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A RIVAL DE ARSENE LUPIN / Maurice Leblanc
A RIVAL DE ARSENE LUPIN / Maurice Leblanc

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A RIVAL DE ARSENE LUPIN

 

                       O CASTELO DE ROBOREY

        Sob um céu pejado de estrelas, ao qual se agarrava o quarto minguante, dormia sobre a relva da estrada a carroça dos saltimbancos, de postigos fechados, com os varais estendidos como braços.   Na sombra do barranco vizinho, um cavalo roncava e suspirava.

        Muito ao longo, por cima da crista negra das colinas, uma faixa mais clara anunciava a aproximação da aurora. Um relógio de igreja bateu quatro horas. De distância a distância despertaram alguns pássaros e começaram a cantar. A temperatura estava suave e tépida.

        De súbito, do interior do carro, uma voz feminina gritou:

        ?Saint-Quentin! Saint–Quentin !

       E uma cabeça passou pelo óculo que dava para a boléia, sob a aba:

        ? É isso mesmo! Eu já desconfiava! O patife deu o fora esta noite. Que animal! Que animal! Que correção!

        Outras vozes lhe responderam. Transcorreram dois ou três minutos. A seguir abriram a porta e um vulto desceu os cinco degraus da escada, enquanto apareciam à janela do lado duas cabeças desgrenhadas.

        — Aonde vais, Dorotéia?

        — Procurar Saint-Quentin! — replicou a jovem a quem chamavam de Dorotéia.

        —Mas ele voltou do passeio contigo ontem à noite e eu o vi deitar-se na sua cadeira.

        —Bem vês que não está mais ali, Castor.

        —Onde está?

        —Paciência! Vou trazê-lo de volta pelas orelhas.

        Mas dois garotos saltaram da carroça, em camisa, e suplicaram:

        —Não, Mamãe Dorotéia...   não vás sozinha no escuro, é perigoso...

        —Que estás a dizer, Pólux? Perigoso! Tens alguma coisa com isto?

        Ela o mimoseou com bofetadas e pontapés e rapidamente reconduziu os dois até o carro, onde se enfurnaram. Lá, trepada num tamborete, segurou as duas cabeças, que encostou à sua com força, e beijou-as ternamente.

        —Nada de mau humor, meus guris. Perigo? Daqui a meia hora, encontro de novo Saint-Quentin.

        —Essa é boa!... Saint-Quentin... um tipo que não tem nem dezesseis anos...

        —Ao passo que Pólux e Castor têm vinte... em conjunto! — exclamou Dorotéia.

        —E de mais a mais, por que é que ele desaparece assim durante a noite? E não é a primeira vez. . . Onde irá fazer expedições?

        —Furtar coelhos com o laço, — disse a moça —Vêem, não é muito grave... Vamos, chega de conversa. Os meninos vão "mimir". E, principalmente, não briguem, hem? Castor e Pólux. Não quero barulho!   O capitão está dormindo e ele não gosta que o acordem!

        Dorotéia se afastou, saltou por cima do fosso, atravessou uma campina, onde seus pés patinhavam em poças de água, e tomou um atalho que serpenteava entre duas moitas novas que lhe ficavam à altura do pescoço.

        Já por duas vezes, na véspera, passeando com seu amigo Saint-Quentin, seguira aquela pista mal traçada, de modo que avançava afoitamente, sem a menor hesitação. Atravessou duas estradas, chegou perto de um rio cujo leito, formado de peixinhos brancos, brilhava sob a água serena, meteu-se por ele, subindo contra a corrente, como se quisesse que suas pegadas se perdessem, e, quando os primeiros clarões do dia principiavam a dar às coisas formas distintas, lançou-se de novo através do bosque, leve, graciosa, mais pequena que alta, com as pernas nuas a sair de uma saia muito curta, que deixava flutuarem atrás dela fitas multicores.

        Corria sem esforço, evitando esmagar com os pés, entre as folhas mortas, as flores da primavera em início — o junquilho, as anêmonas roxas ou os brancos narcisos.

        Seus cabelos negros, quase nada compridos, apartavam-se em duas massas que batiam como asas. O rosto sorridente, a boca entreaberta, as narículas palpitantes, os olhos semicerrados, tudo exprimia a sua satisfação em correr e respirar o ar fresco da manhã. O pescoço, longo e flexível, surgia de uma blusa de fazenda cinza, fechada por um lenço de seda cor de laranja. Parecia ter quinze ou dezesseis anos de idade.

        Acabou-se a mata. Entre dois paredões de rochas abriu-se um vale que repentinamente descrevia uma curva. Dorotéia estacou. Atingia a meta.

        À sua frente, sobre um pedestal de granito regularmente talhado, e da altura de trinta metros no máximo, projetava-se o corpo principal de um castelo, que em si, não tinha grande estilo, mas ao qual a sua posição e o desenvolvimento de sua construção davam um caráter de mansão senhorial. À direita e à esquerda, o vale, apertado num barranco, parecia circundá-lo como um fosso antigo. Diante de Dorotéia, porém, o espaço era amplo e formava um talude ligeiramente ondulado, esparso de pesadas pedras, cortado por sebes de espinhos, e cujo limite era o alcantil quase a prumo do pedestal.

        "Está dando cinco horas e três quartos", disse a jovem de si para si. "Saint-Quentin não tardará."

        Agachou-se por trás de enorme tronco de árvore desenraizada e olhou fixamente a linha de demarcação entre o castelo, propriamente, e o rochedo que lhe servia de base. Um pequeno rebordo se estendia ao longo dessa linha, sob as janelas do rés-do-chão, e havia um ponto daquela exígua cornija aonde ia ter um corte transversal da penedia, muito fino, qualquer coisa como uma fenda na superfície de um muro.

        Na véspera, durante o passeio, Saint-Quentin, com o dedo apontado para o corte, dissera-lhe: "Há pessoas que se julgam seguras, e no entanto nada é mais fácil do que alguém se içar até uma das janelas... Olha, ali justamente está uma entreaberta... a janela de uma copa..."

        Não tinha dúvidas Dorotéia de que essa idéia da escalada se tivesse imposto a Saint-Quentin e que, na mesma noite, tentasse ele alguma expedição furtiva. Depois, que lhe teria acontecido? Não estaria ninguém no aposento em que ele entrara daquela maneira? Sem conhecer o local que ia explorar, nem os hábitos do pessoal do castelo, não se teria deixado apanhar? Ou então, mais provável, aguardaria simplesmente o nascer do Sol?

        A rapariga se atormentava. Precipitavam-se os minutos. Embora o barranco não apresentasse traços de caminho, talvez algum camponês passasse por aquelas paragens no momento em que Saint-Quentin se arriscasse a descer, operação muito mais difícil do que a escalada.

        De inopino ela estremeceu. Dir-se-ia que, imaginando tal perigo, e tivesse, por essa mesma razão, provocado. Faziam-se ouvir passos surdos que seguiam a ribanceira e só podiam vir da entrada principal. Meteu-se Dorotéia sob as raízes da árvore que a dissimulava. Surgiu um homem, vestido com uma comprida blusa, o rosto envolto num grande cachenê cinzento, e que usava velhas luvas de pele e trazia uma espingarda debaixo do braço.

        Ela pensou que deveria ser um caçador, ou melhor, um caçador clandestino, pois caminhava com ar inquieto, vigiando os arredores como alguém que sente medo de ser visto e que, pelas dúvidas, muda o andar habitual. Mas deteve-se perto da muralha, a cinqüenta ou sessenta metros do ponto em que Saint-Quentin havia trepado, e observou o solo, contornando certas pedras chatas e inclinando-se sobre as mesmas.

        Afinal se decidiu e, segurando uma das lajes pela sua extremidade mais delgada, a ergueu e colocou de tal forma que se manteve em equilíbrio, à maneira de um dólmen. Destarte, pôs a descoberto um buraco aberto ao centro da escavação deixada pela dita laje. Ao lado, existia uma picareta, que ele apanhou, e da qual se serviu para aumentar o buraco, removendo a terra com muita precaução a fim de não fazer nenhum ruído.

        Passaram-se mais alguns minutos e produziu-se o inevitável acontecimento que Dorotéia desejava e temia a um só tempo: foram empurrados os dois batentes da janela que Saint-Quentin galgara na véspera, e surgiu um corpo comprido, vestido com uma sobre-casaca preta e que trazia à cabeça uma cartola, os quais, mesmo à distância, pareciam brilhantes, sujos e remendados.

        Com o ventre rente à muralha, achatado, deixava-se Saint-Quentin escorregar da janela e conseguiu pousar os dois pés sobre a cornija. Nesse instante, Dorotéia, que se encontrava por trás do homem de blusa, esteve a pique de se levantar e fazer sinais a seu camarada. Gesto inútil. O sujeito avistara aquela espécie de diabo negro agarrado ao alcantil e, largando a picareta, enfiara-se pela escavação a dentro.

        Saint-Quentin, aliás, todo entregue à sua tarefa, absolutamente não se ocupava com o que se passava a seus pés, e que só poderia ver caso se voltasse para trás, o que lhe era quase impossível. Desembrulhando uma corda, sem dúvida apanhada no castelo, enrolou-a à sacada de uma janela como à volta de uma polia, de maneira que as duas pontas ficassem penduradas à mesma altura, ao longo da penedia. Com o auxílio dessa dupla corda, a descida não oferecia nenhuma dificuldade.

        Sem perder um segundo, Dorotéia, inquieta por não ver mais o homem da blusa, arrastou-se até a beira da escavação. Ao se aproximar, abafou um grito: ao fundo da cavidade, como ao fundo de uma trincheira, o homem apanhara sua espingarda e, lentamente, apoiava seu cano diante de si, sobre a terra amontoada, e na direção de Saint-Quentin.

        Chamar? Prevenir Saint-Quentin? Seria precipitar os acontecimentos, denunciar sua própria presença, e travar uma luta desigual com um adversário armado. Todavia, era preciso agir. Lá ao longe, Saint-Quentin se intrometia na fresta da escarpa, tal como faria no interior do tubo de uma chaminé. Via-se totalmente o seu vulto negro, magro, e a sua cartola em forma de sanfona, que enterrara até as orelhas.

        O homem levou a arma ao ombro e mirou demoradamente. Dorotéia deu um pulo em direção à pedra erguida por trás dele e, com todo o impulso que levava, empurrou-a com ambas as mãos estendidas. O equilíbrio era pouco estável. Ao primeiro esforço, a pedra tombou, fechando a escavação como se fora uma tampa, esmagando a espingarda e aprisionando o homem da blusa, do qual a moça mal teve tempo de ver a cabeça que se curvava e os ombros que se enterravam no buraco.

        Acertadamente, calculou que o ataque estava apenas transferido e o inimigo não tardaria a evadir-se do seu sepulcro, e portanto correu a toda velocidade até o pé da greta, aonde chegou ao mesmo tempo que Saint-Quentin.

        —Depressa...   depressa...   — disse ela —.   Precisamos escapulir...

        Atônito, o rapazelho puxou a corda por uma das suas pontas, enquanto murmurava:

        —Hem?   Que queres? Como soubeste que eu estava aqui?

        Dorotéia o agarrou com força:

        —A galope, imbecil!... Viram-te... Queriam atirar sobre ti... Depressa, vão perseguir-nos...

        —Que estás a dizer ? Perseguir-nos ? Quem ?...

        —Um tipo disfarçado de camponês, e que está ali embaixo, num buraco. Tinha o cano da espingarda apontado para ti, como se fosses uma perdiz, quando eu deixei cair a pedra sobre ele.

        —Mas...

        —Obedece-me, idiota de uma figa, e leva a corda. Não devemos deixar indícios.

        Antes que a laje fosse erguida, fugiram os dois pelo vale e, rapidamente, atingiram o bosque, sem trocar uma palavra.

        Vinte minutos depois, penetraram no rio, do qual só saíram para, muito mais longe, tomarem uma pedregosa margem que sua passagem não poderia marcar com nenhum sinal.

        Saint-Quentin logo tornou a partir como uma flecha, mas Dorotéia ali permaneceu, sacudida de repente por um frouxo de riso que a curvou em dois.

        —Que tens? — indagou o meninote —. Que é? Que bicho te mordeu?

        Ela não podia responder. Com as mãos apertadas ao peito, o rosto vermelho, todos os dentes à mostra, dentes miúdos e regulares, brilhantes de brancura, agitava-se violentamente. Por fim conseguiu gaguejar, com o dedo estendido para seu interlocutor:

        —Tua cartola... tua sobrecasaca... teus pés descalços... é ridículo demais!... Onde surripiaste esse disfarce?... Deus meu! como estás cômico!

        Seu riso ressoava fresco e jovem, no meio do silêncio em que palpitavam as folhas. Defronte, Saint-Quentin, meninão desengonçado, que crescera excessivamente rápido, de rosto demasiado pálido, cabelos exageradamente louros, boca rasgada demais, orelhas muitíssimo despregadas, mas com admiráveis olhos negros, cheios de ternura, fitava a jovem a sorrir, feliz por aquela diversão que parecia desviar dele uma cólera que receava.

        De fato, sabiamente ela se lançou sobre o companheiro e atacou-o a socos e censuras, mas sem convicção, com tremores de riso que tiravam todo valor ao castigo.

        —Miserável! Pirata! Roubaste outra vez, hem? O cavalheiro mais se contenta com os seus honorários de saltimbanco! Necessita ainda roubar dinheiro ou jóias para pagar as suas cartolas? Que foi que tiraste, ratoneiro? Hem? Conta!

        À força de espancar e rir, esgotara sua indignação. Pôs-se de novo a caminhar, e Saint-Quentin, coberto de vergonha, balbuciava:

        ?Contar-te? Para quê? Já adivinhaste tudo, como é costume... Pois bem, sim, entrei pela janela, ontem à noite... Era um banheiro, na extremidade de um corredor que conduz às salas do rés-do-chão... Ninguém...Os patrões jantavam... Uma escada de serviço me levou a outro corredor, todo curvo, com as portas de todos os quartos que davam para ali. Visitei aquilo tudo. Nada. Ou então quadros, coisas grandes demais. Então, escondi-me num cafundó, de onde se podia ver uma saleta, junto a um quarto, o mais bonito. Dançaram até tarde, depois subiram... Pessoas muito elegantes... que eu via por um postigo... as damas decotadas, os senhores de casaca... Por fim, uma das damas entrou na antecâmara, colocou suas jóias numa caixinha, e a caixinha num pequeno cofre-forte que ela abriu pronunciando em voz alta as três letras da fechadura: R.O.B... De maneira que, quando deixou a saleta a fim de ir para o quarto, bastou servir-me dessas três letras...

Em seguida... esperei pelo dia... não ousava descer...

        ?Mostra — ordenou ela.

        Na concha da mão, Saint-Quentin exibiu dois brincos, ornados de safiras. Ela os segurou e pôs a contemplar. Seu rosto se contraiu um pouco. Os olhos brilharam, e, com a voz alterada, murmurou:

        —Como são belas as safiras!... O céu é sempre assim, de noite... com este azul-negro, cheio de luz.. .

        Nesse momento, atravessavam um terreno dominado por uma espécie de espantalho grosseiro, vestido com uma simples calça, e uma de cujas vassouras, que figuravam os braços, suportava um casaco. Era o casaco de Saint-Quentin. Na véspera, pendurara-o ali e, para se tornar irreconhecível, tomara emprestadas a sobre-casaca e a cartola do manequim. Agora, descoseu a sobrecasaca, vestiu com ela o busto de palha, colocou de novo o chapéu no lugar.   Depois, enfiou seu casaco e foi ter com Dorotéia.

        Esta continuava a contemplar as safiras com ar de admiração. O rapazelho se inclinou para ela e disse-lhe:

        —Fica com eles, Dorotéia. Bem sabes que não sou um ladrão, e que foi por ti que fiz isso... para que sintas prazer em olhá-los... tocá-los... Freqüentemente, tenho tanta pena de ver-te azafamar-te como uma desgraçada! Tu, dançares sobre a corda esticada! Tu, Dorotéia, tu que deverias viver no luxo!... Ah! Dorotéia, quanta coisa faria por ti, se quisesses!

        A jovem ergueu a cabeça na sua direção e perguntou:

        —Dizes que farias tudo por mim?

        —Tudo, Dorotéia.

        —Pois bem, sê honesto, Saint-Quentin.

        Tornaram a partir, e a rapariga prosseguiu:

        —Sê honesto, Saint-Quentin, é tudo que te peço. A ti, e a todos os da carroça de saltimbanco, recolhi porque éreis, como eu, órfãos de guerra, e, há dois anos, percorremos juntos as estradas, mais felizes do que infelizes, divertindo-nos e, afinal de contas, comendo para satisfazer a nossa fome. Entretanto, nada de mal-entendidos entre nós. Só gosto do que é limpo, claro, brilhante como um raio de sol. És igual a mim? Esta já é a terceira vez que roubas para ser-me agradável. Acabou-se? No caso afirmativo, perdôo-te. No caso negativo, adeus.

        Falava gravemente, sublinhando cada frase com um aceno de cabeça que fazia bater os dois bandos de seus cabelos. Transtornado, Saint-Quentin lhe implorou:

        —Não queres mais saber de mim ?...

        —Quero, sim. Mas jura que não vais recomeçar.

        —Juro.

        Então, não falemos mais nisso. Sinto que disseste a verdade. Pega de novo as jóias. Vais escondê-las debaixo da carroça, dentro da cesta grande. Na semana que vem, devolve-as pelo correio. É mesmo o castelo de Chagny, não?

        —É sim, e vi o nome da senhora num dos seus cartões: "Condessa de Chagny".

        Puseram-se de novo a caminho, de mãos dadas, e duas vezes se esconderam para evitar o encontro com camponeses; afinal, depois de alguns rodeios, chegaram às proximidades do seu carro.

        —Escuta — disse Saint-Quentin, apurando o ouvido —. Sim, é isso mesmo, Castor e Pólux estão brigando, como sempre. Que sacripantas!

        E precipitou-se.

        ?Saint-Quentin, proíbo-te que lhes batas, Saint-Quentin!

        —Tu não te privas disso!

        —Sim, mas eu, dou-lhes prazer.

        À aproximação de Saint-Quentin, os dois garotos, que se batiam em duelo com espadas de pau, fizeram frente ao inimigo comum, berrando:

        —Dorotéia! Mamãe Dorotéia! Segura Saint-Quentin. É um bruto. Socorro!

        Houve uma distribuição de tabefes, gargalhadas, abraços.

        —Dorotéia, agora é a minha vez de ser abraçado!

        —Dorotéia, agora sou eu que devo levar uma bofetada!

        Mas a moça ralhou:

        —E o capitão? Tenho certeza de que o acordastes.

        —O capitão? Dorme como um porco — afirmou Pólux —. Escuta só como está roncando!

        À margem da estrada, os dois meninos tinham acendido uma fogueira de galhos secos. A panela suspensa de um tripé de ferro, fervia. Os quatro tomaram uma sopa grossa e fumegante, comeram pão, queijo, e beberam uma xícara de café.

        Dorotéia não se arredava do seu tamborete. Os três companheiros não lhe permitiram. Porfiavam os três para ver quem se levantava para servi-la todos atentos, solícitos, ciumentos uns dos outros, agressivos, até, entre si. As batalhas de Castor e Pólux eram sempre provocadas por algum favor de Dorotéia; e os dois guris — dois meninos gordos e bochechudos, vestidos iguais, de calça, camisa e meio suspensório — no instante em que menos se esperava, e embora se amassem como dois irmãos, atiravam-se um sobre o outro com raivosa violência, porque a moçoila dissera a um uma palavra demasiado terna, ou premiara outro com um olhar por demais afetuoso.

        Quanto a Saint-Quentin, detestava-os cordialmente. Quando Dorotéia os acarinhava, sentia vontade de torcer-lhes o pescoço. A ele, Dorotéia nunca beijaria. Tinha de contentar-se com uma boa camaradagem, afetuosa e confiante, que só se manifestava por um amistoso aperto de mão ou por um sorriso feliz, que, aliás, alegrava o adolescente como a única recompensa que merecesse um pobre diabo da sua espécie. Saint-Quentin era desses que amam e se dedicam.

        —Agora, a lição de aritmética — ordenou Dorotéia —. E tu, Saint-Quentin, vai dormir uma hora na tua boléia.

        Castor trouxe o livro da aula. Pólux mostrou o seu caderno. À lição de cálculo, seguiu-se uma aula dada por Dorotéia a respeito dos reis merovíngios, e depois uma aula de astronomia. As duas crianças escutavam apaixonadamente, e, na sua boléia, Saint-Quentin tomava todo o cuidado para não dormir. É que Dorotéia tinha uma forma de ensinar cheia de fantasia e que divertia sem nunca fatigar a atenção.

        Dava a impressão de que ela própria aprendia o que ensinava. E as coisas, ditas com uma voz muito doce, revelavam certa ciência, o discernimento e a maleabilidade de uma inteligência prática.

        Às dez horas, a jovem dava ordem para que arreassem o cavalo. O trajeto até o povoado vizinho era longo e deveriam chegar a tempo para obter o melhor local em frente à Prefeitura.

        —E o capitão, que não comeu! — exclamou Castor.

        —Tanto melhor — respondeu a rapariga —. O capitão come sempre demais. Isto serve para repousá-lo. Aliás, quando o acordam, fica sempre de um mau humor execrável. Deixemo-lo dormir!

        Partiram. Ao passo tardo de Zarolha, — velha égua malhada, esquelética, mas ainda sólida e corajosa, apesar do olho vazado, conforme seu nome indicava, — a carriola se pôs em movimento. Pesada, encarapitada sobre duas rodas altas, oscilante, fazendo barulho de ferragens, carregada de caixas e utensílios, escadas, barris e cordame, fora pintada fazia pouco, e, nos dois lados, trazia esta inscrição pomposa: "CIRCO DOROTÉIA, Carro da Diretoria", o que fazia crer que a certa distância seguiria uma fila inteira de caminhões e veículos com o pessoal, o material, as bagagens e os animais ferozes.

        Precedia o comboio Saint-Quentin, de chicote na mão. Dorotéia, ladeada pelas duas crianças, colhia flores nas ribanceiras, cantava com os pequenos estribilhos de marchas ou lhes narrava histórias. Mas, depois de cerca de meia hora, no meio de uma encruzilhada, ordenou:

        —Alto!

        ?O que é que há? — perguntou Saint-Quentin, vendo que ela lia a placa de um poste indicador.

        —Olha ? replicou a jovem.

        —Não é preciso olhar. Devemos continuar em linha reta. Consultei o nosso mapa.

        ?Olha — repetiu Dorotéia —: "Chagny, 2 quilômetros."

        ?Evidentemente, é a aldeia do nosso castelo de ontem. Apenas, para lá irmos, seguimos o atalho do bosque.

        — Não leste até o fim. "Chagny, 2 quilômetros, castelo de Roborey."

        Parecia muito agitada e, a meia voz, repetia: "Roborey... Roborey..."

        —Talvez a aldeia se chame Chagny — supôs Saint-Quentin— e o castelo se chame Roborey. Que importa isso?

        —Nada... nada... — disse ela.

        —Entretanto, estás com um ar todo esquisito...

        —Não...   uma simples coincidência.

        —A que propósito?

        —A propósito do nome de Roborey.

        —E então?

        —Então, é uma palavra que está gravada na minha memória... uma palavra que foi pronunciada em circunstâncias excepcionais.

        —Que circunstâncias, Dorotéia?

        Lentamente, com ar pensativo, ela explicou:

        —Recorda-te, Saint-Quentin. Sabes que meu pai morreu de um ferimento, no começo da guerra, num hospital, próximo a Chârtres. Eu fui avisada, mas cheguei tarde demais...   Apenas dois feridos, seus vizinhos de quarto, me disseram que ele não cessara de repetir a mesma palavra durante toda a sua agonia: "Roborey...Roborey..." Isso voltava   interminavelmente   como   uma ladainha e como se ele não desse pela história. E, ao morrer, ainda pronunciava: "Roborey... Roborey."

        ?Sim, — afirmou Saint-Quentin — lembro-me. ..

        ?Daí em diante, pergunto a mim mesma o que significava isso, e por que obsessão terá sido meu pai atormentado na hora da morte. Parece mesmo que era mais do que uma obsessão... medo, terror... Por quê? Nunca pude explicar a mim própria. Portanto, compreendes, Saint-Quentin, ao ver esse nome escrito ali, na minha frente... ao saber que existe um castelo assim chamado...

        Saint-Quentin se assustou:

        —Hem? Mas apesar de tudo, não tens a intenção de ir lá...

        —Por que não?

        —É uma loucura, Dorotéia!

        A moça entregou-se a um devaneio. Saint-Quentin, porém, percebia perfeitamente que ela não renunciava àquele insólito projeto, e procurava argumentos contra, quando Castor e Pólux acorreram :

        —Mamãe, três carroças estão desembocando na estrada!

        Com efeito, uma atrás da outra, saíam elas de um caminho marginal que dava para a encruzilhada, e tomavam a estrada de Roborey. Era um "Jogo de Matança", um "Tiro ao Alvo", e uma "Corrida de Tartarugas".

        Ao passar defronte a Saint-Quentin e Dorotéia, um dos homens do tiro os interpelou:

        —Também vão para lá?

        —Para lá, onde? — indagou Dorotéia.

        —Para o castelo. Há festa popular no pátio. Querem que lhes reserve um lugar?

        ?Combinado, e obrigada — respondeu a rapariga.

        Os saltimbancos se afastaram.

        —Que tens, Saint-Quentin?   — murmurou Dorotéia.

        O jovem parecia ainda mais pálido que de hábito.

        ?Que tens? — repetiu ela —.   Teus lábios tremem, e tu estás verde.

        —Os policiais... — gaguejou Saint-Quentin.

        Pela mesma vereda, dois cavalarianos chegavam à encruzilhada. Impassíveis, desfilaram diante do pequeno grupo.

        —Bem vês — comentou Dorotéia a sorrir — que não se ocupam absolutamente de nós.

        —Não, mas vão para o castelo.

        —Claro! Pois se há festa! A presença de dois policiais é indispensável .

        —A menos — gemeu Saint-Quentin — que hajam descoberto o desaparecimento dos brincos e tenham telefonado à delegacia.

        —Improvável! A senhora só notará esta noite, na ocasião de se vestir.

        —Ainda assim, não vamos para lá... — suplicou o pobre rapazinho —. É o mesmo que a gente se jogar na boca do lobo... E depois, há também aquele homem... o que estava no buraco...

        ?Cavava o seu próprio túmulo — declarou ela a rir.

        ?E se estiver no castelo? Se me reconhecer?

        ?Estavas disfarçado. A única coisa que poderão fazer será prender o espantalho de sobrecasaca e cartola!  

        ?E se eu já estiver denunciado? Se me revistarem? Se encontrarem os brincos?

        —Joga-os em qualquer moita do parque, logo que chegarmos. Eu lerei a sorte do pessoal do castelo e, graças a mim, a dama recuperará os seus brincos. Está feita a nossa fortuna.

        — Mas se, por acaso...

        —Psiu! Diverte-me ir até lá e ver o que se passa nesse castelo que se chama Roborey. Portanto, irei...

        —Sim, mas eu tenho medo... medo por ti também...

        ?Neste caso, fica.

        Ele deu de ombros.

        —Seja o que Deus quiser! — exclamou, estalando o chicote.

II

O circo Dorotéia

        Só durante o século XVIII tomou o nome de Roborey o castelo situado não longe de Domfront, na parte mais agreste do pitoresco departamento do Orne. Outrora se chamava castelo de Chagny, como a aldeia que se agrupara bem ao pé dele. Com efeito, a praça principal da aldeia não passa de um prolongamento do pátio senhorial. Estando abertas as grades, os dois espaços formam uma esplanada construída sobre os antigos fossos, aos quais se desce, à direita e à esquerda, por escarpados declives. O pátio interno, circular, cercado por dois parapeitos que se estendem até o edifício, é ornado de uma bela fonte antiga, cheia de golfinhos e sereias, e de um quadrante solar erigido sobre um suporte de conchas e pedrinhas, de muito mau gosto.

        O Circo Dorotéia atravessou a aldeia, com a música à frente, isto é, Castor e Pólux se esfalfavam para tirar de duas cornetas tudo quanto elas podiam dar em matéria de notas desafinadas. Saint-Quentin envergava um gibão de cetim preto e trazia ao ombro o tridente que mantém em respeito os animais ferozes, e um letreiro que anunciava a representação às três horas.

        De pé sobre a coberta da carroça, Dorotéia guiava a Zarolha, utilizando-se de quatro rédeas, e com tanta majestade quanta se dirigisse uma carruagem real.

        A esplanada já estava atravancada por uma dezena de veículos, junto aos quais os saltimbancos armavam à pressa as suas barracas de lona ou as suas instalações de jogos, balanços, cavalinhos de pau, etc.

        O circo, esse não fez nenhum preparativo. A diretora foi até a Prefeitura para obter o visto na carteira profissional, enquanto Saint-Quentin desatrelava Zarolha, e os dois músicos, trocando de profissão, ocupavam-se da cozinha.

        O capitão continuava a dormir.

        Por volta do meio-dia, principiou a afluir a multidão, vinda de todas as aldeias vizinhas. Saint-Quentin, Castor e Pólux faziam a sesta perto da carroça. Após a refeição, Dorotéia partira de novo, descera ao barranco, examinara a escavação da laje, tornava; a subir, misturava-se aos grupos de campônios e penetrava nos jardins, nas cercanias, do castelo, e por toda parte onde era permitido passear.

        —Então? — perguntou-lhe Saint-Quentin ao seu regresso —. Que tal a tua investigação?

        Ela parecia preocupada e, lentamente, explicou:

        ?O castelo, desabitado há muito tempo, pertence à família de Chagny-Roborey, cujo último representante, o conde Otávio, fidalgo de uns quarenta anos, casou, há doze anos, com uma mulher extremamente rica. Depois da guerra o conde e a Condessa restauraram e modernizaram o castelo. Ontem à noite, davam a festa de inauguração, na presença de numerosos convidados, que se retiraram durante a noite. Hoje, é a inauguração popular.

        —E a respeito desse nome de Roborey, não descobriste nada?

        —Nada. Continuo a ignorar por que meu pai o terá pronunciado .

        —De modo que partiremos logo depois da representação?— interrogou Saint-Quentin, que tinha pressa de ir embora.

        —Não sei... veremos... Observei certas coisas estranhas...

        —Que se relacionam com teu pai?

        —Não... — disse ela com hesitação... não... nenhuma relação... Contudo, eu gostaria de tirar as coisas a limpo. Quando existem trevas em algum lugar, nunca se sabe o que elas dissimulam... e eu queria...

        Permaneceu muito tempo pensativa e, por fim, prosseguiu com voz séria, fitando Saint-Quentin bem de frente:

        —Escuta, tens confiança em mim, não é? Sabes que no fundo sou muito razoável...   e muito prudente. Sabes que tenho certa intuição... e bons olhos que vêem o que nem toda gente vê... pois bem, sinto absolutamente que devo ficar aqui.

        —Por causa desse nome de Roborey?

        —Por causa disso, e por outros motivos, que talvez me obriguem a tomar, segundo as circunstâncias, resoluções inesperadas...perigosas. Nesse momento, Saint-Quentin, é preciso que me sigas...valentemente.

        —Mas fala, Dorotéia. Que há?

        —Nada... nada... uma palavra, porém... O homem que te visou esta manhã, o homem da blusa, está aqui.

        —Como? Que estás dizendo? Aqui? Tu o viste? Com os policiais?

        Ela sorriu:

        —Ainda não. Mas isso pode acontecer. Onde puseste os brincos?

        —No fundo da cesta, dentro de uma caixinha de papelão, fechada por um elástico.

        —Bem. Logo que acabar a representação, coloca-os num tufo de rododendros, entre a grade e as cocheiras.

        —Deram pelo desaparecimento?

        —Ainda não — afirmou Dorotéia —. De acordo com as tuas indicações, creio que o cofre-forte se encontra no quarto de vestir da Condessa de Chagny. Ora, ouvi as criadas de quarto da Condessa conversarem umas com as outras, e absolutamente não falavam em roubo—. E acrescentou: — Olha, ali defronte ao tiro ao alvo esta a gente do castelo. É mesmo aquela bonita senhora loura, de ar imponente?

        —É. Estou reconhecendo.

        —Uma senhora excessivamente boa, pelo que dizem os criados, generosa, junto à qual sempre têm acesso os desgraçados.

        —Gostam muito dela por aqui, mais do que do marido, pelas aparências, pouco simpático.

        —Qual é deles? São três.

        —O mais gordo, todo de cinzento, com uma barriga inchada de importância. Repara, ele apanhou uma carabina. Os dois de cada lado da condessa são parentes distantes. O grande, com a barba um pouco grisalha, que sobe até os óculos de tartaruga, mora no castelo há um mês. O outro, o mais moço, de roupa de caça, de veludo, e perneiras, chegou ontem.

        —Mas parece que ambos te conhecem?

        —Sim. Já conversamos. O barbado é até muito solícito.

        Saint-Quentin fez um gesto de indignação, que sua interlocutora logo reprimiu:

        —Calma, Saint-Quentin. Aproximemo-nos. Inicia-se o combate.

        A multidão se comprimia por trás da barraca a fim de assistir às façanhas do castelão, cuja habilidade era conhecida. As doze balas cercaram o centro do alvo de papelão, o que provocou a frase, de falsa modéstia:

        —Não, não... foi mau.   Nenhum em cheio.

        —Falta de hábito — comentou uma voz perto dele.

        Dorotéia se esgueirara até a primeira fila, e disse aquilo num tonzinho de entendido que fez rir os assistentes. O fidalgo barbado apresentou-a ao conde e à Condessa.

        —A Srta. Dorotéia, diretora do circo.

        A Condessa cumprimentou. O conde gracejou:

        —É como diretora de circo que a senhorita julga um alvo?

        — Como amadora.

        — Ah! A senhorita atira também?

        — De vez em quando.

        —Contra os jaguares?

        —Não, contra cachimbos.

        —E não falha seu tiro?

        —Jamais.

        — Com a condição, bem entendido, de dispor de arma de primeira qualidade, não?

        — De modo nenhum. Um bom atirador serve-se do que lhe cai nas mãos...   até de uma automática fora de uso, como esta.

        E agarrando a coronha de uma velha pistola, pediu seis cartuchos, e mirou o cartão perfurado pelo conde de Chagny.

        A primeira bala atingiu o centro do alvo. A segunda raspou o círculo negro. A terceira atingiu o centro.

        O conde estava estupefato:

        —É prodigioso! Ela nem ao menos se dá ao trabalho de fazer pontaria...   Que diz sobre isto, d'Estreicher?

        Entusiasmado, aquele a quem Dorotéia chamava de fidalgo barbado exclamou:

        —Inaudito! Fantástico! A senhorita poderia fazer fortuna...

        Sem responder, com suas três outras balas quebrou dois tubos de cachimbo, e derrubou uma casca de ovo que dançava na extremidade de um repuxo.

        E logo a seguir, afastando seus admiradores, apostrofando a multidão embasbacada, declarou:

        — Senhoras e senhores, é para ter a honra de lhes avisar que a representação do circo prossegue. Após os exercícios de tiro, as visões coreográficas, e depois as manobras de força, agilidade, volteio, a pé, a cavalo, em terra e no ar. Fogo de artifício, regatas, corridas de automóveis, combates de touros, ataques a estradas de ferro, haverá de tudo. Vai começar, damas e cavalheiros.

        A partir desse instante, Dorotéia foi só movimento, exuberância e alegria. Em frente à portinhola da carroça, traçara Saint-Quentin um círculo bastante amplo, marcado por uma corda sustentada por espigões de ferro. Em volta dessa arena, onde se encontravam cadeiras reservadas aos castelões, o público se aglomerou sobre bancos, escadas, tudo que se pôde achar nos arredores.

        E Dorotéia dançou. Primeiro sobre uma corda esticada entre dois postes. Pulava como uma peteca que a raqueta recebe e arremessa ainda mais alto. Ou então, deitava-se e balançava-se como numa rede, caminhava para frente e para trás, fazia a volta, saudava à direita e à esquerda. A seguir, pulou ao chão e pôs-se a dançar.

        Extraordinária mistura de todas as danças, na qual nada parecia estudado nem voluntário, onde todos os gestos e todas as atitudes davam a impressão de inconscientes e como que provocados por uma série de súbitas inspirações. Sucessivamente, foi a "dancing-girl" de Londres, a espanhola armada de castanholas, a russa que rodopia e salta, ou, nos braços de Saint-Quentin, a rapariga do bar que dança um tango lento e selvagem.

        E, de cada vez, bastava-lhe um movimento, um quase-nada, que lhe deslocava o xale ou modificava o penteado, para ser, dos pés à cabeça, espanhola ou russa, inglesa ou argentina. E era sempre uma visão incomparável de graça, encanto, juventude harmoniosa e sadia, de volúpia e pudor, de alegria excessiva e comedida.

        Castor e Pólux, caídos sobre um tambor velho, faziam com os dedos um acompanhamento de melopéia surda. Sem uma palavra, sem um grito, o público olhava e admirava, desconcertado por tanta fantasia e pela diversidade das imagens que surgiam à sua frente. No mesmo instante em que a considerava uma garota prestes a executar piruetas, ela lhe aparecia de inopino sob o aspecto de uma dama de saia comprida, que maneja o leque e dança o minueto. Era uma criança? Uma mulher? Tinha menos de quinze anos, ou mais de vinte?

        Ela interrompeu os aplausos que espocaram de súbito assim que terminou seu trabalho, e pulando para o teto do carro, ordenou com gesto imperioso:

        —Silêncio! O capitão acorda.

        Por trás da boléia, existia um cesto comprido e estreito, em forma de guarita fechada. Soerguendo-a um pouco, por uma das pontas, entreabriu a tampa e exclamou:

        —E então, capitão Montfaucon, dormiu bem? Escute lá, capitão, estamos um pouco atrasados para os nossos exercícios. Vai ser multado, capitão!

        Abriu inteiramente o cesto, colocou-o de pé e, numa espécie de berço confortável, foi visto um pirralho de sete ou oito anos, de caracóis louros, faces escarlates, e que bocejava desmedidamente. Mal despertou, estendeu as mãos para Dorotéia que o abraçou e beijou com toda a ternura.

        —Barão de Saint-Quentin, — chamou Dorotéia — passo-lhe o capitão.   Está pronta a sua fatia de pão com manteiga? Neste caso continua a sessão com o capitão Montfaucon em seus exercícios.

        O capitão Montfaucon era o cômico do pequeno grupo de artistas. Vestido com um velho uniforme americano, trazia uma túnica que arrastava pelo solo e um par de calças em saca-rolha, cuja extremidade se achava arregaçada até os joelhos, e isso lhe compunha um traje tão incômodo que não podia dar dez passos sem cair a fio comprido. A comicidade do capitão Montfaucon provinha dessas quedas repetidas, e do ar impassível com que se erguia de novo. Quando, munido de um chicote, agarrando a fatia de pão com a outra mão, com as bochechas besuntadas de geléia, apresentou Zarolha em liberdade, foi uma gargalhada geral.

        —Troque de pé — ordenou — Gire... Dance a polca. Em pé, Zaolha (não podia pronunciar Zarolha). E agora, o passo "espanol". Muito bem, Zaolha... Ótimo.

        Promovida à categoria de cavalo de circo, Zarolha trotava em círculo, sem se preocupar com as ordens do capitão, o qual, aliás, tropeçando, caindo, tornando a levantar-se, apanhando o pão, absolutamente não se preocupava em ser obedecido. E era tão engraçada a fleuma do guri e o exercício imperturbável do animal, que Dorotéia ria com um riso que redobrava a satisfação dos espectadores. Via-se que esse espetáculo, apesar de cotidianamente repetido, sem dúvida, divertia sempre a mocinha, com o mesmo bom humor.

        —Muito bem, capitão! — gritou ela para animá-lo —. Maravilhoso! E agora, capitão, vamos representar o rapto da cigana, drama em quatro voltas de pista. Barão de Saint-Quentin, é o senhor o infame raptor.

        Soltando urros, agarrou-a o infame raptor, deitou-a sobre a Zarolha, amarrou-a lá, e pôs-se a cavalgar o animal, que, vergando sob o fardo, partiu de novo a passos contados, enquanto o barão de Saint-Quentin gritava: "A galope! A toda disparada!"

        E enquanto isso o capitão, tranqüilamente, armava um brinquedinho de criança e apontava-o para o infame raptor.

        A cápsula deflagrou. Saint-Quentin precipitou-se ao chão, e a cigana, arrebatada de reconhecimento pelo seu salvador, cobriu-o de beijos.

        Seguiram-se outras cenas em que tomaram parte Castor e Pólux. Procediam todas daquele mesmo espírito burlesco. Eram todas as caricaturas verdadeiramente cômicas, do que nos diverte ou cativa, e revelavam uma imaginação viva, uma observação versátil, um senso do pitoresco e do ridículo.

        —Capitão Montfaucon, apanhe um saco e faça a coleta. Castor e Pólux, um rufo de tambor a fim de acompanhar o ruído do ouro que cascateia. Barão de Saint-Quentin,   "beware of pick-pockets"!

        O capitão arrastou pelo meio da turba um enorme saco onde se engolfavam níqueis e notas ensebadas e, do alto da carruagem, pronunciou Dorotéia palavras de despedida:

        —Obrigada, mil vezes obrigada, agricultores e citadinos! É com pesar que deixamos vossa generosa localidade. Antes de partir, porém, fazemos questão de vos comunicar que a Srta. Dorotéia (e fez um cumprimento) não é apenas uma diretora de circo e uma exibicionista de primeira ordem. A Srta. Dorotéia (cumprimentou) faz prova, e igualmente do mais raro mérito, no domínio da clarividência e da supra-sensibilidade. As linhas da mão, as cartas, a borra de café, a grafologia e a astrologia não possuem segredos para ela. Ela dissipa as trevas; decifra os enigmas. Com sua varinha mágica faz brotar fontes invisíveis e, especialmente, descobre nos lugares mais insondáveis, sob as pedras dos velhos castelos, e ao fundo de masmorras desconhecidas, tesouros fantásticos de cuja existência ninguém suspeitava. A bom entendedor, meia palavra basta! Assim, tenho a honra de vos agradecer.

        Rapidamente, desceu. Os três meninos já enfardavam os acessórios.

        Saint-Quentin se aproximou:

        —Vamos dar às de vila-diogo, hem? e depressinha! Os policiais não despregaram os olhos de mim.

        —Então não escutaste o fim do meu discurso? —: indagou ela.

        ? E que tem isso?

        —Que tem isso? É boa! as consultas vão principiar. Dorotéia, vidente extralúcida... Olha, aí vêm os clientes...   O fidalgo e o sujeito de roupa de veludo... Agrada-me, esse tipo... É muito cortês, e usa perneiras de couro cru, sem nenhuma pretensão. Um perfeito fidalgo rural.

        O gentil-homem barbado estava fora de si. Cumulou a jovem de cumprimentos exagerados, ao mesmo tempo em que a fitava de maneira constrangedora, e apresentou-se: "Máximo d'Estreicher", apresentou o companheiro "Raul Davernoie" e, por fim, convidou Dorotéia, da parte da Condessa, para tomar chá.

        ? Sozinha? — perguntou ela.

        —Naturalmente que não — protestou Raul Davernoie, que se inclinou com amabilidade —. Nossa prima faz questão de cumprimentar todos os seus camaradas. Está entendido,   senhorita?

        Dorotéia prometeu. Seria só o tempo de se arrumar um pouco, e iria ter ao castelo.

        —Não, não, nada de se arrumar! — exclamou d'Estreicher —.Tal como está... Esse traje algo em desalinho lhe vai às mil maravilhas.   Como está bonita assim!

        Dorotéia corou e, num tom sério, redargüiu:

        ?Nada de cumprimentos, cavalheiro, suplico-lhe.

        —Não é um cumprimento, senhorita, — afirmou ele com um laivo de ironia — é a homenagem natural que se deve à beleza.

        E afastou-se, carregando consigo Raul Davernoie.

        —Saint-Quentin, — murmurou Dorotéia, que os seguia com o olhar — desconfia daquele senhor.

        ?Por quê?

        —É o homem da blusa que, esta manhã, escapou de te matar com um tiro.

        Saint-Quentin cambaleou, como se tivesse recebido o tiro.

        —Tens certeza?

        —Quase. É o mesmo jeito de andar, arrastando um pouco a perna direita.

        —E reconheceu-me? — resmungou o rapazinho.

        —Creio que sim. Logo que te viu fazer cabriolas durante a representação, lembrou-se do diabo negro que bancava o acrobata diante do paredão do alcantil. E de ti, passou a mim, que lhe abaixara a laje sobre a cabeça. Vi tudo isso em seus olhos e na sua atitude, esta tarde. Bastaria a sua maneira de falar... com um arzinho de troça.

        Exasperou-se Saint-Quentin:

        — E não vamos partir! Ousas permanecer?

        —Ouso.

        —Mas esse homem?...

        —Ele não sabe que eu o desmascarei, e enquanto não souber ...

        —De modo que as tuas intenções...

        —São muito claras. Ler-lhes a sorte, diverti-los, excitar-lhes a curiosidade.

        —Com que fim?

        ?Com o fim de os fazer falar por sua vez.

        — Sobre quê?

        —Sobre o que desejo saber.

        — Mas sobre qual assunto?

        Ainda não sei nada. Eles é que vão indicar-me.

        — E se descobrirem o roubo? Se nos interrogarem?

        —Saint-Quentin, apanha a espingarda de pau do capitão, monta guarda em frente ao carro e, quando os policiais aparecerem, atira em cima, meu velho!

        Acabada sua "toilette", levou Saint-Quentin em direção ao castelo, enquanto o obrigava a contar todos os pormenores de sua expedição noturna. Atrás deles caminhavam Castor e Pólux, e a seguir o capitão, que puxava por um barbante um carrinho de criança repleto de minúsculos pacotes.

        No salão principal do castelo acolheram-nos com muitas festas. A Condessa que, conforme dissera Dorotéia, era mesmo uma senhora tão amável e indulgente quanto bonita e sedutora, empanturrou as crianças de gulodices, e mostrou-se cheia de atenções para com a mocinha. Esta não parecia mais embaraçada na companhia dos donos da casa do que se mostrava na sua carriola. Limitara-se a esconder sua saia curta e seu corpete sob um grande xale preto apertado na cintura por um cinto. O desembaraço de suas maneiras, a distinção de sua voz, sua linguagem correta, à qual, às vezes, um termo de gíria acrescentava certo sabor, sua alegria, a inteligência de seus olhos brilhantes, tudo maravilhava a Condessa e entusiasmava os três homens.

        —Se a senhorita prediz o futuro, — exclamou d'Estreicher — posso assegurar-lhe que também eu vejo claro nele, e que sua fortuna é certa. Ah! se quisesse confiar-se a mim e deixar-me guiá-la em Paris! Tenho relações em todos os meios, e garanto-lhe o bom êxito.

        Ela abanou a cabeça:

        —Não tenho necessidade de ninguém.

        —Acontece, senhorita, que não lhe sou simpático.

        —Nem simpático nem antipático. Não o conheço.

        —Se me conhecesse, teria confiança em mim.

        —Não acredito.

        —Por quê?

        Ela lhe segurou a mão, virou-a, inclinando-se sobre a palma aberta, e, enquanto a examinava, articulou:

        —Devassidão...   espírito   ganancioso...   Falta de   consciência...

        —Mas eu protesto, senhorita! Falta de consciência, eu? Eu, que sou cheio de escrúpulos!

        —Sua mão diz o contrário, cavalheiro.

        —Diz também que não tenho sorte?

        —Nenhuma.

        —Como!   Nunca serei rico?

        —Receio que não.

        — Diacho!... E minha morte? Distante?

        —Não muito.

        -— Morte dolorosa?

        —Alguns segundos.

        —Por conseguinte, um acidente?

        —Sim.

        —De que espécie?

        Ela apontou com o dedo:

        —Olhe aqui, em baixo do índex.

        — Que é que existe aí?

        — Uma forca.

        Seguiu-se um acesso de riso. D'Estreicher estava embevecido e o conde Otávio aplaudia.

        —Bravo, senhorita, a forca para esse velho libertino! É preciso, sem dúvida, que possua o dom da dupla visão. Destarte, eu não hesitaria...

        Com o olhar, consultou a esposa, e prosseguiu:

        —Destarte, eu não hesitaria em lhe dizer..

        —Em me dizer — terminou Dorotéia maliciosamente — as razões pelas quais me convocou.

        O conde protestou:

        — Absolutamente, não, senhorita. Ao convidá-la, tínhamos apenas o desejo de vê-la.

        —E talvez um pouco o desejo de fazer um apelo ao meu talento de feiticeira.

        Interveio a Condessa:

        —Pois bem, sim, senhorita, seu anúncio final despertou a nossa curiosidade. Confessar-lhe-ei, aliás, que não acreditamos absolutamente nessas coisas, e que era mais por curiosidade que gostaríamos de lhe fazer algumas perguntas.

        —Se a senhora não acredita nas minhas pequenas aptidões, vamos deixá-las de lado e eu farei da forma que, apesar disso, a sua curiosidade seja satisfeita.

        —Por que meio?

        — Refletindo, simplesmente, a respeito de suas palavras.

        —Como!? — indagou a Condessa —. Nada de passes magnéticos, nem de sono hipnótico, pois não?

        —Não, senhora, pelo menos por ora.   Mais tarde, veremos.

        Conservando só Saint-Quentin junto de si, Dorotéia mandou que as crianças fossem para fora brincar.   Depois, sentou-se e disse:

        —Sou toda ouvidos, minha senhora.

        —Como assim? Sem qualquer formalidade?

        —Sem qualquer formalidade.

        E, num tom de leviandade, que talvez não fosse sincero de todo, a Condessa disse:

        —Trata-se do seguinte: hoje a senhorita falou em masmorras desconhecidas, pedras antigas e tesouros ocultos. Ora, o castelo de Roborey data de vários séculos e foi, sem dúvida, teatro de aventuras e dramas, e divertir-nos-ia saber se algum dos seus moradores teria deixado por acaso, em qualquer cantinho, um desses fabulosos tesouros ao qual fez alusão.

        Dorotéia conservou-se em silêncio por muito tempo e depois declarou:

        —Sempre respondo com tanto mais precisão quanto mais confiança me demonstram. Se põem reservas, se a pergunta não é feita como deve ser...

        —Que reservas... Garanto-lhe, senhorita...

        A jovem insistiu:

        —A senhora me interrogou como se cedesse a uma súbita curiosidade que, por assim dizer, não repousava sobre nenhuma base real. Ora, sabe, como eu, que foram feitas pesquisas neste castelo.

        —Isso é muito possível, — interrompeu o conde Otávio — mas, neste caso, o fato remontaria a dezenas de anos, ao tempo de meu pai ou de meu avô.

        —São pesquisas recentes — afirmou Dorotéia.

        —Mas nós só moramos no castelo há um mês!

        —Não se trata de meses, mas de alguns dias... de algumas horas...

        Com vivacidade, declarou a Condessa:

        —Dou-lhe a certeza, senhorita, de que não efetuamos a menor busca.

        —Neste caso, as pesquisas foram feitas por outras pessoas.

        —Por quem? E em que condições? E em que ponto?

        Novo silêncio, e Dorotéia continuou:

        —- A senhora vai desculpar-me se me ocupei de negócios que parecem não me dizer respeito. Constitui isso um dos meus defeitos. Amiúde me diz Saint-Quentin: "Com a tua mania de te imiscuíres na vida alheia e te intrometeres em toda parte, vais arranjar aborrecimentos." De qualquer forma, ao chegar aqui, e como deveríamos esperar a hora da representação, fui passear e perambulei de um lado para o outro, reparei e, afinal de contas, fiz certo número   de   observações   que,   verifico, têm   alguma   importância. Assim...

        Entreolharam-se o conde e os seus convivas, ávidos por ouvi-la.

        —Assim, enquanto examinava e admirava a bela fonte antiga que se encontra no pátio principal, pude comprovar que em toda a volta foram feitos cortes no terreno sob a bacia de mármore que recolhe as águas.   Terá sido frutuosa a exploração? Ignoro. Em todo caso, a terra foi de novo colocada em seu lugar, cuidadosamente, mas não o suficiente para que não se pudesse ver a intumescência do solo.

        O conde e seus convidados olharam outra vez uns para os outros, com espanto. Um deles objetou:

        —Talvez hajam feito reparos no chafariz... ou construído canalizações?...

        —Não, — disse a Condessa em tom peremptório — não tocaram naquela fonte. E a senhorita, sem dúvida, notou outros indícios da mesma natureza, não?

        —Notei sim — declarou Dorotéia —; o mesmo trabalho foi efetuado um pouco adiante, por baixo de um pedestal de pedras e conchas que sustenta o relógio de sol.   Ali, ademais, operaram sondagens através desse material.   Partiram uma vara de ferro.

        —Ainda lá se encontra.

        —Mas por quê? — exclamou a Condessa com agitação —.Por que esses dois pontos, de preferência a quaisquer outros? Que procuram? Que querem? Possui algum indício?

        Não se fez esperar a resposta, e Dorotéia a formulou lentamente, como para demonstrar bem que nisso residia o essencial de seu inquérito:

        —O motivo destas investigações está inscrito no mármore da fonte. Os senhores a vêem daqui? Algumas sereias cercam uma coluna com capitel, não é? Pois bem, uma das faces desse capitel tem letras gravadas... letras quase apagadas...

        — Mas nós nunca as vimos! — bradou a Condessa.

        —Elas existem — afirmou a mocinha —. Estão gastas e confundem-se com as cicatrizes do mármore. No entanto, há uma palavra... uma palavra inteira... que se pode reconstituir, e que se lê facilmente logo que damos com ela.

        —Qual é?

        —A palavra "Fortuna".

        As três sílabas se prolongaram num silêncio estupefato. Entre dentes, repetiu-a o conde, com o olhar fixo em Dorotéia, que continuou :

        —Sim, a palavra "Fortuna". E também sobre a coluna do quadrante solar se encontra essa palavra. Ainda mais apagada, a ponto de se adivinhar mais do que se lê. Todavia, lá está. Cada letra em seu lugar.   Não resta qualquer possibilidade de dúvida.

        Não esperara o conde que ela terminasse de falar. Já se achava fora, e, pelas janelas abertas, viam-no correr para a fonte. Lançou-lhe apenas um olhar, passou defronte ao quadrante e voltou depressa.

        —Tudo quanto a senhorita diz é a verdade exata. Deram buscas nesses dois pontos... e a palavra "Fortuna", que logo vi e que nunca percebera, dá motivo a tais buscas... Procuraram... e talvez tenham achado...

        — Não — declarou a jovem calmamente.

        —Por que diz que não? Que sabe a respeito?

        Ela hesitou. Seus olhos encontraram os de d'Estreicher. Sem dúvida, ele agora sabia que estava desmascarado, e principiava a compreender aonde a rapariga queria chegar. Mas ousaria ela ir até o fim e travar a luta? E, além disso, qual a razão dessa luta imprevista?

        Desafiou-a com o olhar e repetiu a pergunta da Sra. de Chagny:

        —Sim, por que diz que não acharam nada?

        Arrojadamente, Dorotéia aceitou o desafio:

        —Porque as buscas prosseguiram. No barranco, sob as muralhas do castelo, entre as pedras que desabaram do alcantil, existe uma antiga laje que, certamente, provém de alguma   construção demolida. Na sua base também se decifra a palavra "Fortuna". Afastem essa laje e descobrirão uma escavação fresquinha, e pegadas que tentaram apagar com a mão.

III

EXTRALÚCIDA

        Esse último golpe acabou de perturbar o Sr. e a Sra. de Chagny, que, em voz baixa, confabularam durante um momento com seus primos d'Estreicher e Raul Davernoie. Ao ouvir evocar os acontecimentos do barranco, do esconderijo do homem da blusa, Saint-Quentin afundara entre as almofadas de uma vasta poltrona. Dorotéia enlouquecera! Indicar a pista do homem da blusa, era indicar a pista deles dois, Dorotéia e Saint-Quentin. Que imprudência!

        Entretanto, em meio da agitação e inquietude, ela permanecia muito calma. Parecia seguir um caminho bem definido e dirigir-se a uma meta visível, ao passo que os outros, sob sua chefia, tropeçavam, assustando-se.

        —Suas revelações, senhorita, comoveram-nos extraordinariamente — afirmou a Condessa —.   Demonstram elas a que ponto é perspicaz e eu não saberia agradecer-lhe bastante por nos ter avisado.

        —A senhora me acolheu tão gentilmente, — respondeu a jovem — que me sinto feliz por ter podido prestar-lhe um serviço.

        —Um verdadeiro serviço, — reconheceu a fidalga — e que lhe peço completar.

        —Como?

        —Dizendo-nos o que sabe.

        —Nada mais sei.

        —Talvez, porém, possa saber ainda mais...

        —De que forma?

        A castelã sorriu:

        ?Graças àquele talento de feiticeira sobre o qual falava havia pouco. E, no qual   a senhora não acreditava.

        Dorotéia se inclinou.

        ?Concordo...   Mas essas experiências nem sempre são bem sucedidas.

        ?Tentemos.

        ?Seja.Tentemos. Mas peço-lhe indulgência.

        Apanhou um lenço no bolso de Saint-Quentin e colocou-os sobre os olhos, como se fosse uma venda.

        —Extralúcida, sob a condição de ser cega — disse ela —. Quanto menos vejo, mais enxergo — E, a sério, acrescentou: — Dirija-me perguntas, minha senhora. Responderei o melhor que puder.

        ?Embora permanecendo   em   estado   de vigília?

        — Sim.

        Apoiou ambos os cotovelos sobre uma mesa e apertou a testa entre as mãos.   Ato contínuo, interrogou a Condessa:

        —Quem cavou? Quem efetuou as buscas em baixo da fonte o sob o quadrante solar?

        Transcorreu um minuto. Teve-se a impressão de que a jovem se concentrava e alheava de tudo quanto a cercava. Por fim articulou, com voz refletida, que nada tomava emprestado às inflexões de uma pitonisa ou de uma hipnotizadora:

        —Sobre a esplanada não diviso coisa alguma. Naquelas bandas as buscas devem ter sido executadas há vários dias, e já está tudo coberto de novo. Mas no barranco...

        —No barranco?... — indagou a Condessa.

        —A laje se acha de pé e o homem cava com o auxílio de uma pá.

        ?Um homem? Qual? Dê os seus sinais.

        —Usa uma blusa muito comprida...

        —Mas o rosto?...

        ?O rosto está envolto num cachenê que passa por cima de um gorro de bordas abaixadas... Nem os olhos se vêem. Quando parou de trabalhar, fez a laje cair outra vez e levou a pá.

        —Só isso?

        —Não. Ele nada encontrou.

        —Tem certeza?

        —Certeza absoluta.

        —E que caminho seguiu ele?

        —Trepou pelo barranco... e chegou diante do portão do castelo.

        —- Mas está fechado!

        —Ele possui a chave. Entra... É de manhã... Ninguém se levantou ainda... Dirige-se para o viveiro de laranjeiras... Há um pequeno cômodo...

        —Sim, onde o jardineiro guarda as suas ferramentas.

        —O homem se desembaraça da pá, tira a blusa e pendura-a a um prego, na parede.

        —Mas não pode ser o jardineiro! — exclamou a Condessa —. O rosto ?... Vê o rosto ?...

        —Não... não... está   enrolado...

        —Mas a roupa?

        —A roupa?...   Não distingo bem... ele se afasta... desaparece .

        Interrompeu-se a jovem, como se toda a sua atenção se fixasse em alguém cujo vulto se apagasse e perdesse na sombra, como um fantasma.

        —Não o vejo mais, — disse ela — não vejo mais nada. Ah! sim, os degraus externos do castelo... A porta se torna a fechar de mansinho. E depois... e depois uma escadaria, um longo   corredor muito   mal   iluminado   por minúsculas   janelas... Entretanto, distingo gravuras... cavalos a galope...   caçadores de casaca vermelha... Ah! o homem... o homem ali está, ajoelhado em frente a uma porta...   encontra a fechadura...   entra...

        —Um criado, por certo... — sugeriu a Condessa em voz surda —. E é um quarto do primeiro pavimento, já que existem gravuras no corredor.   Como é esse quarto?

        —Os postigos estão fechados. O homem acendeu sua lâmpada de bolso, e procura em torno de si... Sobre a lareira, um calendário... É a data de hoje, quarta-feira... E um relógio de pêndulo, estilo Império, com colunas douradas...

        —A pêndula do meu quarto de vestir — murmurou a condessa.

        —Marca cinco horas e três quartos... A luz da lâmpada é logo projetada para o lado oposto, sobre um móvel de mogno, com duas portas. O homem abre uma delas, e põe à mostra um cofre-forte.

        Escutavam Dorotéia num silêncio ansioso. A comoção contraía os semblantes. Como não dar fé a toda aquela visão descrita pela moça, se ela jamais penetrara no castelo, nunca atravessara os umbrais daquele quarto de vestir, e, no entanto, evocava até mesmo as coisas que deviam ser-lhe desconhecidas?

        Transtornada, a Condessa declarou:

        ?O cofre-forte estava fechado... tenho a certeza... fechei-o depois de haver guardado minhas jóias... ainda ouço o ruído da porta ao bater...

        ?Fechado, sim. Mas a chave está em cima.

        ?Que importa! eu misturei as letras da fechadura.

        ?Não, desde que a chave dá a volta.

        ?Impossível!

        —Dá a volta. Vejo as três letras. As três letras!

        —Consegue vê-las?

        —Distintamente. Um R, um O e um B, isto é, as três primeiras letras da palavra Roborey. O cofre está aberto. Existe uma caixinha. A mão do homem rebusca... e apanha...

        —O quê? O quê?   Que apanhou ele?

        —Um par de brincos.

        —Duas safiras, não é? Duas safiras?

        —Sim senhora, duas safiras.

        Muito inquieta, fazendo gestos descabidos, a Condessa saiu rapidamente, seguida do marido e de Raul Davernoie. E Dorotéia ouviu o conde Otávio dizer:

        —Se fôr verdade, você há de confessar, Davernoie, que este caso de adivinhação é muito estranho.

        —Muito estranho, com efeito — repetiu d'Estreicher, que também os acompanhava, mas que fechou de novo a porta aberta quando eles passaram e deu alguns passos atrás, no salão, com o evidente intuito de falar à jovem.

        Dorotéia se desembaraçara do seu lenço de pescoço e esfregava os olhos como alguém que sai das trevas. O fidalgo barbado e a moça fitaram-se nos olhos um instante. A seguir, depois de uma hesitação, ele prosseguiu em direção à porta. Ali, porém, mudou outra vez de idéia e, voltado para Dorotéia, cofiou demoradamente a barba espessa, e, afinal, deixou escapar um risinho satisfeito.

        Dorotéia, que quando se tratava de rir nunca ficava atrás de ninguém, fez o mesmo que o barbado.

        —Está rindo? —perguntou ele.

        —Rio porque o senhor ri.   Mas ignoro a razão de sua alegria. Posso conhecê-la?

        —Certamente, senhorita. Eu me rio porque acho isso muito divertido.

        —Muito divertido, quê?

        D'Estreicher deu ainda dois ou três passos   à   frente   e replicou :

        —Muito divertida é a idéia de confundir numa única e mesma personagem o indivíduo que escavou debaixo da laje e o outro que esta noite penetrou no castelo e roubou as jóias.

        —Quer dizer ?... — interrogou a rapariga.

        —Quero dizer, para ser ainda mais preciso, a idéia de, antecipadamente, atirar o roubo cometido pelo Sr. Saint-Quentin...

        —... sobre as costas do Sr. D'Estreicher — terminou Dorotéia .

        O fidalgo   reprimiu   uma   careta,   mas   não   protestou.   Inclinou-se:

        —É isso mesmo. Mais vale pôr as cartas na mesa, não acha?

        —Eu e você não somos desses que têm olhos para não ver. E se eu vi um vulto negro escorregar esta noite de uma janela, você viu, você...

        —Um cavalheiro que recebia com uma laje na cabeça.

        —Exatamente. E repito: é muito impertinente de sua parte pretender identificar um com o outro. Muito impertinente... e muito perigoso.

        —Perigoso como?

        —No sentido de que todo ataque acarreta um contra-ataque.

        —Ainda não ataquei. Mas quis demonstrar que estava disposta a tudo.

        —Mesmo a me atribuir o roubo daquele par de brincos?

        —Talvez.

        —Oh! oh! por conseguinte, tenho de apressar-me em provar que eles se encontram em suas mãos?

        ?Apresse-se.

        Mais uma vez ele se deteve à soleira da porta e disse:

        —Portanto, somos inimigos? Por quê? — Você não me conhece.

        —Não preciso conhecê-lo para saber quem é.

        —Como, o que eu sou? Sou o cavaleiro Máximo d'Estreicher.

        ?É possível. Mas também é o senhor que, furtivamente, sem a ciência de seus primos, procura... o que não tem direito, de procurar. Com que intuito, senão o de furtar?

        ?E tem algo que ver com isso?

        ?Tenho.

        —À que título?

        —O senhor não tardará a saber.

        Ele fez um gesto. Cólera ou desprezo? Conteve-se, porém, e resmungou:

        —Tanto pior para você, e tanto pior para Saint-Quentin. Até breve.

        Sem uma palavra mais, fez um cumprimento e retirou-se.

        Coisa estranha, naquela espécie de duelo brutal e violento, conservara Dorotéia tamanho sangue-frio que, mal fechada de novo a porta, obedecendo a seus instintos de gaiatice, ela fez "fiau" e deu algumas piruetas. Depois, contente consigo mesma e com os acontecimentos, abriu uma vitrina, apanhou um frasco de sais e aproximou-se de Saint-Quentin, que jazia no fundo de sua poltrona.

        —Respira, meu velho.

        Ele fungou, pôs-se a espirrar e tartamudeou:

        —Estamos perdidos.

        —Tens cada uma, Saint-Quentin! Por que supões que estamos perdidos?

        —Ele nos vai denunciar.

        —Com certeza irá dirigir as averiguações a nosso respeito, mas denunciar-nos, dizer o que viu esta manhã, isso ele não ousará. Do contrário, também eu digo o que vi.

        —Fosse lá como fosse, Dorotéia, não valia a pena revelar o desaparecimento das jóias.

        —Mas sempre acabariam dando pela coisa. O fato de falar em primeiro lugar desvia as suspeitas.

        ?Ou as atrai sobre nós, Dorotéia.

        ?Neste caso, acuso o fidalgo barbado.

        ?São necessárias provas!

        ?Obterei.

        ?Como tu o detestas!

        —Não, mas quero prendê-lo. É um homem perigoso, Saint-Quentin. Tenho intuição disso, e sabes que nunca me engano. Ele tem todos os vícios.   É capaz de tudo.   Trai seus primos de Chagny. Quero livrá-los dele, não importa por que meios.

        Saint-Quentin tentou acalmá-la.

        —Tu és espantosa. Combinas, calculas, ages, prevês. Sente-se que tu te diriges de acordo com algum plano.

        —De acordo com coisa nenhuma, meu rapaz. Caminho ao deus-dará, e decido-me ao acaso.

        ?Entretanto. . .

        —Tenho um alvo preciso, eis tudo. Há na minha frente quatro pessoas, que, não resta dúvida, estão reunidas por um segredo comum. Ora, a palavra "Roborey", pronunciada por meu pai ao morrer, dá-me o direito   de investigar se não faria ele próprio parte deste grupo, e se, por conseqüência, não se acha qualificada sua filha para tomar-lhe o lugar. Até agora, as quatro pessoas se acham mancomunadas e me repelem.   Tento em vão o impossível para em primeiro lugar obter a sua confiança e, a seguir, suas confidências; não chego a nenhum resultado. Mas chegarei.

        Com uma violência na qual, de súbito, se afirmava toda a energia e toda a resolução que animavam aquela sorridente e mimosa criatura, bateu o pé e repetiu:

        —Chegarei, Saint-Quentin, juro-te. Ainda não esgotei as minhas revelações, e existe uma que talvez os decida a ser menos reservados.

        — Qual é, Dorotéia?

        —Eu cá é que sei, meu rapaz.

        Calou-se. Seu olhar saía pela janela aberta, junto à qual Castor e Pólux brigavam. No castelo ressoavam ruídos de passos precipitados. Ouviram-se exclamações. Um criado atravessou o pátio a toda pressa e fechou os portões, o que deixou no recinto uma pequena parte da multidão e três ou quatro carros, entre os quais o do Circo Dorotéia.

        ?Os policiais... os policiais...—gaguejou Saint-Quentin. —Estão lá em baixo... Revistam a barraca de tiro ao alvo.

        —E d'Estreicher está com eles — observou a jovem.

        —Oh! Dorotéia, que fizeste?...

        —É-me tudo indiferente, — afirmou ela, imperturbável —Essa gente possui um segredo que talvez me pertença tanto quanto a ela.   Quero conhecê-lo.   A agitação, os lances teatrais, tudo isso trabalha em meu favor.

        —No entanto...

        —Bolas, Saint-Quentin!   Hoje se decide a minha vida.   Em lugar de tremeres, alegra-te...   Um "fox-trot", meu velho.

        Tomou-o pela cintura, ergueu-o como um manequim de pernas moles e obrigou-o a dar voltas. Escalando a janela, Castor e Pólux, seguidos pelo capitão Montfaucon, cercaram o par e puseram-se a dançar, primeiro no salão, depois através do largo vestíbulo, e ao mesmo tempo cantavam a música da "Capucine". Mas um novo desfalecimento de Saint-Quentin cortou o entusiasmo dos dançarinos.

        Impacientou-se Dorotéia:

        —Que tens de novo? — perguntou-lhe, tentando soerguê-lo e fazê-lo manter-se de pé.

        —Tenho medo... tenho medo... — gaguejou ele.

        —Mas que é isso, afinal?! Nunca te vi tão poltrão. Estás com receio de quê?

        —As jóias...

        —Imbecil! Desde que as jogaste na moita...

        —Não.

        — Não as jogaste ali?

        —Não.

        —Mas então, onde se encontram?

        —Não sei. Procurei-as na cesta, de acordo com as suas instruções, e onde eu mesmo as tinha posto.   Já não estavam mais. A caixinha de papelão desapareceu.

        À medida que ele se explicava, Dorotéia se tornava séria. Deparava-se-lhe o perigo, repentinamente.

        —Por que não me avisaste? Eu não teria agido conforme agi.

        —Não ousei. Não queria apoquentar-te.

        —Ah! Saint-Quentin, fizeste muito mal, meu rapaz.

        Não lhe dirigiu outras censuras e continuou:

        —Que pensas sobre o caso?

        —Penso que me enganei, que não pus os brincos dentro do cesto... mas noutro lugar... noutro lugar qualquer da carroça... Procurei em vão por toda parte. Mas eles, os policiais hão de encontrá-los...

        A jovem estava aterrada. Encontrados em sua posse os brincos, devidamente comprovado o roubo, seria a detenção, a cadeia.

        —Abandona-me... — gemia Saint-Quentin —. Não passo de um imbecil... um criminoso... Não tentes salvar-me...   Põe toda a culpa em mim, já que é verdade.

        Nesse momento, nos umbrais do vestíbulo, assomou o uniforme de um chefe-de-brigada policial, conduzido por um criado do castelo.

        —Nem uma palavra— murmurou Dorotéia —. Proíbo-te de pronunciares uma única palavra.

        O recém-chegado adiantou-se:

        —Srta. Dorotéia...

        —Sou eu, senhor chefe-de-brigada.   Que deseja?

        —Siga-me. Seria necessário...

        Foi interrompido pela chegada da Condessa de Chagny, que acorria em companhia do esposo e de Raul Davernoie.

        —Não, não, senhora, — gritou ela — oponho-me absolutamente a tudo quanto pudesse parecer um ato de desconfiança em relação a esta moça.   Há um mal-entendido.

        Raul Davernoie também protestava.   Mas o conde atalhou:

        —Note, minha cara, que é uma simples formalidade, uma medida geral que o chefe-de-brigada é forçado a tomar.   Cometeram um roubo? Então é justo que se instaure o inquérito, atingindo todas as pessoas...

        —Mas foi a Srta. Dorotéia quem nos revelou esse roubo. É ela quem, há uma hora, nos previne de tudo quanto se trama contra nós.

        —Por que não a interrogar, como a toda gente? Conforme dizia d'Estreicher há pouco, é possível que seus brincos não hajam sido tirados do seu cofre. Talvez você mesma os tenha colocado nas orelhas, maquinalmente, e em seguida perdeu lá fora... onde alguém os terá apanhado...

        O policial, homem de bem que parecia muito aborrecido por que o conde e a Condessa não entravam em acordo, não sabia o que fazer. Dorotéia o tirou do embaraço.

        ?Aprovo-o, senhor conde. Meu papel pode parecer-lhe suspeito, e têm o direito de indagar como conheço a palavra do cofre, o se meu talento de feiticeira basta para explicar a minha clarividência. Não haveria, portanto, nenhum motivo para abrirem uma exceção a meu favor.

        Inclinou-se diante da Condessa, beijando-lhe de leve a mão:

        ?Não assista às buscas, minha senhora. Não é muito bonito. Para mim, consiste isso num dos riscos a que nós outros, saltimbancos, estamos sujeitos. Mas à senhora afligiria. Pedir-lhe-ei apenas, por motivos que compreenderá daqui a pouco, que vá ter conosco quando me interrogarem...

        —Prometo-o.

        —Às suas ordens, senhor chefe-de-brigada.

        E partiu com os quatro companheiros e o policial. Saint-Quentin tinha o aspecto de um condenado que levam para o cadafalso. De mãos no bolso, um barbante em torno dos pulsos, o capitão Montfaucon puxava seu carrinho de pacotes e assobiava uma canção americana, como menino ciente de que todas essas historiazinhas terminam sempre bem.

        Na extremidade do pátio, os últimos camponeses se retiravam pelo portão aberto, junto ao qual se encontrava o guarda-campestre. Os saltimbancos achavam-se reunidos em volta de suas barracas e na estufa, onde o segundo policial examinava seus papéis.

        Chegando diante de sua carroça, Dorotéia avistou d' Estreicher que conversava com um dos criados.

        —Com que então é o senhor quem dirige as investigações? — perguntou ela alegremente.

        —Confesso que sim, senhorita...   no seu interesse — replicou ele no mesmo tom.

        —Neste caso, não tenho dúvidas sobre o resultado.

        E dirigindo-se ao chefe-de-brigada:

        —Não possuo nenhuma chave para lhe dar. O Circo Dorotéia não possui fechaduras. Está tudo   aberto. Nada nas mãos, nada nos bolsos.

        O policial parecia não apreciar muito aquela tarefa. Mas os dois criados a ela se dedicaram da melhor boa vontade, e d'Estreicher não se coibia de aconselhá-los.

        —Desculpe-me, senhorita — disse ele a rapariga, falando em particular —. Sou da opinião de que nada se deve poupar a fim de que se prove sua inocência.

        —Isso é grave — comentou ela com ironia.

        —Por quê?

        —Ora essa! Recorde-se da nossa palestra. Existe um culpado: se não sou eu, é o senhor.

        D'Estreicher, por certo, considerava a jovem uma adversária temível e tinha receio de suas ameaças, pois, embora permanecendo muito amável, e até mesmo galante, enquanto trocava gracejos com ela, foi encarniçado em suas investigações. A um sinal seu, os criados apanharam os cestos e caixas que estavam no alto, e tiraram os pobres farrapos com os quais formavam contraste, pelas suas cores vivas, os lenços e os xales com que a jovem gostava de se embelezar.

        Nada encontraram.

        Perscrutaram as paredes e o teto da carruagem, os colchões, os arreios de Zarolha, o saco de aveia, os alimentos. Nada. Revistaram os quatro meninos. Uma criada de quarto apalpou a roupa de Dorotéia. Pesquisas inúteis.

        —E aquilo?— indagou o chefe-de-brigada, designando a vasta cesta repleta de utensílios sem valor, que se balouçava debaixo do veículo.

        Com um furtivo pontapé nos tornozelos, Dorotéia aprumou Saint-Quentin, que titubeava.

        —Vamos fugir — tartamudeou ele.

        —Não sejas tolo. Uma vez que os brincos não estão ali...

        —Posso ter-me enganado.

        —Palerma! Ninguém se engana nestes casos,

        —Então, onde está a caixinha de papelão?

        —Estarás de olhos tapados?

        —Tu a vês?

        —Se a vejo! Como teu nariz no meio de tua cara.

        —No carro?

        —Não.

        —Onde? 

        —No chão. A dez passos de ti, entre es pernas do barbado.

        Com o olhar, designava o carrinho do capitão Montfaucon, que a criança abandonara para brincar com um pião, e cujos pequenos volumes, maletas, malas em miniatura, fardos amarrados, jaziam no solo, junto aos calcanhares de d'Estreicher.

        Um daqueles pacotes era nada mais nada menos do que a caixa de papelão que continha os brincos, e que o capitão Montfaucon juntara, durante a tarde, ao que denominava o seu material de tração.

        Dando parte a Saint-Quentin do seu imprevisto descobrimento, Dorotéia, que não suspeitava da sutileza e do poder de observação do homem a quem combatia, cometeu uma irreparável imprudência. Não era a moça que d'Estreicher espreitava por trás de seus óculos, mas o seu camarada Saint-Quentin, cujas inquietações e desfalecimentos logo notara. Dorotéia, esta se mantinha impassível. Mas Saint-Quentin não acabaria por trair alguma impressão?

        Assim ocorreu. Ao reconhecer a caixinha de elástico vermelho, Saint-Quentin respirou, subitamente aliviado. De si consigo, disse que ninguém teria a idéia de desempacotar os brinquedos infantis que jaziam na areia, à disposição do primeiro que aparecesse. Diversas vezes, sem a mínima suspeita, d'Estreicher esbarrara neles com o pé e tropeçara nas rodas, merecendo do capitão esta áspera repreensão:

        —Olhe cá, se o senhor tivesse um auto e eu desse um tranco nele, que é que dizia?...

        Chocarreiro, Saint-Quentin sacudiu a cabeça. D'Estreicher seguia a direção de seus olhos, e instintivamente compreendeu. Os brincos lá estavam, sob a proteção do acaso e com a inconsciente cumplicidade do capitão. Mas em que volume? A caixa de papelão se lhe afigurou mais suspeita. Sem pronunciar uma única palavra, abaixou-se rapidamente e apanhou-a. Erguendo-se de novo, abriu-a com um gesto furtivo e, no meio de seixozinhos brancos e de conchas, avistou as duas safiras.

        Olhou para Dorotéia. Ela estava muito pálida.

IV

O interrogatório

        —Vamos fugir — repetiu Saint-Quentin, que se sentara sobre um caixote e estava incapaz de dar um só passo.

        — Excelente idéia — sussurrou a jovem —.Atrela Zarolha, e escondamo-nos os cinco dentro do carro. E a todo galope até a fronteira belga!

        Ela não tirava os olhos do seu inimigo. Sentia-se vencida. Com uma palavra poderia entregá-la à justiça, metê-la na prisão e tornar vãs todas as ameaças que lhe tinha feito. Que valem as acusações de uma ladra?

        Com a caixa na mão, ele se balançava de um pé para o outro, com irônica satisfação. Parecia esperar que ela afrouxasse e lhe dirigisse uma súplica. Era conhecê-la mal! Dorotéia, pelo contrário, conservava uma atitude de desafio e provocação, como se tivesse a audácia de dizer-lhe: "Se falas, estás perdido."

        Ele deu de ombros e, dirigindo-se ao policial, que nada vira de toda aquela peripécia, falou:

        —Felicitemo-nos, senhor chefe-de-brigada, por havermos findado, e inteiramente a favor da Srta. Dorotéia. Que trabalho desagradável, irra!

        —Não deveriam tê-lo empreendido — declarou a condessa de Chagny, que acabava de se aproximar, tal como o esposo e Raul Davernoie.

        —Ao contrário, minha cara prima. Seu marido e eu tínhamos dúvidas. Mais vale esclarecê-las.

        —E nada descobriram? — interrogou o conde Otávio.

        ?Nada...menos do que nada. Quando muito, uma coisinha muito estranha, com a qual brincava o cavaleiro Montfaucon e que a Srta. Dorotéia quis dar-me. Não é, senhorita?

        ?É sim — afirmou Dorotéia distintamente.

        Ele mostrou a caixa de papelão, à volta da qual ajeitara o elástico, e, entregando-a à Condessa, pediu:

        —Quer guardá-la até amanhã cedo, querida amiga?

        —Por que guardá-la eu e não você?

        —Não seria a mesma coisa—disse ele —.   Depositá-la em suas mãos é como lhe aplicar um selo. Amanhã, ao almoço, abri-la-emos juntos.

        —Faz questão?

        —Sim... uma idéia como outra qualquer. Seja—concluiu a Sra. de Chagny —Aceito, se a Srta. Dorotéia me autoriza.

        ?Peço-lhe, minha senhora — replicou Dorotéia, compreendendo que o perigo estava retardado para o dia seguinte —. Esta caixa nada contém de interessante, apenas seixos brancos e conchas. Mas já que isso diverte esse senhor, e que ele tem necessidade de um controle, conceda-lhe essa pequena satisfação.

        Faltava, no entanto, uma formalidade que, para o chefe-de-brigada, era essencial naquele gênero de inquéritos. O exame dos documentos de identidade, a investigação minuciosa dos papéis, o respeito ao regulamento; sobre esse assunto, ele não facilitava. Por outro lado, se Dorotéia pressentia a existência de um segredo entre os de Chagny e seus primos, certo era que os anfitriões de Roborey não se achavam menos interessados pela estranha personagem que, havia algumas horas, os dominava e perturbava. Quem era ela? De onde vinha? Qual o seu verdadeiro nome? Como explicar que aquela criatura fina, inteligente, com agilidade de espírito e maneiras distintas, vagasse pelas estradas na companhia de quatro fedelhos.

        De uma gaveta existente no carro tirara uma capa de registro, que conservava debaixo do braço. Logo que entraram todos na sala grande do viveiro de laranjas, que agora se achava sem ninguém, puxou de dentro daquela capa uma folha coberta de assinaturas e carimbada em todos os sentidos e apresentou ao policial.

        —É tudo quanto possui? — indagou este ao cabo de um instante.

        ?Então não chega? Na Prefeitura, hoje de manhã, o secretário ficou satisfeito.

        —Na Prefeitura eles se satisfazem com qualquer coisa...— disse ele desdenhosamente — De mais a mais, que nomes são estes?... Ninguém se chama Castor e Pólux!... E este aqui... Barão de Saint-Quentin, acrobata!

        Dorotéia sorriu.

        —Entretanto, é esse o seu nome e essa a sua profissão.

        —Barão de Saint-Quentin?

        —Claro! Ele é filho de um bombeiro que morava em Saint-Quentin, e que se chamava Barão.

        —Mas neste caso precisa da autorização paterna.

        —Impossível.

        —Por quê?

        —Porque o pai morreu durante a ocupação.

        —E a mãe?

        —Também morreu. Ninguém da família. Os ingleses haviam adotado a criança. Quando a guerra chegava ao fim, era ajudante de cozinheiro num hospital de Bar-le-Duc, onde eu era enfermeira. Recolhi-o.

        O chefe-de-brigada aprovou com um resmungo, e prosseguiu seu interrogatório:

        —E Castor e Pólux?

        —Quanto a estes, não sei de onde vêm. Em 1918, por ocasião do avanço germânico   sobre Châlons foram envolvidos pela tempestade e apanhados numa estrada por soldados franceses que lhes deram seus apelidos. O choque fora tão grande que perderam a lembrança de todos os anos que precederam esse dia.

        —São irmãos? Conheciam-se? Onde se acham suas famílias?

        —Ignora-se. Recolhi-os.

        —Ah! — exclamou o polícia, um pouco atônito.

        E olhando na folha, leu em tom pilhérico:

        —Resta o Sr. Montfaucon, capitão do exército americano, condecorado com a Cruz de Guerra.

        —Presente — declarou uma voz.

        Montfaucon se empertigava numa atitude militar, com os calcanhares juntos e o dedo mínimo sobre a costura de suas vastas calças.

        Dorotéia o colocou sobre os joelhos e abraçou-o com força.

        —Um guri sobre o qual nada se sabe tampouco. Aos quatro anos vivia com uma dúzia de soldados americanos, que lhe haviam adaptado como berço um saco de peles. No dia do grande ataque americano, um daqueles doze o carregou às costas, e aconteceu que, de todos quantos efetuaram o avanço, foi esse que alcançou o ponto mais distante, e no dia seguinte encontraram o seu cadáver perto do pico de Montfaucon. Ao lado, dentro do saco de peles, a criança dormia, ligeiramente ferida. No campo de batalha, o coronel o condecorou com a Cruz de Guerra, e o batizou de capitão Montfaucon, do exército americano. Mais tarde, tive ocasião de tratar dele no hospital para onde fora evacuado. Três meses depois, o coronel   quis levá-lo para a América.   Montfaucon recusou.   Não queria deixar-me. Recolhi-o.

        Dorotéia narrou esta história com voz um pouco baixa, repassada de ternura. De olhos rasos de água, murmurou a Condessa:

        —Fez bem, senhorita, muito bem. Apenas essas ações lhe entregavam quatro órfãos para alimentar. Com que recursos?

        Dorotéia responde, a rir:

        —Éramos ricos.

        —Ricos?

        —Sim, graças a Montfaucon. Antes de partir, seu coronel lhe deixara 2000 francos.   Compramos a carroça e um cavalo velho. Estava constituído o Circo Dorotéia.

        —Profissão difícil, que requeria um aprendizado...

        —O aprendizado se realizou sob a direção de um velho soldado inglês, antigo palhaço, que nos adestrou e indicou todas as trapaças e diabruras da profissão. E de mais a mais, eu tinha isso no sangue. A corda, a dança, havia anos que eu estava habituada a elas. Então, pusemo-nos a caminho através da França. É uma vida um pouco dura, mas passa-se maravilhosamente, nunca nos aborrecemos e, afinal de contas, o Circo Dorotéia triunfou.

        —Mas acha-se de acordo com os requisitos legais? — indagou o chefe-de-brigada, ao   qual a sua preocupação pelo regulamento permitia dominar a simpatia que experimentava — Porque afinal,— acrescentou — esta folha só tem um valor informativo. O que eu desejaria ver era a sua carteira profissional.

        ?Tenho essa carteira, senhor chefe-de-brigada.

        — Fornecida por quem?

        ?Pela Prefeitura de Châlons, que é a sede do departamento onde nasci.

        ?Mostre-me.

        A jovem hesitou visivelmente. Olhou para o conde Otávio, em seguida para a Condessa. Solicitara-lhes justamente que comparecessem para serem testemunhas de seu interrogatório e ficarem sabendo das respostas que pretendia dar, e eis que, no derradeiro instante, sentia certo arrependimento.

        ?Devemos retirar-nos? — propôs a Condessa.

        —Não, não — replicou ela com vivacidade — pelo contrário, faço questão de que saibam.

        ?E nós? — perguntou Raul Davernoie.

        —Sim — disse ela sorrindo —. Ocorre um fato que tenho o dever de lhes divulgar. Oh! nada muito importante. Mas...de qualquer forma...

        E tirou do seu registro um cartão sujo, com os cantos rotos.

        —Eis aqui — anunciou.

        O polícia examinou atentamente o cartão e, em tom de quem não se deixa ludibriar, declarou:

        —Mas não é o seu nome... É um nome de guerra, bem entendido... como seus jovens camaradas?...

        ?De modo nenhum, senhor chefe-de-brigada.

        ?Bem, bem, não vai fazer-me acreditar. . .

        —Aqui está a minha certidão de nascimento para confirmar, com um carimbo da comuna de Argonne.

        O conde de Chagny exclamou:

        ?Como! é da aldeia de Argonne?

        —Ou melhor, era, senhor conde, pois essa pequenina aldeia ignorada, que deu seu nome a toda região de Argonne, não existe mais. A guerra a suprimiu.

        ?Sim... sim...sei — afirmou o fidalgo — Tínhamos lá um amigo... um parente... Não é, d'Estreicher?

        ?João de Argonne, sem dúvida?... — perguntou ela.

        ?Com efeito, João de Argonne, morto no hospital de Chârtres, em conseqüência de ferimentos... o tenente príncipe de Argonne...   ?Conheceu-o?

        ?Conheci-o.   

        ?Onde? Quando? Em que condições?

        —Deus meu! Nas condições habituais em que se conhece alguém que toca de perto.

        —Como? Tinha com João de Argonne laços... laços de parentesco?

        ?Laços muito estreitos. Era meu pai.

        ?João de Argonne, seu pai! Que está dizendo? Vejamos, o que?... A filha de João se chamava Iolanda.

        ? Iolanda Isabel Dorotéia.

        O conde arrancou o cartão que o chefe-de-brigada virava e revirava em todos os sentidos, e, em alta voz, leu, estupefato:

        —Iolanda Isabel Dorotéia, princesa de Argonne.

        Rindo, ela terminou:

        —Condessa Marescot, baronesa de La Hêtraie, de Beaugreval e outros sítios.

        O conde também se apoderou da certidão de nascimento e, sílaba por sílaba, cada vez mais confuso, escandiu lentamente:

        —Iolanda Isabel Dorotéia, princesa de Argonne, nascida em Argonne, aos 14 de outubro de 1900, filha legítima de João Marescot, príncipe de Argonne, e de Jessie Varenne.

        Não era mais possível qualquer dúvida. A identidade a que a jovem tinha pretensões justificava-se por provas que estavam todos longe de recusar, tanto mais que a verdade imprevista explicava precisamente tudo quanto parecia inexplicável nas maneiras e na própria aparência de Dorotéia.

        A Condessa entregava-se à sua comoção.

        —Iolanda? Você é a pequenina Iolanda sobre a qual João de Argonne nos falava tão carinhosamente!

        —Ele me amava muito — afirmou a jovem —. As circunstâncias não nos permitiram viver sempre um ao lado do outro, como eu gostaria. Mas eu o amava como se o visse todos os dias.

        —Sim, — disse a Condessa — era impossível não gostar dele. Contudo, só o vi duas vezes na minha vida, em Paris, no começo da guerra. Mas que encantadora recordação conservei dele! Uma pessoa cheia de alegria e exuberância! Como você, Dorotéia! Aliás, revejo-o em você...Os olhos... o sorriso principalmente.

        Dorotéia exibiu duas fotografias que tirou dentre seus papéis.

        —É o seu retrato. A senhoria o reconhece?

        ?Se o reconheço! E a outra, esta dama?...

        —É minha mãe, morta há muito tempo, e que ele adorava.

        —Sim, sim, eu sei...Antigamente ela trabalhou em teatro, não foi? Lembro-me. Conversaremos sobre tudo isso, quer?, e sobre sua vida, sobre as provações que a forçaram a viver desta forma. E, em primeiro lugar, como se acha aqui? Por quê?

        Dorotéia narrou por que acaso vira numa placa indicadora a mesma palavra que seu pai repetira ao morrer. Mas o conde Otávio as interrompeu.

        Era um homem habitualmente muito apagado, que procurava sempre dar às circunstâncias a maior solenidade possível, a fim de nelas desempenhar o papel de primeiro plano que lhe atribuía o seu nascimento e a sua fortuna. Pró-forma, consultara seus dois primos, e, sem lhes escutar as respostas, despedira o chefe-de-brigada, com uma desenvoltura de grão-senhor... Pôs igualmente para fora Saint-Quentin e as três crianças, fechou as portas com cuidado, fez as duas damas sentarem e pôs-se a passear diante delas, com as mãos nas costas e ar pensativo.

        Dorotéia sentiu-se contente. Triunfara, obrigando os castelões a pronunciarem as palavras que ela desejava. A Sra. de Chagny abraçava-a estreitamente. Raul parecia um amigo. Ia tudo bem. Verdade é que, um pouco afastado, hostil e perigoso, havia o fidalgo barbado, cujos olhos duros não a deixavam. Mas confiante em si própria, aceitando a luta, cheia de audácia e despreocupação, ela não consentia em vergar sob a ameaça do perigo terrível que, no entanto, poderia esmagá-la de um minuto para o outro.

        —Senhorita, — pronunciou o conde de Chagny com voz importante — parece-nos, a meus primos e a mim, já que é a filha do nosso pranteado João de Argonne, pareceu-nos, digo, que deveríamos, por nosso lado, colocá-la a par dos fatos que ele conhecia, e dos quais a informaria se a morte não o houvesse impedido... e dos quais ele desejava mesmo, nós sabemos, que tivesse ciência.

        Fez uma pausa, feliz com o seu preâmbulo. Nessas ocasiões, empregava uma linguagem pomposa e termos escolhidos, esforçava-se por respeitar as regras da gramática e não se arreceava dos subjuntivos. Prosseguiu:

        "Senhorita, meu pai, Francisco de Chagny, meu avô, Domingos de Chagny, meu bisavô, Gaspar de Chagny, todos eles viveram com a certeza de que imensas riquezas lhes seriam... como direi...lhes seriam oferecidas graças a certas circunstâncias ignoradas, das quais cada um, antecipadamente, se julgava o beneficiário. E cada qual folgava com isso, e se entregava a uma esperança tanto mais agradável quanto a Revolução arruinara totalmente a casa dos condes de Chagny. Sobre que se apoiava essa convicção? Nem Francisco, nem Domingos, nem Gaspar de Chagny jamais o souberam. Provinha de vagas lendas que não precisavam nem a natureza das riquezas nem a época em que elas apareceriam, mas que em sua totalidade tinham a característica comum de evocar o nome de Roborey. E essas lendas não deviam remontar a tempos muito afastados, pois que este castelo, que outrora se chamava Chagny, só foi designado por Chagny-Roborey sob o reinado de Luís XVI. Terá sid

o essa designação que provocou as escavações a que aqui sempre se procedeu? É muito provável. Fato é que, por ocasião de guerra, eu resolvera restaurar este castelo de Roborey, que já não era senão um pavilhão de caça, e habitá-lo definitivamente — se bem que, não tenho vergonha de dizê-lo — meu recente casamento me permitisse aguardar essas supostas riquezas sem excessiva impaciência."

        Esboçou o conde um sorriso sutil ao fazer aquela discreta alusão à maneira pela qual redourara seu brasão, e continuou:

        "Inútil dizer-lhe que durante a guerra o conde Otávio cumpriu seu dever de bom francês, não é? Em 1915, tenente do batalhão de caçadores de infantaria, estava em Paris, no gozo de licença, quando uma série de coincidências, produzidas pela guerra, me aproximou de três pessoas que eu não conhecia, e cujos laços de parentesco com os Chagny-Roborey fiquei sabendo. Em primeiro lugar, o pai de Raul, o comandante Jorge Davernoie. Depois, Máximo d'Estreicher. Por fim, João de Argonne. Éramos os quatro primos afastados, estávamos todos de licença ou em convalescença. E foi assim que, no decurso de nossas palestras, soubemos, com grande surpresa, que a mesma lenda era transmitida em cada uma das nossas quatro famílias. Como seus pais e avós, Jorge Davernoie, d'Estreicher e João de Argonne esperavam a fabulosa fortuna que lhes estava prometida e que deveria solver as dívidas que tal convicção os levara a contrair. Nos quatro primos,

aliás, a mesma ignorância. Nenhuma prova, nenhum indício..."

        Após nova pausa, destinada a armar ao efeito, prosseguiu o fidalgo:

        "Sim, uma indicação, todavia. João Argonne lembrava-se de certa medalha de ouro cuja importância seu pai outrora indicara... Seu pai morrera num acidente de caça, alguns dias mais tarde, sem nada mais lhe haver dito. Afirmava, João de Argonne porém, que aquela medalha trazia algumas palavras numa inscrição, e que uma dessas, recordava-se de chôfre, era a palavra Roborey, em torno da qual, decididamente, se concentravam todas as nossas esperanças. Anunciou-nos ele, por conseguinte, a sua intenção de rebuscar as cerca de vinte malas que, no mês de agosto de 1914, pudera salvar da iminente pilhagem de sua propriedade e colocar em segurança num galpão de Bar-le-Duc. Antes, porém, como éramos pessoas honestas, expostas aos acasos da guerra, fizemos os quatro um solene juramento no sentido de que todas as nossas descobertas, relativas ao famoso tesouro, seriam postas em comum. Daí em diante o tesouro, caso a Providência assentisse em no-lo

conceder, pertenceria aos quatro e João de Argonne, cuja licença expirava, deixou-nos."

        — Foi em fins de 1915, não? — perguntou Dorotéia —. Passamos oito dias juntos, os melhores de minha vida. Eu não devia tornar a vê-lo.

        —Fins de 1915, com efeito — confirmou o Sr. de Chagny—. Um mês depois João de Argonne, ferido no Norte, era evacuado para Chârtres, de onde nos escreveu, algum tempo mais tarde, uma longa carta...que ficou inacabada...

        A Sra. de Chagny fez um gesto. Parecia desaprovar o marido.

        —Sim, sim, entregarei essa carta — declarou o conde com firmeza.

        —Talvez tenha razão... — disse a Sra. de Chagny — Entretanto...

        —Que receia, minha senhora? — interrogou Dorotéia.

        —Receio que lhe causem um desgosto inútil, Dorotéia. O fim dessas páginas lhe revelará coisas muito dolorosas.

        —Que é nosso dever comunicar-lhe — afirmou o conde em tom peremptório.

        E tirou da carteira uma carta timbrada com a Cruz Vermelha, que abriu. Dorotéia sentiu um aperto no coração. Reconhecia a letra do pai. A Condessa lhe apertou a mão. Ela viu que Raul Davernoie a fitava com ar de compaixão, e, de fisionomia inquieta, procurando menos compreender as frases que ouvia do que advinhar o fim daquela carta, pôs-se a escutar:

        “Meu caro Otávio,

        Logo de início quero tranqüilizá-lo sobre o meu ferimento. Não é nada. Não há que temer complicações. Apenas, à tardinha, uma ponta de febre que desconcerta o major, porém tudo isso passará, não falemos mais a tal respeito, e passemos imediatamente à minha viagem a Bar-le-Duc.

        Sem mais delongas, Otávio, dir-lhe-ei que não foi inútil, e após pacientes buscas acabei por desencavar a preciosa medalha entre pilhas de botas e no meio daquele montão de objetos inúteis que se carregam ao fugir. Ao termo de minha convalescença, e por ocasião de minha passagem por Paris, mostrá-la-ei. Desde já, no entanto, e embora mantenha em segredo as indicações gravadas numa das suas faces, posso dizer-lhe que a outra face apresenta estas três palavras: "In robore fortuna", três palavras que assim se podem traduzir: "Na firmeza de caráter reside a fortuna", mas que, pela presença da palavra "robore", e apesar da diferença de ortografia, fazem, sem dúvida, alusão ao castelo de Roborey onde, conseqüentemente, estava escondida a fortuna de que falam nossas lendas de família.

        Não é esse, meu caro Otávio, mais um passo no caminho da verdade? Faremos coisa melhor. E talvez de modo imprevisto, sejamos auxiliados por uma jovem, realmente curiosa, com a qual acabo de passar alguns dias que me encantaram... refiro-me à minha queridinha Iolanda.

        Sabe o caro amigo que muitas vezes lastimei não ter sido o pai que desejaria ser. Minha paixão por aquela que foi a mãe de Iolanda, meu pesar pela sua morte, minha vida errante durante os anos que se seguiram, tudo isso me conservou afastado da modesta granja que você chama de fidalga, e que agora não passa, tenho certeza, de um montão de ruínas.

        Durante esse tempo, vivia Iolanda sob a guarda dos granjeiros, educando-se a si própria, instruindo-se com o vigário ou o professor, principalmente em contado com a natureza, gostando de animais, cultivando as flores, exuberante e muito ajuizada.   Por várias vezes, no curso das minhas visitas a Argonne, ela me surpreendera pelo seu senso prático e sua inteligência. Desta vez, encontrei-a mocinha, na ambulância de Bar-le-Duc, onde, por sua própria autoridade, estabeleceu-se como enfermeira-auxiliar. Quinze anos apenas, e não se imagina a influência que exerce sobre todos que a cercam. Julga os fatos como pessoa adulta, decide-se de acordo com seu próprio raciocínio, tem uma visão sempre justa da realidade, não tal como a vemos, porém tal como é sob as aparências.

        "Sabes ver claro", dizia-lhe eu "Tens olhos de gato, que vagueiam tranqüilamente nas trevas."

        Quando a guerra terminar, meu caro Otávio, levarei Iolanda à sua presença e garanto-lhe que, com os nossos amigos, faremos um bom trabalho...”

        O conde deteve-se. Dorotéia sorria tristemente, comovida pela ternura e admiração que se evolavam daquela carta.

        —Não é tudo, é? — perguntou.

        —A carta, propriamente — respondeu o conde — acaba aqui. Datada de 15 de janeiro de 1916, só foi remetida no dia 30; eu, por diversos motivos, recebi-a apenas três semanas mais tarde. Posteriormente, soube que João de Argonne tivera, naquela mesma noite de 15 de janeiro, um acesso de febre mais forte, daquela febre que confundia o major e indicava a súbita infecção de que morreu seu pai... ou pelo menos...

        —Ou pelo menos?... — interrompeu a jovem.

        —Ou pelo menos de que morreu seu pai, oficialmente — terminou o conde em voz mais baixa.

        —Que diz? Que diz? — exclamou Dorotéia — Meu pai não morreu do seu ferimento?

        —Não é certo... -— declarou o Sr. de Chagny.

        —Mas então, de que morreu? Que pretende afirmar? Que supõe o senhor?

V

O ASSASSÍNIO   DO   PRÍNCIPE   DE   ARGONNE

        Calou-se o conde.

        Ansiosa, com essa apreensão que sentimos ao pronunciar certas palavras, murmurou Dorotéia:

        —Será possível?... Terão matado?... Terão matado meu pai?...

        —Tudo leva a crer.

        —E como?

        —Com veneno.

        Fora desfechado o golpe. A moça chorava. O conde inclinou-se para ela e disse-lhe:

        —Leia. Por minha parte, calculo que seu pai, entre dois acessos de febre e delírio, rabiscou estas últimas páginas. Quando morreu, a administração da enfermaria, achando uma carta e um invólucro prontos, remeteu-me tudo sem tomar conhecimento. Olhe o final, é uma letra de doente... traçada a lápis, ao acaso, e por um esforço de vontade que a todo instante fraquejava...

        Dorotéia enxugou as lágrimas. Queria saber e julgar por si, e leu a meia-voz:

        "Que sonho... Mas será mesmo um sonho?... O que vi esta noite, terei visto num pesadelo? Ou vi realmente? Os outros feridos... meus vizinhos... ninguém acordou... Entretanto, o homem... os homens fizeram barulho... Eram dois... Conversavam baixinho... no jardim... em baixo da janela... que estava entreaberta, com certeza por causa do calor... E depois, empurraram a janela...Para isso terá sido preciso que um dos dois... subisse nos ombros do outro. Que desejava ele? Tentou passar o braço... Mas a janela era encostada à mesinha de cabeceira... E então teve de tirar o casaco... Apesar de tudo, a manga da camisa ficou presa e só o braço... o braço nu passou... precedido da mão que procurava do meu lado... do lado da minha gaveta... Aí compreendi... Ali se encontrava a medalha...Ah! Como quis gritar! Minha garganta, porém, estava estrangulada...De mais a mais, outra coisa me aterrorizava. A mão segurava um frasco... Em cima da mesa havia um copo de

água para mim, com um medicamento para eu tomar... A mão entornou algumas gotas do frasco dentro do copo. Oh! que horror!... Veneno, sem dúvida. Mas não tomarei a minha poção, não, não... E escrevo isto esta manhã para ficar certo de que me lembrarei... Escrevo que a mão abriu a gaveta... E enquanto se apoderava da medalha... eu via... eu via sobre o braço nu... acima do cotovelo... palavras escritas..."

        Dorotéia precisou inclinar-se, tão trêmula e ilegível se tornava a letra, e foi com esforço, sílaba a sílaba, que conseguiu decifrar:

        "Três palavras escritas... em tatuagem... como os marinheiros... três palavras... Ah! meu Deus, estas três palavras... as palavras da medalha... In robore fortuna..."

        Era tudo. A página inacabada oferecia apenas sinais incoerentes, que Dorotéia nem mesmo tentou interpretar.

        Por muito tempo se manteve curvada, com os olhos semi-cerrados, deixando correr as lágrimas. Sentia-se que as circunstâncias nas quais, com toda probabilidade, morrera seu pai, reavivavam-lhe a sua tristeza.

        O conde, porém, continuou:

        —A febre teria voltado... o delírio... e, maquinalmante, ele bebeu o veneno. Ou pelo menos a hipótese é plausível... porque, afinal, que teria entornado no copo aquela mão de homem? Confesso, todavia, que não obtivemos uma certeza a tal propósito. Prevenidos logo por mim, d'Estreicher e o pai de Raul me acompanharam a Chârtres. Infelizmente, a administração, o major e as duas enfermeiras haviam sido substituídos, de forma que esbarrei com o documento oficial que atribuía a morte a complicações infecciosas. Aliás, deveríamos levar avante as pesquisas? Não foi essa a opinião de meus dois primos, nem a minha. Um crime ...como o provar? Por aquelas poucas linhas onde um enfermo relata o pesadelo que o assalta? Impossível.   Não concorda?

        Dorotéia não respondia, o que desconcertou um pouco o Sr. do Chagny. Não sem mau humor, pareceu defender-se:

        "Mas nós não o podíamos! Por causa da guerra, defrontavámo-nos com dificuldades sem número. Era impossível! Devíamos ater-nos ao único fato formal, e não nos aventurar além desta coisa real que assim formularei: além de nós quatro, ou melhor, de nós três, desde que Argonne, infelizmente, não mais existia, havia uma quarta pessoa que se dedicava ao problema que nós tentávamos resolver e que, até, contava com um considerável avanço sobre nós. Um rival, um inimigo surgia, capaz das piores ações para atingir seu alvo. Que inimigo? Os acontecimentos não permitiram ocupar-nos deste assunto, e nem tampouco a encontrar, conforme desejaríamos. Ficaram sem resposta as duas cartas que escrevi para Bar-le-Duc. Passaram-se os meses. Jorge Davernoie foi morto em Verdun, d'Estreicher ferido em Artois e eu próprio enviado em missão a Salonica, de onde só voltei após o armistício. Logo no ano seguinte se iniciaram aqui os trabalho

  1. Ontem se realizava a inauguração e hoje o acaso a trouxe até cá.

        "A senhorita compreende qual tenha sido nossa estupefação quando, em rápida seqüência, soubemos por seu intermédio, primeiro que as pesquisas estavam sendo feitas à nossa revelia, depois, que o local dessas pesquisas se explicava pela palavra "fortuna", que, precisamente, completava a inscrição lida por seu pai duas vezes, na medalha de ouro e no braço do homem que lhe roubara essa medalha. Nossa confiança em sua extraordinária lucidez tornava-se tal que minha mulher e Raul Davernoie queriam pô-la ao corrente de toda esta história, e devo reconhecer que ela dava prova de intuição e bom senso, já que a confiança por nós depositada recaía naquela Iolanda de Argonne, que o pai nos recomendava.

        "É natural, portanto, senhorita, que lhe ofereçamos colaborar em nossos esforços. Tomará o lugar de João de Argonne, assim como Raul Davernoie tomou o lugar de Jorge Davernoie. Nossa associação continua."

        Ao contentamento sentido pelo Sr. de Chagny com o seu discurso e a sua magnânima proposta misturava-se uma sombra: Dorotéia mantinha um silêncio obstinado. Seus olhos fitavam o vácuo diante de si. Não se movia. Julgaria que o conde não se esforçara muito para encontrar a filha de seu parente Argonne e poupá-la à vida que levava? Conservaria algum rancor pela humilhação que lhe haviam infligido acusando-a do roubo dos brincos?   A Sra. Chagny a interrogou com suavidade:

        —Que tem, Dorotéia?   Essa carta a entristeceu muitíssimo. A morte de seu pai, não?...

        —Isso mesmo — confirmou Dorotéia ao cabo de um instante e em voz surda —. É uma coisa terrível...

        —Também acredita que o tenham morto ?...

        —Decerto. Do contrário teriam   achado   a medalha.   Aliás, estas poucas páginas são formais.

        —E, no seu modo de entender, devíamos ter recorrido à justiça?

        —Não sei... não sei... — declarou a jovem.

        —Mas se pensa desta forma, poderemos voltar ao caso. Fique certa de que lhe prestaremos o nosso apoio.

        —Não — disse ela —. Agirei sozinha. É melhor. Descobrirei o culpado, e ele será punido. Prometo-o a meu pai... Faço-lhe este juramento. . .

        Pronunciou essas palavras com uma gravidade refletida e estendendo um pouco a mão.

        —Nós a auxiliaremos nisso, Dorotéia — afirmou a Condessa—. Pois espero que não irá embora... Aqui, está em sua casa.

        Dorotéia abanou a cabeça.

        —A senhora é muito boa.

        —Não é bondade. É afeição. Você ganhou logo meu coração, e peço-lhe a sua amizade.

        —A senhora a tem, e total. Mas...

        —Como! recusa! — articulou o Sr. de Chagny em tom vexado —.   Oferecemos à filha de João de Argonne, nosso primo, viver de acordo com o seu nome e o seu nascimento, e ela prefere retornar a essa existência miserável!

        —Não é miserável, garanto-lhe, cavalheiro. Eu e meus quatro filhos estamos habituados, e a saúde deles o exige...

        A Condessa insistiu:

        —Vejamos. É inadmissível! Há qualquer razão secreta.

        —Nenhuma, asseguro-lhe, minha senhora.

        ?Então vai ficar, pelo menos por alguns dias, e desta noite em diante vai jantar e dormir no castelo.

        —Peço-lhe, senhora...   Estou um pouco fatigada...   Preciso ficar só.

        De fato, parecia repentinamente exausta. Ninguém diria que um sorriso pudesse iluminar aquela fisionomia taciturna e tensa.

        A Sra. de Chagny não insistiu.

        ?Pois bem, transfiramos para amanhã a nossa resolução. Mande seus quatro filhos para jantarem conosco esta noite. Sentimos prazer em tê-los conosco e em mimá-los um pouco... De hoje até amanhã você refletirá, e se persistir, deixá-la-ei livre. Estamos de acordo, pois não?

        Dorotéia se levantara. Acompanhada pelo Sr. e a Sra. de Chagny, dirigiu-se à porta. No momento de sair, porém, teve uma hesitação. Apesar de sua pena, a misteriosa aventura que, havia poucas horas, lhe fora revelada, continuava a preocupá-la contra a sua vontade, por assim dizer, e, lançando um primeiro raio de luz nas trevas, declarou:

        —Acredito, de fato, que todas as lendas transmitidas por nossas famílias correspondem a uma realidade. Em qualquer lugar devem existir por aí riquezas enterradas ou ocultas, e essas riquezas, mais cedo ou mais tarde, pertencerão àquele ou àqueles que forem os possuidores do talismã representado por aquela medalha de que meu pai foi despojado. E é por isso que eu gostaria de saber se, além de papai, algum dos senhores jamais ouviu associar a essas lendas uma medalha de ouro.

        Quem respondeu foi Raul Davernoie:

        —Posso dar-lhe uma informação a tal respeito, senhorita. Há uns quinze dias, vi em mãos de meu avô, com quem moro no Manoir-aux-Buttes, na Vendéia, uma grande moeda de ouro que ele examinava, e que logo tornou a colocar no seu escrínio, com a evidente intenção de a dissimular a meus olhos.

        ?Não lhe deu nenhuma explicação?

        —Nenhuma. Entretanto, na véspera da minha partida, disse-me: "Quando estiveres de volta, terei uma revelação muito grave para te fazer. Já a retardei demasiado."

        —Julga que isso fosse uma alusão ao fato que nos preocupa?

        —Julgo que sim. Destarte, mal cheguei a Roborey avisei meus primos de Chagny e d'Estreicher, que me prometeram ir ver-me em fins de julho, e aos quais darei então conhecimento do que descobrir.

        ?É só?

        —É só, senhorita, e parece-me que tudo isso confirma perfeitamente a sua hipótese; trata-se de um talismã do qual existem, sem dúvida nenhuma, vários exemplares.

        —Sim... sim... sem dúvida nenhuma — sussurrou a moça — e a morte de meu pai se explica pelo fato de ser ele possuidor desse talismã.

        —Mas, — objetou Raul Davernoie — não bastaria que lhe roubassem? Por que esse crime inútil?

        —Porque a moeda de ouro, recorde-se, dá certas indicações. Suprimindo meu pai, restringiam o número dos que, em futuro talvez muito próximo, serão chamados a partilhar as riquezas. Quem sabe até se não foram cometidos outros crimes, ou não venham a sê-lo?

        —Outros crimes? Neste caso, meu avô corre perigo?

        —Corre, sim senhor — afirmou ela, peremptória.

        O conde ficou inquieto, e, afetando rir, indagou:

        —Por conseguinte, também nós, senhorita, já que Roborey oferece indícios de pesquisas recentes?

        —Os senhores condes também.

        —Deveremos, portanto, precaver-nos?

        —Aconselho-o.

        O Sr. de Chagny empalideceu e, com voz mal segura, perguntou:

        —Como? Por que meio?

        —Amanhã lhe direi — declarou Dorotéia — Amanhã saberá o que deverá temer e o que deverá fazer para defender-se.

        —Promete?

        —Prometo-lhe.

        D'Estreicher, que seguira atentamente todas as frases da conversa, sem nela tomar parte, interveio:

        —Tanto maior questão fazemos dessa entrevista, senhorita, porquanto nos resta resolvermos juntos um probleminha acessório, relativo à caixa de papelão. Esqueceu-o?

        —Não me esqueço de nada, cavalheiro — redargüiu ela — Amanhã, a esta hora, essa coisinha, e outras coisas, o roubo dos brincos, por exemplo, serão elucidadas.

        E saiu.

        A tarde começava a declinar. Tinham aberto de novo o portão e, uma vez desarmadas as suas instalações, os saltimbancos haviam partido. Dorotéia encontrou de novo Saint-Quentin, que a aguardava com impaciência, e as três crianças que acendiam o fogo. Ao tocar o sino para o jantar, ela as enviou ao castelo e ficou só, comendo a sopa grossa e as frutas que compunham a sua refeição. À noite, enquanto as esperava, afastou-se, no escuro, em direção ao parapeito que dominava o barranco e sobre o qual apoiou os dois cotovelos.

        A Lua não estava visível, mas o véu de pequenas nuvens que flutuavam no céu se impregnava de claridade. Por muito tempo ela escutou o grande silêncio e, de cabeça descoberta, oferecia à frescura da noite a fronte escaldante e os cabelos soltos.

        —Dorotéia...

        Seu nome fora pronunciado muito baixo, por alguém que se aproximara sem que ela ouvisse. Mas o som daquela voz, por mais abafado que fosse, fê-la estremecer. Antes mesmo de reconhecer o vulto de d'Estreicher, adivinhou-lhe a presença.

        Fosse o parapeito menos alto e a ribanceira menos profunda, e ela tentaria fugir, tamanho era o medo que aquele homem lhe inspirava. Contudo reagiu, esforçando-se por permanecer calma e dominá-lo.

        —Que deseja de mim, cavalheiro? — perguntou secamente —O Sr. e a Sra. de Chagny tiveram a delicadeza de aceder ao meu desejo de repousar. Espanto-me por vê-lo aqui.

        Ele não respondeu, mas a jovem discerniu sua sombra mais perto, e repetiu:

        ?Que deseja de mim?

        ?Dizer-lhe apenas algumas palavras — declarou ele.

        ?Amanhã haverá tempo, no castelo.

        —Não, o que tenho para dizer-lhe só pode ser ouvido pela senhorita, e poderá ouvir sem ficar ofendida, juro-lhe. Apesar da incompreensível hostilidade que me testemunhou desde a primeira hora, eu lhe dedico amizade, admiração e um grande respeito. Portanto, não receie minhas palavras nem meus atos. Não me dirijo à linda e sedutora jovem que é, mas à mulher que durante todo o dia de hoje nos desconcertou pela sua inteligência. Escute-me. . .

        ?Não?retrucou Dorotéia—não quero. Suas palavras só podem ser injuriosas.       Com mais força prosseguiu ele — e sentia-se que sua natureza combinava mal com a doçura e o respeito:

        — Escute-me! Ordeno-lhe que me escute... e que me responda imediatamente. Não sou feito para as grandes frases, e irei direto ao alvo, um pouco rudemente, se preciso, com o risco de escandalizá-la. Por conseguinte, ouça. O acaso a lançou de chôfre num assunto que tenho todo o direito de considerar como pertencente a mim. Em torno de nós existem comparsas que estou resolvido a desprezar completamente quando chegue o momento. Todas essas pessoas são imbecis que não chegarão a coisa nenhuma. Chagny é um vaidoso ridículo... Davernoie, um homem do campo... São outros tantos pesos mortos que arrastaremos, eu e você... Por conseguinte, para que trabalhar para eles?... Trabalhemos para nós, quer? Para nós dois. Eu e você associados, amigos, que obra levaríamos a cabo! Minha energia, minhas forças ao serviço da sua inteligência e da sua lucidez! E depois... e depois... tudo quanto sei! Porque eu conheço o problema! O que você levará s

emanas para descobrir, o que você, sem dúvida, nunca há de descobrir, eu já sei. Tenho em mãos todos os elementos da verdade, exceto alguns que, de qualquer forma, acabarei por reunir. Ajude-me, procuremos juntos, e será a fortuna, o descobrimento de fabulosas riquezas, o poder sem limites... Quer... quer ?...

        Inclinara-se um pouco demais na direção da jovem, e seus dedos roçavam o xale que ela usava. Dorotéia, que o escutara em silêncio para conhecer o pensamento secreto do adversário, estremeceu de indignação àquele contacto.

        —Vá embora... deixe-me... Proíbo-o de me tocar... O senhor, um amigo?... o senhor, o senhor!

        A repulsa que ele inspirava a Dorotéia o pôs fora de si, e, fremente de cólera, escandiu estas sílabas:

        —Então... então... recusa? Recusa apesar do que surpreendi, apesar do que eu poderia fazer... e do que irei fazer. Porque, afinal de contas, o roubo dos brincos não foi só de Saint-Quentin. Você estava presente, no barranco, vigiando a sua expedição. E, ainda há pouco, protegeu-o como uma cúmplice. E existe a prova, terrível, irrefutável. A caixa se encontra em mãos da Condessa. E você ousa, uma ladra!...

        Estendia o braço na direção da interlocutora. Esta se abaixou, esgueirando-se ao longo do parapeito. Mas ele conseguiu agarrar-lhe os pulsos e puxava-a para perto de si, quando de súbito soltou a sua presa, atingido por um jato de luz que o cegava.

        Trepado no parapeito, Montfaucon focalizava no seu rosto a claridade de uma lâmpada elétrica.

        D'Estreicher se afastou: a claridade o perseguiu, como uma projeção habilmente assestada.

        —Guri de uma figa! — resmungou — Ainda te apanharei... E tu também, pequena... Se amanhã, às duas horas, no castelo, não cederes, a caixa será aberta na presença dos policiais. Cabe-te escolher, patifa!

        E desapareceu entre as moitas.

        Por volta das quatro horas da manhã, o postigo que, do interior do veículo, dava para a boléia, foi aberto, como ocorrera na manhã anterior. Uma mão por ali se enfiou e sacudiu Saint-Quentin, que dormia debaixo de suas cobertas.

        —Levanta. Veste-te. Nada de barulho.

        —Dorotéia, o que pretendes fazer é absurdo — protestou ele.

        —Vamos.

        Saint-Quentin obedeceu.

        Fora, encontrou Dorotéia já pronta. À luz da Lua, viu que ela trazia a tiracolo uma sacola de fazenda e um rolo de corda.

        Ela o conduziu até o ponto do parapeito que encostava no portão de entrada. Amarraram a corda num dos varões e deixaram-se escorregar. Em seguida Saint-Quentin subiu outra vez para a esplanada e soltou a corda.

        Pela rampa, desceram ao barranco e perlongaram a penedia até a escavação que o rapazinho escalara na véspera.

        —Subamos — disse Dorotéia — Tu desenrolarás a corda medida que for necessário, e me ajudarás a subir.

        A ascensão não foi muito difícil. A janela da copa estava aberta. Entraram ambos e Dorotéia acendeu a sua lanterna de bolso.

        ?Apanha aquela escadinha que está ali no canto — ordenou a jovem.

        Saint-Quentin, porém, replicou de novo:

        —É absurdo. É uma loucura. Vamos meter-nos na boca do lobo.

        ?Obedece.

        ?Mas afinal, Dorotéia...

        Recebeu um soco no estômago.  

        —Basta. Responde-me, tens certeza de que o quarto que d'Estreicher é o último do corredor à esquerda?

        —Certeza absoluta. De acordo com as tuas instruções, interroguei disfarçadamente os criados ontem à noite, depois do jantar.

        —E derramaste mesmo na xícara de café o pó que te dei?

        ?Derramei sim.

        —Por conseguinte, d'Estreicher dorme a sono solto, e podemos pôr mãos à obra sem susto.   Nem mais uma palavra.

        Em caminho, detiveram-se defronte de uma portinha. Era o quarto de guardados, contíguo à saleta da Condessa.

        Saint-Quentin apoiou a escada à parede e passou pelo óculo. Três minutos mais tarde, voltava.

        ?Achaste a caixinha de papelão? — perguntou-lhe Dorotéia.

        —Sim, sobre a mesa. Retirei dela os brincos e pus de novo a caixa onde estava, com o seu elástico.

        Prosseguiram.

        Cada quarto possuía seu banheiro e seu cubículo para malas, que servia também de guarda-roupa. Pararam diante do último postigo, Saint-Quentin o galgou e depois abriu a Dorotéia o quarto de banho. Entre este e o dormitório havia uma porta. Dorotéia a entreabriu e, prudentemente, projetou um facho de luz.

        — Está dormindo — disse ela.

        Da sacola tirou um grande lenço, desarrolhou um vidrinho de clorofórmio e derramou algumas gotas no lenço.

        Atravessado no leito, inteiramente vestido, como um homem assaltado pelo sono, d'Estreicher dormia tão profundamente que a moça acendeu a luz elétrica. Depois, com um gesto delicado, colocou-lhe sobre o rosto o lenço cloroformizado.

        O homem suspirou, debateu-se um pouco, e em seguida não se mexeu mais.      

        Com precaução, Saint-Quentin e Dorotéia passaram cada um de seus braços por dentro de um nó corredio de uma corda cujas duas extremidades prenderam às colunas de ferro do leito. Depois, rapidamente, sem se incomodarem mais, puxaram os lençóis e a colcha para baixo, em torno das pernas e do busto, e amarraram tudo com o pano de mesa e as braçadeiras das cortinas.

        Desta vez d’Eistreicher acordou. Quis defender-se. Era demasiado tarde. Chamou Dorotéia passou-lhe um guardanapo em volta da parte inferior do rosto.

        No dia seguinte pela manhã, o Sr. e a Sra. de Chagny tomavam café na companhia de Raul Davernoie, no salão do castelo, quando o porteiro foi avisá-los de que, pela madrugada, a diretora do Circo Dorotéia fora pedir-lhe que lhe abrisse o portão, e o carro havia partido. A diretora deixara uma carta dirigida ao conde de Chagny. Subiram os três à sala da condessa. A carta estava assim redigida:

        “Meu primo (contrariado, o conde estremeceu e logo reatou a leitura):

        Meu primo, fiz um juramento, e o mantenho. O homem que pratica as buscas no castelo e, na noite passada, roubava os brincos, é o mesmo que, há cinco anos, roubou a medalha e envenenou meu pai.

        Entrego-o em seu poder. Que a justiça siga o seu curso.

        DOROTÉIA, princesa de Argonne.”

        Os castelões e o primo entreolharam-se com estupor. Que queria dizer aquilo? Quem era o culpado? Como e onde o havia ela entregue?

        —É pena que d'Estreicher ainda não tenha descido do quarto — observou o Sr. de Chagny —. Ele é de bom conselho.

        A Condessa apanhou de cima da lareira a caixa de papelão que d'Estreicher lhe confiara e abriu-a resolutamente. A caixa continha exatamente o que Dorotéia dissera: seixos brancos e contas. Então, por que parecia d'Estreicher emprestar tanta importância à sua descoberta?

        Alguém bateu discretamente à porta da saleta. Era o mordomo, o homem de confiança do Sr. de Chagny.

        —Que é que há, Domingos?

        —Esta noite, senhor conde, penetraram no   castelo...

        —Impossível! — afirmou o fidalgo em tom peremptório —As portas estão sempre fechadas.   Por onde terão passado?

        —Não sei. Mas encontrei uma escada em pé no corredor, diante do apartamento do Sr. d'Estreicher, e o postigo do cubículo foi arrombado. Os malfeitores penetraram no banheiro, e tornaram sair pela porta do corredor, uma vez terminada sua tarefa.

        —Que tarefa?

        —Não sei, senhor conde. Não ousei levar adiante o meu inquérito. Coloquei tudo de novo nos mesmos lugares.

        O Sr. de Chagny tirou do bolso uma nota de cem francos.

        —Nem uma palavra sobre isso tudo, Domingos. Vigie o corredor, para que ninguém nos incomode.

        Sua mulher e Raul seguiram-no. A porta entre o banheiro e o quarto de d'Estreicher estava igualmente aberta. Um cheiro de clorofórmio enchia o aposento.

        A Condessa soltou um grito.

        Em cima da cama, estava estendido d'Estreicher, amordaçado e solidamente amarrado. Furioso, revirava os olhos e gemia. A seu lado, estava o cachenê que Dorotéia descrevera como pertencente ao homem que praticava as buscas. Sobre a mesa, bem em evidência, os brincos.

        Mas aos três, ao mesmo tempo, se lhes deparou qualquer coisa terrível, desconcertante, qualquer coisa que era a prova irrefutável do crime cometido contra João de Argonne e do roubo da medalha. O braço direito, nu, pendia à beira do leito, amarrado pelo pulso. E nesse braço liam-se estas três palavras tatuadas: IN ROBORE FORTUNA.

 

VI

Pelas estradas

        Diariamente, ao passo indolente ou ao trote preguiçoso de Zarolha, o Circo Dorotéia se deslocava, dando funções à tarde, e vagando através daquelas cidadezinhas da França cujo pitoresco encanto a jovem apreciava profundamente; Dom-front, Mortain, Avranches, Fougères, Vitré, cidadelas feudais, cingidas em certos trechos pelas suas fortificações ou eriçadas de seus antigos torreões... Dorotéia visitava-as com toda a comoção de um ser que compreende e se entusiasma à evocação do passado.

        Visitou-as sozinha, assim também como caminhava a sós pelas estradas reais, com tão manifesto desejo de se conservar apartada que os outros, embora a espreitassem com ar ansioso e mendigando um olhar de sua mamãe, nem mesmo lhe dirigiam a palavra.

        Durou isso uma semana, uma semana muito tristonha para as crianças. O pálido Saint-Quentin guiava Zarolha como se guiasse o cavalo de um carro de enterro. Castor e Pólux não brigavam mais. Quanto ao capitão, mergulhava na leitura de seus livros de estudo e esfalfava-se com somas e subtrações, sabendo que Dorotéia, mestra-escola do bando, era, habitualmente, muito sensível a essas crises de aplicação. Esforços vãos. Dorotéia pensava noutra coisa.

        Desde o amanhecer, atravessada a primeira aldeia, comprava um jornal, percorria-o com os olhos e depois com um gesto irritado, como se não tivesse encontrado ali o que procurava. Saint-Quentin logo o apanhava e folheava por sua vez. Nada. Nada sobre o crime que ela lhe contara em poucas palavras. Nada sobre a detenção daquele abominável d'Estreicher, que os dois juntos haviam amarrado sobre o próprio leito.

        Por fim, ao oitavo dia, tal como nasce o Sol depois de chuvas intermináveis, apareceu o sorriso. Não havia para isso nenhuma razão externa. Era a vida que retomava seus direitos. O espírito da jovem se libertava do drama longínquo em que seu pai encontrara a morte. Tornava ela a ser a Dorotéia despreocupada, exuberante e carinhosa. Castor, Pólux e Montfaucon foram beijados nas faces. Saint-Quentin recebeu uma quantidade de pancadas e apertos de mão. Na representação que se realizou ao pé das muralhas de Vitré, ela se mostrou atordoante de alegria e espírito. E quando o público partiu, empurrou seus quatro camaradas, arrastando-os numa daquelas rodas loucas que eram para eles a melhor das recompensas.

        Saint-Quentin chorava de alegria.

        —Eu pensava que tu não gostasses mais de nós — dizia ele.

        —Por que não gostar mais dos meus quatro fedelhos?

        —Porque és uma princesa.

        —E antes não era, imbecil?

        E levando-os para as ruas estreitas do velho Vitré, na confusão das casas de madeira cobertas de grosseiras ardósias, ela, pela primeira vez, e de modo intermitente, falou-lhes dos anos da sua infância.

        Não tendo jamais conhecido obstáculos, constrangimentos, disciplina, o que contraria o livre instinto e deforma a natureza, sempre fora feliz. Desejosa de instruir-se, só pedira aos outros o que lhe agradava saber, haurindo do bom cura de Argonne o que ele conhecia de latim, e deixando-lhe o seu catecismo, aprendendo muitas coisas com o mestre-escola, muitas outras nos livros que lhe emprestavam, e ainda muitas mais com o casal de velhos granjeiros junto aos quais seus parentes a abandonavam.

        —É a eles que mais devo —dizia — Sem eles, eu não saberia o que é um pássaro, uma planta, uma árvore, a significação das coisas reais.

        Gracejou Saint-Quentin:

        —Todavia, não foram eles que te ensinaram a dançar na corda.

        —A dança está em mim. Herdei isso de minha mãe, que não era absolutamente uma grande dama do teatro, mas apenas uma valente dançarinazinha, uma "dancing-girl" de café-concêrto e de circo inglês. Embora criada à toa, privada de guia e conselhos, tendo como único exemplo diante dos olhos a vida frívola de seus parentes, adquirira fortes noções morais, mantinha sempre uma grande dignidade e permanecia sensível aos imperativos da consciência. O que é mal, é mal. Quanto a isso não se transige.

        — Só nos sentiremos felizes — dizia — se estivermos de acordo com as pessoas de bem.   Quanto a mim, sou moça de bem.

        Assim, por muito tempo, explicava-se a si mesma. Boquiaberto, Saint-Quentin a escutava.

        —Meu Deus! Onde aprendeste tudo isso? Tu sempre me espantas, Dorotéia. E de mais a mais, como podes adivinhar o que adivinhas? Outro dia, em Roborey, não compreendi nada, absolutamente nada!

        —Ah! isso é outra coisa — afirmou ela — É uma necessidade de combinar, organizar, ordenar, uma necessidade de empreender e vencer. Quando eu era criança, agrupava todos os garotos da aldeia e formava bandos. Coligávamo-nos contra um malfeitor, procurávamos o carneiro ou o pato furtado a uma pobre mulher, ou então nos industriávamos a realizar inquéritos. Ah! Os inquéritos eram o meu forte. Antes que os policiais fossem avisados, eu tirava a limpo um caso, de maneira tal que os camponeses dos arredores iam consultar a garota de treze a quatorze anos que eu era. "Uma verdadeira feiticeirinha", diziam. Não, santo Deus! Tu sabes como eu, Saint-Quentin, que se às vezes me faço de vidente ou cartomante, tudo quanto conto aos outros tiro dos fatos que observo e interpreto... E tiro-o também, devo dizer, de uma espécie de intuição que me mostra as coisas sob um aspecto que não aparece logo aos demais. Sim, amiúde vejo, antes de compr

eender. Então, histórias muito complicadas me parecem, à primeira vista, muito simples e sempre me surpreende que não notem determinado pormenor, o qual, no entanto, traz em si toda a verdade.

        Subjugado, Saint-Quentin refletia. Abanou a cabeça:

        —É isso, é isso mesmo. Nada te escapa, tu pensas em tudo. E aí está como os brincos, em lugar de terem sido roubados por Saint-Quentin, foram roubados por d'Estreicher. E é d'Estreicher, e não Saint-Quentin, que vai para a prisão, porque tu assim quiseste.

        Ela se pôs a rir.

        ?Eu talvez tenha querido assim. Mas a justiça parece não se submeter às minhas vontades. Os jornais não falam de nada. Não tratam do drama de Roborey.

        —Então, que aconteceu a esse miserável?

        —Não sei.

        —E não poderás saber?

        —Poderei sim — afirmou ela.

        —Como?

        —Por intermédio de Raul Davernoie.

        —Quer dizer que vais vê-lo?

        —Escrevi-lhe.

        —Para onde?

        —Para Roborey.

        —Respondeu-te?

        —Respondeu. Um telegrama que fui buscar no correio antes da representação.

        —E ele vem ter conosco?

        —Sim, vem. Ao deixar Roborey de regresso a sua casa, deverá encontrar-se conosco em Vitré, por volta das três horas.

        Haviam subido a um ponto da cidade de onde se descortinava uma estrada que serpenteava entre as campinas e os bosques.

        —Atenção—disse ela—Seu automóvel não deve tardar a aparecer...a estrada é essa...

        —Achas, realmente...

        —Acho realmente que esse honesto rapaz não perderá a ocasião de me rever—afirmou Dorotéia, sorridente.

        Sempre um pouco ciumento, Saint-Quentin, que facilmente se inquietava, suspirou:

        —Todos aqueles com quem falas são assim... amáveis... solícitos...

        Aguardaram alguns minutos. Surgiu um auto entre duas sebes. Os dois avançaram, o que os aproximou do carro de saltimbancos, em torno do qual brincavam os três pimpolhos.

        Passou-se um instante. O auto escalou a ladeira e desembocou numa curva, conduzido por Davernoie. Lançando-se ao seu encontro, e, com um gesto, impedindo-o de apear-se, gritou-lhe Dorotéia:

        —E então, que aconteceu? Foi preso?

        —Quem? D'Estreicher? — indagou Raul, um pouco atônito por essa acolhida.

        —Evidentemente, d'Estreicher... Entregaram-no à polícia, não? Está preso?

        —Não.

        — E então?

        —Fugiu.

        A resposta produziu-lhe um golpe.

        —D'Estreicher livre!... livre para agir!... Ah! é terrível! — E, entre dentes: — Meu Deus... meu Deus! por que não fiquei? teria impedido essa evasão...

        Mas de nada serviam as lamúrias, e Dorotéia não era mulher que se lamentasse por muito tempo. Sem tardar, interrogou o rapaz:

        —Por que ficou você no castelo?

        —Precisamente...   por causa de d'Estreicher.

        —Seja. Mas uma hora após a sua fuga deveria partir e voltar para casa.

        —Por que razão?

        —Seu avô...   eu o preveni em Roborey.

        Raul Davernoie protestou:

        —Em primeiro lugar, escrevi-lhe para que se precatasse, por motivos que eu lhe explicaria. E depois, realmente, o perigo que ele corre é um pouco problemático.

        —Como?! Ele é possuidor daquele indispensável talismã que é a medalha de ouro. D'Estreicher o sabe. E você não acredita no perigo.

        —Mas d'Estreicher também é possuidor desse talismã, já que roubou a medalha de ouro.

        Plantara-se a jovem diante da portinhola e segurava a maçaneta a fim de impedir que Raul abrisse. E em tom insistente lhe disse:

        — Parta, peço-lhe. Claro que não compreendo toda a aventura. D'Estreicher, possuidor da medalha, tenta roubar uma segunda?

        —A que tirou de meu pai ter-lhe-á sido arrebatada por um cúmplice?

        —Ainda não sei nada a tal respeito. Mas tenho a certeza de que, de agora em diante, o verdadeiro terreno da luta é lá, em sua casa. A tal ponto que eu mesma para ali me dirigia igualmente. Sim, olhe, eis o mapa da estrada. O Manoir-aux-Buttes, perto de Clisson... faltam cento e cinqüenta quilômetros. Oito etapas para a carriola. Vá, você chegará esta noite. Eu lá estarei de amanhã a oito dias.

        Dominado por ela, Raul concordava:

        —Talvez tenha razão. Eu devia ter pensado em tudo isso. Tanto mais que meu avô estará sozinho esta noite.

        —Sozinho?

        —Sim. Todos os criados foram a uma festa. Um deles se casa na aldeia vizinha.

        Ela teve um sobressalto.

        —D'Estreicher está a par disso?

        —Creio que sim. Parece-me ter falado dessa festa na presença dele, durante minha estada em Roborey.

        —E quando se evadiu ele?

        —Anteontem...

        —Quer dizer que desde anteontem...

        Não terminou. Precipitando-se para a carroça, tornou a sair quase imediatamente com uma maleta.

        —Vou partir — anunciou — Acompanho-o. Não há um instante para perder.

        Ela mesma pôs de novo o motor em marcha, enquanto dava ordens:

        —Confio-te o carro e as três crianças, Saint-Quentin. Dirige-te pelo risco vermelho que marquei no mapa. Dobra as etapas: nada de representações. Em cinco dias podes estar lá.

        Sentou-se ao lado de Davernoie. O auto já estava de partida quando ela apanhou o capitão, que lhe estendia os braços. Atirou-o sobre o monte de embrulhos e sacos na parte traseira do veículo.

        —Aí... não te mexas... Até a vista, Saint-Quentin. Proibidos de brigar, Castor e Pólux.

        Um último adeus com a mão.

        Toda essa cena durara menos de três minutos.

        O automóvel de Raul Davernoie era mais ou menos o que se chama comumente de "calhambeque". Por conseguinte, a marcha não foi muito rápida, e Raul, felicíssimo por transportar aquela deliciosa criatura, que era sua prima, e com a qual os acontecimentos o punham, de súbito, em tão estreitas relações, pôde narrar miudamente o que se passara, a maneira pela qual encontraram d'Estreicher, e os incidentes de seu cativeiro.

        —O que o salvou — disse ele — foi uma ferida bastante profunda que ele fez na cabeça, no primeiro dia, de encontro à grade da cama, debatendo-se para soltar-se das cordas. Perdeu muito sangue. Sobreveio febre e meu primo de Chagny, cujo caráter timorato você deve ter percebido, logo nos disse:

        " — Isso nos dará tempo.

        " — Tempo para quê? — perguntei-lhe.

        " — Para refletir. Há-de compreender que tudo isso vai causar um escândalo inaudito, e que, pela honra de nossas famílias, talvez se pudesse evitar.

        "Opus-me a qualquer delonga. Quis que telefonassem logo ao posto policial. Mas Chagny estava em sua casa, não? e os dias transcorreram na expectativa de uma decisão que ele não se resignava a tomar. O prisioneiro, aliás, parecia tão débil! Como desconfiar de um doente?"

        ?Mas que explicações dava ele sobre o seu procedimento? — perguntou Dorotéia.

        —Nenhuma, pelo seguinte motivo: não o interrogavam.

        —Não falou de mim? Não tentou acusar-me?

        —Não. Representava o seu papel de homem esgotado pela febre e pela dor. Durante esse tempo, Chagny escrevia para Paris a fim de obter informações sobre ele, pois, afinal de contas, suas relações com o primo não remontam senão a 1915. Há três dias recebemos um telegrama: "Personagem extremamente perigosa, procurada pela polícia. Segue carta." Ato contínuo, Chagny se decidiu e, antes de ontem, pela manhã, telefonou ao distrito policial. Quando chegou o chefe-de-brigada, era tarde demais. D'Estreicher fugira pela janela de uma copa que dá para a ribanceira.

        —E as informações?

        — Muito graves. Antônio d'Estreicher, ex-oficial de marinha, foi expulso dos quadros pelo crime de roubo qualificado. Mais tarde, perseguido como cúmplice num caso de assassínio, foi libertado por falta de provas. No início da guerra, desertou. Hoje têm a prova — e um processo foi instaurado há quinze dias — de que, durante a guerra, arrogou-se a identidade de um de seus parentes, morto fazia vários anos, e é sob o seu novo nome de Máximo d'Estreicher que atualmente está sendo procurado pela polícia.

        Dorotéia deu de ombros.

        —Que pena! Um bandido desses! Tinham-no em seu poder e o deixaram escapar!

        —Havemos de encontrá-lo de novo.

        —Sim, mas oxalá não seja demasiado tarde!

        Raul acelerou a velocidade. Corriam bastante rápido, atravessando as aldeias sem diminuir a marcha e pulavam sobre o calçamento das cidades. Anunciava-se a noite quando chegaram a Nantes, onde deviam parar a fim de comprar gasolina.

        —Ainda uma hora — disse Raul.

        Em viagem, ela o fez explicar-lhe a topografia exata do Manoir-aux-Buttes, a direção do caminho que, pelo pomar, conduzia até o prédio, o local do vestíbulo e da escada. E teve o rapaz, outrossim, de lhe dar pormenores sobre os hábitos do avô, sobre a idade do velho (tinha setenta e cinco anos), sobre o seu cão, Golias (um colosso, terrível de se ver, que ladrava furiosamente, mas inofensivo e incapaz de defender o dono).

        No importante burgo de Clisson, entrava-se na Vendéia. Gostaria Raul de fazer um desvio e passar pela aldeia onde se encontravam os criados. Levariam de volta os dois chacareiros. Dorotéia se opôs a isso.

        —Mas afinal, — exclamou ele — que receia?

        —Tudo—respondeu a moça—Daquele homem receio tudo. Não temos o direito de perder um minuto.

        Abandonaram a estrada real e meteram-se por um caminho da roça, que era mais uma trilha cheia de profundos sulcos.

        —É ali adiante — anunciou Davernoie —.   Há luz na janela do quarto.

        Quase ao mesmo tempo, parou e saltou do carro. Entre os altos muros que cercavam a propriedade se elevava um portão dotado de torreões, vestígio de uma época recuada. A porta estava fechada. Enquanto Raul se ocupava em abri-la, distinguiram, dominando o ruído surdo do motor, os latidos do cão. Pela natureza desse ruído, declarou Raul que Golias não estava no interior do Manoir, e sim fora, ao pé da escadaria externa, e que ladrava para a casa fechada.

        —E então! — gritou-lhe Dorotéia — você abre ou não abre?

        O rapaz voltou à pressa.

        —É muito alarmante! Puxaram o ferrôlho, e deram volta à chave na fechadura.

        ?Não é esse o hábito?

        —Nunca. Foi algum estranho que fez isto... e além do mais, você não está ouvindo os latidos?

        —E então?

        —Existe outra porta a duzentos metros.

        —E se estiver fechada? Não, é preciso agir imediatamente.

        Pôs-se ao volante e dirigiu o auto de maneira que o colocasse ao longo do muro, pouco além do portão, à direita. Lá, ficou em pé sobre o assento, após haver empilhado, umas sobre as outras, as quatro almofadas de couro.

        —Montfaucon! — chamou ela.

        O capitão entendera. Bastaram-lhe poucos movimentos para instalar-se, primeiro de joelhos, a seguir em pé sobre os ombros de Dorotéia. Suas mãos alcançavam, assim, a parte superior do muro.

        Ajudado por Dorotéia, lá se agarrou, conseguindo içar-se. Quando estava a cavalo, atirou-lhe Raul uma corda que ele amarrou em torno da cintura, e uma de cujas extremidades ficou com a rapariga. Em alguns segundos a criança tocava o solo e Raul não tinha ainda voltado ao portão quando a chave rangeu e os ferrolhos foram abertos.

        Precipitou-se Raul para o pomar.

        Dorotéia, que o seguia, disse a Montfaucon:

        —Dá a volta à casa e, se vires uma escada apoiada à parede, joga-a no chão.

        Diante da escadaria externa encontraram, com efeito, Golias que arranhava com as patas a porta fechada. Fizeram-no calar e, no silêncio, ouviram, ao alto, um rumor de luta e queixumes.

        Rapidamente, a fim de espantar o agressor, o rapaz deu um tiro de revólver. Depois, com a própria chave, abriu, e subiram a escadaria a toda pressa.

        Num dos quartos da frente, que estava iluminado por duas lâmpadas, o avô de Raul, estendido de rosto sobre o soalho, tinha convulsões, emitindo pequeninos gritos roucos.

        Raul atirou-se de joelhos, enquanto Dorotéia, apanhando uma das lâmpadas, corria para um quarto situado do outro lado do corredor, e cuja porta vira aberta.

        Esse quarto achava-se vazio. À janela, via-se emergirem os braços de uma escada.  

        Dorotéia se debruçou:

        ?Montfaucon!

        —Estou aqui, mamãe — respondeu o menino.

        —Viste alguém descer e fugir?

        —De longe, mamãe, quando eu estava chegando.

        —Reconheceste o homem?

        —O homem eram dois, mamãe.

        —Ah! Havia dois?

        — Sim... um... e também aquele feioso...

        O avô de Raul não estava morto, e nem mesmo se achava em perigo de morte. Segundo certos pormenores da luta, poder-se-ia julgar que, por meio de ameaças e violências, tentara d'Estreicher obrigar o velho a revelar o que sabia e, sem dúvida, entregar a moeda de ouro. O pescoço, especialmente, apresentava marcas dos dedos que a ele se agarraram. Teriam o bandido e seu cúmplice sido bem sucedidos no último instante?

        Os criados não tardaram a voltar. O médico, prevenido, declarou que não seria de temer nenhuma complicação. Mas, durante o dia, verificou-se que o ancião não respondia às perguntas, parecia não ouvir, e só se exprimia por incompreensíveis balbucios.

        A comoção, o medo, o sofrimento... estava louco.

VI

Aproxima-se a data

        Na região plana onde, sob a verdura, está localizado o Manoir-aux-Buttes, uma profunda garganta, aberta pelo rio Maine, rodeia, como uma argola, os campos, os pomares e as construções do Manoir. Em hemiciclo no interior da propriedade, erguem-se montículos salpicados de rochas e cobertos de pinheiros, e cortando a argola e insulando as colinas, um desvio do Maine formou gracioso lago, que reflete as pedras escuras, os tijolos róseos e as ardósias da antiga mansão.

        Hoje, é mais uma herdade. Parte do rés-do-chão abriga celeiros e granjas, testemunhos de uma exploração mais vasta, florescente outrora, mas em grande decadência desde que dela se ocupava o avô de Raul.

        O velho barão, como o chamavam, tinha direito ao título e à partícula nobiliárquica, pois o domínio, antes da Revolução, constituía o baronato de Avernoie, — o velho barão, grande caçador e grande beberrão, homem guapo que gostava de mulheres, muito pouco se preocupava com o trabalho, e seu filho, o pai de Raul, herdara esses hábitos descuidados.

        — Uma vez desmobilizado, fiz o que pude para vencer a corrente e trazer aqui de volta o bem-estar — confidenciou Raul à jovem -—. Mas, que quer? meu pai e meu avô viveram com a idéia, que evidentemente resulta da lenda que você conhece: "Mais cedo ou mais tarde, seremos ricos. Portanto, para que nos incomodarmos?" E não se incomodaram. Hoje, estamos nas mãos de um usurário que comprou todos os nossos créditos, e acabo de saber que, durante minha estada em Roborey, meu avô assinou um contrato de venda que permite a esse onzenário pôr-nos pela porta fora dentro de seis semanas!

        Era Raul um rapaz corajoso, de espírito algo lerdo, de maneiras um tanto acanhadas, mas de caráter reto, sério e refletido. A graça de Dorotéia logo o conquistara, e apesar da invencível timidez que sempre o impedira de traduzir por palavras os seus sentimentos mais vivos, não ocultava sua admiração nem sua perturbação.Tudo quanto ela ordenava era coisa executada.

        Atendendo a seus conselhos, narrou ele a agressão de que fora vítima seu avô, e deu queixa contra um desconhecido. Aos que o cercavam, falou abertamente da fortuna que contava receber dentro de curto prazo, e das buscas empreendidas a fim de achar certa medalha de ouro cuja posse constituía a primeira condição para o bom êxito. Por fim, sem revelar o nome exato de Dorotéia, não dissimulou seu parentesco distante com ela, e os motivos que atraíam a jovem ao Manoir.

        Tendo exigido de Zarolha etapas dobradas, três dias mais tarde chegou Saint-Quentin em companhia de Castor e Pólux. Dorotéia absolutamente não aceitou outro domicílio que não fosse a sua querida carroça, a qual foi instalada no centro do pátio, e a vida recomeçou entre os cinco camaradas, vida feliz e despreocupada. Castor e Pólux brigavam com menos vigor. Saint-Quentin pescava no lago. Sempre muito importante, o capitão tomara sob sua guarda o velho barão e, destarte, contava a ele a Golias histórias intermináveis.

        Quanto a Dorotéia, observava. Sentia-se que estava misteriosa, avara de suas relexões e do seu modo de proceder. Passava horas a brincar com os seus camaradas ou a dirigir-lhes os exercícios. Depois, com os olhos fixos no velho barão, que, acompanhado por seu fiel cachorro, e de pernas trôpegas e olhar parado, ia encostar-se a uma árvore do pomar, ela espreitava tudo quanto em sua fisionomia poderia ser manifestação do instinto ou sobrevivência do passado.

        Vários dias seguidos viveu ela num sótão do celeiro onde existiam algumas prateleiras de biblioteca, e, nessas prateleiras, papeladas, pastas, e brochuras impressas no século XIX, histórias da região, relatórios da comuna, arquivos de paróquia.

        — E então, — perguntou Raul a rir — fazemos progressos? Tenho a impressão de que seus olhos começam a ver melhor. — Talvez... não digo que não...

        Os olhos de Dorotéia! Naquele conjunto de coisas bonitas que compunham seu rosto eram principalmente eles que mais prendiam. Raul não via mais senão através desses olhos, e não se interessava mais senão pelo que eles exprimiam. E talvez Dorotéia se deixasse contemplar com certa satisfação. O amor daquele rapagão tímido a comovia pelo seu respeito, a ela que até então só conhecera a homenagem brutal do desejo.

        Um dia, mandou-o tomar uma barquinha ancorada à margem do lago e, deixando-a vagar ao sabor da corrente, disse-lhe:

        —Estamos nos aproximando.

        — De quê? — indagou ele cheio de agitação.

        —Da data anunciada por tantas coisas a tanto tempo?

        —Julga assim?

        —Julgo, Raul, que você não se enganou no dia em que viu nas mãos do barão aquela medalha na qual parecem resumir-se todas as tradições de família. Infelizmente, o pobre homem perdeu a razão antes que você tenha sido posto a par, e o fio que ligava o passado ao futuro foi cortado.

        —Então, que espera, se não acharmos de novo a medalha?

        —Procuramos por toda parte, no quarto dele, nas suas roupas, pela casa, no pomar. Nada.

        —Não é possível que ele guarde a chave do enigma — disse ela — Se a sua razão está morta, seus instintos sobrevivem. E que instinto, aquele formado pelos séculos! Ele, sem dúvida, colocou a moeda ao alcance da mão ou dos olhos: na hora propícia, um gesto inconsciente nos revelará a verdade.

        —E se d'Estreicher lhe tirou a medalha? — objetou Raul.

        ?Não, porque nesse caso não teríamos ouvido o barulho da luta. Seu avô resistiu até o fim, e foi somente a nossa chegada que pôs em fuga d'Estreicher.

        ?Ah! Se eu agarrasse aquele bandido!... — exclamou Raul.

        A barca deslizava suavemente. Em voz baixa, e sem se mover, disse Dorotéia:

        —Silencio!   Ele nos escuta.

        —Hem? Que me diz?

        —Digo que ele está por aí e não perde nenhuma das nossas palavras.

        Raul estava estupefato.

        —Ora essa, que significa isto? Você o está vendo?

        ?Não, mas o adivinho, e ele nos enxerga. —        De que ponto?

        — De um ponto situado nas Buttes (colinas). Sempre pensei que o nome de Manoir-aux-Buttes (Solar das Colinas) se referisse a algum esconderijo impenetrável, e disso descobri a prova num velho livro que fala, precisamente, de um esconderijo onde os camponeses da guerra da Vendéia se ocultavam e que situam nas cercanias de Tiffauges e Clisson.

        —Mas como o conheceria d'Estreicher?

        —Recorde-se de que no dia da agressão seu avô se achava sozinho, ou julgava estar sozinho. Passeando pelas Buttes, terá indicado uma das saídas. Ora, d'Estreicher espreitava. E daí em diante, serve-se o miserável desse refúgio. Olhe o terreno, todo cheio de bossas e barrancos. À direita, à esquerda, de todos os lados, há lugar, nos rochedos, para umas espécies de observatórios de onde se pode ver e ouvir tudo que se passa em baixo, dentro dos limites do domínio. D'Estreicher lá se encontra.

        —E que faz aí?

        —Procura, —afirmou ela, —e, ainda mais, vigia minhas buscas. Se bem que eu não possa adivinhar exatamente a razão, também ele quer a moeda de ouro. E receia que eu me adiante.

        —Mas é preciso avisar a polícia! — disse Raul.

        —Ainda não. O covil deve ter diversas saídas, algumas das quais talvez passem por baixo do rio. Se dermos o alarma, o bandido escapará.

        —Então, qual é o seu plano?

        —Fazê-lo sair desse covil e apanhá-lo na armadilha.

        —Como? Quando?

        —O mais cedo possível. Estive com o usurário, o Sr. Voirin, e ele mostrou-me a escritura de venda. Se no dia 31 de julho, às 17 horas, o Sr. Voirin, que toda a sua vida desejou adquirir o Manoir-aux-Buttes, não receber a soma de trezentos mil francos em espécie ou em títulos do Estado, o Manoir lhe pertencerá.

        —Sei disso, — retrucou Raul — e como não há nenhum motivo para que em um mês eu me torne rico...

        —Sim, há um motivo, o que sempre sustentou seu avô. "Não se rejubile, Voirin, disse-lhe ele. Na data de 31 de julho eu lhe pagarei até o último ceitil." É a primeira vez, Raul, que nos defrontamos com uma precisão. Até agora, palavras, uma tradição confusa. Hoje, um fato. Um fato comprovador de que, segundo seu avô, todas as lendas que envolvem essas prometidas riquezas conduzem rigorosamente a um dia qualquer do mês de julho.

        O bote encostava na margem. Dorotéia saltou rápida e, sem temor de ser ouvida, exclamou:

        — Estamos a 27 de junho, Raul. Daqui a algumas semanas você estará rico. Eu também. E d'Estreicher será enforcado, pura e simplesmente, conforme lhe predisse.

        Ao fim desse mesmo dia, quando a noite principiava a cair, a jovem escapuliu do Manoir e, furtivamente, alcançou um caminho ladeado de sebes muito altas, que, numa hora, a levou até defronte a um jardinzinho, no fundo do qual brilhava uma luz.

        As investigações particulares de Dorotéia lhe revelaram o nome de uma senhora idosa, Julieta Azire, que os rumores públicos apontavam como uma das antigas amigas do barão. Antes de adoecer, o barão ainda lhe fazia visitas, embora ela estivesse surda, achacada e de espírito um pouco débil. Ademais, segundo uma indiscrição da criada que a servia, e que Saint-Quentin interrogara, possuía Julieta Azire uma medalha do mesmo gênero daquela que procuravam no Manoir.

        A idéia da moça era aproveitar-se de uma ausência feita pela empregada uma vez por semana para bater à porta e interrogar diretamente Julieta Azire. O acaso, porém, decidiu de modo diverso. A fechadura não estava fechada com chave e, depois que Dorotéia atravessou a soleira da sala baixa e confortável onde se achava a anciã, verificou que ela dormia sob a luz de sua lâmpada, com a cabeça caída sobre a talagarça que estava para bordar.

        "E se eu procurasse?", pensou Dorotéia. "Para que lhe dirigir perguntas às quais, sem dúvida, ela não responderia?"

        Olhou em torno de si, examinou as gravuras suspensas à parede, a pêndula sob a sua redoma de vidro, os candelabros.

        Adiante, uma escada levava aos quartos. Para lá se dirigia, quando se produziu um rangido do lado da porta. E, imediatamente, se bem que não tivesse nenhum indício, ficou certa de que d'Estreicher iria aparecer. Têla-ia, talvez, seguido? Quiçá a atraísse ali por um conjunto de maquinações... Dorotéia sentiu medo e só pensou em fugir. A escada? Os quartos do primeiro andar? Não tinha mais tempo. Perto dela havia uma porta envidraçada que, sem dúvida, levava à cozinha, e de lá a qualquer saída por onde pudesse escapulir.

       Entrou, e logo verificou o seu erro. Era um gabinete escuro, ou melhor, um armário embutido, junto a cujas tábuas do fundo precisava ela colar-se para que pudesse fechar a porta. Estava prisioneira.

        Ao mesmo tempo, muito suavemente, empurravam a porta principal. Com precaução, introduziram-se dois homens, e ao cabo de um momento um deles sussurrou:

        —A velha está dormindo.

        Através dos vidros, cobertos por um pedaço da fazenda rasgada, Dorotéia facilmente reconheceu d'Estreicher, apesar da gola levantada e do gorro cujas abas abaixadas davam um nó debaixo do queixo. Seu cúmplice, igualmente, dissimulava a metade do rosto num lenço de pescoço.

        —Quantas asneiras faz você por essa donzela! — disse ele.

        —Asneiras, não — resmungou d'Estreicher — Apenas a vigio.

        —Ora, deixe-se disso! Está sempre atrás dela.Você perde a cabeça por sua causa...até o dia em que ela o fizer perder a cabeça de verdade.

        —Não digo que não. Em Roborey quase o conseguiu. Mas tenho necessidade dela.

        —Por quê?

        —Pela medalha. Só ela é capaz de consegui-la.

        —Não aqui, em todo caso. Já por duas vezes deram busca nesta casa.

        —Buscas mal feitas, sem dúvida, visto que também ela vem cá. Quando a avistamos, dirigia-se para este lado. Devo ter tido notícia da tagarelice da criada, e escolheu o dia em que a velha estava sozinha.

        —Ah! Que apego à sua lambisgóia!

        —Se tenho apego! — articulou d'Estreicher surdamente —. Caia-me nas garras, e juro-lhe que tão cedo a beldade não há de esquecer o fato!

        Dorotéia estremeceu. No tom daquele homem existia, ao mesmo tempo, um ódio e uma violência de desejo que a espavoriam.

        Agora, postado atrás da porta, ele se mantinha calado, de ouvido à escuta.

        Decorreram alguns minutos. Julieta Azire continuava a dormir, com a cabeça cada vez mais inclinada sobre o seu trabalho.

        —Por fim, —murmurou d'Estreicher—: Ela não virá. Deve ter mudado de idéia em caminho.

        —Pois bem, vamos dar o fora — propôs o cúmplice.

        —Não.

        —Você tem alguma idéia?

        —Um desejo... Descobrir a medalha.

        —Mas como já por duas vezes...

        —Fizemos as coisas mal feitas. É preciso mudar de método.

        —Tanto pior para a velha! — E, com o risco de acordar Julieta Azire, deu um murro na mesa — Afinal de contas é uma tolice!

        —A criada declarou claramente: "Há na casa uma medalha, qualquer coisa de parecido com o que procuram no Manoir." Por conseguinte, aproveitemos a ocasião, hem? O que não surtiu efeito com o barão, pode dar resultado hoje.

        —Como? Pretende...

        —Sim, fazê-la falar, como tentamos fazer falar o barão. Apenas, ela é mulher.

        D'Estreicher havia tirado o gorro. Seu rosto perverso exprimia uma crueldade selvagem. Encaminhou-se para a porta, cuja fechadura fechou com duas voltas de chave, guardando esta no bolso. Depois, voltou até a poltrona em que dormia a pobre senhora, contemplou-a por um momento, e de súbito caiu sobre ela, apertou-lhe a garganta e deitou-a sobre o espaldar.

        —Você não tinha necessidade de tamanho esforço! — pilheriou o cúmplice — Se a apertar demais, você mata a desgraçada!

        D'Estreicher abriu um pouco os dedos. A velha apertava os olhos e gemia debilmente.

        —Fale — ordenou d'Estreicher — O barão lhe confiou uma medalha? Onde a meteu?

        Julieta Azire não compreendia bem o que lhe sucedia. Debateu-se. Exasperado, d'Estreicher a sacudiu.

        —Vai dar com a língua nos dentes ou não? Onde está a medalha, a de seu antigo apaixonado? Ele à entregou a você, hem? Não diga que não, velha carcaça. Sua criada conta a quem quiser ouvir. Vamos, fale. Senão...

        Apanhou de cima das lajes da lareira um dos cães de ferro, com uma bola de cobre na extremidade, e brandiu-o gritando:

        ?Um... dois... três... Em vinte, parto-lhe a cabeça!

VIII

Sobre o arame

        A porta por trás da qual se escondia Dorotéia fechava mal. Havendo-a empurrado de leve, ela viu e ouviu toda a cena, embora o rosto de Julieta Azire permanecesse oculto a seus olhos. A ameaça do bandido não a assustou muito, pois sabia que não a executaria. E de fato, d'Estreicher contou até vinte sem que a senhora pronunciasse uma palavra. Esta resistência, porém, redobrou o seu furor a ponto de, arremessando a clava de ferro, agarrar a mão de Julieta Azire e torcê-la violentamente. A vítima berrou de dor.

        —Ah! ah! — bradou ele — principia a compreender, e talvez vá responder... Onde está a medalha?...

        Ela se conservou calada.

        Novo esforço.

        A velha caiu de joelhos e suplicou com palavras incoerentes.

        —Fale! fale! — gritou d'Estreicher —. Torcerei até que você fale...

        Ela resmungou algumas sílabas.

        —Que está dizendo? Pronuncie melhor, hem? Precisarei torcer mais ainda?

        —Não... não... — implorou a coitada—. Escute... Está no Manoir... dentro do rio...

        —No rio? Que patranha! Então vocês iriam jogar aquilo dentro do rio?! Está zombando de mim, hem?

        Mantinha-a subjugada, com um joelho em cima do peito da infeliz, e suas duas mãos crispadas, uma em torno da outra. Do seu posto, Dorotéia via-os com horror, impotente em face daqueles dois homens, e sem contudo poder resignar-se à inação.

        ?Então, vou torcer, hem? — rosnava o bandido — Prefere isso do que falar? Torço?

        Fez um movimento rápido, que arrancou de Julieta Azire um grito. E de repente ela se ergueu, mostrou a fisionomia convulsa de terror, agitou os lábios, e conseguiu tartamudear:

        —O armário... o armário embutido... as lajes...

        A frase não foi terminada, embora continuasse a boca a mover-se nervosamente, mas aconteceu isto de estranho: o rosto pavoroso pouco a pouco se acalmou, adquiriu uma inconcebível serenidade, tornou-se venturoso, sorridente, e, de inopino, Julieta Azire soltou uma gargalhada. Não mais sentia a tortura de seu pulso magoado, e ria devagar, sem sobressalto, com uma expressão de beatitude.

        Estava louca.

        —Você não tem sorte — gracejou o cúmplice — Quando pretende fazer alguém falar, o que se produz é o estupor. O barão, "pancada". Sua namorada, doida. Você vai bem...

        Possesso, d'Estreicher empurrou a velha, que tropeçou e, rodopiando, foi cair por trás de uma poltrona, muito perto de Dorotéia, ao passo que seu algoz exclamava raivoso:

        —Não tenho sorte, você disse bem. Mas desta vez é possível que se disponha de um fio da meada. Antes que o cérebro se desarranjasse de todo, ela falou num armário embutido e em lajes. Qual? Este ou aquele? Os dois são pavimentados com lajes.

        Alternativamente, designou a espécie de gabinete onde se escondia Dorotéia, e um armário situado à esquerda da lareira.

        —Começo por este armário. Ocupe-se você do outro — disse ele —. Ou melhor, não... venha cá, ajude-me, e terminemos logo com este.

        Agachou-se perto da lareira, abriu a porta do armário e, com uma tenaz de ferro, atacou uma das ranhuras entre as lajes que o cúmplice tentava erguer.

        Dorotéia não hesitou. Sabia que eles iriam encaminhar-se para o seu esconderijo e que ela estaria perdida se não se pusesse em fuga. Estendida a seu lado, a velha soltava risinhos que aos poucos se extinguiam, à medida que os homens trabalhavam.

        Protegida pela poltrona, e sem o menor rumor, Dorotéia estendeu o braço, soltou a touca de rendas de Julieta Azire e colocou-a sobre a própria cabeça. A seguir, apanhou os óculos, depois tirou o lenço de sua saia num largo avental de sarja preta. Como nesse momento Julieta se calasse, foi a vez de Dorotéia emitir o mesmo risinho igual e contente.

        Levantou-se e, curva como uma velha, caminhou através da sala, a passos curtos, sem parar de rir.

        —Que é que essa louca está fazendo? — resmungou d'Estreicher —.   Não a deixe ir embora, hem?

        —Como iria ela embora? — observou o cúmplice — Você tem a chave no bolso.

        —E a janela?

        —Alta demais, e além disso, ela não tem vontade de deixar a sua cabana!

        Parou a jovem diante da janela cujo peitoril, muito alto, se encontrava à altura de seus olhos. Os postigos não estavam fechados. Com um gesto lento, conseguiu virar o trinco. Aí, fez uma pausa. Sabia que, mal fosse aberta, a janela deixaria engolfar-se o ar e os ruídos de fora, o que daria o alarma aos cúmplices. Em poucos segundos, portanto, calculou e decompôs os movimentos que deveria executar. Segura de si, e confiante na sua extraordinária agilidade, olhou para o lado de seus inimigos, depois, rapidamente, sem um erro de tática, sem uma hesitação, escancarou a janela, pulou sobre o parapeito e saltou para o jardim.

        Atrás dela, dois gritos, exclamações furiosas. Mas os homens precisavam compreender, examinar, topar com o corpo da verdadeira Julieta... A moça aproveitou-se disso. Demasiado hábil para fugir pelo jardim e a porteira, contornou a casa, atravessou um talude, arranhou-se numa sebe, e ganhou o campo.

        Nesse momento ecoaram tiros. D'Estreicher e seu camarada atiravam ao acaso sobre sombras confusas...

        Ao encontrar-se com Raul e as crianças que, ansiosas pela sua ausência, esperavam por ela nas proximidades da carroça, e depois de narrar sumariamente sua expedição, concluiu Dorotéia:

        —Agora, trata-se de acabar com isso. Dentro de uma semana, exatamente, será jogada a partida definitiva.

        Aqueles poucos dias foram muito agradáveis para os dois jovens. Mantendo-se sempre na reserva, animava-se Raul a conversar, e mostrava melhor o fundo de seu caráter, a um só tempo grave e apaixonado. Dorotéia se entregava com certa alegria a esse amor do qual sentia toda a sinceridade. Muito inquietos, Saint-Quentin e seus camaradas manifestavam mau humor.     O capitão abanava a cabeça.

        — Dorotéia, eu acho que ainda gosto menos deste do que do homem mau, e se tu me escutasses... — Que faríamos, meu pequerrucho ?...

        —A gente atrelaria Zarolha e iria embora.

        — E o tesouro ? Bem sabes que procuramos um tesouro.

        — O tesouro és tu, mamãe. E tenho medo que nos tirem.

        — Fica sossegado, meu queridinho. Meus quatro filhos sempre estarão acima de tudo.

        Mas os quatro filhos não estavam sossegados. Sobre eles pesava a sensação de um perigo. Naquela chácara, entre os muros do Manoir-aux-Buttes, respirava-se uma atmosfera pesada, que os perturbava. O perigo, por certo, provinha de Raul, mas também de outra coisa que aos poucos tomava corpo no espírito deles, porque, duas vezes, viram um vulto se esgueirar à noite por entre as moitas das Buttes.

        A 30 de junho pediu Dorotéia a Raul que desse folga a toda a criadagem no dia seguinte, que era de grande festa religiosa no arraial de Clisson. Três dos criados, escolhidos entre os mais vigorosos, e armados de espingardas, receberiam ordem de voltar furtivamente, lá pelas quatro horas da tarde, e se agruparem nas proximidades de um pequeno albergue, o "Albergue Masson", situado a quinhentos metros do Manoir.

        No dia seguinte mostrou-se Dorotéia mais exuberante que nunca. Dançou jigas no pátio e entoou canções inglesas. Cantou outras na barca, para a qual levara Raul, e fez então tantas extravagâncias que, por diversas vezes, escaparam de virar. Foi assim que, fazendo malabarismo com suas três pulseiras de coral, deixou cair uma dentro d'água. Quis apanhá-la, molhou até o ombro o braço nu, e ali ficou, imóvel, com a cabeça inclinada para o fundo do lago, como atenta a algum espetáculo.

        —Que está a olhar desse jeito? — indagou Raul.

        —Não chove há muito tempo, o nível desceu, e vêem-se mais distintamente as pedras e o cascalho do fundo. Ora, já observei que algumas dessas pedras estão dispostas em certa ordem. Olhe.

        —Com efeito — disse ele —.   E são pedras talhadas regularmente. Parece que formam letras imensas.

        —Sim, e essas letras formam palavras que se podem adivinhar: "In robore fortuna". Na Prefeitura, consultei um antigo mapa. Aqui onde nos achamos, era outrora o gramado principal de um jardim em plano inferior, e, sobre o próprio gramado, um de seus antepassados mandou escrever essa divisa em blocos de pedra. Mais tarde, puxaram até aqui as águas do Maine. O lago substitui o gramado. A divisa está coberta... — E entre dentes acrescentou: — Tal como as poucas palavras que se encontram sob a inscrição e que eu ainda não vira. E é isso que me interessa. Está vendo?

        —Sim. Porém mal.

        —Evidentemente. Estamos perto demais. Deveríamos contemplar a imagem do alto.

        — Subamos às Buttes.

        —Não. De esguelha a imagem ficaria deformada pela água. Então, — sugeriu ele a rir — tomemos um avião.

        À hora do jantar, separaram-se. Finda a refeição, assistiu Raul à partida do churrião que conduzia a Clisson todo o pessoal do Manoir, a seguir voltou para o lago, em cujas margens avistou o grupinho de Dorotéia em atividade. Por cima do lago, a três ou quatro metros de altura, achava-se estendido um arame bastante grosso, preso de um lado à empena de uma granja, e do outro a uma argola selada a uma rocha das Buttes.

        —Diabo!— exclamou ele — tenho a impressão exata de que me preparam um número de circo.

        —Muito certo — respondeu ela alegremente — Não disponho de avião, recorro aos exercícios de corda.

        —Como! — bradou Raul inquieto — tem a intenção... Mas a queda é inevitável...

        —Sei nadar.

        —Não, não, oponho-me a isso terminantemente.

        —Com que direito?

        —Você nem ao menos tem uma vara para ajudar o equilíbrio!

        —Uma vara? — perguntou ela esquivando-se — e que mais ainda? Uma rede? Uma corda de salvamento?

        Subiu a escada interna da granja e apareceu na beira do telhado. Ria, como era seu hábito ao se entregar a esses exercícios perante a multidão. Usava um vestido de linho, com largas listas brancas e vermelhas, e seu lenço de seda estava cruzado sobre o peito.

        Raul se agitava febrilmente. O capitão se aproximou dele.

        —Quer prestar um serviço a mamãe Dorotéia? — indagou em tom confidencial.

        —Claro que sim.

        —Pois bem, vá embra.

        Enquanto isso, Dorotéia avançava a perna. Seu pé, nu dentro de uma sandália de pano, com uma separação entre o dedo grande e os outros, tateou o arame como tateia a água fria o pé de uma banhista. E, muito rápida, resolveu-se, deu alguns passos a deslizar, e deteve-se.

        Cumprimentou para a direita e a esquerda, fingindo acreditar na presença de numeroso público, e deslizou de novo, num ritmo regular das pernas e com uma oscilação do busto e dos braços que a balouçava como o bater de asas de um pássaro. Dessa forma chegou a dominar o lago. O arame, aí menos tenso, vergava sob o seu peso, e lançava-a de novo para cima. Ao chegar ao centro, parou pela segunda vez.

        Era o mais difícil da sua tentativa. Não podia mais se agarrar com o olhar, por assim dizer, a um ponto fixo das Buttes, e apoiar seu equilíbrio sobre qualquer coisa de estável. Precisava baixar os olhos, procurar na água móvel e cheia de reflexos, subtrair-se ao fascínio dos revérberos do Sol, ler as palavras e os algarismos. Tarefa terrivelmente perigosa! Por diversas vezes teve de tentar, e readquirir a posição ereta no momento exato em que parecia inclinar-se para o vácuo. Um minuto ou dois se passaram, verdadeiramente cheios de angústia. Ela pôs fim a isso por meio de uma saudação com os dois braços, que se abriram harmoniosamente, e com um grito de vitória; ato contínuo, pôs-se de novo em marcha.

        Raul atravessara a ponte que cruza a extremidade do lago, e quando ela chegou às Buttes, na espécie de plataforma aonde ia ter o arame, o rapaz já estava lá. Dorotéia se impressionou com a sua palidez e ficou sensibilizada pela sua comoção.

        —E então? — indagou ele.

        —Então, li bem a divisa sobre esta data que não conseguíamos decifrar: 12 de julho de 1921. Sabemos, pois, que 12 de julho deste ano é o grande dia anunciado há tanto tempo. Creio, porém, que ainda existe coisa melhor...

        Chamou Saint-Quentin e disse-lhe algumas palavras em voz baixa. Correu Saint-Quentin até a carroça e de lá saiu poucos instantes mais tarde, vestido com uma dessas roupas de malha dos acrobatas. Tomou o bote com Dorotéia, que o conduziu até o meio do lago. Rapidamente, ele se deixou escorregar até a água, mergulhou, reapareceu e lançou dentro do barco um objeto muito pesado, que Dorotéia apanhou precipite e mostrou a Raul, quando outra vez acostaram às Buttes.

        Era um disco de metal, ferro ou cobre enferrujado, do tamanho de um pires, e abaulado como um enorme relógio. Devia compor-se de duas placas reunidas, mas as bordas dessas placas tinham sido soldadas, de sorte que não se podia abrir o disco.

        Esfregou Dorotéia uma das faces e, com a mão, apontou a Raul uma palavra grosseiramente gravada: Fortuna.

        -— Não me enganei — disse ela — e a velha Julieta Azire não mentia quando primeiro falou do rio. Durante um de seus últimos encontros, o barão deve ter jogado aqui, dentro do seu estôjo de metal, a medalha de ouro. Que melhor esconderijo do que o fundo do lago, até o dia próximo em que deveria utilizar a medalha? O primeiro guri que aparecesse a pescaria daria para ele.

        Muito satisfeita, ela arremessou o disco para o ar e serviu-se dele, e de três pedras, para seus jogos de peloticas. O capitão, porém, observou que havia festa em Clisson, e que a ela deveriam comparecer de automóvel, a fim de celebrar a vitória.

        Desceram todos de novo, apressados, em direção ao Manoir. Saint-Quentin foi mudar de roupa. Raul pôs o carro em movimento e retirou-o da garagem. Enquanto os três se aboletavam, ele foi ter com Dorotéia, que se sentara diante de uma mesinha, no terraço ao longo da casa.

        —Então você não vem conosco? — indagou.

        Desde que começara o dia, tinha ele estranha impressão de que nada do que se produzia era muito natural. Sucediam-se os incidentes numa ordem perfeita, e com uma lógica e uma precisão matemáticas que a realidade não conhece. Por certo, sem compreender o jogo de Dorotéia, adivinhava o desenlace pretendido pela jovem, e que era a captura de d'Estreicher. Mas graças a qual estratagema

        —Não me interrogue — disse ela —. Estamos sendo espiados. Portanto, nada de gestos, nem protestos. Escute.

        Divertia-se a fazer rodar o disco sobre a mesa e, muito calmamente, desvendou-lhe parte de seus desígnios e manobras.

        —Há vários dias, escrevi em seu nome ao procurador da república, prevenindo-o de que o Sr. d'Estreicher, procurado pela polícia, culpado de tentativa de homicídio contra o barão Davernoie e contra a Sra. Julieta Azire, estaria hoje no domínio das Buttes. Pedi que enviassem dois agentes que se encontrariam com você às quatro horas no "Albergue Masson". São quatro menos um quarto. Vá, Raul, seus três criados lá se acharão também.

        —Que farei?

        —Volte aqui depressa com os dois agentes e os três empregados, mas não pela estrada direta, e sim pelos atalhos que Saint-Quentin e seus camaradas lhe indicarão. Nesses pontos já estão postas escadas. Encostem-nas às muralhas. D'Estreicher e seu cúmplice lá estarão. Mantenham-nos em respeito com as suas carabinas, enquanto os agentes vão prendê-los.

        —Tem certeza de que d'Estreicher sairá das Buttes? Se é verdade que elas lhe servem de refúgio.

        —Certeza absoluta. Eis a medalha. Ele sabe que ela está em minhas mãos. Como deixaria de aproveitar a ocasião para recuperá-la, quando estamos chegando ao grande acontecimento?

        Exprimia-se com desconcertante tranqüilidade. Não obstante atrair exclusivamente sobre sua pessoa todas as ameaças de um combate que se anunciava temível, nem ao menos tinha a aparência de estar em perigo, e sua presença de espírito era tal que, avistando o velho barão que passava diante deles e entrava no solar, seguido de seu fiel Golias, transmitiu a Raul parte de suas observações.

        —Você notou como seu avô anda mais agitado de uns dias para cá? Também ele, por um profundo instinto, sente a aproximação do acontecimento, e gostaria de agir; debate-se, luta contra o mal que o imobiliza justo na hora da ação.

        Apesar de tudo, Raul hesitava. A idéia de a deixar sozinha frente a d'Estreicher lhe era infinitamente penosa.

        —Você preparou tudo para hoje — disse ele — A polícia está avisada. Meus criados acham-se prevenidos. O encontro está marcado. Seja. Entretanto, você não poderia saber que o descobrimento desse disco se realizaria precisamente uma hora antes do encontro...       ?Obedeça, Raul. Sabe que não costumo agir levianamente, e voltem todos depressa, porque d'Estreicher não aparecerá aqui apenas para se apoderar da medalha, mas também por uma coisa da qual talvez faça a mesma questão.

        — Que é?

        — Sou eu, Raul!

        O argumento precipitou a decisão do rapaz. O auto partiu e atravessou o pomar. Saint-Quentin abriu o grande portão que, a seguir, foi fechado, após a passagem do veículo.

        Dorotéia estava a sós.

        Deveria permanecer só e sem defesa durante um lapso de tempo que poderia ser de doze a quinze minutos.

        De costas voltadas para as Buttes, não se moveu da cadeira. Parecia muito ocupada em manejar o disco, verificar-lhe a emenda, como quem procura o segredo ou o ponto fraco de um mecanismo. Com os ouvidos apuradíssimos, porém com os nervos superexcitados, tentava recolher os ruídos ou o roçar das folhas que a brisa pudesse levar-lhe.

        Alternadamente, era sustentada por uma inabalável certeza, ou assaltada pela dúvida e o desânimo. Sim, d'Estreicher ia chegar. Era inadmissível que assim não fosse. A medalha o atraía como uma isca à qual lhe era impossível resistir.

        "Mas não", dizia de si consigo, "ele vai desconfiar. Minha maquinaçãozinha é, de fato, demasiado pueril. Este escrínio, esta medalha que se encontram no momento fatídico, esta partida de Raul e das crianças, e de mais a mais, eu, que fico só na herdade vazia, na ocasião em que minha única preocupação devia ser proteger a minha descoberta contra o inimigo... Na verdade, tudo isso é forçado. Uma raposa velha como d'Estreicher evitará a armadilha."

        E logo surgia a outra face do problema.

        "Ele virá. Talvez já tenha saído de seu covil. É inevitável. Evidentemente, verá o perigo, mas depois, quando fôr demasiado tarde. Neste instante, não tem liberdade para agir ou deixar de agir. Obedece."

        Destarte, mais uma vez, orientava-se Dorotéia pela nítida visão que tinha dos fatos, a despeito do que poderia indicar-lhe a razão. Os fatos se agrupavam diante de seu espírito de acordo com uma ordem lógica e com um método rigoroso, mas via os seus resultados quando estes ainda estavam em formação. Sempre lhe pareciam muito claros os motivos pelos quais os outros se norteavam. Sua intuição lhes mostrava, e sua viva inteligência os adaptava instantaneamente às circunstâncias.

        Ademais, conforme declarara, a tentação de d'Estreicher era dupla. Se ele conseguisse furtar-se à cilada da medalha, como escaparia à presa maravilhosa e tão fácil de obter que era a própria Dorotéia?

        Com um sorriso, empertigou-se. Algures, haviam rangido passos. Devia ser na ponte de madeira que atravessava o rio na altura do lago.

        Aproximava-se o inimigo...

        Quase ao mesmo tempo, todavia, distinguiu outro rumor, à direita. E depois ainda outro, à esquerda. D'Estreicher tinha dois cúmplices. Estava cercada. Seu relógio marcava cinco para as quatro.

X

Face a face

        "Se eles se atiram sobre mim", pensou, "se a intenção de d'Estreicher é raptar-me, imediatamente, nada posso fazer. Antes que eu possa ser socorrida, levar-me-ão para o interior do seu subterrâneo, e dali não sei para onde!..."

        E por que não seria assim? Dono da medalha, e dono de Dorotéia, o bandido só teria que fugir.

        De súbito, compreendeu a jovem as falhas do seu plano. Tanto mais que, quer para obrigar d'Estreicher a se arriscar a uma sortida, quer para dele se assenhorear durante essa sortida, imaginara ela ardis excessivamente sutis, que a realidade ou a malícia do acaso poderiam frustrar. Uma batalha que depende do número maior ou menor de segundos perdidos ou ganhos está muito comprometida.

        Rapidamente, entrou de novo em casa e, sob um montão de objetos que atravancavam um quartinho de guardados, enfiou o disco. As buscas necessárias retardariam a fuga do inimigo. Mas quando ela quis sair, d'Estreicher estava à soleira da porta, irônico e careteiro, por trás dos óculos e sob a espessa barba.

        Dorotéia jamais usava revólver. Queria confiar-se na vida tão somente a sua inteligência e coragem. Lamentou-o naquele minuto terrível em que se encontrava face a face com o homem que lhe matara o pai. Seu primeiro gesto seria estourar-lhe os miolos.

        Adivinhando-lhe o pensamento de ódio, ele a segurou pelo braço e torceu-o, como fizera à velha Julieta. Depois, inclinando-se para ela, com voz entrecortada:

        — Depressa... Onde a meteu?

        Dorotéia nem sequer pensou em resistir, tão forte era a dor, e conduziu-o ao pequeno aposento, designando com o dedo o monte de objetos. O miserável imediatamente encontrou o disco, sopesou-o, examinanou-o com ar satisfeito e declarou:

        —Tudo muito bem. É a vitória! Vinte anos de esforços que são premiados. E, de quebra, você, Dorotéia, você, a mais desejável e magnífica das recompensas.

        Para certificar-se de que a rapariga não estava armada, apalpou-lhe o vestido, em seguida a agarrou pela cintura e, com uma energia de que não parecia capaz, carregou-a ao ombro, pelas costas, com a cabeça caída para a frente.

        —Você me inquieta, Dorotéia — gracejou —Como! Nem a menor resistência? Que juízo, minha filha! Nisso deve andar alguma emboscada. Portanto, vou zarpar...

        Fora, ela avistou os dois homens que montavam guarda ao portão principal. Um deles era o cúmplice que ela conhecia por ter visto em casa de Julieta Azire. O outro, com o rosto encostado à grade de um pequeno postigo, vigiava a estrada.

        —- Olho vivo, meus amigos! — gritou-lhes d'Estreicher —. Precisamos não nos deixar apanhar no aprisco. E quando eu assobiar, encaminhem-se rapidamente para as Buttes.

        E para lá se dirigiu, a passos largos, sem vergar sob o fardo. A jovem respirava o odor de suas roupas que a umidade das grutas impregnara. Ele a segurava pelo pescoço, com mão dura, que a magoava.

        Alcançaram a ponte de madeira, e iam atravessá-la. Talvez a uns cem metros devia abrir-se, entre as moitas e os rochedos, uma das saídas subterrâneas. O homem já levava à boca um apito.

        Num movimento, célere, apanhou Dorotéia o disco de metal que ele pusera no bolso, e que sobressaía um pouco, e arremessou-o na direção do lago. O disco rolou pelo solo, precipitou-se ao longo da margem e mergulhou na água.

        —Desgraçada patifória! — bradou o homem, jogando-a por terra com violência — Se você se mexer, parto-lhe a cabeça.

        Desceu o declive e patinhou na lama pegajosa da margem, sempre a vigiar e invectivar Dorotéia.

        Esta não pensava em fugir. Alternativamente, observava o cimo da muralha nos pontos onde deveriam surgir os policiais ou os criados. Não restava dúvida de que já se passara a hora, fazia uns cinco minutos, e ninguém aparecia. Ela, no entanto, mantinha-se confiante, na esperança de que d'Estreicher, que perdera todo o sangue-frio, se deixaria cair em alguma falta de que ela saberia tirar partido.

        —Sim, sim — rosnou ele — você quer ganhar tempo, garota. E depois? Acredita que eu a solte? Nunca, absolutamente! Tenho as duas, a moeda de ouro e você, e não será o seu campônio de Raul quem me irá fazer largar a presa. Aliás, tanto pior para ele, se chegar. Os meus homens têm ordens: uma cacetada na cabeça...

        Procurou ainda e depois soltou uma exclamação de triunfo e se ergueu, com o disco na mão.

        —Ei-lo, querida. Decididamente, a sorte está para mim e você falhou o golpe. A caminho, prima Dorotéia.

        A jovem lançou um furtivo olhar em direção das muralhas. Ninguém. Instintivamente, à aproximação do homem execrável, esboçou um movimento de recuo que o fez rir, tão absurda se afigurava qualquer resistência.

        Violentamente, abaixou os dois braços tesos e, de novo, carregou-a ao ombro, num gesto em que havia tanto ódio quanto desejo.

        —Diga adeus a seu apaixonado, Dorotéia, porque esse bravo Raul a ama. Diga-lhe adeus. Se jamais o tornar a ver, ter-se-á passado algo mais agradável para mim do que para ele.

        Atravessou a ponte e meteu-se pelas Buttes.

        Era o fim. Uns trinta passos mais e, mesmo no caso de ataque, d'Estreicher, que não era mais visível do ponto da muralha onde os homens armados de carabinas deveriam surgir, teria tempo de atingir a entrada dos subterrâneos. Dorotéia perdera a batalha. Raul e os policiais chegariam demasiado tarde.

        —Você não pode saber — sussurrou d'Estreicher — como é bom senti-la aqui, toda fremente, e levá-la comigo, junto a meu corpo, sem que você possa evitar o inevitável. Mas que tem? Está chorando? Não deve, minha cara. Afinal de contas, por quê? Mais cedo ou mais tarde, sempre acabaria por deixar-se acariciar, abraçada ao belo Raul... Por conseguinte, não há razão para que eu a desagrade mais que ele, hem? Arre! com a breca! — exclamou irritado — não acaba mais de soluçar?

        Virou-a de lado, sem a tirar do ombro, e agarrou-lhe a cabeça.

        Ficou atônito.

        Dorotéia ria.

        —Que é que há? Por que ri? Será possível que tenha vontade de rir? Que vem a ser?

        Aquele riso o assustava como uma ameaça de perigo. Por que se ria aquela velhaca? Dominou-o uma raiva súbita e, sentando-a encostada a uma árvore, estupidamente, com o punho fechado, no qual um anel fazia saliência, bateu-lhe na testa, entre os cabelos, com tanta força que o sangue jorrou.

        Ela ainda ria, e ao mesmo tempo balbuciava por trás da mordaça:

        —Que brutamontes você me saiu!

        —Se rir, mordo-lhe a boca, patifa! — rosnou ele, inclinado sobre os lábios rubros que libertara da mordaça.

        Não ousava ainda praticar tal gesto, respeitoso, contra a própria vontade, e quase intimidado por ela. Dorotéia, porém, sentiu medo, tornou-se de novo séria.

        —Que é que há? Que é que há?— repetia ele —Você deveria chorar e está a rir! Por quê?

        —Rio-me — disse ela — por causa dos pratos.

        —Que pratos?

        —Os que formam o estojo da medalha.

        —Estes?

        —Sim.

        —E então?

        —Então, são ambos do Circo Dorotéia; os pratos com os quais eu fazia malabarismos...

        Ele pareceu confuso.

        —Que pretende impingir-me?

        —Sim, como não? — explicou ela —Eu e Saint-Quentin lidamos os dois juntos. Gravei a faca a divisa mágica, e, na noite passada, nós o jogamos dentro d'água.

        —Mas você está maluca... não compreendo. Com que intuito fez isto?

        —Como a velha Julieta, torturada por você, gaguejara umas confissões alusivas ao rio, não duvidei de que você caísse na esparrela.

        —Que esparrela?

        —Eu queria fazê-lo sair daqui.

        —Então sabia que eu estava aqui?

        —Ora essa! E sabia que assistia à respectiva pesca. Portanto, estava certa do que se passaria. Julgando que o estôjo, encontrado no fundo do lago, às suas próprias vistas, continha a medalha, e vendo, por outro lado, que Raul ia embora e eu estava sozinha no Manoir, você não podia deixar de vir. E veio.

        —A moeda de ouro...— resmungou d'Estreicher — Quer dizer que não está neste escrínio?

        —Claro que não, ele está vazio.

        —E Raul?... Você o espera?

        —Espero.

        —Só?

        —Com policiais. Têm um encontro combinado.

        —Você me denunciou, miserável?

        —Denunciei-o.

        Nem por um segundo pensou d'Estreicher que ela pudesse mentir. Segura nas mãos o disco de metal e, com a ponta de sua faca, ser-lhe-ia fácil abrir a junção. Para quê? O disco de metal achava-se vazio. Ele o sabia. De repente compreendia toda a comédia que ela desempenhara por cima do lago, e explicava a si mesmo a espécie de mal-estar e inquietação que sentira ao assistir às peripécias cujo encadeamento lhe parecia estranho.

        Contudo, viera. Lançara-se às cegas, de cabeça baixa, na cilada que ela com tamanha audácia lhe preparara. Mas de que poder miraculoso dispunha ela? E como passaria ele através das malhas da rede que cada vez mais o envolvia?

        —Vamos embora — ordenou, impaciente por escapar ao perigo.

        Mas padecia como que de uma lassidão de toda a sua vontade e, em lugar de carregar de novo sua vítima, interogou-a:

        —O disco está vazio, seja. Mas você sabe onde está a medalha?

        —Claro! — respondeu Dorotéia, que pensava apenas em ganhar tempo, e cujo olhar furtivo perscrutava o cimo da muralha.

        Brilharam os olhos do homem.

        —Ah! Sabe...Que imprudência confessar-me isso! Já que sabe, vai falar, minha bela. Senão...

        Puxou o revólver.

        —Tal como com Julieta Azire, não é? — gracejou ela — Vai contar até vinte. Não vale a pena, isso não pega.

        —Juro-lhe, com mil demônios... Palavras!

        Não, decididamente a batalha não estava perdida. Embora exausta, com o rosto em sangue, Dorotéia com selvagem energia, agarrava-se a todos os incidentes possíveis. Bem sentia que d'Estreicher, em seu furor, era capaz de matá-la. Mas sentia também muito claramente a sua perturbação e o domínio que tinha sobre ele. Não teria ele coragem de partir e abandonar aquela medalha fatídica pela qual lutara tão desesperadamente. Que sua hesitação durasse ainda alguns minutos, e Raul não poderia deixar de aparecer!

        Nesse momento se produziu um incidente que pareceu interessar a moça no mais alto grau, pois se inclinou para melhor acompanhar a cena. O velho barão saiu do solar, carregando uma maleta, e vestido, não, como de costume, com uma blusa, mas com um jaquetão de lã, e de chapéu de feltro na cabeça. Isso provava, de sua parte, uma escolha, isto é, um esforço de pensamento. Teve outro. Golias não o acompanhava. Esperou-o, bateu o pé, e quando surgiu o cão, segurou-o pela coleira, orientou-se, e dirigiu-se para o portão.

        Barrando-lhe os cúmplices a passagem, murmurou qualquer coisa e quis passar. Repeliram-no, ele se encolerizou e, afinal, afastou-se para o meio das árvores, sem soltar Golias, mas abandonando a maleta.

        Seu procedimento era fácil de se compreender, e tanto Dorotéia quanto d'Estreicher logo viram que o coitado pretendera partir à conquista do tesouro. Apesar de sua demência, não esquecera a aventura. A data solene se lhe impunha e, no dia que fixara a si próprio, fechara a mala e pusera-se a caminho como um mecanismo a que se deu corda e que funciona na hora marcada.

        D'Estreicher chamou os cúmplices e gritou-lhes:

        — Rebusquem os seus pertences.

        E como não encontravam nada, medalha nenhuma, nenhuma indicação, passeou um instante defronte a Dorotéia, indeciso quanto à forma de proceder, e por fim se aproximou dela.

        ?Responda-me. Raul a ama.Você, não. Do contrário eu teria posto um cobro a seu namorico, há quinze dias. Mas ainda assim você tem escrúpulos a seu respeito no que concerne à medalha e ao tesouro, e estão mancomunados. Tolices, pequena, e vou pô-la à vontade, porque existe uma coisa que você ignora e que preciso revelar-lhe. Por conseguinte, responda. Deve espantá-la o fato de eu procurar essa medalha, pois, pelo que sabe, eu a roubei a seu pai.         ?Que supõe?

        ?Suponho que ela lhe foi de novo arrebatada.

        ?Com efeito. Mas sabe por quem?

        ?Não.

        ?Pelo pai de Raul, por Jorge Davernoie.

        Ela estremeceu e redargüiu:

        ?Mentira.

        —Não estou mentindo — afirmou ele vigorosamente —Lembra-se da última carta de seu pai, que nosso primo Chagny nos leu em Roborey? O príncipe de Argonne contava sua noite de hospital, a noite em que ouviu dois homens falarem debaixo da sua janela, em que viu uma mão que sé esgueirava para a mesa e surripiava a medalha. Ora, o homem que esperava em baixo, e que acompanhara o outro na sua expedição, era Jorge Davernoie. E esse biltre, Dorotéia, logo na noite seguinte, despojava o seu camarada.

        Dorotéia foi sacudida pela indignação e a revolta.

        ?Mentira! O pai de Raul! Ele, fazer esse papel! Ele, um ladrão?

        ?Melhor do que isso, Dorotéia. Porque a expedição não tinha apenas por finalidade um roubo... e se aquele dos dois homens que derramou o veneno e cujo braço tatuado o príncipe de Argonne viu, não renega seus atos, esse não se esquece de que foi o outro quem forneceu o veneno.

        ?Você está mentindo! Está mentindo! O único culpado é você! Só você matou meu pai!

        ?Não me acredita? Olhe, eis aqui uma carta dele ao velho barão, isto é, ao pai. Leia esta carta que encontrei entre os papéis do barão: "Finalmente me apoderei da medalha de ouro indispensável. Na minha próxima licença levá-la-ei." E veja a data! Oito dias após a morte do príncipe de Argonne! Está convencida, hem?

        ?E não pensa que ainda poderemos entender-nos sem a ciência dessa pata choca do Raul?

        A revelação fazia a jovem sofrer muito. Contudo, reagiu e, simulando desenvoltura, interrogou d'Estreicher:

        ?Que quer dizer?

        ?Isto. A moeda de ouro trazida ao barão, confiada um momento por ele à sua antiga namorada, depois oculta, não sei onde, pertence a você. Raul não tem nenhum direito a ela.       ?Compro-a,

        ?Por   que preço?

        ?O que você desejar... a metade dos lucros, se exigir. Dorotéia viu logo o partido que poderia tirar da situação. Ainda neste caso se oferecia o meio de ganhar alguns minutos, os minutos decisivos, talvez, meio penoso e caro, pois arriscava a entregar o talismã. Poderia, contudo, hesitar? D'Estreicher perdia a paciência. Apavorava-se à idéia do ataque iminente que o ameaçava. Que um instintivo acesso de medo o assaltasse, e seria a fuga irremediável.

        ?Uma associação entre nós, jamais! Uma partilha... qualquer coisa que faça de mim sua aliada, não, mil vezes não, execro-o... Mas um acordo por alguns instantes, talvez. Quais as suas condições? — perguntou ele — E avise-se. Aproveite-se do fato de eu a deixar expôr suas condições.

        ?Será breve. Seu fito é duplo. A medalha e eu. É preciso escolher. Que quer acima de tudo?

        ?A medalha.

        ?Neste caso, liberte-me, e eu lhe entrego.

        ?Dê-me a sua palavra de honra de que sabe onde ela está.

        ?Juro-lhe.

        ?Há quanto tempo?

        —Há cinco minutos. Ainda há pouco eu o ignorava. Agora sei. Produziu-se um pequenino fato que me informou.

        D'Estreicher acreditou. Não pôde deixar de acreditar. Tudo quanto ela dizia assim, quando olhava o interlocutor no fundo dos olhos, era a verdade exata.

        ?Fale.

        ?Agora, por sua vez, jure-me primeiro que, logo que for executada minha promessa, estarei livre.

        O bandido pestanejou. A idéia de manter um juramento lhe parecia inteiramente cômica, e Dorotéia não ignorava tampouco que essa jura não teria qualquer espécie de valor.

        —Juro-o — disse ele.

        E repetiu:

        —Fale. Não percebo muito bem o que você trama, porém nada disso me parece muito católico. Portanto, desconfio. Tenha isso em mente, minha cara.

        A luta entre os dois estava no ponto mais agudo, e o que emprestava a essa luta seu caráter especial, era que cada qual lia abertamente no jogo do adversário. Dorotéia não tinha dúvida de que Raul, após um atraso imprevisto, estivesse a caminho do Manoir, e d'Estreicher, que tampouco tinha dúvida sobre isso, sabia que Dorotéia apoiava todo o seu procedimento nessa intervenção imediata. Havia, contudo, uma coisinha que tornava iguais as suas possibilidades de vitória. D'Estreicher se julgava em absoluta segurança porque seus dois cúmplices, colados aos postigos do portão, vigiavam a estrada e a chegada do auto. Ora, a jovem tivera a admirável precaução de exigir de Raul o abandono do carro e a escolha de estradas escondidas. Dessa minúcia provinha toda a esperança de Dorotéia.

        Deu, por conseguinte, a sua explicação, tranqüilamente, sempre obediente, aliás, à idéia de prolongar a conversa.

        ?Jamais cessei de acreditar — disse ela — e estava certa de que você pensava como eu, que o barão "não largava, por assim dizer, a medalha".

        ?Esquadrinhei por toda parte —objetou d'Estreicher.

        ?Também eu. Mas não sustento que ele guardasse a medalha consigo, com a sua pessoa. Presumo "que a guardasse, e ainda a guarda, ao alcance da mão".

        ?Como?

        ?Sim, sempre agiu de forma que lhe bastasse estender o braço para apanhá-la.

        ?Impossível. Nós a teríamos visto.

        —Não, pois que agorinha mesmo você nada viu.

        — Agora?

        —Sim, quando ele se retirava, forçado pela ordem do seu instinto, quando se retirava, no próprio dia por ele fixado antes e cair doente.

        — Ele se retirava, mas sem a medalha.

        ?Com a medalha.

        Rebuscaram a maleta.

        ?Ele não partia apenas com a maleta.

        — Com quê, então, diabo?! Você estava a mais de cem metros dele. Viu alguma coisa?

        —- Vi que levava algo além de sua maleta.

        ?Que?

        ?Golias.

        Calou-se d'Estreicher, estupefato por essa simples palavra e por tudo quanto mesma significava.

        ?Golias, — prosseguiu Dorotéia — Golias "que nunca o largava", Golias "sempre ao alcance de sua mão", e que ele segurava ao partir, que segura neste momento. Olhe-o. Seus cinco dedos se crispam sobre a coleira do animal. Está ouvindo, "sobre a coleira"!

        Ainda desta vez d'Estreicher não duvidou absolutamente. A afirmação da moça imediatamente lhe pareceu corresponder a todos os dados que a realidade apresentava. Ainda desta vez Dorotéia trazia a luz. Fora dessa luz, apenas trevas e contradições.

        Recuperou d'Estreicher todo o seu sangue-frio. Sua vontade de agir foi imediata e, ao mesmo tempo, via claramente todas as precauções que deveria tomar para reduzir os riscos da tentativa.

        Tirou do bolso um cordel fino com o qual atou Dorotéia, e um lenço de pescoço que lhe amarrou na boca.

        ?Se você se engana, tanto pior para você, minha cara. Há de pagar seu erro — E com voz sarcástica, aduziu: — Aliás, se não se engana, tanto pior para você, igualmente. Sou daqueles que não largam a presa — E chamou os cúmplices: — Vocês aí, atenção! Ninguém na estrada?

        ?Ninguém.

        ?Abram o olho! Partiremos daqui a três minutos.   Quando eu soprar o apito, encontro à entrada do subterrâneo.   Levarei a pequena.

        A ameaça, por terrível que fosse, não perturbou a jovem. Para ela todo o drama se desenrolava lá ao longe, às suas vistas, entre d'Estreicher e o barão.

        D'Estreicher desceu a colina a correr, atravessou o rio e investiu contra o velho que estava sentado num dos bancos do terraço, com a cabeça de Golias pousada nos joelhos.

        Sentiu Dorotéia que o coração lhe batia desesperadamente. Não que receasse o descobrimento da medalha. Estava certa de que a moeda de ouro se encontrava na coleira. Mas era ainda preciso que esse esforço supremo para arrancar uma última dilação não fosse inútil.

        "Se o cano de uma espingarda não aparecer ao alto do muro antes de um minuto, d'Estreicher é meu senhor."

        E como se mataria, de preferência a aceitar a derrota, era a sua vida que se jogava no espaço daquele minuto.

        Foi mais longo o prazo concedido pelas circunstâncias. Havendo-se lançado sobre o   cão, encontrou d'Estreicher inesperada resistência por parte do fidalgo. Repeliu o velho com furor, enquanto Golias latia e se esquivava às mãos do bandido.

        Prolongou-se o combate. Dorotéia acompanhava suas fases, com alternativas de temor e esperança, animando com toda a sua energia o avô de Raul, e amaldiçoando o vigor e obstinação do bandido. Por fim, o velho barão cansou e pareceu, de repente, desinteressar-se do que poderia acontecer.

        Dava a impressão de que Golias experimentava a mesma sensação de fadiga. Deitou-se junto ao dono e deixou que lhe tocassem, com uma espécie de despreocupação. Os dedos de d'Estreicher, cujo tremor febril se podia ver, agarraram a coleira, sob os bastos pêlos, e apalparam o couro, eriçado de cabeças de pregos. Desta forma se abriu a fivela.

        Mas ele não foi adiante. Produzia-se o lance teatral. Ao alto da muralha surgiu um vulto magro, e uma voz gritava:

        — Mãos ao alto!

        Novamente, Dorotéia sorria com uma sensação de indizível alegria e de libertação. Seu plano, retardado por obstáculos, era bem sucedido. Perto de Saint-Quentin, que aparecera primeiro, outro vulto se erguia e o cano de uma carabina era apontado.

        Instantaneamente, abandonara d'Estreicher a sua tarefa e olhava com ar apavorado.

        Ecoaram mais dois brados:

        — Mãos ao alto!... Mãos ao alto!

        Duas outras carabinas eram assestadas, nos pontos designados por Dorotéia, e os três atiradores visavam direta e exclusivamente d'Estreicher.

        Ele, no entanto, hesitava. Uma bala assobiou-lhe aos ouvidos. Ele ergueu os braços. Já seus cúmplices fugiam, sem que alguém se ocupasse deles, atravessavam a ponte e dirigiam-se para um montículo insulado a que chamavam de Labirinto.

        Abriu-se violentamente o portão principal. Seguido por dois homens que Dorotéia não conhecia, mas que deveriam ser os policiais enviados de acordo com sua indicação, precipitou-se Raul.

        D'Estreicher não se moveu, sempre de braços levantados, e, sem dúvida, não oporia nenhuma resistência se uma manobra em falso não lhe deixasse certa liberdade. Seus três agressores o cercavam, ocultando-o, assim, durante dois ou três segundos, aos criados que o miravam. Ele se aproveitou disso e, com seu revólver, subitamente apontado, deu quatro tiros seguidos.Três balas se perderam, mas a quarta atingiu a perna de Raul, que tombou com um gemido de dor.

        Aquilo, aliás, foi um inútil sobressalto de cólera e violência. Logo atacado, foi d'Estreicher desarmado e reduzido à impotência.

        Colocaram-lhe algemas. Durante esse tempo, ele procurava com os olhos Dorotéia, quase invisível por trás de uma moita de plantas, para onde a jovem se retirara, e seu olhar tinha uma terrível expressão de ódio.

        Foi Saint-Quentin, seguido de Montfaucon, quem descobriu Dorotéia, e já a cercavam solícitos, aflitos por verem seu rosto em sangue.

        —Silêncio! — ordenou ela, a fim de cortar cerce as perguntas — Sim, estou ferida. Mas não será nada demais. Capitão, corre até perto do barão, aproxima-te de Golias, afaga-o e solta-lhe a coleira. Nessa coleira, sob a placa de metal onde está gravado o nome do animal,   encontrarás uma bolsa forrada e que contém a medalha que procuramos. Traze-me.

        A criança partiu.

        ?Saint-Quentin — continou   Dorotéia — os agentes me viram?

        ?Não.

        ?É preciso fazer toda gente acreditar que eu logo deixei o Manoir, e que deveis ir ter comigo na sede da comarca, em Rochesur-Yon. Não quero envolver-me no inquérito. Iriam interrogar-me e seria tempo perdido.

        ?Mas o Sr. Davernoie?

        ?Avisa-o, logo que puderes. Dize-lhe que parti por motivos que ele mais tarde saberá, e que lhe peço silêncio sobre tudo quanto me concerne. Aliás, ele está ferido, e, na confusão, ninguém pensará em mim. Vão dar busca nas Buttes a fim de agarrar os cúmplices. É preciso que não me vejam. Cobre-me com galhos, Saint-Quentin. Bem... Agora, outra coisa: esta noite vinde os quatro procurar-me para me transportar à carroça, e pela manhã partiremos. Talvez eu fique doente por alguns dias. Um pouco de excesso de trabalho, emoções demasiadas. Nada de preocupações. Está entendido, meu filho?

        ?Sim, mamãe, está.

        Conforme previra Dorotéia, os dois policiais, depois de trancafiarem d'Estreicher no Manoir, passaram não longe dela, conduzidos por um dos criados. Ouviram-se as suas exclamações. Haviam, sem dúvida, descoberto a entrada do labirinto por onde tinham fugido os cúmplices.

        —Perseguição inútil — murmurou Dorotéia — A caça vai muito na dianteira...

        Ela sentia-se cansadíssima. Por coisa nenhuma do mundo, porém, fraquejaria antes do regresso de Montfaucon. Perguntou a Saint-Quentin as razões que haviam retardado a hora do ataque.

        ?Um acaso, não?

        ?Sim — respondeu o rapazelho — Os agentes se enganaram de albergue e os três criados se demoraram na festa... Foi necessário reunir toda a gente, e tivemos um enguiço no automóvel.

        Acorria Montfaucon. Dorotéia   ainda   disse:

        ?Talvez exista na medalha, Saint-Quentin, um nome de cidade, ou melhor, um nome de castelo. Neste caso, informa-te, e dirige a carroça de acordo com essa indicação. Encontraste, capitão ?

        ?Encontrei, mamãe.

        ?Dá aqui, meu querido.

        Que comoção sentiu Dorotéia ao tocar a medalha tão avidamente cobiçada por todos, e que se poderia considerar o mais precioso dos talismãs, como que a própria garantia do bom êxito.

        Era a medalha duas vezes maior do que uma moeda de cinco francos, e principalmente muito mais espessa, menos regular do que as medalhas modernas, modelada mais grosseiramente, e de um ouro mais baço, sem reflexos.

        Numa das faces havia a divisa:

        "In robore fortuna".

        Na outra face, estas linhas:

        12 de julho de 1921

        Ao meio-dia

        Em frente   ao   relógio   do   Castelo de La Roche-Périac.

        —Doze de julho — murmurou Dorotéia — tenho tempo de desmaiar.

        E desmaiou.

X

Em busca do tosão de ouro

        Só três dias mais tarde venceu Dorotéia aquela espécie de torpor físico, acrescido de febre, que a prostrara. Nessa ocasião os quatro meninos davam uma representação nos subúrbios de Nantes. Montfaucon substituía a diretora no principal papel, espetáculo menos saboroso, mas no qual o capitão demonstrou tanta veia cômica que a receita foi boa.

        Saint-Quentin exigiu que Dorotéia gozasse mais dois dias de repouso. Para que se apressar? A aldeia de La Roche-Périac se achava a 120 quilômetros de Nantes, no máximo, o que permitiria partir seis dias apenas antes da data.

        Ficando com certa lassidão após tantos acontecimentos contrários e comoções tão violentas, a jovem consentia que lhe dessem ordens. Pensava muito em Raul Davernoie, mas com revolta e cólera contra os sentimentos de ternura que a intimidade daquelas poucas semanas lhe inspiraram em relação ao rapaz. Por estranho que fosse ele ao drama em que o príncipe de Argonne encontrara a morte, nem por isso deixava de ser filho daquele que assistira d'Estreicher na execução do crime. Como esquecer isso? Como perdoar?

        A amenidade da viagem acalmou-a. Sua natureza ardente e feliz venceu as lembranças más e as fadigas passadas. À medida que se aproximava da meta, recuperava ela todas as forças, o prazer de viver, sua alegria de criança e sua vontade de levar até o fim a tarefa empreendida.

        — Saint-Quentin — dizia ela — vamos à conquista do Tosão de Ouro. Percebes a solenidade dos dias que se passam? Ainda quatro... ainda três...ainda dois...e o Tosão de Ouro será nosso. Daqui a uma quinzena, barão de Saint-Quentin, estarás vestido como um "dandy".

        —E tu como uma princesa— respondia Saint-Quentin, a quem essas perspectivas de fortuna, presságios de uma intimidade menor com sua amiga, não pareciam absolutamente agradar.

        Ela contava com outras provações que a aguardavam, e ainda com obstáculos para serem derrubados e, talvez, inimigos para vencer. Mas, por ora, reinava trégua e repouso. Estava terminada a primeira parte do drama. Principiavam outras aventuras. Curiosa e cheia de entusiasmo, ela sorria ao futuro misterioso que se abria à sua frente.

        No quarto dia atravessaram o Vilaine, cuja margem direita seguiram daí em diante, pela encosta que dominava o rio. Era uma região muito ingrata, pouco habitada, por onde avançavam lentamente sob um sol de fogo que atormentava Zarolha.

        Afinal, no dia seguinte, viram num poste indicador:

        "La Roche-Périac, vinte quilômetros."

        —Dormiremos lá esta noite — declarou Dorotéia.

        Penosa etapa. O calor era sufocante. Em caminho, recolheram um andarilho que gemia sobre a relva empoeirada. Cem metros à frente deles andavam uma mulher e uma criança com o pé torcido, sem que Zarolha pudesse alcançá-las.

        Revezadamente, os quatro meninos e Dorotéia sentavam-se na carroça, perto do andarilho. Era um pobre velho, gasto pela miséria, cujos farrapos só se agüentavam por pedacinhos de barbante. No meio do matagal de cabelos e da barba inculta, os olhos, entretanto, conservavam certo brilho, e, quando Dorotéia o interrogou a respeito de sua vida, pronunciou esta frase que a confundiu:

        —A gente não se deve queixar. Meu pai, que era amolador ambulante, sempre me dizia: "Jacinto (é o meu nome), Jacinto, quando somos corajosos não somos infelizes". Revelo-te o segredo que meu pai me transmitiu: "A fortuna está na coragem."

        Dorotéia escondeu sua perturbação e comentou:

        —A herança não é volumosa. Nada mais lhe deixaram além desse segredo?

        —Deixaram, sim, — explicou o homem, com muita naturalidade — outro conselho. Ir, todos os anos, no dia 12 de julho, à porta da igreja de La Roche-Périac e esperar alguém que me dará um dinheirão. Lá vou todos os anos. Nunca recebi senão níqueis. Ainda assim, essa idéia me sustenta. E lá estarei amanhã, tal como no ano passado... e no ano que vem.

        O bom homem recaiu em suas reflexões. Dorotéia calou-se. Uma hora mais tarde, porém, oferecia o abrigo da boléia à mulher e à criança do pé torcido, que eles tinham acabado por alcançar. E, havendo interrogado essa mulher, ficou sabendo que era uma proletária parisiense que vinha à igreja de La Roche-Périac para que o pé de seu filho ficasse curado.

        —Na minha família, — disse a operária — e no tempo de meu pai e meu avô, faziam a mesma coisa: quando uma criança está doente, trazem-na à Capela de São Fortunato, em La Roche-Périac, no dia 12 de julho.   É como se ela ficasse curada.

        Destarte, por aquelas duas vias, a lenda chegara até essa mulher do povo, e até esse vagabundo, mas uma lenda deformada, na qual restavam apenas fragmentos da verdade inicial. A igreja substituía o castelo. São Fortunato substituía a fortuna. Só o dia e o mês contavam, sem que se preocupassem com o ano.

        E cada qual fazia uma peregrinação àqueles lugares de onde tantas famílias haviam esperado miraculosa assistência. Nenhuma alusão à medalha de ouro.

        À tardinha, a caravana atingiu a aldeia e, imediatamente, Dorotéia se informou a respeito do castelo de La Roche-Périac.

        Sob esse nome conheciam apenas umas ruínas situadas nove quilômetros adiante, à beira do oceano, numa pequena península apartada.

        —Durmamos aqui — decidiu a rapariga — Partiremos amanhã de madrugada.

        Não partiram de madrugada. Durante a noite, sob o celeiro onde haviam abrigado a carroça, Saint-Quentin foi despertado por um cheiro de fumaça e pelo crepitar do fogo.

        Ergueu-se. O celeiro se incendiava. Chamou, gritou por socorro. Acorreram alguns componeses que, por um feliz acaso, passavam pela estrada.

        Já era tempo. Logo que puxaram o carro, o teto desabou. Dorotéia e seus camaradas nada sofreram. Mas Zarolha, chamuscada, recusou energicamente deixar-se atrelar, pois os varais lhe avivavam as chagas, e só às sete horas a carriola se pôs em movimento, puxada por um ordinário cavalo de aluguel e seguida pela Zarolha.

        Atravessando a praça da igreja, avistaram eles, ao pé da porta, a operária e seu filho, de joelhos, e o vagabundo que esmolava. Para estes a aventura não ia além.

        Não houve mais incidentes. Salvo Saint-Quentin, sentado à sua boléia, dormiram todos dentro da carroça, entorpecidos, uns encostados aos outros. Às nove horas e meia, pararam. Chegavam em frente a uma cabana enfeitada com o nome de albergue, e sobre cuja porta se lia: "Aqui a Viúva Amouroux hospeda quem venha a pé, a cavalo ou de carruagem."

        A poucas centenas de metros, embaixo de um declive que terminava num alcantil pouco elevado, a pequena península de Périac estendia em direção do oceano cinco promontórios que pareciam os cinco dedos da mão. À esquerda, a foz do Vilaine.

        Para as crianças, era o termo da expedição. Comeram numa sala mergulhada na meia-obscuridade, dotada de um balcão de zinco e que servia de botequim. Depois, enquanto Castor e Pólux se ocupavam de Zarolha, Dorotéia interrogou a respeito das ruínas a viúva Amouroux, gorda camponesa satisfeita e tagarela, que logo exclamou:

        —Ah! você também vai para lá, minha linda mocinha?

        — Então não sou a primeira? — perguntou Dorotéia.

        —Claro que não. Já temos um senhor de idade, com a esposa. O velho, eu já vi nos outros anos. Uma vez dormiu aqui. É um dos que procuram.

        —Que procuram quê?

        —Sei lá! Um tesouro, pelo que dizem. O pessoal da terra não acredita nisso. Mas vem gente de muito longe, que dá batidas nos bosques e levanta as pedras.

        —Quer dizer que é permitido?

        —Por que não? A ilha de Périac — chamo de ilha porque, na maré alta, o caminho fica coberto — pertence a uns monges cujo convento fica em Sarzeau, duas léguas adiante. Parece, até, que eles estão dispostos a vender as ruínas e todas as terras. Mas quem há de querer isso?   Tudo inculto, selvagem...

        —Existe outra estrada além desta?

        —Existe sim, um caminho pedregoso, que parte do barranco e vai encontrar a estrada de Vannes. Mas, aviso à linda senhorita, é uma região perdida, abandonada. Não vejo dez viajantes por ano. Apenas alguns pastores, e é só.

        Por fim, às dez horas, completada a instalação, e apesar das súplicas de Saint-Quentin, que desejaria acompanhá-la, e a quem ela confiou as crianças, Dorotéia, ostentando seu mais belo vestido, e enfeitada com o mais deslumbrante dos seus lenços de pescoço, pôs-se em atividade.

        Raiava o grande dia. Dia de triunfo ou de decepção? De trevas ou de claridade? Fosse lá como fosse, para uma mulher como Dorotéia, de espírito sempre alerta e de fremente sensibilidade, o instante era delicioso. Sua imaginação criava um fantástico palácio, animado de mil janelas abertas, povoado de bons e maus gênios, de príncipes encantados e fadas benfazejas.

Do mar soprava ligeira brisa, que misturava seu frescor aos raios do sol. À medida que avançava, Dorotéia via mais distintamente os contornos rendados dos cinco promontórios e da península onde eles se enraizavam, num amálgama de árvores e rochas esverdeadas. O vulto esguio de uma torre semidemolida dominava a copa do arvoredo, e aqui e ali também se distinguia a pedra cinzenta de uma ruína.

        O declive, porém, se tornou mais íngreme. A estrada de Vannes bifurcou para a encosta que descia ao mais profundo da escarpa, e Dorotéia viu que o mar, muito alto nesse momento, ia quase banhar o sopé dessa penedia, cobrindo de água serena e pouco profunda o minúsculo istmo.

        Lá bem no alto, mantinham-se de pé o velho e a dama que a viúva Amouroux tinha assinalado. Ficou Dorotéia estupefata ao reconhecer o avô de Raul Davernoie e sua velha amiga Julieta Azire.

        O velho barão! Julieta Azire! Como teriam podido sair do Manoir, escapar a Raul, viajar e chegar ao limiar das ruínas?

        Sem que eles parecessem ao menos notar sua presença, Dorotéia chegou até perto dos dois. Tinham o olhar vago, contemplando com espanto aquele lençol de água que lhes embargava o caminho.

        Sentiu-se a jovem enternecidíssima. Dois séculos de esperanças e quimeras haviam legado ao velho barão ordens tão formais que sobreviviam à morte de seu pensamento. De muito longe viera até ali, apesar das fadigas terríveis e dos esforços sobre-humanos para alcançar o fito, tateando, nas sombras, e acompanhado por outra criatura demente como ele. E eis um e outro estacando diante do um pouco de água, como diante de um obstáculo intransponível.

        Suavemente, perguntou-lhes:

        —Querem acompanhar-me? O que se precisa atravessar não é nada.

        Abanando a cabeça, o ancião a observou, e não respondeu. Também a senhora guardou silêncio. Nem ela nem ele podiam compreender. Mais do que seres vivos, eram autômatos, animados por uma vontade que se encontrava fora de suas pessoas. Vieram sem saber, detinham-se e tornariam a partir sem saber.

        O tempo urgia; Dorotéia não insistiu. Levantou a saia e prendeu-a com um alfinete entre as pernas. Descalçou os sapatos e as meias, e entrou na água, tão pouco profunda que os joelhos não se molharam.

        Ao chegar à outra margem, o velho par não se havia movido e continuava a fitar, com semblante atônito, o imprevisto obstáculo. Independente de sua vontade, compassiva e sorridente, Dorotéia lhes estendeu os braços. De novo abanou a cabeça o velho barão. Julieta Azire não se mexia mais do que uma estátua.

        —Adeus — disse Dorotéia, quase feliz pela sua inação, e por ser a única que tentaria a empresa.

        O acesso à península de Périac se encontra apertado entre dois pântanos, reputados muito perigosos, ao dizer da viúva Amouroux, e entre os quais uma estreita faixa de terra sustenta o único atalho. Esse atalho, na rocha viva, escala, em seguida, um barranco arborizado, que uma antiga tabuleta de madeira designava como o "Mau Passo", e desemboca num planalto coberto de tojos e urzes. Ao cabo de vinte minutos, Dorotéia atravessou os poucos remanescentes de muralhas que demarcavam o contorno do castelo.

        A jovem afrouxou a marcha. A cada passo avante, parecia-lhe penetrar num domínio cada vez mais misterioso, onde o tempo houvesse acumulado mais silêncio e mais solidão. As árvores se chegavam mais umas às outras. Era tão densa a sombra das moitas que nenhuma flor ali desabrochava. Quem seria que lá morara outrora, construíra aquelas muralhas e plantara aquelas árvores, algumas das quais eram de essências preciosas e origem estrangeira?

        Dividiu-se o caminho em três atalhos, trilhas de cabras, onde às vezes se devia caminhar encurvado sob as frondes baixas. Ao acaso, escolheu ela o do centro, e atravessou uma série de cercados delimitados por muretos de pedra seca. Sob os pesados mantos de hera viam-se fiadas de pedras pertencentes a edificações.

        Dorotéia não duvidou de que estivesse muito próximo o alvo, e foi tão grande sua comoção que teve de sentar-se, como um peregrino que chegasse à vista do lugar sagrado para o qual se dirige desde o início de sua vida.

        E ao seu íntimo, formulava esta pergunta: "Se me equivoquei? Se tudo isto nada significa? Sim, na pequena sacola de couro que meti no bolso existe uma medalha com o nome de um castelo, o milésimo de um ano, e a data de um dia. E eis aqui o local desse castelo, e estamos na data fixada, mas, ainda assim, que me prova serem justos todos esses raciocínios e que alguma coisa vai acontecer? Cento e cinqüenta ou duzentos anos, é um prazo enorme, e quantos fatos poderão ter varrido as combinações que julguei entrever!"

        Ergueu-se. Passo a passo, e muito lentamente, avançou. Um desenho de tijolos entrecruzados revestia o solo. Um portal isolado, completamente desguarnecido, abria seu arco muito alto. Dorotéia passou e, logo após, ao fundo de um pátio muito largo, enxergou ?e não enxergou outra coisa — o mostrador de um relógio.

        Nesse momento, o seu próprio relógio marcava onze horas e meia, e não havia ninguém nas ruínas.

        E na verdade parecia que jamais poderia haver ninguém aí, naquele canto perdido do mundo, onde só deveriam aventurar-se viajantes ignorantes ou pastores à cata de relva seivosa para os seus rebanhos. Com efeito, mais do que ruínas, eram vestígios de minas, envoltos em hera e silvas. Aqui um pórtico, ali uma abóboda, mais adiante o pano de uma lareira, mais longe ainda o esqueleto de um pavilhão.

        Testemunhos únicos e veneráveis do tempo em que havia aí um edifício precedido de um pátio, flanqueado das acomodações para os empregados, e cercado por um parque, únicas testemunhas, dizíamos, só existiam, erguendo-se em grupos ou em renques interrompidos, belas árvores antigas, principalmente carvalhos, muito copadas, veneráveis e majestosas.

        Num dos lados desse pátio, cuja forma se via pelo desenho das construções desmoronadas, um lanço de fachada, intacto, apoiado a um montículo de ruínas, sustentava, à altura de um primeiro andar muito baixo, aquele relógio que, por milagre, escapara às destruições dos homens.

        Os dois grandes ponteiros estendiam suas flechas cor de ferrugem. Estava apagada a maioria das horas, escritas, contra o hábito, em algarismos romanos. Entre as pedras desunidas do mostruário brotavam parietárias e musgo. Bem ao fundo, sob o alpendre de um pequeno nicho arredondado, um sino esperava o choque do martelo.

        Relógio morto, cujo coração cessara de bater. Dorotéia teve a impressão de que o tempo parará havia séculos, suspenso daqueles ponteiros imóveis, daquele martelo que não batia mais, daquele sino mudo na concavidade do seu abrigo. Contudo, embaixo, sobre uma placa de mármore, divisou certos caracteres a custo legíveis, e, subindo a um montículo de pedras, pôde decifrar estas palavras: "In robore fortuna"!

        "In robore fortuna"! A bela e nobre divisa que se encontrava por toda parte, em Roborey, no Manoir, no castelo de La Roche-Périac, e na medalha! Estaria Dorotéia, portanto, com a razão? Seria, pois, válida a ordem dada pela medalha? E era mesmo um encontro ao qual estavam convidados, através do tempo e do espaço, diante daquele relógio morto?

        Ela se dominou e disse a rir: "Um encontro marcado ao qual compareço sozinha."

        Por ardente que fosse a sua convicção, não acreditava absolutamente na chegada daqueles que também, como lhe acontecera, haviam sido convocados. A formidável série de acasos graças aos quais, pouco a pouco, chegara mesmo ao âmago da enigmática aventura, não poderia ser logicamente renovada em favor de outro privilegiado. A cadeia de tradições deveria ter-se interrompido nas outras famílias, ou então atingir fragmentos da verdade, conforme o provavam os exemplos do vagabundo e da proletária.

        "Ninguém virá", repetiu. "São onze horas e trinta e cinco. Por conseguinte..."

        Não terminou. Do lado da terra chegava um rumor, um rumor muito próximo, que não se confundia com qualquer dos que produzem as vagas do mar ou o esforço do vento. Pôs-se à escuta. Aquilo repercutia com um ritmo igual e cada vez mais distinto. "Algum camponês...   algum lenhador", pensou ela.

        Não, era outra coisa. Percebeu-o à medida que avançava... era o passo lento e cadenciado de um cavalo cujos cascos feriam o solo mais duro da trilha. Dorotéia acompanhava-lhe a marcha progressiva no meio dos cercados do velho domínio, depois sobre os tijolos entrecruzados. Um estalido de língua ressoava por vezes, encorajamento do cavaleiro à sua cavalgadura.

        De olhos fixos no arco hiante, Dorotéia aguardava com uma febrícula de curiosidade.

        E, de inopino, surgiu o cavaleiro. Estranho cavaleiro que parecia tão grande sobre seu cavalo tão pequeno, a ponto de dar a impressão de avançar com o auxílio de suas longas pernas dependuradas, e que o cavalico que era levado por ele como um brinquedo de criança. Sua roupa de quadrados, suas calças curtas, suas grossas meias de lã, seu rosto raspado, o cachimbo que segurava entre os dentes, sua fleuma, tudo indicava a nacionalidade inglesa.

        Avistando a jovem, fez, de si consigo, e sem ar surpreendido:

        —Aoh!

        E teria prosseguido seu caminho se a vista do relógio não o impressionasse. Puxou a rédea:

        —Stop, boy! Stop!

        Para apear-se, bastou-lhe alçar-se nas pontas dos pés enquanto o minúsculo cavalo deslizava por baixo dele. Amarrou a rédea em torno de uma raiz, consultou seu relógio, e foi colocar-se não longe do relógio do castelo, exatamente como se se tivesse postado de sentinela. "Aí temos um cavalheiro que não é tagarela", pensou Dorotéia. "Um inglês, na certa..."

        Ao cabo de um instante, foi-lhe fácil verificar que ele a fitava, mas como se fita uma mulher que se acha bonita, e não como alguém com quem as circunstâncias exigiriam que se conversasse.

        Seu cachimbo estava apagado; acendeu-o de novo, e assim permaneceram três ou quatro minutos, um perto do outro, gravemente, e sem se mover.

        A brisa levava para cima da moça a fumaça do cachimbo.

        "É excessivamente idiota", disse Dorotéia com seu botões, "porque afinal de contas, é probabilíssimo que esse cavalheiro taciturno e eu tenhamos um encontro marcado. Tanto pior, apresento-me... Sob que nome?"

        Esta pergunta a deixou num cruel embaraço. Deveria dar-se a conhecer como princesa de Argonne ou como Dorotéia, dançarina de corda? A solenidade das circunstâncias justificava uma apresentação cerimoniosa e a enunciação do título. Mas, por outro lado, o vestuário de cores várias e a saia muito curta exigiam menos pompa. Decididamente, "dançarina de corda" bastava.

        Todas estas reflexões, cuja comicidade ela própria sentia, levaram-lhe ao rosto um sorriso que o rapaz notou.

        Sorriu igualmente. Ambos abriram a boca, e iam falar ao mesmo tempo, quando um incidente cortou as suas efusões. Alguém desembocava no pátio vindo do atalho, um pedestre de rosto muito pálido, braço na tipóía sob um jaquetão demasiado largo, e um gorro de soldado russo.

        Também a ele a visão do relógio pregou ao solo. Ao ver Dorotéia e o seu companheiro, abriu-se no largo sorriso que lhe fendeu a boca até as orelhas, e tirou o gorro, pondo à mostra um crânio completamente raspado.

        Durante esse tempo crepitara a certa distância um ruído de motor. Acentuaram-se as detonações e, sempre pela abertura do arco, irrompeu uma motocicleta, que pulou sobre o terreno desnivelado e se deteve repentinamente. O motociclista vira o relógio.

        Muito jovem, forte e muito elegante no seu traje de viagem, alto, esguio, de fisionomia alegre, era, certamente, como o primeiro, de raça anglo-saxônica. Havendo encostado sua motocicleta, dirigiu-se para Dorotéia, de relógio na mão, como se estivesse a pique de dizer: "Verifique que não estou atrasado."

        Foi, porém, interrompido por duas outras chegadas que ocorreram uma atrás da outra.

        Um segundo cavaleiro apareceu, ao trote de um animal alto e magro, e, surpreso por sua vez com o encontro das pessoas agrupadas diante do relógio, deu um violento puxão às rédeas, dizendo:

        —"Piano, piano"...

        Este era de membros finos e fisionomia amável, e, depois de se livrar da cavalgadura, adiantou-se, de chapéu na mão, como um homem que vai apresentar suas homenagens a uma dama.

        Apareceu, porém, montado em um asno, um quinto indivíduo, que seguira uma direção diversa da dos outros, e que, no limiar do pátio, ficou atônito, estúpido, com os olhos apertados por trás dos óculos.

        —Será possível! — balbuciou ele — Será possível!... Vieram!... Não é uma fábula tudo isso!

        Tinha bem uns sessenta anos. Vestido de sobrecasaca, chapéu de palha preta, faces cercadas de duas suíças, trazia debaixo do braço uma pasta de couro muito usada, e não cessava de repetir com pasmo:

        —Vieram!... Vieram ao encontro marcado!... É incrível...

        Até então Dorotéia se conservara em silêncio, entre as exclamações e as idas e vindas de seus companheiros. A necessidade de explicações e palavras parecia diminuir nela à medida que ficava mais acompanhada. Tornava-se séria, grave. Seus olhos pensativos exprimiam intensa comoção. Cada aparecimento se lhe afigurava tão formidável quanto se produzisse um milagre.   Como o senhor da sobrecasaca e da pasta de couro, murmurou:

        —Será possível! Vieram ao encontro marcado!...

        Consultou seu relógio.

        Meio-dia.

        —Escutem — disse ela, com o dedo estendido — escutem... O "Angelus" que soa algures... na igreja da aldeia...

        Os homens se descobriram, e ao mesmo tempo em que escutavam o repicar do sino que lhes chegava em ondas irregulares, dir-se-ia esperarem que o relógio parado se pusesse outra vez a funcionar e ligasse aos minutos presentes o fio dos minutos de outrora.

        Dorotéia caiu de joelhos. Era tão forte sua comoção que a jovem chorava.

XI

O testamento do Marquês de Beaugreval

        Lágrimas de alegria, lágrimas que distendiam seus nervos exasperados e a banhavam de uma grande doçura. Sem saber o que fazer ou dizer, os cinco homens se agitavam.

        —Senhorita... Que é isto, senhorita?...

        E pareciam todos tão atônitos com os soluços daquela moça e com a própria presença em torno dela, que Dorotéia subitamente passou das lágrimas ao riso, e, cedendo aos impulsos de sua natureza, pôs-se a dançar ali mesmo, sem se preocupar em saber se iria apresentar-se como uma princesa ou uma dançarina de corda.

        E quanto mais essa imprevista manifestação aumentava o espanto de seus companheiros, tanto mais crescia o prazer dela. Fandango, jiga, "bourrée", tudo desfilou no espaço de um minuto, com simulação de castanholas, acompanhamento de canções inglesas e estribilhos da Auvernha, e principalmente com gargalhadas que despertavam os ecos de La Roche-Périac.

        —Riam também vocês cinco! — disse ela, apostrofando-os —. Vocês têm o aspecto de cinco múmias. Riam-se, vamos! Sou eu que lhes peço, eu, Dorotéia, dançarina de corda, princesa de Argonne. Senhor notário — disse ela dirigindo-se ao da sobrecasaca — vamos, tome um ar mais satisfeito. Garanto-lhes que há motivo para regozijo.

        Precipitara-se para o simplório, apertava-lhe a mão, e como para o convencer de sua qualidade, dizia-lhe:

        — O senhor é o notário, pois não? O notário encarregado de executar uma disposição testamentária? Como não, tudo isto é menos obscuro do que acreditam. Vamos explicar-lhes... É mesmo o notário, hem?

        —Com efeito, — resmungou o velhote — sou "Maítre" Delarue, notário em Nantes.

        —Em Nantes? Perfeito, estamos de acordo. E trata-se de uma moeda de ouro, não é?... Uma moeda de ouro que cada qual recebeu como convocação a este encontro?

        — Sim!... Sim... — respondeu ele, cada vez mais pasmado — uma moeda de ouro...um encontro aprazado...

        —Aos 12 de julho de 1921?

        —Sim... sim... 1921...

        —Ao meio-dia?

        —Ao meio-dia.

        Ele quis consultar o relógio. A jovem o impediu.

        —Não vale a pena, "Maítre" Delarue, ouvimos o "Angelus". O senhor foi pontual à entrevista... Nós também... Está tudo regular... Cada qual possui a sua moeda de ouro... Todos vão mostrá-las ao senhor.

        Arrastou Delarue para perto do relógio e, com crescente vivacidade de espírito, falou aos rapazes:

        —Aqui têm... é "Maítre" Delarue, o notário... "You understand"? Não compreendem? Sei falar inglês, italiano... e javanês, sabem?

        Eles protestaram. Os quatro compreendiam francês.

        —Ótimo — disse ela — Entender-nos-emos melhor. Portanto, é "Maítre" Delarue, é o notário, aquele que foi incumbido de presidir a nossa reunião. Na França, os notários representam os mortos. Ora, como é um morto que nos reúne, verificam o considerável papel de "Maítre" Delarue.. Não percebem como é engraçado? Tudo isto me parece tão claro e divertido! Tão estranho! É a mais bela aventura que conheço... a mais comovente, também...   Pensem só! Nós somos da mesma família... qualquer coisa assim como primos. Por conseguinte, temos o direito de nos alegrarmos, e de estarmos juntos como parentes que tornam a encontrar-se, não? Tanto mais... sim, não me engano... os quatro condecorados!... a Cruz de Guerra francesa! Então, combateram os quatro? Combateram na França?... e defenderam o meu amado país?

        Apertava a mão de todos, oferecendo-lhes seu olhar afetuoso, e como o americano e o italiano lhe respondessem com a mesma efusão, de chôfre, num movimento espontâneo, alçou-se até eles e beijou-os nas duas faces.

        —Tome, primo da América... tome, primo da Itália, sejam bem-vindos ao meu país. E vocês outros dois também, beijo-os a ambos... Hem! Está combinado, não é?, somos camaradas, amigos?

        Tudo isso se passava no meio de alegria e do bom humor de pessoas jovens e cheias de vida, que de fato se encontram como membros esparsos de uma família. Não existia mais entre eles o constrangimento de um primeiro encontro. Conheciam-se havia anos e anos (havia séculos!, exclamou Dorotéia batendo as mãos). Assim, os quatro rapazes se juntaram à volta dela, atraídos pela sua graça e exuberância e ao mesmo tempo por toda a luz que a jovem trazia à história tenebrosa que os reunia de inopino uns aos outros. Estavam abolidos todos os obstáculos. Não houve a lenta infiltração de sentimentos que, pouco a pouco, nos infundem confiança e simpatia, mas a invasão súbita de uma camaradagem cheia de naturalidade. Cada qual desejava agradar, e cada qual sentia que agradava.

        Dorotéia os separou e colocou numa fila, como para uma revista.

        —Cada um por sua vez, meus amigos. Desculpe-me, "Maítre" Delarue, sou eu quem faz a chamada e verifica os poderes. Eu, número um, o senhor americano, quem é? Qual o seu nome?

        —Arquibaldo Webster, de Philadelphia — respondeu o americano.

        —Arquibaldo Webster, de Philadelphia, recebeu de seu pai uma medalha de ouro?

        — De minha mãe, senhorita; meu pai morreu há muito tempo.

        ?E sua mãe de quem a obteve?

        ?Do pai dela.

        ?E assim por diante, não é?

        Arquibaldo Webster confirmou num excelente francês, e como se imperioso dever o obrigasse a responder à moça:

        — E assim por diante, com efeito, senhorita. Uma tradição de família, que remonta a uma época que ignoramos, pretende que somos de origem francesa, e quer que certa medalha seja transmitida ao mais velho dos filhos, sem que nunca mais de duas pessoas saibam da sua existência.

        — Mas, a seu juízo, que significa essa tradição?

        —Não sei. Disse-me minha mãe que a moeda de ouro dava direito à partilha de um tesouro. Mas disse-me isso a rir, e enviou-me à França mais por curiosidade.

        ?Mostre-me a sua medalha, Arquibaldo Webster.

        O americano tirou a moeda do bolso do colete. Era exatamente igual à que Dorotéia possuía. Mesmas inscrições, mesmo tamanho, mesma cor apagada. Dorotéia mostrou-a a Delarue, a seguir a devolveu ao americano, e prosseguiu seu interrogatório.

        ?Número dois... Inglês, não é?

        ?Jorge Errington, de Londres.

        ?Diga-nos o que sabe, Jorge Errington, de Londres.

        O inglês sacudiu o cachimbo, esvaziou-o e respondeu, igualmente em bom francês:

        —Não sei mais do que isto. Órfão desde o nascimento, recebi a moeda, há três dias, das mãos de meu tutor, irmão de meu pai. Disse-me ele que, segundo meu pai, se tratava de uma herança por receber, e que, na sua própria opinião, nada daquilo era sério, mas eu devia obedecer.

        —Fez bem em obedecer, Jorge Errington, de Londres. Mostre-me a sua medalha.   Bem, está em regra... O número três. Russo, sem dúvida?

        O homem do boné de soldado compreendia, mas não falava francês. Com seu largo sorriso, apresentou um pedaço de papel de duvidosa limpeza, sobre o qual estavam escritas estas palavras: "Kourobelef. Guerra da França. Salonica. Guerra com Wrangel."

        —A medalha? — perguntou Dorotéia — Perfeito, meu bravo. Estamos de acordo. E a medalha do número 4, do "signor" italiano?

        —Marco Dario, de Gênova — respondeu este mostrando a sua moeda de ouro — Encontrei-a no cadáver de meu pai, na Champanha, um dia em que combatemos lado a lado. Ele nunca me havia falado sobre ela.

        ?E no entanto, você veio até aqui...

        —Não tinha essa intenção. E afinal, independente da minha vontade, como voltei à Champanha a fim de visitar o túmulo de meu pai, tomei o trem para Vannes...

        ?Sim — disse a jovem — como os outros, submeteu-se às ordens do nosso antepassado comum. Que antepassado? E por que esta ordem? É o que "Maítre" Delarue, aqui presente, vai revelar-nos. Vamos, senhor notário, está tudo em ordem. Temos todos a senha. Cabe-nos, agora, o direito de lhe reclamar explicações.

        —Que explicações?—perguntou o notário, ainda mais espantado por tantas surpresas— Não sei lá grande coisa...

        —Como?! Não sabe?!—exclamou ela—Mas então, por que essa pasta de marroquim?... E por que fez a viagem de Nantes a La Roche-Périac? Vamos, abra essa pasta de marroquim e faça-nos a leitura dos documentos que a mesma não pode deixar de conter.

        —Acredita, realmente...?

        —Se acredito! Os cinco, estes cavalheiros e eu, cumprimos o nosso dever de vir aqui e de o informar sobre a nossa identidade. É a sua vez de cumprir sua missão. Somos todos ouvidos.

        A alegria da jovem suscitava em torno de si tanta cordialidade que o próprio "Maítre" Delarue sentiu os seus benéficos efeitos. Afinal, estava deslindado o caso. Entrava ele, de pé firme, num terreno onde a rapariga traçara, no meio de cipoais inextrincáveis na aparência, um caminho que só lhe restava trilhar com absoluta segurança.

        —Como não... Como não... — disse ele — não há outra coisa para fazer... e devo comunicar-lhes o que sei... tudo quanto sei... Desculpem-me... esta história é tão desconcertante!. ..

        Refeito de seu sobressalto, recuperou toda a dignidade que convém a um notário. Prepararam-lhe um lugar de honra, sobre uma espécie de degrau formado pelas asperezas do solo. Delarue aí se abancou. Formaram um círculo. De acordo com as instruções de Dorotéia, ele entreabriu a pasta com ar importante, como homem que tem o hábito de que os olhos se fixem sobre ele e os ouvidos recolham suas mínimas palavras, e, sem mais se fazer de rogado, pronunciou um discurso evidentemente preparado para o caso em que, contra toda expectativa e lógica, se encontrasse na presença de alguém na entrevista marcada.

        —Será breve o meu preâmbulo, — afirmou — porque tenho pressa de chegar ao objeto mesmo desta reunião. No dia — faz quatorze anos — em que me instalei em Nantes no cartório de notário que adquirira, meu predecessor, após me haver posto ao corrente de certos   negócios mais complicados, exclamou: "Ah! mas eu ia esquecendo... Oh! Isto não tem a menor importância, aliás... Mas, ainda assim... Escute, meu caro confrade, eis aqui o mais velho processo do cartório. Processo magro, pois se compõe de uma carta, conforme vê, uma simples carta dentro de um invólucro lacrado com esta menção, que não quero tardar a ler-lhe: "Missiva confiada à boa guarda do Sr. Barbier, tabelião, e de seus sucessores, para ser aberta no dia 12 de julho de 1921, ao meio-dia, diante do relógio do castelo de La Roche-Périac e para ser lida na presença de todos os possuidores da medalha de ouro cunhada por minha determinação."

        "Eis tudo. Não há outras explicações, meu predecessor absolutamente não as recebera do notário a quem comprou o cartório. Quando muito, pôde informar-me de que, pelas suas buscas nos velhos registros da paróquia de Périac, o Sr. Barbier (Hipólito João), tabelião, vivia no início do século XVIII. Em que época foi fechado o seu cartório? Por que motivos foram transportados para Nantes os arquivos? Talvez devamos supor que, em conseqüência de certas circunstâncias, um dos castelãos de La Roche-Périac tenham deixado a região e se hajam instalado em Nantes com seus móveis, cavalos e pessoal doméstico, e até o tabelião da aldeia. De qualquer forma, fato é que, há quase duzentos anos, a carta confiada à boa guarda do tabelão Barbier e seus sucessores, dormia no fundo das gavetas e armários, sem que ninguém procurasse surpreender o segredo pedido por quem a escrevera! E acontece que, segundo toda verossimilhança,

caberia a mim quebrar-lhe o selo!"

        "Maítre" Delarue fez uma pausa e observou os seus ouvintes. Estes, como se disse, estavam suspensos de seus lábios. Satisfeito com a impressão produzida, ele deu uma palmadinha na pasta de couro, e continuou:

        "Precisarei dizer-lhes que, amiúde, meu pensamento se detinha nessa perspectiva e que me sentia curioso por saber o conteúdo de semelhante carta? Uma viagem que empreendi a este mesmo local não me forneceu qualquer indicação, apesar de minhas pesquisas pessoais nos arquivos das aldeias e burgos da região.

        "E chegou a época. Antes de mais nada, ia eu consultar o meu presidente do tribunal civil. Com efeito, apresentava-se uma dúvida. Se a carta fosse considerada como a expressão de uma disposição testamentária, eu talvez só devesse abri-la na presença daquele magistrado. Era essa a minha opinião. Não foi a dele. Avaliou o presidente que nos encontrávamos em face de uma manifestação fantasista (chegou a pronunciar a palavra "mistificação") que escapava aos métodos legais, e que eu devia agir de acordo.

        "—Marcam-lhe um encontro sob o olmo, ao meio-dia, de 12 de julho de 1921 — concluiu ele a gracejar —. Compareça, "Maítre" Delarue, abra o selo da missiva conforme as indicações, e venha informar-me. E prometo não rir se o senhor voltar de mãos abanando."

        "Foi assim que, nessas disposições de espírito muito cépticas, tomei o trem para Vannes, a seguir a diligência, e depois, não sei onde, um burro para me trazer às ruínas. Os senhores compreenderão meu espanto ao ver que não era eu o único na entrevista aprazada e que, sob o olmo, ou melhor, sob o relógio, eram diversos os que aguardavam."

        Os quatro rapazes riam a bom rir.

        —Seja lá como fôr — disse Marco Dario, de Gênova — o caso se torna sério.

        —Talvez a história do tesouro não seja assim tão absurda—acrescentou Jorge Errington, de Londres.

        —A carta de "Maítre" Delarue vai esclarecer-nos — declarou Dorotéia.

        Destarte, chegara o momento. Apertaram o círculo em torno do notário. À alegria dos rostos jovens misturava-se um pouco de gravidade, que mais se afirmou quando Delarue apresentou aos olhos de todos uma dessas vastas sobrecartas quadradas, que antigamente se faziam em casa com uma folha de papel grossa. Esta era de tom desbotado e lustroso, como só o tempo consegue dar ao papel. Fechavam-na cinco selos, outrora vermelhos talvez, compostos agora de uma matéria cinza-violácea, gretada por mil pequeninas rachas semelhantes a um amontoado de rugas. No alto, à esquerda, a fórmula de transmissão devia ter sido repassada várias vezes e recoberta de tinta pelos sucessores do tabelião Barbier.

        —Os selos estão absolutamente intactos — fez observar "Maítre" Delarue — Consegue-se até decifrar as três palavras latinas da divisa...

        —"In robore fortuna" — disse Dorotéia.

        —Ah! A senhorita sabe?... — perguntou o notário, surpreso.

        —Sei sim, é claro, "Maítre" Delarue, são as mesmas que se encontram nas moedas de ouro, e que eu achei há pouquinho, meio apagadas, no mostruário do relógio.

        —Realmente — considerou o notário — existe aqui uma relação indiscutível, que liga entre si todas as partes da aventura e lhe confere uma autenticidade...

        —Então abra, abra, "Maítre" Delarue —interrompeu Dorotéia, impaciente.

        Saltaram três selos. O invólucro foi desdobrado. Continha uma grande folha de pergaminho dobrado em quatro, e cujos pedaços se mantinham tão pouco unidos que se separaram, e foi preciso reuni-los.

        De alto a baixo, e de ambos os lados, estava a folha de pergaminho repleta de uma escrita grossa, de hastes independentes, e que por certo fora traçada com o auxílio de tinta indelével. As linhas quase se encontravam e as letras eram tão apertadas que o conjunto dava a impressão de uma antiga página impressa em caracteres enormes.

        —Passo a ler — murmurou Delarue.

        —E, pelo amor de Deus, sem perder um segundo! — exclamou a jovem.

        O notário apanhou outro par de óculos, que colocou sobre o primeiro, e articulou:

        —Escrito hoje, 12 de julho de 1721, último dia de minha existência, para ser lido aos 12 de julho de 1921, primeiro dia da minha ressurreição.

        Delarue interrompeu-se. Os rapazes se entreolharam com ar estupefato. Arquibaldo Webster, de Philadelphia, declarou:

        —Esse gentil-homem era louco.

        —Talvez a palavra "ressurreição" esteja empregada em sentido simbólico — aventurou Delarue — A seqüência irá informar-nos. Continuo: "Meus filhos..."— Deteve-se outra vez, e disse: — "Meus filhos..." É aos senhores que ele se dirige...

        ?Ah! "Maítre" Delarue, — exclamou Dorotéia — rogo-lhe que não mais se interrompa! Isto tudo é tão interessante!

        —No entanto...

        ?Não, "Maítre" Delarue, não; os comentários são inúteis. Temos pressa de saber, não é, camaradas?

        Os quatro rapazes a aprovaram vivamente.

        O notário reatou então e prosseguiu sua leitura, com as hesitações e repetições impostas pelas dificuldades do texto:

        "Meus filhos,

        "Ao sair de uma sessão da Academia de Ciências de Paris, para a qual o Sr. de Fontenelle teve a bondade de me convidar, o ilustre autor das "Palestras sobre a Pluralidade dos Mundos" tomou-me o braço e disse-me:

        "Marquês, recusaríeis esclarecer-me sobre um ponto a propósito do qual, parece, guardais ciosa reserva? Qual a causa desse defeito na sua mão esquerda, esse quarto dedo cortado rente? Fala-se que deixastes esse dedo no fundo de uma das vossas retortas, ao fazer qualquer experiência, porque vós passais, marquês, por ser um pouco alquimista, e procurar, entre as paredes do vosso castelo de La Roche-Périac, o elixir da longa vida.

        "Não procuro, Sr. de Fontelle, — respondi   eu — já o possuo...

        "Fala sério?

        "Sério, Sr. de Fontenelle, e, se me permitis enviar-nos um frasco, a Parca impiedosa será forçada a esperar que completeis os cem anos.

        "—Aceito de bom grado, — disse ele a rir — sob a condição de que me façais companhia. Somos da mesma idade, o que nos permite viver de conserva quarenta belos anos.

        "Para mim, Sr. de Fontenelle, viver mais tempo não me seduz nada. Para que teimarmos em ficar num mundo onde nenhum espetáculo novo pode surpreender-nos e onde o dia futuro será igual ao dia que se acaba? O que eu quero é reviver, reviver daqui a um ou dois séculos, conhecer os filhos de meus netos, e ver o que os homens fizeram depois de nós. Haverá grandes mudanças aqui, no governo dos impérios, tanto quanto na prática das coisas. Hei-de conhecê-las.

        "Bravo, marquês! — exclamou o Sr. de Fontenelle, cada vez mais animado — Bravo! E será outro elixir que vos dará esse maravilhoso poder?

        "Outro, — afirmei — que trouxe de minha viagem às Índias, onde passei, como sabeis, dez anos da minha juventude, amigo de sumos sacerdotes daquele país maravilhoso, do qual nos vem toda religião e toda revelação. Eles me iniciaram em alguns dos seus grandes segredos.

        "Por que não em todos os seus segredos? — indagou o Sr. de Fontenelle, com, uma pontinha de ironia.

        "Alguns existem que eles se recusaram a revelar-me, tal como o poder de comunicar-se com os outros mundos, dos quais tão bem falastes, Sr. de Fontenelle, e como o segredo de reviver.

        "Contudo, marquês, não pretendeis...?

        "Esse segredo, Sr. de Fontenelle, roubei-o, e foi para punir-me disso que eles me condenaram a padecer o suplício do arrancamento de todos os dedos. Arrancado o primeiro, ofereceram-me o perdão se eu consentisse em restituir o frasco furtado. Indiquei o seu esconderijo, mas, previamente, tivera o cuidado de substituir o conteúdo e guardar o elixir noutro vidro.

        "De sorte que, ao preço de um dedo, adquiristes uma espécie de imortalidade... da qual contais fazer uso, não é, marquês?

        "Logo que puser meus negócios em ordem — respondi — isto é, dentro de uns dois anos.

        "Para reviver?

        "No ano da graça de 1921.

        "A história divertiu muito o Sr. de Fontenelle, que, ao despedir-se de mim, prometeu relatá-la nas suas memórias como prova da minha viva imaginação... E, sem dúvida, também da minha loucura, deveria ele pensar em seu íntimo..."

        Por um momento Delarue tomou fôlego, e, com o olhar, interrogou seus ouvintes.

        Marco Dario, de Gênova, abanava a cabeça, rindo. O russo mostrava os dentes brancos. Os dois anglo-saxões pareciam divertir-se infinitamente.

        —"Good joke"! — gracejou Errington, de Londres.

        —Sim, excelente farsa — traduziu Arquibaldo Webster de Philadelphia.

        Dorotéia, com olhos sonhadores, nada dizia. Em meio do silêncio, prosseguiu "Maítre" Delarue:

        —O Sr. de Fontenelle fazia mal em rir, meus filhos. Não havia naquilo imaginação nem loucura. Os sumos sacerdotes das Índias sabem o que nós não sabemos e nunca saberemos, e sou senhor de um de seus mais prodigiosos segredos. Chegou a hora de utilizá-lo. Estou resolvido a tal. No ano passado, a marquesa de La Roche-Périac, minha esposa, pereceu num acidente, deixando-me amargas saudades. Meus quatro filhos, de espírito aventureiro, como eu, batalham ou se entregam ao comércio em países estrangeiros. Fico sozinho. Arrastarei aqui uma velhice inútil e sem atrativos? Não. Está tudo pronto para a partida... e para o regresso. Meus velhos servidores, Godofredo e sua mulher, fiéis companheiros de minha vida, confidentes de meus projetos, juraram-me obediência. Digo adeus a meu século.

        “Tomem conhecimento, meus filhos, dos fatos que vão desenrolar-se no castelo de La Roche-Périac. Esta tarde, às duas horas, cairei em síncope. O médico, trazido por Godofredo, comprovará que meu coração não bate mais. De acordo com a verdade dos conhecimentos humanos, estarei mesmo morto, e meus criados me fecharão no ataúde que me aguarda.

        “Chegada a noite, Godofredo e sua esposa me libertarão, levando-me, sobre uma padiola, para o interior das ruínas da Torre Cocquesin, a mais velha das pertencentes aos senhores de Périac. A seguir, encherão de pedras o meu caixão e tornarão a fechá-lo.

        “Por seu lado, "Maítre" Barbier, executor de minhas vontades e administrador dos meus domínios, encontrará numa gaveta todas as instruções que o incumbirão de notificar o meu falecimento a meus quatro filhos e de lhes entregar as quatro partes que lhes cabem da minha herança. Ademais, deverá mandar a cada um deles, por um correio especial, uma medalha de ouro, completamente nova, que mandei cunhar com a minha divisa e que terá a data de 12 de julho de 1921, dia da minha ressurreição.

        “Essa medalha será transmitida de mão em mão através das gerações, a começar pelo primogênito dos filhos ou dos netos, sem que nunca mais de duas pessoas conheçam o seu segredo. Por fim, "Maítre" Barbier guardará a presente missiva, que vou fechar com cinco selos, e que será transmitida de tabelião a tabelião até a data fixada.

        “Quando lerem esta carta, meus filhos, terá soado a hora do meio-dia de 12 de julho de 1921. Vocês estarão reunidos ao pé do relógio do velho castelo, a poucas centenas de passos da velha torre Cocquesin, onde estarei dormindo há dois séculos, e que escolhi como lugar de repouso, calculando que se as revoluções que prevejo destruírem as residências, respeitarão o que já não passa de ruínas e escombros.

        “Então, depois de haverem seguido pela avenida de carvalhos que meu pai plantou, caminhem até a torre, que, sem dúvida, será o que é hoje. Detenham-se sob o arco onde outrora se erguia a ponte-levadiça, e um de vocês, contando, à esquerda, após o entalhe grade de ferro, a terceira das pedras, em altura, empurrá-la-á bem para a frente, enquanto outro, contando à direita, sempre perto da grade, a terceira pedra em altura, fará como o primeiro. Sob esse duplo empurrão, exercido ao mesmo tempo, o centro da parede direita se inclinará para o interior e formará um declive que as levará ao pé de uma escada talhada na espessura da muralha.

        “Iluminados por uma tocha, subam cento e trinta e dois degraus. Eles os conduzirão diante de um tapume de estaque, construído por Godofredo após a minha morte. Vocês o demolirão com uma picareta de ferro apanhada no último degrau, e verão uma pequena porta maciça, cuja chave só gira se, ao mesmo tempo, se apertarem os três tijolos que fazem parte desse degrau.

        “Assim, entrarão num quarto onde existe um leito, atrás de cortinas. Afastem essas cortinas. Estarei dormindo ali.

        “Não se assustem, meus filhos, por me verem, talvez, mais jovem do que o retrato que o Sr. Nicolau de Largülière, pintor do rei, se dignou fazer de mim no ano passado, e que está pendurado à cabeceira de minha cama. Dois séculos de sono, o repouso de meu coração que baterá apenas imperceptivelmente, terão, não duvido, desfeito minhas rugas e devolvido a mocidade à minha fisionomia. Não será um velho que vocês hão de contemplar.

        “Meus filhos, o frasco estará sobre o escabelo próximo, envolto numa fazenda, arrolhado com cera virgem. Quebrem, logo o gargalo. Enquanto um de vocês, com a ponta de uma faca, entreabrir meus dentes, outro entorne o elixir, não gota a gota, mas num delgado fio líqüido, que deverá correr até o fundo de minha garganta. Transcorrerão alguns segundos. Depois a vida retornará pouco a pouco. Precipitar-se-ão as pulsações de meu coração. Meu peito ar fará e minhas pálpebras se abrirão.

        “Talvez, meus filhos, vocês devam falar em voz baixa e não me iluminar com uma luz demasiado viva, para que meus ouvidos e meus olhos não sofram nenhum choque. Talvez, ao contrário, eu só os veja e ouça indistintamente, com esses órgãos muito enfraquecidos. Não sei. Prevêjo um período de torpor e mal-estar, durante o qual meu espírito deverá reunir suas idéias como se faz ao sair de um sono. Aliás, não me apressarei, e peço-lhes o favor de não procurarem ativar os meus esforços. Dias calmos, alimentação mais abundante, trar-me-ão de volta, insensivelmente, às doçuras da vida.

        “De resto, não receiem de modo nenhum que eu fique a suas expensas, filhos. Sem que os meus soubessem, trouxe das Índias quatro diamantes de extraordinário tamanho, quatro diamantes vermelhos de Golconda que coloquei no lugar mais impenetrável que existe, e que me basta empenhar para conservar minha posição social e gozar a vida à farta.

        “Como devo pensar que minha memória talvez não guarde a lembrança desse local misterioso, marquei o segredo em algumas linhas anexas a este, dentro de um invólucro interno, que traz a designação de "codicílio".

        “Sobre esse codicílio não disse uma palavra, nem mesmo a meu criado Godofredo ou a sua mulher. Se, por uma fraqueza muito humana, eles legassem aos filhos algum relato de confidências a respeito de minha história secreta, não poderiam, contudo, revelar o esconderijo desses quatro diamantes maravilhosos que muitas vezes admiraram, e que embalde procurarão após a minha partida.

        “Por conseguinte, o invólucro interno me será entregue logo que eu voltar à vida. No caso, impossível a meu ver, mas que o interesse de vocês me obriga a considerar, em que o destino me houvesse traído e vocês não encontrem vestígios meus, abram pessoalmente a sobrecarta e, conhecendo o esconderijo, tomem posse dos diamantes.

        Desde já reconheço a sua plena propriedade aos meus descendentes que apresentarem a medalha de ouro, sem que ninguém tenha o direito de intervir na justa partilha que farão entre si, e peço-lhes que resolvam eles mesmos este caso, sozinhos, e de acordo com a sua consciência.

        “Disse o que tinha para dizer, meus filhos. Vou entrar no silêncio e esperar a vinda de vocês. Não tenho dúvida de que virão de todos os cantos da terra ao chamado imperioso da moeda de ouro. Gerados do meu sangue, sejam entre si como irmãos e irmãs. Aproximem-se gravemente daquele que repousa, e libertem-no das correntes que o retêm no reino das trevas.

        “Escrita de meu próprio punho, em perfeita saúde de espírito e de corpo, na data de hoje, 12 de julho de 1721. Assino, pois, com o meu nome, João Pedro Agostinho de La Roche, marquês de...”

        Calou-se "Maítre" Delarue, examinou de mais perto o papel, e, a seguir, passado um instante, murmurou:

        —A assinatura não está absolutamente legível... O nome começa por um B ou um R...? O traço inferior confunde as letras todas.

        ?João Pedro Agostinho de La Roche, marquês de Beaugreval —pronunciou Dorotéia lentamente.

        —Sim, sim, — exclamou logo o notário — é isso mesmo...marquês de Beaugreval.   Como sabe?

        —É um dos nomes de minha família.

        —Um dos nomes de sua família?...

XII

O elixir da Ressurreição

        Ainda inteiramente absorta na estranha missiva do marquês, Dorotéia não respondeu. Seus companheiros, com os olhos fixos nela, pareciam aguardar que a jovem externasse uma opinião, e, como conservasse silêncio, Jorge Errington, de Londres, repetiu:

        —"Good joke"!

        Ela abanou a cabeça.

        —Estará bem certo, primo, de que se trata de um gracejo?

        ?Oh! senhorita, pense só! esta ressurreição... o elixir!... os diamantes ocultos!...

        —Isto não digo — redargüiu Dorotéia a sorrir — O bom do homem me parece um pouco transtornado das idéias. Mas ainda assim a carta que nos dirige é por certo autêntica; após dois séculos comparecemos à entrevista marcada, conforme ele previra, e, na realidade, somos da mesma família.

        —Creio que poderíamos abraçar-nos de novo, senhorita...

        —Meu Deus, — replicou Dorotéia — se nosso antepassado permitir, eu bem o quero.

        —Mas ele nos permite!

        —Vamos perguntar-lhe.

        —Irão sem mim, garanto-lhes — protestou Delarue —. Hão de compreender que eu não irei ver se João Pedro Agostinho de La Roche, marquês de Beaugreval, ainda está vivo com a idade de duzentos e sessenta e dois anos!

        —Mas ele não está assim tão velho, "Maítre" Delarue. Não devemos contar os duzentos anos de sono. Então, por que não? Sessenta e dois anos é uma idade absolutamente normal. O amigo dele, o Sr. de Fontenelle, morreu, na verdade, com cem anos, tal como lhe predissera o marquês de Beaugreval, e graças a um elixir de longa vida.

        —Mas, afinal, a senhorita não acredita nisso, não é? — indagou Marco Dario.

        — Não. Mas ainda assim deve existir qualquer coisa...

        —Que outra coisa?

        —Saberemos daqui a pouco. Por enquanto, confesso-lhes que, para minha vergonha, gostaria antes de...

        —De quê? — perguntaram-lhe.

        Ela se pôs a rir.

        —Pois bem, sinto fome, aí têm! Mas uma fome de duzentos anos, uma fome como deve sentir o marquês de Beaugreval. Não teria um de vocês...

        Três dos rapazes deram um salto. Um correu em direção à motocicleta, os outros dois para os seus cavalos. Cada qual tinha sacolas repletas de provisões, que trouxeram e arrumaram aos pés de Dorotéia. O russo Kurobelef, que possuía apenas um pedaço de pão, empurrou para frente dela, à guisa de mesa, uma grande pedra chata.

        —Oh! é agradável, com efeito — disse ela batendo as mãos

        —Um almoço de família! Nós o convidamos, "Maítre" Delarue. E você também, soldado de Wrangel.

        A refeição foi alegre, regada com o bom vinho do Anjou. Beberam à saúde do digno fidalgo que tivera a excelente idéia de os reunir em seu castelo, e Webster propôs um brinde em sua honra.

        No fundo, porém, os diamantes, o codicilo, a sobrevivência do gentil-homem, sua ressurreição, eram outras tantas infantilidades em que eles não mais pensavam. A aventura terminava para eles com a leitura da carta e a refeição improvisada. E como já fora extraordinária.

        —Isto é tão divertido! — dizia Dorotéia, que não cessava de rir — Asseguro-lhes que nunca me diverti tanto! Nunca!...

        Seus quatro primos, conforme os chamava, se mostravam solícitos em torno dela, atentos a seus menores gestos, rindo e admirando-se com as suas palavras. Desde logo ficaram conhecendo-a, e ela a eles, sem que os cinco precisassem passar pelas fases habituais das relações entre pessoas que jamais se viram. Para os rapazes, ela era a graça, a beleza, o espírito, o frescor. Representava o país encantador de onde outrora haviam partido seus antepassados, e encontravam-na como uma irmã, de quem se tem orgulho, e, ao mesmo tempo, uma mulher que se gostaria de conquistar.

        Já rivais, procuravam fazer-se valer, uns à custa dos outros. Errington, Webster e Dario organizaram lutas, mediram forças, fizeram jogos de equilíbrio, corridas. Em recompensa, pediam só uma coisa a Dorotéia, rainha do torneio: era a de serem olhados por ela, por seus belos olhos, cuja profunda sedução sentiam e que, de súbito, lhes pareciam os mais belos olhos que já tinham visto.

        Mas o vencedor do torneio, foi Dorotéia. Assim que ela começou a tomar parte, os outros nada mais tiveram para fazer senão sentar, olhar e maravilhar-se.

        Serviu-lhe de corda estendida um lanço de muro cuja parte superior era delgada, quase cortante. Ela trepou pelas árvores, de onde se deixava cair de galho em galho. Saltando sobre o avantajado cavalo de Dario, exigiu dele passos de alta escola. Depois, agarrando a rédea do potrinho, fez volteios sobre os dois animais, escanchada, deitada ou de pé.

        E tudo isso com decoro, com uma graça em que havia pudor, reserva, e nenhuma faceirice. Os rapazes demonstravam entusiasmo e estupor. A acrobata os arrebatava. A moça, porém, lhes impunha um respeito que nenhum pensaria em abandonar. Que seria ela? Chamavam-na de princesa, a rir, mas seu riso continha deferência. Na realidade, não compreendiam.

        Só às três horas da tarde resolveram empreender o final da expedição. Para lá se dirigiram todos como para um divertimento. "Maítre" Delarue, a quem o vinhozinho do Anjou subira um pouco à cabeça, com a gravata desamarrada, a cartola para trás, montou no seu asno e abriu a marcha cantando cópias sobre a ressurreição do marquês Lázaro. Dario, de Gênova, imitava um acompanhamento de bandolim. Errington e Webster seguravam sobre a cabeça de Dorotéia, a fim de a preservarem do sol, uma sombrinha feita de samambaias e flores silvestres.

Contornaram o montículo formado, por trás do relógio, pelos destroços do antigo castelo, e seguiram por uma comprida alameda de árvores centenárias que iam ter a um largo, no meio do qual se erguia um carvalho magnífico.

        —Eis as árvores que o pai do Sr. de Beaugreval plantou — anunciou Delarue em tom de cicerone —Observem o seu vigor. Árvores veneráveis, na verdade! Aqui temos o carvalho-rei. Gerações inteiras se abrigaram sob ele. Tirem o chapéu, cavalheiros! Depois atingiram as faldas cobertas de mato de uma pequena rolina em cujo cimo, após um talude circular que representava os vestígios de um recinto interior, se elevava a carcaça de uma torre de forma oval.

        ?A torre Cocquesin—informou "Maítre" Delarue, cada vez mais exuberante —. Ruínas veneráveis, como não existem outras que sejam mais! Restos do torreão feudal! É lá que nos espera o Marquês-Adormecido-no-Bosque, Senhor de Beaugreval, que iremos ressuscitar com um dedo de espumante elixir!

        O céu azul aparecia através das janelas vazias. Lanços inteiros das paredes haviam desmoronado. No entanto, à direita, uma parte parecia completamente intacta, e se de fato houvesse uma escadaria e um aposento qualquer, como predissera o fidalgo, não poderia deixar de ser naquele ponto.

        Agora se abria diante deles o arco contra o qual pousava outrora a ponte levadiça. As cercanias se achavam atravancadas com tal amontoado de urzes e arbustos entrelaçados, que exigiu longo tempo antes de atingirem a abóbada onde se achavam as pedras indicadas pelo marquês de Beaugreval.

        Ali, novo obstáculo e novo esforço para abrir um duplo caminho em direção às duas paredes.

        — Aqui estamos, — disse por fim Dorotéia, que dirigira os trabalhos — e podemos estar certos de que ninguém nos precedeu.

        Antes de começar a operação prescrita, chegaram até a extremidade da abóbada. Abria-se ela sobre a nave imensa formada pelo interior do torreão, esvaziado de seus pavimentos, sem outro teto além do céu. Viam-se quatro buracos de lareiras que se superpunham sob os panos de pedras esculpidas, onde medravam plantas selvagens.

        Embaixo, dir-se-ia a arena oval de um circo romano, com uma série de salinhas, abobadadas na sua parte superior, cujos orifícios brilhantes podiam ser vistos, e que estreitos corredores separavam em grupos distintos.

        ?Os visitantes que se arriscam a La Roche-Périac podem entrar por este lado — observou Dorotéia — De vez em quando devem ser realizados aqui os convescotes do pessoal dos arredores. Vejam, há papéis engordurados e latas de sardinha pelo chão.

        —O curioso — disse Webster — é que a abóbada da ponte levadiça não foi desentulhada.

        —Por quem? Acha que os passeantes vão perder seu tempo fazendo o que nós fizemos, quando, defronte, existem saídas naturais?

        Absolutamente não pareciam apressados para retomar o serviço e verificar as declarações do marquês, e foi mais por descargo de consciência, e para terem o direito de dizer a si mesmos, sem segundas intenções: "Está terminada a aventura", que atacaram as paredes da abóbada.

        Dorotéia, tão céptica quanto os outros, retomou o comando com displicência.

        —Vamos a isso, primos. Vocês não vieram da América e da Rússia para cruzar os braços. Devemos a nosso antepassado a prova de nossa boa vontade, e obter o direito de atirar as nossas medalhas de ouro para o fundo das nossas gavetas. Dario, de Gênova, Errington, de Londres, queiram, respectivamente, empurrar, cada qual de seu lado, a terceira pedra em ordem de altura... Sim, estas duas, já que aqui temos a ranhura por onde corria a antiga grade...

        Encontravam-se as pedras a grande altura, de forma que o italiano e o inglês só as atingiam levantando o braço. Aconselhados por Dorotéia, treparam aos ombros de seus camaradas Webster e Kurobelef.

        ?Estão prontos?

        ?Prontos — responderam Errington e Dario.

        —Então, empurrem devagar, e de modo contínuo. E, principalmente, tenham fé! "Maítre" Delarue não tem fé.   Portanto, nada lhe peço.

        Os dois rapazes haviam pousado as mãos sobre as duas pedras e calcavam com força. Dorotéia gracejava:

        —Vamos, um pouco de energia, por favor cavalheiros! As afirmativas do marquês são palavras do Evangelho. Escreveu ele que a pedra da direita balançaria. E a pedra da direita balança!

        ? A minha se mexe — disse o inglês, à esquerda.

        ?A minha também — declarou o italiano, à direita.

        ?Será possível? — exclamou Dorotéia, incrédula.

        —É sim, é sim — afirmou o inglês — a de cima também, e ambas recuam pela parte superior.

        Não acabara suas palavras e já as duas pedras, formando um bloco, inclinaram-se para o interior, pondo a descoberto um patamar onde, na escuridão, se divisavam alguns degraus.

        O inglês soltou um grito de triunfo.

        —Aquele bravo marquês não mentiu: eis a escadaria!

        Por um momento permaneceram atônitos. Não que o acontecimento fosse muito extraordinário, mas trazia uma primeira confirmação ao que anunciara o marquês de Beaugreval, e, contra a vontade, perguntavam a si próprios se as outras predições não se realizariam com a mesma exatidão.

        —No caso de haver, realmente, cento e trinta e dois degraus—- disse Errington — declaro-me convencido.

        —O quê! ? — exclamou Delarue, que também parecia muito impressionado — o senhor ousaria sugerir que o marquês...

        —Que o marquês nos espera, como um cavalheiro avisado da nossa visita.

        —Disparates — resmungou o notário —. Não é, senhorita?

        Os rapazes içaram-se para cima do patamar; Dorotéia foi ter com eles. Duas lâmpadas de bolso substituíram as tochas previstas pelo Sr. de Beaugreval, e puseram-se a subir os degraus muito altos, que formavam uma curva num espaço muito restrito.

        —Quinze... dezesseis... dezessete... contava Dario.

        Para animar-se, Delarue cantava as cópias de "La tour prends garde". Mas no trigésimo degrau teve de repousar.

        -— A ascensão é difícil, não acha? — indagou a jovem.

        —É sim...Mas é principalmente a idéia de fazermos uma visita a um morto. Isso me tira a força das pernas.

        No quinquagésimo degrau, um orifício no muro deixava passar luz. Dorotéia se esgueirou até lá e avistou os bosques de La Roche, mas uma cornija avançada não permitia ver o sopé da torre.

        Continuaram a subida. "Maítre" Delarue cantarolava com voz cada vez mais trêmula e que, por fim, mais parecia exalar gemidos.

        Dario contava:

        —Cem... cento e dez... cento e vinte...

        Aos cento e trinta e dois, anunciou:

        —Um muro barra a escada. Nisto, tampouco, nosso antepassado mentiu. Existem mesmo três tijolos incrustados no degrau? — perguntou Dorotéia.

        —Aqui estão.

        -—E uma picareta de ferro?

        —Ei-la.

        —Vamos, acha-se tudo exatamente conforme o testamento —disse ela, acabando a ascensão e examinando o local — Só nos resta obedecer àquele excelente homem. Webster, vá demolir esse muro — ordenou ela —É apenas um tabique de estuque.

        Com efeito, ao primeiro choque o muro desmoronou, pondo à mostra uma pequena porta baixa.

        —Irra! — resmoneou o notário, que não tentava mais ocultar sua inquietação — o programa se executa ponto por ponto.

        —Ah! Ah! — fez Dorotéia maliciosamente — o senhor se torna menos céptico, "Maítre" Delarue.   Por pouco afirma que a porta vai abrir-se.

        —Afirmo-o. Aquele velho maluco era um mecânico hábil e um encenador de primeira ordem.

        —O senhor fala nele como se estivesse morto — observou Dorotéia.

        O notário agarrou-lhe o braço.

        -—Evidentemente. Porque afinal, quero admitir que ele está aí, mas não vivo! Não, vivo não!

        Ela pousou o pé num dos tijolos. Errington e Dario apertaram os outros dois. A porta teve um violento abalo, depois se moveu e girou sobre os gonzos.

        —Santa Madonna! — sussurrou Dario —. Estamos às voltas com um milagre. Iremos ver Satanás?

        À luz das lâmpadas, discerniam um quarto bastante amplo, sem janelas, com teto abobadado. Nenhum ornato nas paredes de pedra. Nenhum móvel. Mas, à esquerda, adivinhava-se outro aposento mais baixo, que constituía uma espécie de alcova, e essa alcova estava escondida por uma tapeçaria grosseiramente pregada a uma trave.

        Os cinco homens e Dorotéia não se mexiam, silenciosos, imóveis. Delarue, muito pálido, não parecia sentir-se bem. Seriam os vapores do vinho, ou a angústia do mistério?

        Ninguém sorria mais. Dorotéia não podia afastar o olhar da tapeçaria. Destarte, a aventura não se detinha no encontro prodigioso dos herdeiros do marquês, nem na leitura de suas fantásticas vontades. Ia até o âmago da velha torre onde ninguém penetrara, e até o próprio limiar do retiro inviolável onde o marquês ingerira a bebida que adormece... ou mata. Que existia atrás daquela tapeçaria? Um leito, sem dúvida... algumas roupas que talvez conservassem a forma do corpo que haviam coberto... e depois, um punhado de cinzas...

        A moça volveu a cabeça para os companheiros, como para dizer: "Serei eu que entrarei primeiro?"

        Eles se mantiveram imóveis, indecisos e constrangidos...

        A jovem, então, avançou um passo, e em seguida outros dois.

        Não tardou achar-se a tapeçaria a seu alcance. Com mão hesitante, segurou-lhe a borda e suspendeu-a lentamente, enquanto os rapazes se aproximavam.

        Foi projetada a luz das lanternas.

        Ao fundo do aposento, havia um leito. Sobre esse leito, um homem deitado.

        Essa visão era, apesar de tudo, tão inesperada que Dorotéia teve alguns segundos de desfalecimento e deixou cair de novo a cortina.

        Foi Arquibaldo Webster quem, muito perturbado, vivamente a reergueu e se encaminhou para aquele homem adormecido, como se quisesse sacudi-lo e despertá-lo de uma vez. Os outros se precipitaram. Aliás, Arquibaldo parara junto à cama, com o braço suspenso, e não ousava mais fazer um movimento.

        Era um homem a quem se poderia atribuir sessenta anos, mas cuja estranha palidez, cuja pele inteiramente descolorida, sob a qual não corria uma gota de sangue, tinham algo que não pertencia a nenhuma idade. Uma face absolutamente glabra. Nenhum fio de sobrancelha. Um nariz de cartilagens transparentes, como o nariz de certos tuberculosos. Sem carnes. Maxilar, ossos, maçãs do rosto, vastas pálpebras fechadas e enrugadas compunham todo o rosto, entre duas orelhas despregadas, e sob uma enorme testa que prolongava o crânio totalmente desguarnecido.

        —O dedo... o dedo... — sussurrou Dorotéia.

        Faltava o quarto dedo da mão esquerda, cortado rente à palma, exatamente como anunciara o testamento.

        O homem estava vestido com um traje de lã castanha, colete de seda preta bordado de verde e calções curtos. As meias eram de lã fina. Tudo isso gasto, meio comido pelos vermes. Não usava calçado.

        —Deve estar morto — disse um dos rapazes em voz baixa.

        Para se certificarem, teria sido necessário inclinar-se e aplicar o ouvido junto ao peito, no lugar do coração. Tinham, porém, aquela impressão estranha de que, ao primeiro contacto, aquela forma de homem tombaria em pó, e que tudo se desvaneceria como um fantasma. E além do mais, tentar semelhante experiência não seria cometer um sacrilégio? Duvidar da morte, e interrogar um cadáver, ninguém ousava.

        A jovem estremeceu, com seus nervos de mulher excessivamente tensos. Delarue exortou-a:

        —Vamos embora...Vamos embora... Isto não nos diz respeito...É uma tarefa satânica...

        Mas Jorge Errington teve uma idéia. Tirou do bolso um espelhinho e segurou-o diante dos lábios do homem.

        Ao cabo de um instante, o espelho ficava ligeiramente embaçado.

        ?Oh!... — balbuciou ele — creio que vive!

        ?Vive! vive! — murmuraram os rapazes com uma agitação dominada.

        Delarue precisou sentar-se à beira da cama, de tal modo lhe tremiam as pernas, e repetia sem cessar: "Tarefa satânica... não temos o direito..."

        Entreolharam-se todos com inquietação. A idéia de que aquele morto vivia — pois estava morto, incontestavelmente morto! — a idéia de que aquele morto vivia transformava-os como uma coisa monstruosa. E no entanto, as provas de sua existência não valiam as de sua morte? Acreditavam em sua morte porque era impossível que estivesse vivo. Mas poderiam renegar o testemunho de seus próprios olhos por ser esse testemunho contrário à lógica?

        ?Vejamos... vejamos... — disse Dorotéia — seu peito se ergue e se abaixa. Oh! quase nada... Mas afinal, ainda assim, não pode estar morto.

        ?Não... — protestaram — é inadmissível... Como poderia explicar-se semelhante fenômeno?

        —Não sei...Não sei...— redargüiu ela lentamente —Seria uma espécie de letargia... de sono hipnótico...

        —Um sono que duraria duzentos anos?

        —Não sei... Não compreendo...

        —Então?

        — Então, é preciso agir.

        -— Em que sentido?

        — No sentido do testamento. As prescrições são formais. Nosso dever é executá-las cegamente e sem refletir.

        —Como?

        —Tentemos acordá-lo com o elixir de que fala o testamento. Aqui está ele — declarou Marco Dario, apanhando de cima de um escabelo um objeto envolto em fazenda, de onde tirou um frasquinho de cristal de forma antiquada, pesado com o bojo redondo e um gargalo comprido, que terminava numa grande rolha de cera. Apresentou-o a Dorotéia, que, com um golpe seco na borda do escabelo, partiu o gargalo.

        —Algum de vocês possui um canivete? — indagou — Obrigada, Webster. Abra a lâmina e introduza a ponta entre os dentes, conforme diz ele na carta.

        Atuavam eles como faria um médico na presença de um enfermo que não sabe como tratar, e que ainda assim trata, sem a menor hesitação, de acordo com a ordem formal da primeira receita que aparece. Haveriam de ver o que se passaria. O essencial era obedecer às instruções.

        Arquibaldo Webster teve dificuldade em cumprir sua tarefa. Os lábios se contraíam, e os dentes superiores, negros e estragados na sua maioria, aplicavam-se aos inferiores com tamanha força que a ponta do canivete não chegava a abrir passagem. Foi preciso introduzi-lo de baixo para cima e depois levantar o cabo a fim de preparar os dois maxilares.

        —Não se mova — ordenou a moça.

        Curvou-se para a frente. A mão direita, que segurava o frasco, inclinou-se levemente. Algumas gotas de um líqüido que tinha a cor e o cheiro de licor "chartreuse" verde caíram entre os lábios, e depois um delgado fio correu do frasco, que em breve ficou vazio.

        —Acabou — disse Dorotéia ao levantar-se.

        Ao olhar para seus companheiros, ela tentou sorrir, mas tinham todos os olhos fixos no homem.

        —Esperemos — murmurou ela — O efeito não pode ser imediato.

        E enquanto pronunciava estas palavras, Dorotéia pensava: "Mas então admito que possa haver um efeito, e que esse homem vá sair de seu sono, ou melhor, da morte? Porque semelhante sono não é outra coisa senão a morte... Não, na verdade somos vítimas de uma alucinação coletiva... Não, o espelho não se embaçou, o coração não bate... Não, mil vezes não, não se ressuscita!"

        —Já se passaram três minutos — afirmou Marco Dario.

        E, de relógio em punho, contou. Cinco outros minutos transcorreram, depois mais cinco.

        Espera realmente incompreensível da parte daquelas seis pessoas, e que não podiam encontrar explicação fora da precisão matemática com a qual se haviam produzido todos os fatos que pareciam outros tantos milagres, e que obrigavam as testemunhas daqueles fatos a terem paciência pelo menos até o instante marcado para o milagre supremo.

        —Quinze minutos — pronunciou o italiano.

        Passaram-se ainda alguns segundos, e, de repente, eles estremeceram. Escapou-lhes a mesma exclamação surda. As pálpebras do cadáver tinham-se movido.

        Logo a seguir se repetiu o fenômeno, e tão nítido, tão visível, que lhes foi impossível duvidar. Era a palpitação de dois olhos que querem abrir-se.

        Ao mesmo tempo se mecheram os braços. Um frêmito agitou as mãos.

        —Oh! — balbuciou o notário, desvairado — ele vive... está vivo!

XIII

Lázaro

        Dorotéia fitava-o, presa a seus menores gestos. Assim também permaneciam os rapazes impassíveis, de rosto crispado. O italiano, entretanto, esboçou um sinal-da-cruz.

        — Ele vive! — repetiu Delarue —.   Vejam, olha para nós.

        Estranho olhar, que não se movia e parecia não ver. Olhar de recém-nascido que nenhum pensamento animava. Inconsciente, vago, fugia a claridade das lâmpadas e parecia pronto a extinguir-se em novo sono.

        Em compensação, a vida passava sobre todo o corpo, como se o sangue retomasse o seu curso normal sob o esforço de um coração que recomeçasse a bater. Os braços e as mãos tiveram movimentos lógicos. Depois, de súbito, as pernas escorregaram para baixo do leito. O busto se ergueu. Após diversas tentativas o homem sentou-se.

        Viram-no, então, de frente, e, como um dos jovens tivesse levantado a lanterna para que ele não fosse atingido diretamente no rosto, a lanterna iluminou, por cima do leito, pregado à parede da alcova, o retrato a que a carta do marquês fazia menção.

        Puderam aí verificar que era de fato o retrato daquele homem. A mesma enorme fronte, os mesmos olhos escondidos no fundo das órbitas, as mesmas salientes maçãs do rosto, o mesmo maxilar ossudo, as mesmas orelhas despregadas. Contrariamente, porém, às previsões da carta, o homem envelhecera muito e emagrecera consideravelmente, visto que o retrato representava um senhor de aparência muito boa e suficientemente em forma.

        Duas vezes, sem o conseguir, tentou pôr-se de pé: estava demasiado fraco, as pernas se recusaram a sustentá-lo. Parecia, igualmente, muito opresso e mal respirava, fosse porque houvesse perdido o hábito, fosse porque lhe faltasse o ar. Percebendo duas tábuas pregadas à parede, Dorotéia apontou-as a Webster e Dario, e fez-lhes sinal para que as arrancassem. Isso lhes foi fácil, pois só estavam presas pelas pontas, e descobriram uma janelinha redonda, mais um pequeno postigo, cujo diâmetro não excedia, por certo, a trinta ou trinta e cinco centímetros.

        Penetrou no aposento uma rajada de ar fresco, que banhou o homem. Se bem que parecesse não ter consciência de coisa nenhuma, voltou-se para aquele lado, abrindo a boca e respirando profundamente.

        Todos esses mínimos incidentes se desenrolaram com muita lentidão. As suas estupefatas testemunhas sentiam a impressão de assistir às fases misteriosas de uma ressurreição que, no entanto, lhes era impossível considerar definitiva. Cada minuto ganho por aquele morto vivo se lhes afigurava um novo milagre que ultrapassasse a sua imaginação, e esperavam o inelutável acontecimento que reporia as coisas em seu lugar natural, e seria, por assim dizer, a desarticulação e o desmoronamento daquele inconcebível autômato .

        Dorotéia bateu o pé com impaciência, como se se revoltasse contra si mesma e quisesse sacudir o seu torpor.

        Desviou-se da visão que a fascinava, e sua fisionomia marcava tal esforço de reflexão que seus companheiros também afastaram seus olhares do homem. Os olhos de Dorotéia procuravam algo. Suas pupilas azuis se tornavam de um azul mais escuro. Pareciam ver além do que vêem olhos comuns e perseguir a verdade em regiões mais distantes. Ao cabo de um ou dois minutos, murmurou ela:

        — Tentemos.

        E voltou para perto da cama, resolutamente. Afinal de contas, existia um fenômeno evidente, certo, que não era possível deixar de levar em conta: aquele homem vivia. Era preciso, pois, agir com ele como com um ente vivo, que tem ouvidos para ouvir e boca para falar, e que, por uma existência pessoal, se distingue das coisas que o cercam. Esse homem tinha um nome. Todas as circunstâncias indicavam peremptoriamente que sua presença naquela câmara fechada era o resultado, não de um milagre-hipótese que em úllimo caso se deve examinar— mas de uma experiência bem sucedida, hipótese que não se tem o direito de afastar preliminarmente, por mais extraordinária que possa parecer.

        —Então, por que não o interrogar?

        A jovem sentou-se a seu lado, tomou-lhe as mãos, que estavam frias e úmidas, e disse-lhe gravemente:

        —Nós acorremos ao seu chamado... Somos as pessoas a quem a medalha de ouro...

        Deteve-se. As palavras não lhe vinham aos lábios com facilidade. Pareciam-lhe absurdas e infantis, e tinha a certeza de que assim deveriam parecer aos que as ouviam. Teve de fazer um esforço para recomeçar.

        —Em nossas famílias, a moeda de ouro passou de mão em mão, até nós... Há dois séculos se forma a tradição, e a sua vontade ...

        Mas sentiu-se incapaz de prosseguir naqueles termos pomposos. Dentro dela outra voz murmurou: "Deus meu, como é idiota tudo isto que eu digo!"

        Entrementes, a mão do homem se aquecia ao contacto da sua. Ele tinha quase o ar de quem ouvia o rumor das palavras e compreendia que se dirigiam à sua pessoa. E assim, renunciando a fazer frases, foi Dorotéia levada a dizer-lhe simplesmente, como a um pobre homem a quem sua ressurreição não pusesse a salvo das exigências humanas:

        —Está com fome?...Deseja comer?...Beber?...Responda...Que lhe poderá ser agradável?... Meus amigos e eu tentaremos...

        Iluminado bem de frente, com a boca aberta, o lábio pendente, o velho conservava uma fisionomia apática e estúpida, que nenhuma expressão, nenhum apetite animava.

        Sem se voltar, Dorotéia chamou o notário e disse-lhe:

        —"Maítre" Delarue, não pensa que deveríamos oferecer-lhe o segundo invólucro, o do codicilo? Talvez despertasse a sua consciência à vista daquele papel, que, aliás, lhe pertence, e que devemos devolver-lhe de acordo com os termos da carta.

        Delarue foi da mesma opinião e passou a sobrecarta a Dorotéia, que a ofereceu ao velho, dizendo:

        ?Aqui tem as indicações que o senhor escreveu pessoalmente a fim de encontrar de novo os diamantes. Ninguém conhece essas indicações. Ei-las.

        A moça estendeu a mão. Ficou manifesto que o velho tentava responder com um movimento análogo.

        Ele acentuou o seu gesto. O marquês abaixou os olhos para o invólucro, e seus dedos se abriram para recebê-lo.

        — Está compreendendo bem, não é? — indagou — O senhor vai abrir esta sobrecarta! Ela contém o segredo dos diamantes. É de uma importância considerável para o senhor. O segredo dos diamantes... Uma verdadeira fortuna.

        Ainda uma vez se interrompeu de repente, como impressionada por uma súbita reflexão e uma observação imprevista.

        —É claro que ele compreende — disse-lhe Webster —. Quando abrir o papel e ler, todo o passado reviverá em sua memória.

        —Podemos entregar-lhe.

        —Sim, senhorita — confirmou Jorge Errington — podemos dar-lhe. É um segredo que lhe pertence.

        Dorotéia, todavia, não executava o ato anunciado. Olhava para o velho com extrema atenção. A seguir, apanhou uma lâmpada, recuou, tornou a se aproximar, examinou a mão mutilada, e depois, de inopino, desatou numa gargalhada que retivera por tempo excessivo.

        Curvada em dois, de braços cruzados ao peito, ria até sentir dores. Sua linda cabeça sacudia, com intermitências, os cabelos levemente encaracolados. E era um riso tão encantador, tão jovem, de uma alegria tão irresistível, que os rapazes, por sua vez, caíram na gargalhada, enquanto Delarue, ao contrário, irritando-se com uma hilaridade que lhe parecia deslocada em semelhante circunstância, protestava com voz vexada:

        —Na verdade, espanto-me... Nisto tudo não há nada de divertido... Estamos na presença de um acontecimento extraordinário...

        Seu ar agastado redobrou as risadas de Dorotéia, que balbuciou:

        ? Sim... extraordinário... Um milagre!... Ah! meu Deus, como é cômico! e como é bom a gente se expandir!... Fazia muito tempo que eu me dominava... Sim, evidentemente, estava séria...Inquieta...Mas apesar dos pesares, que vontade sentia de rir!... Tudo isto é tão engraçado!...

        ?Não vejo o que existe de tão engraçado! — resmungou o notário

        —O marquês!

        A alegria de Dorotéia não conheceu mais limites. Torcendo as mãos, e com lágrimas nos olhos, repetiu:

        —O marquês!... O amigo de Fontenelle!... O marquês ressuscitado!... Lázaro de Beaugreval! Mas o senhor não viu, então?...

        -— Vi o espelho se embaçar... os olhos se abrirem...

        ?Sim, sim, de acordo. Mas o resto?...

        —Que resto?

        —Na boca?

        —Aproxime-se.

        —Que é que há?

        —Há...

        — O quê, afinal de contas? Fale.

        —Um dente postiço!

        Lentamente, repetiu "Maítre" Delarue:

        —Há um dente postiço ?...

        —Sim, um molar... um molar todo de ouro!

        —Pois bem, e daí?...

        Dorotéia não respondeu logo. Deixava a Delarue todo o vagar para reunir as idéias e perceber por si todo o valor daquele descobrimento .

        —Pois bem? — tornou ele a dizer, com voz menos segura.

        —Pois bem, aí tem... — respondeu ela esbaforida — aí tem... Pergunto a mim mesma, com angústia, se durante o reinado de Luís XIV ou de Luís XV obturavam a ouro... Porque o senhor compreende... se o marquês não tiver podido mandar fazer o dente de ouro antes de sua morte... é que chamou aqui um dentista... a esta torre... durante sua morte... isto é, que terá sabido pelos jornais, ou por outro meio, que era possível colocar um dente postiço no lugar do dente estragado de que sofria desde o tempo de Luís XIV...

        Dorotéia acabara por reprimir aquela intempestiva alegria que tanto escandalizava "Maítre" Delarue. Agora sorria simplesmente, mas com que ar trocista e divertido! Os quatro estrangeiros, agrupados em torno dela, naturalmente, sorriam também, com o mesmo ar de pessoas que se divertem mais do que se poderia dizer.

        Sobre o seu leito, o homem, sempre impassível e estúpido, continuava os exercícios de respiração.

        O notário puxou seus companheiros de modo que formassem um grupo de costas para a cama, e murmurou:

        —Então... então... segundo lhe parece, senhorita, seria uma mistificação?

        —Assim receio —- declarou ela, abanando a cabeça comicamente.

        —Mas o marquês?...

        —O marquês nada tem que ver com este caso — disse ela —.A aventura do marquês terminou aos 12 de julho de 1721, dia em que ingeriu uma droga que pôs, de fato, ponto final à sua existência. Tudo quanto dele resta, apesar de todas as suas esperanças de ressurreição, é: 1.°, um punhado de cinzas, misturado à poeira deste aposento; 2.°, a carta autêntica e curiosa que "Maítre" Delarue nos leu; 3.°, um lote de enormes diamantes escondidos em qualquer lugar; 4, os trajes que o vestiam na hora suprema em que foi voluntariamente encerrado no seu túmulo, isto é, aqui, nesta peça.

        —E esses trajes?

        —O nosso homem os envergou... A menos que não tenha comprado outros, pois os do marquês deviam estar em muito mau estado.

        —Mas como pôde penetrar aqui? Esta janela é demasiado estreita, e, aliás, inacessível.   Então, como?...

        —Pelo mesmo caminho que nós, sem dúvida.

        —Impossível! Pense em todos os obstáculos, nas dificuldades, na muralha de espinhos que barram a estrada. Temos certeza de que essa muralha não estava já perfurada noutro local, que o tabique de estaque não fora demolido e reconstruído, e que a porta deste aposento não fora aberta antes de nós? Mas teria sido preciso que esse homem conhecesse a combinação secreta do marquês, a manobra das duas pedras, etc.

        —Por que não? O marquês talvez tenha deixado uma cópia da carta... ou então o rascunho. Mas não... escutem... melhor do que isso! Sabemos a verdade pelo Sr. de Beaugreval! Ele a previra, pois que faz alusão a um momento de fraqueza, sempre possível, do seu velho servidor Godofredo, e encara o caso de escrever o bom do homem uma relação dos acontecimentos. Essa relação, ele a escreveu, e de parente em parente, chegou até nossos dias.

        ?Simples suposição.

        —Suposição mais do que verossímil, "Maítre" Delarue, desde que, além de nós, fora estes quatro rapazes e eu, existem outras pessoas, outras famílias nas quais se perpetuou a história Beaugreval, e já que há vários meses, luto pela posse da indispensável medalha de ouro furtada a meu pai.

        As palavras de Dorotéia produziram uma grande impressão.

        —A família de Chagny-Roborey, no Orne, —precisou ela, —a família de Argonne, nas Ardenas, a família Davernoie, na Vendéia, são outros tantos lares nos quais a tradição foi mantida. E em torno disso, dramas, roubos, assassínios, loucura, um fervilhar de paixões e violências.

        ?Entretanto — observou Errington — aqui só estamos nós. Que fazem os outros?

        ?Esperam. Esperam uma data que ignoram. Esperam a medalha. Vi defronte à igreja de La Roche-Périac um vagabundo e uma operária que aguardam o milagre. Vi dois pobres dementes que vieram ao encontro marcado e esperam à beira da água. E, há oito dias, entreguei à justiça um perigoso bandido chamado d'Estreicher, aparentado de longe com minha família, e que tinha matado para se apoderar da moeda de ouro. Vocês agora me acreditarão se eu lhes disser que andamos às voltas com um impostor?

        — Então o homem que está aqui — objetou Dario — teria vindo para desempenhar o mesmo papel que o marquês esperava representar duzentos anos após sua morte?

        —É claro.

        —Com que intuito?

        —Os diamantes, afirmo, os diamantes!

        —Mas, desde que sabe da sua existência, bastar-lhe-ia procurar e se apropriar deles.

        —Deve ter procurado, acredite, e sem descanso, mas em vão! Nova prova de que esse homem conhecia apenas a relação de Godofredo, já que este não fora posto a par do esconderijo pelo seu patrão. E é para conhecer tal esconderijo, para assistir à reunião dos descendentes de Beaugreval, que hoje, 12 de julho de 1921, e após meses e anos de preparo, representa o papel do marquês.

        ?Papel perigoso! Papel impossível!

        ?Possível ao menos por algumas horas, o que bastaria. Que digo, algumas horas... Mas pense só que, há dez minutos... estávamos todos de acordo em lhe entregar este segundo invólucro que contém a chave do enigma, e que constituía, provavelmente, o próprio alvo de sua empresa. Deveria ele saber da existência de um codicilo, de um documento explicativo. Mas onde encontrar esse documento? Não há mais o tabelião Barbier! Não há mais sucessores! Onde o encontrar? Aqui, na reunião de 12 de julho! Pela lógica, o codicilo devia ser trazido cá! Pela lógica, entregar-lhe-iam! E, de fato, eu o tinha na mão. Oferecia-o a ele! Um segundo mais, e ele tomaria conhecimento. E depois, adeus! O pseudo-marquês de Beaugreval, uma vez na posse dos diamantes do marquês de Beaugreval, entraria de novo no nada, isto é, fugiria o mais depressa possível.

        ?Por que não lhe entregou essa sobrecarta?—perguntou Webster—Você adivinhou ?...

        ?Adivinhei, não. Mas desconfiava. Ao oferecê-la, fazia, principalmente, uma experiência. Que acusação contra ele, se respondesse a meu oferecimento com um gesto de aceitação, inexplicável ao termo de tão pouco tempo! Aceitou. Vi sua mão tremer de impaciência. Eu estava esclarecida. Mas ao mesmo tempo o acaso me cumulava; percebi um pedacinho de ouro em sua boca!

        Tudo isso se encadeava de maneira rigorosa, e Dorotéia mostrava o trabalho dos acontecimentos, das causas e dos efeitos, como se faz ver uma obra de tapeçaria, cujo complicado jogo de desenhos e matizes produz a mais harmoniosa unidade.

        Os quatro rapazes estavam confusos e nenhum deles punha em dúvida a palavra da jovem.

        ?Até parece que você assistiu a toda a aventura — declarou Arquibaldo Webster.

        ?Sim — aduziu Dario — o marquês ressuscitado representou toda a comédia em nossa presença.

        ?Que observação e que lógica terrível! — comentou Errington, de Londres.

        E Webster acrescentou:

        — E que intuição!

        Dorotéia não respondeu aos elogios com o seu habitual sorriso. Dir-se-ia que os fatos tomavam um aspecto que lhe era desagradável, e que parecia anunciar outros que ela receava antecipadamente. Mas quais? Que haveria para temer?

        No silêncio, "Maítre" Delarue exclamou de súbito:

        —Pois bem, quanto a mim, julgo que a senhorita se engana. Absolutamente, não sou da sua opinião.

        O notário era dessas pessoas que tanto mais se agarram a uma opinião quanto mais tempo se recusaram a admiti-la. A ressurreição do marquês se lhe afigurava, de chôfre, um dogma que deveria defender.

        —Absolutamente não sou da sua opinião! — reptiu — A senhorita acumula as hipóteses sem fundamento. Não, este homem não é um impostor. Existem provas em seu favor, que a senhorita menospreza.

        —Quais? — indagou ela.

        —Eh! O seu retrato! Sua indiscutível semelhança com o retrato do marquês de Beaugreval, executado por Nicolau de Largillière!

        —Quem lhe diz que seja o retrato do marquês, e não do nosso próprio homem? É um modo muito cômodo de se parecer com alguém.

        —Mas esta moldura velha? Esta tela que data de outrora?

        —Admitamos que a moldura tenha permanecido. Admitamos que a tela, em lugar de haver sido trocada, tenha sido simplesmente mascarada, de forma que represente o falso marquês aqui presente.

        —E o dedo cortado? — exclamou Delarue, triunfante.

        —Um dedo, isto se corta.

        —Ah! Essa agora! Mil vezes não!—retrucou o notário, indignado—.Por maior que seja o atrativo do lucro, ninguém se mutila assim. Não, não, o seu sistema não se mantém de pé. Com que então imagina esse camarada preparando-se para cortar o próprio dedo? Esse sujeito, com sua fisionomia apática, seu ar embrutecido! Mas ele é incapaz disso! É um fraco, um covarde...

        O argumento impressionou Dorotéia. Vinha mesmo esclarecer a situação no seu ponto mais tenebroso, e ela tirou justamente as conclusões que ele comportava:

        —Tem razão —declarou ela — Um homem como este é incapaz de se mutilar.

        —Neste caso... ?

        —Neste caso, foi outro que se encarregou desta sinistra tarefa.

        —Outro que lhe teria cortado o dedo? Um cúmplice?

        —Mais do que um cúmplice, um chefe. O cérebro que combinou este negócio não foi o seu. O encenador da aventura não é ele. Ele não passa de um instrumento, qualquer patife vulgar, escolhido pelo seu aspecto descarnado. Aquele que maneja os cordéis permanece invisível, e esse é de se temer.

        O notário estremeceu.

        ?Dir-se-ia que a senhorita o conhece...

        Após um momento, replicou ela em voz arrastada:

        —Talvez o conheça. Se meu instinto não se engana, o chefe do conluio seria aquele homem que entreguei à justiça, esse d'Estreicher de que falei há pouco. Enquanto se acha na prisão, seus cúmplices — pois são diversos — prosseguiram a obra começada por ele e tentam levá-la até o fim... Sim, sim — acrescentou ela — é plausível acreditar que ele organizou tudo. Há anos que está metido na empreitada, e maquinação igual a esta é conforme o seu espírito de astúcia e trapaça. Desconfiemos dele. Mesmo na cadeia, é um adversário perigoso.

        -—Perigoso... Perigoso...—disse o notário, que tentava tranqüilizar-se —Não vejo, realmente, o que nos ameaça! O caso, aliás, chega a seu fim. Quanto às pedras preciosas, abramos o codicilo. E, pelo que me concerne, minha tarefa está terminada.

        —Não se trata de saber se a sua tarefa está terminada, "Maítre" Delarue — redargüiu Dorotéia, com a mesma voz sonhadora— Trata-se de escapar a um perigo que não distingo bem, mas que tudo deixa prever, e que entrevejo cada vez mais nitidamente.

        —De onde vem ele?

        —Não sei. Mas existe.

        —É terrível — gemeu Delarue — Como nos defendermos? Que fazer? Que fazer?

        Ela se virou para o pequeno aposento que servia de alcova. O homem, com o busto e a cabeça mergulhados na sombra, não se mexia.

        —Interroguemo-lo. Vocês bem hão de compreender que o comparsa não veio aqui sozinho. Confiaram-lhe este posto, mas os outros vigiam, os agentes de d'Estreicher. Esperam, nos bastidores, o resultado da comédia. Espiam-nos. Escutam-nos, talvez...Interroguemo-lo. Ele nos dirá as medidas tomadas contra nós em caso de malogro.

        —Ele não falará.

        —Sim... Falará sim... Está em nossas mãos, e tem todo o interesse em fazer que lhe perdoemos o seu papel. É um desses entes que está sempre com os mais fortes. Olhem-no.

        O homem não saía de sua imobilidade. Nenhum gesto. Entretanto, sua posição não parecia natural. Sentado, como estava, meio curvo, deveria perder o equilíbrio.

        —Errington... Webster... iluminem-no — ordenou Dorotéia.

        A um só tempo, as duas lanternas elétricas projetaram seus raios.

        Transcorreram alguns instantes.

        —Ah! — suspirou Dorotéia, que em primeiro lugar percebeu o fato horroroso e recuou.

        Aos seis, embasbacara um estranho espetáculo, a princípio inexplicável. O busto e a cabeça, que julgavam imóveis, inclinavam-se um pouco para a frente, num movimento imperceptível, mas que não se detinha. Do fundo das órbitas, os olhos surgiam completamente redondos, olhos de espanto, que se acendiam como carbúnculos, aos fogos concêntricos das duas lanternas. A boca se convulsionava como para um grito que não se exalava. Depois, a cabeça descaiu sobre o peito, arrastando o busto.

        Viu-se, durante alguns segundos, o cabo de ébano de um punhal cuja lâmina, meio   enterrada no ombro direito, abaixo do pescoço, escorria sangue. E por fim todo o corpo desmoronou. Lentamente, como um animal ferido, o homem se ajoelhou sobre as lajes e, de súbito, como um bloco, tombou.

XIV

A Medalha

        Por brutal que fosse o lance teatral, não provocou, naqueles que o testemunharam, nem clamores nem desordens. Algo lhes dominou o pavor, abafou suas palavras e reteve seus gestos: a inconcebível execução desse assassínio. O milagre impossível da ressurreição do marquês se transformava em um milagre de morte igualmente impossível, mas que não podiam negar, pois que se passara diante de seus olhos.

        Na verdade, tiveram a impressão, já que ninguém vivo entrara, de que a morte atravessara a soleira do quarto, caminhara em direção ao homem, golpeara-o na presença deles, com sua mão invisível, e depois se fora, deixando no cadáver a arma homicida. Ninguém mais senão um fantasma poderia ter passado. Ninguém senão um fantasma poderia ter matado.

        —Errington, — disse Dorotéia, que, mais rápida do que os companheiros, recuperara o sangue-frio — não há ninguém na escada, pois não? Dario, a janela é demasiado estreita para que se possa passar por ela, não é exato? Webster e Kurobelef, estudem as paredes da alcova.

        Ela mesma se abaixou e apanhou o punhal. Nenhuma convulsão agitou o corpo da vítima. Era, de fato, um cadáver. O exame do punhal e das roupas não trouxe o menor indício. Errington e Dario prestaram contas de sua missão. A escada? Vazia. A janela? Demasiado estreita.

        Juntaram-se ambos ao russo e ao americano, tal como Dorotéia, e os cinco perscrutaram e apalparam as paredes de maneira tão minuciosa que a rapariga exprimiu a convicção   absoluta de todos quando, com voz clara, pronunciou:

        —Nenhuma saída. É inadmissível que tenham passado por ali.

        —E então? — gaguejou o notário, que estava sentado no escabelo e não se movera, pela excelente razão de que suas pernas lhe teriam recusado toda espécie de serviço— . Então?

        Fazia esta pergunta com uma espécie de humildade, como se lastimasse não haver aceito logo todas as explicações de Dorotéia, e prometeu admitir todas que ela consentisse em dar-lhe. A jovem que tão bem anunciara o perigo que o ameaçava, e tão bem elucidara todos os problemas daquela obscura história, parecia-lhe de súbito uma mulher que nunca se engana, que não pode enganar-se. E, por isso mesmo, ele via nela uma poderosa proteção contra os ataques que iam produzir-se.

        Dorotéia, esta sentia confusamente que a verdade rondava e que estava a pique de vislumbrar em toda a sua clareza o que não possuía nenhuma forma. E era uma coisa que mais tarde deveria espantá-la imensamente: como não adivinhou o que estava oculto na sombra? Parece que teve medo de o adivinhar, e que se desviou de um perigo, que sua inteligência lhe teria denunciado se o seu instinto de mulher não lhe houvesse permitido cegar-se durante alguns minutos.

        Na verdade, perdeu esses poucos minutos. Como alguém cercado de perigos e que não sabe de qual deve primeiro se livrar, ficou marcando passo. Perdeu tempo em frases inúteis, atendo-se unicamente aos aspectos práticos da situação, com a esperança, talvez, de que uma das suas palavras fizesse saltar uma centelha.

        —"Maítre" Delarue, há uma morte, há um crime. Teremos, pois, de avisar a justiça. No entanto... no entanto... creio que podemos diferir por um ou dois dias...

        —Diferir? — indagou ele —. Vou agora mesmo. São formalidades que não toleram qualquer delonga.

        —O senhor não chegará a Périac.

        —Por quê?

        — Porque a quadrilha que, às nossas vistas, conseguiu desembaraçar-se de um cúmplice que a constrangia, deve ter tomado suas precauções e o caminho que leva a Périac deve estar guardado.

        ?Acredita?...   Acredita? — tartamudeou Delarue.

        —Acredito.

        Ela respondia com hesitação. Naquele momento, sofria muito, pois era dessas pessoas para as quais a incerteza constitui um suplício. Tinha a profunda impressão de que lhe faltava um elemento essencial da verdade. Por mais protegida que estivesse naquela torre, junto a quatro homens resolutos, não era ela quem dirigia os acontecimentos. Submetia-se à lei do inimigo que a oprimia e, de certo modo, manobrava-a a seu talante.

        —Mas é horroroso — lamentou-se Delarue —Vejamos, não posso eternizar-me aqui... Meu cartório me reclama... Tenho mulher... filhos...

        —Parta, "Maítre" Delarue. Mas antes nos entregue o invólucro do codicilo que eu lhe devolvi. Nós o abriremos na sua presença.

        —E têm esse direito?

        —Como!? A carta do marquês é formal: "No caso em que o destino me houvesse traído e vocês não encontrassem vestígios meus, abram pessoalmente a sobrecarta e, conhecendo o esconderijo, tomem posse dos diamantes." É claro, não?, claro a mais não poder, e como nós sabemos que o marquês morreu, temos o direito de tomar posse dos quatro diamantes, dos quais somos os cinco proprietários... os cinco...

        Não continuou. Acabava de pronunciar palavras que, segundo a expressão, estavam em estranho desacordo umas com as outras. A contradição dos termos empregados — quatro diamantes... cinco proprietários — era tão flagrante que os rapazes se impressionaram, e o próprio notário, por absorto que estivesse por outras idéias, sentiu um choque...

        —Mas, vocês são cinco, realmente... Como é que não notamos este pormenor? Vocês são cinco, e só existem quatro diamantes.

        —Sem dúvida, — explicou Dario — resulta isso do fato de que há quatro homens e que prestamos atenção apenas a esse número quatro, quatro estrangeiros em oposição a você, que é francesa.

        —Mas a realidade aí está — prosseguiu Delarue —; vocês são cinco.

        —E então? — perguntou Webster.

        —E então, conforme a carta, o marquês tinha apenas quatro filhos, aos quais legou quatro medalhas de ouro... Ouçam bem, quatro medalhas de ouro.

        —Pode ter legado quatro... e deixado cinco... — objetou Webster.

        E olhou para Dorotéia. Esta se mantinha calada. Iria encontrar naquele inesperado incidente a chave do enigma que lhe escapava? Pensativa, falou:

        —A menos que uma quinta medalha, exatamente igual, tenha sido fabricada mais tarde pelo modelo das outras, e transmitida assim a um de nós, em suplemento, e por um processo fraudulento.

        —Como sabê-lo?

        —Comparemos nossas medalhas — disse ela —. O exame talvez nos elucide.

        Webster, em primeiro lugar, apresentou a sua medalha.

        Não oferecia nenhuma particularidade que pudesse deixar crer que não fosse uma das quatro originais, cunhadas segundo as ordens do marquês e por ele examinadas. Mesma observação no concernente às medalhas de Marco Dario, de Kurobelef e de Errington. "Maítre" Delarue, que recolhera as quatro e as examinava uma a uma, estendeu a mão a Dorotéia.

        Esta apanhara a bolsinha de couro amarrada entre as pregas do seu corpete. Desfez-lhe os nós e ficou estupefta. A bolsa achava-se vazia. Ela a sacudiu e virou. Nada.

        —Não a tenho mais, não a tenho mais... — anunciou com voz abafada.

        Seguiu-se à sua declaração um silêncio estupefato; depois o notário perguntou:

        —Quer dizer que a perdeu?

        —Não, eu não posso tê-la perdido. Senão, teria perdido ao mesmo tempo o saco. Olhem: continha apenas a medalha.

        ?Entretanto, — disse o notário — como explica?...

        Marco Dario interveio um pouco secamente:

        ?A senhorita não tem de se explicar. Porque, afinal, o senhor não pretende...

        —Decerto —atalhou Delarúe—nenhum de nós supõe que a senhorita tenha vindo aqui sem direito a isso. Em lugar de quatro medalhas, havia cinco, e a dela se extraviou, aí está tudo quanto eu queria dizer.

        Calmamente, repetiu Dorotéia:

        —Eu não a perdi. Já que ela não se encontra...

        Estava a ponto de dizer: "Já que não se encontra nesta bolsa, foi que me tiraram." A frase não foi terminada. Com o coração crispado por súbita angústia, percebia Dorotéia de inopino o sentido de semelhante acusação, e o problema se apresentava a seus olhos em toda a sua simplicidade e com sua única e rigorosa solução: "As quatro moedas de ouro estão aqui. Uma delas me foi roubada. Por conseguinte, um destes quatro homens é um ladrão." E este fato inegável a levava inesperadamente a tal visão das coisas, a uma certeza tão imprevista e tão tremenda, que ela teve a sobre-humana energia de se conter. Não deveriam alarmar-se em torno dela, antes que tivesse refletido e encarado a situação no que ela encerrava de trágico. Aceitou, pois, a hipótese do notário e murmurou:

        —No fundo, é isso mesmo... o senhor deve estar com a razão, "Maítre" Delarue, perdi a medalha... Mas como? Não posso explicar a mim mesma de que maneira pude perdê-la... em que momento...

        Falava muito baixo, com voz distraída. Os anéis de seus cabelos repartidos mostravam a testa preocupada. Delarue e os quatro estrangeiros trocavam frases, mas que não tinham qualquer importância, não sendo nenhuma sancionada pela atenção da jovem. Depois se calaram. Estabeleceu-se entre eles um prolongado silêncio. As lanternas estavam apagadas. A estreita luz da janela se concentrava sobre Dorotéia, que estava muito pálida, tão pálida que teve consciência disso, e escondeu o rosto com as mãos, a fim de evitar que pudessem ver o reflexo das emoções que a perturbavam. Emoções violentas, e que provinham daquela verdade que ela tivera tanto trabalho para alcançar e que de súbito se desprendia das trevas. Não era por trechos esparsos que ela recolhia os indícios reveladores, mas de um bloco, por assim dizer. As nuvens tinham sido varridas. À sua frente, diante de seus olhos, ela via... ela via... Ah! que coisa medonha!

        Contudo, apegava-se ao silêncio e à imobilidade, ao passo que em seu espírito se apresentavam, ao mesmo tempo, e no espaço de alguns segundos, todas as perguntas e todas as respostas, todos os argumentos e todas as provas.

        Recordava-se da noite anterior, na aldeia de Périac, na qual a carroça escapara de ser presa das chamas. Quem acendera esse incêndio? E por que motivos? Não seria de supor que um dos inopinados salvadores que surgiram se houvesse introduzido no carro, aproveitando-se da desordem, para lá rebuscar o cubículo em que ela dormia e abrir a bolsinha de couro pendurada à parede?

        Senhor da medalha, o ladrão voltava às pressas até as ruínas de La Roche-Périac e dispunha seu bando naquela península cujos mínimos recantos deviam ser-lhe conhecidos, e onde combinara tudo em vista do dia fatídico do 12 de julho de 1921. Sem qualquer dúvida, um ensaio geral fora realizado entre ele e o cúmplice encarregado de representar o papel do marquês adormecido. Recomendações supremas. Promessas em caso de bom êxito. Ameaças em caso de malogro. E, ao meio-dia, chegava tranqüilamente diante do relógio, como os outros estrangeiros, apresentava a medalha, única peça de identidade requerida, e assistia à leitura do testamento.

        Depois, era a subida naquela torre e a ressurreição do marquês. Um instante mais, e Dorotéia entregaria o codicilo, e o alvo estava atingido. A grande maquinação urdida fazia tanto tempo por d'Estreicher triunfava, e como não verificar que, até o derradeiro minuto, havia na execução desse plano, como na execução dos atos imprevistos, necessários ao acaso, a mesma afoiteza, a mesma segurança, o mesmo vigor, a mesma decisão metódica? Certas batalhas só se ganham na presença do chefe.

        "Ele se encontra aqui", pensava ela, desvairada. "Evadiu-se da prisão, e está aqui. Seu cúmplice ia traí-lo e juntar-se a nós; ele o matou. Só ele é capaz de agir assim. Ele está aqui. Desembaraçado de sua barba e de seus óculos, com o crânio raspado, o braço na tipóia, mascarado de soldado russo, sem pronunciar uma palavra, mudando a maneira de andar, à parte, estava irreconhecível. Mas era mesmo d'Estreicher. Agora, tem os olhos fitos em mim. Hesita. Pergunta a si próprio se eu de fato o adivinhei sob o seu disfarce... se ainda pode representar a sua comédia... ou então se vai desmascarar-se, a seu turno, e de revólver em punho, obrigar-nos a entregar-lhe o codicilo, isto é, os diamantes?"

        Dorotéia não sabia o que fazer. Em seu lugar, um homem do seu caráter e do seu temperamento teria resolvido a questão precipitando-se sobre o inimigo. Mas uma mulher?... Antecipadamente, suas pernas vergavam sob seu peso. Sentia medo. Medo também pelos quatro rapazes que d'Estreicher poderia derrubar com três tiros de revólver.

        Afastou as mãos do rosto e sem se voltar, viu que esperavam, "os quatro". D'Estreicher formava um grupo com os outros, de olhos fitos sobre ela... sim, olhos fitos sobre ela... sentia o olhar feroz que seguia seus mínimos gestos e procurava penetrar-lhe as intenções.

        Deu um passo em direção à porta. Era seu intuito alcançar essa porta, barrar o caminho ao inimigo, fazer-lhe frente e arremessar-se entre ele e os três rapazes. Bloqueado entre as paredes do aposento, sem retirada possível, havia muitas probabilidades de que fosse forçado a submeter-se à vontade de três homens sólidos e resolutos.

        Deslocou-se ainda mais um passo, por um movimento imperceptível, depois outro ainda. Três metros a separavam da porta. De soslaio, via-lhe a massa pesada, lauxiada de pregos. Como se o desaparecimento da medalha não tivesse cessado de preocupá-la, explicou: "Devo tê-la perdido no outro dia... estava sobre meus joelhos... terei esquecido de metê-la de novo..." De repente, tomou impulso.

        Demasiado tarde. No segundo preciso em que ela se encolhera, d'Estreicher, antecipando-se, saltara para diante da porta, de braços estendidos, dois revólveres em punho. Este ato repentino não foi pontuado por nenhuma palavra. Aliás, não havia necessidade delas para que os três rapazes percebessem que o assassino do falso marquês se encontrava na sua presença. Sob a ameaça, recuaram instintivamente, depois, ato contínuo, reagindo, prontos para ripostar, avançaram.

        Dorotéia os deteve no momento em que d'Estreicher ia atirar. Em pé diante deles, protegia-os, certa de que o bandido não ousaria apertar o gatilho. Mas ele a visava bem no peito, e os rapazes não podiam mover-se, ao passo que d'Estreicher, com o braço direito estendido, com a mão esquerda, que no entanto não soltara o segundo revólver, procurava a fechadura.

        —Mas deixe-nos, senhorita! — exclamou Webster fora de si.

        —Um único gesto, e ele me mata — declarou ela.

        O bandido não pronunciou uma palavra. Entreabriu a porta, atrás de si, coseu-se à parede, e depois, rapidamente, fugiu.

        Os três jovens se lançaram, como cães que são soltos, mas esbarraram com o obstáculo dos pesados batentes.

XV

O rapto de Montfaucon

        Durante um ou dois minutos foi extrema a desordem no aposento. Jorge Errington e Webster obstinavam-se em torno da velha fechadura com seu antiquado mecanismo e que funcionava mal no interior. Exasperados, furiosos por terem deixado escapar o inimigo, contrariavam-se um ao outro, e seus esforços só conseguiam enguiçar a fechadura. Colérico, apostrofava-os Marco Dario:

        —Mas, então, andem com isto! Que é que estão fazendo?... Era d'Estreicher, não, senhorita? O homem sobre quem você falava. Matou o seu cúmplice?... Roubou-lhe a medalha? Santa Virgem, apressem-se vocês aí!

        Dorotéia tentava raciocinar.

        —Esperemos, peço-lhes. Reflitamos. Precisamos combinar... É uma loucura agir ao acaso...

        Mas eles absolutamente não a escutavam, e, quando abriram a porta, precipitaram-se os três pela escada, enquanto Dorotéia lhes gritava:

        —Cuidado! Eles estão lá em baixo... eles se acham à espreita...

        Nesse momento, um apito estridente e muito prolongado cortou o ar. Vinha de fora. Ela correu para o óculo. Dali nada se via, e a jovem, desesperada, perguntou a si própria: "Que quer dizer isto? Não são os seus cúmplices que ele chama... Eles agora estão a seu lado. Então, por que este sinal?" Ela partia, por sua vez, quando se sentiu agarrada pela saia. Dando início da cena, diante de d'Estreicher e de seus revólveres apontados, Delarue caíra no canto mais escuro, e quase de joelhos, suplicava-lhe:

        ?A senhorita não vai abandonar-me com o cadáver!... e, além disto, há esse bandido que pode voltar!... seus cúmplices!...

        Ela o ergueu.

        —Não temos tempo para perder...   é necessário socorrer os nossos amigos...

        —Socorrer? — indagou o velhote com indignação — Latagões como eles?...

        Dorotéia o puxava pela mão, como uma criança que se arrasta. Desceram, como puderam, a metade da escadaria. Delarue choramingava. A moça murmurava:

        —Por que aquele sinal? A quem se dirigia? E para que fim?...

        Pouco a pouco, uma idéia se insinuava em sua mente: Pensava nas quatro crianças que haviam ficado sós, em Saint-Quentin, em Montfaucon. E essa idéia a atormentava tanto que, ao atingir as três quartas partes da descida, defronte ao orifício aberto no muro, e que ela notara ao subir, se deteve. Que poderiam, em favor dos três rapazes, uma mulher e um velho? Não haveria nada melhor para fazer?

        —Que é? — balbuciou Delarue — Ouve-se a batalha?

        —Não se ouve nada — disse ela, curvando-se.

        Introduziu-se no estreito corredor, e arrastou-se até o orifício. Mas, tendo olhado de modo mais atento do que à tarde, percebeu, à direita, sobre a cornija, um volumoso embrulho metido numa fenda, oculta, na parte fronteira, por plantas silvestres. Era uma escada de corda. Um gancho soldado ao muro segurava uma das extremidades.

        —Perfeito — disse ela —. É evidente que, quando necessário, d'Estreicher emprega esta saída. Em caso de perigo, o salvamento é fácil, pois que este lado da torre fica oposto à entrada interior.

        O salvamento era menos fácil para "Maítre" Delarue, que principiou por gemer:

        —Nunca, jamais! Descer por ali?

        ?Ora!... — fez ela — não tem dez metros... dois andares...

        —É o mesmo que um suicídio...

        —Prefere uma punhalada? Recordo-lhe que d'Estreicher só em um fito: o codicilo, e quem o possui é o senhor.

        Aterrorizado, Delarue se decidiu, sob condição de que Dorotéia desceria primeiro para certificar-se de que a escada estava em bom estado e não faltava nenhuma trave.

        Dorotéia pouco se preocupava com as traves. Montada, deixou-se escorregar de alto a baixo. Depois, agarrando as duas cordas, esticou-as o mais possível. A operação não foi menos penosa do que prolongada, e o velhote nela desprendeu tanta coragem que escapou de desmaiar nos últimos degraus. O suor lhe corria em grossas gotas por todo o corpo.

        Com uma palavra Dorotéia o aprumou de novo.

        ?Estamos a ouvi-los... Não acha?

        O notário não ouvia nada, mas estugou o passo, enquanto, quase sem fôlego desde a partida, resmungava:

        ?Eles nos estão perseguindo... é iminente o ataque...

        Um atalho transversal os conduziu por espessa mata até o atalho principal que ligava o torreão à encruzilhada do carvalho insulado.

        Atrás deles, ninguém.

        —Patifes! Assim que chegar às primeiras casas, enviarei um mensageiro à delegacia mais   próxima... Depois mobilizarei os camponeses com espingardas, foices, forcados, não importa o quê...

        —E a senhorita, qual é o seu plano?

        —-Não tenho nenhum.

        —Como!  Não tem plano, a senhorita!...

        —Não, — disse ela — agi um pouco ao acaso. Sinto medo.

        —Ah! bem vê...

        —Não tenho medo por mim.

        —Por quem?

        —Por meus filhos.

        —Hem?! — exclamou o notário —. Tem filhos?

        —Deixei-os na estalagem.

        —Mas quantos são?

        —Quatro.

        Delarue estava atônito.

        ?Quatro filhos! Então é casada?

        ?Não — confessou Dorotéia — que não percebera o engano do figurão. Mas quero pô-los a salvo. Felizmente Saint-Quentin não é um imbecil.

        ?Saint-Quentin?

        —Sim, é o mais velho dos garotos... um rapazinho esperto, ladino como um macaco...

        "Maítre" Delarue renunciara a compreender. Aliás, para ele, nada contava senão a perspectiva de ser alcançado antes de ter atravessado a estreita passagem do Diabo.

        —Vamos correr, vamos correr — dizia, embora sua falta de fôlego o obrigasse a diminuir o passo cada vez mais — E agora, olhe, senhorita, aqui tem o segundo invólucro!... Não há nenhuma razão para que eu leve comigo um papel tão perigoso e que, afinal de contas, não me diz respeito...

        Ela apanhou a sobrecarta que fechou em sua bolsa. Nesse momento chegaram ao pátio do relógio. Delarue, que só avançava com dificuldade, soltou um grito de alegria ao avistar seu asno, que se preparava para pastar o mais tranqüilamente possível, a certa distância da motocicleta e dos dois cavalos.

        —A senhorita me dá licença?

        Delarue trepou sobre a sua cavalgadura. O asno começou por recuar, o que pôs o bonachão em tal estado de exasperação que lhe malhou a cabeça e o ventre com socos e pauladas. O animal cedeu de súbito partiu como uma flecha.

        —Tome cuidado, "Maítre" Delarue, — gritou Dorotéia — os cúmplices estão avisados!

        O notário ouviu a exclamação da moça, deitou-se para trás sobre seu burro, à toda pressa, e puxou a rédea desesperadamente. Nada mais, porém, podia deter o animal, que Dorotéia só viu de muito longe, após haver ela mesma atravessado as ruínas do primeiro recinto.

        Aí, retomou sua marcha, com crescente inquietação. Para ela, não existia qualquer dúvida: o apito de d'Estreicher se dirigia a cúmplices postados no litoral e à entrada da península cujo acesso defendiam.

        "De qualquer forma", dizia ela com seus botões, "se eu não passar, "Maítre" Delarue passará, e é evidente que Saint-Quentin será prevenido e se manterá de alcatéia."

        O mar, muito azul e muito calmo, espraiava-se à direita e à esquerda, formando dois golfos ao fundo dos quais se arredondava a penedia da costa. O Mau Passo estava demarcado por um corte escuro que ela distinguia no maciço das árvores que cobriam o planalto. A estreita senda surgia por momentos. Duas vezes discernira Dorotéia o vulto de Delarue.

        Quando, porém, se aproximava, por sua vez, do renque de árvores, uma detonação repercutiu à frente, e um pouco de fumaça se elevou num local que deveria ser o mais escarpado da passagem.

        Houve gritos, chamados, depois o silêncio.

        Dorotéia redobrou de velocidade, a fim de socorrer o notário, vítima, certamente, de uma agressão. Mas após alguns minutos de marcha, tão rápida que nenhum rumor poderia chegar até ela, a jovem só teve tempo de pular para fora da pista e se desviar diante do galope furioso do asno e de seu cavaleiro, o qual, de braços, agarrava-se com os braços passados à volta do pescoço do animal.

        Delarue, cuja cabeça pendia para o outro lado, nem mesmo a viu.

        Ansiosa, compreendendo que Saint-Quentin e seus camaradas não seriam avisados se ela não conseguisse atravessar o Mau Passo, Dorotéia se punha outra vez a caminho, quando distinguiu num dos picos o vulto de dois homens que vinham a seu encontro. Eram os cúmplices. Haviam barrado o passo a "Maítre" Delarue e, agora, agiam à guisa de batedores. Então ela se atirou para dentro das moitas e se enfiou numa cavidade cheia de folhas secas, com as quais se cobriu.

        Os cúmplices passaram sem uma palavra. Ela ouviu o rumor pesado de seus sapatos ferrados, que se afastou para o lado das ruínas, e, quando se levantou, tinham desaparecido.

        Não tendo mais obstáculos à sua frente, Dorotéia logo atravessou o Mau Passo, chegou à língua de terra que ligava a península à costa, observou que o barão Davernoie e sua amiga não se encontravam mais à beira-mar, subiu a ladeira e apressou-se em direção ao albergue. Pouco antes de lá chegar, chamou:

        — Saint-Quentin!... Saint-Quentin!

        Seus pressentimentos duplicavam-se. Passou em frente à casa e não viu ninguém. Atravesou o pomar, inspecionou a granja, e empurrou com violência a portinhola da carruagem.

        Ali, tampouco, ninguém. Nada além dos sacos das crianças e dos objetos habituais.

        —Saint-Quentin! Saint-Quentin! — gritou de novo.

        Voltou à casa e, desta vez, entrou.

        A salinha que servia de café, e onde se erguia o balcão de zinco do albergue, achava-se vazia. Por terra, derrubados, havia bancos e cadeiras. Em cima de uma das mesas, três copos pela metade e uma garrafa.

        ?Sra. Arnoux!... — chamou Dorotéia.

        Pareceu-lhe ouvir um gemido e aproximou-se do balcão. Atrás, curvada em dois, com os braços e as pernas ligados, a estalajadeira estava amarrada às tábuas do revestimento de madeira. Um lenço lhe tapava a boca.

        —Ferida? —Indagou Dorotéia, livrando-a da mordaça.

        ?Não... Não ...

        —E os meninos? —prosseguiu a jovem com voz mal segura.

        —Não têm nada.

        —Onde estão?

        —Para os lados do mar, creio.

        ?Todos?

        —Menos um, o menor.

        —Montfaucon?

        —Sim.

        —Meu Deus, que lhe terá acontecido?

        —Foi raptado.

        —Por quem?

        —Por dois homens...dois homens que entraram aqui e me pediram de beber. O pequeno brincava perto de nós. Os outros deveriam distrair-se no fundo do quintal, por trás das granjas. Nós não os ouvíamos, senão quando um dos homens me agarrou pela garganta, ao passo que o segundo pegava o pirralho.

        "—Nem uma palavra, —disseram eles —senão lhe apertamos o gasganete.

        —Onde estão os outros garotos?

        "Tive a idéia de responder que pescavam à beira-mar, nos rochedos.

        " — Isto é verdade, minha velha? — insistiram —.Se estiver mentindo, arrisca-se muito. Jure.

        "— Juro.

        " — E tu, fedelho, fala. Onde estão teus irmãos?

        " — Estão brincando lá nas pedras.

        "Eles então me amarraram e disseram:

        " — Fique aí. Nós voltamos. E se não a encontrarmos aqui, ai de você, velhinha!. . .

        "E partiram levando o guri, que um deles enrolara no seu casaco. Pronto."

        Muito pálida, Dorotéia refletia.

        —E Saint-Quentin? — indagou.

        Voltou meia hora depois, talvez, a fim de procurar Montfaucon. Acabou por me encontrar. Contei-lhe a história: "Ah!", exclamou, com lágrimas nos olhos, "que irá dizer mamãe?" Quis cortar-me as cordas. Recusei. Tinha medo que os homens voltassem. Então, ele retirou de cima da lareira uma grande carabina em mau estado, sem cartuchos, um "arcabuz" da época do falecido meu pai, e se pôs ao fresco em companhia dos outros dois.

        —Mas para onde ia? — perguntou Dorotéia.

        —Na verdade, não sei... Ouvi encaminharem-se para o lado do mar.

        —Há quanto tempo foi isso?

        —Uma boa hora, pelo menos.

        — Uma boa hora — murmurou a rapariga.

        Desta vez a estalajadeira consentira em que seus liames fossem desfeitos. Logo que ficou livre, respondeu a Dorotéia, que pretendia enviá-la a Périac para pedir socorro:

        —A Périac! Duas léguas! Mas, minha pobre senhora, não terei forças. O melhor é pôr sebo nas canelas e ir a senhora mesma.

        Era esse um conselho que Dorotéia nem sequer examinou. Tinha pressa de voltar às ruínas e de encetar a luta. Tornou a partir; correndo.

        Destarte, o ataque por ela previsto se realizara, porém uma hora mais cedo, isto é, antes que fosse dado o sinal. O rapto de Montfaucon, portanto, constituía uma medida preliminar, e os dois homens, a seguir, se haviam dirigido para o Mau Passo com a missão de estabelecer uma barragem, e depois correrem, ao sinal do apito, ao local das operações.

        Muito bem compreendia Dorotéia o motivo daquele rapto. Na batalha travada, não havia apenas o roubo dos diamantes, existia outra conquista de que d'Estreicher fazia questão com a mesma violência e brutalidade. Ora, nas suas mãos representava Montfaucon o penhor da vitória. Custasse o que custasse, acontecesse o que acontecesse, e admitindo-se que, por outro lado, a sorte virasse contra ele, seria forçoso que Dorotéia se rendesse à discrição e vergasse o joelho. Para salvar Montfaucon de morte certa, estava fora de dúvida que ela não recuaria diante de nenhuma diligência nem provação.

        "Ah!", murmurou ela, "o monstro não se enganou. Domina-me pelo que tenho de mais caro."

        Através do caminho notou, diversas vezes, grupos de pedrinhas dispostas em círculo, ou de pequenos galhos cortados, que lhe pareceram outras tantas indicações fornecidas por Saint-Quentin. Soube, assim, que as crianças, ao invés de continuarem para o Mau Passo, tinham bifurcado à esquerda e perlongado o pântano que conduzia ao mar, pondo-se destarte a salvo, nos rochedos. Mas ela não dispensou atenção a essa manobra, pois só pensava nos perigos que ameaçavam Montfaucon, e não tinha outro fito senão alcançar os seus raptores.

        Rumou, portanto, pela península e atravessou o Mau Passo, onde não teve nenhum encontro, e chegou ao planalto. Nesse momento ouviu o ruído de uma segunda detonação. Nas ruínas haviam dado um tiro. Contra quem? Contra "Maítre" Delarue? Contra um dos três rapazes?

        "Ah!", suspirou ela ansiosa, "talvez não devesse ter deixado esses três amigos. Os quatro juntos, poderíamos defender-nos. Em lugar disso, estamos longe uns dos outros, impotentes..."

O que espantou Dorotéia, depois de atravessar o muro exterior, do castelo, foi o silêncio infinito em que lhe pareceu penetrar. Não era vasto o terreno da batalha, três quartos de légua de comprimento no máximo, por algumas centenas de metros, e no entanto, naquele espaço reduzido, onde nove ou dez homens, talvez, se enfrentassem, nenhum rumor. Nem o som de uma voz. Nada além do pipilar de pássaros ou do roçar de folhas que tombam suavemente, com precaução, como se as próprias coisas conspirassem para fazer o silêncio.

        "É terrível", murmurou Dorotéia. "Que quer dizer? Devo crer que está tudo terminado? ou, melhor, que nada começou, que os adversários se espreitam antes de se atacarem: de um lado, Errington, Webster e Dario, do outro, d'Estreicher e seus cúmplices."

        Avançou rapidamente até o pátio do relógio. Dali, distinguiu ainda, perto de dois cavalos amarrados, o asno que comia folhas de arbustos, com a rédea por terra, a sela bem aprumada sobre o dorso, o pêlo reluzente de suor.

        Que acontecera a "Maítre" Delarue? Teria podido alcançar o grupo dos estrangeiros? Tê-lo-ia derrubado a sua cavalgadura e entregue ao poder do inimigo?

        Assim, a cada momento, formulavam-se perguntas impossíveis de responder. As sombras se acumulavam. Dorotéia não era medrosa. Durante a guerra, nas ambulâncias, na primeira linha, habituara-se mais depressa do que muitos homens à explosão dos obuses e não tremia nas horas de bombardeio. Mas, por senhora que fosse de seus nervos, sofria, em compensação, mais do que um homem de menor coragem, a influência de tudo quanto é desconhecido, de tudo quanto não se vê e não se ouve. Sua extrema sensibilidade lhe dava o senso preciso do perigo. E, nesse instante, teve a profunda impressão do perigo. Todavia, prosseguiu, uma força invencível a levava a caminhar até que encontrasse, os amigos e que Montfaucon fosse libertado. Atingiu a encruzilhada do velho carvalho insulado, e subiu em direção ao cômoro onde se erguia a torre Cocquesin.

        A solidão e o silêncio cada vez mais a perturbavam. Silêncio profundo. Solidão tão anormal que a jovem chegava a não se julgar mais sozinha. Espiavam-na. Pessoas seguiam a sua marcha. Parecia-lhe que estava exposta a todas as ameaças, que canos de espingardas se achavam apontados para ela, e que ia cair na cilada que o inimigo lhe preparara.

        A impressão era bastante forte para que Dorotéia, conhecedora de sua natureza e da exatidão de seus pressentimentos, a admitisse como uma certeza que repousasse sobre provas rigorosas. Sabia, até, onde estava preparada a emboscada. Tinham adivinhado que seu instinto, suas reflexões, todas as circunstâncias do drama, a trariam de volta à torre, e lá a esperavam.

        Manteve-se imóvel. Não tinha dúvidas agora de que Delarue houvesse sido apanhado e, cedendo às ameaças, revelasse que o segundo invólucro se achava nas mãos delas, aquele segundo invólucro sem o qual os diamantes do marquês de Beaugreval jamais seriam descobertos.

        Transcorreram um ou dois minutos. Nenhum indício lhe permitia acreditar na presença dos inimigos que ela imaginava. Mas a própria lógica dos acontecimentos exigia que eles estivessem ali. Era forçoso, portanto, agir como se ali estivessem.

        Por um desses movimentos imperceptíveis; que parecem não ter qualquer fito, sem que nada em sua atitude deixasse suspeitar aos inimigos invisíveis que ela cumpria um ato preciso, conseguiu abrir a bolsa e agarrar a sobrecarta. Amarrotou-a na mão e reduziu-a a uma bolinha minúscula. Depois, conservando o braço esticado ao longo da saia, deu alguns passos sob a abóbada. Atrás dela, brutalmente, com grande estrépito, qualquer coisa despencou. Era a velha grade feudal que tombava do alto, precipitava-se entre as ranhuras e fechava a saída com sua pesada trama de malhas de madeira maciça.

XVI

O último quarto de minuto

        Dorotéia não se volveu. Estava prisioneira. "Não me equivocava", pensou. "Eles são os senhores do campo de batalha. Mas que aconteceu aos outros?"

        À direita se abria o orifício da escada que subia para a torre. Talvez lhe fosse possível fugir por ali e servir-se pela segunda vez da escada de corda. Mas para quê? O rapto de Montfaucon não a obrigava a lutar até o fim, apesar da impossibilidade da luta? Era preciso atirar-se à arena, no meio das feras.

        Continuou seu caminho. Se bem que a sós e sem amigos, sentia-se muito calma. Enquanto andava, deixou escorregar ao longo da saia a reduzida bolota de papel, que rolou pelo chão e se perdeu entre as pedras e a poeira do caminho.

        Quando atingiu a abóbada, dois braços avançaram, dois homens lhe apontavam seus revólveres.

        —Nem um gesto, hem?

        Ela deu de ombros. Um deles repetiu com aspereza:

        —Nem um gesto, ou faço fogo.

        Dorotéia olhou para os agressores. Eram dois cúmplices de fisionomia suspeita, vestidos de marinheiros. Julgou a moça reconhecer os dois indivíduos que tinham acompanhado d'Estreicher ao Manoir.

        —A criança? — perguntou-lhes — Que fizeram da criança? Porque foram vocês que a levaram, não?

        Repentinamente, os dois lhe agarraram o braço e, enquanto um a ameaçava à queima-roupa, o outro julgou de seu dever revistá-la. Mas uma voz imperiosa os deteve:

        —Deixem-na. Eu me encarrego disso.

        Uma terceira personagem, que Dorotéia não vira, afastou-se da parede onde enormes raízes de hera a dissimulavam. D'Estreicher!...

        Embora continuasse a envergar o seu disfarce de soldado russo, não era o mesmo homem. Agora a jovem tornava a encontrar nele o d'Estreicher de Roborey e do Manoir-aux-Buttes. Retomara seu ar arrogante e sua expressão perversa, e não dissimulava o ligeiro desequilíbrio de seu andar. Cortadas sua cabeleira e sua barba hirsuta, notou ela a forma achatada da cabeça, por trás, e o desenvolvimento simiesco do maxilar.

        Ele ficou muito tempo sem falar. Saborearia o seu triunfo? Dir-se-ia, de preferência, que experimentava certo constrangimento em face de sua vítima, ou pelo menos que hesitava no ataque. Passeava de um lado para o outro, com as mãos nas costas, parava, tornava a andar.

        ?Você não tem armas? — perguntou-lhe.

        ?Nenhuma — afirmou ela.

        D'Estreicher ordenou aos comparsas que fossem ter com os camaradas, e depois recomeçou suas idas e vindas.

        Dorotéia o observava com atenção, procurando naquele rosto algo de humano a que pudesse apegar-se. Mas ali só existia vulgaridade, baixeza e sonsice. Ela, por conseguinte, deveria contar apenas consigo mesma. Dentro da arena de combate formada pelas ruínas do torreão, cercada de um bando de malandros comandados pelo mais implacável dos chefes, vigiada, desejada, impotente, tinha como único auxílio a sua sutil inteligência. Era infinitamente pouco, e era muito, pois que uma primeira vez, já no Manoir-aux-Buttes, colocada na mesma situação e em face do mesmo inimigo tinha vencido. Era muito, visto que esse próprio inimigo não tinha fé em si e, por isso mesmo, perdia parte de seus meios.

        Por ora, ele se julgava muito seguro do resultado satisfatório, imediato e total, e sua atitude apresentava toda a insolência de que nada tem que temer.

        Seus olhares se cruzaram.

        ?Como é linda, a brejeira! — começou ele — um petisco real... Pena que me deteste!

        E, aproximando-se:

        ?Pois é mesmo execração, hem, Dorotéia?

        A jovem recuou um passo. Ele franziu o sobrolho.

        —Sim, eu sei... seu pai... Ora! seu pai estava muito doente... De qualquer modo, hoje estaria morto. Portanto, não fui eu realmente quem o matou.

        ?E seu cúmplice... há pouquinho? O falso marquês? —interrogou ela.

        ?Não falemos nesse, peço-lhe! — escarneceu ele — um pobre coitado que não se deve lastimar... tão covarde e tão ingrato que, vendo-se desmascarado, estava pronto a trair-me, conforme você adivinhou. Porque nada lhe escapa, e você resolveu todos os problemas brincando, palavra de honra! Eu, que trabalhei com a narração do criado Godofredo, de quem acredito realmente descender, levei anos para saber o que você descobriu em alguns minutos. Nem uma hesitação. Nem um erro. Leu no meu jogo como se tivesse minhas cartas na mão. E o que mais me espanta, Dorotéia, é o seu sangue-frio, neste momento. Porque, afinal, minha cara, sabe do que se trata?

        —Sei.

        —E não está de joelhos! — exclamou d'Estreicher — Na verdade, esperava as suas súplicas... Eu a via a meus pés, arrastando-se por terra. Em lugar disso, vejo olhos que não se abaixam, que quase me desafiam, uma atitude provocadora...

        —Eu não o provoco. Escuto.

        —Então, ajustemos nossas contas. Existem duas. A conta Dorotéia (esboçou um sorriso). Por enquanto não falemos ainda nessa. Ficará para o fim... E a conta dos diamantes. Por ora seria eu o seu possuidor, se você não houvesse interceptado o documento indispensável. Basta de obstáculos! Delarue confessou com um revólver na têmpora, que lhe havia entregue o segundo invólucro. Dê-me, senão...

        ?Senão?...

        ?Tanto pior para Montfaucon.

        Dorotéia nem estremeceu. Óbvio que via claramente a situação em que se encontrava e compreendia que o duelo travado era muito mais sério do que da primeira vez, no Manoir. Ali, ela esperava socorro. Aqui, nada. Não importa! Com semelhante personagem, não deveria titubear. Seria vencedor o que conservasse um sangue-frio imperturbável e acabasse, num momento qualquer, por dominar o adversário.

        "Agüentar até o fim!", pensava ela com obstinação, "até o fim... e não até ao último quarto de hora... mas até o último quarto do último minuto..."

        Encarou o inimigo e, em tom de comando, falou:

        —Existe aqui uma criancinha que sofre. Antes de tudo, ordeno-lhe que a liberte.

        —Oh! oh! — disse ele com ironia — a senhorita ordena, e com que direito?

        —Com o direito que me dá a certeza de que, daqui a pouco, você será obrigado a obedecer-me.

        —Por quem?

        -— Pelos meus amigos, Webster, Errington e Dario.

        —Com efeito... com efeito... — disse ele — Esses cavalheiros são robustos latagões afeitos aos desportos, e você tem muita razão em contar com esses intrépidos campeões.

        Fez sinal a Dorotéia para segui-lo, atravessou a arena juncada de pedras que o interior do torreão desenhava. De um lado, à direita, de uma brecha que formava a entrada oposta, e por trás de uma cortina de hera estendida sobre alguns arbustos, alinhavam-se as pequenas salas abobadadas na parte da frente e que deveriam ser as antigas prisões. Ainda se viam anéis soldados às pedras dos alicerces.

        Em três dessas celas achavam-se estendidos, amordaçados solidamente, amarrados com cordões que os reduziam ao estado de múmias e os prendiam às argolas, Webster, Errington e Dario. Três homens, armados de carabina, montavam-lhes guarda.

        Numa quarta cela havia o cadáver do falso marquês. A quinta continha "Maítre" Delarue e o capitão Montfaucon. A criança estava envolta numa coberta. Acima de um trapo de fazenda que lhe escondia a parte inferior do rosto, seus pobres olhos cheios de lágrimas sorriam para Dorotéia.

        Esta reprimiu os soluços que lhe subiam à garganta. Não teve uma palavra de revolta, nem uma injúria. Dir-se-ia, na verdade, que tudo aquilo eram apenas incidentes secundários, que não poderiam influir no resultado do combate.

        —E então — gracejou d'Estreicher — que pensa de seus defensores? E que pensa das minhas tropas? Três camaradas para guardarem os cativos. Dois outros postados como sentinelas e que vigiam o horizonte... Posso estar tranqüilo, hem? Mas também, minha bela senhorita, por que os abandonou? Você era o traço de união. Entregues a si próprios, deixaram-se colher estupidamente, um a um, à saída do torreão. Debalde se debateram, cada um de per si. A coisa não demorou muito. Nem a sombra de um arranhão nos meus homens. Tive mais trabalho com o Sr. Delarue, a quem precisei aquinhoar com uma bala no chapéu para fazê-lo descer de uma árvore onde conseguira encarapitar-se. Quanto a Montfaucon, um anjo de doçura!... Por conseguinte, vêm você, minha belezinha, seus campeões estão fora de causa; só pode contar consigo mesma. É pouco.

        — É bastante, — retrucou ela — porque o segredo dos diamantes depende de mim, e de mim apenas. Portanto, você vai desfazer os nós de meus amigos e soltar o menino.

        — Mediante o quê... ?

        —Mediante o quê, eu lhe entregarei o invólucro do marquês de Beaugreval.

        O miserável olhou para a moça.

        —Upa! — exclamou — a proposta é tentadora. Então entregará mesmo os diamantes?

        —Entregarei.

        —Em seu nome e no de seus amigos?

        —Sim.

        —Dê-me o envelope.

        —Corte estas cordas.

        Invadiu-o um acesso de cólera.

        —Dê-me o envelope. Sou eu quem manda.

        —Não — respondeu ela.

        —Eu quero... eu quero esse envelope.. .

        —Não — repetiu a jovem, com força crescente.

        O bandido arrancou o saquinho preso com um alfinete ao corpinho, e cuja extremidade aparecia.

        —Ah! — bradou ele, furioso — o notário me disse que você o tinha posto aí dentro... como a medalha de ouro. Portanto, vou saber.

        Mas na bolsa nada havia. Decepcionado, louco de raiva, brandiu o punho junto ao rosto de Dorotéia, proferindo:

        ?É isso mesmo, você queria embromar-me! Libertados os seus amigos, estava eu em maus lençóis. O envelope, já e já!

        ?Rasguei-o — afirmou ela.

        —É mentira sua! Não se rasga semelhante coisa, não se destrói um segredo como esse!

        —Rasguei-o, depois de o ter visto — repetiu ela — Corte as cordas dos meus amigos, e eu lhe revelo o segredo.

        —Está mentindo! Está mentindo!—berrou o homem—O envelope, imediatamente! Ah! se você pensa que zomba de mim por muito tempo! Estou farto. Pela última vez, o envelope!

        —Não— disse Dorotéia.

        Precipitou-se d'Estreicher para uma das celas, desembaraçou a criança das suas cobertas, agarrou-a pelos tornozelos, apenas com uma das mãos, e pôs-se a balançá-la como um fardo que se vai arremessar longe.

        —O envelope!—gritou à Dorotéia— senão lhe parto a cabeça de encontro ao muro.

        Era ignóbil de se ver. Uma selvagem expressão lhe contraía a fisionomia. Seus cúmplices olhavam-no, rindo.

        Dorotéia ergueu a mão, em sinal de aceitação.

        Ele depôs o menino por terra e voltou para diante da jovem. Estava coberto de suor.

        —O envelope! — ordenou outra vez.

        — Sob a abóbada da entrada...—explicou ela — na parte que dá para este lado... uma bolinha no chão, no meio das pedras.

        Ele chamou um dos cúmplices e repetiu-lhe a indicação. O homem se afastou correndo.

        —Já era tempo...—murmurou o bandido, que enxugava o suor da fronte, era tempo— Bem vê que não devia provocar-me... E depois, por que esse ar de desafio? — acrescentou, como se a calma de sua vítima o embaraçasse — Sim, por quê? Abaixe os olhos, ande, com mil demônios! Não sou eu aqui o amo e senhor? Senhor de seus amigos... Senhor de você...Sim, de você?

        Repetiu esta palavra duas ou três vezes, quase que de si para si, e com um olhar que constrangia Dorotéia. Ouvindo, porém, o cúmplice, voltou-se, apostrofando-o com vivacidade.

        —E então?

        —Aqui está.

        —Tens certeza? Ah, alvíssaras! É esta a verdadeira vitória.

        D'Estreicher abria o invólucro amassado, segurava-o com ambas as mãos, revirava-o lentamente, como a coisa mais preciosa. Não fora aberto, os selos estavam intactos, ninguém, portanto, conhecia o grande segredo que ele ia conhecer. Não pôde deixar de exprimir seu pensamento em voz alta:

        —Ninguém... ninguém senão eu...

        Abriu a sobrecarta. Continha uma folha de papel dobrada em duas, e onde só estavam escritas três ou quatro linhas. Leu essas linhas e pareceu muito espantado.

        —Oh! Oh! — exclamou — esta é das arábias! E compreendo que nada encontrei, nem nenhum dos que procuravam. O sujeitinho estava com a razão. O esconderijo é impenetrável.

        Tornou a caminhar daqui para ali, silenciosamente, como alguém que pesa suas decisões. Depois, voltando às celas, com o dedo estendido em direção aos prisioneiros, disse aos três guardas:

        —Não há possibilidades de que eles escapem, não? As cordas são bem sólidas? Então, corram até a embarcação e preparem a partida.

        Os cúmplices hesitavam.

        ?E então! que é que vocês têm? — indagou o chefe.

        Um dos dois arriscou:

        ?Mas... o tesouro?

        Dorotéia notou a sua atitude hostil. Sem sombra de dúvida, desconfiavam, e a idéia de deixar D’Eistreicher antes da partilha dos despojos parecia-lhes perigosa a seus interesses.

        —O tesouro? — exclamou ele— E daí? Julgam que eu vou engoli-lo, imbecis? Vocês terão a parte prometida, visto que eu jurei. E uma bela parte!

        Impaciente por ficar só, falou-lhes com aspereza:

        —A galope! Ah! Esquecia-me...Chamem os seus dois camaradas que estão de sentinela, e, os cinco juntos, carreguem com o falso marquês. Vamos atirá-lo ao mar. Assim, não será visto nem reconhecido. Depressa!

        Os cúmplices confabularam por um momento... Mas o chefe tinha autoridade sobre eles, e, embora resmungando, com fisionomias pouco tranqüilizadoras, obedeceram a suas ordens.

        —Seis horas — disse ele, consultando o relógio — Às sete, encontrar-me-ei com vocês, de forma que possamos desembarcar às primeiras horas da noite. E que esteja tudo pronto, hem? Ponham em ordem a cabina... Talvez haja um passageiro mais.

        De novo olhou para Dorotéia e, enquanto os cúmplices se retiravam, escandiu:

        —Um passageiro, ou melhor, uma passageira, não é, Dorotéia?

        Ela não respondeu, continuando sempre impassível. Mas sua angústia se tornava cada vez mais pesada. Aproximava-se o instante temível.

        D'Estreicher ainda segurava o invólucro e o documento do marquês. Tirou do bolso o isqueiro, que acendeu, enquanto relia as instruções.

        — Admirável! — murmurou, radiante — De primeira ordem!... Seria o mesmo que procurar no fundo do inferno. Ah! Este marquês, que homem!

        Torceu o papel, transformando-o num comprido papelote que aproximou do isqueiro. O papel pegou fogo. Nessa chama, com afetada displicência, acendeu um cigarro e, voltado para os prisioneiros, esperou, de braço estendido, que do documento só restasse um pouco de cinza, que espalhou ao sopro da brisa.

        — Olhe, Webster, olhem, Errington e Dario. Eis tudo quanto vocês jamais verão do segredo de seu antepassado... um pouco de cinzas... Está acabado. Confessem que, realmente, vocês não foram espertos. No entanto, são três rapagões decididos e não souberam conservar o tesouro que os aguardava, nem defender a linda prima que admiravam boquiabertos. Arre! Éramos seis na saleta do torreão, e bastaria que um de vocês me agarrasse pela gola... Eu não resistiria muito. Em lugar disso, que derrocada! Tanto pior para vocês...E tanto pior para ela!

        Mostrou-lhes o seu revólver.

        —Não precisarei dele, hem! Vocês, aliás, devem ter observado que ao menor movimento os cordões lhes apertam mais a garganta. Se insistirem, é o estrangulamento puro e simples. A bom entendedor... Agora, prima Dorotéia, estou a seu dispor. Siga-me. Vamos fazer o impossível para nos pormos de acordo.

        Era inútil qualquer resistência. Ela o acompanhou até o outro lado da esplanada, através de um montão de ruínas, até uma espécie de aposento do qual só restavam as paredes, com seteiras abertas, e que ele designou como a antiga Sala dos Guardas.

        ?Lá estaremos acomodados para conversar. Os seus apaixonados não nos podem ver nem ouvir. A solidão é absoluta. Olhe, existe um banco de relva. Sente-se, peço-lhe.

        Ela cruzou os braços e permaneceu de pé, com a cabeça ereta. D'Estreicher esperou, murmurou: "À sua vontade" e, tomando o lugar oferecido, pronunciou:

        —É a nossa terceira entrevista, Dorotéia. A primeira vez, no terraço de Roborey, você recusou meus oferecimentos, o que, a rigor, tinha explicação: ignorava o valor exato das minhas informações, e eu só poderia parecer-lhe um aventureiro pouco recomendável, contra o qual você estava aflita por desfechar a guerra. Sentimento muito nobre, que iludiu os primos de Chagny, mas que não me enganou, dado que eu conhecia o roubo dos brincos. Na realidade, você tinha o seu fito: desembaraçar-se, à vista da bela fortuna em perspectiva, do concorrente mais perigoso. E a melhor prova é que, logo após me haver denunciado, você corria ao Manoir, onde provavelmente se encontrava a chave do enigma e onde eu ainda iria defrontar-me com as suas intrigas. Virar a cabeça do jovem Davernoie, furtar a medalha, tal foi a tarefa que você empreendeu e, confesso com admiração, realizou totalmente. Apenas... apenas... d'Estreicher não é homem que se p

asse para trás facilmente. Fuga, simulacro de incêndio, recuperação da medalha, conquista do codicilo, em resumo, reparação absoluta. À hora atual, os quatro diamantes vermelhos me pertencem.

        "Que tome posse deles amanhã ou dentro de uma semana, ou num ano, pouco importa: são meus. O que dezenas de pessoas, centenas, talvez, procuram, em vão durante dois séculos, não há motivo para que outros agora jamais o encontrem. Portanto, eis-me rico... Milhões e milhões. Com isto, é permitido a uma pessoa voltar a ser honesta, conforme é intenção minha... Se, todavia, Dorotéia consentir em ser a passageira que anunciei a meus homens. A resposta será "sim"? será "não"?"

        Ela deu de ombros.

        "Eu sabia o que pensar — afirmou ele —. Ainda assim, quis tentar a prova... antes de recorrer aos meios drásticos."

        Aguardou o efeito desta ameaça. A jovem não se mexia.

        "Como você está calma! — disse ele em tom onde aflorava um pouco de inquietação —. No entanto, compreende exatamente a situação."

        ?Exatamente

        —Estamos a sós. Tenho como reféns, como meios de ação sobre sua pessoa, a vida de Montfaucon e a vida daqueles três homens acorrentados. Por conseguinte, qual a razão de se achar tão calma?

        Pausadamente, articulou ela:

        — Estou calma porque sei que você está perdido.

        —Ora deixe-se disso! — exclamou d'Estreicher a rir.

        —Irremediavelmente perdido.

        —E por quê?

        —Há pouco, no albergue, depois de ter verificado o rapto de Montfaucon, enviei meus outros três meninos às granjas mais próximas, de onde eles trarão todos os camponeses que encontrarem.

        -—Quando tiverem mobilizado um bando de campônios, eu já estarei longe — escarneceu d'Estreicher.

        —Eles virão, tenho a certeza.

        —Demasiado tarde, minha pobrezinha. Se eu tivesse a menor dúvida, teria feito meus homens levarem-na.

        —Seus homens? Não...

        —Quem me impediria?

        —Você tem medo deles, apesar de seus ares de domador. Eles perguntam a seus botões se você não quis ficar aqui para se aproveitar do segredo roubado e apanhar os diamantes. Em mim, encontrariam uma aliada. Você não ousaria correr semelhante risco.

        —E então?

        -— Então, é por isso que estou tranqüila.

        Ele sacudiu a cabeça e, com voz crispada, bradou:

        —Mentira, minha cara! Comédia! Você está mais pálida do que um cadáver, porque bem sabe o que ocorre. Que eu seja caçado daqui a uma hora, ou que meus homens acabem por me trair, pouco importa. O que conta para você, para mim, não é o que se vai passar dentro de uma hora, mas o que vai passar-se agora. E sobre o que vai passar-se, você não tem dúvidas, pois não, Dorotéia?

        Erguera-se e, aproximando-se da rapariga, escandiu, com ameaçadora aspereza:

        "Desde o primeiro minuto fui tomado por um imbecil. Dançarina de corda, acrobata, princesa, ladra, pelotiqueira, existe qualquer coisa em você que me transtorna. Sempre desprezei as mulheres. Nenhuma me atrapalhou a vida. Você, Dorotéia, você me atrai, ao mesmo tempo que me faz medo. Amor? Não. Ódio. Ou antes, uma doença... veneno que me queima e do qual preciso livrar-me, Dorotéia."

        Estava muito junto a ela, com os olhos duros e cheios de febre. Suas mãos passeavam à volta dos ombros da jovem, prontas a se precipitarem. A fim de não sofrer o amplexo, ela teve de recuar para a parede. Com voz ofegante, ele lhe disse baixinho:

        "Basta de rir, Dorotéia. Estou farto de seus sortilégios de cigana. O sabor de seus lábios, é esse o filtro que vai curar-me. Depois, poderei fugir, e nunca mais a ver. Mas só depois. Compreende?"

        Aplicou-lhe as mãos sobre os ombros tão abruptamente que a moça vacilou. Entretanto, continuou a desafiá-lo com toda a sua atitude de desprezo. Sua vontade se retesava para que o inimigo nem por um segundo tivesse a impressão de que ela pudesse tremer no fundo de seu ser e fraquejar.

        "Compreende?... Compreende?... — tartamudeava o homem de si consigo, martelando-lhe os braços e o pescoço —, Compreende que nada pode evitar isso? Não há socorro possível. É o preço da derrota. Hoje me vingo... Quando estivermos separados, poderei afinal dizer a mim próprio: "Sim, ela me fez mal, porém não o lastimo. O desenlace da aventura apaga tudo."

        Apertava cada vez mais os ombros da jovem, e dizia-lhe com alegria sarcástica:

        "Seus olhos se perturbam, Dorotéia! Que prazer ver isso! Têm medo, seus olhos... Como são formosos, Dorotéia!... Realmente, constituem a recompensa do vencedor. Nada como semelhante olhar, que se aterroriza diante de mim, isso vale mais que tudo. Amo-a, Dorotéia, Dorotéia... Esquecê-la? Que loucura! Se quero beijar seus lábios, é para amá-la ainda mais... é para que você me ame... para que me siga, como uma escrava, e como uma dona adorada."

        Ela encostara-se à muralha. O homem se esforçava por puxá-la para junto de si. Ela tentou um esforço para se desvencilhar.

        "Ah! — gritou ele, com uma raiva súbita e brutalizando-a — nada de resistência, pequena. Dê-me seus lábios, agora mesmo, ouve? Senão, quem paga é Montfaucon. Quer que eu o faça executar o molinete como ainda há pouco? Vamos, obedeça, ou então... ou então corro até lá, e tanto pior para a cabeça do guri..."

        Dorotéia estava com a energia a esgotar-se. Suas pernas vergavam. Todo o seu ser palpitava de horror ao contacto do bandido, e ao mesmo tempo, era com terror que o repelia, tanto medo sentia de que ele se precipitasse logo sobre a criança.

        Seus braços hirtos começavam a ceder. O homem redobrou os esforços para fazê-la cair de joelhos. Estava terminado. Ele atingia a meta. Mas nesse instante, o mais imprevisto espetáculo surpreendia a Dorotéia. Por trás do seu agressor, a alguns metros de distância, qualquer coisa que se movia, qualquer coisa que passava através do muro oposto. Era o cano de uma espingarda apontado através da abertura da seteira. E, imediatamente, recordou-se Dorotéia: Saint-Quentin carregara do albergue uma velha carabina fora de uso, sem cartuchos. Não teve um gesto que pudesse chamar a atenção de d'Estreicher. Compreendia a manobra de Saint-Quentin. O rapazola ameaçava, mas não podia fazer mais do que ameaçar. A ela cabia agora manobrar de tal sorte que a ameaça, logo que o adversário a visse dirigida contra si, surtisse o seu efeito absoluto. Ora, a d'Estreicher, por certo, bastaria um momento para perceber, conforme a própria Dorotéia o percebia,

a ferrugem e o deplorável estado daquela arma tão inofensiva quanto uma espingarda de criança.

        Com muita nitidez, discerniu Dorotéia o que teria de fazer: reagir, aprumar-se diante do inimigo e perturbá-lo, quando menos fosse pelo espaço de alguns segundos, como uma vez já conseguira inquietá-lo à força de calma e autodomínio. Sua salvação, a salvação de Montfaucon, dependia de sua firmeza. "In robore fortuna", pensou.

        Mas seu pensamento, inconscientemente, ela o exprimiu a meia voz, tal como se faz uma prece que deve proteger-nos. E, ato contínuo, sentiu afrouxar o amplexo do adversário. A velha divisa, na qual tanto refletira ele, desconcertava-o, tranqüilamente formulada em tal minuto, por aquela mulher que ele julgava reduzida à última extremidade. Observou-a e ficou estupefato. Jamais seu belo rosto tivera semelhante expressão de serenidade. Sobre os dentes brancos, os lábios se entreabriam, e os olhos, pouco antes aterrorizados e cheios de desespero, fitavam-no agora com o mais calmo sorriso.

        —Que é que há? — perguntou ele, independente de sua vontade, recordando-se do riso estupefaciente de Dorotéia, perto do lago do Manoir-aux-Buttes — Ainda vai rir-se hoje.

        ?Rio-me pela mesma razão: você está perdido.

        D'Estreicher tentou pilheriar:

        ?Hem? O quê?

        —Sim,—declarou a jovem—eu lhe disse desde o primeiro instante, e não me enganava.

        —Você está louca — disse ele, dando de ombros.

        Dorotéia notou certo abrandamento na sua maneira de falar, e segura de uma vitória que residia em sua inconcebível calma, e na absoluta similitude das duas cenas, repetiu:

        -—Você está perdido. A situação é, de fato, a mesma que no Manoir. Ali, Raul e as crianças haviam ido buscar socorro, e, de repente, quando você dominava, o cano de uma carabina apontou para sua pessoa. Aqui, a mesma coisa. Os três pequenos encontraram alguns homens. Estão ali, como no Manoir, com suas espingardas... Lembra-se? Estão ali. Os canos das espingardas acham-se assestados sobre você.

        —Você está mentindo—balbuciou o bandido.

        ?Estão ali — reafirmou ela, com voz cada vez mais insistente — Ouvi o sinal dos meus meninos. Não perderam tempo em contornar o torreão. Acham-se ali, por trás do muro.

        ?É mentira! — bradou o homem — O que você diz é impossível.

        Sempre com a calma de uma pessoa a quem nenhum perigo mais ameaça, e com tom enérgico, ela ordenou:

        —Volte-se para trás... verá as carabinas apontadas contra seu peito. Basta-me pronunciar uma palavra, e eles atirarão. Vire-se, ande!

        Ele se esquivava. Não queria obedecer. Mas os olhos de Dorotéia exigiam, olhos ardentes, irresistíveis, mais fortes que ele, e, submetendo-se à sua vontade, d'Estreicher voltou-se. Era o último quarto do último minuto. Num ímpeto de todo o seu ser, com uma força de convicção que não permitia ao bandido refletir, exigiu Dorotéia:

        —Mãos ao alto, miserável, ou o matam como a um cão! Mãos ao alto! E vocês aí, atirem, eia! Atirem sem piedade! Mãos ao alto!

        D'Estreicher vira a espingarda. Ergueu os braços. Num segundo, a jovem se atirou sobre ele, arrancou-lhe do bolso do jaquetão um revólver e, apontando de frente, sem um palpitar de coração, sem que sua mão desviasse um milímetro, articulou docemente, com os olhos brilhantes de malícia:

        —Idiota, caminhe, eu bem lhe dissera que você estava perdido!

XVII

Com a corda no pescoço

        Não durara um minuto a cena, e, em menos de um minuto, produzira-se a reviravolta. A derrota se transformava em vitória. Vitória precária. Sabia Dorotétia que um homem daqueles não permaneceria muito tempo vítima da ilusão que ela, por um rasgo de audácia verdadeiramente incrível, conseguira criar em seu espírito. Contudo, tentou ela o impossível para chegar à captura do bandido, captura que não podia efetuar sozinha, e que não se tornaria definitiva se ela não o mantivesse submisso até a libertação de Webster, Errington e Marco Dario.

        Tão autoritária quanto se dispusesse de um corpo de exército, ordenou a seus salvadores:

        —Um de vocês fique aí, de arma em riste, pronto a atirar ao menor movimento, e que o resto do grupo vá soltar os prisioneiros. A toda pressa, hem? Dêem a volta ao torreão. É à esquerda da entrada, um pouco adiante.

        O resto do grupo, eram Castor e Pólux, a menos que Saint-Quentin se reunisse a ambos, no caso de julgar suficiente deixar seu fuzil, modelo 1870, deitado na seteira, e bem dirigido contra o bandido.

        "Eles partem, entram... procuram...", dizia a moça de si consigo, tentando seguir as crianças em seu itinerário.

        Mas, pouco a pouco, bem notava ela, a fisionomia de d'Estreicher serenava. Examinara o cano da espingarda. Ouvira os passos miúdos das crianças, tão diferentes da algazarra que teria feito um bando de camponeses. Dentro de pouco tempo ela não teve mais dúvida de que o bandido escapasse antes da chegada dos outros.

        Ele teve uma última hesitação, depois abaixou os braços, rangendo os dentes de furor:

        —Enganado! — exclamou —. São os garotos, e a espingarda não passava de ferro velho. Ah! você tem topete!

        —Devo atirar?

        —Ora deixe-se disso! Uma mulher de sua espécie mata para defender-se, não para matar. Entregar-me à justiça? Será que isso lhe devolverá os diamantes? Eu preferiria deixar que me arrancassem a língua e me queimassem a fogo lento do que confessar o meu segredo. Eles me pertencem. Apanhá-los-ei quando me aprouver.

        —Um único passo adiante, e eu atiro.

        —De acordo, você ganhou a partida. Vou-me embora—Apurou o ouvido—Os guris tagarelam acolá. Encontraram Webster e companhia. Enquanto os desamarram, dá tempo para eu estar longe. Até a vista... Tornaremos a ver-nos.

        —Não — disse ela.

        —Sim, terei a última palavra. Primeiro os diamantes. Depois, os assuntos do coração. Fiz mal em misturar as duas coisas.

        Dorotéia sacudiu a cabeça.

        —Você não terá os diamantes. Se eu não tivesse a certeza disto, iria deixá-lo partir? Mas, avisei-o: você está perdido.

        —Perdido? E por quê? — pilheriou ele.

        —Tenho cá a minha idéia.

        D'Estreicher ia replicar. Mas um rumor de vozes mais nítidas chegou até ambos. Ele pulou para fora da sala e fugiu, curvado, ao longo do bosque.

        A jovem, que se lançara em seu encalço, mirou-o, resolvida de súbito a liquidá-lo. Mas, após um instante de hesitação, abaixou sua arma e murmurou: "Não, não, não posso... não posso... E depois, para quê? Meu pai será vingado ainda assim..."

        Dirigiu-se ela para seus amigos. Os meninos custavam a desembaraçá-los, tão inextrincável era o emaranhado das cordas. Em primeiro lugar se levantou Webster e correu ao seu encontro.

        —Onde está ele?

        —Partiu.

        —Como! Você possuía um revólver, e deixou-o fugir?

        Errington chegava, seguido de Dario, ambos exasperados.

        —Fugiu? Será possível? Mas por onde?

        Webster tirou a arma de Dorotéia.

        —Você não teve coragem de matá-lo, não foi?   

        —Não, não tive coragem.

        —Semelhante canalha! Um assassino! Pois bem, isso conosco não vai arrastar-se, juro-lhe. Estamos prontos, amigos?

        Dorotéia barrou-lhes a passagem.

        —E os cúmplices? São cinco ou seis, e d'Estreicher de sobra... todos munidos de carabinas.

        —Tanto melhor! — declarou o americano — o revólver tem sete tiros.

        —Peço-lhes, — disse ela, receando o resultado de uma batalha desigual — peço-lhes... Aliás, já é tarde demais, eles devem ter embarcado.

        —Vamos a ver.

        Puseram-se em busca os três rapazes. Ela bem queria acompanhá-los, porém Montfaucon se pendurava à sua saia, soluçando, com as pernas ainda entravadas pelas cordas.

        —Mamãe... mamãe... não vá embora... tenho tanto medo!...    

        Ela não pensou mais senão no menino; tomou-o sobre os joelhos, e consolou-o.

        —Não deves chorar, meu pobre capitão. Está acabado. O homem mau não voltará mais. Agradeceste a Saint-Quentin e teus dois camaradas Castor e Pólux? Onde estaríamos nós se não fossem eles, meu querido?

        Abraçou ternamente as três crianças:

        —Sim! onde estaríamos? Ah! Saint-Quentin, a idéia da carabina, que achado! És um tipo e tanto, meu velho! Chega aqui, para que eu te abrace de novo! E dize-me como foi que conseguiste chegar até nós? Bem vi os montículos de pedras que semeaste ao deixares o albergue. Mas por que contornaste o pântano? Esperavas chegar às ruínas do castelo acompanhando o litoral, ao pé das penedias?

        —Foi, mamãe — respondeu Saint-Quentin, cheio de orgulho pelos cumprimentos de Dorotéia, e comovidíssimo com os seus beijos.

        —E não era possível?

        —Não, mas descobri coisa melhor...na areia, um barquinho que empurramos para o mar.

        —E os três tiveram a coragem de remar? Deve ter sido necessária uma boa hora!...

        —Hora e meia, mamãe. Havia grupos de recifes que nos repeliam. Afinal, abordamos não muito longe daqui, à vista do torreão. Ao chegar, reconheci a voz de d'Estreicher.

        ?Ah! meus filhos! meus filhos adorados!

        Houve, de novo, um dilúvio de beijos, que ela fazia chover à direita e à esquerda, nas faces de Saint-Quentin, na testa de Castor, na cabeça do capitão. E ria! E cantava! Era tão bom viver! tão bom não estar mais defronte de um bruto que nos agarra os pulsos e nos suja com seu olhar abominável! Mas de inopino interrompeu as suas efusões.

        —E "Maítre" Delarue? Esquecia-me dele!

        Jazia ao fundo da sua cela, por trás de uma trincheira de capim alto.

        —Cuida dele! Depressa, Saint-Quentin, corta as cordas. Deus do Céu, está desmaiado... Vamos, "Maítre" Delarue, recupere os sentidos. Senão, eu o abandono.

        —Abandonar-me! — exclamou o notário, subitamente despertado—. Mas não tem esse direito! O inimigo...

        ?O inimigo fugiu, "Maítre" Delarue.

        —Pode voltar. São pessoas terríveis. Veja como o chefe furou meu chapéu! O asno acabou por atirar-me ao chão, justo na entrada das ruínas, e eu me havia refugiado em cima de uma árvore, de onde recusava descer. Ah! não levei muito tempo! Com uma bala o bandido me arrancou o chapéu.

        ?O senhor está morto?

        — Não, mas sinto dores internas. Tenho contusões...

        —Não há de ser nada, "Maítre" Delarue. Amanhã, não apacecerá mais nada, garanto-lhe. Saint-Quentin, confio-te "Maítre" Delarue. A ti também, Montfaucon. Fricciona-o.

        Ela partiu rapidamente, com a intenção de alcançar seus três amigos, cuja expedição, mal combinada, a atormentava.Tendo partido ao acaso, e sem plano de ataque, arriscavam-se, ainda desta vez, se os bandidos não estivessem embarcados, a se fazerem apanhar isoladamente.

        Para sua felicidade, os rapazes ignoravam o local onde a embarcação de d'Estreicher tinha seu ponto de atracação, e, embora a parte da península, situada além das ruínas, não fosse de modo nenhum extensa, como logo se esbarrava com massas de rochedos que formavam verdadeiros obstáculos, ela encontrou logo os três, uns depois dos outros. Cada qual se perdera no dédalo de pequeninas sendas, e todos voltavam, sem o saberem, ao torreão.

        Dorotéia, que possuía melhor senso de orientação, não se equivocou. Pressentia as passagenzinhas que não levavam a nenhuma parte, e instintivamente escolhia as que conduziam à meta. Cedo, aliás, se lhe depararam pegadas. Era a pista seguida regularmente pelo bando para as idas e vindas entre o mar e o torreão. Não havia erro possível.

        Mas, nesse momento, ouviram gritos que partiam de um ponto situado justo à sua frente. Ora, a pista virava francamente, e se afastava em direção à direita. Um maciço de rochedos obrigara a essa mudança de direção, rochedos abruptos, rendilhados, que no entanto eles escalaram para evitar um desvio que parecia muito longo.

        Mais ágil, Dario, que corria na vanguarda, exclamou de súbito:

        —Estou a vê-los!..Acham-se todos na praia!... Mas que diabo fazem eles?

        Webster chegou, de revólver em punho.

        —Sim, também os vejo! Corramos até lá adiante... Ficaremos mais perto deles.

        Lá adiante, era a extremidade do planalto sustentado pelos rochedos, e sobre um promontório que domina a praia da altura de uns quarenta metros. Duas agulhas de granito, muito altas, formavam como que pilastras de uma porta aberta no centro da qual se distinguia o lençol azul do oceano.

        —Atenção! Abaixem-se! — comandou Dorotéia, que se deitou.

        Os outros se coseram às paredes.

        Cento e cinqüenta metros adiante, na ponte de uma grande embarcação de pesca, a motor, havia um grupo de cinco homens, no meio dos quais gesticulava uma mulher. Ao ver Dorotéia e seus amigos, um dos cinco homens se voltou rapidamente, levou a espingarda ao ombro, e disparou. Um fragmento de granito saltou perto de Errington.

        —Alto lá! — gritou o atirador — senão recomeço!

        Dorotéia deteve os companheiros.

        ?E depois? A penedia é apique. Vocês não têm idéia de se lançar no vácuo, pois não?

        ?Não, mas podemos pegar de novo o caminho— propôs Dario — e dar a volta.

        ?Proíbo-os de se mexerem. Seria uma loucura.

        Webster indignou-se:

        —Tenho um revólver.

        ?E eles têm espingardas. Aliás, chegaríamos demasiado tarde. O drama está terminado.

        —Que drama?

        —Olhem.

        Dominados por ela, permaneceram imóveis, a salvo das balas. A sua frente se desenrolava, como um espetáculo ao qual fossem obrigados a assistir sem nele tomarem parte, o que Dorotéia denominava de drama, e logo compreenderam o seu trágico horror.

        O grande barco se balançava ao longo de um cais natural que formava a periferia de uma pequena e calma enseada. A mulher e os cinco homens achavam-se inclinados sobre um corpo inerte, que parecia amarrado com faixas de lã vermelha. A mulher, que, de longe, dava a impressão da mais abominável das megeras, apostrofava esse sexto indivíduo, mostrando-lhe o punho e lançando-lhe injúrias, das quais só algumas chegavam aos ouvidos dos jovens.

        ?Ladrão!... Covarde!... Ah! recusas!... Espera um pouco!...

        Ela proferiu ordens relativas a certa manobra que, aliás, já estava toda preparada, pois que, tendo-se dispersado o grupo de bandidos, verificaram os rapazes que uma comprida corda se enrolava ao pescoço do cativo, e que a outra extremidade dessa corda passava por cima da verga principal do mastro. Dois homens a agarraram. O corpo inerte foi erguido. Ficou de pé alguns segundos, como um títere que se vai fazer dançar. Depois, suavemente, sem solavancos, o içaram a um metro do soalho.

        ?D'Estreicher!—murmurou um dos rapazes, reconhecendo o quepe do soldado russo.

        Com um frêmito, recordou-se Dorotéia da predição que fizera a seu inimigo, por ocasião de seu encontro no castelo de Roborey.

        —Sim, d'Estreicher... — sussurrou baixinho.

        —Que pretenderão dele?

        —Tirar-lhe os diamantes.

        —Mas ele não os tem.

        —Não, mas podem pensar que os tem. Eu desconfiava do seu projeto. Havia notado a expressão feroz de suas fisionomias, e o olhar que haviam trocado ao deixar as ruínas por ordem de d'Estreicher. Só lhe obedeceram a fim de preparar a cilada em que ele caiu.

        Ao longe, o vulto permaneceu apenas um instante suspenso da verga. Tornaram a descer o bonifrate. Mais duas vezes o içaram, e a mulher vociferava:

        —Vais falar?... O tesouro que havias prometido?... Que fizeste dele? ...

        Perto de Dorotéia, Arquibaldo Webster resmungou:

        —Não é possível! Não vamos tolerar...

        —O quê!—exclamou a moça—Você queria matá-lo ainda há pouco. E agora quer salvá-lo?

        Webster e seus amigos não sabiam lá muito bem o que queriam. Mas recusavam-se a ficar por mais tempo impassíveis diante daquele espetáculo repulsivo. A penedia era a pique, mas com fendas e tractos de areia. Vendo que o homem da carabina já não se ocupava deles, Webster arriscou a descida, seguido de Dario e Errington. Tentativa inútil. Os cúmplices não quiseram travar luta. A mulher pôs o motor em marcha. Quando os três rapazes pisaram a areia da praia, a barca virava com um ruído precipitado. Em vão disparou o americano os sete tiros de seu revólver.

        Estava furioso, e disse a Dorotéia, que chegava perto:

        —Apesar de tudo... apesar de tudo... deveríamos ter agido de outra forma... Lá vai um monte de tratantes que se põem ao fresco sob nossas vistas!

        —Que poderíamos fazer?—observou Dorotéia—Não está punido o principal culpado? Quando se fizerem ao largo, tornarão a revistá-lo, e, uma vez certos de que seus bolsos estão mesmo vazios, que ele conhece o segredo e não lhes transmitirá, atirarão seu chefe ao mar, tal como o falso marquês cujo cadáver está atualmente no fundo do porão.

        ?E isto lhe basta, o castigo de d'Estreicher?

        —Basta.

        ?Então você o detesta muito?

        ?Ele matou meu pai — afirmou ela.

        Os rapazes se inclinaram gravemente. Depois Dario prosseguiu:

        —Mas os outros?...

        ?Que se vão fazer enforcar mais adiante! Assim é melhor para nós. Presa a quadrilha, entregue à justiça, seria o inquérito, o processo, toda a aventura exibida ao público. Será do nosso interesse? Aconselhou-nos o marquês de Beaugreval resolvermos nossos negócios entre nós.

        —Nossos negócios já estão todos resolvidos, com efeito—suspirou Errington—está perdido o segredo dos diamantes.

        À distância, rumo ao norte, em direção à Bretanha, afastava-se a barca...

        Naquela mesma noite, cerca das 9 horas, após ter confiado à viúva Amouroux "Maítre" Delarue, o qual só pensava em passar uma boa noite e voltar a seu cartório o mais depressa possível, depois de haver recomendado à viúva absoluto silêncio sobre a agressão de que fora vítima, Jorge Errington e Marco Dario atrelaram seus cavalos à carroça, e, acompanhados por Saint-Quentin, que segurava a rédea de Zarolha, voltaram pelo caminho pedregoso do Mau Passo até as ruínas de La Roche-Périac.

        Dorotéia e as crianças retomaram posse de suas habitações. Os três rapazes se instalaram nas celas do torreão.

        No dia seguinte, cedo, Arquibaldo Webster montou na sua motocicleta. Só ao meio-dia voltou.

        ?Chego de Sarzeau, — disse ele — eu vi os monges da abadia. Comprei-lhes as ruínas de La Roche-Périac.

        ?Santo Deus! — exclamou Dorotéia — quer então acabar aqui os seus dias?

        ?Não, mas Jorge Errington, Dario e eu, queremos efetuar nossas pesquisas tranqüilamente, e, para ficarmos tranqüilos, não há nada como se estar em sua própria casa. Arquibaldo Webster, você que tem aparência de tão rico, faz assim tanta questão de descobrir os diamantes?

        —Faço questão — declarou ele — de que a aventura de nosso antepassado, o marquês de Beaugreval, finde conforme deve findar, e de que, mais cedo ou mais tarde, o acaso não entregue esses diamante ao primeiro que aparecer e que não tenha qualquer direito aos mesmos. Você nos auxiliará, Dorotéia?

        —Não, absolutamente.

        —Diacho! E por quê?

        —Porque, pelo que me concerne, a aventura terminou com o castigo do culpado.

        Os três pareceram decepcionados.

        —Contudo, você ficará aqui?...

        —Sim: necessito de repouso e meus quatro meninos também. Uns doze dias aqui, perto de vocês, em família, nos farão muito bem. A 24 de julho, pela manhã, partida.

        —A data está marcada?

        —Está, sim.

        —Para nós igualmente?

        —Sim. Eu os rapto.

        —E o fito da viagem?

        -—Um velho solar na Vendéia, onde devem achar-se reunidos, em fins de julho, outros descendentes do Senhor de Beaugreyal. Faço questão de os apresentar à nossos primos Davernoie e Chagny-Roborey. Depois disso, vocês estarão livres para voltarem aqui... e se enterrarem com os diamantes de Golconda.

        —E com você, prima Dorotéia.

        —Sem mim.

        —Neste caso, — disse Webster — torno   a vender minhas ruínas.

        Para os três rapazes foram um contínuo encantamento aqueles poucos dias. Pela manhã procuravam, independente de qualquer método, aliás, e com um ardor que diminuía tanto mais depressa quanto deixasse Dorotéia de participar em suas investigações. No fundo, só esperavam o momento de se encontrar com ela. Almoçavam juntos, perto da carroça que Dorotéia instalara à sombra do grande carvalho que dominava a alameda de árvores seculares. Refeição encantadora, seguida de uma tarde que não o era menos, e de um serão que eles, de bom grado, prolongariam até quase ao romper da aurora. Nem uma nuvem no céu alterou o bom tempo. Nenhum passageiro tentou penetrar no domínio e ultrapassar a inscrição que haviam pregado a um galho: "Propriedade particular. Armadilha para lobos."

        Eles viveram sozinhos, com os quatro meninos de que se tinham tornado amigos ardorosos e de cujos folguedos partilhavam, todos sete em êxtase diante daquela a quem chamavam de extraordinária Dorotéia.

        Ela os cativava e deslumbrava. Sua presença de espírito durante o penoso dia 12 de julho, seu sangue-frio no recinto do torreão, sua corrida ao albergue, sua luta implacável contra d'Estreicher, sua coragem, sua alegria, tudo isso eram outras tantas coisas que provocavam neles uma admiração estupefata.

        Ela se lhes afigurava a mais natural e misteriosa das criaturas. Se bem que lhes prodigalizasse explicações e lhes narrasse toda a sua infância, sua vida de enfermeira, sua vida de saltimbanco, os incidentes do castelo de Roborey, e do Manoir-aux-Buttes, os jovens não chegavam a compreender que Dorotéia fosse ao mesmo tempo princesa de Argonne e diretora de circo, e que fosse isso realmente, mostrando-se tão reservada quanto fantasista, tão filha de grão-senhor quanto pelotiqueira e dançarina de corda. Mas sua delicada ternura para com os quatro meninos os comovia profundamente, tanto se revelava o instinto maternal em seus olhares cheios de afeto e nos seus gestos atenciosos.

        No quarto dia, Marco Dario, de Gênova, conseguiu falar-lhe à parte e fez-lhe a sua declaração.

        —Tenho duas irmãs que gostarão de você como de outra irmã. Moro num velho palacete, onde você, caso quisesse, teria o aspecto de uma dama da Renascença.

        No quinto dia, Errington, trêmulo, falou-lhe em sua mãe, "que seria muito feliz por ter uma filha igual a ela". No sexto dia foi a vez do Webster. No sétimo, estiveram os três a pique de brigar. No oitavo, intimaram-na a escolher entre eles.

        ??Por que entre vocês? — indagou ela toda risonha — Não existem só vocês na minha vida, além dos meus quatro meninos. Tenho parentes, primos, outros pretendentes, talvez.

        ? Escolha.

        Ao nono dia, instada por eles, Dorotéia prometeu escolher.

        —Pronto — declarou ela — Colocarei vocês todos numa fila, e beijarei aquele que será meu marido.

        —Quando?

        —No primeiro dia do mês de agosto.

        —Jure-o.

        —Juro.

        Daí em diante não procuraram mais diamantes. Conforme observou Errington — e Montfaucon dissera antes dele — os diamantes que almejavam era ela, Dorotéia. Seu antepassado Beaugreval não podia ter previsto para os descendentes tesouro de maior magnificência.

        Na manhã de 24, Dorotéia deu o sinal da partida. Abandonaram as ruínas de La Roche-Périac e deram adeus às riquezas do marquês de Beaugreval.

        —Apesar de tudo — afirmou Dario — você deveria ter procurado, prima Dorotéia. Só você seria capaz de descobrir o que ninguém descobriu há dois séculos.

        Ela fez um movimento de despreocupação e replicou:

        —Nosso excelente antepassado tomou o cuidado de nos dizer pessoalmente onde se encontrava a fortuna. "In robore"... Submetamo-nos à sua decisão.

        Refizeram todos as etapas que ela já percorrera, atravessaram o Vilaine e meteram-se pela estrada de Nantes. Nas aldeias — é forçoso viver, e a rapariga não aceitava a assistência de ninguém — o Circo Dorotéia dava representações. Nova causa de embasbacamento para os três estrangeiros. Dorotéia fazia alarde de seus talentos, Dorotéia sobre Zarolha, Dorotéia na corda estendida, Dorotéia apostrofando o público, quantas cenas saborosas e pitorescas!

        Dormiram duas noites em Nantes, onde a jovem desejava ver Delarue. Inteiramente refeito de suas emoções, o notário lhe dispensou uma boa acolhida, apresentou-lhe a família e prendeu-a para almoçar.

        Afinal, no último dia do mês, havendo partido pela madrugada, chegaram ao Manoir-aux-Buttes no meio da tarde. Dorotéia deixou a carroça diante do portão, com os meninos, e entrou, acompanhada dos três rapazes. O pátio lhe pareceu vazio. O pessoal da casa devia estar ocupado no campo. Pelas janelas abertas do Manoir, porém, ouviu-se o rumor de uma violenta discussão.

        Aproximaram-se.

        Uma voz de homem, arengueira e vulgar, que era, — reconheceu-a Dorotéia, — a voz do Sr. Voirin, o usurário, escandia colérica, apoiada por socos na mesa:

        —É preciso pagar, Sr. Raul; aqui tem o contrato de venda, assinado por seu avô. Às 5 horas de 31 de julho de 1921, trezentos mil francos em dinheiro ou em títulos do Estado. Senão, o Manoir é meu. São quatro horas e três quartos. Onde está o dinheiro?

        A seguir ouviu Dorotéia a voz de Raul, depois a do conde Otávio de Chagny, que oferecia acomodações.

        ?Nada de arranjos — proferiu o onzenário — Dinheiro era notas. São quatro horas e quarenta e oito.

        Arquibaldo Webster segurou Dorotéia pela manga e murmurou:

        —Raul... é um de nossos primos?

        —É, sim.

        —E o outro?

        —Um agiota.

        —Ofereça-lhe um cheque.

        —Não aceitará.

        —Por quê?

        —Ele quer o Manoir.

        —Mas afinal de contas, nós não vamos deixar que se cometa semelhante coisa, bem? Você é um rapaz às direitas — disse Dorotéia — e eu lhe agradeço. Mas julga que é por acaso que nos encontramos aqui no dia 31 de julho, às quatro e cinqüenta?

        Dirigiu-se para a escada externa, subiu os degraus e, tendo atravessado o vestíbulo, entrou na sala. Dois gritos responderam a seu aparecimento. Raul se erguera muito pálido, a Sra. de Chagny acorria. Ela os deteve com um gesto.

        Defronte à mesa, o Sr. Voirin, ladeado de dois amigos que levara como testemunhas, com seus papéis e documentos exibidos ostensivamente sobre uma pasta de couro, segurava um relógio.

        —Cinco horas — declarou, em tom vitorioso.

        ?Cinco horas no seu relógio de algibeira talvez, — retificou Dorotéia — mas olhe para o relógio de parede. Ainda temos três minutos.

        —E depois? —- indagou o usurário.

        —Pois bem! três minutos é mais do que o necessário para liqüidar essa pequena fatura e botá-lo pela porta fora.

        Entreabriu a capa de viagem que usava e, de um dos bolsos internos, tirou um vasto invólucro amarelo, que rasgou e de onde puxou um maço de notas de mil francos, e um pacote de títulos.

        —Conte, cavalheiro. Não, aqui não. Demorará um pouco, e temos pressa de ficar a sós. Lá fora.

        Suavemente, num movimento contínuo, empurrou-o para o pátio, e assim também as duas testemunhas.

        —Perdoe-me, caro senhor, mas estamos em família... primos que não vimos há duzentos anos... e temos pressa de ficar sozinhos...Não me quer mal por isso, não? Ah! A propósito, envie o recibo ao Sr. Davernoie. Até a vista, senhores... Atenção, eis que batem cinco horas no relógio... Até a vista. Meus cumprimentos .

XVIII

“In Robore Fortuna”

        Depois de fechar a porta pela qual os três haviam passado, viu Dorotéia diante de si Raul, que parecia irritado, e lhe disse:

        —Não... não... é uma coisa inadmissível... Você devia ter-me consultado...

        —A respeito de quê?

        —A respeito do pagamento desta dívida.

        —Não se zangue — retrucou ela docemente — Quis, antes de tudo, livrá-lo do Sr. Voirin. Isto nos dá tempo para reflexões.

        —Já está refletido, — declarou ele — considero este negócio como nulo.

        —Suplico-lhe, Raul, um pouco de paciência. Guarde suas decisões para amanhã. Talvez amanhã eu o tenha convencido.

        Ela abraçou a Sra. de Chagny e depois, chamando os três estrangeiros, fez as apresentações.

        —Trago-lhe convivas, minha senhora. Nosso primo, Jorge Errington, de Londres. Nosso primo, Marco Dario, de Gênova. Nosso primo, Arquibaldo Webster, de Philadelphia. Sabendo que vocês deveriam vir cá, fiz questão de que a família ficasse completa.

        Em seguida apresentou Raul Davernoie, o conde Otávio e a esposa deste. Trocaram-se vigorosos apertos de mão.

        —Perfeito— comentou ela— estamos reunidos conforme eu desejava, e temos milhares de coisas para nos contar uns aos outros. Tornei a ver d'Estreicher, Raul, e como lhe predissera, ele foi mesmo enforcado. Raul, longe daqui encontrei seu avô e Julieta Azire. Raul... Mas talvez estejamos indo um pouco depressa no assunto. Antes de tudo, há um dever muito urgente para cumprir em relação a nossos três primos, que são inimigos encarniçados do regime seco.

        Abriu os armários e achou uma garrafa de vinho do Porto e biscoitos, e enquanto servia, pôs-se a narrar sua expedição a La Roche-Périac. Relato rápido, incompleto, algo incoerente, onde os fatos não estavam sempre em seus lugares e, na maioria das vezes, tomavam um ar cômico que muito divertia o conde e a condessa de Chagny.

        —Então, — disse esta, depois que a jovem terminou — os diamantes estão perdidos?

        —Isto é assunto de meus três primos. Interrogue-os.

        Durante as explicações da rapariga, mantiveram-se os três afastados, escutando-a, amáveis com seus hospedeiros, mas conservando uma atitude distraída, como se seguissem suas reflexões pessoais. E a própria Condessa, por seu lado, devia fazer tais reflexões, e também o conde de Chagny, pois havia uma coisa que os preocupava a todos igualmente, e os impedia de ficarem à vontade, enquanto não fosse esclarecida.

        Quem principiou a falar foi Errington, antes que a Condessa de Chagny lhe formulasse qualquer pergunta, e dirigindo-se à moça:

        —Prima Dorotéia, não compreendemos... Não, para nós é obscuro, e penso que você não julgará indiscreto se falarmos de coração aberto.

        —Fale, Errington.

        —Pois bem, ouça... esses trezentos mil francos?...

        —De onde provêm? — terminou Dorotéia — É isso que você quer saber, não é?

        — Com efeito, é isso mesmo.

        Ela se inclinou ao ouvido do inglês e sussurrou:

        —Todas as minhas economias... ganhas com o suor de meu rosto.

        —Por favor...

        ?Não lhe satisfaz a explicação? Então serei franca.

        Inclinou-se para o outro ouvido, e mais baixo ainda:

        —Roubei-os.

        —Oh! Prima, não brinque.

        —Mas então, que diabo, Jorge Errington, se não os roubei, que supõe você afinal?

        —Meus amigos e eu — articulou o rapaz lentamente — perguntamos a nós mesmos se você não os terá achado.

        —Onde?

        —Nas ruínas de Périac!

        Ela bateu palmas.

        —Bravo! Adivinharam! Pois bem, sim, Jorge Errington, de Londres, achei-os ao pé de uma árvore, debaixo de um montão de folhas secas e pedras. Foi lá que o marquês de Beaugreval, nosso digno antepassado, ocultou as notas de dinheiro e os seus títulos de seis por cento.

        Os dois outros primos haviam avançado. Marco Dario, que parecia muito agitado, disse-lhe gravemente:

        —Fale a sério, prima Dorotéia, rogamos-lhe, e não caçoe de nós. Devemos considerar os diamantes perdidos ou achados? É uma questão que tem grande importância para alguns de nós... para mim, confesso. Eu havia renunciado a esses diamantes. Mas de repente você nos deixa acreditar num milagre imprevisto... Foi assim?

        ?Por que esta suposição? — perguntou a jovem.

        —Em primeiro lugar, por causa desse dinheiro inesperado, que poderia atribuir-se à venda de um dos diamantes... E depois... e depois... é forçoso dizer, por nos parecer, afinal, impossível que a prima tenha abandonado a conquista desse tesouro. Como é que você, Dorotéia, após meses de combates e vitórias, no momento de atingir o alvo, resolve, de súbito, cruzar os braços?! Nem um esforço! Nem uma busca! Não, não, de sua parte, isto não é admissível.

        Ela os observava maliciosamente, ora um, ora outro.

        —De maneira que, segundo vocês, meus caros primos, terei praticado o duplo milagre de achar os diamantes, sem os procurar?

        —Você é capaz de tudo — declarou Webster alegremente.

        A Condessa reuniu-se a eles.

        —De tudo, sim, Dorotéia, de tudo, e vejo, pelo seu ar, que, ainda desta vez, se saiu bem.

        A jovem não disse que não. Sorria docemente. Estavam todos perto dela, curiosos ou ansiosos.

        —Você foi bem sucedida, não? — murmurou a fidalga.

        ?Fui, sim — anuiu Dorotéia.

        Ela fora bem sucedida! O problema insolúvel, tantas vezes virado e revirado em todos os sentidos, havia séculos, ela o resolvera, ela!

        -—Mas quando, em que momento? — exclamou Jorge Errington —. Você não se afastou de nós!

        —Oh! — redargüiu a jovem — isto vem de mais longe, da época da minha passagem pelo castelo de Roborey.

        —Hem! que está dizendo? — bradou o conde Otávio, estupefato.

        —Desde os primeiros minutos eu soube, pelo menos, qual a natureza do esconderijo que continha o tesouro.

        —Mas como?

        —Pela divisa.

        —Pela divisa?

        —É tão clara! tão clara que jamais compreendi a cegueira dos que procuraram, e eu acusava de ingenuidade aquele que, ocultando um tesouro, dava semelhante informação. Mas ele tinha razão, o marquês de Beaugreval! Podia escrever por todos os lados, no relógio do seu castelo, na cera dos seus selos, já que sua divisa está morta para seus descendentes!

        —Se você sabia, — objetou a Condessa — por que não agiu logo?

        —Eu conhecia a natureza do esconderijo, mas não a sua localização. Este indício, foi a medalha de ouro que me forneceu. Três horas depois da minha chegada às ruínas, estava ciente.

        Marco Dario repetiu diversas vezes:

        —"In robore fortuna... In robore fortuna..."

        E os outros pronunciavam as três palavras, como uma fórmula cabalística da qual bastasse o enunciado para produzir maravilhosos efeitos.

        —Marco Dario, — disse Dorotéia — sabe latim? E você, Errington? E você, Webster?

        —Suficientemente — respondeu Dario — para decifrar o sentido destas três palavras, o que não é grande esperteza. Fortuna significa mesmo fortuna...

        ? Nesta ocorrência, — comentou a moça — os diamantes...

        ?Tal qual, — concordou Dario, continuando sua tradução — os diamantes se encontram...   "in robore"...

        —Na fortaleza de alma — explicou Errington a rir.

        —No vigor, na força — aduziu Webster.

        —E é só isto que, para vocês três, significa a palavra "robore", ablativo do substantivo latino "robur"?

        —É sim, Deus do céu!—responderam os rapazes — ''Robur"...força...firmeza... energia...

        Ela deu de ombros com desdém.

        —Pois bem, eu, que sei mais ou menos tanto latim quanto vocês, mas que possuo a enorme vantagem de ser camponesa, eu, quando passeio pelo campo e distingo aquela variedade de carvalho, que em francês denominam "rouvre", quase sempre me ocorre que a velha palavra francesa "rouvre" é uma contração da latina "robur", que quer dizer força, e que, por isso mesmo, quer dizer também carvalho. E foi isso que, no dia 12 de julho, quando passei com vocês perto do carvalho que está colocado bem em evidência, ao centro da encruzilhada, no começo da alameda de carvalhos, foi isso que me levou, digo, a estabelecer a ligação entre essa árvore e o esconderijo, e a traduzir a indicação que nosso antepassado nos repetia infatigavelmente, da seguinte forma: "Escondi minha fortuna no interior do carvalho (rouvre)." Aí têm. Como vêem, é uma tolice.

        Pronunciada sua peroração, com encantadora alegria, Dorotéia calou-se. Os três rapazes a contemplavam, maravilhados e confusos. Seus olhos encantadores exprimiam a ingênua satisfação de surpreender seus amigos por aquela qualquer coisa de especial, aquela faculdade inexprimível que estava nela.

        —Você é diferente...—sussurrou Webster—você é de uma raça...de uma raça...De uma raça de bravos franceses, que possuem muito bom senso como todos os franceses.

        —Não, não, — disse Webster, incapaz de formular o pensamento que os constrangia, aos três — não...não... É outra coisa...

        Inclinou-se diante da jovem e roçou-lhe a mão com os lábios. Errington e Dario também se inclinaram, com o mesmo gesto respeitoso, ao passo que, para ocultar sua comoção, ela traduzia maquinalmente:

        ?"Fortuna", a fortuna..."in robore", no carvalho...e acrescentou: "No mais profundo do carvalho, no próprio coração do carvalho, pode dizer-se. Ele ainda apresentava, a metro e meio de altura, essa espécie de protuberância em forma de anel, aquela cicatriz que deixam as feridas feitas no cerne das árvores. E tive a intuição de que era esse o lugar onde deveria procurar, e que o marquês de Beaugreval lá metera os diamantes que reservava para sua segunda existência.

"Só restava tentar a prova. Foi o que fiz, durante as primeiras noites, enquanto meus três primos dormiam. Saint-Quentin e eu pusemos mãos à obra, tateando, manejando nossas verrumas, nossas serras, nossas puas. E uma noite, de chôfre, encontrei um obstáculo. Não me enganara. A abertura foi aumentada, uma a uma, tirei dali quatro bolas do tamanho de uma avelã. Bastou-me retirar-lhes a ganga de sujeira que os envolvia para pôr à mostra quatro diamantes.

        "Aqui estão três, o quarto se acha sob penhor em casa de “Maítre" Delarue, que com muita gentileza, mas após longas hesitações e minucioso exame pericial feito pelo seu joalheiro, consentiu em me emprestar até amanhã o dinheiro necessário."

        Deu a seus três amigos os três diamantes vermelhos de Gioconda, pedras magníficas, de igual tamanho, de proporções absolutamente extraordinárias, e talhados como se fazia outrora, com facetas opostas.

        Para Errington, Webster e Dario, foi uma coisa perturbadora manejá-los e admirá-los. Dois séculos antes, o marquês de Beaugreval, aquele estranho visionário, morto em conseqüência de seu sonho esplêndido de ressurreição, confiara-os à própria árvore sob a qual ia, sem dúvida, ler e repousar. Durante duzentos anos, a natureza prosseguira em sua obra lenta e ininterrupta, construindo muralhas e muralhas, cada vez mais espessas, em torno da pequenina prisão escolhida com tanta inteligência e sutileza. Durante duzentos anos, gerações e gerações haviam passado perto do tesouro fabuloso, procurando-o, talvez, em virtude de uma lenda confusa. E eis que, tendo descoberto o indecifrável segredo e penetrado até o mais misterioso e o mais tenebroso dos escrínios, a descendente bisneta do ancião lhes oferecia as pedras preciosas que seu antepassado trouxera das Índias.

        —Guardem-nas — disse ela — Três das famílias provenientes de três filhos do marquês viveram fora da França. É esta a parte que lhes toca. Os descendentes franceses do quarto filho partilharão entre si o quarto diamante.

        Mostrou-se muito surpreso o conde Otávio.

        —Que está dizendo? — perguntou.

        —Digo que somos três herdeiros franceses, o senhor, Raul e eu; que cada diamante, segundo a estimativa do joalheiro, vale diversos milhões, e que nossos direitos — os de nós três — são iguais.

        —Os meus são nulos — declarou o conde Otávio.

        —Como! — exclamou a jovem — somos solidários uns com os outros. Um pacto, uma promessa de partilha, o unia a meu pai e ao pai de Raul.

        —Pacto perempto!—bradou Raul Davernoie, por sua vez—Quanto a mim, nada aceito. O testamento de modo nenhum deixa lugar a discussões. Quatro medalhas, quatro diamantes. Nossos três primos e você, Dorotéia, são os únicos qualificados para receber as riquezas do marquês.

        Ela protestou energicamente:

        —Mas você também, Raul. Você também! Lutamos juntos. Seu avô era um descendente direto do marquês! Ele possuía o talismã da medalha!

        —Essa medalha não tinha o mínimo valor.

        —Como o sabe? Você nunca a teve em mãos.

        —Tive, sim.

        —Impossível. Não havia nada sobre o disco que eu pesquei na sua presença. Era simplesmente uma isca para atrair d'Estreicher. Então?

        —Então, quando voltou meu avô da viagem à ponta de Périac, onde você o encontrou com Julieta Azire, vi-o um dia a chorar no quintal. Olhava para uma medalha de ouro, que me deixou apanhar e examinar. Ela trazia todas as indicações que você pormenorizou. Mas as duas faces estavam barradas por uma cruz que, evidentemente, conforme você dizia, Dorotéia, tiravam-lhe todo valor.

        A rapariga parecia muito espantada com essa revelação, e respondeu em tom distraído:

        —Ah!... foi mesmo?... você viu?...

        Dirigiu-se para uma das janelas e lá se conservou durante alguns minutos com a testa apoiada à vidraça. Dissipavam-se os derradeiros véus que encobriam a aventura. Existiram, realmente, duas moedas de ouro. Uma, que era a falsa e pertencera a João de Argonne, fora roubada por d'Estreicher, capturada pelo pai da Raul, e enviada ao velho barão. A outra, a verdadeira, era a que pertencia ao velho barão, o qual, por prudência ou cupidez, nunca falara sobre ela ao filho nem ao neto. Enlouquecendo, e desapossado por sua vez do talismã que ocultara na coleira de seu cão, o velho barão saíra à conquista do tesouro com aquela outra medalha que havia confiado a Julieta Azire, e que d'Estreicher não pudera achar.

        Imediatamente entreviu Dorotéia todas as conseqüências decorrentes desta revelação. Apanhando na coleira a moeda de ouro que julgava sua, frustrara Raul da sua herança. De volta ao Manoir, e oferecendo a esmola ao filho do homem que fora cúmplice no homicídio de seu pai, imaginava ela cumprir um ato de generosidade e perdão, quando, simplesmente, restituía uma pequenina parte do que subtraíra.

        Conteve-se para guardar silêncio. Era preciso agir com precaução para que Raul não pudesse jamais suspeitar do crime de seu pai. Quando voltou da janela, para o centro da sala, dir-se-ia que lágrimas lhe molhavam os olhos. No entanto, sorria, e disse em tom despreocupado:

        — Para amanhã os negócios graves. Hoje, regozijemo-nos por estarmos reunidos e festejemos essa reunião. Você me convida para jantar, Raul? E a meus filhos também?

        Recuperara sua alegria. Correu até o grande portão do pomar e chamou os meninos que acorreram satisfeitos. O capitão jogou-se nos braços da Sra. de Chagny. Saint-Quentin beijou-lhe a mão. Notou-se que Castor e Pólux tinham o nariz inchado, sinal de alguma batalha recente.

        O jantar foi regado com cidra espumante e champanha. Durante o serão inteiro, mostrou-se Dorotéia exuberante e afetuosa para com todos. Sentia-se que estava feliz de viver.

        Recordou-lhe Arquibaldo Webster a sua promessa. Era no dia seguinte, primeiro de agosto, que ela deveria escolher entre os seus pretendentes.

        ?Ainda me comprometo a tal — afirmou Dorotéia.

        —Vai escolher entre os que se acham aqui? Porque suponho não ter sido nosso primo Raul o último que lançou a sua candidatura...

        —Entre os que estão aqui. E, como forçosamente só haverá um eleito, peço licença para beijar a todos esta noite mesma.

        Beijou os quatro rapazes, depois o conde e a Condessa, e por fim os quatro meninos.

        Só à meia-noite se separaram.

        No dia seguinte, pela manhã, Raul, Otávio de Chagny, sua mulher e os três estrangeiros tomavam o pequeno almoço na sala, quando um granjeiro trouxe uma carta.

        Raul olhou a letra e murmurou dolorosamente:

        —Ah! uma carta dela... Como da última vez...Partiu.

        Lembrava-se, tal como o conde e a Condessa, de sua partida de Roborey.

        Rasgou o invólucro e leu em voz alta:

        “Raul, meu amigo,

        Peço-lhe o obséquio de acreditar cegamente no que vou dizer-lhe e que me foi revelado por alguns fatos de que só ontem tive conhecimento.

        Ao me apresentar ao encontro marcado para 12 de julho, diante do relógio do castelo de La Roche-Périac, Raul, tomei o seu lugar sem o querer. O talismã que julgava provir de meu pai, pertencia a você.

        O que aqui escrevo não é uma suposição, mas uma certeza absoluta. Sei disto como sei que a luz existe, e se tenho razões profundas para não divulgar as provas do que ocorre, quero, no entanto, que você proceda e pense com a mesma convicção e a mesma serenidade que eu. Pela minha eterna salvação, eis a verdade. Errington, Webster, Dario e você, Raul, são os legítimos herdeiros do marquês de Beaugreval, designados pelo seu testamento. Por conseguinte, o quarto diamante é seu. Webster concordará em ir, amanhã mesmo, a Nantes, apresentar-se a "Maítre" Delarue, entregar-lhe um cheque de trezentos mil francos, e trazer-lhe de volta o diamante. Ao mesmo tempo que envio ao notório o recibo que ele assinara, remeto as instruções necessárias.

        Confesso-lhe, Raul, que ontem, senti um pouco de tristeza ao descobrir a verdade. Oh! não muita, apenas algumas lágrimas... Hoje, estou contente. Eu não gostava dessa fortuna. Não; vinha acompanhada de infâmias e horrores em demasia! Jamais poderia esquecer certas coisas... E depois... e depois, o dinheiro é uma cadeia e não quero viver encadeada...

        Raul, e vocês, meus três novos amigos, pediram-me, um pouco por gracejo, não? Que escolhesse um pretendente entre os que ontem se encontravam no Manoir. Poderei responder-lhes, mais ou menos da mesma forma, que está feita a minha escolha, que só me é possível dedicar-me ao mais novo dos meus quatro meninos, em primeiro lugar, e aos outros a seguir? Não me queiram mal, meus amigos. Até agora meu coração foi apenas um coração de mãe, e unicamente por eles pulsa de ternura, inquietação e amor. Que fariam se eu os deixasse? Que aconteceria a meu pobre Montfaucon? Eles precisam de mim, e da gostosa vida saudável que levamos juntos. Como essas crianças, sou uma nômade, uma artista errante. Não existe habitação que valha a nossa carriola. Deixem-me retomar a estrada real.

        E mais tarde, quando se passar algum tempo, encontremo-nos de novo, querem? Nossos primos de Cragny nos receberão em Roborey. Vamos marcar uma data. As festas do Natal e do Ano Bom ali, agrada-lhes?

        Adeus, meu amigo. Envio-lhe toda a minha férvida amizade. Algumas lágrimas também, as últimas... "In robore fortuna". A fortuna reside na força de caráter.

Abraço-os a todos.

DOROTÉIA.”

 

        À leitura desta carta seguiu-se um longo silêncio.

        Por fim, o conde Otávio falou:

        — Curiosa criatura...Quando se pensa que teve no bolso os quatro diamantes, isto é, dez ou doze milhões, e que lhe era tão fácil nada dizer e guardá-los...

        Mas os rapazes não comentaram essa reflexão. Para eles Dorotéia constituía a própria essência da felicidade, e a felicidade partia.

        Raul consultou o relógio, e a seguir fez sinal a todos para que o acompanhassem. Munido de um óculo de alcance, conduziu-os ao ponto mais alto dos cômodos que davam nome à propriedade — Manoir-au-Buttes.

        No horizonte, pela estrada branca que subia entre os prados, caminhava a carroça. Três meninos andavam ao lado de Zarolha, guiada por Saint-Quentin.

        Atrás, completamente só, Dorotéia, princesa de Argonne e dançarina de corda...

 

                                                                                Maurice Leblanc  

 

                      

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