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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A REGRA DE QUATRO / Ian Cadwell e Dustin Thomason
A REGRA DE QUATRO / Ian Cadwell e Dustin Thomason

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

O meu pai, suponho que como muitos de nós, passou a maior parte da vida a juntar as peças de uma história que nunca iria compreender. Essa história começou quase cinco séculos antes de eu ter entrado para a faculdade e veio a terminar muito depois da morte do meu pai. Numa noite de Novembro de 1497, dois mensageiros cavalgavam, deixando para trás as sombras do Vaticano para se dirigirem a uma igreja chamada San Lorenzo, fora das muralhas de Roma. O que aconteceu nessa noite mudou os seus destinos e o meu pai acreditava que podia também mudar o seu.

Eu nunca dei muita importância a essas convicções. Um filho é a promessa que o tempo faz a um homem, a garantia que cada pai recebe de que seja o que for a que ele tenha especial apego será um dia considerado uma loucura e que a pessoa que ele mais ama no mundo nunca o irá compreender. Mas o meu pai, um humanista do Renascimento, nunca pôs em causa a possibilidade de renascer. Ele contou tantas vezes a história dos dois mensageiros que, mesmo que eu quisesse, nunca a poderia esquecer. Compreendo agora que ele sentia que ela continha uma lição, uma verdade que haveria finalmente de estabelecer uma ligação entre nós.

Os mensageiros tinham sido enviados a San Lorenzo para entregar a carta de um nobre, carta essa que não deveriam abrir, sob pena de isso lhes custar a vida. A carta fora selada quatro vezes com lacre preto e parecia conter um segredo que mais tarde o meu pai iria passar três décadas a tentar descobrir. Mas nesses tempos as trevas tinham-se abatido sobre Roma; o sentido da honra tinha-a abandonado e não regressara. No tecto da Capela Sistina estava ainda pintado um céu estrelado e as chuvas apocalípticas tinham feito transbordar o Rio Tibre, em cujas margens aparecera, pelo menos assim afirmavam as velhas viúvas, um monstro com corpo de mulher e cabeça de burro. Os dois cavaleiros ambiciosos, Rodrigo e Donato, não haviam dado atenção aos avisos do seu senhor. Derreteram os selos de lacre com uma vela e abriram a carta para conhecerem o seu conteúdo. Antes de partirem para San Lorenzo, voltaram a selar a carta com toda a perfeição, reproduzindo o selo do nobre com tanto rigor que era impossível descobrir a falsificação. Se o seu senhor não fosse um homem tão avisado, os dois correios teriam certamente sobrevivido.

Porque não eram os selos que iriam deitar a perder Rodrigo e Donato. Era o lacre forte e negro em que tinham sido gravados. Quando chegaram a San Lorenzo, veio ao encontro dos mensageiros um artesão que sabia o que o lacre continha: um extracto de uma erva venenosa chamada erva-moira, que, quando aplicado nos olhos, dilata as pupilas. Actualmente o composto é usado em medicina, mas nesses tempos era utilizado pelas mulheres italianas como cosmético porque as pupilas grandes eram consideradas sinal de beleza. Foi essa prática que deu à planta o outro nome por que é conhecida: «mulher bela», ou beladona. Quando Rodrigo e Donato desfizeram e voltaram a fazer os selos, ficaram expostos ao efeito do fumo do lacre derretido. Quando chegaram a San Lorenzo, o artesão levou-os até ao pé de um candelabro, junto do altar. Quando viu que as suas pupilas não se contraíam, soube o que é que eles tinham feito. E, apesar de os dois homens se esforçarem por reconhecer o artesão através da sua visão desfocada, este fez o que lhe tinha sido ordenado: pegou na espada e decapitou-os. Era um teste de confiança, dissera o senhor, e os mensageiros tinham reprovado.

O que acontecera a Rodrigo e Donato, soube-o o meu pai pela leitura de um documento que descobriu pouco tempo antes de morrer. O artesão cobriu os corpos dos homens e arrastou-os para fora da igreja, enxugando o sangue com panos e farrapos. Colocou as cabeças em dois alforges, um de cada lado da sua montada; quanto aos corpos, atravessou-os em cima dos próprios cavalos de Donato e Rodrigo, que atrelou ao seu. Encontrou a carta no bolso de Donato e queimou-a porque se tratava de um documento forjado e não existia na verdade qualquer destinatário. Depois, antes de partir, ajoelhou-se em penitência em frente da igreja, horrorizado pelo crime que cometera em nome do seu senhor. Aos seus olhos, as seis colunas de San Lorenzo, separadas pelas aberturas entre elas, surgiam como dentes negros e aquele simples artesão admitiu que tremia perante esta visão porque, em criança, sentado no colo das viúvas, tinha ouvido contar que Dante vira o inferno e que o castigo dos maiores pecadores era ser triturado para a eternidade nas mandíbulas de Io 'mperador dei doloroso regno.

Talvez o velho São Lourenço tivesse finalmente olhado do seu túmulo e, ao ver as mãos do pobre homem cobertas de sangue, lhe tivesse perdoado. Ou talvez não houvesse perdão possível e, tal como os santos e mártires dos nossos dias, Lourenço mantivesse um silêncio impenetrável. Mais tarde, na noite desse mesmo dia, o artesão, seguindo as ordens do seu senhor, levou os corpos de Rodrigo e Donato a um carniceiro. Provavelmente será melhor nem tentar adivinhar qual foi o destino que tiveram. Só tenho esperanças de que os seus corpos cortados em bocados tenham sido atirados para a rua e recolhidos pelo carro do lixo, ou comidos pêlos cães, e não transformados em recheio de empadas.

Contudo, para as cabeças dos dois homens, o carniceiro reservava outro destino. Um padeiro da cidade, homem dominado pelo demónio, comprou-as e nessa noite, antes de fechar a loja, meteu-as no forno. Era hábito nesses tempos as viúvas utilizarem os fornos dos padeiros, depois de escurecer, enquanto as cinzas se mantinham ainda quentes do dia; e foi assim que as mulheres, quando chegaram, fizeram uma enorme gritaria e quase desmaiaram perante o que encontraram.

Á primeira vista, parece um bocado pouca sorte ser usado como instrumento para pregar partidas a umas velhas. Mas imagino que Donato e Rodrigo se tornaram muito mais famosos pela forma como morreram do que alguma vez poderiam ter vindo a ser em vida. Isto porque, em qualquer civilização, as viúvas são as guardiãs das memórias e aquelas que encontraram as cabeças no forno do padeiro com certeza nunca mais esqueceram o episódio. Mesmo depois de o padeiro ter confessado o que tinha feito, as viúvas devem ter continuado a contar a história da sua descoberta às crianças de Roma, que, durante toda uma geração, recordavam a lenda das cabeças miraculosas com tanto realismo como a do monstro cuspido pelas cheias do Tibre.

E embora a história dos dois mensageiros tenha eventualmente passado ao esquecimento, uma coisa se mantém para além de qualquer dúvida. O artesão fez bem o seu trabalho. Fosse qual fosse o segredo do seu senhor, ele nunca saiu das paredes de San Lorenzo. Na manhã a seguir ao assassinato de Donato e Rodrigo, quando os homens das carroças do lixo enchiam os seus barris com os detritos misturados com as vísceras, mal se tinha dado pela morte dos dois homens. A lenta progressão da beleza para a decadência e de novo para a beleza continuou o seu ciclo e, como os dentes da serpente enterrados por Cadmo, o sangue do mal regou a terra romana e trouxe o renascimento. Quando esses cinco séculos passaram e a morte encontrou novo par de mensageiros, estava eu a terminar o meu último ano de universidade em Princeton.

 

 

 

 

                                     CAPÍTULO 1

O tempo é uma coisa muito estranha. Pesa mais para aqueles que o têm a menos. Nada é mais leve do que ser jovem e trazer o mundo às costas; dá uma sensação de capacidade tão sedutora, que temos a certeza de que tem forçosamente de haver alguma coisa mais importante para fazer do que estudar para os exames.

Vejo-me agora na noite em que tudo começou. Estou deitado no velho sofá vermelho do nosso quarto na residência universitária, lutando contra Pavlov e os seus cães no meu livro de introdução à Psicologia e perguntando-me por que é que não fiz os requisitos de ciências enquanto caloiro, como toda a gente. A minha frente, em cima da mesa de apoio, estão duas cartas, cada uma contendo uma perspectiva diferente do que poderá ser o meu próximo ano. Caiu a noite de Sexta-Feira Santa, de um Abril frio em Princeton, New Jersey e agora, que tenho à minha frente apenas mais um mês de universidade, sou igualzinho a todos os outros alunos do curso de 1999: não consigo deixar de pensar no futuro.

O Charlie está sentado no chão, ao lado do cubo frigorífico, a brincar com um Shakespeare Magnético que alguém deixou no nosso quarto na semana passada. O romance de Fitzgerald que ele devia estar a ler para o exame final de Literatura Inglesa está aberto no chão, com a lombada escachada, como uma borboleta que alguém pisou e ele está entretido a formar frases com os imanes que têm escritas as palavras mais usadas por Shakespeare. Se lhe perguntarem por que é que não está a ler Fitzgerald, limitar-se-á a grunhir e a dizer que não vale a pena. No seu entender, a literatura não passa de um jogo de fachada de intelectuais, um passatempo para universitários: aquilo que se vê nunca corresponde à realidade. Para um tipo com a mente toda voltada para as ciências, como é o caso do Charlie, isto é o cúmulo da perversidade. Ele está a preparar-se para entrar para a escola médica no Outono, mas nós continuamos todos a ter de o ouvir falar no 12 que teve em Literatura nas frequências de Março.

O Gil olha para nós e sorri. Tem estado a fingir que estuda para um exame de Economia, mas está a dar na televisão o Breakfast at Tiffany's e o Gil tem uma predilecção por filmes antigos, especialmente com a Audrey Hepburn. O conselho que deu ao Charlie era muito simples: se não queres ler o livro, então aluga o filme. Ninguém vai dar por isso. Provavelmente ele tem razão, mas o Charlie acha que isso é desonesto e, de qualquer modo, isso não o impedirá de se lamentar da chatice que é a literatura. Portanto, em vez de Daisy Buchanan*2, estamos mais uma vez com Holly Golightly*3.

Aproximo-me do jogo do Charlie e reorganizo as palavras até que a frase em cima do frigorífico diz chumbar ou não chumbar, eis a questão. Charlie levanta a cabeça e olha-me desaprovadoramente. Sentado no chão, ele fica quase à mesma altura do que eu no sofá. Quando estamos de pé ao lado um do outro, ele parece Otelo submetido a um tratamento com esteróides, um negro de noventa e sete quilos que chega ao tecto com os seus quase dois metros de altura. Em compensação, eu meço um metro e setenta, com sapatos. O Charlie costuma chamar-nos o Gigante Vermelho e o Anão Branco, porque gigante vermelho é uma estrela invulgarmente grande e brilhante e anão branco é uma estrela pequena, encorpada e sombria. Tenho sempre de lhe lembrar que Napoleão media menos de um metro e sessenta, ainda que o Paul possa ter razão quando diz que se se converter pés*4 franceses para ingleses, o imperador era realmente mais alto.

O Paul é o único de nós que não está neste momento no quarto. Desapareceu esta manhã e não voltou a aparecer desde então. Há um mês que as coisas entre ele e eu não têm andado lá muito bem e com toda a pressão académica a que está sujeito ultimamente, decidiu ir quase sempre estudar para Ivy, o clube de que ele e o Gil são membros. Neste momento está a trabalhar na tese, o trabalho que os finalistas de Princeton têm de escrever para

obterem a licenciatura.

 

1 Boneca de Luxo (Breakfast at Tiffany's EUA, 1961) filme de Blake Edwards, com Audrey Hepburn e George Peppard, adaptado da novela homónima de Truman Capote. (NT)

2 Personagem feminina de O Grande Gatsby de Scott Fitgerald. (NT)

3 Holly Golightly é a personagem principal de Breakfast at Tiffany's. (NT)

4 Medida de comprimento inglesa, não convertida para não perder o sentido. (NT)

 

O Charlie, o Gil e eu também estaríamos a fazer as nossas, se não se desse o caso de os prazos para o nosso departamento já terem acabado. O Charlie identificou uma nova interacção das proteínas em certas ligações dos neurotransmissores; o Gil conseguiu qualquer coisa relativa às ramificações de uma taxa fixa. Eu, no último minuto, fiz a minha, no meio de candidaturas e entrevistas, e tenho a certeza de que o conhecimento erudito sobre Frankenstein em nada será alterado.

A tese de licenciatura é uma instituição que quase toda a gente despreza. Os antigos alunos falam das suas teses nostalgicamente, como se não se conseguissem lembrar de nada mais agradável do que escrever uma investigação de cem páginas enquanto se frequenta as aulas e se tomam decisões acerca do futuro profissional. Na realidade, uma tese de licenciatura é uma tarefa desesperante e esgotante. É uma introdução à vida adulta, como disse uma vez ao Charlie e a mim um professor de Sociologia, naquele tom chato que os professores usam para continuar a dar aula depois de a aula ter acabado: é erguer aos ombros um fardo tão pesado que não podemos sair debaixo dele. Chama-se responsabilidade, disse ele. Experimentem e vão ver. Não mencionou que a única coisa que ele estava a experimentar era uma bonita orientanda chamada Kim Silverman. Era tudo uma questão de responsabilidade. Não posso deixar de concordar com o que o Charlie disse nessa altura. Que se a Kim Silverman é o tipo de fardo debaixo do qual um adulto não consegue sair, então, contem comigo. De outro modo, prefiro arriscar-me a continuar a ser jovem.

O Paul é o último de nós a acabar a tese e, sem qualquer dúvida, será a melhor do grupo. De facto, deve mesmo ser a melhor de todo o nosso curso, no departamento de História ou em qualquer outro. O que existe de mágico na inteligência do Paul é que ele tem mais paciência do que quem quer que seja que eu tenha conhecido e, com isso, consegue vencer os problemas. «Contar cem milhões de estrelas», disse-me ele uma vez, «à média de uma por segundo, é aparentemente uma tarefa que ninguém seria capaz de executar no decurso de toda uma vida.» Na realidade, só levaria três anos. O segredo está em focar a atenção, em ter a vontade suficiente para não se deixar distrair. E esse é o dom natural do Paul: uma intuição do quanto uma pessoa pode fazer com calma.

Talvez seja por isso que toda a gente aguarda com tanta expectativa a sua tese — é porque sabem quantas estrelas é que ele conseguiria contar em três anos e nesta tese ele está a trabalhar há quase quatro. Enquanto o estudante médio escolhe o tópico de investigação no Outono do último ano e termina a tese na Primavera seguinte, o Paul tem andado a trabalhar nela desde o primeiro ano. Apenas alguns meses depois de ter começado o nosso primeiro semestre de Outono, ele decidiu concentrar-se num texto renascentista raro, intitulado Hypnerotomachia Poliphili um nome labiríntico que eu só consigo pronunciar porque o meu pai passou a maior parte da sua carreira como historiador do Renascimento a estudá-lo. Três anos e meio depois, e a menos de vinte e quatro horas do final do prazo , o Paul reuniu material capaz de fazer a inveja de qualquer programa de mestrado, mesmo os mais exigentes.

O problema, segundo ele, é que eu deveria compartilhar da sua euforia. Trabalhámos juntos no livro durante alguns meses, no Inverno, e fizemos bastantes progressos enquanto equipa. Só então é que eu compreendizuma coisa que a minha mãe costumava dizer: que os homens na nossa família têm tendência para se apaixonarem com tanta intensidade por certos livros como por certas raparigas. A Hypnerotomachia pode nunca ter tido um grande encanto aparente, mas tem a astúcia de uma mulher feia: o fascínio do mistério interior, que vai viciando lentamente. Quando dei por mim a ceder a ele da mesma forma que o meu pai fizera, consegui sair dessa e atirei a toalha, antes que ele conseguisse destruir a minha relação com uma namorada que merecia melhor sorte. Desde então, as coisas entre mim e o Paul nunca foram iguais. Um outro estudante que ele conhece, Bill Stein, tem-no ajudado com a investigação desde que eu me pirei. Agora, com o prazo limite para a entrega da tese a chegar ao fim, o Paul tornou-se estranhamente cauteloso. Habitualmente ele é muito mais aberto em relação ao seu trabalho, mas na última semana afastou-se não só de mim, como do Charlie e do Gil, recusando-se a dizer uma única palavra sobre a sua investigação a quem quer que seja.

— E então, para que lado te inclinas, Tom? — pergunta o Gil.

O Charlie desvia o olhar do frigorífico. — Pois é — diz ele —, estamos todos em brasas.*5

O Gil e eu resmungámos, em protesto. Tenterhooks*6 foi a palavra que o Charlie errou na prova do segundo período. Atribuiu-a a Moby-Dick, em vez de a Tobias Smollett em Aventuras de Roderick Random, baseando-se em que soava mais a qualquer coisa ligada com iscos para a pesca do que uma palavra para indicar expectativa. Agora não perde uma oportunidade.

 

5 No original, tenterhook, palavra que tem o duplo significado de gancho para firmar o pano ou estar em brasa (col.). (NT)

6 Aqui manteve-se o original para que faça sentido o jogo de palavras. (NT)

 

— Esquece isso — diz o Gil.

— Dá-me o nome de um único médico que saiba o que é um tenterhook — diz o Charlie.

Antes que qualquer de nós tenha tempo para responder, ouve-se um som vindo do quarto que eu partilho com o Paul. Subitamente, de pé diante de nós, parado no limiar, apenas de boxer e T-shirt, está o próprio Paul.

— Só um? — pergunta ele, esfregando os olhos. — Tobias Smollett. Era cirurgião.

O Charlie volta a atenção de novo para os imanes. — Não podia deixar de ser.

O Gil ri por entre dentes, mas não diz nada.

— Pensámos que tinhas ido para Ivy — diz o Charlie, quando o silêncio se torna incómodo.

O Paul abana a cabeça, recuando até ao quarto, para ir buscar o caderno de apontamentos. O seu cabelo cor de palha está amassado de um lado e tem marcas da almofada no rosto. — Não há privacidade suficiente — diz ele. — Estive outra vez a trabalhar no meu beliche. E adormeci.

Há duas noites, ou talvez mais, que ele mal passou pelas brasas. A cada semana que passa, o orientador do Paul, o Dr. Vincent Taft, tem vindo a pressioná-lo para apresentar cada vez mais documentação

— e, contrariamente à maior parte dos orientadores, que gostam é de deixar os orientandos pendurados na corda das suas próprias expectativas, o Taft tem mantido desde o princípio todo o apoio ao Paul.

— E então, Tom, o que é que decides? — pergunta finalmente o Gil, preenchendo o silêncio. — Qual é a tua opção?

Olho para a mesa. Ele está a referir-se às cartas que estão na minha frente e às quais eu tenho estado a dar uma vista de olhos entre cada frase do livro. A primeira é da Universidade de Chicago, propondo-me a admissão num programa de doutoramento em Literatura. Os livros estão-me no sangue, da mesma forma que a escola médica está no do Charlie e ficaria muito satisfeito com uma pós-

-graduação em Chicago. Tive de me esfolar por esta carta um pouco mais do que gostaria, em parte porque as minhas classificações em Princeton não têm sido grande coisa, mas sobretudo porque não sei exactamente o que é que quero fazer e um bom programa de licenciatura fareja ao longe a indecisão, da mesma forma que um cão fareja o medo.

— Pensa no dinheiro — aconselha o Gil, sem tirar os olhos da Audrey Hepburn.

O Gil é filho de um banqueiro de Manhattan. Para ele, Princeton nunca foi um destino em si, apenas um lugar à janela com boa vista, uma paragem a caminho de Wall Street. Nesse aspecto, é uma caricatura de si próprio, mas consegue sempre fazer um sorriso quando o chateamos com essa história. E todos sabemos que esse sorriso o vai levar longe: mesmo o Charlie, que não tem dúvidas de que irá fazer uma pequena fortuna como médico, não chegará nem aos calcanhares da fortuna que o Gil irá fazer.

— Não lhe dês ouvidos — diz o Paul, do outro lado do quarto. — Segue o que te diz o coração.

Olho para ele, surpreendido por ele se aperceber de alguma coisa, para além da sua tese.

— Segue o dinheiro — insiste o Gil, levantando-se para ir buscar uma garrafa de água ao frigorífico.

— Quanto é que eles oferecem? — pergunta o Charlie, deixando por um segundo os imanes de lado.

— Quarenta e um — alvitra o Gil e caem de cima do frigorífico algumas palavras isabelinas, quando ele o fecha. — Bónus de cinco. Mais as opções.

O semestre da Primavera é a época em que há as ofertas de emprego e 1999 é um ano que promete bons resultados. Quarenta e um mil dólares por ano é mais ou menos o dobro do que eu esperava ganhar com a minha modesta média em Literatura, mas comparado com os negócios que eu tenho visto alguns dos meus colegas de curso fazerem, pode considerar-se que está no limite do aceitável.

Pego numa carta da Daedalus, uma firma de Internet em Austin que afirma que desenvolveu o software mais avançado a nível mundial para rentabilização das áreas de secretariado e administrativa de empresas. Não sei praticamente nada acerca da companhia, muito menos o que é a área de secretariado e administrativa, mas um amigo meu, da residência, sugeriu que fosse à entrevista, e como circulavam rumores acerca dos salários elevados que esta nova empresa obscura do Texas estava a oferecer, eu fui. Na Daedalus, de acordo com a tendência geral, não estavam absolutamente nada ralados com o facto de eu ignorar tudo acerca deles ou do seu negócio. Se eu fosse capaz de resolver meia dúzia de charadas numa entrevista e se conseguisse comportar-me de forma minimamente normal e amistosa ao longo do processo, o emprego era meu. E assim, à boa maneira de César, cheguei, vi e venci.

— Perto — disse eu, lendo a carta. — Quarenta e três mil por ano. Bónus de três mil. Mil e quinhentos em opções.

— E o cuzinho lavado com água-de-rosas — acrescentou o Paul, do outro lado do quarto. Ele é o único que dá a ipressão de que falar em dinheiro é ainda mais sujo do que mexer-lhe. — Vaidade das vaidades.

O Charlie está de novo a trocar a posição dos imanes. Numa voz fulminante de barítono, imita o padre da sua igreja, um homenzinho negro da Georgia que acabou agora a licenciatura no Seminário Teológico de Princeton. — Vaidade das vaidades. Tudo é vaidade.

— Sê honesto para contigo próprio Tom — diz o Paul, impaciente, sem, no entanto, me olhar nos olhos. — Qualquer empresa que pense que tu mereces um salário desses não vai durar muito tempo. Tu nem sequer sabes o que é que eles fazem. — Regressa ao seu livro de notas, rabiscando umas coisas. Como a maioria dos profetas, está destinado a ser ignorado.

O Gil continua preso à televisão, mas o Charlie levanta os olhos, ao detectar a agressividade na voz do Paul. Passa a mão na barba de poucos dias e diz: — Muito bem, vamos acabar com isto. Acho que está na altura de libertar um bocado da pressão do vapor.

Pela primeira vez, o Gil desvia o olhar do filme. Deve ter ouvido o mesmo que eu: uma leve ênfase na palavra vapor.

— Agora? — pergunto eu.

O Gil olha para o relógio, aderindo à ideia. — Temos à volta de uma meia hora — diz ele e, em sinal de acordo, desliga a televisão, deixando a Audrey ser sugada pelo tubo catódico.

O Charlie, cheirando-lhe a transgressão, fecha o Fitzgerald. A lombada escachada abre-se num protesto, mas ele atira o livro para cima do sofá.

— Estou a trabalhar — protesta o Paul. — Tenho de acabar isto. Lança-me um olhar estranho.

— O que foi? — pergunto eu. Mas o Paul mantém-se em silêncio.

— Qual é o problema, meninas? — diz o Charlie impacientemente.

— Continua a nevar — lembro eu.

A primeira tempestade de neve do ano chegou hoje à cidade, tremenda, precisamente quando a Primavera parecia despontar nas pontas dos ramos das árvores. Agora atingiu uma espessura de trinta centímetros ou talvez mais. As festas da Semana Santa no campus que incluem este ano uma palestra de Sexta-Feira Santa por Vincent Taft, orientador da tese do Paul, tiveram de ser alteradas. Não se pode dizer que seja o tempo ideal para o que o Charlie está a pensar.

— Só tens de te encontrar com o Curry às oito e meia, não é verdade? — pergunta o Gil ao Paul, tentando convencê-lo. — Então, a essa hora já acabámos. E podes trabalhar esta noite.

Richard Curry, um excêntrico, antigo amigo do meu pai e do Taft, tinha sido mentor do Paul desde o seu primeiro ano. Tinha colocado o Paul em contacto com alguns dos mais importantes historiadores de arte do mundo e financiou uma grande parte da investigação do Paul sobre a Hypnerotomachia.

O Paul sopesa na mão o livro de notas. Só de o fitar, a fadiga regressa ao seu olhar.

O Charlie sente que ele está quase convencido. — Às oito menos um quarto estamos despachados — diz ele.

— Quais são as equipas? — pergunta o Gil.

O Charlie pensa e decide: — O Tom fica comigo.

O jogo que vamos jogar é uma nova versão de um velho favorito:

uma agitada partida paintball num labirinto de túneis de vapor que correm por baixo do campus. Lá em baixo há mais ratazanas do que lâmpadas eléctricas, a temperatura é elevada mesmo em pleno Inverno e o terreno é tão perigoso que mesmo a polícia do campus está proibida de fazer ali perseguições. O Charlie e o Gil tiveram a ideia durante uma época de exames do segundo ano, inspirados num velho mapa que o Gil e o Paul encontraram no clube e por um jogo que o pai do Gil costumava jogar nos túneis, com os amigos, quando eram finalistas.

Esta versão mais recente tinha ganho tanta popularidade que quase uma dúzia de membros de Ivy e a maioria dos amigos do Charlie da equipa de Emergência Médica aderiram. Pareceu surpreendê-los que o Paul se tivesse tornado um dos melhores navegadores do jogo; só nós os quatro é que compreendíamos, sabendo que o Paul utilizava frequentemente os túneis para ir a Ivy e voltar. Porém, gradualmente, o interesse do Paul pelo jogo foi diminuindo. Aborrecia-lhe que ninguém mais conseguisse ver as suas possibilidades estratégicas, a sua coreografia táctica. Ele não estava presente quando um tiro perdido furou um tubo de vapor durante um jogo no meio do Inverno; a explosão arrancou seis metros das protecções de plástico das ligações dos cabos de alta tensão, em ambas as direcções, e podia ter cozido dois caloiros meio bêbados, se o Charlie não os tivesse tirado do caminho. Os zeladores, a polícia do campus de Princeton, deram por isso e, passados poucos dias, o reitor tinha lançado uma verdadeira chuva de castigos. No Outono, o Charlie substituiu as armas de tinta e os projécteis por uma coisa mais rápida, mas menos arriscada: um velho conjunto de armas de raios laser que arranjou numa feira de velharias. Contudo, como a data da licenciatura se aproxima, a administração impôs uma política de grau zero de tolerância nas infracções disciplinares. Ser apanhado esta noite nos túneis poderia significar suspensão ou pior ainda.

O Charlie entra no quarto que partilha com o Gil e traz um grande saco de desporto, e depois outro, que passa para mim. Por fím, põe o gorro na cabeça.

— Valha-me Deus — diz o Gil. — Vamos sair só por meia hora. Eu levei menos bagagem para as férias da Páscoa.

— Estar preparado — diz o Charlie, colocando ao ombro o saco maior, — é o meu lema.

— Teu e dos escuteiros — resmungo eu.

— Águias — diz ele, porque sabe que eu nunca consegui passar dos Lobinhos.

— Estão prontas, meninas? — interrompe o Gil, parando à porta. O Paul inspira profundamente, sacudindo o sono e depois concorda, com um aceno. Vai buscar o pager ao quarto e prende-o no cinto.

Em frente de Dod Hall, a nossa residência, o Charlie e eu separamo-nos do Gil e do Paul. Vamos entrar nos túneis em pontos

diferentes e manter-nos-emos fora do alcance visual uns dos outros até que um dos grupos descubra o outro.

— Não sabia que havia escuteiros pretos — digo eu ao Charlie, quando descemos o campus os dois sozinhos.

A neve está mais espessa e mais fria do que eu pensava. Enrolo-me bem no meu blusão de esqui e enfio as mãos nas luvas.

— Deixa lá — diz ele. — Antes de te conhecer, também não sabia que havia cobardolas brancos.

Atravessamos o campus envolvidos por uma atmosfera irreal. Durante os últimos dias, com a licenciatura à vista e a tese já entregue, o mundo tinha-me parecido um tremendo turbilhão inútil — os alunos mais atrasados a correrem para seminários nocturnos, finalistas a dactilografarem os últimos capítulos em salas de computadores que destilam suor, e agora os flocos de neve a cobrirem o céu, dançando em círculos antes de chegarem ao chão.

à medida que avançamos pelo campus, a perna começa-me a doer. Há anos que a cicatriz na minha coxa anuncia o mau tempo seis horas depois de ele chegar. A cicatriz é uma recordação de um antigo acidente. Pouco tempo depois do meu décimo sexto aniversário fui vítima de um acidente de viação que me atirou para o hospital durante quase todo o período de Verão do segundo ano. Agora os pormenores confundemse na minha cabeça, mas a única recordação nítida que tenho é do meu fémur esquerdo a perfurar persistentemente o músculo da coxa até uma ponta dele ficar a olhar especada para mim, através da pele. Mal tive tempo de o ver, antes de desmaiar com o choque. Ambos os ossos do meu braço esquerdo estavam também partidos, além de três costelas do mesmo lado. Segundo os paramédicos, a hemorragia da artéria parou mesmo a tempo de eles me salvarem. No entanto, quando me conseguiram libertar dos destroços do carro, o meu pai, que vinha a conduzir, já estava morto.

O acidente modificou-me, como é evidente: depois de três operações e dois meses de convalescença e da sequela das dores-fantasma com o seu atraso de seis horas em relação às alterações atmosféricas, continuava a ter parafusos de metal nos ossos, uma cicatriz pela perna acima e um estranho vazio na minha vida, que se tornava cada vez maior à medida que o tempo passava. Ao princípio estranhei a roupa — precisei de tamanhos diferentes de calças e calções até ter recuperado o peso, depois, um estilo diferente, para encobrir o enxerto de pele na minha coxa. Mais tarde apercebi-me de que também a minha família tinha mudado: em primeiro lugar, a mnha mãe, que se tinha fechado dentro da sua concha, mas também as minhas duas irmãs mais velhas, Sarah e Kristen, que passavam cada vez menos tempo em casa. Finalmente foram os meus amigos que mudaram — ou, melhor dito, fui eu que os mudei. Não sei bem se queria amigos que me compreendessem melhor, ou que me vissem de forma diferente, ou exactamente o que era, mas os velhos amigos, tal como as minhas velhas roupas, já não me serviam.

O que as pessoas gostam mais de dizer às vítimas é que o tempo é uma grande cura. A grande cura é o que eles dizem, como se o tempo fosse um médico. Mas depois de ter pensado no assunto durante seis anos, tenho uma opinião diferente. O tempo é aquele tipo do parque de diversões que pinta T-shirts com aerógrafo. Ele espalha a tinta numa neblina muito fina até apenas carem partículas a flutuarem no ar, à espera de serem fixas no sítio. E o que resulta de tudo isso, o desenho que fica na camisa no fim, não é grande coisa. Desconfio de que quem quer que compre essa camisa, o grande protector do perpétuo parque temático, seja ele quem for, acorda de manhã e pergunta-se o que é que viu nela que o interessou. Nesta analogia nós somos a tinta, tal como tentei explicar ao Charlie quando uma vez lhe falei nisso. E o que nos dispersa é o tempo.

Talvez a melhor forma de o exprimir seja a que o Paul utilizou, pouco tempo depois de nos termos conhecido. Já então ele era um fanático do Renascimento, com dezoito anos e já convencido de que a civilização estava em queda livre desde a morte de Miguel Angelo. Tinha lido todos os livros do meu pai sobre a época e apresentou-se-me nos primeiros dias do primeiro ano, depois de ter reconhecido o meu segundo nome, no livro dos caloiros. Tenho um segundo nome muito peculiar que, durante algumas épocas da minha infância, carreguei comigo como um albatroz pendurado ao peito. O meu pai tentou dar-me o nome do seu compositor preferido, um italiano um pouco obscuro do século XVII, sem o qual, segundo ele, não poderia ter existido Haydn e, consequentemente, Mozart. A minha mãe, por outro lado, recusou-se a que o registo de nascimento fosse feito como ele queria, insistindo, até à minha chegada em que Arcangelo Corelli Sullivan era uma coisa horrível para impingir a uma criança, como um monstro de três cabeças. Ela gostava de Thomas, o nome do pai, que, embora pobre do ponto de vista criativo, compensava largamente pela subtileza.

Assim, quando as dores do parto começaram, ela obstinou-se numa manobra obstrutiva, como ela a definiu, conservando-me fora deste mundo até o meu pai aceitar um compromisso. Num momento de menos inspiração do que desespero, decidiram-se por Thomas Corelli Sullivan e, bem ou mal, assim ficou. A minha mãe esperava que eu conseguisse esconder o meu nome do meio entre os outros dois, como se escondesse o pó debaixo da carpete. Mas o meu pai, que acreditava que o nome tinha um papel muito importante, sempre disse que Corelli sem o Arcangelo era como um Stradivarius sem cordas. Só tinha cedido à minha mãe, protestava ele, porque o que estava em jogo era muito mais do que ela deixava perceber. A manobra de obstrução, costumava ele dizer com um sorriso, estava na cama de casal e não na cama de partos. Ele era daquele tipo de homem que acreditava que um pacto feito no calor da paixão era a única desculpa aceitável para uma decisão errada.

Contei tudo isto ao Paul, algumas semanas depois de nos termos conhecido.

— Tens razão — disse ele quando eu lhe descrevi a minha pequena metáfora do aerógrafo. — O tempo não é nenhum da Vinci. — Reflectiu durante um momento, depois sorriu com o seu jeito delicado. — Nem sequer um Rembrandt. Só um Jackson Pollock barato.

Desde o primeiro momento, ele pareceu compreender-me.

Aliás, como qualquer dos três: Paul, Charlie e Gil.

 

                                     CAPÍTULO 2

Agora o Charlie e eu estamos por cima de uma entrada, ao fundo do Ginásio Dillon, perto do extremo sul do campus. A etiqueta dos Philadelphia 76ers do seu gorro de lã, suspensa por um fio, agita-se ao vento. Por cima de nós, sob o olho alaranjado de uma lâmpada de sódio, os flocos de neve acumulam-se em grandes nuvens. Estamos à espera. O Charlie está a começar a perder a paciência, porque duas alunas do segundo ano que estão do outro lado da rua nos estão a fazer perder tempo.

— O que é que vamos fazer? — pergunto eu. No relógio dele pulsa uma luz e ele olha para baixo. — São 7h07. Os zeladores mudam de turno às 7h30. Temos vinte e três minutos.

— Achas que vinte minutos são suficientes para os apanharmos?

— Claro — garante ele. — Se conseguirmos descobrir onde é que estão. — Volta a olhar para o outro lado da rua. — Vá lá, meninas!

Uma delas bamboleia-se ao vento, com a sua saia primaveril, como se a neve a tivesse apanhado de surpresa enquanto se vestia. A outra, uma rapariga peruana que eu conheço de uma competição intramuros, traz a parca oficial da equipa de natação e mergulho.

— Esqueci-me de telefonar à Katie — digo, lembrando-me de repente.

Charlie volta-se.

— Faz hoje anos. Deve estar à espera de que lhe diga a que horas é que apareço.

Katie Marchand é uma aluna do segundo ano que se tem vindo a revelar a namorada que eu não mereço. A importância crescente dela na minha vida é um facto que o Charlie aceita, recordando-se de que muitas vezes as raparigas inteligentes têm um péssimo gosto no que respeita a homens.

— Compraste-lhe alguma coisa?

— Sim. — Faço com as mãos um rectângulo. — Uma fotografia daquela galeria em...

Ele acena afirmativamente. — Então não faz mal não telefonares.

— Emite a seguir um semigrunhido, que se assemelha a um riso.

— De qualquer forma, neste momento ela deve ter outras coisas em que pensar.

— O que é que queres dizer com isso? O Charlie estende a mão, apanhando um floco de neve. — Primeira neve do ano. Olimpíadas Nuas.

— Meu Deus, tinha-me esquecido.

As Olimpíadas Nuas são uma das mais apreciadas tradições de Princeton. Todos os anos, na noite em que cai a primeira neve, os alunos do segundo ano reúnem-se no pátio do Holder Hall, rodeado por residências, apinhado de espectadores vindos de todos os pontos do campu. Aparecem em bandos, centenas e centenas deles e, com a descontracção heróica de lémures, tiram as roupas e correm que nem loucos. Trata-se de um ritual que deve ter as suas raízes nos tempos antigos, quando Princeton era uma instituição masculina e a nudez em massa era uma prerrogativa de homens, como urinar de pé ou as lutas corpo a corpo. Mas foi quando as mulheres se associaram à acção que este pequeno desporto interessante se tornou o acontecimento mais popular do ano académico. Até os meios de comunicação aparecem, chegando a vir de Filadélfia e Nova Iorque, para gravar imagens, com carrinhas equipadas com satélite e câmaras. A simples ideia das Olimpíadas Nuas é como um fogo que se acende nos meses frios da universidade, mas este ano, tendo chegado a vez da Katie, interessa-me mais manter aceso o fogo em casa.

— Pronto? — pergunta o Charlie, quando finalmente as raparigas

se afastam.

Esfrego os pés na tampa da entrada, sacudindo a neve. Ele ajoelha-se e enfia os indicadores nos buracos da tampa. A neve

abafa o ruído do ferro a arrastar no asfalto. Olho de novo para a estrada.

— Primeiro, tu — diz ele, apoiando a mão nas minhas costas.

— E os sacos?

— Deixa-te de desculpas. Vai.

Deixo-me cair de joelhos e apoio-me com as palmas das mãos nos dois lados do buraco destapado. Um calor denso sobe das profundidades. Quando tento deixar-me escorregar, o meu blusão de esqui fica preso na abertura.

— Porra, Tom, os mortos mexem-se mais depressa. Experimenta com os pés até encontrares um degrau de ferro. Há uma escada na parede.

Ao sentir o sapato tocar no primeiro degrau, começo a descer.

— Isso — diz o Charlie. — Agora segura nisto.

Faz passar pela abertura o meu saco e depois o dele.

No escuro, uma rede de tubos estende-se nas duas direcções. A visibilidade é fraca e o ar está cheio de ruídos de metal a bater e de silvos. Este é o sistema circulatório de Princeton, os corredores que conduzem o vapor de uma caldeira central distante até às residências e edifícios escolares a norte. O Charlie diz que o vapor no interior dos tubos está sob uma pressão de 18 quilos por centímetro quadrado. Os cilindros mais pequenos transportam fíos de alta voltagem ou gás natural. Contudo, nunca vi avisos nos túneis, nem um único triângulo fluorescente, nem sinalização da polícia da universidade. A instituição gostaria de esquecer que este local existe. A única mensagem nesta entrada, escrita há muito tempo com tinta preta, é LASCIATE OGNE SPERANZA, VOI CH'INTRATE. O Paul, que nunca pareceu temer o que quer que fosse aqui dentro, sorriu quando a viu pela primeira vez. Abandonai toda a esperança disse ele, traduzindo Dante para os outros, vós que entrais.

O Charlie desce e volta a colocar a tampa no lugar. Quando chega ao fim do último degrau, tira o gorro da cabeça. A luz dança por entre as bagas de suor na sua testa. O penteado afro que ele tem depois de quatro meses sem cortar o cabelo, roça no tecto. Não é afro, insiste ele em dizer. E apenas semiafro.

Aspira algumas lufadas de ar bafiento e depois tira do saco uma embalagem de Vicks VapoRub. — Põe um bocado no nariz. Assim já não te cheira a nada.

Afasto-o com um gesto da mão. É um truque que ele aprendeu quando fez o estágio hospitalar durante um Verão, uma forma de evitar o cheiro dos cadáveres durante as autópsias. Depois do que aconteceu ao meu pai, não tenho em muito grande consideração a profissão médica; para mim, os médicos são uns inúteis, segundas opiniões de duas caras. Mas ver o Charlie num hospital é uma coisa completamente diferente. Ele é o homem forte da equipa local de paramédicos, o tipo que se chama para os casos complicados e é capaz de dar vinte e quatro horas sobre vinte e quatro de qualquer dos seus dias para ajudar pessoas que ele não conhece de parte alguma a lutar por uma hipótese de vencer aquilo a que ele chama o Ladrão.

O Charlie desempacota duas armas laser, cinzentas com riscas, e depois o conjunto de tiras de velcro com bolsas de plástico. Enquanto ele remexe no saco, eu começo a abrir o fecho de correr do blusão. Já tenho o colarinho da camisa colado ao pescoço.

— Cuidado — diz ele, estendendo um braço e impedindo-me de pendurar o blusão no tubo mais largo. — Lembras-te do que aconteceu ao casaco velho do Gil?

Tinha-me esquecido completamente. Um cano de vapor tinha derretido o forro de nylon e pegou fogo ao enchimento. Tivemos de bater com ele no chão para apagar as chamas.

— Deixamos os casacos aqui e levamo-los quando sairmos — diz ele, tirando-me o blusão da mão e enfiando-o, juntamente com o dele, numa mochila de lona. Suspende-a de uma saliência do tecto por uma das alças.

— Assim as ratazanas não chegam lá — acrescenta, tirando mais alguns objectos do saco.

Depois de me ter estendido uma lanterna e um rádio receptor e emissor portátil, tira duas garrafas grandes de água, suadas pelo calor, e coloca-as na rede exterior do saco.

— Lembra-te — diz ele —, se nos voltarmos a separar, não te dirijas na direcção da corrente. Se vires água a correr, vai no sentido contrário. Se a maré subir, podes ir parar a um esgoto ou a um algeroz. Isto não é o Ohio, lá na tua terra. Aqui o nível da água sobe depressa.

É o meu castigo por me ter perdido na última vez que formámos equipa. Abano a camisa para fazer um bocadinho de vento. — Chuck, o Ohio não passa nem perto de Columbus.

Entrega-me um dos receptores e espera que eu o amarre ao peito, ignorando o que acabo de dizer.

— E então qual é o plano? — pergunto. — Para que lado vamos? Ele sorri. — É aqui que tu entras.

— Porquê?

O Charlie faz-me uma festinha na cabeça. — Porque tu és o xerpa*7. E diz isto como se os xerpas fossem uma raça mágica de anões-guias, como os hobbit.

— O que é que queres que eu faça?

— O Paul conhece os túneis melhor do que nós. Precisamos de uma estratégia.

Reflicto durante um pouco. — Qual é a entrada mais próxima para os túneis, do lado deles?

— Há uma nas traseiras de Clio.

 

7 Os xerpas são um povo dos Himalaias cuja habilidade para escalar montanhas é reconhecida, sendo muito requisitados como guias para os alpinistas. (NT)

8 Criaturas imaginadas por J. R. Tolkien em «The Hobbit — There and Back Again», e que voltam a surgir em toda a saga O Senor dos Anéis. (NT)

 

Cliosophic é o edifício de uma velha sociedade de conferências. Esforço-me por ver as nossas posições com clareza, mas o calor está a embotar o meu raciocínio. — O que é que levaria directamente ao ponto em que nos encontramos? O caminho mais fácil na direcção sul. Certo?

Ele pensa, às aranhas com a geografia. — Certo — diz, finalmente.

— E ele nunca escolhe o caminho mais fácil.

— Nunca.

Imagino o Paul, sempre antecipando tudo.

— Então é o que ele vai fazer. O caminho mais fácil. Vai seguir de Clio até aqui e atacar-nos antes de termos tempo para nos prepararmos.

O Charlie reconsidera. — Sim — diz por fim, olhando perscrutadoramente para a distância. Aos cantos dos seus lábios começa a tomar a forma um sorriso.

— Então vamos contorná-los — sugiro eu. — E apanhá-los por trás. Os olhos do Charlie iluminam-se subitamente. Dá-me uma palmada nas costas com força suficiente para me fazer perder o equilíbrio

e quase cair sob o peso do meu saco. — Vamos.

Começámos a avançar ao longo do corredor, quando ouvimos um ruído no rádio.

Tiro do cinto o receptor e primo o botão.

—Gil? Silêncio.

— Gi... Não te ouço... Mas não obtenho resposta.

— E uma interferência — diz o Charlie. — Eles estão demasiado longe para terem sinal.

Volto a falar para o micro e espero. — Disseste que estas coisas alcançam três quilómetros — digo-lhe. — E não estamos nem a um quilómetro e meio deles.

— Três quilómetros pelo ar — diz o Charlie. — No meio do cimento e da porcaria, nem pouco mais ou menos.

Mas os rádios são para uma emergência. E tenho a certeza de que era a voz do Gil.

Continuamos em silêncio por mais uns cem metros, evitando poças de lodo e pequenos montículos de excrementos. Subitamente, o Charlie agarra-me pelo colarinho da camisa e puxa-me para trás.

— Mas que raio se passa? — indago, quase perdendo o equilíbrio.

Ele percorre com o feixe da lanterna uma prancha de madeira que faz ponte sobre uma fenda profunda. Ambos a atravessámos em jogos anteriores.

— O que é que aconteceu?

Com cuidado, apoia um pé na madeira.

— Óptimo — diz o Charlie, nitidamente aliviado. — A água não a danificou.

Limpo a testa, que está encharcada em suor.

— Tudo bem — diz ele. — Vamos. O Charlie atravessa a prancha com duas grandes passadas. Eu tento segui-lo, em equilíbrio, até estar são e salvo do outro lado.

— Toma. — O Charlie estende-me uma das garrafas de água. — Bebe.

Bebo rapidamente e depois sigo-o pêlos túneis. Estamos num paraíso de cangalheiros: para onde quer que se olhe, lembra sempre caixões, paredes escuras convergindo para um ponto sombrio perdido na escuridão.

— Todos estes túneis parecem catacumbas? — pergunto. O rádio portátil não pára de emitir ruídos de estática que interferem com os meus pensamentos.

— Uma quê?

— Uma catacumba. Um túmulo.

— Não, nem todos. As partes mais novas são feitas com canos muito ondulados — diz ele, desenhando com as mãos um padrão ondulado, como uma onda, para sugerir a superfície. — É como se andássemos no meio de costelas. Dá a impressão de termos sido engolidos por uma baleia. Como no...

Estala os dedos, à procura da comparação. — Qualquer coisa bíblica. Qualquer coisa do Melville, que demos em Literatura.

— O Pinóquio.

O Charlie olha para mim, a ver se me fez rir.

—Já não deve faltar muito — diz ele quando verifica que não consegue. Voltando-se, afaga o rádio que traz ao peito. — Não te preocupes. Ao virar a esquina, vamos dar com eles, damos uns tirinhos e vamos embora.

Nesse momento o rádio volta a emitir um som. Desta vez não há dúvida: é a voz do Gil.

Endgame, Charlie.

Paro de repente. — O que é que isso quer dizer?

O Charlie franze o sobrolho. Espera que a mensagem se repita, mas não se ouve qualquer som.

— Não caio nessa — diz ele.

— Não cais em quê?

— Endgame. Quer dizer que o jogo acabou.

— Deixa-te de merdas, Charlie. Porquê?

— Porque correu qualquer coisa mal.

— Mal?

Mas ele levanta um dedo, impondo-me silêncio. Ouço vozes à distância.

— São eles — digo eu.

Ele levanta a arma. — Vamos.

O Charlie alonga o passo e eu não tenho alternativa a não ser acompanhá-lo. Só agora, tentando manter-me a par com ele, é que aprecio devidamente a forma hábil como ele se desloca no escuro. A única coisa que consigo fazer é mante-lo dentro do raio da minha lanterna.

Quando nos aproximamos de uma encruzilhada, ele detém-me. — Não voltes a esquina. Desliga a luz. Eles vão ver-nos aproximar.

Faço-lhe sinal com a mão, na direcção do espaço aberto. O rádio volta a emitir.

Endgame, Charlie. Estamos no corredor norte-sul, debaixo de Edwards Hall.

A voz do Gil está agora muito mais nítida, mais perto.

Começo a avançar para a esquina, mas o Charlie puxa-me para trás. Dois fachos de luz bailam na direcção oposta à nossa. Semicerro os olhos no escuro e descortino duas silhuetas. Voltam-se, ao ouvir-nos aproximar. Um dos fachos de luz vem cair dentro do nosso raio de visão.

— Porra! — protesta o Charlie, tapando os olhos. Aponta a arma às cegas para a luz e começa a premir o gatilho. Ouço o restolhar mecânico do receptor de rádio.

— Pára! — diz o Gil entre dentes.

— Qual é o problema? —grita o Charlie quando nos aproximamos. Vejo o Paul, imóvel, atrás do Gil. Estão os dois debaixo de uns

raios de luz que entram pelas frinchas de uma tampa por cima deles. O Gil coloca um dedo sobre os lábios e depois aponta para a

entrada. Consigo distinguir duas figuras lá em cima, em frente de

Edwards Hall.

— O Bill está a tentar entrar em contacto comigo — diz o Paul, com o pager erguido na direcção da luz. Está claramente agitado. — Tenho de sair daqui.

O Charlie lança um olhar surpreendido para o Paul e depois faz um gesto para que ele e o Gil saiam da luz.

— Ele não se mexe — sussurra o Gil.

O Paul está rigorosamente por baixo da tampa de metal, olhando fixamente para o pager enquanto flocos de neve derretidos pingam por entre os buracos. Lá em cima há movimento.

— Vai fazer com que nos apanhem — murmuro eu.

— Ele diz que só ali é que tem rede — diz o Gil.

— O Bill nunca fez isto — responde o Paul, também num sussurro. Puxo-lhe pelo braço, mas ele liberta-se com um movimento

brusco. Quando ele consegue iluminar o mostrador do pager e nos mostra, vejo os números: 911.

— O que é que isso quer dizer? — murmura o Charlie.

— O Bill deve ter descoberto qualquer coisa — diz o Paul, perdendo a paciência. — Tenho de ir ter com ele.

O movimento dos pés em frente de Edwards faz derreter a neve, que escorre pelas aberturas. O Charlie começa a ficar tenso.

— Ouve — diz ele —, é um acaso. Aqui em baixo não podes ter re... Mas é interrompido pelo pager que volta a dar sinal. Agora a mensagem é um número de telefone: 116-7718.

— O que é isso? — pergunta o Gil.

O Paul vira o mostrador ao contrário, formando texto a partir dos dígitos: BILL—911.

— Vou sair daqui agora — diz o Paul. O Charlie abana a cabeça. — Por essa abertura não podes. Há muitas pessoas lá em cima.

— Ele quer usar a saída de Ivy — diz o Gil. — Disse-lhe que é muito longe. Podemos regressar a Clio. Ainda faltam alguns minutos para mudar o turno dos vigilantes.

A distância formam-se pequeninos conjuntos de luzinhas vermelhas. As ratazanas estão sentadas sobre os traseiros, a observar-nos.

— O que é que é assim tão importante? — pergunto ao Paul.

— Estamos atrás de algo de muito grande... — começa ele a dizer. Mas o Charlie interrompe-o. — Clio é a nossa melhor oportunidade — concorda ele. — Depois de verificar as horas, começa a dirigir-se para norte. — 7h24. Temos de nos despachar.

 

                                       CAPÍTULO 3

O corredor mantém a forma de caixa, mas, à medida que nos encaminhamos para norte, as paredes, que antes eram de cimento, são cada vez mais de pedra. Parece que estou a ouvir a voz do meu pai a explicar a etimologia da palavra sarcophagus.

Do grego. Significa «comedor de carne»... porque os túmulos gregos eram feitos de pedra de cal, que consumia completamente o corpo — com excepção dos dentes — em quarenta dias.

O Gil segue na dianteira, agora já a uma distância de mais de seis metros. Tal como o Charlie, ele avança muito rapidamente, habituado à paisagem. A silhueta do Paul aparece e desaparece na luz intermitente. Tem o cabelo colado à cabeça, com o suor, e lembro-me de que ele mal dormiu nos últimos dias.

Vinte e cinco metros mais à frente, encontramos o Gil à nossa espera, com os olhos vagueando inquietos de um lado para o outro, enquanto nos conduz para a saída. Está a pensar num plano alternativo. Estamos a demorar demasiado tempo.

Fecho os olhos, tentando ver mentalmente um mapa do campus.

— Mais quinze metros — grita o Charlie para o Paul. — No máximo dos máximos, trinta.

Quando chegamos à entrada perto de Clio, o Gil vira-se para nós.

— Vou empurrar a tampa e sair. Preparem-se para correr de volta pelo mesmo caminho. — Olha para baixo. — No meu relógio são 7h29

Agarra o degrau de ferro mais baixo, ergue-se e apoia o braço contra a tampa da entrada. Antes de empurrar, olha por cima do ombro e diz: — Lembrem-se de que os zeladores não podem vir cá abaixo buscar-nos. A única coisa que podem fazer é dizer-nos para sairmos. Mantenham-se fora do ângulo de visão e não mencionem nomes. Entendido?

Acenamos os três em silêncio.

O Gil inspira profundamente, ergue o punho e faz a tampa deslizar contra o cotovelo. Abriu-se uma passagem de uns quine centímetros. Faz uma observação rápida — e então ouve-se uma voz lá em cima.

— Ninguém se mexe! Fiquem onde estão! Ouço o Gil dizer entre dentes: — Merda. Agarrando-o pela camisa, o Charlie puxa-o para trás e segura-o quando ele escorrega.

— Rápido! Para ali! Desliguem a lanterna!

Tropeço na escuridão, empurrando o Paul à minha frente. Tento lembrar-me do caminho.

Mantém-te à direita. Os canos ficam à esquerda, mantém-te à direita.

O meu ombro raspa pela parede e a camisa rasga-se. O Paul está cambaleante, exausto com o calor. Conseguimos avançar vinte passos, aos tropeções, até que o Charlie nos detém, para esperarmos pelo Gil. A distância vemos uma luz que entra no túnel através da tampa. Atrás dela desce um braço, seguido por uma cabeça.

— Saiam daí!

O feixe luminoso movimenta-se em todas as direcções, lançando um triângulo de luz que percorre vorazmente o túnel. Agora ouve-se uma segunda voz, de mulher.

— Este é o último aviso!

Olho para o Gil. Na escuridão vejo os contornos da cabeça dele, a acenar negativamente, num aviso para nos mantermos calados.

Sinto na nuca a respiração húmida do Paul. Ele encosta-se à parede e parece que vai desfalecer. A voz da mulher faz-se de novo ouvir, deliberadamente alto, dirigindo-se ao colega.

— Passa a ordem. Coloquem agentes em todas as entradas. Durante um momento os focos das lanternas afastam-se da entrada. O Charlie empurra-nos imediatamente pelas costas. Corremos até chegarmos a um cruzamento de túneis, depois continuamos para a direita, viramos uma esquina e encontramo-nos em território desconhecido.

— Aqui não nos conseguem ver — murmura o Gil, sem fôlego, ligando a lanterna. Um túnel grande estende-se na escuridão, na direcção do que eu calculo que seja o noroeste do campus.

— E agora? — diz o Charlie.

— Voltamos ao Dod — sugere o Gil.

O Paul limpa o suor da testa. — Não podemos. Bloquearam a saída.

— Vão estar a vigiar todas as entradas principais — adianta o Charlie.

Começo a percorrer o túnel na direcção oeste. — Este é o caminho mais rápido para noroeste?

— Porquê?

— Porque acho que conseguimos sair junto de Rocky-Mathey. A que distância fica daqui?

O Charlie estende ao Paul o resto da nossa água e ele bebe-a avidamente. — A poucas centenas de metros — diz ele. — Talvez mais.

— Por este túnel?

O Gil reflecte durante um minuto e depois acena afirmativamente.

— Não estou a ver alternativa — diz o Charlie. Os três começam a seguir-me pela escuridão.

Continuamos em silêncio durante um bocado, seguindo sempre pelo mesmo corredor. Quando a luz da minha lanterna começa a ficar muito fraca, o Charlie troca comigo, mas mantém-se atento ao Paul, que parece cada vez mais desorientado. Quando por fim o Paul pára para se encostar a uma parede, o Charlie segura-o e ajuda-o, lembrando-lhe de que não toque nos canos. A cada passo as últimas gotas de água tilintam nas garrafas vazias. Começo a pensar se terei perdido os meus pontos de referência.

— Eh — diz o Charlie, atrás de nós —, o Paul está quase a desmaiar.

— Só preciso de me sentar — pede o Paul debilmente. Subitamente o Gil dirige o facho de luz para a distância, tornando visível um conjunto de grades de metal. — Merda.

— Porta de segurança — diz Charlie.

— O que é que fazemos?

O Gil abaixa-se para olhar o Paul nos olhos. — Eh — diz ele, abanando-o pêlos ombros. — Há alguma forma de sairmos daqui?

O Paul aponta para o cano de vapor que fica por trás da porta de segurança, depois faz um gesto hesitante com o braço, para o chão. — Passando por baixo.

Percorrendo o cano com a luz da minha lanterna, vejo que a poucos palmos do chão o material de isolamento está arrancado. Já alguém tentou fazer a mesma coisa.

— Não dá — observa o Charlie. — Não dá espaço.

— Do outro lado há um trinco — diz o Gil, apontando para um dispositivo na parede. — Só tem de passar um de nós. Depois podemos abrir a porta. — Baixa-se de novo para falar com o Paul. — Já fizeste isto?

O Paul acena afirmativamente.

— Ele está desidratado — diz o Charlie, sussurrando. — Alguém tem água?

O Gil estende uma garrafa meio vazia ao Paul, que bebe avidamente.

— Obrigado. Já estou melhor.

— Devíamos voltar para trás — diz o Charlie.

— Não — digo eu. — Eu faço isto.

— Leva o meu casaco — oferece o Gil. — Para te protegeres. Pouso a mão no cano de vapor. Mesmo através do tecido acolchoado sente-se ferver.

— Não vais caber — constata o Charlie. — Com o casaco, não dá.

— Não é preciso o casaco — digo eu.

Mas quando me baixo até ao chão, apercebo-me de como a abertura é apertada. O material isolante está a escaldar. Deitado de barriga para baixo, tento passar entre o chão e o cano.

— Expele o ar todo e desliza — diz o Gil.

Avanço aos bocadinhos, fazendo-me o mais plano possível — mas quando chego ao bocado mais apertado, as minhas mãos não encontram onde se agarrar, apenas montes de lodo. Subitamente sinto que estou preso debaixo do cano.

— Merda — rosna o Gil, ajoelhando-se.

— Tom — ouço o Charlie e sinto umas mãos encostadas aos meus pés. — Faz força nas minhas mãos.

Faço força com os pés contra as palmas das mãos dele. O meu peito raspa contra o cimento e a minha coxa roça no cano, num ponto em que o isolamento saiu. A dor lancinante provocada pela queimadura faz-me dar um esticão.

— Estás bem? — pergunta o Charlie quando eu passo para o outro lado.

— Gira o manipulo no sentido dos ponteiros do relógio — diz o Gil.

Quando o faço, a porta de segurança abre-se. O Gil empurra-a e o Charlie segue-o, sempre a amparar o Paul.

— Tens a certeza de que é por aqui? — pergunta o Charlie enquanto avançamos pela escuridão.

Eu aceno com a cabeça. Uns passos à frente, chegamos a um R toscamente pintado numa parede. Estamos a aproximar-nos de Rockefeller, uma das residências universitárias. Quando era caloiro, namorei com uma rapariga chamada Lana McKnight, que vivia aqui. Passámos grande parte do Inverno sentados em frente de uma lareira preguiçosa, no quarto dela, antes de terem encerrado definitivamente as chaminés no campus. Pareciam-me agora tão distantes as coisas que então discutíamos: Mary Shelley, o Gótico e os Buckeyes*9. A mãe dela tinha sido professora no Ohio, como o meu pai. Os seios de Lana tinham a forma de beringelas e, quando ficávamos muito tempo junto do fogo, as suas orelhas eram da cor de pétalas de rosa. Em breve começo a ouvir vozes por cima de nós. Muitas.

— O que é que está a acontecer? — pergunta o Gil, quando se aproxima do local de onde vêm as vozes.

A tampa do buraco fica exactamente por cima dele.

— Cá está — digo eu, tossindo. — A nossa saída. Ele olha para mim, sem compreender. No silêncio, ouço as vozes cada vez mais distintamente — vozes turbulentas; de estudantes e não de zeladores. Dúzias deles, movendo-se por cima das nossas cabeças.

O Charlie começa a sorrir. — As Olimpíadas Nuas — diz ele. O Gil finalmente compreende. — Estamos mesmo por baixo delas.

— Há uma entrada no meio do pátio — lembro eu, encostando-me à parede, tentando recuperar o fôlego. — O que temos a fazer é levantar a tampa, juntarmo-nos à festa e desaparecer.

Mas atrás de mim, o Paul intervém, com a voz enrouquecida: — O que temos a fazer é despirmo-nos, levantar a tampa, juntarmo-nos à festa e desaparecer.

Durante um momento faz-se silêncio. Charlie é o primeiro a começar a desabotoar a camisa.

— Tirem-me daqui — diz ele, abafando uma gargalhada enquanto despe a camisa.

Eu arranco os meus jeans e depois, o Gil e o Paul fazem o mesmo. Começamos a encher um dos sacos com as roupas, até estar a rebentar pelas costuras.

— Consegues levar isso tudo? — pergunta o Charlie, oferecendo-se para carregar com os dois sacos.

Hesito. — Estamos conscientes de que vai haver zeladores lá fora, não é verdade?

Mas, neste momento, todas as dúvidas do Gil se dissiparam já. Começa a trepar os degraus.

 

9 Habitante do Ohio; equipa desportiva de Ohio. (NT)

 

— Trezentos alunos do segundo ano, nus, Tom. Se não conseguires passar desapercebido com uma distracção destas, então mereces ser apanhado.

E, com isto, abre completamente a tampa, deixando o ar gelado entrar pelo túnel. Para o Paul, funciona como um bálsamo regenerador.

— Muito bem, rapazes! — exclama o Gil, olhando para baixo mais uma vez. — Toca a colocar a carne no mercado.

A minha primeira reminiscência do momento em que abandonámos o túnel é de como tudo ficou subitamente brilhante. Focos de luz iluminavam o pátio. As luzes da segurança varriam a terra coberta de branco. Os flashes das máquinas fotográficas cintilavam no céu como fogo-de-artifício.

Depois segue-se a investida do frio: o uivar do vento, ainda mais forte do que os pés a baterem no chão e o rugido das vozes. Flocos de neve a derreterem na minha pele como gotas de orvalho.

Por fim, vejo o que se passa. Uma parede de braços e pernas, rodopiando à nossa volta como uma serpente interminável. Rostos que aparecem e desaparecem da vista — colegas de turma, jogadores de futebol, mulheres em quem reparara ao atravessar o campus — mas diluídos numa abstracção, como imagens numa colagem. Aqui e além vislumbro peças de roupa bizarras — chapéus altos e capas de super-

-homem, obras artísticas pintadas em peitos de todo o género — mas tudo se esbate no enorme animal que rodopia, o dragão de Chinatown, movendo-se ao som de uivos e gritos e do estalejar do fogo-de-artifício.

— Vamos! — grita o Gil.

O Paul e eu seguimo-lo, hipnotizados. Já me tinha esquecido de como fica Holder na noite do primeiro nevão.

A enorme conga engole-nos e, por um momento, nem eu próprio consigo encontrar-me, comprimido contra corpos por todos os lados, tentando equilibrar-me com um saco às costas e a neve debaixo dos pés. Alguém me empurra por trás e sinto o fecho de correr do saco abrir-se. Antes de o conseguir fechar, as nossas roupas transbordam. Num instante desaparecem todas, espezinhadas na neve. Olho em redor, na esperança de que o Charlie venha atrás de mim e tenha conseguido apanhar alguma coisa, mas não o vejo em lado algum.

«Mamas e rabos, rabos e mamas», canta algures um rapaz, com pronúncia cockney como se estivesse a vender flores no cenário de My Fair Lady. No outro lado, vejo um estudante gordo, do terceiro ano, do meu seminário de Literatura, a infiltrar-se na multidão de alunos do segundo ano, com a barriga a balouçar. Não tem nada vestido, a não ser um carta-sanduíche que diz à frente TESTE DE CONDUÇÃO GRÁTIS e atrás PEÇA AQUI INFORMAÇÕES. Finalmente vislumbro o Charlie. Conseguiu furar até ao outro lado do círculo, onde está o Will Clay, outro membro da equipa das Emergências Médicas, com um capacete revestido de latas de cerveja. O Charlie tira-lho da cabeça e começam os dois a perseguirem-se um ao outro pelo pátio, até que os perco de vista.

O riso vem por ondas que crescem e decrescem. No meio da confusão sinto uma mão a agarrar-me o braço.

— Vamos embora.

O Gil empurra-me para o exterior do círculo.

— O que é que se passa agora? — diz o Paul.

O Gil olha em redor e descobre zeladores em todas as saídas.

— Por aqui — indico-lhes.

Aproximamo-nos de uma das portas e conseguimos entrar para Holder Hall. Uma aluna bêbada abre a porta do quarto e fica parada, confusa, como se estivesse à espera de que lhe déssemos as boas-vindas. Lança-nos um olhar apreciador e depois ergue uma garrafa de Corona.

— Saúde. — Arrota e fecha a porta, deixando-me no entanto ver uma das colegas de quarto dela a aquecer-se à lareira, apenas enrolada numa toalha.

— Vamos — digo eu.

Eles seguem-me por um lance de escadas e eu bato sonoramente a uma porta.

— O que é que es... — começa o Gil a dizer.

Mas antes de ele ter tempo de acabar, a porta abre-se e eu sou recebido por um par de grandes olhos verdes. Os lábios por baixo deles entreabrem-se ao ver-me. A Katie tem vestida uma T-shirt justa aul-marinho e uns jeans gastos; o seu cabelo ruivo está puxado para trás numa espécie de rabo-de-cavalo. Antes de nos deixar entrar, solta uma gargalhada.

— Eu sabia que estavas aqui — igo eu, esfregando as mãos. Quando entro e a beijo, o beijo é quente e acolhedor.

— Um trajo apropriado para o meu aniversário — comenta ela, olhando-me de alto a baixo. — Então foi por isto que não telefonaste.

Quando a Katie volta a entrar no quarto, vejo o Paul com os olhos fixos na máquina fotográfica que ela tem na mão, uma Pentax com uma teleobjectiva quase do tamanho do braço dela.

— Para que é isso? — pergunta o Gil quando a Katie se volta para pousar a máquina na estante.

— Estou a tirar fotografias para o Prince — diz ela. — Talvez desta vez publiquem alguma.

Deve ser por isso que ela não está a tomar parte na corrida. A Katie tem passado o ano inteiro a tentar ter uma fotografia publicada na primeira página do Daily Princetonian, mas os seniores têm-se oposto. Agora o trunfo está do lado dela. Só os caloiros e os alunos do segundo ano é que têm quartos em Holder e o dela dá directamente para o pátio.

— Onde está o Charlie? — pergunta ela.

Gil encolhe os ombros, olhando pela janela. — Lá em baixo, a apalpar cus, com o Will Clay.

Katie volta-se para mim, continuando a sorrir. — Quanto tempo levaram a planear isto?

Hesito.

— Dias — improvisa o Gil, vendo que eu não consigo encontrar forma de explicar que toda aquela encenação não foi feita para ela. — Talvez uma semana.

— Impressionante — diz a Katie. — A meteorologia só esta manhã é que previu que ia começar a nevar.

— Horas — emenda o Gil. — Talvez um dia. Os olhos dela não se despregam de mim. — Deixem-me então adivinhar. Precisam de uma muda de roupa.

— Precisamos de três.

A Katie dirige-se ao armário e diz: — Deve estar imenso frio lá fora. Parece que vocês já começavam a acusar os efeitos.

O Paul olha para ela como se não acreditasse que ela quisesse realmente dizer o que ele estava a pensar. — Há aqui um telefone que eu possa utilizar? — pergunta ele, recompondo-se.

A Katie aponta para um telefone portátil, em cima da secretária. Atravesso o quarto e enlaço-a, empurrando-a para o armário. Ela tenta afastar-me, mas eu aperto-a com mais força e caímos os dois em cima de filas de sapatos, com os saltos altos a enfiarem-se nos lugares mais inconvenientes. Levamos um segundo a desembaraçar-nos e quando me levanto, espero deparar com os protestos do Paul e do Gil. Mas ambos desviaram a atenção. O Paul está ao canto, a falar ao telefone em surdina e o Gil está a olhar pela janela. Ao princípio penso que o Gil está à procura do Charlie. Depois vejo que o zelador está dentro do seu ângulo de visão e que se aproxima, falando para o rádio.

— Eh, Katie — diz o Gil —, não precisamos de roupa a condizer. Qualquer coisa serve.

— Calma — diz ela, regressando com os braços cheios de roupa em cabides. Estende três pares de calças de fato de treino, duas T-shirts e uma camisa azul de que eu não sabia desde Março. — É o melhor que posso arranjar sem aviso prévio.

Enfiamo-nos rapidamente dentro da roupa. Subitamente, o som sibilante de um rádio portátil, vindo do fundo da escada, corta o ar. Ouve-se bater a porta da rua.

O Paul desliga o telefone. — Tenho de ir à biblioteca.

— Saiam pela porta de trás — diz a Katie, com voz apressada.

— Eu trato disto.

Pego-lhe na mão e o Gil agradece-lhe as roupas.

— Vejo-te mais logo? — pede-me ela, com uma insinuação no olhar. É um olhar que ela acompanha sempre de um sorriso, porque já não acredita que eu ainda me deixe levar por ele.

O Gil protesta qualquer coisa e arrasta-me pelo braço para fora da porta. No momento em que abandonamos o edifício, ouço a voz da Katie, a chamar o zelador.

— Polícia! Polícia! Preciso de ajuda...

O Gil olha para trás e procura o quarto dela. Quando vê o zelador enquadrado nos caixilhos da janela da Katie, a expressão dele ilumina-

-se. Dentro em pouco, à medida que enfrentamos o vento penetrante, Holder desaparece atrás de uma cortina de neve. O campus vai ficando quase vazio à medida que descemos na direcção de Dod e parece que qualquer resíduo do calor dos túneis se dissipa, levado pelas gotas de neve que se derretem pela minha cara. O Paul vai um pouco à nossa frente, com um passo mais determinado. Durante o tempo todo, não articula uma única palavra.

 

                                       CAPÍTULO 4

Foi através de um livro que eu conheci o Paul. Provavelmente ter-nos-íamos encontrado de qualquer maneira, na Biblioteca Firestone, ou num grupo de estudo, ou numa das aulas de literatura que ambos frequentávamos no primeiro ano, portanto, talvez um livro não tenha qualquer significado. Mas quando pensamos que o livro em questão tinha quinhentos anos e que era o mesmo que o meu pai estava a estudar antes de morrer, a circunstância parece menos um acaso.

A Hypnerotomachia Poliphili, que em latim significa «A Luta de Poliphilo pelo Amor num Sonho», foi publicada em 1499 por um veneziano chamado Aldus Manutius. A Hypnerotomachia é uma enciclopédia disfarçada em forma de romance, uma dissertação sobre tudo, desde arquitectura a zoologia, escrito num estilo que mesmo uma tartaruga acharia lento. É o livro mais longo que existe acerca de um homem que tem um sonho e faz Marcel Proust, que escreveu o maior livro do mundo acerca de um homem a comer uma fatia de bolo, parecer Ernest Hemingway. Atrever-me-ia a pensar que os leitores do Renascimento devem ter sentido o mesmo. A Hypnerotomachia foi um dinossauro na sua própria época. Embora Aldus fosse o maior impressor do seu tempo, a Hypnerotomachia é um emaranhado de tramas e personagens que não têm nada que os ligue entre si, para além do protagonista, um tipo qualquer alegórico, chamado Poliphilo. O enredo é simples: Poliphilo tem um sonho estranho no qual procura a mulher que ama. Mas a forma como está dito é tão complicada que mesmo a maioria dos eruditos do Renascimento — aqueles que liam Piotino na paragem do autocarro — consideraram a Hypnerotomachia dolorosa e entediantemente difícil.

A maioria, isto é, se se exceptuar o meu pai. Ele marchou através dos estudos da história do Renascimento ao som do seu próprio tambor e quando a maioria dos seus colegas voltaram as costas ao Hypnerotomachia, ele concentrou-se nele. Foi convertido à causa por um professor chamado Dr. McBee, que ensinava História da Europa em Princeton. McBee, que morreu um ano antes de eu ter nascido, era um homem tmido, com orelhas de elefante e dentes pequeninos, que devia todo o seu sucesso a uma personalidade efervescente e a um sentido perspicaz do que é que fazia a história valer a pena. Embora não tivesse um grande aspecto, o homenzinho estava muito bem cotado no mundo académico. Todos os anos, a sua palestra de encerramento sobre a morte de Miguel Angelo esgotava a lotação do maior auditório do campu e deixava os académicos de lágrima nos olhos e lenços na mão. Acima de tudo, McBee era um campeão no livro que toda a gente na sua área preferia ignorar. Ele acreditava que existia na Hypnerotomachia qualquer coisa de especial, possivelmente algo de grandioso e convencia os seus alunos a investigarem o verdadeiro significado do velho livro.

Um deles dedicou-se a essa procura mais avidamente ainda do que o próprio McBee poderia ter esperado. O meu pai era filho de um livreiro do Ohio e chegou ao campus no dia a seguir ao seu décimo oitavo aniversário, quase quinze anos depois de Scott Fitzgerald ter tornado moda os rapazes do Médio Oeste frequentarem Princeton. Muito tinha mudado desde então. A universidade estava a perder o seu passado de clube de campo e, dentro do espírito da época, estava a desprezar a tradição. Os caloiros do ano do meu pai foram os últimos a ser obrigados a assistir à missa de domingo na capela. No ano depois de ele ter terminado, as mulheres foram admitidas pela primeira vez no campus como alunas. A WPRB, a estação de rádio da escola, recebeu-as ao som do coro da «Aleluia» de Handel. O meu pai costumava dizer que o espírito da sua juventude estava mais presente no ensaio de Emmanuel Kant «O que é o Iluminismo?». Kant, no seu entender, era o Bob Dylan dos anos 70.

Era assim que o meu pai gostava de fazer: apagar a linha para lá da qual tudo se apresenta na história bolorento e obscuro. Em vez de barras cronológicas e grandes homens, a história para ele era feita de ideias e livros. Seguiu o conselho de McBee durante mais dois anos em Princeton e, depois de se ter formado, continuou a segui-lo, ao regressar a oeste, para fazer um doutoramento em Renascimento Italiano na Universidade de Chicago. Seguiu-se um ano como bolseiro em Nova Iorque, até que o estado de Ohio lhe ofereceu um lugar efectivo a ensinar história quatrocentista e ele aproveitou a oportunidade para regressar a casa. A minha mãe, uma contabilista cujas preferências iam para Shelley e Blake, ocupou-se do negócio da livraria em Columbus depois de o meu avô se ter reformado e, entre os dois, eu fui educado no culto da bibliofilia, da mesma forma que algumas crianças são educadas no seio da religião.

Aos quatro anos viajava com a minha mãe para assistir a conferências sobre livros. Aos seis, sabia distinguir melhor o pergaminho do papel velino do que um Fleer de um Topps*10. Antes de ter completado dez anos já tinha manuseado uma meia dúzia de exemplares da obra-prima mundial da impressão, a Bíblia de Gutenberg. Mas não me lembro de um único dia da minha vida em que não tivesse sabido qual era a Bíblia da nossa pequena fé familiar: o Hypnerotomachia.

— É o último dos grandes mistérios do Renascimento, Thomas — costumava o meu pai pregar-me, como McBee lhe teria certamente pregado a ele. — Mas nunca ninguém esteve sequer perto de o decifrar.

Ele tinha razão: ninguém o tinha feito. Está claro que só muitas décadas depois da sua publicação é que alguém tinha pensado que haveria alguma coisa para decifrar. Foi nessa altura que um erudito fez uma estranha descoberta. Quando se juntam as primeiras letras de todos os capítulos da Hypnerotomachia, formam um acróstico em latim: Poliam Frater Franciscus Columna Peramavit, o que significa «O Irmão Francesco Colonna amava desesperadamente Polia». Atendendo a que Polia é o nome da mulher que Poliphilo procura, outros eruditos começaram finalmente a perguntar-se quem seria o verdadeiro autor do Hypnerotomachia. O livro não o diz e mesmo Aldus, o impressor, nunca o soube. Mas, a partir de então, tornou-se vulgar supor que o autor seria um frade italiano chamado Francesco Colonna. Dentro de um pequeno grupo de investigadores profissionais, principalmente os que eram inspirados por McBee, tornou-se também vulgar considerar que o acróstico era apenas uma pista para os muitos segredos encerrados no livro. A investigação desse grupo centrou-se então nesses segredos.

O direito do meu pai à fama no meio de tudo isto foi um documento encontrado no Verão em que eu fiz quinze anos. Nesse ano

— um ano antes do acidente de carro — ele levou-me consigo numa viagem de investigação a um mosteiro no Sul da Alemanha e depois às bibliotecas do Vaticano. Partilhávamos um pequeno estúdio italiano

 

10 Fleer e Topps são marcas de cromos de desporto, especialmente basebol, muito populares entre as crianças americanas. (NT)

 

com duas camas desmontáveis e um sistema de estereofonia pré-histórico e, durante cinco semanas, todas as manhãs, com o rigor de um castigo medieval, ele escolhia uma nova obra-prima de Corelli, da compilação que tinha trazido, para me acordar ao som de violinos e harpas, rigorosamente às sete e meia, recordando-me de que o trabalho de investigação não espera.

Eu levantava-me e lá estava ele, a fazer a barba no lavatório, ou a passar a ferro as camisas, ou a contar as notas que tinha na carteira, cantarolando sempre, a acompanhar o disco. Como era muito baixo, cuidava impecavelmente de cada centímetro da sua pessoa, arrancando fios brancos do seu espesso cabelo castanho da mesma forma que as floristas tiram as pétalas secas das rosas. Ele tinha uma vitalidade interna que procurava por todas as formas preservar, uma vivacidade que ele imaginava que seria diminuída pêlos pés de galinha aos cantos dos olhos, pelas rugas de concentração que lhe sulcavam a testa e, sempre que a minha imaginação ficava embotada pelas intermináveis pilhas de livros no meio das quais passávamos os nossos dias, ele nunca deixava de se mostrar compreensivo. À hora de almoço íamos à rua, comer bolos frescos e gelados e todos os fins de tarde levava-me a passear na cidade, para uma visita turística. Uma noite, em Roma, levou-me a fazer uma ronda pelas fontes e disse-me para deitar uma moeda em cada uma, para dar sorte.

— Uma pela Sarah e pela Kristen — disse ele em Barcaccia —, para ajudar a consertar os seus corações despedaçados.

Ambas as minhas irmãs tinham passado por separações dolorosas pouco depois da nossa partida. O meu pai, que nunca tinha ido muito à bola com os namorados delas, achava que tinha sido uma bênção disfarçada.

— Uma pela tua mãe — disse ele na Fontana del Tritone. — Por me aturar.

Como o pedido do meu pai para uma bolsa da universidade fora recusado, a minha mãe mantinha a livraria aberta aos domingos, para ajudar a custear a nossa viagem.

— E uma por nós — concluiu na Quattro Fiumi. — Para que consigamos encontrar o que procuramos.

O que procurávamos, nunca o soube verdadeiramente — pelo menos enquanto não esbarrámos com ele. A única coisa que eu sabia era que o meu pai estava convencido de que as investigações acerca da Hypnerotomachia tinham chegado a um beco sem saída principalmente porque as pessoas estavam todas a deixar de ver a floresta por causa das árvores. Batendo com os punhos na mesa de jantar ele insistia em que uns estudiosos que discordavam dele estavam apenas a enterrar a cabeça na areia. O livro era muito difícil de compreender quando visto de dentro, dizia ele; seria muito mais proveitosa uma aproximação feita através de documentos que pudessem dar pistas acerca de quem poderia realmente ser o autor e da razão por que o tinha escrito.

Na realidade, o meu pai afastou muitas pessoas com o seu ponto de vista. Se não tivesse sido a descoberta que ele fez nesse Verão, a minha família ficaria totalmente dependente da livraria para sobreviver. No entanto, o Destino sorriu ao meu pai, pouco mais de um ano antes de lhe ter roubado a vida.

No terceiro andar de uma das bibliotecas do Vaticano, numa fila escondida de estantes a que nem sequer os monges encarregados da limpeza tinham tirado o pó, quando estávamos costas contra costas, à procura da pista que ele perseguia há anos, o meu pai encontrou uma carta metida entre as páginas de um espesso volume de uma história de uma família. Datada de dois anos antes da publicação da Hypnerotomachia era dirigida a um confessor de uma igreja local e contava a história de um descendente de uma família romana da classe privilegiada. O seu nome era Francesco Colonna.

É difícil reproduzir a excitação do meu pai quando viu aquele nome. Os seus óculos de aros de metal que, quanto mais ele lia, mais lhe escorregavam pelo nariz, aumentavam os seus olhos a ponto de os igualarem à medida da sua curiosidade, e eram a primeira e última coisa que a maioria das pessoas recordam nele. Nesse momento, quando segurou nas mãos a sua descoberta, toda a luz existente na sala parecia convergir para esses olhos. A carta que ele tinha na mão tinha sido escrita por uma mão desajeitada, em toscano rude, como por um homem que não estivesse habituado a esta língua, ou sequer a escrever. Vagueava ao sabor do pensamento, umas vezes dirigida a ninguém em particular, outras vezes a Deus. O autor pedia perdão por não escrever em latim ou grego, mas desconhecia essas línguas. Depois, por fim, pedia perdão pelo que tinha feito.

Perdoai-me, Santo pai, porque matei dois homens. Foi a minha própria mão que desferiu o golpe, mas a intenção nunca partiu de mim. Foi o Mestre Francesco Colonna que me obrigou a fazê-lo. Julgai-nos aos dois com misericórdia.

A carta afirmava que os assassinatos eram parte de um plano intrincado, tão intrincado que um homem simples como o autor da carta jamais poderia ter arquitectado. As duas vítimas eram homens de que Colonna suspeitava por traição e que lhos enviara numa missão muito invulgar. Fora-lhes confiada uma carta para ser entregue numa igreja fora das muralhas de Roma, onde um terceiro homem estaria à sua espera. Sob pena de morte, os dois homens não deveriam olhar para a carta, nem perdê-la, nem sequer tocar-lhe com mãos sem luvas. Assim começava a história do simples artesão romano que matou os mensageiros em San Lorenzo.

A descoberta que o meu pai e eu fizemos nesse Verão tornou-se conhecida, nos círculos académicos, por Documento Beladona. O meu pai tinha a certeza de que esta descoberta iria restaurar a sua reputação dentro da comunidade académica e, passados seis meses, publicou um pequeno livro com esse título, sugerindo a ligação da carta com a Hypnerotomachia. O livro era dedicado a mim. Nele, argumentava que o Francesco Colonna que tinha escrito a Hypnerotomachia não era o monge veneziano, como a maioria dos professores acreditava, mas o aristocrata romano mencionado na nossa carta. Para fundamentar esta afirmação, acrescentava um apêndice que incluía todos os registos conhecidos das vidas, quer do monge veneziano, a quem ele chamava o Simulador, como do romano Colonna, para que os leitores pudessem comparar. Só esse apêndice convenceu-nos totalmente, ao Paul e a mim.

Os pormenores são objectivos. O mosteiro em Veneza onde vivia o falso Francesco era um lugar impensável para um autor-filósofo; a maior parte do tempo, se dermos ouvidos às descrições do meu pai, o lugar era uma mistura profana de música barulhenta, bebida a rodos e escapadas sexuais chocantes. Quando o Papa Clemente VII tentou impor restrições aos excessos ali cometidos, eles responderam que mais depressa se tornariam luteranos do que aceitariam a disciplina. Mesmo num ambiente destes, a biografia do Simulador parece um catálogo de delitos. Em 1477, foi exilado do mosteiro por violações não especificadas. Quatro anos mais tarde, regressou, apenas para cometer um crime isolado, pelo qual quase foi despadrado. Em 1516 não contestou uma acusação de violação e foi desterrado para sempre. Sem se deixar vencer, regressou de novo e foi mais uma vez exilado, desta vez por causa de um escândalo que envolveu um joalheiro. Misericordiosamente, a morte levou-o em 1527. O veneziano Francesco Colonna — ladrão incriminado, violador confesso, dominicano durante toda a vida — tinha noventa e três anos.

O Francesco romano, por outro lado, parecia ser um modelo de todas as virtudes sábias. Segundo o meu pai, era filho de uma poderosa família nobre, que o educou na melhor sociedade europeia e tinha tido como mestres os mais distintos e eruditos intelectuais do Renascimento. O tio de Francesco, Prospero Colonna, era não só um respeitado protector das artes e cardeal da igreja, mas um humanista de tal renome que poderá ter sido o inspirador da figura de Prospero de A Tempestade de Shakespeare. Era este tipo de ligações, argumentava o meu pai, que tornavam possível que um homem só tivesse escrito um livro tão complexo como a Hypnerotomachia — e foram certamente essas relações que asseguraram a sua publicação por uma casa impressora tão importante.

O que confirmava completamente a teoria, pelo menos para mim, era o facto de que este Francesco de sangue nobre tinha sido membro da Academia Romana, uma fraternidade de homens comprometidos com os ideais pagãos da velha República Romana, ideais esses expressos com tanta admiração na Hypnerotomachia. Isso explicaria por que é que Colonna se identificava no acróstico secreto como «Pra»: o título Irmão, que outros estudiosos consideravam um sinal de que Colonna era um monge, era também uma saudação vulgar na Academia.

No entanto, a argumentação do meu pai, que parecia tão lúcida ao Paul e a mim, perturbou as tranquilas águas académicas. O meu pai não viveu o tempo suficiente para enfrentar a tempestade num copo de água que ele tinha provocado no pequeno mundo dos eruditos do Hypnerotomachia, mas isso quase chegou a destruí-lo. Quase todos os colegas do meu pai rejeitaram o trabalho; Vincent Taft perdeu as estribeiras a difamá-lo. Nessa época, os múltiplos argumentos a favor do veneziano Colonna estavam tão arreigados entre eles que, tendo o meu pai deixado um ou dois sem contestação no seu breve apêndice, todo o trabalho foi desacreditado. A ideia de ligar dois assassinatos duvidosos a um dos mais valiosos livros do mundo, segundo Taft escreveu, não passava de «um triste e sensacionalista pedaço de autopromoção».

O meu pai, obviamente, ficou de rastos. Para ele, era a própria substância da sua carreira que eles estavam a rejeitar, o fruto da investigação a que ele se tinha dedicado desde os tempos em que trabalhara com McBee. Nunca compreendeu a violência da reacção contra a sua descoberta. O único partidário do Documento Beladona que eu saiba, era o Paul. Ele leu o livro tantas vezes que mesmo a dedicatória estava gravada na sua memória. Quando chegou a Princeton e encontrou um Tom Corelli Sullivan inscrito no livro dos caloiros, reconheceu imediatamente o meu nome do meio e decidiu conhecer-me.

Se ele estava à espera de encontrar uma versão ais jovem do meu pai, deve ter tido uma desilusão. O caloiro que o Paul encontrou, que coxeava com dificuldade e parecia envergonhado do seu nome do meio, tinha feito o impensável: tinha renunciado à Hypnerotomachia e tinha-se tornado um filho pródigo de uma família em que a sua leitura era uma religião. As ondas de choque do acidente reflectiam-se ainda na minha vida, mas a verdade é que mesmo antes de o meu pai ter morrido, eu estava já a perder a fé nos livros. Tinha começado a compreender que existia um preconceito inconfessado entre os literatos, uma convicção secreta que todos pareciam partilhar de que a vida tal como a conhecemos é uma visão imperfeita da realidade e de que só a arte, como uns óculos de ver ao pé, é capaz de corrigir esse defeito. Os eruditos e intelectuais com que eu convivi à mesa de jantar pareciam estar sempre animados de um certo rancor contra o mundo. Nunca conseguiam reconciliar-se com a ideia de que as nossas vidas não seguem a curva dramática que um bom autor constrói para uma grande personagem literária. Apenas em acidentes de pura perfeição é que o mundo se transforma realmente num palco. E isso, parecia ser o que eles pensavam, era uma pena.

Nunca ninguém disse isto assim, exactamente, mas quando os amigos e colegas do meu pai — todos, excepto Vincent Taft — vieram ver-me ao hospital, parecendo envergonhados pelas críticas que tinham escrito ao livro, murmurando pequenas elegias que tinham composto para ele na sala de espera, comecei a ver tudo escrito na parede. Reparei nisso no momento em que eles se aproximavam da minha cama: traziam as mãos cheias de livros.

— Isto ajudou-me quando o meu pai morreu — disse o presidente do departamento de História, colocando o Seven Storey Mountain de Merton, no tabuleiro da comida ao meu lado.

— Reencontrei um grande conforto em Auden — disse a jovem estudante que tinha acabado de se formar com uma tese feita sob a orientação do meu pai. Deixou-me uma edição de bolso com um cantinho arrancado, para tirar o preço.

— O que tu precisas é de uma coisa que te anime — sussurrou outro homem, quando todos saíram do quarto. — Não é desta porcaria toda anémica.

Nem sequer o reconheci. Deixou um exemplar de O Conde de Monte Cristo que eu já tinha lido, e só me consegui interrogar se ele realmente pensava que a vingança era a melhor emoção a encorajar num momento daqueles.

Compreendizentão que nenhuma daquelas pessoas conseguia viver com a realidade melhor do que eu. A morte do meu pai levava assim a melhor sobre eles e ridicularizava as leis pelas quais viviam: que cada facto pode ser reinterpretado, que cada final pode ser alterado. Dickens tinha voltado a escrever as Grandes Esperanças para que Pip pudesse ser feliz. Isto, ninguém podia voltar a escrever.

Quando conheci o Paul, eu era uma pessoa desconfiada. Passara os dois últimos anos da escola secundária a forçar-me a contrariar os meus impulsos: sempre que sentia a dor na perna, forçava-me a andar;

sempre que o instinto me dizia para passar por uma porta sem me deter — a porta do ginásio, ou do carro de um novo amigo, ou da casa de uma rapariga de quem começava a gostar — forçava-me a parar e a bater e, algumas vezes, a entrar. Mas neste caso, com o Paul, eu vi aquilo em que eu me poderia ter transformado.

Ele era pequeno e notava-se a palidez, por baixo do seu cabelo descuidado. O aspecto dele era mais o de um rapaz do que de um homem. Tinha um atacador dos sapatos desapertado e trazia um livro na mão como se fosse o inseparável ursinho de peluche da sua infância. A primeira vez que se apresentou, citou a Hypnerotomachia. Senti que o conhecia já melhor do que desejaria. Ele tinha-me descoberto num café perto do campus no momento em que o Sol se começava a pôr, num dia de início de Setembro. O meu primeiro instinto disse-me que o ignorasse nessa noite e que o evitasse daí em diante, para sempre.

O que alterou tudo foi uma coisa que ele disse quando eu já me ia a despedir.

— De uma certa forma — disse ele —, sinto como se ele fosse também meu pai.

Eu ainda não lhe tinha falado do acidente, mas era exactamente a coisa errada para se dizer.

— Tu não sabes nada acerca dele.

— Sei. Tenho cópias de todo o trabalho dele.

— Ouve o que eu te digo...

— Até descobri a tese dele...

— Ele não é um livro. Não basta lê-lo. Mas era como se ele fosse completamente incapaz de ouvir. A Roma de Rafael 1974. Ficino e o Renascimento de Platão 1979. O Homem de Santa Croce, 1985.

Começou a contá-los pêlos dedos.

— «A Hypnerotomachia Poliphili e os Hieróglifos de Horapollo», na Renaisance Quarterly, Junho de 87. «O Médico de Leonardo», no Journal of Medical Hitory, 1989.

Cronologicamente, sem saltos.

— «The Breeches-Maker». Journal of Interdisciplinary History, 1991.

— Esqueceste-te do artigo do BARS — disse eu.

O Bulletin of the American Renaissance Society.

— Isso foi em 92.

— Foi em 91.

Ele franziu a testa. — Noventa e dois foi o primeiro ano em que eles aceitaram artigos de não membros. Foi o segundo ano da escola secundária. Lembras-te? Nesse Outono.

Fez-se um silêncio. Por um segundo ele pareceu preocupado. Não por ele estar enganado, mas por eu estar.

— Talvez ele tenha escrito em 91 — afirmou o Paul. — E só publicaram em 92. É isso que queres dizer? Assenti com um gesto.

— Então foi 91. Tens razão. — Mostrou o livro que trazia consigo. — E depois este.

Uma primeira edição do Documento Beladona.

Sopesou-o com deferência. — O seu melhor trabalho até ao momento. Estavas com ele quando ele a descobriu? A carta sobre Colonna?

— Sim.

— Quem me dera ter visto. Deve ter sido espantoso. Olhei por cima do seu ombro, para fora da janela, para uma parede lá ao longe. As folhas estavam vermelhas. Tinha começado a chover.

— Foi — disse eu.

O Paul abanou a cabeça. — Tiveste muita sorte. Os seus dedos folhearam com suavidade as páginas do livro do meu pai.

— Morreu há dois anos — disse eu. — Tivemos um acidente de carro.

— O quê?

— Morreu logo a seguir a ter escrito isso.

Os vidros da janela atrás dele começavam a estar embaciados nos cantos. Um homem com um jornal em cima da cabeça passou, tentando manter-se seco.

— Alguém chocou convosco?

— Não. O meu pai perdeu o controlo do carro.

O Paul passou o dedo sobre a imagem na sobrecapa do livro. Um único emblema, um golfinho com uma âncora. O símbolo da Tipografia Aldine*11, de Veneza.

— Não sabia... — hesitou ele.

— Não faz mal.

O silêncio que se instalou nesse momento foi o mais longo que alguma vez se estabeleceu entre nós os dois.

— O meu pai morreu quando eu tinha quatro anos — contou-me ele. — Com um ataque de coração.

— Lamento.

— Obrigado.

— O que é que faz a tua mãe? — perguntei eu.

Ele encontrou uma ruga na sobrecapa do livro e começou a alisá-la com a unha. — Morreu um ano depois.

Tentei dizer-lhe qualquer coisa, mas todas as palavras que eu estava habituado a ouvir soavam a falso na minha boca.

O Paul tentou sorrir. — Sou como o Oliver — continuou ele, fazendo com as mãos a forma de uma tigela. — Por favor, senhor, eu queria mais.*12

Forcei um riso, sem saber muito bem se era isso que ele pretendia.

— Só queria que compreendesses o que eu queria dizer — disse ele. — Acerca do teu pai...

— Compreendo.

— Só o disse porque...

Pela parte inferior da montra arrastavam-se chapéus-de-chuva como caranguejos na maré. O burburinho no café tinha agora aumentado. O Paul começou a falar, para ver se conseguia remediar as coisas. Contou-me como, depois de os pais terem morrido, ele tinha sido educado numa escola paroquial que recebia órfãos e fugitivos, em regime de internato. Como, depois de ter passado a maior parte da escola secundária na companhia dos livros, tinha chegado à universidade determinado a tirar melhor partido da vida. Como desejava fazer amigos com quem pudesse ter conversas. Por fim, calou-se, com uma expressão envergonhada no rosto, sentindo que tinha morto a conversa.

 

11 Tipografia fundada por Aldus Manurius em 1494, em Veneza, famosa pela publicação de alguns dos mais importantes livros da época e que imprimiu o Hypnerotomachia. (NT)

12 Cena de Oliver Twist, romance de Charles Dickens, em que Oliver, o pequeno órfão, pede mais comida no orfanato. (NT)

 

— E em que dormitório vives? — perguntei, sabendo como ele se sentia.

— No Holder. Como tu.

Puxou de um exemplar do livro dos caloiros e mostrou-me a página que estava marcada.

— Há quanto tempo é que andas à minha procura? — perguntei.

— Encontrei o teu nome agora mesmo.

Olhei pela montra. Uma única sombrinha vermelha passou, oscilando. Parou na montra do café e pareceu hesitar antes de seguir caminho.

Voltei-me para o Paul: — Queres mais um café?

— Claro. Obrigado.

E assim foi como tudo começou.

Que coisa tão estranha, construir um castelo no ar. Fizemos uma amizade a partir de coisa alguma, porque nada era precisamente o coração daquilo que partilhávamos. Depois dessa noite, cada vez me parecia mais natural falar com o Paul. Não tinha ainda passado muito tempo quando comecei mesmo a sentir relativamente ao meu pai o que ele sentia: que talvez o partilhássemos também.

— Sabes o que é que ele costumava dizer? — perguntei-lhe uma noite, no quarto dele, quando falávamos do acidente.

— O quê?

— Os fortes levam a melhor sobre os fracos, mas os inteligentes levam a melhor sobre os fortes. O Paul sorriu.

— Havia um antigo treinador de basquetebol em Princeton que costumava dizer isso — disse-lhe eu. — No meu primeiro ano tentei jogar basquetebol. O meu pai ia todos os dias buscar-me aos treinos e quando eu me queixava por ser muito mais baixo do que os outros, ele dizia: «Não interessa que eles sejam grandes, Tom. Lembra-te: Os fortes levam a melhor sobre os fracos, mas os inteligentes levam a melhor sobre os fortes.» É sempre a mesma coisa. — Abanei a cabeça: — Meu Deus, que farto que eu fiquei disso.

— Achas que é verdade?

— Que os inteligentes levam a melhor sobre os fortes?

— Sim.

Rio-me. — Nunca me viste a jogar basquetebol.

— Bem, eu acredito — disse ele. — Decididamente, acredito.

— Estás a brincar...

Ele tinha estado fechado em mais cacifos e tinha sido intimidado por mais rufias durante a escola secundária do que quem quer que fosse que eu tivesse conhecido.

— Não. Não, de modo nenhum. — Levantou as mãos. — Nós estamos aqui, não estamos?

Colocou um ênfase particular no nós.

No silêncio que se fez, olhei para os três livros em cima da sua secretária. Strunk and White*13, a Bíblia, O Documento Beladona. Princeton era para ele uma dádiva. Podia esquecer tudo o mais.

 

13 William Strunk Jr. e E. B. White, autores de The Elements of Style (EUA,1918), manual usado nos cursos de Inglês, em que a prática da composição é combinada com o estudo da literatura. (NT)

 

                                       CAPÍTULO 5

O Paul, o Gil e eu continuamos para sul de Holder, para o bojo do campus. Para leste, as janelas altas e estreitas da Biblioteca Firestone riscam o chão com raios de luz. No escuro, o edifício parece uma antiga fornalha, com paredes de pedra que isolam do mundo exterior o ardor e o rubor do conhecimento. Uma vez, num sonho, visitei Firestone no meio da noite e encontrei-o cheio de insectos, milhares de traças com óculos pequeninos e gorros de dormir, alimentando-se magicamente através das histórias que liam. Serpenteavam de página em página, viajando através das palavras e, à medida que as tensões cresciam e os amantes se beijavam e os maus eram castigados, as caudas das traças começavam a brilhar, até que no fim toda a biblioteca parecia uma igreja cheia de velas que oscilavam suavemente da esquerda para a direita.

— O Bill está à minha espera lá dentro — diz o Paul, parando de repente.

— Queres que vamos contigo? — pergunta o Gil. Paul abana a cabeça. — Está tudo bem. Mas eu sinto a ansiedade na sua voz.

— Eu vou — digo eu.

— Encontramo-nos logo no quarto — diz o Gil. — Voltam a tempo da conferência do Taft, às nove?

— Sim — responde o Paul. — Claro.

O Gil acena e volta-se. O Paul e eu continuamos na direcção de Firestone.

Quando ficamos sozinhos, percebo que nenhum de nós sabe o que dizer. Já passaram vários dias desde a nossa última conversa a sério. Como dois irmãos que desaprovam a mulher um do outro, não conseguimos nem sequer ter uma troca de palavras triviais sem tropeçarmos nas nossas divergências: ele acha que eu desisti da Hypnerotomachia para estar com a Katie; eu acho que pela Hypnerotomachia ele abdicou de muito mais do que aquilo de que se apercebe.

— O que é que o Bill quer? — pergunto, quando nos aproximamos da porta principal.

— Não sei. Ele não diz.

— Onde é que nos vamos encontrar com ele?

— Na Sala dos Livros Raros.

É onde está o exemplar da Hypnerotomachia de Princeton.

— Eu acho que ele encontrou qualquer coisa de importante.

— Que género de coisa?

— Não sei. — O Paul hesita, como se procurasse as palavras certas. — Mas o livro é mais ainda do que imaginámos. Tenho a certeza. O Bill e eu temos ambos a certeza de estarmos no limiar de algo de grande.

Já há semanas que eu não punha os olhos em cima do Bill Stein. Atolando-se no sexto ano de um programa de pós-graduação aparentemente interminável, Stein tinha lentamente elaborado uma dissertação sobre a tecnologia da impressão no Renascimento. Com a sua aparência de esqueleto humano desarticulado, aspirava a ser bibliotecário profissional até que mais vastas ambições despontaram no seu horizonte: entrada para os quadros, carreira de professor universitário, promoção — todas as obsessões que surgem quando se começa por querer servir os livros e depois gradualmente se começa a querer que sejam os livros a servirem-nos a nós. Sempre que o vejo fora de Firestone ele parece um fantasma fugido, um saco de ossos demasiado apertado, com os seus olhos pálidos e os estranhos caracóis ruivos de semijudeu, semi-irlandês. Cheira a mofo de biblioteca, a livros que todas as outras pessoas já esqueceram e, depois de falar com ele, tenho por vezes pesadelos de que a universidade de Chicago vai ser invadida por exércitos de Bill Stein, graduados que trazem para o seu trabalho uma energia de robots que eu nunca tive e cujos olhos cor de níquel vêem através de mim.

O Paul tem uma visão diferente. Diz que o Bill, por muito impressionante que seja, é uma nódoa intelectual: a ausência de um lampejo de vida. Stein rasteja pela biblioteca como uma aranha num sótão, comendo livros mortos e fiando-os até os transformar num fio muito fino. Mas o que ele faz com eles é sempre mecânico e destituído de inspiração, provocado por uma simetria que ele nunca consegue alterar.

— Por aqui? — pergunto eu.

O Paul conduz-me pelo corredor. A Sala dos Livros Raros fica numa extremidade de Firestone, fácil de se passar por ela sem se dar conta. Lá dentro, onde alguns dos livros mais recentes têm séculos de idade, a balança das idades torna-se relativa. Homens de alta posição em seminários de literatura são conduzidos aqui como crianças em visitas de estudo, as canetas e lápis são-lhes confiscados, os seus dedos sujos são censurados. Ouvem-se bibliotecários a dar descomposturas a professores de carreira para verem sem mexer. Eméritos universitários vêm aqui para se sentirem novos outra vez.

—Já deveria ter fechado — diz o Paul, olhando para o relógio digital. — O Bill deve ter pedido à Sr. Lockhart para a manter aberta.

Estamos agora no mundo de Stein. A Sr. Lockhart, a bibliotecária esquecida pelo tempo, provavelmente coseu meias com a mulher de Gutenberg no seu tempo. Tem uma pele suave e branca, aplicada numa moldura delicada, feita para flutuar por entre as estantes. Durante a maior parte do dia podemos encontrá-la a murmurar em línguas mortas com os livros que a rodeiam, como uma taxidermista a sussurrar aos seus animais de estimação. Passamos por ela sem cruzar olhares, assinando os nossos nomes num caderno, com uma caneta presa à sua secretária.

— Ele está lá dentro — diz ela para o Paul, reconhecendo-o. A mim, dirige apenas uma fungadela.

Atravessando uma estreita área de ligação, chegamos em frente de uma porta que eu nunca abri. O Paul aproxima-se, bate duas vezes e espera.

— Sr. Lockhart? — é a resposta que se ouve numa voz estridente.

— Sou eu — diz o Paul.

Do outro lado gira a chave na fechadura e a porta abre-se lentamente. A nossa frente aparece Bill Stein, uns quinze centímetros mais alto do que qualquer de nós. A primeira coisa em que reparo é nos olhos duros como bronze, que estão impressionantemente injectados. A primeira coisa em que eles reparam é em mim.

— O Tom veio contigo — constata ele, coçando a face. — Está bem. Tudo bem, excelente.

O Bill fala num tom desconcertante, faltando uma qualquer ligação entre a boca dele e a mente. A impressão que dá é enganadora. Após alguns minutos de banalidades, descobrem-se lampejos da sua inteligência.

— Foi um dia mau — diz ele, conduzindo-nos. — Uma semana má. Não houve grandes problemas. Estou bem.

— Por que é que não podíamos falar ao telefone? — pergunta o Paul.

A boca do Bill abre-se, mas não responde. Agora está a esgravatar qualquer coisa entre os dentes da frente. Abre o fecho de correr do casaco e volta-se para o Paul. — Alguém tem andado a revistar os teus livros? — pergunta.

— O quê?

— Porque tem havido alguém a revistar os meus.

— Bill, isso acontece.

— O meu ensaio sobre William Caxton*14? O meu microfilme do Aldus?

— Caxton é uma figura de destaque — diz o Paul.

Eu nunca ouvi falar em William Caxton na minha vida.

— O ensaio de 1877 sobre ele? — diz o Bill. — Só existe no Forrestal Annex. E as Letters of Saint Catherine... — Volta-se para mim: — Não é, como geralmente se crê, o primeiro escrito em que é usado o itálico... — Depois de novo para o Paul: — Um microfilme que ninguém consultou depois de nós os dois, nos anos 70. Setenta e um, ou setenta e dois. Alguém o reservou ontem. A ti, não te tem acontecido isso?

O Paul franze o sobrolho. — Falaste com a Circulação?

— Circulação? Falei com a Rhoda Cárter. Não sabem de nada. Rhoda Cárter é a capitão bibliotecária de Firestone. Onde todos os livros param.

— Não sei — diz o Paul, tentando não enervar ainda mais o Bill.

— Provavelmente não é nada. Se fosse a ti, não me preocupava.

— Não preocupo. Não estou preocupado. Mas lá que há coisa, há.

— Bill contorna a extremidade da sala, onde o espaço entre a parede e a mesa parece demasiado estreito para se poder passar. Esgueira-se sem emitir um som e bate no bolso do seu velho casacão de couro.

— Estes telefonemas que ando a receber. Atendo... clic. Primeiro foi para o meu apartamento, agora é para o trabalho. — Abana a cabeça.

— Não interessa. Vamos a coisas sérias. Encontrei uma coisa. — Olha nervosamente para o Paul. — Talvez seja o que tu precisas, ou talvez não. Não sei. Mas acho que te vai dar uma ajuda para terminares.

De dentro do casaco tira uma coisa aproximadamente do tamanho de um tijolo, enrolada em camadas de pano. Pousa-a delicadamente

 

14 Responsável pelo primeiro livro impresso em inglês, uma tradução do francês, The Recuyell of the Historyes ofTroye, em 1474. NT

 

sobre a mesa e começa a desembrulhá-la. Um tique de Stein em que eu já reparei antes é que as mãos dele se contorcem até segurarem um livro. O mesmo acontece agora: à medida que retira os panos, os seus gestos tornam-se mais controlados. Dentro do pacote está um volume muito usado, de pouco mais do que cem páginas. Cheira a qualquer coisa de salgado.

— De que colecção é? — pergunto, quando reparo que não tem título na lombada.

— Não pertence a colecção nenhuma — dizele. — Nova Iorque. Uma loja de antiguidades. Encontrei-o.

O Paul está em silêncio. Lentamente, estende uma mão para o livro. A encadernação em couro é grosseira e está estalada, cosida com uma tira de couro. As páginas são cortadas à mão. Talvez um trabalho manual dos pioneiros. Um livro que pertenceu a um pioneiro.

— Deve ter uns cem anos — sugiro eu, já que Stein não adianta quaisquer pormenores. — Cento e cinquenta.

Uma expressão irritada atravessa o rosto de Stein, como se um cão tivesse acabado de cagar na carpete. — Errado — diz ele. — Errado. — Faz-me compreender que o cão sou eu. — Quinhentos anos.

Volto a focar a atenção no livro.

— De Génova — continua o Bill, com a atenção voltada para o Paul. — Cheira.

O Paul está em silêncio. Tira do bolso um lápis sem bico, volta-o ao contrário e delicadamente abre a capa, usando a borracha macia do lápis. O Bill marcou uma página com uma fita de seda.

— Cuidado — diz Stein, estendendo as mãos sobre o livro. As unhas dele estão roídas até ao sabugo. — Não deixes marcas. Pedi-o emprestado. — Hesita. — Tenho de o devolver quando já não precisar dele.

— Quem é que tinha isto? — pergunta o Paul.

— A Livraria Argosy — repete o Bill. — Em Nova Iorque. É disso que tu precisas, não é? Agora já podemos acabar.

O Paul não se apercebe de como os pronomes se alteraram, na linguagem de Stein.

— O que é isto? — pergunto, mais insistentemente.

— É o diário do capitão de porto, de Génova — diz o Paul. — A sua voz está calma, os olhos percorrem o texto, página a página. Estou estupefacto. — O diário de Richard Curry? O Paul acena afirmativamente. Curry estava a trabalhar num antigo manuscrito genovês há trinta anos, que ele afirmava que iria desvendar o segredo da Hypnerotomachia. Pouco tempo depois de ele ter falado ao Taft no livro, este foi roubado do seu apartamento. Curry insistiu em que Taft o tinha roubado. Fosse qual fosse a verdade, o Paul e eu tínhamos admitido desde o início que o livro estava perdido para nós. Tínhamos prosseguido o nosso trabalho sem ele. Agora, que o Paul ia publicar as conclusões finais da sua tese, o livro podia ser de um valor incalculável.

— O Richard disse-me que existiam aqui referências a Francesco Colonna — afirmou o Paul. — Francesco estava a aguardar que chegasse um navio ao porto. O capitão do porto fazia registos diários sobre ele e os seus homens, onde ficavam, o que é que faziam.

— Leva-o por um dia — diz o Bill, interrompendo-o. Levanta-se e dirige-se à porta. — Faz uma cópia, se precisares. Uma cópia manual. Desde que te ajude a terminar o trabalho. Mas preciso dele de volta.

O Paul desvia a atenção. — Vais-te embora?

— Tenho de ir.

Vemo-nos na conferência do Vincent?

— Conferência? — Stein hesita. — Não, não posso. Estou a ficar nervoso só de ver os tiques dele.

— Vou estar no meu gabinete — continua ele, enrolando ao pescoço um cachecol de xadrez vermelho. — Lembra-te de que preciso dele.

— E não digas ao Vincent — acrescenta Stein, fechando o fecho de correr do casaco.

— Amanhã devolvo-to — promete o Paul. — O meu prazo acaba à meia-noite.

— Então, até amanhã — diz Stein, enrolando-se no cachecol e saindo discretamente. As suas saídas são sempre teatrais, de tal forma são bruscas. Em poucos passos largos, atravessou a entrada a que a Sr Lockhart preside e desapareceu. A velha bibliotecária pousa uma mão definhada num exemplar gasto de Victor Hugo, como que afagando o pescoço de um velho apaixonado.

— Sr.ª Lockhart — soa a voz do Bill, vinda de um ponto que nós não conseguimos ver. — Adeus.

— É mesmo o diário? — pergunto assim que ele desaparece.

— Ouve só — diz o Paul.

Volta a focar a atenção no pequeno livro e começa a ler alto. A tradução avança com hesitações, a princípio, enquanto o Paul luta com o dialecto ligúrico, a língua falada na Génova de Colombo, fundida com as palavras que soam a francês antigo. Mas gradualmente a sua velocidade melhora.

_Altos mares a noite passada. Um barco... naufragado na praia. tubarões atacaram, um muito grande. Marinheiros franceses vão para os bordéis. Um mouro... corsário... avistado em aguas próximas.

Volta várias páginas, lendo ao acaso.

— Dia bonito. A Maria está a recuperar. O médico diz que a urina dela está melhor. Charlatão dispendioso! O... ervanário... diz que o tratava por metade do preço. E duas vezes mais rápido! — O Paul detém-se, olhando para a página. — Bosta de morcego continua ele, cura tudo.

Interrompo-o. — O que é que isso tem a ver com a Hypnerotomachiá

Mas ele continua a desfolhar páginas.

— V m capitão venezian bebeu de mais a noite passada e comeou a vangloriar-se, A nossa fraqueza em Fornovo. A velha derrota em Portofino. Os homens levaram-no ao... estaleiro... e penduraram-no num mastro alto. inda Ia está pendurado esta manhã.

Antes que eu pudesse repetir a minha pergunta, os olhos do Paul abrem-se desmesuradamente.

— O mesmo romano voltou na noite passada — lê ele. — Vestido mais ricamente do que um duque. inguém sabe o que é que o traz aqui. Por que é que ele veio? Perguntei aos outros. Os que sabem alguma coisa não falam. Corre o rumor de que um barco dele vai chegar ao porto. Ele vem para verificar se chega em segurança.

Chego-me para a frente na cadeira. O Paul passa a página e continua.

— O que é que pode ser tão importante que faça um homem destes vir ver pessoalmente? Que carga? Mulheres, diz o bêbado Barbo. Escravos turcos, um harém. Mas eu vi este homem, a quem os criados chamam Mestre Colonna e os amigos Irmão Colonna: é um senhor. E eu observei o que vai nos seus olhos. Não é desejo. É medo. Parece um lobo que viu um tigre.

O Paul interrompe-se, fixando as palavras. Curry repetiu-lhe muitas vezes a última frase. Até eu a reconheço. Um lobo que viu um tigre.

A capa fecha-se nas mãos do Paul, a espessa semente negra está dentro da sua casca de panos. Um cheiro a sal adensou-se no ar.

— Meninos — soa uma voz vinda de parte nenhuma. — O vosso tempo terminou.

— Vamos já, Sr. Lockhart. — O Paul começa a mover-se, puxando os panos sobre o livro e enrolando-o cuidadosamente.

— E agora? — pergunto eu.

— Tenho de mostrar isto ao Richard — decide ele, colocando o pequeno pacote por baixo da camisa que a Katie lhe emprestou.

— Esta noite? — digo eu.

Quando nos dirigimos para a saída, a Sr.ª Lockhart resmunga qualquer coisa, mas não olha para nós.

— O Richard tem de saber que o Bill o encontrou — afirma o Paul, olhando para o relógio.

— Onde é que ele está?

— No museu. Há um evento esta noite, para os curadores do museu.

Fico surpreendido. Pensava que o Richard Curry tinha vindo para comemorar a conclusão da tese do Paul.

— Vamos celebrar amanhã — dizele, lendo a minha expressão. O diário espreita por baixo da camisa, um apontamento de cabedal

preto enrolado em trapos. Por cima de nós ecoa uma voz, quase o som

de uma gargalhada.

— Weh! Steck ich in dem Kerker nochP Verfluchtes dump f e Mauerloch, Wo seibst da Hebe Himmeislicht Trüb durch gemalte Scheiben bricht!

— Goethe — diz-me o Paul. — Ela encerra sempre com o Fausto. — Segurando a porta enquanto saímos, grita em resposta: — Boa noite, Sr. Lockhart.

A voz dela chega-nos, ondulando através da porta da biblioteca.

— Sim — diz ela. — Uma boa noite.

 

                                    CAPÍTULO 6

Do que eu consegui reunir entre o meu pai e o Paul, o Vincent Taft e o Richard Curry conheceram-se em Nova Iorque quando tinham cerca de vinte anos, numa festa, uma noite, na parte alta de Manhattan. Taft era um jovem professor em Columbia, uma versão mais magra dele próprio uns anos mais tarde, mas com o mesmo fogo interior e o mesmo jeito bruto. Autor de dois livros no breve espaço de dezoito meses, desde que acabara a sua tese, era o querido da crítica, um intelectual da moda a fazer a ronda pêlos círculos sociais onde era conveniente ser visto. Curry, por outro lado, que tinha sido dispensado da recruta por causa dum sopro cardíaco, estava a começar a carreira no mundo das artes. Segundo o Paul, estava a tecer a sua própria teia de amizades convenientes, construindo lentamente uma reputação no cenário trepidante de Manhattan.

O seu primeiro encontro aconteceu no final da festa quando Taft, que já estava um bocado bebido, entornou um cocktail por cima do tipo atlético que estava ao seu lado. Era um acidente típico, disse-me o Paul, porque na época o Taft era conhecido também por ser um bêbado. Ao princípio, Curry não ficou particularmente incomodado — até que percebeu que o Taft não tinha a mínima intenção de se desculpar. Seguiu-o até à porta, começou a pedir satisfações; mas Taft, dirigindo-se aos tropeções para o elevador, ignorou-o. Durante a descida de dez andares, foi Taft quem falou, atirando uma série de insultos ao belo jovem, vociferando, ao dirigir-se, cambaleando, para a porta da rua, que a sua vítima era «insignificante, desprezível, estúpido e pequeno».

Para a sua imaginável surpresa, o jovem sorria.

— Leviathan — disse Curry, que tinha escrito uma dissertação sobre Hobbes*15 quando estava em Princeton. — E esqueceu-se de mencionar solitário. — A vida do homem é solitária, insignificante, desprezível, estúpida e pequena.

— Não — replicou Taft com um riso de raiva, no momento antes de esbarrar com um candeeiro da iluminação pública —, não me esqueci. Só que reservo a palavra solitário para mim próprio. No entanto, você pode ficar com o insignificante desprezível, estúpido e pequeno.

E com esta, disse o Paul, Curry chamou um táxi, enfiou lá dentro o Taft e foram para o seu apartamento onde, durante as doze horas seguintes, o Taft se manteve num entorpecimento profundo e licencioso.

Reza a história que, quando acordou, confuso e envergonhado, os dois homens encetaram uma conversa inábil. Curry explicou a sua linha de trabalho e Taft fez o mesmo e parecia que o insólito da situação poderia matar o encontro quando, num momento de inspiração, o Curry mencionou o Hypnerotomachia, um livro que ele tinha estudado com um professor muito popular em Princeton, chamado McBee.

Faço uma pequena ideia de qual possa ter sido a resposta de Taft. Não só ele tinha ouvido falar no mistério que rodeava o livro, mas deve ter-se apercebido da centelha que ele provocava no olhar de Curry. Segundo o meu pai, os dois homens começaram a discutir as circunstâncias das suas vidas, percebendo rapidamente o que tinham em comum. Taft desprezava os outros académicos, achando o seu trabalho curto de vistas e trivial, enquanto Curry considerava os seus colegas de trabalho personagens de ficção, chatos e unidimensionais. Ambos detectavam uma total ausência de genica nos outros, uma inexistência de objectivos. E talvez isso explicasse até aonde foram capazes de ir para ultrapassarem as diferenças entre ambos.

Porque havia diferenças e não eram pequenas. Taft era uma criatura viva e inconstante, difícil de conhecer e mais difícil ainda de amar. Bebia copiosamente quando tinha companhia e mais ainda quando estava sozinho. A sua inteligência era impiedosa e desenfreada, um fogo que nem ele próprio conseguia controlar. Devorava livros inteiros de uma assentada, encontrando defeitos nos argumentos, falhas nas provas, erros na interpretação, em assuntos afastados da

 

15 Leviathan é uma das obras perseguidas de Thomas Hobbes (Inglaterra, 1588-1679), filósofo materialista e determinista. (NT)


sua especialidade. O Paul dizia que não era uma personalidade destrutiva que o Taft tinha, mas uma mente destrutiva. Quanto mais o fogo aumentava, mais ele o alimentava, não deixando nada para trás. Quando tinha já queimado tudo à sua passagem, restava apenas uma coisa a fazer... Com o tempo, voltar-se-ia contra si próprio.

Curry, pelo contrário, era um criador, não um destruidor — um homem mais de possibilidades do que de factos. Indo buscar uma definição a Miguel Angelo, ele diria que a vida é como uma escultura:

uma questão de ser capaz de ver o que os outros não vêem e depois, com o cinzel, desbastar o que sobra. Para ele, o livro antigo era apenas um bloco de pedra à espera de ser esculpido. Se em quinhentos anos ninguém o tinha ainda compreendido, então tinha chegado a hora de novos olhos e novas mãos se ocuparem dele e que se danassem os ossos dos antepassados.

Com base em todas estas diferenças, pouco tempo passou até Taft e Curry descobrirem a sua área comum. Para além do livro antigo, o que eles partilhavam era um profundo investimento em abstracções. Acreditavam na noção de grandeza — grandeza de espírito, destino, os grandes desígnios. Como dois espelhos idênticos colocados em face um do outro, com os reflexos em duplicado, eles tinham-se visto a si próprios com total autenticidade pela primeira vez, e descoberto uma força multiplicada por mil. A consequência estranha mas previsível da sua amizade foi tê-los tornado mais solitários do que quando se conheceram. O rico cenário humano dos mundos de Taft e Curry — colegas e amigos de universidade, de irmãs, mães e antigas paixões — esfumou-se num palco vazio onde apenas um foco se encontrava aceso. O que não restavam dúvidas é que as suas carreiras floresciam. Dentro de pouco tempo Taft era um historiador de grande renome e Curry o proprietário de uma galeria que tornaria célebre o seu nome.

Mas realmente, a loucura nos grandes não pode ser deixada em liberdade*16. Os dois homens levavam uma existência de escravos. A sua única fonte de prazer era a sua reunião semanal, nas noites de sábado, em casa de um deles, ou num restaurante vazio, em que transformavam o interesse que tinham em comum numa diversão por ambos partilhada: o Hypnerotomachia.

Já o Inverno tinha chegado, quando nesse ano Richard Curry apresentou finalmente Taft ao amigo com o qual nunca tinha perdido

 

16 Citação de Hamlet, de William Shakespeare, numa fala de Claudius, referindo-se à suposta loucura de Hamlet. (NT)

 

contacto — que Curry tinha conhecido há muito tempo na aula do Professor McBee, em Princeton, e que partilhava o seu interesse pelo Hypnerotomachia.

Imaginar o meu pai nesses dias é difícil para mim. O homem que eu vejo é já um homem casado, a marcar as alturas dos seus três filhos na parede do escritório, interrogando-se sobre quando é que o seu único filho começaria a crescer, preocupando-se com velhos livros em línguas mortas enquanto o mundo se inclina e roda em seu redor. Mas esse é o homem em que nós o transformámos, a minha mãe, as minhas irmãs e eu e não o homem que Richard Curry conheceu. O meu pai, Patrick Sullivan, tinha sido o melhor amigo de Curry em Princeton. Os dois consideravam-se os reis do campus e imagino que partilhassem a espécie de amizade que faz as pessoas sentirem-se assim. O meu pai jogou uma época pela equipa júnior universitária de basquetebol, tendo passado todos os minutos que ela durou no banco, até que Curry, capitão da equipa de futebol americano de pesos leves, o recrutou para o campo, onde o meu pai se saiu muito melhor do que toda a gente esperava. Os dois partilharam o quarto no ano seguinte, tomando em conjunto quase todas as refeições; quando eram juniores, até namoraram duas gémeas de Vassar chamadas Molly e Martha Roberts. A relação, que o meu pai comparou uma vez a uma alucinação numa sala de espelhos, acabou na Primavera seguinte quando as duas irmãs apareceram num baile com vestidos iguais e os dois homens, tendo bebido de mais e tendo-lhes prestado atenção de menos, tentaram engatar a gémea que o outro namorava.

Posso crer que o meu pai e o Vincent Taft eram atraídos por aspectos diferentes da personalidade do Richard Curry. O rapaz do Médio Oeste, católico, calmo e descontraído e o nova-iorquino assustador e obstinado eram animais diferentes e devem tê-lo sentido desde o primeiro aperto de mão, quando a palma do meu pai foi devorada pela mão carnuda de talhante do Taft.

Dos três, era Taft quem tinha uma mente mais negra. As partes da Hypnerotomachia que o fascinavam eram as mais sangrentas e misteriosas. Imaginou sistemas de interpretação para compreender o significado dos sacrifícios na história — a forma como os pescoços dos animais eram cortados, a forma pela qual as personagens morriam — para atribuir um significado à violência. Trabalhou aplicadamente nas dimensões dos edifícios mencionados na história, manipulando-os para descobrir padrões numerológicos, comparando-os com tábuas astrológicas e calendários do tempo de Colonna, esperando encontrar coincidências. Do ponto de vista dele, a melhor abordagem era enfrentar o livro abertamente, detectar as astúcias do autor e vencê-lo. Segundo o meu pai, o Taft tinha sempre acreditado em que um dia havia de desmascarar Francesco Colonna. Esse dia, tanto quanto sabíamos, nunca tinha chegado.

A abordagem do meu pai não podia ter sido mais diferente. O que o fascinava mais na Hypnerotomachia era a sua dimensão sexual. Nos séculos mais puritanos que se seguiram à sua publicação, imagens do livro foram censuradas, camufladas ou eliminadas completamente, da mesma forma que, quando os gostos mudaram e as sensibilidades se ofenderam, foram pintadas folhas de figueira em muitos nus do Renascimento. No caso de Miguel Angelo, parece justo que se brade contra a injustiça. Mas algumas imagens da Hypnerotomachia parecem, ainda hoje, um bocado chocantes.

Desfiles de homens e mulheres nus são só o início. Poliphilo segue a garrulice das ninfas até à festa da Primavera — e aí, erguendo-se no meio dos festejos, está o enorme pénis do rei Príapo, o ponto de foco de toda a imagem. Antes disso, a mitológica rainha Leda é apanhada no calor da paixão com Zeus, que é mostrado no meio das suas coxas na forma de um cisne. O texto é ainda mais explícito, descrevendo encontros demasiado bizarros para aparecerem nas xilogravuras. Quando Poliphilo se deixa dominar completamente pela atracção física pela arquitectura que contempla, admite mesmo ter relações sexuais com os edifícios. No final, anuncia que o prazer foi mútuo.

Tudo isso fascinava o meu pai, cuja visão do livro, compreensivamente, partilhava com o Taft. Em vez de o considerar um tratado rígido e matemático, o meu pai via a Hypnerotomachia como um tributo ao amor de um homem por uma mulher. Era a única obra de arte que ele conhecia que imitava o belo caos dessa emoção. O lado sonhador da história, a confusão implacável das personagens e a vagabundagem desesperada de um homem na sua busca do amor, tudo fazia eco dentro dele.

Como resultado disto, o meu pai — e, no início da sua investigação, o Paul — sentiram que a abordagem do Taft era despropositada. No dia em que acreditares no amor disse-me uma vez o meu pai, compreenderás o que Colonna quis dizer. Se realmente havia alguma coisa a descobrir nesse campo, o meu pai acreditava que tinha de ser encontrada fora do livro: em diários, cartas, documentos de família. Não é que alguma vez mo tenha dito, mas eu creio que ele sempre suspeitou de que havia um grande segredo escondido no meio das páginas. Contrariamente, no entanto, às suposições do Taft, o meu pai suspeitava de que era um segredo sobre o amor: uma relação entre Colonna e uma mulher de condição mais baixa; um barril de pólvora político;

um herdeiro ilegítimo; um romance do género dos que os jovenzinhos imaginam antes que a horrorosa noiva que é a idade adulta chegue e destrua as coisas de criança.

Todavia, por muito que esta abordagem diferisse da de Taft, quando o meu pai chegou a Manhattan, para um ano de investigação longe da Universidade de Chicago, sentiu que os dois homens estavam a avançar consideravelmente. O Curry insistiu para que o velho amigo se juntasse a eles no seu trabalho e o meu pai concordou. Como três animais numa única jaula, os homens lutaram para se acomodarem uns aos outros, andando desconfiadamente em círculos, até que novas linhas foram traçadas e novos equilíbrios estabelecidos. Não obstante, o tempo era seu aliado nesses tempos e os três compartilhavam a fé no Hypnerotomachia. Como um delegado da procuradoria-geral cósmico, o velho Francesco Colonna olhava por eles e guiava-os, atenuando as divergências com camadas de esperança. E, durante algum tempo, pelo menos, o verniz da unidade aguentou.

Durante mais de dez meses, o Curry, o Taft e o meu pai trabalharam juntos. Só depois disso é que o Curry fez a descoberta que iria ser fatal para a sociedade. Nessa época ele tinha deixado as galerias para se dedicar aos leilões, onde se encontram as melhores oportunidades do mundo da arte; e foi quando se estava a preparar para o seu primeiro leilão que deparou com um livro de notas esfarrapado que tinha pertencido a um coleccionador de antiguidades, recentemente falecido.

O livro de notas pertencera a um capitão de porto genovês, um velho com uma mão aleijada que tinha o hábito de anotar o estado do tempo e da sua fraca saúde, mas manteve igualmente um registo diário de tudo o que aconteceu nas docas na Primavera e no Verão de 1497, incluindo os acontecimentos peculiares que rodearam a vinda de um homem chamado Francesco Colonna.

O capitão do porto, a quem o Curry alcunhou o Genovês, porque ele nunca revela o seu nome — recolheu os rumores sobre Colonna que circulavam pêlos molhes. Teve o cuidado de escutar as conversas que Colonna travou com os seus homens e soube que o abastado romano tinha vindo a Génova para supervisionar a chegada de um importante barco, cuja carga só Colonna conhecia. O genovês começou a levar diariamente as notícias de todos os barcos que entravam aos aposentos de Colonna, onde um dia o apanhou a escrever notas, que o romano escondeu assim que o genovês entrou.

Se tivesse ficado por aí, o diário do capitão do porto pouca luz teria lançado sobre o Hypnerotomachia. Mas o capitão do porto era um homem curioso e, enquanto ia ficando cada vez mais impaciente de esperar que o barco de Colonna chegasse, sentiu que a única forma de descobrir as intenções do nobre era ver os documentos de embarque de Francesco, onde figurava a lista de carga. Finalmente foi perguntar ao cunhado, António, um mercador que por vezes traficava mercadorias pirateadas, se seria possível contratar um ladrão para entrar nos aposentos de Colonna e copiar tudo o que ali encontrasse. António, em troca da ajuda do genovês na montagem de um outro esquema de negócio, concordou em ajudar.

O que António descobriu foi que, mesmo o homem mais desesperado, recusava o trabalho à simples menção do nome de Colonna. O único que estava disposto a fazê-lo foi um ladrão analfabeto. No entanto, por muito estranho que pareça, o ladrão fez bem o seu trabalho. Copiou os três documentos que estavam na posse de Colonna: o primeiro era uma parte de uma história, que o capitão do porto achou que não tinha o mais pequeno interesse e nunca se deu ao trabalho de descrever; o segundo era uma tira de couro com um complicado diagrama desenhado, totalmente incompreensível para o genovês; e o terceiro era uma espécie de mapa muito peculiar, consistindo nas quatro direcções cardeais. O capitão do porto começava já a lamentar ter contratado o ladrão quando se soube de um acontecimento que o fez rapidamente temer pela sua vida.

Ao regressar a casa à noite o genovês encontrou a mulher a chorar. Ela explicou que o seu irmão, António, tinha sido envenenado ao jantar, na sua própria casa, tendo o corpo sido descoberto por um pequeno vagabundo. Uma sorte semelhante tivera o ladrão: enquanto estava a beber na taberna, o ladrão analfabeto tinha sido apunhalado na coxa por um desconhecido que ia a passar. Quase antes de o estalajadeiro ter tido tempo de se aperceber o que se passava, o homem sangrara até à morte e o desconhecido desaparecera.

O genovês viveu os dias seguintes numa enorme aflição, quase incapaz de cumprir as suas obrigações nas docas. Nunca mais voltou aos aposentos de Colonna, mas no seu diário registou todos os pormenores úteis acerca do que o ladrão tinha encontrado e aguardou nervosamente a chegada do navio de Colonna, esperando que o nobre partisse com a sua carga. As suas preocupações tornaram-se tão terríveis que grandes navios mercantes entraram e saíram sem que ele quase lhes fizesse menção. Quando finalmente o navio de Francesco chegou ao porto, o velho genovês mal conseguia acreditar no que via.

Por que haveria um nobre de se preocupar com um barco tão trivial escreveu ele, este imundo xaveco? O que é que ele pode transportar para que um homem de qualidade pudesse ligar-lhe a mais pequena importância?

E quando ele soube que o barco tinha vindo por Gibraltar, trazendo carga vinda do Norte, o genovês ia tendo uma apoplexia. Encheu o seu livrinho com pragas imundas, dizendo que Colonna era um louco sifilítico e que só um cretino ou um lunático poderia acreditar que alguma coisa de valor tenha alguma vez vindo de um sítio como Paris.

Segundo Richard Curry, só havia mais duas referências a Colonna. Na primeira, o genovês relatava uma conversa que tinha escutado entre Colonna e um arquitecto florentino que era a única visita habitual do romano. Nela, Francesco aludia a um livro que estava a escrever, no qual relatava o turbilhão dos últimos dias. O genovês, ainda dominado pelo medo, tomou cuidadosamente nota dela.

A segunda referência, feita três dias mais tarde, era mais críptica, mas fazia lembrar ainda mais a carta que encontrei com o meu pai. Nessa altura, o genovês tinha-se convencido de que Colonna era realmente louco. O romano recusava-se a deixar os seus homens descarregar o barco à luz do dia, insistindo em que a carga só poderia ser descarregada em plena segurança ao anoitecer. Muitas das caixas de madeira, conforme o capitão do porto teve oportunidade de observar, eram suficientemente leves para serem transportadas por uma mulher ou por um velho e ele deu-se ao trabalho de pensar qual seria a especiaria ou metal que poderia ser assim carregado. Gradualmente o genovês começou a suspeitar de que os sócios de Colonna — o arquitecto e dois irmãos, também de Florença — eram homens de confiança ou mercenários ao serviço de qualquer intriga sinistra. Quando um rumor pareceu confirmar esse seu receio, ele apressou-se a registá-lo.

Diz-se que o António e o ladrão não são as primeiras vítimas do homem, mas que Colonna já tinha mandado matar mais dois homens. Não sei quem eram e ainda não ouvi falar nos seus nomes, mas tenho a certeza de que está relacionado com este carregamento. Souberam o que continha e ele temeu que o traíssem. Agora estou convencido disso. O medo é o que faz mover este homem. Os seus olhos denunciam-no, mesmo que os seus homens o não façam.

Segundo o meu pai, o Curry ligou menos importância a esta segunda referência do que à primeira, que ele pensava que poderia estar relacionada com a escrita do Hypnerotomachia. Se isso for verdade, então a história descoberta pelo ladrão entre as coisas de Colonna, os pormenores que o genovês nunca se deu ao trabalho de registar, poderia ser um primeiro esboço do manuscrito.

Mas o Taft, que já nessa altura perseguia a Hypnerotomachia segundo o seu próprio ponto de vista, reunindo grandes catálogos com referências textuais com o objectivo de procurar concordâncias, que permitissem seguir cada palavra de Colonna até à sua origem, deixou de ver qualquer possível relevância nas notas mal rabiscadas que o capitão do porto assegurava que tinha visto Colonna esconder. Uma história tão ridícula, disse ele, nunca poderia ter lançado luz sobre o profundo mistério do grande livro. Ele tratou rapidamente a descoberta da mesma forma que tratara todos os outros livros que lera sobre o assunto: como combustível para o fogo.

A sua frustração, penso eu, baseava-se em algo mais do que os seus pressentimentos relativamente ao diário. Ele tinha visto o equilíbrio do poder pô-lo em risco, a química do seu trabalho com o Richard Curry decompor-se desde que o meu pai começou a levar o Curry a novas abordagens e possibilidades alternativas.

E assim uma luta nasceu, uma batalha pela influência, no decorrer da qual o meu pai e Vincent Taft geraram o ódio um pelo outro que iria durar até à morte do meu pai. Taft, sentindo que não tinha nada a perder, caluniou o trabalho do meu pai num esforço para reconquistar o Curry para a sua causa. O meu pai, sentindo que o Curry estava a ceder sob a pressão do Taft, respondeu na mesma moeda. Num mês, o trabalho dos dez meses anteriores foi destruído. Fosse qual fosse o progresso que os três homens tinham conseguido com o seu trabalho conjunto, ele desmoronou-se em feudos separados, não querendo nem o meu pai nem o Taft ter fosse o que fosse a ver com as contribuições que o outro tinha dado.

O Curry, no meio de tudo isto, agarrou-se ao diário do genovês. Espantava-o como é que os seus amigos tinham deixado as invejas comprometer os seus objectivos. Ele possuía, na sua juventude, a mesma virtude que viria a encontrar e admirar mais tarde no Paul:

um compromisso para com a verdade e uma grande impaciência relativamente à distracção. Dos três homens, penso que foi o Curry quem mais se apegou ao livro de Colonna, Curry aquele que queria acima de tudo desvendar o segredo. Talvez por o meu pai e Taft serem ainda universitários, viram algo de académico no Hypnerotomachia. Eles sabiam que a vida de um estudioso podia ser passada ao serviço de um único livro, e isso entorpecia o seu sentido de urgência. Apenas Richard Curry, o negociante de arte, mantinha o seu ritmo impetuoso. Ele deve ter, mesmo na época, antevisto o seu futuro. A sua vida no meio dos livros estava a esmorecer.

Não foi um acontecimento, mas dois, que conduziram as coisas a um ponto crítico. O primeiro ocorreu quando o meu pai regressou a Columbus para pôr as ideias em ordem. Três dias antes de regressar a Nova Iorque, tropeçou, literalmente falando, num membro de uma irmandade mista do Estado do Ohio. Ela e as suas irmãs Pi Beta Phi*17 andavam numa recolha de livros, solicitando doações das lojas locais, como parte da sua acção anual de caridade e os seus caminhos cruzaram-se à porta da livraria do meu avô, antes que qualquer deles se tenha apercebido. Numa explosão de páginas e livros, a minha mãe e o meu pai caíram no chão e a seta do destino atingiu-os em pleno e uniu as suas vidas.

Quando regressou a Manhattan, o meu pai estava irremediavelmente perdido, perturbado pelo seu encontro com a rapariga de longos cabelos e olhos azuis que lhe chamava Tigre*18 e não se estava a referir a Princeton, mas a Blake. Mesmo antes de a ter encontrado, ele já tinha percebido que estava farto de Taft. Sabia também que Richard Curry tinha traçado o seu próprio caminho, fíxando-se no diário do capitão do porto. Agora o apelo da casa espicaçava-o. Com o pai doente e com uma mulher no seu porto de abrigo, o meu pai voltou a Manhattan apenas para reunir os seus pertences e despedir-se. Os seus anos na costa leste, que tinham começado tão promissoramente em Princeton com o Richard Curry, estavam a chegar ao fim.

No entanto, quando chegou ao encontro semanal, preparado para dar as notícias, o meu pai deparou-se com a iminência de mais uma bomba. Durante a sua ausência, o Taft e o Curry tinham discutido na primeira noite e passado à agressão física na noite seguinte.

 

17 Fraternidade feminina que tem como missão promover a amizade, desenvolver intelectualmente as mulheres, cultivar a liderança e enriquecer as vidas dos seus membros (in Princípios da Pi Beta Phi Fraternityor Women). (NT)

18 O tigre é o símbolo da universidade de Princeton, não só pelo seu simbolismo óbvio, mas também por as cores da universidade serem o laranja e o preto, entre outros motivos. Aqui a rapariga referia-se ao poema de William Blake, «The Tiger». (NT)

 

O antigo capitão da equipa de futebol provou que não tinha envergadura para o enorme Vincent Taft, que deu um murro ao homem mais novo e lhe partiu o nariz. Depois, numa noite anterior ao regresso do meu pai, o Curry tinha saído do apartamento, com os olhos negros e um penso no nariz, para jantar com uma das mulheres que trabalhava na sua galeria. Quando regressou ao apartamento nessa noite, alguns documentos da sua casa de leilões, juntamente com toda a sua pesquisa sobre a Hypnerotomachia, tinham desaparecido. O seu tesouro mais bem guardado, o diário do capitão do porto, tinha desaparecido com eles.

O Curry fez rapidamente as suas acusações, mas o Taft negou-as todas. A polícia, a braços com uma situação de roubos em série na zona, pouco se interessou pelo desaparecimento de uns livros velhos. Mas o meu pai, que chegou no meio de tudo aquilo, tomou imediatamente o partido do Curry. Ambos disseram ao Taft que não queriam mais nada com ele; o meu pai depois explicou que tinha um bilhete para partir para Columbus na manhã seguinte e que não fazia tenções de voltar. Ele e o Richard Curry fizeram as despedidas, enquanto o Taft olhava em silêncio.

Assim terminou o período formativo da vida do meu pai, o ano único que pôs em movimento todo o relógio da sua futura identidade. Pensando agora nisso, pergunto-me se não se passa o mesmo com todos nós. A idade adulta é um glaciar que avança silenciosamente pela nossa juventude. Quando chega, a marca da infância congela subitamente, apanhando-nos definitivamente na imagem do nosso último acto, na pose em que nos apanhou o gelo da idade no seu embate. As três dimensões do Patrick Sullivan quando o gelo se apoderou dele eram a de marido, pai e investigador. E assim o definiram até ao fim.

Depois do roubo do diário do capitão do porto, o Taft desapareceu da vida do meu pai e só reapareceu como a melga da sua carreira, picando por trás do véu de estudioso. O Curry continuou a manter o contacto durante uns escassos três anos, até ao casamento dos meus pais. A carta que ele escreveu nessa altura é uma coisa desagradável, refugiando-se principalmente nas sombras dos dias mais sombrios. Depois de escassas primeiras palavras para apresentar as felicitações aos noivos, é tudo acerca da Hypnerotomachia.

O tempo passou; as palavras divergiram. Taft, graças ao impulso desses primeiros anos, recebeu um convite para membro permanente do prestigiado Institute for Advanced Studies, onde Einstein tinha trabalhado quando vivia perto de Princeton. Foi uma honra que certamente o meu pai invejou, que libertava Taft de todas as obrigações de professor universitário: para além de ter aceite orientar o Bill Stein e o Paul, o velho urso nunca teve de aturar qualquer estudante ou dar alguma aula. O Curry conseguiu um lugar de destaque na Leiloeira Skinner, em Boston, e atingiu um grande sucesso profissional. Na livraria de Columbus, onde o meu pai aprendera a andar, três novas crianças mantinham-no suficientemente ocupado para esquecer, por algum tempo, que esta experiência em Nova Iorque tinha deixado marcas para sempre. Os três homens, afastados uns dos outros pelo orgulho e preconceito, encontraram sucedâneos para a Hypnerotomachia, envolvimentos amorosos alternativos para substituírem uma busca deixada incompleta. O relógio das gerações deu mais uma volta e o tempo transformou amigos em desconhecidos. Francesco Colonna, que guardava a chave que dava corda ao relógio, deve ter pensado que o seu segredo estava a salvo.

 

                                               CAPITULO 7

— Para que lado? — pergunto ao Paul quando a biblioteca desaparece nas nossas costas.

— Para o museu de arte — dizele, todo curvado para manter o monte de panos seco.

Para lá chegarmos, passamos por Murray-Dodge, um edifício com forma de bolha de pedra no interior da parte norte do campus. Lá dentro uma companhia de teatro de estudantes está a representar Arcádia de Tom Stoppard, a última peça que o Charlie teve de ler para Literatura e a primeira a que ele e eu vamos assistir juntos. Temos bilhetes para a sessão de domingo à noite. Irrompendo acima das paredes do palco em forma de caldeirão, chega até nós a voz de Thomasina, a menina-prodígio da peça, que tem treze anos e que, quando ali pela primeira vez, me fez lembrar o Paul.

— Se se pudesse parar cada átomo na sua posição e direcção — está ela a dizer —, e se a nossa mente pudesse abranger todas as acções que assim ficaram suspensas, então seríamos muito, muito bons em álgebra e poderíamos escrever a fórmula para todo o futuro.

— Sim — gagueja o tutor, que está exausto com a capacidade da sua mente. — Sim, tanto quanto sei, és tu a primeira pessoa a pensar nisso.

À distância, a entrada principal para o museu de arte parece estar aberta, um pequeno milagre numa noite de feriado. Os curadores do museu são uns tipos estranhos, metade deles são ratos de biblioteca, a outra metade são artistas sorumbáticos e eu tenho a impressão de que a maior parte preferiria deixar as criancinhas do infantário pintar com as mãos nos Monets do que deixar um estudante entrar sem ser estritamente necessário.

McCormick Hall, onde está instalado o departamento de História de Arte, fica praticamente em frente do museu, com a parede de entrada forrada de vidro. Quando nos aproximamos, os seguranças olham-nos pelo óculo da porta. Como uma das exposições de vanuarda que a Katie me levou a ver e que eu nunca compreendi, têm todos o ar de serem verdadeiros, mas estão perfeita e silenciosamente imóveis. Uma placa na porta indica ENCONTRO DOS CURADORES DO MUSEU DE ARTE DE PRINCETON. Em letras mais pequenas, acrescenta:

museu fechado ao público. Hesito, mas o Paul avança.

— Richard — grita ele, para dentro do museu.

Uma quantidade de patronos voltam-se para olhar, mas entre eles não há rostos familiares. Telas adornam as paredes do andar principal, janelas de cor abertas nesta casa tristonha. Vasos gregos reconstituídos estão expostos sobre pilares, à altura da cintura, numa sala ao lado.

— Richard — volta a chamar o Paul, agora em voz mais alta. A cabeça calva de Curry volta-se no seu longo pescoço grosso. Ele é alto e magro e traz um fato completo de risca fina, com uma gravata vermelha. Os olhos escuros do homem deixam transparecer um profundo afecto ao ver o Paul avançar para ele. A mulher do Curry morreu há mais de dez anos, sem deixar filhos, e agora ele vê no Paul o seu único filho.

— Olá, rapazes — cumprimenta ele calorosamente, estendendo os braços, como se tivéssemos metade das nossas idades. Volta-se para o Paul. — Não esperava ver-te tão cedo. Pensava que só estavas despachado muito mais tarde. Mas que bela surpresa. — Os dedos dele brincam com os botões de punho e os olhos transbordam de prazer. Inclina-se para apertar a mão estendida do Paul.

— Como é que tens passado?

Ambos sorrimos. A energia que transparece da voz do Curry desmente a sua idade, mas noutras coisas as marcas do tempo estão a apertar. Desde a última vez que o vi, apenas há seis meses, insinuaram-se nos seus movimentos sinais de rigidez e por baixo da pele da cara instalou-se uma flacidez quase imperceptível. Richard Curry é proprietário de uma grande casa de leilões em Nova Iorque e curador de museus muito maiores do que este — mas, segundo o Paul, depois do desaparecimento da Hypnerotomachia da sua vida, a carreira que o veio substituir nunca foi mais do que um derivativo, uma tentativa para esquecer o passado. Ninguém parecia mais surpreendido pelo seu sucesso e menos impressionado por ele do que o próprio Curry.

— Ah — diz ele, voltando-se como se nos quisesse apresentar alguém. —Já viram os quadros?

Atrás dele está uma tela que eu nunca tinha visto. Olhando em redor apercebo-me de peças de arte que habitualmente não estavam nas paredes.

— Estas não são da colecção da universidade — observa o Paul. O Curry sorri. — Não, de forma alguma. Cada um dos curadores

trouxe uma coisa para hoje. Fizemos uma aposta para ver quem é que conseguia emprestar mais peças ao museu.

Curry, o antigo jogador de futebol americano, ainda tem no seu discurso vestígios das apostas e dos jogos de cavalheiros.

— E quem ganhou? — pergunto eu.

— O museu de arte — responde ele, desviando a questão.

— Princeton fica a ganhar quando nós rivalizamos.

No silêncio que se segue, ele percorre as caras dos patronos que ainda não abandonaram a grande sala depois da nossa interrupção.

— Ia mostrar-vos isto depois da reunião dos curadores — diz ele para o Paul —, mas não há nenhum motivo para não o fazer agora.

Faz um gesto para o seguirmos e começa a andar na direcção de uma sala à esquerda. Olho para o Paul, interrogando-me acerca do que é que ele quer dizer, mas o Paul parece não saber.

— O George Carter trouxe estes dois... — diz o Curry, mostrando-nos as obras de arte por onde vamos passando. Duas pequenas gravuras de Dürer estão nas suas molduras, tão antigas que têm a textura da madeira que deu à costa. — E o Wolgemut ali ao fundo. — Aponta para o outro lado da sala. — Os Philip Murrays trouxeram estes dois maneiristas muito bonitos.

O Curry conduz-nos a uma segunda sala, onde a arte dos finais do século XX foi substituída por pinturas de impressionistas. — A família Wilson trouxe quatro: um Bonnat, um pequeno Manet e dois Toulouse-Lautrec. — Dá-nos tempo para os observarmos. — Os Marquands acrescentaram este Gauguin.

Atravessamos o hall principal e na sala das antiguidades ele diz:

— A Mary Knight só trouxe um, mas é um busto romano muito grande e ela diz que poderá ser uma doação permanente. Muito generoso da sua parte.

— E a sua contribuição? — pergunta o Paul? O Curry conduziu-nos num grande círculo no primeiro andar, de regresso à sala inicial. — Esta é a minha — diz ele, com um gesto da mão.

— Qual? — pergunta o Paul.

— Todos.

Trocam um olhar. A sala principal contém mais de uma dúzia de obras.

— Venham por aqui — diz-nos o Curry, regressando a uma parede coberta de quadros, perto do local onde o tínhamos encontrado. — São estes que vos quero mostrar.

Conduz-nos para junto de cada tela na parede, uma de cada vez, mas não diz nada.

— O que é que têm em comum? — pergunta ele, depois de nos deixar observá-las. Eu abano a cabeça, mas o Paul descobre imediatamente.

— O assunto. São todos eles a história bíblica de José. O Curry confirma, com um aceno. —José a Vender Trigo ao Povo — começa ele, apontando para o primeiro. — De Bartholomeus Breenbergh, cerca de 1655. Convenci o Instituto Barber a emprestá-lo.

Dá-nos um momento e depois passa para o segundo quadro. — José e os Irmãos de Franz Maulbertsch, 1750. Vejam o obelisco ao fundo.

— Lembra-me uma gravura da Hypnerotomachia — comento eu. O Curry sorri. — Ao princípio também pensei nisso. Infelizmente, parece não haver relação. Encaminha-nos para o terceiro.

— Pontormo — diz o Paul antes mesmo de o Curry ter começado.

— É verdade. José no Egipto.

— Como é que conseguiu este?

— Londres não o queria deixar vir directamente para Princeton. Tive de tratar de tudo através do Met*19.

O Curry vai a dizer mais qualquer coisa, quando o Paul pára diante dos dois últimos quadros da série. São dois painéis, de dimensões consideráveis, de cores ricas. Sente-se a emoção na sua voz.

— Andrea del Sarto. Histórias de José. Vi-os em Florença. Richard Curry fica em silêncio. Ele pagou ao Paul a viagem a Itália, no Verão do nosso primeiro ano, para investigar a Hypnerotoma-chia e fora a única vez que o Paul saíra do país.

— Tenho um amigo no Palazzo Pitti — diz o Curry, cruzando as mãos sobre o peito. — Ele tem sido excelente para mim. Emprestaram-mos por um mês.

O Paul fíca imóvel durante um minuto, completamente emudecido. Tem o cabelo colado à cabeça, ainda molhado da neve, mas nos seus lábios forma-se um sorriso quando se volta de novo para os quadros. Apercebo-me, por fim, depois de observar a sua reacção, de que as telas foram expostas por esta ordem por uma razão. Formam um crescendo

 

19 The Metropolitan Museum of Art, de Nova Iorque. (NT)

 

de significado que só o Paul pode compreender. O Curry deve ter insistido neste arranjo e os curadores devem ter concordado, agradecidos ao curador que tinha conseguido reunir mais obras do que os outros todos em conjunto. A parede à nossa frente é uma prenda do Curry para o Paul, um cumprimento silencioso pela finalização da sua tese.

— Leram o poema de Browning a Andrea del Sarto? — pergunta o Curry, tentando traduzi-la em palavras.

Eu li, para um seminário de literatura, mas o Paul abana a cabeça.

— «Tu fazes o que muitos sonham fazer, durante as suas vidas» — diz o Curry. — «Sonham? Lutam para fazer, torturam-se para fazer, e não conseguem fazer.»

Por fim, o Paul vira-se e pousa a mão no ombro do Curry. E nesse momento dá um passo à retaguarda e tira um molho de trapos de dentro da camisa.

— O que é isto? — pergunta o Curry.

— Uma coisa que o Bill acabou de me trazer. — O Paul hesita e eu sinto que ele não está bem certo de qual vai ser a reacção do Curry. Cuidadosamente, desenrola o livro. — Acho que o deveria ver.

— O meu diário — diz o Curry completamente arrasado. Volta-o nas mãos. — Não acredito...

— Vou usá-lo — diz o Paul. — Para terminar. Mas o Curry ignora-o; quando olha para o livro, o seu sorriso desaparece. — De onde é que ele veio?

— Do Bill.

— Isso já disseste. Mas onde é que ele o encontrou?

O Paul hesita. A voz de Curry adquiriu um tom estranho.

— Numa livraria em Nova Iorque — respondo eu. — Um alfarrabista.

— Impossível — murmura o homem. — Procurei este livro em toda a parte. Em todas as livrarias, em todos os alfarrabistas, em todas as lojas de penhores de Nova Iorque. Nas maiores casas de leilões. Tinha desaparecido. Durante trinta anos Paul. Tinha desaparecido.

Volta as páginas, pesquisando cuidadosamente com os olhos e as mãos. — E verdade, olha. Cá está a parte de que te falei. Colonna é mencionado aqui — continua para outro registo e outro — e aqui. — Bruscamente olha para nós. — O Bill não tropeçou nele por acaso esta noite. Não é possível, precisamente na véspera do dia em que tens de entregar o teu trabalho.

— O que é que quer dizer?

— E o desenho? — pergunta o Curry. — O Bill também te deu o desenho?

— Qual desenho?

— O pedaço de cabedal. — Curry faz com os polegares e os indicadores uma forma com cerca de uma polegada quadrada. — Metido no meio do diário. Havia um desenho. Um esquema.

— Não estava lá — dizo Paul.

Curry volta de novo o livro nas mãos. Os olhos dele estão agora frios e distantes.

— Richard, tenho de entregar o diário ao Bill amanhã — diz o Paul. — Vou lê-lo esta noite. Talvez ele me possa esclarecer quanto à parte final do Hypnerotomachia.

Com um estremecimento, Curry regressa ao presente. — Ainda não acabaste o teu trabalho?

A voz do Paul enche-se de ansiedade. — A última parte não é

como as outras.

— Mas... e então o prazo, amanhã?

Como o Paul não diz nada, Curry passa a mão pela capa do diário, e depois entrega-o. — Acaba-o. Não comprometas o que já conseguiste até aqui. Há muita coisa em jogo.

— Não vou comprometer. Creio que já quase descobri. Estou muito perto.

— Se precisarem de alguma coisa, é só dizeres. Autorização para

escavações. Agrimensores. Se estiver lá, vamos encontrá-lo. Olho para o Paul, sem perceber o que o Curry quer dizer. O Paul sorri nervosamente. — Não preciso de mais nada. Vou

encontrá-lo sozinho, agora que tenho o diário.

— Mas não o percas nunca de vista. Nunca ninguém fez nada assim até hoje. Lembra-te de Browning. «O que muitos sonham fazer, durante toda a sua vida.»

— Sir — diz uma voz atrás de nós.

Voltamo-nos e deparamos com um curador que vem na nossa direcção.

— Mr. Curry, o encontro dos curadores está a começar. Podemos pedir-lhe que se junte a nós no andar de cima?

— Continuamos a falar nisto mais logo — diz o Curry, recuperando o controlo. — Não sei quanto tempo vai demorar esta reunião.

Dá uma palmada afectuosa no braço do Paul, aperta-me a mão e dirige-se para as escadas. Quando ele sobe, ficamos sozinhos com os guardas.

— Não lho devia ter mostrado — afirma o Paul, quase para consigo, quando nos encaminhamos para a porta.

Faz uma pausa para admirar mais uma vez a série de imagens, guardando uma memória a que possa recorrer sempre que o museu estiver fechado. Depois dirigimo-nos para o exterior.

— Por que é que o Bill haveria de mentir acerca do sítio onde arranjou o diário? — pergunto quando nos encontramos de novo na neve.

— Acho que ele não mentiu — diz o Paul.

— Então de que é que o Curry estava a falar?

— Se ele soubesse mais, ter-nos-ia dito.

— Talvez ele não te quisesse dizer comigo presente. O Paul ignora-me. Há uma premissa que ele gosta de manter, é que aos olhos do Curry nós somos iguais.

— O que é que ele queria dizer com aquilo de que te arranjava autorização para escavações? — pergunto.

O Paul olha por cima do ombro, nervosamente, para um estudante que entretanto se aproximou de nós por trás. — Aqui não, Tom.

Sou capaz de fazer muito melhor do que pressioná-lo. Após um longo silêncio, digo: — Podes dizer-me por que é que todos os quadros têm a ver com José?

A expressão do Paul ilumina-se. — Génesis, trinta e sete. — Faz uma pausa para se lembrar. — «Então Jacob amava José mais do que todos os seus filhos, porque ele era o seu filho tardio. E fez-lhe um casaco de muitas cores.»

Levo um segundo para compreender. O dom das cores. O amor de um pai envelhecido pelo seu filho favorito.

— Ele tem orgulho em ti — observo eu. O Paul assente com a cabeça. — Mas eu não acabei. O trabalho não está completo.

— Não é por causa disso — digo-lhe.

O Paul sorri levemente. — Está claro que é.

Regressamos ao dormitório e reparo num aspecto desagradável no céu: está escuro, mas não totalmente negro. Toda a cúpula celeste está salpicada de nuvens de neve de um horizonte ao outro e há uma luminosidade cinzenta e pesada. Não se vê uma única estrela.

Na porta das traseiras de Dod, descubro que não temos forma de entrar. O Paul consegue fazer parar um finalista do andar de cima, que nos lança um olhar estranho antes de nos emprestar o seu cartão de identificação. Um pequeno detector eléctrico regista a informação com um bip e depois abre a porta, com um som semelhante a uma pistola a ser armada. Na cave, duas alunas do terceiro ano estão a dobrar roupas em cima de uma mesa aberta, com T-shirts e calções muito curtos, no calor sufocante da lavandaria. Nunca falha: atravessar a lavandaria no Inverno é como entrar numa miragem do deserto, o ar vibra com o calor e os corpos são fantásticos. Quando está a nevar lá fora, a visão de ombros e pernas nus é melhor do que um shot de whisky para estimular a circulação sanguínea. Não estamos nem perto de Holder, mas dir-se-ia que entrámos na sala de espera para as Olimpíadas Nuas.

Subo até ao primeiro andar e dirijo-me para a ala norte do edifício, onde o nosso quarto é a última divisão. O Paul segue-me, em silêncio. À medida que nos aproximamos, dou por mim a pensar de novo nas duas cartas que me esperam em cima da mesa de apoio. Mesmo a descoberta do Bill é insuficiente para me distrair. Durante várias semanas adormeci a pensar no que é que uma pessoa podia fazer com quarenta três mil dólares por ano. Fitgerald escreveu um conto acerca de um diamante do tamanho do Ritz e, nos momentos antes de mergulhar no sono, quando as proporções das coisas se confundem, imagino-me a comprar um anel com esse diamante para oferecer à mulher que me espera no outro lado do sonho. Algumas noites penso em comprar coisas encantadas, como fazem as crianças nas suas brincadeiras, como um carro que nunca se amolgasse ou uma perna que se curasse sempre. O Charlie chama-me à realidade, sempre que me deixo levar longe de mais. Diz que eu devia comprar uma colecção de sapatos muito caros, com solas superaltas ou dar entrada para a compra de uma casa com tectos muito baixos.

— O que é que eles estão a fazer? — pergunta o Paul, apontando para o fundo do hall.

Ao lado um do outro, no fundo do corredor, estão o Charlie e o Gil. Olham para dentro da porta do nosso quarto, que está aberta e para onde alguém está a entrar. Um segundo olhar lança luz no meu espírito: a polícia do campus está aqui. Alguém nos deve ter visto sair dos túneis.

— O que é que está a acontecer? — interroga o Paul, apressando o passo.

Apresso-me a segui-lo.

O zelador está a apanhar qualquer coisa do chão. Ouço o Charlie e o Gil a argumentar, mas não distingo as palavras. Quando já começo a preparar as desculpas para aquilo que fiz, Gil vê-nos aproximar e diz. — Tudo bem. Não levaram nada.

— O quê?

Aponta para a porta. O quarto, como consigo agora ver, está num caos. Almofadas pelo chão; livros atirados para fora das estantes. No quarto que partilho com o Paul, as gavetas das cómodas estão escancaradas.

— Ó meu Deus... — murmura o Paul, furando entre o Charlie e eu.

— Alguém forçou a entrada — explica o Gil.

— Alguém entrou — corrige o Charlie. — A porta não estava fechada à chave.

Volto-me para o Gil, que foi o último a sair. Durante o último mês, o Paul tem-nos pedido para mantermos o quarto bem fechado, enquanto ele acaba a tese. O Gil é o único que nunca se lembra.

— Olhem — dizele, na defensiva, apontando para a janela, no outro lado do quarto. — Entraram por ali. Não foi pela porta.

Uma poça de água formou-se por baixo da janela no lado norte da sala comum. A janela de guilhotina está completamente aberta e a neve acumula-se no peitoril, ondulando ao sabor do vento. Na tela da cortina abrem-se três grandes rasgões.

Avanço para o meu quarto com o Paul. Os olhos dele percorrem as gavetas da sua secretária e erguem-se para os livros da biblioteca empilhados numa estante de parede que o Charlie construiu para ele. Os livros desapareceram. A cabeça dele volta-se em todas as direcções, à procura. A respiração ouve-se, ofegante. Por um instante estamos de novo nos túneis; apenas as vozes nos são familiares.

Não faz mal, Charlie. Não interessa a forma como entraram.

Não faz mal para vocês, porque não levaram nada vosso.

O zelador está ainda a observar a sala comum.

— Alguém soube... — murmura o Paul para consigo.

— Olha aqui — digo eu, apontando para o colchão no beliche de baixo.

O Paul volta-se. Os livros estão a salvo. Com as mãos a tremer, ele começa a conferir os títulos.

Passo em revista as minhas coisas e verifico que está tudo mais ou menos intacto. Mal tocaram na poeira. Alguém folheou os meus papéis, mas a única coisa em que mexeram foi numa reprodução emoldurada da primeira página da Hypnerotomachia, uma prenda do meu pai, que tiraram da parede e abriram a moldura. Tem um canto dobrado, mas de resto está intacta. Pego-lhe e, olhando em redor, verifico que está fora do lugar um único dos meus livros: a prova de autor da Carta Beladona, um título anterior ao meu pai ter decidido que Documento Beladona ficava melhor.

O Gil avança até à salinha entre os dois quartos e grita-nos:

_ Não tocaram em nada do Charlie nem meu. E vosso?

Na voz dele há uma sombra de culpa, uma esperança de que, apesar da grande confusão, não falte nada.

Quando olho na sua direcção, percebo o que é que ele quer dizer. O outro quarto está absolutamente intocado.

— As minhas coisas estão todas — digo eu.

— Não encontraram nada — diz-me o Paul. Antes que eu tenha podido perguntar o que é que ele quer dizer com isso, uma voz surge da entrada.

— Posso fazer-vos algumas perguntas?

A zeladora, uma mulher com pele curtida e cabelo encaracolado, olha demoradamente para nós quando surgimos, encharcados pela neve, dos dois cantos do quarto. A visão das calças de fato de treino da Katie no Paul e da camisa de natação sincronizada da Katie em mim prende-lhe a atenção. A mulher, identificada como Tenente Williams pelo crachá no bolso do peito, puxa de um bloco do bolso do casaco.

— Vocês os dois são...

— Tom Sullivan — informo-a eu. — Ele é o Paul Harris.

— Levaram alguma coisa vossa?

Os olhos do Paul continuam a esquadrinhar o quarto, ignorando a zeladora.

— Não sabemos — digo eu.

Ela olha em redor. —Já verificaram?

— Não notámos ainda a falta de nada.

— Quem foi a última pessoa a sair do quarto esta noite?

— Porquê?

A Williams aclara a voz. — Porque sabemos quem deixou a porta sem ser fechada à chave, mas não quem deixou a janela aberta.

Ela insiste nas palavras porta e janela lembrando-nos de que fomos nós que provocámos isto.

O Paul repara pela primeira vez na janela. A cor abandona-lhe o rosto. — Devo ter sido eu. Estava tanto calor no quarto e o Tom não queria a janela aberta. Vim cá para trabalhar e devo ter-me esquecido de a fechar.

— Ouça — diz o Gil para a zeladora, vendo que esta não está nada decidida a ajudar —, não podemos encerrar o assunto? Penso que não há mais nada para ver.

Sem esperar por uma resposta, ele fecha bruscamente a janela e conduz o Paul para o sofá, sentando-se ao seu lado.

A zeladora toma uma nota final no bloco. — Janela aberta, porta sem estar fechada à chave. Não levaram nada. Mais alguma coisa?

Ficamos todos em silêncio. A Williams abana a cabeça. — Os assaltos são difíceis de resolver — afirma ela como se fosse contra as nossas maiores expectativas.

— Vamos apresentar queixa na polícia. Para a próxima, fechem a porta à chave antes de saírem. Podiam ter evitado problemas. Mantemo-nos em contacto se tivermos mais alguma informação.

Dirige-se pesadamente para a porta, com as botas a rangerem a cada passo. A porta fecha-se sozinha.

Dirijo-me à janela, para observar melhor. A neve derretida no chão está perfeitamente limpa.

— Não vão fazer nada — diz o Charlie, abanando a cabeça.

— Tudo bem — diz o Gil. — Não roubaram nada. O Paul mantém-se em silêncio, mas os seus olhos continuam a perscrutar o quarto. Levanto a janela de guilhotina, deixando de novo o vento entrar no quarto. O Gil olha para mim, incomodado, mas eu estou a observar os cortes na tela de protecção. Acompanham o rebordo da moldura em três lados, deixando o tecido a voar, batido pelo vento, como uma portinhola para cães. Olho de novo para o chão. A única lama que se vê é a dos meus sapatos.

— Tom — chama o Gil. — Fecha a merda da janela. — Agora também o Paul se volta para olhar.

A badana está empurrada para fora, como se alguém tivesse saído pela janela. Mas há qualquer coisa que não bate certo. A zeladora nem se deu ao trabalho de reparar.

— Venham ver isto — digo eu, passando os dedos pêlos fios da tela de protecção, no rebordo dos cortes. Tal como a badana, os cortes estavam para o lado de fora. Se alguém tivesse cortado a tela para entrar, os rebordos cortados apontariam para nós.

O Charlie está já a olhar em redor do quarto.

— E não há lama — diz ele, apontando para a poça no chão. Ele e o Gil trocam um olhar, que o Gil parece tomar como uma

acusação. Se a tela foi cortada por dentro, então estamos de volta à

porta que não ficou fechada à chave.

— Não faz sentido — observa o Gil. — Se eles soubessem que a porta estava aberta, não precisavam de sair pela janela.

— Não faz sentido de qualquer das maneiras — returco eu.

— Desde que estejam cá dentro, podem sempre sair pela porta.

— Devíamos falar disto aos zeladores — sugere o Charlie, levantando-se de novo. — Não posso acreditar que ela nem se tenha dado ao trabalho de verificar.

O Paul não diz nada, mas passa uma mão pelo diário.

Volto-me para ele. — Ainda vais à conferência do Taft?

— Acho que sim. Só começa daqui a uma hora.

O Charlie está a arrumar os livros na prateleira de cima, aonde só ele é que consegue chegar. — No caminho vou passar por Stanhope _ decide ele — para dizer aos zeladores o que eles não viram.

— Provavelmente foi uma partida — diz o Gil para mim, à parte. _ Gente das Olimpíadas Nuas, a divertirem-se.

Depois de passarmos alguns minutos a apanhar coisas, chegamos todos à conclusão de que por agora já chega. O Gil começa a vestir umas calças de lã, deitando para o saco de roupa para a lavandaria a camisa da Katie. — Podíamos comer qualquer coisa no Ivy, de caminho.

Paul acena afirmativamente, folheando o seu exemplar do Mundo Mediterrânico na Época de Filipe Ii, de Braudel, como se alguém pudesse ter roubado alguma página. — Preciso de ver as minhas coisas no clube.

— Vocês não gostavam de mudar de roupa? — acrescenta o Gil, olhando-nos de alto a baixo.

O Paul está demasiado preocupado para o ouvir, mas eu sei o que o Gil quer dizer e volto ao quarto. Ivy é o tipo de lugar onde nem morto eu me deixaria apanhar vestido desta maneira. Só o Paul, uma mancha no seu próprio clube, é que se rege por outras leis.

O que me impressiona ao verificar as minhas gavetas é que mais de metade da minha roupa está suja. Remexendo no fundo do guarda-fatos, encontro um par de calças de caqui e uma camisa que já ali estão enroladas há tanto tempo que as dobras se tornaram vincos e os vincos, pregas. Procuro o meu casaco de Inverno e lembro-me de que continua pendurado nos canos de vapor, dentro da mochila do Charlie. Pegando no casaco que a minha mãe me deu pelo Natal, dirijo-me à sala comum, onde o Paul está sentado ao pé da janela, com os olhos pregados na estante, dando voltas ao cérebro.

— Vais trazer o diário contigo? — pergunto eu. Ele afaga a trouxa de trapos que tem no colo e acena afirmativamente.

— Onde está o Charlie? — pergunto eu, olhando em redor.

— Já foi — diz o Gil, conduzindo-nos para o corredor. — Para falar com os zeladores.

Pega nas chaves do Saab e guarda-as no bolso do casaco. Antes de fechar a porta, verifica os bolsos.

— Chaves do quarto... chaves do carro... Cartão de Identificação...

Ele está tão cuidadoso que me perturba. Não é nada o estilo do Gil, preocupar-se com pormenores. Olhando uma vez mais para a sala comum, vejo as minhas duas cartas em cima da mesa. Depois o Gil fecha a porta à chave com o mesmo rigor bizarro, rodando duas vezes o fecho na mão, para ter a certeza de que não cede. Dirigimo-nos para o carro num silêncio denso. Quando ele liga o motor, os zeladores passam à distância, sombras na sombra. Observamo-los por um segundo e então o Gil mete a mudança e conduz-nos, deslizando pela escuridão.

 

                                           CAPITULO 8

Passando o posto da segurança, na entrada norte do campus voltamos para a direita para Nassau Street, a principal rua de Princeton. A esta hora está deserta, apenas atravessada por dois limpa-neve e um camião de sal que alguém arrancou à hibernação. Uma ou outra loja dispersa, com a neve acumulada debaixo das montras, brilha na noite. A Talbot's and Micawber Books está fechada a esta hora, mas a Pequod Copy e os cafés estão numa razoável azáfama, cheios com os finalistas que se apressam para completar as suas teses na décima primeira hora antes do limite estabelecido pelo departamento.

— Estás contente por teres conseguido? — pergunta o Gil ao Paul, que regressou ao seu mutismo.

— A minha tese?

O Gil olha pelo espelho retrovisor.

— Ainda não acabei — diz o Paul.

— Vá lá! Está feita. O que é que te falta?

O bafo do Paul embacia o vidro de trás. — Bastante — diz ele.

Nos semáforos, voltamos para Washington Road e depois para Prospect Avenue, onde ficam os clubes, O Gil sabe que não é altura de fazer perguntas. Quando nos aproximamos de Prospect, eu sei que os pensamentos dele vagueiam por longe. Sábado à noite é o baile anual do Ivy Club e foi ele, como presidente do clube, que ficou responsável pela organização. Depois de ter deixado atrasar tudo para terminar a tese, ganhou o hábito de fazer pequenas incursões ao Ivy, só para se certificar de que estava tudo sob controlo. Segundo a Katie, quando eu a acompanhar amanhã à noite ao baile, nem vou reconhecer o interior do clube.

Estacionamos ao lado do clube, no espaço que parece estar reservado ao Gil e quando ele desliga a ignição, faz-se um silêncio gelado dentro do carro. Sexta-feira é o dia de calma na confusão do fim-de-semana, uma oportunidade para recuperar um pouco a sobriedade entre as tradicionais festas de quinta-feira e sábado. A neve que acabou de cair abafa até o som de voes que habitualmente se eleva no ar quando os alunos do terceiro e quarto anos regressam ao campus depois do jantar.

Segundo os administradores, os clubes de Princeton são «uma opção de restauração para classes altas». A realidade é que são mesmo a única opção. Nos primitivos tempos do colégio, quando os incêndios nos refeitórios e os estalajadeiros irascíveis obrigavam os estudantes a cuidarem de si próprios, organizaram-se pequenos grupos para tomarem as refeições debaixo do mesmo tecto. Sendo Princeton o que era nesses tempos, os tectos debaixo dos quais eles comiam e os clubes que construíram para suportar esses tectos, não eram coisa de pouca monta; alguns deles não ficam a dever nada às casas senhoriais. E até aos nossos dias, o clube permanece como uma das instituições peculiares de Princeton: um lugar, no género das irmandades mistas, onde os membros, alunos do terceiro e quarto anos, organizavam festas e tomavam as refeições, mas não residiam. Quase cento e cinquenta anos depois de ter surgido pela primeira vez a instituição, a vida social em Princeton é fácil de explicar. Está pura e simplesmente nas mãos dos clubes.

A esta hora Ivy parece deprimente. Envoltos em escuridão, os picos afiados e a pedra negra do edifício são pouco convidativos. O Cottage Club, na porta ao lado, com os seus arcos abobadados brancos e os seus contornos redondos, não tem dificuldade em brilhar ao lado dele. Estes dois clubes irmãos, mais velhos dos outros dez que sobrevivem em Prospect Avenue, são os mais exclusivos de Princeton. A sua rivalidade para conquistarem os melhores elementos em cada novo curso, mantém-se desde 1886.

O Gil olha para o relógio. — Já não há serviço de jantar. Vou buscar qualquer coisa para comermos. — Mantém a porta da frente aberta e depois conduz-nos pela escada principal.

Já há bastante tempo que aqui não entro e as paredes forradas de carvalho escuro, com os seus retratos que nos encaram com severidade, dão-me sempre uma sensação de tranquilidade. A esquerda fica a sala de jantar, com longas mesas de madeira e cadeiras inglesas centenárias; à direita é a sala de bilhar, onde o Parker Hassett está sozinho a jogar uma partida. Parker é o idiota da aldeia de Ivy, o rebento meio tonto de uma família rica, que tem a inteligência suficiente para perceber que algumas pessoas o consideram louco e a

estupidez necessária para deitar as culpas disso para cima de todas as outras. Joga bilhar movimentando o taco com as duas mãos, como um artista de vaudeville a dançar com uma bengala. Embora ele olhe para nós quando passamos, ignoro-o e subimos as escadas, dirigindo-nos para a Sala da Administração.

O Gil bate duas vezes na porta e entra, sem esperar resposta. Entramos atrás dele para a luz quente da sala, onde Brooks Franklin, o majestoso vice-presidente do Gil, está sentado em frente de uma grande mesa de mogno que se prolonga até à frente da porta. No topo da mesa encontra-se um candeeiro Tiffany e um telefone. Em seu redor estão alinhadas seis cadeiras.

— Estou contente por terem aparecido precisamente agora — diz delicadamente o Brooks, dirigindo-se a todos nós e ignorando o facto de que o Paul está vestido com roupa de mulher. — O Parker estava a contar-me os seus planos para o trajo de amanhã à noite e eu estava a começar a pensar que ia precisar de apoio.

Eu não conheço Brooks muito bem, mas desde que andámos juntos numa cadeira de Economia no segundo ano, ele trata-me como se eu fosse um velho amigo. Adivinho que os planos do Parker têm a ver com o baile de sábado, que é, por tradição, um baile com trajos subordinados a temas relacionados com Princeton.

— Bem, tu vais-te passar, Gil — diz o Parker, chegando inesperadamente do andar de baixo. Agora traz um cigarro numa mão e um copo de vinho na outra. — Pelo menos tu tens sentido de humor.

Fala directamente para o Gil como se o Paul e eu fôssemos invisíveis. Sentado à mesa, o Brooks abana a cabeça.

— Decidi vir de JFK — continua ele. — E o meu par não vem de Jackie. Vem de Marilyn Monroe.

O Parker deve ter-se apercebido de alguma confusão na minha expressão, porque esmaga o cigarro num cinzeiro em cima da mesa. — É verdade, Tom — diz ele —, Kennedy formou-se em Harvard. Mas foi aqui que ele fez o primeiro ano.

Produto recente de uma família de vinhateiros da Califórnia, que, desde há muitas gerações, envia sempre um filho para Princeton — e para Ivy — o Parker conseguiu vencer ambos os obstáculos graças apenas ao que o Gil chama, caritativamente, a força cinética da família Hassett.

Antes que eu tenha tempo de responder, o Gil inclina-se para a frente.

— Ouve, Parker, eu não tenho tempo para estas coisas. Se queres vir de Kennedy, o problema é teu. Vê só se consegues ter algum bom gosto.

O Parker, que esperava qualquer coisa de melhor, lança-nos u olhar irritado e afasta-se, de copo de vinho na mão.

— Brooks — dizagora o Gil —, não te importas de ir lá abaixo perguntar ao Albert se sobrou alguma coisa do jantar? Ainda não comemos e estamos cheios de pressa.

O Brooks concorda. Ele é o vice-presidente perfeito: prestável, incansável, leal. Mesmo quando os pedidos do Gil soam um bocado a ordens, ele nunca parece incomodado. Esta noite foi a única vez em que ele me pareceu um pouco estranho e pergunto a mim próprio se terá acabado a tese.

— Pensando melhor — acrescenta o Gil, olhando para nós —, trago dois jantares para cima e eu janto na sala de jantar. Assim falamos dos vinhos para a amanhã, enquanto eu como.

O Brooks volta-se para o Paul e para mim. — Gostei de vos ver — dizele. — Desculpem a história do Parker. Não sei o que é que lhe passa pela cabeça às vezes.

— Às vezes? — digo eu entre dentes.

O Brooks deve ter ouvido, porque sorri antes de sair.

— A comida deve estar pronta dentro de minutos — diz o Gil.

— Se precisarem de mim, estou lá em baixo. — Dirige-se ao Paul:

— Assim que estejas despachado, podemos ir à conferência.

Ele sai e, durante um segundo, não consigo deixar de ter a sensação de que o Paul e eu estamos a cometer uma espécie de fraude. Estamos sentados a uma mesa de mogno antiga, num solar do século XIX, esperando que nos tragam o jantar. Se eu tivesse um níquel por cada vez que isto me aconteceu desde que ando em Princeton, faltava-me mais um para os poder esfregar um contra o outro. Cloister Inn, o clube de que o Charlie e eu somos membros, é um edifício pequeno e simples, com um encanto acolhedor. Quando o chão está encerado e a relva aparada, é um sítio respeitável para beber uma cerveja ou jogar uma partida de bilhar. Mas em tamanho e imponência, é um anão ao pé de Ivy. A prioridade do nosso cozinheiro é a quantidade, não a qualidade e, ao contrário dos nossos amigos de Ivy, comemos onde nos apetece, sem termos de esperar para nos indicarem a mesa pela ordem de chegada. Metade das nossas cadeiras são de plástico e a louça é descartável e por vezes, quando as festas que damos são muito dispendiosas ou abrimos demasiado as torneiras das pipas, o almoço de sexta-feira reduz-se a cachorros-quentes. Somos parecidos com todos os outros clubes da mesma rua. Ivy foi sempre a excepção.

— Vem lá abaixo comigo — diz o Paul, abruptamente.

Sem saber qual é a ideia dele, sigo-o. Descemos, passando pela janela de vitrais que ladeia o patamar sul, e depois mais um lanço de escadas até à cave do clube. O Paul conduz-me através do hall até à Sala do Presidente. O Gil deveria ser a única pessoa com acesso a esta sala, mas quando o Paul se começou a preocupar por ter cada vez menos privacidade no reservado da biblioteca, enquanto estava a tentar acabar a tese, o Gil prometeu-lhe um duplicado da chave, esperando atraí-lo de novo para o clube. Nessa altura, obcecado como andava, o Paul tinha pouco interesse em Ivy. Mas a Sala do Presidente, grande, silenciosa e acessível ao Paul directamente pêlos túneis de vapor, era uma bênção que ele não podia recusar. Houve quem protestasse por o Gil ter transformado em pensão a sala mais privada do clube, mas o Paul dissuadiu toda e qualquer controvérsia pelo facto de aceder à sala quase sempre através dos túneis. Parecia incomodar menos as partes ofendidas se não tivessem de o ver entrar e sair.

Quando chegamos em frente da porta, o Paul abre-a com a sua chave. Entro atrás dele, arrastando os pés, e sou apanhado de surpresa. Há semanas que eu não entrava aqui. A primeira coisa de que me lembro é como é fria. Aqui, naquilo que é na realidade a adega do clube, as temperaturas aproximam-se desconfortavelmente do gelo. Privada ou não, a sala parece que foi invadida por um ciclone de letras. Os livros instalaram-se em todas as superfícies, como pilhas de destroços: as prateleiras dos velhos clássicos europeus e americanos de Ivy estão escondidas pêlos livros de referência do Paul, jornais históricos, mapas náuticos e desenhos dispersos.

Ele fecha a porta atrás de nós. Ao lado da secretária fica um bonito fogão de sala e a confusão de papéis e livros é tão grande que alguns dos títulos ameaçam estender-se até ele. Mesmo assim, quando o Paul percorre a sala com os olhos, parece satisfeito: está tudo como ele o deixou. Avança uns passos e apanha do chão The Poetry of Michelangelo, sacode a capa e pousa-o cuidadosamente em cima da secretária. Encontra um fósforo de madeira comprido em cima da chaminé, acende-o e atira-o para a lareira, onde uma chama azul ganha vida no meio dos jornais velhos misturados com toros de lenha.

— Trabalhaste imenso — digo-lhe eu, olhando para um dos esquemas mais pormenorizado, que se encontram espalhados em cima da secretária.

Ele franze a testa. — Isso não é nada. Fiz uma dúzia desses e provavelmente estão todos errados. Faço-os quando sinto que estou à beira de desistir.

Aquele para o qual eu estou a olhar é um desenho de um edifício que o Paul inventou. O edifício é uma colagem dos que são mencionados na Hypnerotomachia: os arcos partidos foram reconstruídos; os alicerces em ruínas estão de novo sólidos; colunas e capitéis que estiveram separados encontram-se ali reparados. Por baixo deste, está uma pilha enorme de projectos, todos eles feitos a partir das sobras da imaginação de Colonna, todos diferentes uns dos outros. O Paul criou a sua própria paisagem para viver aqui em baixo, uma Itália muito sua. Nas paredes estão pregados mais esquiços, alguns escondidos por notas que ele afixou por cima deles. Em todos eles, as linhas são rigorosas, do ponto de vista arquitectónico, medidas em unidades que eu desconheço. Poderiam ter sido produzidos por um computador, de tal modo as proporções são perfeitas e a descrição cuidadosa. Mas o Paul, que declara que desconfia de computadores, nunca teve na realidade possibilidades de comprar um e recusou delicadamente que Curry lho oferecesse. Tudo o que ali estava tinha sido desenhado à mão.

— O que é? — pergunto eu.

— O edifício que o Francesco está a desenhar. Já quase que me tinha esquecido de que o Paul tem o hábito de se referir a Colonna no presente, usando sempre o seu nome próprio.

— Que edifício?

— A cripta do Francesco. Na primeira metade da Hypnerotomachia diz que ele a está a desenhar. Lembras-te?

— Claro. E achas que se parece com estas? — pergunto, com um gesto na direcção dos desenhos.

— Não sei. Mas vou descobrir.

— Como? — Depois lembro-me do que o Curry disse no museu. — É para isso que os agrimensores são precisos? Vais exumá-la?

— Talvez.

— Então descobriste por que é que Colonna a desenhou? Esta era a pergunta fulcral a que tínhamos chegado quando o nosso trabalho em conjunto acabou. O texto do Hypnerotomachia alude misteriosamente a uma cripta que Colonna estava a construir, mas o Paul e eu nunca tínhamos estado de acordo acerca da sua natureza. O Paul imaginava-a como um sarcófago do Renascimento para a família Colonna, possivelmente pensando rivalizar com os túmulos papais do género dos que Miguel Angelo desenhou na época. Fazendo um esforço para ligar a cripta ao Documento Beladona, imaginei que seria um lugar de descanso final para as vítimas de Colonna, uma teoria que se desenvolvia com a explicação do grande segredo da Hypnerotomachia acerca do seu desenho. O facto de Colonna nunca descrever completamente o edifício, ou onde é que podia ser encontrado, continuou a ser o maior hiato no trabalho do Paul no momento em que eu o deixei. Antes de ele ter tido tempo de responder à minha pergunta, ouvimos bater à porta.

— Mudaram-se — diz o Gil, entrando com o empregado de mesa do clube.

Interrompe-se de repente, observando o quarto do Paul como um homem que espreita para a casa de banho de uma senhora, tímido mas intrigado. O empregado põe dois lugares numa mesa, em cima de guardanapos de pano, arranjando pequenos espaços livres entre os livros. Vêm os dois carregados com dois pratos da porcelana de Ivy, um jarro de água e um cesto de pão.

— Pão saloio quente — anuncia o empregado, pousando o cesto.

— Bife com pimentas — declara o Gil, apresentando o prato. — Mais alguma coisa?

Abanamos a cabeça e o Gil lança um último olhar, antes de voltar lá para cima.

O empregado deita água em dois copos. — Desejam mais alguma coisa para beber?

Quando dizemos que não, ele sai.

O Paul serve-se rapidamente. Ao vê-lo comer, lembro-me da imitação do Oliver Twist que ele fez na primeira vez que nos conhecemos, fazendo com as mãos o feitio da tigelinha da comida. As vezes penso se a primeira memória de infância do Paul não será de fome. Na escola paroquial em que ele foi educado, dividia a mesa com mais seis crianças e as refeições eram sempre servidas aos que chegavam primeiro, até se acabar a comida. Não sei se ele terá alguma vez conseguido libertar-se dessa mentalidade. Uma noite, no nosso primeiro ano, quando tomávamos todas as refeições na sala de jantar do nosso colégio residencial, o Charlie brincou acerca da forma como o Paul comia tão depressa que parecia que tinha medo de que a comida passasse de moda. Nessa noite, mais tarde, o Paul explicou porquê e nunca mais brincámos com o assunto.

Agora o Paul está a estender o braço para um bocado de pão, dominado pela alegria de comer. O cheiro da comida mistura-se com o velho cheiro a mofo dos livros e com o cheiro da lenha a queimar-se, de uma forma que eu poderia ter apreciado se as circunstâncias fossem diferentes. Mas neste momento, sinto-me desconfortável, com as velhas memórias a encadearem-se umas nas outras. Como se conseguisse ler os meus pensamentos, o Paul toma consciência do seu braço estendido e parece envergonhar-se.

Empurro o cesto do pão para ele. — Come! — digo eu, debruçando-me para a comida.

Atrás de nós, o fogo crepita. Ao canto há uma abertura na parede, com o tamanho de um passa-pratos: a entrada para os túneis de vapor, a preferida do Paul.

— Não acredito que tu ainda te enfies por ali. Ele pousa o garfo. — E melhor do que ter de encontrar aquela gente toda lá em cima.

— Isto aqui em baixo parece uma masmorra.

— Não te costumava fazer impressão.

Sinto reviver uma velha discussão. O Paul limpa rapidamente a boca com o guardanapo. — Esquece — diz ele, colocando o diário em cima da mesa, entre nós os dois. — Agora o que interessa é isto.

— Bate na capa com dois dedos e empurra o livrinho na minha direcção. — Temos agora a oportunidade de terminar o que começámos. O Richard pensa que a chave pode estar aqui.

Aplico-me a esfregar uma mancha na mesa. — Talvez devesses mostrá-lo ao Taft.

O Paul fíca a olhar para mim de boca aberta. — O Vincent acha que tudo o que eu descubro contigo não vale nada. Ele anda a pressionar-me para eu apresentar relatórios de progressos duas vezes por semana, só para provar que não desisti. Estou farto de andar a camnhar para o Instituto sempre que preciso da ajuda dele e de ouvi-lo dizer que isto é trabalho derivativo.

— Derivativo?

— E ameaçou-me de que ia dizer ao departamento que eu me

estou a atrasar.

— Depois de tudo o que nós descobrimos?

— Não interessa — diz ele. — Não me interessa o que é que o Vincent diz. — Bate de novo na capa do diário. — Quero acabar.

— O teu prazo termina amanhã.

— Fizemos mais juntos em três meses do que eu sozinho em três anos. Que diferença faz mais uma noite? — Entre dentes, acrescenta:

— Para além disso, não é o prazo que interessa.

Fico surpreendido por o ouvir dizer isto, mas é o resultado da punhalada da rejeição do Taft. O Paul devia ter consciência de que isso iria acontecer. Sinto mais orgulho no trabalho que fiz relativamente à Hypnerotomachia do que a todo o que fiz para a minha própria tese.

— O Taft está louco — opino eu. — Nunca ninguém descobriu tanta coisa no livro. Por que é que não pediste para mudar de orientador?

As mãos do Paul começam a fazer bolinhas com o miolo do pão, amassando-o entre os dedos. — Já me tenho feito essa pergunta muitas vezes — adianta ele, com o olhar no vazio. — Sabes quantas vezes é que ele já se gabou de ter orientado a carreira académica de «qualquer imbecil» graças às suas recensões críticas elogiosas ou às recomendações para promoções? Nunca mencionou o teu pai, mas há muitos outros. Lembras-te do Professor Macintyre, de Clássicas? Lembras-te do livro dele acerca da «Ode a uma Urna Grega», de Keats?

Aceno afirmativamente. O Taft escreveu um artigo acerca do que ele considerava o declínio da qualidade na investigação nas grandes universidades, usando o livro de Macintyre como exemplo. Em três parágrafos, Taft identificava mais erros factuais, atribuições erradas e lapsos do que uma dúzia de outros investigadores tinha encontrado nas recensões críticas aos seus próprios livros. A crítica implícita de Taft parecia ser dirigida aos críticos, mas foi o Macintyre que se tornou o bobo, de tal forma que a universidade o excluiu nas próximas promoções internas do departamento. Mais tarde, o Taft reconheceu que estava apenas a ser mau para com o pai de Macintyre, um historiador do Renascimento que tinha uma vez feito uma recensão pouco entusiasta a um dos livros de Taft.

— O Vincent contou-me uma vez uma história — continua o Paul, baixando a voz. — Acerca de um rapaz com quem ele tinha crescido, chamado Rodge Lang. Os miúdos na escola chamavam-lhe Epp. Um dia, um cão abandonado seguiu Epp no caminho da escola para casa. Epp correu, mas o cão continuava a segui-lo. Epp atirou ao cão uma parte do seu almoço, mas o cão não o deixava. Por fim, tentou assustar o animal com um pau, mas o cão continuava a segui-lo.

«Passadas algumas milhas, Epp começou a ficar intrigado. Conduziu o cão através de um caminho ladeado de roseiras-bravas. O cão seguiu-o. Atirou uma pedra ao cão, mas o cão não se afastou. Finalmente, o Epp deu um pontapé no cão. O cão não fugiu. Epp voltou a dar-lhe pontapés, repetidas vezes. O cão não se movia. Epp matou então o cão a pontapés. Depois pegou nele, levou-o para baixo da sua árvore preferida e enterrou-o ali.»

Estou demasiado estupefacto para responder. — Mas que raio é a moral dessa coisa?

— Segundo o Vincent, foi então que o Epp soube que aquele era realmente um cão leal.

Segue-se um silêncio pesado.

— E é esse o conceito de piada do Taft?

O Paul acena com a cabeça. — O Vincent contou-me imensas histórias do Epp. E são todas assim.

— Meu Deus, mas porquê?

— Acho que a ideia é serem uma espécie de parábolas.

— Parábolas feitas por ele?

— Não sei. — O Paul hesita. — Mas acontece que Rodge Epp Lang é um anagrama. Um arranjo feito com as letras de «duplo», ou sósia*20. Sinto-me maldisposto. — Achas que foi o Taft que fez essas coisas?

— Ao cão? Sabe-se lá. Talvez tenha sido. Mas o que ele pretendia demonstrar é que ele e eu temos o mesmo tipo de relação. Eu sou o cão.

— Então mas por que raio é que tu continuas a trabalhar com ele?

O Paul começa de novo a amassar o miolo de pão. — Tomei uma decisão. Continuar com o Vincent era a única forma de conseguir acabar a tese. Estou-te a dizer Tom, eu estou convencido de que isto é muito maior do que imaginámos. A cripta do Francesco está a esta distância de nós. Há muitos anos que ninguém tinha feito uma descoberta destas. E, a seguir ao teu pai, nunca ninguém trabalhou tanto na Hypnerotomachia como o Vincent. Eu precisava dele. — Paul atira a côdea para o prato. — E ele sabia-o.

O Gil aparece à porta. — Já estou despachado com aquilo lá em cima — informa ele, como se tivéssemos estado à espera de que ele acabasse. — Podemos ir.

O Paul parece satisfeito por terminar a conversa. O comportamento do Taft funciona como uma censura dirigida a ele. Levanto-me e começo a reunir os pratos.

— Deixa estar — diz o Gil, fazendo-me um gesto para eu sair. — Eles mandam alguém buscar isso.

O Paul esfrega as mãos uma na outra, num movimento brusco. Bocadinhos de pão soltam-se e ele sacode-os como restos de uma velha pele. Ambos seguimos o Gil para fora do clube.

A neve cai agora com muito mais força, tão espessa que tenho a sensação de estar a ver o mundo através de placas de estática. Enquanto o Gil conduz o Saab para oeste, aproximando-se do auditório,

 

20 Doppel ganger no original. (NT)

 

olho para o Paul através do espelho lateral, perguntando-me há quanto tempo é que ele guardava aquilo tudo para ele. Passamos por entre as luzes dos semáforos, no meio da escuridão e, por intervalos breves, deixo de o ver. A cara dele é apenas uma sombra.

A verdade é que o Paul teve sempre segredos que guardou de nós. Durante anos escondeu a verdade acerca da sua infância, os pormenores acerca do pesadelo da escola paroquial. Agora esconde a verdade acerca da sua relação com o Taft. Por muito próximos que ele e eu sejamos, estabeleceu-se uma certa distância, uma sensação de que, embora tenhamos muito em comum, as boas cercas fazem os bons vizinhos. Leonardo escreveu que um pintor devia começar sempre as suas telas com uma camada de preto, porque na natureza tudo é escuro, excepto quando exposto à luz. A maioria dos pintores faz o contrário, começa com uma demão de branco e introduz as sombras no fim. Mas o Paul, que conhece tão bem Leonardo que se diria que o velho dormia no beliche de baixo, compreende a importância de começar pelas sombras. As únicas coisas que as pessoas sabem acerca de nós são as que nós as deixamos ver.

Eu posso não ter compreendido isto muito bem, só que aconteceu uma coisa interessante no campus uns anos antes de nós termos chegado e que captou a atenção tanto do Paul como a minha. Um ladrão de bicicletas de vinte e nove anos chamado James Hogue entrou em Princeton afirmando ser alguém que na realidade não era: um trabalhador rural do Utah, de dezoito anos. Hogue dizia que tinha aprendido sozinho Platão a observar as estrelas e que se tinha treinado a correr uma milha em quatro minutos. Quando a equipa de atletismo o enviou para o campus para uma prova de recrutamento, ele disse que era a primeira vez, no espaço de uma década, que dormia debaixo de telha. O encarregado das admissões ficou tão cativado que o aceitou imediatamente. Quando ele adiou por um ano, ninguém desconfiou. Hogue disse que ia cuidar da mãe doente que estava na Suíça; na verdade, ia cumprir uma pena na prisão.

O que tornou o embuste tão intrigante é que, enquanto aproximadamente metade era uma mentira revoltante, a outra metade era mais ou menos verdade. Hogue era tão bom corredor como dizia e, durante os dois anos que passou em Princeton, foi uma estrela da equipa de corrida. Era também uma estrela na sala de aula, suportando uma carga curricular que nem pago eu aceitaria e conseguindo a classicação de 20 logo de início. Era mesmo tão encantador que, na Primavera do seu segundo ano Ivy o propôs para membro. Quase que parece lamentável a sua carreira ter terminado como terminou. Por um acaso, um espectador de uma corrida reconheceu-o de uma existência anterior. Quando o boato se espalhou, Princeton conduziu uma investigação e mandou-o prender no meio de uma aula prática de Ciências. Foram apresentadas as acusações e Hogue confessou-se culpado de fraude. Dentro de poucos meses estava de novo na prisão. Onde lentamente desapareceu na obscuridade.

Para mim, a história de Hogue foi o acontecimento desse Verão; a única coisa que lhe fez sombra foi a minha descoberta de que a Playboy tinha editado um número na Primavera anterior sobre as Mulheres da Ivy League*21. Para o Paul, no entanto, significou muito mais. Para alguém que tinha sempre insistido em dourar a sua vida com a patina da ficção, fingindo que tinha comido bem quando não tinha, ou que não tinha um computador porque não gostava de os usar, o Paul conseguia identificar-se com um homem que se sentia ameaçado pela verdade. Uma das únicas vantagens de vir do nada, como James Hogue e Paul, é ter a liberdade de se reinventar a si próprio. Na verdade, quanto mais conheço o Paul, mais compreendo que se trata menos de uma liberdade do que de uma espécie de obrigação.

No entanto, vendo o que acontecera a Hogue, o Paul teve de reflectir na ténue linha existente entre reinventar-se a si próprio e enganar toda a gente. Desde o dia em que chegou a Princeton, ele caminhou sempre por essa linha com o maior cuidado, preferindo guardar segredos a contar mentiras. Quando penso nisso, um antigo temor volta a assaltar-me. O meu pai, que compreendera a forma pela qual a Hypnerotomachia o tinha seduzido, comparou uma vez o livro a uma relação amorosa com uma mulher. Faz com que tu mintas, dissera ele, mesmo a ti próprio. A tese do Paul pode perfeitamente ser essa mesma mentira: depois de quatro anos com o Taft, o Paul não parou de lutar pelo livro, deixou a cama e perdeu o sono pelo livro e para tudo o que ele suou, o livro deu-lhe muito pouco.

Olhando de novo para o espelho, vejo-o a observar a neve. Nos seus olhos há um olhar vazio e o seu rosto parece pálido. A distância vê-se um semáforo onde pisca o amarelo. O meu pai ensinou-me outra coisa sem nunca ter dito uma palavra: nunca invistas tanto numa coisa que o seu falhanço te possa fazer desistir da felicidade. O Paul seria capaz de vender a sua última vaca por um punhado de feijões mágicos. Só que agora começa a interrogar-se se alguma vez o feijoeiro irá crescer.

 

21 Liga desportiva formada pelas equipas de oito das mais importantes universidades norte-americanas. (NT)

 

                                     CAPITULO 9

Penso que foi a minha mãe que me disse que um bom amigo se coloca no caminho das nossas dificuldades no preciso segundo em que lho pedimos — mas um grande amigo fá-lo mesmo sem lho pedirmos. Há tão poucas vezes na vida de uma pessoa em que apareça um grande amigo que quase parece improvável aparecerem três de uma só vez.

Nós os quatro encontrámo-nos numa noite fria do Outono do nosso primeiro ano. O Paul e eu passávamos já muito tempo juntos e o Charlie — que se apresentou no primeiro dia de escola entrando pelo quarto do Paul e oferecendo-se para o ajudar a desfazer as malas — vivia num quarto só para ele, ao fundo do corredor. Sendo partidário da opinião que não havia nada pior do que estar sozinho, o Charlie estava sempre empenhado em arranjar novos amigos.

O Paul desconfiou imediatamente daquele tipo impetuoso e metediço que não parava de irromper pela porta dentro, sempre com novas aventuras na cabeça. Qualquer coisa relacionada com a constituição atlética do Charlie parecia conjurar um certo temor nele, como se em criança tivesse alguma vez sido torturado por um rufia daquele género. Pelo meu lado, espantava-me que o Charlie não se fartasse de nós, sendo nós tão pacatos. Durante a maior parte desse semestre, pensei que ele nos iria trocar por companheiros mais ao seu género. Considerei-o como um desportista pertencente a uma saudável minoria — o género que tem uma mãe neurocirurgiã e um pai executivo, que passa com facilidade pela escola preparatória com mais explicadores do que problemas e que tinha chegado a Princeton sem nada de especial em mente a não ser divertir-se e licenciar-se com uma sólida média.

Tudo isso me parece agora extremamente divertido. A verdade é que o Charlie tinha crescido em plena Filadélfia, correndo com a equipa de voluntários da Emergência Médica, na ambulância, pelo meio dos piores bairros do crime da cidade. Era filho da classe média, vindo de uma escola pública, cujo pai era representante de vendas regional de um fabricante de produtos químicos da Costa Leste e a mãe professora de Ciências. Quando ele se candidatou à universidade, os pais deixaram bem claro que qualquer coisa que ultrapassasse o ensino oficial seria um fardo que teria de ser suportado por ele. No dia em que o Charlie chegou ao campus, tinha pedido mais empréstimos para estudantes e estava mais endividado do que todos nós no dia em que acabámos o curso. Mesmo o Paul, que vinha de mais baixo, tinha ganho uma bolsa de estudos completa, porque era muito necessitado.

Talvez fosse por isso que, se exceptuarmos o Paul durante o mês de insónia provocado pela aproximação dos prazos de entrega das teses, nenhum de nós fez mais e dormiu menos do que o Charlie. Ele esperava grandes coisas pelo seu dinheiro e, para justificar o seu sacrifício, sacrificava-se ainda mais. Não era nada fácil manter o sentido da identidade numa escola onde apenas um em quinze estudantes era negro e desses, só metade eram homens. Mas, de qualquer forma, a identidade para o Charlie nunca se regeu completamente pelas linhas convencionais. Ele tinha uma personalidade de vencedor e uma capacidade de decisão inabalável e desde o princípio que eu tive a sensação de que era no seu mundo que nós vivíamos e não no nosso.

Está claro que não sabíamos tudo isso nessa noite de fins de Outubro, apenas seis semanas depois de o termos conhecido, quando ele apareceu à porta do Paul com o seu mais ousado plano até então. Desde mais ou menos do tempo da Guerra Civil que os estudantes de Princeton tinham o hábito de roubar o badalo do sino que ficava no cimo de Nassau Hall, o mais antigo edifício do campus. A ideia original era que se o sino não pudesse tocar para o início de um novo ano académico, então o ano não poderia começar. Se alguém alguma vez acreditou nisso ou não, não sei, mas sei que roubar o badalo se tornou uma tradição e que os estudantes tentavam tudo, desde rebentar cadeados a escalar muros. Depois de mais de trezentos anos, a administração ficou tão cansada das proezas e tão preocupada com um possível processo, que acabou por anunciar que o badalo tinha sido retirado. Só que o Charlie tinha uma informação em contrário. Tratava-se de uma peta, disse ele; o badalo estava intacto. E naquela noite, com a nossa ajuda, ele ia roubá-lo.

Não é necessário explicar que entrar clandestinamente num monumento histórico com uma colecção de chaves roubadas e depois fugir dos zeladores com a minha perna aleijada, tudo em nome de um badalo inútil e de quinze minutos de fama no campus, não fazia muito o meu conceito de vencedor. Contudo, quanto mais o Charlie defendia a sua causa, mais eu via o seu ponto de vista: se os alunos do terceiro e quarto anos têm as suas dissertações de investigação e teses, se os do segundo ano escolhem os seus temas de formatura e os clubes, então o que resta aos caloiros é correrem riscos ou serem apanhados a tentar. Os decanos nunca serão tão compreensivos como agora, argumentava ele. E quando o Charlie insistiu em que seriam necessárias três pessoas — e não menos — ele e eu decidimos que a única forma justa de resolver as coisas era ir a votos. Num tranquilizador teste de democracia, ficámos com uma ligeira maioria relativamente ao Paul, e o Paul, que nunca foi muito do género desmancha-prazeres, cedeu. Concordámos em ficar de sentinela ao Charlie e, depois de termos planeado o nosso ataque, reunimos todas as roupas pretas que conseguimos e dirigimo-nos para Nassau Hall à meia-noite.

Como já disse antes, o novo Tom — o que sobreviveu ao terrível acidente de carro e sobreviveu para lutar por mais um dia — era feito de um material mais corajoso e mais aventureiro do que a violeta encolhida que era o velho Tom. Mas sejamos honestos. Velho ou novo, um Stuntman *22 é que eu não sou. Durante uma hora depois de termos chegado a Nassau Hall, mantive-me no meu posto, suando de tensão, temendo todas as sombras e estremecendo a cada som. Depois, pouco depois da uma hora, aconteceu. Quando o primeiro dos clubes de restauração fechou as portas do bar, começou uma migração de estudantes e agentes da segurança na direcção oeste, recolhendo ao campus. O Charlie tinha prometido que nessa altura estaríamos já bem longe de Nassau Hall, mas agora não o via em parte alguma.

Voltei-me e sussurrei para o Paul: — Por que é que está a demorar tanto?

Mas não obtive resposta.

Avançando um passo na escuridão, perguntei de novo, perscrutando as sombras.

— O que é que ele está a fazer lá em cima?

Mas quando virei a esquina, não havia vestígios do Paul. A porta da frente estava entreaberta.

 

22 Stuntman norte-americano, extremamente arrojado e aventureiro, famoso nos anos 70 pelas suas proezas, especialmente em motocicleta e esqui, que o tornaram uma lenda. (NT)

 

Corri até à entrada. Enfiando a cabeça, apercebi-me de uma conversa ao longe, entre o Paul e o Charlie. — Não está lá em cima — dizia o Charlie.

— Despachem-se! — incitei-os. — Eles vem aí.

Subitamente uma voz surgiu da escuridão atrás de mim. — Polícia do campus! Não se mexam!

Voltei-me apavorado. A voz do Charlie engasgou-se e calou-se. Devo ter ouvido mal, porque poderia garantir que o Paul praguejou.

— Mãos nos quadris — disse de novo a voz.

O meu cérebro toldou-se. Imaginava já liberdade condicional;

admoestações do reitor; expulsão.

— As mãos nos quadris — repetiu a voz, agora mais alto. Obedeci.

Por um momento fez-se silêncio. Esforçava-me por distinguir o zelador no meio do escuro, mas não via absolutamente nada. O próximo som que ouvi foi uma gargalhada.

— Agora abana-me esse rabo, beleza. Dança.

A figura que emergiu das sombras era um estudante. Riu-se de novo e aproximou-se com passos de rumba ébria. A altura dele andava entre a minha e a do Charlie, e o cabelo, preto, caía-lhe para a cara. Tinha um blazer preto de alfaiate por cima de uma camisa branca formal, com demasiados botões abertos.

O Charlie e o Paul saíram prudentemente atrás de mim, de mãos vazias.

O jovem avançou para eles, sorrindo. — Então é verdade? — disse ele.

— O quê? — rosnou o Charlie, lançando-me um olhar fulminante.

O jovem apontou para a torre do sino. — O badalo. Tiraram-no mesmo?

O Charlie não disse nada, mas o Paul assentiu, ainda cheio da excitação da aventura.

O nosso novo amigo reflectiu por um segundo. — Mas vocês foram lá acima?

Comecei a perceber aonde é que isto ia levar.

— Bem, agora não podem simplesmente ir embora — disse ele. Bailava-lhe nos olhos uma expressão travessa. A cada segundo que passava, o Charlie estava a gostar mais dele. Dentro em pouco eu estava de volta ao meu posto, a guardar a porta leste, enquanto eles os três desapareciam no interior do edifício.

Quando regressaram, quinze minutos depois, não traziam calças.

— O que é que vocês estão a fazer? — disse eu.

Avançaram na minha direcção, de braço dado, em boxers fazendo passos de dança. Olhando para a cúpula, descobri seis pernas de calças penduradas no catavento.

Balbuciei qualquer coisa acerca de termos de ir para casa, mas eles olharam uns para os outros e vaiaram-me. O desconhecido insistiu para que fôssemos para um dos clubes, para celebrar. Temos tempo para uns brindes no Ivy, disse ele, consciente de que àquela hora, em Prospect Avenue, as calças seriam um acessório opcional. E o Charlie não podia ficar mais satisfeito por concordar.

Quando nos dirigíamos para leste, na direcção de Ivy, o nosso novo amigo contou-nos histórias das suas partidas na escola secundária:

tngir a piscina de vermelho para o Dia de São Valentim; soltar baratas na aula de Inglês quando os caloiros estavam a ler Kafka;

escandalizar todo o departamento de teatro colocando no tecto um pénis insuflável gigante, na noite da estreia do Titus Andronicus. Não podíamos deixar de nos sentir impressionados. Dava-se o caso de ele também ser caloiro, como nós. Tinha terminado o secundário em Exeter, disse ele, e chamava-se Preston Gilmore Rankin.

— Mas — acrescentou ele de uma forma que ainda hoje recordo —, podem chamar-me Gil.

Gil era diferente de todos nós, claro. Olhando retrospectivamente, acho que ele chegou a Princeton tão habituado à opulência de Exeter que a riqueza e as distinções que isso conferia à vida já lhe passavam ao lado. A única bitola de que se servia para avaliar as pessoas era a personalidade e talvez fosse por isso que, durante o nosso primeiro semestre, o Gil foi mediatamente atraído para o Charlie e, através do Charlie, para nós. O seu encanto conseguia sempre diminuir as diferenças e eu não podia deixar de sentir que estar com o Gil era estar no coração das coisas.

Às refeições e nas festas ele tinha sempre um lugar reservado para nós e, enquanto o Paul e o Charlie decidiram rapidamente que a sua ideia de vida social não era exactamente a mesma deles, eu percebi que me agradava a companhia do Gil, acima de tudo quando estávamos sentados a uma mesa de jantar ou num dos bares do Ivy Club, quer com amigos, quer sozinhos. Se o Paul se sentia em casa numa sala de aula ou mergulhado num livro e se o Charlie se sentia em casa dentro de uma ambulância, então o Gil estava em casa em qualquer sítio em que se desenrolasse uma boa conversa e que se danasse o resto do mundo. Muitas das melhores coisas que eu recordo de Princeton passaram-se na sua companhia.

No final da Primavera do nosso segundo ano, chegou o momento de escolhermos o nosso clube — e de os clubes nos escolherem a nós.

Nessa altura, a maior parte dos clubes utilizava um sistema de lotaria para determinar a selecção: os candidatos inscreviam o seu nome numa lista aberta e a nova selecção do clube era feita à sorte. Mas alguns continuavam a manter o antigo sistema, conhecido por bicker. Bicker é um processo semelhante ao usado nas irmandades, em que os clubes escolhem os seus novos membros por selecção baseada no mérito e não na sorte. E, tal como as irmandades, a definição de mérito que eles usam tende a não ser exactamente a que se pode encontrar, digamos, num dicionário. O Charlie e eu incluímos os nossos nomes no sorteio de Cloister Inn, onde os nossos amigos pareciam estar todos a reunir-se. O Gil, como é óbvio, decidiu apresentar-se à selecção. E o Paul, sob a influência do Richard Curry, um antigo membro do Ivy, mandou a precaução às urtigas e foi também a selecção.

À partida, o Gil tinha já um pé em Ivy. Satisfazia todos os possíveis critérios de admissão, desde ser filho de um antigo aluno que pertencera ao clube, até ser um membro proeminente dos círculos bem vistos do campus. Era bonito sem fazer esforço para isso — sempre cheio de estilo, nunca dando nas vistas; arrojado, no entanto cavalheiro; brilhante, mas não rato de biblioteca. O facto de o pai ser um abastado corretor da bolsa que dava ao filho uma mesada nada menos do que escandalosa não deixou de dar uma ajuda. Não constituiu surpresa ele ter sido admitido em Ivy nessa Primavera, assim como ter sido eleito presidente um ano mais tarde.

O facto de o Paul ter sido aceite em Ivy foi produto de uma lógica diferente, penso eu. Ajudou que o Gil, e mais distantemente o Richard Curry, lhe dessem um certo apoio, defendendo a sua causa em meios onde o Paul nunca teria tido entrada. Mas não foi apenas a essas relações que ele deveu o seu sucesso. O Paul era também nessa época reconhecido como um dos cérebros académicos do nosso curso. Contrariamente aos ratos de biblioteca que nunca se atreviam a sair de Firestone, ele era animado de uma curiosidade que faziam com que conhecê-lo e conversar com ele fossem um prazer. Os alunos dos últimos anos de Ivy pareciam deixar-se seduzir por um aluno do segundo ano que não tinha qualquer jeito para as piadas velhas do processo de selecção, mas que tratava pelo primeiro nome autores já desaparecidos e parecia conhecê-los intimamente. Nem o próprio Paul fcou surpreendido quando foi aceite. Quando ele regressou nessa noite de Primavera, encharcado com o champanhe das comemorações, pensei que ele tinha encontrado um novo lar.

De facto, durante algum tempo o Charlie e eu tememos que o magnetismo do clube os afastasse aos dois do nosso convívio. Não ajudava nada o facto de, nessa altura, o Richard Curry se ter transormado numa influência dominante na vida do Paul. Os dois tinham-se conhecido no início do nosso primeiro ano, quando eu concordei em fazer uma das minhas raras viagens a Nova Iorque. O interesse que o homem manifestava por mim desde a morte do meu pai tinha-me sempre chocado como sendo uma coisa estranha e muito egoísta — nunca percebi qual de nós dois era o sucedâneo, o pai sem filho ou o filho sem pai — e por isso pedi ao Paul que viesse jantar connosco, esperando utilizá-lo como amortecedor. Funcionou melhor do que eu pretendia. A ligação foi instantânea: a visão que o Curry parecera ter sempre do meu potencial pessoal, que ele afirmava que o meu pai partilhava, foi imediatamente concretizada no Paul. O interesse do Paul pela Hypnerotomachia ressuscitou memórias dos dias de glória do Curry, quando ele trabalhava no livro com o meu pai e o Vincent Taft e mal passara um semestre quando ele se ofereceu para mandar o Paul para Itália, para fazer investigação durante o Verão. Nessa época, a intensidade do apoio que o homem dava ao Paul tinha começado a preocupar-me.

Mas se o Charlie e eu temíamos estar a perder os nossos dois amigos, em breve fomos tranquilizados. No final do terceiro ano, foi o Gil que sugeriu que vivêssemos os quatro juntos no nosso quarto ano, uma decisão que significava que ele estava disposto a desistir de viver na Sala do Presidente, em Ivy, para nos ter como colegas de quarto no campus. O Paul concordou imediatamente. E assim, obtendo um resultado medíocre no sorteio das residências, ficámos num pátio no extremo norte de Dod. O Charlie argumentou que um quarto no quarto andar nos obrigaria a fazer mais exercício, mas o comodismo e o bom senso prevaleceram e a suite do rés-do-chão, bem mobilada graças ao Gil, tornou-se a nossa casa no último ano em Princeton.

Quando o Gil, o Paul e eu chegamos ao pátio entre a capela da universidade e a sala de conferências, deparamos com um estranho panorama. Foram montadas na neve mais de uma dúzia de tendas abertas, cada uma com uma grande mesa de comida. Percebo imediatamente o que aquilo significa e nem posso acreditar. Os organizadores da conferência estão a pensar em servir as bebidas no exterior.

Como numa feira antes de um furacão, as mesas estão completamente desertas. O chão por baixo das tendas está cheio de lama e tufos de relva. Dos toldos cai a neve e as toalhas brancas agitam-se desagradavelmente ao vento gélido, seguras por grandes distribuidores que em breve irão estar cheios de chocolate quente ou café e por travessas de bolos e petit-fours embrulhados em casulos de plástico. No pátio silencioso, a imagem é estranha, como uma cidade que tivesse paralisado no meio do movimento devido a uma calamidade, uma Pompeia a fingir.                                                         — Devem estar a brincar — comenta o Gil quando estacionamos. Saímos do carro e ele começa a dirigir-se para a sala de conferências, parando para testar as estacas que suportam a tenda mais próxima. A estrutura treme toda. — Deixa só o Charlie ver isto.              

Mal ele dizisto, o Charlie aparece à porta da sala de conferências. Por uma razão que ignoramos, prepara-se para se ir embora.

— Eh, Chuck — grito eu quando nos aproximamos, abrangendo com um gesto o pátio. — O que é que achas disto? Mas o Charlie está preocupado com outras coisas.

— Como é que eu podia entrar no auditório? — atira ele ao Gil. — Vocês, idiotas, puseram uma rapariga à porta que não me deixa passar.

O Gil segura na porta para entrarmos. Por «idiotas» ele percebe que o Charlie se está a referir a Ivy. Na qualidade de co-responsáveis pelo maior grupo cristão do campu, três membros do clube, alunas do último ano, estão a organizar as cerimónias de Páscoa.

— Não ligues — diz o Gil. — Elas só pensaram que o Cottage podia tentar armar uma partida qualquer. Estão a tentar abafá-la antes que aumente.

O Charlie agarrou-se de forma bastante expressiva. — Ah é, pois bem, estive quase a dizer-lhes que abafassem isto antes que aumente.

— Lindo — digo eu, dirigindo-me para o calor da sala de conferências. Os meus sapatos estão já empapados. — Podemos entrar?

Na recepção está uma rapariga do segundo ano, de cabelo loiro encaracolado e um bronze de esquiadora, sentada atrás de uma grande mesa, que começa logo a abanar a cabeça. No entanto, quando o Gil surge atrás de nós no topo da escada, tudo muda de figura.

A rapariga olha inocentemente para o Charlie. — Não sabia que estavam com o Gil... — começa ela a dizer.

Do interior chega-nos a voz do Professor Henderson do departamento de literatura comparativa, que está a apresentar o Taft à assistência.

— Esquece — diz o Charlie, passando pela mesa, na direcção da entrada. Todos o seguimos.

O auditório tem a lotação completamente esgotada. Ao longo das paredes e até ao fundo da sala, junto da entrada, estão de pé todos os que já não conseguiram lugar sentado. Descubro a Katie numa fila de trás com mais duas raparigas de Ivy, do segundo ano, mas antes de eu ter conseguido chamar a atenção dela, o Gil empurra-me para a frente, à procura de um lugar onde possamos ficar os quatro de pé. Coloca um dedo nos lábios e aponta para o estrado. O Taft está a dirigir-se ao pódio.

A conferência de Sexta-Feira Santa é uma tradição com raízes profundas em Princeton, a primeira das cerimónias da Páscoa, que se tornaram obrigatórias na vida social de muitos estudantes, tanto cristãos como não cristãos. Diza lenda que os acontecimentos foram iniciados na Primavera de 1758 por Jonathan Edwards, o impetuoso eclesiástico de Nova Inglaterra que fez um biscate como terceiro presidente de Princeton. Edwards fez um sermão aos estudantes na noite de Sexta-Feira Santa, seguido de uma refeição religiosa no sábado à noite e de uma missa à meia-noite, quando tem início o Domingo de Páscoa. De uma forma ou de outra, estes rituais mantiveram-se intactos até à actualidade, beneficiando dessa imunidade ao tempo e ao destino que a universidade, como uma velha barrica de alcatrão, confere a tudo o que involuntariamente cai lá dentro e morre.

Uma dessas coisas, segundo consta, foi o próprio Jonathan Edwards. Pouco tempo depois de ter chegado a Princeton, Edwards apanhou uma forte carga de bexigas, de que veio a morrer dentro de três meses. Não obstante ele estar provavelmente demasiado fraco para ter inventado as cerimónias que lhe são atribuídas, no entanto, os responsáveis pela universidade recriaram as três, ano após ano, naquilo que é eufemisticamente chamado «um contexto moderno».

Desconfio de que Jonathan Edwards nunca tenha ido muito em eufemismos ou contextos modernos. Se tivermos em conta que a sua metáfora mais famosa é uma aranha suspensa sobre o poço do inferno, mantida ali por um Deus irado, o velho deve dar voltas no túmulo todas as primaveras. O sermão de Sexta-Feira Santa não passa de uma palestra pronunciada por um membro da faculdade de humanidades;

a única coisa que nessa palestra é mencionada menos vezes do que Deus é o inferno. A refeição religiosa, que deve ter sido rígida e calvimista na sua concepção original, é agora um banquete na sala mais bonita dos finalistas. E a missa da meia-noite que tenho a certeza de que em tempos faria tremer as paredes, é agora uma celebração não confessional de fé, onde nem sequer os ateus e os agnósticos se sentem deslocados. Talvez seja essa a razão por que os estudantes de todas as origens assistem às cerimónias da Páscoa, cada um por uma razão diferente, e todos se vão embora felizes, com as suas expectativas reforçadas e as sensibilidades respeitadas.

O Taft está agora no pódio, gordo e desgrenhado como sempre. Ao vê-lo, lembro-me de Procuste, o salteador de estrada da mitologia que torturava as suas vítimas esticando-as numa cama se fossem demasiado baixas ou cortando-as ao tamanho, se fossem demasiado altas. Sempre que olho para o homem não posso deixar de reparar como ele é mal feito, como a cabeça dele é grande de mais e a cara demasiado redonda, como a gordura pende dos seus braços, como se a carne tivesse sido separada dos ossos. No entanto, há uma qualidade operática na figura que ele apresenta em palco. Com a sua camisa formal amarrotada e o casaco de tweed gasto, ele é maior do que as suas próprias circunstâncias, uma mente rebentando pelas costuras da sua condição humana. A Professora Henderson avança para ele, tentando ajustar o microfone de lapela e o Taft mantém-se muito quieto, como um crocodilo a quem um pássaro estivesse a fazer uma limpeza aos dentes. É este o gigante no topo do feijoeiro do Paul. Lembro-me da história do Epp Lang e do cão e sinto o estômago revolver-se.

Quando conseguimos por fim encontrar uma nesga de espaço, em pé na parte de trás do auditório, o Taft já começou e nota-se já uma considerável diferença das habituais lérias de Sexta-Feira Santa. Está a mostrar uma projecção de slides e a todo o tamanho do grande ecrã surge uma série de imagens, qualquer delas mais terrível do que a anterior. Santos a serem torturados. Mártires a serem chacinados. O Taft está a dizer que a fé é mais fácil de dar do que a vida, mas mais difícil de tirar. Trouxe exemplos que provam a sua teoria.

— São Dinis — declara ele, com a voz ribombando pêlos altifalantes colocados bem alto — foi martirizado pela decapitação. Segundo a lenda, o corpo dele ergueu-se e levou consigo a cabeça.

Por cima do púlpito surge um quadro de um homem vendado, com a cabeça em cima de um cepo de madeira. O carrasco está a erguer um enorme machado.

— São Quintin — continua ele, avançando para a imagem seguinte. — Pintado por Jacob Jordaens, 1650. Foi supliciado na roda e depois açoitado. Pediu a Deus força e sobreviveu, mas mais tarde foi julgado por feitiçaria. Foi supliciado na roda, açoitado e a sua carne foi trespassada com ferros em brasa desde os ombros até às coxas. Enterraram-lhe pregos de ferro nos dedos, crânio e corpo. Por fim, foi decapitado.

O Charlie, sem conseguir perceber aonde é que ele quer chegar com tudo isto, ou talvez apenas sem se deixar impressionar depois dos horrores que viu no serviço de ambulâncias, volta-se para mim.

— Mas o que é que o Stein queria? — murmura ele. No ecrã surge a imagem escura de um homem, tudo nu, à excepção de uma tanga, obrigado a manter-se deitado em cima de uma superfíce de metal. Por baixo dele estão a acender fogo. — São Lourenço — continua o Taft, suficientemente familiarizado com os pormenores para não precisar de cábula. — Martirizado em 258. Queimado vivo numa grelha.

— Ele encontrou um livro de que o Paul precisa para a tese — explico eu.

O Charlie aponta para o pacote que o Paul segura na mão. — Deve ser importante — diz ele.

Penso detectar qualquer insinuação nas palavras dele, uma referência à forma como o Stein pôs definitivamente fim ao nosso jogo, mas o Charlie di-las com respeito. Ele e o Gil ainda têm dificuldades em pronunciar o título da Hypnerotomachia cinco vezes em dez, mas o Charlie, pelo menos, reconhece como o Paul tem trabalhado no duro e quanto esta investigação significa para ele.

O Taft volta a premir o botão atrás do púlpito e surge uma imagem ainda mais estranha. Um homem está deitado numa tábua de madeira, com um buraco na barriga. Do buraco sai um cordão que está a ser gradualmente torcido num espeto por dois homens colocados um de cada lado dele.

— Santo Erasmo — afirma o Taft —, também conhecido por Elmo. Foi torturado pelo imperador Diocleciano. Apesar de espancado com chicotes e paus, sobreviveu. Embora envolvido em alcatrão e incendiado, viveu. Embora atirado para um calabouço, fugiu. Foi recapturado e forçado a sentar-se numa cadeira de ferro em brasa. Por fim, mataram-no abrindo-lhe a barriga e retirando os intestinos, rodando-os num cabrestante.

O Gil volta-se para mim. — Isto é inegavelmente diferente. Um rosto na fila de trás volta-se para nos mandar calar, mas parece pensar melhor ao ver o Charlie.

— Os zeladores nem me deram ouvidos quando eu falei na tela da janela — sussurra o Charlie para o Gil, continuando a tentar fazer conversa.

O Gil volta-se de novo para o palco, não querendo trazer de novo à baila o assunto.

— São Pedro — continua o Taft —, por Miguel Angelo, cerca de 1550. Pedro foi torturado por ordem de Nero, crucificado de cabeça para baixo a seu próprio pedido. Era demasiado humilde para ser crucificado na mesma posição de Cristo.

No palco, a Professora Henderson parece incomodada, fixando nervosamente um ponto da sua manga. Sem qualquer fio condutor que ligue um slide ao próximo, a apresentação do Taft começa a parecer menos uma conferência do que um peep show*23 sádico. O murmúrio habitual das conversas no auditório na Sexta-Feira Santa esbate-se num silêncio peculiar.

— Eh — dizo Gíl, batendo levemente na manga do Paul —O Taft fala sempre destas coisas? O Paul acena com a cabeça.

— É um bocado para o estranho, não é? — murmura o Charlie. Tendo estado afastados da vida académica do Paul há tanto tempo, só agora é que os dois se apercebem disto.

O Paul concorda, com um aceno, mas não diz nada.

— Chegamos então — continua o Taft — ao Renascimento. O lar de um homem que abraçou a linguagem da violência que eu tenho estado a tentar transmitir. O que quero partilhar convosco aqui, nesta noite, não é uma história que ele tenha criado com a sua morte, mas algo da história misteriosa que ele criou enquanto vivo. O homem era um aristocrata de Roma chamado Francesco Colonna. Escreveu um dos livros mais estranhos jamais impresso: a Hypnerotomachia Poliphili.

Os olhos do Paul estão fixos no Taft, com as pupilas desmesuradamente abertas no escuro.

— De Roma? — murmuro eu.

O Paul olha para mim, incrédulo. Antes, no entanto, que eu tenha podido responder, ouve-se uma confusão à porta, atrás de nós. Estabeleceu-se uma discussão estridente e violenta entre a rapariga da porta e um homem grande, que está no escuro. As suas vozes invadem a sala de conferências.

Para a minha surpresa, quando o homem emerge para a luz, reconheço-o imediatamente.

 

23 Fotografia ou espectáculo erótico visto através dum óculo que torna a imagem maior.

 

                                 CAPITULO 10

Contrariando os protestos estridentes da loira da porta, o Richard Curry entra no auditório. Dúzias de cabeças na parte de trás da sala voltam-se. O Curry passa os olhos pelo público e depois volta-se para o palco.

— Este livro — continua o Taft lá ao fundo, sem prestar atenção à confusão — é talvez o maior mistério da impressão ocidental, que continua sem solução.

Vindos de todos os lados, olhares de estranheza fixam-se no intruso. O Curry está com um aspecto hirsuto: a gravata desapertada, o casaco na mão, um olhar perdido. O Paul começa a abrir caminho por entre uma pequena multidão de estudantes.

— Foi publicado pelo maior impressor de todo o Renascimento italiano, mas mesmo a identidade do seu autor continua a ser objecto de grandes controvérsias.

— O que é que aquele tipo está a fazer? — sussurra o Charlie.

O Gil abana a cabeça. — Não é o Richard Curry?

Agora o Paul está na fila de trás, tentando captar a atenção do Curry.

— É considerado por muitos não só o livro mais incompreendido de todo o mundo, mas também... talvez só ultrapassado pela Bíblia de Gutenberg... o mais valioso do mundo.

O Paul está já ao lado do homem. Pousa uma mão nas costas do Curry, quase a medo, e murmura-lhe qualquer coisa, mas o velho abana a cabeça.

— Estou aqui — diz o Curry em voz suficientemente alta para fazer as pessoas da fila da frente voltarem-se para trás a ver o que se passa — para dar uma opinião.

Nesta altura o Taft pára de falar. Todos os rostos da sala estão fixos no desconhecido. Ele estende o braço e passa a mão pelo cabelo. Olhando enfurecido para o Taft, fala de novo.

— A linguagem da violência? — diz ele numa voz estridente, pouco familiar. — Já ouvi esta palestra há trinta anos, Vincent, na época em que tu pensavas que eu era o teu público. — Volta-se para a multidão e abre os braços. Dirigindo-se a todos. —Já vos falou de São Lourenço? São Quintin? São Elmo e o cabrestante? Mudaste alguma coisa, Vincent?

Levantam-se murmúrios entre a assistência quando as pessoas se apercebem da ironia na voz do Curry. De um canto da sala surge uma gargalhada.

— Este homem, meus amigos — continua o Curry, apontando para o palco —, é um pirata. Um idiota e um aldrabão. — Volta a dirigir-se ao Taft. — Até mesmo um charlatão pode enganar o mesmo homem duas vezes, Vincent. Mas tu? Tu abusas dos inocentes. — Pousa os dedos nos lábios e forma um beijo. — Bravíssimo, il fraudulento. — Erguendo os braços, incita os espectadores a levantarem-se. — Uma ovação, meus amigos. Três vivas por São Vicente, padroeiro dos ladrões.

O Taft enfrenta a intromissão ameaçadoramente. — O que vieste aqui fazer, Richard?

— Eles conhecem-se? — pergunta o Charlie. O Paul está a tentar distrair Curry, dizendo-lhe que pare, mas o Curry continua.

— Por que é que tu estás aqui, velho amigo? Será que isto é teatro ou erudição? O que é que vais roubar desta vez, agora que o diário do capitão do porto está fora do teu alcance?

Ao ouvir isto, o Taft inclina-se para a frente e ruge: — Parem com isto. O que é que estás a fazer?

Mas a voz do Curry solta-se como um espirito que tivesse sido invocado. — Onde é que meteste o bocado de cabedal que estava no diário, Vincent? Diz-me e eu vou-me embora. E poderás assim continuar com a tua farsa.

As sombras da sala de conferência movem-se incomodamente sobre o rosto do Curry. A Professora Henderson consegue finalmente pôr-se de pé e grita: — Alguém que chame a segurança!

Um zelador encontra-se já a pouca distância do Curry, quando o Taft o afasta com um gesto. Recuperou o autocontrol.

— Não — urra o papão. — Deixem-no ir. Ele sai pelo seu pé. Não é verdade Richard? Antes que eles se vejam obrigados a prender-te.

O Curry está inabalável. — Olha para nós, Vincent. Vinte e cinco anos passados e ainda na mesma guerra. Diz-me onde está o plano e nunca mais me voltarás a ver. É a única coisa que temos já em comum. O resto de tudo isto — o Curry abarca a sala de conferências com um gesto dos braços — não vale a pena.

— Sai, Richard — insiste o Taft.

— Tu e eu tentámos e falhámos — continua o Curry. — O que é que dizem os italianos? Não existe pior ladrão do que um mau livro. Vamos tratar disto como homens e depois vai cada um para o seu lado. Onde está a planta?

Ouvem-se murmúrios por toda a sala. O zelador mete-se entre o Curry e o Paul — mas, para grande surpresa minha, o Curry baixa subitamente a cabeça e começa a dirigir-se para a nave mais afastada. O arrebatamento abandonou-lhe o rosto.

— Velho idiota — diz ele, dirigindo-se a Taft, embora mantendo as costas voltadas para o palco. — Representa tudo o que quiseres.

Os estudantes encostados às paredes comprimem-se na parte da frente do auditório, mantendo uma distância prudente. O Paul fica pregado ao chão, vendo o amigo partir.

— Vai, Richard — ordena do pódio o Taft. — E não voltes. Todos acompanhamos o avanço lento do Curry para a saída. A aluna do segundo ano que está à porta olha com olhos arregalados e assustados. Rapidamente atravessa o limiar da porta, a antecâmara e sai da nossa vista.

Assim que ele desaparece, toda a sala de conferências é dominada por um murmúrio intenso.

— Que raio foi isto? — pergunto eu, olhando para a porta. No nosso canto, o Gil avança para o Paul.

— Estás bem?

O Paul está atordoado. — Não percebo...

O Gil passa-lhe um braço pêlos ombros. — O que é que lhe disseste?

— Nada — diz o Paul. — Tenho de ir atrás dele. — As mãos dele tremem, com o diário ainda apertado entre elas. — Preciso de falar com ele.

O Charlie começa a protestar, mas o Paul está demasiado perturbado para responder. Antes de qualquer de nós ter tido tempo de o dissuadir, volta-se e dirige-se para a saída.

— Vou com ele — digo eu para o Charlie. Ele acena com a cabeça. A voz de Taft está novamente a discorrer lá ao fundo e quando olho para o palco, dirigindo-me para a saída, o gigante parece olhar directamente para mim. Do seu lugar, a Katie chama-me a atenção. Articula uma pergunta acerca do Paul, mas não consigo perceber o que é que ela está a dizer. Puxando o fecho de correr do meu casaco, saio do auditório.

No pátio, as tendas abanam como esqueletos na escuridão, dançando nas suas pernas de madeira. O vento abrandou, mas a neve continua, cada vez mais densa. Do outro lado da esquina, ouço a voz do Paul.

— Está bem?

Volto a esquina. A uns dez passos de distância está o Richard Curry, com o casaco a flutuar ao vento.

— O que é que aconteceu? — pergunta o Paul.

— Volta para dentro — diz o Curry.

Avanço para ouvir mais, mas a neve estala debaixo dos meus pés. O Curry olha para mim e a conversa é interrompida. Espero que ele dê algum sinal de me ter reconhecido, mas nada. Depois de ter pousado a mão no ombro do Paul, o Curry afasta-se lentamente.

— Richard! Não podemos ir falar para um sítio qualquer? — grita o Paul.

Mas o velho afasta-se rapidamente, enfiando os braços nas mangas do casaco. Não responde.

Levo um segundo a recompor-me e a ir para o pé do Paul. Juntos, observamos o Curry a desaparecer na sombra da capela.

— Tenho de saber onde é que o Bill arranjou este diário — diz ele.

— Neste momento?

O Paul acena afirmativamente.

— Onde é que ele está?

— No gabinete do Taft, no Instituto.

Olho para o outro lado do pátio. O transporte do Paul é um velho Datsun que ele comprou com a remuneração que recebeu do Curry. O Instituto fica bastante distante.

— E tu, por que é que saíste da conferência? — pergunta ele.

— Pensei que podias precisar de ajuda. O meu lábio de baixo está a tremer. A neve acumula-se no cabelo do Paul.

— Eu estou bem — assegura-me ele. Mas não tem casaco.

— Vá, vamos os dois. Eu levo-te lá.

Ele olha para os sapatos. — Tenho de falar com ele sozinho.

— Tens a certeza?

Ele acena afirmativamente.

— Pelo menos, leva isto — ofereço eu, abrindo o fecho de correr do meu blusão de penas. Ele sorri. — Obrigado.

— Liga-nos, se precisares de alguma coisa. O Paul veste o casaco e enfia o diário debaixo do braço. Após um segundo, começa a caminhar pela neve.

— Tens a certeza de que não queres ajuda? — grito, antes de ele estar fora do alcance da voz.

Ele volta-se para trás, apenas para acenar negativamente com a cabeça.

— Boa sorte — digo eu quase para mim mesmo.

E ali, com o frio a infiltrar-se pelo colarinho da minha camisa, tenho a certeza de que não há nada que possamos fazer. Quando o Paul desaparece ao longe, volto para dentro.

Ao regressar ao auditório, passo pela loira sem uma palavra e verifico que o Charlie e o Gil não se moveram do seu lugar ao fundo da sala de conferências. Não me dão atenção; o Taft conquistou o interesse deles. A voz dele é hipnótica.

— Está tudo bem? — pergunta o Gil.

Aceno afirmativamente, sem querer entrar em pormenores.

— Alguns intérpretes modernos — está o Taft a dizer — contentaram-se com aceitar que o livro segue um grande número das convenções de um velho género do Renascimento, o romance bucólico. Mas se a Hypnerotomachia é apenas uma história de amor convencional, então por que é que só existem trinta páginas dedicadas ao romance entre Poliphilo e Polia? Por que é que as outras trezentas e quarenta páginas formam uma amálgama de subtramas, estranhos encontros com figuras mitológicas, dissertações sobre assuntos exotéricos? Se apenas uma em cada dez palavras se relaciona com o romance propriamente dito, com explicar então os outros noventa por cento do livro?

O Charlie volta-se para mim. — Sabias esta história toda?

— Sabia... Já ouvi esta palestra mais de uma dúzia de vezes, em casa, à mesa de jantar.

— Em conclusão, não se trata de uma simples história de amor. A «luta de Poliphilo pelo amor dentro de um sonho»... como é posto no título latino... é muito mais complexo do que a historiazinha de um encontro entre um rapaz e uma rapariga. Ao longo de quinhentos anos os eruditos analisaram o livro com as ferramentas interpretativas mais poderosas na respectiva época e nenhum deles encontrou um caminho que conduza para fora do labirinto.

«Quão grande é a dificuldade do Hypnerotomachia? Pensem apenas como os seus tradutores tremeram. O tradutor francês condensou a frase de abertura, que originalmente tinha mais de setenta palavras, em menos de uma dúzia. Robert Dallington, um contemporâneo de Shakespeare que tentou uma tradução mais à letra, simplesmente desesperou. Desistiu antes de ter chegado ao meio. Desde então nunca mais foi tentada nenhuma tradução para inglês. Os intelectuais ocidentais têm considerado o livro sinónimo de obscuridade, desde que foi publicado pela primeira vez. Rabelais fez troça dele. Castiglione avisou os homens do Renascimento para que não falassem como o Poliphilo quando fizessem a corte às mulheres.

«Por que razão é que é tão difícil de compreender? Por que contém não apenas latim e italiano, mas também grego, hebreu, árabe, caldeu e hieróglifos egípcios. O autor escreveu simultaneamente em várias dessas línguas, por vezes colocando-as em lugares que podem ser intermutáveis. E quando essas não chegavam, inventava palavras dele.

«Acrescentando a isso, há mistérios que rodeiam o livro. Para começar, até há muito pouco tempo, ninguém sabia quem é que escreveu o livro. O segredo da identidade do autor estava tão bem guardado que nem o próprio Aldus, o editor, sabia quem é que tinha composto a sua mais famosa obra. Um dos editores da Hypnerotomachia escreveu uma introdução em que pede às Musas para revelarem o nome do autor. As Musas recusam. Explicam que "é melhor ser cauteloso, evitar que as coisas divinas sejam devoradas pela inveja vingativa".

«A pergunta que vos coloco, então, é a seguinte: Por que é que o autor se teria dado a tanto trabalho se tinha a intenção de escrever um simples romance bucólico? Porquê tantas línguas? Porquê duzentas páginas sobre arquitectura? Porquê dezoito páginas sobre um templo de Vénus ou doze sobre um labirinto subaquático? Porquê quinze sobre uma pirâmide? Ou cento e quarenta sobre pedras preciosas e metais, ballet e música, comida e serviços de mesa, flora e fauna?

«E, talvez o mais importante, que romano poderia ter aprendido tanto acerca de tantos assuntos, dominado tantas línguas e convencido o maior impressor de Itália a publicar o seu misterioso livro sem sequer mencionar o seu nome?

«Acima de tudo, quais eram as "coisas divinas" a que se alude na introdução e que as Musas se recusam a divulgar? Que inveja vingativa é que temiam que essas coisas pudessem inspirar?

«A resposta é que não existe romance algum. O autor deve ter tido em mente outra coisa qualquer... uma coisa que nós, os estudiosos, ainda não conseguimos compreender. Mas onde é que podemos começar a procurá-la?

«Não pretendo responder a estas perguntas em vosso lugar. O que pretendo é deixar-vos com um puzzle para vocês se ocuparem. Encontrem as respostas e ficarão um passo mais próximo de compreender o que significa o Hypnerotomachia.

Com isto, o Taft faz disparar a máquina de slides com um toque no controlo remoto. Aparecem três imagens no ecrã, desarmantes no seu preto e branco perfeito.

— Aqui estão três reproduções do Hypnerotomachia que descrevem um pesadelo que Polia sofre, já para o fim da história. Segundo o seu relato, no primeiro vê-se um menino a guiar um carro em fogo por uma floresta dentro, puxado por duas mulheres nuas que ele chicoteia como se fossem animais. Polia vê tudo do seu esconderijo na floresta.

«A segunda imagem mostra o menino a soltar as mulheres cortando as correias ncandescentes com uma espada de ferro. Depois atravessa-as com a espada e, quando já estão mortas, desmembra-as.

«Na última imagem, o menino arrancou dos cadáveres os corações das duas mulheres, que ainda batiam e dá-os a comer às aves de rapina. As vísceras, dá-as às águias. Depois de ter esquartejado os corpos, atira o resto aos cães, lobos e leões que se reuniram em seu redor.

«Quando Polia acorda deste sonho, a ama explica-lhe que o menino é o Cupido e que as mulheres são jovens

virgens que o ofenderam, recusando o afecto dos seus pretendentes. Polia conclui então que fez mal em ter rechaçado Poliphilo.

O Taft faz uma pausa, voltando as costas ao público para contemplar as enormes imagens que parecem flutuar no ar, atrás dele.

— Mas e se nós considerármos que o significado explícito não é o significado real? — sugere ele, de costas ainda voltadas para nós, numa voz sem corpo que ressoa através do microfone que tem ao peito. — E se a interpretação do sonho, feita pela ama, não for, na realidade, a verdadeira? E se nós tivéssemos de usar o

castigo imposto a estas mulheres para decifrar qual foi, na realidade, o seu crime?

«Ponham a hipótese de um castigo por alta traição, que sobreviveu em certos países da Europa durante séculos, antes e depois da Hypnerotomachia ter sido escrita. Um criminoso acusado de alta traição era primeiro arrastado... o que significa que era atado à cauda de um cavalo e arrastado pelo chão pela cidade. Era trazido assim até ao patíbulo, onde era pendurado até não estar inteiramente morto, mas apenas meio-morto. Nesta altura, era aberto e as entranhas arrancadas do corpo e queimadas à sua frente, pelo carrasco. O seu coração era arrancado e apresentado à multidão. O carrasco decapitava então a carcaça, esquartejava os restos e exibia os bocados em espetos, em lugares públicos, para servir como desencorajamento para os futuros traidores.

O Taft volta-se para fitar a assistência no momento em que diz isto, para ver a sua reacção. Agora volta-se de novo para os slides.

_ Tendo isto em mente, vamos voltar às nossas gravuras. Vemos que muitos dos pormenores correspondem ao castigo que acabei de descrever. As vítimas são arrastadas até ao local da morte... ou antes, um pouco ironicamente, são elas próprias que arrastam o carro do carrasco. São desmembradas e os membros expostos à multidão, que neste caso consiste em animais selvagens.

«Em vez de serem penduradas, contudo, as mulheres são mortas com uma espada. Como é que vamos interpretar isto? Uma explicação possível é que a decapitação, quer por machado, quer por espada, era reservada às personagens de elevada condição, para as quais ser pendurado era considerado demasiado baixo. Talvez possamos então deduzir que se tratava de senhoras de posição.

«Por fim, os animais que aparecem na multidão lembrarão provavelmente a muitos de entre vós as três bestas da abertura do "Inferno" de Dante, ou o sexto versículo de Jeremias. — O Taft olha para o fundo da sala de conferências.

— Ia exactamente dizer isso — murmura o Gil com um sorriso. Para minha surpresa, o Charlie manda-o calar.

— O leão significa o pecado do orgulho — continua o Taft. — E o lobo representa a avareza. São os vícios de um grande traidor... um Satanás ou um Judas... tal como o castigo parece sugerir. Mas aqui a Hypnerotomachia dverge: o terceiro animal de Dante é um leopardo, que representa a luxúria. No entanto, Francesco Colonna inclui um cão em vez de um leopardo, sugerindo que a luxúria não era um dos crimes pêlos quais as duas mulheres estariam a ser punidas.

O Taft faz uma pausa, deixando a assistência digerir isto por um momento.

— O que estamos a começar a ler, então — recomeça ele —, é o vocabulário da crueldade. Apesar do que muitos de vós possam pensar, não se trata apenas de uma linguagem puramente bárbara. Como todos os nossos rituais, está prenhe de significados. Precisam apenas de aprender a lê-los. Vou, portanto, fornecer um pouco mais de informação, que poderão usar para interpretar a imagem... depois farei uma pergunta e deixarei o resto convosco.

«A vossa pista final é um aspecto que muitos de vocês provavelmente conhecem, mas deixaram passar em claro: nomeadamente que Polia terá errado na identificação da criança, apenas por se ter limitado à arma que ela utiliza. Porque se o menino do pesadelo fosse realmente Cupido, como Polia afirma, então a arma não teria sido a espada. Teria sido o arco e a flecha.

Ouviram-se murmúrios de concordância na assembleia, passando centenas de estudantes a ver o Dia de São Valentim sob uma luz completamente nova.                                           — Por isso, pergunto-vos: quem é a criança que empunha uma espada, força mulheres a puxar o seu carro através de uma floresta perigosa e depois as mata como se elas fossem culpadas de traição?

Espera, como se estivesse a preparar-se para dar a resposta, mas em vez disso, diz: — Resolvam isto e começarão a compreender a verdade oculta do Hypnerotomachia. Talvez comecem também a compreender o significado não só da morte, mas da forma de que a morte se reveste quando chega. Todos nós... aqueles que temos fé e os que a não temos... estamos demasiado acostumados ao sinal da cruz para compreender o significado do crucifixo. Mas a religião, em particular o cristianismo, foi desde sempre a história da morte no meio da vida, dos sacrifícios e mártires. Esta noite em especial, em que comemoramos o sacrifício do mais famoso desses mártires, é um facto que deveríamos ter relutância em esquecer.

Tirando os óculos e guardando-os no bolso de cima do casaco, o Taft inclina a cabeça e diz: — Conto-vos isto e deposito a minha fé em vós. — Com um passo lento à retaguarda, acrescenta: — Obrigado a todos e boa noite.

Os aplausos irrompem de todos os cantos da sala — primeiro a medo, depois num crescendo entusiasta. Apesar da interrupção que se verificara, a assistência foi seduzida por este homem estranho, hipnotizada pela sua fusão de intelecto e sangue.

O Taft faz um aceno com a cabeça e afasta-se na direcção da mesa ao lado do pódio, com a intenção de se sentar, mas os aplausos continuam. Algumas pessoas da assistência levantam-se para aplaudir de pé.

— Obrigado — diz ele de novo, ainda de pé, com as mãos pousadas nas costas da cadeira. O velho sorriso regressa ao seu rosto, mesmo enquanto fala. É como se ele tivesse estado todo o tempo a dar atenção à assistência, em vez de o inverso.

A Professora Henderson levanta-se e dirige-se para o pódio, fazendo calar os aplausos.

— De acordo com a tradição — declara ela —, vamos de seguida oferecer bebidas no pátio localizado entre este auditório e a capela. Segundo creio, os serviços de manutenção e o pessoal de apoio instalaram vários aquecedores entre as mesas. Por favor, queiram juntar-se a nós.

Voltando-se para o Taft, acrescenta: — E posto isto, gostaria de agradecer ao Dr. Taft por esta conferência memorável. Não tenho dúvidas de que causou uma forte impressão. — Ela sorri, mas com um certo constrangimento.

A assistência aplaude mais uma vez e depois começa lentamente a fluir para a saída.

O Taft fica a observar a saída e eu, por meu turno, a observá-lo a ele. Esta é uma das raras vezes em que eu vi o homem, de tal forma ele é esquivo. Agora compreendo finalmente por que é que o Paul o considera tão magnético. Mesmo quando sabemos que ele nos está a usar para fazer o seu jogo, é praticamente impossível desviar os olhos dele.

Lentamente, o Taft começa a atravessar o palco. Quando o ecrã branco recolhe à sua calha no tecto, os três slides tornam-se um farrapo de cinzento sobre os quadros negros que ficam por trás. Já mal consigo distinguir os animais selvagens que devoram os restos das mulheres e a criança flutuando no ar.

— Vens? — pergunta o Charlie, seguindo o Gil na direcção da saída.

Apresso-me a segui-los.

 

                                       CAPITULO 11

— Não encontraste o Paul? — pergunta-me o Charlie quando chego ao pé dele.                                            

— Não quis que o ajudasse.                                Mas quando lhe conto o que escutei lá fora, o Charlie olha para mim como se achasse que eu não devia tê-lo deixado sozinho. Alguém pára ao nosso lado para cumprimentar o Gil e o Charlie volta-se para mim.

— O Paul foi atrás do Curry? — pergunta ele.

Eu abano a cabeça. — Do Bill Stein.                        

— Vocês vêm à recepção? — pergunta o Gil, antevendo a possibilidade de uma fuga rápida. — Podíamos aproveitar a confusão.

— Claro — digo eu e o Gil parece ficar mais calmo. O espírito dele está noutro lado; estamos a regressar ao seu elemento.

— Temos de evitar o Jack Parlow e o Kelly... só querem falar do baile — diz ele, regressando à nossa companhia. — Mas o resto não deve ser mau de todo.

Conduz-nos pelas escadas abaixo, para o pátio azul-pálido, onde os rastos que o Curry e o Paul fizeram na neve já se apagaram. As tendas estão a abarrotar de estudantes e eu penso imediatamente como é inútil tentar evitar alguém quando se está na companhia do Gil. Atravessamos a neve na direcção de uma tenda que fica quase escondida atrás da capela, mas ele exerce uma atracção social praticamente inevitável.

A primeira pessoa a aparecer é a rapariga loira que estava à porta.

— Como estás, Tara? — pergunta o Gil, muito amavelmente, quando ela aparece debaixo do tecto da tenda. — Então, muito mais excitação do que estava previsto, hein?

O Charlie não tem o menor interesse na companhia dela. Para evitar uma cena, mostra-se muito interessado na mesa, onde os distribuidores de prata estão a aquecer chocolate quente acabado de fazer.

— Tara — diz o Gil —, conheces o Tom, não conheces? Ela arranja uma forma elegante de dizer que não. _ Ah, pois — adianta o Gil, muito levemente. — Cursos diferentes.

Levo um segundo até compreender que ele se está a referir aos alunos do segundo e terceiro anos.

— Tom, esta é a Tara Pierson, membro da selecção de 2001 — continua ele, vendo que o Charlie está a tentar evitar-nos. — Tara, este é o meu grande amigo, Tom Sullivan.

A apresentação só serve para criar embaraço. Assim que o Gil acaba de falar, a Tara consegue arranjar um momento em que possamos falar fora da vista dele e aponta para o Charlie.

— Lamento sinceramente pelo que disse ao vosso amigo — começa ela. — Não fazia a mais pequena ideia de que vocês eram...

E por aí fora. Parece que aonde ela quer chegar é que nós mereceríamos melhor tratamento do que os outros zés-ninguém que ela não conhece, só porque o Gil e eu lavamos os dentes no mesmo lavatório. Quanto mais ela fala, mais eu me pergunto por que é que ela não foi posta fora de Ivy no meio da chacota geral. Há uma lenda — verdadeira ou não, isso já não sei — que diz que as alunas do segundo ano como a Tara, que não têm mais nada a seu favor para além de serem giras, às vezes conseguem ser aceites como membros graças a um processo especial a que chamam «selecção do terceiro piso». São convidadas para ir ao muito selectivo terceiro piso do clube e dizem-lhes que não serão aceites a menos que passem num teste muito especial. Imagino vagamente qual será a natureza do teste e o Gil, como é evidente, nega que exista o que quer que seja que se assemelhe a este processo. Mas eu creio que é aí que reside a magia de um mito como o da selecção do terceiro piso: quanto menos se diz acerca dele, menos se pode dizer contra ele.

A Tara deve desconfiar do que eu estou a pensar, ou então talvez tenha dado por que não lhe estou a prestar a mínima atenção, porque acaba por apresentar uma desculpa qualquer e afasta-se na neve. Mesmo a tempo, penso eu, vendo-a entrar para outra tenda, com os cabelos a ondularem ao vento.

Nesse momento avisto a Katie. Está parada no extremo da tenda oposto ao que eu me encontro, cansada de falar. A chávena de chocolate quente nas suas mãos ainda está fumegante e a máquina fotográfica continua pendurada ao seu pescoço, como um amuleto. Levo um segundo a perceber para onde é que ela está a olhar. Há uns meses, teria suspeitado do pior, procurando o outro homem oculto na vida dela, aquele que arranjava tempo para estar com ela em todas essas noites que eu passava com o Hypnerotomachia. Agora tenho uma confiança diferente. Sei que é para a capela que ela está a olhar. Ergue-se na bruma como um rochedo debruçado sobre um mar branco, o sonho de qualquer fotógrafo.

Há uma coisa curiosa acerca da atracção, que só agora é que começo a compreender. A primeira vez que vi a Katie, pensei que olhar para ela era uma coisa que faria parar o trânsito. Nem toda a gente concordou comigo (o Charlie, que prefere mulheres mais roliças, gosta mais da determinação da Katie do que do aspecto dela), mas eu fiquei esmagado. Enfeitávamo-nos um para o outro — as melhores roupas, os melhores modos, as melhores histórias — até eu ter chegado à conclusão de que deveriam ser os meus dois anos a mais e a minha amizade com o presidente do clube dela que me conferiam o pouco de mística que eu tinha e que me permitia estar ligado a uma mulher como aquela. Nessa época, a ideia de tocar na sua mão ou de aspirar o aroma do seu cabelo era o suficiente para me mandar de urgência para debaixo de um duche frio. Éramos os trofeus um do outro e passávamos os nossos dias em cima de pedestais.

Depois dessas primeiras semanas, tirei-a da prateleira. E ela retribui-me o favor. Discutimos, porque eu tenho o quarto demasiado aquecido e porque ela dorme com a janela aberta; ela chateia-me por eu repetir a sobremesa — porque mais cedo ou mais tarde, diz ela, até os homens têm de pagar pelas suas transgressões. O Gil brinca dizendo que eu fui domesticado, divertindo-me com a ideia de que alguma vez fui um selvagem. A verdade é que eu fui feito para uma relação conjugal. Ligo o termostato quando não tenho frio e como sobremesa quando não tenho fome, porque na sombra das censuras da Katie esconde-se a insinuação de que ela não tolerará essas coisas no futuro, porque irá existir um futuro. As fantasias que eu costumava ter, potenciadas pela electricidade da relação entre desconhecidos, são agora coisas insignificantes. Gosto mais dela tal como está neste momento, no pátio.

Os olhos dela estão tensos, sinal de que um longo dia está a chegar ao fim. O cabelo está solto e as lufadas de vento brincam com os seus caracóis, sobre os ombros. Não me importava de continuar a observá-la ao longe, mergulhado nela. Mas quando eu avanço, diminuindo a distância entre nós, ela vê-me e faz um gesto para que me junte a ela.

— O que é que se passou? — pergunta. — O que foi aquilo na conferência?

— Foi o Richard Curry.

— O Curry? — Pega na minha mão e segura-a entre as suas. prende o lábio inferior entre os dentes. — O Paul está bem?

— Acho que sim.

O silêncio introduz-se por um momento entre nós, enquanto observamos a multidão. Homens com anoraques estão a oferecer os seus casacos a namoradas muito pouco vestidas. Tara, a loira da entrada, expulsou um desconhecido de dentro de um deles.

Katie aponta para o auditório. — E então, o que é que achaste?

— Da conferência?

Ela acena afirmativamente, começando a prender o cabelo num rabo-de-cavalo.

— Um bocado sangrento. — O ogre não leva parabéns da minha parte.

— Mas mais interessante do que é hábito — observa ela, estendendo a sua chávena de chocolate quente. — Seguras nisto?

Enrola o cabelo num carrapito e segura-o com dois pregos gigantes que tira do bolso. A habilidade das suas mãos, com que ela dá forma a uma coisa que não consegue ver, lembra-me de como a minha mãe costumava fazer o nó na gravata do meu pai, colocando-se por trás dele.

— O que é que se passa? — pergunta ela, apercebendo-se da minha expressão.

— Nada. Estava só a pensar no Paul.

— Achas que vai acabar a tempo?

O prazo de entrega da tese. Mesmo neste momento, ela não deixa de pensar no Hypnerotomachia. Amanhã à noite já pode mandar para a reforma a minha velha amante.

— Espero que sim.

Mais um silêncio, desta vez menos agradável. No momento em que procuro um tema de conversa para mudar de assunto — qualquer coisa sobre o seu aniversário, sobre a prenda que está à sua espera no quarto — a pouca sorte manifestou-se. Chegou sob a forma do Charlie. Depois de ter dado vinte voltas às mesas, decidiu finalmente vir para o pé de nós.

— Cheguei tarde — anuncia. — Podes recapitular? De tudo o que o Charlie tem de bizarro, talvez o mais bizarro seja a forma como ele consegue ser um destemido gladiador no meio dos homens, mas como se torna um pateta alegre no meio das mulheres.

— Recapitular? — diz a Katie, divertida. Ele enfia um petit-four na boca e depois mais um, procurando os próximos no meio da confusão. — Estás a ver. Como é que vão as aulas? Quem é que namora com quem? O que é que vais fazer no próximo ano? O costume.

A Katie sorri. — As aulas vão bem, Charlie. O Tom e eu ainda namoramos. — Lança-lhe um olhar de censura. — E eu só vou para oï terceiro ano. Portanto, para o ano, estarei aqui.                  

— Ah — diz o Charlie, que nunca se consegue lembrar da idade dela. Tirando um bolo de dentro da sua enorme mão, procura o idioma adequado a uma conversa entre uma estudante do segundo

ano e um finalista. — O terceiro ano é provavelmente o mais difícil

— afirma ele, optando pelo pior: o conselho. — Duas frequências. Os pré-requisitos da especialização. E namorar à distância com este tipo

— prossegue ele, apontando para mim com uma mão e alimentando-

se com a outra. — Não vai ser fácil. — Passa a língua pelo interior das bochechas, saboreando o gosto de tudo o que tem dentro da boca, ruminando ao mesmo tempo o nosso futuro. — Não posso dizer que te inveje.

Faz uma pausa, dando-nos tempo para digerir o que ele acaba de dizer. Num autêntico milagre de economia, o Charlie conseguiu pintar o pior dos quadros em menos de vinte palavras.

— Não gostavas de ter entrado na corrida, esta noite? — pergunta ele agora.

Katie, ainda à espera de um milagre, aguarda que ele se explique. Mais habituado à forma como a sua mente funciona, eu já estou elucidado.

— As Olimpíadas Nuas — diz ele, ignorando o meu sinal para mudar de assunto. — Não gostavas de ter podido correr?

A pergunta é o golpe de misericórdia. Vejo-o aproximar-se, mas não posso fazer nada para o evitar. Para evidenciar o seu conhecimento de que a Katie é do segundo ano e possivelmente que ela mora em Holder, o Charlie está a perguntar à minha namorada se ela não está triste por não ter desfilado nua em frente do resto do campu naquela noite. O cumprimento que se subentende, suponho eu, é que uma mulher com os atributos físicos da Katie deve estar doida por ter a oportunidade de os mostrar. O Charlie parece não ter a mais pequena noção de como a sua atitude pode estar errada.

O rosto da Katie fecha-se, percebeu perfeitamente a sua linha de pensamento. — Porquê? Deveria ter pena?

— Não conheço assim muitos estudantes do segundo ano que estivessem dispostos a perder a oportunidade — diz ele. E, a julgar pelo seu tom mais diplomático, percebe-se que deu pelo erro.

— E que oportunidade seria essa? — insiste a Katie.

Tento ajudá-lo, procurando eufemismos para nudez bêbada, mas ninha mente é como um bando de pombos a levantar voo. Todas as minhas ideias não passam de merda e penas.

_ A oportunidade de tirar a roupa uma vez, ao longo de quatro anos? — brinca o Charlie.

Lentamente, a Katie desvia o olhar de um para o outro. Avaliando o equipamento de túnel-de-vapor do Charlie e a minha roupa de fundo-do-armário, resolve não desperdiçar palavras.

— Bem, então concluo que estamos empatados. Porque eu acho que não conheço muitos finalistas que estivessem dispostos a perder a oportunidade de mudar de roupa uma vez em quatro anos.

Domino o impulso de tentar disfarçar os vincos na minha camisa. O Charlie, lendo a mensagem subliminar, afasta-se para mais um ataque às mesas. O trabalho dele por este lado está concluído.

— Vocês os dois são realmente um encanto — diz a Katie. — Sabias?

Tenta parecer divertida, mas há na sua voz um tom de censura que não consegue esconder. Estende o braço e passa os dedos pelo meu cabelo, tentando dar um novo rumo às coisas, quando chega uma estudante de Ivy, de braço dado com o Gil. Do ar de desculpa no rosto dele, percebo imediatamente que se trata da tal Kelly que ele nos tinha recomendado que evitássemos.

— Tom, conheces a Kelly Danner, não conheces? Antes de eu ter tido tempo de dizer que não, o rosto da Kelly é invadido pela ira. O olhar dela está fixo em qualquer coisa no canto mais afastado do pátio.

— Idiotas de merda — pragueja ela, atirando com o copo de papel para o chão. — Eu já sabia que esta noite eles iam tentar armar uma coisa destas.

Voltamo-nos todos e vimos, avançando na nossa direcção, vindos do lado dos clubes, um grupo de homens de túnicas e togas vestidas.

O Charlie assobia e aproxima-se de nós, para ver melhor.

— Diz-lhes que se vão embora — pede a Kelly, sem se dirigir a ninguém em particular.

O grupo distingue-se agora mais nitidamente, por entre a neve. E torna-se evidente que se trata exactamente daquilo que a Kelly temia: um número especial coreografado. Cada toga tem umas letras inscritas no peito, organizadas em duas filas separadas. Apesar de não conseguir ainda distinguir a fila de baixo, vejo que a de cima se compõe de duas letras: TI.

TI é a abreviatura por que é conhecido o Tier Inn, o terceiro clube mais antigo e o único lugar no campus onde os loucos são recebidos. Raramente Ivy parece tão vulnerável como quando o TM inventa uma nova brincadeira para testar o seu venerável clube irmão. Esta noite a oportunidade é perfeita.                            

Risos dispersos começam a rebentar pelo pátio, mas tenho de fazer um esforço com a vista para compreender a razão. Todo o grupo está disfarçado com longas barbas grisalhas e perucas. Em nosso redor, todas as tendas estão a abarrotar de estudantes que querem um bom lugar.

Após uma breve confusão, os homens do TI organizam-se numa única fila, muito comprida. Nesse momento consigo ler finalmente a segunda linha de palavras escritas nas togas. No peito de cada homem figura uma única palavra e cada palavra, segundo o que percebo, é um nome. O nome no peito do mais alto, que está de pé, no meio, é Jesus. À sua esquerda e direita, estão os doze apóstolos, seis de cada lado.

As gargalhadas vão crescendo e os aplausos aumentam.

A Kelly aperta os maxilares. Pela expressão do Gil, não consigo perceber se ele está a disfarçar o riso para não a ofender, ou a tentar dar a impressão de que está divertido, que não está.

A figura de Jesus avança, destacando-se da fila e levanta os braços para impor silêncio à assistência. Quando o pátio fica em silêncio, ele recua, emite umas palavras de ordem e toda a fila irrompe em formação coral. Jesus dirige, de lado. Tirando da sua toga uma flauta, toca uma única nota. A fila que está sentada responde entoando-a em surdina. A fila que está de joelhos responde com uma terceira. Por fim, quando as duas filas parecem estar a perder o fôlego, os apóstolos que estão de pé contribuem com uma quinta.

A multidão, impressionada com a preparação que isto implicou, aplaude mais uma vez.

— Bonita toga! — grita alguém, numa tenda ali perto.

Jesus faz girar a cabeça, levanta a sobrancelha na direcção do som e regressa à condução. Finalmente, erguendo a batuta três vezes no ar com um trejeito do pulso, atira os braços para trás, teatralmente, volta a atirá-los para a frente e o coro explode numa canção. As suas vozes, ao som de «Battle Hymn of the Republic»*23, ecoam por todo o pátio.

Viemos contra a história do colégio do Senhor, Mas as vinhas da ira fermentaram na cave onde estão guardadas,

 

23 «Hino de Batalha da República». (NT)

 

Portanto desculpem-nos se estivermos um pouco ébrios. Nós, os santos, avançamos.

Glória, glória, somos os fósseis Dos apóstolos de Nazaré. Se não fosse Cristo, não passaríamos De pescadores da Galileia, Ouçam, portanto, a nossa história.

Jesus era o nosso homem-tipo do Médio Oriente. Andou na escola pública, mas tinha um santo Graal especial:

Preferia arder nos infernos do que ir para Harvard ou Yale, Portanto, a escolha era óbvia.

Glória, Glória, Deus convenceu-O E Jesus Cristo foi para Princeton. Tomou a decisão certa:

Formar-se em Religião E o resto é apenas HISTÓRIA.

Assim, no Outono de 18, Cristo chegou ao campus, O maior Homem que o mundo jamais vira num campus. E com a inveja, todos os clubes ficaram verdes como Hera*24 Quando Jesus escolheu o TI.

Agora levantam-se dois apóstolos da primeira fila e avançam. O primeiro desenrola um pergaminho que diz «Ivy» e o segundo um que diz «Cottage». Depois de empinarem os respectivos narizes um para o outro e de se terem pavoneado, muito importantes, em redor de Jesus, a canção continua.

Coro: Glória, Glória, Jesus candidatou-se, Os idólatras presumidos riram à socapa. Ivy: Não vamos aceitar um judeu; Cottage: Um carpinteiro... não interessa;

Coro: Então foi para o TI que o Senhor entrou.

A Kelly finca com tanta força as unhas nas palmas das mãos que quase sangram.

 

24 Hera, em inglês, ivy. Ivy é, como já se viu, o clube mais importante. (NT)

 

Agora os doze apóstolos saem da formação coral, organizam-se em círculo e, com Jesus no meio, dão os braços uns aos outros, levantam agilmente as pernas no ar e concluem:

Jesus, Jesus, que tipo mais fixe. Graças a Ele, somos todos formados. Nada existe de mais divino Do que transformar agua em vinho E assim a Sua verdade avança.

Terminada a canção, os treze homens voltam-se de costas e, com uma coreografia a rigor, levantam as togas, descobrindo uma mensagem escrita nas suas nádegas, uma letra em cada bochecha:

FELIZ PÁSCOA DESEJA O TIGER INN

Segue-se um chinfrim formado pela combinação de palmas desenfreadas, aplausos estrondosos e apupos furiosos. Depois, no momento em que os treze homens se preparam para sair, chega do outro lado do pátio um estrondo de uma coisa a estalar, seguido pelo estrépito de vidros a partirem-se.

As cabeças voltam-se na direcção do barulho. No andar superior de Dickinson, o edifício do departamento de História, cintila uma luz e depois apaga-se. Um dos vidros da janela partiu-se. Consigo distinguir um movimento na escuridão.

Um apóstolo do TI começa a aplaudir ruidosamente.

— O que é que se passou? — pergunto eu. Fixando bem a vista, consigo distinguir o vulto de uma pessoa em frente da janela partida.

— Isto não tem graça nenhuma — rosna a Kelly para Judas, que entretanto se aproximou. Ele põe o nariz no ar.

— O que é que ele está a fazer? — pergunta ela, apontando para a janela.

Judas pensa durante um segundo.

— Vai mijar. — Ri ruidosamente e repete: — Vai mijar da janela para fora.

A Kelly dirige-se, enfurecida, à figura de Jesus.

— Mas que merda é que se está a passar aqui, Dereck? — diz ela. A figura no escritório aparece e depois volta a desaparecer. Pela sua instabilidade, dir-se-ia que está bêbado. Durante um momento parece que está a segurar-se ao vidro partido, depois desaparece.

_ Acho que há mais alguém lá em cima — observa o Charlie. Subitamente todo o corpo do homem fica visível. Está encostado aos caixilhos da janela.

_ Vai mijar — repete o Judas.

De entre os restantes apóstolos, eleva-se um grito de «Salta! Salta!» A Kelly vira-se para eles: — Calem-se, porra! Ajudem-no a descer! O homem volta a desaparecer da vista.

— Acho que não é do TI — diz o Charlie, preocupado. — Penso que é capaz de ser alguém bêbado, das Olimpíadas Nuas.

Mas o homem está vestido. Perscruto a escuridão, tentando distinguir as formas. Desta vez o homem não se volta.

Ao meu lado, os apóstolos excitados uivam.

— Salta! — grita um deles mais uma vez, mas o Dereck puxa-o para trás e diz-lhe que se cale.

— Sai daí! — ordena a Kelly.

— Calma aí, minha — diz o Dereck, começando a reunir os discípulos histéricos.

O Gil observa tudo isto com o mesmo olhar indecifrável de divertimento que tinha no rosto desde que os homens apareceram. Olhando para o relógio, diz: — Bem, parece que a brincadeira já se...

— Merda! — grita o Charlie

A voz dele quase que abafa o eco do segundo estampido. Desta vez não resta qualquer dúvida. Foi um tiro.

O Gil e eu viramo-nos a tempo de vermos tudo. O homem explode para trás, atravessando o vídeo e por uns segundos fica imóvel, em queda livre. Com um estrondo abafado, bate na neve e o impacto abafa o barulho e a confusão do pátio.

E depois, mais nada.

A primeira coisa de que me lembro é de ouvir os passos do Charlie a correr para o corpo caído na neve. Depois uma multidão segue-o, convergindo para o local e tapando-me a vista.

— Ó meu Deus — murmura o Gil.

Gritam vozes na confusão: — Está bem? — Mas não há qualquer sinal de movimento.

Por fim, ouço a voz do Charlie. — Preciso de que alguém chame uma ambulância! Digam que temos um homem inconsciente no pátio, ao pé da capela!

137


O Gil tira o telefone do bolso, mas antes que tenha tido tempo de ligar, chegam dois polícias do campus. Um deles abre caminho por entre a multidão. O outro começa a afastar os espectadores. Por um momento, vejo o Charlie ajoelhado por cima do homem, fazendo massagem cardíaca — movimentos perfeitos, como pistões sincronizados. Como é estranho assistir de repente à sua actividade de todas as noites.

— Vem uma ambulância a caminho!

Muito ao longe, ouço as sereias.

As minhas pernas começam a tremer. Tenho a sensação de que algo de sinistro paira sobre as nossas cabeças.

A ambulância chega, as portas abrem-se e dois paramédicos descem e estendem o homem numa maca, preso com correias. Há uma grande confusão de movimentos e espectadores que entram e saem do meu campo de visão. Quando as portas se fecham, tenho uma visão clara do sítio em que o corpo caiu. O pedaço de laje tem qualquer coisa de indecente, como um rasgão na carne de uma princesa de conto de fadas. Vejo agora mais distintamente o que me tinha parecido lama, no local do impacto. Os negros são vermelhos; a lama é sangue. No escritório, lá em cima, há apenas escuridão.

A ambulância afasta-se, as luzes e a sirene vão desaparecendo à medida que ela desaparece por Nassau Street. Volto a olhar para a marca no chão. Tem uma forma peculiar, como um anjo de neve partido. O vento silva e eu aperto os braços em redor do meu corpo. Só quando a multidão no pátio começa a dispersar-se é que tenho consciência de que o Charlie desapareceu. Foi com a ambulância e, quando eu esperava ir encontrar a sua voz, apenas se instala um silêncio desagradável. Os estudantes vão desaparecendo lentamente do pátio, murmurando em vozes abafadas. — Espero que fique bem — diz o Gil, pousando a mão no meu ombro.

Por um segundo penso que se está a referir ao Charlie.

— Vamos para casa — decide ele. — Eu dou-te boleia. Aprecio o calor da sua mão, mas continuo parado, a olhar. Na minha memória, o homem volta a cair e a embater no chão. A sequência fragmenta-se e eu volto a ouvir o estalar do vidro e o tiro. O meu estômago começa às voltas.

— Vá, vamos — insiste o Gil. — Vamos embora daqui. E, como o vento se tornou mais agreste, eu concordo. A Katie desapareceu algures na confusão da chegada da ambulância e uma amiga dela que está por ali diz-me que ela regressou a Holder com as colegas de quarto. Decido telefonar-lhe quando chegar a casa.

O Gil pousa uma mão afectuosa nas minhas costas e guia-me até ao Saab que está estacionado na neve, perto da porta do auditório. Com aquele instinto infalível para fazer sempre a coisa certa, liga o aquecimento até uma temperatura confortável, ajusta o som de uma velha melodia do Sinatra até que o vento não é mais do que uma memória e, com um ligeiro acelerar, tranquiliza-me quanto à nossa impunidade perante os elementos, dirigindo-se para o campus. Tudo atrás de nós, tudo se funde gradualmente na neve.

_ Viste a pessoa que caiu? — pergunta ele, calmamente, quando nos encontramos já a caminho.

— Não vi nada.

— Não achas que... — O Gil ajeita-se no lugar.

— Acho o quê?

— Não será melhor telefonarmos ao Paul, para saber se ele está bem? O Gil estende-me o telemóvel, mas não há rede.

— Tenho a certeza de que ele está bem — digo, brincando com o telemóvel.

Ficamos por minutos em silêncio, esforçando-nos por afastar a ideia das nossas mentes. Por fim, o Gil faz um esforço para desviar a conversa.

— Então conta-me lá como foi a tua viagem — pede-me ele. Eu tinha ido a Columbus no princípio da semana, para comemorar a conclusão da minha tese. — Como é que estava tudo em casa?

Conseguimos manter uma conversa mais ou menos coerente, saltando de tópico para tópico, tentando sobrepor-nos à nossa corrente de pensamento. Conto-lhe as novidades acerca das minhas irmãs mais velhas, uma que acabou Veterinária e a outra que está a fazer o doutorado em Gestão Empresarial, e o Gil pergunta-me pela minha mãe, de cujo aniversário se lembrou. Diz-me que, depois de eu me ter ido embora e apesar do tempo que tem dedicado à preparação do baile, ainda conseguiu acabar a tese antes do fim do prazo estipulado pelo departamento de Economia. Pouco a pouco vamo-nos interrogando se o Charlie terá sido aceite na escola médica e imaginando para onde é que ele pensará ir, atendendo a que, no que respeita a esses assuntos, o Charlie é bastante reservado, mesmo connosco.

Tomamos a direcção sul. Na noite lúgubre, as residências de estudantes de um e outro lado da estrada estão em silêncio. As notícias do que se passou na capela devem ter-se espalhado pelo campu porque não vemos ninguém a pé e os únicos carros que avistamos estão pacificamente estacionados nos seus lugares. O caminho de carro até ao estacionamento, a um quilómetro de Dod, parece quase tão longo como o vagaroso percurso a pé. Não há sinais do Paul.

 

                                   CAPITULO 12

Há um velho ditado entre os estudiosos de Frankensten segundo o qual o monstro é uma metáfora para o romance. Mary Shelley, que tinha dezanove anos quando começou a escrever o livro, encorajou essa interpretação chamando-lhe a sua progenitura horrorosa, uma coisa morta com vida própria. Tendo perdido um filho aos dezassete anos e tendo causado a morte da mãe ao nascer, presume-se que sabia do que estava a falar.

Durante algum tempo, pensei que a Mary Shelley era tudo o que o tema da minha tese tinha em comum com a do Paul: ela e o romano Francesco Colonna (que tinha apenas catorze anos, segundo a teoria de muitos eruditos, quando a Hypnerotomachia foi escrita) faziam um belo par, dois teenager muito precoces. Para mim, nesses meses antes de ter conhecido a Katie, Mary e Francesco eram dois apaixonados contrariados, igualmente jovens, em épocas diferentes. Para o Paul, que enfrentava os eruditos da geração do meu pai, eram um emblema do poder da juventude contra a indiferença obstinada da idade.

Curioso é notar que foi ao discutir se Francesco Colonna não seria um homem mais velho, em vez de um jovem que o Paul fez os seus primeiros progressos com o Hypnerotomachia. Acabara de entrar para o primeiro ano do Taft como um simples noviço, mas o ogre conseguiu farejar nele a influência do meu pai. Apesar de ele insistir em que tinha abandonado o estudo do velho livro, o Taft estava ansioso por demonstrar ao Paul a loucura das teorias do meu pai. Continuando a preferir a ideia de um Colonna veneziano, explicava a prova mais forte a favor do Pretendente.

A Hypnerotomachia foi publicada em 1499, disse o Taft, quando o romano Colonna tinha quarenta e cinco anos; até aí nada de problemático. Mas a página final da história autêntica, que o próprio Colonna compôs, prova que o livro foi escrito em 1467 — época em que o Francesco do meu pai teria apenas catorze anos. Por muito improvável que fosse a Hypnerotomachia ter sido escrita por um monge criminoso, era igualmente impossível que um adolescente o tivesse feito.

E assim, tal como o rei miserável que inventava novos trabalhos para o jovem Hércules, o Taft colocava aos ombros do Paul o fardo das provas. Até que o seu novo protegido conseguisse resolver a questão da idade do Colonna, o Taft recusava-se a apoiar qualquer investigação baseada na existência do autor romano.

A forma como o Paul se recusou a dar-se por vencido perante a lógica destes factos, desafia qualquer explicação. Ele encontrava inspiração não só no repto do Taft, mas no próprio Taft: apesar de rejeitar a rígida interpretação que o homem fazia da Hypnerotomachia, decidiu ser igualmente inflexível relativamente às suas fontes. Onde o meu pai tinha deixado a inspiração e a intuição guiá-lo, investigando sobretudo em locais exóticos como mosteiros e bibliotecas papais, o Paul adoptou o processo mais sistemático do Taft. Nenhum livro era suficientemente insignificante, nenhum lugar era suficientemente desinteressante. Começou a pesquisar em todo o sistema da biblioteca de Princeton, desde a base até ao topo. E, lentamente, o seu primitivo conceito de livros foi-se modificando, tal como o conceito de água para um rapaz que viveu toda a vida junto de uma lagoa é aniquilado ao ser subitamente confrontado com o oceano. No dia em que o Paul entrou para a universidade, a sua colecção de livros rondava os seiscentos volumes. A colecção de livros de Princeton, incluindo os mais de oitenta quilómetros de estantes da Biblioteca Firestone, passava bastante dos seis milhões.

De início a experiência intimidou o Paul. A imagem atraente que o meu pai tinha pintado de deparar com documentos por simples acaso, desaparecia instantaneamente. Mais doloroso, penso eu, era o questionamento que provocara no Paul, a introspecção e a dúvida que lhe faziam interrogar-se se o seu génio não passaria de um talento provinciano, uma estrela apagada num recanto do universo. Por muito que os mais velhos do seu curso considerassem que ele estava muito mais adiantado do que eles ou que os professores lhe dedicassem uma estima muito messiânica, isso não lhe serviria de nada se não conseguisse avançar na Hypnerotomachia.

Depois, durante aquele Verão em Itália, tudo mudou. O Paul descobriu trabalhos dos eruditos italianos, que conseguia compreender graças aos seus quatro anos de latim. Ao vasculhar a biografia italiana definitiva do Pretendente veneziano, ficou a saber que alguns elementos da Hypnerotomachía se devia a um livro chamado Cornucopiae publicado em 1489. Como pormenor na vida do Pretendente parecia irrelevante — mas o Paul, que tinha em mente o problema com o Francesco romano, viu nisso muito mais. Por muito que Colonna reivindicasse a autoria do livro, havia agora uma prova de que ele tinha sido composto depois de 1489. Nessa altura, o Francesco roma no teria pelo menos trinta e seis anos e não catorze. E, apesar de o Paul não conseguir compreender por que é que o Colonna teria mentido quanto ao ano em que tinha escrito a Hypnerotomachía compreendeu que isso responderia ao repto do Taft. Para o melhor e para o pior acabava de entrar no mundo do meu pai.

O que se seguiu foi um período de confiança crescente. Armado de quatro línguas (a quinta, o inglês, inútil a não ser para fontes secundárias) e com um conhecimento vastíssimo da vida e época de Colonna, o Paul mergulhou no texto. Cada dia se entregava um pouco mais ao projecto, tomando uma atitude relativamente à Hypnerotomachía que me parecia desconfortavelmente familiar: as páginas eram um campo de batalha onde ele e Colonna mediam forças, sendo que o vencedor arrecadava tudo. A influência do Vincent Taft, adormecida nos meses anteriores à viagem, tinha regressado. À medida que o interesse do Paul ia gradualmente tomando as tonalidades da obsessão, o Taft e o Stein iam ganhando uma maior influência na sua vida. Se não fosse pela intervenção de um homem, penso que poderíamos ter perdido irremediavelmente o Paul para eles.

Esse homem foi Francesco Colonna e o seu livro não se tinha revelado a mulher fácil que o Paul esperara. Por muito que o Paul forçasse o seu músculo mental, verificou que a montanha não se movia. Quando os progressos se tornaram mais lentos, e o Outono do terceiro ano ganhava os tons sombrios do Inverno, o Paul tornou-se irritável, sempre com comentários ácidos e maus modos que só poderia ter aprendido com o Taft. Em Ivy, segundo me disse o Gil, os membros do clube começaram a gozar com o Paul por ele se sentar sozinho à mesa de jantar, rodeado de pilhas de livros, sem dirigir palavra a ninguém. Quanto mais eu via a sua confiança a diminuir, melhor compreendia uma coisa que o meu pai tinha dito uma vez: a Hypnerotomachía é uma sereia: canção que enfeitiça numa praia ao longe, unhas e garras num corpo a corpo. Se lhe queres fazer a corte, o risco é inteiramente teu.

E assim foi. Chegou a Primavera; raparigas em tops de alças jogavam Fribees debaixo da sua janela; os esquilos e as flores apareceram nos troncos das árvores; as bolas de ténis faziam-se ouvir nos campos;

o Paul continuava no seu quarto, sozinho, com os estores para baixo, a porta fechada, com uma mensagem no seu painel que dizia NÃO INCOMODAR. A tudo o que me agradava nesta nova estação, ele chamava distracção — os cheiros e os sons, a sensação de impaciência depois de um longo Inverno mergulhado nos livros. Eu sabia que mesmo eu estava a ser uma distracção para ele. Tudo o que ele me dizia começava a soar como um boletim meteorológico de um país estrangeiro. Pouco o visitei.

Foi necessário um Verão sozinho para que ele se modificasse. No princípio de Setembro do terceiro ano, depois de ter passado três meses num campu deserto, recebeu-nos a todos de braços abertos e ajudou-nos a fazer a mudança. Subitamente aceitava com prazer todas as interrupções, ansioso por passar algum tempo entre amigos, menos agarrado ao passado. Nos primeiros meses desse semestre, houve um renascimento na relação entre nós dois, muito melhor do que eu jamais esperara. Ignorava os curiosos, que em Ivy estavam suspensos das suas palavras, esperando qualquer coisa de escandaloso; passava menos tempo com o Taft e o Stein; saboreava as refeições e apreciava os passeios a pé nos intervalos das aulas. Conseguia mesmo ver o lado humorístico da forma como os homens do lixo despejavam o contentor, por baixo da nossa janela, todas as terças-feiras às sete da manhã. Pensei que ele estava melhor. Mais do que isso: pensei que ele tinha renascido.

Foi só quando o Paul veio ter comigo, em Outubro do nosso último ano, altas horas da noite do dia das frequências do segundo período, que eu compreendi a outra coisa que as nossas teses tinham em comum: ambos os nossos temas eram defuntos que se recusavam a permanecer enterrados.

— Há alguma coisa que te pudesse fazer mudar de opinião relativamente a trabalhares na Hypnerotomachia? — perguntou o Paul naquela noite. E, pela tensão na sua expressão, percebi que ele tinha descoberto qualquer coisa de verdadeiramente importante.

— Não — disse-lhe eu, um pouco porque era isso mesmo que pensava, mas um pouco também para obrigá-lo a abrir o jogo.

— Penso que durante o Verão descobri uma coisa. Mas preciso da tua ajuda para a compreender.

— Diz-me — pedi-lhe eu.

E, fosse qual fosse a forma como tudo começou para o meu pai, fosse o que fosse que galvanizou a sua curiosidade relativamente à Hypnerotomachia foi assim que tudo começou para mim. O que o Paul me contou nessa noite deu uma vida nova ao livro de Colonna, que estava há muito enterrado.

— No ano passado, quando o Vincent viu que eu estava a começar a ficar desesperado, apresentou-me a Steven Gelbman, da Brown — começou o Paul. — O Gelbman faz investigação através da matemática, da criptografia e da religião, tudo em conjunto. É perito na análise matemática da Tora. Já ouviste falar nesta história?

— Parece qualquer coisa como a cabala.

— Exactamente. Não nos limitamos a estudar o que dizem as Escrituras; estuda-se o que os números dizem. Cada letra no alfabeto hebreu corresponde a um número. Usando a ordem das palavras, pode encontrar-se padrões matemáticos.                      

«Bem, no princípio eu estava muito desconfiado. Mesmo depois de ter passado por dez horas de aulas sobre correspondência sefirótica, não comprava a coisa. Não parecia ter nada a ver com o Colonna. Mas quando chegou o Verão, eu já tinha terminado de investigar as fontes secundárias relativamente à Hypnerotomachia e comecei a trabalhar no próprio livro. Era impossível. Eu tentava forçar uma interpretação e o livro devolvia-me tudo, sem digerir. Assim que eu tinha a ilusão de que meia dúzia de páginas se estavam a orientar numa determinada via, usando uma determinada estrutura, com uma intenção determinada, subitamente a frase acabava e na seguinte já estava tudo alterado.

«Passei cinco semanas só a tentar compreender o primeiro labirinto que o Francesco descreve. Estudei o Vituvius para compreender os termos de arquitectura. Observei todos os labirintos antigos que conheço: o egípcio, na cidade dos Crocodilos, os de Lemnos, Clusium e Creta e mais meia dúzia deles. Depois compreendi que havia quatro labirintos diferentes na Hypnerotomachia: um num templo, um na água, um num jardim e um na terra. Assim que pensei que estava a começar a compreender um nível de complexidade, esta quadruplicou. Poliphilo perde-se no princípio do livro e diz: O meu único recurso era implorar a piedade de Ariadna de Creta, que deu a Teseus o fio para sair do dificil labirinto. Era como se o livro soubesse o que me estava a fazer.

«Finalmente compreendi que a única coisa que eu sabia que funcionava realmente era o acróstico formado pela primeira letra de cada capítulo. Portanto, fiz o que o livro me dizia para fazer. Implorei piedade da Ariadna de Creta, a única pessoa capaz de resolver a confusão.

— Foste ter com o Geibman.

Assentiu. — Engoli um sapo. Estava desesperado. Em Julho, o Geibman deixou-me ficar com ele em Providence, depois de o Vincent ter insistido em que eu estava a fazer progressos com o método. Passou o fim-de-semana a mostrar-me as técnicas mais sofisticadas de descodificação e foi então que começou a fazer-se luz.

Lembro-me de ter olhado para a janela por cima do ombro do Paul, enquanto ele falava, e ter sentido que a paisagem estava a mudar. Estávamos sentados no nosso quarto, em Dod, só os dois, numa sexta-feira à noite; o Charlie e o Gil estavam algures por baixo de nós, a jogar paintball nos túneis de vapor, com um grupo de amigos de Ivy e a equipa da Emergência Médica. No dia seguinte tinha um trabalho para entregar e um teste para preparar. Uma semana depois iria encontrar-me pela primeira vez com a Katie. Mas naquele momento, a minha atenção relativamente ao que o Paul me estava a dizer, era total.

— O conceito mais complicado que ele me ensinou — continuou ele — era como descodificar um livro baseando-nos em algoritmos ou cifras do próprio texto. Nesses casos, a chave está incluída dentro do próprio livro. Começa-se por decifrar a cifra, como uma equação ou um conjunto de instruções, depois utiliza-se a cifra para descodificar o texto. Na realidade é o próprio livro que se interpreta a si próprio.

Sorri. — Parece uma ideia capaz de levar à falência todo o departamento de Literatura.

— Eu também fiquei céptico — admitiu o Paul. — Mas acontece que existe já uma grande tradição desse sistema. Os intelectuais, durante o Iluminismo, costumavam escrever tratados assim, como jogo. Os textos pareciam histórias absolutamente normais, novelas epistolares e esse género de coisas. Mas quando se conhecem as técnicas correctas... talvez detectando gralhas óbvias que se verifica serem intencionais, ou resolvendo puzzles nas ilustrações... poderemos encontrar a chave. Qualquer coisa como «Usa apenas números primos e quadrados perfeitos e letras que sejam comuns a cada décima palavra;

exclui as palavras do Senhor Kinkaid e as perguntas feitas pela criada». Seguindo as orientações, no fim encontrava-se uma mensagem. A maior parte das vezes era um poema humorístico ou uma piada de mau gosto. Mas um desses tipos escreveu efectivamente assim o seu testamento. Quem o conseguisse decifrar, herdava a sua fortuna.

O Paul tirou de entre as páginas de um livro uma folha de papel. Nela estava escrito, em dois blocos diferentes, o texto de uma passagem em código e por baixo a mensagem, mais curta, descodificada. Como é que de uma se chegou à outra é que eu não percebia.    

— Passado algum tempo, comecei a pensar que, eventualmente funcionaria. Talvez o acróstico com as letras dos capítulos da Hypnerotomachia fosse apenas uma pista. Talvez ali estivesse para dizer que tipo de interpretação é que poderia funcionar com o resto do livro, Havia muitos humanistas que se interessavam pela cabala e a ideia de ( jogar jogos com a linguagem e os símbolos era bastante popular no Renascimento. Talvez o Francesco tivesse usado algum tipo de cifra para a Hypnerotomachia.                                        

«O problema era que eu não fazia a mais pequena ideia de onde é que podia procurar o algoritmo. Comecei a inventar códigos por ï minha iniciativa, só para ver se alguma funcionava. Era uma luta que se prolongava, dia após dia. Chegava a uma conclusão qualquer, passava uma semana a percorrer a Sala dos Livros Raros, para ver se encontrava uma resposta — e acabava por chegar à conclusão de que não fazia sentido, que se tratava de uma armadilha ou de um beco sem saída.

«Depois, no fim de Agosto, passei três semanas à volta de uma única passagem. É no ponto da história em que Poliphilo está a examinar uma colecção de ruínas de templos e encontra uma mensagem em hieróglifos gravada num obelisco. Ao divino e sempre augusto Júlio César, governador do mundo é a frase com que começa. Nunca a esquecerei... quase me fez enlouquecer. As mesmas páginas, dia após dia. Mas foi então que encontrei.

Abriu uma pasta que estava em cima da secretária. Lá dentro havia uma reprodução de todas as páginas da Hypnerotomachia. Procurou um apêndice que tnha criado no fim e mostrou-me uma página na qual tinha agrafado a primeira letra de cada capítulo, formando o que me pareceu uma nota de resgate, onde se ia a famosa mensagem acerca de Fra Francesco Colonna. Poliam Frater Franciscus Columna Peramavit.

— Parti de uma premissa simples. O acróstico não podia ser apenas um truque de salão, uma forma barata de identificar o autor. Tinha de ter um objectivo mais lato: as primeiras letras não podiam apenas ser importantes para descodificar a mensagem inicial, teriam de ser importantes para decifrar todo o livro.

«Portanto, tentei. A passagem que eu tinha estado a examinar por acaso começava com um hieróglifo especial num dos desenhos... um olho. — Passou várias páginas e finalmente chegou ao que procurava.

— Como era o primeiro símbolo nessa gravura, decidi que tinha de ser importante. O problema estava em que eu não conseguia chegar a parte alguma com ela. A definição de Poliphilo do símbolo... que o olho significa Deus ou a divindade... não me levava a parte alguma.

«Foi então que tive sorte. Uma manhã, estava eu a trabalhar no centro de estudos, e não tinha dormido quase nada, portanto decidi ir comprar um refrigerante. Só que a máquina insistia em devolver-me o meu dólar. Estava tão cansado que não conseguia compreender a razão, até que finalmente olhei para baixo e percebi que estava a meter mal a nota. As costas estavam para cima. Estava a voltá-la ao contrário para experimentar de novo, quando vi. Mesmo na minha frente, na parte de trás da nota.

— O olho — disse eu. — Por cima da pirâmide.

— Exacto. É uma parte do grande selo. E foi então que se fez luz. No Renascimento havia um famoso humanista que costumava usar o olho como o seu símbolo. Mandou mesmo imprimi-lo em moedas e medalhas.

Esperou, como se eu devesse saber a resposta.

— Alberti. — O Paul apontou para um pequeno volume na estante. Na lombada lia-se De ré aedificatoria. — Era isso que o Colonna queria dizer. Estava a usar uma ideia tirada do livro de Alberti e queria que nós déssemos por isso. Se conseguíssemos perceber o que era, então tudo se resolveria a partir daí.

«No seu tratado, Alberti cria equivalentes em latim para os termos de arquitectura derivados do grego. Francesco faz as mesmas substituições em toda a Hypnerotomachia... excepto num sítio. Tinha reparado nisso a primeira vez que traduzi o excerto, porque comecei a ter dificuldades com termos vitruvianos que há muito não via. Mas nunca imaginara que fossem significativos.

«O truque, como compreendi então, era encontrar todos os termos gregos relacionados com arquitectura nesse excerto e substituí-los. pêlos seus equivalentes latinos, da mesma forma como aparecem no resto do texto. Fazendo isso... e utilizando a regra do acróstico... ler primeiro a primeira letra de cada palavra numa linha, da mesma maneira que se fez com a primeira letra de cada capítulo... o puzzle está resolvido. Encontra-se uma mensagem em latim. O único problema é que basta errar na tradução do grego para o latim numa palavra que seja e toda a mensagem fica incompreensível. Substitui entasi por ventris diametrum em vez de apenas venter e o D a mais no início de diametrum vai alterar tudo.

Passou para uma nova página, falando cada vez mais depressa.

— Fiz erros, é claro. Felizmente não eram tão grandes que me impedissem de formar as palavras em latim. Levou-me três semanas, precisamente até ao dia anterior ao vosso regresso ao campus. Mas finalmente percebi. Sabes o que diz? — Coçou nervosamente a cara.

— Diz: Quem encornou Moisés?

Deu uma gargalhada nervosa. — Juro por Deus que consigo ouvir o Francesco a rir-se de mim. Tenho a sensação de que todo o livro não passa de uma enorme partida às minhas custas. Estou a falar a sério. Quem encornou Moisés?

— Não percebo.

— Por outras palavras, quem traiu Moisés?

— Eu sei o que é um corno.

— Na verdade, não diz literalmente encornou. Diz: «Quem deu os cornos a Moisés?» Cornos, desde Artemidorus, são usados para sugerir infidelidade. Vem do...

— Mas o que é que isso tem a ver com a Hypnerotomachia? Espero que ele explique, ou que diga que decifrou o enigma errado. Mas quando o Paul se levanta e começa a andar de um lado para o outro, concluo que não é assim tão simples.

— Não sei. Nem entendo como é que se encaixa no resto do livro. Mas o que é estranho é que sinto que posso ter resolvido o mistério.

— Alguém pôs os cornos ao Moisés?

— Bem, mais ou menos. Ao princípio, pensei que era um engano. Moisés é uma figura demasiado importante do Antigo Testamento para ser associado a infídelidades. Tanto quanto eu sei, tinha uma mulher, uma midianita chamada Zipporah, mas ela mal é mencionada no Exodus e não encontrei qualquer referência a ela o enganar.

«E então em 12:1, acontece uma coisa invulgar. O irmão e a irmã de Moisés criticam-no por casar com uma mulher cushita. Os pormenores nunca são explicados, mas alguns académicos defendem que é por causa de Cush e Midian serem áreas geográficas completamente diferentes, o que levaria a crer que Moisés teria duas mulheres. O nome da mulher cushita nunca aparece na Bíblia, mas um historiador do século I, Flavius Josephus escreve a sua narrativa da vida de Moisés e afirma que o nome da mulher cushita, ou etíope, com quem ele casou era Tharbis.

Os pormenores estão a começar a confundir-me. — Então ela enganou-o?

O Paul abana a cabeça. — Não. Ao casar-se pela segunda vez, Moisés enganou Tharbis ou enganou Zipporah, dependendo de com quem casou primeiro. A cronologia é difícil de estabelecer, mas em alguns casos os cornos aparecem na cabeça de quem engana e não apenas na da esposa enganada. Deve ser aí que reside o enigma. A resposta é Zipporah ou Tharbis.

— E então para que é que isso serve?

A sua excitação desvanece-se. — É aí que eu esbarro com uma parede. Tentei usar Zipporah e Tharbis como soluções, de todas as formas que consegui imaginar, aplicando-as em cifras para ajudar a decifrar o resto do livro. Mas nada funciona.

Fica à espera, como se eu pudesse contribuir com qualquer coisa.

— E o que é que o Taft pensa disso? — foi a única coisa que me ocorreu dizer.

— O Vincent não sabe. Ele pensa que eu estou a perder tempo. Desde que decidiu que as técnicas do Geibman não permitiam avançar, disse-me que eu devia continuar a seguir a orientação dele. Concentrar-me mais nas fontes venezianas primitivas.

— Não lhe vais falar disto?

O Paul olhou para mim como se eu não compreendesse.

— Estou a falar-te a ti — disse ele.

— Não faço a mais pequena ideia.

— Tom, isto não pode ser uma coincidência. Uma coisa desta dimensão, é impossível. Isto era o que o teu pai procurava. Tudo o que temos a fazer é perceber. Preciso da tua ajuda.

— Porquê?

Na sua voz insinuava-se um curioso tom de segurança, como se soubesse alguma coisa acerca da Hypnerotomachia que lhe tivesse passado despercebido antes. — O livro recompensa diversas formas de pensamento. Por vezes a paciência vence, a atenção ao pormenor. Mas outras vezes exige instinto e criatividade. Li algumas das tuas conclusões sobre o Frankenstein. São boas. São originais. E nem sequer te

esforçaste por aí além. Pensa só um bocado sobre isto. Pensa no enigma. Talvez consigas descobrir mais qualquer coisa. É tudo o que te peço.

Houve uma razão muito simples para que eu não aceitasse a oferta do Paul nessa noite. Na paisagem da minha infância, o livro do Colonna era uma mansão deserta no cimo de um monte, uma sombra de mau presságio que se estendia sobre tudo em redor. Todos os mistérios desagradáveis da minha juventude pareciam ter as suas origens nessas páginas ilegíveis: as inexplicáveis ausências do meu pai à mesa de jantar, em tantas noites em que ficava a trabalhar, sentado à secretária; as velhas discussões em que ele e a minha mãe se embrenhavam, como santos caindo no pecado; mesmo a estranheza inóspita de Richard Curry, que tinha uma paixão pelo livro e Colonna superior à de qualquer outro homem e nunca parecia recuperar. Eu não conseguia compreender o poder que a Hypnerotomachia tinha sobre qualquer pessoa que o lesse, mas a minha experiência dizia-me que esse poder conduzia sempre ao pior. Observando a luta do Paul ao longo de três anos, mesmo que culminasse nesta descoberta, só me tinha ajudado a manter a distância.

Se parece, portanto, surpreendente que eu tenha mudado de ideias na manhã seguinte e me tenha associado ao Paul no seu trabalho, isso deve-se a um sonho que tive na noite a seguir a ele me ter falado do enigma. Existe uma gravura na Hypnerotomachia que estará sempre nos recônditos da memória da minha primeira infância, uma gravura em que tropecei muitas vezes ao bisbilhotar no escritório do meu pai para investigar o que é que ele estava a estudar. Não é todos os dias que um miúdo vê uma mulher nua deitada debaixo de uma árvore a olhar para ele, enquanto ele lhe paga na mesma moeda. E não consigo imaginar ninguém, fora do círculo dos estudiosos da Hypnerotomachia poderá dizer que tenha jamais visto um sátiro nu, em pé ao lado dessa mulher, com um pénis em forma de corno, esticado como um ponteiro de bússola, na sua direcção. Tinha doze anos quando vi essa imagem pela primeira vez, sozinho no escritório do meu pai e percebi por que é que ele às vezes vinha jantar tão tarde. O que quer que aquilo fosse, era estranho e maravilhoso comparado com o estufado de carne.

Essa ilustração da minha infância apareceu-me nessa noite — a mulher reclinada, o sátiro aproximando-se furtivamente, de membro erguido — e devo ter-me agitado muito no meu beliche, porque o Paul debruçou-se do dele e perguntou: — Estás bem, Tom?

Ao tomar consciência, levantei-me e procurei precipitadamente nos livros que estavam em cima da secretária. Aquele pénis, aquele corno fora do sítio, lembravam-me qualquer coisa. Era possível estabelecer uma ligação. Colonna sabia do que é que estava a falar. Alguém tinha efectivamente posto os cornos a Moisés.

Encontrei a resposta na História da Arte do Renascimento de Hartt. Já tinha visto a imagem antes, mas não tinha ligado.

— O que é isto? — perguntei ao Paul, atirando com o livro para o beliche dele e apontando para a página.

Ele semicerrou os olhos. — A estátua de Moisés, do Miguel Angelo — disse ele, olhando para mim como se eu tivesse enlouquecido. — O que é que se passa Tom?

E depois, antes que eu tivesse oportunidade de explicar, interrompeu-se e acendeu a luz da mesa-de-cabeceira.

— Claro... — murmurou ele. — O meu Deus, claro... Na fotografia que eu lhe tinha mostrado eram bastante evidentes as duas pequenas protuberâncias a despontarem na cabeça da estátua, como os cornos de um sátiro.

O Paul saltou do beliche tão ruidosamente que fiquei à espera de que o Charlie e o Gil aparecessem. — Conseguiste — disse ele de olhos esbugalhados. — Tem de ser isso.

Continuou assim durante um bocado, até que eu comecei a ter uma sensação desconfortável de que havia qualquer coisa que não batia certo, interrogando-me como é que o Colonna poderia ter colocado a resposta ao seu enigma numa escultura do Miguel Angelo.  

— E então, por que é que estão aí? — perguntei por fim.      

Mas o Paul ia já muito mais à frente. Arrancou o livro do beliche e mostrou-me a explicação no texto. — Os cornos não têm nada a ver ï com infidelidade. O enigma era literal: quem deu os cornos a Moisés? Trata-se de uma tradução errada da Bíblia. Quando Moisés desceu do Monte Sinai, diz o Êxodo, o seu rosto estava iluminado com raios de luz. Mas a palavra hebraica para «raios» pode também ser traduzida por «cornos» — karan em vez de keren. Quando o Sãojerónimo traduziu o Antigo Testamento para latim, pensou que a única pessoa que podia brilhar com raios de luz seria Cristo — portanto, avançou com a tradução alternativa. E foi assim que o Miguel Angelo esculpiu , o seu Moisés. Com cornos.

Com a excitação, eu não me tinha apercebido do que é que estava a acontecer. A Hypnerotomachia tinha-se infiltrado de novo na minha vida, transportando-me por sobre um rio que eu nunca tinha querido atravessar. O que se nos deparava agora era a tentativa de compreender o significado deSão Jerónimo, que tinha aplicado a palavra cornuta a Moisés, atribuindo-lhe assim os cornos. Mas essa foi uma tarefa que, felizmente, o Paul chamou a si durante as semanas seguintes. A partir dessa noite e durante algum tempo, eu não passei de um mercenário, o seu último recurso contra a Hypnerotomachia. Pensei que essa era uma posição que eu poderia manter, conservar uma distância do livro, deixando o Paul fazer de intermediário. E assim, quando ele regressou a Firestone, empolgado com as possibilidades que tínhamos descortinado, eu parti para uma nova descoberta particular. Ainda deslumbrado com o meu encontro com Francesco Colonna, mal consigo imaginar a impressão que causei nela.

Encontrámo-nos num local a que nenhum de nós pertencia, mas onde ambos nos sentíamos como em casa: Ivy. Pelo meu lado, eu passava tantos fins-de-semana ali como no meu próprio clube. Quanto a ela, era já uma das pessoas preferidas do Gil, meses antes da sua candidatura à selecção do segundo ano e a ideia dele foi imediatamente apresentar-nos um ao outro.

— Katie — disse ele, depois de nos ter reunido aos dois no clube, numa noite de sábado —, este é o meu colega de quarto, Tom.

Fiz um sorriso indolente, pensando que não teria de esforçar muito os músculos para seduzir uma miúda do segundo ano.

Depois ela começou a falar. E como uma mosca numa planta carnívora, esperando néctar e encontrando a morte, eu compreendi quem é que estava a caçar quem.

— Então és o Tom — disse ela, como se eu correspondesse à descrição de um condenado afixada num posto de polícia. — O Charlie já me falou de ti.

O que tem de bom o Charlie descrever-nos a alguém é que, depois disso, as coisas só podem melhorar. Parecia que ele tinha encontrado a Katie em Ivy algumas noites atrás e, quando percebeu que o Gil tinha a intenção de nos juntar, empenhou-se nos pormenores.

— E o que é que ele disse? — perguntei, tentando não parecer preocupado.

Ela ficou pensativa por uns segundos, tentando encontrar as palavras certas.

— Qualquer coisa acerca de astronomia. Acerca de estrelas.

— Anão branco — disse eu. — É uma piada científica. A Katie franziu o sobrolho.

— Também não percebo — admiti eu, tentando desfazer a minha primeira impressão. — Não sou muito dado a essas coisas.

— Estás a tirar Literatura? — perguntou ela, como se fosse óbvio.

Assenti. O Gil tinha-me dito que ela era de Filosofia.

Ela olhou desconfiada para mim. — Quem é o teu autor preferido?

— Uma pergunta a que é impossível responder. Qual é o teu filósofo preferido?

— Camus — disse ela, embora a minha pergunta fosse retórica. — E o meu autor preferido é o H. A. Rey.

As palavras saíram-lhe como um teste. Eu nunca tinha ouvido falar em Rey; parecia-me um modernista, um T. S. Eliot mais obscuro, um e.e. cummings em caixa alta.

— Escreveu poesia? — arrisquei, porque não a conseguia imaginar a ler autores franceses à lareira.

A Katie pestanejou. Depois, pela primeira vez desde que nos conhecêramos, sorriu.

— Escreveu Curious George — disse ela e riu alto ao ver que eu tentava não corar.

Foi essa a receita para a nossa relação, creio eu. Demos um ao outro aquilo que nunca esperáramos encontrar. Nos meus primeiros tempos em Princeton, tinha aprendido a nunca falar de trabalho com as namoradas; mesmo a poesia pode matar um romance, segundo o Gil já me tinha ensinado, se se confundir com conversa. Mas a Katie tinha aprendido a mesma lição e nenhum de nós gostava dela. No primeiro ano ela tinha namorado com um jogador de lacrosse que eu conheci num seminário de literatura. Era inteligente, versado em Pynchon e DeLillo como eu nunca consegui ser, mas recusava-se a falar sobre eles fora da aula. Ela ficou maluca com o esforço que ele fazia para traçar um caminho, erguendo muros entre o trabalho e a diversão. Em vinte minutos de conversa nessa noite, em Ivy, ambos descobrimos uma coisa de que gostávamos, uma vontade de não erguer muros, ou talvez fosse antes uma vontade de os derrubar. Ao Gil agradou-lhe que a coisa tivesse resultado tão bem. Muito em breve dei por mim desejoso de que os fíns-de-semana chegassem, esperando encontrá-la por acaso nos intervalos das aulas, pensando nela antes de me deitar, no chuveiro, no meio dos testes. Um mês depois éramos namorados.      

Sendo o mais velho dos dois, imaginei por algum tempo que me deveria esforçar por aplicar à nossa relação os conhecimentos da minha experiência. Assegurei-me de que nos mantínhamos em lugares conhecidos, rodeados de multidões amigáveis, porque tinha aprendido no decorrer de outras relações que a familiaridade chega sempre depois do amor: duas pessoas que se julgam apaixonadas podem descobrir, quando a sós, que pouco sabem uma da outra. Portanto, insistia em frequentar locais públicos — fins-de-semana nos clubes, noites de semana no centro de estudos — e só concordei em encontrarmo-nos nos quartos ou nos reservados das bibliotecas quando detectei algo mais na voz da Katie, o tom convidativo que me orgulhava de conseguir distinguir.

Como sempre, foi a Katie que teve de me fazer ver as coisas.

— Vá — disse-me ela uma noite —, vamos jantar os dois.

— A que clube? — perguntei eu.

— A um restaurante. Escolhe tu.

Andávamos juntos há menos de duas semanas; havia ainda muito nela que eu não conhecia. Um longo jantar a dois parecia-me um risco.

— Queres convidar a Karen ou a Trish para virem connosco? — perguntei eu. As suas duas colegas de quarto de Holder tinham sido até então os nossos paus-de-cabeleira. Principalmente a Trish, que parecia que nunca comia, de tal maneira se fartava de falar durante as refeições.

A Katie estava de costas para mim. — Também podíamos convidar o Gil — sugeriu ela.

— Claro. — Pareceu-me que era uma combinação muito bizarra, mas de qualquer modo, quanto mais, melhor.

— E o Charlie? — perguntou ela. — Está sempre com fome. Finalmente percebi que estava a ser sarcástica.

— Qual é o problema, Tom? — disse ela, voltando-se para mim. — Tens medo de que nos vejam sozinhos? — Não. — Aborreço-te?

— É claro que não.

Então o que é? Achas que vamos descobrir que sabemos muito pouco acerca um do outro?

Hesitei. — Sim. A Katie pareceu surpreendida por ser isso mesmo que eu temia.

— Como é que se chama a minha irmã? — disse ela, por fim.

— Não sei.

— Sou religiosa?

— Não estou bem certo.

— Roubo moedas da caixa das gorjetas da cafetaria quando estou com falta de dinheiro?

— Provavelmente.

A Katie inclinou-se para mim, com um sorriso. — Estás a ver? Sobreviveste.

Nunca tinha estado com alguém tão determinado a conhecer-me bem. Ela parecia que nunca tinha dúvidas de que as peças encaixariam na perfeição.

— Agora vamos lá jantar — disse ela, puxando-me pela mão. Nunca mais olhámos para trás.

Oito dias depois do meu sonho com o sátiro, o Paul chegou ao pé de mim com novidades. — Eu tinha razão — disse ele, orgulhoso. — Partes do livro estão escritas em cifra.

— Como é que descobriste?

— Cornuta, a palavra que Jerónimo usa para atribuir os cornos a Moisés, é a resposta que Francesco queria. Mas a maioria das técnicas habitualmente aplicadas para utilizar uma palavra como cifra não funcionam na Hypnerotomachia. Olha...

Mostrou-me uma folha de papel que tinha preparado, com duas linhas de letras paralelas.

 

abcde fghi j klmnopqr s t u v w x y z CORNUTABDEFGHIJKLMPQS VWXY2

 

— Este é um alfabeto cifrado muito básico — disse ele. — A linha de cima é aquilo a que se chama o texto normal, a fila de baixo é o texto cifrado. Vês como o texto cifrado começa com a nossa palavra-chave, cornuta. Depois disso, não passa de um alfabeto normal a que foram retiradas as letras de cornuta para que não apareçam duplicadas.

— Como é que funciona?

O Paul pegou num lápis e começou a fazer círculos à volta das letras. — Digamos que querias escrever «Olá» usando a cifra cornuta. Começavas com o alfabeto em texto simples para encontrares o O, depois vias o seu equivalente no texto cifrado que está por baixo. Neste caso o O corresponde ao J. Fazes o mesmo com as restantes letras e «Olá» ficará «Jgc».

— Foi assim que o Colonna usou o cornuta?

— Não. Nos séculos XV e XVI os italianos tinham sistemas muito mais sofisticados. Alberti, que escreveu o tratado de arquitectura que te mostrei na semana passada, também inventou a criptografia polialfabética. O alfabeto cifrado muda de tantas em tantas letras. Torna-se então muito mais difícil.

Aponto para a sua folha de papel. — Mas o Colonna não usou nada desse género. Ficaria um completo disparate. O livro deveria estar então cheio de palavras como «jgc».

Os olhos do Paul iluminam-se. — Exactamente. Os métodos de cifra complexos não produzem texto legível. Mas o que se passa com a Hypnerotomachia é diferente. O texto cifrado continua a poder ler-se, como um livro.

— Então o Colonna usou enigmas, em vez de linguagem cifrada. Ele assentiu. — Chama-se esteganografia. É como escrever uma mensagem com tinta invisível: a ideia é que ninguém saiba que lá está. O Francesco combinou criptografia com esteganografia. Escondeu enigmas no interior de uma história que parece absolutamente normal, onde não se daria por eles. Depois utilizou os enigmas para criar técnicas de decifração, para tornar mais difícil de compreender a mensagem. Neste caso, o que se tem de fazer é contar o número de letras em cornuta que são sete, e depois ligar entre si cada sétima letra do texto. Não é muito diferente de usar a primeira palavra de cada capítulo. É uma questão de se saber os intervalos certos.

— E funciona? Cada sétima letra do livro?

O Paul abanou a cabeça. — Para o livro todo, não. Só para uma parte. E não, ao princípio não funcionou. Só me saíam coisas sem sentido. O problema é descobrir por onde começar. Se se escolher a sétima letra começando com a primeira, obtém-se um resultado completamente diferente do que se escolher a sétima letra começando com a segunda. É aí que a resposta ao enigma volta a desempenhar um papel.

Tirou mais uma folha do monte, desta vez uma fotocópia de uma página original da Hypnerotomachia.

Aqui mesmo, no meio deste capítulo, está a palavra cornuta, escrita no próprio texto do livro. Se começares com o C de cornuta e escreveres todas as sétimas letras durante os três capítulos seguintes, aí encontras o texto simples do Francesco. O original estava em latim, mas eu traduzi. — Estendeu-me mais uma folha. — Olha.

Caro leitor, este ano que passou foi o mais duro que eu suportei. Separado da minha família, apenas contei com a bondade humana para me confortar e ao viajar pelas águas, tive oportunidade de ver como essa bondade pode ser deficiente. Se for verdade o que Pico disse, que um homem está grávido de possibilidades, que ele é um grande milagre como Hermes Trismegisto proclamou, então onde está a prova de tal coisa? Estou rodeado por um lado pêlos gananciosos e ignorantes, que esperam aproveitar-se do facto de me seguirem e, pelo outro, pêlos invejosos e os falsamente piedosos, que esperam aproveitar-se da minha destruição.

Mas tu, leitor, tu és fiel às minhas crenças, porque se o não fosses, não terias descoberto o que eu escondi aqui. Tu não estás entre aqueles que destroem em nome de Deus, porque o meu texto é seu inimigo e eles são meus inimigos. — iajei por toda a parte em demanda de um receptáculo para o meu segredo, uma maneira de o proteger para o futuro. Romano por nascimento, fui criado numa cidade construída para a eternidade. As muralhas e pontes dos imperadores mantem-se após mil anos e as palavras dos meus antigos conterrâneos multiplicaram-se, actualmente impressas por Aldus e os seus colegas nas suas impressoras. Inspirado pêlos criadores do antigo mundo, eu escolhi o mesmo receptáculo: um livro e uma grande obra de pedra. Juntos eles abrigarão o que dou a ti, leitor, se conseguires descobrir o meu significado.

Para conheceres o que eu te quero dizer, tens de conhecer o mundo tal como nós o conhecemos, que o estudámos mais do que qualquer homem do nosso tempo. Tens de provar que és amante da sabedoria e do potencial do homem, para que eu saiba que não és um inimigo. Porque o mal anda por fora e mesmo nós, os príncipes dos nossos tempos, tememo-lo.

Continua, então, leitor. Procura arduamente o meu significado. A viagen de Políphilo torna-se cada vez mais difícil, tal como a minha, mas eu tenho muito mais para contar.                                              

Volto a página para continuar. — E onde é que está o resto?

— Esse é que é o problema — disse ele. — Temos de descobrir mais para receber mais.

Olho para a página e depois para ele, espantado. Bem no interior da minha mente, num recanto ocupado por pensamentos não pen sados, vem um bater impaciente, o ruído que o meu pai fazia quando estava excitado. Os dedos dele tamborilavam sobre qualquer superfície que estivesse à mão, ao ritmo do Concerto de Natal, de Corelli, com o dobro da velocidade de um movimento allegro.          

— O que é que vais fazer agora? — pergunto eu, tentando manter-me à tona no presente.

Mas de repente, perspectivando a descoberta, surgiu-me uma ideia:

Arcangelo Corelli tinha terminado o seu concerto nos primeiros anos da música clássica, mais do que cem anos antes da Nona Sinfonia de Beethoven. Mesmo no tempo de Corelli, no entanto, a mensagem de Colonna já estava à espera do seu primeiro leitor há mais de dois séculos.

— O mesmo que tu — disse o Paul. — Vamos decifrar o próximo enigma do Francesco.

 

                                   CAPITULO 13

Quando o Gil e eu regressamos ao quarto, entorpecidos pela longa caminhada desde o estacionamento, todos os corredores de Dod estão vazios. Um silêncio imaterial invade todo o edifício. Entre as Olimpíadas Nuas e os festejos da Páscoa, toda a gente teve a sua conta.

Ligo a televisão para saber o que é que aconteceu. Os canais locais transmitem as Olimpíadas Nuas nas últimas notícias, depois de terem tido tempo para montar o material gravado e os corredores em Holder Courtyard flutuam pelo ecrã numa névoa de branco, cintilando atrás do vidro, como borboletas apanhadas num boião transparente.

Por fim, a apresentadora regressa ao ecrã.

— Temos informação de última hora sobre o nosso tema de abertura.

O Gil vem do seu quarto, para ouvir.

— No princípio da noite noticiámos um incidente que pode estar relacionado com a Universidade de Princeton. A esta hora o acidente que ocorreu em Dickinson Hall, que algumas testemunhas descrevem como uma brincadeira de irmandades que terá corrido mal, teve um desfecho trágico. Os responsáveis do Centro Médico de Princeton confirmam que o homem, que foi identificado como sendo um estudante da universidade, morreu. Numa declaração preparada para o efeito, o Chefe da Polícia Daniel Stout repetiu que os investigadores irão continuar a examinar a possibilidade de que, citamos, factores não acidentais tenham tido um papel. Entretanto, os administradores da universidade pedem aos estudantes que se mantenham nos seus quartos ou que se desloquem em grupo no caso de terem de sair nesta noite.

No estúdio, a apresentadora dirige-se ao seu colega. — Trata-se obviamente de uma situação difícil, atendendo ao que vimos hoje em JLIUIUCT nau. — Voltando-se para a câmara, acrescenta: — Reressaremos a esta notícia mais adiante.

— Ele morreu? — repete o Gil, incapaz de acreditar. — Mas eu pensei que o Charlie... — Deixa o pensamento evaporar-se.

— Um estudante da universidade — digo eu.

Após um longo silêncio, o Gil olha para mim. — Não penses nisso Tom. Se fosse isso, o Charlie tinha ligado.

Ao fundo, contra a parede, numa posição incómoda, está a fotografia emoldurada que comprei para a Katie. Ligo o número do gabinete do Tafc, no momento em que o Gil volta do seu quarto e me estende uma garrafa de vinho.

— O que é isto? — pergunto.

O telefone no Instituto toca, toca. Ninguém atende.

O Gil dirige-se ao bar improvisado que tem num canto da sala, para ir buscar dois copos e um saca-rolhas. — Preciso de me descontrair.

Do gabinete do Taft continuam a não atender, portanto, contra vontade, desligo o telefone. Estou quase a dizer ao Gil quanto me sinto mal, quando olho para ele e compreendo que ele está ainda pior do que eu.                                                    — O que é que se passa? — pergunto.                       Enche os copos. Segura um deles na mão, ergue-o na minha direcção e depois bebe um gole.

— Bebe — diz ele. — É bom.

— Sim, sim — digo eu, perguntando-me se ele está apenas a querer companhia para beber. Mas a simples ideia do vinho dá-me volta ao estômago.

Ele está à espera, portanto eu dou um pequenissimo gole. O borgonha arde-me ao descer, mas aparentemente no Gil tem o efeito oposto. À medida que bebe, o seu aspecto vai melhorando.

Pouso o meu copo. A neve atravessa os focos de luz dos candeeiros de iluminação pública ao longe. O Gil esvazi o segundo copo.

— Calma, chefe — digo eu, tentando ser simpático. — Não vais querer chegar ao baile de ressaca.

— Pois, tens razão — concorda ele. — Amanhã às nove tenho de estar com os fornecedores da comida. Devia ter-lhes dito que nem para as aulas eu me levanto tão cedo.

As palavras saem-lhe um bocado bruscas e o Gil parece tentar dominar-se. Pega no controlo remoto que está no chão e diz: — Vamos ver se estão a dar mais alguma coisa.

Três canais diferentes estão a emitir do campus mas parece não haver notícias novas e o Gil levanta-se e põe um filme.

— Férias em Roma*25 — diz ele, voltando a sentar-se. Uma vaga sensação de bem-estar invade-lhe o rosto. De novo Audrey Hepburn. pousa o vinho.

O filme vai correndo e eu vou dando cada vez mais razão ao Gil. Por muito sombrios que sejam os meus pensamentos, acabo por dar atenção à Audrey. Não consigo despregar os olhos dela.

Depois de um bocado, a atenção do Gil parece toldar-se um pouco. Será do vinho? penso eu. Mas quando ele esfrega a testa e fica demasiado tempo a olhar para as mãos, pressinto que há algo mais. Talvez esteja a pensar na Anna, que acabou com ele durante os dias em que eu fui a casa. O Charlie disse-me que a culpa tinha sido dos prazos da tese e dos preparativos para o baile, mas o Gil nunca quis falar no assunto. Anna fora sempre um mistério para nós, desde o primeiro momento; ele quase nunca a trazia à residência e contudo, segundo me disseram, em Ivy nunca se separavam. Ela foi a primeira das suas namoradas que nunca chegou a identificar qual de nós é que atendia o telefone, a primeira que por vezes se esquecia do nome do Paul e nunca vinha à residência se soubesse que o Gil não estava.

— Sabes com quem é que eu acho a Audrey Hepburn parecida? — pergunta subitamente o Gil, apanhando-me desprevenido.

— Com quem? — pergunto eu, voltando a ligar o número do gabinete do Taft.

Sou apanhado de surpresa. — A Katie.

— O que é que te fez pensar nisso?

— Não sei. Estive a olhar para vocês esta noite. Ficam muito bem juntos.

Diz isto como se estivesse a querer pensar em qualquer coisa fiável. Queria dizer-lhe que a Katie e eu também temos tido os nossos altos e baixos e que ele não é o único a ter problemas com uma relação, mas não seria a coisa certa para dizer nesta altura.

— Ela é o teu género Tom — continua ele. — E inteligente. Muitas vezes nem sequer compreendo o que ela diz.

Continuam a não atender e eu desligo o telefone. — Onde é que ele estará?

— Ele liga. — O Gil inspira profundamente, tentando não pensar nas possibilidades. — Há quanto tempo é que andas com a Katie?

— Faz quatro meses na quarta-feira.

 

25 Roman Holday (1953, EUA) — filme de Wiliam Wyler, com Audrey Hepburn e Gregory Peck. (NT)

 

O Gil abana a cabeça. Ele já começou e acabou por três vezes desde que a Katie e eu nos conhecemos.                              

— Nunca pensas se será ela a pessoa certa?                     É a primeira vez que alguém me faz tal pergunta.              

— Às vezes. Gostava que tivéssemos mais tempo um para o outro. O ano que vem preocupa-me.

— Devias ouvi-la a falar de ti. É como se se conhecessem desde crianças.                                                              

— Como assim?                                          

— Uma vez encontrei-a em Ivy, a gravar um jogo de basquetebol para ti, na televisão lá de cima. Disse que era porque tu e o teu pai costumavam ir juntos ver o Michigan-Ohio State.                

Nem sequer lhe tinha pedido para o fazer. Ela não via basquetebol antes de nos conhecermos.

— Tens sorte — diz ele.

Aceno com a cabeça, concordando.

Falamos um pouco mais sobre a Katie e depois o Gil regressa lentamente à Audrey. A expressão dele ilumina-se, mas apercebo-me de que os velhos pensamentos estão de volta. Paul. Anna. O baile. Daí a pouco volta a pegar na garrafa. Estou quase a lembrar-lhe que já bebeu o suficiente quando se ouve no corredor um som arrastado. A porta abre-se e, na luz pálida da entrada, recorta-se o vulto do Charlie. Está com péssimo aspecto. Tem manchas de sangue nos punhos.

— Estás bem? — pergunta o Gil, levantando-se.

— Temos de falar — diz o Charlie, com uma voz preocupada.

O Gil tira o som à televisão.

O Charlie vai até ao frigorífico e tira uma garrafa de água. Bebe metade e depois deita alguma nas mãos, para molhar a cara. O olhar dele está vazio. Por fim, senta-se e diz: — O homem que caiu de Dickinson era o Bill Stein.

— Meu Deus — suspira o Gil. Sinto-me gelar. — Não compreendo. O Charlie confirma-o pela expressão no seu rosto. — Estava no seu gabinete no departamento de História. Alguém entrou e alvejou-o.

— Quem?

— Não sabem.

— Como assim, não sabem?

Faz-se um silêncio. Charlie fixa o meu rosto. — O que é que dizia a mensagem no pager? O que é que o Bill Stein queria do Paul?

— Já te disse. Queria dar ao Paul um livro que encontrou. Eu não acredito, Charlie!

— Não disse mais nada? Aonde é que ele ia? Com quem é que se ia encontrar?

Abano a cabeça. Depois, lentamente, lembro-me de uma coisa que eu tinha confundido com paranóia: os telefonemas que o Bill recebera, os livros que alguém mais andava a controlar.

À medida que lhes vou contando, uma onda de medo invade-me.

— Merda — rosna o Charlie. Pega no telefone.

— O que é que estás a fazer? — pergunta o Gil.

— A polícia vai querer falar contigo — diz-me o Charlie. — Onde é que está o Paul?

— Meu Deus. Não sei, mas tenho de o encontrar. Estou farto de tentar ligar para o gabinete do Taft no Instituto, mas ninguém atende.

O Charlie olha para nós, impacientemente.

— Ele está bem, com certeza — diz o Gil e, para mim, só pode ser o efeito do vinho. — Acalmem-se.

— Não estava a falar contigo — diz secamente o Charlie.

— Talvez esteja em casa do Taft — sugiro. — Ou no gabinete do Taft no campu.

— Quando a policia precisar dele, encontra-o de certeza — afirma o Gil, com expressão endurecida. — Não nos devemos meter nisto. O Charlie volta-se. — Dois de nós estão já metidos nisto. O Gil, em tom de troça: — Ora não me lixes, Charlie. Desde quando é que tu estás metido nisto?

— Não sou eu, imbecil. O Tom e o Paul. Há mais nós do que apenas tu.

— Olha, não venhas com merdas para cima de mim. Estou farto dessa tua mania de te meteres nos problemas de toda a gente.

O Charlie inclina-se para a frente, levanta a garrafa da mesa e atira-a para o lixo. — Já tens a tua dose.

Por um segundo, temo que o vinho vá fazer o Gil dizer qualquer coisa que todos venhamos a lamentar. Porém, depois de olhar de olhos muito abertos para o Charlie, levanta-se do sofá. — Meu Deus — diz ele. — Vou para a cama.

Fico a olhar para ele, que se retira para o quarto sem proferir nem mais uma palavra. Um segundo depois, a luz por baixo da porta apaga-se.

Os minutos passam e dir-se-ia que são horas. Tento de novo ligar para o Instituto, mas não tenho sorte, portanto, o Charlie e eu sentamo-nos na sala comum à espera, sem que algum de nós diga uma palavra. A minha mente move-se demasiado rapidamente para que os meus próprios pensamentos façam sentido. Olho pela janela e a voz do Stein infiltra-se nos meus pensamentos.

Estou sempre a receber aqueles telefonemas. Atendo... clique. Atendo... clique.

Por fim, o Charlie levanta-se. Tira uma toalha do armário e começa a organizar a sua bolsa de toilette. De boxers e sem dizer palavra, dirige-se para a porta. A casa de banho dos homens fica ao fundo do corredor; entre a casa de banho e o nosso quarto vivem meia dúzia de mulheres finalistas, mas o Charlie não se importa e sai, com a toalha ao pescoço, como uma canga, e a bolsa na mão.            

Voltando-me a sentar no sofá, pego no Daily Princetonian de hoje. Para me distrair, vou folheando as páginas, à procura de uma fotografia assinada pela Katie em qualquer cantinho do jornal, onde vão fatalmente parar as colaborações dos estudantes mais novos. Tenho sempre imensa curiosidade nas fotografias que ela tira, nos novos temas que escolhe. As que ela acha que são tão pouco importantes que não vale a pena falar nelas. Depois de termos andado com alguém durante um certo tempo, temos a ideia de que ela vê as coisas todas da mesma forma que nós. As fotografias da Katie são como que uma correcção a esta perspectiva, uma visão do mundo através dos seus olhos.

Pouco depois ouço um som à porta, deve ser o Charlie que regressa do chuveiro. Mas quando ouço uma chave na fechadura, percebo que é outra pessoa. A porta entreabre-se e vejo entrar o Paul. O rosto dele está pálido e os lábios azuis, do frio.

— Estás bem? — pergunto.

O Charlie regressa mesmo a tempo. — Onde é que estiveste? — pergunta ele.

Tendo em conta o estado em que o Paul se encontra, são necessários quinze minutos para compreender os pormenores. Depois de ter saído da conferência, foi ao Instituto à procura do Bill Stein, na sala dos computadores. Uma hora mais tarde, dado que o Stein não aparecia, o Paul decidiu regressar à residência. Arrancou no seu carro, mas ele avariou num semáforo a poucos quilómetros do campus. depois teve de regressar a pé pela neve.

O resto da noite, diz ele, é como um borrão. Chegou à zona norte do campus e encontrou os carros da polícia em Dickinson, ao pé do gabinete do Bill. Depois de lhe terem feito uma data de perguntas, levaram-no ao centro médico, onde lhe pediram para identificar o corpo. Pouco tempo depois, o Taft apareceu no hospital, confirmando a identificação, mas antes de ele e o Paul terem tido oportunidade de falarem, os polícias separaram-nos para interrogatório. A polícia queria saber qual era a sua relação com o Stein e o Taft e quando é que tinha visto o Bill pela última vez e onde é que ele estava à hora do crime. O Paul colaborou, meio aturdido. Quando finalmente o libertaram, pediram-lhe para não sair do campus e disseram que o voltariam a contactar. Por fim, chegou a Dod, mas fícou nos degraus lá fora, durante um bocado, porque precisava de estar só.

Por fim, discutimos a conversa que ele tinha tido com o Stein na Sala dos Livros Raros, que o Paul disse que a polícia anotara integralmente. Enquanto fala do Bill, de como o Stein estava agitado na biblioteca, acerca do grande amigo que perdera, o Paul não manifesta grande emoção. Ainda não recuperou do choque.

— Tom — diz ele por fim, quando regressamos ao quarto —, preciso de que me faças um favor.

— Claro — digo eu. — Qual?

— Preciso de que venhas comigo. Hesito. — Aonde?

— Ao museu de arte.

Ele está a vestir uma roupa seca.

— Agora? Porquê?

O Paul esfrega a testa, como que a afastar uma dor de cabeça. — Pelo caminho eu explico-te.

Quando regressamos à sala comum, o Charlie olha para nós como se tivéssemos enlouquecido. — A esta hora? — pergunta ele. — O museu está fechado.

— Eu sei o que é que estou a fazer — diz o Paul, dirigindo-se já para o corredor.

O Charlie lança-me um olhar carregado, mas não diz nada quando me vê sair atrás do Paul.

O museu de arte fica num antigo palácio mediterrânico, no outro extremo do pátio, em frente de Dod. Pela frente, por onde entrámos apenas há algumas horas, parece um edifício baixo com uma escultura de Picasso na relva fronteiriça que faz lembrar um bebedouro para pássaros sofisticado. Contudo, quando nos aproximamos pela lateral, os elementos mais recentes dão lugar aos mais antigos, bonitas janelas em arcos românicos e telhas vermelhas que, esta noite, espreitam sob a camada de neve. Noutras circunstâncias, a vista seria encantadora. Noutras circunstâncias, poderia dar uma bonita fotografia para a Katie tirar.

— O que é que estamos a fazer? — pergunto. O Paul está a abrir caminho à minha frente, com as suas velhas botas de operário.

— Encontrei o que o Richard pensava que estava no diário dele. Parece-me o meio de um pensamento cujo início ele está a guardai para si mesmo.

— A planta? Ele abana a cabeça. — Quando estivermos lá dentro, eu mostro-te. Caminho nas suas pegadas, para evitar enfiar as calças na neve. Os meus olhos estão fixos nas suas botas. Quando era caloiro, o Paul trabalhou nas cargas e descargas do museu durante o Verão, carregando e descarregando as exposições em camiões. Nessa altura as botas eram indispensáveis, mas esta noite deixam pegadas sujas na brancura imaculada do pátio. Ele costumava fazer-nos visitas guiadas ao museu de arte, mas por fim teve de aceitar um trabalho no arquivo de slides porque os auxiliares não eram pagos.                    

Para minha surpresa, a porta abre-se com um bip e um clique quase imperceptíveis. Estou tão habituado aos fechos das portas da residência que parecem fechaduras medievais que quase não o ouço. Ele conduz-me para uma pequena antecâmara, uma sala de segurança vigiada por um guarda que está atrás de uma janela de vidro blindado e de repente sinto-me apanhado numa armadilha. Depois de termos assinado um impresso de visitante e passado pelo vidro os nossos cartões de identificação da Universidade, é-nos aberta a entrada para a biblioteca dos auxiliares, que fica do outro lado da porta seguinte.

— É assim tão simples? — pergunto eu, que esperava encontrar àquela hora mais dispositivos de segurança.

O Paul aponta para uma câmara de vídeo na parede, mas não diz nada.

A biblioteca dos auxiliares é pouco impressionante — umas estantes de livros de História da Arte doados por outros guias, para ajudar a preparar as visitas guiadas — mas o Paul continua a dirigir-se para um elevador que fica depois da curva. Uma grande tabuleta nas portas de correr metálicas diz: RESERVADO À FACULDADE, PESSOAL E SEGURANÇA. ACESSO INTERDITO A ESTUDANTES E AUXILIARES SEM ACOMPANHANTES. As palavras estudantes e auxiliares estão ambas sublinhadas a vermelho.

O Paul está a olhar para outro lado. Tira uma argola com chaves do bolso e introduz uma delas numa ranhura na parede. Quando a faz rodar para a direita, as portas de metal abrem-se, deslizando.

— Onde é que arranjaste isso?

Ele faz-me entrar para o elevador e depois carrega num botão.

— É aqui que trabalho — indica ele.

A biblioteca de diapositivos dá-lhe acesso às salas de arquivo do museu. Ele é tão escrupuloso com o seu trabalho que conquistou a confiança de quase toda a gente.

— Aonde vamos? — pergunto.

— Lá acima, à sala de imagens. Onde o Vincent guarda os carregadores de diapositivos.

O elevador deixa-nos no piso principal do museu. O Paul guia-me através dele, ignorando os quadros que já me mostrou dezenas de vezes — o grande Rubens com o Júpiter de sobrolho carregado, a Morte de Socrates inacabada, com o velho filósofo a estender a mão para o copo de cicuta. Só quando passamos pêlos quadros que o Curry trouxe para a exposição é que os olhos de Paul se detêm.

Chegamos à porta da biblioteca de diapositivos e ele volta a tirar as chaves. Uma delas encaixa na fechadura sem ruído e entramos na escuridão.

— Por aqui — diz ele, apontando para uma fila de estantes carregadas de caixas poeirentas. Cada caixa contém um carregador de diapositivos. Atrás de uma outra porta fechada, numa sala grande que eu só vi uma vez, está a maior parte da colecção de diapositivos de arte da universidade.

O Paul encontra o conjunto de caixas que procurava, tira uma da pilha e coloca-a na prateleira à sua frente. De lado tem segura com fita-cola uma nota, numa escrita desleixada, que diz MAPAS: ROMA. Tira a tampa e leva a caixa para o pequeno espaço livre ao lado da entrada. De uma outra prateleira tira um projector de diapositivos, que liga à tomada na parede perto do chão. Por fim, liga um interruptor e uma imagem desfocada aparece na parede oposta. O Paul ajusta o foco até a imagem ficar nítida.

— Pronto — digo eu. — E agora diz-me o que é que estamos aqui a fazer.

— E se o Richard tivesse razão? — diz ele. — E se o Vincent lhe roubou realmente o diário há trinta anos?

— Provavelmente foi o que aconteceu. E o que é que isso interessa agora?

O Paul faz-me acelerar o raciocínio. — Imagina que te encontras na posição do Vincent. O Richard passa a vida a dizer-te que o diário é a única forma de compreender a Hypnerotomachia. Tu pensas que não passa de fogo de vista, que é apenas um puto de escola com uma licenciatura em História da Arte. E então aparece mais alguém. Outro académico.

O Paul diz isto com um certo respeito. Penso que estará a referir-se ao meu pai.

— De repente quem está fora és tu. Ambos dizem que o diário é a resposta. Mas tu encurralaste-te a ti próprio. Disseste ao Richard que o diário é inútil e que o capitão do porto era um charlatão. E, acima de tudo, detestas não ter razão. O que é que fazes agora?

O Paul está a tentar convencer-me de uma possibilidade que eu nunca tive dificuldade em aceitar: que Vincent Taft é um ladrão.

— Estou a ver — assinto eu. — Continua.

— Portanto, arranjas forma de roubar o diário. Mas não te serve para nada, porque tens estado a ler a Hypnerotomachia de uma forma errada. Sem as mensagens cifradas do Francesco, não sabes o que hás-de fazer com o diário. E agora?                              

— Não sei.

Não o vais deitar fora — diz ele, ignorando-me —, só porque não o compreendes.

Aceno em concordância.

— Portanto, ficas com ele. Num lugar seguro. Talvez no cofre do teu gabinete.

— Ou em casa.

— Exacto. Depois, anos mais tarde, o puto aparece e ele e o amigo começam a fazer progressos na Hypnerotomachia. Mais do que tu esperavas. De facto, mais do que tu fizeste. Ele começa a descobrir as mensagens de Francesco.

— E começas a pensar que afinal o diário pode ter a sua utilidade.

— Exacto.

— E não dizes nada ao puto, porque então ele ia perceber que tu o tinhas roubado.

— Mas — continua o Paul, uma vez chegados a este ponto — supõe que um dia alguém o encontra.

— O Bill.

O Paul acena afirmativamente. — Ele esteve sempre no gabinete do Vincent, em casa do Vincent, ajudando em todos os pequenos projectos que o Vincent achou por bem entregar-lhe. E ele sabia o que esse diário significava. Se o encontrasse, não se limitaria a voltar a pô-lo no mesmo lugar.

— Ter-to-ia trazido.

— Correcto. E nós iríamos mostrá-lo ao Richard. E então o Richard confrontou o Vincent na conferência.

Estou um bocado céptico. — Mas então o Taft não se aperceberia de que ele tinha desaparecido antes disso?

Está claro que sim. Ele tinha de saber que o Bill o tinha levado. Mas qual pensas que foi a reacção dele quando percebeu que o Richard também estava ao corrente? A primeira coisa em que pensaria seria em ir à procura do Bill.

Agora compreendo. — Tu achas que ele foi ao gabinete do Stein depois da conferência.

— O Vincent esteve na recepção?

Considero a pergunta retórica até que me lembro de que o Paul não esteve lá; ele já tinha ido à procura do Stein.

— Não, pelo menos que eu visse.

— Há um corredor que liga Dickinson e o auditório — afirma ele. — O Vincent nem sequer teve de sair do edifício para lá chegar.

O Paul faz uma pausa, para que a informação assente. A hipótese anda toscamente à deriva pêlos meus pensamentos, ligada a mil outros pormenores.

— Pensas mesmo que o Taft o matou? — pergunto. Das sombras da sala toma forma uma estranha silhueta: Epp Lang a enterrar um cão debaixo de uma árvore.

O Paul olha fixamente para os contornos projectados na parede. — Acho que ele é capaz disso.

— De fúria?

— Não sei. — Mas parece-me que ele já construiu na sua cabeça todos os enredos possíveis. — Ouve — diz ele —, quando eu estava à espera do Bill no Instituto, comecei a ler o diário com mais atenção, procurando qualquer referência a Francesco.

Abre-o e no interior da capa está uma página de notas que ele escreveu em papel timbrado do Instituto.

— Encontrei a referência em que o capitão do porto faz alusão ao conjunto de direcções que o ladrão copiou dos papéis de Francesco. O genovês diz que estavam escritas num bocado de papel que não continha mais nada e que deveriam formar uma espécie de rota naval, qualquer coisa referente à trajectória que o barco de Francesco teria tomado. O capitão do porto tentou imaginar de onde teria vindo o cargueiro, recuando a partir de Génova.

Quando o Paul desdobra o papel, vejo um esquema de setas desenhado ao lado de uma bússola.

— As direcções são estas. Estão em latim. Dizem: quatro Sul, dez Leste, dois Norte, seis Oeste. Depois diz De Stadio.

— O que é De Stadio?

O Paul sorri. — Creio que aí é que está a chave. O capitão do porto levou isto ao primo, que lhe disse que De Stadio era a escala que acompanhava as direcções. Pode ser craduzido por «Em Estádios» significando que as direcções seriam medidas em estádios.

— Não percebo.

— O estádio é uma unidade de medida da antiguidade, baseada no comprimento de uma pista de corridas nos Jogos Olímpicos gregos; é daí que vem a nossa palavra actual. Um estádio equivale aproximadamente a cenco e oitenta metros, portanto, num quilómetro existem cinco a seis estádios.

— Então quatro Sul significa quatro estádios para sul,

— E dez para leste, dois para norte e seis para oeste. Isto lembra-te alguma coisa?

Lembra: no seu enigma final, Colonna referia-se ao que ele chamava a Regra de Quatro, o instrumento que levaria os leitores a decifrar a escrita codificada secreta. Mas nós desistimos de procurar, porque no próprio texto não havia nada remotamente relacionado , com geografia. — Achas que é isto? Estas quatro direcções?

Paul acena afirmativamente. — Mas o capitão do porto estava à procura de alguma coisa numa escala muito maior, uma viagem de centenas e centenas de quilómetros. Se as direcções de Francesco são em estádios, então o barco não poderia vir de França ou da Holanda. Deveria ter iniciado a sua viagem a menos de um quilómetro a sul de Génova. O capitão do porto sabia que isso não era possível.

Noto a satisfação do Paul ao pensar que ultrapassou a astúcia do capitão do porto. — Achas, portanto, que as direcções se referem a outra coisa.

Ele faz uma pausa muito breve. — De Stadio não tem obrigatoriamente de significar «Em Estádios». De pode também referir a partir de.

Ele olha para mim, cheio de expectativa, mas a beleza desta nova tradução escapa-me.

— Talvez as medidas não sejam apenas em estádios, ou seja, medidas nessa unidade — diz ele. — Talvez sejam medidas a partir de um estádio. Um esttádio poderia ser o ponto de partida. De Stadio poderia então ter um duplo significado... segues uma direcção a partir de um estádio, construção física, em estádios, medida.

Ele foca o mapa de Roma projectado na parede. A cidade está cheia de antigas arenas. Colonna deveria conhecê-la melhor do que qualquer outra cidade no mundo.

— Assim resolve-se o problema de escalas que o capitão do porco tinha — continua o Paul. — Não podes medir a distância entre países com meia dúzia de estádios. Mas podes medir as distâncias dentro de uma cidade. Plínio diz que a circunferência das muralhas da cidade de Roma no ano 75 d. C. era de cerca de vinte e um quilómetros. A cidade toda deveria medir entre vinte e cinco a trinta estádios.

— E achas que isso nos conduz à cripta? — pergunto.

— Francesco menciona que queria construí-la onde ninguém a visse. Ele não quer que ninguém saiba o que está lá dentro. Talvez este seja o único caminho para descobrir a localização.

À minha mente regressam meses de especulação. Passámos muitas noites a imaginar por que é que Colonna iria construir a sua cripta nas florestas romanas, escondida da família e dos amigos, mas o Paul nunca concordava com as conclusões.

— E se a cripta for mais do que aquilo que pensamos? — diz ele. — E se a localização for o segredo?

— E então, o que é que estará lá dentro? — interrogo eu, recapitulando a questão.

A atitude dele transforma-se em desânimo — Não sei, Tom. Ainda não pensei nisso.

— Estou só a dizer se não achas que o Colonna não poderia...

— Ter-nos dito o que estava dentro da cripta? É claro que sim. Mas a segunda parte do livro depende inteiramente da última mensagem cifrada e eu não a consigo resolver. Sozinho, pelo menos. Portanto, o diário é a resposta. Certo?

Desisto.

— Portanto, o que temos de fazer — continua o Paul — é observar alguns destes mapas. Começamos pêlos estádios com maior área... o Coliseu, o Circus Maximus e por aí fora, e deslocamo-nos quatro estádios para sul, dez para leste, dois para norte e seis para oeste. Se algum desses locais tiver sido uma floresta no tempo de Colonna, então assinalamo-lo.

— Vamos ver — digo eu.

O Paul carrega no botão para avançar e passa por uma série de mapas feitos nos séculos quinze e dezasseis. Têm a qualidade de caricaturas arquitectónicas, com os edifícios desenhados em desproporção com o que os cerca, encavalitados uns sobre os outros até os espaços entre eles serem impossíveis de avaliar.

— Como é que conseguimos medir as distâncias aqui? — pergunto.

Ele responde-me fazendo avançar mais uns diapositivos. Depois de mais três ou quatro mapas do Renascimento, aparece um moderno. A cidade parece-se mais com o que eu me lembro dos livros que o meu pai me deu antes da nossa viagem ao Vaticano. A Muralh Aureliana, a norte, leste e sul e o Tibre a oeste desenham o perfil de uma velha a olhar para o resto de Itália. A igreja de San Lorenzo onde Colonna mandou matar os dois homens, paira como uma mosca mesmo em frente do arco do nariz da velha.                  

— Este tem a escala mais correcta — diz o Paul, apontando para as medidas no canto superior esquerdo. Numa linha única estão marcados oito estádios, com a legenda ANTIGA MILHA ROMANA.

Ele dirige-se ao mapa na parede e coloca a mão ao lado da escala. Da base da palma da mão até à ponta do dedo médio, cobre os oit estádios.                                                    

— Vamos começar pelo Coliseu. — Ajoelha-se no chão e coloca a mão junto de um oval escuro no meio do mapa, perto da face da velha. — Quatro para sul — diz ele, deslocando um palmo para baixo —, dez para leste. — Desloca uma mão inteira e depois acrescenta meio indicador. — Dois para norte e seis para oeste.              

Quando termina, está a apontar para um local com a legenda M. CELIUS.

— Achas que é aí?

— Não, aqui não — diz ele, desanimado. Indica um círculo escuro no mapa, a sudoeste do ponto encontrado e diz: — Aqui fica uma igreja. San Stefano Rotondo. — Muda o dedo para nordeste.

— E aqui, outra, Santi Quattro Coronati. E aqui — desloca o dedo para sudeste — São João de Latrão, onde viviam os papas até ao século XIV. Se Francesco tivesse construído a sua cripta aqui, ela teria ficado a menos de meio quilómetro de três igrejas diferentes. Não há hipótese.

Começa de novo. — O Circus Flaminuis — indica ele. — Este mapa é velho. Creio que o Gatti o colocou mais para aqui. — Desloca o dedo para mais perto do rio e repete as direcções.

— Bom ou mau? — digo eu, olhando para o local, mais ou menos por cima do Monte Palatino.

Ele franze o sobrolho. — Mau. Fica quase no meio de San Teodoro.

— Mais uma igreja?

Ele acena afirmativamente.

— Tens a certeza de que Colonna não a teria construído perto de uma igreja?

Ele olha para mim como se eu me tivesse esquecido da regra máxima. — Todas as mensagens dizem que ele tinha horror a ser apanhado pêlos fanáticos. Os «homens de Deus». Como é que tu interpretas isto?

Perdendo a paciência, tenta mais duas possibilidades — o Circo de Ariano e o antigo Circo de Nero, sobre o qual foi construído o Vaticano — mas, em ambos os casos, o rectângulo de vinte e dois stádios fica praticamente no meio do Tíbre.

— Há um estádio em cada canto deste mapa — digo-lhe eu. — Por que é que não pensamos onde é que a cripta poderia estar e depois verificamos se existe um estádio perto?

Ele reflecte. — Tenho de verificar nos meus outros atlas, em Ivy.

— Voltamos aqui amanhã.

O Paul, cuja reserva de optimismo está a esgotar-se, fixa o mapa por um momento e depois acena com a cabeça. Colonna voltou a vencê-lo. Mesmo o capitão de porto espia foi ludibriado.

— E agora? — pergunto eu.

Ele abotoa o casaco e desliga o projector. — Quero investigar a secretária do Bill, na biblioteca, lá de baixo. — Devolve o projector de diapositivos ao seu lugar, tentando deixá-lo como o encontrou.

— Para quê?

— Para ver se está lá mais alguma coisa do diário. O Richard insiste em que havia uma planta dobrada lá dentro.

Abre a porta e segura-a para eu sair, verificando a sala antes de fechar.

— Tens uma chave da biblioteca?

Ele abana a cabeça. — O Bill ensinou-me o código para a caixa da escada.                                                            

Voltamos à escuridão do corredor e deixo-me conduzir pelo Paul. As luzes laranja da segurança piscam no escuro como aviões a cruzar a noite. Chegamos a uma porta que dá para uma escada. Por baixo do puxador está uma caixa com cinco botões numerados. O Paul pensa durante um segundo e depois começa a premir uma sequência curta. Quando o puxador cede sob a sua mão, ficamos ambos imóveis. No silêncio, ouvimos qualquer coisa a arrastar.

 

 

                                                    CONTINUA / Parte 2

 

 

                                             CAPÍTULO 14

— Embora — digo eu, movendo apenas os lábios, ao mesmo tempo que empurro o Paul para a porta da biblioteca.

Espreitamos para a escuridão da sala através de uma pequena janela formada por uma placa de vidro de segurança, aberta no painel.

Uma sombra desliza por uma das secretárias. Um feixe de luz varre a superfície. Vejo uma mão que remexe numa gaveta.

— É a secretaria do Bill — sussurra o Paul. A voz dele ressoa pela caixa da escada. O feixe de luz imobiliza-se e depois volta-se na nossa direcção.

Empurro o Paul para debaixo da janela.

 

 

Parte 2

 

 

— Quem é? — pergunto eu.

— Não consegui ver.

Esperamos, escutando para ver se ouvimos passos. Quando se afastam, espreito para a sala. Está vazia.

O Paul empurra a porta. O espaço está todo mergulhado nas longas sombras das estantes. O luar reflecte-se nos vidros das janelas a norte. As gavetas da secretária de Stein ainda estão abertas.

— Há mais alguma saída? — sussurro quando nos aproximamos.

O Paul acena, apontando com a cabeça para lá de uma série de estantes que se erguem até ao tecto.

Subitamente os passos regressam, deslocando-se na direcção da saída, seguidos por um clique. A porta encaixa suavemente.

Dirijo-me na direcção do som.

— O que é que estás a fazer? — murmura o Paul. Faz-me sinal para regressar para o pé dele, ao lado da secretária.

Espreito pelo vidro de segurança para a caixa da escada, mas não vejo nada.

O Paul está a a esquadrinhar os papéis do Stein, fazendo incidir a sua lanterna de bolso sobre um monte de notas e cartas. Aponta para uma gaveta, cuja fechadura foi forçada. Os ficheiros estão cá fora, espalhados em cima da secretária. Cantos de papel curvam-se como relva por cortar. Parece haver uma pasta para cada professor do departamento de História.

 

RECOMENDAÇÃO: PRESIDENTE WORTHINGTON

REC (A-M): BAUM, CARTER, GODFREY, LI

REC (N-Z): NEWMAN, ROSSINI, SACKLER, WORTHINGTON (ANTERIOR À PRESIDÊNCIA)

REC (OUTROS DEPARTAMENTOS): CONNER, DELFOSSE, LUTKE, MASON, QUINN

CORRESPONDÊNCIA ANTIGA: HARGRAVE/WILLIAMS, OXFORD

CORRESPONDÊNCIA ANTIGA: APPLETON, HARVARD

 

 

                      

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