exigir dele o respeito que todos devem a Yahweh!

Yeoshua estava mergulhado em um poço de intolerância. Pensei se não seria melhor que ele não tivesse nenhuma crença, a ter essa que o tornava tão amargo contra os que não pensavam como ele. Yahweh não esperava isso de seus devotos: o Deus que tudo criou o fez com a mais absoluta liberdade, amor e respeito. Se nos desejasse todos iguais, a todos teria feito iguais: se nos fez assim tão diferentes, algum motivo tem, talvez o aprendizado do respeito por tudo que os outros não têm igual a nós. Sentei-me, sem tirar os olhos de um Yeoshua quase apoplético, e disse:

— Não estamos juntos por causa de nossas semelhanças, mas sim a despeito de nossas diferenças, Yeoshua. Se pudermos ser úteis um ao outro, sejamos, até que chegue o tempo de nos separarmos. Quanto a Darius, também pretendo estar ao lado dele enquanto isso for útil ao teu e ao meu objetivo, e quem sabe também aos dele. Estou de partida para a Grande Baab'el, onde conseguirei a permissão para continuar as obras interrompidas. Só o poder do Império garantiu aos samaritanos essa interrupção, só o poder do Império pode garantir que retomemos nosso trabalho.

— Que seja. Se quiseres, podes te apresentar como o príncipe que já deixaste de ser, ou o rei que nunca foste. Mandarei que os escribas tracem um documento que garanta a tua autoridade, ainda que ela não seja verdadeira, porque por Yaweh eu sou capaz de tudo!

— Isso me alegra muito, meu amigo... — A palavra fez tremer a Yeoshua, e ele me olhou com dureza: no fundo de seu olhar estava o menino avermelhado que fora meu amigo quando ambos éramos crianças, e eu senti a sua emoção controvertida. — Espero que desta vez também estejas em minha partida, para abençoar-me com a Prece dos Viajantes, como fizeste no ancoradouro da Grande Baab'el...

Yeoshua virou-se de costas para mim, como se quisesse apagar-me de sua visão: mas suas costas trêmulas indicavam que tentava esmagar dentro do peito uma lembrança muito dolorida. Não quis causar-lhe mais nenhum mal: levantei-me e lhe disse:

— Adeus, meu amigo. Fica em paz.

Saí do palácio, enrolado em meu manto, a face escondida de todos, atravessando a cidade coberta de poeira levantada pelo vento. Cheguei à taberna dos pedreiros com marcas nas faces, porque algumas lágrimas havia riscado sulcos em meu rosto empoeirado, à volta dos olhos, molhando o manto que me cobrira a boca e o nariz. Esse pranto não era amargo: na verdade, parecia mais um pranto de alívio. Minha amizade não interessava mais a Yeoshua: como uma planta frágil, ela necessitara de cuidados intensos e constantes. Não os tendo, murchara, sem encontrar terreno fértil onde crescer. Mais uma perda em minha vida: como no sonho que tivera antes de sair ao sol, galgando os caminhos de pedra, tudo saía de meu peito e desaparecia no turbilhão do Universo. Agradeci a Yahweh por isso, porque, nesse momento, nada me era mais adequado que esse vazio.

Na alcova onde eu dormia, escondido de todos menos de meus irmãos mais próximos, sentei-me nas almofadas do leito, segurando a velha e puída fita de tarshata que Cyro me dera, e que alguém havia recuperado quando Re'hum a recusara, sopesando o relicário que ela trazia em sua ponta, aberto e vazio. A moeda, efetiva e inexplicavelmente, desaparecera, mensageira que era de meus ganhos e perdas, deixando-me com uma única certeza: assim que se aproximasse um novo ganho, uma mudança de rumo, uma transformação radical, ela de novo surgiria em minha vida, dando-me o sinal que eu nunca antes soubera ler.

Na manhã seguinte, recebi Jerubaal, que, com exceção de mais alguns cabelos brancos nas têmporas, era o mesmo rijo e seguro chefe de caravana que fora. O abraço que me deu, o beijo na face esquerda que trocamos mostraram que eu finalmente traçaria de volta o caminho que havia seguido, e que agora desfaria sobre meus próprios passos, retornando a meu princípio. Uma vida feita de atalhos, e eu entrara em todos, um após o outro, desde que abandonara a Grande Baab'el. Podia agora tomar o rumo certo: bastava para isso voltar ao ponto de partida e dali, sem hesitação, seguir o caminho reto que deveria ter seguido, se a volúpia por atalhos não fosse tão forte dentro de mim. Jerubaal percebeu minha mansa alegria e me disse:

— Estás bem diferente de quando te conheci, Zerub: mais velho, mais vivido, certamente mais sábio.

— As duas primeiras afirmativas podem ser verdadeiras, meu irmão, mas a última é grandemente exagerada — disse eu, sorrindo. — Não estou nem um pingo mais sábio do que quando nos conhecemos, à beira do fogo, na caravana dos pedreiros de Qornah...

Jerubaal também sorriu, dizendo:

— Impossível, meu irmão: teus olhos indicam um conhecimento que não tinhas quando nos conhecemos. Sabedoria é usar esse conhecimento. Quantos há que conhecem muito mais que qualquer um de nós, e no entanto estão longe da Sabedoria? Não basta conhecer: é preciso saber usar esse conhecimento, e teus olhos não me enganam. Tu o sabes. Mudei de assunto:

— Com que então partimos amanhã, meu irmão?

— Sem dúvida: assim que as primeiras trombetas soarem, estaremos a caminho. Tu verás quantas mudanças o Império produziu na rota que já traçamos juntos: cada oásis se tornou um abrigo perfeito para os viajantes do deserto, como nós, e certamente essa década que passou trouxe grande progresso.

— Mudou muito? Serei capaz de reconhecer os lugares por onde já passei?

— Nesse ponto, Cyro foi justo e perfeito: criou as condições para que cada um de nós realize sua tarefa com facilidade e menos sofrimento. As estradas com que rasgou o Império de ponta a ponta geram uma valiosíssima economia de tempo, esforços e recursos. Seu descendente real usufruiu dessa vantagem, mas nós, os que delas precisamos para realizar nossa tarefa, usufruímos mais ainda. Estás preparado para enfrentar o novo senhor do Império?

— Eu certamente já o conheço: pelo nome, deve ser o raivo vezz'ur de Cyro, elevado ao cargo máximo pelos serviços prestados ao Império. Homens como ele, que ficam ao lado do poder, um dia conseguem tomá-lo para si próprios da maneira mais inesperada. Ele há de se lembrar de mim, pois estava presente quando Cyro traçou os editos que desejamos ver restabelecidos.

— Darius tornou-se importante ao denunciar Smerdis, o irmão de Cambyses, como impostor, matando-o, para alegria dos persas. Cam-byses já havia matado o irmão em segredo, e quando chegou a hora da sucessão, o impostor se apresentou como sendo o verdadeiro Smerdis, mas Darius, que o conhecia, percebeu o embuste e o matou, tornando-se ídolo de todos e com isso se alçando ao poder.

Estranhei a história:

— Não havia ninguém na dinastia Aquemênida para seguir a linha sucessória?

Jerubaal sacudiu a cabeça:

— Ninguém: o único que restou com sangue aquemênida nas veias foi Darius, primo afastado de Cyro, que acabou por tomar o poder com a aprovação de todos. Os Magos tentaram impor-lhe a democracia grega, como forma de controlá-lo, mas ele fez vencer a idéia da monarquia, sagrando-se Imperador dos Persas e herdeiro do Grande Império de Cyro. Parece querer superar seu antepassado em tudo, repetindo-lhe os feitos em dobro: se Cyro ergueu Pasargad, Darius constrói ao mesmo tempo duas cidades, Susa e Persépolis, ocupando milhares de obreiros nesses dois lugares.

Suspirei aliviado:

— Isso me alegra. Se ele pretende duplicar os feitos de Cyro, tendo Cyro sido o melhor homem que conheci, forçosamente terá que ser duas vezes melhor que ele, o que só facilita nossa missão. Podemos seguir viagem o quanto antes, irmão, para quanto antes retornar à execução de nossa tarefa.

A caravana saiu de Jerusalém três dias depois, dirigindo-se para leste, onde tomamos a Estrada do Imperador, que Cyro havia mandado construir ao sul de seu território, atravessando os desertos altos e baixos que eu mesmo percorrera em minha primeira viagem para fora da Grande Baab'el. Não reconheci quase nada nesta viagem: as grandes lajes de pedra, as estalagens erguidas à borda dos rios perenizados pelas grandes cisternas que acumulavam a água cuidadosamente represada, a travessia milagrosa do Wadi Shir'han, o extenso e rico vale que era quase a concretização do Paraíso na terra, tudo tinha uma aparência nova, de coisa recém-criada, e esse efeito era ampliado por minha nova maneira de ser, para a qual tudo era novo, já que nada era permanente, cada coisa surgindo a meus olhos com o máximo de sua singularidade e individualidade, adquirindo valores insuspeitos. Em meu novo Universo, nada que surgia permanecia, assim como nada que desaparecia estava definitivamente perdido. A roda da fortuna girava constantemente, e eu, que me colocara conscientemente em seu eixo, não sofria suas mudanças, observando-as todas com o mesmo distanciamento.

Logo antes de entrarmos no Wadi Shir'han, quando a Estrada do Rei começou a mostrar-se cercada por tamareiras e figueiras, a dois dias de viagem de Jerusalém, assumimos nosso papel oficial de embaixada do Rei de Israel e Judah, em sua primeira visita ao novo Senhor do Mundo, Darius. Longe dos olhos dos inimigos mais próximos, cada um de nós assumiu seu papel determinado pelo planejamento dos pedreiros, mantido oculto até que chegasse a hora, e fizemos o resto do caminho embasbacando as aldeias que encontrávamos com nossa riqueza, nossas tropas perfeitamente disciplinadas, sob o comando de Théron, e nossas carroças, bois, cavalos e j'mal ricamente ajaezados. A notícia de nossa presença nos passou à frente, porque, a partir do momento em que descemos os contrafortes das montanhas em ATJauf, todas as populações das aldeias e os viajantes que se hospedavam nas estalagens do Império, à margem da Estrada do Imperador, corriam ao nosso encontro, saudando-nos com alegria e curiosidade. Dei ordem para que fôssemos pródigos com as moedas que enchiam as arcas em uma das carroças, todas ainda com a face de Cyro, que talvez por causa disso em breve não valessem mais nada. A alegria das populações que nos cercavam era cada vez maior, e fomos protegidos por essa alegria durante todo o caminho, até chegar à margem oeste do Eufrates, poucas milhas ao sul da Grande Baab'el. Na estalagem de ATSamawan, fomos recebidos por um batalhão dos soldados de Darius, que respeitosamente nos escoltaram até a outra margem do rio, pelo vau, e daí em diante para o norte, até que quatro dias depois pudemos ver o brilho das edificações da Grande Baab'el, um arco-íris ao sol nascente.

Fossem outros os tempos, meu espírito se confrangeria com esta visão: mas desta vez eu estava isento de todas as emoções que a Grande Baab'el me causara, de todos os fatos que legara à minha vida, de todas as dores e alegrias que nela vivera e experimentara, pois até mesmo a lembrança do sofrimento, sempre a mais difícil de esquecer, não se fixava em mim. Quando qualquer uma delas surgia à minha frente, eu a atravessava sem lhe dar a menor importância, e ela desaparecia às minhas costas sem me causar nenhum mal. Minha memória, inexplicavelmente, tinha se tornado aquela parte de mim com a qual eu esquecia o passado.

Entrar na Esagila pelo sul da gigantesca cidade, vendo-a renovada, cercada de novos palácios e cada vez mais cheia de gente de todas as procedências e cores, sentindo seus perfumes e ouvindo suas vozes, sua música, suas risadas, foi para mim uma novidade: eu a via como se fosse a primeira vez, e o elenco de homens e mulheres que nessa cidade habitavam, dos quais meu passado andara repleto, surgia e se desvanecia enquanto eu me regozijava com a visão de tudo que o sol iluminava. As passarelas por sobre as avenidas, os templos e palácios, ao longe o brilho azul e dourado da Porta de Ishtar, eu não os percebia como um filho da terra que a ela estivesse retornando, mas simplesmente como um visitante que não pretende permanecer ali mais que o tempo necessário para desincumbir-se de uma tarefa, retornando a seu lar, bem longe dali. Eu não pertencia mais à Grande Baab'el.

Os soldados do batalhão de Darius que nos escoltavam deram sinais de que deveríamos afastar-nos para uma esplanada à frente do Palácio do Rei, cujas portas se abriam de par em par, ao som de inúmeras trombetas de guerra e tambores de profundíssimo som grave. Perfilamo-nos nesse lugar, cercados pela multidão que fixava atentamente o grande desfile que saía do palácio. Subitamente, recordei-me de ter visto coisa similar, e perguntei a um dos guardas:

— Estamos no ano novo? É o décimo dia do festival?

O soldado, curioso, respondeu-me que sim, e eu entendi o que estava por acontecer: o imperador, segundo o ritual, representando Marduq, deveria sair carregado nos ombros dos fiéis para fazer seu percurso até o norte da Babilônia, onde buscaria seu filho Nabuh, que seria trazido em efígie para se juntar às estátuas de outros deuses. Darius, com o poder de Senhor do Império da Babilônia, era o único que poderia fazer esse papel. Seu andor de madeira dourada e marchetada de pedras preciosas já vinha ganhando a avenida, e sobre ele eu finalmente veria Darius, o antigo ve'zzur de Cyro, finalmente erguido às alturas que antes apenas tivera ao alcance dos olhos.

O homem sobre o andor, no entanto; não era o ruivo de que me recordava: sua pele morena, os cabelos e pêlos negros da barba frisada eram os de um persa. Pensei se este não seria mesmo um primo distante que também se chamasse Darius, nome razoavelmente comum naquela região, principalmente entre os aquemênidas. O andor gigantesco saiu do palácio e começou a se dirigir para o norte, passando ao nosso lado, sob as aclamações do povo da Grande Baab'el, e Darius, sobre ele, acenava orgulhoso. A um aumento dos gritos da multidão, que desejava sua atenção, ergueu-se sobre seu trono, ficando de pé e levantando os braços musculosos, enfeitados de braceletes. Pelo lado de dentro do braço direito, havia uma cicatriz esbranquiçada, torta, como se tivesse sido costurada pelo mais inepto dos cirurgiões, repu-xando-lhe a pele de maneira grotesca. A visão dessa cicatriz me fez cambalear, e me firmei sobre o banco da carroça, sufocado, incapaz de acreditar no que via.

Eu era o incompetente autor daquele curativo, feito quase dez anos antes nesta mesma cidade brutal onde nascêramos e fôramos amigos. Ali, senhor todo poderoso do Império herdado de Cyro, estava Daruj, meu amigo perdido.

 

O espanto e descrença foram tão imensos, que, quando dei acordo de mim, o andor já passara, levando meu amigo Daruj inacreditavelmente transformado no Grande Darius. Sem atinar com o que vira, pensei estar delirando pelo cansaço da viagem, ou então vendo coisas como as que vira nas paredes de pedra das cavernas durante os anos de obsessão com meu passado. Impossível, a cicatriz era inconfundível: tendo sido eu mesmo o seu artífice, não me enganaria. Não podia haver duas iguais, assim como não podia haver dois iguais a Daruj. A barulhenta procissão levou muito tempo a passar, e quando finalmente se abriu um espaço à nossa frente, eu estava completamente desarvorado, a tal ponto que Théron, meu general, aproximou-se de mim, preocupado:

— Meu rei sente alguma coisa? Está tão pálido...

Sob o sol causticante da Grande Baab'el, eu tremia de frio: minha pele estava gelada, meu suor viscoso. Fechei os olhos e mergulhei em mim mesmo: sendo Darius meu amigo de infância, tudo provavelmente aconteceria para o melhor, e minha missão estava garantida, mais do que se o novo Senhor do Mundo fosse apenas outro persa poderoso. As palavras que eu queria dizer esbarravam em meus dentes, atropelando-se na língua: eu desejava contar a todos o que vira, mas uma estranha sensação de perigo iminente me impedia. Aceitei essa reação física como um aviso, tomando a decisão de me calar até ter certeza do que fazer, e, assim que abandonei o assunto, meu estado físico foi melhorando, voltando ao normal. Permaneci olhando a procissão que se perdia no Portão de Ishtar, na Esagila cheia de gente a cuidar de seus próprios afazeres.

Os soldados fizeram sinal para que atravessássemos os grandes portões de bronze do Palácio Real, onde fomos recebidos com imensos sinais de respeito, mesuras profundas e olhares de admiração. Nossas grandes carroças foram desviadas para a direita, junto com os animais da caravana e os soldados que por sua carga velariam. Quando eu e meus seguidores, entre eles Théron com sua farda enfeitada de estrelas de prata e Jerubaal com um turbante e um manto de sacerdote, começamos a subir a grande rampa que ascendia em espiral pelo centro do Palácio, circundando a grande cachoeira artificial que a tudo umedecia, olhei para sua metade oposta, aquela que eu descera duas vezes antes de enfrentar as dores mais terríveis de minha vida nos porões de Belshah'zzar. Recordei-me de um adágio que minha mãe costumava repetir sempre que algo de desagradável acontecia pela segunda vez: "não há dois sem três", e temi descer essa rampa pela terceira vez.

Fomos colocados em belos aposentos dois andares abaixo do andar superior, com uma imensa varanda que se abria para o Eufrates. Parecia a câmara onde eu ficara hospedado depois que Cyro me estendera sua mão fraterna, mas isso não tinha a menor importância. Eu só queria encontrar Daruj a sós, colocar em dia os acontecimentos de nossas vidas por todo o tempo em que estivéramos separados, e conseguir a proteção do Grande Darius para as obras do Templo de Jerusalém. Mandei que o soldado que ficava à nossa porta fizesse chegar a seu senhor Darius o meu pedido de uma audiência íntima tão logo ele retornasse ao palácio. Algum tempo depois, junto com os alimentos de qualidade fenomenalmente superior que nos foram trazidos aos aposentos, recebi uma mensagem concisa, que dizia: "O Grande Darius conta com vossa presença na Grande Audiência que terá lugar amanhã no Salão do Palácio, oportunidade perfeita para que receba as homenagens de todos os que vieram à Grande Baab'el reconhecer seu poder e autoridade."

Daruj certamente não havia lido minha mensagem: um escriba ou mesmo seu ve'zzur havia se encarregado disso, respondendo com essa fórmula corriqueira, certamente enviada a todos os visitantes que se hospedavam no palácio. O Festival do Ano Novo era a ocasião em que a grande cidade aumentava sua população em pelo menos mais da metade, tornando-se insuportavelmente superlotada, e dessa vez havia gente de todos os quadrantes do Império, como eu pudera notar em nossa subida pelos corredores do grande palácio. Os súditos de Darius vinham se curvar ao poder de seu senhor, pretendendo com isso alcançar vantagens sobre os outros.

Eu sentia uma estranha emoção: minha alegria em reconhecer o amigo de infância sob a pele do Senhor do Mundo se reduzia cada vez mais, e com a chegada da noite, quando nos arrumamos para dormir, tomei de minha harpa e me pus a tocar, tentando compreender o que me acontecia enquanto a dedilhava. Por mais que eu desejasse um reencontro alegre, mais de irmãos que de amigos, a intuição fazia com que eu controlasse minhas expectativas. Sempre, na busca pelo que desejava, eu atrapalhei a alegria com a esperança: antecipei a felicidade, provando-a em meu coração antes que acontecesse. Nas raras vezes em que as alcançara, não satisfizeram nem minha expectativa nem meus desejos, tornando-se menos que nada. Levei muito tempo para compreender isso, e nessa noite usei a música para convencer-me a agir apenas como observador dos acontecimentos, à medida que ocorressem, sem tentar vivê-los antes do tempo em minha imaginação. Não foi fácil: mas finalmente, com o acalmar de meus ânimos pela música, pude dormir o sono vazio e escuro, no fundo do abismo profundo em que caía todas as noites desde que saíra das pedreiras de Salomão.

Na manhã seguinte, logo ao acordar, certo de haver dormido sem sonhar, minha mente estava cheia de figuras do passado, tal como as vira no único sonho vivido de que tinha memória, as imagens de Daruj e Sha'hawaniah se confundindo com as de Na'zzur e Bel'Cherub, a tal ponto que eu já não conseguia mais me recordar da face de uns sem que as dos outros lhes estivessem sobrepostas. Podia ser meu espírito preocupado o autor dessas imagens inexplicáveis, mas eu não me arriscaria a uma decisão antes que os fatos se impusessem sobre mim.

Saímos pela cidade em caravana, eu e meus companheiros de viagem, e enquanto eu caminhava pela Grande Baab'el, meus soldados atiravam ao povo que nos cercava as moedas que enchiam nossas caixas. Isso nos trouxe inúmeras bênçãos e votos de felicidades e mais riquezas, e quando chegamos ao teVaviv, bairro onde eu vivera até fugir, quase não o reconheci. Quem andava pelas ruas não parecia israelita: os trajes, a língua, os odores das comidas, o pequeno edifício da mikvah fechado e abandonado, assim como a casa de meu pai, portas cerradas e barricadas por tábuas envelhecidas. Meus olhos se encheram de lágrimas, mas meu coração compreendeu que esse lugar que fora minha terra natal já deixara de sê-lo. Ali eu era estranho em terra estranha, não conseguindo sentir nenhuma intimidade com o menino de antes. O povo do teVaviv me recebeu como se recebe a um potentado, pronto a ganhar as benesses que eu desejasse distribuir, e mesmo assim raríssimos me trataram como rei de seu povo. Não havia mais nenhuma identidade entre o que eram e o que seus pais e avós haviam sido: as pontes entre Babilônia e Jerusalém tinham sido queimadas definitivamente, tornando-os outra gente, diferente de seus antepassados, prontas para enfrentar um futuro que todos desconhecíamos.

Depois desse passeio, voltei para o palácio com uma idéia fixa na mente, e chamei Théron:

— Meu general, meu mestre-de-armas, preciso de tua ajuda.

— Estou às tuas ordens, meu senhor. Hesitei, mas lhe disse, em voz baixa:

— Preciso saber notícias de algumas pessoas, saber se ainda vivem na Grande Baab'el, como estão. Podes fazer isso por mim?

Théron sentou-se a meus pés e, tomando de um estilete e uma tabuinha de argila, preparou-se para anotar. Ocultei a face nas mãos, envergonhado de mim mesmo: em meu coração, ainda percebia vicejar a tortuosa paixão por Sha'hawaniah. Era dela que eu queria notícias, e disse:

— Pergunta primeiro por uma sacerdotisa de Ishtar que se chama Sha'hawaniah, se não me engano. Com discrição, claro, pois ninguém deve saber que sou eu quem está curioso: o que descobrires, vem relatar-me imediatamente.

Théron, ao ver que eu nada mais dizia, curvou-se e saiu do aposento. Jerubaal fazia suas orações na varanda e eu me uni a ele, também ocultando minha face entre as mãos, curvando-me até que minha testa tocasse o solo entre meus joelhos. A oração, como a música, também me tranqüilizava: nos últimos tempos, eu compreendera que Yahweh só se torna surdo quando nossos corações estão mudos, e nesse templo dentro de mim eu erguia a voz até Ele em todas as ocasiões que podia, para que Ele, sabendo de minha existência, me fizesse conhecer Sua vontade, tornando-a minha.

O tempo passou sem que eu percebesse, como acontecia sempre que eu me concentrava em minhas orações ou minha música. A cidade começou a acender suas milhares de luzes, assim que as trombetas soaram o fim de um dia e o início de outro, e eu me ergui do chão, para me preparar para o banquete. Théron ainda não dera sinal de vida: eu e Jerubaal nos vestimos com nossos trajes mais ricos, dispostos a exibir importância e valor a esse poderoso que ninguém, a não ser eu mesmo, conhecia verdadeiramente. Quando nos preparávamos para sair dos aposentos, Théron entrou, com passo apressado, parando à minha frente: eu lhe estendi meu ouvido, e ele sussurrou:

— Sha'hawaniah retorna esta noite a este palácio, onde ainda mora como Suprema Sacerdotisa de Ishtar.

Depois de um choque, aceitei o desígnio de Yahweh: seria demais enfrentar num mesmo momento o amigo perdido e a paixão inalcançável. Fiz um agradecimento mudo pelo respeito que Yahweh me concedia, e ergui a cabeça, dizendo:

— Vamos, irmãos: chegou o momento da verdade.

Em cada um de nós, esse momento se mostrava com face diversa, na medida exata do que andava em nosso espírito. Eu, com honestidade, só podia dizer do meu, afogado em um turbilhão de emoções e sentimentos, controlando uma ansiedade que seria péssima para o desenrolar dos fatos. Uma frase de Feq'qesh, o mestre que nesse momento tanta falta me fazia, soou em meu espírito, como se ele a estivesse dizendo dentro de mim: "Aquele que busca a verdade não pertence a ninguém a não ser a si próprio."

O imenso salão estava novo e brilhante, como se tivesse acabado de ser erguido, mas suas formas gerais eram as mesmas de que me recordava. Voltei os olhos para a parede onde Yahweh havia traçado as letras de sua sentença implacável, e nada vi. Tudo havia sido refeito, recoberto de tijolos esmaltados de azul e ouro, que refletiam a luz dos inúmeros archotes de nafta e de um grande candelabro de metal retorcido, suportando várias cubas de vidro onde a nafta queimava com luz amarela, inundando de luz e brilho o salão logo abaixo. O assoalho havia sido recomposto, e no oriente desse salão estava um largo degrau onde ficava o trono de pedra que servira já a tantos senhores da Grande Baab'el. Em toda a volta do salão, além dos wasib'kussim, os conselheiros de que os reis da Babilônia se cercavam, eu vi as inúmeras delegações de reis e governadores das províncias que Darius dominava. Olhei-os todos, um por um: não havia ninguém que estivesse representando a Samaria, e por conseqüência Jerusalém. Eu, que ali estava por minha própria conta e risco, era talvez o único sem cargo efetivo. Como precisava que Darius aceitasse os antigos decretos de Cyro, vestira sobre minha túnica a faixa de tarshatta reencontrada e reformada, mesmo sabendo que a moeda que lhe dava valor não estava em seu escrínio, vazio desde que desaparecera pela última vez.

Estranhamente, os ve'zzirim de Darius haviam-me reservado um lugar à direita do trono, encostado ao degrau. Por um instante, pensei que Daruj, tendo-me reconhecido, houvesse desejado prestar-me essa homenagem, para revelar-nos como amigos de infância assim que entrasse no salão. Ergui o rosto, esperançoso, e com um susto vi, na outra ponta do degrau, o corpanzil untuoso e nojento de Bel'Cherub, mais velha e mais asquerosa que nunca, roendo uma perna de animal, que, malcozida, empapava-lhe a cara de gordura e sangue. Era dela o primeiro diva dos wasib'kussim, todos à esquerda do trono, e fiquei boquiaberto ao ver nossa antiga inimiga em posição tão destacada. Minha mente se encheu de idéias negativas e suspeitas vigorosas, mas não permiti que ela se envenenasse com as dúvidas que meu coração destilava: fechei os olhos, respirei fundo, esvaziando-me de tudo, aguardando que os acontecimentos que se precipitavam me indicassem o melhor caminho a seguir.

Foi uma bênção ter visto Bel'Cherub antes que Daruj entrasse no salão, porque atrás dele, vestindo a faixa e carregando o bastão de ve'zzur, estava Na'zzur, arrogante como sempre, mais até que o próprio Senhor do Mundo, a quem acolitava, olhando para todos os lados de queixo erguido, exibindo ao salão a sua intimidade com o grande imperador. O choque que eu sentira ao perceber a presença da gorda siduri havia de certa maneira me preparado para essa visão inaceitável. Quando vi Daruj secundado pelo homem que havia sido seu mais terrível algoz, foi como se os três personagens estivessem unidos em um mesmo lado da realidade. Eu não compreendia essa união: mas, sendo ela um fato que se me apresentava, tinha que aceitá-la como a via, aguardando suas conseqüências.

Daruj/Darius caminhava calmamente, arrastando os pés, o ventre projetado para a frente, um soldado em descanso, sem mostrar a força acumulada em seus músculos. O rosto moreno estava emoldurado por uma barba muito frisada, assim como seus cabelos, semi-ocultos debaixo de uma coroa cônica, feita de ouro em círculos concêntricos unidos por pedras preciosas de todas as cores, as mesmas que se repetiam em sua roupa franjada feita de algum dispendioso material entretecido com fios de metal. O rosto era o de meu amigo, e ao mesmo tempo tão diferente, que cheguei a pensar se esse poderoso senhor não seria apenas um sósia de Daruj, ou quem sabe um dibbuk que lhe houvesse tomado o corpo para fins inconfessáveis. Saudado por toda a audiência, que se pusera de pé e o aclamava à moda babilônia, com gritos agudos e estalar de dedos, sorriu, mostrando-se exatamente como dele me recordava, quando atravessávamos pontes e muros da Grande Baab'el de nossa infância, entretidos em nossos sonhos de poder e conquista. A cicatriz por trás de inúmeros braceletes de valor incalculável era sem dúvida aquela que eu costurara tão ineptamente, deformando-lhe para sempre a pele do antebraço.

Havia outras cicatrizes em seu corpo: uma muito vermelha podia ser vista pelo ombro esquerdo sob o manto franjado com que ele se envolvia, subindo pelo pescoço até a curva da orelha, e os pés, calçados com botas babilônias de couro macio, tinham os dedos calejados. De todos os que estavam no salão, fui o único que não ergueu a voz para saudá-lo, paralisado pelo que via e me era profundamente estranho: mas os que estavam à minha volta fizeram tal alaúza, que meu silêncio abismado passou despercebido. Théron e Jerubaal, em pé um de cada lado de meu divã, à moda assíria, aguardavam uma atitude minha. Os olhos de Daruj/Darius percorreram todo o salão, e, ao chegarem ao meu rosto, fixaram-se nele por um átimo de instante a mais. Comecei a erguer minha mão para saudá-lo, mas meu gesto se interrompeu a meio, pois seu olhar abandonou minha face e seguiu seu caminho, deixando-me com a mão erguida no ar e um sorriso triste na boca. A cada acontecimento, desde que o vira sobre o altar de Marduq, minha alma se indecidia entre duas possibilidades, a de que ele fosse o meu amigo e a de que não fosse, e suas atitudes, incompreensíveis e ao mesmo tempo corretas, não aliviavam em nada a dúvida que eu sentia.

Darius/Daruj sentou-se em seu trono de pedra lavrada, e o primeiro de seus ve'zzirim, o arrogante Na'zzur, veio à frente, batendo no chão de pedra com um cajado de ponta de metal, símbolo de seu poder, ressoando as dezenas de guizos que o enfeitavam, seu timbre agudamente metálico causando silêncio absoluto entre os presentes. Permanecemos todos de pé, e eu pressentia a presença protetora de meus dois irmãos na pedra, que mesmo sem compreender o que acontecia permaneciam a meu lado, prontos a me dar seu apoio incondicional. Não fosse a certeza de que comigo estariam, não importava o que acontecesse, talvez não tivesse resistido à vontade de tudo abandonar, deixando para trás o salão, a Grande Baab'el, a vida: mas tinha uma missão a cumprir, que já se tornara parte essencial de minha existência. De uma maneira ou de outra, eu levaria para meu povo em Jerusalém uma solução para nossos problemas, e não sairia da Grande Baab'el sem uma resposta a todas as minhas questões.

Na'zzur, com voz estentórea, dirigiu-se à audiência:

— Rendei homenagens ao Senhor Darius, Imperador do Mundo, dividido em vinte satrapias para que ele melhor exerça seu benevolente poder.

Os ve'zzirim que o cercavam puseram a recitar em coro os nomes das satrapias que formavam o Grande Império de Darius, com todas as cidades e povos incluídos em cada uma delas, e eu vi que a Palestina, onde tanto Jerusalém quando a Samaria estávamos incluídos, era parte da quinta, junto com toda a Fenícia, a Síria e a Ilha de Chipre, tendo como limites pelo norte as tribos que se denominavam a'rabs, e ao sul o Egito, que já era parte da sexta satrapia. Um dos ve'zzirim, ao final da listagem de cada satrapia, gritava bem alto o tributo que cada uma delas devia ao Grande Senhor do Mundo: o tributo daquela em que estávamos incluídos era de trezentos e cinqüenta talentos de ouro, soma sensivelmente maior que qualquer outra que Cyro nos houvesse determinado pagar, e a cada grito a platéia soltava um gemido de admiração e espanto. A soma final dos tributos era imensa, uma fortuna incalculável a ser recolhida anualmente aos cofres do Império. Os olhos de Darius/Daruj brilhavam por entre as pálpebras entreabertas, sua mão direita cobrindo a parte inferior do rosto, a cicatriz retorcida se destacando na pele.

Enquanto essa cerimônia se dava, os serviçais do palácio entraram na sala e colocaram aos pés dos leitos as cestas com grandes molhos de coentro, que perfumavam o ar, recordando-me outro banquete igual, de final funesto e inesperado. Não havia música dessa vez, e o bulício das vozes que soavam sem parar enchia o ar de maneira estranha, fa-zendo-me recordar Feq'qesh ocupando o lugar de destaque entre os músicos de Belshah'zzar e cobrindo a cabeça com o manto quando a mão de Yahweh surgira para traçar a sentença poderosa. Eu, se pudesse, também cobriria a minha, para não ver os olhos de Daruj/Darius, disfarçadamente, passarem por minha pessoa, ocultos detrás da mão que lhe tampava a meio a face morena. Ele me observava, eu tinha certeza, e exatamente por isso me mantive calmo e imóvel, controlando o desejo de gritar-lhe o nome e revelar-nos amigos de infância, quase irmãos. Se ele não se permitia a explosão de alegria que nosso reencontro exigia, alguma razão havia para isso, e não seria eu quem o constrangeria com a revelação de algo que certamente não lhe interessava: minha amizade por ele ainda era muito forte dentro de mim. Ou então, quem sabe, não seria tudo um imenso e fabuloso delírio de minha mente, desejando ver onde nada havia aquilo que lá não estava. Darius seria apenas mais um poderoso como tantos outros, e eu, um pobre coitado, delirante, ainda por cima.

Na'zzur, mais emproado a cada instante, coordenava com mão de ferro seus ve'zzirim, que estavam agora em coro e alternadamente narrando os feitos de Darius na conquista de cada uma das regiões que lhe deveriam tributos: inexplicavelmente, a Palestina não foi nominada, e eu fiquei sem saber o que pensar disso. Jerubaal, a meu lado, sussurrou:

— Tratam-nos como se não existíssemos... que motivo terão para isso? Théron concordou, em voz baixa:

— Será Jerusalém assim tão pouco importante para o novo Senhor do Mundo, a não ser na hora de cobrança dos tributos?

Suspirei, e disse:

— Calma, irmãos: se não mencionam Jerusalém entre suas conquistas, também não mencionam os samaritanos. Aguardemos o desenrolar dos acontecimentos, já que não nos resta outra coisa a fazer.

Quando a longa lista de conquistas se encerrou, e as ânforas de vinho grego começaram a circular pelo salão, do fundo da escadaria subiu um ruído cada vez mais forte, e subitamente irrompeu na sala um grupo de pessoas vestidas com trajes coloridos, máscaras exageradas, brandindo cetros, espadas, lanças, objetos dos mais variados formatos. No meio deles vinha um homem de longas barbas brancas, que por um instante pensei ser Feq'qesh, ilusão que abandonei assim que lhe ouvi a voz. Era um hakawabi, o contador de histórias da corte, acompanhado por seus aprendizes, preparados para imitar com gestos os fatos que ele contava com voz muito aguda, em versos acompanhados por tambores. A audiência do salão urrou de alegria ao ver a entrada do grupo, que parecia ter grande intimidade com Darius/Daruj, pois o imperador se debruçou para a frente, interessado neles, e até os aplaudiu batendo as mãos uma na outra, no que foi imediatamente imitado por seus acólitos. O hakawabi tomou o centro do salão e, a um toque mais forte de um tambor, ergueu os braços e começou a perorar:

— Depois da morte de Cambyses, o usurpador Gaumata tomou o poder, contra a vontade de todos os deuses, pois fingia ser Smerdis, filho morto do Imperador morto! O Grande Darius matou o usurpador, mas, enquanto se dirigia à Pérsia, os Magos tomaram o poder, oprimindo o povo com sua religião!

Os auxiliares do hakawabi representavam em mímica a história que ele contava, circulando à volta do salão, atraindo a atenção de todos os presentes. O jovem que representava Darius era alto e andava arrogantemente, pavoneando-se pelo salão, esquartejando inimigos até cortar a cabeça de um deles, que representava Gaumata/Smerdis, fazendo-me refletir como era curioso se um fingidor tivesse sido destronado por outro.

— Uniram-se contra os magos os poderosos Otanes, Megabysus e Darius, e os destruíram em batalha sangrenta! E após essa destruição, reuniram-se para que os deuses escolhessem qual deles deveria ser o Senhor do Império!

Dois homens de mesmo porte do jovem que representava Darius uniram-se a ele no centro do salão. Um deles ergueu o braço a um toque de tambor, e o hakawabi gritou:

— Eis Otanes, que quis ser Senhor do Império estabelecendo o regime grego da democracia entre nós, dando todo o poder ao povo, afirmando que o desejo de um só não é nem bom nem agradável!

Outro toque de tambor, o outro homem ergueu o braço:

— Eis Megabysus, que pretendeu ser Senhor do Império estabelecendo a oligarquia como forma de governo, afirmando que o povo não deve ser governado nem por todos nem por um só, mas sempre pelos melhores entre eles!

Um toque mais forte, e o jovem que representava Darius ergueu os dois braços, recebendo os aplausos de todos, enquanto o hakawabi gritava:

— Eis Darius, que desejou ser senhor de todo o Império, defendendo a monarquia como a forma mais perfeita de governo, pois só através dela o melhor entre os melhores pode governar a todos os outros! E Darius é o melhor entre todos os homens do Império, pois com sua esperteza foi senhor até da vontade dos deuses!

Esta última frase me intrigou: de que maneira a esperteza de um homem, ainda que senhor de todo o mundo conhecido, poderia ser maior que a vontade dos deuses? Minha vontade era a do Deus que me criara. Ele a exibia a mim das mais diversas maneiras, e eu só me tranqüilizara ao compreender que Sua vontade e a minha eram uma só, não havendo como ser de outra maneira.

Os auxiliares do hakawabi haviam vestido grandes máscaras de cavalos, agindo como eles, e circulavam à volta dos três outros, que representavam os poderosos, colocando-se atrás deles como se fossem seu séquito, enquanto o hakawabi girava sobre si mesmo, para que todos o ouvissem:

— Darius combinou com Otanes e Megabysus que o poder sobre o Império deveria ser determinado pelos deuses, declarando-se disposto a aceitar o seu julgamento. Este seria feito por suas montadas: quando se reunissem na planície, de frente para o leste, o primeiro cavalo que relinchasse ao surgir do sol indicaria o escolhido dos deuses!

O moço que representava Darius, apertando as mãos dos outros dois, dirigiu-se para um lado do salão, onde outro aprendiz também mascarado como cavalo, mas com movimentos muito femininos, coleava à sua frente: lá, postou-se atrás desse aprendiz e esfregou a mão em sua traseira, fazendo-o relinchar.

— Darius foi às estrebarias e, encontrando uma égua no cio, mergulhou-lhe a sua mão na vulva, impregnando-se com o cheiro que ela exalava. Só então dirigiu-se à planície, onde, montado em seu cavalo, junto de Otanes e Megabysus, aguardou o nascer do sol.

Do lado leste do salão, três aprendizes começaram lentamente a erguer do chão um espelho de cobre amarelo muito polido, que simbolizava o sol nascente; e os aprendizes que representavam Darius, Megabysus e Otanes estavam atrás dos que representavam seus cavalos, como se neles estivessem montados. Quando o espelho estava todo erguido, um toque de tambor nos chamou a atenção para o rapaz que fazia o papel de Darius, que ergueu a mão e a esfregou no nariz da máscara de seu cavalo, fazendo-o relinchar e corcovear, atirando-o ao solo, de onde foi erguido para o alto pelos que com ele disputavam o poder, sendo imediatamente coroado Senhor do Mundo. O contador de histórias sacudia os braços no ar:

— O cheiro da égua no cio fez o cavalo de Darius relinchar e atirá-lo ao solo, de onde ele se ergueu Senhor do Mundo para sempre!

A platéia urrava de prazer, rindo sem cessar da esperteza de Darius, dando-me a certeza de que aquele era meu amigo Daruj. Eu fora testemunha do dia em que Daruj aprendera o poder do cheiro do cio sobre um cavalo, na planície de Jerusalém onde a caravana em que chegáramos estava acampada! A experiência que tivera o fizera usar o cheiro forte da égua para açular o impulso do animal exatamente na hora em que precisava de seu relincho. Sua frase desacorçoada, ao erguer-se do chão, batendo a poeira das vestes, ressoou em minha memória: "Nem sempre o cheiro de uma fêmea há de derrubar um cavaleiro..."

Pela segunda vez em sua vida, o cheiro de uma fêmea o derrubara, mas desta vez para erguê-lo a alturas nunca antes imaginadas. Meu amigo sonhara ser um importante general, mas, por maior que tivesse sido sua ânsia pelo poder, nem mesmo, ele creio, previra algo tão elevado. Olhei-o, e ele tinha os olhos fixos em mim, rindo: mas logo desviou seu olhar, recebendo os aplausos e homenagens de todos que o cercavam. Meu amigo conseguira o que desejara, chegando ao lugar mais alto que o mundo podia oferecer a um homem. Os momentos de nossa despedida em Jerusalém voltaram à minha mente como se tivessem acontecido no dia anterior, tal a clareza com que os recordava. Estávamos novamente na planície, e eu ouvia os argumentos de meu amigo: "Cada um de nós nasce para uma determinada coisa, Zerub, e nada pior do que se tentar ser aquilo que não se é. O que se espera de um rei, mesmo o rei de um reino tão sem valor quanto este, é a capacidade de lutar nas guerras, vencer inimigos, aumentar territórios, acumular riquezas tomadas dos perdedores e defender-se de todos que porventura desejem o seu lugar. Crês que serás capaz disso?"

Eu não era capaz disso, mas era capaz de outras coisas, como minha presença à sua frente provava. Mesmo assim, sofrera, aprendera, lutara, unira meu povo tanto à minha volta quanto contra mim, e ali estava, pronto a conseguir do Senhor do Mundo o que faltava para que minha missão se completasse. Outra frase de Daruj, viva como se ele a estivesse dizendo nesse exato momento, soou em minha memória: "Se chegaste a ser rei, eu também o farei, com ou sem o auxílio dos deuses, e se for sem, maior ainda será o meu valor. Quando isso acontecer, sau-dar-nos-emos como iguais, e sempre poderemos contar um com o outro, mesmo de lados opostos no campo de batalha."

Será que ele se recordava disso? Em algum momento dessa noite, a lembrança de nossa antiga amizade ressoaria em seu coração de Imperador do Mundo? Escondi a face nas mãos, tentando acalmar o bu-lício de meu coração, para não sofrer, caso o que eu desejava deixasse de acontecer. Quando ergui a cabeça, o salão estava livre dos contadores de histórias, e os convidados tinham voltado às conversas de antes, muito mais animados graças ao que haviam visto e ao vinho que circulava cada vez mais prestamente. Na'zzur estava debruçado sobre Daruj, e olhou-me fixamente a uma frase de seu senhor, dando um sorriso canalha em minha direção, relanceando o olhar até Bel'Cherub e voltando a ouvir o que Daruj lhe dizia. Jerubaal percebeu esse movimento e me disse:

— Falam de ti, irmão Zerub: talvez pudesses aproveitar este momento...

Eu não tinha certeza disso, e respondi:

— Pode ser que sim, pode ser que não, meu irmão. Aguardemos a hora certa para nosso pedido.

Yahweh, dizem os seus fiéis, escreve certo por linhas tortas, e tem o costume de nos dar tudo o que pedimos, mesmo que seja para o pior. É preciso ter cuidado com o que se lhe pede: em minha alma, lá no fundo, ressoava silenciosamente o desejo de que me fosse concedido reerguer o Templo de meu povo, em respeito à memória de Cyro. Conseguiria Daruj, agora transformado em Darius, chegar-lhe aos pés?

Na'zzur gritou:

— O poder de Darius é infinito, e infinita a sua força. Daruj, erguendo as mãos, fez um ar de modéstia, e exclamou:

— Não há rei todo-poderoso, nem mesmo aquele que traz dentro de si a força de um deus... somos todos homens, e ainda que os deuses me tenham escolhido como o melhor entre todos, certamente estou longe da perfeição.

Bel'Cherub, como se acordasse de um sonho, babujou, em voz alta:

— Darius certamente paira entre os deuses e os homens, tal como os semideuses que os tessalienses veneram...

A audiência aplaudiu: o banquete estava se tornando uma oportunidade para que o Senhor do Mundo fosse bajulado por seus súditos, e nas faces ansiosas eu via a pressa de encontrar a frase perfeita, que destacasse o que a dissesse, granjeando-lhe as graças do Grande Rei. Pus as mãos sobre os olhos, fechando-me em mim mesmo, como se estivesse sob o dossel de um manto, na esperança de que o mesmo deus que havia marcado sua presença nesta sala nos fizesse de novo saber de sua existência, através de mim.

Daruj ergueu a mão, com ar cansado, e disse:

— Deve haver aqui alguém que saiba qual é, abaixo dos deuses, a coisa mais poderosa do mundo. Quem tiver essa resposta, que se erga e a profira em voz bem alta e clara, e será recompensado com toda a minha benevolência, podendo vestir-se de púrpura, usar colares de ouro, beber em taças de ouro, deitar-se em leito de ouro, passear em carro de ouro puxado por cavalos ajaezados com ouro, e sentar-se a meu lado, para que eu o trate como a um igual, um parente, um irmão! E além disso ainda poderá ter tudo o que desejar.

O burburinho no salão cresceu: o velho hábito dos governantes, de fazer com que o acaso lhes mostrasse os melhores homens entre seus súditos por meio de charadas e enigmas, deixara a todos em polvorosa.

Cabeças se tocavam, confabulando, olhos se cerravam, enquanto seus donos punham o bestunto a trabalhar, buscando agradar ao Todo-Poderoso Senhor do Mundo. Eu, por meu lado, mantive-me vazio: se Yahweh quisesse me dar a resposta, eu precisava ser uma taça vazia, para que ele a enchesse com o vinho de Sua existência.

Um dos tessalienses que estavam à minha esquerda ergueu-se, arrebanhando o manto, e pigarreou, antes de dizer:

— Nada existe no mundo mais poderoso que um rei! Os homens somos os senhores do Universo, dominando toda a terra, todos os mares, fazendo servir os elementos ao uso que bem nos parece. Mas o rei é o senhor dos homens, reinando sobre aqueles que dominam tudo o que existe. O que pode ser mais poderoso que um rei, se seus súditos estão sempre prontos a obedecer-lhe, indo até mesmo ao combate para defendê-lo e, depois de o fazer, revertendo toda a glória e toda a vantagem da vitória ao rei, que, não precisando nem mesmo semear, goza toda espécie de prazer? Pode-se pois duvidar que o poder dos reis supere todos os outros poderes?

A platéia aplaudiu, batendo as mãos umas nas outras, como Daruj havia feito, mas este nem mesmo se moveu: a frase do tessaliense era por demais adulatória, sendo a primeira que todos haviam pensado em usar, desvalorizando-se por isso. Daruj ergueu os olhos, correndo-os pelo salão e gritando:

— Alguém mais?

Alguns segundos de hesitação, e do lado oposto ao meu ergueu-se um persa vestido com ricos trajes, um tanto mais enfeitado que seu senhor, as faces vermelhas e brilhantes:

— Parece-me, e não há melhor prova, que tudo cede à força do vinho!

Gargalhadas soaram no salão, e o persa continuou, sentindo-se mais seguro por causa delas:

— Tudo cede à força do vinho, porque ele perturba a razão, e até mesmo aos reis põe em tal estado, que eles se tornam crianças, necessitando ser guiados... dá aos escravos a liberdade, empobrece os ricos, alegra os pobres, muda de tal sorte o espírito dos homens, que afoga as maiores misérias e desgraças! E quando, depois do vinho, adormecem, despertam no dia seguinte sem nenhuma consciência do que o vinho lhes causou, encontrando-se com o espírito tranqüilo e limpo... Que dúvida pode haver de que o vinho, sendo mais forte que os reis, seja a coisa mais forte que há no mundo?

Gargalhadas e aplausos da parte dos que tinham suas taças permanentemente renovadas vibraram nas paredes do grande salão, e Daruj, consciente da discutível homenagem que lhe prestavam, ergueu também sua taça, sem dela beber, no entanto. Depois de algum tempo, o persa, percebendo que Daruj não brindava sua vitória, sentou-se desa-corçoado, ficando cabisbaixo enquanto seus correligionários e acompanhantes o parabenizavam escandalosamente.

Daruj pousou a taça e novamente percorreu o salão com os olhos, sem nada dizer. Sua atenção passava por sobre minha cabeça, como se eu lá não estivesse. O burburinho do salão era grande, e um estranho homem moreno de barbas e bigodes encerados, vestindo roupas de cores brilhantes e com uma labareda amarela e alaranjada pintada entre os olhos, ergueu-se, juntando as mãos ao peito e depois erguendo os olhos para Daruj. Théron sussurrou-me ao ouvido:

— É um indiano, certamente o governador da imensa vigésima satrapia.

O homem moreno, cujos olhos pareciam delineados com tinta negra, começou a falar com voz pausada, certamente para se expressar com correção em uma língua que não era a sua:

— Estou de acordo com os que me antecederam, mas devo dizer-lhes que o poder das mulheres é ainda maior que o dos reis e o do vinho.

Gritos e gargalhadas por parte dos homens que ali estavam explodiram no ar, em aquiescência. O indiano baixou a cabeça, e só a ergueu quando o ruído da audiência diminuiu:

— Todos os reis tiveram origem nelas, e se elas não tivessem posto no mundo aqueles que cultivam as vinhas, o vinho não existiria. Devemos tudo às mulheres, que com seu trabalho nos concedem as maiores comodidades da vida. Sua beleza tem tanto encanto que nos faz esquecer o ouro, a prata, as riquezas sem tamanho, e basta que uma delas nos conquiste para que por ela tudo abandonemos, pai, mãe, família, rei... eu mesmo já vi a esposa do Grande Darius, Apaméia, tomar-lhe a coroa da cabeça e colocá-la em sua própria, e o Grande Darius não fez mais do que rir, deliciado com ela. Que outro ser neste mundo conseguiria isso?

A platéia delirava, principalmente porque o indiano, com gestos mais que lânguidos, tinha um certo quê dessa fêmea poderosa que tão bem descrevia. Todos ali se recordaram de pelo menos uma dessas, que lhe tivesse um dia acendido o fogo no baixo-ventre, e pela qual tivesse sido capaz das coisas mais terríveis ou sublimes. Eu mesmo me recordei de Rhese, mas a imagem recorrente de seu corpo enleado nos braços de Jael não foi o que me veio à mente: lembrei-me dela como mais gostava de vê-la, em seu pomar, trabalhando a terra.

Um tranco em meu quadril direito me fez olhar para o chão: não havia ali ninguém que pudesse ter-me puxado a faixa de tarshatta, mas na ponta dela o relicário a esticava como se dentro dele estivesse pendurada uma pedreira, cortando meu ombro com seu peso, e meu coração deu um salto. Abri o relicário: dentro dele estava a moeda desaparecida, a mensageira de Yahweh, e quando a tomei em minha mão, ela estava quente como se tivesse passado pelo fogo. Apertei-a entre os dedos, e subitamente por detrás de minhas pálpebras surgiu de novo a gloriosa torrente de letras que eu já não via desde muito tempo, dentre elas destacando-se três, um aleph, um mem e um thau, formando a palavra emet. Eu sabia a resposta, e me ergui num salto, ficando de pé com os olhos cravados nos de Daruj, que não tinha como desviá-los de mim. A sala estava em silêncio absoluto, e enquanto as letras giravam à minha volta, fazendo-me ver que tudo o que estava naquela sala era formado por elas, ouvi minha voz dizer, como se não fosse de mim que estivesse saindo:

— O maior de todos os poderes é a mais infinita de todas as coisas existentes, à qual nada se compara, nem as mulheres, nem o vinho, nem os reis! A injustiça nada pode contra ela! Enquanto todas as outras coisas são perecíveis e passam como um relâmpago, ela é imortal e subsiste eternamente, e as vantagens com que nos enriquece não duram menos que ela mesma! A fortuna não a pode tirar de nós, nem o tempo alterá-la, porque ela está acima de seu alcance e é tão pura que nada a pode corromper! Por maior que seja a terra, por mais alto que seja o céu, por mais rápido que seja o curso do sol, nada entre o céu e a terra consegue ser maior que seu poder!

Daruj ergueu-se a meio de seu trono, fixando-me pela primeira vez em muitos anos, sobrecenho cerrado, fuzilando-me com seu olhar.

Esticou o braço em minha direção, fazendo um gesto de me apressar, e disse:

— Vamos, revela que poder é esse, eu te ordeno!

Fitei-o durante um longo tempo, tentando enxergar, sob a patina que ele exibia e expressava, o amigo de infância que me fora tão caro ao coração. Nada vi, a não ser um homem endurecido por suas conquistas e para quem a amizade deixara de ter qualquer valor. Suspirei profundamente, a moeda queimando-me a palma da mão, e antes que um trovão poderoso soasse no céu sobre o grande palácio, disse, em voz alta e clara:

— A Verdade!

 

O salto que Daruj/Darius deu, os olhos injetados, os punhos cerrados, numa exibição flagrante de ódio, arrancou das bocas de todos que ali estavam um grito surdo de espanto. Ele deu dois passos para a frente, em minha direção, pronto para saltar-me à garganta como um animal faminto de sangue e vingança. Mantive meu olhar fixo no seu, movido por essa força incontrolável que me conduzia, preenchendo-me de uma compreensão tão perfeita das coisas do mundo, que eu imediatamente vi o que o movia. Não era ódio: era medo, e seu corpo poderoso era todo formado por inúmeras repetições das mesmas três letras, peh, heh e daleth, formando a palavra pachad. O que Daruj sentia era medo de mim e do que eu sabia: eu, e apenas eu, podia revelá-lo como sendo quem ele realmente era, não um príncipe descendente de Hystapes, mas sim o filho de um tapeceiro, erguido aos píncaros da glória ao apoiar-se em uma mentira. Em minhas mãos estava o destino do mais poderoso de todos os homens, pois eu era o único que podia revelá-lo sem nada perder. A seu lado, a figura grotesca de Na'zzur também se recheava de pachad, misturado com as três letras, nun, zain e kuf, formando a palavra nezek, prejuízo. Todos naquele palácio temiam o prejuízo que se configurava. Essa palavra pairava por sobre todas as cabeças de quem ali estava, e era quase como se a mão de Yahweh a estivesse traçando em letras de fogo negro por sobre todas as coisas, assinando de próprio punho Seu Nome em todas as suas criaturas.

Percebi de repente, olhando para Daruj, que onde parecia haver força, havia medo, onde parecia haver poder, havia medo, onde parecia haver segurança, havia medo. Eu não pretendia ameaçá-lo: em respeito à amizade que havíamos tido, deixei de lado o poder e a força de causar-lhe medo, baixando a cabeça e fechando os olhos, sem nada dizer. Era preciso que eu preservasse em mim a amizade que sentia, sem me preocupar se era recíproca ou não. Bastava nesse momento que eu fosse amigo de meu amigo, poupando-o do constrangimento de ver revelada publicamente a verdade sobre sua origem, e nossa amizade se perpetuaria. Eu devia dá-la a ele como um presente, em holocausto do que tínhamos sido, mesmo que isso significasse a perda do que eu havia ido buscar, porque pobre é o Senhor do Mundo que não conhece a amizade, e o mundo ainda é preço baixo demais a pagar por ela.

Não sei quanto tempo se passou, mas quando abri os olhos, Daruj arrebanhava seu manto e se preparava para deixar a sala, virando-me as costas. Foi para suas espáduas tensas que eu disse, em voz alta, tentando concretizar aquilo a que me havia proposto:

— Grande Darius, Senhor de Todo o Mundo. Como teu súdito e verdadeiro tarshatta de Jerusalém, peço-te que me concedas o direito de reiniciar as obras do Templo de Yahweh, como o determinou vosso antepassado Cyro! Esse edito ainda existe em teus arquivos, e basta que o faças cumprir, em honra daquele que foi tão grande quanto tu!

Na'zzur virou-se em minha direção, irritado:

— Em nome de quê fazes esse pedido, infiel? Como ousas tentar impor tua vontade sobre teu senhor Darius?

— Em nome da Verdade! — As espáduas de Darius tremeram ao som dessa palavra. — Lembra-te que, ao cumprir o desejo de teu antepassado, podes vir a ser maior do que ele! Esta é a Verdade das Verdades!

Darius parou, mas depois saiu caminhando em passo mais lento e deixou o salão, sem se virar nem uma vez, passando pelo grande arco sob as saudações dos súditos que nada compreendiam do que se passara entre nós. Virei-me para Jerubaal e Théron e lhes disse, com tristeza:

— Vamos, irmãos, está tudo perdido.

Meus irmãos me ladearam, e eu, em passo lento, os olhos enevoa-dos por lágrimas amargas, deixei o grande salão de banquetes. Yahweh me enchera com Sua vontade, e essa vontade dera resultados terríveis. A qualquer momento, a ira de Darius cairia sobre nossas cabeças: sendo ele um verdadeiro todo-poderoso, esperaria o momento certo para aplicar-me o corretivo por minha ousadia. Isso levaria algum tempo, contudo: minha morte teria que esperar o instante adequado, para que ninguém sequer desconfiasse do que se havia passado entre nós. Ainda me restava algum tempo de vida.

Guardei a moeda miraculosa em seu escrínio na ponta de minha faixa e subimos os corredores em passo lento. Eu me sentia descendo para as masmorras onde sofreria a tortura final. A qualquer instante, os soldados de Darius poderiam manietar-me e levar-me para os horrendos porões de meu amigo, ou quem sabe, numa curva mais escura dos corredores uma faca bem colocada entre minhas espáduas daria cabo da ameaça que eu representava. De minha parte, nada disso era problema: eu fizera o que podia, dera o máximo de mim, e, como Feq'qesh já me havia dito, Yahweh não espera que cumpramos a tarefa, mas apenas que não nos eximamos dela, e eu não me eximira da minha.

Quando íamos chegando à porta de nossos aposentos, um vulto se ergueu das sombras. Théron saltou à minha frente, com a espada curta em riste, mas era apenas um sacerdote de Ishtar, o rosto pintado de azul-índigo, que se curvou à minha frente, entregando-me um rolinho de papiro. Quando o abri, o perfume que dele se evolou me fez girar a cabeça, e a frase escrita em letras do mesmo azul-índigo flutuou ante meus olhos:

"Sha'hawaniah, Sacerdotisa de Ishtar, aguarda uma visita imediata do Rei dos Judeus, para dar-lhe o que sempre lhe negou."

Meu coração disparou, e do fundo de minha alma uma onda de imensa carência se ergueu, quase me sufocando em sua violência. Mas minha alma não era tudo o que eu tinha dentro de mim, e a razão me trouxe à lembrança uma outra recusa, sem motivo justo. Nada havia mudado em minha condição: eu ainda não era Rei dos Judeus, segundo as exigências que ela mesma estabelecera daquela vez, e não pretendia mais ser um joguete entre seus dedos, como já fora em tantas oportunidades, até que a consciência da Luz de Yahweh me desse as armas para enfrentá-la.

Théron percebeu minha emoção, dizendo-me:

— Meu Rei, o que quer que esteja escrito nesse papiro te deixou mais abalado que a reação inesperada de Darius. Posso ajudar-te de alguma maneira?

Suspirei, fitando Jerubaal pela porta entreaberta, enrodilhado ao solo em oração, a cabeça coberta pelo manto. Meu desejo também era o de fechar-me em mim mesmo, enterrando a cabeça na areia até que a tempestade passasse, como se aquilo que eu não visse não me pudesse afetar: mas essa não era mais a minha natureza, e eu desaprendera como fugir de mim mesmo. Envolvi-me novamente no manto que acabara de tirar, e disse a Théron:

— Podes ajudar-me, sem dúvida: apanha minha harpa e ora por mim.

Abraçando meu instrumento musical como um escudo, segui o acólito de Ishtar com seu passo curto, subindo para um andar acima do meu, traçando o caminho até os aposentos de Sha'hawaniah, sem permitir que meu coração sentisse qualquer coisa, e ao mesmo tempo temendo que ele explodisse, por tantas emoções nele represadas. Quando lá chegamos, a porta se abriu como que movida por vontade própria, e, na penumbra olorosa, as sombras se moviam por entre os inúmeros panos que me separavam do leito, um território de sombra mais escura a poucas braças de mim. O som das campainhas muito agudas e das vozes sussurradas me tonteava, mas eu apertei contra o peito o saco vermelho onde minha harpa estava guardada, sentindo seu volume e forma tão familiares, neles me reassegurando de minha própria existência.

Eu já passara por aquilo duas vezes, num suplício que nunca chegara a bom termo: mas desta vez minha vontade teria que ser maior que meu desejo, já que o que se avolumava em meu baixo-ventre, depois de tantos anos sem me recordar que ali existia uma fonte de prazer avassalador, fazia com que eu lentamente perdesse o pouco controle que ainda tinha. Quando estava a dois ou três passos da borda do leito, depois de superar as incontáveis barreiras sucessivas de panos transparentes e azul-escuros, estanquei. Não conseguia avançar mais. Sentei-me ao solo, as pernas subitamente amolecidas: a harpa permaneceu à minha frente, defendendo-me. Numa súbita inspiração, buscando uma segurança que não possuía, tirei-a do saco e experimentei suas cordas com as pontas dos dedos. Isso me deu um pouco de confiança, e eu me pus a tocar uma linha melódica calma e descansada, que se repetia sem cessar, como que me concentrando em um só ponto de meu interior para que não me perdesse de mim. Quase não percebi uma mão de unhas pintadas de negro que saiu pelos cortinados e avançou em direção a meu rosto, só a notando quando me tocou a face com leveza, enquanto sua dona emitia o mesmo som sibilante da primeira vez que nos víramos, ela sobre um andor no porto da Grande Baab'el e eu no chão, entre seus adoradores. Minha melodia se interrompeu por um instante, mas logo a retomei, cada vez mais suave, enquanto Sha'hawaniah, uma sombra por trás dos panos em sombra, disse:

— Recebi todos os recados que me enviaste, e de cada vez que a luz de teu deus me tocou, foi como se me tivesses ferido de morte. Doeu muito, mas foi pior quando não tive mais notícias de ti, como se tivesses desaparecido no fundo da terra. Por que não aceitaste minhas ofertas de prazer? Cada uma de minhas fiéis era como se fosse eu mesma, e eu as enviei a ti como prova de meu amor e interesse. Eu nunca te esqueci, meu príncipe, mas só percebi a falta que me fazias quando começaste sistematicamente a rejeitar minhas ofertas. Se eu não podia dar-me a ti, elas eram a melhor forma de me manter em tua companhia...

Eu não compreendia: então as inúmeras mulheres que me haviam saudado em nome de sua senhora Ishtar eram enviadas de Sha'hawaniah, e a cada vez que eu rejeitara uma delas era Sha'hawaniah que eu estava rejeitando? Se pelo menos eu tivesse sabido disso... mas o mal que essas mulheres me faziam era mais forte que eu, e minha integridade pessoal só se tornara verdadeira quando eu as enfrentara, fazendo com que a vontade de Yahweh e a minha fossem uma só. Baixei a cabeça, ainda em silêncio, e continuei tocando. A voz de Sha'hawaniah cresceu e ficou trêmula, e ela quase gritou:

— Por que te calas? Não me queres? Não tens nada a dizer? Estou aqui preparada para arriscar tudo e ser tua, sem reservas, sem nenhum tipo de condição, deixando que a deusa que mora em mim se una com o deus que tens dentro de ti, para que juntos dominemos o mundo! Não me desejas mais?

Minha voz se embargava na garganta, e eu não sabia o que fazer, o que dizer, de que maneira agir. O medo de mais uma recusa me paralisava, e, a não ser pelos dedos que não paravam de se mover por sobre as cordas, eu era como uma estátua de carne. Sha'hawaniah avançou por sobre a borda do leito, abrindo os cortinados, e na penumbra seu vulto se avolumou sobre mim, suas mãos sacudindo-me os ombros, terna mas fortemente:

— Falai Não é possível que nada me tenhas a dizer. Se não me queres mais, falai Teu silêncio me desespera... falai

Tirei as mãos da harpa e, subitamente envolvido em uma certeza extrema do que deveria dizer, falei-lhe:

— Que meu senhor Yahweh te cubra com Sua Luz.

Um súbito relâmpago iluminou o leito onde estava Sha'hawaniah, gritando, e a imagem que vi não era a da bela morena com que sempre sonhara, mas sim a de uma mulher muito mais velha, cansada, os cabelos degrenhados, o corpo descarnado. Foi só uma visão fugaz, à luz do raio, mas que se queimou em minhas retinas profundamente, lá permanecendo por muito tempo depois que a sala voltou à penumbra. Sha'hawaniah soluçava:

— Já não te disse o quanto essas palavras me ferem? Por que me queres magoar com esse teu deus de crueldade infinita? Vem, deita-te comigo: hoje serei toda tua...

Alguma coisa em minha alma se desavinha: ao lado do desejo imenso e antigo, uma estranha desconfiança se avolumava. A imagem da mulher que o relâmpago iluminara, a boca escura como um poço seco, não estava de acordo com a imagem da mulher que eu aprendera a não desejar, para minha própria tranqüilidade de espírito. Disse-lhe:

— Quero-te ainda, e muito... mas quero-te onde pela primeira vez me deste o prazer: na varanda por sobre o Eufrates.

Ela recuou, e os cortinados caíram entre mim e ela, enquanto dizia:

— O leito é tão melhor para o amor entre um deus e uma deusa, meu príncipe. Se nos unirmos, eu serei tua sacerdotisa e tu finalmente serás o meu rei... vem!

Sua mão me segurava pelo pulso, puxando-me para dentro dos cortinados: a pele dessa mão era fria e viscosa, como a de alguém que tivesse acabado de passar por um ataque de febre. Segurei-lhe o pulso, para não ser arrastado, e seu punho estava fino como um bracinho de criança. Soltei-a assustado, preso de surdo e dolorido pressentimento, erguendo os cortinados para vê-la como realmente era, e não com os olhos de meu desejo ou minha memória. Ela se arrastou para o fundo do leito, ocultando-se de bruços atrás de uma pilha de almofadas: eu a segui, de gatinhas, arrancando os cortinados em meu caminho, e quando todos já estavam no chão, cheguei até ela, virando-a com decisão.

O que vi à minha frente era uma imitação cadavérica da mulher que eu desejara tanto, e que agora parecia feita de gravetos e lama, magra além do humanamente possível, as faces encovadas, os ralos cabelos desgrenhados para dar a impressão de volume, a pele pintada com argila rosa para parecer saudável, sem conseguir mais do que aumentar meu choque, pelo contraste. Ela gritou, debatendo-se para escapar de mim, e sua boca era um buraco hiante, dentro do qual não havia um dente sequer. Onde estava a fascinante mulher que me excitara ao ponto de fazer-me gozar sem nem mesmo tocar-me? Ela se retorceu em meus braços, e eu a soltei, pois tive medo que se quebrasse em minhas mãos, transformando-se em cacos à minha frente. Estava muito doente, pelo que eu podia perceber, e quando caí desarvorado sobre as almofadas, e ela percebeu que meu primeiro susto já passara e sua aparência terrível se tornara mais suportável, disse-me, as ralas melenas ocultando sua face, dentro da qual só os olhos fundos brilhavam como se fossem brasas vivas:

— Sim, meu príncipe, é isto o que me tornei! Meu corpo hoje nada tem daquilo que te gerou desejo... mas eu sou a mesma de antes, não vês? Meu espírito ainda é o mesmo que conheceste, a deusa que vis-lumbraste em mim ainda continua viva aqui dentro! Não temas, não estou leprosa: a doença que me enfraquece é só minha, e podes me tocar à vontade sem que ela te seja transmitida... só quero te dar o meu amor, que te espera faz tempo...

Minha face certamente expressava tudo o que eu sentia, ao vê-la assim tão sem atrativos: nesse momento, entendi que o que me atraía para ela era simplesmente o físico, nossos corpos se aproximando em negaceios, como pássaros em uma dança de acasalamento. Não havendo atrativos na fêmea, o macho se desinteressa dela, e eu estava repleto de desinteresse, como meu corpo me revelava sem deixar dúvidas.

Sha'hawaniah também notou isso, e sua face se encheu de raiva impotente: puxou-me pela mão e contra a minha vontade arrastou-me para um lado dos aposentos, onde o espelho de metal muito polido refletia a luz dos archotes que o ladeavam:

— Tens nojo de mim, de meu corpo? Pois olha o teu!

Se meu susto ao percebê-la tão destruída fora grande, não se comparou ao que senti quando enxerguei no espelho, ao lado de sua degradação física, um velho de faces rugosas, ventre encovado, joelhos cambaios, com trajes de qualidade que não conseguiam ocultar sua decadência. Os sete anos que eu passara enterrado nas pedreiras haviam se multiplicado por pelo menos três, e se minha idade real era a de quase trinta anos, o homem corrompido que me olhava de dentro da superfície metálica tinha o dobro disso. Eu e Sha'hawaniah, lado a lado, éramos duas múmias ressecadas, como as que os egípcios faziam de seus mortos e que de quando em vez afloravam à terra, qual tubérculos apodrecidos da morte. A vida, o tempo, nossas missões, nos haviam cobrado um preço alto demais, e éramos agora os restos daquilo que poderíamos ter sido.

Ela ergueu a mão até um ombro e, desatando a fivela que segurava suas vestes, desnudou o seio esquerdo, quase inteiramente roído por um cancro, olhando-me com olhos tristes. Havíamos deixado de ser homem e mulher: eu era incapaz de perpetuar minha semente, e ela não podia sequer pretender amamentar as crias que porventura tivesse. Baixei a cabeça, para não ver a mim mesmo, e as lágrimas saíram de meus olhos aos borbotões, empapando as mãos que eu erguera até o rosto, envergonhado de minha própria miséria.

Sha'hawaniah suspirou profundamente, e disse:

— Tens razão: somos verdadeiramente asquerosos, porque cada um ainda sonha consigo e com o outro como fomos antes de nos tornarmos o que somos. É preciso extinguir essa ilusão, esse engano. Já entendi que não tens nenhum desejo por mim, mas preciso saber se não te desperto pelo menos um pouco de amor ...

Meu silêncio foi o suficiente: depois de algum tempo, ela disse, com um fio de voz:

— Eu te entendo. Teu corpo também não me oferece nenhum atrativo, mas eu ainda sinto no coração o amor que durante todos esses anos te neguei. Tranqüiliza-te, não te peço mais nada: se te amo, como te amo, não quero te condenar à prisão perpétua a meu lado, porque já basta que estejas obrigado a ela dentro do teu próprio corpo.

Um urro lancinante escapou de sua garganta:

— Oh, Ishtar, deusa de quem fui filha devota e fiel, dá-me a graça da transformação! Faze de mim novamente aquilo que eu sempre fui! Interrompe o tempo! Faze-o voltar atrás!

Seus punhos cerrados esmurravam o ar acima de sua cabeça, mas nada aconteceu, e ela deixou que seus braços caíssem ao longo do corpo, derrotada. Depois, erguendo os olhos, aprumou-se e disse:

— Quero dar-te um último presente, o único de que ainda sou capaz de dispor. Vem comigo até a varanda...

Minha respiração se interrompeu, e ela continuou, com um sorriso triste:

— Acalma-te, meu príncipe: não pretendo te obrigar a nada. Quero dar-te o melhor de minha arte sagrada, pois a deusa que vive dentro de mim ainda é capaz de dançar. Eu ficaria profundamente honrada se me desses a honra de fazê-lo ao som da harpa tocada pelo deus que mora dentro de ti...

Hesitei, mas depois compreendi que estávamos predestinados a isso: ela e eu éramos apenas vestígios dos deuses a quem servíamos, e que nunca poderiam unir-se, nem mesmo se o desejassem. Sendo duas partes de um deus, separados como estávamos, nunca mais poderíamos ser um só: aquilo que se parte não se recompõe jamais. A única coisa que poderíamos fazer juntos era a que nos unira pela primeira vez, minha música e sua dança, círculos excêntricos que nunca se tocariam, ainda que girassem cada vez mais próximos um do outro. Recordei-me de uma vez em que Feq'qesh me falara da Lua e do Sol perseguindo-se eternamente pelos céus, sem nunca se encontrar, e se a Lua só se iluminava quando tocada pela luz do Sol, este só se justificava ao dar-lhe a luz de que ela necessitava para brilhar.

Recuei até onde deixara minha harpa, tomei-a nas mãos e acompanhei Sha'hawaniah até a varanda onde ela me dera o prazer pela primeira vez, sentando-me no mesmo banco de madeira e tijolos em que antes estivera. Ela se postou à minha frente, banhada pela luz da Lua cheia que clareava o céu estrelado, erguendo os braços por sobre a cabeça, esperando por mim. Fiz soar a frase musical que era minha mais remota lembrança, tangendo as cordas da harpa com todos os dedos, vendo a resposta imediata nos quadris ossudos de Sha'hawaniah. Sem tirar os olhos de seu corpo debilitado, fui acrescentando notas e ritmo reconstruindo o templo a meu toque, percebendo que cada detalhe se refletia nos movimentos que seus membros e ventre faziam, de tal forma que a partir de certo instante não conseguia mais saber se minha música gerava a sua dança ou se era precisamente o contrário. Unidos em criação espontânea tornamo-nos um só, e seu corpo, começando a perlar-se de gotas de suor que o faziam brilhar como se jovem fosse, coleava e se movia em uníssono absoluto com meus dedos nas cordas da harpa. Sob meus olhos a transformação que ela pedira a sua deusa se processava miraculosa-mente, e eu podia ver o organismo doente se renovando de dentro para fora, a cada movimento. Em mim, também essa força e juventude se renovavam, e meus dedos se moviam com a mesma rapidez que minha mente, propondo melodias, acrescentando um toque a mais ou a menos na frase de ritmo ímpar, sublinhando e contrapontando a dança que a iluminava por dentro. Em minhas veias corria um fogo que eu não sentira existir durante muito tempo, e quando, sem que isso precisasse ser acertado entre nós, começamos a agir como quem conversa, minha música e sua dança perguntando e respondendo, imitando e acrescentando, seu corpo e meus dedos unidos e complementares.

Um relâmpago súbito me fez tremer: sua luz fria desvendara a ilusão a que nossas artes nos estavam induzindo. Nem ela mudara nem eu retornara ao que antes fora: continuávamos exatamente como éramos antes da dança começar, pois o tempo sempre traz à luz aquilo que andava oculto, ao ocultar aquilo que brilha em todo o seu esplendor. Meus dedos se ergueram das cordas, e os movimentos de Sha'hawaniah se interromperam, deixando-a inerte sobre o chão de tijolos vidrados da varanda, banhada em suor, ofegante. Fechei meu olhos e busquei na memória um presente que lhe pudesse dar, como sinal de despedida. Nada me vinha à mente, e o silêncio só era cortado pela respiração difícil de Sha'hawaniah. Do fundo de minha mente cansada, surgiu como a luz de uma pequena candeia o Cântico de meu avô Salomão, que Feq'qesh cantara na primeira vez em que o ouvira, uma fonte de água limpa em meio à sujeira da taberna de Bel-Cherub. Limpei a garganta e, com a suavidade de quem se despede para nunca mais voltar, cantei-lhe:

— "Cruel como os abismos é a paixão, suas chamas são chamas de fogo, e ainda assim uma pequena faísca do Deus que nos criou. As águas da torrente jamais poderão apagar o amor, nem os rios afogá-lo. E se alguém quisesse dar tudo o que tem para comprar o amor, seria tratado com desprezo..."

Sha'hawaniah me olhou fixamente por entre os cabelos durante todo o tempo em que cantei, e quando minha voz cedeu ao final de meu fôlego, estendeu as mãos para dois de seus acólitos, que se aproximaram dela e tomaram cada um um de seus braços descarnados, as longas unhas negras sobressaindo mais ainda, tal a palidez de sua pele. Eles a ergueram com cuidado, e Sha'hawaniah ficou de pé sobre a balaustra-da, sorrindo em minha direção:

— Eu te liberto, meu príncipe, ficando na prisão por ti e por mim mesma. A deusa que mora em mim foi finalmente derrotada, e é preciso que se oculte para poder ser revelada quando sua hora chegar. Vive tua imortalidade terrena, junto a teu deus: eu de minha parte me entrego a minha deusa, para não ter que entregar-me à morte viva da terra.

Quando ela abriu os braços, revi-a sobre a mesa de ouro de Marduq, ao fim de sua dança, enlevada pela presença de Ishtar dentro de sua alma. O sorriso que ela abriu era idêntico ao que nesse dia eu vira em seu rosto, dando-me a certeza de desejá-la acima de qualquer outra coisa, inclusive eu mesmo. Ela tomara esse mesmo ar divino quando se atirara para trás, sendo apanhada pelos doze sacerdotes de Marduq, que a levaram sobre as cabeças para dentro do aposento onde Ishtar e Marduq se tornavam um só, garantindo a fertilidade da Grande Baab'el por mais um ano.

Desta vez não havia doze sacerdotes para apanhá-la: seus olhos miraram o céu por sobre sua cabeça, e com as palmas das mãos viradas para cima, o corpo perfeitamente reto, ela se deixou cair para trás, mergulhando desse terraço vertiginoso sem mover um músculo sequer. Dei um salto para a frente, debruçando-me sobre a balaustrada, e vi seu corpo imóvel caindo em direção às águas revoltas que ficavam no fundo desse abismo, desaparecendo nele com um forte ruído, que chegou até mim tão alto quanto meu próprio grito de desespero. Virei-me para seus acólitos, todos contritos e silenciosos, sem mover um músculo sequer. Agitei-me entre eles, buscando algum sinal, alguma reação, e repentinamente descobri que tudo havia sido planejado por ela, o chamado, a sedução, a dança, a subida na balaustrada, o mergulho final por sua própria vontade antes que a morte a viesse buscar sem que ela soubesse quando. Voltei à balaustrada e olhei longamente as trevas abaixo de mim, enquanto os acólitos de Sha'hawaniah se punham a trautear um canto surdo e repetitivo, que vibrava em meus ouvidos. Era sua última homenagem a sua senhora, e eu, movido por um impulso incontrolável de minha emoção, tomei de minha harpa, acariciando-lhe as cordas pela última vez, e depois atirei-a no mesmo abismo em que Sha'hawaniah se jogara. A dança da deusa e a música do deus finalmente unidos no silêncio da morte, como não fora possível em vida. Virei-me para a porta de saída, deixando para trás a cena perfeitamente estática dos fiéis que oravam. Saindo dos aposentos da sacerdotisa, fechei a porta atrás de mim, encerrando o momento final dessa dor constante que nunca havia sido o resultado de nenhum prazer ou pecado, mas apenas e tão-somente a incompreensão que ambos tivéramos de nossos papéis na batalha divina pelo poder sobre as criaturas.

Desci o longo corredor em passos cada vez mais lentos, consciente de que, agora sim, finalmente tudo perdera, tanto aquilo que me era caro quanto aquilo que não desejava, e nada mais possuía. Minha missão chegara a um final inglório, eu não tinha mais nenhum objetivo em minha vida, pois até minha música havia sido entregue a quem de direito. Perdera amigos, amores, prazeres, ao mesmo tempo em que me livrara de adversários, ódios, sofrimentos. Nada fora como eu desejara, tudo fora como eu temera, mas isso não tinha qualquer importância. A impermanência de todas as coisas era como uma segunda pele em minhas costas, cobrindo-me e agasalhando-me como nenhum manto jamais o fizera.

Entrei em meus aposentos: à luz dos candeeiros que os iluminavam, vi Théron e Jerubaal refazendo os fardos de viagem, ajudados por quatro de nossos servos. Sobre um escabelo ao lado de meu leito estavam meus trajes de viajante, perfeitamente dobrados e arrumados, limpos de todo sinal de poeira. Passei a mão sobre eles: sua aspereza era bem-vinda, pois, para quem em seu íntimo nada mais sente, a aspereza de um tecido assume o valor de uma carícia. Meus irmãos perceberam meu mutismo e delicadamente nada disseram, permitindo que eu me banhasse e deitasse em meu leito sem nenhuma pergunta ou frase. O homem mais poderoso do mundo certamente é o que se sente mais só, e nessa noite eu certamente era o mais poderoso de todos os homens. Acordei pela manhã com fortes batidas na porta: quando me ergui sobre as almofadas, percebi que Théron já tinha sua espada curta desembainhada, os pés firmemente plantados no solo, colocado entre mim e quem quer que estivesse por entrar. Não havia, no entanto, mais nada que me pudesse ameaçar, e por isso pus os pés no chão, passando por Théron e gritando:

— Entrai

A porta se abriu com um repelão: do lado de fora estava a figura arrogante de Na'zzur, o ve'zzur de meu senhor Darius, que havia sido meu amigo Daruj, antes de transformar-se no poderoso que era agora. Na'zzur me olhava com um sorriso cínico no rosto, perguntando-me:

— O poderoso tarshatta de Jerusalém permite que eu entre? Trago importante mensagem do Grande Darius, Senhor do Mundo.

Olhei-o sem que nenhuma emoção me movesse a alma: nada mais havia no mundo com poder sobre mim. Eu me entregara a meu destino de forma absoluta, e o que quer que se passasse desse momento em diante efetivamente nada significava. Fiz-lhe um sinal que entrasse, sentando-me no escabelo de ébano e couro que ficava a meio caminho entre nós dois. Ele franziu o sobrecenho, dizendo:

— O tarshatta já se prepara para partir? Por que motivo?

Eu sorri, ele também: certas coisas não precisam ser ditas. Sem desviar os olhos de mim, Na'zzur bateu palmas, e pela porta entraram dois escribas, trazendo nas mãos várias placas de argila, apoiadas em duas placas de pedra que os faziam suar, pelo peso. Na'zzur fez um sinal para eles, que colocaram as placas no chão entre nós dois, retirando-se com uma reverência. A porta se fechou, e Na'zzur disse:

— Seria melhor que ficássemos a sós, tarshatta. O que tenho a dizer não deve ser ouvido por outra pessoa além de nós dois.

Théron soltou um muxoxo de incredulidade: como aquele homem podia pretender ficar a sós comigo? Na'zzur bateu as mãos por todo o corpo, deixando de lado seu cajado de ve'zzur, dizendo:

— Não tema, general: não estou armado, e só trago comigo, além das palavras escritas na pedra e no barro, as palavras que devo dizer. Serão elas mortais? Eu duvido...

Olhei-o longamente, percebendo que não o temia em absoluto. Nem ele nem mais ninguém tinha qualquer poder sobre mim: eu me tornara apenas a ferramenta de meu deus Yahweh, e se um dia haviam pretendido que eu fosse Moisés, David, Salomão, agora eu era apenas uma espécie de Ageu, tomado por um poder maior que eu mesmo, sobre o qual não tinha nenhuma ascendência. Disse a Théron:

— Meu irmão, tu e Jerubaal podem sair do aposento por alguns instantes, sem preocupações. Conheço esse homem, e ele não representa nenhuma ameaça.

Théron hesitou, mas Jerubaal, olhando-me com firmeza, acenou em concordância e, tomando o braço de Théron, retirou-o dos aposentos, acompanhados pelos quatro servos, já carregando os fardos que haviam refeito. A porta se fechou atrás deles, e Na'zzur, relaxando, sentou-se em outro escabelo à minha frente, passando a perna por cima de um dos braços do assento, olhando-me com um sorriso de ironia. Não desviei os olhos dele, que finalmente falou:

— Com que então voltamos a nos encontrar, não é verdade?

— Desta vez, sim — retruquei, sem pensar muito. — Mas teremos realmente nos encontrado alguma vez antes dessa, Na'zzur?

Na'zzur riu, deliciado:

— O tarshatta recorda meu nome? Quanta honra... mas não falemos de encontros e desencontros. Vês essas placas de pedra e de argila? São tuas, tarshatta, ainda que eu não saiba por quê...

Olhei as placas, friamente. Uma das placas de pedra era mais velha que a outra, e a mais nova trazia ainda o pó cinzento que havia produzido ao ser marcada com o cinzel do escriba. Eu também era uma pedra, marcada pelo cinzel do deus que me usava, com palavras que até para mim eram incompreensíveis, e, como ela, só tinha a dizer o que esse deus em mim escrevesse com seu cinzel. Pedra vazia, continuei olhando para Na'zzur, que deixou de rir e disse:

— São documentos de Darius confirmando o edito de Cyro sobre a reconstrução do Templo de Jerusalém, que meu senhor mandou buscar nos arquivos do palácio e reeditar com seus próprios selos. Tarshatta, tu conseguiste o que querias, ainda que eu não entenda nem como nem por quê...

Nem eu entendia, mas Yahweh, por meios inalcançáveis, dava-me novamente a oportunidade de satisfazer a meu povo, minha terra, meus irmãos e a Si mesmo. O preço que eu pagara por isso era alto, e o que eu provavelmente ainda pagaria podia ser maior. Não importava. A minha frente estava o que eu viera buscar, e o cumprimento da obrigação só me enchia de um sentimento: conseguira o que durante tanto tempo desejara, e ao alcançar esse objetivo me descobria completa e finalmente livre. Fiquei extasiado, como nunca antes em minha vida, pois o vazio dentro de mim começou finalmente a se preencher da mais absoluta gratidão que um ser humano pode sentir, feita de minha memória e minha compreensão, erguidas até Yahweh como reconhecimento de Seu poder e Sua vontade infinitas. Minha vontade e a de Yahweh finalmente eram uma só.

 

Na'zzur me olhou com curiosidade: meu rosto certamente espelhava todo o êxtase de que eu era recipiente, nesse momento sem jaca. Quando me recompus, ainda tomado pela felicidade de perceber minha vontade como sendo a de Yahweh, ele afivelou no rosto mais um de seus sorrisos cínicos, dizendo:

— Se não houvesse Daruj, esta conversa seria bem diferente, Zerub...

Estranhei a frase: ele certamente ousava muito, ao referir-se a seu senhor e a mim com os nomes com que nos conhecera antes que nos tornássemos aquilo que agora éramos. Eu e Daruj o enfrentáramos quando ele ainda era apenas um soldado de Belshah'zzar. No entanto, olhando-o bem, percebi que mudara muito: do grosseiro soldado que assassinava colegas na suja sala da taberna de Bel'Cherub, do covarde que se disfarçara com os trajes do inimigo para sobreviver, do tortura-dor que seguia as ordens expressas de seus senhores, transformara-se em um homem com grande aparência de dignidade, o que certamente lhe era muito útil para o exercício de seu cargo. Sendo o faz-tudo do Senhor do Mundo, tinha em suas mãos o poder de agradá-lo da maneira que desejasse. Ele se debruçou para a frente, a cara risonha muito perto da minha, e falou:

— Tu te recordas quando eu te disse que a diferença entre nós era eu ser necessário, e tu seres dispensável, e que nenhum poderoso pode prescindir de gente como eu, disposta a fazer as coisas com que eles detestam sujar as mãos, e que tu serias sempre vítima, porque dentro de ti não existe a capacidade de ser amo e senhor? Lembras-te disso?

Eu o recordava tão vivamente quanto me lembrava da dor que o arame incandescente me causara. Sorri, percebendo o grotesco da situação, mas Na'zzur certamente entendeu mal meu sorriso, pois franziu a testa, apertando os olhinhos porcinos e mostrando os dentes num esgar de desprezo:

— Eu sabia que chegaria ao ponto em que agora estou. Quando reconheci no Grande Darius, Senhor do Mundo, o ladrãozinho que já estivera diversas vezes em minhas mãos, agradeci a Marduq não tê-lo matado quando pude: o conhecimento da verdade sobre ele me tornou indispensável, porque, além dessa, também sei de muitas outras coisas que me tornam essencial ao exercício de seu poder. Teu amigo nunca aprendeu a ler nem escrever, e não conhece nada senão a vida das casernas e acampamentos entre batalhas, e só se move bem em espaços abertos e nos caminhos entre territórios conquistados. Dentro de seu palácio, ele depende de mim para tudo, e não ergue uma palha sem que eu lhe diga como, onde e por quê. Eu sou o verdadeiro poder do Império, porque meu poder subjuga o poder de Daruj...

Recostou-se no escabelo, olhando-me com curiosidade:

— Não sei o que aconteceu de ontem para hoje: quando lhe confirmei que o tarshatta de Jerusalém era seu antigo amigo, ele chegou a erguer-se do leito para ir a teu encontro. Mas convenci-o de que isso não era bom, com argumentos irrecusáveis, e ele acabou por desistir de te dar o reconhecimento dessa antiga amizade. Eu vi Darius tremer, Zerub, eu vi Daruj sofrer quando lhe acenei com a possibilidade de que tu fosses o denuncia-dor de sua farsa. Ele não quis nem te olhar: pretendia tratar-te como mais um de seus inúmeros governadores, dar-te as ordens necessárias e descartar-te da melhor maneira possível, destruindo-te, se fosse preciso. Darius não pretende arriscar nenhuma de suas conquistas, e para mantê-las ele conta só comigo, que guardo como um tesouro o seu segredo.

— Esse segredo é teu poder, certamente, mas não és senhor nem de ti mesmo, Na'zzur...

Um ódio imenso chispou nos olhos de Na'zzur:

— O que dizes? Estás louco? Foi minha vez de rir:

— Folguei muito em ver tua senhora Bel'Cherub entre os wa-sib'kussim da Grande Baab'el... ela ainda faz de ti tudo que quer?

Os olhos de Na'zzur se arregalaram, e no fundo de seu olhar eu percebi a velha chama de submissão à asquerosa giganta. Ele desviou os olhos, dando-me a certeza de tê-lo tocado em ponto sensível, e por isso continuei:

— Se tens tanto poder assim sobre o Senhor do Mundo, igualan-do-te a um deus, o que diremos do poder daquela que te domina? Deveríamos considerá-la uma deusa acima de todos os deuses?

Na'zzur baixou a cabeça, mas não estava derrotado. Ergueu-se do escabelo e, pegando uma das plaquinhas de argila, mostrou-a de longe:

— Vês esta plaquinha? Foi a primeira que Darius mandou traçar: nela está a tua sentença de morte imediata. Mas ao preparar-se para passar-lhe o cilindro com o sinete real, tornando essa ordem oficial, ele hesitou. Por mais que eu insistisse em que eras um perigo, ele não teve forças para apoiar o sinete na superfície úmida. Olhou longamente a cicatriz que tem no braço direito, antes de largar o sinete e virar as costas para mim. Desse momento em diante, eu não compreendi mais nada: sem me olhar, Darius ordenou que eu chamasse um escriba para traçar as ordens que permitem a reconstrução de teu Templo e, o que é mais estranho ainda, obrigam os teus inimigos a sustentar esse esforço como indenização pela interrupção que causaram. Nos arquivos, foi encontrado o edito original de Cyro, e ele fez com que o copiassem letra por letra, nessa nova placa de pedra que aí está, firmando-a com seu próprio selo logo abaixo da assinatura de Cyro. Quatro escribas trabalharam a noite inteira, sob a supervisão dele, que não cerrou os olhos nem um instante, e quando o sol nasceu ele mandou que tudo fosse juntado e que eu, seu ve'zzur, tudo trouxesse a ti, sem perda de tempo.

Na'zzur sorriu:

— Confesso que tive vontade de nada trazer-te, mas certas ousadias nem eu mesmo me arrisco a praticar. Olha bem esta outra placa de argila: essa garatuja que aqui vês foi feita pelas mãos do próprio Senhor do Mundo.

Fitei longamente a placa de argila: traçada da direita para a esquerda estava a palavra Darius, insegura e torta, o quarto sinal mais torto que os outros, como se seu autor tivesse começado a escrever uma coisa e se decidisse subitamente a escrever outra, corrigindo a palavra Daruj para que se tornasse Darius. Daruj não estava morto, continuava vivo dentro de Darius, por sua vontade expressa, dando-me esse sinal disfarçado de sua existência, que nem Na'zzur havia notado, preocupado com alguma possível ameaça a seu próprio poder, sem perceber os sinais particulares que só eu poderia reconhecer.

— Portanto, Zerub, segue teu caminho. — Na'zzur se ergueu, retomando a posse do bastão de ve'zzur. — Volta à tua terra e faze o que deves fazer, enquanto Darius segue sua vida vitoriosa longe de ti. De minha parte, só espero que teu povo cumpra tudo o que se espera dele, pagando todos os tributos e mantendo-se o mais afastado possível da Grande Baab'el. Tratemo-nos como vizinhos que não se dão mas que não podem se mudar, como irmãos que se detestam mas não podem negar seus laços de sangue. Vai-te embora com o que conseguiste, sem pensar em conseguir nada além disso. Tudo o que Darius espera de ti e de teu povo é distância.

Era definitivo: meu amigo não queria me ver, nem falar comigo, e muito menos reatar nossos antigos laços, e eu devia levar em conta essa verdade. Não me interessavam os motivos pelos quais ele se unira a seu antigo inimigo, nem de que forma esse inimigo exercia tanto poder sobre ele, nem mesmo de que maneira conviviam: esta era a sua decisão, e eu devia respeitá-la integralmente, respeitando a amizade que ainda sentia por ele. Ergui-me de meu escabelo, parando ao lado das placas de pedra e argila:

— Dize a meu amigo que a amizade que nos une é a mesma de sempre, e mesmo se ele não a reconhecer como tal, ela continua existindo, porque dentro de mim nunca morrerá. O desejo de seu coração é também o meu. Que sua vida seja a mais longa de todas.

Na'zzur olhou-me, com um estranho ar em seu rosto:

— Interessante que me digas isso: a idéia original de matar-te pode ter adormecido dentro de Darius, mas não se apagou em mim. Pensa sempre que um belo dia, quando tudo estiver esquecido, a morte te alcançará. Meu braço é longo, pequeno ladrãozinho...

— O que me ofereces não é nenhuma novidade. O braço da morte é mais longo que o teu, e também te alcançará, um dia, sem que saibas quando nem por quê, da mesma maneira que a mim e a Darius. Nenhum de nós é imortal, servo de Bel'Cherub...

Na'zzur endureceu-se: assumindo o ar arrogante de sempre, dirigiu-se à porta, dizendo:

— O Grande Darius espera que faças uma boa viagem de volta, tarshatta de Jerusalém! Desejo-te saúde e vida longa...

— E eu te desejo paciência, Na'zzur. Nada sabemos do futuro, e tudo o que ele trouxer só será de nosso conhecimento quando acontecer. Aguardemos.

Os olhos de Na'zzur chisparam, ele abriu a porta e saiu dos aposentos, passando por Jerubaal e Théron, que o olhavam boquiabertos. Meus irmãos entraram na sala onde eu estava, ao lado das placas que autorizavam o cumprimento de nossa missão, e por sobre elas nos abraçamos. Era hora de retornar à nossa cidade e retomar o rumo de nossas vidas.

Na tarde desse mesmo dia, saímos do palácio, tomando o rumo sul da Grande Baab'el para encontrar em Suk-ash Shuyuk a estrada que atravessava a parte inferior do Império de Darius, e que retraçaríamos de volta a Jerusalém. Na hora da partida, assim que meu carro chegou à Esagila, uma súbita inspiração me fez voltar a cabeça para o alto do palácio. Lá estava uma figura morena, mãos apoiadas na balaustrada dos mais elevados jardins, olhando para baixo. Ergui meu braço em sua direção, saudando-o: a figura, depois de um tempo, ergueu também seu braço direito, passando a mão esquerda sobre a cicatriz que o marcava, como que a desenhando para sempre em nossa memória, e repentinamente voltando as costas para mim e se refugiando no interior de seus aposentos. O que nos poderia ligar era nosso passado comum, e este não era de seu interesse, portanto nada mais havia em que nos firmássemos para continuar sendo quem fôramos. Baixei minha cabeça, enquanto os cavalos, bois e j'mal de nossa caravana iniciavam seu esforço em direção à nossa meta final. Era mais um tempo que se encerrava, deixando-me pronto para o tempo seguinte.

Enquanto a viagem se processou, tive muito que pensar: sem harpa através da qual pudesse expressar o que me ia na alma, só me restava perscrutar-lhe os desvãos e apaziguar-me comigo mesmo. Foi isso que fiz durante os quase sessenta dias em que a viagem se deu. De tudo o que se passara comigo, duas figuras brilharam com mais freqüência: Rhese e Jael, minha mulher e meu irmão, bruscamente alijados de meu convívio por sua traição, de que era prova o menino que eu vira apenas uma vez. O tempo de viagem foi-se passando, e quando saímos do WadiShir'han, onde uma caravana de irmãos pedreiros se juntou à nossa, eu já não considerava mais traição o que havia acontecido entre eles. Nunca percebi em nenhum dos dois qualquer sinal de malícia e dissimulação: tudo o que mostraram durante nossa vida em comum fora amizade e amor por mim, além de uma extrema preocupação com meu bem-estar e felicidade. Seria possível que, movidos por impulso tão animal, tivessem urdido uma traição sub-reptícia, que desagregara suas vidas tanto quanto destroçara a minha? Ou o inacreditável teria acontecido, e os dois, sinceramente preocupados com minha incapacidade de gerar descendentes, tivessem feito uso desse expediente tão discutível para garantir-me a prole? Pensei muito sobre isso, e minha única dúvida foi a seguinte: se em vez de agir dessa maneira oculta, tivessem me informado do que pretendiam, o que faria eu? Ofender-me-ia e os mandaria matar, antes que ousassem ferir-me a honra, ou seria capaz de compreender seus motivos e objetivos e até colaborar conscientemente com eles?

De toda forma, esse problema não era deles, era meu, envolvendo não apenas a compreensão do que haviam feito, como também minha capacidade de entendê-los e perdoá-los. Um irmão e uma mulher, com quem temos ligações mais fortes do que quaisquer outras, merecem permanecer vivos dentro de nós, mesmo depois de mortos ou desaparecidos, mesmo quando dentro de si mesmos nos tenham esquecido ou esmagado. No terreno novamente virgem de meu espírito, eu só precisava replantar os que me eram caros exatamente como eu os conhecera, ainda que na realidade estivessem muito diferentes disso: Rhese, Jael, Daruj, Yeoshua, Mitridates, meu pai Salatiel, e até mesmo o filho que eu tanto desejara e que não tinha em suas veias nem uma gota de meu sangue. Mantê-los vivos e perfeitos dentro de mim era a única forma possível de nunca perdê-los, porque dentro de mim sempre seriam o melhor que poderiam ter sido. O Universo onde esses seres magníficos se moviam dentro de mim era de absoluta perfeição e beleza, porque o amor e a justiça de que eu sempre fora vítima se haviam equilibrado, gerando uma linha direta de compaixão por tudo que vivia, fazendo com que pelo alto de minha cabeça a luz de Yahweh entrasse e me percorresse por inteiro, saindo sob meus pés para espalhar-se no solo onde eu pisava.

Nessa mesma noite, à beira da fogueira, um dos irmãos pedreiros que se juntara a nós me disse:

— Irmão, conheceste um de nossos irmãos por nome Jael? Sufocado pela coincidência, eu disse que sim, e ele continuou:

— Ele verteu grossas lágrimas ao mencionar vosso nome, quando o encontrei numa aldeia ao norte da Síria, sofrendo a distância que o separa de ti.

Algum tempo antes, eu teria encarado como falsas as lágrimas de Jael: mas depois de entronizá-lo em perfeição dentro de mim, junto com todos os outros, não tinha mais como duvidar de sua verdade, e disse ao irmão que me dera a notícia:

— Pois eu pronuncio o dele com um riso de felicidade, prenunciando o que sentirei se um dia o reencontrar...

As decisões sobre o futuro se organizavam lentamente em meu íntimo, tomando forma tão definida e concreta, que eu não tinha mais como modificá-las nem discuti-las: aquilo que em meu espírito se estruturava assim permanecia, somando-se ao que se estruturaria no momento seguinte, erguendo dentro de meu peito uma construção tão sólida quanto imponderável. Quando estávamos a pouco mais de uma semana dos limites de Jerusalém, Théron enviou uma patrulha de seus soldados para avisar de nossa chegada, confirmar as boas notícias que certamente já teriam chegado por lá, e preparar o reinicio dos trabalhos, e eu passei a me mover apenas em direção a esse momento, que percebia ser definitivo, o coroamento de minha vida até então, e o início do novo tempo onde eu finalmente seria quem deveria ser.

Ao superarmos o meio-pântano do norte do Mar de Arabah, onde a Estrada do Imperador já não existia, tivemos que acampar nas cercanias de Guilgal, recuperando forças para galgar as encostas do Anatot, que nos separavam de Jerusalém. Nosso acampamento foi montado de maneira muito frugal, apenas para que as bestas de carga e montaria descansassem, podendo realizar um último estirão até nosso objetivo. Essa última noite foi especial: as nuvens permanentes que cobriam o céu sobre a região de Jerusalém desde que Nebbuchadrena'zzar havia destruído o Templo que eu deveria reerguer, não estavam tão compactas quanto antes, e nos intervalos entre um bloco de nuvens e outro eu pude observar a lua e as estrelas. Sha'hawaniah estava entronizada em meu altar interno da amizade, não como eu a tinha visto antes que se atirasse ao abismo do Eufrates, mas sim perfeita como era no dia em que a conheci. A Lua me iluminava a intervalos, e adormeci certo de que o dia seguinte seria de decisões a tomar baseadas exclusivamente naquilo que eu aprendera e que me tornara.

Pela manhã, fui acordado com o som de trombetas e vozes de muitas pessoas, a agitação do acampamento multiplicada por outras presenças. Ao sair de minha pequena tenda, a luz fria da manhã brilhando através das nuvens cinzentas, encontrei-me em meio a um grande grupo de habitantes de Jerusalém, vestidos com seus melhores trajes, liderados por Yeoshua e seus acólitos, todos vestidos com apuro, seus trajes rituais brilhando de tão limpos. Yeoshua, um turbante de centro cônico na cabeça, vestia o peitoral feito de doze pedras preciosas gravadas com o nome das doze tribos de Israel, tal como fora feito por meu avô Salomão com a ajuda do verme shamir, e que era o atributo principal do Sumo-Sacerdote de nosso povo. Havia cantores, tocadores de harpas, trombetas e sistros, todos colocados em ordem na planície em frente à minha tenda. Quando me aprumei, todos me saudaram, e Yeoshua, irreconhecivelmente hierático em suas vestes e atitude, bradou:

— Exaltar-te-ei, ó Eterno, porque tu me reergueste e não deste gosto aos meus inimigos contra mim.

Os que o cercavam repetiram essas palavras, mas antes que ele continuasse eu o interrompi:

— Yeoshua, meu amigo, o que é isso?

Os olhos de Yeoshua brilhavam, e, mesmo agastado pela interrupção, ele mantinha seu ar de júbilo:

— Não é sempre que Israel e Judah podem ungir seu rei. Teu tio está morto, Zerubbabel, e és tu quem agora deve sentar-se ao Trono de Israel e Judah. Deves entrar na cidade como manda a profecia, montado em um jumentinho branco, para que te reconheçam como o Messias prometido.

Todos gritaram, abanaram seus instrumentos musicais e as folhas de palmeira que também traziam, os rostos sorridentes. A minha frente, as pessoas se afastaram, e duas delas empurraram até mim um jumentinho branco, olhos lacrimosos, musculatura retesada, estranhando muito o que lhe estava acontecendo. Olhei-o com carinho: de todos que ali estavam, era quem mais se parecia comigo:

— De forma alguma, Yeoshua. Se há alguém aqui que seja o jumento do Messias, este sou eu. Minha missão está cumprida, e o Templo de Yahweh já pode ser reerguido, e Israel e Judah, montados em minhas costas, alcançaram o que desejavam. Levai embora esse animal: ele não me serve para nada. Aqui não há nenhum Messias que ele possa carregar.

A multidão reagiu mal, e os que pior se comportaram foram os acólitos de Yeoshua, franzindo suas faces barbadas, mostrando-me seus dentes e gritando impropérios. Afinal, eu os estava impedindo de realizar seu desejo, não deixando que me impusessem o papel que tinha que ser meu. Yeoshua aproximou-se de mim, a face purpúrea, falando entre dentes:

— Não sejas estúpido, Zerub! Teu povo espera que cumpras o que deve ser cumprido: como podes pensar em negar-lhe isso?

Eu estava em paz: calmo, tranqüilo, a cabeça totalmente lúcida, absolutamente seguro do que estava por fazer:

— Meu amigo, entende: quando me impuseram a missão que acabo de cumprir, exigiram que eu fosse líder, rei, general, e eu já o fui. Guiei nosso povo pelo deserto para que encontrasse a Terra Prometida. Comandei-os em batalha contra nossos inimigos, reinei sobre eles como Yahweh me ordenou, organizei-os em torno do Templo e de sua reconstrução, busquei por todos os meios recuperar sua grandeza. O Templo é vosso e basta remontá-lo segundo as marcas que pus em suas pedras. Não há mais nada que eu possa fazer. Durante todos esses anos, fui vosso Moisés, vosso David, vosso Salomão: agora só posso ser meu próprio Zorobabel.

Yeoshua não acreditou no que ouviu: como podia eu rejeitar o que me concediam? Era exatamente esta a questão: já se passara o tempo em que eu deveria fazer o que me mandavam fazer e ser o que desejavam que eu fosse. Eu estava abrindo mão daquilo que para eles era a mais subida honra, mas que para mim nada significava. Se eu aceitasse o que não desejava, por qualquer razão que fosse, estaria mentindo para mim mesmo, e isso não me era mais possível: meu tempo de mentiras, ilusões e enganos já se havia passado.

Virei-me para a tenda onde havia dormido, e Yeoshua, irritadíssimo, apanhou-me pelo braço, sacudindo-me:

— Idiota! Infiel! Como podes negar a teu Deus aquilo que Ele te ordena fazer? As profecias de Ageu e de nosso novo profeta Zacarias dão conta de teu reinado e poder] Como podes pensar em desmenti-los? Suas palavras são as palavras de Yahweh]

— O que meu Deus me ordenou já foi feito, Yeoshua: eu deveria garantir o reerguimento do Templo, e fiz isso de todas as maneiras possíveis, nas mais diversas ocasiões. Vê as placas de pedra sobre aquela carroça: está tudo escrito, selado e entregue, e nada mais me resta a fazer. O jumento do Messias só tem uma utilidade: depois disso, não preserva nenhuma importância ou função, sendo esquecido. Eu também já posso voltar a ser o que era antes de realizar a missão para a qual fui designado.

— Mas a Casa de David não pode se interromper] Como ficaremos sem um rei que nos governe?

Eu sorri tristemente:

— Sabes tão bem quanto eu que a Casa de David acabou-se em mim, quando me tornei incapaz de gerar descendentes...

A multidão recuou com um esgar de surpresa, e Yeoshua ficou mais irado ainda, o rosto congestionado pela ira:

— Não digas isso] É uma infâmia] Tens um filho que saiu de tuas entranhas...

Sorri mais uma vez:

— Não das minhas, Yeoshua, não das minhas, tu sabes bem disso. Quando segui até a Grande Baab'el para cumprir as ordens de Yahweh e caí nas mãos dos torturadores de Belshah'zzar, eles extinguiram minha capacidade de procriar. Eu sou aquilo que Yahweh fez de mim: para cumprir-Lhe a ordem de reerguer-Lhe o Templo, entreguei-Lhe em holocausto a minha semente. Tudo tem um preço a ser pago, Yeoshua: o meu foi esse. Como podes pretender que a casa real de Israel e Judah se fundamente em uma mentira? Não existe mais Casa de David: ela está tão morta quanto minhas entranhas.

Yeoshua gritou, para ser ouvido pelos que o cercavam:

— O rei está equivocado] Sua mulher Rhese deu-lhe um filho, Abiud, que mora no palácio] Esse filho é a prova viva de que Zorobabel pôde procriar, e que a Casa de David continua vivai — Se essa mentira te basta, que assim seja: mas não me peças para que colabore com ela. Os que aqui estão, e que conhecem a verdade, não permitirão que a mentira prevaleça. Jerubaal, a meu lado, disse:

— A fraternidade dos pedreiros apoia nosso irmão Zorobabel, aceita o que ele diz, respeita sua verdade e confirmará para sempre que a Casa de David termina nele e com ele.

A multidão se desesperou: vários dos cantores se rojaram ao solo jogando pó sobre a cabeça e rasgando as vestes. Yeoshua não sabia o que fazer ou dizer, debatendo-se de um lado para o outro, sem saber a quem transformar em objeto de sua ira: eu, meus irmãos pedreiros, ou até mesmo o próprio Yahweh, que lhe frustrava os planos. Sentindo isso, ergui os braços e me dirigi à multidão:

— Conterrâneos, não sou nem vosso rei, nem vosso líder, nem vosso messias. Para vós não significo mais nada, e esta é a vossa chance de recomeçar do presente, sem ter quem vos imponha os vícios do passado. Devolvei esse jumentinho a seu verdadeiro dono, e segui vosso caminho: o Templo precisa ser reerguido, para que Yahweh volte a habitar dentro dele. Sois perfeitamente capazes disso, sem que eu precise reinar sobre vós. Desejo-vos boa sorte na empreitada, e vos digo adeus.

Alguns ainda pensaram em discutir o assunto, mas eu havia sido tão definitivo e calmo em minha alocução, que logo desistiram, voltando sobre seus próprios passos para a Jerusalém em que eu nunca mais pisaria. Não pertencia àquele lugar, nem a qualquer outro, e devia seguir em busca de meu próprio destino, onde quer que ele estivesse. Yeoshua foi o último a partir: seu olhar agora triste dava sinais de medo do que o futuro traria, e ele me disse:

— Se ficasses conosco, garantirias a volta de Yahweh a Jerusalém ... sem isso, o Templo pode ser erguido, mas será apenas uma casca vazia...

Numa súbita inspiração, eu lhe disse:

— O verdadeiro Templo não se ergue em pedra sobre pedra, mas de agora em diante dentro do coração dos homens...

Um relâmpago intenso feriu nossos olhos, e quando olhamos para o alto, as nuvens começaram lentamente a se abrir, deixando passar cada vez maior quantidade de raios de sol, aquecendo a terra e iluminando o solo, por tantos anos estéril, de Jerusalém. A luz de Yahweh, depois de tantos anos de nebulosidade, abençoava a terra de nossos pais e avós, como que garantindo a veracidade de minhas palavras, e até Yeoshua curvou a cabeça, tomado por forte emoção. Quando ergueu de novo os olhos para mim, era outra vez meu amigo de infância, e nos abraçamos em despedida:

— Eu te compreendo, Zerub: tu, como eu, tens que fazer o que tens que fazer...

— Segue tua vida, meu amigo, e faze o que Yahweh te ordenar, aí dentro de teu coração. Não existe melhor conselheiro que Ele. Deixa que tua vontade e a Dele se tornem uma só, e vive feliz entre teu povo.

Yeoshua me olhou durante um tempo: depois, voltando a ser o Sumo-Sacerdote de nosso povo, beijou-me ambas as faces e se dirigiu para a cidade do outro lado dos montes, acompanhado por seus acólitos mais próximos, que o seguiram discutindo asperamente. Ficamos na planície apenas eu, os membros de minha caravana, entre eles os soldados que me haviam acompanhado, e o grupo de pedreiros de Jerusalém que viera saudar-me, e que eu agora via ser comandado por Ananias, a quem abracei longamente tão logo reconheci. Ananias enxugou-me as lágrimas de alívio com seu manto puído, e disse-me:

— Tenho uma surpresa para ti. Quero te apresentar um irmão a quem ainda não conheces...

Virei-me para o grupo de pedreiros, e do meio deles, usando um avental branco e vazio, ainda com a abeta levantada, saiu meu amigo Mitridates, o braço mirrado apoiado em uma tipóia, o eterno ar de frieza racional no rosto. Abracei-o com força, como se quisesse trazê-lo para dentro de mim e nunca mais deixá-lo escapar: ele suspirou longamente, como que num esforço para reter a emoção, e me disse:

— Então és tu o amigo a quem agora posso chamar de irmão?

Nossa conversa foi intensa: ele havia abandonado seu povo, consciente dos malfeitos a que se dedicara enquanto estava a seu serviço, e retornara a Jerusalém, indo procurar refúgio na taberna dos pedreiros, onde batera e a porta lhe fora aberta. Quando se apresentara como meu amigo, fora aceito sem hesitação. Com o sobrecenho franzido, disse-me:

— Compreendo agora a mudança que sinto em ti, Zerub: eu também a pressinto como possível dentro de mim, e felizmente não a temo...

— Mitridates, meu irmão, tens uma tarefa importante a realizar, e eu te peço que não a rejeites: só com tua ajuda organizada, Jerusalém poderá sobreviver aos percalços e dificuldades, e tornar-se aquilo que deve ser. Vai até Yeoshua e, em nome de nossa antiga amizade, oferece-lhe teus serviços de aVmushariff: Serás muito útil para este reino sem rei.

— Este reino não precisa de nenhum rei, meu irmão: basta que cada um de nós ouça claramente a voz que lhe vem do coração. Conta comigo: eu farei por ele o mesmo que faria por ti...

Meus olhos marejaram, porque ainda tinha pedidos a fazer:

— O menino filho de Rhese certamente será um joguete nas mãos dos que anseiam por poder. Há de haver mesmo quem pretenda impô-lo como Rei de Israel e Judah, para com isso alcançar uma realeza que não possui. Cuida dele com o desvelo que merece uma criança sem pai, e um dia conta-lhe a verdade, mas só depois que ele, como tu e eu, já tiver sido transformado em irmão da pedra. E se encontrares a mãe dele, diz-lhe... diz-lhe que em meu coração não existe nada a não ser o entendimento do que ela fez, e que ela já teve o meu perdão.

— Conta comigo, meu irmão: seguirei tuasordens fielmente. Podes não ser o rei de Israel, mas certamente és o meu...

Meu peito não suportava mais: virei-me e entrei na tenda, atirando-me nas almofadas e ocultando o rosto entre elas, deixando que o pranto me corresse livremente. Ninguém me seguiu nem tentou consolar-me: é da natureza dos pedreiros não constranger nenhum de seus irmãos em momentos difíceis, sabendo deixá-lo sozinho até que sua presença seja necessária, e então dando-lhe tudo de que precisar. Durante algum tempo, eu os ouvi do lado de fora da tenda, cantando seus cânticos, que foram diminuindo de volume até que sobreviesse o silêncio.

Quando mais tarde me ergui, arrumando meus poucos pertences em uma trouxa de pano grosso, e trocando minhas roupas pelos trajes simples de um cameleiro, saí da tenda e me encontrei sozinho na pequena planície. Todos já haviam partido, pedreiros e soldados meus irmãos, entre eles Mitridates, Théron, Jerubaal, Ananias, uma nuvem de poeira a oeste indicando que haviam todos seguido para Jerusalém. Voltei-me na direção contrária e parti, desviando para o norte a cada poucas braças, tentando alcançar a margem do Jordão acima de onde estávamos, para de lá seguir adiante. Havia água à vontade no rio que ficava à minha direita, havia figueiras e tamareiras do lado de fora das cabanas pelas quais passava, e a antiga estrada das caravanas para Dimashq, seu piso amaciado por incontáveis pés e patas que a haviam trilhado, parecia muito macia a meus passos. O sol a cada instante estava mais forte, as nuvens se dissipando com uma rapidez impressionante, o azul esmaltado do céu se impondo sobre minha cabeça, o cheiro de sal que se evolava do mar de Arabah às minhas costas preenchendo-me as narinas. Eu seguia a esmo, um pé após o outro, iniciando minha vida real e verdadeira com alguns anos de atraso, mas desta vez definitivamente.

A minha frente, uma curva da estrada era ladeada por algumas tamareiras entre grandes blocos de pedra, e dentro deles ouvi alguém que cantava: apurando o ouvido, percebi que a voz era acompanhada pelas notas de uma harpa. Meu coração deu um salto, ao mesmo tempo em que meus pés se apressaram no caminho, e avistei meu mestre Feq'qesh sentado em uma das pedras menores, a perna apoiada sobre um tronco caído de tamareira, os dedos ágeis ativando a sonoridade da harpa, o eterno sorriso divertido no rosto, quando o ergueu em minha direção, dando-me a nítida impressão de que já sabia que eu me aproximava, e que ali estava me aguardando. Parei à sua frente, a alma tão clara quanto o claro céu sobre nossas cabeças, enquanto os pássaros da beira do Jordão volteavam sobre nós:

— Meu mestre! Mais uma vez me surges quando menos espero...

— Sempre ouvi dizer que, quando o discípulo estiver pronto, seu mestre há de aparecer. Nunca acreditei muito nessa idéia, pois, quando o discípulo está pronto, o mestre se torna inútil... a não ser que o mestre que surja seja o próprio discípulo, transformado em mestre, por já estar pronto e poder sê-lo para outros... estás de viagem para o norte?

Minha alma se alegrou ao ver meu mestre tão animado e descansado, e por isso sentei-me a seu lado, enquanto ele passava os dedos pelas cordas da harpa, perguntando-me:

— Não vejo tua harpa. Onde está?

Recordei-me tristemente de meu instrumento seguindo o mesmo destino do corpo de Sha'hawaniah, mas o ar animado de Feq'qesh me deu novo alento, e contei-lhe tudo o que se passara durante minha última estada na grande Baab'el.

Ele me ouviu atento, interessado, sem nunca tirar dos lábios o sorriso divertido. Quando terminei minha narrativa, contando-lhe inclusive minha recusa a ser ungido rei de meu povo, parou de tocar e me disse:

— Então abriste mão de tudo? Em nome de quê, Zerub? Tu sabes? Eu me calei: na verdade, não percebia claramente os motivos pelos quais havia feito o que fizera. Meus impulsos para o abandono de tudo que me cercava tinham nascido da sensação de que tudo o que possuía era sem eternidade, e portanto sem valor real. Nada verdadeiramente me fazia falta, a não ser a música, e eu senti um aperto no coração ao ver a harpa de Feq'qesh, recordando a minha, e dizendo-lhe, baixinho:

— Só quis me livrar definitivamente de tudo o que fui... Feq'qesh soltou uma gargalhada:

— Impossível, Zerub: somos feitos de tudo o que vivemos e experimentamos, mas principalmente daquilo tudo que é parte integrante de nós mesmos. Não se pode abrir mão de tudo, no esforço de renascer: o verdadeiro talento deve sempre ser preservado, pois é nele que reside a chama original de nossa existência. Não importa qual seja a nossa natureza, não devemos nunca abandonar o dom que nos foi dado. O que Yahweh nos projetou para sermos, é exatamente aquilo em que poderemos dar o melhor de nós: mas se te decidires a ser outra coisa, prepara-te, pois aca-barás sendo dez mil vezes pior que se não fosses nada...

Baixei os olhos: as sandálias de Feq'qesh, pousadas sobre o tronco empoeirado de tamareira, não exibiam nenhum sinal de uso: estavam limpas, claras, novas, nenhuma faísca de pó, como se ele tivesse chegado até ali sem pisar as estradas. Comparei seu calçado com o meu: a diferença era gritante. Quando ergui os olhos para meu mestre, intrigado, ele estava me olhando e rindo ainda mais, e foi com esse largo sorriso em seu rosto que continuou:

— Não devias ter abandonado tua verdade: a música não espera por ninguém, mas também não fica parada quando corremos atrás dela. Deves caminhar lado a lado com ela, apoiando-a, para que ela se desenvolva cada vez mais. Se observares bem, verás que essa é que é a tua missão no mundo...

— Missão impossível, meu mestre: não disponho mais nem da ferramenta com a qual exercê-la...

Feq'qesh parou de tocar e disse:

— Por isso não, Zerub: queres a minha harpa?

Arregalei os olhos, apenas para ouvi-lo matar minha esperança:

— Posso vendê-la a ti...

— E com que a compraria, Feq'qesh? Pois se nada mais tenho de meu...

— Minha harpa não custa caro: para ti, apenas uma moeda...

Feq'qesh me olhava com seu ar divertido, os olhos faiscantes perfurando os meus, a harpa pendurada entre os dedos anular e mínimo da mão esquerda, enquanto a mão direita, a palma voltada para o alto, encostava em meu ventre.

A luz da compreensão me assomou, de súbito: era da moeda de Yahweh que ele falava. Mas onde estava ela? Joguei minha trouxa ao chão, abrindo-a com sofreguidão: no meio de meus ralos pertences, estava a faixa de tarshatta, com seu escrínio de ouro e esmalte brilhando ao sol. Abri-o: dentro dele, a moeda azinabrada descansava, a imagem desgastada do deus de asas nos pés ainda visível. Tomei-a com a mão esquerda, estendendo-a para Feq'qesh, enquanto esticava minha outra mão para a harpa que balouçava lentamente entre seus dedos.

A moeda saltou de minha mão e ficou pairando no ar, girando cada vez mais depressa, até se tornar uma mancha esverdeada entre nós dois. Caí ao solo de joelhos, as pernas amolecidas, porque Feq'qesh, à minha frente, começava a iluminar-se por dentro, ganhando na pele e cabelos um brilho intenso jamais visto por meus olhos, ficando imensamente mais alto do que era. O pó que cobria suas roupas saía delas formando uma nuvem em torno dele, e quando essa nuvem se dissipou, meu mestre já não era o homem que eu conhecera e que em tantas ocasiões vira: seu rosto translúcido perdera todas as rugas e marcas do tempo, tornando-se fascinantemente jovem, seus cabelos e barba macios e com leve brilho dourado, e mesmo suas roupas completamente diferentes das que vestia antes, transmutadas em suave e alvo tecido de branco brilhante. E os olhos de Feq'qesh. Eram dois sóis, duas estrelas rutilantes, duas gemas de brilho intenso, a tal ponto que desviei meu olhar, fixando seus pés, e percebendo enfim que suas sandálias não se empoeiravam porque nunca tocavam o solo! Ele pairava acima da terra e do pó dos caminhos, e certamente não fazia parte desse mundo: mas quando sua mão direita pousou sobre meu ombro, seu toque era firme, palpável, quente, e me preencheu com a súbita visão da Natureza do Universo formada pelas letras de fogo negro de que tudo era feito, até mesmo dentro dele, transformadas no alvo fogo divino que me acalentava. Eu já não estava mais ajoelhado no caminho à beira do Jordão, mas sim suspenso em um fulgurante mundo de letras e luzes que partia de meu peito e a ele retornava, numa dupla espiral que a tudo penetrava, caindo do céu como a chuva e subindo para o alto como a mais leve e olorosa fumaça dos holocaustos. Sobre a cabeça de Feq'qesh raios de luz formaram um cubo que era ao mesmo tempo estrela e coroa, e de suas costas se abriram, como um palio que o cobrisse, dois pares de asas alvíssimas, imensas, nascidas do nada, fazendo-me chorar de enlevo. A voz de Feq'qesh, grave e profunda, ainda tão calma quanto sempre fora, soou em meus ouvidos, sem que seus lábios se movessem:

— Quando a inspiração de Yahweh te penetrou para que revelasses a teu amigo a inutilidade do Templo que ele erguerá, reconheci que estás pronto... Yahweh não precisará mais de nenhum altar, de nenhuma casa, de nenhuma morada, se Sua verdade estiver firmemente enraizada dentro do coração dos homens...

Eu estava quase sem poder respirar, imerso na luz que me cercava, e balbuciei:

— Quem és?

— Assim como me vês, sou Metatron, aquele que impediu Abraão de imolar seu único filho, aquele que lutou por toda uma noite com Jacó, aquele que guiou o povo escolhido pelo deserto durante quarenta anos. Antes de me tornar o que agora sou, contudo, fui tão humano quanto tu, e meu nome era Enoch.

O construtor do subterrâneo que eu em vão tentara invadir ali estava, à minha frente, subitamente transformado nesse ser de aparência divina e inacreditavelmente luminosa. Minha mente girava como a espiral de letras que partia de meu peito, e ele continuou, dizendo:

— Também saiu do peito de Jacó essa espiral que ele chamou de escada, mas só depois que lutou comigo por toda uma noite, sem compreender por que meu rosto era idêntico ao seu. É no coração dos homens que fica o verdadeiro Templo de Yahweh: o de Jerusalém nada significará se os homens que o reconstroem não erguerem seu próprio templo dentro de si próprios.

Uma ponta de tristeza espinhou-me o peito:

— Então lutei todo esse tempo para que se reerguesse uma obra inútil?

— Nunca! Não existem obras inúteis quando a alma de quem as ergue é verdadeira! O que tornaste possível teve como único motivo o mundo que erguias dentro de ti, com sofrimento e dificuldade, à custa de tudo o que consideravas ser tua felicidade. Tu és lamed vavnik. Certos homens nascem marcados por Yahweh, Zerub, trinta e seis em cada geração, e eu sou o responsável por sua instrução. Nas vezes em que desapareci de tuas vistas, sem dar notícias nem sinais, estava ocupado com algum outro desses trinta e seis parceiros de Yahweh, guiando-os como fiz contigo, para que sua missão se cumpra e o Universo Vivo se mantenha de pé.

— Mas por que tanto sofrimento? Por que tanto equívoco? Bastaria a Yahweh colocar-me no peito a ordem de obedecê-lo, e eu o faria!

— De nada valeriam teus atos se não escolhesses por ti mesmo realizá-los: quando vai ser gerado um lamed vavnik, eu levo até Yahweh uma gota do sêmen que o produzirá e Lhe pergunto que pessoa será, forte ou fraco, sábio ou tolo, rico ou pobre, mas nunca se será justo ou iníquo, tsadik ou rash'á, porque é o livre-arbítrio de cada um que justifica esta escolha, e só o próprio homem pode decidir o que fará de sua vida, e se verdadeiramente lhe interessa ter a vontade de Yahweh e a sua como uma só. Esta é uma decisão que cada homem deve tomar por si, e os homens justos, os tsadikin, mais que todos os outros.

— Yahweh deveria ter escolhido por mim!

— Não, meu filho: Yahweh não faz essa escolha pelos homens porque tudo está nas mãos dos Céus, menos o medo dos Céus... e até mesmo os enganos dos que fazem escolhas equivocadas são parte importante da Providência Divina.

O mundo girava à minha volta, e eu me integrava às letras que o formavam, como se nunca o tivesse visto de outra maneira. Metatron, Enoch, meu mestre Feq'qesh, sorria em minha direção, e eu lhe ouvi a voz:

— A Jerusalém onde foste tão feliz e infeliz é para Yahweh exatamente o que o Templo é para ti: uma imitação da verdadeira Jerusalém.

Para Yahweh, a verdadeira Jerusalém é a Jerusalém Celeste, que descerá pronta e acabada por sobre a terra no dia em que todos os corações forem templos e o mundo nenhum valor mais tiver...

Meu coração ansiou por isso, por essa Jerusalém Divina, por essa libertação da prisão de meu corpo de carne, essa prisão perpétua onde estivera condenado a viver durante tantos anos, e que agora entreabria suas portas para me dar uma pálida visão da verdadeira liberdade. Eu a desejei imediatamente, não podia mais esperar por ela, e disse a meu mestre:

— Mostre-me esta Jerusalém, meu mestre. Quero vê-la, antes que Yahweh me apague a luz dos olhos.

Metatron me olhou firmemente, perscrutando minha alma:

— Tens certeza disso? Ninguém pode olhar o esplendor de Yahweh e sobreviver. É um preço alto a pagar. E se te arrependeres?

Não havia possibilidade disso: minha identidade com meu Deus finalmente se concretizara: minha vontade e a Dele já eram uma só. Ergui-me na estrada poeirenta, que minha alma percebia idêntica a mim mesmo e a meu Criador, como tudo mais no mundo à minha volta, e disse-lhe:

— Sou parceiro de Yahweh: meu coração está livre de todo o medo. Metatron me olhou, e com um pequeno gesto de sua mão direita fez estancar o movimento da moeda mensageira, que ainda girava entre nós. O pequeno círculo de metal subiu celeremente para o céu, deixando um rastro de luz em seu caminho, e quando se aproximou do azul que nos cobria, expandiu-se em inúmeros raios de luz, formando a imensidão de uma cidade suspensa nos céus, vinda de Yahweh e bela como uma noiva adornada para suas bodas. Os raios de luz da moeda foram se ajustando uns aos outros, formando as paredes e muros e torres de uma cidade tão clara quanto o jaspe e tão brilhante quanto o cristal, flutuando na Glória Divina da qual era menos que a mais ínfima parte, e ainda assim tão gigantesca e perfeita que meus olhos se encheram de lágrimas por sua beleza ímpar. De mim até o céu, a moeda traçara uma estrada de luz, uma ponte que ia de meu peito ate essa cidade maravilhosa, a verdadeira Jerusalém, da qual a imitação terrestre nem chegava a ser semelhante. A voz de Metatron soou em meus ouvidos:

— Não há nenhum templo nessa cidade divina, Zerub: ela inteira é o Templo de Yahweh, e não precisa nem de Sol nem de Lua, eternamente banhada que está em Sua Luz! Esse é o Verdadeiro Templo!

A mão de Metatron passou-me à frente do rosto, e antes que eu pagasse o preço final de meu desejo, e a luz do mundo se apagasse para sempre em meus olhos, ouvi sua voz soando como milhares de trombetas:

— Os que ainda virão se recordarão de ti!

 

Darius teve longa vida como Senhor do Mundo, e quando morreu de morte natural, trinta e seis anos depois de ascender ao poder, foi sucedido por seu filho Xerxes, que lhe herdou o trono e o respeito para com todos os deuses. Seu nome, enquanto viveu, foi gravado nos templos das mais diversas crenças com palavras de agradecimento e simpatia, e Xerxes recebeu de seu pai um imenso Império totalmente unido e pacificado, havendo até quem dissesse que a benevolência e justiça de Darius eram maiores que as de Cyro, até essa data o mais justo entre todos os homens. Firme e destemido, Darius enfrentou com o próprio corpo as rebeliões que espocavam nos mais remotos rincões de seu Império, mas, para seus momentos de descanso e prazer, ergueu as cidades de Susa e Persépolis, onde fixou seu governo e capital, pois, tendo desenvolvido verdadeira ojeriza pela Grande Baab'el, nunca mais nela pisou, a não ser durante duas rebeliões, que fez questão de esmagar pessoalmente.

Os judeus de Jerusalém ergueram seu Templo da melhor maneira possível, organizando-se em torno de Yeoshua, que reiniciou as obras com objetivos muito precisos: as muralhas que Cyro havia ordenado serem erguidas voltaram a ser de seu interesse, tanto que as ampliaram além do projeto original, havendo mesmo visitantes que estranharam um Templo mais parecido com uma fortaleza que com um lugar de devoção. Muitos anos depois, quando Esdras, sacrificador da Grande Baab'el, decidiu-se a trazer de volta para Jerusalém as novas gerações de judeus lá nascidos, para que ocupassem a terra de seus pais, Xerxes não apenas permitiu que essa mudança acontecesse, mas seguiu o exemplo do pai e auxiliou-os de todas as formas possíveis, cedendo-lhe riquezas, alimentos e operários, para que fizessem a viagem de volta sem grandes sofrimentos, preservando a amizade de Israel e Judah, que já eram novamente um só reino, poderoso e rico.

No Império, o comércio floresceu sem barreiras, e as moedas, que agora traziam o nome e a face de Darius, circulavam livremente, pois as mercadorias atravessavam todo o imenso território sobre o lombo de bois, cavalos e camelos, assim como dentro de barcos de todos os tamanhos e feitios, indo da índia à Síria, da Pérsia ao Egito, de Roma à Macedônia. As estradas eram cada vez mais freqüentadas, e inúmeras tabernas e estalagens se desenvolveram em torno das postas onde os correios do Senhor do Mundo trocavam de montaria, para que suas ordens não demorassem a chegar aonde deveriam.

Nessas tabernas, de vez em quando, sem que se soubesse quando nem de onde vinha, aparecia um harpista cego, que arrastava verdadeiras multidões para ouvi-lo, principalmente os membros da irmandade dos pedreiros. As platéias nessas noites eram maiores que normalmente, e quando o cego surgia junto aos músicos, todos o saudavam com alegria, pois seu talento lhes garantia horas de prazer indescritível, que se prolongavam mesmo depois que ele já havia ido embora. Os olhos completamente opacos desse cego não eram, no entanto, impedimento para seus movimentos, e ele andava pelos lugares como se os enxergasse, muitas vezes antecipando-se a acontecimentos que ninguém era capaz de prever: quando sua voz soava, cantando os diálogos do Cântico dos Cânticos, era como se dentro de si estivessem O Amado e A Amada, personagens dessa coleção de poemas, tal a capacidade que tinha de representá-los com sua voz maleável e seus dedos ágeis. Muitos o consideravam um mensageiro divino, como se tivesse dentro de si o deus e a deusa que os que ouviam pressentiam em seu canto.

Antes de cantar qualquer canção, o cego fazia questão de dedicar sua arte a seu mestre, um outro harpista por nome Feq'qesh. No final de suas apresentações, dedicava a esse mestre sempre o mesmo poema, de quem o ouvira pela primeira vez, cantando-o com tal emoção, que não havia quem conseguisse controlar o pranto, enquanto sua voz soava com a tristeza dos que se condenaram à solidão perpétua:

— "Grava-me como um selo em teu coração, como um selo em teu braço, pois o amor é forte, é como a morte. Cruel como os abismos é a paixão, e suas chamas são chamas de fogo, uma faísca de Yahweh..."

 

                                                                                            Zé Rodrix

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades