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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A RONDA DA NOITE / Agustina Bessa Luis
A RONDA DA NOITE / Agustina Bessa Luis

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

Rembrandt, com as suas limitadas noções de cultura, pinta livremente, sem estar prisioneiro dos costumes e das ideias recebidas. E entra no carác­ter da época que desponta e que se tra­duz pela frase: O direito é a injustiça.

O princípio da autoridade entra em colapso, e quando Banning Cocq comanda a sua companhia não é obede­cido, porque toda a ditadura é uma lei e toda a lei é uma injustiça. A disciplina que a guerra pretende impor é uma farsa. Sucede-lhe a destruição criadora que nos séculos seguintes se irá afirmar, ainda que sob o aspecto duma desordem.

O princípio da autoridade, pregado desde os púlpitos políticos, guerrei­ros, partidários, quer ter alcance sobre todo o ensino oficial; sobre o estado militar, os laços conjugais, o prestígio paterno e a vida pública em geral.

Rembrandt pinta, Martinho decifra. A Ronda da Noite é um fenómeno mundial, ao mesmo tempo um apoca­lipse e uma intervenção genial em que a cultura se inventa, se precipita, se nega e reflecte a destruição criadora. Tão visível e perturbadora na Ronda da Noite. Como o leitor sabe: porque o turbilhão de nuvens e de clarões já começou.

 

 

 

 

                                 CAPÍTULO I

               DIA DE FINADOS

Naquele ano coube a Martinho Dias Nabasco acompanhar o que restava duma família numerosa e abastada, ao cemitério da terra natal. Ainda havia muitos descendentes no estrangeiro, mas a casa em que se reuniam objectos e memórias mais presentes estava praticamente desabitada. Com o mau humor que caracteriza os jovens ao ter que proteger publicamente os velhos, Martinho deu a mão à avó para ela não tropeçar nos seixos levantados da calçada. Um mar de automóveis cobria a estrada. Uns em movimento, outros procurando um lugar mesmo diante dos portões e entradas que prometiam não ser frequentadas na manhã austera de Finados, as carrocerias brilhavam ao sol aberto. O cemitério, que Martinho conhecera ainda meio rural, com alguns jazigos de capela elevando-se sobre as campas de terra, alargara-se, apinhado de sepulturas recentes; os mármores e o granito polido davam ao campo-santo um aspecto de cozinhas bem arrumadas, alegradas por braçadas de flores. Entre a massa de crisântemos, despontavam orquídeas claras. Era um luxo, uma glória prestados aos mortos. E que mortos! Martinho admirava os rostos patéticos em caixilhos dourados e as letras também douradas nas lápides novas em folha.

- Parece que morreram todos ao mesmo tempo - disse, ainda a segurar a mão da avó, fria e de dedos esqueléticos e bonitos.

- Tem compostura e sobretudo não me faças rir.

- Eu? A avó é que se ri de tudo sem compaixão. Sabe bem que sim. Como o nosso jazigo está estragado! Mas tem dignidade assim como está. - O fio da sua camisola pegou-se à balaustrada do jazigo que fora inovador no seu tempo. Era cercado por troncos fingidos de cimento, o que na época devia representar o máximo, se não de bom gosto, pelo menos de ousadia. Começava a época do betão, e o velho engenheiro, de quem Martinho mal sabia o nome, deixava ali a sua marca desafiadora. Era avô do avô, o que para Martinho vinha a dar um parentesco distante e labiríntico. Pelos retratos, via-se que era um homem elegante, no seu fato de pied-de-poule cinzento e a barba que provavelmente lhe escondia o queixo fraco. O mesmo que Martinho herdara, um pouco fugidio, o que fazia sobressair o nariz avançado e estreito. Um nariz de judeu, e está tudo dito.

Não deixava por isso de ser bonito, o jovem Martinho. Era doce como o açúcar quando queria e paciente como Cristo. Se bem que, também como Cristo, tivesse súbitas cóleras que só a avó compreendia.

- Isto vai passar. É um homem e os homens são imprevisíveis - dizia ela à mãe de Martinho, a sua filha Paula, uma morena de olhos soberbos, quase verdes, e que não tinham perdido ainda o brilho. A avó passara o cabo dos cinquenta anos com alguma dificuldade, e um fibroma que se desenvolvera nessa idade diminuía-a a ponto de a pôr nervosa e pronta a desfazer-se em lágrimas. Consultou em Paris um médico velho e compassivo; passou-lhe uma receita que ela aviou Praça da Ópera, indo depois comer ostras entre desenganada e ligeira de sentimentos. Como Proust, Martinho Dias Nabasco crescera entre duas mulheres que o amavam. Era um amor sujeito a mudanças, como tudo na vida.

Nesse ano, Paula Nabasco demorou mais tempo as férias em Biarritz e não pôde ir florir a campa dos mortos, cada vez mais distante na província que fora o berço dos Nabasco e que se urbanizara até ficar irreconhecível. O que ligava Paula a Biarritz era uma velha história de família; o exílio dos Nabasco nos tempos da República e também a fortuna de que dispunham para se fazerem respeitar sem se olhar ao nome ou à origem. Duma irmandade de muitos irmãos, que mais parecia convento do que lar de proporções normais, os Nabasco tinham-se corrompido a ter poucos filhos, depois da guerra de 14, quando a vida se tornou bizarra e divertida. Ter só um filho ou um "casalinho" tornou-se um capricho da burguesia bem nascida. O tempo do avô Nabasco, o do jazigo em betão armado, fora o último da procriação natural sem o recurso ao preservativo e ao coito interrompido. Teve nove filhos, dos quais três eram deficientes mentais, de instintos matreiros e pirómanos, e assim por diante.

Mas Maria Rosa Nabasco, a avó de Martinho, limitou-se a dar à luz um rapaz e uma rapariga a quem pôs o nome de Paula, nome que ainda não existia na família e que ela, a avó, achava indispensável numa genealogia católica. S. Paulo era, entre outros, o seu amigo preferido por razões que ela dificilmente abordava mas que não eram as mais canónicas.

Até aos nove anos, Martinho Nabasco esteve convencido que o mundo era partilhado por pessoas inteligentes, inventivas e criadoras. Quando se apercebeu que havia muita gente "parada", como a avó Maria Rosa dizia, isso perturbou-o. Numa família em que até os

deficientes mentais eram bem servidos de massa cinzenta que dava origem a anedotas, ditos de espírito e calembures geniais, o facto de se perceber que aquilo não era tudo e que podia haver verdadeiras hordas de brutos e de melancólicos activos e passivos, teve grande efeito em Martinho. Até os Cunhas, que eram por tradição criados dos Nabasco, constituíam uma elite de gente apurada de gostos e de entendimento. Os Cunhas eram sete irmãos e uma irmã chamada Ana. Muito feia, ao contrário dos outros, que eram elegantes e bonitos rapazes, ela detinha o espírito mais elevado e a graça correspondente. Nunca casou e Maria Rosa chamava-a muitas vezes para lhe alegrar o coração, que era dado a súbitas apreensões, como o rei David.

- Acho que somos parentes. Também eu gosto de música como remédio e não como prazer - dizia. Os Cunhas eram bons tocadores de viola e cavaquinho, sabiam cantigas completamente graciosas e cozinhavam muito bem. Durante duas gerações foram presentes na casa dos Nabasco e contribuíram para a felicidade dos dias que nem sempre eram de aproveitar.

Atrás de Maria Rosa e do neto Martinho ia uma herdeira dos Cunhas e que carregava as flores do dia de finados. Simples crisântemos, novelo, brancos e redondos como nuvens brancas e redondas. A Elisa era uma mulher robusta que vestia um uniforme azul-marinho, ou o que ela fazia parecer um uniforme, com colarinho e um gilet cizento a completar. O efeito era sóbrio mas parecia uma extravagância numa época em que os costumes eram ditados pelos espaços de pronto-a-vestir. Ela orgulhava-se de não se converter aos jeans, se bem que ao preferir as saias de pregas estava a valorizar o porte de matrona.

- Ainda havemos de ver o dia em que os homens usem saias. São mais cómodas e mais arejadas - dizia. Estabeleciam-se grandes discussões em volta de questões pequenas, e aquilo despertava o espírito e tornava-o incandescente. Na hora perto do jantar, quando se entrava na cozinha para destapar as panelas e provar os molhos, acontecia aquela variada conversa sobre palavras, hábitos e o que os explicava. Martinho já não conhecera a casa da Rua de Belomonte que tinha a cozinha e a sala de jantar no terceiro andar voltado ao rio. Ao que parecia, era uma casa mítica. Às seis horas da tarde abria-se a porta do quintal aos cães e eles subiam pelas escadas como um esquadrão da guarda. Iam para a cozinha, derrubando cadeiras, abanando as caudas como chicotes. Ganindo de alegria. Eram cães de caça; e embora não houvesse mais caçadores em casa, alimentava-se essa tradição com os setters bonitos, cor de fogo cujo pêlo luzia ao lume do fogão de lenha. Porque até muito tarde se cozinhava a lenha e se usava a lenha para os fogões de sala. Ouvia-se o crepitar das achas secas como um ruído de bom augúrio na manhã enevoada. O rio tinha ainda humores de estação, crescia no Inverno e acumulava nas margens laranjas e traves partidas; e algum cabrito morto vinha na corrente, rápido na flor das ondas já invadidas pelo mar aberto. Tudo isso Martinho não tinha conhecido. Nem a mãe dele, Paula, que se distinguia por ser dessas mulheres enclausuradas ainda, e que aprendem equitação para o caso de ir viver em grande estilo com um senhor das lezírias ou com um lorde inglês. Imaginações que se desvaneciam ao primeiro baile de debutantes, já em declínio mas ainda consultoria de casamentos.

Martinho apertou, sem querer, o braço da avó ao ter diante dos olhos a pesada pedra do túmulo. Era de facto terrível, com as argolas de ferro enferrujadas e o musgo negro que a cobria. "Não vou deixar que a metam aqui" - pensou, desolado. E um toque de pó-de-arroz na face dela, junto à orelha esquerda, enterneceu-o como o rasto duma mulher bonita.

"Até ao fim somos amantes uns dos outros" - pensou, triste. A educação de mulheres dera-lhe um descaramento ritual, sem nada de perverso, só amadurecido pela reflexão.

Deteve-se a olhar para as campas cobertas de inscrições saudosas, de flores caras, de candeeiros vermelhos dentro dos quais uma chama curta ia sucumbindo. A morte tinha-se tornado uma vaidade mais, uma festa de anos em que só faltava o "parabéns a você" mas não a mesa abundante.

- Tem frio, avó? - perguntou.

- Não, só um pouco de fome. Mas, espera: não é fome, talvez não seja. A morte é excitante. Esta gente toda vai comer demais e enrolar-se na cama com peúgas e tudo. Não se devem frequentar lugares destes na minha idade. São lúbricos e quase mal afamados.

Um dente dela abanava quando ela falava, e Martinho podia distinguir um ligeiro ciciar da voz que dantes não tinha. "Pronto, a velhice está a bater-lhe à porta. Não vamos pensar nisso, não quero pensar nisso. Pronto, acabou, pensamentos vagabundos!" Beijou-a, a rir-se, e notou que os cabelos dela tinham um cheiro de ferro frisado.

Os cabelos. De repente as mulheres puseram-se a usar franja e Nietzsche disse que era para esconder a testa e o que ela presume: inteligência, independência de vida, sexo, gerência dos negócios e outras coisas. Por mais que olhasse para todos os lados, as mulheres não pareciam diferentes. Quer dizer: talvez se adaptassem com mais dificuldade a um destino de donas de casa e mães de cinco filhos ranhosos e impertinentes. A verdade estava à vista, a crueldade era uma forma de razão prática, mas isso sempre existira entre as mulheres e os homens também. Só uma educação muito rígida as controlava. Casavam-se por amor, mas o amor incluía tudo o que se pode imaginar como na história do Humpty Dumpty. Cascas de ostras e peles de raposa ou daquelas águas de Colónia estafadas cujos frascos eram sempre uma ralação pois não pertenciam a nenhum lugar: nem ao lixo nem a uma colecção, nem para encher outra vez. Paula Nabasco disse que outra vez que lhe dessem um frasco desses o mandava de volta de presente para outra pessoa.

- Eu só gosto de lavanda. Mas quando fiquei grávida do Martinho enjoei a lavanda e nunca mais a pude suportar. Isto deve ter um sentido, não sei.

Paula penteava os compridos cabelos pretos. Tão pretos quanto podiam ser, com reflexos metálicos. Há coisas que se lêem nos livros mas que, nem por isso, deixam de ser assim. Negro asa de corvo existia. Eram os cabelos de Paula.

"Aí está uma coisa que não se desfaz depressa. O cabelo" - pensou Martinho. Pôs-se a olhar para a cabeça das pessoas que enchiam o cemitério e ficou desconcertado. Pareciam todas como as dos condenados à guilhotina ou ao machado, pontas cortadas ao acaso segundo o critério do barbeiro da prisão. Os pensamentos dele voaram noutra direcção, conduzidos por uma curiosidade que o fazia memorizar os momentos menos interessantes da vida. Coisas de que ninguém se lembrava saíam da memória como ratos dum queijo gigantesco. Era uma ideia tola mas divertida como as crianças costumam gostar.

A avó apoiou-se ao gradeamento da campa e ficou um instante recolhida depois de fazer o sinal da cruz. Martinho tomou um ar compungido, se bem que com a avó não se podia ter a certeza de nada. Decerto estava a pensar em coisas com-pletamente alheias à ocasião e que tinham que ver com necessidades básicas, pequenas compras ou contactos com as amigas. Tinha poucas, grande parte delas tinham morrido, o que a não a afectara muito. Os velhos são para morrer e as capoeiras devem ser remoçadas, com o cacarejo alegre das novas frangas. Sempre o galo de plumas ruivas e brilhantes a fazia rir.

- Parece um mosqueteiro com esporas e tudo! - Ela ajuntou as pregas do vestido e endireitou-se como se lhe fossem tirar uma fotografia. Odiava que a fotografassem. Tinha, como muitos povos antigos, um receio de que a fotografia lhe levasse a alma, o que não deixava de ter algum fundamento. Martinho pensou que ela tinha a pose perfeita para ser retratada, tendo aos pés, até à cintura, a massa de crisântemos brancos e enormes. Era uma mulher linda, mais ainda do que fora em nova. Paula tinha muitos ciúmes dela, passara o tempo a imitá-la, rastejando em volta dela como um cãozinho que implorasse carinhos. A avó era parca em beijos e afagos. - "Dão-me volta ao estômago, as crianças felizes dispensam-nos muito bem" - dizia.

Cabelos pretos. A primeira vez que Martinho verificou o indestrutível dos cabelos foi quando abriram o túmulo de Patrícia Xavier para procederem a reparações de alvenaria. Os cabelos estavam intactos. Enrolados debaixo da cabeça reduzida a caveira completamente descarnada, pareciam uma almofada. Martinho estava presente porque o jazigo pertencia aos Nabasco e, por deferência, estando o túmulo dos Xavier ocupado pelos sucessivos mortos desta família, Patrícia ficou sepultada numa antiga capela do cemitério da Lapa, duas vezes assaltada depois da Revolução dos Cravos. Tinha as proporções majestosas dum andar de boa área, um T1, digamos assim. Velhas rendas pingavam do altar, donde os candelabros de prata tinham sido roubados; e, por terra, jaziam alfaias do culto, o suporte do Evangelho e umas galhetas com borras de vinagre. O lampadário, que viera de Veneza, também faltava. O ar era húmido, havia infiltrações e os ratos tinham roído papéis, talvez pagelas com a vida dos santos ou restos de bouquets amarrotados como lixo e deixados a um canto. E os cabelos. Espessos, abundantes, como tantas vezes Martinho vira em Patrícia. Ela ia jogar bridge com Maria Rosa Nabasco, às quartas-feiras. Ao todo, quatro mulheres vestidas a rigor e que calçavam luvas de suède e tomavam chá na confeitaria Oliveira, uma vez por outra, quando saíam para compras. Eram mulheres em que se sentiam os hábitos caros, que não perguntavam o preço das coisas, que se limitavam a "mandar a casa". Não estavam dependentes do orçamento e, praticamente, eram seguras do marido que tinham e da modista que as vestia. O género de mulheres de que Maria Rosa Nabasco era a última, como relíquia dum tempo acabado, tempo de privilégios que tinham a sua moda, como os chapéus e as receitas de pastelaria e os pudins sem um pó de farinha.

Patrícia Xavier fora a primeira "a faltar", como se dizia. Era alta, sempre bem calçada e com meias tão finas que era preciso vesti-las com luvas, como se recomendava sempre na embalagem de origem. Não se podia imaginar que ela morrera dum aborto mal sucedido, mas foi assim. O espanto varrera as salas descobrindo o segredo mais do que era permitido. Mas, para Paula, que tinha doze anos, aquilo ficou encoberto e ela não sofreu nenhum prejuízo no seu Natal em que tudo correu normalmente; sem faltarem os presentes de Patrícia Xavier, coisas de preço como era costume ela dar, caxemiras e estojos para as unhas de pele de qualquer bicho raro, ventre de aligator ou assim.

Patrícia foi sepultada na capela dos Nabasco, não porque não houvesse lugar no jazigo de família dela, mas porque se levantou uma resistência muito dura devido às causas da morte. Um aborto não era tão extraordinário e sobretudo depois dos quarenta anos as mulheres recorriam aos médicos para se recomporem dum acidente que, na verdade, tinham previsto mas não acautelado. Patrícia disse apenas a Maria Rosa o que tencionava fazer.

- O Rogério Conceição, em oito segundos, resolve isto. Oito segundos é o recorde dele.

Maria Rosa olhou para ela com inquietação. Não a censurava, mas tudo aquilo lhe parecia parte duma maldição que pesava sobre as mulheres. Alguém lhe tinha dito que o mundo só tinha salvação quando as mulheres deixassem de ter filhos e os sexos fossem um só. Era inconcebível, mas talvez se chegasse lá um dia.

- Onde ouviste isso? - disse Patrícia. Aquilo parecia-lhe um atentado à sua dignidade, embora ela visse, nesse momento, a sua dignidade bastante comprometida.

- Não sei.

- Comigo não faças mistérios.

- Não faço mistérios, não sou pessoa para isso. Foi uma coisa que li.

- O que andas tu a ler, menina? Depois da Lady Chaterley julguei que já tinhas lido tudo. E agora vens-me com essa do sexo único. Fazes ideia do que estás a dizer?

- Faço. Já não te metias em sarilhos nem ias parar a uma clínica onde te remexem nas entranhas como se estivessem a abrir um cofre em oito segundos! Já é ser perito de arrombamento! Fazes-me rir e chorar ao mesmo tempo.

- Tu nunca choras, Maria Rosa.

- Às vezes. Chorei um dia, quando tinha quatro anos e me cortaram o cabelo à rapaz. Dei gritos tamanhos que até se ouviram nos vizinhos. E não era pequena distância; nós vivíamos num chalé dentro dum jardim grande.

- Não querias parecer um rapaz.

- Não sei. Era uma grande pena. Nunca me senti tão infeliz depois disso. Às vezes pensava no que me fez chorar tanto e não encontro o motivo. Morreu-me um filho em pequenino mas não é a mesma coisa. Estás certa que sermos mulheres é a origem de todo o mal? O desejo dos homens, o prazer com que convencem o desejo, são coisas horríveis, se lhes pintarmos toda a sorte de maldades que são o excitante necessário. Já agora que falaste de Lady Chaterley, essa mulher tremenda e sem compaixão. Sem compaixão, o sexo é uma batalha vulgar, um crime como não há outro igual.

- Deixas-me arrasada. Agora não sei se hei-de fazer o aborto ou não. Dizes bem: aquele burro do Lawrence não percebeu nada das mulheres. Ou só percebeu o que era para perceber por ele próprio. Não houve o primeiro Adão mas a primeira Eva. Dá-me mais uma pinga de chá. Onde compras o chá? A mamã comprava-o numa loja de modas, era chique. Nunca percebi a diferença do que é chique e do que não é chique. Disse-me o Mariano, que é professor na Universidade: "Porque é que o amarelo não há-de dizer com o rosa?" Depois as cores psicadélicas ficaram na moda. É uma questão de votos e não de gostos? O que é que faz o voto?

- Tem pena de mim. Choveu todo o dia e a chauffage avariou. O voto é uma inveja compulsiva, aí tens.

Passados dias Patrícia Xavier morreu e aquilo entendeu-se como um desastre. Os médicos calaram-se no diagnóstico, o que levantou mais suspeitas, tanto mais que ela tinha recorrido a uma parteira e não teve a assistência do tal experiente arrombador de cofres. Maria Rosa afastou do espírito a ideia de que a amiga se achara invulnerável e que não era possível acontecer-lhe nada. Não viu o perigo, quando o perigo nos rodeia por toda a parte e não nos dá tréguas. Há quinhentos milhões de anos éramos mais espertos, quer dizer, o crocodilo dos pântanos com o seu olho que não se sabe se está a dormir ou acordado. Talvez não dormisse nunca e os seus quatro comandos cerebrais estivessem sempre alerta. Sendo assim, não nos temos aperfeiçoado, mas sim a natureza cometeu erros uns atrás dos outros. Que vida! Patrícia Xavier ia impecavelmente penteada quando foi para o caixão; e parecia bem, que era o que ela mais desejava.

O velho "pardieiro" dos Nabasco, como lhe chamava o doutor Horácio Assis, merecia agora o nome. O estradão que lhe dava acesso a cavalo tinha sofrido derrocadas tais que era um perigo frequentá-lo. Diferente das outras propriedades cuja casa se encontrava a meia-encosta, aquela fazia-se notar porque se erguia no cimo duma colina. A cor amarela, na tradição vienense, tinha desbotado a ponto de parecer parda. Rodeava-a uma série de planos que iam até um pátio que justificava em tempos a entrada principal e que guardava a beleza primitiva, húmida, musgosa e tranquila. E dentro, como acomodações, havia três salas consecutivas com retratos de família e canapés de jacarandá. O mais estranho era uma cópia nas dimensões naturais da Ronda da Noite de Rembrandt. Ocupava toda uma parede da sala de jantar, e os pés do capitão Banning Cocq e do seu lugar-tenente tocavam o chão. Para prevenir qualquer avaria, um dos famosos canapés protegia a parte baixa do quadro. O que durante os anos de infância de Martinho, lhe causava terror e curiosidade.

Os Nabasco viveram sempre de heranças, de pecúlios de tios e tias, da chegada de arcas com enxovais intactos, de loiças, livros e mais retratos de damas rígidas e feíssimas. Nos Nabasco a beleza chegou tarde com os casamentos que já não eram com primas, mas bonitas passeantes de Carreiros, na Foz do Douro. Dantes, o casamento planeava-se desde o berço; depois passou a ser mais inspirado e insubmisso.

Justamente Maria Rosa pertencia a essa nova era dum após-guerra em que a Europa, ao recompor-se dos seus desastres, produzira um prodígio de cultura, a cultura de imitação. Era bonita, fazia ginástica e punha de parte o "bordado a cheio" e os romances de Delly. Além disso, convertera-se a uma religião a que chamava personalidade.

Com isso da "personalidade", Patrícia Xavier, com quarenta anos feitos, faleceu de processo abortivo como uma personagem de Stefan Zweig. Era mais nova que Maria Rosa seis anos, que tinha já um neto que falava e andava, Martinho Dias Nabasco.

O Outono tinha feito a sua aparição e, entre nuvens ligeiras, um sol derretia o gel dos cabelos. Quase todos, rapazes sobretudo, usavam um gel que lhes espetava o cabelo como pregos e isso dava-lhes um ar marginal como eles queriam. Martinho continuava a segurar a avó pela cintura, o que o obrigava a torcer-se um pouco. Todas as vezes que ela falava inclinava-se para a ouvir, embora não fosse preciso. Era um tique que impunha submissão fazendo-a levantar o rosto para lhe chegar ao ouvido.

- Como estás surdo, Marto! Na nossa família fica-se surdo muito cedo.

- Não estou nada surdo. E se estivesse não é vergonha nenhuma.

- Não era para Beethoven, mas nem todos são como ele. Em ti não passava dum defeito físico, quando nele era outra coisa.

- Outra coisa, o quê?

- Um aviso, não sei. Conheces aquilo de Deus que o marcou alguma coisa lhe encontrou?!

- Não conheço. Por favor não meta os pés na água. Olhe esse degrau.

- Ele era mau, como todos os músicos. Esta cancela tem que ser arranjada. Alguém tem que arranjar isto.

- É um trabalho difícil - disse Elisa, a sacudir de cima dela os restos das flores.

- Difícil, como? Temos que o pagar até que pareça fácil. É o único meio. Onde está ele? Martinho! - A voz tomava um acento desesperado quando o chamava. Como se ele tivesse morrido e ela não o soubesse ainda; quando já todos estivessem informados e preparassem o luto. Não como dantes, as tarjas de lã preta no braço ou na lapela, o fumo no chapéu. Sabia-se como se dirigir a uma pessoa assim; com alguma cerimónia, descia-se do passeio para ela passar, levantava-se alto o guarda-chuva para lhe dar lugar à direita. Um rápido esboço de dó no pregar dos lábios e ele ou ela, lá iam, com a troca dum cumprimento mais quente. Dizia-se, ao falar do morto: "que Deus tenha, que Deus guarde..." Ou então, como na gente dos Cunhas que eram, com toda a certeza, cristãos-novos: "Deus o tenha na sua santa guarda". Conheciam-se os conversos pela sua rigorosa presença nos sacramentos. Ajudavam à missa, tocavam na igreja. Um olhar em que nadava um certo abandono da verdade, fazia-os diferentes. Os Cunhas eram diferentes, diga-se o que se disser. Olhem para Elisa (o pai dela chamava-se Eliseu e o último filho, o sétimo, era Adão para não "correr o fado" e não ter natureza de lobisomem). Tem graça que até Maria Rosa Nabasco acreditava nisso. Se alguém esperasse o amaldiçoado, numa encruzilhada, à meia-noite, e lhe fizesse sangue, o mau encanto acabava. Para tudo há uma solução, era o que aquilo queria dizer. Viu Martinho que andava longe a ler as lápides e investigar o nome dos antigos ali sepultados. Vizinhos e parentes, reduzidos a um feixe de ossos no melhor dos casos; porque de tempos a tempos, por razões de limpeza ou de obras, tudo era varrido para a vala comum, pesquisando-se o ouro das próteses dentárias, uma renda para o coveiro, que lhe aproveitasse. Porque coveiro e carrasco são afinidades negras.

Martinho não se lembrava de ninguém. Velhos lavradores e os filhos deles, com os anos de opulência marcados nas mãos brancas de unhas com estrias, ainda ele vira na casa do avô Nabasco. Mas do bisavô Nabasco, nem sombras. O primeiro homem que estudara na família fora um dos rapazes que fora para Coimbra cursar Direito; e depois disso não fez mais nada na vida, que os Nabasco não eram para trabalhar, para isso havia criados, caseiros, hortelãos, rapazes que até aos dez anos pediam esmola e depois se empregavam nos armazéns e nas terras, a colher azeitona. Alguns faziam um ofício de faz-tudo. Acompanhando caçadores, limpando o calçado, a fazer recados e a mandriar o mais que podiam. Entre eles e os filhos da casa fazia-se uma amizade que durava uma vida. Eram alcoviteiros fiéis, carregavam segredos com austeridade do coração mas não lealdade absoluta. Mentiam muito e eram mal agradecidos. Ser pobre era um ofício que às vezes compensava.

Martinho não teve desses contratos de convivência em que cabia tudo, a cólera, a vingança e a dedicação pura e clara. Era o mais urbano da casa, fez Filosofia e Letras, passava um Verão inteiro a ler o século dezassete francês e inglês. Foi uma espécie de órfão por vocação, porque quando o pai morreu ele sentiu um pouco de alívio; e quando mãe, Paula, casou outra vez, com um oficial da Marinha, ele agradeceu ficar com a avó para sempre. Como se ela fosse imortal, destinada a uma vida faraónica e substancial, rodeada de objectos de toilette e vestidos caros, como ela gostava tanto na vida como na morte.

Muitas vezes, Martinho surpreendia os olhos dela banhados de lágrimas. Não chegavam a correr, pareciam fazer parte daquele azul-pardo das pupilas. Mas eram lágrimas que lhe eram destinadas, a ele, Martinho Nabasco. Envergonhava-se de a preocupar; e assim, voltou para trás, deixando a leitura da inscrições lapidares e saltando uma ou outra campa escurecida pela chuva.

- Vamos embora - disse Maria Rosa. Era ainda uma mulher alta nos seus sapatos rasos que, no Verão, eram sempre ténis brancos. Tinha a elegância das proporções e aliava o desdém à mais fina escolha dos pormenores. Surpreendia sempre, com os seus ombros largos e as écharpes compridas como quedas de água. Martinho quase a abraçou para a conduzir ao carro; e Elisa, que guiava e não ele, fez-se esperar um pouco porque ela tinha orgulho na arte de se fazer indispensável. Fingia sempre contratempos vários. Ora dizia faltar a gasolina, ora pressagiava tempestade ou censurava o trânsito, o tempo, as estradas, carregando de impropérios os que mandam. Havia uma certa felicidade nessa soltura de humor descontente. E Maria Rosa deixava-a falar.

- Ela gosta do delito dos outros. Enfraquece os dela.

- Que paciência a tua, avó! O que eu acho é que ela é malcriada, rabujenta e intratável. Merecia ser Messalina ou Agripina ou outra como elas.

- Deixa-a lá, que tem doença que chegue.

- Doença? Que doença?

- Coisas da bílis negra, como dizia o Hipócrates. Pode dar em cancro, entendes?

- Bá! Nunca se sabe quando estás a falar a sério ou a brincar.

No outro dia ainda foram ao cemitério da Lapa onde estava a gente do Porto, ou parte dela. Também estava lá uma criada, a Dores, que foi casada e se separou por não se adaptar a espaços pequenos. Em geral, os homens não gostavam das criadas de ricos para casar. Eram dissipadoras e gastavam demais; propensas à boa cozinha e aos costumes fidalgos, davam esmolas acima das posses que tinham e eram orgulhosas para com os vizinhos.

- Não é por nada mas não me dou com maltrapilhos - diziam alto, para que as ouvissem. O marido batia-lhes.

Se para alguma coisa Maria Rosa tinha boa memória era para as empregadas que tinham servido os Nabasco. De solteira, de casada e já no estado em que estava, o de viuvez. "O estado natural da mulher", como dizia Mat, ou Mateus, um escritor dotado e com algumas luzes de História. Era familiar dos Nabasco, um primo talvez, e dava pistas para as conversas de domingo. Ao domingo (aquilo era muito antigo) os almoços prolongavam-se até às cinco da tarde; se Maria Rosa se esquecia que devia levantar-se primeiro, ninguém se mexia, e os jarrões da China, aos quatro cantos da sala, pareciam convivas empanturrados de dobrada com feijão branco ou carne assada para quem queria outra coisa. Eram almoços abundantes, com muito açúcar e bebidas fortes. Só mais tarde é que se serviu coca-cola, que tinha os seus adeptos porque "limpava os canos". As criadas já não acabavam o resto dos copos nem eram gulosas como dantes. Faziam dietas e sabiam muito de cremes faciais e de fibras, que comiam ao pequeno-almoço, em vez das tigelas de café com sopas de pão fresco. Às vezes, o duro era para os patrões, salpicado de água e metido no micro-ondas.

— Sabem porque as mulheres eram gulosas dantes? - dizia Mat, segurando com força os braços da cadeira como se fosse lançar-se à água. - Porque eram tratadas como os cães da tribo e só lhes tocavam os ossos. Habituaram-se a roubar comida para elas e para os filhos esfomeados. Mesmo estando saciadas roubavam sempre, como Yolanda, que tinha debaixo da cama uma mala com provisões, como os antigos seminaristas.

- Não acredito - disse Maria Rosa, franzindo os olhos para evitar o fumo do cigarro. Fumava durante o dia todo, esmagando o resto mal ardido no cinzeiro. - Não gosto que se fale dos criados como se fossem cegos e surdos. Eles têm o ouvido muito apurado e também sabem ler nos olhos, como eu os ensino. Um piscar é para não servir mais vinho; dois pestanejos é para trazer água com gás para limpar uma nódoa. Não se imagina como os homens sujam as gravatas com salpicos da salada.

- Sempre os homens! - E Mat, com uma cabeça poderosa e olhos de pastor, pequeninos e metidos nas órbitas, decerto de vigiar o rebanho, dava-se muito ares de proletário rico; tinha muitos filhos por fora e dinheiro em quantidade suficiente para ser avaro. Havia um parentesco qualquer com os Nabasco que ele, de vez em quando, fazia entrar nos seus romances. Esteve muito tempo apaixonado por Paula e ela chamava-lhe o matricida porque estava convencido que só Maria Rosa se opunha aos seus amores.

- Eu não me oponho a nada - disse ela -, é o estilo Lao Tzé, ou coisa que o valha. Vencer cedendo, cansar o inimigo sem lhe dar luta. Isto dito assim à mesa de jantar é um bocado indigesto. - O Nabasco, que depois morreu dum enfarte, bateu no copo com a colher do café e todos pensaram que ele pedia silêncio e que ia falar. Era o dia de finados ao almoço e comiam rojões com sangue. Coisa que Martinho achava absolutamente primitivo e alvar.

- Não me posso lembrar que estou a comer um animal doméstico, quase uma pessoa de família. - Alguém fora para o piano e improvisara um concerto de jazz não sem algum talento. Toda a gente tocava alguma coisa um pouco acima do amadorismo. Os Nabasco não suportavam amadores, fosse na arte, fosse nos negócios ou na política. Mas o país estava caído na rede larga dos amadores que navegavam pela internet moldando o perfil com os resíduos do espírito passado.

Durante três dias, todos os anos, honravam os mortos da família com visitas às campas que estavam meio ao abandono durante o resto do tempo. Eram três jazigos de dimensões não colossais mas mesmo assim do tipo mausoléu. O do Porto era o maior, uma capela onde se podia celebrar missa e que tinha dentro espaço para seis ou sete pessoas e genuflexórios forrados de veludo carmesim. Os ratos deram em roer uma parte, decerto tentados pelos pingos de cera. Os candelabros de prata, como já disse, tinham sido roubados, e o lampadário, também de prata, caíra do tecto, provavelmente devido a infiltrações da chuva. Maria Rosa sentou-se, verificando antes se o assento oferecia segurança.

- Já não sei muito bem quem está aqui. Mexeram com isto, faz alguns anos, porque apareceu um caixão deslocado e disseram que tinham metido nele uma pessoa viva. Não acredito. Foram só os gases que explodiram.

- O barulho devia ter acordado os mortos - disse Martinho. E Elisa olhou para ele, marcando o silêncio como uma reprovação. O culto dos defuntos era para ela sagrado e acreditava na ressurreição da carne no dia do Juízo Final. Entornou deliberadamente a água da limpeza a ponto de a fazer chegar aos pés de Martinho.

- Saia lá para fora que me está a estorvar. - Parecia um anjo da vingança com o seu fato preto até às orelhas, donde tirara os brincos de ouro. Era o único dia do ano em que se separava dos brincos. Martinho obedeceu-lhe, um pouco envergonhado. Era dado a um espírito ligeiro e não deixava escapar a ocasião para um dito vivo. A avó dizia que por aí se conhecia o mau carácter que ele tinha. Mau carácter no sentido de fazer mal a alguém, atraiçoar um amigo ou viciar um testamento. Coisas dessas a que a família era sujeita como a uma doença de pele. Se a expressão "em bom pano cai a nódoa" tinha aplicação, era nos Nabasco, burgueses de quatro gerações que foram acumulando bens e também foram merecendo a confiança da cidade para quem o dinheiro não suja as mãos nem corrompe a memória.

No entanto, Maria Rosa punha de parte o velho Nabasco fazedor de fortunas, ríspido como tudo, intransigente, perfeccionista. Depois dele fora o dilúvio dos decadentes, amigos mas não sedentos de mulheres e com o gosto pelas viagens. As letras entraram na família pela porta grande, e a menina Margarida Isabel, apoquentara as pessoas lá de casa com o seu génio. Era cunhada de Maria Rosa e parecia, no meio dos Nabasco, uma flor de paixão, com os seus versos e a aristocracia que lhe corria no sangue. Descendia ela duma açafata da rainha D. Mariana, mulher do nosso rei-sol D. João V, e não deixava que isso esquecesse a ninguém. Muito menos a ela, Margarida Isabel, ou Margô, para abreviar, que se lembrava de tudo que lhe acontecera desde que viera para o Porto para casar. As irmãs, Ana e Estefânia, ficaram para sempre em Lisboa, donde também casaram sem mudar de sítio, posto que viúvas voltaram à casa paterna, na Graça. Margô ajeitou-se mal com a família Nabasco que achava petulante, ainda que sem dote. Os rapazes beijavam a mão às senhoras e até às solteiras, estivessem enluvadas ou não. Muito do trato de corte tinha-se perdido, mas Margô, como emigrante que era, procurava lembrar as antigas tradições.

No que ela era perfeita era na poesia. Tinha o sentido nobre do verso, sem cair em melancolia, e, para ela, no seu íntimo, dava pouca importância à fidalguia cheia de bons sentimentos para com os criados e as amas de leite. Ela tinha um rabo de judeu ao fim das costas, como se dizia; e por isso era capaz de malícia fina e fantástica. Sofreu bastante com o desdém das cunhadas, menos de Maria Rosa que sentia pena dela pelo marido que tinha, tão sem imaginação que não distinguia um boi duma vaca nem o chá preto do chá verde, e coisas assim. Mas também é verdade que não tinham muito que dizer uma à outra e que havia entre elas silêncios de "cortar à faca".

Quando Paula Nabasco se casou pela segunda vez com um capitão da marinha, Maria Rosa tomou Martinho à sua conta e deixou de se interessar pelo resto dos parentes. Margô acabou por voltar para Lisboa com os filhos, vivendo de rendimentos escassos como se fossem abundantes. Depois morreu, não sei como.

Havia nessas famílias um espírito de clã que as fazia bonacheironas, com prazenteiro gosto pelos almoços de domingo ou os bailes em que se comiam doces de coco predilectos dos homens. Mas se algum estranho era introduzido na sala, em geral por leviandade dum dos rapazes da casa, logo se amotinavam os corações e inventavam partidas para o afugentar. Em Lisboa era o mesmo. A democracia cobrira de beijos a massa cinzenta dos novos poderes; todavia, por detrás da graça cristã e a aparência de fraternidade, permanecia uma espécie de ira que varria brutalmente quem julgava aceder ao lugar do "grupo". Presumia-se que, embora parecessem carroceiros, se lhes via a raça porque tinham uma pinta de sangue ao canto dos olhos. Coisa curiosa! As antigas bonecas de Nuremberg tinham essa pinta vermelha ao canto dos olhos. Martinho ria-se mas, no fundo, respeitava essas impertinências com que se fazia um reino e se sustentava o ego duma nação.

Por vontade dele não perdia o tempo a visitar os mortos, que estavam bem onde estavam e dispensavam apresentações. Era incrível a quantidade de viúvas que havia na família. Além das solteiras, verdadeiros enxames delas, umas elegantes outras quase no limite do ridículo porque não abandonaram as modas do seu tempo e em que o paradigma do bom-tom era a rainha de Inglaterra com saia de pregas e um lenço atado debaixo do queixo como quando visitava as vítimas dos bombardeamentos. Isso é que era ter raça, qualquer coisa que não depende de saber estar à mesa ou escolher um chapéu. Ou melhor ainda: saber quando meter as mãos nos bolsos não parece mal.

Martinho divertia-se com os temas que Maria Rosa lhe propunha como conversa.

- Os pequenos assuntos fazem o pensamento vivo. Não é a dizer a fórmula de Einstein que nos tornamos inteligentes - dizia.

- Então como é?

- É a dar resposta ao que parece não a ter.

- Como por exemplo?

- Por exemplo: porque é que se rolam os polegares quando se está sentado sem fazer nada?

- É um costume que eu não tenho.

- Porquê? O que mudou para fazer desaparecer esse costume?

- Os lojistas? Aqueles que esperavam o freguês com uma resignação cristã. Já não há gente dessa.

Ele tinha visto os gregos rolarem as contas nos dedos de maneira laica e não religiosa e pensou que o rolar dos polegares teria o mesmo significado: uma distracção que evitava a impaciência. Maria Rosa maravilhou-se daquela explicação, achando admirável um rapaz como aquele, que improvisava as

respostas mais saborosas sem lhes dar o acento da erudição. Mantinha a inocência dos primeiros anos e o gosto de interrogar. Mas, dentro de pouco tempo, ele teria de casar e entrar no que se chamava "o rol da gente séria". Que mulher lhe seria destinada? Já não se davam jantares para convidar os pais de raparigas casadoiras e avaliar dos seus predicados: fortuna, saúde, incluindo as taras como inclinação ao suicídio. E também os bailes concorridos pelas jovens a serem colocadas como esposas virtuosas e condescendentes estavam mais ou menos desertos. Quem ia uma vez não ia mais. As bonitas herdeiras já não esperavam a declaração na sala que dava para o jardim mostrando-se radiantes ainda que apreensivas. E as coisas do sexo tornavam-se imposturas da tentação. A metafísica do corpo não fora ainda escrita e as raparigas contentavam-se com a preparação do enxoval que, para algumas, era ocupação da vida inteira. Herdavam-se baús com camisas e penteadores, cheios de laços tão frescos como se saíssem de véspera da fábrica ou do atelier de costura. Um noivado desfeito, a morte dum dos namorados, vinha suspender o casamento, sem que ficasse o desejo de reatar o estado de promessa. As sempre-noivas abundavam nesses lares de mulheres úteis, sensatas, livres de dores de parto e das infidelidades matrimoniais. Viviam uma felicidade paralela, criando sobrinhos ou servindo na casa como dedicadas tias de alguém que partia um dia para iniciar uma era de lágrimas e de risos falsos, porque o riso da juventude tinha-se quebrado e tudo decorria naquela forma de piedade que é o amor da carne e do perdão. Maria Rosa foi a única das irmãs que casou. Sem falar duma outra que se fez freira e teve uma história com certo escândalo com o médico do convento. Nem por isso abandonou os votos e, depois da sua aventura, ficou mais fortalecida para a ideia platónica da feminilidade.

Enquanto passeava pelas áleas do cemitério, no segundo dia de Finados, levando atrás de si Martinho embevecido de a ver tão nova e elegante, Maria Rosa ia anotando os mortos conhecidos e dos quais sabia a história apócrifa. Não era só Cristo que tinha os seus apócrifos; as famílias notáveis da cidade (e todas as outras também) tinham a gesta escolhida para constar nas conversas públicas ou particulares. Só um olhar penetrante como o das mulheres plebeias, criadas ou mestras de piano, sabia entrar nessas meadas de factos, inconfessáveis, ou simplesmente inócuas, que faziam a lenda perdida das famílias. Incestos, testamentos viciados, bastardias, ruínas, perdições do amor e do jogo, tudo estava ali sepultado debaixo do musgo das lápides, atrás dos ferros dos portões das capelas mortuárias. Ela própria, Maria Rosa, esteve durante um ano sequestrada pelo marido, quando era nova, sob a suspeita de traição. A prisão domiciliária era o tratamento dado às esposas infiéis. Tinha dois benefícios: reforçava os laços eróticos e evitava o descrédito da separação. Maria Rosa não se lembrava de ter sofrido muito no seu tempo de reclusão. De resto, não se tratava dum calabouço mas duma propriedade que o Nabasco tinha, toda murada e com glicínias a cobrir os muros. Ela fez depressa a sua casa de aventura, com cretones à inglesa e livros de viagens. O Nabasco não suspeitou nunca de que a mulher o enganava com ele próprio. Achou-a mais encantadora com os cabelos cortados sobre as orelhas, à Colette, e as pernas bronzeadas ao sol de Março, o mais doce e forte para queimar a pele. "O sol de Março queima a dama no paço", dizia-se assim. Ela fez boas amigas entre caseiras e filhas delas, doidas a contar coisas secretas, sem circunspecção nenhuma e guardando o carácter jovial de quem não tem segredos.

- Nada pior para a personalidade do que a circunspecção. Foi Oscar Wilde quem o disse.

- E disse bem. - A avó falou, sem se voltar para ele, como se estivesse à espera de encontrar alguém conhecido. Muitos tinham morrido, esse ano tinha sido fatal para os fumadores. Ela lembrou-se do Manuel Fontes, um dos seus amores da juventude. Era tão rica de adoradores que quase não dava por eles. Martinho pensou: "Que bonita deve ter sido mas não tem nenhum traço bonito. É mais uma ilusão de óptica." Enquanto a mãe não se casou outra vez ele sentia o mesmo acanhamento em andar com ela na rua. Fazia com que não caminhassem a par e, se encontrava um colega do liceu, fingia que Paula era uma estranha e não respondia se ela se lhe dirigia. Tinha uma espécie de vergonha em acompanhar uma mulher nova e atraente que os outros rapazes podiam desejar. Um dia em que um colega foi a casa dos Nabasco (o que lhe causou um choque porque não os imaginava tão abastados) Paula apareceu à entrada da sala, vinda da rua. Tinha umas luvas altas enroladas nos pulsos e aquilo fazia a impressão de ela pertencer ao mundo das actrizes. Ainda ninguém pintava os olhos, mas ela tinha sombras azuis e os dentes brilhavam entre os lábios quase dourados. Martinho percebeu a perturbação do amigo. Ninguém tinha uma mãe como ele, e a ideia de que pudesse haver um laço incestuoso entre ele e Paula deixava-o irritado. Quando ela saiu de casa, com o seu capitão da marinha, sentiu-se mais descansado. A avó já não despertava pensamentos pecaminosos em ninguém; mas, mesmo assim, era melhor não facilitar. Continuou a guardar alguma distância quando eram vistos nos concertos ou em qualquer outro lugar concorrido. "Não tem nenhum traço bonito" - pensava, como para se defender dalguma surpresa desagradável. Considerando que Maria Rosa fora muito mais interessante do que Paula, estava a afastar aquela amarga sensação de a partilhar a ela, Paula, com todos os amigos que diziam dela coisas indecentes ou simplesmente abonatórias.

Convenceu-se de que iam lá a casa só para a ver, o que era exagerado. Mas era talvez por isso que Maria Rosa só tomava ao seu serviço raparigas notoriamente belas, como Yolanda ou Marina que pareciam panteras enjauladas, movendo-se de um lado para o outro com um passo cauteloso como se pisassem a selva. Nunca se pôs o caso de Martinho namorar qualquer dessas musas de avental, preto na maioria das ocasiões, porque seria impensável parecerem criadas de farda, ainda que talhada por modistas caras. Coisa que Maria Rosa não se proibia de pôr em prática nos tempos de que restava apenas uma memória apagada.

O maior defeito de Maria Rosa continuava a ser o da curiosidade; por isso, a memória não era muito respeitada e facilmente esquecia coisas que podiam significar muito para outra pessoa. Ainda falando de Yolanda, que teve um êxito breve como alternadeira, já não se verificava o empenho das raparigas pobres e bonitas que era ter um filho dum homem com fortuna. Agora não tinham mais um objectivo calculista, porque no filho punham a consumação dum futuro desafogado; agora queriam divertir-se e ir às discotecas com botas altas, se possível num carro de luxo, desses a que os homens chamam "o terceiro tomate" e que causava sempre uma sensação arrasadora.

Yolanda contraiu uma doença má, nada de sexual como seria natural no caso da Dama das Camélias, mas qualquer coisa de conversável como uma laringite infecciosa, maneira de referir um cancro. Martinho ainda a foi ver com Maria Rosa, ao hospital e comoveu-se de a ver tão mudada. Se pudesse casar com todas as mulheres apertadas pela desgraça como por uma algema de ferro, fazia-o. Era sujeito a uma sensualidade da miséria e acreditava que a pobreza, a dor, e todo o género de malvadez no mundo eram acicate do desejo. Um homem resistia a uma deusa mas não a uma qualquer desamparada, ignorante e sem mais espírito do que uma gata vadia. Maria Rosa achava que ele ou lera demais ou era maricas.

- Em qualquer dos casos não me surpreendes. O melhor, nas mulheres, são os defeitos. Com as virtudes chega-se ao altar mas não a um trono, quer dizer a uma boa cama.

Quando se punha assim, a dizer "verdades como punhos", a avó estava francamente irritada. Não que não houvesse uma dose de lógica no que dizia. Consultando a História e os dicionários de grandes personagens, o que se encontrava lá eram mulheres suspeitas. Suspeitíssimas. Envenenadoras, meretrizes, mentirosas e, na maioria dos casos, muito pouco interessadas nos homens. A luxúria delas era fingida. Por isso o corpo criava tantos impedimentos, que não eram senão evasivas. Que ia acontecer àquele rapaz que ela amava tanto? Ia ser enganado, arrancavam-lhe a pele e as unhas, tudo o que era protecção, em troca dum prazer que não passava de submissão. Talvez ele preferisse a guerra como iniciação. As guerras eram feitas com a iniciação dos mancebos, tudo era permitido ao mesmo tempo: a violação, o roubo, a morte, o jogo, o chegar ao fim do horror e ainda insaciado. Quem diz que tem recordações da guerra que o impedem de falar é um hipócrita. O que o impede de falar é o prazer, aquele fraternal aceno antes de premir o gatilho e que quer dizer "é a tua vez, eu sigo-te". Há um momento em que não há deuses, em que não são necessários.

Ela preocupava-se com Martinho. Mas quem a visse, caminhando entre os mortos com o vestido curto que lhe descobria as pernas magras como as velhas têm, ligeiramente arqueadas como se fossem cair de joelhos, diria que dava um passeio na tarde de sol, gozando o parque florido, honrosamente florido de maciços de crisântemos amarelos e magenta. Deixou cair uma luva e Martinho apanhou-a. Era uma luva de pelica cinzenta em que os dedos estavam moldados. Ele sabia onde as tinha comprado, sabia tudo a respeito dela; escondia a ele próprio que sabia tantas coisas para não ter que explicar isso. Elisa vinha atrás com o jarro onde fora buscar água para limpar o jazigo e disse qualquer coisa sobre o mau estado de tudo. A seu ver, deviam-se juntar os mortos num só lugar em vez de andar naquela correria de Finados.

- Estás doida? Sabes quanto custa uma trasladação? - disse Maria Rosa, sem deixar o seu passo de passeio.

"Quem é pobre não tem vícios" - foi o que Elisa pensou. Sempre conhecera nos Nabasco aquelas crises que iam desde os empréstimos ruinosos até à penúria. Depois levantavam-se com uma herança ou um novo crédito cuja origem ficava sempre obscura. Negócios de volfrâmio, vendas de património que, até aí, não se sabia que existia, nem onde. - Não se mudam os mortos de casa, é uma questão de decência. Assim como não se despejam os inquilinos que ficaram pobres.

- Eu só quis dizer que é um desperdício. Em flores, em deslocações, em tudo.

Mas ela calou-se, filosofando para o seu íntimo que com aquela gente era inútil ter razão. Nem sabiam o que isso era, não obedeciam a leis senão quando era do proveito deles. Não lhes perdoava terem-lhe feito pagar a dentadura postiça que fora um golpe muito duro nas suas economias. Era a avareza dos ricos, que alimentava um rancor activo durante toda uma vida. Sem isso, provavelmente não havia redenção e fidelidade que durasse. Maria Rosa lembrava-se de Patrícia Xavier que se queixava de não prender em casa nenhuma empregada. A boa índole que tinha fazia-as mais soberbas e indisciplinadas do que se fosse injusta e até de humor tirânico. A violência fixa o erotismo, é o que ela pensava. Tinha com Maria Rosa conversas "abomináveis", interrompidas por repentino medo de irem muito além nas suas cogitações. O que sabem as mulheres dá para arrasar montanhas.

Patrícia morreu de maneira desastrosa mas não digamos que imerecida. Tinha-se empenhado em não ter filhos antes dos quarenta e fez o aborto como um facto mais no seu quotidiano, esperando à noite estar em estado de jantar fora. Era uma mulher alegre e sem problemas profundos. Dava pena contemplá-la morta, bonita e maquilhada como se esperasse pelo vestido verde esmeralda de que tanto gostava. O verde era a sua prova de boa pele e espírito festivo. Não ia bem senão com as mais belas, claras e de cabelos de ébano, não completamente pretos. Ninguém como Patrícia para gozar o mundo e contentar-se com o que tinha. Sabia vestir-se com um trapo, agradar sem compromissos, beber sem cair de bêbada. Parava quando alguma coisa lhe dizia que podia perder as chaves do carro; gostava de carros bonitos e de homens feios; que eram os melhores, como os figos maduros. Era o que ela dizia.

Lá estava, debaixo duma lápide que se partira e só tinha em cima algumas flores fulgurantes mas que eram artificiais. O marido tinha casado outra vez e ela estava esquecida como um gato morto.

- Põe aí as violetas africanas que eu trouxe. - Maria Rosa rezou um Padre-Nosso. Mexia os lábios mas como não se lembrava exactamente da oração, fingia murmurar as palavras que, de resto, já não eram iguais. Martinho reparou que ela tinha um terço no pulso, um terço dum só mistério e feito de ametistas lapidadas delicadamente. Usava sempre as coisas apropriadas dum gosto muito pessoal difícil de detectar, como um crime perfeito. De repente, sentiu-se mal mas esperou um bocado até ver se se recompunha. E se morresse num cemitério, às onze da manhã, quando devia estar a lavar as meias no lavatório? No meio daquela multidão que ia empanturrar-se de carne de porco com alho e castanhas. Como as castanhas lhe lembravam os mortos, cozidas, deixando uma nódoa de sangue velho onde caíssem! Martinho nem notou que ela se encostou demasiado a uma grade; o olhar penetrante dele aflorou-lhe o rosto pálido. Mas não disse nada.

Caíam uns pingos de chuva, grossos, espaçados, anunciando o aguaceiro de Outono que sacode os ramos ainda cobertos de folhagem e dobra a ponta dos ciprestes. Elisa tinha posto o cesto das flores na cabeça e começara a andar depressa. Sem ela, a vida de casa seria muito mais difícil, sem pontualidade, sem torradas quentes ao primeiro almoço e às quatro da tarde. Todos os Cunhas eram extraordinários no serviço doméstico; todos sabiam cozinhar e depenar galinhas ou esfolar coelhos, e dançar o vira, e tocar viola. Gostavam de usar bigodes retorcidos, era um princípio, como o de ser baptizados. Eram bonitos, mas a única irmã que tinham, essa não era bonita. Quem era então Elisa se não era irmã deles? Maria Rosa deu conta de que os seus acessos de confusão, como uma paragem do sangue imperceptível no cérebro, começavam com um súbito interrogar-se sobre coisas de interesse nulo. Como eram as luvas de Patrícia quando foi de dama-de-honor ao seu casamento? Até ao cotovelo ou pouco acima do punho? Tentou lembrar-se mas não conseguiu. E se armasse uma cilada a Elisa? Ela estava lá e não esquecera nada. Mas não sabia como perguntar-lhe sem levantar suspeitas. Que tinham a ver as luvas de Patrícia com o dia de Finados ao fim da manhã? Elisa ia desconfiar e achar que ela estava senil. Procurou derivar, pensar noutra coisa; mas lá estavam as luvas de Patrícia, duma cor indefinida. De repente lembrou-se nitidamente:

"Eram rosa-cravo, altas. Nem podia deixar de ser, tratando-se de Patrícia Xavier." Ficou tão satisfeita que aquilo se reflectiu na cara. "Ainda é bonita, nunca mais deixa de ser bonita", pensou Martinho. Havia muito tempo que se faziam verdadeiras adivinhas sobre aquele rosto fresco e liso como marfim. "Minerva passou-lhe com a mão pelo rosto", disse um dos noivos que passavam lá por casa e nem sempre se comprometiam no noivado. De quem era a culpa de haver tantas solteiras na família? Passado o primeiro desgosto da quebra do namoro, elas criavam asas e todas se envolviam com os seus hábitos carinhosos (eram mesmo carinhosos?) quanto à vida urbana. Iam aos concertos ou ao cinema, viajavam, compravam bolsas novas e falavam de tudo com delicadeza, procurando não ferir ninguém, nem mesmo os príncipes do Mónaco. Eram tão isentas quanto, de facto, não punham paixão nas coisas, só um pouco de incerteza quanto à sua realidade.

Maria Rosa disse que os extraterrestres vinham de noite dar-lhe uma injecção e que ficava no lençol, junto do braço esquerdo, uma gota de sangue. E lá estava o pingo de sangue, às vezes outro mais pequeno. Se não fosse um estratagema dela, ou algo parecido com magia, então não se podia explicar. Os homens faziam ouvidos moucos.

- Dá para perceber?

- Não, não dá para perceber. E calem-se.

As coisas ficavam por aqui. Martinho, porém, desde pequeno que não a largava, ficava atrás duma porta para a surpreender caso acontecesse uma coisa dessas que povoam o coração da infância e são irresistíveis de esperar, de desejar. Só Helena, uma amiga da casa, a primeira que se empregou na companhia inglesa dos telefones, olhava com doçura a pequena Maria Rosa que não teria mais de cinco anos e começava a aprender a ler. Helena Prates com a irmã Augusta, eram raparigas vistosas e que tomavam o mundo como se fosse inventado por loucos. Também elas nunca se casaram talvez porque tinham muito amor no segredo da sua alma. Fora de casa, com mais um irmão solteiro e bondoso a ponto de parecer excêntrico, elas levavam uma vida angelical; embora, com a idade, se tornassem ridículas mas sempre respeitosas com as pessoas de alto nível, como os banqueiros e os professores. Quem muito critica, ofende a ordem das coisas. E, no entanto, Maria Rosa achava-as estranhamente cheias de humor e quase estupefactas de o mundo girar ao contrário do seu próprio juízo.

Teve um sobressalto; acabava de eliminar o marido do seu passeio de finados. É verdade que ele tinha morrido bem há quinze anos e, nesse momento pelo menos, sem a ajuda de fotografias e momentos épicos das suas vidas (quer dizer, momentos infelizes mas que tinham deixado um rasto indelével, não completamente para desdenhar), não via nitidamente as feições dele. Nunca compreendera como ele se fixava numa empregada do escritório de maneira tão compulsiva. Tivesse ela maus dentes, ou falasse com a boca cheia, além de cheirar a amostras de perfumes, ficava caído por ela. Parecia empenhado em arrebatá-la aos colegas como se fosse um saque de guerra. Nem se incomodava a perguntar se estavam a vê-lo assumir o papel de lobo da alcateia, ia com ela para a cama e começava uma relação de fidelidades ao nível dos negócios. E compensava Maria Rosa com uma generosidade de sexo, ou mesmo um objecto que sabia ela ter na ideia, um frigorífico novo, por exemplo. Isto se ela tinha para com "a outra", a chamada "criatura" dos anos cinquenta mas que agora era a colaboradora, a tradutora dos meandros da escrita, a mão esquerda do seu braço direito.

Onde estavam os homens cautelosos como se caminhassem na selva onde se escondiam armadilhas para ursos? Eles faziam a constância do casamento, mentiam, mostrando às vezes o jogo para provocar a sorte mas não com o objectivo de mandar ao ar o baralho. Eram eles que selavam a instituição com um beijo na testa, coisa que exasperava Maria Rosa pelo que tinha de inóquo, de respeitoso, de quase insultuoso no seu castigo à boa mulher que ela era.

Mas quem podia dizer que ela era a boa mulher das Escrituras, a pérola das esposas, vestida de saco quando chorava os seus mortos? Ela escorregou nas pedras onde crescera o musgo e Martinho deu uma corrida para ampará-la.

- Mandei ou não rezar uma missa pelo teu avô?

- Não sei. Venha para casa. Está a precisar duma sopa quente. Tem os lábios roxos.

- Estou a precisar dum espelho, queres tu dizer. Detesto que me vejam com má cara.

- Não digo que está com má cara.

- Também a Menina dos Fósforos do Andersen não se dizia que tinha má cara. Mas fazia pena. Deve ter casado bem, se é que resistiu ao Inverno de Copenhaga. A neve é um bom condutor da literatura. Sentirmo-nos abrigados enquanto o frio glacial espreita pelas nossas janelas deve dar uma força poderosa à mão que escreve e ao coração do escrevente. Não achas?

Mas ela já não esperava pela resposta, nunca esperava pela resposta. Estava a visionar o marido no cadeirão de veludo verde e que parecia indestrutível. Tinha ganho um tom pardo, as franjas estavam desbotadas mas intactas. Era um veludo alemão resistente a tudo, à guerra e às mudanças de casa. "Como pude aturar tudo aquilo?" - pensou, com calma e demorando o passo para que Elisa também esperasse.

Não queria mostrar-se mais ágil do que ela, velho mostrengo de pés espalmados como o dos gansos, ou ánades, ou o que fosse. Gostava de Elisa, fazia parte da mobília, tinha uma alma como a mobília tinha. Acontecia-lhe ver o pó num móvel e voltar atrás para o limpar com o lenço, pedindo desculpa. As coisas inanimadas enterneciam-na. Não se sabia até que ponto eram inanimadas. A sua função era uma forma de articulação viva, como nas pessoas.

O Nabasco avô, quem o podia descrever? Talvez deixá-lo para outro capítulo. Era um suicida falhado. Tentou matar-se quatro vezes e nunca acertou. Primeiro com fósforos (outra alusão à Menina dos Fósforos) que diluiu num copo de água; mais tarde, mergulhando na piscina e mantendo-se no fundo até que alguém o puxou para cima e lhe fez respiração boca-a-boca. Talvez o jardineiro, episódio de que o Nabasco não queria recordar-se. Ter aquela boca mole como um verme contra a sua boca, causava-lhe repugnância. Também usou uma arma de fogo mas porque a empunhou com a mão esquerda, vá-se lá saber porquê, o tiro não o atingiu mortalmente. A nossa vida está cheia de actos falhados que não têm outra intenção senão a de causar aflição aos outros. Torturá-los, porque, mais ou menos, todos somos torcionários.

Tudo isto aconteceu estando o Nabasco (Filipe Tadeu Nabasco, imagine-se!) solteiro. Depois de casar com Maria Rosa retraiu-se um pouco e já não armava grandes cenas melodramáticas que eram devidas ao seu temperamento nervoso e a crises de depressão. Mas distraía-se a fingir que a enganava e a criar um clima de suspeição. Até que ambos envelheceram e se foram aceitando como eram, perdendo muito da sua velhacaria e espírito histriónico.

Às vezes Maria Rosa tinha que recriar o Nabasco porque Martinho lhe fazia perguntas a respeito dele. Não o tinha conhecido senão nos seus tenros anos e não se lembrava senão dum homem comprido como um poste, nesse caso um poste derrubado pois estava sempre estendido no cadeirão e só se levantava para ir almoçar fora. Tinha uma mesa sempre marcada no restaurante mais elegante da cidade e onde o tratavam com uma deferência litúrgica, desembaraçando-o do sobretudo como duma capa de asperges. O restaurante, de resto, respirava um ar de sacristia, ninguém falava alto e os criados pareciam deslizar em pantufas. Quase não apareciam mulheres e Maria Rosa nunca acompanhava o marido. Era como gente dum clube, ou duma seita, melhor dito; porque não falavam entre eles, como se, decorados os estatutos, já nada houvesse a dizer.

O Filipe Nabasco destacava-se como um pelourinho da cidade. O ponto mais alto da carreira dele fora o de proprietário dum jornal de sucesso que ele amava como um filho. A fortuna dos Nabasco não provinha de negócios, nem de propriedades. Era dessas fortunas sólidas, alimentadas por heranças ou rendimentos acumulados, resultado de aplicações financeiras especulativas. Nada que o obrigasse a levantar-se intempestivamente do seu cadeirão verde ou a atrasar o seu almoço da uma e um quarto da tarde. Era um desses homens cujo estatuto se media pelos sapatos feitos em Londres e pelo lenço de bolso de cambraia branca, sem monograma. Não era uma pessoa divertida, ainda que tivesse espírito. Mas não gostava de se expor à apreciação dos outros que, no seu entender, não mereciam que se lhes desse motivos de experiência. A experiência e o treino são coisas diferentes e no tempo dos Nabasco sabia-se isso. "A experiência faz o cavalheiro, o treino faz a profissão." O que se advertia era que Filipe Nabasco não tinha uma profissão, era um auto-didacta com referências. A cidade não o punha à prova em qualquer circunstância da vida; limitava-se a mantê-lo dentro do círculo de influências que é com que se fazem as conspirações da História. Filipe Nabasco não tinha grande importância como inovador de ideias ou criador de doutrinas; ou mesmo como mecenas, que é o papel que se reserva aos que acreditam nos benefícios da cultura. Maria Rosa contava com ele para lhe dar o braço ao descer umas escadas em público e moderar assim os efeitos da sua artrite reumatóide. Não se julgue que era só isso. Amava-o com uma delicadeza que faz a felicidade dum casamento destinado a durar. Nessa hora em que passava pelas campas de muitos amigos mortos, uma ternura parecida à saudade tocou-lhe o coração. Filipe Nabasco tinha sido um marido sólido, se não perfeito e admirava-a um pouco, o que é o segredo das relações estáveis. Isso impedia que não fossem nunca demasiado familiares e que se não respeitassem a ponto de degradarem o casamento com um excesso de razões para o traírem. Martinho disse que ela devia calçar as luvas, tinha as mãos geladas.

- Sempre tive as mãos frias. É bom sinal.

- Porque é bom sinal? - disse ele, a rir-se; porque os velhos lhe faziam essa alegria súbita de lhes sobreviver.

- Mãos frias, coração quente, é o que se diz.

- Não sabia.

- Deve haver uma razão qualquer para se dizer isso. Hei-de perguntar ao doutor Horácio.

O doutor Horácio Assis pertencia ao escol dos médicos de família que, como os advogados, tinham uma clientela escolhida cujos segredos estavam a bom recato nas suas pastas. O segredo era um princípio de ouro num contrato de tratamento, fosse de saúde ou de finanças. Horácio Assis sabia mais da vida da sua clientela do que sabia da sua própria ciência. De resto, dizia ele, para curar há duas receitas: dieta e pés quentes. Não acreditava na grande parada do laboratório e, na verdade, perdia-se um bom bocado no diagnóstico que era sempre o mesmo. "As pessoas sofrem quase todas de insignificância e só as podemos aliviar dizendo-lhes que escrevam um livro, plantem uma árvore e façam um filho." Isso traduzido para os tempos mais recentes resumia-se em comprar um automóvel, fumar erva e ir a um concerto de rock.

O paciente acabara. Agora o que o substituíra era um non-sense que já não tinha a sensualidade dum Felini mas que fazia com que a liberdade se parecesse com um rito de passagem: sexo e crueldade mental.

O doutor Horácio, diga-se, era tão velho que dava o lugar às mulheres no autocarro, sobretudo se estivessem grávidas. O que fez com que uma bonita rapariga lhe dissesse que também ia ter uma criança. Não parecia, era delgada como uma agulha.

- De três dias - explicou, para escândalo do doutor que tinha os modos dum médico de família real inglesa. Ele usava luvas de camurça cinzenta, ninguém mais se atrevia com aquilo.

A própria Maria Rosa, que se tinha por avançada, embora o seu jogo de canasta das quintas-feiras não fosse exactamente um expoente de modernidade, costumava rir do doutor Horácio com um timbre de maldade; porque rir já é por si só um mau prenúncio, embora se diga que o espírito de Deus só desce sobre quem tem uma alma alegre. É possível. De qualquer maneira o doutor Horácio, alto e mirrado, fora em tempo muito dado às damas e elas achavam-no "o máximo", com o seu beija-mão e os gostos musicais. Quando chegava a ser íntimo duma mulher era como se a tomasse ao seu serviço e, na verdade, tratava-a distraidamente. De resto, era muito distraído, era um dos seus encantos ser distraído. Maria Rosa perguntava-se se era de facto ele que jazia na sua grande capela de estilo manuelino ou se se enganara e fora parar a qualquer outro lugar no qual se perdesse. Como perdia os filhos quando eram pequenos e a própria mulher, voltando sozinho do teatro sem pensar que a levara na sua companhia.

- Bem me parecia que me faltava alguma coisa - desculpava-se. Era compassivo até às lágrimas e fora o primeiro a conhecer o estado de Patrícia Xavier, que recorreu a ele já desfeita por dentro como qualquer mulher de má vida às mãos duma abortadeira vulgar, dessas que só falam dos netos lindos que têm e que respiram a virtude do matrimónio. O doutor Horácio ficou esmagado; tirava e punha os óculos e limpava-os com a aba do casaco.

- Como foi isto? Como foi, respondam-me! Patrícia já estava morta, com a dobra do lençol puxada para o rosto, e ele soluçava ainda, encostado a um móvel, o nariz a pingar, ridículo, triste, vagabundo na sua própria aflição. Tinha pena das mulheres, sempre a sangrar, sempre avariadas de dentro, carregando a cruz do sexo, maior que a de Cristo. Não perdoava que fossem tão mal feitas para o amor, com buracos a mais, sempre a desfazerem-se de medo, de sofrimento, e, no entanto, "prontas para outra", batendo fortemente os tacões com a vitalidade das suas entranhas que até lhes saíam pelos olhos radiantes. E depois escreviam versos, as pobres coitadas! Todavia, quanto poder no sangue do seu ventre!

Maria Rosa viu uma campa tão coberta de flores que parecia um canteiro de orquídeas verdes. Havia muitas orquídeas, dantes nem se viam e ficavam no profundo da selva amazónica, tenras como carne de mulher nova. Um rosto, um medalhão de esmalte mostrava uma rapariga com brincos compridos, sorrindo timidamente. "De que morreu ela?" - pensou Maria Rosa. - "De que se morre tão nova?" Nem sequer tinha visto os filmes mais famosos, a cores, cavalgadas, bailes da corte, amores em fiacres, um beijo com a cabeça descaída para trás ou o pé direito levantado em sinal de rendição. Ela sentiu um frio trespassá-la mas recompôs-se logo, endireitando-se para corresponder ao cumprimento de quem a tinha reconhecido. Era um emblema da cidade, Maria Rosa Nabasco, aspirante à eternidade, como toda a gente que ali estava morta ou viva, no dia de Finados.

 

                                               CAPÍTULO II

 

                   A PICADA DUMA PULGA

Uma família não funcionava perfeitamente sem os seus criados, gente de fora e parentes pobres. Além dos directamente implicados na sua saúde e estado das firmas e propriedades: os médicos, os advogados, os capelães (que eram os párocos da freguesia ou, com mais elevação, os secretários do episcopado). Depois vinham os fornecedores de víveres e vestuário, os responsáveis da apresentação urbana, os merceeiros de grosso, ou de garrafeira, os alfaiates, ourives, decoradores e mestres-de-obras. Também tinham o seu lugar marcado na agenda da casa os explicadores, as baby-sitters, pessoal muito reduzido face ao de antigamente que compreendia a professora de piano e a jovem au-pair que ensinava línguas e acompanhava as meninas da casa, tratando também de assegurar o futuro com algum bom partido que se apresentasse.

A casa era um mundo que fervilhava de convites e contas para pagar, de despesas faustosas ou miúdas, de renovação de cortinas ou de roupa de casa, de projectos para os filhos, de pensões para os que estudavam no estrangeiro, de pequenas paixões e rivalidades domésticas e de grandes crises tanto financeiras como amorosas.

Um casal bem instalado e digamos que exemplar, conhecia pelo menos dois ou três dramas sentimentais, duas quebras na fortuna, algum casamento desastroso e uma morte mal explicada e que passava por ataque súbito ou um diagnóstico que pressupunha uma febre tropical, coisa difícil de inventar, quanto mais de ser credível. As famílias eram classificadas pelas suas tendências e bizarrias; havia as com inclinação à loucura, ao jogo e às ideias extraordinárias, como os fazedores de maquinaria que não servia para nada, os criadores de pássaros, os caçadores, que eram respeitados até à medula das suas capacidades de tiro e de agremiação. De quem não se falava abertamente era dos desaparecidos em lugar incerto, dos homossexuais e das mal casadas. Um parente dos Nabasco esteve dez anos no interior do Amazonas a confraternizar com os índios e com os voluntários duma tropa de choque, na selva. Voltou, mas não disse nada da sua experiência, nem ninguém insistiu em lhe perguntar.

Políticos, havia poucos. Algum secretário de Estado rejeitado pela capital, não por ordem da sua inaptidão mas porque não se adaptava, não gostava de comer mal nem de amigos de ocasião.

- Prefiro ser enganado na minha terra, a ser traído na corte - dizia, com boa dose de espírito prático. O Natal em casa e a amante num segundo lar, era o que ele considerava o paraíso à sua medida, que é a medida da maioria.

Havia os melómanos que se diferençavam dos intelectuais porque não punham por escrito a sua sabedoria. Frequentavam Weimar e conheciam a fundo as vozes, os intérpretes e a maneira de tratar uma ária italiana ou um gospel. Chamavam a Boccelli "pobre homem" e a Pavarotti alguém a medir com Gigli. Os melómanos eram fechados a qualquer outro prazer; as mulheres pareciam-se com palhaços do circo quando confrontadas com a voz dos grandes cantantes. Falavam alto e compunham o cabelo, quando não saíam para telefonar, encostadas às portas e alimentando conversas duma vacuidade exasperante. Era Schopenhauer quem dizia que se espantava sempre que as mulheres abandonassem a sala no momento mais importante dos concertos. Porque faziam elas aquilo ele não podia descortinar. Mas Maria Rosa dizia:

- É porque não suportam o génio nem nada que as ultrapasse.

- Acha que é isso? - Martinho tinha por costume duvidar de tudo que ela tinha como certo. Abrandava aquela indignação de a julgar superior a ele, ou antes, infalível. Porque tudo se concertava para ela lhe ganhar quaisquer que fossem as circunstâncias e as apostas lançadas sobre elas. Apostavam, duma maneira indiferente da parte de Maria Rosa e da parte de Martinho, duma maneira que parecia concisa mas que era, na realidade, um desesperado face-a-face com a morte. Ela não arriscava nada, ele comprometia-se até à alma. Decerto era esse laço que os unia desde que ele era uma migalha de gente e ia pendurar-se nos lençóis da cama dela, se o avô não estava, para que ela o puxasse para cima, rindo-se, com aquela gargalhada franca e radiante que o cativava antes mesmo de saber falar.

Era um menino gordo e cambaleante, com pés que pareciam almofadas, o que atrasava o andar dele. Aos dois anos ainda não corria; levantava-se nas patas traseiras, como ela dizia, e ficava muito tempo de pé, surpreendido e sem se atrever a dar um passo. Já pensavam que ele tinha qualquer defeito e Patrícia Xavier, que vinha de manhã partilhar o primeiro almoço com Maria Rosa (viviam no mesmo prédio e as varandas eram contíguas), dizia muito cruelmente que ele nunca mais falaria direito. Era tremendamente ciumenta e Maria Rosa dava-lhe o desconto.

- Não vou zangar-me pela picada duma pulga - dizia. Arrebatava nos braços o pequeno Martinho. - Diz alguma coisa, vamos, diz uma coisa qualquer. - Ele olhava-a, com os olhos assombrados, sério, porque o amor se quer sério e ele amava-a. Até que um dia (estando Patrícia a sacudir no pé a chinela de cetim claro, só se vestia pelas duas horas da tarde e, às vezes, andava até à noite a arrastar a camisa enxovalhada mas que, com as suas costas curvas, a fazia parecer fatal e lânguida, no género das mulheres dos anos 30, mulheres ricas, bem entendido), até que um dia Martinho, de pé no seu baby-grow amarelo, disse, peremptoriamente:

- Merda.

Ambas ficaram sideradas, Maria Rosa de contentamento não cabia na pele, quanto mais no robe já muito lavado e com manchas de leite bolsado e outras coisas, compota e verniz das unhas. Até gema de ovo, que era difícil de sair, como muito bem se conta num romance da boa era americana dos romances. Sempre se aprende alguma coisa naquelas narrativas de arredores, com vizinhos a beber cerveja logo pela manhã. Enfim, Patrícia Xavier levou a mal aquela primeira voz do jovem Martinho e vaticinou logo ali.

1.º - Que ele havia de dar desgostos à família e que seria mau estudante, no que acertou completamente. Não era mau, era um caso perdido. Ficava nas aulas a olhar para tudo atentamente, nem sequer desejoso de sair para o recreio, que achava uma área inóspita, com um vago sabor a presídio.

2.º - Patrícia Xavier disse que ele não era inteligente.

- Talvez seja só curioso como Einstein. Com a curiosidade fazem-se mais coisas do que com a inteligência - disse Maria Rosa.

- Depende de que coisas. Matar e roubar deve-se mais à curiosidade do que à inteligência.

Sem que dessem por ele, Martinho, aos cinco anos, ou até antes, já sabia ler e não lhe escapavam as notícias e os obituários dos jornais de que era assíduo leitor. Gostava dos nomes das pessoas e divertia-se a acumulá-los na memória como se fossem borboletas espetadas com um alfinete. Só dois anos depois é que, estando Maria Rosa doente, eele lhe leu a correspondência sem se enganar numa palavra. Ela não se admirou; sempre tinha esperado que Martinho não a ia decepcionar. Gostava tanto dele que seria impossível o seu amor não ser correspondido. Ele correspondia-lhe com desprendimento, como se esperasse um ajuste de contas um dia que ela morresse. Então se veria se a amava ou não; sem o saber, carregava as emoções como um fardo de que não se sabe o que contém.

- És um jerico, mais nada - disse Margô, a segunda mulher do seu tio-avô e que o achava mimado demais. - Assim não se faz nada de ti. Tens que misturar-te com os outros rapazes e aprender com eles as coisas da vida. Nem que tenhas que ir para a cama com um ou outro. Mas assim, tão engravatado e a comer flocos de aveia, não vais a lado nenhum.

- Toda a gente come flocos de aveia, é moda. Por aí não é que o gato vai às filhoses - interrompeu Elisa, que estava a polir os talheres de prata. Uma vez por ano tirava-os dos estojos de flanela e dava-lhes lustro, apagando as manchas amarelas. Era uma perda de tempo. Nunca mais eram usados desde que os grandes jantares tinham acabado e na máquina não se podiam lavar.

- Que gato, e que filhoses? - disse Margô. - Nunca percebi isso. Fazes o favor de falar para que a gente entenda.

Elisa não deu resposta, aplicada como estava a limpar as facas novas de trinchar que nunca tinham sido usadas. Eram bonitas e espelhantes mas não cortavam bem. "É o que acontece com as coisas bonitas" - pensou Elisa. - "Não têm muita serventia".

Margô II era a segunda mulher de Tadeu Nabasco. Por coincidência tinha o nome da primeira, a Margarida Isabel cujo destino me escapa. Morreu nova, na sagrada companhia da família de origem aristocrática mas que nunca se honrou do seu talento poético e que lhe censurava as amizades de esquerda. Tadeu sentiu-se livre duma esposa incómoda porque valia mais do que ele e que, para a possuir, tinha praticamente de a violar. Casou outra vez com Margô II que descobriu no casino como choca; era o nome que se dava às mulheres que atraíam para o jogo os forasteiros e os incautos.

Margô II, a cunhada de Maria Rosa, andava pela casa dos Nabasco desde que lhe morrera o marido e nem sequer fazia a cama dela. Também não arrumava a roupa que despia e deixava tudo espalhado pelo quarto. Ouvira dizer que uma princesa não tocava em nada que lhe partisse as unhas ou lhe desmanchasse o penteado. Também não andava pela casa com chinelos nem que fossem de cetim com pompons, como ela gostava. Tinha gostos de mulher mantida e a mania de se parecer com princesas vinha daí. Não enganava Elisa, que estava farta de saber distinguir uma senhora duma fedúncia qualquer. A maneira como ela dizia fedúncia era racista de todo. Uma senhora aprende a calçar as luvas aos cinco anos e nunca mais se esquece: primeiro os quatro dedos bem alisados, depois o polegar. Mas nem nas luvarias de Paris sabiam isso. Era uma pena, mas também não se perdia nada.

- Elisa, você é muito atrevida mas não lhe levo a mal - disse Margô. - As vezes dou-lhe razão mas veja lá se brune as rendas das minhas camisas de noite. E os folhos, e as fitas. Hoje ninguém respeita nada. Você é diferente. Trata mal as pessoas mas não as coisas. Porquê? Não, não diga nada. Se começa a falar nunca mais acaba.

Elisa esfregou com mais empenho a colher que tinha na mão. Quem a desenhara sabia o que fazia. Ergueu-a à altura dos olhos para lhe admirar o brilho. E achou que a maior parte das pessoas não percebia nada de nada. O seu ventre produziu sons que a aborreceram e deixou cair a colher para dissimular. Agora urinava-se pelas pernas abaixo quando se levantava duma cadeira e aquilo envergonhava-a. Juntou as coxas com força mas a urina soltou-se na mesma e ela ficou zangada. Que estava ali a fazer Margô? Ao tempo que ficara viúva e tinha vindo para passar uns dias e nunca mais despegara de casa! A única coisa que fazia era encher os açucareiros e cortar papel para forrar as gavetas. Grande ajuda! Mas, diga-se a verdade, Margô tinha bom feitio e podia-se falar com ela à vontade. Tinha um passado de pobre porque era filha duma costureira que nada mais sabia do que fazer bainhas. A cortar, era um desastre; acabou a fazer fardas para os colégios e, mesmo assim, não era de fiar, deixava sempre um ombro abaixo e outro acima. Aos quinze anos Margô parecia uma estátua da liberdade, com a cabeça pequena em cima dum tronco alto e bem proporcionado. Os olhos eram castanhos, quase não se via o branco dos olhos. Tinha coração de pega, muito compadecido, os homens gostavam mas deixavam-na depressa. Teve um filho que morreu antes de chegar a andar e a quem ela chamava "o meu anjinho". Fazia abortos consecutivos, uns davam para bem, outros para mal; mas escapou sempre, ainda que tivesse ficado estéril sem o saber. Enchia a casa com a sua beleza serpenteante, o penteador a desdobrar-se pelo sofá. Era a única pessoa da casa que tinha um sofá aos pés da cama, assim como um toucador com folhos de cambraia, de gosto muito duvidoso. Filipe Nabasco, o marido de Maria Rosa, não gostava de a ver lá por casa. O que não impediu, quando o cunhado morreu, de lhe propor sustentá-la em troca de amores descomprometidos.

- Não faço isso à Maria Rosa, poça - disse Margô, que às vezes falava de maneira pouco académica. Como é que um homem culto e snobe como o irmão de Rosa, perdera a cabeça com uma mulherzinha tão vulgar? Amava-a mas não se atrevia a casar com ela porque a irmã era a chefe da família, por ser mais velha e ter uma boa posição. Mas quando caiu doente e Margô o tratou com uma dedicação de irmã da caridade, ela comoveu-se.

- Se queres casar, casa.

Abraçaram-se com um nó de lágrimas na garganta. Vinha ao de cima a infância comum, a felicidade e o castigo de muitos dias descontados já para a morte. Os cães que tinham tido, a primeira bicicleta, o namoro de Rosa com um amigo do irmão, o nascimento de Martinho de quem ele fora o padrinho. E selava esse pacto com uma palmada furiosa sempre que o via. Porque lhe batia, era um enigma. Por despeito, porque não lhe perdoava ter achado lugar entre ele e Rosa. Não lhe perdoava tanta coisa, a partir dum silêncio que ia aumentando como um tumor maligno. O silêncio dos desejos insatisfeitos, da cadeia impossível de ser quebrada e que fazia o amor durar eternamente ou o mais parecido com eternamente!

As coisas com Margô eram diferentes. Era a amante disponível, que podia desprezar e que o fazia sentir bem com as suas fantasias, as suas francas aberrações, a maneira de praticar sexo sem medo, sem vergonha, como num quarto de acaso; longe da família e do respeito que lhe devia e que às vezes lhe apetecia provocar. Era um vagabundo por sentimento, um pouco cobarde porque fugia da aventura. Mas do que ele gostava era de ir para África caçar a pacaça e, ao pôr-do-sol, ver a silhueta dos negros recortar-se na savana. Fora um bom engenheiro de estradas e caminhos de ferro, levara Margô com ele, o que deu mau resultado. Todos os homens caíram de desejo por ela e foi preciso mandá-la para Portugal com as suas botas de couro da Rússia e o capacete colonial. Margô estava no melhor da idade, era alta, com seios pequenos e um pouco caídos, mãos e pés como de criança. Mexia com os homens, não só porque fosse bonita mas porque se convertia em gazela diante deles, uma peça de caça em fuga ou em repouso, com aqueles olhos de perfeita esfera palpitante de medo e graça infinita do medo. O desejo era aguçado pelo medo, pela indefesa corte que o medo faz à morte. Margô era irresistível por ser tão oferecida ao seu destino que, de resto, acabava por vingar-se do caçador. Foi assim que aconteceu.

- Que aconteceu o quê? - disse Martinho. A avó estava a escolher entre as torradas aquela que fosse mais tenra; já não tinha os dentes sólidos, capazes de mastigar com o peso de meia tonelada.

- Aconteceu que Margô deixou o meu irmão no meio do caminho, como um tolo, e disse que não queria nada mais dele. Os homens não se importam de ser enganados seja qual for o pretexto. Mas se não há pretextos ficam desesperados. Não há vergonha que se compare à dum homem abandonado sem pretexto.

- Isso parece obra do diabo - disse Martinho. - Nunca ouvi nada igual.

- Nem vais ouvir nada igual nem que vivas cem anos. Que cem anos? Duzentos anos que é a idade normal duma vida humana.

- Da sua, não da minha. Não vou viver muito. É um pressentimento.

- Os pressentimentos são fáceis de enganar. A tua tia Margô chegou um dia cá a casa e mostrou-me a aliança do casamento partida em duas. "Caiu-me ao chão e partiu-se", disse ela. "Isto quer dizer alguma coisa".

- Quer dizer que estava mal soldada ou coisa assim.

- De qualquer maneira quer dizer alguma coisa. Estou a vê-la com o chapelinho com uma pena posta ao lado e aquele vestido azul escuro com uma gola branca e punhos também brancos. Sabia como vestir-se para os homens, quanto mais pecadoras mais sérias.

- Ela era pecadora?

- Não. Não sei. Acabámos por nos zangar porque eu nunca soube. Ela recebeu a herança do meu irmão quando ele morreu, e saiu daqui de candeias às avessas com toda agente. Chegou a inventar que o filho que tinha tido em solteira era do meu irmão. Disse o que lhe apeteceu e foi-se embora. O que ela não disse é que já não tinha nada a ver com o casamento. Mas não se separava nem nada. "Acho que estou apaixonada" - disse ela.

- Por quem? Perguntei.

- Por ninguém. Aí é que está. Por ninguém. Cheguei a pensar que seria por um assentador de alcatifas que foi a nossa casa fazer um trabalho, mas não. Pelo porteiro? Cheira a

tabaco. Não lava a roupa desde a Páscoa e estamos em Novembro. Os amigos do teu irmão? Quem podia ser? Um esquelético, com nariz nobre? Gosto dos homens esqueléticos, mas vestidos. Acredita que pensei nisto durante muito tempo. Choro por qualquer coisa, fico feliz por qualquer coisa. Agrada-me cozinhar, mas depois deito tudo fora e vou para a varanda sem fazer nada. Um gato do vizinho, nem vais acreditar: veio lá para casa e olha para mim como se fosse gente. Instalou-se lá e de lá não sai. Uma planta que estava seca, floriu de repente como se abrisse as asas vermelhas.

- Que planta é?

- Não me perguntes, não sei nada de plantas. Mas aquela deixou-me meio assustada. O gato comportava-se como uma pessoa; a planta era como uma pessoa. Um dia, a mulher da lavandaria (nunca pude com isso de lavar roupa, tu sabes) olhou para mim e acho que perdeu o juízo, fugiu de casa, perdeu o emprego e juntou-se com um homem mais novo vinte anos.

- Isso do homem mais novo ou muito mais velho é sintomático.

- O quê? O quê? Repete lá - disse Margô, como se se estivesse a despedir num cais de embarque, cheia de malas de viagem.

- O tempo tem que ver com a paixão. Quando não acertamos com a duração do tempo é porque estamos apaixonados.

- Já te aconteceu?

- Não.

- Estamos a desconversar. Tu sabes muito mais do que dizes.

- Toda a gente sabe mais do que diz, mas não dá conta. Maria Rosa estava transfigurada, parecia de novo ter vinte anos e uma sensualidade como um rio cobria-lhe as feições da terna alma da juventude. Que formosa era, esculpida na massa do tempo que é o corpo de Eros inteiramente! Margô achou nesse momento a explicação de tudo; porque a terra girava em volta do sol, porque as amêijoas sabiam a beijos molhados. O cão veio de rojo e a gemer pedir-lhe-uma carícia. Ela fez uma pirueta e abriu os braços: - Vale a pena incomodar a Deus pela picada duma pulga - disse. E desatou a rir, inconsolável.

O irmão aceitou um novo contrato para África e todos pensaram que aquilo ia matá-lo. Com suborno ou não, declararam-lhe a saúde suficiente para aguentar o clima e via-se que estava acabado, sempre febril e a suar muito. Voltou para morrer, dizendo-se cansado, nada mais do que cansado. Escrevia cartas que pareciam dum letrado, bonitas de se ler mas um bocado escusadas. Parecia querer interessar Martinho, que tinha quinze anos, nas jovens da Cidade do Cabo, desinibidas e alegres como as europeias não eram. Não ficou dele senão umas polainas de cordões e algumas camisas de kaki. Era pobre como um rato, tinha algumas dívidas que Filipe Nabasco pagou, não sem mostrar que era generosidade e não dever. Maria Rosa chorou como se aquilo fosse o primeiro desgosto da sua vida. Martinho custou-lhe a consolá-la e pensou que havia melhores maneiras de perder o tempo. Não sabia nada de sofrimento e aquilo fazia-o parecer desalmado. Maria Rosa lembrava-se de quando a mãe dela a tratava por desalmada quando se calava friamente às suas ordens e reprimendas, sem contudo obedecer de boa vontade. Muitas coisas que a mãe tinha por educativas a ela pareciam-lhe apenas conflituosas segundo o seu estilo de vida. Aos doze anos tinha já um estilo de vida que era amadurecer os seus gostos que diferiam muito dos das suas companheiras, algumas mais bem sucedidas nos estudos, nos amores e no desporto. Mais audaciosas do que ela no que tocava a perseguir um lugar brilhante na sociedade; casando bem ou doutorando-se com distinção. A ela, Maria Rosa, não sobrava senão a continuação da formatura doméstica e aquela confortável monotonia de segunda filha dum casal que, afinal, não era como os outros. Sentia-se isso nas conversas à mesa atravessadas pelo espírito pícaro do pai e as reticências da mãe que não o aprovava. Servia-o mas não tinha por ele grande estima moral. Era um homem com relações da noite, que jogava bilhar com perícia e fazia vela. Nunca estava completamente falido mas vivia debaixo dessa ameaça. Um negócio (gostava do negócio como se gosta duma amante, prevendo as infidelidades dela), uma herança, contribuíam para o seu bom humor que não o abandonava. Nunca trabalhara e isso fazia-o culpado mas sem ser vítima fosse do que fosse. Maria Rosa amava-o não sem uma ponta de desprezo, o que é bom para o sentido de família. Os defeitos dos outros favorecem o próprio ego.

Ela cresceu aprendendo a trabalhar, o que o pai achava um pouco ridículo, presenteando-a às vezes com coisas caras como se lhe pedisse desculpa. No fundo, esperava dela um casamento proveitoso para as suas finanças sempre em défice, como ele dizia. Era um bom pai, comparado com outros. Que outros, Maria Rosa não sabia nem estava interessada em averiguar.

Não havia uma crise de gerações, simplesmente um contrato que se podia definir de liberdade como paixão. Todos queriam ser livres, os mais velhos com os seus vícios de madurez, os novos com as suas curiosidades. Era preciso não mexer no território privado de cada espécie, não deixar pistas e viver superficialmente as relações de parentesco. Escavando um pouco, havia surpresas chocantes, erros, esboços de crimes, violências que não chegavam a consumar-se. Maria Rosa, quando não tinha mais do que três anos, reteve uma cena que lhe pareceu fantástica: o pai atirou um prato contra a parede e ela pensou se não seria um jogo ou uma prova de qualquer habilidade. Reteve a cor dos abat-jours, que eram verdes e a sala estava mergulhada numa penumbra verde; o que ela achava bonito, fazendo com que ela parasse no seu lugar, à espera do que se seguisse. Não se seguiu nada de importante, a mãe saiu a chorar e isso pareceu-lhe vagamente decepcionante. As pessoas choravam e gritavam como as crianças no berço. Queriam os seus brinquedos e libertar-se das suas fraldas. E ser adulto não era diferente.

Olhava para Martinho como se ele lhe provocasse o riso. A filha deixara-o ao seu cuidado quando se casou segunda vez com um oficial de marinha e praticamente desapareceu como se fosse tragada por uma farda com galões dourados. Teve ainda mais filhos, mas Maria Rosa ignorou-os. Chamava-lhes os cadetes, não sabia como os tratar. Paula ofendia-se e cada vez se afastou mais da mãe. Não se atrevia a tirar-lhe Martinho porque isso seria criar dificuldades à herança que esperava dumas mãos que não eram muito liberais. A medida que envelhecia, Maria Rosa tornava-se no potencial pote de libras enterrado para ser partilhado pelos sobreviventes. Perguntavam-lhe pela filha e os netos, ela dizia:

- Não temos filhos, temos herdeiros, quando a morte se aproxima.

Os laços de família eram transferidos para aquele calculado sentimento de abono merecido. Um fundo de fria tristeza andava a par da sua natural sovinice. Achava um desperdício tudo o que gastava com gente do seu sangue; e, contudo, era generosa com estranhos. Era um traço do feitio paterno, que punha nos desconhecidos uma probabilidade de ganho. Um bom nome era melhor do que dinheiro no banco.

Não sabia que homem estava a preparar com a educação que lhe dava. Como os príncipes, tivera preceptores escolhidos na elite tanto clerical como leiga. Aos poucos, via nascer em Martinho o carácter, onde só havia temperamento que carecia de interesse pelo risco e era, por natureza, fleumático. Mas ao despertar para os princípios práticos que haviam de obter-lhe sucesso na vida, apareceu nele a cólera que só com dificuldade dominava com a razão. Era um rapaz de estatura abaixo da mediana, com disposição para a autoridade, o que o fazia perder os amigos. E também as primeiras namoradas o receavam, e tinha, como os jovens solitários, um desdém pela entrega da sua intimidade; depressa o tomavam como uma pessoa vaidosa e pueril. Tinha a faculdade de prever e por isso conhecia as debilidades que iam arruinar as relações. Não era emotivo porque era capaz de paixões. A avó disse que ele se parecia a um toiro no meio duma praça e que, de repente, arremete sem que se possa perceber o que lhe chamou a atenção.

- É um visionário - disse o doutor Horácio, que lia Kant como pedagogo. Via o estado de distracção em que Martinho incorria e, ainda que isso fosse sintoma de preocupação profunda, era-o também duma natureza enganadora. Tinha muitas caras ao longo do dia e, no geral, não se podia dizer que alguma delas era a verdadeira.

O seu último preceptor, professor jubilado e com muita experiência da juventude escolar, estava mais à vontade com as emoções pela franqueza em que elas se manifestam. São mais próprias de mulheres, pela sua versatilidade; mas também há homens que se emocionam facilmente, aqueles que tiveram uma vida perigosa e que se deixam levar por súbitos desejos de redenção, chorando com a simples lembrança do lar paterno ou dum cão que morreu e de quem eram amigos. Esses são homens de acção mas não de paixão. Maria Rosa seguiu o conselho do preceptor, que lhe disse para pôr Martinho a dieta severa. Não comia pão branco senão ao chá, e carne só duas vezes por semana. Não bebia vinho, ainda que lhe fosse permitido um whisky antes de jantar. Nunca se sentava à mesa sem gravata, ainda que às vezes descalçasse os sapatos debaixo da mesa. Isto era a prova duma confiança absoluta em si mesmo.

- Não conheço ninguém que se atreva a descalçar-se enquanto come a sopa que, em geral, fumega. Os pés podem fumegar mais do que o vulcão. É ou não é? - disse Martinho. As raparigas que estavam por ali e o ouviram, mostraram-se desconfiadas. Nada as incomodava mais do que o humor dum homem sério. O humor estava ligado ao aturdimento e não à razão.

Uma das coisas que impedia que o bom gosto se desenvolvesse nas pessoas era a falta de se reunirem à volta duma mesa, escolhendo a comida e os convivas. A maior parte das vezes as pessoas juntavam-se ao acaso, sem preparação para travarem uma conversa a não ser com objectivos imediatos de melhorarem a sua vida ou dar a impressão de que a melhoravam. As pessoas já não coravam, se ouviam uma palavra obscena, sobretudo se estavam mulheres presentes, limitavam-se a sorrir de maneira rápida, como se tivessem pressa de deixar passar uma indiscrição; se o caso se repetia, alguém travava com o vizinho uma conversa que parecia importante e não passava dum par de tolices. A banalidade afasta o compromisso.

Para desconcertar a solidão em que Martinho vivia, não só pelo exibicionismo da avó, mas porque ele era um rapazinho débil, chamava para casa às quintas-feiras alguns vizinhos. Até aos dez anos Martinho adoecia sem razão aparente e tinha febre. Ficava na cama, bem resguardado no seu pijama de flanela, e comia batatas fritas. Isto durava seis dias, depois do que se levantava e ia para o jardim dando voltas à casa na bicicleta. Mal chegava aos pedais e o volante de corrida obrigava-o a uma posição incómoda. Mas a incomodidade dava-lhe um prazer invulgar; tinha uma particular admiração pelo sofrimento e imaginava possuir dons extraordinários, de transformação em pessoas prodigiosas capazes de voar e de vencer grandes perigos. Isto era, em parte, resultado dos filmes que via e que lhe provocavam uma excitação sombria. Aparentemente era obediente e amável para toda a gente, mas guardava uma soma de ideias maliciosas que um dia talvez se iriam libertar.

Sobretudo o facto de haver na sala de jantar um quadro que era a cópia da Ronda da Noite de Rembrandt. Na sua vaidade mística que não admitia contradição, Maria Rosa habituara-se a não duvidar. Para ela a Ronda da Noite era autêntica e tudo o mais que pudesse assemelhar-se era pura falsificação. Bastava um só olhar para ver que Rembrandt não lhe pusera a mão. Mas o mesmo se diz do quadro que com tanta fama se pode ver no Rijksmuseum. Filipe Nabasco, não tinha uma ideia muito clara de quem era o pintor, nem isso lhe interessava. Bastava-lhe acumular na honra da família o factor duma celebridade.

Entre os amigos de Martinho havia dois irmãos que não se impressionavam com A Ronda da Noite. Tiveram mesmo a ideia destruidora de apagar uma figura a que chamavam o quarto mosqueteiro. Nos dois anos em que frequentaram a casa dos Nabasco, tomaram como entretenimento fazer pequenas alterações no quadro como se faz nos enigmas "quais as diferenças". Ninguém ia descobrir, tanto mais que A Ronda da Noite, como a tela era conhecida, nunca foi observada com atenção. Mas isso ficou gravado tão profundamente em Martinho que sonhava amiúde com A Ronda da Noite, como uma cena que estivesse por detrás dum portão chapeado de ferro e impossível de mover. No entanto, ele abria-se lentamente e A Ronda da Noite ganhava vida. Como na realidade, tratava-se da preparação dum desfile onde todos procuravam o lugar certo, fazendo daquela agitação uma festa ou preparativos para uma festa. Os amigos de Martinho depressa cresceram e esqueceram A Ronda da Noite e os seus pequenos vandalismos. Mas Martinho não. De tempos a tempos, tinha aquele sonho, nítido e sem alterações nos seus pormenores. Constava que Filipe Nabasco tinha vendido o quadro, porque vendia tudo sem o mais pequeno remorso e mesmo sem precisar de dinheiro. A fortuna deu-lhe até ao fim da vida e Maria Rosa quando ele morreu teve algumas surpresas desagradáveis. Tinham desaparecido algumas jóias de família, dessas que não são usadas pela falta de ocasião adequada, que eram os bailes da corte, no tempo da rainha Maria Pia. Na família Nabasco houve duas açafatas cujos vestidos de gala estavam ainda guardados dentro de folhas de papel de seda. A educação que Maria Rosa (Maria Rosa Firmina, era o nome dela) dava a Martinho era ainda um resíduo desse passado que não tinha nada de austero e onde a educação literária era reputada como pedantaria. Com a viuvez da soberana D. Amélia fez-se um concerto beato entre a corte e o clero e chamaram-lhe a santa Amélia. Foi depois da implantação da República que a família se dividiu, ficando o núcleo monárquico dos Nabasco, imigrando no Brasil na época mais agitada, e tomando o rumo da esquerda os que tinham sido afectos à burguesia intelectual de inclinação republicana. No Brasil, o Nabasco desse tempo apanhou hábitos francamente vagabundos, jogava e valia-se da sua estirpe europeia para exercer influência numa sociedade opulenta e ainda ancorada nos costumes da escravatura. O hábito de presentear com ouro as criadas e que durou até aos meados do século vinte em Portugal, era, ou parecia ser, um capítulo da casa de engenho, onde as escravas se adornavam com ouro em abundância. Fosse como fosse, os Nabasco antigos trouxeram, quando voltaram do exílio, uma criada preta chamada Esperança que foi lendária, pelo lado mau, na família.

Maria Rosa teve a parte mais favorável da história porque se casou com o Nabasco enriquecido não se sabe porque combinações de negócios de guerra e expropriações, ou coisa pior ainda. Foi nessa altura que A Ronda da Noite entrou em casa, pela janela, ou seja, por uma varanda envidraçada das traseiras, porque pela porta não cabia. O facto de ter havido parentes que foram embaixadores em Berlim e Amsterdão dava um pouco de crédito à autenticidade de Rembrandt.

Os dias mais felizes de Martinho decorreram no campo, na propriedade que ficou a chamar-se a Ronda. Porque o quadro lhe serviu de estudo antes que soubesse ler e contar.

Com a saúde do avô avariada, foram para a cidade, onde havia melhores recursos médicos. E a Ronda da Noite ficou na parede, travada pelo sofá de jacarandá.

O Nabasco durou pouco. Martinho lembrava-se de que o caixão deu problemas para sair de casa, que tinha uma escada de caracol íngreme como tudo. Era a Casa do Cão, assim chamada pelas suas dimensões apertadas no meio dum parque luxuriante.

De qualquer modo, os amigos da casa mais acreditados em coisas de arte, afiançavam que se tratava duma falsificação. Ou, quando muito, duma obra do atelier de Rembrandt mas dum dos seus discípulos. Havia, ao que diziam, pinturas originais e outras espúrias que se reconheciam porque não tinham mãos ou estas se encontravam dobradas para vencer a dificuldade de as desenhar. A Ronda da Noite dos Nabasco sofria desse defeito ou digamos que evasiva do seu autor. Mas o quadro abandonado na casa da Ronda continuou a estar presente nos sonhos de Martinho. Adormecia, e lá estava A Ronda da Noite com os seus cavaleiros a tomar medidas para incorporar um cortejo mas pouco dispostos a colaborar, só a gozar a sua liberdade. Martinho acabou por tomar o sonho como uma premonição e isso aumentou a confiança nele próprio. Acreditava que lhe estava destinado um papel no mundo e que, como Cristo, nascera num lugar desconhecido para melhor formular um pensamento original. Era, aos doze anos, um rapaz de paixões e que facilmente se entregava a desvairadas crises de irrealidade ou de ambição contida. A Companhia do Capitão Frans Banning Cocq, como se deve chamar A Ronda da Noite, um homem rico e futuro presidente da câmara de Amesterdão, é uma composição atrevida duma cena que não reflecte o passado. Não é a pose de qualquer coisa que deve ser lembrada na sua imobilidade académica, mas um momento em que acção se junta com uma espécie de entusiasmo fogoso. Não é o que aconteceu que lá está, mas um acontecimento em vias de se produzir.

Por isso é que, tão inesperadamente, como o símbolo da inspiração, aparece a menina luxuosamente vestida, como uma figura de procissão mas à qual não foi distribuído o seu papel. Martinho reflectiu nisto, ou seja, na Companhia do Capitão Frans Banning Cocq, como numa charada que lhe fosse proposta a ele somente. Como lhe explicou um amigo da avó, provavelmente alguém que a tinha amado quando era nova, A Ronda da Noite não significava nada de militar, mas talvez uma confraria que se prepara para se juntar em dia de festa, tendo à frente o capitão Cocq e o seu lugar-tenente, vestidos para o luxuoso retrato em proporções grandiosas. Tão grandiosas que não coube na parede da câmara de Amesterdão. Quando o capitão foi eleito presidente, ou burgomestre, quis dar ao quadro o lugar conveniente; só que não cabia. Então mandou cortar o tambor e uma parte à esquerda, sem prejuízo da cena, ao que ele julgava. As suas relações com Rembrandt, que era íntimo dos burgomestres e os pintava com grande respeito e sofisticação (quem paga tem direito à minúcia e até a um olhar desvanecido) favoreceram o estilo do quadro. Um estilo eufórico, próprio duma alegre parada que se prepara na melhor das intenções, simulando gente armada mas, de facto, sem movimento bélico.

Martinho lembrava-se de que quando Maria Rosa punha o colar de pérolas, Bento Webster, que tinha tido numa trajectória pelas casas de vinhos, a visitava. Pelo aspecto que ele tinha, tendo já dobrado os sessenta anos, fora um elegante cavalheiro que fazia poesia e agradava às mulheres. Usava ainda luvas de camurça clara e Maria Rosa tratava-o com deferência, como se ele fosse parente da rainha de Inglaterra. O bigode loiro e a corpulência majestosa, faziam supor que fosse um filho do rei D. Carlos. Também havia a hipótese de Bento dever a paternidade ao Infante D. Afonso, a quem chamavam o arreda porque passeava em Lisboa a conduzir os seus Mercedes com mão mais inábil do que segura.

De qualquer modo, Bento Webster Soares era um homem de sociedade, casado com uma senhora da província, do tempo em que a província tinha pequenas cortes lindamente servidas de jovens e de peixe assado. Ele enganou-a sempre, porque um poeta é sempre um Eros faminto de emoções novas. Cultivava a dor imaginária e a nostalgia dos emigrados, ainda que nunca tivesse saído do Porto nem isso lhe fizesse falta. Só depois dos anos cinquenta, mais precisamente depois da segunda Guerra Mundial é que as pessoas começaram a querer viajar, mais por curiosidade sexual do que por espírito de aventura. Maria Rosa, só depois de casar saiu do país e foi ao Louvre conhecer a Mona Lisa, que estava, muito vulnerável, à altura dos olhos de qualquer estudante.

No geral, só os ricos iam para a neve, em Saint Moritz, e davam a primeira queda antes dos vinte anos. Maria Rosa, aos trinta e seis anos era o que se chama uma mulher que apetece elogiar, justamente porque não se tem a ideia de casar com ela. Era culta, polida, inteligente; e tinha muitos apaixonados, casados e solteiros, e sobretudo daqueles rapazes em vias de ficar solteirões por excesso de bom gosto e pela faculdade, que alguns têm, de antecipar as coisas, como a felicidade improvável no casamento. As mulheres costumam respeitar os incasáveis e permitem-lhes que entrem nas casas delas como se fossem maridos platónicos.

Bento Webster Soares pensou em tirar uma mulher dos braços dum marido, senão por algumas horas, ao fim da tarde. O adultério tem o seu horário, como o calista e as provas na modista tinham o seu. Já não há calistas, no Porto creio que tem dois ou três; foram substituídos pelas manicuras, o que não é a mesma coisa, nem se lhe compara.

- Um calista era uma arte, uma manicura é uma profissão - disse Maria Rosa, que tinha estranhos diálogos com Bento Webster. Como poeta, como homem, como tudo, ele estava fora de moda. Era destes homens de quem se tem vergonha de ser vista a almoçar no restaurante, mas que se convida para jantar. Fica bem à mesa e não se embaraça com os talheres. Do seu trato com ingleses, tinha uma sombria simpatia pela jardinagem; depois de regar o jardim (havia muitos jardins no Porto) vestia o smoking nem que fosse para comer uma talhada de vitela fria que já tinha três dias de frigorífico. Nunca desejara ser rico, isso pertencia a um mundo que a alma viril não habita. Detestava as mulheres muito novas e os pickles de conserva.

- Ambos são legumes avariados - disse Webster. Martinho ouviu isto, tinha oito anos, e pensou que Bento Webster Soares era de desconfiar. Desconfiava das pessoas adultas como se fossem ladrões ou chantagistas em potência. Um dia o colar de pérolas da avó desaparecia e só ele sabia quem o tinha levado no bolso do sobretudo. O colar de pérolas que servira várias vezes como caução, quando as finanças estavam por baixo e não havia dinheiro senão para as despesas elementares. Para comprar um bonito par de pérolas cinzentas, não havia; nem para trazer para o salão o espelho de Veneza com aquela moldura de flores de cristal, não havia. O supérfluo, o que envolve o prazer sensível na sensação dum objecto belo, arrastava-os como a paixão do jogo. Os Nabasco jogavam por prazer e não por vício. De resto, tinham a ideia de que podiam suspender de repente uma vasa, levantarem-se e ir embora só porque o táxi chegara. Não era verdade mas - que importa? A verdade era uma coisa prescindível e não de todo se podia avaliar.

Só os ricos sabem o valor do dinheiro, dizia o Nabasco, fumando a sua cigarrilha que lhe dava o prazer dum beijo. Como Maria Rosa odiava aquela cigarrilha! Ele fumava como se fizesse sexo, com uma lentidão mascada, uma visível audiência dada ao prazer. Nunca a beijara daquela maneira; com aquele contido ardor, o silencioso pasmo de se achar possuído. "Nem eu queria" - disse ela. E veio ao de cima um vómito, como se tomasse consciência da sua violação, qualquer coisa que a segurava à terra e punha dentro dela um insecto a que era preciso dar um nome e uma identidade. - Que querem de mim? - disse ela. A ideia de que um dia não daria à luz, nem teria prazer nem dor, agiu nela como um sedativo. Libertação do desejo e da morte.

Era decerto isso que estava na Ronda da Noite. Gente que se preparava para um festejo, a sua liberdade; mas estava armada e vestida como se de antemão lhe destinassem um papel que não tinham escolhido. O burgomestre vestido para presidir à sessão solene com a sua faixa de gala e os sapatos de laços das grandes ocasiões; o lugar-tenente, segurando a acha com que daria sinal para a audiência começar. O chapéu com plumas brancas não podia ser mais adequado. As botas acima do joelho, as galochas a meia-perna. A casaca bordada com arabescos e os cabelos ondulados como que com ferro de frisar. E atrás dele as armas aperradas, os piques alçados, risos e exclamações. O tambor-mor, o tal que ficou mutilado porque não cabia na parede; um belo cavaleiro de gola frisada como só se frisava em Amesterdão; os cascos, as mãos toscas, a bandeira, um negro ou um gnomo que foge por entre a multidão. A criança luminosa e feliz, tão à vontade no meio dos homens que vão desfilar e não combater. De repente, tudo pode mudar e todos tomam um lugar diferente na parada. As expressões mudam, aquele que está escondido atrás dum braço estendido, adianta-se. É um espião, o que sabe qual o rumo a tomar? O burgomestre sabe alguma coisa, tem um olhar surpreendido, vai tomar a palavra. Terá tempo para isso ou é apenas um gesto teatral, ensaiado, inofensivo? Pode ser mal interpretado e o capitão Cocq está em riscos de fazer da sua Companhia um montão de cadáveres. Não está previsto e tudo está em movimento. O desfecho? A menina não conta com nenhum desfecho e tem o rosto inocente e está à vontade no meio da gente que ela conhece bem, todos familiares e que lhe prometeram um lugar importante no desfile. Nos seus sonhos, Martinho, quando tinha sete anos, gostaria de se vestir como a menina, a pequena Saskia, uma herdeira rica. Punha uma camisa da avó, do tempo em que se usavam as baby-doll, e dançava abrindo os braços, sem parar. Maria Rosa surpreendeu-o mais de uma vez e bateu-lhe. Arrependeu-se logo porque Martinho não percebeu se tinha feito algum mal. Tinha os olhos cheios de lágrimas mas não se queixou.

- Não quis magoar-te - disse a avó, embaraçada. - Não gosto que mexas nas minhas gavetas.

- Não estava fechada.

- É o mesmo. Tira isso e vamos almoçar.

Deixou-o só para que ele se despisse, e o quarto tomou a dimensão dum teatro, com o arco que separava a alcova da sala onde estava o cofre e os restantes móveis. Abria para uma varanda envidraçada com estores de lona branca; era a casa-de-banho, ocupada a todo o comprimento pela tina e as outras loiças dum verde claro. Na borda da banheira, a esponja parecia ainda húmida. Estava a apodrecer e tinha uma cor parda de carne cozida. Martinho odiava ser lavado com ela, era como um animal morto boiando na água espumosa. Pensava laboriosamente no que tinha feito para encolerizar tanto a avó. Havia mistérios no comportamento das pessoas e, como na Ronda da Noite, elas dissimulavam qual era o papel que desempenhavam.

O avô Nabasco, que Martinho conhecera desde os quatro anos e depois ele desapareceu, com o cabelo cortado à escovinha e o ar divertido que ele punha para falar com crianças! Dizia sempre uma adivinha difícil de perceber e tratava todos como se fossem idiotas. Só fazia uma excepção para os Cunhas, a dinastia de criados que o serviam e em que ele depositava toda a confiança. Adão e Miguel, ao mesmo tempo hortelãos e capazes de cozinhar e servir à mesa como ninguém. Tiravam os pratos pela direita e punham outro pela esquerda. Ou seria o contrário? Martinho gostava de estar na cozinha com eles e com Ana, a irmã feia como um trovão, mas a melhor criatura do mundo. Parecia horrenda, tinha sempre os cantos da boca molhados, e os seios caíam-lhe até à barriga.

Ficara sempre apegada aos costumes da sua aldeia e, à noite, metia a camisa numa bacia de água para afogar as pulgas. -Já não temos pulgas, Ana Cunha - dizia a avó.

- Tanto faz. - Ela gostava do seu ritual, de tomar chá de cidreira à noite, de acender lamparinas aos santos, de fazer dieta quando era menstruada, isso até depois de velha e seca por dentro. - São coisas minhas, sinto-me bem assim.

- A Ana Cunha é uma bruxa, tenho medo de comer o que ela faz - diziam as novas, as dos quartos, as brunideiras e criadas de meninos. Mas não resistiam porque ela era boa cozinheira. Estava sempre às voltas com as massas e os refogados, via passar com amargura o tempo da boa mesa, dos grandes assados de peixe e dos capões recheados. Agora poupava-se, sem falar na guerra em que se comia soja e se adoçava o café com mosto. Ela durou pouco depois do armistício, a grande Ana Cunha. Deixou o oiro à Maria Rosa e dela pouco ficou; os aventais remendados no ventre porque se coçavam ao roçarem-se pela borda da mesa e pela pedra do tanque. Tinha sempre alguma peça de roupa ensaboada no lavadouro, embora se usassem máquinas para tudo. Martinho teve sempre um pouco de medo dela.

- A Ana Cunha era uma santa - disse a avó, olhando para as mãos que começavam a encher-se de manchas. Quem a substituiu foi a Elisa, uma sobrinha que, essa sim, era bonita a valer. Alta, de cor morena clara e os cabelos pretos sempre a escorregar-lhe para o rosto. Rosto cavado, olhos grandes, um ar de deusa prestável e singular. Foi casar com um tio que estava no Brasil e que ela nunca tinha visto. Assim se perdeu um modelo para um costureiro do melhor que há, em Paris ou na Itália, ou por aí. Depois de enviuvar, voltou e nunca mais saiu da casa.

Martinho não se esqueceu da cólera da avó quando o viu dançar com uma camisa dela vestida. Quer dizer: esqueceu-se mas, quando já era homem, lembrava-se; e parecia-lhe que ela tinha surpreendido alguma coisa de alarmante, como se visse a estátua de Galateia tomar forma sob os traços dum rapazinho.

De vez em quando (os Nabasco eram novos ainda, e até aos vinte e oito anos perdoava-se-lhes tudo: dívidas, mulheres de má fama e excentricidades maiores) acontecia qualquer coisa que ficava no rol dos segredos de família. Por exemplo, quando Filipe Nabasco se apaixonou por uma afilhada dele e da mulher e se separou de Maria Rosa. Não foi viver com a jovem, mas deu-lhe casa e um bem-estar de acordo com o nome dele. Não houve filhos e dizia-se que o Nabasco nunca lhe tocara. A predilecção que Maria Rosa tinha pela afilhada incomodou-o tanto que quis assumir a paixão por ela quando afinal o que sentia era ciúme pela mulher. Foi uma época de grande sofrimento para ambos, mas tudo acabou em bem e o Nabasco veio envelhecer para casa dele, passada a sua voracidade dos sentidos que ninguém foi capaz de suspeitar. Ou talvez fosse. As pessoas não deixam escapar nada do que é a onda dos afectos em que dificilmente sobrenadam e raramente se salvam. Todos vivem numa comunidade, ligados pelo sentimento de se protegerem, mesmo que tenham de derramar sangue para isso. Houve um momento em que a afilhada correu perigo de vida. Acima de tudo estava a camada nobre do procedimento e a união quase perfeita do casal Nabasco. Rangiam dentes, estalavam ossos, sob a pressão do eros insatisfeito. Mas era preciso assim para que o mundo rolasse no sentido que lhe fora dado.

A morte de Filipe não foi um drama para ninguém. Maria Rosa estava cansada de cuidar dele e o primeiro luto que fez quando soube que o marido estava condenado, durou pouco. Depressa retomou os seus hábitos e ia jantar com as amigas ou a Londres comprar qualquer coisa que lhe fazia falta. Os ricos são pessoas muito especiais, vivem por sua conta, que é uma coisa que mais ninguém faz. O gosto, que tem a tendência a estabelecer os princípios da moralidade, é influenciado pelo preço e não pela noção do sublime. O jogo da sensibilidade, desde que não haja um factor exterior que ameace o estado das coisas, é facilmente atribuído ao bom gosto, seja no vestir, ou no gozar um espectáculo ou escolher um marido ou uma mulher.

Filipe Nabasco, uma vez perdida a esperança de recobrar a saúde, viu crescer à sua volta os hábitos em que teria que morrer e que eram o seu último passo na Ronda da Noite. Maria Rosa ficou senhora do neto desde que Paula tivera filhos do segundo matrimónio, os cadetes, como ela lhes chamava. Casada com um oficial da marinha, que resumia a vida social ao círculo da sua patente, Paula depressa abandonou as praxes da família e já não aparecia no Natal nem nas férias. Perdeu pouco a pouco a memória de Martinho, de quem se orgulhava apenas quando lhe diziam que crescia em graça e em sabedoria. Não era um rapaz dotado para os tempos futuros porque não se enquadrava no comum. Em parte devido à sua educação de príncipe, com preceptores mais do que com profissionais do ensino.

Martinho chegou aos quinze anos muito ignorante da vida de rapaz, ainda que a avó lhe proporcionasse companheiros de brincadeiras enquanto viveram no lugar da Maia, numa pequena propriedade de recreio que tinha uma história secreta. Constava dum chalé pequeno onde só cabia um casal e dois criados e talvez uma cadela biegle. O lugar chamava-se Aguas Santas e nos primeiros anos de vida de Martinho pertencia a um amigo de Filipe Nabasco que faliu estrondosamente arrastando na ruína a família e a amante titular para quem ele comprara o chalé conhecido pela Casa do Cão pela exiguidade do tamanho. Mas o parque era assombroso, com um pequeno bosque de árvores raras e, no meio do bosque, um lago, com uma ilha. No meio da ilha um pinheiro rasteiro e a sombra inquietante dos seus ramos. A propriedade, de recreio, como eu disse, estendia-se em u, ladeada por tílias gigantes. Ao lado havia uma bouça onde pernoitavam os pavões que, como se sabe, gostam dos ramos altos. A lenda de que os pavões trazem desgraça não sei de onde veio. O seu grito estridente talvez concorra para a triste fama que têm. Mas, a verdade é que o antigo dono de Águas Santas se suicidara pondo o cano duma arma de caça debaixo do queixo e disparando. Tinha construído uma garagem no lugar duma capela que mandou arrasar, e aquilo contribuiu mais ainda para o mau nome da propriedade.

Nesse tempo era muito vulgar os grandes capitalistas, negociantes ou donos de fábricas, terem uma amiga nos arredores da cidade a quem dispensavam todas as atenções, menos uma: a da liberdade. Não podiam sair à vontade pela cidade nem receber senão a modista ou o estofador. Quanto à modista era algumas vezes cúmplice nas escapadelas que faziam ao regime de sequestro. Estas amantes eram em geral muito bonitas e chegavam a casar com os seus protectores caso eles enviuvassem. Pelo que os filhos não se atreviam a condenar o pai, com medo das consequências que eram o nascimento de irmãos bastardos, legitimados e com direito a herança. De qualquer maneira, a amante era um valor comum e inalienável.

Não se diga que havia enganadas entre mulheres tão prevenidas. A seriedade era uma divisa, não um sentimento.

A política era uma fórmula negocial; o poder uma fonte de informações cuja dinâmica íntima respeitava às grandes fortunas. Os bons cidadãos conhecem-se no pensamento de Danton: "O legislador deve conciliar o que convém aos princípios com o que convém às circunstâncias".

Mas, falava eu de Aguas Santas e da Casa do Cão. Muito antes de Filipe Nabasco ter comprado a propriedade (de recreio, note-se bem, o que é sempre funesto para um homem de negócios) já pesava sobre ela a lenda duma fatalidade. Houve um suicídio, depois um criado perdeu a vida a descer a uma fossa para a limpar; houve incêndio numa mansarda deixando a casa em muito mau estado, até que o dono dela se cansou de tantos acidentes e a vendeu a um amigo. Em pouco tempo, por fraude e más companhias, este ficou arruinado. É extraordinário o número de pessoas que não levam até ao fim uma vida sólida e bem ordenada. Pode dizer-se que se cansam de ser perfeitos e optam pela alteração da vontade que os leva a cometer loucuras: como perder tudo o que tinham, guardando apenas o suficiente para alimentar um vício qualquer, sem demasiada extravagância. Morrem como vítimas de qualquer sina funesta, mas na verdade entregues a uma preguiça profunda de que não conseguem ou não querem libertar-se.

Com o peso dessa má fama, Maria Rosa Nabasco não descansou enquanto não mudou de casa. Mudou para outra maior, na vizinhança, mas nem por isso se desfez no seu espírito a aura da fatalidade. Filipe Nabasco, antes de morrer, fez um pedido estranho. Quis que A Ronda da Noite voltasse a ser posta na parede da sala de jantar, caso o Torreão Vermelho viesse a ser comprado por Maria Rosa. Se havia nisso a intenção de desfazer um malefício, não se sabe. Confessou que, quando era criança, tinha pintado pequenos sinais com tinta da China, nas caras da Companhia do capitão Cocq, e que não pareciam mais do que a picada duma pulga. O sentimento de ter ofendido a obra de Rembrandt apareceu à hora da morte com atroz clamor da sua alma e mandou que se limpasse em A Ronda da Noite todo o vestígio de vandalismo. Mas não se sabia como começar, pois não havia traços visíveis de qualquer dano. O próprio Martinho se lembrava de ter visto um dos seus amigos marcar o quadro com pequenas cruzes e sinais ortográficos. Mas onde estavam eles? Com o tempo tinham-se incorporado na pintura e não era possível detectá-los.

Os Nabasco, ou o que deles restava, estavam entrincheirados na sua nova casa e era a quarta vez que mudavam, penduravam cortinas e adaptavam os móveis a diferentes espaços. Quem mais censurava aquelas alterações era Ana, a cozinheira. Estava habituada ao seu fogão de quatro bocas e à cavidade com carvão onde fazia as torradas e não se cansava de queixas e indirectas. Cada vez se vivia pior com tantas máquinas que ela se recusava a manobrar e até danificando-as por vingança heróica, em honra do tempo passado. Estava cada vez mais parecida com a Calibã de A Tempestade, e sofria de diabetes, pelo que lhe cortaram dois dedos dos pés. A voz dela, pedindo aos gritos que Maria Rosa a fosse ver, ouvia-se desde o fundo da escada. Não a escada em caracol da Casa do Cão mas outra, em leque, com corrimão de ferro forjado.

Maria Rosa, viúva, bem parecida, com fortuna indetectável e que se dizia estar a bom recato na Suíça, teve ainda pretendentes, o que causou em Martinho profundo espanto. Aos sessenta anos Maria Rosa sentia-se como que confortada com os santos sacramentos: nada lhe faltava, o Senhor era o seu pastor nos verdes prados, mas um homem era a sua ideia mais consoladora. Mas uma viúva tem sempre um escrúpulo em casar, a não ser com alguém a que o primeiro marido não pusesse objecções. Não encontrou paralelo com o Nabasco de dezoito anos, que tinha sido "a cidade" da sua vida. Aquela que tem portas terrestres e portas celestes; a que tem torres que travam as tempestades. Mas muita coisa ia acontecer. Tinha retratos dele que enchiam uma grande gaveta duma cómoda; Filipe aos sete anos com um chapéu de ráfia e de calção; Filipe aos doze quando era o príncipe Sandokan de todas as meninas em férias. Nadava bem e lançava-se de bicicleta como um corredor da volta a Portugal, ou melhor, da Itália, em competição com os maiores. Com Copi, cuja fama de campeão estava estampada nas pedras das estradas. "Forza Copi!" Aquilo, anos mais tarde, ainda arrepiava a pele do Nabasco, em viagem com Maria Rosa, um pouco mais de recém-casados. Tinham-se amado mas com reservas, porque ela não correspondia à flor das noivas, a quem as soquetes ficavam bem. Não tinha as pernas tão altas e finas como ele desejaria. E era demasiado inteligente para o gosto dele. O pai Nabasco fazia troça.

- Quiseste uma doutora, agora aguenta-te.

Maria Rosa não era doutora, não tinha nenhum curso, mas a memória dela era surpreendente. Retinha tudo o que lia, que ouvia, que lhe passava diante dos olhos. Não se parecia com uma dona de casa ligeiramente decepcionada mas assente nos seus deveres. Criara Paula com bons exemplos e mandara-a educar por freiras que a ensinaram a falar com rapazes e a sentar-se com decência e orgulho, o que é muito difícil de aprender. Um orgulho de maneiras e de nome de família, que nunca se esquece, nem que se atravesse o deserto em fuga aos soldados do faraó. Paula dera-lhe Martinho, um rapazinho dócil que pensou educar na Inglaterra em colégios nobres.

- Para quê? - disse o Nabasco. - Sai de lá um parvo chapado com manias excêntricas.

- Que manias?

- A de ir à Grécia no Inverno e a de comer roast-beef frio. Por exemplo.

- Sempre se comeu roast-beef cá em casa. - Ela lembrou-se das travessas de cristal com massa alourada no forno e dos grandes pedaços de carne em sangue, cheirando a queimado; a mostarda, os pickles, o vinagre de vinho, a soja escura. Comia-se bem nos Nabasco. Era por isso que Filipe não arredava pé. Gostava do seu banho quente, do sabonete inglês, de quem lhe cortasse as unhas dos pés. Tinha uns pés bonitos, rosados no calcanhar, palmas um pouco curvas. Usara meias de seda quando era novo, e ligas pretas. Mas não queria admitir que as usara, porque era coisa de gigolô ou não sei quê. Martinho tomara conta da casa quando Paula se foi embora com o novo marido. Um marinheiro, imagine-se! Não havia marinheiros na família dum e doutro lado. Ganhavam pouco, não se riam, tinham ideias fechadas a qualquer fantasia, eram justos, não davam gorjetas. Maria Rosa e toda a gente lá de casa andavam de táxi de cá para lá, davam esmolas como se fossem afogar-se a seguir, não reparavam nas contas e pagavam às cegas sem perguntar o preço. Tempos felizes, sem cálculo, sem deve-e-haver. Paula ia às lojas e mandava ir as compras a casa sem saber o custo de nada. Era um vício quase contemplativo o de deixar um rasto de abundância por onde passava. Além de que era bonita como o sol e se vestia como se vestem as elegantes sem moda ou à moda do ano passado. Tinha cabelos lisos que lhe faziam sombra nos olhos.

Martinho tomou o lugar dela, o lugar de tudo. O Nabasco esfumou-se como o mágico da lâmpada, e adeus aos banhos de espuma e às tesouras das unhas douradas. Martinho era o senhor da casa. Se chorava, era um levante, corriam todos, havia sempre no fogão um lote de biberões fervidos e as retretes entupiam com as fraldas descartáveis. Mas ao vê-lo rir tudo se compunha; Maria Rosa deitava-se no chão para o ensinar a gatinhar e fazia de leão, de urso, de coelho franzindo o focinho. Martinho não gostava de brinquedos, tão deliciado ficava com a avó e com as invenções dela, os teatros que ela armava, as histórias que interpretava, as mágicas que lhe saíam das mãos. Estava apaixonado por ela como nunca mais esteve por ninguém. Se não a via, encolerizava-se, atirava com tudo, batia em toda a gente. Quando ela voltava da rua mostrava-se ofendido e aquilo durava o dia todo.

- Fazes mal a essa criança - dizia Nabasco. Estava resignado àquela felicidade, na Ronda da Noite ocupava um lugar de fundo, escurecido entre figurantes e o fulgor da festa em preparação. Martinho tinha quinze anos quando ele morreu e Paula veio para o enterro a fazer-se uma carpideira. Martinho não apareceu e daí por diante não se encontravam muito. Maria Rosa não abriu a boca, tinha-se fechado uma porta que ela não queria senão fechada.

- Agora estamos sós, tu e eu.

- Estamos bem assim - disse Martinho. Estava um rapaz crescido, meio loiro, com uma barba que despontava como um véu sobre a pele lisa. Não se parecia com ninguém, fora buscar uns genes ingleses não se sabe de que natureza porque não havia bifes na família, como dizia o Nabasco, que no tempo da guerra foragermanófilo. Bento Webster Soares, que era empregado numa casa de vinhos, punha-se muito formal; respirava por todos os poros Sua Majestade Britânica e entristecia-se até às lágrimas com os amores contrariados da princesa Margarida. "O terrível sangue dos Tudor" era uma maldição que ele sentia como se fosse sua.

Webster foi um dos preceptores de Martinho. Podemos vê-lo na Ronda da Noite em terceiro plano empunhando uma bandeira meio desfraldada, e é notório que ele está em cima dum degrau, um quinto ou sexto degrau duma escada.

Se repararmos, A Ronda da Noite ou a Companhia do capitão Cocq, está disposta, senão amontoada em cima dumas escadas; e, nesse aspecto, o problema da atribuição de valores fica resolvido. Cada um ascende até onde lhe é possível, quer seja por mérito próprio ou condição social. Há os que não podem ultrapassar o seu grau de obscuridade; ou os que aspiram a valorizar-se mediante uma filiação de partido; ou ainda os que ostentam uma insígnia castrense, o casco, o fusil, o bastão e a faixa. O rumo não estava ainda definido, muito menos o percurso. Mas arvoravam todos já os títulos e as missões, ensaiando as posições e posando para a História que possivelmente ficaria muda a seu respeito.

A casa do Torreão Vermelho foi a última residência dos Nabasco. Se bem que o lugar se tivesse tornado ruidoso demais, a propriedade resistia mesmo depois de se ter declarado um incêndio que arruinou uma parte, o lado oeste, se é que não estou em erro. Para além dos muros parecia que pouca coisa tinha sido alterada. Excepto uma certa grandeza ociosa, propícia para os dias de Verão em que se jantava no jardim e se comia lagosta fria ou espargos frescos. Isso tinha acabado, não por falta de dinheiro, mas porque a riqueza já não estava a ser levada com frivolidade e merecia maior discrição. Agora eram os suburbanos que iam para a neve ou para os paraísos tropicais. Maria Rosa mal se atrevia a sair de casa, e o único luxo que não escondia era o do seu cabeleireiro.

Começava a preocupar-se com o casamento de Martinho que fizera vinte e cinco anos. Não era um rapaz como outro qualquer. Nunca ocupara um lugar de chefia ou outro, e há duzentos anos que se vivia de heranças sem contudo se ignorar o mundo e as suas oportunidades. Um dos antigos tinha tido um castelo em Aosta, outro morrera em Espanha combatendo os vermelhos. Nesse tempo, um rapaz com uma data de privilégios ia para a guerra de Espanha como se fosse para a Legião Estrangeira. Caía-se nesse buraco na areia por ladrão ou fugitivo, também por amores mal parados. Às vezes eles eram cumpridores da disciplina de quartel e evitavam a promiscuidade, o que fazia com que se tornassem invisíveis. Os Nabasco eram católicos como se esperassem ser sagrados reis pelo próprio Padre Eterno. Isto até uma certa data.

Quando se deu a revolução de Abril, Maria Rosa fez as malas, enrolou a Ronda da Noite e meteu-a no forro da cavalariça, na Ronda. Foi para o Brasil passar umas férias que se anunciaram maiores do que o costume. Não se deu com o calor, as comidas, a praia e uma certa melancolia arrebatada que se consumava no carnaval. O carnaval nunca lhe pareceu uma coisa alegre mas uma fantasia de colonos saudosos. Além do mais, Martinho deixou-a no Rio e foi-se embora.

- Este rapaz merecia umas chicotadas - disse o doutor Horácio, que o achou bem de saúde e sem explicação para aquela atitude.

- Não é atitude. É que eu lá não fazia nada.

- E aqui o que fazes?

- Vivo, como disse Barras. Não dou na vista e passo por parvo.

Quem era exactamente Martinho nunca foi averiguado. Se fazia parte dalguma elite de espionagem, isso parecia ridículo num rapaz que não teve preparação de nenhuma espécie, nem escolar, nem comunitária, nem mesmo profissional. Era um órfão da opinião pública, podia dizer-se que era um incolor com ideias. Não desejaria por nada no mundo ser incluído naquela massa de gente cujo descontentamento se cura com uma liberdade moderada. Ou, pelo menos, é o melhor meio de conservar uma chaga sem perigo de infecção.

As vezes podia-se avaliar do seu comportamento uma alma nobre e singular. Outras vezes parecia perto de estar a pairar sobre todas as cabeças sem lhes dar importância; mas a verdade é que Martinho sabia que chega um tempo em que o crime mais terrível pode ser cometido sem que cause muita reprovação; porque ele germinou desde há muito no coração das pessoas e só é preciso que ele se conjugue com o competente discurso. Aconselhou à avó que não se mexesse até que o uso da fortuna tornasse o seu regresso mais confortável. O que causou estranheza foi o facto de o Torreão Vermelho não ter sido ocupado pela gente necessitada dos bairros pobres. Todas as revoluções têm o seu vandalismo, e esse evitou o saque e coisa pior.

Ele era alguém protegido ou apenas escapava pelas malhas do acaso que pode parecer justiça do poder? Era um desconhecido, poucos o reconheceriam se fosse acusado ou suspeito, de tal modo não tinha identidade pública e não tinha hábitos nem registo de facção, não alimentava querelas, não escrevia nos jornais, não frequentava clubes e não se demorava com as mulheres. Também não as evitava. Saía com companhia e durante uma semana parecia interessado. Depois tornava-se negligente ou puritano, conforme lhe convinha. Chegou-se a pensar que ele era homossexual, isto constou nas famílias que tinham filhas para casar e de quem Martinho ignorou as intenções. Ele era um bom partido e, embora estivesse murado numa cripta que era o Torreão Vermelho, haviam de descobri-lo e chamar por ele. Bento Webster não compreendia.

- Com perto de trinta anos ou te casas ou vão achar-te um ingrato. Não te são concedidos tantos prazeres frívolos, tanta ociosidade incorrigível, sem pagares o teu tributo que é dar aos ricos o que é dos ricos, o teu dinheiro, o teu sangue e a tua vontade. Aprende com as coisas simples.

Maria Rosa espaçava as notícias, ou as cartas dela não chegavam ao destino. As pequenas causas não geravam grandes efeitos como antigamente se dizia, e Martinho mudou de repente os seus hábitos e tornou-se instável, mentindo de maneira compulsiva sem que isso fosse reparado. A sua vida parecia ser a dum inválido e ele movia-se à vontade porque não constava senão como alguém efémero e de pouca resistência.

Justamente o que ele tinha era uma resistência mental extraordinária. Não se opunha a nada mas fabricava constantemente uma espiral de movimentos, de paixões, de violência sem significado aparente, que servia para se defender, desqualificando qualquer ataque antes de este se produzir. O mundo estava preparado para a carnificina e esta era introduzida no sistema de todas as maneiras.

Maria Rosa apareceu um dia e, sem o beijar, sem pousar as malas, disse:

- Se não te casas, caso-me eu. É preciso que alguém faça alguma coisa. Que tal cultivar a nossa horta?

 

                                             CAPITULO III

 

                               O MUTANTE

O estado de Martinho foi considerado crítico. Em reunião de família, a que faltava Paula e todos os da casa dela, deliberou-se uma coisa: que Martinho estava a caminho duma hipocondria. Não uma depressão, que essa era uma tendência do povo português, mas qualquer coisa relacionada com um choque emocional. O que não parecia plausível, porque Martinho não chegara a recear nada na vida e quando a avó adoecia ele ia para a ilha de S. Giulio, não saindo senão para voltar para casa. Distribuía gratificações por tudo e por nada e tinha um paquete às ordens para ir à farmácia comprar-lhe pílulas e xaropes. Quanto a mulheres, não se interessava, ainda que, ao sábado, ficasse na borda do passeio a ver os recém-casados que eram fotografados e chegava a ir beijar a noiva como se fosse da família.

Como tinha tido uma febre tifóide em pequeno, atribuíam-lhe o que parecia um estado de confusão a uma infecção antiga. Mas Horácio Assis, o médico que defendia Martinho de qualquer calúnia incipiente, sobretudo no que tocasse a uma possível impotência, mostrava-se contrário a esse diagnóstico. Na sua opinião, tudo era resultado duma educação de isolamento e falta de competividade. Nada o afectava e a Revolução parecia-lhe uma transição para outra via de intolerância nervosa dum povo inteiro.

Porque Martinho era inteligente a ponto de perturbar alguém se travasse relações com ele. Webster considerava-o um mutante, uma espécie que não se produzia em grande número e que não tinha antecedentes na escala biológica. No entanto era, ou parecia ser, uma espécie indefesa, o que nunca sucedera em qualquer dos reinos da natureza.

O facto é que deixava as pessoas atónitas quando o conheciam e quando o seu síndroma de adaptação se revelava. Por exemplo, no tempo em que esteve longe da avó e que os seus hábitos se alteraram, tentou ter amigos e conviver mais. O que deu um resultado funesto, porque eles, arrebatados pela sua inteligência e pela expansão desmesurada da sua malícia, que era uma forma de criatividade, sofreram as consequências. Entraram num delírio que, nalguns casos, não foi possível debelar e que acabou por os perder. A inflação sexual acentuou-se neles e declarou-se uma reacção que os levou à morte prematura. Não em todos, mas alguns.

Maria Rosa achava que o casamento podia trazer a Martinho uma cura qualquer, posto que reconhecia nele um caso de hipertrofia cerebral. Não fora moldado por estudos académicos nem se sujeitara a uma educação convencional. Como Mozart, desde tenra idade, esteve livre para usar das suas tendências, o que revelou o seu génio em plenitude e sempre dentro dum magma maldoso.

Como é que o casamento podia ser benéfico para Martinho não é muito fácil de entender ou é de todo impreciso. O papel da espécie e o factor social influíam seguramente na personalidade de Martinho; e decerto havia combinações genéticas que actuavam nele mais do que a educação. Mas Maria Rosa era peremptória: Martinho devia casar-se. O seu estado revelava uma falta de disciplina mental que podia ser pelo menos atenuado com a influência duma mulher. Não uma mulher pervertida pela cultura, mas alguém muito simples com estrutura mental e facilmente aceite.

Durante um par de anos Maria Rosa não viu quem servisse às suas intenções; tanto mais que o doutor Horácio a perseguia com o seu parecer que classificava Martinho como um hipomaníaco bem caracterizado pela euforia das ideias. Tão depressa era espirituoso e meigo, como se mostrava agressivo e sarcástico. Enfim, um tipo humano em que caberia uma multidão de personagens de ficção. Com os seus olhinhos vivos por detrás dos óculos riscados pelo uso, o doutor aplicava a sua teoria, não sem o prazer de magoar Maria Rosa. Sempre a desejara e, por timidez e falta de decisão, nunca se declarara; sendo ela já viúva e ainda apetecível na sua beleza, o doutor tanto pesou as suas intenções que deixou passar a ocasião de as formular por palavras. Maria Rosa guardou azedume daquele desencontro, tanto mais, como dizia, ter um médico em casa era uma aspiração antiga do seu berço provinciano. Gostava dele e dos seus tiques meio tolos como o de se apresentar dizendo:

- Horácio Assis. Horácio, como Nelson.

Ela ria-se sempre, o que o fazia feliz. Fazer feliz um homem era um princípio que destronava o conflito. Dava-lhe razão, o que é outro princípio de absolvição. Só que ao despromover o conflito preparava-se o ajuste de contas que é afinal a relação mais usada entre o homem e a mulher. O conflito é útil como guarda da crise conjugal e mediador entre os dois sexos.

- Quero para o meu neto uma rapariga dócil e que cumpra com as vontades dele - disse Maria Rosa, fazendo saltar nos dedos as pérolas do seu famoso colar. Quando se sentia deprimida punha o colar e sentia-se mais animada. Uma rapariga dócil e obediente não ia fazer feliz Martinho. Era um mutante, e por isso não correspondia a nenhuma espécie de terapia, tanto mais que se instalara o erro quanto às capacidades humanas para a felicidade. Os homens têm uma preparação inata para a agressão como exercício de autodefesa. Se esta lhes é limitada, aparece a violência como frustração. As agressões sob todas as formas: violação, espancamento, abuso sexual invadem o campo social quando se exerce autoridade sobre a forma como ser feliz. As pessoas não pretendem ser felizes mas ser criadoras, o que mais se refere ao homem do que à mulher.

Em dada altura, quando já estava em crise o ajustamento doméstico e as raparigas faziam uma vida de vadiagem com atenuantes, pois eram mais cultas e mais capazes de gerir a sua solidão, apareceu o que Maria Rosa tanto ambicionava, uma noiva para Martinho. A verdade é que não tinha antecedentes muito recomendáveis; ela, e uma irmã, eram filhas dum casal desavindo e sempre em vias de reconciliação que logo resultava em pior agravamento das relações. As crianças presenciavam as cenas mais degradantes, e isso, longe de as assustar, dava-lhes uma noção de calor humano que o amor mais terno não poderia igualar. Era frequente os filhos de casais que se maltratam, ou até que se excitam com as sevícias em crianças, preferirem esse abrigo doloroso à segurança das instituições para onde eram levadas. Não é a desventura de Oliver Twist que faz dele um pequeno herói, mas sim a sua resistência ao mal e ao treino das suas paixões perante a ordem inevitável do mundo real.

Ao voltar do Brasil, Maria Rosa deu de cara com a casa saqueada, o papel da parede arrancado, sem que houvesse explicação para isso, e todos os electrodomésticos avariados. Os quadros e as peças de valor tinham sido de antemão negociados com antiquários. Dez anos ou mais depois, ainda Maria Rosa encontrava um objecto que fora dela, entre o recheio duma loja de bric-à-brac. Primeiro por preço irrisório, depois já mais conforme o valor do mercado. Os seus casacos de leopardo e de vison tiveram compradores imediatos. Mas o de chinchila andou muito tempo ao desbarato porque não era conhecida a sua cotação. Uma sociedade de novos-ricos emergia dos escombros das tentativas para chegar à liberdade. O que restava, no melhor dos casos, eram os Robinsons da liberdade. A ideia de que era preciso vencer ou abandonar a partida, exigia forças sobre-humanas a um povo habituado à sensibilidade caseira ou ao discurso intelectual. Os intelectuais julgavam ir ao leme dos acontecimentos quando eram remadores unicamente. Em política, na melhor das hipóteses, estava-se na leitura de Gramsci. A linguagem de Gramsci, tão shakespeariana algumas vezes, seduz os políticos cultos ou diremos "cultíssimos". O que faz com que uma revolução seja um projecto e não uma vingança, é a apreciação dos actos políticos como se fossem actos históricos.

íamos naquilo que dissemos da noiva de Martinho: Maria Rosa, porque soube da tragédia que lhe manchou a vida (o pai matou a mulher num bacanal de fúria) recolheu em casa a criança. Não tinha mais de doze anos e era duma beleza casta e com qualquer coisa de falsa erótica. Quando é falso o erotismo? Quando se distrai com a festa da felicidade.

Uma figura completamente falsa na Ronda da Noite é a da pequena Saskia no meio da gente do capitão Cocq. Não tem mais de cinco anos, era assim que Rembrandt a via com o seu sentimento enternecido mas que disfarça, se não anula, uma face tenebrosa da sua humanidade. Quanto mais ele reduz a estatura de Saskia e a faz comer o cogumelo da Alice do País das Maravilhas, mais se liberta nela o impulso da infelicidade. O sucesso e a glória tinham o sentido de o tornar insatisfeito?

A rapariguinha que Maria Rosa trouxe para casa e não tinha nessa altura mais de doze anos, era filha duma mulher a quem chamavam a Sopa-de-Massa, mas de nome próprio era Estrela. A filha era Judite, como uma tia que tinha, aleijada de nascença, com uma corcunda grande que parecia uma trouxa que troussesse às costas. A menina envergonhava-se de ser Judite porque se lembrava do enorme aleijão da tia. Quando foi para casa de Maria Rosa disse que se chamava Patrícia, que estava muito na moda. Elisa, a criada de confiança, que pertencia à dinastia dos Cunhas, logo que a viu augurou mal dela.

- Tem olhos de vaca, grandes demais - disse. Para ela os grandes olhos pintados, eram olhos de vaca. Mas Judite era uma criança bastante vulgar que não se parecia em nada com o que depois foi. Elisa costumava dizer que mulher feia em criança pode ficar bonita e depois recupera a fealdade quando for velha. "O que o berço dá, a tumba o leva."

No caso de Judite isso dava para arrepiar. A mãe fora esfaqueada, metida num cesto com as pernas partidas e atirada na linha do comboio, para parecer que fora trucidada. O pai, o assassino, estava a cumprir pena máxima e era, como detido, exemplar. Era um homem alto e de modos graves. Falava pouco e comia de cabeça baixa, sem mostrar emoção alguma. Amava as filhas e não as esquecia.

Judite, aos poucos, foi perdendo a imagem do pai e dedicou-se a Maria Rosa sem perder a sua posição de afilhada ou acompanhante que lhe dava credibilidade, senão merecimento. Maria Rosa estava preparada para surpresas como a de ver o detido, uma vez cumprida a pena ou meio perdoada, chegar para pedir a custódia da filha. Quanto mais ela estivesse valorizada pela educação e elevada pelos hábitos e redimida pelos gostos, mais ele havia de fazer pressão para a levar ou lhe pôr um preço. Assim, Maria Rosa não tirou Judite da servidão nem lhe deu esperanças de coisa melhor. Todavia, o pai com o tempo deixou de ser um estorvo ou uma ameaça. Maria Rosa passou a dar mais atenção à criança que, de resto, estava adaptada à sua posição subalterna. Era feliz com a rotina da casa, aprendera tudo o que é preciso para manter em ordem a barca da família e para fazer feliz um marido que gostasse de comer bem e a horas. A certa altura, vendo Judite a costurar à luz duma lâmpada que lhe iluminava os cabelos, Maria Rosa apercebeu-se de como ela era bonita, distraída como estava no seu trabalho. Tinha uns olhos dum azul raiado de preto, muito estranhos, e parecia uma candidata a um harém pela raridade do seu tipo. Maria Rosa disse a Webster:

- Nunca tinha reparado nela como mulher. É uma boa figura.

- É. Daqui a pouco tem-na aí a namorar com o filho dum empreiteiro que tenha um carro vermelho.

- Judite não sabe dessas coisas. E muito recatada e simples. Veja como se penteia que parece uma virgem de Murillo.

- Vejo, vejo. Mas isso não impede.

- Não impede o quê?

- Que lhe dê alguma surpresa. Com as raparigas novas nunca se sabe. Mudam como o vento.

- O principal é saber de que lado está o vento - Maria Rosa pôs-se a contemplar o pé, que estendeu para diante como se procurasse o calor do lume. Era um gesto que lhe ficara do tempo em que o fogão de sala era ainda refúgio de Inverno e reflectia um conforto perdido, com as badaladas do relógio e o ligeiro tinir da loiça quando a mesa era posta para jantar. Nabasco levantava a cabeça quando entre portas via passar a branca nesga dum avental. Era ainda o sedutor caseiro, com olho aceso para as criadas novas, que o desfrutavam, tendo, no entanto, uns sonhos parecidos com um amor tranquilo com os filhos bem tratados, almoçando fibras e iogurtes. "Bem tratados" era como se dizia dum animal doméstico. Ela estava a moldar aquela rapariga - para quê? Não tinha direitos sobre ela, Judite podia abalar com as suas coisas, um colar de pérolas de água doce, um relógio de pulso com correia de crocodilo, alguma roupa de pouco preço. As gavetas com o melhor da sua lingerie, as suas caxemiras, Maria Rosa tinha-as fechadas à chave. "Para que, não vendo, não cobice" - dizia, até para serenar Elisa que tinha dentro dela uma inveja dos diabos. Era como um tumor a crescer, a palpitar, a segregar líquidos babosos, sujos, fatais. A sua velhice, a de Elisa, era incómoda. Queixava-se muito, suspirava alto, tinha sempre ao lume um púcaro com chás, com café requentado, com tudo o que lhe parecesse alimentar-lhe o despeito. Porque cada vez mais estava despeitada por não ter nada senão uma reforma que não lhe dava senão para remédios e para ir à terra no Natal. O ouro que possuía fora todo prenda dos patrões. Pagavam-lhe a dentadura, recebiam-lhe em casa a família, em férias ou para fazer análises ou ir até às festas populares. Depois acabou tudo. Já não havia jantares, a casa grande com dez janelas de frontaria e a varanda ao meio, foi abandonada há que anos! As Carlotas, as Beatrizes, as Carolinas, tinham desaparecido, e com elas os bailes de máscaras com as "Marias Antonietas" com chapéus de plumas e cachos à inglesa. As reuniões dançantes, os casinos de Verão, as "praias de bolso", como se dizia, porque eram íntimas, em família, tudo isso desapareceu. Emília estava lá, conhecia toda a gente, recebia gratificações e um corte para uma blusa. Do cimo da escada que dava para o Torreão Vermelho, estando já acamada, chamava Maria Rosa. Fazia-a subir dez vezes a escada - e para quê? Para lhe perguntar:

- Aquela Vitorinha que cantava tão bem que parecia um rouxinol? Já morreu? Já morreu?

- Sei lá quem era a Vitorinha! Dorme... dorme...

- Aquela que vivia não sei onde e dizia versos.

- Não é do meu tempo.

Bem sabia que não era do tempo de Maria Rosa, nem dela Elisa. Mas gostava de humilhar as mulheres todas, ricas e pobres, que lhe traziam saudades da vida de paixões e de pecados, dos amantes e dos amigos, dos patrões, dos homens de balcão, de todos os que amara de maneira libidinosa ou maternal. Os conhecimentos que ela tinha de sexo enchiam uma enciclopédia. Era uma doutora, iniciava nessa disciplina as meninas da casa que a ouviam, meio por brincadeira mas de orelha afitada como os cães de caça. Como Elisa era mais velha e as suas recordações se tornavam charadas para Maria Rosa, esta teve para com ela alguma paciência. Era difícil falar com os velhos, não se entendia parte do que eles diziam. Os lugares tinham mudado, as casas tinham sido demolidas. Quem falava agora das "praias de bolso"? A da Granja, a do Piolho, a do Molhe? Todos os anos havia um balde novo e uma pá para recolher a areia molhada e fazer bolos também moldados em forma de peixe ou de estrela. E o fato de banho novo, como a gabardina nova na entrada das aulas, despertavam uma calorosa expectativa! Sempre havia alguém que causava maior surpresa, mais entendido na moda. E Maria Rosa voltava da praia amuada, ficava calada à mesa.

- Que tens, Rosi?

- Não gosto que me chamem Rosi. Todos já sabem.

- Está bem, Rosi. Não te zangues, Rosi.

Era o irmão, todo bronzeado, com uma boca de rapariga e dentes largos e devoradores. Ele tinha sorte, todos o amavam e queriam fazer parte do seu bando. Não era tímido com as raparigas e sabia-se que tinha encontros com mulheres mais velhas com as quais o amor era divertido. Usava sobretudo à americana e era o excêntrico da família. Depois, foi o primeiro a mostrar-se zelador dos costumes e quando lhe lembravam as passadas inconveniências fingia-se esquecido. Era carinhoso com Maria Rosa e ela teve muita pena quando ele morreu. Morreu de quê? Estava vivo e bem disposto e, de repente desapareceu; não foi cremado e lançado no jardim, como ele queria. Havia ainda pirilampos no jardim. Maria Rosa gostava de pensar que um deles era o irmão, coitadinho.

No fim de contas, o que era o amor das pessoas senão aquela cena do trapézio voador, dando as mãos, a fazer saltos mortais com a rede, sem a rede, e no fim, se é que havia fim, a fazer vénias de ginastas e a sumir por detrás dos reposteiros? E os palhaços rematavam, a fingir que eram ridículos, mas tristes, zangados, com vontade de deitar o fogo à barraca.

- Rosi, porque estás tão calada, Rosi?

- E tu que tens com isso?

Pensando bem o irmão era quem dava as ideias, quem inventava as conversas. Mas, assim como veio a este mundo, assim partiu.

Maria Rosa pensou que se Judite crescesse mais um palmo se tornava numa mulher muito interessante. Até podia passar por alguém que pertencesse à realeza e calhasse de usar uma tiara na cabeça.

- Por esta é que eu não esperava - disse Maria Rosa. Primeiro disse isto ao seu cão, que desenvolvera uma inteligência humana e percebia muito do que se lhe dizia. Mas depois teve de se aconselhar com o doutor Horácio. - Não pensava que a pequena se pusesse assim.

Assim, era como um jardim de Maio. Tudo nela brilhava e os seus quinze anos pareciam as pedras dum rio onde a água passa como prata azulada. O tom de pele de Judite era azul quando lhe dava a luz do poente. O doutor Horácio disse que era um tom de pérola.

- Qualquer dia o meu neto vai reparar na criatura.

- Se não reparasse é que era para estranhar. Porque lhe chama criatura?

- É como se dizia em casa dos meus pais. Alguém que está pronta para levantar vôo, entre a rola brava e a pega. Os rapazes olham para ela quando sobe a escada, que é a melhor maneira de apreciar uma mulher. Porquê? Sei lá porquê?! O talhe, a perna, a anca que balança como um barco. Digo-lhe que há muitas que mostram o que são, o que querem e o que vão conseguir, só com subir uma escada.

O doutor Horácio pensou que Maria Rosa, velha e com artrite, ainda comovia, ainda era suculenta como sopas de chocolate.

- Já não se sobem assim tantas escadas. Há elevadores.

- Já não se podem conhecer as mulheres pelo andar. Elas correm, atropelam toda a gente com as mochilas, saltam dos passeios com os braços abertos como se fizessem patinagem. - Fez uma pausa. - Não sei quem na família foi corredor de patins no Brasil. Eu encontrei no Brasil uma data de parentes mas não se pareciam nada para o nosso lado. Tinham raça aimoré ou então japonesa, é parecida. A criatura vem trazer o chá. Repare bem nela.

Quando entrou Judite, depois de bater duas vezes com a ponta do dedo, o que era talvez a maneira de se distinguir duma criada, o doutor pôs-se a olhar para ela, esquecido dele próprio. Não via Judite desde o Verão, estava-se perto do Natal. Era extraordinário como ela se modificara. Não era ela, era outra pessoa, segura de si, e isto criava uma indiferença sedutora à sua volta. Será que essa respiração profunda, vinda das arcadas do peito como um jorro de lava, a conduzia a uma passagem até aí ignorada, a passagem para a liberdade? Teve pena dela junto com uma espécie de inveja. Como homem, aquele caminho era-lhe interdito. Há muito que depusera o seu preço aos pés de neve da liberdade. Seguiu-a com os olhos; mas a estatura dela ondulava na linha do fumo que o cachimbo do doutor, belo homem no seu tempo, agora desfigurado pelo abuso do álcool ou (quem sabe?) por alguma droga cada vez mais ineficaz, levantava no ar onde se tinha queimado açúcar. Aquele cheiro da sua infância perturbou-o como se alguém espiasse os seus segredos nocturnos.

- A minha mãe queimava açúcar no quarto quando estávamos doentes - disse, por dizer, como se recuperasse a conversa da distância onde a deixara.

- Como se fez tarde! Não vi o tempo passar.

Maria Rosa estava a despedi-lo. O doutor reviu todo o percurso feito com ela, tudo em pormenor, os vestidos que ela usava e que ela escolhia minuciosamente antes de se deitar; para no outro dia não ter desculpa para a demora no quarto - que acabava sempre por acontecer. Não saía do quarto sem desmanchar a cama como a cama dum animal morto e que não voltaria mais a servir-se dela. Sacudia as almofadas cujas penas escapavam sempre e ela segurava com o dedo molhado em saliva. E, sobretudo, não aparecia despenteada nem ao gato que a esperava atrás da porta para ir comer o seu prato de biscoito. Era um gato com uma genealogia suspeita, que bufava a desconhecidos e tinha uma ideia muito segura do que era uma poltrona ou uma cadeira.

Havia muito tempo que Maria Rosa sujeitava Judite a um exame severo. Disse, mexendo a sua xícara de café, não demasiado para que o açúcar não derretesse todo e no fundo ficasse uma pequena crosta como um rebuçado que ela comia com delícia:

- O que temos aqui? Uma rapariga pouco inteligente, mas Deus sabe o trabalho que nos pode dar uma rapariga pouco inteligente. Ela sabe muito bem o que quer da cinta para baixo, todas as mulheres o sabem. Mas na área do cólon começam as coisas mais sérias.

Bento Webster estava nesse dia particularmente feliz. Tinha bebido o seu Porto deixando-o demorar na boca até sentir um ligeiro ranço nos dentes. Era um apreciador de Porto, nascera rodeado desse aroma quente e à sua mesa, corria, depois de jantar, o frasco de cristal que o dono da casa passava pela esquerda até que o último conviva se servia. A mãe de Webster, uma senhora alta, com um alfinete de corais preso na blusa, levantava-se e ia guardar o vinho à chave. Não voltava a sentar-se; os homens ficavam sós. Iam fumar para a sala ao lado e caíam numa modorra entrecortada de idas ao water-closet. Juntos, os comensais não eram agradáveis, mas cada um por si não deixava de ter qualquer graça e particularidade. Bento ouvia-os contar anedotas e falar de negócios, isto quando já tinha dezoito anos. Saía para a varanda e encostava-se nela. Via os vultos que se moviam a passear na sala. Andavam quilómetros sem deixar a área da alcatifa cinzenta com algumas nódoas.

Nas paredes, quadros com paisagens e mares em fúria. Quando estava descontente e se zangava com um amigo ou com a namorada, ia ao paredão de Leça de carro, até que as ondas lhe lavavam os vidros. Era uma sensação forte, de perigo íntimo, que ele não desejava partilhar com ninguém.

Não amava a noiva, casou-se para cumprir com uma obrigação social. Era bonita, mas casaria na mesma se fosse aleijada, até a respeitaria mais porque a infelicidade o comovia profundamente. E escrevia versos.

Aos quarenta anos, ou pouco menos, apaixonou-se por Maria Rosa. As outras mulheres punham-na de parte tanto quanto podiam. Era mais culta, lia as páginas literárias e não usava chapéu, o que era um pouco subversivo. Uma fitinha de veludo castanho coroava o seu cabelo penteado à Diana Durbin. E os rapazes, com medo de desagradar a quem enumeravam como casáveis, não a abordavam francamente. Maria Rosa teve sempre uma fama que não era imaculada. Diziam que ia com mulheres para a neve ou que se deitava com homens ricos que gostavam de privar com parceiras duma tarde da alta sociedade. Nada disto era verdade, mas um pequeno indício conduz a uma prova sonhada.

Já tinha mais de sessenta anos e Bento Webster amava-a com o consentimento da mulher dele que era fleumática como todas as mulheres fiéis. Permitira-lhe sempre amores mais ou menos platónicos com mulheres casadas. Elas têm a segurança dum preservativo e não havia o perigo de bastardias. Era ela quem o mandava sair para os serões de Maria Rosa Nabasco. As vezes um aluno do Conservatório ia lá tocar piano. O Porto gosta do fora de moda como se gosta duma mésaliance, ou seja, duma inconveniência com humor.

Depois de viúva, Maria Rosa continuou a receber os amigos, a quem dispensava cuidados que a inteligência lhe ditava e que eram quase sempre relacionados com a saúde.

- Não me diga que a sua tosse voltou. Não faz nada contra isso?

Ele sentia-se querido, amimado, mais do que se a mulher lhe fizesse uma cena de ciúmes. As grandes prostitutas são procuradas pela sua perfeita cópia do maternal. Mas as grandes amantes conhecem que a alma do homem está no medo da morte. O pulso tem mais poder do que o coração.

A Elisa não escapava nada. Chamava fingida a Maria Rosa, fazia trejeitos nas suas costas. Conhecer-se como inferior, é um reino. Era ela quem odiava a Ronda da Noite, pelas dimensões, as personagens, a cena de que não percebia nada, a mistura de mosqueteiros, arcabuzeiros, brilho de sedas e um esgueirar de pessoas que não era possível saber o que fazem, o que querem, que utilidade têm. Às vezes passava-lhes o aspirador com um pouco de maldade, como se quisesse levar-lhes os bigodes, as faixas, os títulos e os bastões de comando ou os piquetes de guerra.

- Cuidado, nem sabes o que fazes. Isso vale uma fortuna - prevenia Maria Rosa.

- Não se aflija! - e para as suas entranhas Elisa dizia: "Um dia de chuva em Maio na minha terra vale mais do que isto".

Ela era doutros tempos, outras memórias. Havia sempre algo para contar à vizinha, grandes queixas, lamúrias, como se exibisse valores. O povo português lastima-se para ser lastimado, que é sempre prenúncio de lucro. As pessoas unem-se pela clandestinidade que há em ter sucesso. É-se feliz em enganar, porque no engano há sempre um fio de expectativa que nos favorece.

Quando Martinho se tornou homem, os amigos da casa viram- se lesados na intimidade que gozavam junto de Maria Rosa. Ele passou a ocupar a casa por inteiro. Já não era só nos jantares com os Brandões e os Pestanas e algum inglês de pronúncia tortuosa, mas também quando o incluíam nas conversas propositadamente sérias e instrutivas. Martinho desconfiava que entre eles as conversas não eram tão solenes. Riam-se como doidos e por pouco se atiravam das janelas de tanto rir e inventar piadas. No fim de contas, Martinho aprendera a ser sisudo, mas o que encontrava eram homens que não perdiam uma ocasião de se divertir. Parecia ser melhor gozar a companhia uns dos outros e rir com estrondo, do que estar na companhia de mulheres e dar uma boa imagem de cavalheiros.

- Avó, eles não são recomendáveis, ao que parece.

- Não te fies no que parece - disse ela. - São muito benquistos.

Benquisto era uma coisa inseparável de qualquer deformidade. Ter os pés chatos ou orelhas grandes demais. Martinho via-se ao espelho do quarto de banho que dava sobre os quintais vizinhos, o quarto de banho da avó com uma banheira onde cabia um caiaque, e desanimava. Tinha a cara cheia de sabão mas a barba mal despontava. "Serei benquisto" - pensava. Tinha-se feito um rapaz que felizmente não era bonito por aí além e que sabia entreter as senhoras velhas, dando-lhes a mão para descerem um degrau. Já não se acendia o cigarro a uma mulher, mas ele fazia-o, com surpresa de toda a gente. "Donde vem este? Não deve saber nada de mulheres, só de matemática." Mas ele era um mutante; se fazia coisas antiquadas era porque guardava nos labirintos do cérebro coisas que executava quase de forma automática.

No primeiro momento (ofício dum mutante) Martinho exercia uma impressão de ser um inimigo. Era um inimigo mas oculto por mais de cem artifícios e simpatias. Descreviam-no como alguém amável e quase distraído ao ponto de se poder falar de tudo diante dele, como se ele não estivesse presente.

Nunca tinha pensado em casar mas, sem hesitação, aceitou a proposta da avó a esse respeito que era casar com Judite, e ponto final.

- Ponto final, agrada-me. - Judite não te agrada?

- Ah, não! Não é isso. É uma perfeição, mas que é que eu faço com uma perfeição? As raparigas perfeitas são tremendamente banais.

- Sabes porque é que te falo de Judite? Porque é própria para um rapaz puro como tu.

- Eu não sou puro, avó. Um rapaz puro é um cínico e eu não sou cínico. Judite está bem, já disse.

- Estás a evitar-me? Conheço-te; estás a evitar-me.

- Não estou nada. - Ele tirou do bolso uma pequena lima e pôs-se a corrigir o oval duma unha. - Desculpe, avó. Parti-a não sei como. Diz que me conhece. É bom ter alguém que nos conheça.

O feitio discreto e amável que ele tinha era um facto, estava em parte relacionado com a vida solitária que levara. Não lhe proporcionaram contactos com outros rapazes da sua idade nos estudos, onde tudo começa: brigas e afectos, aspirações e desistências. Martinho aprendeu a não lutar com pequenas opções, reservando-se para as grandes quando fosse o caso. Muitas das suas forças eram poupadas e no seu espírito acumulava razões para vencer. Mas, vencer o quê? Onde estavam os inimigos se não os provocava? Onde estavam os caminhos se não os abria? O mundo era grande e ele tinha de começar por algum lado. Obedecer parecia-lhe uma forma de proteger-se da imaginação, que era uma das fraquezas da alma. - Esta criança não tem imaginação. Por isso é tão bom aluno - diziam os professores. Era verdade. Tudo o que fazia era automático e lógico e assim atingia uma nota sempre alta em matemática. A terrível mat. em que os portugueses se quebravam como contra um rochedo. Mas não lhes proporcionavam tantos encantos da imaginação? Não estavam eles, como o criado que serve à mesa, de que Kant fala, tendo na cabeça algo de grave e que o persegue, como um eco duma música de baile?

Martinho não se distraía, ainda que usasse de ocupações afins, como a leitura, que lhe proporcionava o equilíbrio necessário para conservar as forças da mente. O casamento com Judite parecia-lhe adequado porque fazia parte do jogo com coisas levianas sem contudo alterarem o seu estado de atenção profunda. As mulheres reagem contra essa preocupação do homem, que não sabem em que consiste mas que as erradica do colóquio com ele próprio. O colóquio prejudica a relação. Todos os desequilíbrios entre o homem e a mulher estão acentuados ou provêm inteiramente dessa presunção do diálogo que não protege as afinidades, só as cultiva erradamente.

Judite tomou como uma felicidade o casamento com Martinho. Sabia que a intimidade com ele não seria possível, nem ela a desejava. No fundo estava preparada para o que viesse, inclusivamente ser abandonada por ele. Todas as mulheres são, de antemão, abandonadas. Quando não o reconhecem entram numa delirante função de pensar contra si próprias.

Maria Rosa teve a inteligência de a criar para a companhia dum mutante. Judite nunca entraria na área proibida que era a do homem em mudança de pele, como a serpente. "A serpente que não muda de pele, morre." Isto é sabido, só que a mudança é vista como o desesperado objectivo contrário: ficar no estado em que se encontra, de prazer e de felicidade. Para isso, a melhor proposta é mudar de mulher, o que, nalguns casos e se a fortuna o proporciona, equivale a uma repetição de situações forçadamente delituosas. No delito o homem simula a intensidade da paixão.

Os primeiros tempos para o casal foram de entendimento quase absoluto. Mantinham-se os hábitos de celibatários com o acréscimo duma regra nova: o direito do mais débil que correspondia a uma ordem dos Cavaleiros de Malta ou algo parecido.

- O poder está no homem - disse o doutor Horácio. Nunca perdia de vista este princípio da inteligência entre todas as coisas, e às vezes até abusava dela no tempo em que tinha consultório e operava nos hospitais. Era para ele profundamente agradável (se há outra palavra, não me ocorre) um doente deitado numa cama e à sua mercê. Era um ritual o segredo quanto ao verdadeiro estado do enfermo, e não chegava a ter consciência disso. Em mente, simulava quase a violação com a disponibilidade dum corpo e as suas diferentes e contrárias formas do prazer. Não lhe eram desconhecidos os territórios que o rei da Pérsia procurava, onde um novo prazer fosse descoberto. Evidentemente não se dava conta da situação, mas muitas curas obtivera com a cooperação sensual dos seus pacientes; como se atingissem ambos o cerne do milagre.

Maria Rosa sempre teve para com o doutor Horácio Assis uma atitude maliciosa. Punha o seu colar de pérolas e esperava-o deitada na cama, não como doente mas como amante. Não trocavam nenhuma palavra licenciosa, mas subentendiam todas as indecências da alma que sempre acompanham as do corpo.

Quando Maria Rosa fez a sua menopausa (período de humilhação e penitência que o homem não deixa escapar) criou-se um ambiente de perfeita não-beligerância entre ela e o doutor Horácio.

- Você não fala nisso e eu não deixo de me rir - disse ela. O doutor Horácio percebeu os danos que resultariam para ele se Maria Rosa lhe recusasse esse alimento vital do riso. Evitou toda a alusão a um luto da espécie, fechada a mandíbula uterina, e tudo passou sem carnificina de maior. Dir-se-ia até que Maria Rosa descobriu aquilo que o rei persa procurava, instituindo um prémio para quem lhe trouxesse a novidade dum prazer desconhecido: o do riso mais deleitoso e informativo quanto à alegria. Talvez a verdadeira mutante fosse ela e não Martinho. Mas era fora de dúvida que Martinho era uma criação de Maria Rosa, ou ela activara nele um dom que talvez todas as pessoas tivessem. Um dom de euforia miudinha que não se fazia entender à primeira vista; nem à segunda, porque passava despercebida a todos que têm por virtude própria tudo o que lhes acontece.

Desde criança que Martinho se apercebeu duma força maliciosa mas sublime que tinha sobre as criaturas, pessoas ou animais e até plantas. Quando se tratava do jardim da Casa do Cão, prodigioso jardim onde cresciam como árvores as gardénias, não era visível qualquer poder agindo sobre ele. Mas desde que Maria Rosa transplantou o jardim para a sala de estar e até as varandas adaptadas a estufas, as coisas começaram a acontecer. Judite ficou grávida logo no primeiro mês de casada, mas abortou espontaneamente. Martinho disse-lhe que não era saudável passar muito tempo junto das plantas; o ar era absorvido por elas até ao ponto de se tornar malsão. Mas Judite não tomou aquilo a sério. Todavia, às vezes, tinha a impressão de que as plantas a espiavam. Mudavam de posição, não todas, mas algumas, e pareciam ter expressões e até trocar palavras inaudíveis. Não falou disso ao marido senão quando teve o segundo aborto.

- Tens razão. É melhor acabar com aquilo - disse. Estava muito cansada, perdera muito sangue e o doutor Horácio pediu para ser vista por uma junta de especialistas. O que apuraram não era muito animador.

- Não tem nenhuma malformação mas tem, no entanto, qualquer coisa que não nos agrada. Há casos na família de que nos possam pôr ao corrente?

Maria Rosa não sabia nada sobre o quadro clínico da família de Judite; excepto do crime do pai, de resto um homem sem antecedentes e que ia morrer de pneumonia, como se disse. A mãe era uma mulher robusta, alta, com a natureza da loira geniosa, com tendência para a bebida. De resto a fúria ciumenta dela tinha muito dum apetite que não era sexual. Maria Rosa não sabia mais nada.

- Nada de que eu me lembre. Foi criada cá em casa e foi sempre regular em coisas de mulher.

- Que coisas? - disse um dos médicos, com uma ponta de cinismo. E Maria Rosa tomou a peito aquele tom, não disse mais nada.

Passaram os primeiros alarmes e Judite recobrou a saúde. Tornou-se de repente muito garrida, saía mais e passava o tempo em compras e nos cinemas. Tinha o pressentimento de que estava ameaçada e que tudo tinha a ver com o seu casamento. Gostava de Martinho, mas não se sentia bem ao lado dele. Recusava-se a acompanhá-lo e achava sempre pretextos para se afastar dele. Talvez acontecesse o mesmo com todos e os filhos serviam para estabelecer as distâncias entre os casados. O exemplo estava bem perto pois Maria Rosa dizia que Paula lhe servia de escudo contra uma intimidade nupcial.

- Nupcial, digo bem. Mantinha-me dentro do contrato mas fora da satisfação. No casamento não devemos estar satisfeitas para não ficar saciadas - dizia Maria Rosa.

Ela lembrava-se de se recusar a viajar com o marido, não encontrava prazer em ir para hotéis luxuosos onde tudo lhe era estranho, a começar pelos espelhos. Precisava de dois dias, pelo menos, para ser adoptada pelos espelhos e para fazer funcionar as torneiras, ou para decorar os números de serviço nos telefones. Não gostava de pequenas surpresas, de escolher roupa de viagem, de emalar conjuntos a dizer, que se revelavam sempre desirmanados.

- Agora não posso sair. Paula precisa de mim.

- Paula tem quem trate dela. Com doze anos sabe muito bem ficar só - dizia o Nabasco, meio enfadado. Habituou-se a não ter a companhia de Maria Rosa fora de casa que até se esquecia dela quando a levava. Mas nada disso era importante nas suas vidas. Ela não teria amantes porque prezava muito o segredo do corpo e ele, se deparava com alguma tentação, não lhe dava o valor duma substituição. Dizia que não deixava bastardos atrás dele mas, no enterro, apareceu um rapaz que ninguém sabia quem era e que se manteve à parte com um ar nem afligido nem nada. Maria Rosa disse:

- É talvez um filho dele. Deve ter sentimentos preguiçosos.

E não pensou mais nisso. Às vezes, todavia, pensava que algum dinheiro tinha sido desviado e até um colar de âmbar que lhe faltou podia muito bem ter ido parar a outras mãos. Um homem não distingue entre o que é possível e o que é impossível. Enquanto que para Deus, segundo Kant, não há distinção entre o que é possível e o que é real.

Quando Filipe Nabasco morreu, Maria Rosa decorou de novo a casa. Pendurou A Ronda da Noite na entrada, que ampliou por esse motivo. Quem chegava tinha imediatamente aquela recepção do capitão Cocq e o seu ajudante, resplandecentes de felicidade e de cerimonial. Era como se fosse acolhido em plena festa e convidado a entrar nela.

- Caramba, Maria Rosa, não se espera este acolhimento. Só falta ouvir o tambor do tamborileiro.

- Falta mais do que isso - disse ela. - Alguma coisa como a santidade do real. A santidade do real é o que faz o artista.

Ela tinha ido, com os anos, ganhando uma patina de velha prata, com os cabelos francamente brancos segundo a sua fórmula de que o branco intimida. Às vezes, para se levantar de manhã, tinha que passar de relance os olhos pelo seu guarda-roupa, para se convencer a sair da cama. Seria outra com outro vestido e outra cor nos lábios. Agora via-se mais ao espelho, o que era sinal de que envelhecia. As mulheres novas guardam a imagem da sua juventude desde pela manhã; as mais velhas têm que corrigir a impressão que lhes deixou o primeiro olhar do dia. Agora preocupava-se com Judite. Seria que ela não queria filhos de Martinho e achava incestuoso o casamento com ele? Grande parte das mulheres não querem filhos de homens que admiram. Preocupava-se com Judite mas não lhe fazia perguntas. "O que for, soará" era o dito favorito de Elisa que começava a perder-lhe o respeito. Era qualquer coisa de imperceptível, como num sonho interrompido e que não se podia reatar. Tratava-a por você e depois desculpava-se.

- Agora toda a gente se trata por você... Isto pega-se.

Não se pegava, mas com esse desleixo de linguagem acudia-se a um despeito profundo. Afinal a revolução não emancipara os pobres, os infelizes, só os tornara menos anónimos. Lamentavam-se como crucificados, mas faltavam os meios para os descer da cruz. Tinham a absolvição, mas não o bálsamo, que já não era o reino do céu. A impaciência excitava a inveja; a solidão era um novo gueto, evitavam-se as coisas tristes, dava-se preferência ao riso, à barafunda, ao circo, à história projectada com um efeito clínico da sexualidade. As mulheres não perdiam de vista o amor empregando a habilidade para chegar aos fins pretendidos. Faltava porém a exactidão, por falta de meios para obter um resultado fiável. Faltava a confiança que nos é dada como ideia duma perfeição suprema.

Martinho, que ocupava o tempo a gerir as inúmeras heranças de Maria Rosa, terras exaustas e votadas ao abandono, valores praticamente reduzidos a ruínas, passava muito tempo fora. Durante semanas a fio não era visto e não mandava mensagens. Os dias eram para ele iguais, como se fosse um colono numa estância penal e preferia contratar estrangeiros de Leste porque esses não tinham lugar para novas amizades. Queriam ganhar dinheiro para comprar uma casa na aldeia deles e um belo dia desapareciam como se empreendessem uma fuga. Não se despediam e deixavam para trás tudo o que lhes estorvasse na viagem: roupas, electrodomésticos e um saco cheio de meias velhas por lavar. Martinho sentia um pouco de tristeza, mas era o seu preconceito de posse que falava; como se escravos se evadissem da sua herdade e contassem mais com uma liberdade sem condições melhores para sobreviver. Quanto mais eram bem pagos e cheios de benefícios, mais se acentuava neles o desejo de perder, de retomar as dificuldades que os tinham trazido em busca de trabalho. Voltavam para o seu clima inóspito e para as suas comidas e a sensualidade do que é conhecido e amado. Numa das suas estadias fora de casa, Martinho foi saber o que se passava com um casal de checos que desaparecera. Não foi difícil encontrá-los, tinham-se separado e estava cada um para o seu lado.

- Pareciam tão unidos! - disse Martinho. A mulher, muito bonita e com os cabelos loiros desatados, encolheu os ombros.

- Nós estávamos unidos pelo perigo. Quando voltámos não precisávamos mais um do outro. Os vizinhos, os parentes, até os nossos garfos e facas no louceiro, nos davam confiança.

"Aí está o problema da confiança", pensou Martinho. Tinha um casaco forrado de cordeiro da Rússia e durante muito tempo ia tirá-lo do armário para o acariciar. "A confiança é melhor do que o amor. Estamos todos a morrer à sede por falta de confiança."

Nesse tempo esteve observado pela polícia, que fez o que pôde para lhe encontrar qualquer culpa: de contrabando, de negócio ilegal, qualquer coisa que fosse. Não admitiam, segundo a sua regra profissional, que Martinho andasse pelos aeroportos numa simples viagem que não se podia dizer de recreio. Perdia às vezes os aviões e, no meio duma turba desorientada, ia parar a um hotel de luxo onde o albergavam como se fosse um turista com grandes meios. Admirava-se do tratamento que lhes davam, dos almoços pantagruélicos e da simpatia das hospedeiras. Mesmo assim, tinham que ouvir recriminações e protestos dos que não passavam de vadios de férias pagas. Era uma gente ingrata e mal comportada. "Como posso gostar deles?" - pensava. E reprimia a ideia de os ver esmagados por uma derrocada qualquer, sequestrados, reduzidos a cinzas. Eram uns desagradecidos; e quando se riam era com afectação e maldade.

Mas havia surpresas. Um dia, numa dessas demoras de gare deparou com um casal e a filha de quinze anos. Eram professores e tinham como destino Lisboa, onde participavam num congresso sobre o ambiente. As coisas foram dum efeito nuclear, não havia outro nome. A mulher tinha uma graça particular, era uma judia de Nazaré. Diz-se que as mulheres de Nazaré têm uma beleza especial e todas se parecem, a ponto de ser possível atribuir-lhes um parentesco com Nossa Senhora. Elas parecem reinvindicar um traço fisionómico que define uma individualidade partindo do seu interior. É a compaixão. A mulher descobriu Martinho como se ele estivesse no meio duma multidão e em volta dele houvesse uma luz radiosa e que, no entanto, era parte da diversidade de tudo que o rodeava.

Desde esse momento ela não abandonou mais Martinho. Podia dizer-se que queria servi-lo em todos os passos que ele dava; trouxe-lhe café, deitou-lhe açúcar, viu como ele o bebia com uma espécie de devoção. Incutiu no marido e na filha a sua extasiada presença e, no hotel para onde foram mandados, na noite lúgubre e como que insensata, com uma chuva miúda a escorrer nos vidros da camioneta, ela bateu-lhe à porta do quarto para lhe levar creme de barbear e um pouco de cicatrizante para o caso de se ferir. Falava um alemão em que se não perdia uma palavra do que dizia. Nenhum gesto ambíguo, nenhuma fantasia da imaginação.

Ela olhou para Martinho com tal transporte de felicidade que o coração dele bateu, advertido pela unidade interior que era o fundamento das suas vidas.

Depois, não se passou mais nada. No dia seguinte partiram todos para Lisboa e lá se despediram duma maneira vulgar, como pessoas que esperassem a bagagem ao mesmo tempo. Nunca mais se encontraram.

Mas Martinho ficou persuadido de que, como na Ronda da Noite, havia os traços fisionómicos diferentes de todas as pessoas e uma dádiva interior que tinha a consistência divina que as unia. Tinham cargos diferentes, tentavam acertar no desfile conforme um programa de festa (dizia-se mesmo que a Companhia do capitão Cocq devia escoltar a comitiva da rainha Maria de Médicis) mas, desde o íntimo de cada um, tudo estava alinhado e não havia qualquer desordem neles.

E se Martinho fosse um mutante? Desde criança que ele agia nas pessoas com alguma projecção que lhe era estranha. Não diz George Simmel no ensaio sobre Rembrandt, que a juvenil história de Jesus é concebida dum modo completo, profano e pequeno? Sem exaltação e sem o que se chama mística com tanta ostentação, aludindo ao uno até no sentido político e militar? Lembrava-se de como as outras crianças (algumas pobres, filhos de lavadeiras e de operários que Maria Rosa chamava como para dar exemplo de beatitude social) o rodeavam automaticamente, como se todos os conteúdos interiores fossem um só fenómeno desde o fundamento da vida. Um sentimento ardente que perdurava até nos sonhos e nas mais humildes tarefas ou cargos superiores que viessem a desempenhar, como se não houvesse nada entre o homem e a sua profundidade.

Ele sabia que o que dizia Maria Rosa às suas criadas não passava de presunção ou de simples recomendação escolar:

- Quando limpam o pó ou dão lustro aos meus sapatos estão a servir a Deus e não a mim.

- A senhora é que nos paga, há alguma diferença. Passando em revista as criadas dos Nabasco, Martinho encontrava maravilhosas condições de êxtase para ele próprio. Elas trabalhavam como Rembrandt, como se isso não fosse um fim, mas um meio para alcançar a suprema cultura, a paz do sentimento e da vontade, que sempre nos atraiçoa. As criadas eram: Elisa, sobrinha de Ana Cunha, mulher muito feia e com uma anca mais alta do que outra. Não lhe tendo sido possível simular que era simétrica e bem talhada com a moda das anquinhas, feita expressamente para a rainha Maria Leczinska, Ana Cunha nem sequer chegava à sala em dia de visitas. Outra, era Armanda, inteligente, crítica, sem nada de rústico e tão convertida às cerimónias que ia abrir a cama dela antes de jantar para ter a sensação de que era mais do que uma cozinheira do trivial.

E havia Marina, dum génio tão desabrido que as portas tremiam com os seus passos. Os homens tinham-na magoado, mas fez por esquecer pondo uma energia assustadora a limpar as pratas e a brunir até os panos do pó. Tantas figuras da mocidade à velhice! Tantos humores diferentes e estruturas que deixavam Martinho assombrado. Evitava-lhes dar trabalho. Muitas vezes ia passar a ferro as calças, à noite, estando todos deitados e depois dizia que não chegara a usá-las. Deixava sempre na travessa um bife dos melhores, que não parecesse sobra. Dava-lhes chocolates dizendo que não os podia comer. Elas percebiam e entrelaçavam aquela religião fora de toda a mística com a paixão obscura de serem iguais no discurso da vida.

Agora já não era assim. As raparigas do serviço doméstico, o mais bem pago do mercado, punham máscara de beleza e jogavam no bingo. Mas não tinham o sentido profundo dum amante, como Armanda, que toda a vida amou um cantor ligeiro e tinha como efeito da sua paixão o ser feliz nas nuvens.

E se Martinho fosse um mutante? Nada de transcendente e de superior, mas uma centelha de animação que a tudo dá movimento e sentido. Maria Rosa mostrava o seu descontentamento porque ele não se desenvolvera como era previsto. Tornara-se insignificante e perdera muito cabelo. As vezes, ela não resistia a demostrar-lhe que ele ficara muito abaixo das suas expectativas. O amor precisa então de reforços para se orgulhar daquilo em que se aplica? O incessante apelo à beleza, os recursos para a corrigir e despertar nos mínimos pormenores era uma forma de cativar o amor que andava perdido num deserto de planos que não chegavam a ter execução. A possibilidade de errar, que está em toda a obra que se realiza ou não chegou a ser, é o sentido do amor. Martinho via, todas as vezes que chegava a casa, antes de pousar a mochila e o saco de viagem, que A Ronda da Noite estava lá para lhe transmitir o que nunca tinha sido dito; que o trabalho da mão não estava acabado e que a objectividade das cenas eram apenas vestígios do impulso que levava o artista a pintar. As suas imperfeições, exploradas nos auto-retratos até à exaustão, estavam em relação com os fundamentos da vida, como se o homem não fosse um modelo mas o indicativo para outra coisa inabordável que pertencia ao não criado.

Praticamente Martinho tratava das suas vinhas, replantava-as, protegia os bacelos das grandes geadas, confiava a peritos a sua poda, via brotar os primeiros gomos donde a folha ia crescer e que traziam como que a candura dum recém-nascido no botão algodoado. Os solares, com dez janelas na frontaria, estavam quase reduzidos a escombros, até porque os incêndios, no seu abandono, os tinham assaltado, levando, como ladrões, os retratos, as prendas de anos, as coisas que tinham o brilho do uso, cabos de facas, de cutelos, de navalhas cujo contacto causava um arrepio na espinha. Os tectos tinham caído com um estrondo abafado pela caliça. Martinho sentia um prazer perante tanta ruína, como se o sentido relativo da vida lhe fosse mostrado com toda a sua possibilidade de fracasso. Estava ali a obra que lhe era confiada, e que lhe concedia a excursão para o infinito e que ele só teria tempo para a ver nascer como a criança que se retira do ventre da mãe.

Não pensava habitar nenhuma daquelas casas que lentamente ia trazendo à forma inicial. Mas tudo o que lhes dava forma, o mais pequeno gonzo duma porta, a cor com que a cobria, verde-musgo, de preferência, ou zarcão, ou ainda um castanho de beterraba misturado com terra, davam-lhe prazer, como se fossem obra das suas mãos.

Maria Rosa assustava-se com as despesas e a grandiosa maneira de gerir uma fortuna já de si desfalcada. Chegaria um dia em que não restaria nada do património dos Nabasco e a Ronda da Noite seria enrolada mais uma vez, não para ser posta noutra parede (parede cada vez mais estreita e inadequada às suas proporções), talvez num museu ou no átrio duma empresa. Quanto à sua autenticidade, não estava apurada a verdade. Os conhecedores não quiseram pronunciar-se, com receio de a carreira do quadro ser afectada pela sua opinião. Ficava a ilusão de se tratar do Rembrandt original.

As viagens de Martinho tinham relação com a reconstrução das casas que, na região mais rebelde do país, a transmontana, eram à volta de seis. Palácios com escadarias bifurcadas, guarnecidos de pedras de armas que tinham sido retiradas e em cujas fontes a água não corria mais. E também passais, as antigas moradas de abades, confiscadas no tempo da República e que continham retratos de reis e rainhas, subitamente transferidos para outros lugares mais concorridos e convenientes. Assim, numa biblioteca pública, ficou o retrato de D. Teresa, a suposta mãe de D. Afonso Henriques, pintado com a ingénua e inábil arte que preservava a personalidade. Mulher formosa, de cores campestres e algo boçais.

Estando uma vez em Aosta, hospedado no hotel do casino que tinha a particularidade de soalhos rangentes como os dentes rangentes do Purgatório, Martinho teve outra experiência que lhe fez compreender quanto no tempo há apenas fugacidade e não outra medida senão esta. Tinha visitado o museu do mobiliário que fora doação dum português e, ao sair de lá viu um homem tão alto que, ao inclinar-se parecia uma cana dobrada pelo vento. "O homem é uma cana, mas pensa", ocorreu-lhe, com um pouco de ironia à mistura. Quando se assustava era quando se detinha bruscamente como para reunir forças para resistir. A que resistia senão ao tempo? Percebeu que aquele homem, em quem reconheceu uma pessoa morta há muito, lhe era trazida por um efeito do tempo que ele alcançara graças a uma imobilidade absoluta.

Nessa noite, ao percorrer o longo corredor subterrâneo onde as montras cheias de jóias despediam raios de luz, viu um casal que se aproximava. Ela trazia um vestido branco e um colar de pérolas servia-lhe de cinto. Olhou para Martinho sem parecer vê-lo, mas, no outro dia, estava à porta do quarto dele completamente embriagada de amor e pronta a entrar e cair-lhe aos pés. Foi preciso que o marido a arrancasse do chão com violência e à força a levasse com ele.

Não os viu mais. Teve medo, nunca tinha sentido tal medo em toda a sua vida. A partir daí acumularam-se os sintomas e, voltando para Portugal, refugiou-se ora numa, ora noutra das suas casas que correspondia a uma herança sem valor; a mãe, vendo que ele fazia obras e compunha o que o tempo foi arruinando, pediu-lhe contas. Foram vendidas as propriedades uma a uma e só ficou um dos solares, o da Ronda, que ainda estava em bom estado e onde Martinho decidiu fundar a sua própria família. No entanto, a submissa Judite recusou-se a ir com ele. Não lhe dava filhos e gozava duma vida de criada grave de que nunca se desprendera e os prazeres da cama não pareciam atraí-la. Faltava encontrar comprador para a Ronda da Noite, e Martinho dedicou-se a procurar as pessoas interessadas no negócio; foi então que a sua vida mudou radicalmente. Entrou em contacto com avaliadores de obras de arte e ficou informado de quantas cópias e fraudes estavam nos museus e passavam por autênticas. Sendo os originais fechados nas colecções particulares ou estando simplesmente em lugar incerto.

Era um estranho mundo de pesquisa, de jogadas, de viagens e operações em que nunca se conhecia a pessoa que vendia ou que comprava. Para lá da febre do ganho, havia uma atmosfera acumulada de factores fecundos em que a paixão do jogo estava presente. Gradualmente Martinho marcou o seu lugar partindo da Ronda da Noite que foi avaliada em milhões e declarada falsa, e ainda mantida na expectativa doutra peritagem que nunca era conclusiva. Se Martinho queria sair daquele terreno de especulação, era de novo arrastado com novas perspectivas de fortuna tão grandiosa que o impediam de recusar outro lance. O mundo parecia um imenso campo de negócios em que circulavam todas as paixões. E havia uma rede de espionagem em volta da mercadoria a ser trocada e cujo merecimento era ponderado por lobis para que o seu preço fosse incluído na ilusão, na mística da descoberta. Havia quem nunca chegasse a ver o objecto em causa; e havia aqueles para quem ele circulava no seu sangue como por efeito dum comando cerebral. O desejo palpitava nos espaços em que as ambições pareciam ter a voz. O mundo estava construído sobre aparências que não correspondiam à sua estrutura natural. Os sinais identificavam as pessoas, fossem sinais de classe, de servidão, ou honoríficos, ou infamantes; mas o que tinha uma expressão profunda era a mistura quase se diria sangrenta, de todos os sinais. A linguagem académica e barroca fora substituída pelo calão, o obsceno e a embriaguez do insensato. Os sinais infamantes, como o uniforme, sinal de servidão, fora deposto; e o sinal de classe, o título nobiliárquico, sofrera um rebaixamento e só sobrevivia admitindo o sinal plebeu como seu parceiro. E também os sinais gráficos eram abolidos pelo computador e pela escrita dos autores. A melancolia era batida pelo estridor; e os sinais naturais da relação com os outros, com o círculo familiar ou profissional, sofreram grandes danos. Assim como a afinidade das ideias já não resultava com a mente distraída na confusão de mil coisas em que se perdia a unidade do colóquio.

Que fazia um mutante num mundo sem estratégia moral, que nunca teve? Teve apenas sinais de obstinação lógica e um desejo sanguinário de poder; o que era demonstrado até à saturação pelo espectáculo em que a memória se debilitava para dar lugar à excitação. O espírito da lotaria, do grande prémio que ia resolver todas as dificuldades, instalara-se. Não se dava um passo senão para imitar o prazer que era imaginar-se rico e belo e sedutor. Não se trabalhava por pouco, vivia-se de arranjos com as oportunidades. O próprio Martinho teve a tentação de fazer da sua natural faceta de mutante, ou do que nele provocava uma espécie de ambição do mérito sem que houvesse o dom que o justifica, de fazer disso um lucro qualquer. Quando voltou para a mulher, durante uns tempos, viu que ela estava a escrever um livro: ao mesmo tempo, pintava um retrato e também se entregava à música. Não se atreveu a levar aquilo levianamente e felicitou-a. O embuste era uma forma de evitar atritos e as pessoas coabitavam sem repugnância na regra da habituação. Julgavam comunicar e o que faziam era habituar-se.

- Não está mal - disse Martinho, sem hesitar. Judite estava empenhada no seu trabalho e a ele parecia-lhe cruel dissuadi-la e dizer-lhe que não passava duma macaca a descascar amendoins. Era o que lhe apetecia dizer. Mas armava-se tal alvoroço, a avó vinha repreendê-lo, Judite chorava gastando uma enorme quantidade de lenços de papel; e ele acabava por desdizer-se e achá-la parecida com Berta Morisot ou qualquer outro de meia-tigela. O exemplo que davam era o da amante de Rodin que acabou louca à força de não ser reconhecida como comparável a ele. Quanto tinha aguentado Rodin com aquela pequena megera na cama, no atelier, em toda a parte! Foi desde aí que começou a paródia da criação nas mulheres que se puseram a ser artistas e a ter ideias sobre tudo. - "Valha-me Deus, no que me meti", pensou Martinho.

A mulher tinha engordado mas continuava com aqueles olhos azuis raiados de negro que lhe agradavam. Mas daí a estar enamorado, não estava. Disse a Maria Rosa:

- Gosto dela, mas não é para toda a vida. Não sei que vai acontecer quando me apaixonar por outra.

- Um homem como tu não se apaixona por ninguém. Imita o amor que se torna melhor do que o verdadeiro.

- Então não sei nada do amor? É triste.

- Os homens têm uma incapacidade natural para o amor. E as mulheres para fazer negócios e ir para a guerra.

- Mas fazem negócios e vão para a guerra.

- Como D. João amava. Para iludir a própria impotência.

Ele riu-se, roendo um osso de galinha, que era o que gostava mais: galinhas do campo, assadas e bem loiras. Seria por isso que os homens preferiam as loiras? Sorriu mais ainda, imaginando uma quantidade de alarves em redor da fogueira, a devorar galinhas gordas e apetitosas. Era uma cena resplandecente de cordialidade, que incluía o desejo profundo, como um desejo alimentar antigo de milhões de anos.

Mas, acima de todos, estava o seu desejo de liberdade. Podia dizer-se que os homens criavam as suas muralhas para sentirem a emoção maior da liberdade. Os sedentários, habitantes de cidades, condicionados ao calor das casas e ao conforto da vida doméstica, não conheciam mais a elevação do espírito que é fruto desse impulso de liberdade. A palavra é usada como excitante de comícios, mas não tem já o mesmo sentido. E na mudança de mulher, na infidelidade quase ritual, encontravam um resquício do entusiasmo que arrasta o prazer da liberdade.

Martinho inclinou-se para beijar Judite e, ao mesmo tempo, achou que estava a desprezá-la. Analisava-a demasiado e ela tornava-se em qualquer coisa de repugnante. Tolstoi não analisava a sua cossaca e ela entrou na sua alma como um dardo de cupido.

Ele voltava amiúde para a sua casa da Ronda, que não chegou a restaurar e cujo telhado deixava entrar a água. Assim, em ruínas, ninguém ia pedir-lhe contas, como a mãe fazia cada vez que via alguma coisa de que tirar proveito. Talvez Portugal fosse mais feliz, pobre e desmantelado e sem despertar ideias de invasão, ou facilmente capaz de ser tido por um povo de pastores. Nada para acrescentar ao rol das grandes conquistas, nem em espaço, nem em cultura. Tinha uma história nobre, mas desconhecida. Heróis, amantes, pensamentos intraduzíveis pelo amor e pela arte. Não se quisera revelar, apresentar um valor de saque. Ele concluiu:

- Será que a Ronda da Noite é autêntica? Escapou ao esbulho, à cobiça dos conquistadores e Goering não chegou cá para o levar num camião Tir? Logo Rembrandt, que sorte!

- Que estás para aí a dizer? - falou Maria Rosa. Estava a perder o ouvido, era fatal.

Elisa tirava a mesa, sempre com aqueles olhares de suspeição que faziam dela uma combatente na sua trincheira. Qualquer dia morria e ficava um vazio, um buraco no chão como quando se arranca um nabo branco e suculento. Martinho nunca gostara de nabos, não tinham sabor, era alimento de animais. Mas agora achava-os diferentes porque os incorporara à memória. Memória de criança à desfilada na avenida, na bicicleta de senhora.

- Porquê de senhora? - disse Maria Rosa. E o Nabasco replicou que podia ainda nascer uma menina e a bicicleta servia para os dois. Tinha uma ideia da economia que não condizia com o seu prazer em gastar. E para ligar tudo, comprava coisas velhas e sem préstimo. Candeeiros, cadeiras de leilão, rimas de pratos com monograma dum restaurante desaparecido. Maria Rosa achava-o doido, achava todos os homens doidos.

- É o que temos - rematava, com uma lentidão no pensamento que queria dizer acordo consigo mesma.

Ninguém achou bem que Estrelinha, Sopa-de-Massa, como lhe chamavam quando andava a fazer recados, fosse morta à machadada (parece um exagero, são lendas que se formam) e depois deitada à linha do comboio. Mas também ninguém guardou disso uma recordação; nem Judite, nem a irmã dela. Mas as coisas mais aterradoras ficam metidas nas frinchas do cérebro, enredadas nos fios dos nervos, e um dia aparecem. Como a morte da Estrelinha, Sopa-de-Massa, aconteceu no dia da morte de Ana, a cozinheira parecida à fada Carabosse. Ela gritava e chorava e dizia uma coisa inacreditável: que fora, não o marido mas a filha que a matara, espetando-lhe uma tesoura no coração. Ana não era pessoa para mentir, era uma qualidade que ela tinha.

- Será verdade? - disse Emília. Os pêlos dos sinais na cara estavam mais encaracolados, como quando chovia.

- Sei lá! - E Maria Rosa não quis conversas para não incomodar Judite, que sempre era a filha da morta. Judite estava a pintar um retrato de família, com flores, e estava a sair-se bem. Pena era que Martinho não a apreciasse.

- Podias dizer-lhe alguma coisa; alguma coisa, dizer que gostas - disse a avó.

- Deu-me muito trabalho gostar de nabos. Anos a fio não gostei e depois mudei. Ou eles mudaram, com os químicos e as águas poluídas, sei lá! Pode ser que eu venha a gostar do retrato de meninas com flores.

- Não te custava nada.

Mas Martinho já se tinha evaporado; ouviu-se o carro a derrapar na areia do jardim, e ele foi-se embora. Nesse momento dificilmente se gostava dele e Maria Rosa comprava a Judite qualquer coisa bonita para acalmar a dor que ela sentia. As mulheres passavam a vida a sofrer aqueles sobressaltos, piores que maus tratos. Era uma impressão de serem úteis e mais nada. Em vão elas se esforçavam por serem queridas e se desfaziam em bondade até à ignomínia, ou até ao pecado, como se costuma dizer, que não chegavam ao coração deles. Estava ela ali, Judite, a pintar aguarelas, a sujar a bata de tinta que nunca mais saía com todos os perfumes da Arábia ou detergentes líquidos e em pó, e não recebia senão um pensamento ofensivo. Via-a como uma mulher e ela não era apenas uma mulher; mas o duplo dele próprio. E ela amava-o realmente? Ela tinha que o revestir de qualidades para o amar, como a fortuna, a casta, o parentesco dele com outros da mesma espécie. Precisava de tudo o que pudesse apagar a noite com que ela se debatia.

Uma noite pacífica do fim do Verão.

Judite tinha onze anos e dormia com a irmã, num quarto que dava para as traseiras da casa. Já tinham começado as vindimas e um cheiro de lagar onde o vinho fermentava andava no ar. Ela ouviu a mãe que se levantava. A porta do quintal chiou e Judite percebeu que a mãe saía de casa. Uma dor, como um ciúme, atravessou-lhe o estômago. Com o pai não se importava, mas com a mãe era um contínuo fardo de suspeitas; seguia-a às escondidas, sabia todos os passos dela, as horas de chegada, o tempo que levava a arranjar-se e a roupa que vestia. Para o trabalho era uma, para ir às compras, outra. Quando prendia os cabelos loiros e cacheados era porque pensava fazer limpezas. Outras vezes deixava-os caídos nos ombros e eles eram como uma torrente crespa de fios de ouro. Amava-a com desespero, inveja, tristeza, tudo o que faz do amor danação e culpa.

Viu como ela se afastava, depois a noite tragou-a, não a viu mais. Judite foi atrás dela e ouvia-lhe os chinelos a raspar na terra ou a deslocar as pedras do caminho. Estavam já longe de casa e percebeu algumas vozes: a do pai, pachorrento, depois mais viva, e a doutra mulher que não conhecia.

- Que vieste aqui fazer? - era o pai que falava. Parecia envergonhado e decerto quis convencer Estrela a ir-se embora porque ela respondeu duma maneira insidiosa, com malvadez. Disse coisas horríveis porque tinha mau feitio e não sabia conter-se. A outra mulher avançou para ela e Judite viu a mãe cair com um pequeno grito afogado. A outra tinha-a ferido com a tesoura das vindimas que tirou do bolso. Mas Judite só percebeu que o pai estava afastado e talvez se preparasse para voltar para casa. "Tenho que ir deitar-me, senão ele mata-me", pensou. Não queria dizer que ele a maltratasse, era uma maneira de conceber um aviso. A mãe prevenia-as, às duas, ela e a irmã, para que estudassem as lições, para que não sujassem a roupa nova, para que não se demorassem ao fazer um recado. "Vai depressa, senão mato-te... Se te sujas, eu mato-te." Ela habituara-se a ouvir aquilo e não prestava muita atenção. Agora pensava que tinha de correr pela vinha acima e deitar-se na cama, ofegante mas segura de que ninguém descobria que a mãe entrava e fechava a porta com duas voltas da chave. Dormiu até de manhã.

Acordou, não viu a mãe na cozinha, em camisa, descalça como ela gostava de andar em casa. O fogareiro do petróleo não estava aceso e a gata esfregou-se nas pernas de Judite, a pedir comida. O pai estava sentado a fumar e levantou a cabeça quando a viu.

- Vai para o teu quarto, depois chamo-te.

- A mãe?

- Vai para o teu quarto.

Alguma coisa havia na voz dele que a convenceu de repente. Veio-lhe à ideia a noite e a mãe a sair com um casaco que lhe ficava curto e deixava ver as pernas muito brancas. Não parecia ter-se deitado nem se tinha despido para isso. A irmã, que tinha cinco anos, apareceu a coçar-se; Judite empurrou-a para o corredor e levou-a consigo quase de rastos.

- Vou contar à mãe - queixou-se ela. Mas Judite sabia que nunca mais ela havia de fazer queixa, nem pedir que lhe tirasse a nata do leite, nem nada. O pai acusou-se do crime e não foi possível fazer com que ele denunciasse mais alguém como cúmplice. Sabia-se que ele tinha uma amiga mas não falou nela, nem sequer a viu. Bateram-lhe e ele gritou no escuro duma adega de terra batida, com covas onde o vinho empoçava. Eram gritos que se ouviam da estrada; as mulheres paravam para os ouvir, arrebatadas de paixão pelo homem, mas com algum conforto de serem as contadoras da história daí em diante.

Judite e a irmã foram separadas e viam-se de vez em quando, não escondendo o embaraço. Não se podia dizer que Judite não amava a mãe. Amava-a, e muito. Mas tudo aquilo suspendeu no seu coração o fogo que lá ardia e, de certa maneira, foi como se, como naquela noite, se deitasse na cama, com o cobertor pela cabeça, e ficasse calada até ao fim do mundo.

Maria Rosa não ignorava no que se metia ao levar para casa Judite, filha da Estrelinha Sopa-de-Massa. Era um risco. Não que soubesse como as coisas se tinham passado, só Judite sabia. Mas era um risco porque Judite andava metida na noite, com a mesma força de se cruzar com a morte, fosse ela qual fosse, para libertar a sua alma de tanto sofrimento e de que ela não conseguia libertar-se.

 

                                      CAPITULO IV

 

                       O QUE AS TELHAS ESCONDEM

Para começar, as coisas passam-se normalmente. As casas são seguras, quando uma torneira pinga não se demora a consertá-la; se a gata deu à luz seis crias, afogam-se quatro; se um pobre bate à porta, como dantes fazia, dá-se uma esmola, pequena, para não se ficar sem trocos. Pede-se sempre um abatimento nas lojas, e isso funciona em todas as longitudes, tanto no Cairo como numa aldeia perto do Lago Maggiore. É uma cortesia, não equivale a outra coisa senão a uma cortesia. Os saldos são o cerimonial do comércio que dantes ocorria de maneira muito imaginativa.

- Não é muito caro?

- Faço um abatimento por ser para si.

Um silêncio em que se trocava a linguagem do afecto; gratidão e parentesco de bairro. Depois o embrulho feito com sentimento e precaução, o fio atado em cruz e rematado com um pequeno toro de madeira, para não magoar os dedos. Maria Rosa lembrava-se disso, mas não se lembrava dos preços. Não perguntava, apenas dizia:

- Mande a casa, senhor Alves. Posso vir trocar?

O senhor Alves olhava para ela com ternura. Merecia um beijo aquela graça de menina, com cinta firme e pernas bem feitas. O que ele não sabia é que no Verão ela não trazia calcinhas e o vento da tarde lhe beijava as partes íntimas. Bem melhor do que se o senhor Alves, neto duma aristocrata, lhe aflorasse o rosto nem que fosse para retirar uma formiga. Uma formiga nos cabelos? Porque não? Tudo são bons pretextos para conviver com aquela beldade de frente e de costas, uma beldade circular. Os rapazes que estavam a trabalhar numa obra diziam uma obscenidade quando ela passava. Maria Rosa gostava e ofendia-se, as duas coisas. Era o tempo mais bonito da sua vida, cheio de doces encontros prometidos à felicidade. Gostava de rapazes de bom parecer, não só os que jogavam hóquei e que passavam ao domingo no passeio fronteiro; mas também de operários, de cabelos soltos e mal cortados, com a caixa das ferramentas e talvez um pão com queijo de bola, ou um pouco de fiambrino. Melhor do que a cama era aquele olhar trocado em que ia o desejo honesto de corromper a usura da confissão. Amavam-se em poucos segundos, deixavam-se com a satisfação de se merecerem em cinco segundos. E, contudo, ela desviava os olhos, sem dissimular a atracção. Era incontável a felicidade desses encontros. Chegava a casa, a mãe achava-a estranha.

- Que fizeste?

Não respondia. E Margô, a que se casou com o irmão de Maria Rosa, já tinha invadido a casa, às quatro horas, quando vinha do Instituto Inglês e descia a escada aos saltos para lhe dar as boas-vindas. Era grande, sabia línguas e o pai dela era um médico de grande nome na capital.

- Onde andaste? Compraste alguma coisa?

Iam merendar pão com manteiga e tinham por prémio, não sempre, uma noz de chocolate, que acabaram; já ninguém as vê nas confeitarias. Só éclairs gigantes para pobres gulosos. O sol descia, levantavam-se os estores à tardinha. E até ao jantar Maria Rosa parecia meio sonâmbula, toda metida no gozo dos encontros compadecidos, com amantes que nunca se voltavam a ver, e não respondia à eterna pergunta: - Que fizeste?

Teve um período de anorexia, ficou tão definhada que lhe desapareceu o período. Chorava sem razão, chegaram a temer pela saúde dela, e o pai disse que era preciso distraí-la. Atravessava uma crise de dinheiro e na mesa isso era bem visível. Os belos rodovalhos grelhados com grãos de pimenta a eriçar-lhes a pele, já não apareciam. Nem as peças de caça, faisão ou perdiz que se vendiam gravemente com um pouco da solenidade do que é raro; como uma jóia em veludo negro.

E, todavia, o pai pôs de parte a avareza que lhe raiava os olhos de sangue, quando lhe pediam para ir de férias ou dar um presente a uma amiga; punha de parte essa raiva de homem de não cumprir com o seu dever de fazer a casa farta e a mulher contente entre lençóis. Vendeu, pediu a usurários, empenhou o seu Patek-Phillipe e Maria Rosa teve rosas e anéis, o que quer dizer que tudo se preparou para a alegrar como a idade dela pedia. Dezoito anos, olhos de azeite à flor da água. Começava a comer melhor, perdoou ser tão impertinente e sofrer por coisas que não aconteciam.

Perdoou alguns sonhos maliciosos, como quando uma noite acordou e viu o irmão no quarto, a olhar para ela, sem se mover. Às vezes, mesmo estando de costas, percebia aquele olhar. E o pai também, tinha dias. Ela indignava-se mas, antes disso, sabia que estava culpada, que era ela quem começava com o despudor duma inocência que é o pior pecado. Inocência que espreita como um dragão, e se esconde como o sal na neve fria.

E o pai esteve prestes a arruinar-se completamente por ela, a fingir que tudo estava na maior prosperidade, mandou-a estudar para Inglaterra e conhecer pessoas, tudo. E até o irmão se queixou porque não teve um carro de corrida que tanto queria e não teve.

- Para outra vez - disse o pai. O caso ficou arrumado.

Se nesse tempo a Ronda da Noite já estivesse por perto, tinha-a negociado ao desbarato para cobrir as dívidas às quais dava nomes, como a "dentuça" ou a "movediça": uma porque a trazia ferrada na perna, outra porque o atolava cada vez mais.

Quando a Ronda da Noite foi atribuída a Filipe Nabasco, numa dessas heranças que constavam no seu cadastro de parente presente apenas na árvore geneológica, ele nem sequer a quis ver. Nem tinha muitas luzes sobre arte e dava mais atenção a um negócio de volfrâmio (onde, de resto, perdeu muito dinheiro por multas e vários danos) do que a um Museu do Louvre todo inteiro. Só o que podia comprar e vender num prazo curto que envolvesse uma conversa de café, era o que lhe interessava. A Ronda ficou enrolada como um tapete velho na parte de cima das antigas cavalariças, muito maiores do que a Casa do Cão.

Filipe Nabasco, não tendo onde estender a Ronda em todo o seu tamanho (como não houve largura suficiente na câmara de Amesterdão e por isso foi mutilada), deixou-a na cavalariça onde dormia o feitor. Nessa altura Maria Rosa desviou os seus problemas íntimos para a maldição da Casa do Cão e falou na mudança.

Quando a Ronda foi mostrada em toda a sua extensão (3,63111 por 4,37m), fez-se um silêncio. Na cavalariça, banhada pela luz fraca da porta meio encostada, o Capitão Frans Banning Cocq, senhor de Purmerland e de Ilpendam, parecia um tanto recomposto da surpresa por ter visto o seu tenente Van Ruytenburch, vestido com tanto luxo. Para não se confundir com ele, deu um passo (de modo quase imperceptível) para diante, o que faz com que se notem os pés calçados com sapatos de laços, tendo à altura dos joelhos também laços abundantes. Podia estar tranquilo o capitão Cocq porque o fato de veludo preto, a faixa traçada no peito, de seda cor-de-cravo, além da luva de camurça que segura o bastão, serem prova evidente da sua categoria. Contudo, ele não deixa de ter um olhar de preocupação e procura não reparar na figura do seu tenente. Mas é difícil não reparar. Todo ele é luminoso, a nota mais luminosa da tela, se exceptuarmos a pequena, e doce, e divertida menina que está a tentar atravessar a companhia do capitão ainda desprendida da ordem de marcha, ainda entregue a uma despiciente desordem. O tenente sobressai pelas galochas de cano largo sobre as botas com joelheiras bordadas. Devem-lhe ter custado um mês de soldo, ou mais, assim como o chapéu emplumado. O nosso tenente quis fazer boa figura e não se poupou a despesas. Não é todos os dias que se posa para o mestre Rembrandt que está afogado em lutos e provavelmente em dívidas. Ele acaba a Ronda da Noite quando Saskia morre. Não será a alma de Saskia que se converte num duende para romper caminho pelo meio da companhia do capitão? Uma criatura tenebrosa, coroada de folhas de carvalho, parece estorvar-lhe o passo. O carvalho, pela sua dureza e resistência, estava relacionado com a ideia de imortalidade. É possível que Rembrandt quisesse simbolizar na figura macabra a morte, um condutor da alma feliz e infantil de Saskia, ou da pequena Cordélia morta de pouca idade. O sentimento pagão e delirante vai impregnar a Ronda da Noite que é terminada em 1642, ano em que morre Saskia, depois da filha Cordélia; é a segunda Cordélia, a primeira morre em 1638. O estado moral e mental do pintor seria precário, e é isso que dá profundidade à Ronda da Noite. Pinta como se falasse com ele próprio, indiferente em desatinar, levado por um escrúpulo apenas quanto ao destino que continuamente lhe marca encontro.

Interroga-se, enquanto pinta. Os contínuos auto-retratos dizem que se preocupa consigo mesmo. É um lunático, um homem que persegue honras e uma vida de luxo e estabilidade, como qualquer judeu de Amesterdão? Não é, com certeza, um judeu. Os judeus são maus pintores, mas pode-se dizer que Rembrandt é um bom pintor? Dos seus oito discípulos, ou colaboradores, há quem pinte melhor do que ele. Mas não há quem recolha, dum só traço, aquele olhar, sempre o mesmo, que se alimenta dum vazio que há na vida, vazio da cultura e do amor, em tudo.

Era este olhar que Martinho achava ser-lhe dirigido. Aos poucos sentiu-se visado pelo autor da Ronda. A última colocação do quadro, no cimo da escadaria principal e numa sala que era suposto ser o átrio, não foi o mais favorável. A Ronda ficou na penumbra e a única coisa que sobressaiu nela foi a rapariguinha e o tenente com as suas galochas novas e o ar de primeira figura, o galã da cena. Tudo o mais ficava mergulhado na sombra, como que velado por um reposteiro espesso. Pintar é para ele um ganha-pão, mas significa também um pedido de explicações. Pede à obscuridade que se abra e tome a palavra; os momentos culminantes, como a ressurreição de Lázaro, são momentos profusamente iluminados, correspondem a um desejo que sai do mais profundo da alma. A rapariguinha da Ronda que avança entre a multidão, distraída e sem orientação, parece dizer: "Segue-me e saberás porquê".

O quadro chegou a ter, para Martinho, o sentido dum livro de adivinhas. Tinha que o ler e interpretar. Escondia, em grande parte, a sua fascinação pela Ronda, a ponto de falar em vendê-la para cobrir as dívidas da casa. Mas fazia isso, como aqueles que estão perdidamente apaixonados e fingem desprendimento para não serem alvo de atenção particular e que, com ela, lhes seja arrancado o segredo. O melhor do amor é o segredo. A sua aparente rendição a ponto de se tornar diáfano e vulgar, serve apenas para preservar o segredo. Não é uma coisa a que se renuncie abertamente; apenas se pode misturar com outros sentimentos para não ter que o beber em estado puro, o que causaria a morte, como às vezes acontece. "Felizes os que não amam senão a sombra das coisas", disse Martinho. Tinha subido a alta escadaria, cujos muros estavam cobertos de azulejos verdes, e respirava com dificuldade. Judite estava a falar com alguém na sala nobre, quase despojada de móveis e com um piano de cauda a marcar a importância desse lugar; embora ninguém tocasse piano, ele impunha-se, parecia pedir o seu concertista, alguém que o amasse e não apenas decifrasse os seus sons.

Martinho estava perto de fazer dez anos de casado, data considerada de crise para o casal. Isso talvez explicasse os pequenos e quase teatrais empenhos que Judite mostrava em agradar-lhe:

- Amo-te tanto! - dizia ela. Como Cordélia dizia ao pai, o rei Lear. Mas isso não significava que o amasse deveras. Era mais astuta do que as irmãs, apenas isso. Porque o amor, como as cenas obscuras de Rembrandt, é assim obscuro, toldado como a água escura dum lago ou dum poço muito profundo.

Martinho, que ia refazendo as casas arruinadas da família, tendo, para isso, conferências com os arquitectos e mestres-de-obras, pensava que as pessoas não ocupavam na sua vida nada de comparável. "Porque é que hei-de amar as pessoas? Basta ser-lhes grato, se for caso disso, ou gratificá-las se também for caso disso. Mas amá-las é fora de questão. O amor é como se diz de Deus: "Não devemos jurar o seu santo nome em vão", pensava ele.

E pensava muitas coisas que as telhas duma casa escondem. Todo o mal do mundo vem de que se dão ao amor nomes que não lhe correspondem, como o desejo, a paz, os inocentes prazeres da vida em comum, a admiração pela beleza e pela juventude. Esta noção prática e transbordante do amor fazia com que o achassem intrigante e que alimentassem contra ele uma vontade de o destruir. Se era um mutante, isso pressentia-se pela capacidade que ele tinha de alertar as pessoas. Ficavam inquietas e faziam coisas inesperadas, contra a lógica dos seus costumes.

Bento Webster, que toda a gente julgava ser um antigo suspirante de Maria Rosa, casou-se de repente com uma rapariga muito nova, que lhe deu um filho. Não se tratava de luxúria de velho, longe disso. Era uma decisão tomada para preencher o vazio do amor de que ele teve uma vaga informação.

Martinho dedicou-se a averiguar o que há de vingativo na prática das grandes criações do homem. Um massacre pode ser encarado como uma grande criação cuja perversidade induz ao castigo e ao arrependimento. A finalidade é essa: elevar-se ao nível da grande expiação e, com ela, atingir o exemplo. Mas o homem não sabe qual o percurso da sua verdadeira intenção. A violência é um excitante com vista à criação e é por isso que é muito difícil de ser erradicada. Até nas naturezas mais dóceis a violência está incubada e no momento oportuno se manifesta. No âmbito familiar coexiste com a doçura de carácter e a graça dos rituais. Por exemplo, no casamento de Martinho, diante duma assembleia de pessoas educadas e cerimoniosas, Martinho sentiu de repente o desejo de acorrentar à sua vontade um acto tão simples como dizer sim. Fez-se um silêncio incómodo quando ele demorou a declarar-se disposto a ser marido de Judite. Ela olhou-o com espanto e preocupação.

- Diga quero, meu amor, diga quero... - murmurou. E Martinho gozava o pânico da noiva e a interrogação dos convidados. Um pouco mais e tudo entrava em colapso. Chegaram-se a ouvir, muito baixo, as notas do Hino à Alegria que substituía a estafada Marcha Nupcial. Depois o silêncio tornou-se insuportável. "É o massacre" - pensou Martinho. "Estou a arranhar-lhes a pele até fazer sangue; estou a remexer-lhes com os nervos e a esfolá-los". Uma senhora saiu a correr e tomou o caminho da toilette que não sabia onde ficava. "Vai urinar-se pelas pernas abaixo." Ele disse nitidamente sim, sem olhar para Judite, que baixou a cabeça. E houve um som na assistência como se libertassem pássaros no ar. Tinham-se escandalizado ou tinham gostado desse momento grosseiro e de puro massacre?

- O melhor de tudo é que nos amámos, nesse instante - disse Martinho enquanto se barbeava à noite, antes de se deitar. Foi uma bela noite de núpcias e Judite, com a sua camisa que brilhava como a água, tornou-se sua mulher. Com decepção e com esperança de que tudo corresse melhor no futuro.

No entanto, não teve filhos.

- Não foi bonito o que você fez - disse a avó, passado tempo. Tinha um ventre abaulado e as célebres pérolas caíam-lhe como cordeiros numa encosta. Judite perguntara uma vez o que queria dizer abaulado e Maria Rosa explicou:

- Em forma de baú, minha tola. Martinho disse:

- Eu não fiz nada. Que foi que eu fiz?

- Não se fala mais nisso. - Maria Rosa calou-se um momento. Tinha a certeza de se ter enganado com Martinho.

Mas quem não se enganava com toda a gente? Estrelinha Sopa-de-Massa não deixava as pessoas boquiabertas ao ser morta como uma vitela no matadouro? E tudo isso, com o génio que ela tinha e forças nas mãos como uma carrejona. Maria Rosa, por meias palavras que Judite lhe dizia, apurava coisas extraordinárias: que não fosse o pai o assassino mas ela, Judite, exactamente. E até Martinho fez perguntas, porque era investigador e gostava de aclarar as coisas. Não por nada, porque sim ou porque queria ter motivos para não respeitar ninguém.

- Foste tu, Judite? - Às vezes tratava-a por tu, outras vezes por você. Era conforme lhe dava. - Mataste a tua mãe?

- Eu? Não brinque comigo, não me fale nisso que já lá vai.

- Se tu o dizes... Mas olha que tenho cá uma desconfiança.

- Desconfiança de quê? Não se ponha a desconfiar de mim, Marto.

- Não é nesse sentido.

Esteve para dizer que a achava fiel como um pastor alemão, mas não disse. Tratava-a com uma agressividade graciosa, que é a maneira de os homens se imporem às mulheres inábeis no amor. Julgava ele que Judite desconhecia todos os talentos de que dispunha, cultura, sensibilidade musical e gosto para se vestir. Mas ela só desconhecia o que lhe parecia supérfluo para o entendimento entre os dois. Entendimento de cama e de dinheiro. A Judite pouco lhe importava fazerem férias juntos e receber presentes do marido. Em geral eram coisas de que ela não gostava, elegantes sim, mas acima da sua preparação. Maria Rosa fizera um bom serviço ao dar-lhe noções de etiqueta ou a fazer-lhe ver o valor dos objectos: a distinguir o cristal do vidro, ou o linho puro do paninho de lençol barato. Mas, além disso, não se importava com aquele entendimento que o berço dá e nada mais que o berço.

Às vezes Judite cometia gafes estrondosas; outras vezes, menos. Mas dava para entender que ela não pertencia ao mundo dos Nabasco onde se dava muita importância a não beijar uma mão enluvada ou comer espargos frescos à mão. Era um dialecto especial que Judite não abrangia e escapava-lhe um palavrão quando ficava enervada, "porra" ou "merda", por exemplo. Mas sacana, isso nunca dizia, pois sabia ter uma conotação vadia, de presídio, ou parecido. Mesmo ao pai dela, um feitor pobre, nunca ouvira palavras dessas.

Porque é que Maria Rosa pusera em Judite muitas esperanças quanto à felicidade do neto? Estar casado com ela era o mesmo que ter um emprego a meio tempo, pois Judite não se metia na vida dele, como faz uma boa criada com o patrão. Saía de casa e era como se partisse para regiões inacessíveis e até pudesse perder-se por lá e não voltar mais. Casos assim tinham acontecido e tinham feito história. Como o primo que era pianista de carreira e se embrenhara no Amazonas para sempre, cafreando-se, alegremente ou não, não se sabia.

Vista de perto, a vida das pessoas só era seguida à linha de água; as profundezas não se enxergavam, lá onde passam os peixes cegos e as raias gigantes.

- Peixe é um símbolo fálico. Cuidado com isso - disse Martinho. Estava a engraxar os sapatos, ele próprio tratava do seu calçado e deitava-lhe um bocadinho de cuspo para o conservar, ou não sei o quê. Judite não sabia o que era um símbolo fálico, nem se importava. Quando foi ao Alentejo um dia, aprendeu alguma coisa nesse sentido. Falos eram menires de pedra, não podiam ser outra coisa, com meato urinário e tudo.

- Isto é um símbolo fálico? Não se parece nada com um peixe - disse ela. Aprendeu que o mundo está cheio de símbolos fálicos, ela é que não tinha reparado. Fumando o seu cachimbo, muito à inglesa, Martinho ouvia-a não escondendo a si próprio quanto lhe agradava ter aquela mulher por perto. Ela tinha-se tornado adulta duma maneira que incluía uma degradação da sua moralidade. Não o bastante para ser desaprovada, mas simplesmente ganhara em falta de gravidade, o que numa mulher é sempre atractivo. Cada vez mais se tornava difícil para Martinho admitir a ideia de separar-se dela. Contudo, só graças às suas saídas de casa, para dirigir as obras nas suas desmanteladas casas de campo, ou no regime de vida activa sem actividades, é que Martinho a suportava. Em parte, fingia estar desprendido de Judite o bastante para não despertar o ciúme da avó. Mesmo velha como era, Maria Rosa constituía um perigo, pois só dela dependia a ideia que ele tinha de liberdade. E se com as mulheres em geral se passasse o mesmo? Delas dependia a imortalidade absoluta que se atribui a Deus; quer dizer, a impossibilidade de desaparecer completamente. Isto causou um calafrio a Martinho e esteve perto de cair doente. As vezes os seus pensamentos eram tão alucinantes que não queria ninguém presente, pelo receio de os deixar perceber. A vida social do casal era quase inexistente. Ainda que isso fosse improvável, o deslize que havia de Martinho ter casado com uma rapariga com história criminal, não era perdoável. Podiam passar cem anos que isso não era esquecido. O doutor Horácio prevenira Maria Rosa, que não lhe deu ouvidos.

- Não me dá nenhuma novidade. Nada é permanente e, se dermos a Martinho a vantagem que há em partir do que não oferece motivos de permanência, estamos a dar-lhe a felicidade numa salva de prata - disse Maria Rosa.

- Tire lá a salva de prata que não é precisa. Quer dizer que o defeito é um condutor da felicidade?

- Exactamente. A perfeição não é erótica. É o erro que é erótico e não a beleza.

O doutor Horácio punha-se a pensar se Maria Rosa durante toda a vida de casada não estivera sempre informada das escapadelas do Nabasco que, afinal, não tinha necessidade de ter amantes. Os mandamentos não se destinam a promover a perfeição do homem, mas a medir as suas imperfeições, mais necessárias do que ímpias. "Será que ela viu isto?" - pensou o doutor, fazendo como de costume o gesto de acertar os óculos no nariz como para ter a certeza de que eles lá estavam.

Judite não reclamava por não acompanhar o marido e estabeleceu-se um acordo entre eles que agradou a todos: estavam casados, mas fora de certos compromissos que só convinham a uma linhagem, a um nome de família em permanência. Não faziam nem aceitavam convites juntos, não eram vistos ao mesmo tempo em lugares de recreio ou de cerimónia. Isto criava uma falta de cumplicidade que afinal lhes deixava a independência da vontade com respeito à sua própria diferença. Contudo, não ficava esclarecido se o casal se amava ou se experimentavam um conceito novo de matrimónio.

Judite não entrava nestas cogitações e limitava-se a ser uma boa criada, aproveitando as suas folgas da maneira que lhe dava mais prazer e que era a de ser útil e descomprometida. Quando fazia um cruzeiro achava sempre maneira de se ocupar das crianças nos infantários ou dos cães nas suas jaulas de bordo. Nunca se queixava de nada e comia a sopa fria sem repugnância e esperava pacientemente que lhe mudassem a roupa do seu beliche. Ao terceiro dia de viagem já a tinham reconhecido como a hóspede encantadora e guardavam-lhe um lugar abrigado ao lado da piscina, como se ela fosse uma parenta incógnita. Era tudo natural, sem troca de benefícios; ao fim da viagem, ela partia deixando uma saudade atrás dela. Tanto a empregada da faxina, como o rapaz do bar, e até o capitão que, para a experimentar, lhe apertara o braço de maneira convidativa, guardavam um pequeno despeito de amor vendo-a sair com as suas malas de mão que, de repente, a denunciavam como uma pessoa rica. Que andara ela a fazer senão a enganá-los a todos?

Ela voltava para Martinho sem ter nada que contar, só um pouco mais queimada do sol, e retomava a lida da casa como se não estivesse fora senão o tempo duma matiné.

- Foi divertido? Encontraste gente interessante?

Parecia que Martinho lhe falava chinês. Deitava-lhe os braços ao pescoço com tal alegria que ele não perguntava mais nada. Afastava-a um pouco para a olhar de frente, e aquela sensação de desconforto, como se estivesse a violar uma criança, enchia-o dum medo estranho e de estranho prazer. O que é uma mulher? Não era, bem vistas as coisas, um predicado real. No caso de Judite, a sua alegria não dependia da satisfação dos seus desejos; podia-se dizer até que ela não tinha desejos senão os que eram manifestados pelos outros. Mas o que sustentava a inquietação sobre a sua pessoa era a falta dum elo estável com o mundo. De repente, tudo podia mudar e Martinho estava preparado para aceitar a morte dela; mas não estava preparado para outro tipo de abandono. Alguns homens (ela sabia isso) apressavam-se em deixar o lar e a constituir outra família, para não terem que se ver abandonados. Pressentiam que há um ponto de ruptura (e os médicos, entre os quais Horácio Assis, chamavam-lhe climatério) em que as mulheres deixam a sua dimensão terrestre e todas as ligações com a terra lhes são indiferentes. Não sem sofrimento, não sem desordem profunda. A transformação dos fenómenos do corpo são a mudança que se opera na sua mente. O doutor Horácio achava que Judite, ainda que fosse muito nova ainda, estava a desfolhar o seu climatério, como se desfolha um malmequer. Se chegasse à última pétala e isso coincidisse com a palavra bem-me-quer, ela entrava em casa e nunca mais saía de lá senão num bonito caixão de mogno. Mas se a palavra fosse mal-me-quer, não teria descanso. Eram coisas que ele pensava. O facto de ela não engendrar qualquer coisa viva, um filho, não queria dizer que ela não fosse fértil, ou antes, que renunciasse à fertilidade. Martinho tinha ainda muito que aprender com aquela mulher.

Conceder que Judite lhe podia dar lições, ela que nunca aprendera que não se empunha uma faca à mesa como se fosse uma lança, era totalmente bizarro, senão impossível. O doutor Horácio avisava-o:

- O climatério dela já começou. Não se sabe no que pode dar.

- No que pode dar? Nada de bom, concordo. A mulher está no útero, já diziam os romanos. Tenho uma quantidade de dores de cabeça à minha espera.

Já ninguém dizia "dores de cabeça", mas chatices ou fases quando se tratava de mudanças. Martinho estava nesse momento ocupado em revestir de azulejos o jardim e andava em busca de painéis, ficando cada vez mais conhecedor sobre a matéria. Mas de Judite não sabia quase nada, excepto que a maternidade lhe fazia falta. Vê-la a tratar com crianças, era notório que as amava do fundo da sua alma tíbia e infantil. A menos que aquilo não fosse senão uma recordação reprimida dos tempos em que um menino de dois anos era um prato suculento. A civilização estava a retroceder os seus milhões de anos depois do ser primordial que a tinha formado. E daí as fantasias com dinossauros como se fossem contemporâneos; e outras coisas. Era tudo tão isolado como Deus no infinito. Quando Judite entrara na Casa do Cão, não tinha mais de doze anos. A instrução que tivera, além do curso de costura num Patronato e o primeiro ciclo da preparatória, era sobretudo doméstica. Aprendera com a mãe os trabalhos da vinha destinados às mulheres, vindimar, sachar, levar a comida aos homens em grandes vasilhas de latão. Aprendera que, mantendo a colher do caldo dentro da panela, o calor se concentrava nela e durava muito mais tempo. Também sabia matar frangos e coelhos, sem se impressionar, tendo até uma pequena ira que fazia as coisas mais fáceis. Era preciosa na vida de casa mas quando Maria Rosa a mandou estudar maneiras e sobretudo querendo tirar-lhe o sotaque local, viu-se em dificuldades. Bonita era, com os olhos azuis raiados de preto e os cabelos aos anéis. Alta, com um rosto à Clouet, um pouco surpreendido e claro, causava nos homens uma impressão cautelosa que é o princípio duma paixão. Por ciúme talvez, Maria Rosa não a quis deixar partir com nenhum deles e discutiu em família as vantagens de casar Martinho com ela.

- Não sei se é boa ideia. Ele que diz? - O doutor Horácio estava tão incomodado que lhe faltavam as palavras. Nunca se vira uma coisa dessas. - Ela é como um animal em cativeiro, um dia vai querer voltar à selva.

- Já não há selva, doutor - disse Maria Rosa, meio agastada. - Martinho gosta mesmo dela; bem vejo o olhar dele, quase suplicante, quando ela o serve à mesa. É um intelectual e os intelectuais casam com as cozinheiras.

- Eu casei com uma professora.

- Quem lhe diz que teria feito melhor se casasse com uma cozinheira?

- Você diz. Mas a Maria Rosa é uma matriarca, só gosta de mulheres ignorantes e que sejam as traves da casa. Tem que falar com o seu neto muito a sério. Está em causa a felicidade dele.

Maria Rosa tinha motivos para ficar pensativa, mas não ficou. Uma vez que estavam sós, ela e Martinho, depois de jantar e Judite lhe ter preparado o cachimbo e saído da sala, ela abordou o assunto. Tratou-o por você, como nas ocasiões de maior solenidade.

- Não é novidade para si, mas queria perguntar-lhe uma coisa: que pensa de Judite?

- Que Judite?

- Bem, não é a de Holofernes. A nossa Judite.

- Não sei. Diga-me a avó.

- Não lhe agrada?

- Sim, agrada-me. É como uma irmã para mim.

- A parte o incesto, que não deixa de ter atractivos, que acha casar-se com ela?

- Casar-me? - Ele fechou os olhos como se o fumo o incomodasse e uma onda de prazer fê-lo corar. Desejava Judite quando a via, com os braços nus, a lavar roupa miúda e a pô-la em sabão ao lado, como se fazia dantes e ela tinha aprendido desde pequena. Aos quatro anos, a mãe punha-lhe um banquinho diante do lava-loiça na cozinha e ela esfregava panelas do tamanho dela, raspando com a unha o feijão-frade pegado no fundo. Aos quatro anos ia para a colheita do morango nas estufas, e não se queixava. O trabalho assentava-lhe como uma luva; crescera a mexer-se, a ser mandada, a ouvir os gritos da mãe que a repreendia, a sacudia, não a deixava parar. Mas fez-lhe um vestido para a comunhão, tal como o duma noiva; com grinalda e véu, e até luvas de algodão branco que ela se esforçou por não sujar.

- Se as sujas, mato-te! - disse Estrelinha Sopa-de-Massa. Parecia uma lady, grande e com sardas douradas. Judite ficava a olhar para ela com admiração, agradecida por ter uma mãe tão bonita, ainda que geniosa. Quando o sol lhe dava, na varanda das traseiras, era uma autêntica estampa. Ao pai amava-o doutra maneira. Era um amor severo, não deixava que ele lhe desse um beijo desde os seis anos. Fechava o quarto à chave para ele não entrar. Mas estava sempre pronta a fazer-lhe recados, a ir comprar-lhe cigarros, a pedir emprestada uma tesoura da poda. Não o desgostava em nada. Punha-se a olhar para a imagem de Cristo morto na cruz, com uma ferida azul de sangue pisado no lado e que parecia verdadeira. As lágrimas caíam-lhe pela cara abaixo. "Não o vou desgostar em nada", pensava.

- Onde estiveste tanto tempo?

- Fui ao catecismo.

- Rai's partam tanto catecismo! Escolhe-me essa hortaliça.

- Já vou.

A bata era curta e descobria-lhe as pernas altas com um pêlo loiro, que a mãe não deixava que as rapasse. "Depois nascem mais fortes." Mas, com isso, resistia a achá-la mulher feita e a entrar na roda das casadoiras.

Como é que Judite se tinha adaptado não se percebia muito bem. Seis anos foram o suficiente para ela se transformar e Maria Rosa orgulhava-se da sua obra. Aos dezoito anos Judite era uma senhora, direita como um fuso (ou torneada como um fuso, tanto faz) e só pecava por uma coisa: gostava de telenovelas e era capaz de memorizar seis ao mesmo tempo, sem se enganar. Ainda que fosse para ela um sacrifício assistir a jantares, quando se recebia na casa, comportava-se lindamente. Então, vestida de veludo preto, causava sensação.

Ninguém se admirou quando Maria Rosa comunicou o casamento do neto com Judite. "Se o Nabasco fosse vivo, as coisas não se davam", disseram. Mas como Martinho não a levava ao clube, nem aparecia com ela senão muito raramente, deixaram de falar no caso. No fundo, os homens eram muito fleumáticos quanto aos deslizes uns dos outros e costumavam dizer que está tudo bem logo que não haja engarrafamentos de trânsito.

O Porto não tem tradições fidalgas, toda a gente sabia. Negociantes, empresários, capitalistas, com as artes no Porto, a exemplo da Revolução Francesa, chamam artistas aos trabalhadores de certas profissões, como pintores, canalizadores e electricistas. Pessoas como Martinho Nabasco mereciam algum respeito porque eram ricos e só por isso. A seguir vinham os médicos e os professores e por fim os padres e os jornalistas. Era frequente os rapazes de boas famílias não terem grande instrução mas apenas mestres de caligrafia e contas. Maria Rosa seguiu essa cartilha quando já não era usada.

- Como as coisas mudaram! - disse Maria Rosa. Já deixara de fumar há muito tempo, mas tinha aquele gesto de quem procura um cinzeiro ou uma caixa de fósforos, deitando em volta um olhar pesquisador. - Não digo só pela periferia e as pracetas novas, e as linhas de trânsito que vão dar a qualquer parte (Deus me livre de querer saber aonde vão dar, nunca mais lá chegava), mas pelas pessoas. Não conheço ninguém. Ou estão mortas, ou em casa, com Alzheimer. Eu recebia para o chá às quintas-feiras e às vezes aparecia um desconhecido e entrava. Podia roubar as gabardinas no ben-galeiro e ninguém impedia. Agora fechamo-nos a sete chaves e para recebermos alguém tem que trazer um crachá da polícia. Tenho três cães soltos à noite e câmaras por toda a parte. Ninguém entra que não seja filmado.

- Que ingénua! - disse o doutor Assis. - Eu apresento-me aqui com a minha camisola de gola alta puxada até ao nariz e ninguém me reconhece. E os seus cães são de exposição. Com duas pedradas estão arrumados. Espero que não tenha em casa o seu colar de pérolas.

- Onde o havia de ter? Preciso dele de repente e quero-o à mão.

- De repente, como?

- Posso ficar de cama e gosto de o pôr na cama. Sabe disso.

- Parece uma heroína da Agatha Christie.

- Tanto melhor! A Agatha Christie é do meu tempo. Fazia uns romances como arranjos florais; com uma aranha dentro. A Highsmith era melhor. Li bastantes livros policiais, são muito repousantes.

Ela falava muito ultimamente, "como uma matraca", dizia o doutor Assis que, entretanto, se modificava também. Tornara-se guloso e comia seis scones com manteiga duma assentada. No tempo em que os scones não eram congelados e se faziam todos os dias para o lanche, sabiam muito melhor. O grande canapé de veludo alemão parecia uma canoa no rio Amazonas. Tudo era mais bonito, até a luz do pôr-do-sol era mais bonita.

- Já falou com Martinho? Vamos a coisas sérias - disse o doutor Assis.

- Que mania interromper as coisas agradáveis com coisas sérias! A Patrícia Highsmith tinha, quando eu a vi em Toronto, um casaco de caxemira cinzenta e um olhar de raposa à caça de coelhinhos bravos, desses a lavar a cara à beira duma poça de água. Não me esqueci mais.

- Que estava você a fazer em Toronto?

- Qualquer coisa séria. Comprar umas peles, não sei. As peles de foca estavam muito baratas, eu fiz algum negócio com isso.

- Não me diga que era foca bebé.

- Não. Era a foca avó. - Ela riu-se e deitou-se para trás, no seu jeito de rapariga que, no entanto, roçava pela melancolia. Não por nada. Mas as mulheres guardam no fundo do coração um cumprimento para a juventude que nelas passa sem aviso e sem saudade, e a qualquer momento da vida.

Não era fácil abordar o assunto do casamento com Martinho. Dizer-lhe o quê? Que ninguém se casa com a filha dum assassino, por mais bonita e bem educada que ela seja? Ele estava no seu direito para lhe responder asperamente e até de cortar relações ou pedir à avó que não o recebesse mais. E Assis não queria encarar essa hipótese; gostava de jantar nos Nabasco, de comer bem e jogar a sua partida de bridge quando havia com quem. Maria Rosa não era viciada, mas as cartas davam um toque feliz ao fim do seu dia. Baixava as luzes e só a mesa de jogo ficava iluminada. Como nos filmes dos grandes marginais, com sobretudos forrados de cetim vermelho. Havia nela uma obscura inclinação para a clandestinidade e fora decerto isso que a levara a adoptar Judite. Qualquer que fosse o seu comportamento, não a decepcionava. Como acontece com pessoas no fundo arrebatadas por um sentimento congénito de desordem e até de malvadez, ela tinha súbitos desejos de redenção. Gostava de ter ao pé dela gente nova e ingénua, que de certo modo corrigia na sua alma as acções que praticara ou estivera prestes a praticar: desvios de testamentos, roubos em família de jóias e peças de loiça avaliadas em alto preço. Donde viera a Ronda da Noite? Suspeitava-se que era uma cópia, dessas que quase chegam ao valor dum original; o prazer do negócio, em Maria Rosa, superava o do jogo. Viver na casa do Torreão Vermelho, donde se via a cidade inteira mas que era de certo modo inabitável (porque não tinha aquecimento, só uma quantidade de lareiras, que era impossível ter acesas ao mesmo tempo por falta dum oficiante apropriado), significava que ela tinha ideias sobre a Ronda.

Maria Rosa não era pessoa para se afeiçoar a um valor; tinha-o como refém dum contrato aparentado com o jogo. Tinha uma autêntica paixão pelos leilões e, nesse sentido, corria as casas a serem arrematadas como um atleta percorre a área da prova e avalia as suas condições. As jóias raras também a tentavam, se bem que, com excepção do colar, não as usasse. Os longos lóbulos das orelhas (índice de felicidade para os chineses) tinham crescido sem terem nunca suportado arrecadas ou brincos de qualquer preço. Quando Judite lhe fazia ver que a casa se tornara grande demais, com as suas três salas de tectos altos e os frescos nas paredes com as nove musas, e outros espalhafatos semelhantes, Maria Rosa ficava perto de a odiar.

- Que queres? Uma sala comum e a marquise? Se não te agrada, muda-te.

Era estranho como Estrelinha Sopa-de-Massa dizia a mesma coisa, mas exactamente a mesma coisa, quando Judite se queixava: "Se não te agrada, muda-te..." Era um estribilho que continha uma lição; abria-lhe a porta para uma vida de surpresas como ela própria tivera, algumas boas, outras para esquecer. A vida!

Se Judite tinha recordações desse tempo, do pai que bebia, da mãe iracunda, guardava-as para ela própria. Olhava para o Cristo na cruz, na igreja, em tamanho natural e com membros de atleta, e sentia-se insegura. Como era que Ele se deixara prender e maltratar daquela maneira? Judite tinha um antepassado almocreve que fazia recovagens para o cerco do Porto e outras; trazia de Espanha galões e rendas, com que fez fortuna. Chamava-se Jesus, o que confundia muito as crianças. Quando era muito pequena, Judite tinha vaidade em descender do Jesus das encomendas e sentia-se alguém com aquele parentesco, tão distante que nem uma lebre a correr o apanhava, como lhe dizia a mãe.

Como viu Judite o casamento com Martinho? Ninguém lhe perguntou nada antes de ele aceitar recebê-la como esposa. Depois parece que ficou desiludida porque se tratava quase duma união de facto e não duma cerimónia a valer, com hino na igreja e vestido de noiva.

- Posso ir de branco?

- De branco ou de cor, é contigo - disse Maria Rosa, compadecida. - Levas um ramo de gardénias cá do jardim que são um espanto.

Para ela uma união de facto não passava dum ajuntamento, mas prevenia decepções. Tinha nos ouvidos as catilinárias do doutor Assis que não se fartava de condenar aquilo, dizendo que a cabra puxa sempre ao monte e coisas assim. - Ora, pode-se fazer o que se quiser, já não há censura para nada e não perco as minhas partidas de brídge por causa disto. E tu, Judite, não te ponhas triste. És tão honrada como as outras e não tens nada a perder.

- Jura? - disse Judite, num tom de voz distraído, mas que não era tão distraído assim. Maria Rosa deu-lhe um enxoval digno duma princesa. Pena era que as antigas bordadeiras do Porto já não existissem, mas em Bucareste sim, que havia autênticas fadas da agulha que faziam ponto de sombra e a cheio. Mandou vir de lá camisas que mais pareciam vestidos de Madame Récamier no sofá.

O casamento não mudou nada, se exceptuarmos a vida conjugal, que não foi por aí além, nada parecido com as cenas de amor explícito apresentadas na televisão ou no cinema. Qualquer criança de quatro anos sabia beijar com a língua e que o sexo era uma distribuição de encontrões. Isto tornava-as desprevenidas quanto ao assédio de pedófilos que se insinuavam pela arte da rendição a começar pela curiosidade.

Como Judite não tinha filhos, pensou-se que levava uma vida de vestal, para não dizer de freira, que levanta objecções de toda a espécie. Mas não. O casal era feliz desde que a sua intimidade não fosse sujeita à opinião de todos. Dantes só a lavadeira tinha acesso aos lençóis dos casados; e daí às suas relações em que passava o conceito do ser humano, qualquer que seja a sua idade, cultura e tamanho; o conceito de que não são as suas perfeições que os recomendam, porque em toda a perfeição há elementos negativos. No amor há um impudor brutal, a par duma castidade postiça. Judite preferia preservativos cor-de-rosa, desacreditando-os como objecto sexual. Não confiava totalmente em Martinho e pensava que ele lhe podia transmitir a sida de que tanto ouvia falar.

- É homem e os homens fazem coisas que nem se acredita - disse Elisa, que ficou indignada.

- Ele não é desses. Fica-te mal teres ideias dessas.

- Não são ideias, são pressentimentos.

- Os teus pressentimentos são muito malcriados. - E Elisa virou-lhe as costas.

Judite pensava se estaria ou não apaixonada. Na dúvida, dava-lhe para se dedicar às artes, começando pela poesia. Alguém disse que os maridos não consentiriam na vida real às suas mulheres aquilo que elas punham em verso. Não contente com esses trabalhos, Judite enveredou pela prosa e valeu-se das meias verdades que são desejos estropiados. Pretendia uma liberdade sem saber, como ninguém sabe, quais as leis que regem a liberdade. No fundo, queria incomodar Martinho arrogando-se uma moralidade que precisava duma cultura e de Deus como cultura, para se afirmar.

Ele estava muito longe de se interessar pelo mal-estar que ia crescendo e ameaçava tornar-se crónico. Não a contrariava nem se ria dela, mas também não lhe anunciava nenhuma compreensão, apenas um respeito que era devido a ele próprio como marido. Talvez esperasse que Judite desaparecesse da vida dele, como por encanto, sem que ele se sentissse culpado de nada. "Não se pode viver muito tempo com uma mulher sem se efeminar", pensava Martinho. "Vamos acabar por termos tendas à parte para não sermos um só sexo." Ele tinha lido um diálogo atribuído ajesus e Maria Madalena, diálogo em que se reconhece o fim do desentendimento entre homem e mulher "quando ela deixar de dar à luz e houver um único sexo". Era alucinante, não se podia falar disso, pelo menos por enquanto. Martinho suspirou e dormiu um pouco, estendido no sofá vermelho que tinha mudado para um rosa esbatido.

- Não vem jantar? - disse a avó, do fundo da escada.

- O que é o jantar?

Ele sentiu que estava na Casa do Cão muitos anos antes e se punha a mesa no jardim, ao fim da tarde de Julho. Havia lagosta e vinho espumante em copos altos. "Vai lavar as mãos" - disse o avô.

- Jesus não lavava as mãos.

Isso valeu-lhe uma bofetada com os dedos, Martinho fugiu com a cara e desequilibrou-se mas não chegou a cair. O avô andava a dormir com a criada de sala, uma morena baixinha que não prestava para nada. Mais duma vez foram encontrados no andar por cima da garagem e que, porque não havia chauffeur, se destinara a quarto de costura. Era quente e sombrio e dava ideias de segredo e decomposição da carne. Um dia, descia ele pela avenida onde havia amoreiras de frutos brancos e sem sabor, e apercebeu-se de ver outra pessoa que, como ele, conhecia esse mesmo lugar. Já tinha estado ali, no corpo de outro. Guardou para si essa estranheza, não tinha mais de sete anos.

- O que é o jantar?

Foi Elisa quem lhe respondeu para lhe dizer que ele ia gostar. Era dada a mistérios sobre as mais pequenas coisas. "Quem te disse isso, Elisa?" Calava-se. Até se calava quanto ao horário dos comboios e o boletim meteorológico. De tudo fazia reticências e ares sabedores. Se não fosse isso, também não tinha graça. O cabelo ia-lhe caindo e ela guardava-o numa caixinha de papelão. Tosquiava-se o cão e ela guardava o pêlo cortado.

- Para que é isso?

- Para nada.

- Então para que o guardas?

- É uma recordação.

- Não é um feitiço? Calava-se.

Há uma quantidade de pessoas que não fazem nada em países amuados na sua História e que entendem que outra coisa não vale a pena. Quando possuem um talento natural, para o qual não é preciso instrução, desenvolvem o engenho para produzir obras que não se podem explicar segundo o mecanismo do ensino. Para essas é inútil qualquer método de preparação; saem-se melhor ou pior com a sua afabilidade, que é uma aceitação do mundo em contraste com o rigor do juízo. Por isso, um grande artista é sempre insensível ao justo e ao injusto e o que primeiro advertimos nele é a faculdade de conhecer as regras, mas não aquelas pelas quais a natureza oferece ao homem ordem, segurança e prémio desta obediência. Ficaríamos surpreendidos ao saber quantos em Portugal não seguem as regras e se regulam por outras que limitam a dificuldade ao astuto. A astúcia é a soberana qualidade do português. "Quem brilha na segunda fila, eclipsa-se na primeira", disse Voltaire. É uma espécie de provérbio, que não chega a todo o entendimento.

Martinho era desses que brilham na segunda fila. Na primeira não era sequer convidado a brilhar e havia uma porção de indivíduos menores que se destacavam em todas as áreas. Isso dava-lhe a possibilidade de poupar-se à mediocridade que é precisa para vencer as filas dianteiras, duras de vencer, se não impossíveis de pressionar. O motivo por que o português, quando tem talento, prefere a segunda fila é porque sabe que na ordem do colectivo tudo é insolúvel. Poupa-se tempo em segunda fila, mais do que é imaginável. Mas também se vive com atraso, com respeito à civilização; e a sensibilidade profunda que se exercita em segunda fila é inimiga da rapidez para agir.

Em certo sentido Martinho era um parasita, mas um parasita pensante. A única coisa que não se atrevia a descobrir era o carácter da sua mulher. Partia do princípio de que, para o casamento ser bem sucedido, tinha que jogar com forças desiguais. Um tinha que estar submetido ao outro e haver sempre uma iminência de guerra entre os dois. Não era solução, quando surgiam dificuldades, separarem-se; imediatamente iam buscar situações contraditórias em que se pratica o sentimento mais soberano, que é a compaixão. Esta era a única variante das relações do casal e a única que mantinha em equilíbrio as suas paixões próprias e singulares.

Estrelinha Sopa-de-Massa, assassinada numa noite do fim do Verão, sabia quando o marido a enganava: deixava de lhe bater e tratava-a com respeito devido a uma desconhecida. Foi nesse estado que ia além da suspeita que ela o seguiu, sendo vista pela filha que a acompanhou de longe e assistiu ao crime. Martinho tinha sempre alguma coisa a averiguar quanto àquele caso e até se podia supor que casou com Judite como um inspector da judiciária se casa com um processo difícil. Seria ela completamente inocente? Ficava acordado de noite a rever a situação que as testemunhas tinham mostrado, mas era evidente que não dominavam a verdade e estavam excitadas pelo deleite público de se encontrarem na primeira linha. Com Judite não se passava nada; nem ele a interrogava, nem ela parecia ter na memória senão um vazio. Só um dia, quando Martinho voltou muito tarde para jantar, ela disse sombriamente:

- A minha mãe deitava no balde a comida e mandava-nos dormir.

Maria Rosa não estava presente porque jantava no quarto às sete horas da tarde. Tinha dificuldade em descer escadas, e recebia os amigos no andar de cima, numa sala a que chamava o jardim de Inverno. Desde os doze anos que Judite não se referia à mãe. Era como se tivesse nascido duma "pedra parideira", como as que há em lugares lendários do país. Mas dessa vez falou da mãe como se estivesse viva e ficou com os cotovelos fincados na mesa, muito absorta, parecendo interromper uma cólera de cujo perigo se apercebeu de repente.

- Estás bem? - disse Martinho. Esperava que ela chorasse ou fizesse alguma coisa para o punir; mas Judite serviu-o como de costume e levantou-se para ir buscar outro guardanapo, reparando que o dele tinha caído. Parecia assustada e comprometida. Pôs diante dele a manteiga e os gressinos e tudo o que ele podia apetecer. Pepinos de conserva também. Estava arrependida ou, mais do que isso: estava verdadeiramente desorientada e corrigia, com actos judiciosos e simples, a sua confusão. Martinho sossegou-a com a sua fleuma, pediu-lhe desculpa por ter chegado tarde.

- Não fiz nada de mais. O tempo passou. - Não gostava de mentir, isso humilhava-o. Ela tinha os olhos febris, os lindos olhos que pareciam negros quando havia pouca luz. "A beleza tem qualquer coisa que nos tranquiliza. Como uma enfermidade que nos acompanha e da qual deixamos de ter medo." Ele serviu-se um pouco mais abundantemente do que o costume, querendo dar-lhe prazer com isso. Há mulheres que se sentem retribuídas, mais do que com o sexo, quando os maridos apreciam as suas ofertas de comida. E aqueles homens, efémeros como amantes, que nunca voltavam duma viagem sem um presente de bolinhos ou de pralinés, como se viessem dum país remoto! Eram inestimáveis.

No seu caso, nada tinha mudado. Era ainda o senhor da casa e a avó a deusa Lar, ainda que quase invisível nos seus aposentos do primeiro andar. Mas para Judite não havia um lugar certo; andava por toda a parte como num comboio demasiado ocupado e esperando que ficasse livre um assento para tomar posse dele e pendurar no cabide o seu impermeável e na bagageira os seus sacos de plástico. Não se podia dizer o que tinham dentro porque não correspondia ao nome da loja. Judite aproveitava tudo até à última e um saco de plástico era para ela precioso, tanto mais se sugeria qualquer coisa luxuosa. Gostava de saldos e de pedir descontos. Mesmo no estrangeiro pedia abatimentos; Martinho ia para a porta, a fingir que não a conhecia.

- Que mania de falar inglês! Não sabe inglês bastante e fica ridícula a abanar as mãos e a repetir yes, yes.

- Eles não se importam. Estão ali para vender e não para me fazerem exame.

Às vezes ela tinha resposta pronta, era mais inteligente do que parecia. Isto punha-o nervoso. Acreditava que um dia Judite havia de lhe dar uma surpresa, apaixonando-se por quem não devia ou coisa assim. Aconteceu tal como previa. Um homem, novo no círculo das suas relações, apareceu em jantares de Maria Rosa. Já não era ela quem convidava; e fazia uma curta aparição com as suas pérolas e dispensando um sorriso familiar, porque todos os convivas eram herdeiros doutros que tinham morrido ou mudado de rumo. Agora havia uma gente mais ambiciosa em que se cruzavam os afluentes da meritocracia. Todos tinham cursos superiores e até mais do que um. Preparavam-se para a competição, quando antes estavam seguros do terreno, pisado quase exclusivamente pelas elites, nem sempre ricas mas afiançadas por uma vida sem escândalo, fosse de finanças, fosse de libido. Pessoas como Martinho já não havia mais nenhuma. Os seus companheiros de "aventuras de cordel", como dizia o doutor Assis, tinham casado e empobrecido com dignidade, retirando-se para as suas propriedades para "lamber as feridas" e fazer render, sem sucesso, o nome e as telhas dos seus velhos solares. Já quase só havia rapazes bem colocados e que não sabiam nada de maneiras, nem de alfaiates. A uma sociedade que se reunia sucedia uma multidão que se juntava. Não havia cultura, havia opiniões e a imitação delas.

Mas, de tempos a tempos, aparecia, como uma cabeça duma rã num lago, uma pessoa discreta, de olhos parados, e era apresentada com um excesso de adjectivos para esconder que não era ninguém do grupo. Foi o caso dum rapaz novo ainda, mas amadurecido pelo trabalho, e um trabalho de cariz exclusivo, como era o foro empresarial. Ao que parecia, nada o dissuadira de ganhar dinheiro, mas isto fazia-o com uma competência (dizia-se eficácia) tão brilhante que não deixava rasto de ser alguém destituído de virtudes. A marca da sua convicção em ser um ganhador estava em que ele gostava de ser elogiado pelos seus dons de pequeno burguês: o amor dos filhos e a fidelidade conjugal. Desprezava os políticos porque lhe pareciam ingratos, desonestos e sem palavra. Desconhecia que um político é, por natureza, pouco ou nada agradecido aos seus apoiantes; que deixam sempre uma cláusula nos seus acordos por onde possam escapar; e, sobretudo, um político estima, como se fosse ouro, um processo sobre costumes porque ele levanta o bastante alarido para criar um clima de indignação onde devia haver discrição. E a indignação é um surto epidémico que o legislador não pode controlar. Nesse entretanto, elevam-se os políticos, criando factos que, na realidade, são sobretudo efeito dos seus jogos. Este homem de que estou a falar chamava-se Manuel Andrade. Era mais alto do que o normal e tinha uma cabeça redonda, à Péricles, que dizem ter tido uma cabeça de cebola. Não era bonito nem particularmente amável. Os homens muito empenhados no seu trabalho não são amáveis nem sabem mostrar simpatia. Não se interessam por mulheres e para eles é como se fossem todas iguais. Alguém que goste do poder, não digo que detesta as mulheres, mas não lhes presta atenção. Napoleão dizia que amava o poder como artista, mas não é verdade. O poder não se ama, pratica-se, assim como as mulheres não se amam, distribuem-se pela vida dum homem como se fossem uma paciência com cartas.

Manuel Andrade, antes dos quarenta anos estava tão rico que, antes de abrir a boca, era já uma força de persuasão.

O dinheiro fazia-o poderoso, o desejo fazia-o desgostoso de si próprio, porque adquirir era muito menos do que desejar. Os homens ricos todos se parecem neste particular: o amor de acrescentar a fortuna é traído pelo receio de a achar vulnerável às crises que a arruinam.

Quando ele se apresentou pela primeira vez no Torreão Vermelho causou uma impressão desconfortável em Martinho. "Aqui temos um homem disposto a mostrar o seu poder porque sabe que nada o pode parar", pensou. Judite estendeu-lhe a pequena mão de unhas cortadas rentes, o que era sinal de que não as queria ver quebradas nas suas simples tarefas de casa. Manuel Andrade sentiu uma espécie de culpa por não poder gozar da sua companhia falando-lhe como os homens fazem com as mulheres, como se quisessem ignorar o seu subdesenvolvimento. Tudo o que podiam conceder-lhes era uma salvação do que seria a sua vida na China ou na índia há duzentos anos.

Mas tudo isto não ocorria a Manuel Andrade. Subitamente ficou feliz e bebeu com delícia o seu champanhe rosado. As pessoas pareciam-lhe sinceras e boas e sentiu um estranho bem-estar em não ver nenhum indício de falsidade à sua volta. Não era daqueles de quem se dizia que "tinham subido a pulso" para esconderem que o invejavam. Na verdade, era filho dum lavrador remediado que o mandara estudar, a ele e aos irmãos, sem esperar que fossem muito além da mediocridade. Nunca se atrevera a pensar que eles ocupariam lugares de responsabilidade.

Mas Manuel Andrade surpreendeu toda a gente. Fez exames brilhantes e perseguia conhecimentos cada vez mais ambiciosos. Não namorava, não ia ao cinema, lia apenas livros de gestão financeira e esperava a sua ocasião.

Um rico reconhece outro rico com só apertar-lhe a mão e a vê-lo atravessar uma sala.

- Tenho boa impressão deste rapaz - disse um rico. - Não pisa os tapetes, anda só em volta deles. - Convidou-o para jantar às quartas-feiras, depois trocou os dias e ficou bem disposto porque ele não protestou. Manuel Andrade não tinha uma táctica, tinha uma ideia, estar acima das suas ambições. Sentado ao lado de Judite, à sua esquerda, quase não falaram; mas não se sentiam como estranhos, o que os fazia rir com tal satisfação que todos começaram a reparar neles. O doutor Assis foi dizer a Maria Rosa.

- Passa-se qualquer coisa, lá em baixo. Não sei o que é, mas as pessoas falam todas ao mesmo tempo e não se ouvem umas às outras.

Maria Rosa estava na cama e mudava os canais da televisão com um vigor irritado.

- Não há nada que preste.

- Ouviu o que eu disse?

- Não.

- Acredita no diabo?

- Quem não acredita? Os ateus não acreditam em Deus mas no Diabo acreditam. - Ela estendeu as pernas na cama, e aquilo devia fazê-la sofrer porque se queixou. - Não me serve de nada, não me tira as dores. Vem aqui perguntar-me coisas que não me servem de nada. Era melhor calar-se. - Era um quarto largo, com cortinas que davam para fazer velas para uma nau; mas leves, como se a espuma do mar as tecesse. Ela parecia não ter tomado atenção senão aos estalidos dos seus joelhos, mas disse apressadamente: - Julgo ter percebido.

- Percebido, o quê? Já disse que alguma coisa se passa. Tive uma ideia terrível.

- O dinheiro e o amor é uma ideia terrível.

- Como adivinhou?

- Não adivinhei. Já sabia. Quando se encontram é como o canto dum pescador num barco que se perde no nevoeiro. Não se pode voltar dum amor assim.

Ele esperou que Maria Rosa dissesse mais alguma coisa, mas ela não disse mais nada. Não estava perdida em pensamentos, tudo nela era concreto e sem sombra de pena. O doutor Assis desceu para o andar de baixo e foi tomar o seu café que, entretanto, tinha esfriado. Quase toda a gente tinha ido embora, restavam dois homens que discutiam assuntos conflituosos em que se percebiam coisas sobre vidas privadas. O vinho fazia-os destemidos e sinceros. Judite não estava presente. Ainda se praticava o velho costume inglês de deixar os homens sós para beber e falar mais livremente. Não era o salão principal, com o piano aberto e uma série de frescos que representavam as nove musas um pouco parecidas com o modelo favorito de Boticelli. Era a pequena biblioteca com mezanino e retratos de escritores do século dezanove. Vitor Hugo e Lamartine, em pose para a posteridade. Martinho, à parte num sofá de molas gastas, estava a admirar um cocker dourado que tinha entrado em busca de guloseimas.

- Que bonitas orelhas tem este cão - disse, quando viu o doutor Assis. "Com que se droga ele?" - pensou o doutor enquanto sorria, com doçura. Estaria na fase da metadona ou alguma coisa mais estimulante? Verificava os dentes escurecidos de Martinho e aquilo entristecia-o. Ao menos os desgostos não o atingiam quando viessem; a morte da avó, a queda da casa, o despedimento dos criados que se tinham feito arrogantes. O châuffeur, a exigir os subsídios atrasados, uma pequena fortuna. E Judite? Não se sabia no que ia dar, o doutor nem sequer lhe concedia o benefício da dúvida. Gostava dela, os homens gostam de todas as mulheres em que captam alguma coisa de disponível. Sentou-se ao lado de Martinho e o sofá rangeu com o seu peso.

- Estes dois não se vão embora - disse. Mas viu que Martinho não estava em estado de manter uma conversa. Não era desagradável a companhia dum drogado; indefeso e pacifista, leve como uma pluma. Talvez a dose certa desse a receita do cidadão comum e as guerras acabassem. Mas o mundo caía numa ficção monstruosa que nem o filósofo Kant teria imaginado. Ele disse que um artista da política podia dirigir o mundo por meio duma ficção capaz de suplantar a realidade. A ficção da liberdade já fora experimentada no Parlamento inglês; a da igualdade também, na Convenção francesa. A do sexo fora iniciada para desacreditar a revolução bolchevista. A ficção da droga estava em pleno concerto com o poder; e o terrorismo de espectáculo estava a ser aplicado como o meio de criar o cidadão ideal, o incapaz de si mesmo.

O doutor seguia com o olhar o cão que atravessava a sala desiludido. "Coitado! Era tão fácil dar-lhe uma bolacha..." Martinho parecia ter-lhe captado o pensamento e chamou o cão repetidas vezes. Mas ele não veio; já tinha sido enganado e fizera disso um reflexo condicionado. A partir daí as coisas tomaram um cariz funesto. Judite tornou-se o centro dum motim familiar que ensombrou uma década inteira; tudo o que podia ter registo na história política ou social deixou de ser sequer notado. Tanto as paixões esvaziam a mente de qualquer factor exterior a elas. A única pessoa que parecia indiferente era Martinho. Nada o afectava e aos poucos deixava de sair de casa. Mostrava ter por Judite um sentimento arrepiante, como se esperasse vê-la morta a qualquer momento. Não entrava mais no quarto da avó para lhe dar o primeiro beijo do dia; e não respondia às queixas dela senão com um sorriso falso.

- Abandonas-me, já não vejo ninguém dos meus conhecidos. A porta bate com o vento e vou adoecer com as correntes de ar.

- Não há vento. Estamos no Verão e com um sol muito bonito. - Elisa prendeu no colchão os lençóis; habituara-se a ver Maria Rosa meio demente e que, aos poucos, não sabia onde estava nem quem lhe falava. Tinha momentos lúcidos e irritava-se porque não a serviam rapidamente e davam preferência a outros, pessoas estranhas que ela nunca tinha visto. Paula veio visitá-la mas não trouxe os cadetes, os dois filhos.

- Para quê? Iam encher-se de medo, além disso não foram criados aqui. Esta casa está horrível. Todas as torneiras pingam e a escada principal parece que se mexe quando olho para ela de cima.

- São tonturas, deve consultar sobre isso - disse Elisa. Enfurecia-se sempre que Paula vinha com o seu enorme casaco de vison diamante preto. Mas, como era no pino do Verão, não conseguia identificá-la vestida de rosa e com sapatos como bichos de focinho aguçado.

- Onde está Judite?

- Vamos lá saber! Se está em casa esconde-se por aí.

- É bem uma casa para a gente se esconder. E a mamã? Pensas que vai morrer?

- Mais depressa morro eu. Está com um coração de ferro.

- Sempre teve um coração de ferro. Percebes o que eu digo... Que chá tão bom tu sabes preparar! Pouca gente tem mão para o chá. Diz-me, Elisa - ficou calada, como a inventar o tom com que devia prosseguir. - O colar está em lugar seguro? Sabes onde está o colar?

- O senhor Nabasco sabe dessas coisas, eu não.

- Vejo que faltam coisas... Aquela figura duma dama a ler. Um ovo de Fabergé... Desapareceram, foram roubados?

- Aqui não entra ninguém sem que se saiba. Há alarmes na casa toda.

- Isso não vale de nada. Os ladrões de casa são os mais difíceis de evitar.

Elisa levantou o tabuleiro do chá; tinha cortado o cabelo muito curto e estava ridícula. "As mulheres querem enganar até ao fim", pensava o doutor Assis. "Que espera esta carcaça?"

Elisa não só cortara o cabelo como o pintara de vermelho que pretendia ser veneziano. "O mundo sempre foi uma paródia pegada." Mas é com Elisa que acabo este capítulo: ela viu que Paula não subia para se despedir da mãe.

"Depois de velhos não temos filhos, temos herdeiros", pensou Elisa. Parodiava Maria Rosa, mas não dava conta.

 

                                      CAPITULO V

                 O ESPÍRITO DO DRAGÃO

Não há poetas como os chineses. Não sei como tive esta ideia, mas foi com certeza por causa do que um poeta do século V chamou "a sabedoria do desprendimento". Para o espírito desprendido, todos os lugares são distantes, diz o poeta, cujo nome não me atrevo a escrever por receio de consumir letras sem escola.

Não se sabe se por efeito dalguma droga leve (como o doutor Assis tinha por certo), se pela natureza de mutante, Martinho tinha um espírito desprendido. Fazia parte da sua condição de português essa falsa indolência que era uma senilidade sem moléstias. Nunca amara de verdade Judite e foi com surpresa que se apercebeu que ela era amada com paixão. Para ele, Judite tinha sido resgatada a um destino triste, passando da orfandade para o serviço de burgueses sem fortuna e acabando por casar com um reformado que desse desconto ao sangue que ela tinha nas veias. - Maria Rosa ocupou-se de Judite como dum objecto sem préstimo achado no fundo dum baú e fez dela uma camareira. Não | uma criada, e com isso Elisa debatia-se com todas as forças, mas como agente duma vingança. Contra Paula, evidentemente. Se a prejudicasse o bastante para ser lembrada por [ela, atingia o seu objectivo.

Os grandes ódios entre pais e filhos, que dormitam através de muitos anos de ressentimento (porque há sempre uma dívida a saldar de liberdades furtivas), raramente se resolvem no arrependimento. Tudo é matéria de acusação e canseira de argumentos para o alimentar. Esse estado de furor mais ou menos latente, e muitas vezes engrandecido até ao drama partilhado por toda a comunidade, é o que se chama o espírito do dragão. Vive numa cova profunda esperando a ocasião de se manifestar com rugidos e labaredas. Esse o contributo das relações humanas para que a sociedade mantenha a pulsação criadora.

Na continuidade da revolução, passados os tempos de retaliação ou de aproveitamento pelos mais aptos para resistir e vencer, estabeleceu-se aquilo que precede a ruína e que é uma ordem fingida, tanto económica como social. Não eram tomadas grandes medidas porque elas difamam sempre o legislador. Quem tinha ocasião de servir-se dos apoios comunitários deixou-se envolver na corrupção e acabou mais pobre, só que com mais gozo de gastos. Martinho citava Danton dizendo que os meios revolucionários tinham sido funestos a muita boa gente, pois a revolução não se opera geometricamente; é como uma enxurrada que desmorona muita coisa útil e arranca muitas raízes de bons pomares de fruta sã.

O que se passou com Martinho era difícil de adaptar às circunstâncias. Teve dinheiro suficiente para aplicar nas terras que, na realidade e na sua maioria, eram improdutivas. Gastou a maior parte em melhoramentos supérfluos, dando ordens pelo telefone e indo instalar-se nos seus solares como se fosse um senhor feudal. Como a maioria dos portugueses, tinha a noção de que, de qualquer modo, seria enganado. Ninguém conhecia os verdadeiros princípios da governação, e os melhores cidadãos eram frequentemente apontados como facciosos desde que reagissem contra a desconsideração do bem público, incutindo a ideia de que o grande inimigo do povo era o seu governo. Partindo da ideia de que o silêncio deve reinar à volta do poder, fundou-se a instituição inatacável dos media destinada a fabricar as opiniões. A maior parte das pessoas novas aprenderam a ser tímidas para estarem de acordo com o moralista político. Os velhos falavam de doenças como de viagens à volta do mundo. A palavra de ordem era preparação para qualquer tipo de funcionário a ser escolhido e empregado. Martinho atingiu o ideal do português maduro: ver o mundo através da sua luneta assestada no passado, sem mexer um dedo a não ser para deitar açúcar suficiente no seu café.

De repente, porém, quando havia já um cheiro de bolor nos armários e pouco que comer, a não ser farinha para bolos, a casa dos Nabasco prosperou estranhamente. Houve maneira de se fazer canis de rede de aço para os cães de guarda; e instalaram-se alarmes por toda a parte. Podia-se ser fotografado desde todos os cantos das salas, o que contribuiu para que Elisa cuidasse melhor a sua aparência e mudasse mais vezes de avental. Não faltou a piscina e uma colecção de carpas gigantes no lago há muito desactivado. Deixou até de ser um lago para ser um ribeiro em volta do jardim. Carpas como aquelas, Martinho tinha-as visto no castelo de Elsinor, e ficou muito impressionado. Seriam de facto centenárias ou era uma lenda originada pela sua corpulência e vigor?

A casa readquiriu a sua opulência. Só que não havia senão carros utilitários na garagem, embora se voltassem a ver as grandes marcas com os motoristas, ainda que sem farda e polainas. Recebia-se pouco, o tipo de convivas tinha mudado. Eram economistas, alguns industriais ricos que tinham desprezo pelo poder. Tinha-se passado da República a novos impérios: o do petróleo, o das armas nucleares, e o dinheiro não produzia ideias senão de mais dinheiro. O rico abandonou a sua hipocrisia, e os bancos que arruinavam os governos e as pessoas tiveram a sua vindima e passaram a registar os seus lucros publicamente como se estivessem à mesa de jogo. Não se sabia donde vinha o dinheiro nem para onde ia, e Martinho estava nalguma encruzilhada por onde ele passava.

Havia quem dissesse que a casa da Ronda servia para o tráfico de droga e que, de mistura com o fornecimento de lenha para as lareiras, que eram sete, entravam os pacotes de cocaína. Eram fantasias de merceeiros, que acreditavam que os contentores do lixo eram valas comuns de gente assassinada.

Mas que era um facto haver muitos crimes, domésticos e outros, saltava aos olhos. Dava-se talvez demasiada popularidade ao que não passava do caso do dia mais trivial. E que, outras vezes, se dava publicidade a transgressões fictícias só para manter viva a curiosidade dum público ignorante e sem projectos de acção. Bastava-lhes a reforma e uma viagem a uma praia de palmeiras e de sexo diurno. Até Elisa se tirou de cuidados e comprou umas férias donde veio picada dos mosquitos e com ideias feitas sobre massagens tailandesas.

- É uma indecência, são como os macacos do Palácio de Cristal.

Ela ainda conhecera os macacos na antiga versão do Palácio, sempre a copularem e as fêmeas com as mãos metidas na vagina, enfim um espectáculo que fazia rir os rapazes e corar as meninas. Elisa passou a achar o mundo uma reserva sem selecção nenhuma ou então que o espírito de selecção tinha mudado muito. Agora era o dinheiro e a cultura como poder financeiro, mal sucedido, é verdade. E o que é mal sucedido comporta uma lição moral.

Judite estava apaixonada. Toda a gente sabia, menos ela. Tudo o que afecta o sistema é extraordinariamente severo, perscrutador e bem afinado. Uma paixão violenta é mais depressa notada do que um tremor de terra num sismógrafo. Judite raramente via Manuel Andrade e estava sempre acompanhada quando o via. Mas todas as suas emoções eram observadas, e a probidade do sistema (que fazia com que as velhas notas de vinte escudos fossem realmente queimadas em vez de serem usadas antes de saírem da circulação) funcionava. Alguma coisa é incorruptível no reino da Dinamarca.

Ao lado da cidade que parecia abandonada, só com fachadas mortas e janelas barradas com tijolos, havia a cidade de feira, com vivendas, como carroceis, telhados sobrepostos a que faltava a neve oblíqua do Japão antigo. Faltavam-lhe as lanternas vermelhas de Quioto e, às portas, gueixas pintadas de alvaiade. Os jardins desapareciam e, em vez deles, cresciam as estufas dos supermercados, verdadeiros palácios de pobres, iluminados e quentes, tópicos da imaginação consoladora. Tudo era imitação: o algodão e a seda eram fibras; a carne era fibra também; fibras os sapatos que fingiam peles variadas, com fivelas, laços, flores. As bijuterias pingavam das prateleiras, os pastéis eram grandes, para bocas devoradoras. A multidão engordava e crescia, apaixonadamente.

- Não sei porque te pões assim - disse a avó. Estás a escrever um livro?

- É o que faltava. Os livros não são escritos por escritores, é verdade, mas por pesquisadores de ouro. Pretende-se descobrir uma mina e não os grandes objectivos da humanidade. Que eu prefiro os artistas pouco informados e que não saibam nada fora do seu bairro. Que coisas fantásticas se podem escrever sem sair da nossa rua!

- Ou do teu quarto.

- Ou do meu quarto - repetiu ele. Estava intrigado com tudo o que se passava com Judite, na verdade pouca coisa no seu dia-a-dia. Mas a atitude suspensa que ela tinha, pressagiava um acontecimento que não era bom. Parecia estar muito calada à beira dum precipício, ou duma linha férrea onde passassem comboios de alta velocidade. Ninguém podia deitar-lhe a mão e segurá-la e, até, nesse sentimento de iminente fatalidade havia o desejo insidioso de ver a sua queda. "No fim de contas, é com ela." Era um pensamento tão rápido que quase não se articulava na sua cabeça. Uma vingança que era o pormenor duma vida mal partilhada. E se a avó lhe fazia alguma pergunta sobre Judite e o acordo que havia entre os dois, não a levava a sério e dizia que tudo era normal.

- Então estão em risco de não se entenderem, menino. Não há nada de normal na normalidade.

Preocupava-se, deu-lhe para esconder as pratas e os quadrinhos que tinha de impressionistas, como Boudin. Quando a revolução estalara, vendeu precipitadamente a colecção de pintura que tinha em casa. Algumas telas foram enroladas para fora do país; outras no forro das malas onde ninguém as procurava porque a guarda aos tesouros nas fronteiras era feita por gente acanhada e pouco à vontade nesse ofício. Viviam ainda na Casa do Cão, onde não havia lugar para nada. A maior parte dos valores vinham dos solares desabitados do Nordeste onde a população era fiel aos antigos princípios e não aderira à mudança. A Ronda da Noite veio dum desses solares ventosos e onde chovia como na rua. Houve problemas com a Ronda, quiseram arrolá-la como um original, e os peritos, receosos de serem apontados como cúmplices, não se atreviam a fazer uma avaliação rigorosa. Ficavam-se por ambiguidades, em risco de parecer mal intencionados à espera dum lucro qualquer de toda aquela farsa.

Porque era uma farsa deixar correr a ideia de que a Ronda era autêntica e de que valia milhões. Como era possível tudo ter passado como uma pedrada na água? Ou como a queda duma castanha da índia.

- Notou alguma coisa na Judite?

Falou com precipitação, como se pudesse retirar o que tinha dito. Maria Rosa olhou para outro lado, disse que lhe corresse as cortinas, bonitas cortinas de chintz, o mais inglês que era possível. Assim como o canapé aos pés da cama e o cesto para o cão, que já tinha morrido. Talvez houvesse larvas brancas a roer o seu tapete vermelho. Bem que o merecia, o tapete vermelho! As orelhas do cão caíam-lhe fora do cesto como roupa a secar numa varanda.

- Alguma coisa? Desde os doze anos que noto coisas na Judite. A mudança para mulher e aquela mania que ela tinha de beber água pelo fundo dos copos, quando os copos tinham em baixo uma taça cavada. Acho que já não se fazem copos desses. Judite era uma aberração; todas as raparigas passam por isso, a aberração. Comia pêssegos com leite, estava sempre a misturar coisas que não se misturam.

- Algumas misturam-se, não quer dizer nada.

- Sim, algumas. Café com leite. Mas chocolate com café não se misturam. É como as palavras: algumas juntam-se, correm umas para as outras para se abraçarem.

- Não presto muita atenção a isso.

- Deves prestar, senão és manhoso. Sabes o que é ser manhoso? É o que tu és.

- Que foi que eu fiz?

- Nada... nada... Judite, aos quinze anos, ficou de rastos. Queria ser amada e até o teu avô lhe servia. Ela cantava, ouvia-se cantar com uns trinados como uma sereia. Queria enfeitiçá-lo, deitar-se com ele, dar-lhe um filho. As meninas de quinze anos são um forno aquecido; só querem cozer o pão.

- Está a exagerar, avó. Não gosta das mulheres, e acabou-se.

- Não gosto das mulheres, não. Pode-se fazer com elas o que se quiser. Um barrete de papel, até. Podem ter prazer umas com as outras e depois vão ao cinema e choram com uma fita estúpida. Não têm remorsos de nada.

- Se me lembro, casou-me com Judite.

- É uma poldra amansada. Amansei-a para ti. Eduquei-a para ti. Levanta o cotovelo quando bebe pelo copo; não muito, só um bocadinho.

Ele sorriu, tristemente talvez. Quando um homem fica triste é desesperante, não há nada que o console. Maria Rosa virou a cara para não ter que lhe perguntar nada a que ele ia responder com evasivas, se não com mentiras banais. Quando o Nabasco vinha de fora, com o seu colete de caçador, ela sabia que tinha mudado de roupa em casa da amante. Cabelos nunca os via no ombro dele. Nem os procurava, tinha vergonha dos ciúmes que sentia. Pensava que a outra estava em "piores lençóis", como dizia para ela própria. "Se consigo rir, consigo perdoar..."

- Judite está aí está-se a apaixonar. Isso acontece duas ou três vezes numa vida. Tens muita sorte, ela ganha com isso e tu também.

Entrou Elisa com o tabuleiro do chá e pôs-se a virar as xícaras e a destapar o bule, com olhos de mordoma, enquanto se esforçava para ouvir. Como não percebeu nada do que se passava, bateu com a porta quando saiu. Andava continuamente de roda das pessoas para atar os nós das suas intrigas.

Das coisas mais surpreendentes que Martinho ouviu a Maria Rosa foi o seguinte: "Para duas pessoas se amarem são precisas três". Isto constava duma educação que ultrapassava em muito o nível da primária.

Não evitava que Martinho conhecesse o bafo do dragão que era a pegada no coração das trevas. Quando Conrad escreveu O coração das trevas estava muito longe de produzir um livro de aventuras e muito mais longe de registar uma lição sobre o poder. Fez muito mais do que isso, em parte com a intuição que faz o grande escritor. Que ele foi um grande escritor, não há dúvida nenhuma; mas o que não foi abordado foi a sua passagem pelo coração das trevas, que é de índole sexual e não podia ser outra coisa: um bocejo do grande sáurio, imóvel na lama do rio cuja nascente se desconhece.

O sexo tem um percurso cujo mapa ainda não foi desenhado. Isto porque se ignoram as suas linhas mestras. Só se sabem os seus sinais, tão abundantes como as religiões na terra e como as areias no mar. Primeiro há uma identificação sexual em tudo o que vive e morre; na natureza das coisas, mesmo que pareçam inanimadas. Uma pedra é dotada de carácter sexual, reage e move-se, influi no ciclo dos climas na terra. É muito raro que o coração das trevas seja descoberto na sua caverna. Quando isso acontece produz uma alteração na natureza que, como sabem, não depende do conceito de Deus. Judite estava na linha da verdade que é tudo, menos demonstrável. O desejo era nela uma ordem tão exclusiva que se tornava paralelo à sabedoria. "A sabedoria pressupõe uma faculdade de desejo". Martinho ficou interessado no processo de Judite que, no seu entender, estava no limiar do coração das trevas com o único amuleto que a podia salvar - a sabedoria. Como era que uma mulher sem grande cultura e para quem o prazer de viver estava em cumprir com os trabalhos domésticos, como por efeito duma teologia moral, chegava ao limite daquele mistério? Estava visto que ela se debatia terrivelmente. Primeiro foram as erupções da pele que se destinavam a tornar o sexo impossível pela repugnância ao cheiro e ao tacto. Isto durou alguns meses e os médicos não a curaram. Depois vieram os sentimentos exasperados, o amor pelo marido em quem acumulou perfeições nunca imaginadas. Ele recusava-se, sabendo que não era a pessoa que o desejo chamava. Chegou a bater-lhe cruelmente, a ponto de Maria Rosa intervir e proibir-lhe que tratasse Judite como uma escrava. Ser uma escrava era a melhor maneira de a defender do desejo e continha uma forma de sabedoria.

Maria Rosa não usava de grande empenho em defender Judite. A violência agradava-lhe, comunicava-lhe uma força que tinha qualquer coisa de corrupto e puro ao mesmo tempo. Judite debatia-se no meio de grande sofrimento; pensava em Manuel Andrade com uma espécie de demência e imaginava ter com ele relações felizes e fora de qualquer oposição. Tendo conhecimento de que ele mudara de casa com a família, que era numerosa, descreveu para si todo um quadro de encontros nas salas abandonadas e onde só ficara a alcatifa com nódoas de café ou da baba do cão. Deitava-se com ele no chão e o prazer arrastava-os para além da realidade e como se todas as perfeições se consumassem neles.

Mas, a par desses sonhos, de que acordava desfeita de tristeza, porque os sabia breves imitações de felicidade, ela descobria um caminho novo, o da fatalidade da sua própria perfeição. Vestia-se pobremente e Elisa chegava a emprestar-lhe roupas que agradavam a Judite, ela não dizia ou não sabia porquê. Dava-lhe segurança andar na rua misturada na multidão, sem nada que a distinguisse, sem poder ser notada pelo nome nem pela indumentária. Tudo isto, com a agravante de que tinha demoras fora de casa, como se fossem fugas cada vez mais conseguidas, criava um ambiente de dissolução que nada ia poder salvar.

Era muito raro, Manuel Andrade e ela não se encontravam, ou não sentiam qualquer desejo em encontrar-se. De tal modo a vontade criava neles o desconforto do amor. E chegavam a ser felizes quanto mais a frustração dos seus amores funcionava como um prazer.

Tudo se passava às claras e toda a gente afecta à casa podia conhecer a descontrolada situação, tanto física como moral, da família e dos próximos. Paula esteve duas vezes no Torreão Vermelho a fim de marcar as peças mais valiosas com um selo que parecia de leilão. Disse a Martinho:

- Desconfia de toda a gente. Os tempos não estão para amar. As coisas que desaparecem nesta casa! Os ladrões de dentro são os piores.

- Não diga isso. Elisa é como um cão de guarda e não deixa que se perca nem um alfinete.

- Um alfinete, acredito. Mas ouro e prata, não sei. E roupa de cama. Se desaparece, nem em dez anos se pode dar conta.

A insidiosa pesquisa da mãe aborrecia-o. Não lhe bastava Judite transtornada e em risco de ser internada numa clínica, ainda para mais a querer entrar naquele teatro de sombras.

- Não volte cá, senão eu vou-me embora.

- Sou a tua mãe - disse Paula; mas tinha o cuidado de não se mostrar ofendida, para não provocar um corte de relações. Desesperava-a não representar ali nenhum papel. Mesmo se morresse ninguém dava conta. Tinha a impressão que o passado deixara de ter valor, que interpretar o presente era completamente inútil. Era ainda uma bela mulher, alta e com olhos muito separados. Mas os olhos tinham diminuído com a idade e as pestanas tinham caído e foram substituídas por pêlos quase invisíveis. Martinho pensou se o amor dele não se referia à pessoa que ela tinha sido e não àquela senhora desbotada e empenhada em criar problemas de tudo; até da política internacional e do terrorismo urbano. Ninguém ia fazer dela refém, mas agia como se isso fosse possível.

A primeira fuga de Judite deu-se em Dezembro e passou-se o Natal sem ela. Telefonou a dizer que estava bem. Martinho não tinha dúvida de que ela estava bem. Sabia, sem detalhar as razões, que não era um marido enganado. A vida, a partir dela própria, tinha um sentido que não podia partilhar com ninguém.

Judite voltou, e, à primeira vista, parecia animada e cheia de vontade de retomar os seus hábitos no Torreão Vermelho. Mudou as flores na casa toda, trocou de carro porque o dela lhe pareceu inferior à sua posição e fortuna.

- No fim de contas sou rica. Não há nenhum mal em parecer o que sou - disse.

- É um risco que terá que correr. Os impostos vão cair-lhe em cima e não diga que não a preveni.

Martinho voltava a tratá-la por você, o que era sinal de reconciliação e de que tudo voltava ao normal. Mas o dragão estava apenas adormecido. "O mais terrível num estado de desejo puro é que se tem a noção de que tudo está resolvido e que o mundo está à nossa espera de braços abertos para nos receber de volta. Mas nada disso acontece. De repente voltamos ao mesmo e ainda com maior violência. Não sabemos do que seremos capazes, temos que tomar cuidado a todo o momento" - pensava Martinho. Mas o certo era que isso não passava de especulações sobre o caso de Judite, de quem não sabia nada nem nunca saberia.

O que ficara depois daquela noite em que seguiu a mãe até ao lugar do crime? Martinho tinha a certeza de que ela não tinha sido mera espectadora; que tinha agido de qualquer maneira. Como? Correu para defender Estrelinha Sopa-de-Massa ou, do lugar em que estava, assistiu a tudo, paralisada de medo ou talvez embriagada pela cena do crime? Ela esteve dois dias sem falar, ninguém suspeitou da sua presença na noite, que era clara, os dias mal tinham começado a diminuir. O brinco de ouro que se achou não era da morta, mas de Judite. Escondeu o outro para que não se soubesse.

Ouvia os gritos do pai quando o torturavam no armazém que dava para a estrada. Confessou, mas nada disse da amante, nem se ela estava na sua companhia. O desejo vivia nas suas veias.

Despediu-se das filhas quando ia para a prisão e escrevia-lhes. Mas quando Judite foi recebida em casa pela Maria Rosa e o Nabasco a olhou da cabeça aos pés e disse que parecia boa rapariga, nunca mais recebeu cartas da penitenciária. Houve ordens expressas para que a correspondência fosse interrompida e, aos poucos, Judite esqueceu-se de tudo o que a ligava ao passado. O conforto e a promessa de fortuna maior contribuíram para o vazio nas suas recordações. Todavia, ela significava um factor de risco.

- Só pessoas doidas como nós é que adoptavam essa rapariga. O melhor da vida está em provocar um facto, tirando a Deus a prioridade.

Ele não pôde deixar de admirar Maria Rosa, tão fina de ancas que até podia usar jeans elásticos como qualquer rapariga de quinze anos. Ficava muita coisa por esclarecer e que Maria Rosa sabia. Por exemplo, o que se passava na cama das duas irmãs durante a noite, uma iniciação que nunca mais haviam de esquecer mas que no processo de a ignorar estava a síntese da vida inteira.

Já não passava pela Ronda da Noite sem parar, como se alguém lhe travasse o passo. Aquele tumulto em que cada um preparava a sua situação, fascinava-o. O homem que dispara o seu fusil, o cão que começa a correr, ganindo de medo, a criança resplandecente no meio da companhia do capitão Cocq, a ufana atitude do seu tenente das galochas bordadas! Ninguém sabe o seu lugar, o momento é de paródia, pertence a cada um. "Se houvesse um lugar para mim, eu deixava tudo e ia ocupá-lo", pensou Martinho. Mas era uma das suas muitas fantasias que lhe ocorriam quando percebia que a sua razão estava abaixo da vontade sem desejo algum, que era o que fazia dele o mutante. Pode-se ser feliz sem ter quaisquer sentimentos? A avó ia ver uma ou outra freira do colégio onde fora educada. As antigas mestras tinham morrido e recebiam-na no refeitório dizendo "uma das nossas meninas", o que lhe dava prazer. Mas agora havia outras religiosas que condescendiam com o que eram pecados noutros tempos. E se diziam enamoradas de Jesus com um despudor vulgar.

- Imagina que nós suávamos de medo de irmos para o inferno ao reparar que tínhamos pernas bonitas. E agora incutem nas raparigas o gosto de se acharem bonitas, pernas, cabelos, orelhas, tudo.

- Estão mais filósofas - disse Martinho; e riu-se sem ironia. Quando dizia alguma coisa difícil de interpretar atribuíam-lhe qualquer malícia. - A perfeição física do mundo é tão importante como o direito da criatura à felicidade.

Pensou que a avó não perdera nada com as más lições recebidas; ela soubera participar na perfeição física do mundo com os seus penteados "à pajem" e os sapatos vermelhos, sandálias, a bem dizer.

O estado de Judite agravou-se e de dia para dia ela estava mais intratável. Tinha todos os sintomas da gravidez: a falta de menstruação, os vómitos matinais, os "desejos", um pasmo dos sentidos que às vezes precedia um desmaio. Elisa aplicava-lhe nas fontes compressas de vinagre e abanava a cabeça com ares doutorais. No entender dela, tudo o que acontecia com as mulheres era relacionado com a gravidez. Mas Judite não estava "prenhe", como ela dizia. Não alcançava; e o que para muitos era talvez uma bênção, para ela parecia ser qualquer coisa de errado, como a criação duma nova substância.

Ora se mostrava apaixonada por Martinho, ora lhe fechava a porta do quarto, não respondia quando ele lhe falava. Tinha prazer em contrariá-lo nas mínimas coisas, não lhe poupava os pequenos ridículos: os primeiros indícios de calvície, a preguiça, a maneira de mexer o café para a esquerda e que era sinal de avareza. Perseguia-o com motejos, achava-o cómico no vestir, na maneira de comer a sopa, soprando-a um pouco na colher. Não havia gesto que ela não perscrutasse, falta que não denunciasse. Tinha alusões torpes como certas inclinações que eram herdadas duma gente sem mérito, só presunçosa, violadora de criadas, surdas à piedade, falsos beatos, incapazes de perdão sob um preconceito de justiça. Os Nabasco eram denunciantes, políticos de tertúlia, homens sem ofício, caçadores de méritos. Ela mordia o beiço para não falar, e se Martinho insistia ela achava-o entorpecido pela droga e que não valia a pena falar mais. Mas nunca dizia palavrões, continha-se, tomava ares de senhora, ela que nascera entre injúrias e louça partida. O ciúme da mãe que parecia doida, infectada de pensamentos que uma má mulher não teria, aparecia no seu olhar esgaseado, nas mãos que destruíam e agarravam, e se transformavam em presas. Porque levava a menina da Ronda uma franga morta à cinta? Martinho disse que era uma forma de confessar um crime. Judite calou-se; subitamente calou-se.

Ele fechava a porta, escapulia-se como um ladrão, vermelho de vergonha. Estava muito lúcido, muito prudente; achava que Judite amava outro homem.

- Gosta de outro homem. Se pudesse, matava-me.

- Se pudéssemos, todos nos matávamos uns aos outros - disse Maria Rosa. Contou as suas gotas, uma a uma, com recolhimento, como se rezasse. Disse que era tempo de ter outro cão. - Um cão pequeno, que goste de dormir. Mas não, não é uma boa ideia.

- Porque não é uma boa ideia? - disse Martinho. A avó divertia-o e amava-a por isso. Também não há outra maneira de amar os outros. "E os Macabeus, gente trágica e voluntariosa?" - Ele sorriu. "Também... também..."

- Nada mais triste do que morrer e deixar um animal órfão dos hábitos que nós criamos para eles. Nem quero pensar nisso.

- Nem eu quero pensar nisso. - Ele encostou a cabeça no colchão da cama e ela riu-se muito. - Porque se ri?

- Pareces o cão do Goya.

- Agora pareço o cão do Goya. Está bem.

- Nos últimos tempos, quando Goya estava já acamado, o cão vinha para o pé dele e pousava a cabeça no colchão em sinal de veneração. E ele pintava-o como podia, não muito bem. Começaram a dizer que era a fase mais genial do Goya, coitado. Porque se via só aquela cabeça que parecia dum fantasma? Porque a cama era alta, à espanhola.

"Que mulher tão esperta, como uma doninha!" - pensou Martinho. Uma fazia-o sofrer, castigava-o, quebrava-lhe as pernas cem vezes por dia; dava-lhe pão duro e carne de cabra. Outra alegrava-lhe a alma, escolhendo-o para partilhar o reino dos céus. Uma e outra eram preciosas, justas e condimentadas com pimenta e giroflé. Sem elas só havia cavalariças no mundo.

Maria Rosa tinha uma pequena úlcera secreta. Gostaria que Martinho enveredasse pela política, já que na família não havia politocratas, nem médicos, nem padres, tudo considerado carreira de pobres. Mas o poder, com os seus tiques, a sua elite de fraternidades paradoxais, de alternativas parlamentares e de férias em camaradagem, parecia-lhe bastante aceitável. Dava benefícios que dantes se chamariam boas gorgetas. Já não havia o político à vontade na sua soberania, que se veste de calça às riscas e que não tem automóvel particular, nem sobretudo de Inverno, nem admiração por livros. Mas diz a palavra certa no tempo certo e que não fala de assuntos escabrosos, de filhos ilegítimos e esposas dos outros. Esse pertencia ao clã dos fiéis, comia no Círculo uma sopinha caseira e não se dava senão com académicos, no que se refere a intelectuais. Era austero em público, tinha humor em privado, dizia "o senhor ministro" falando de Salazar e achava-o um provinciano ressentido e um patrão com caprichos que se parecem com medidas úteis.

Em Portugal confundem-se os novos feudais com os fascistas. Não se pode dizer que Maria Rosa pertencesse à linha dos novos feudais, ainda que o defunto marido fosse classificado como tal. Os seis solares brasonados que estavam no nordeste transmontano pertenciam à monarquia de província que julga ter uma hora precisa para levantar a sua bandeira, mas que não passa de escorregar nas suas ruínas. Sem ideias pré-concebidas Martinho ia compondo os telhados e substituindo as canalizações. Seria preciso o dom dum Midas e transformar em oiro tudo em que tocasse para dar aos solares um mínimo de aparência. Martinho tomou aquilo como uma obrigação, sedutora até ao ponto em que julgou pertencer a uma dinastia em que a grande fortuna parecia ser mais imortal do que os seus gestores. Enquanto o património se bastava a si próprio e as tribos de dez filhos convergiam para o capital comum, e alguns se colocavam nos ministérios para proteger o que já era um precipício de dívidas, enquanto isso, as coisas pareciam compostas. Mas tudo tem um fim, as famílias diminuíam, como no caso de Filipe Nabasco, advogado nas horas vagas e caçador de narcejas. A filha única, Paula, enviuvou cedo dum parente pobre, conhecedor em louças da índia. Casou depois com um homem de nível castrense mas incapaz de ver o mundo como uma deusa de muitas mamas.

Martinho deixou-se ficar na área dos antiquados que não fazem golfe ao domingo de manhã e são reconhecidos pelas gravatas atrevidas, cor-de-rosa, inclusivamente. Quando vão a Lisboa são detectados pelo sotaque que, em tempos, era mais apagado pelo estudo do latim, ou pela exclusiva conversação entre elites.

Martinho era um anoréxico da sua própria fila de aristocratas aburguesados. Começava por não querer televisão na sala, e depois não perdiam as telenovelas com gente conhecida que, até aos vinte e cinco anos, brincava aos teatros. A avó era a única que tinha um traço original de matriarca, embora se vestisse de calças e antigos cardigans de lã de camelo. Martinho estava preparado para a ver estatelar-se na escada e a dizer, como Santa Teresa, que o diabo a empurrara. "Talvez escape ao colo do fémur para morrer a dormir de paragem cardíaca" - pensava. Elisa, que era mais nova quatro anos, tomava ares doutra geração e gostava de se mostrar capaz de serviços pesados. Ainda se matriculou num ginásio para ir nadar, mas não chegou a frequentá-lo. Fez dietas de legumes crus e de peixe grelhado, e Maria Rosa disse-lhe que, excepto a fome, as dietas são para ricos.

- Custas-me mais em bifes de lombo do que em salário. Vai-te matar!

Elisa punha máscara de beleza antes de se deitar e pregara mais do que um susto a quem batia à porta à noite e ela descia para abrir. Coisas que já não aconteciam porque a casa tinha alarmes e até um gato os fazia retinir. A maior parte das vezes nem estavam ligados, e Elisa continuava a levantar a ponta da cortina para ver se andava alguém lá fora. Os ladrões traziam animação ao Torreão, no caso de se interessarem. Sabiam, no entanto, que a única coisa de valor não cabia numa carrinha e que, além do mais, não se podia negociar.

- Se não fosse a Ronda, há muito que já tinha mudado de casa e ia viver para um andar com vista para o mar. Adeus escadas e escadinhas, móveis onde cabe uma corporação de bombeiros com capacetes e tudo - disse Maria Rosa. Elisa, que se pusera muito melindrosa, pensou que ela lhe lançava uma indirecta. Quando era nova tinha uma queda para bombeiros e fardas em geral.

- Um homem é um homem, mas fardado é outra coisa - dizia.

Também ela estava farta de casas como mastabas onde se criavam quatro gerações de crianças vestidas à marinheira e que tomavam óleo de fígado de bacalhau aos garrafões. Tinham partido, ficavam os retratos num velho álbum com letras de marfim. Já nem se sabia o nome delas, nem como tinham vivido e morrido.

- Quero ser cremada e que não fiquem sinais de mim - disse Maria Rosa. Mas não se separava do colar de pérolas nem dizia onde o tinha.

- Às tantas nem ela sabe. Está muito esquecida. - Elisa falava baixo "para as paredes não ouvirem". As mesmas emoções que se viveram nos gabinetes de Catarina de Médicis podiam ser registadas ali, com os sulfurosos pensamentos e planos esboçados na cabeça de gente que toda a vida andara em pontas de pés, segredando coisas triviais. Enchiam o coração com intrigas de amores, de heranças, de poderes que se cruzavam entre a alcova e a cozinha. Quem era mais poderoso? Leonor Teles ou o alfaiate de Leça do Bailio? E os pequenos duendes da Ronda, ela com o pombo morto à cinta, ele com uma coroa de folhas de carvalho, símbolo de imortalidade, num quadro em que tudo está ao acaso e para acontecer. Martinho tinha grandes conversas sobre a Ronda; cada vez mais se capacitava de que, a ser uma cópia, fora feita no atelier do artista. Assim, a ser verdade, valia uma fortuna, porque há coleccionadores de cópias como os há para originais. Era uma ideia cada vez mais acariciada e que iluminava os maus pressentimentos dos Nabasco quanto ao seu futuro, que não podia ser senão desconfortável e mesquinho. Um dia arrendava-se um armazém para guardar a Ronda e ele ia viver para três assoalhadas com marquise. Era uma ideia arrepiante. Maria Rosa lembrava-se da vivenda onde nascera, frente ao mar, abundante de espaço, com terraços que ofereciam a ruidosa companhia do mar cuja espuma, nos dias de Inverno, salpicava as janelas do rés-do-chão. Tudo era feito para uma vida sem cuidados, havia sempre dinheiro vivo em casa, muitos criados e cães, visitas vestidas para sair e jóias postas. Paula já não conheceu nada disso, no tempo dela já se previa um emprego e o condomínio, nascer na clínica, ter baby-sitter nas noites em que se comia fora.

- No teu tempo como era? - perguntava ela à mãe, meio encantada.

- Nada de especial. Faziam-se quatro refeições em casa, servidas à francesa. Arroz ao almoço e ao jantar, e duas sobremesas. Vinho do Porto ou aguardente velha. O whisky não era bem visto. Nem os queijos de fora. Uma vez por outra, com o calor, jantava-se no jardim, ainda de dia. Os pirilampos brilhavam nas sebes de buxo. E a flor do tabaco cheirava melhor que as rosas.

- Onde está a flor do tabaco?

- Perdeu-se, não a vi mais em nenhum lugar.

Isto era na Casa do Cão, já Paula estava casada e Martinho tinha dez anos. Lia muitos policiais e tinha uma capacidade de dedução acima do normal. Não se deu bem com o internato, apareceu-lhe uma gaguez que se prolongou até tarde. O avô mandou que o trouxessem para casa e aí ficou depois que a mãe casou outra vez. Era feliz no seu quarto, que mais parecia um estreito quarto de vestir com uma cama que tinha desde criança e que foi preciso aumentar para que lhe servisse quando adulto. Era uma cama envernizada e que tinha, como remate na cabeceira, um laço de madeira que se foi partindo com as mudanças.

O avô morreu na Casa do Cão, o esquife não cabia na escada de caracol e foi preciso descê-lo pela varanda do quarto. Já não era pequena humilhação aquilo, quanto mais os bombeiros a gritar ordens, como se evacuassem um prédio em chamas. Toda a gente estava farta daquela cena e Maria Rosa, na sala de visitas, em baixo, fechou-se à chave e não apareceu a ninguém. Os que vieram ao enterro andavam pelo jardim e até à noite passearam por lá como se estivessem num lugar público. Maria Rosa disse que nunca mais ninguém morria na Casa do Cão.

- É indecente sair pela janela como um ladrão - disse. As lágrimas secaram, de tão irritada que estava. Foi assim que mudaram para o Torreão, que era dum ferrageiro, entretanto falido. Os ferrageiros eram gente de dinheiro e fora dos seus balcões lustrosos pelo uso e da penumbra dos seus armazéns, faziam muita vista. Sabiam muito de pregos e parafusos e tinham uma conversa profunda a respeito da folha de Flandres e verguinha, e coisas assim. Evidentemente que os Nabasco não ligavam com gente dessa, o que era desculpável, mas não era bonito. Já nesse tempo Maria Rosa se revestia de democrata (chamavam-lhe democratóide) e foi ela quem fez o negócio da compra do Torreão Vermelho, sem nem por um minuto dar a perceber que sabia da ruína do ferrageiro e sobretudo que sabia que ele deitava sopas no café do pequeno almoço. Já era bastante ter perdido a fortuna, com amantes, dizia-se; não era preciso achincalhá-lo com aquilo de ele ser tão pouco elegante que até usava um lápis na orelha quando estava no balcão.

A cidade era muito exigente quanto ao estrato social de cada um. Uma mulher que vendia fruta à entrada duma ilha podia ter entrada franca no Torreão Vermelho, porque tinha bom carácter e não invejava os ricos; enquanto que alguém com grande fortuna e dois Ferrarís, nunca seria recebido na casa dos Nabasco. E porquê?

- Ah, porquê! O carro e a mulher, duma marca qualquer - disse Maria Rosa. Não era distinto contar dinheiro em público, quanto mais mostrar grandeza e superioridade fosse no que fosse. E Elisa era da mesma opinião; ainda que ela achasse ter direito à comida dos patrões e não apenas à dos criados, uma merda com azeite de segunda. Também se lhe dessem alargas, levava a casa à falência, em pouco tempo. Fosse como fosse, depois da morte de Filipe Manuel Nabasco, ela, Maria Rosa, entendeu mudar tudo. A Casa do Cão tinha uma fama deplorável porque se construíra a garagem no lugar onde havia uma capela. Era melhor não arriscar e, como o Torreão Vermelho ficou à venda, ela aproveitou para dar um pontapé no passado e optar por uma decoração mais conforme o seu género. O seu género era influenciado pelos filmes dos anos cinquenta, com mulheres vestidas de lamé e raposas brancas, e escadas como as de Jacó, tão largas que cabiam nelas anjos aos pares. Era um luxo nova-iorquino que nunca deixou de admirar. Ninguém, na cidade, por rica e opulenta que fosse, usava desabillées debruados de plumas de cisne, que afinal até são baratas, como dizia Margô, a cunhada preferida de Maria Rosa, uma snobe aristocrata, coisa que também não era bem aceite porque, na cidade, a aristocracia era símbolo de presunção e inutilidade, ou de coisa pior. Se é que há coisa pior do que a inutilidade. Há, é ser um intelectual.

O Torreão Vermelho fez Maria Rosa desabrochar. Andava pelos sessenta anos e já não se esperavam dela surpresas; ainda que fosse por essa altura que as mulheres de sessenta anos começaram a dar na vista, a apaixonar-se pelos maridos das amigas e a não se limitarem a ter amantes - a casarem com eles. Todos sabem que casar com a amante é confundir a virtude pública com o prazer secreto. Mas casar com o parente próximo que é o marido da sua grande amiga é mais do que escândalo, é uma falta de imaginação.

Maria Rosa nunca chegaria a isso. Decidiu ser uma inovadora. Numa terra em que a imaginação já tem que ter a idade suficiente para ser uma tradição, o caso de Maria Rosa foi censurado. Apenas isso. Segundo os princípios celtas, uma mulher rica pode fazer o que muito bem quiser. Uma mulher é uma mulher, mas uma mulher rica é outra coisa. E uma viúva rica é carne limpa.

O Torreão Vermelho encheu-se de preceptores e gente de leis (não havia um dia em que não aparecessem partilhas, reclamações de caseiros e de inquilinos, obras a resolver) e a educação de Martinho foi profundamente debatida.

Dos oito aos nove anos ele tinha estado num colégio interno, e quase morrera de saudades e de doenças variadas, como uma primo-infecção, uma tuberculose óssea, além duma coqueluche de que o quiseram curar fazendo-o subir em avião durante meia hora. O que o aterrou deveras e desde aí apareceu-lhe a gaguez. O que uma criança de oito anos pode contar da sua experiência num colégio da mais fina proporção pedagógica não é coisa que sirva para a história de Oliver Twist. As seduções, as sevícias, as iniciações ao terror e à realidade não dispõem ainda de vocabulário para serem denunciadas. Se é que há vontade de denúncia; porque no indizível há a mais profunda forma erótica que vai servir para que a vida inteira seja bem sucedida ou falhada.

Uma criança de oito anos pode entender mais de sedução do que Cleópatra e Casanova. A natureza mune-se de recursos inimagináveis para produzir a sua área de domesticação. É necessário que, para além da sua pele de cultura, de imitação e de aprendizagem, perdure um campo de sobrevivência que confina com o horror. É verdade que, ao longo duma carreira fácil de adaptação, a criança esqueça voluntariamente o período de iniciação a que foi sujeita e todos os conselhos nele recebidos. Mas, um belo dia, tudo pode sair das trevas, do coração das trevas, e produzir um acontecimento que terá que se chamar condenável.

O que sucedia com Martinho era que, desde os seus oito anos, não esqueceu o que aprendera: que era indefeso e ao mesmo tempo carregado de requisitos para alimentar a sorte. Sabia que a verdade com asas de pomba não existe; mas que com garras de dragão está sempre perto de se mostrar.

Os amigos mais próximos de Martinho, não muitos, casaram tarde com mulheres que não iam pedir-lhes contas da sua virilidade, que não era a de "crescei e multiplicai-vos". Não tiveram filhos, como ele próprio não teve filhos. Tinham uma vida amistosa com as mulheres deles e dos outros, gostavam de ter em casa um canto só deles, onde tudo estivesse desarrumado e de poder atirar com a roupa sem ter que a dobrar.

Também punham muito em causa dizer quanto ganhavam e em que passavam o tempo durante o dia. Dia em que, na maior parte dele, não faziam nada; enquanto que as mulheres faziam mil coisas e chamavam a isso uma vida agitada quando era apenas uma vida de tagarelices, ainda que se tratasse de coisas sérias, como a saúde e o preço das coisas. A medida que ficavam satisfeitas nas necessidades básicas, a casa, a alimentação e os seguros contra incêndios, aumentava a preocupação com a saúde. Não se pensava em morrer mas em durar muito tempo. Todavia, a intenção suicida estava mais em causa na sociedade urbana. Doenças fatais, epidemias imparáveis, eram recebidas com uma certa fleuma, muito diferente da resignação. Porque na fleuma há vontade própria e consentimento, e na resignação há abandono da razão. As doenças suicidas cresciam em número e em perigosidade; porém, entravam na saga da família e eram acarinhadas como títulos de nobreza. Na casa dos Cunhas, se uma mulher era operada a um fibroma, as outras todas da família ou da vizinhança queriam ter o mesmo tratamento, equivalente a uma condecoração por mérito. A doença e o acesso às urgências regulavam a vida dos mais velhos; fazia o seu recreio e os seus pólos de convivência. Já não eram só "as viagens dos pobres", como se chamaram, eram a sua tese filosófica e o seu parlamento, a sua igreja. A viagem dos pobres tinha alternativa na cobertura que se dava ao empréstimo para compras sumptuárias, como o carro, a piscina e as férias nos paraísos sexuais. Até Elisa quis viajar de avião e chegou a ter o bilhete na mão, mas ganhou medo tal que não podia chegar a uma janela que não sentisse ouras. Gerações de indígenas com os pés na terra reagiam a sentirem-se suspensas no ar, parecendo tudo aquilo engenho do diabo. Ficava amarela e vomitava. Margô entrava na Casa do Cão a despedir-se porque ia para New-York.

- Para onde vais, Margô? - dizia Maria Rosa, que voltava a vestir a roupa de pastora, às flores. Era Primavera.

- Para o coração do mundo, minha filha.

- O coração do mundo é Paris. E Patras, o olho do cu.

- Disparate! Queres alguma coisa?

- Alguma coisa... Um cachorro quente com muita mostarda. Não estou a brincar. São os melhores que há.

Mas Margô não voltou lá a casa porque morreu dum aborto mal parado. O enterro dela não foi nada concorrido. Margô estava no caixão com as mãos em cima do externo e um terço nas mãos. Tinha escolhido um vestido com mangas "à religiosa" e parecia tão bonita como era nos seus melhores tempos. Via-se logo que tinha classe e que sempre a tivera: nenhum detalhe a traía, eram os sapatos, eram as pregas, era o cabelo arranjado com um pouco de laca frisado dos lados como ela gostava. O salão, donde retiraram os móveis do centro, era grandioso e o chão brilhava sem ser demais. Serviam-se petits-fours e chá verde e preto; ou de camomila para quem quisesse. Maria Rosa sentou-se um bocado, como se estivesse a fazer malha, e fez de propósito, não reconheceu ninguém. Mas, de facto, não conhecia. O mundo mudara, os velhos ficavam em casa ou tinham morrido. "Eu não os tinha reconhecido se os visse", pensou, distraída. As mulheres perguntavam-lhe vivamente:

- Não me conhece?

- Oh, sim, estou lembrada...

- Estive consigo há quarenta anos, no aeroporto.

- Sim, é possível. Há quarenta anos! O tempo passa. A outra contou-lhe dos filhos, que tinha três, engenheiros e um médico.

"Um médico em casa faz muito jeito." Maria Rosa sorriu e encolheu os pés para deixar passar. Servia-se café com chocolate preto na borda do pires. "Digamos que de luto", pensou. Nos momentos solenes dava-lhe para rir. E Martinho puxava-lhe pela manga, a avisá-la. "Onde teriam ido buscar estes candelabros?" Eram peças de Murano, originais, com velas e um cordão para as fazer baixar e acender. Ninguém tinha outros iguais; e vislumbrou no rosto da morta um fio de orgulho, porque tinha classe.

Ainda não tinham mudado de casa, mas foi logo a seguir. O Torreão Vermelho foi posto à venda com parte do recheio e Maria Rosa foi ver como aquilo era por dentro. Uma casa vazia faz sempre a impressão de que há gente a espreitar pela frincha duma porta. Depois abre-se, e não está lá nada; trapos secos e torcidos no lavadouro da cozinha e fuligem caída, com o vento, flores secas numa jarra. Na porta do frigorífico uma mola com recados. "Volto às seis, panados para o jantar". Maria Rosa teve um arrepio, como se aquilo lhe fosse dirigido. O doutor Assis não deu por nada.

- Estas casas velhas estão um caco. Nada funciona e é preciso remover tudo - disse, meio irado. Não compreendia porque ela queria mudar-se tão depressa, deixando para trás uma porção de tarecos e bacias onde duas gerações tinham escarrado e banhado os pés. Porquê tanta pressa?

- Não sei - disse Maria Rosa. A alta estatura dela recortava-se contra a parede nua. Havia marcas de quadros nas paredes e buracos de pregos arrancados. - A Ronda vai ficar bem aqui. Finalmente. - Ela deitou um olhar circular pela sala vazia e silenciosa. Uma vareja grande estava pousada e não tardava que começasse a zumbir e a chocar contra as vidraças. Nada para dar uma sensação de abandono como uma vareja numa casa vazia.

- Vou afinal ver esse decantado quadro - disse o doutor. - É tão grande assim?

- Tem seis metros e sessenta e três por quatro e trinta e sete.

- Não é coisa que se meta na gaveta.

- Media quase quatro por cinco. O tamanho dum quarto de dormir.

- Um pequeno quarto. Tudo é relativo. Percorreram a casa, que parecia inóspita e fria. Ainda

havia cinza nas lareiras e uma porta batia nalgum lugar. E o que dava mais tristeza era a casota do cão com um pouco de palha a sair de dentro e a tigela da água com poeira seca no fundo. Maria Rosa imaginou-se dona de tudo aquilo e a alma arrefeceu-lhe de tão receosa. Teria ainda idade para começar com outro brio coisa tão tenra como é a casa própria? Abrir espaços, escolher cores, medir, calcular, imaginar efeitos e proporções. Martinho tinha-se formado sem ter nunca visto um esquadro e uma régua. Mas as obras dos solares, que implicavam problemas de arquitectura, fizeram dele um leigo com escrúpulos, o que quer dizer que se tornara mestre. Ao ver o Torreão Vermelho na sua nudez, se não no princípio da sua ruína, achou que ele valia algumas insónias. Além do que, a Ronda teria um lugar decente que abraçar, logo à entrada, com a luz do poente a fazer brilhar o fato do garboso tenente das galochas.

Quando o Torreão ficou pronto para ser habitado, a Ronda da Noite fez a sua entrada solene e durante dois ou três meses foi admirada, discutida e avaliada. No Porto não há nada que não se avalie, é um princípio conspiratório. Houve quem a achasse mais escura do que o original e sobretudo que lhe tinham suprimido figurantes, além dos que constavam na sua história. Despertou a inveja dos coleccionadores e não lhe pouparam críticas arrasadoras. Maria Rosa ficou impassível, tanto mais que a Ronda era para ela um património que nunca entrara em partilhas e a que não lhe interessava pôr um preço. Sempre esteve convencida que era uma cópia do atelier do pintor e que, por isso, tinha um valor incalculável. Alguma coisa lhe dizia que a Ronda não estivera guardada mas escondida propositadamente desde que a duquesa de Mântua, regente de Filipe IV, saíra de Portugal com um espólio que carregava mais de cem burros. Ou porque a Ronda fosse demasiado grande para ser transportada, sobretudo transportada sem dar na vista, ou porque o saque não a incluía por estar num palácio das cortes de aldeia, o facto é que não saiu do país. E o seu rasto foi-se perdendo, escapando a outras desordens, como a do consulado de Junot que chegou a intitular-se rei de Portugal. Estava já com o cérebro avariado e Napoleão não lhe deu ouvidos.

O que Martinho conseguiu apurar foi que a Ronda andou na colecção do pintor Joaquim Marques que morreu em Lisboa em 1822, e que era amigo de Pillement que teve contratos importantes no Porto, sendo o maior o do Palácio dos Carrancas. É possível que Pillement trouxesse a Ronda para o Porto, ou para Coimbra, onde se venderam por alto preço, em 1794, cenas campesinas e outros. Havia muitas falsificações, umas bem elaboradas, outras francamente avaliadas como falsas. Os marfins, que se chamavam "tartaruga do Alentejo" para não dizer que eram corno de boi, enchiam os bric-a-brac e eram, mesmo fingidos, muito procurados. As peças de lotes destinadas a leilões estavam inventariadas; excepto as que eram encomendas para oferecer. Da Ronda não havia vestígios, o que alimentava a hipótese de ser um quadro de embaixador, presente particular e que teria tido um percurso mais ou menos clandestino. Havia no Porto pessoas que se entendiam com a arte sem ter estudos dela; e que pegavam num prato ou numa jarra de faiança e logo lhes descobriam a origem.

Uma dessas gentes, que tinham o dom da adivinhação para afiançar a autenticidade duma obra, parece que viu a Ronda e disse:

- É de Rembrandt, dele próprio.

Causou estupefacção tanta segurança; e tanta, que duvidaram dele. O Norte não gosta de se enfrentar com certezas e por isso condenaram a Ronda sem mais análises e provas.

Foi daí que a Ronda da Noite foi desterrada para os solares de montanha, a bem dizer, e onde vivia uma horda de caçadores estimados pelo espírito esbanjador e o culto do padrinho. Apareciam algumas vezes nos jantares dos Nabasco com as mulheres, que eram peludas e silenciosas. Quando se deu a revolução de 74, mostraram-se na sua forma de eruditas e com as filhas formadas em Inglaterra. Mas eles continuavam estranhos, como naturais dum principado de que não se esgotou o modelo em certos aduares de província, tanto no Alentejo como no Fundão, ou no Nordeste transmontano. Gente que de snobe nada tem, mas sim uma nobreza que desdenha de emblemas e pergaminhos. É possível que entre eles alguém estudasse no Colégio dos Nobres, de Turim, mas isso não constava das conversas de salão. Martinho pertencia a essa casta que directamente se filiava na identidade portuguesa.

A identidade de um povo faz saltos, como a natureza também os faz. Tão depressa parece esmorecida, se não apagada pela influência de nações mais poderosas, como da sua própria pena de morte é indultada e volta a dar sinais da sua fonte, onde corre o sangue de muitos povos e de cada um tem o melhor da sua sobrevivência.

- A Ronda, que veio embarcada para Portugal, não há dúvida. Embrulhada em esteiras das quais se podia ver ainda a trama.

- Só o avesso é que é autêntico - disse o doutor Assis, meio irritado. Tinha ciúmes de tudo o que podia destroná-lo do amor por Maria Rosa. E aquele quadro, grande e famoso, ocupava na vida dela um lugar que o doutor não tinha. - Identifiquem-se as caganitas de rato de porão e pode saber-se ao certo donde veio a Ronda.

Estavam à entrada do Torreão Vermelho, digna morada dum ferrageiro que não teria desdenhado de financiar Rembrandt porque o Porto é grande pensador em coisas de lucro e mais-valia. Maria Rosa, desde criança que ouvia aquele canto de sereia que era coleccionar para vender por melhor preço. Havia vários tipos de coleccionador na família de Maria Rosa: o jogador, que se paga pelas próprias mãos e recebe ouro e prata, gravuras inglesas e até canetas Parker antigas - e esses são os prestamistas com um toque de parente no mesmo ofício. Outros eram os que coleccionavam por amor à arte, que se entregam ao amor fatal, que iriam roubar para conseguir uma alfaia no leilão dos Gonzaga arruinados; ou uma relíquia trazida da Itália por diplomatas; ou um lote de azulejos andaluzes. Senhoras como Isabel Egídia ou Petronila Doroteia, herdavam baús de prendas de casamento por usar, como tesouras de costura à Pompadour ou caixas com o Triunfo de Anfitrite pintado.

Do Torreão Vermelho, que uma noite ardeu da parte norte, sabia-se que tinha sido construído pelo ferrageiro Sebastião Clemente, tendo Clemente passado a apelido. Ele intitulava-se proprietário de cutelaria, o que era quase um título de nobreza, posto que a cutelaria do Minho foi uma indústria famosa conhecedora da têmpera do aço. Além disso fabricavam instrumentos cirúrgicos e toda a espécie de facas. Facas de toilette, facas de cabeleireiro, facas curvas, assim como navalhas da barba, de mola, de enxertar, umas com cabo de ouro e madrepérola, de chifre e de barba de baleia. O Norte tinha uma grande indústria de vários ramos. As árvores de Trépano eram instrumentos de cirurgia que causavam arrepios e espanto.

Com tudo isto, Sebastião Clemente tinha o privilégio dum lugar à direita do sacrário, na missa da uma, e a passear de cabeça alta na Avenida Brasil ou em Carreiros, melhor dito. Era um homem baixo que usava um guarda-pó de riscado azul e ia para o estrangeiro (jantar no Ritz, de preferência) quando queria caprichar de estróina. Depois dos cinquenta anos, reconciliava-se consigo próprio e pode-se dizer que estava preparado para a falência.

Todas as pessoas que moraram mais de cinco anos numa casa (outros dirão sete porque é o tempo que as células precisam para se renovar) deixam um pouco de si em tudo o que tocaram. Direi mais: em tudo em que participaram no acontecer do dia-a-dia. As vezes, pequenos episódios são difíceis de levar connosco porque se fixam a tudo o que os envolveu. Maria Rosa estava persuadida de que até uma cortina arranhada por um gato mantinha qualquer coisa como um sentido de defesa e não caía tão bem como as outras. De tal modo que tudo o que é criação do homem ou do espírito que o move, comunica-se à obra criada.

No lago maior (não confundir com Lago Maggiore) que estava no centro do parque da Casa do Cão, ficou um barco que não tinha a proporção dum brinquedo. Era um barco pesqueiro, feito pela mão dum poveiro e que Filipe Nabasco tinha comprado. Nas noites de chuva e vento ele balouçava-se na água e ouviam-se gritos aflitivos no seu cavername. Era tão nítido que não era possível atribuir ao facto qualquer efeito da imaginação. Possivelmente o barco era a cópia doutro barco que naufragara e o pescador que o construíra transmitira-lhe o desespero dos homens abandonados ao mar alterado.

De qualquer forma, o barco ficou no lago e foi-se despedaçando lentamente. Muitos anos depois, quando Martinho quis ver a Casa do Cão, já ela estava reduzida a uma creche ou coisa que o valha, ainda viu uma tábua vermelha a flutuar no que tinha sido um fabuloso lago de jardim, com uma ilha ao centro onde se derrubavam os ramos dum pinheiro que era como uma selva inteira em miniatura.

A mudança para o Torreão Vermelho obedeceu em parte à necessidade de resgatar a Ronda do seu cativeiro na província. O Torreão Vermelho, além de possuir condições para abrigar o quadro (3,631x1 por 4,37111) deixava respirar livremente a Companhia do Capitão Frans Banning Cocq preparada para avançar, mas ainda surda a uma ordem que estava a ser dada. Não lhe obedeciam, era tudo.

O lugar mais adequado era, à primeira vista, o salão de baile. No tempo em que o Torreão Vermelho foi construído, o salão de baile era ainda representação dum luxo que correspondia a um direito conquistado. As jovens da casa não tinham tempo para convidar os seus pretendentes, porque casavam cedo. O salão de baile não se abria duas vezes durante o ano e só pelo Natal se armava um presépio com figuras quase em tamanho natural em que sobressaíam travessos mamelucos de turbante de seda.

A última ocasião em que o salão foi usado foi de facto para a festa de casamento da filha do cutileiro, uma pequena gorda que se parecia a uma fada má. A mãe de Maria Rosa conhecia-a dos tempos das termas, onde se faziam retratos de grupo. Mais tarde, ao vê-los, ninguém mais reconhecia ninguém. Depois disso, o Torreão Vermelho perdeu o seu viço e deixou de ser assunto de curiosidade. Quem assinou o contrato de venda foi um homenzinho que tinha a gola da gabardina oleosa, o que causou repugnância a Maria Rosa.

Na cozinha ficou uma panóplia de facas velhas e um cepo cheio de golpes onde se partiam as peças de carne maiores. Um sangue negro estava entranhado na madeira e parecia o desenho dum mapa de rios serpenteantes.

Foi difícil a colocação do quadro. Decidiu-se pendurá-lo no salão de baile, mas brigava com as nove musas pintadas a claro-escuro na parede. A solução (foi Elisa quem teve a ideia) foi, de resto, muito simples: a Ronda foi colocada numa antecâmara ao cimo da escada, o que deu relevo às figuras gozosas da festa: a pequena Saskia e o tenente Van Vlaardingen. Tomaram um aspecto entendido e parecendo haver alguma coisa entre eles. Era uma combinação de sorrisos que não enganava. O tenente conhecia a menina, provavelmente a filha do portador do estandarte, o próprio Rembrandt.

A entrada no Torreão Vermelho teve um efeito extraordinário em Judite. Escolheu para quarto de dormir um pequeno aposento que mais parecia um armário dos que se destinavam às mudas de roupa de mesa e de cama. Nessa altura já o casal tinha quartos separados, embora não estivesse desavindo. Mas as constantes indisposições de Judite, as suas crises de lágrimas, as insónias e doenças de pele, levavam àquela solução. Ela parecia mais conformada com os seus padecimentos porque não os tinha que partilhar com o marido.

Como o quarto por ela escolhido ficava num patamar duma escada de serviço, usada pelas criadas, Judite sentia-se segura. Mas depois que só ficou Elisa, que tinha pouco ouvido, Judite não quis ficar mais ali e mudou-se para o Torreão onde havia uma estreita sala que se destinava a ver a cidade. Não era raro haver desses mirantes nas casas da burguesia rica; eram uma espécie de prenda às mulheres da família que, saindo pouco, tinham disponível toda a cidade e conheciam assim as suas torres, igrejas e bairros até ao mar. Não se sabe que efeito teria nelas essa liberdade do olhar; fazia-as mais saudosas do que não conheciam e amavam por lhes ser proibido. Judite encontrou repouso nessa prisão de fantasia. O marido respeitava o seu estado que sabia não ser de louca mas de amante que se recusa. Não pensava em ter ciúmes (porque isto de ciúmes tem muito que ver com o pensamento) e sentia pena de a ver tão abandonada aos sentimentos que, no fundo, ela desconhecia. A virtude não está no arrependimento, mas em ser estranho às paixões sofridas. Nesse tempo já os conflitos do corpo, os segredos que até aí eram disciplina da ciência e dos confessionários, estavam na rua. A linguagem abria-se, perdendo o simbolismo erótico para ser apenas uma evasão dos impulsos violentos, comandos pré-históricos que iam tomar ascendente sobre a reflexão. Mas a reflexão trazia um acrescido sofrimento porque ela descobria novas formas de descontentamento. Só pela compaixão era possível amar. E Martinho, como se nos braços tivesse um corpo cruxificado, amava Judite a ponto de lhe dedicar muitas lágrimas pela libertação que ninguém lhe podia dar.

O doutor Assis disse:

- Uma viagem fazia bem a Judite. As viagens inventaram-se para quem está triste. Se não houvesse pessoas tristes não havia agências de viagens. Que julgam que o infante D. Henrique fez ao criar a Escola de Sagres? Um ponto de partida para se poupar à melancolia. O mundo não andava se não fosse a culpa dos homens. E vejam como ele provava a culpa, como precisava dela até se desgarrar por dentro. Por fora era um elegante, bem vestido e bem calçado. Mas tinha o irmão em cativeiro para atear a culpa todas as noites, como quem acende uma lamparina a um santo.

- É possível - disse Martinho. Encantava-o ouvir falar assim. Aquele velho médico que nunca se impressionava com os casos dramáticos entregues nas suas mãos, tinha momentos de emoção muito particulares. Ele disse:

- Quando Judite romper aquela pele da tristeza e começar a falar muito e a rir por tudo e por nada, acautela-te com ela.

- Eu conheço o ditado: "Previne-te quando o homem calado se faz tagarela". É um provérbio ladino. A alegria esconde coisas que não se imaginam. Mas de que vale pensar nisso? Acho que estamos melhor com o que não sabemos.

A qualidade de mutante fazia a sua garantia ou pelo menos não era atingido pelas maliciosas teias da vida. Quando a avó foi para o Brasil porque era vaiada na rua pelo facto de se vestir à fáscio, como se dizia, Martinho não partilhou os receios dela, deixou-se ficar, sabendo porém que a casa podia ser ocupada, como foi mais tarde, para um infantário. Em pouco tempo o formoso parque foi arrasado e as tílias da avenida também derrubadas para servir de lenha barata ou para grosseira marcenaria. A medida da ocupação das casas, habitadas algumas, outras só em época sazonal, foi inteligente. Anunciavam-se os motins com consequências imprevisíveis e era preciso dar satisfação à cólera do povo. Os perigos da igualdade anunciada eram a anarquia e também a via secreta de nova servidão. Havia quem, amando a revolução, lhe fazia frente moderando as paixões da oposição. Eram homens cultos mas que não tinham o génio suficiente para salvar uma situação já de si precária; porque uma longa opressão torna-se insuportável desde que nasce a ideia de a poder vencer. Vencer rapidamente, porque tanto quanto um estado de guerra é longo, a revolução não se faz demoradamente. Era preciso distrair o povo dessa situação premente que é ver nas reformas o primeiro sinal de fraqueza. Quando um despotismo se acaba deve deixar-se morrer, não o substituindo por reformas, que é o que em geral se faz.

A ocupação anárquica de casas, que é o que em geral se faz, serviu de barreira à desordem e ao ajuste de contas, que tem um papel selado com sangue em todas as revoluções. Martinho Nabasco vivia ainda na Casa do Cão quando a emoção revolucionária se apoderou dos espíritos. Duns, porque o fulgor duma inovação qualquer age nas pessoas como um rastilho de alegria feroz; doutros porque, como espectadores, sentiam o perigo que nem sequer poupa os que estão na berma a ver passar o cortejo. E, por precaução ou medo, subiam ao palco das operações com a convicção de estarem a seguir um argumento da sua autoria.

A liquidação da História foi um dos principais conflitos que na revolução se levantaram da parte dos conservadores interessados em manter o povo longe da realidade. A realidade era a de ser o país uma potência sem recursos, com um contingente de emigração capaz de afundar todas as suas aspirações que não fossem as de se aburguesar pela calada. Isto é: plantar a sua horta discretamente e em família. Com esta matéria social uma revolução só podia ser urbana. A força militar que a apoiou, viu-se a braços com a sua própria fraqueza que é a de não saber controlar o tumulto dos civis. Os mais inteligentes hesitaram e recorreram a uma disciplina mitigada; deram ao povo a liberdade para agir segundo as suas necessidades e não segundo as suas aspirações.

Foi assim que se permitiu a ocupação de casas que depois se tornou num cancro nas reformas e que contribuiu para a degradação dos costumes e da vida administrativa. Maria Rosa voltou do Brasil, indisposta com o clima e o acolhimento que recebeu lá. O burguês revolucionário ia tomar ascendente em Portugal, posto que aglomerava negociantes, financeiros, advogados, funcionários, médicos, todos os que viviam de rendas colhidas no proletariado e que se intitulavam de esquerda; e democratas, que lutam por receitas e não por salários.

Martinho já não era o rapaz um pouco fariseu de feitio, retraído e singular por cultura e por escolha. Estava agora distanciado dos seus amigos decadentes que, entretanto, tinham casado com mulheres mais velhas; tinham filhos doutro casamento e eram menos exigentes do que uma "donzela peregrina", como Elisa chamava às jovens bonitas de boa gente.

Felizmente Judite não era "uma donzela peregrina", nem nada disso. Se bem que não fosse destituída de beleza e os seus olhos azuis e raiados de preto fossem surpreendentes, anunciava-se como uma nova raça de aventureira; a que apanha o período hippy e o dos comandos publicitários. Contudo, havia de suceder-lhe um contratempo, apaixonou-se perdidamente. Perdidamente não quer dizer que arrancasse os cabelos e fosse para a varanda de madrugada, ouvir a cotovia. Os grandes amores são como as grandes dores, silenciosos. Só que trazem com eles a virtude de em nada serem calculados, nem sequer pressentidos. Decorrem com sintomas que mais parecem de doença extraordinária, se não é que o amor não é uma doença das células que se renovam. E aqueles que não amam contam mais células mortas do que as outras pessoas, os amantes que amam.

Há amantes que amam como há seda pura, seda selvagem, seda de Xangai e de Beijing. De Beijing não sei se há mas, sendo a capital, é natural que os mandarins guardassem nos seus pavilhões escarlates as sedas para presentear os seus aliados. Por agora ficamos em que há amores dos que amam e os outros, que são, de resto, mais duradouros e de trazer por casa. Com estes faz-se tudo o que se quer. Fazem-se famílias inteiras, sexo e até má poesia. São coisas de que iremos falar.

 

                                                   CAPITULO VI

 

                  O TORREÃO VERMELHO

Maria Rosa teve uma vez uma conversa muito proveitosa com o neto. Ela gostava, como todas as mulheres que não perderam o tique da ociosidade, de falar de coisas que não se praticam e apenas se imaginam. Ela dizia, por exemplo, que, se fosse nova, ia viver para uma dessas cidades do Oriente com tradições severas, que são as que sabem melhor transgredir. Teria um motorista pago além das suas posses, porque era proibido às mulheres conduzir; e, outra coisa, ocupava todo o seu tempo livre a fazer compras e assim a evitar os maus pensamentos, condutores da depressão.

- As mulheres nesses países têm uma vida invejável. Comem a toda a hora coisas que engordam e usam uma roupa folgada que lhes esconde as banhas. Passam o tempo que querem com os filhos, que não são tão numerosos como dantes. Os rapazinhos ficam tão dependentes delas que são dominados para sempre pela mãe, a tia, a avó. A sociedade é feminina, as leis são feitas para os princípios e não para as circunstâncias.

- Não é tanto assim. Não me interessa - disse Martinho, lançando uma baforada do cachimbo. Maria Rosa desconfiava de que não era só tabaco o que ele fumava. Fechava os olhos a muita coisa, aquela era mais uma. Também a ela não importava tudo o que fazia as conversas acaloradas. Elas ocupavam o vazio que há entre as pessoas, mesmo as mais chegadas, e mantinha as relações no ponto certo que era o da solidão compartilhada. As coisas mais belas que havia nos sentimentos um pelo outro só foram mostradas à sua alma depois de um morrer. Há uma segurança definitiva na morte dos que se amam. Ele disse:

- Aquela medida de não permitirem às mulheres o curso de Direito tem algum sentido. As mulheres julgam com emoções e quando as querem corrigir são cruéis e não justas.

- Achas que eu sou cruel?

- Não personalizes tudo. Também isso é prova da tensão sazonal em que vivem as mulheres.

- A tensão sazonal. Parece um insulto.

- Aí está. Tudo lhes parece um insulto, é uma forma de inflação. Acontece com as mulheres o que acontece com o dinheiro. Com o dinheiro, os preços podem subir tanto que já nada se compra. As consequências já se sabe como são: a riqueza súbita dos pobres, parecer influente o que o não é, as dívidas grandes serem pagas com pouco.

- E as mulheres cabem aí?

- Não. Mas entram em qualquer discurso. A inflação é isso.

- Não és feliz com Judite? Não respondas. Nós vamos levar a inflação a esse ponto.

- Eu sou feliz, pelo menos é o que me parece. Ela está apaixonada por outro homem e tenho muita pena dela. Sofre muito e eu não a posso ajudar.

- Dorme com ela, que sempre ajuda.

A avó estava magnífica, deitada na cama com baldaquino e toda reluzente de sedas, a cama e ela própria. Sempre gostara de roupa interior luxuosa e o marido oferecia-lhe coisas lindas, escorregadias e que criavam um sentimento de doçura, na verdade nada sensual. Isto de se julgar que as mulheres de cama têm um estilo próprio de provocar com roupas íntimas, é um engano. Com roupas íntimas não se provoca nada, elas são o contrário da excitação. O cancã sim, era excitante; libertava o cheiro a sexo com aqueles folhos e saias agitadas no ar. Estes pensamentos não eram abordados no quarto da avó; se o fossem, era duma maneira espirituosa, como se viessem directamente dum monólogo de Oscar Wilde. Ele tinha o prazer do monólogo, os outros todos vinham daí.

Martinho disse que Judite não o preocupava senão em que o sofrimento dela não era sua culpa. Com a culpa as pessoas sabem como tratá-la e vencê-la também. Mas a inocência é terrivelmente dolorosa e não se lhe pode pegar de nenhuma maneira. Ele, Martinho, estava à espera que, uma vez livre do amor que a arrastava, cada vez mais fundo, para o coração das trevas, ela subisse à superfície, como Lázaro do seu sepulcro. Nunca mais se falou de Lázaro e não é coisa pouca ser um ressuscitado. Também não se falaria mais de Judite, quando ela saísse ilesa do coração das trevas.

- Achas que ela te deixa? - disse a avó. E espalhou na cama os anéis dos dedos e voltou a enfiá-los.

- Penso que sim. O amor triunfa de tudo, menos da felicidade.

- É pena, é pena. Eu gosto dessa rapariga.

- E depois, avó, que se pode fazer duma pessoa feliz? Nada. Também é preciso ver uma coisa: o pobre volta à pobreza, não se pode afastar dela para sempre. É um vínculo; o amor do amor. Um país que é governado por pobres, pelos que amam a primeira cama onde se deitaram, será sempre pobre. Há qualquer coisa na primeira noção de vida difícil e dolorosa que pode passar por moeda forte. Mas estou a cansá-la. Deite-se para baixo um pouco.

- É o que vou fazer. Mas diz-me uma coisa: o sofrimento, que dizes do sofrimento?

- É o que nos vale. Sem ele não havia valores nem criação do mundo. Não tem frio?

- Frio, sim, tenho. Es tu que me fazes frio. Gostas de ser infeliz.

- Receio bem que sim.

Ele saiu, pisando de leve o velho tapete de Aubusson manchado por sete vidas de cães e de gatos. E só se ouvia o travar dos autocarros como mamutes que se repousam duma corrida para a sua extinção. O Torreão Vermelho, banhado pelo último clarão do sol, parecia um engano de arquitectura, como se fosse feito para resistir às areias do deserto. Em todos os cantos da casa Martinho levantava os mortos ao som das suas objecções: o cutileiro, com a bata azul de trabalho, ia lavar as mãos a uma pia que havia na cozinha, tão pequena que servia só para os pássaros beberem. Todas as casas têm uma forma de calão, de blasfémias, de boçalidades, como se, por cima do seu traçado, as vozes dos operários ficassem impressas. Era um cruzar de palavras brutais ou escarninhas que o trabalho trazia consigo. Não há trabalho amável e sensato. O que Deus fez não se chamou trabalho mas um sonho com efeitos colaterais, que são a realidade.

Cada recanto no Torreão Vermelho parecia ter uma história que não era adequada às histórias que são envolvidas pela teia da experiência comum. Uma época tem a sua linguagem, um modo de vestir, de comer e de amar. Sade, por exemplo, está na raiz do prazer que se reveste de algo cómico para não cair no coração das trevas. O coração das trevas está intacto na sua profunda área de segredos e é rodeado por numerosa matilha encarregada de desviar os intrusos: a matilha política, a doutoral e a anarquista. O político que tem uns mínimos de confiança na sua carreira e no seu partido nunca deixa a casa no campo nem o fio de inteligência com os nativos do seu tempo. Embora nunca deitasse o pião com as crianças da sua idade, dirá que as conhece a todas pelo nome e que está informado do caminho que levaram. Está visto que as esqueceu a todas essas crianças; mas o que não esqueceu foi a sensação de bem estar quando estava na sua cama de palha. Nenhum colchão ortopédico lhe dará tamanho conforto e nunca há-de compreender outros desejos e outras relações que não sejam símbolos do que foi a sua investidura na vida: a injustiça, a dor e o que as tutela e suprime. A política, em suma.

Percorrendo o Torreão Vermelho tinha-se a impressão de que Kafka procedia assim para fazer os seus romances. Não se tratava de pessoas vivas, mas outras, que saíam da parede e vinham juntar-se a ideias de pessoas e vestir as suas roupas e funcionar como elas. Eram muitíssimo mais atraentes do que aquelas que obedecem a praxes impostas do exterior. Só que, como nos sonhos, estavam sempre em risco de serem apagadas e a sua explicação não tinha nexo.

O cutileiro era como um homem qualquer quando vestia a sua fatiota de cerimónia feita por um alfaiate que talhara um paletó ao príncipe de Gales, uma vez que o príncipe de Gales perdera a bagagem ou a deitara pela janela. Mas o cutileiro na sua loja de cutelaria era completamente um grande da sua rua. Entendia de aços de Thiers e de osso embutido e marchetado. Percebia de tudo da sua arte; avançou até aos ferros hospitalares, pinças, bisturis e lancetas. Um dia que levou para casa um estojo com material de parto, a filha, julgando que o fórceps era uma tenaz da salada, mandou-o para a mesa dentro da saladeira com alface de Inverno. E o fórceps, brilhante e sensual no seu novo destino, causou sensação.

Desse passado vivido no Torreão Vermelho, Martinho retirava ensinamentos e passeios pelo mundo desconhecido. O que era um cutileiro? Isso oferecia um estudo sobre o ofício, a competência, o espírito da matéria. Ele entretinha-se, às vezes, com estas coisas, um jogo, uma jardinagem de palavras.

Todavia, o cutileiro não se revelava senão em mínimas proporções. Por exemplo, no Torreão da casa, feito para alargar a vista sobre a cidade. Era como debruçar-se sobre um corpo aberto, ter à disposição as vísceras, o coração a bater no saco musculoso, muito diferente do coração que se grava numa árvore, num namoro de Verão. E a cor da casa, dum vermelho pardo, um sujo grená semelhante ao sangue a que se misturou vinagre para não coalhar. A chuva já o desbotara, era mais rosa do que daquele pegajoso tom que tivera e que merecera um concílio de arquitectos e mestres-de-obras; e de pessoas de família, jovens e velhos, cada um com a sua mania, gosto, presunção e desejo de se impor. Quanto mais tinham conhecimento da sua insignificância na engrenagem do projecto, mais se desbocavam a atalhar as coisas, a levantar dificuldades. O cutileiro tinha que cortar pela raiz, soprar das entranhas a sua tirania e acabar com a discussão. Por pouco não brandia os seus tesouros de ofício, um punhal malaio ou uma faca argentina com bainha de couro e que tinha na ponta uma mulher nua em prata lavrada.

Por fim venceu o vermelho sangue mas atenuado, como o sangue que corre nas calhas dos matadouros, com laivos de gordura, a boa gordura que fará sabão de toilette com perfume de alfazema ou rosas.

O cutileiro não era uma pessoa qualquer. Quem construíra o Torreão Vermelho não era uma pessoa qualquer. Martinho certificou-se onde ele dormia; era um quarto que dava para a escada nobre, um quarto de rapaz. Queria dizer que não tinha filhos, só meninas. Nas casas antigas do Porto mas que não eram de grande padrão burguês, havia o quarto com porta para a escada. Permitia a vida nocturna, a visita de amores clandestinos, a discrição combinada com o sabor vadio do celibato.

No caso do Torreão Vermelho não havia rapazes. O cutileiro, que tinha uma fila de antepassados banhados nos aços finos franceses, viu-se sem herdeiros, além das jovens desengraçadas, uma delas Umbelina e outra Carlota, as meninas do Torreão Vermelho. Duma se sabia que era feia sem atenuantes. Mas a outra tinha sal e outros condimentos de Goa e de Malaca, não sei se digo bem.

Os lugares do Torreão Vermelho pertenciam quase à periferia no tempo em que a Casa do Cão fora comprada pelo Nabasco. Em 1930, aproximadamente. Havia uma flora singular de palmeiras e diversas árvores do Brasil; só que não atingiam o porte imperial das airosas espécies do Recife, com as desgrenhadas cabeças à brisa costeira. A palmeira foi um emblema que o português pregou na lapela de capitalista. Filipe Nabasco tinha ainda no bilhete de identidade a designação de capitalista; do que achou estar à beira de ser suspeito, como fora o título de fabricante no século XVIII. Substituiu-o pelo de proprietário; o que também não lhe agradava. Se tivesse que ser sincero, diria que era caçador e jogador de bilhar. Quanto à fortuna que se lhe escorria pelos dedos, havia de durar o que lhe duravam os fatos de lã da Covilhã, uma eternidade, sem exageros.

A morte de Elisa ocorreu numa segunda-feira, dia de mudar as roupas de cama; ou antes, de as lavar nos grandes tanques de pedra com lavadouros ásperos e outros mais macios. Havia ainda luxos desses, Maria Rosa trouxera de solteira hábitos de grande estadão, com criadas, moças de recados, e hortelãos e jardineiros. Além dos faz-tudo, que eram empregados de meia-idade que compunham goteiras, fechaduras e cadeiras partidas. Eram os sábios do borralho, que estavam à noite a um canto da cozinha a pregar tachas no calçado avariado. A Paula, ainda pequenina, faziam muito medo as solas despregadas, com filas de dentes que lhe pareciam animados de maus instintos.

Paula, até aos cinco anos, era inteligente e cheia de graça. Depois ficou igual a qualquer outra pessoa.

A morte de Elisa foi muito sentida, embora ela se tivesse tornado exigente demais e chamasse as pessoas para a sua beira a toda a hora. Queria que lhe acendessem a luz, que a virassem na cama, que lhe mudassem as fraldas e que lhe trouxessem novidades. Olhava como se não percebesse nada e dizia:

- Isso não pode ser assim...

- Tanto pode, como é - dizia-lhe a costureira, uma tal Genoveva que só sabia subir e descer bainhas. Também pregava botões e cortava a linha com um golpe do dente canino, que era um espanto. Chamavam-lhe a Génia dos botões, e ela não se importava. Era extraordinário como havia pessoas que não se importavam: nem com alcunhas, nem que lhes ralhassem, nem que demorassem a serem pagas, e tinham paciência com tudo. Martinho conheceu um rapaz no Iraque (não me façam perguntas) que se chamava Abdul e a quem tinham queimado a casa e feito muitas e horríveis atrocidades de guerra; e ria-se com enorme, grandiosa satisfação como se ao perder tudo não houvesse mais para suportar, e isto fosse bom. A realidade do horror fazia-o conhecer a pequena proporção de paz que nos é destinada, mas tão insuficiente que nem é estimável, apenas nos faz rir. Martinho teve a sua parte de informação num período de ternura colectiva provocado pelo "mal de ouvido", como disse Byron. Parecia que o mundo era um inferno e os lamentos chegavam como imundícies e colavam-se à pele. A mulher de Abdul teve tempo para comprar uns sapatos e discutir com a sua cunhada a cor e o feitio; ávida, entre o prazer e a dor, permitia-lhe que alguma coisa de habitual a fizesse dispor de um estado de consolação.

- O mal de ouvido, que quer isso dizer? - A avó estava recostada na cama e não pensava levantar-se. O modo como evitava virar-se dizia do agravamento do seu estado, mais doloroso do que perigoso.

- O mal de ouvido é o que nos é contado, diferente do que sofremos. Todo o mundo anda intoxicado com o mal de ouvido, mas a realidade é diferente. Mais instantânea, produzida pela morte vivida. Não há lágrimas, não há qualquer precaução da natureza para aliviar a dor. A dor está presente e absorve tudo à volta.

- Eu sei o que é a dor. As mulheres sabem como nenhum de vocês, que a abraçam como se fosse uma amiga. Estive dois dias e duas noites com dor de rins e digo-te que o parto de rins é o pior. Pior do que arrancar os dentes a sangue frio. Qualquer humilhação que nos aliviasse a dor era bem vinda. Inclusive ser violada à vista de toda a gente na rua. A dor dos homens pode ter a obstinação ou a heroicidade para a recordar. Mas a nossa dor não é assim. É só vergonha, não está fundada no entendimento, não há o inimigo a quem apelar ou odiar. É a dor a que chamam natural. Não tem nada de natural.

- Percebo. Há umas palavras da Medeia, de Eurípedes, em que ela diz que preferia ir para a frente da batalha a dar à luz. Penso que isto explica a irreconciliação entre as mulheres e nós. "Só teremos paz quando as mulheres deixarem de parir".

- Isso é assustador, mas não se pode ir mais longe. Onde leste isso?

- Não sei, nem quero saber.

- Está feito, está feito! - disse ela como se concluísse de repente alguma coisa que lhe repugnasse. Bateu fortemente no colchão para espantar a gata que queria meter-se dentro dos lençóis. Martinho pensou: "Tudo o que se faz por elas é pouco, são mal-agradecidas e gostavam de nos banir do mundo, tanto nos acham imperdoáveis, tanto nus como vestidos".

- Amou o seu marido?

- Tinha dias, horas. Não podíamos chegar muito perto um do outro, nem perguntar nada. O amor é uma tradição local. Eu amo as criancinhas pequenas como as feras amam as crias. Porque é preciso protegê-las dos machos e dos predadores. Estive noites acordada para vigiar a Paula no berço. Sabia que ela corria perigo.

- Perigo, que perigo?

- Perigo - disse a avó. Um lampejo de fúria iluminou-lhe todo o rosto e depois acariciou a gata que deixou ouvir um ralo de satisfação. - Não somos nada de bonito. É pena. Mas isto há-de melhorar.

- Quer o seu chá?

- Pode ser, sempre é uma consolação.

- Imagina quantas mortes de escorbuto, de afogamento, de enforcamentos no mastro maior foram precisos para a avó ter essa consolação.

- Imagino. Parte do sabor está nisso.

- Não gosta de nós - disse Martinho, a rir-se. Adorava a avó e tudo o que vinha dela, espírito, redundância, paixão e até calúnia. Era uma mulher devastadora e cheia de recursos para sobreviver e ajudar as suas crias. Ela olhou para um quadro da parede que não tinha a ver com nada e disse, pausadamente:

- Acho que a Judite matou a mãe e o desgraçado agarrou-se à culpa para a salvar. Os homens gostam dessas coisas.

- Que coisas? Está a inventar.

- A culpa. Gostam de ser culpados. Inventar é uma forma de perceber.

Ele desceu as escadas, passo a passo, muito metido consigo e a avaliar o que tinha ouvido. "Mal de ouvido", nada mais do que isso! Estava perturbado e assim esteve durante dias a fio. Não conseguia falar com Judite e interpretava tudo mal do que ela lhe dizia. Não era o facto de admitir que ela fosse uma criminosa, mas o de ser ludibriado. Agora como era que as coisas se iam passar? Aceitava-a na cama dele quando ela quisesse voltar? Falava-lhe abertamente de tudo aquilo? Decididamente era um arranjo para durar. E comeu com apetite a sua perdiz congelada desde o Natal e que tinha caçado na Terra Quente. Quando pensava na caça, muitos pensamentos nobres se esvaíam na sua cabeça e um prazer franco animava-o. O cantil, as polainas, a arma dobrada com os canos como a farejar o chão, passavam na memória dele como um clarão de felicidade. Apeteceu-lhe sair da cidade e ir para a montanha, ou para o solar da Ronda, meio arruinado e que o vento varava de lado a lado. A verdade estava com ele quando se deitava no colchão de palha e ouvia os cães disputar os ossos que, sendo cozidos, se lhes pegavam aos dentes e era preciso tirá-los com a mão enluvada. Eram cómicos, de boca aberta, sentados nos quartos traseiros. Martinho ria-se e as lágrimas caíam-lhe pela cara, de tanto rir.

- Não me venham dizer o que é preciso para divertir um homem!

Dormia como um justo, se é que o justo tem bom dormir. O caseiro, ou o que fosse, estava na cozinha a pesar a pólvora para os cartuchos que comprava vazios e depois carregava como sabia. Tudo era ordem e zelo. Martinho chegou a receber na cama uma das moças da casa e uma criança nasceu dessa paz de alma em que se encontraram; sem medos e ponderações e não sei que mais. "As consequências tiram a vontade de tudo", pensou.

Compreendeu que a barafunda da política, de todos os actos humanos tinha início no conflito entre pessoas e as suas divergências necessárias à estima de si mesmas. Um bom governo é impossível de definir porque todos os governos, sem excepção, partem da má fé quanto à tranquilidade pública e a previsão das consequências. As consequências são inseparáveis desde que as posições absolutas dos povos são desencadeadas. "Um pouco de agitação dá energia às almas, e o que verdadeiramente faz prosperar a espécie é menos a paz do que a liberdade", escrevia o senhor de Voltaire, que sabia do que falava. Só que a liberdade se funde com a bestialidade que não se pode erradicar da força que comanda os nossos actos. Essa força não mede as consequências e por fim vemos as fases mais opulentas e afirmativas dum país serem marcadas por uma espécie de alienação colectiva que faz tábua rasa das leis mais sagradas e protectoras da espécie humana. Quando não se espera ver mais a panóplia dos baixos instintos autorizarem a tortura e os massacres mais impiedosos (impiedosos mas populares), estamos de novo em circunstância delituosa da História, em que a energia adquire a sua parte de milícia nacional pronta a sacrificar a liberdade que criam as leis justas.

No fundo, o homem é escravo da prosperidade cujos abusos estão ao alcance dos inaptos e dos corruptos. Pouca coisa o satisfaz e lhe dá a felicidade. Mas é preciso muita coisa para o convencer de merecer a felicidade.

No tempo de Inverno em que Martinho deixava o Torreão Vermelho para ir aproveitar o que restava dos solares em ruínas, podia dizer que era um tempo de felicidade. Aprendia coisas, até como se fazia uma sopa e a maneira de a temperar e torná-la saborosa. Também se tornou muito conhecedor das crianças, das suas doenças sazonais; e de como eram ensinadas sem demasiado carinho porque elas, se são saudáveis, não gostam de ser protegidas, isto ridicularizava-as. Não lia nada nem levava livros com ele. O que encontrou numa gaveta do quarto de rapazes doutros tempos, foi uma edição meio desmantelada dos contos de Conan Doyle, com gravuras admiráveis dum autor de quem, decerto, ninguém ouvira falar. A celebridade tinha-se inventado depois, provavelmente quando Lindberg atravessou o Atlântico. O poder era muito mais tentador.

Quando voltava, caíam-lhe em cima todas as preocupações em forma de contas a pagar, cartas a responder e soluções a dar aos problemas de família. A mãe, Paula, queria divorciar-se, a cozinheira ir embora, Elisa morria com a doença de coração que tinha há muitos anos, para mais a ala oeste do Torreão Vermelho tinha aberto uma fenda onde cabia um braço. Era preciso repará-la quanto antes.

- É no que dão casas velhas - disse o doutor Assis, que, entretanto, se via sozinho, viúvo e com a fortuna muito comprometida. A mulher morreu discretamente como tinha vivido e pode-se dizer que nunca tinha conhecido Maria Rosa nem ninguém lá de casa. Suportava sem aprovar nem desaprovar a ligação platónica que o marido tinha com a senhora Nabasco. Não podia vencê-la, nem queria. Era uma loira deslavada, elegante à maneira inglesa, das que falam de flores e do tempo. Todas as noites o doutor Horácio Assis saía para passar uma hora na sala de Maria Rosa, se é que não jantava lá e lhe levava chocolates com recheio de licor.

- Não é tanto o bombom que me agrada mas a maneira como o fazem. É um mistério! Há gente muito esperta neste mundo e não faz mais nada senão bombons de licor.

- Fazem amêndoas também - disse Martinho. - Parece-me ainda mais difícil.

Nesse tempo ainda Maria Rosa vinha para baixo, depois deixou de vir. Dava-lhe prazer descer a escadaria do Torreão Vermelho, de maneira lenta e sensual, como nos filmes a preto e branco. Mulheres impressionantes, com um ar parvalhão de estarem a ser filmadas e tendo na cabeça um papel completa-mente falso. As ladies, as ingénuas, as rameiras vestidas de vermelho, e isso bastava para as denunciar. Em Nova Iorque, nos anos cinquenta, uma mulher digna não se vestia de vermelho mas de lamé, fino como uma meia. Maria Rosa gostava de vermelho; todas as vezes que olhara para o Torreão, como vizinha (porque o cutileiro ainda não estava falido nem vendia a casa), era para se interrogar. Que vermelho tinha sido no princípio? Um vermelho Chirico que se via tanto na paisagem italiana? Ia bem com os ciprestes altos e quase negros.

No seu tempo (gostava de dizer "no meu tempo", como quem conta os passos demoradamente) ela ia com o marido para as termas italianas, desfrutava do tratamento de águas como se fosse algo de sacerdotal. Os hotéis tinham pé-direito imenso, custava olhar para o tecto. E, nos balneários, encontravam-se pessoas célebres, a filha de Mussolini com as crianças, a senhora Ciano. Sem querer, Maria Rosa copiava-lhe os vestidos dum bom-gosto perfeito, só para eleitos.

- Burgueses ricos - disse Filipe Nabasco, com aquele desdém português, em que paira uma ideia de perfeição como a de Deus ao criar o mundo. A aristocracia acabara; havia moleiros, que tinham mais ar de príncipes, do que gente de sangue azul. Martinho já não os apanhara a chegar, lado a lado, mulher e homem, para pagar a renda do seu moinho. Eram belos como não sei quê, honestos como Tancredo em Bizâncio. - Burgueses ricos... - disse o Nabasco. O fascismo era uma vontade limitada às coisas, o fim da noção do divino.

- É pena eu não ser nova. Agora todas as mulheres se vestem de vermelho. Perdi a minha cor, e para nada.

- Mas eu via-a de vermelho muitas vezes - disse Martinho.

- Não me desdigas. Nem tudo o que se diz é para ser provado.

Era isto que a tornava inimitável. A mulher do doutor Assis não podia igualar-se a ela e talvez sentisse prazer em mandar o marido adorá-la todas as noites. Assim ele aprendia quanto era insignificante e voltava resignado e muito mais capaz de ser um bom marido.

O país estava a funcionar sob a fresca maneira dos polito-cratas. Já não era uma arte confidencial, era um desempenho de palco, com maquilhagem, provas no alfaiate recomendado, cores conforme o conselho da televisão. O corte de cabelo tinha que ser apropriado, o colarinho italiano, o padrão imposto pelo costureiro. Se bem que em Portugal as coisas fossem tímidas e pouco favorecidas pela instrução popular que não percebia de modas, nem dos chapéus de S. Magestade Isabel II. Para o povo, o politocrata era um mandão, espécie de polícia-mor, que punha escutas nos telefones e podia ouvir os suspiros de amor dos amantes.

Tratava-se de substituir Elisa, a fiel mordoma, e tinham medo de contratar alguém que viesse para informar e ler as cartas antes de as entregar, não numa salva de prata, como era a antiga praxe, mas de mão para mão. Molhada, esfregava-a no avental.

- Ponho o correio na mesa? Você que acha?

- Era o vous francês que se pegara à língua de imigração e que grassava em todos os sentidos, quase como uma continência feita à democracia. Judite saiu da sua paixão em grande classe, completamente soberba, como se carregasse manto e coroa. Queria ser servida pela esquerda e que a tratassem por madame.

- Se não for assim, não compreendem, nem aprendem outra coisa, nem nada.

- Olha que porra! Eu tenho o nono ano e a carta de condução.

A nova empregada sentou-se bruscamente e acrescentou que não queria servir burgueses. Não se praguejava, falava-se mal. E já ninguém se ria com a ingenuidade do boçal, nem com o erro da gramática do iletrado, nem com a ciência licenciosa do aprendiz da cultura. Mas as baterias do sarcasmo incidiam sobre os maiores, a pobreza visava mais alto, o perímetro da sua consolação alargava-se até ao ministro, ao Papa e até ao reino dos céus. Tudo era tolerado desde que se pagassem os impostos e não se provocassem engarrafamentos nas estradas. Sobre tudo isto, uma moral de efeitos caricatos compunha o quadro duma sociedade em que prevalecia o princípio filosófico: "O homem só faz asneiras quando quer ter razão".

O Torreão Vermelho datava dos anos trinta, quando a filha mais velha do cutileiro foi pedida em casamento por um grande importador de farinhas. Era um negócio próspero começado na guerra de 14-18 que aproveitou nesse sentido a pessoas pouco escrupulosas que ficaram de repente ricas. Subiram na vida que era um disparate, como diziam os Cunhas, serventes por tradição. Adão, Miguel e Salvador nunca se afastaram da área dos grandes proprietários, como os Nabasco que evitavam chamar-se capitalistas. De resto, capitalista era um adjectivo desconhecido quando a moeda era ainda relacionada com a moralidade. A fortuna era avaliada em bens ao luar, terras e a produção delas.

Adão, Miguel e Salvador tinham a confiança dos Nabasco, o que era melhor do que ter o nome deles e as preocupações da sua fazenda. Foram felizes, com famílias numerosas e subiram na vida, chegando a polícias, carteiros e enfermeiros, sem nunca aspirar a ter carro e dinheiro no banco, nem amantes, a não ser qualquer amiga de ocasião a quem ficavam gratos toda a vida. Quem queria obter um favor dos Cunhas era favorecer essas amantes sem história; não há como a lembrança de amores ocultos para acentuar uma gratidão.

O trigo tinha subido depois da guerra e faziam-se transacções muito rendosas com as misturas de aveia e dizia-se que de ossos humanos. A filha do cutileiro foi bem servida dum noivo que se apresentava como um grave homem de negócios. Era baixinho, falava muito da educação que dava aos filhos e estes, não se sabe porquê, detestavam-no. Quando o cutileiro faliu passou a dar à mulher um tratamento indecoroso e só a deixava vestir-se bem quando saía na companhia dele.

- É um biltre - disse Maria Rosa. - Sabes o que é um biltre?

- Eu sei, é um sem-vergonha, um safado ou por aí. Caiu em desuso essa palavra.

Martinho Dias Nabasco estava na cabeceira da mesa a fazer bolinhos de pão e a olhar para Judite de fugida. Ela parecia muito à vontade e mandou abrir as portas de vidro para o jardim. A sala ao lado era destinada à conversa depois do almoço e oferecia a vista das flores e das grandes árvores de sombra. Martinho pensou se ela estaria curada da paixão que tinha pelo carismático Andrade a quem Bento Webster Soares prestava homenagem sempre que podia. No entender de Martinho, o excelente Andrade era um homem cruel, só que não o mostrava. Uma vez que um gato se meteu no motor do carro dele para se abrigar do frio e saiu de lá espavorido depois duma viagem infernal, ele contava isto a rir-se com prazer. Martinho ficou com a impressão de que ele era uma pessoa a evitar. Admirou-se de nunca ter sentido ciúmes com a paixão de Judite por ele. Sem deixar de o amar, o que não estava na possibilidade do seu controlo, ela sentia-se ameaçada. A história do gato também fizera efeito nela e ocorria-lhe nos momentos mais dolorosos da sua vida. Quando julgava que estava no limite das suas forças e a ideia de se matar lhe parecia fácil, como adormecer à beira da água, o gato saltava seguido do riso do homem que ela tinha preso no coração com ganchos de ferro.

Um dia tudo desapareceu. O sinal foi assim: estava sentada diante da porta aberta para o jardim; o dia estava quente mas chovia como se um véu ondulasse no ar. Teve a noção de que ele entrara e ficou um momento parado atrás dela, sem se anunciar. Foi um momento frágil, tudo podia acontecer como correrem para os braços um do outro, gemendo de paixão e de prazer. Ela levantou-se, virou-se e viu pela porta que dava para o átrio, uma grande porta de ferro-forjado, a figura do ajudante do capitão Cocq. Parecia estar a presenciar a cena. A porta estava fechada, fechara-se com o toque mole do trinco, mas ela viu-o pelos espaços entre os florões de ferro. Viu como se as plumas do chapéu dele se agitassem devagarinho.

- Que surpresa! Toma um café comigo? Eu ia agora tomar um café.

- Não, minha senhora.

Ela pensou que na grande mão que ele tinha a xícara devia parecer minúscula. "Porque fazem as xícaras tão pequenas quando são mais para os homens do que para nós?" Sentiu-se de repente muito à vontade, cheia de forças e alegria. Estranha alegria. Ele podia cair morto ali e Judite não deixava de sentir-se confortável, com a chuva a entrar pela porta aberta do jardim. Quase não se viam as sebes da "lágrimas de princesa" com flores derrubadas, rosa e brancas. Talvez não estivessem lá e, sem que ela soubesse, acabassem de ser cortadas. Era uma ilusão de óptica, ou quê? Cingiu-se à écharpe de lã e avançou para receber a visita. Ele não estava lá. E do lugar em que ela se encontrava não podia ver o tenente mas só a massa de personagens menores que se preparavam para ouvir a ordem de marcha. Preparar-se é uma maneira de dizer: cada um fazia o que queria, falava, tocava tambor, cruzava as suas lanças sem nenhuma disciplina militar. E isso do capitão Cocq estar a apontar o caminho a seguir, não era verdade. Estava a mostrar a sua estatura, a sua faixa vermelha e os sapatos de laços. Judite, a primeira coisa que fez foi ir olhar para a Ronda da Noite. "Nunca o tinha visto assim" - pensou ela. A menina, no meio daquela turba preparada para se bater ou simplesmente desfilar, não estava assustada mas meio divertida. Estava vestida como para um baile, mas a galinha morta à cinta, não se podia dizer que fosse um enfeite, um símbolo; é talvez uma nota de humor, como o pintor usa nos seus próprios retratos, apanhados de surpresa. Como se ele dissesse: uma galinha à cintura duma rapariguinha pode não querer dizer nada. É um motivo para um espaço vazio. Já pintou os dois pavões mortos (eu diria antes perus) para um dia de festa. E uma menina olha para eles, com o mesmo ar de divertimento, como se esperasse vê-los voar. E há aquela outra ave suspensa pelas patas num prego, à espera de ser depenada para o jantar. Ele pinta tudo, sem imaginação ou escolha. Pinta o que tem à mão, pessoa, animal, flor; qualquer coisa que mexe ou que se oferece ao olhar. Pinta por vocação, por mania, por encomenda, por riso, por prazer. As suas cenas bíblicas não são dramáticas? A companhia do capitão Cocq é uma patuscada de bebedores de cerveja? Ele não está ali para filosofar, mas para se embebedar de tinta e de glória. Porque, ele, Rembrandt, é admirado, procurado, chamado a pintar a sua cidade, os seus bur-gomestres, as suas riquíssimas senhoras de extraordinárias golas brancas. Cristo parece um pedinte espantado de se ver subir aos céus? Andrómeda não se parece nada a uma virgem entregue ao apetite do dragão? Teve já quatro ou cinco filhos e os seios seriam flácidos se não fossem elevados pela tracção dos braços? Não importa. Não é um esteta, é um homem fascinado pela realidade e não um serviçal da arte. Pinta carcaças de bois no matadouro como se estivesse a ouvir uma história de enforcados. E a degolação de S. João Baptista com a cabeça do profeta no chão faz-nos estremecer e querer vingá-lo. O festim de Ester tem uma melancolia de quem sabe que o desejo se consuma na perda da liberdade. O ceptro perdeu a sua dignidade, parece mais uma faca de trinchar. Ester, perfumada por dentro e por fora, cede à súplica do seu povo e é, como Bethsabé, uma vítima vingadora.

Maria Rosa, no dia em que recebeu a Ronda no Torreão Vermelho, disse que esse foi o dia mais feliz da sua vida. Já tinha dito isso antes e disse o mesmo muitas vezes depois. Martinho lembrou-lhe isso.

- O dia mais feliz da minha vida foi quando a minha mãe casou e foi viver para longe com o marido da Marinha. Eu tinha medo de que ela me levasse e eu entrasse no regime da tropa, a levantar-me às seis da manhã e coisas no género. Depois nasceram os cadetes, os meus irmãos, e fiquei mais sossegado. Não os vejo muito mas acho que são bons rapazes. Levam com o cinto de vez em quando mas isso só lhes faz bem. É um hábito saudável e não há assim tantos hábitos saudáveis.

- Cala-te, menino, não é verdade nada do que estás a dizer - disse Maria Rosa. Ria-se das coisas que Martinho inventava. "Se não fosse o que se inventa, a vida era muito aborrecida" - pensava. Quanto aos cadetes, bonitos rapazes loiros, quase iguais, e cabelo à escovinha, pertenciam a um gang de malfeitores de elite, vestiam-se de preto e usavam botas com atacadores que eram como uma arma. Um pontapé daquelas botas matava uma pessoa. Mas isso foi quando tinham quinze anos ou pouco mais. Estavam prontos a assentar e a tornarem-se em politocratas de grande envergadura, conhecidos pelas opiniões radicais mas com saídas de fuga. Desprezavam o aparelho partidário, sempre à beira do stress e que usa as sondagens como quem usa calmantes.

Martinho não fazia nada para se encontrar com os jovens irmãos que eram mais altos do que ele meio palmo seguramente, e que transmitiam a Paula, a mãe, a ideia de que Martinho pertencia às estrebarias do país, e que tinha o complexo de Augias. O rei Augias fora quem mandara a Ulisses limpar as estrebarias que há cem anos não eram limpas. As estrebarias eram as contas do Estado e a formidável e fumegante bosta da corrupção. O que eles não sabiam é que, para o provinciano, ser mal julgado na capital, como um primário cuja educação se fez na base dos dez mandamentos, é um ponto de honra. O país real era feito de provincianos com olhos na nuca, que conhecem tudo e se servem do que é adequado para não terem problemas com o próprio Deus. Enquanto que o politocrata se limita a não ter problemas com a polícia.

Quem era Deus para um feudal como Martinho Nabasco? Ele costumava dizer:

- Se uma coisa não existe, não merece contradição. De facto, é um absurdo o que se passa com os leigos deste país: dizem que Deus não existe e querem prová-lo. Mas têm tantos argumentos como os crentes para provar o contrário.

Recomendava como leitura as Lições sobre a Teoria Filosófica da Religião, de Kant, mas ninguém lhe ia seguir o conselho havendo tantas coisas para fazer; e também Martinho folheara apenas o tal livro, retendo algumas frases para as ocasiões, como, por exemplo: "Onde há um grande entendimento há uma grande indecisão", o que não se podia assegurar que fosse do próprio Kant.

Como novo feudal, Martinho começava por ter a mania das grandezas. Lançara-se na reconstrução dos solares como se dum compromisso se tratasse, e havia quem o chamasse de monárquico republicano. Não andava longe da verdade quem assim falava, num desses repentes de espírito tão próprio dos portugueses recalcados.

Martinho tinha, no seu "delírio discreto do majestático", uma cada vez maior condescendência para o espectáculo de corte, o cerimonial com polícia a cavalo e render-da-guarda e coisas assim, sabendo bem que tudo isso é mais provocador do que dissuasor. Mas há períodos da História, se não sempre, em que a provocação é um direito bem ou mal exercido. Ela quebra com regras que estão prestes a caírem no seu oposto, a libertinagem, e dão azo à inovação. A libertinagem era uma regra também e favorecê-la precipita o regime favorável aos negócios.

A Ronda da Noite personificava o novo feudal. No imenso quadro nada estava concluído; nem o desfile, nem os lugares de cada um, nem até os retratos, de resto pagos de antemão. Havia na Ronda um espírito grandioso mas pouco convencido. Sem heroicidade, apenas eloquente quanto à sua definição do desejável. O capitão Cocq, futuro burgomestre de Amesterdão, imita a gravidade do comando; enquanto que o seu lugar-tenente é o protótipo dum genro ideal: brilhante, bem à moda, elegantemente vestido no seu fato amarelo-palha, e com a petulância da obediência, que é uma petulância como outra qualquer.

A petulância da obediência é o que faz o clã perfeito. Os jovens cadetes que se moveram no sentido da política, tinham esse espírito. Não condiziam com o Torreão Vermelho tendo nascido numa maternidade e vivido sempre em condomínios fechados com um espelho de água usado apenas pelas crianças. Os cadetes não tinham tempo senão para jogar um pouco de golfe aos domingos de manhã, enquanto o campo não era invadido pelos ricos de segunda escolha que punham o boné ao contrário para se mostrarem dinâmicos e com menos cinco anos.

O condomínio de luxo era um labirinto de corredores como arroios que iam desaguar à cave onde estavam as boxes com carros que pressagiavam uma loira alta e vestida correctamente, porque os homens não gostam de moda que dê na vista senão o essencial, os cabelos e as unhas.

Já não estava em uso a "moda de ontem", o que dá o cunho da elegância que é a falta de novidade com atitude. Agora tudo era brilhante, sem sotaque, ligeiramente indecente mas com um toque conservador que vinha do berço. O Torreão Vermelho não era nada disso. O fantasma do cutileiro e dos seus amigos importadores de farinhas, andavam por lá com os seus colarinhos antiquados e as unhas em mau estado. Sabiam dar ordens e não se importavam de ajudar a carregar um fardo. A sua seriedade era proverbial, tratavam os empregados como família e dispunham deles para uma pequena troça de superiores, imprevisíveis no prémio e no castigo. Martinho disse que os cadetes eram ovos de dinossauro, que nunca chegariam a chocar.

- O mundo anda mais depressa do que se julga e eles ainda não saíram do ninho e tudo mudou.

- O que mudou? - disse Maria Rosa. - Os novos feudais, como tu dizes, não vão mexer em nada. Todos se aproveitam mas ninguém quer mudanças. Ninguém manda, as alianças são perversas, ninguém se atreve a subir sem para-quedas, a anarquia tem a prioridade porque corrompe sem parecer controlar.

- É um bom discurso, avó.

- Tu foste um professor, meu querido patife.

- O segredo é de controlar as investiduras. A paciência e a modéstia são o principal. Não acusar, não vencer demasiado, deixar que se crie a indecisão que modela a verdade necessária. Diga-me uma coisa: ainda gosta de Catarina da Rússia?

- Ah, sim. Todo o português tem um russo no cólon transverso. Não se digere nada sem isso.

- Sabes o que dizes, ou é só um improviso feliz?

- Há muito de sabedoria instantânea no que dizemos.

- Mudou de tom e perguntou: - Tenho fome. Que há hoje para o almoço?

- Eu que sei? Só como arroz seco e fruta. Mais nada. Gostas de mim?

- Não para comer.

- Porque se gosta das avós? Proust gostava da avó dele. A história do lobo mau anda por aí. A sexualidade difusa anda por aí. Se vires um rapaz desejável gostar das avós, já sabes que elas lhes servem de garantia sexual. A convivência com as avós inspira ideias de castidade.

- Isto está a tornar-se difícil - disse Martinho. Tinha posto o seu cachecol vermelho, e isso tinha qualquer coisa de litúrgico. Gostava imensamente da avó, ela tinha um espírito racional. As pessoas ligam-se entre elas graças a um entendimento racional e não por sentimentos que são sempre mesquinhos, como o amor. Não há nenhum amor que não seja mesquinho, pensava ele. Pensava no seu caso com Judite e na maneira como ele a tratava: com um ciúme infame, que não era capaz de dominar. Ela estava à sua direita, à mesa, e Martinho continha-se para não a espancar, de repente, fazendo tombar a cadeira atrás dele e apertando-lhe a garganta com toda a força. Aquilo era arrasador, depois passava. Judite tinha a noção do perigo, mantinha-se calada, mexendo nos talheres de maneira imperceptível. Se dormissem no mesmo quarto alguma tragédia já teria acontecido. O espaço era necessário ao trato conjugal. Para extremar as diferenças

- concluía Martinho. Grande parte dos crimes domésticos ocorriam na estreita convivência de pessoas em crise, por motivos sexuais ou económicos, mas sempre desencadeados na provocação da vida em comum. Os tectos baixos favorecem as paixões, disse Corbusier e desde que se cortou um piso à altura dum prédio de rendimento, as pessoas acharam-se enjauladas em espaços muito limitados. E se os anacoretas viviam em espaços exíguos, viviam sós.

Era difícil para um homem, neste caso Martinho Nabasco, perdoar a Judite a paixão dela por outro. Tinha momentos de cólera tão arrebatadora que olhá-la nos olhos implicava um perigo de morte. Casara com ela mais para agradar a Maria Rosa do que movido pelo amor. E, agora, comportava-se como um marido traído, vendo em tudo sussurros maldizentes e chegando a decifrar palavras de troça que na realidade não eram proferidas. Nunca entrava no quarto de Judite e, aos poucos, estabeleceu-se um pacto de renúncia aos deveres conjugais, criando-se um abismo que não seria mais ajustado aos desejos. Era, de resto, impossível que o desejo obedecesse à emoção das antigas praxes da intimidade. Judite aparecia-lhe vestida para sair e nunca mais no abandono da toilette da manhã, os cabelos ainda soltos, os olhos sonolentos. Ia-se encontrar com um outro - quem era?

Embora muita gente soubesse daquela ligação sem qualquer entendimento físico, Martinho recusava qualquer informação nesse sentido. Sobretudo dispensava ao excelente Andrade o melhor da sua simpatia. Elogiava-o, carregava-o com o peso da sua lealdade. Dava jantares em que exigia que Judite estivesse presente, dando-lhe o lugar junto do amante e alegrando-se de os ver juntos. O rosto crispado de Judite parecia diverti-lo. E quando todos se retiravam e as brasas se apagavam sob um manto de cinza branca, no fogão, Martinho pedia-lhe que ficasse na sala. Sabia que ela sofria e isto despertava nele uma fúria mesquinha, não perdia a ocasião de a rebaixar, de apontar-lhe a ignorância, o mau gosto e o envelhecimento. Judite tinha trinta anos, ele dizia-lhe:

- Os teus melhores dias passaram. Não vale a pena gastares dinheiro em vestidos. Até não tens tão boa figura que o justifique.

Ela ouvia-o calada, quase indiferente. A indiferença ao amor que a arrastava estava a consumi-la. Chegava a sentir prazer na ideia de se matar, sem testemunhas, como se acontecesse; uma queda, um mergulho no mar, pouca coisa. Era uma dor que não acabava mais; sempre a rasgar-lhe o peito, sempre a encher o lar duma exclusiva verdade, o desejo. Não era amor mas alguma coisa ainda agarrada à terra dos primeiros animais de sangue quente. Um desejo de violação e de prazer, sem consequências senão ainda o desejo. Ele tomou a decisão de a matar, e mais duma vez, ao entrar na garagem e tendo Judite descido primeiro, avaliou a maneira tão simples de a esmagar contra a parede. Judite percebeu e fez disso um motivo de o deixar. Porém, não se deixa alguém que nos segura quando no ar andávamos em cabriolas. Tudo havia de passar e o esquecimento era como fartura de pão depois de fome que nos toldasse o juízo.

O amor é uma palavra para muitas emoções cujas raízes estão encobertas e entrelaçadas. Foi um tempo doloroso para ambos, em que a presença e a ausência eram motivo de condenação. O desprazer em que andavam alimentava a guerra dos sentidos. Judite tomou precauções para não terem que recordar que eram marido e mulher e que o seu compromisso equivalia a direitos. Judite começou a pôr em termos práticos a separação e daí em diante teve uma linguagem jurídica. Munida da lição legal, o caso adquiriu uma realidade que até aí não passava dum passo a desmentir. Mas todos os pequenos avanços no litígio, por efeito duma coerência interna, tornavam-se razões definitivas e inflexíveis. Já não compreendiam uma reconciliação, ainda que deixassem para depois o título de "bons amigos".

Na ordem do desfile, na Ronda da Noite, não há ainda uma ideia de felicidade. Cada um prepara a sua actuação mas, ao mesmo tempo, isso não passa dum progresso para o contentamento. Não se percebeu ainda qual a acção a executar. Será um desfile? Será uma marcha nupcial ou simplesmente de tipo ritual? A criança que desliza pelo meio da turba mantém o gracioso ar de farsa, de brincadeira; quando ela chegar ao outro lado do quadro, talvez tudo já tivesse mudado. A ordem do capitão Cocq não foi ouvida e todos recolheram a suas casas. A bandeira foi arreada, o lugar-tenente mais uma vez sacudiu o rebordo das suas galochas e o seu contentamento foi substituído pela desilusão. A sensação de estarem a preparar-se para qualquer coisa de magnífico na sua finalidade, submeteu-se ao desejo de comer e de dormir. O impulso para a acção esmorece já quando a pequena fada saiu do quadro e se precipita para fora. Ela é a musa que serve todos os artistas e deixa a cena quando todas as dificuldades estão resolvidas: quem tinha em vista um casamento, casou; quem se lançava num desfile de festa ou de combate, já o fez. Mas, no momento em que tudo está por decidir, a felicidade ainda está lá como se dependesse da ordem do capitão Cocq para dar início à parada. Quem não sabe que o homem há-de morrer? Só a menina, vestida para um baile ou para o seu próprio enterro, não sabe. O resto do grupo está ali em equilíbrio entre os seus sofrimentos e as suas alegrias, e a sua vida tem um significado, a Ronda da Noite tem um significado - o de tornar inofensivo tudo o que fere e tudo o que salva.

No momento em que Judite punha o pé na beira do quadro, já a caminho dum final da sua paixão, já a entrar na obscuridade, o ponto em que a felicidade se encontra com a felicidade, como dois rios que se juntam no arrepio duma única onda, ela entra na eternidade. Perde a sua humanidade mas recebe qualquer coisa de merecido, o direito de ser parte do que não existe e, portanto, lavada de toda a contradição.

Todavia, ela não tinha atingido ainda a extremidade da Ronda. Fechava-se à chave de noite porque era assaltada por terrores que a deixavam acordada. Pensava que ia morrer às mãos de alguém a quem ela magoara muito, ainda que não se lembrasse quem era. Talvez Martinho tivesse um plano para se livrar dela e não lhe dar a liberdade. Seguia com atenção tudo o que ele fazia; a mais pequena mudança de hábito nele, a enchia de apreensões. No Torreão Vermelho havia um cofre grande que não fora retirado devido às dimensões que tinha e Judite não passava diante dele sem estremecer. Era de ferro, com desenhos dourados sobre a pintura verde e cabia lá dentro uma pessoa. Ela começou a imaginar-se lá fechada, a sufocar e a entrar em agonia. Ninguém dava por isso e um dia só encontrariam um pouco de pó seco e os ossos que nunca se desfazem até na cremação dum cadáver.

- Quais são os ossos que não se desfazem quando um corpo arde? - perguntou, subitamente, à mesa. Tinham convidados e alguém deixou cair no prato o garfo. - Ninguém sabe?

- Não está aqui nenhum médico legista - disse Martinho. Olhou para ela com comiseração, mas indignado. Quando era que aquilo ia acabar? Porque é que Judite não se embebedava? Era mais fácil para todos. Era verdade que preferia que ela morresse ou que fosse internada por transtorno mental. Mas tudo obedecia a um ritual demorado, uma pessoa não desparecia assim sem deixar testemunhas e uma porção de papéis. Usava agora para com ela dum cinismo que pretendia poupar a si próprio o sofrimento. Um dia em que ela apareceu para sair com penas de pavão no vestido, Martinho disse que as penas de pavão dão má sorte. Ela arrancou-as uma a uma e o decote deixava ver os seios nus. Ele disse simplesmente que se despisse mais ainda porque não gostava de ver as coisas pela metade. Outra vez, como o penteado lhe pareceu escandaloso, com mechas verdes, ela rapou o cabelo completa-mente e durante um ano dizia a todos que fazia quimioterapia. Pensava-se que ela ia morrer e evitavam falar nisso a Martinho. Algumas mulheres disponíveis faziam-lhe a corte, convidavam-no para sair. Ele batia-lhe. Pensava que Nero e Calígula ficaram na História como monstros, mas não se sabia que mulheres eles tinham. Calígula amara muito a dele, isso era sabido, e era decerto dominado por ela. Razão de sobra para a depressão dum César. Ameaçava pô-la a tormentos para saber o que fazia ele amá-la tanto.

- Não sei como eu reagiria se fosse César - disse. Maria Rosa não se apercebia de todas as horríveis desordens do casamento que, no entender dela, era como qualquer outro.

- Um bom casamento não existe. O melhor é aquele onde as crianças gritam em voz baixa - rematou ela. - Felizmente o casamento não é para toda a gente, senão dispensavam-se as guerras e os filmes de terror.

Passavam algumas horas de tréguas juntos e Martinho conseguia esquecer-se que tinha um ogre em casa e que ultimamente Judite tinha visões. Via Martinho passar diante dela com uma mulher desconhecida. Outras vezes acusava-o de lhe roubar roupas e jóias para dar a uma amante. Mandava a ela própria flores e fingia receber telefonemas de alguém muito íntimo. Pensava que ele tinha filhos ilegítimos que educava passando com eles muitas horas do dia. A intriga crescia entre eles e já não era possível recuar duma mentira cada vez mais tecida com a verdade. Havia, no entanto, um ponto que não abordavam: a morte violenta de Estrelinha e a condenação do pai que cumpria pena há quinze anos. Não falavam disso. Porém, a ameaça rondava e Martinho punha-se de repente a fazer contas.

- Quantos anos tinhas quando vieste para cá? Dez, ou doze?

- Tinha feito a comunhão no dia da Assunção. Vim em Outubro, com doze anos. - Ela falava, calma, ocupada a percorrer o seu calendário, mas contendo-se para não varrer tudo com uma cólera cega. "Bandido! - pensava. - Quer apanhar-me como a filha dum criminoso. Não sou a filha dum criminoso. O meu pai era um homem sério. Lá por ter uma amante não deixava de ser um bom homem." Amante, não era palavra do seu vocabulário. Estava carregada de reprovação e foi modificada para concentrar nela o acto da lapidação que não saíra dos hábitos tribais assim há tanto tempo. Dizia-se amantilhona ou fêmea para exprimir desprezo e pelourinho. As coisas foram mudando e agora eram mais consentidas, se não aprovadas no seu sentido libidinal. Num dos jantares no Torreão Vermelho, estando presente uma aristocrata italiana acompanhada por um rapaz bonito como um sol, ela disse:

- Não é o meu marido mas o meu amante. - Fez uma pausa, a que ela deu o encanto dum olhar saudoso. - Marido não tem o mesmo sabor de amante. Diz-se "mio amante" e as pombas voam como a neve em Maio.

Ela estendeu os braços para compor o xaile nos ombros e parecia que lhe nasciam asas. Judite riu-se para esconder a confusão. Vinha duma família pobre mas sem miséria, desse meio onde começa a burguesia que lê as dietas alimentares e compara as filhas com as rainhas de beleza. Mas havia uma classe estável, como a de Maria Rosa Nabasco, com dívidas mas crédito também; e para quem a província era um tipo de heráldica, com cães e cavalos soltos num prado. Orgulhavam-se de não ser snobes, de vestir o trajo das lavradeiras, garrido, com muito ouro ao pescoço e nas orelhas. Dançavam lindamente airosas danças populares e conheciam toda a gente dos arredores, quem nascia e quem morria, quem se casava e com quem. Como tudo mudava, desertavam das velhas praxes que se foram tornando românticas, dispendiosas e sem público que as respeitasse e aplaudisse. A província não acompanhava a euforia do conforto e a ilusão da fortuna. Para Maria Rosa, que sempre detestara a aldeia, os caminhos de lama e os dias de chuva intermináveis, não houve mudança. Só Martinho se interessou em conservar os solares e possivelmente na intenção de fazer negócio com eles. Os Nabasco tinham a veia especulativa, e o primeiro olhar era avaliador. Isso vinha de longe. Não emprestavam a juros mas invejavam quem o fazia. E, sobretudo, cuidavam a aparência e nunca aceitavam estar vencidos pelo destino e pelas mulheres. Preferiam sofrer calados a ser falados em público, nem que fosse por coisas vantajosas. Há na timidez da personalidade um diálogo com qualquer coisa que não pertence à razão.

Em suma, os Nabasco eram gente em que as nações confiam e que já existia nos tempos em que as guerras eram assunto de conselho e não de vontade viciosa e brutal. Os Cunhas, pessoal doméstico de geração para geração, davam brilho à casa dos Nabasco, até que por fim acabaram com empregos de polícias e carteiros, muito diferentes das suas origens sedentárias a que deviam o espírito curioso e confa-bulador. Martinho costumava dizer que era o último descendente de alfaiates de Vale de Mouros, que cosiam bem e contavam histórias como cosiam. Mas não era verdade. O lado árabe estava mais presente nos Cunhas, sobretudo no Miguel, que mentia como uma cesta rota, sendo a mentira a sua arte de ficção. Todos os irmãos Cunhas tinham cantado para adormecer Martinho e tangido a viola para ele. Também lhe ensinaram a andar de bicicleta e a encher cartuchos com chumbo e pólvora. Tudo isto conversado com novidades e histórias pícaras que dava gosto ouvir. Gente que de ignorante não tinha nada e de gascão alguma coisa tinha. Pensando nisso, Martinho considerava que a sua infância fora parecida à dum conde no seu condado, de mistura com galgos e irmãos colaços.

Esse coração feudal voltava ao de cima, quando acalentava a ideia de se contrapor ao poder central, fazendo-se eleger contra a maré partidária e segurando pelas rédeas o favor do povo. Martinho podia ser um homem da actualidade protegido por guarda-costas, benquisto pelas mulheres e, o melhor de tudo, sempre ao abrigo de suspeitas que não passam além das paredes do seu gabinete.

O novo feudal é um abençoado como o rei. Nada lhe pode tocar, tem dois juristas na sua corte e um negro que lhe faz os discursos. Mas, para Martinho, ser um feudal português parecia-lhe caricato. Sabia que, uma vez escolhido, teria que servir ambições e pagar exorbitâncias pelo seu mandato; mandato de que era merecedor mas que sobre o qual pesa a má sombra duma coligação com idiotas e de notáveis que é preciso satisfazer. Antes queria o anonimato em que se aborrecia, do que a celebridade em que se humilhasse.

A democracia, que na mocidade lhe parecia fácil e soalheira, acabava por despertar nele irritabilidade de casta que julgava não existir nele. Usava jeans com jaquetão com botões metálicos porque isto o situava na ambiguidade majestática, necessário num tempo de ambiguidades. Maria Rosa achava-o ridículo mas, se o ridículo mata, mata muito lentamente.

O feudal punha toda a sua renúncia numa gravata que não usaria num casamento de província. A sua maior ambição é a de ir para a capital quando o citadino já lhe tinha marcado o bilhete de regresso. Seria sempre um estranho na Assembleia e um desgraçado no restaurante onde todos se conhecem e o criado sabe os gostos de cada um. Só ele não está informado dos dias em que se come cozido ou há carapaus fritos com arroz de grelos. Pensava ir comer empada e vol-au-vent, e sai-lhe bacalhau com grão, que ele detesta. Mas sentar-se à mesa com um ministro vale bem um amargo de boca.

Não, Martinho nunca seria capaz de fazer trezentos quilómetros de avião em primeira classe para estar a horas com um inimigo que no corredor lhe dizia: "Isto de esquerda e direita não tem mais sentido" - e depois, desde a sua bancada, estilhaçava a condescendência de que dera provas. Como podia Martinho dizer, com um acento político inimitável, que "a finalidade nos efeitos pressupõe um entendimento na causa"? E bem podia dizê-lo, porque ninguém ia tomar a frase como um descarado plágio. Pelo contrário. Iam cobri-la de ridículo, como um gato cobre as suas necessidades.

Não sendo cientista, nem escritor, nem empresário, a sua vida estava entregue ao desmazelo mental. Não tinha um dossier, nem um projecto, nem uma intriga a gerir. Depois de se apiedar de Judite, que amava outro homem e se debatia com a virtude como se se tratasse da sua compatibilidade com Deus, Martinho achou-se numa maré de tédio. Dormia muito e ia ao cinema.

Ninguém supõe que ir ao cinema na idade adulta significa um estado de humilhação. É como falar francês na sociedade russa no século XIX, demonstra um desejo de selecção.

O mesmo acontece quando toda a gente veste de igual e não quer distinguir-se senão pelo luxo da miséria. Quando estava sentado na sala escura e via no ecrã as figuras estereotipadas do bom e do mau, Martinho sentia-se defendido. Os seus preceptores tinham morrido, não tinha caderneta escolar nos estabelecimentos de ensino, ninguém ia pedir-lhe contas da sua cultura, da sua fé, da sua política. Qualquer zulu se exprimia melhor do que ele quando dizia, já livre de missionários e de negreiros: "Não quero ser europeu". Mas Martinho nem seria completamente sincero se dissesse que não queria ser português. O mais natural é que não quisesse ser humano. Não havia maior vergonha do que isso; era um sentimento para além de toda a frustração. Como ia preocupar-se com Judite e abrir-lhe a porta e a cama quando ela lhe pedisse? Preferia ser cornudo a dar-lhe esperança de felicidade que ele não suportava, sendo um homem no mundo onde parecia não haver progresso.

Elisa morreu na sua mansarda, que estava numa confusão de santos e retratos, além de remédios de que se encharcava como se fossem coisas de feitiçaria. Para ela, os médicos eram chamas que tivessem o poder sobre matérias diversas. Já só respirava com a ajuda do oxigénio, e o seu estado, como não se alterava, incomodava toda a gente. Até Maria Rosa, que lhe queria como família, sentia uma pequena decepção quando lhe diziam que Elisa estava na mesma.

Embora sofresse muito e cada dia fosse um suplício, despertava sempre para qualquer mudança, ainda que fosse imperceptível. Maria Rosa, que quando era nova servira no hospital como auxiliar benévola (ela dizia benévole, à francesa), nunca vira tal tenacidade em se prender à vida. Também é verdade que, com os seus trinta anos e com uma farda engomada e de tecido especial, ela não se debruçava sobre as suas pacientes levada por profundas cogitações. Era-lhe poupada a parte mais repugnante, que era mudar as fraldas e lavar o doente, em geral reduzido a um saco de vísceras avariadas. Aproveitava, no entanto, da atmosfera excitante em que a morte era um acidente da natureza que tivesse a cumplicidade de todos. Para isso, um erotismo como um vínculo de sobrevivência, corria como um rio nos longos e espelhantes campos de dor e de humilhação. Com o pretexto de que ela própria estava doente, e fora no hospital que se infectara dum vírus que não era comum, Maria Rosa abandonou a sua missão caritativa. Fez por esquecer depressa os fenómenos que nunca quis averiguar. Bastava olhar para a rua, agitada pela travessia dos peões nas passadeiras, para sentir-se parte dum mundo absurdo, o mundo da morte.

Muitos anos depois, o estado de Elisa nas suas últimas horas em que se debatia e chamava toda a gente para participar na sua preparação para o desenlace, levava-a outra vez para o hospital. As jovens enfermeiras esperavam dela algumas prendas, como de facto ela lhes oferecia, em artigos de toilette e vestidos caros que não usava mais. Roupa interior que não se via nas montras e que, quase em sigilo, se tirava das gavetas, coberta de papel de seda. Só em desembrulhá-la, um arrepio de prazer subia até à nuca.

Nesse tempo, os ricos eram ainda tomados como uma tribo privilegiada que, por qualquer capricho da natureza, era destinada a uma vida gozosa e simples. Viajavam e, ao primeiro olhar, via-se que não se vestiam numa costureira de pátio que tem a saia juncada de linhas. Quando se obtinha um sorriso dessas raparigas ricas, um sorriso educado e quase tímido, isso representava uma festa que às vezes abria uma parada de ambições no coração das modestas aprendizas, estudantes, empregadas de balcão com namorados além da sua condição. As mais bonitas jovens da cidade eram empregadas de balcão na luvarias de luxo onde aprendiam a conhecer os artigos caros e uma clientela que os comprava sem perguntar o preço. E, no entanto, regatear um pouco era um hábito até dos mais abastados. Com essa ligeira escaramuça entre o custo e o valor real, não havia acerto de classes. Fingia-se, ao introduzir na operação da compra uma hesitação que honrava o pobre. Mas, Margô, a cunhada de Maria Rosa, não cumpria com essa praxe.

- Mande a casa, se faz favor. - E dava ainda uma volta nos tacões para levar com ela o esplendor das vitrinas, com as prateleiras de cristal onde se expunha o melhor da casa. Era uma jovem instruída e que lia muito. Isso servia-lhe para tomar um lugar na família de excepção, que a conduzia a uma casta superior e impossível de atingir pela escola do dinheiro. Ela nunca se havia de submeter à disciplina do dinheiro e, praticamente, podia dizer-se que desconhecia o seu valor. Fumava muito e o tabaco era a única coisa que ela pagava em metal sonante, como se dizia. Morreu ainda nova e deixou uma enormidade de tailleurs Chanel que causou espanto. Para muita gente, só nessa ocasião se soube que ela tinha dívidas de muitos anos e que se chamava Margarida. Todos a tratavam por Margô, até os criados, os filhos, a arara branca no seu poleiro dourado.

Elisa disse que Margô seria lembrada por não gostar de torradas só barradas dum lado. Margô não teve um lugar na Ronda, o que era muito extraordinário dado que ela e Maria Rosa tinham vivido a mesma juventude e disputado os mesmos homens, que não paravam de pôr defeitos a cada uma delas.

- Margô é linda que se farta. No colégio deram-lhe um quarto só para ela, para segurança de todas nós. Vestia-se de homem no Carnaval e ia para a rua namorar as raparigas. Tinha muito sucesso — dizia Maria Rosa. E o Nabasco retru­cou que ela não lhe agradava.

— A beleza não é erótica.

— Então o que é?

— É teológica.

Maria Rosa admirava aquele jeito que tinha o marido para «virar o bico ao prego». Para sair sempre bem das dificul­dades. Como podia ignorar a vontade de apertar Margô nos braços e beijá-la como se isso fosse um modo de vida? Ela tinha mais confiança em Margô. Em nome da antiga amizade e dos pequenos segredos em que se envolviam como se fos­sem caçadores de borboletas. Uns eram raros, outros eram vulgares e não mereciam entrar para a colecção. Margô era mais adiantada no sexo, em teoria sabia bastante; contudo não estaria disponível para conversas desabusadas. Era até severa na linguagem e não permitia insinuações mais atrevi­das. O motivo por que as pessoas se tornavam descaradas era porque não lidavam com o sexo senão num regime de igno­rância. Lá estava a pequena Saskia na Ronda da Noite, a des­lizar por entre a companhia do capitão Cocq, com o seu ves­tido de anjinho de procissão, e aquilo não tinha nada de provocador. Ninguém reparava nela, mas toda a gente recebia a viabilidade de pecado que ela continha, absurda e real, com a ave morta à cinta como um despojo de caça.

Às vezes, enquanto descia as escadas, Maria Rosa ia olhar para a Ronda e, apoiada à sua bengala, olhava para Saskia vendo nela parecenças com Margô. "Era destas mulheres em que não se apaga o pecado original", pensava. No fundo, são precisas cem vidas para ajuizar duma pessoa. A voz de Elisa ouvia-se a chamar por ela, e Maria Rosa deitava-se de bruços na cama e cobria a cabeça com a almofada.

 

                                         CAPÍTULO VII

 

                     TEORIA DO CÉU QUANDO NUBLADO

Ele herdou uma pitada de sal no sangue. E as unhas tam­bém tinham, de certeza, sal bastante, isso explica porque as roía desde pequeno. Embora perdesse um pouco dessa mania, ainda era visto à tarde, diante duma janela, a roer as unhas.

Quem? Martinho, evidentemente. Já não apresentava sinais de mutilação, com o branco do sabugo como a parte gorda dos chouriços feitos com a fêvera do cachaço do porco, os melhores. Mas ainda se via bem que ele gostava do paladar salgado da carne humana.

Tudo o que fizeram para o impedir de roer as unhas, foi em vão. Deitaram pimenta nos dedos; até caca de gato, que era nauseabunda, ou um pouco de óleo de ricínio, o mais eficaz. Ele parava, entre soluços tão profundos que pareciam vir directamente do coração. Depois, continuava. Elisa dizia que ele sentia a falta da mãe.

— Não me explicas porquê — disse Maria Rosa, saída do banho como Afrodite, só que perfumada de sabonete que devia cheirar a rosas mas não era verdade. Elisa sabia como a incomodar.

— Não digo nada, pronto. Mas eu penso que ele se agarra aos dedos como a dez tetas apojadas.

Martinho parava para se interrogar sobre a apojadura, que era o afluir do leite na fêmea quente e sadia. Havia crianças pobríssimas que mamavam nas cadelas, e isso não era de estranhar. Cresciam com um entendimento retardado e dizia-se, como Elisa dizia:

- Mamou numa cadela quando era pequeno.

Não era habitual mas acontecia. A mãe só chegava para a ceia, tinha a blusa molhada do leite que se soltava e punha a criança ao peito. Deitava-lhe por cima da cabeça um lenço de assoar e, na sombra, protegida, atenta aos ruídos da casa, a criança mamava. Ela, a mãe, sentada na soleira, ou numa cadeira baixa, a falar alto, a contar vidas. Se a voz era zangada, a criança chorava. Ela embalava-a, ajeitando na mama a cabeça do menino. Os morcegos começavam a voar baixo, pressentindo o gado que saía para beber.

Martinho nunca tinha fome. Movia a cabeça a dizer que não, se lhe chegavam à boca a colher da papa. Era preciso soltar a égua e a cria para que ele as visse aos pinotes e se esquecesse que comia. A Armanda, que tinha um génio destrambelhado e não sabia tratar de crianças, dizia que Martinho parecia doido, com aqueles olhos esbugalhados para melhor perceber se o estavam a enganar. Estavam a enganá-lo para o fazer comer, para lhe dar banho, para o fazer sair e apanhar ar.

- É um traste. Quando for grande há-de bater na mulher dele - dizia Armanda. Alta e delgada, parecia uma freira sem vocação. Criticava tudo e todos.

- Criticas tudo e todos. Assim não arranjas marido - disse Elisa, a bater os bolinhos de bacalhau e a prová-los com o dedo.

- Os homens não ligam ao que dizemos, mas ao que cheiramos.

- És uma porca.

- Sou assim.

Por fim encontrou marido e foi feliz com ele. Martinho lembrava-se que ela se ria do seu pequeno sexo com divertido riso e contava que via as mães beijar os filhos naquele lugar, doidas de ternura.

- Eu não era capaz.

- Sabes lá tu do que és capaz! Um filho é todo limpo como um diamante. Como Jesus nas palhinhas.

"Jesus nas palhinhas" era como se dizia, compassivamente. A pobreza romântica ajudara muito a divulgar a fé no redentor do mundo; a sua infância, ainda que doutoral e sábia, encontrava-se com aquela mulher fácil de contentar com a criança no berço, no seio, no colo. Armanda não era uma sentimental, era uma mãe irada, e cheia de amor. Decerto estava na Ronda, só que saíra a correr para virar no forno a carne assada e aparecer depois com os beiços húmidos de a ter provado. As cozinheiras nunca têm fome, ela dizia, a censurar Martinho.

- Parece um aprendiz de pasteleiro. Enjoou o doce para toda a vida.

Era inteligente, muito inteligente, o que fazia que a casa respirasse espírito e opinião, às carradas. Até ser já grande e ter dormido com raparigas, Martinho julgava que toda a gente era inteligente e que se podia falar de tudo, que todos entendiam. Quando percebeu que também havia pessoas estúpidas, foi como se lhe tirassem um pouco de cor à vida. Como se o céu não fosse só de um azul puro mas nublado e carrancudo.

Armanda ainda viveu na Casa do Cão e assistiu à morte de Filipe Nabasco. Ela mostrou o que valia nessa ocasião e não se deitou durante três dias. Mudava-o como uma criança e soprava-lhe o caldo antes de lho dar. Maria Rosa mandou que lhe dessem um pouco de terra para ela construir uma casa, o que foi feito e significou muito para que o casamento não tardasse. Martinho teve uma erupção de pele quando ela se foi embora e esteve a arroz cozido sem sal durante um ano inteiro. Só quando se esqueceu de Armanda é que melhorou. E, no entanto, Armanda nunca lhe dera mimos nem lhe chamava "coitadinho", que era o estribilho de Elisa.

Elisa morreu no Torreão Vermelho e pediu os Sacramentos antes de morrer. Tinha ouvido dizer que, depois da extrema-unção, os doentes chegavam a recobrar a saúde, e por isso exigiu ser ungida. Tinha uma ideia muito prática sobretudo e percebia que o querer é como a antecâmara da acção. Mas não teve resultado a sua estratégia, e Elisa morreu, deixando a Paula a sua gargantilha de ouro e dois anéis entrançados. Paula ficou muito sentida quando a mãe lhe disse que Elisa já não fazia nada neste mundo e que o quarto dela estava uma lástima. Ela tinha caixas com farrapos debaixo da cama que destinava a tecer mantas e tapetes. Já não há tecedeiras, ela vivia na Lua.

- A mãe é muito crua - disse Paula.

- Não respondo a isso. Traz-me antes um refresco de limão.

Todos eram um pouco seus criados ou uma espécie de papel higiénico: servia-se e deitava-o fora. O mundo era complacente, cheio de regras auxiliares do sofrimento e das carências humanas. Mas tudo isso era fingimento e egoísmo pintado de cal branca. Sepulcros caiados com cal. Quando se percebia isso, a alma endurecia como uma bexiga ao fumo da lareira. - E no tempo em que vinha a casa uma mulher fazer a marmelada? Chamava-se Marquinhas e tinha as mãos duras de tanto serem escaldadas com os marmelos cozidos.

- Que diz, minha mãe?

- Era uma coisa que não entendes.

Um dos cadetes entrou no quarto e Maria Rosa não o reconheceu. Mas evitou que isso se percebesse.

Quando se restabeleceu o bom viver entre Martinho e a mulher dele, já não tinham condições de intimidade e de confiança. Era como o tal caldo verde aquecido, perdia a frescura e o sabor natural. Tiveram uma conversa juntos e saíram dela como pessoas que tinham cometido um crime que haviam de lembrar toda a vida e que esfriava as suas relações. Mesmo entre os criminosos há uma aliança que se quebra se escapam à justiça. Separam-se para o resto dos seus dias, porque a impunidade não é recompensa. O laço que se faz num acto culpado desata-se quando o perigo desaparece. Há uma espécie de vergonha no êxito da culpa.

Martinho sabia que Judite resistira à culpa com todas as suas forças. Mas não era inocente porque percorrera o caminho do desejo e perdera a inocência do coração, ou da alma, se quiserem. Isto era o suficiente para funcionar como infidelidade. Mais ainda: a culpa pode unir, mas aquele que é incorruptível cria um obstáculo ao amor. O amor precisa de perdão, e, perante Judite, o marido dela não tinha nada a perdoar. A perfeição não é erótica, assim como a beleza. Ele talvez tivesse preferido que Judite corresse para os braços dum amante e voltasse, arrependida ou não, mas pronta a ser humilhada por ele porque a perdoava. Entre eles havia de estar sempre a decepção de não a poder desprezar. O desprezo é uma brasa sob a paixão ferida.

Maria Rosa tinha um afilhado que era "da Guarda", como ele dizia. Um belo homem, educado no cumprimento dos seus deveres e que casou por amor. Um dia a mulher enganou-o e ele mandou-a embora. Passado tempo, Maria Rosa soube que ele tinha recebido a mulher outra vez, e aquilo desgostou-a.

Mandou chamar o afilhado e perguntou-lhe porque a tinha perdoado.

- Assim como assim, eu tenho que ter uma mulher e ela está arrependida - disse o homem, que ela achou bem tratado e até feliz.

- Uma mulher arrependida não te envergonha?

- Nem por isso. Maria Madalena também se arrependeu e Cristo perdoou-lhe os pecados.

- Tu não és Cristo nem para lá caminhas. Que dizem os teus camaradas?

- Não dizem nada.

- Isso é mau sinal. Era melhor que se rissem de ti.

- Não querem sarilhos. Já não se vive como dantes a beber na taberna e a puxar o canivete do bolso das calças. Pensa-se na reforma e não na honra, se a madrinha quer saber.

- Quero saber e não quero. Gostas assim tanto da tua mulher?

- É a mãe dos meus filhos e eles precisam dela. Eu também preciso dela. Uma cama vazia é como a barriga vazia, resmunga sempre. Peço desculpa à madrinha.

- Está bem, mas não voltes cá. Se precisares de alguma coisa, escreve.

Elisa foi acompanhar o afilhado à porta e disse, quando voltou, que ele era um desgraçado, um bodas, mas que a mulher o trazia limpo e bem arranjado. Sempre era uma atenuante. Mas não impedia que fosse uma vergonha tudo aquilo.

- Eu sou à antiga e não entendo estas modernices - disse. Mas interessava-se muito mais pelo assado que estava no forno do que pela honra do afilhado que, no fim de contas tinha amigas por toda a parte e até filhos incógnitos ou lá como se chamam. Por acaso, Elisa era uma grande forneira e nos trinta anos que tinha de casa raramente deixara queimar a carne. Mesmo quando se zangava, tinha o brio do ofício e esquecia tudo para cumprir com as suas funções.

- E a Elisa? - perguntavam a Maria Rosa.

- Ah! Já vai fazendo uma caminha assada.

Ela caminhava para as bodas de prata ao serviço.

Conversas dessas tinham perdido o sentido, e o adultério igualmente. E até nas aulas de História se prestava pouca atenção aos amores de Leonor Teles. Seria mais interessante provar que ela usava calcinhas e contraceptivos. Um dia em que se soube que as damas romanas utilizavam como preservativos bexigas de peixe, ninguém pestanejou na sala, nem ninguém se riu. Eram formidáveis, os romanos, foi a ideia que ficou, pondo-se de parte o império e o assassinato de César, o homem de todas as mulheres e a mulher de todos os homens.

Os grandes acontecimentos pareciam distantes e irreais quando comparados com o joelho esmurrado do nosso filho. Que alarido se fez quando Martinho era pequeno e partiu um braço, sendo, por isso, mobilizada uma ambulância munida de sirene e enfermeiro e equipamento de emergência! Martinho olhava para tudo entre surpreendido e maravilhado; o facto de ser o centro de tudo aquilo, enchia-o de orgulho. Podia sofrer mais ainda para que se repetisse aquele momento em que ele dominava toda a gente com a simples queda de um muro. Fora ele que resvalara ou caiu de propósito, percebendo de repente o efeito do desastre? Depois disso, nunca ficou completamente curado dessa tendência para a catástrofe. Não chorava, mostrava-se dócil a qualquer tratamento, grato a uma dor que o tornava soberano.

Foi assim que compreendeu uma coisa: que, muitas vezes, as crianças que são continuamente disputadas pela família em crise, começam a desafiar um tratamento que as põe em risco. São maltratadas, ameaçadas, até que se estabelece entre elas e o carrasco (que pode ser um pai apanhado no torvelinho das más paixões, sendo uma delas a do poder contestado) um elo de exultação que corresponde a um vício. Perceber isto punha em causa o horror da relações entre pessoas que se amam mas não resistem a uma violência partilhada.

A Ronda da Noite mais uma vez mudou de lugar. Martinho estava cansado de a ver de tão perto ao entrar em casa, sendo recebido pela companhia do capitão Cocq como se fosse esperado. Esperado para ser integrado na Ronda em que lhe seria dado um lugar. Que lugar lhe seria dado? Era uma arma, um tambor, um estandarte, que lhe seriam destinados? Martinho começou a desviar os olhos e a não querer receber em cheio a ordem do capitão Cocq; depois, ostensivamente, desobedecia-lhe e ladeava o caminho sem levantar os olhos. E disse:

- Não me parece que ali seja o lugar para um quadro daqueles. Já esteve num celeiro, já esteve deitado no chão, coberto com palha e os ratos entraram para dentro da tela por detrás dele. Havia caganitas de ratos misturados com a linhagem e eu penso que ela protegeu uma segunda ou primeira tela. Pode dar-se o caso de A Ronda da Noite esconder outra pintura.

- Toda a gente gosta de ter um mistério a seu cargo - disse o doutor Assis, que tratava Martinho como se tratam as pessoas que se conhecem há muito: como um doido que não oferece perigo. - Porque não mandas desmantelar o quadro? Porque sabes que ele não vale nada e acabava tudo sem glória. Assim, ainda o vais interrogando, não é? Nós não queremos respostas, pelo menos, respostas de surpresa.

O cadete Bernardo não percebia do que se falava no Torreão Vermelho e achava os Nabasco pretensiosos com o seu conceito do infinito e da existência de Deus. Raramente ia ver a avó, que lhe parecia uma inimiga. Levava-lhe amêndoas torradas pela Páscoa, porque ouvia dizer que ela as apreciava muito quando era nova. Maria Rosa quase as atirava à cabeça dele, mas dominava-se porque a sinceridade para a família é uma coisa que não cai bem. Pode parecer uma coisa maquinal, o que é pior do que tudo: como quem anda de bicicleta ou se atira para dentro duma piscina.

O elogio da família estava outra vez a ser adoptado pelo novo feudalismo. Um povo baseado no sangue é pelo sangue que se define e se continua no tempo. Assim era que Martinho se estava a defender do seu apocalipse, pondo em risco tudo o que foi a sua fonte de comunicação, o desejo de permanência. Permanência e não eternidade.

Agora tratava-se de eternidade; os laços da família desatavam-se porque o amor universal estava acima desse vínculo carnal. Abrira-se um abismo debaixo dos pés de pais e filhos, que foi denunciado por Freud e a sua escola. Fechar esse abismo correspondia a criar um novo homem na terra.

As visitas de Bernardo eram primeiro difíceis; depois passaram a ser incómodas. Ele estava empenhado no poder, todas as batalhas lhe serviam para se afirmar, ganhar terreno, acumular forças. Nos momentos em que via Martinho caído num estranho alheamento, parecia-lhe que de alguma maneira o tinha vencido.

Havia um quarto no Torreão Vermelho que Maria Rosa destinou para os hóspedes. Era um quarto de dimensões regulares e que tinha vista sobre a cidade. Uma cidade de Inverno, só faltava ver cair a neve sobre os telhados e o silêncio estender-se até ao mar que, de resto, só se podia localizar pelo pôr-do-sol. Um clarão duma chama, que durava, ao que parecia, muito tempo e que, de repente, se extinguia. Bernardo escondia-se atrás da cortina da janela, quando o sol desaparecia.

- Nunca vemos isto como um sinal - disse Martinho. O irmão olhou para ele sem entender. Como era novo e parecido com a mãe! Via-se que em breve ia mudar muito e só ficava o nariz como um bico de ave que fazia lembrar um aristocrata escapado à guilhotina. E se ele fosse alguém desse género? O problema da reencarnação ainda não fora esgotado. Martinho gostava de o pôr à prova e perguntava-lhe à queima-roupa, como se disparasse um tiro:

- Não me disseste, há pouco tempo, que a política é a arte de dominar os acontecimentos?

- Eu não disse isso nunca.

- E "o interesse é a finalidade da política, e a intriga a sua arma"?

- Não fui eu, palavra. És um homem que me dá calafrios. Eu não sou um político. Sou um manifestante, como agora se diz.

Martinho riu-se. Não era Beaumarchais, então, o seu querido irmão. Mas porque usava um colarinho tão alto senão para esconder a cicatriz do cutelo? Isto era um jogo que o divertia muito. Talvez simplesmente se tratava de liquidar os seus ciúmes dos novos amores de Paula e da sua nova família. Nunca se habituara ao casamento da mãe com uma pessoa tão marcial e à qual não lhe apetecia dizer nada. De que podia falar? A guerra das Gálias, a batalha de Aljubarrota?

Olhou pela janela a cidade e pensou que só quando a deixava a amava. Como certas pessoas que só quando morrem são compatíveis connosco. Reparava, mesmo sem olhar para ele, que Bernardo (o apelido dele fugia-lhe) tinha qualquer coisa de instantâneo. Passados os anos da juventude, ele desaparecia, como o sol na linha do horizonte. A avó dizia que desejaria ter na família alguém comprometido com o destino do país. Não seria Martinho, que se limitava a reconstruir os solares da casa, como ele dizia. E muito menos Bernardo, que fazia da política uma profissão com direito à reforma e tudo o mais. Quando recebiam, e ainda Filipe Nabasco era vivo, este divertia-se a perguntar aos convivas mais idosos:

- Então está na retrete, meu amigo?

Jogava com a palavra retraite, e isso parecia o cúmulo do espírito, não reparando que todos estavam fartos dessa anedota. Mas Bernardo era o eixo dessa anedota. Vestido de azul, com gravata da mais pura actualidade, em geral uma gravata grandiosa que lhe chegava até ao umbigo. Jogava golfe aos domingos de manhã (acho que já o disse), mas depois ficou embaraçado com o tipo de parceiros que teve que suportar, matarroanos que, para bem de todos, a capital não assimilava. Felizmente Paula casou na cidade e teve direito à consideração da porteira. Maria Rosa dizia que Paula era dessas mulheres com mau génio que julgam, por isso, ter carácter. A última grande senhora da família era ela; e não podia falar em família porque eram burgueses com dinheiro, o que é diferente de serem aristocratas com memória demais.

Só em raros momentos percebia que amava a filha mais do que a Martinho. Era uma voz que vinha do mais profundo do ser, uma voz com lágrimas que se estrangulavam na garganta. E também Paula se voltava para a parede, para que a mãe não visse como estava emocionada. E tudo isto, sem motivo aparente. Acontecia com as mulheres com passado. Iam ao cinema e choravam. Não choravam se morria alguém, se vestiam um defunto, se recordavam uma peripécia solene. Mas, no cinema, desfaziam-se em lágrimas. Martinho achava aquilo um bocado indecente, uma falta de sentido das prioridades. Primeiro estavam as crianças de África, desnutridas e sem assistência alguma. Mas talvez tivesse que ver com um último rasto do que é humano e que não desapareceu com os sistemas de informação e de economia. "Valha-a Deus, a senhora chora, e eu com que cara fico?"

Ele tinha quinze anos, era muito difícil compadecer-se enquanto os outros estavam a olhar.

Bento Webster Soares, fanático da colónia britânica a ponto de modelar o nome com um título inglês, esteve sempre presente, tanto quanto Martinho se lembrava. Tinha um rosto bem barbeado, e uma certa corpulência, que disfarçava com os coletes um pouco frouxos, dava-lhe a elegância da maturidade. Gostava de mulheres, não desprezando os avanços de alcova bem mais experientes do que os seus líricos alexandrinos. Maria Rosa não o levava a sério, mas ele tornara-se um desses acompanhantes cuja sensualidade encoberta tem direitos para além dos juízos de conveniência. Era o homem que se chamava quando havia treze à mesa ou quando era preciso conduzir a casa uma senhora velha e evitar que ela caísse no passeio. Bento Webster era impecável em abrir um guarda-chuva, mantendo-se um pouco atrás da mulher que protegia e parecendo completamente indiferente quanto ao dilúvio que o encharcava. Era um conviva insuportável quando recitava a sua poesia, mas um prodigioso cavalheiro à mesa que não falava enquanto comia a sopa, atento ao serviço tanto quanto aos vizinhos do lado. Repartia a conversa com habilidade e graça. Maria Rosa chamava-lhe o diplomata do guardanapo.

Martinho, que não tinha as qualidades de Bento Webster e pensava que os homens à inglesa não gostam de crianças, foi crescendo tendo aquele espelho de virtudes de salão diante dos olhos. Devia-lhe o "saber estar", que copiava sem dar por isso. Todavia, as pessoas como Bento Webster caíram em desuso e já não tinham cotação na democracia que se instalou como novo evangelho laico. Webster morreu já quando a Ronda encontrara lugar certo no Torreão Vermelho, cujo nome ele nunca aprovaria. Morreu com mais idade do que a que confessava e dizia-se que não saía do país para não ter que mostrar o passaporte. Martinho, com as poucas lembranças que tinha dele, achava-o parecido com o doutor Watson, o indefectível amigo de Sherlock Holmes. Era, no entanto, muito diferente, porque não tinha espírito dedutivo. Maria Rosa disse que o maior agradecimento que lhe devia era o de o ter esquecido facilmente. Era um cinismo de circunstância, porque as mulheres nunca esquecem os homens que as amaram, ajudando-as a superar a má opinião que têm delas próprias.

Porque o que mais prejudica as mulheres não é o serem maltratadas, mas facilitarem todas as injúrias desde que não sejam ignoradas pelo desejo dos homens. Martinho achava que Bento Webster não tinha lugar na Ronda da Noite porque não esperava a ordem do capitão Cocq nem admitia qualquer preparativo evidente demais. Para ele as regras estavam estabelecidas e os lugares previstos. Um porta-bandeira não se podia dar ares de chefe de claque, nem o tenente se podia vestir melhor do que o seu superior hierárquico. Não parecia bem, e o parecer bem estava acima dos dez mandamentos. Os dez mandamentos ele infringia-os a todos. Primeiro amava o pai e a mãe e as filhas mais do que a Deus. A sua profissão, numa casa de vinhos, os seus punhos de rubis, a sua pequena propriedade nos limites da cidade e a que ele chamava O Conventinho, também estavam acima das suas cogitações metafísicas. Algumas das suas mais excitantes conquistas começavam com um olhar à hora da missa, ao fim da manhã. Cobiçar a mulher do próximo era um dos seus melhores passatempos, além do seu whisky de malte. No seu estilo, era muito completo e sem deslizes de procedimento.

A família real inglesa merecia-lhe uma veneração sem qualquer conflito filosófico. Não se falava dela senão com respeitosa sinceridade, como quando os amores da princesa Margarida foram publicamente devassados. Webster atribuiu-os ao "terrível sangue dos Tudor" e ficou por aí. Achava Churchill um grosseirão, um alcoólico como constava dos arquivos diplomáticos e não queria ter de cumprimentá-lo alguma vez.

- Não acho bem - disse Maria Rosa. Eu só não quero cumprimentar quem sua das mãos ou parece que nos oferece um trapo para limpar o pára-brisas.

Martinho ficava encantado quando ela falava assim. Era uma vida calma e espirituosa, entre camélias, que as havia de todos os feitios no jardim da Casa do Cão e que tiveram de abandonar. Ainda quando passava lá e via a grande palmeira acima do portão, Martinho tinha pena. Os jantares em Agosto, fora de casa, e o avô a abrir o champanhe como quem espera ser ferido de morte; Elisa à entrada, com ar de divertida censura porque para ela o jardim não servia senão para comer fruta de caroço e livrar-se dos gatos e das crianças; e, mais ainda, o parque que tinha ao fundo um campo de ténis que nunca serviu a não ser para plantações de hortaliças nobres, como couves de Bruxelas e alfaces-manteiga. Martinho viveu lá vinte anos e o Torreão Vermelho, ao princípio, não lhe agradou nada. Achava-o uma criação da cabeça dum cutileiro, com cinco casas de banho, uma delas forrada com alcatifa de cima a baixo. Provavelmente ia para lá deitar-se com a mulher ou assim.

- Lamentável! - disse Martinho - Há coisas que não se fazem na retrete, ao contrário doutras, como a má poesia.

Quem dizia isso era um poeta de quem Martinho gostava muito e que era afogado em horríveis versos, que lhe mandavam muitos admiradores. "Essas coisas fazem-se na retrete", era o estribilho dele. Era um homem seco e cheio de malvadez, mas grande na criação. Martinho teve o cuidado de nunca o receber quando Webster lá estava, no Torreão Vermelho. A sua maneira, o seu amigo, de nome Benjamim, era um snobe, o que Webster não era de todo. Este seria um convencido, mas pertencia ao seu meio, sem pretender nenhum outro, nem mesmo o da família real inglesa, em terceiro grau que fosse.

- Conheço o meu lugar... - dizia Webster, com gravidade modesta. Para Benjamim ele não passaria dum lacaio, mas não era verdade. O lacaio presume de servir e o gentle-man de servir bem. Divagações a que Bento Webster se entregava até que morreu, já com muita idade mas ainda com gosto no vestir e com olho aceso para as raparigas bonitas.

Esse tipo urbano desapareceu. Andava a pé na cidade, que tinha pouco trânsito, tanto no Porto como em Lisboa. Alguém como Webster, em Lisboa não usava sobretudo nem chapéu-de-chuva e não tinha automóvel próprio. Andava de táxi ou no carro da "Companhia" ou do Ministério, e jantava nos cocktails e depois ia à ópera. Costumes que se tentam repor mas que nunca mais voltaram. O homem elegante, que as revistas de moda tentam reanimar, perdeu o sentido do bom gosto, não leva o sacrifício ao ponto de comer os palitos no avião quando janta ao lado dum grande da finança que já mastigou um ou dois. Não é genuíno, é um imitador. Cheira o vinho antes de o beber, elogia um vestido decotado demais ou uma jóia que pode ser falsa, anda a cavalo para se mostrar bem equipado, diz mal das mulheres sem ser um entendido em Sodoma e Gomorra; e, sobretudo, o falso esteta, o falso homem do mundo, julga que a política lhe convém, quando a política, se tem cabimento para Freud, não tem interesse para um homem verdadeiramente moral, que é o que não faz da moralidade uma regra de prudência. A moral é uma virtude, não uma conduta.

O poeta Benjamim sobreviveu a Webster sem nunca o ter encontrado. Mas conhecia os seus versos que chegaram a ser adaptados ao fado. Tinha o ressentimento quanto à intimidade de Webster na casa dos Nabasco, do Torreão Vermelho que achava ser um lugar à parte na cidade, um lugar onde se podia ser aristocrata e democrata ao mesmo tempo.

Com a passagem dos anos, dipersaram-se os amigos, a boa companhia tornou-se em sexo explícito e, não sendo este, uma distracção permanente sobre o amor e o proveito dele. Sobre a cultura e o seu carácter como poder.

Judite não aparecia nesses colóquios. Não que o marido não lhe desse importância, mas era ela que os achava perversos por não serem concisos, defeito que era agora mais do homem do que da mulher. Recém-saída da sua paixão, ela estava entregue a uma felicidade de que não percebia as regras ou que não as tinha. Tudo era para ela motivo de festa e despreocupação. Como alguém que escapa dum azar violento, como o de ser esmagada pelo telhado que desaba, ela ficou reduzida a uma espécie de oração sem desejos: um estado de calma absoluta e de gratidão. Martinho amava-a agora mais, mas a distância que se criara impedia que a sua ligação se mantivesse. Porque se criara essa distância? Porque Judite sofrera e amara alguém sem ter dele necessidade, sem lhe dever nada, e muito menos ciúme, auxílio e confiança nas suas emoções. Martinho disse uma vez a Maria Rosa:

- O que a fez casar-me com ela?

- Ela era uma cadastrada.

- Isso é bom? - Fez uma pausa e disse, com uma sombra de indignação: - Cadastrada?!

- Onde houver um crime toda a família é cadastrada. Eu sempre imaginei Judite a carregar a culpa do pai, e isso tornava-a numa pessoa especial, mais homem do que mulher. O homem procura uma culpa para se elevar acima dela. Eu pensei que boa esposa ela seria se arrastasse a culpa com ela. Mais fiel, mais amante. Para dizer tudo, eu acho que ela foi quem matou a Estrelinha.

- A mãe! Que delírio é esse? Uma criança de doze anos!

- Funcionou como um rito de passagem. Outra coisa: ela gosta perdidamente do pai. O crime foi como sacrifício de adoração. O que mais se ama para quem se adora. Não era assim com os povos antigos? E ainda é. Não estamos tão longe da pré-história.

- Coisas pesadas como chumbo. Pode ser que tenhas razão. As mulheres têm mais razão do que nós.

- Somos mais antigas. Vocês nasceram muito depois de nós.

- É possível.

Ele levantou-se e deu uns passos no quarto. As tábuas do soalho gemiam e ele lembrou-se do hotel de Aosta que tinha o mesmo rangido, o que os divertia a ele e a Judite, porque eram novos e se amavam. Andavam sempre perdidos um do outro, perdidos entre os corredores e os ascensores que subiam e desciam desencontrados. Na sala de jogo era impossível reconhecerem-se, uma nuvem de fumo pairava como um denso nevoeiro. Coisa tão estranha, parecia inventada para criar uma atmosfera de paixão e obscuridade! Não se viam as caras dos jogadores, afogados numa luz parda, com os focos de luz sobre as mesas. Assim, ninguém se distraía com o parceiro; e as mulheres de seios murchos com as jóias faiscantes, não tinham rostos mas só a mancha da pele. Como o vampiro de Murnau. Ele disse isso a Judite, de noite, já estavam deitados, e um arrepio que simulava o medo fez com que ela se abandonasse como para pedir-lhe protecção. O medo era então um bom condutor erótico. Ele repeliu-a, mas vendo a incredulidade nos olhos dela, os olhos extraordinários que ela tinha, voltou a recebê-la nos braços.

Nem sempre as coisas corriam tão bem. Aos cinco anos de casados separaram os quartos e o dele ficou um pouco ao abandono, com livros e roupas por cima dos móveis e chaves e botões de punho, alfinetes das camisas novas, velhas contas, bilhetes de cinema, tudo acumulado; sem falar nos remédios para a tosse, variadas pastilhas e coisas mais sérias, como os antibióticos fora de prazo, e as vitaminas, os estimulantes, os antipiréticos, encastelados como numa farmácia, de mistura com caixas de sabonetes vazias e cremes para as mãos já secos. Quando Judite ia aos solares do Nordeste encontrava vestígios da mesma desordem preocupada, ultimamente anti-depressivos que ele não levava para casa. Nunca se despia inteiramente diante dela e também não gostava de a ver nua com medo de encontrar-lhe defeitos que lhe repugnassem. Era um tique da época: a beleza perfeita impunha-se para auxiliar o desejo, quando uma certa irregularidade era mais conflituosa e mais condutora de prazer. Martinho interrogava-se: será que o sexo não é normal e que há milhões de anos o praticamos como um ofício? Estava a divagar, era disso que ele gostava; ir contra todas as leis, descobrir caminhos, derrubar muros e vedações. E Judite? Não se preocupava com ela, não há nenhuma mulher com que um homem se preocupe.

- Não sei o que querem de nós. Francamente, não sei - disse.

- Provavelmente nada de especial. Somos assim. - A avó compôs os cobertores sobre os joelhos, não parecia afectada pelo que ele dizia. Era uma causa perdida aquilo de andarem sempre a cismar nas dívidas que tinham uns com os outros, nas queixas, nas invejas. E se tudo fosse um tremendo logro e o amor não existisse? Nem fizesse falta? - Imagina tu, meu menino, que o amor é um falso aditivo. Inventou-se para nos prevenir e afinal dá-nos cabo da vida. Eu acho tudo ridículo.

- A avó é velha.

- Achamos tudo ridículo, tanto velhas como novas. Manda-me cá acima o meu chá, que já passa da hora.

- Eu trago-lhe o chá.

- Não temos ninguém para isso?

- Às seis horas já não temos ninguém. É assim. Quem faz o jantar sou eu. Ontem foi Judite, hoje sou eu.

- Já percebi, mas vivi em melhores tempos. Tinha três criadas de dentro e uma lavadeira. E costureira em casa para remendar e fazer os aventais, trocar os punhos e os colarinhos. Poupava-se mais, um carro durava uma vida, o açúcar era luxo, bananas não havia.

Judite metia-se na conversa para dizer que estava melhor assim, com máquinas por todos os lados e lenços de papel. Tinha mais tempo livre, ia ao cinema quando queria, a oferta era muito variada: ballet, concertos, conferências. Ela não se sentia só nem envergonhada por saber pouco. Lia os mesmos livros que os homens e falava das mesmas questões. O seu vocabulário também se ampliara e as palavras proibidas podiam ser ditas em voz alta, em qualquer lugar. Ainda que ela as ouvisse da boca de Estrelinha Sopa-de-Massa a toda a hora. Quando estava verdadeiramente zangada ou se ela sofria, apenas dizia "Jesus, Jesus" e torcia os braços como se fossem uma rodilha.

- Que mania é essa de torcer os braços? - disse Martinho. O doutor Assis pensava que era simbólico, como o beijo, como muitos outros gestos. Talvez existisse antes da voz humana. Bento Webster não se metia no assunto. Bastava-lhe a poesia como armadilha para mulheres, e o resto não era com ele.

O Torreão Vermelho estava mais silencioso e parecia servir sobretudo para guardar a Ronda da Noite em boas condições. Todas as vezes em que se pensava vender o Torreão lá estava o eterno obstáculo: onde iam meter a Ronda? Oferecê-la ao governo ainda parecia a melhor hipótese, mas Maria Rosa, ainda dependente da velha economia, "guardar até que o preço suba", recusava essa ideia. Também se ventilou o caso que fazer chegar a Ronda da Noite a leilão, inventando-lhe uma história como a que se fez para Perseu e o Dragão. Não sei se sabem que Perseu e o Dragão, de Metsys, ele próprio, estava numa gaveta, há muito tempo, num palácio rural. Tinha sido oferecido por Catarina da Rússia a um embaixador de Portugal que o trouxe, dentro duma almofada de crina e o deixou num malão; até que alguém o descobriu e o mandou avaliar.

Para ser incluído num leilão, o quadro teve que ser acompanhado por um currículo que lhe garantisse autenticidade. Mas a Ronda, não possuía qualquer prova de origem. Tudo quanto tinha era uma tela esfiapada que se podia dizer ser o forro da tela pintada. Esse sim, pôde ser datado e coincidia com a época de Rembrandt. De repente, tudo ficou suspenso e não se falou mais da Ronda, nem dos seus predicados estéticos ou monetários. Era um aforro que podia ficar esquecido durante uma ou mais gerações e que havia de acordar como a Bela Adormecida para fazer feliz o seu príncipe, aquele a quem "o beijo do dinheiro" dizia alguma coisa.

Os Nabasco não viviam na penúria porque tinham uma experiência da economia bastante vasta. Por exemplo: Filipe Nabasco foi criado no respeito da pequena poupança. Se deixava cair ao chão o seu pão com manteiga, beijava-o e continuava a dar-lhe vigorosas dentadas. Também sabia que as suas calças, ao ficarem demasiado curtas (demasiado e não um pouco curtas), iam servir para o irmão "chegante" que era, como diziam, o mais novo. À segunda-feira comia-se bacalhau cozido e uma sobremesa pobre, de fritos de farinha com açúcar e canela. A sopa era obrigatória, ainda que sempre mal encarada. Na mesa havia um certo estilo de asilo; não se usava toalha quando as crianças eram pequenas demais para serem servidas à mesa dos adultos. Andavam frequentemente descalças quer fizesse frio ou fizesse calor. O luxo dos Nabasco estava na educação e ficou como referência um mestre que tinha a regra do doutor Johnson como referência principal: "Toda a frase que se achar bela deve ser suprimida". Isto tanto quanto ao escritor, como à conversa e o gosto da indumentária. As flanelas cinzentas eram preferidas, a linguagem sóbria e sem muitos adjectivos era aconselhada. O doutor Johnson estava em toda a parte. Na família, no paladar, no sexo e até na religião. Comungava-se pouco, uma vez por mês, às primeiras sextas-feiras. Não se jejuava, fazia-se dieta. Gastava-se mais com os necessitados do que com diversões. Essa educação destinada a fazer perda de apetite ao diabo, conservou-se até que D. Pedro subiu ao poder e a região duriense recebeu novo vigor, dado que algumas casas de lavoura tinham feito empréstimos para pagar o pré dos soldados. As coisas mudaram, com os lucros e com uma imitação que era subserviência, os costumes tornaram-se mais boçais deixando aos padres as letras, e muitas vezes a política. Os tutores e mestres de música deram lugar ao fidalgo absentista que dormia com a escopeta à cabeceira em vez das obras de Tucídides. Nesse tempo, os Nabasco com fortes laços brasileiros e alguma gota de sangue mulato, foram para Lisboa, deixando as terras aos parentes pobres, como se de colónia se tratasse.

Maria Rosa, sem grandes ocupações a não ser a de mãe de família e entrada na idade do desemprego conjugal, fez questão de recuperar os antigos hábitos dos Nabasco. Não eram hábitos, eram preceitos de afirmação. A cultura era uma ideia moral objectiva que só por breves eclipses desaparecia nas famílias.

Quando Paula se casou de novo, Maria Rosa, a troco duma doação quantiosa, guardou consigo o pequeno Martinho. Com ele veio a Ronda da Noite e o capitão Cocq prestes a dar a sua ordem de marcha. Ainda que os primeiros ensinamentos os recebesse em casa com mestres que excediam as matérias de estudo, depois a educação de Martinho fez-se em Inglaterra e em Viena, com os jesuítas. O que seria de esperar seria que fizesse um casamento que lhe acrescentasse as vantagens adquiridas; uma mulher bela e de nome ilustre fazia-o mais presente na sociedade do que se ele fosse só e carregado de atributos. A mulher dá à vida dum homem a flexibilidade que ele precisa para vencer nos negócios e na carreira.

Não era de esperar que Maria Rosa lhe destinasse Judite, quase uma criada e de espírito vazio. Ninguém pensava que ela fosse inteligente. Mas não havia provas em contrário também. Até, algumas vezes, Judite calhava ter opiniões muito determinadas que surpreendiam o marido e que, por mais que ele quisesse rebater, não encontrava nada de melhor. Desconfiava de que Judite o andava a enganar, não com outro homem, mas com as suas próprias capacidades. Ela passara ao lado da cultura sem mostrar interesse por aumentar os seus conhecimentos. Tinha uma vida confortável mas sem ambições e não se afeiçoava seriamente a ninguém. Algum gato sem raça, a quem ela falava com voz amistosa mas sem ser demasiado calorosa, consistia na sua companhia mais privada. Mas se ele morria, não se mostrava sentida demais, só lhe reservava um canto do jardim para sepultura e passava por lá, como por acaso, para dizer algumas palavras meigas.

Sabia que Martinho prezava muito a sua área de valores que não queria frequentada pela mulher. Se ela mostrava estar ao par das suas leituras, Martinho deixava de lhe falar durante dois dias. Não suportava que houvesse igualdade de saber e de meios entre ele e Judite. Ela fazia-se insignificante e débil mental, como ela dizia para si própria.

Nada disto escapava a Maria Rosa.

- Tenho confiança nela. Mas a Elisa dizia que uma mulher como Judite sabe que há prazeres sem esperança.

- Ela dizia isso? - O doutor Assis ficava varado de surpresa quando ouvia coisas assim. Como homem, o que sentia era descontentamento, a conversa com mulheres tinha limites e as mais ignorantes podem surpreender. - Não disse felicidade sem esperança?

- Não. Disse prazeres sem esperança.

- Bom. Já é tarde para lhe perguntar a ela. Não era pessoa da minha simpatia.

Ficou a cismar um bocado, não em Elisa mas noutra coisa. Fazia-se velho e, instantaneamente, esquecia-se do que estava a falar. Já não sabia receitar coisas novas e também não acreditava na medicina. Era muito impopular entre os empregados da casa dele e do Torreão, que se resumiam a um jardineiro e uma mulher da cozinha e outra para o ferro, todos externos. O vulto magro e curvado do doutor Assis, que nunca dava gratificações nem os cumprimentava, incomodava-os. Achavam que teria sido amante de Maria Rosa, e isto servia para os autorizar a desprezá-lo. Quanto a Bento Webster, era diferente. Engraçado, com o porte direito e uma cinta debaixo do colete, divertia-os. Serviam-no de bom grado e iam acompanhá-lo à paragem do autocarro, com o guarda-chuva aberto, se chovia. Ele dava-lhes dinheiro, que tirava do bolso do casaco. Dinheiro em notas e não simples moedas.

- Assim vão roubá-lo. O dinheiro traz-se na carteira ou no porta-moedas.

- Aí é que mo roubavam.

Bento Webster deixou uma memória de homem galante e fácil de conviver. Desculpavam-lhe os ridículos e parecia-lhes que era bom que pessoas como ele não tivessem desaparecido de todo. Quando tudo, doutra época, desaparece, as paixões que deram vida a toda uma geração esfumam-se deixando um rasto débil de melancolia. O doutor Assis tinha uns ditos inesperados:

- Que ganhamos com o monoteísmo? Eu tinha um deus para o coração e outro para o fígado; e ainda muitos mais para as infecções, os vírus e as febres desconhecidas. Um só Deus não pode dar conta de tudo.

- Você é um "mágico" - disse Maria Rosa. Mágico queria significar um original; ter uma pancada e assim por aí fora. O "mágico" tornara-se quase suspeito, correspondia à teoria do céu quando nublado. Não deixava ver as estrelas, confundia a linha do horizonte, provocava um fenómeno de desenraizamento que é, como dizem, o mal do século.

Não sei se se lembram do capitão Hatteras, de Júlio Verne; um explorador do Ártico que enlouqueceu durante a sua viagem ao Pólo Norte. No meio da sua desordem mental caminhava sempre num sentido, dando que pensar aos seus médicos e enfermeiros. Por fim, descobriram que ele caminhava na direcção do Norte. Fora esse o plano da sua vida; mesmo quando integrou a teoria do céu quando nublado e o desastre mental se verificou, ele manteve-se fiel ao ideal profundo. Nunca se reconheceu o malogrado capitão Hatteras, como um desenraizado.

Pensando Martinho no que fora para ele o prazer no período de educação, muito duro enquanto o avô Nabasco viveu, encontrou o seguinte: enquanto esteve na Suíça foi assaltado por uma febre tifóide que o prostou na cama, chegando a recear-se pela sua vida. Os padres ocultaram de princípio o seu estado e demoraram-se demais em revelá-lo à família; depois já era tarde para o fazer e mantiveram-se firmes na sua decisão, esperando que a forte natureza da criança levasse a melhor sobre a doença.

Houve um dia em que um desmaio pareceu abrir as portas da morte. Martinho sentiu-se arrebatado numa vertigem de que não lograva sair; depois, como uma onda que o arrojasse para fora, encontrou-se como que a boiar num grande lago. Estava a nevar, o seu corpo ardente recebia com prazer os leves flocos de neve. Mas a sensação de deleite apareceu quando da sua convalescença. Pode-se dizer que não havia alteração no seu estado, mas agia nele uma beatitude magnífica, como um consentimento divino a que recobrasse a saúde e vivesse para sempre. Era uma alegria terna e prometedora; Martinho aprendia a bênção da vida nessa passagem imperceptível entre a doença e a cura. Um dos padres velhos chegou a pronunciar a palavra milagre, mas repreenderam-no com doce autoridade. Pouco tempo depois morreu e, como era velho, não deram muita importância ao seu desaparecimento. Maria Rosa, que foi passar uns dias a Saint-Moritz, estranhou o neto.

- Queres ir para casa? - disse-lhe.

- Não. Estou bem e tenho de estudar até Junho.

Mas o que ele não dizia era o grande amor que sentira ao ser arrebatado para a vida, e a saudade desse momento lento como se durasse anos e não pudesse medir com os sentidos ainda perdidos das emoções em que ele vagueava, sem sofrimento mas também sem satisfação.

A Primavera tinha avançado enquanto ele estivera doente e havia crocos roxos ao longo dos caminhos. As vacas malhadas, com os grossos sinos ao pescoço, pareciam olhar para ele como se o reconhecessem.

- Este rapaz cresceu bastante - disse a branca com pestanas como alfinetes.

- Nunca o tinha visto - disse a outra, ruminando a sua erva.

- Eu sim. Mas sou mais nova, tenho boa memória. Martinho riu-se, contente de as entender. E o seu coração encheu-se de alegria e logo, sem perceber o que lhe acontecia, o pranto correu-lhe pelas faces emagrecidas. A convalescença ainda não estava completa e ele comovia-se facilmente.

Como a avó quando ia ver os filmes antigos que ela achava vulgares e xaroposos.

Desse tempo de colégio não guardou grandes recordações; nem mesmo da neve escura e que ao desfazer-se criava pequenos charcos com placas de gelo por cima. Mas da Inglaterra, sim. Fez amizades como revelações do corpo e do espírito; e o perfume do talco da manhã, depois do duche, tornou-se para ele uma companhia. O avô Nabasco achava aquilo efeminado e levava-o para a caça, obrigando-o a ver os cães que se banqueteavam com as vísceras quentes dos coelhos.

- Não gostas de ver sangue? - perguntava, com insídia.

- Nem por isso. O cheiro enjoa-me.

- Os homens não têm nariz e as mulheres não têm ouvidos.

Referia-se a que as senhoras podiam ouvir obscenidades sem sequer darem por isso, porque a virtude não as distraía para as coisas grosseiras. No entanto, a avó, às vezes, como se brandisse uma acha de guerra, soltava o seu palavrão. Nada mais do que "merda" ou "filho da polícia", o que fazia rir o irmão e todos os Cunhas quando por lá andavam a servir.

Quando o avô morreu, ela deu tamanho grito que se ouviu na rua. Paula correu a fechar os reposteiros e a acender as luzes. A dor tinha que ter alguma contenção e não podia manifestar-se como nas peixeiras, a gente mais dramática do mundo, não se sabe porquê. As peixeiras (antes pescadeiras) tinham a arte do mortório. Era a única gente trágica de Portugal e ao pé delas os coros gregos serviam só para enviar mensagens como pelo código Morse. Elas invocavam os deuses do mar e das tempestades, submetidas às suas iras cruéis. As pescadeiras, carregadas de preto, levantando até à cabeça o xaile preto, gritam com mais ódio do que devoção. Apedrejam a porta da igreja quando os seus mortos dão à praia semi-nus e vencidos. Era assim que Maria Rosa sentia a dor. Um uivo de espanto que sobressaltou toda a família reconciliada por um momento, pronta a debandar e disposta a levar algumas flores que se esqueceram no quarto onde guardaram os casacos. O coro disse: "Julgas que só pelas lágrimas, sem adorar os deuses, podes triunfar dos teus inimigos?" As pescadeiras iam directas, de rosto descoberto, os punhos enterrados na areia, enfrentar os inimigos: o vento alterado, a maré crescida como torre que alcança os céus. Elas estão à altura dos seus inimigos, elas sim, estão a vociferar aos ouvidos dos seus inimigos.

Algumas vezes Maria Rosa era censurada porque lhe ficava mal aquele dizer as coisas como se jurasse no tribunal. "A verdade, só a verdade, nada mais do que a verdade..." Sentia-se como na amurada dum navio, a voz coberta pelo marulhar das ondas. Ela falava cada vez mais alto, mas não lograva ouvir-se a ela própria.

- Ouves o que eu digo?

- Não, não ouvi.

Era na travessia que faziam para Patras, no Peloponeso, viam-se, debaixo de água, as grandes alforrecas. Custava a crer que fossem animais, davam origem a lendas, pena ela não ter vivido nesses tempos. Ela ia deitar-se na coberta e passavam os homens de bordo, como sombras, mas um desejo lírico e profundo acentuava a sua passagem. Eros, o mais versátil dos deuses, combinava-se com todas as coisas, dado, como ele é, a travessuras.

Um pouco inesperadamente apareceu um comprador para a Ronda da Noite. Era um decorador que pretendia cortá-la em pedaços suficientes para fazer um puzzle que, por meio de efeitos fotoeléctricos, efectuasse diferentes compromissos com a realidade. A menina Saskia, o tamborileiro e o cão podiam pertencer ao mesmo nível e ter uma interpretação mais verosímil. Todos os personagens mudavam de lugar, o capitão ficava em segundo plano e o tenente ganhava importância. Outros, que até aí mal se distinguiam, ofereciam outra qualidade e até uma soma de intenções que no discurso do pintor não se percebiam.

Martinho ficou muito mortificado. Não ia vender o quadro para retalho, como uma peça de açougue no seu gancho, mas a ideia parecia-lhe extraordinária.

- É, não é? - disse o decorador. Tinha pouquíssimo cabelo e o que tinha deixava ver o crânio brilhante e cor-de-rosa. Talvez fosse uma nádega e não um crânio. A Ronda não merecia aquela obscura exploração, no sentido de a tornar uma diversão, mas também, se não se tratava dum original, não havia crime em retalhá-la e fazer com ela um trabalho de patchwork. Apesar de tudo, Martinho recusou. Não tinha prova nenhuma de que se tratava dum falso e podia estar a cometer um erro colossal.

- Daqui a duzentos anos a Ronda pode estar identificada e valer uma fortuna - disse.

- Uma fortuna em quê? Em bilhas de água? Nessa altura a água será moeda mais fiável. Adeus mito do ouro! - O doutor Assis olhava para a Ronda com um desrespeito singular. Sempre achara o quadro feio e desproporcionado e que não merecia tantas atenções. - Qualquer dia lançam impostos sobre as obras de arte e vais ter que vendê-la, tu verás.

- Não com estes olhos que a terra há-de comer. Sabe, doutor? "Toda a mudança traz bem-estar", como dizia Electra.

- Electra?

- A irmã de Orestes. - Sentia-se erudito e aquilo sabia-lhe bem. Divertia-se a ver o doutor Assis tão perplexo; mas isto durava-lhe menos do que duram as rosas, e ia discutir com Maria Rosa coisa mais vulgares, que era o que verdadeiramente lhe interessava: a mudança da hora de Verão para a de Inverno, os horários dos comboios e as notícias do Iraque.

- Morre menos gente do que nas nossas estradas - disse - E nas estradas, sabes o que se pensa, quando se é novo e se gosta do perigo? "Uns morrem, outros nascem." Ouvi isto e não me escandalizei. Não estou viciado no Iraque, nem em nada. As guerras são um excitante sexual, e quando isto se souber acabam as guerras porque a nudez não fica bem aos homens e eles vão sentir-se nus como um verme da terra.

- Um verme da terra! Onde é que eu já ouvi isso?

- És um estupor. Vou subir e falar com a tua avó. Os velhos entendem-se.

- Acredito. O que têm tanto para dizer? Riem-se como doidos, não sei o que há para se rirem tanto.

- Quando eu era pequeno e chorava, diziam-me: "Quem mais chora, menos mija". Não é verdade; eu mijo a toda a hora.

- Não gosta de mim, nem da Ronda, nem do Torreão Vermelho - disse Martinho, como se fizesse uma confissão que lhe competia a ele fazer. O doutor Assis subiu pela escada acima, mas já sem a vivacidade doutros tempos, de quando transpunha os degraus da escada de caracol, na Casa do Cão. Agora pensava muito antes de pôr o pé num degrau e media-o conscienciosamente. Já não se faziam as escadas de abade dos mosteiros, feitas para não obrigar o corpo a saltos e contorsões. Parou a meio caminho e voltou-se, apoiado no corrimão.

- O corrimão é uma invenção espantosa - disse ele.

- O quê?

- Se a escada do céu não tiver corrimão, não quero ir para lá.

Martinho ouviu-o rir-se com Maria Rosa. Decerto estava a contar-lhe aquilo e outras coisas. Ficou feliz por ouvi-los rir.

Começava a sentir-se um pouco entropecido e a ideia dum A.V.C, insinuava-se, constantemente alimentada pelas páginas de saúde e de alimentação e pelas alarmantes novidades tribais. Uns tinham morrido em paz, durante a noite, outros ficavam hemiplégicos, gastando ao Estado somas consideráveis. Se ao menos houvesse uma epidemia como no tempo da peste em Nápoles! Descobriu porque gostava tanto desses relatos macabros e porque saboreava o terrível desfile dos hospitais, dos mortos transportados em carretas e a Bette Davis sacrificando-se para os ir acompanhar no lazareto. Os bancos estavam falidos, ninguém investia, ninguém solicitava empréstimos. Martinho estudava a Grande Depressão, mas adormecia a meio duma página. Retinha alguma coisa que o fazia mais indolente e céptico. A economia era cada vez mais servida por homens perspicazes e cometiam-se erros cada vez maiores; mas eram sempre respeitados e as suas faltas motivo de avaliação. O erro tornava-se interessante porque crescia o desprezo por aquilo que se aprende e em que se acredita.

O cadete Bernardo, irmão mais novo de Martinho, que não era tolo, dizia-lhe que não valia a pena forjar um dossier sobre educação porque tudo se resumia a uma adaptação às circunstâncias e as ideias nobres estavam há muito em crise, se não reduzidas a pó. Convinha animar a produção, gastando mais e rompendo com a tradição dos orçamentos equilibrados e do aforro pessoal. Mas o que aconteceu foi que o ódio aos impostos, uma tradição milenária, desencadeava uma resistência em que se desenvolviam vícios da paz: a corrupção e a corrida aos prazeres. Ninguém se atrevia a promulgar leis radicais, como impostos grandes e salários pequenos. Os países estavam a ser governados por políticos cujas ideias tinham secado há muito e tinham sido bebidas em sebentas fora de moda. As gerações viajavam mais depressa no tempo do que a economia nos mercados.

Bernardo era inteligente mas isso não lhe servia de nada, nem ele queria. Só queria que não chegasse a nenhum apocalipse antes de ele gastar os seus sapatos feitos à mão no seu boothmaker de Londres.

Era um rapaz elegante, amaneirado sem ser efeminado e que tratava as mulheres novas como se fossem velhas e as velhas como se fossem novas. Tinha a suspeita de que elas, todas juntas, se preparavam para tomar o poder.

- Talvez não seja tão mau assim. Ficamos mais disponíveis para ler bons livros e não fazer nada. Elas acabam por reproduzir-se por cissiparidade. Estão cheias de razão, se bem que a razão não é tudo. Vocês aqui, que fazem? – Olhava para a outra margem do rio e o seu estreito fato de algodão azul-tempestade desenhava-lhe as pernas finas como as dum rapazinho. O polo era em lã ardósia, muito chique. Estava à beira de ser um homem público e de casar bem.

- Abandonas a política? - disse Martinho.

- Nunca. É como uma árvore que não dá fruto mas que dá sombra. - Repetiu: - E tu que fazes? Este Porto tem uma luz estupenda. Dizias que era escuro e que não se via nada. Não é como a floresta do Amazonas, mas ainda se percebe alguma coisa ao meio-dia. Para que lado é o mar?

- Do Torreão podes vê-lo.

Iam ambos para o Torreão Vermelho alcançar o mar com as mãos, como eles diziam. Apesar de terem idade diferente, lembravam-se de coisas em comum, como quando os cadetes iam para o Nordeste, caçar e comer horríveis ceias de pão bolorento e batatas fritas em água. A pobreza não os surpreendia e, vendo fumegar a roupa ao lume, porque estava molhada pela chuva, sentiam-se confortáveis e felizes. A tempestade andava pelos montes, com um estrondo de cavalos disparados. Eles sentiam-se bem na escura cozinha de lavradores, com chão de terra batida. - Como podes dizer que isto e que aquilo? Sempre a dizer mal, sempre a fazer queixa de tudo.

- Eu? - Bernardo foi colhido de surpresa. Sentia-se agredido com aquela simples declaração de Martinho que, para ele, era uma pessoa estranha; quase não falavam a mesma língua, vestiam-se de maneira diferente. Ir a Nova Iorque era mais fácil do que ir ao Porto, parecia como ir à Lua. Mas ao entrar no Torreão Vermelho, um luxo pesado, austero, caía-lhe em cima. E a Ronda caía-lhe em cima com aquele peralvilho do lugar-tenente pronto a declamar um hino à cidade, sem esquecer as suas galochas bordadas. A verdade é que Martinho se ria dele e era o que o irmão mais temia. Tinha sido educado como um príncipe da Renascença, e quando estava sentado no cadeirão de couro, à cabeceira da mesa, parecia um príncipe da Renascença ou coisa que o valha. Para nada lhe servia tanta sabedoria e o dinheiro que tinha. Porque Paula dizia constantemente, a ponto de aborrecer toda a gente lá em casa, como eram opulentos os Nabasco e como tinham seis solares vazios no Nordeste e Maria Rosa dormia com um colar que valia milhões. Era uma lenda e era uma chatice. Não era possível atribuir-lhe anedotas como aos alentejanos, que esses mesmos estavam mudados e constituíam um feudo à parte. A primeira vez em que Bernardo teve a consciência de que as coisas tinham mudado e que a frustração marcara encontro com a política, foi quando, estava ele no Chiado, começou a chover. No meio daquele trânsito de repente caótico, um carro cinzento-claro (não prateado mas só dum cinza frio) parou bem no meio da rua e um homem alto, indiferente, confiante, saiu; abriu a mala do carro, com vagar mas sem mostras de provocação, e, depois de encontrar o que queria, voltou a fechá-la. O motorista não se tinha mexido do lugar. A um sinal que Bernardo não pôde ver, o carro arrancou como se fosse entrar num cortejo e em poucos segundos desapareceu. Parecia uma imagem recortada num espaço que não lhe era atribuído; um cenário corrido sobre outro que continuou a funcionar na tarde chuvosa, bonita tarde de luzes que se acendiam demasiado cedo como por comando dum funcionário mal disposto.

Foi uma cena muito breve, desses instantes que parecem roubados a outro circuito de acontecimentos sem data e sem história. Mas Bernardo teve tempo para o localizar: "São os novos feudais".

Vinham, sem se demorarem, da província. O seu temperamento resoluto, sem mesquinhez, feito duma memória de reinado local, não consente que lhes façam resistência, o que na política é uma dificuldade maior. Os feudais não chegam ao poder pela falta de paciência com os parceiros da capital, para com as suas manhas, palavras desditas e retomadas, alianças, semi-alianças e camaradagem de Assembleia e de pose para a fotografia. O riso com que se alivia a tensão das preocupações é partilhado com os novos feudais. Eles não frequentam cartomantes, não se fazem manejar, depilar e arredondar a barba, ou pintar o cabelo. São homens inteiros, aliados das suas mulheres que os gratificam com filhos belos e que na moldura duma porta parecem retratos de si mesmos. Odeiam a política, odeiam a globalização, os fins-de-semana, a imitação da riqueza, as unhas tratadas e os banhos de imersão. Bernardo gostaria de os frequentar e de ser recebido nas suas herdades vigiadas por guarda-costas e câmaras fotográficas. E de pretender as suas jovens que ele não saberia como tratar, porque são fogosas sem ser levianas e se destinam a criar uma família igual à sua. Tradicional na intimidade e cínica com os estranhos.

João, o irmão mais novo, saiu-lhe melhor com os novos feudais. Começou por cultivar os mais velhos, falando pouco e sorrindo sobriamente com as suas piadas, a sua informação, a sua ideia de eficácia. Tornou-se um desses hóspedes bem recebidos a quem não se fazem perguntas porque não estão ali senão para ilustrar os belos dias em que se acentua o valor dal-guma coisa como um convidado especial; este pode ser um ás do futebol, um ex-presidente americano, um músico de renome mas ligeiramente ultrapassado. É preciso cuidado com as novidades, os infiltrados que depois resultam serem caçadores de escândalos ou sedutores das raparigas da casa.

João comportou-se, como os feudais gostavam de dizer: como um senhor. Usava jeans com paletó preto, sabia comer marisco com as mãos e bebia sem se embriagar. Até que teve a sua recompensa, a de casar com uma prima dos novos feudais. O que Bernardo achou um sucesso.

A verdade é que os novos feudais estavam a apoderar-se de regiões até aí proibitivas, mas que se mostravam preparadas para os receber. Os media, as revistas de lazer e laudatórias do grande empresário; e toda uma fileira da direita liberal, enfim verdadeiramente segura de que a hora tinha chegado. Acabara o tempo em que tentavam convencer que tinham na manga um projecto político. O poder estava finalmente ao seu alcance, e foi isso que Bernardo percebeu naquela tarde chuvosa no Chiado, quando, como que vaporizado no cinzento da tarde, o carro cinzento parou e dele saiu um feudal, firme, eficiente, fazendo parar o trânsito como se trouxesse uma ordem policial para o fazer. O trânsito parou realmente e Bernardo, estupefacto, disse:

- São os novos feudais. João tinha razão: o honesto centro reclamado pela democracia.

João já estava em Londres a provar o fato de casamento e, no quarto de hotel que dava para Kesington Park, pensou que finalmente se livrava do pai marinheiro, dos medíocres amigos que tinham uma coluna nos jornais e da comida dos restaurantes. Havia um segredo que os feudais não conseguiram atingir: João detestava coentros. Era o seu ponto fraco e pedia a Deus que nunca fosse percebido pela gente perfeita e salutar com quem se ia aliar.

 

                                           CAPÍTULO VIII

 

                     JUDITE

Ele não podia cruzar o vestíbulo ou, digamos antes, a antecâmara do salão destinado às festas e concertos privados, sem sentir uma picada no coração. A Ronda esperava-o, e, com ela, Saskia esperava-o, deitando-lhe um vivo olhar de esperteza e de convite. Enquanto todo o mundo se voltava na direcção que seria a da formação do cortejo; e cada um estava ocupado com o seu ensaio e o seu papel no desfile, ela não. Era completamente solta na multidão, atravessava-a com o intuito deliberado de atingir o outro lado do quadro. "Como Judite" - pensou resolutamente Martinho.

Judite era a Saskia da Ronda da Noite. Não pertencia ali, não era uma figura adequada e via-se logo que vinha doutra paisagem, doutra sociedade. Era uma variante da realidade, um pseudónimo.

"Quanta volúpia há em saborear a burla sem se ser burlado, é coisa que só o erotista entende." Kierkegaard disse isto tão bem que só admira ter um espírito o bastante feminino para o dizer.

Saskia é uma erotista que discorre ao burlar-se de tudo. Ela quer ser seduzida, mas antes disso seduz; a estratégia está na burla de que se reveste, sendo a burla um feitiço, como a pequena Saskia demonstra, com os seus efeitos de magia e a infantil maneira de passar sem mancha entre a multidão.

Martinho pensava: que tem a ver a pequena Saskia com uma mulher como Judite? Primeiro, quando ela chegou à Casa do Cão, alguns anos atrás, trazia vestido um casaquinho ver-melho-cereja, com botões pretos, o que causava uma impressão de penúria. Sobretudo, não trazendo luto pela mãe, aquilo parecia uma inconveniência. Não era assim tão pobre mas, provocando a comiseração, acharam (as freiras do Patronato) que ela teria mais facilidade em ser recebida por Maria Rosa. Era em Maio, o jardim estava coberto de rosas, as violetas e os narcisos tinham desaparecido. A pequena Judite parou à porta da cozinha onde Elisa estava a fritar ovos, operação delicada que ela não confiava a ninguém.

- Entra e come alguma coisa - disse Elisa. Na terra dela não se recebia ninguém sem aquela espécie de saudação. Sempre havia alguma coisa que pôr na mesa, pelo menos broa de milho e lascas de bacalhau cru. A pequena Judite não pareceu entusiasmada com a oferta. Bebeu um copo de água com sofreguidão. Santo Deus, como era bonita! Elisa retirou do lume a sertã e um ovo abriu-se para derramar a gema no óleo a ferver. "Quem me dera os dentes dela!" - pensou.

Eram dentes grandes e sólidos que tinham parte na sedução da mulher. Doze anos e ela era uma mulher feita, mais alta do que mediana, uns olhos que pareciam negros mas eram azuis. "Onde vai ela com uns olhos assim?" - pensou outra vez Elisa. Tirou o avental da cozinha para, instintivamente se mostrar mais apresentável. Judite e uma tia dela que estava grávida e era sardenta, entraram para a sala de jantar. Um espelho ocupava toda a parede do fundo e Judite não despregou os olhos dele. Nunca se tinha visto de corpo inteiro.

Maria Rosa admirou-se de a ver tão mal vestida.

- Não tinham mais nada que lhe pôr?

A tia desculpou-se, mas via-se bem que tinham tirado da tragédia o melhor proveito e repartido anéis e brincos, um deles apanhado no chão onde se dera o crime. Também levaram a roupa melhor e a loiça dos dias de festa. Tudo com muitos suspiros e lágrimas estancadas com um lenço sujo e enrodilhado. Aparecia sempre um lenço muito amassado quando aquelas mulhers choravam. Maria Rosa despediu a tia. Não gostava de mulheres grávidas ao pé dela, parecia-lhe alguma coisa de obsceno e que as águas se iam romper ali e molhar tudo. E os cães vinham lamber até serem enxotados. Judite comeu por fim um almoço completo.

- É de muito alimento - disse Elisa.

- Na idade dela é assim.

Entendiam-se por meias palavras ou por meios silêncios. Estavam de acordo quanto à contrariedade daquela missão. Educar a filha dum criminoso era já por si uma tarefa ingrata, tanto mais que, com doze anos, não se é propriamente uma criança. Elisa teve um impulso de a tomar como sua protegida, mas Maria Rosa antecipou-se: - Leva-a lá para cima e deixa-a descansar.

- Lá para cima, para onde?

A casa era como a dum caracol, escada inclusa, e o andar principal consistia no grande quarto de casal, outro pequeno, que era o de Martinho, e o chamado toucador, todo branco, ao lado do quarto de banho. Um quarto de banho de mulher mantida, sempre cheiroso de talco fino, de sabões ingleses e com uma banheira onde cabia um cavalo; própria para festas aquáticas a dois, via-se logo. No andar de cima ficavam as camas das criadas e portas que fechavam mal. Era quente e mal acabado. Naturalmente a casa não fora feita para pessoal interno e Elisa, tanto ela como a criada de quartos, queixavam-se constantemente. Viam das janelas amansardadas o Torreão Vermelho.

- Aquilo sim, que é uma casa! Tem retretes em todo os andares e dispensas com fumeiro pendurado - disse Elisa.

- Como sabes essas coisas? -Já lá entrei.

- És uma bisbilhoteira.

E, sim, era, e com muita honra. O seu rosto liso e maduro inchou de orgulho, porque tudo o que ela fazia lhe dava importância. Tinha o direito de conhecer a vida de toda a gente, de a comentar e até alterar segundo o que ela chamava "o seu ponto de vista". -Tens um ponto de vista muito torto - disse Maria Rosa. Mas como toda a gente também tinha, aquilo não oferecia motivo para discussão. Cada uma ia para seu lado, uma dando ordens contraditórias, outra cumprindo-as sem vontade, mas entendidas nos gostos e nos pormenores duma coisa em que uma é mestra e a outra apenas espelho. A moda está para a amizade entre mulheres como o perigo para a lealdade entre os homens. Sem Elisa, Maria Rosa não teria tão bons resultados como mulher de sociedade, isto porque à mulher elegante e bem nascida e assim por diante, falta sempre a sua imagem real de que ela não pode desfazer-se; sem o que o prazer sofreria muito com isso.

Ao belo está pegado o feio; à inteligência, a obtusa visão das coisas que faz parte do belo enquanto o consentimos como auxiliar das trevas. O coração das trevas, sempre à espera e pronto a devorar, consumir e babar-se de desejo pelo mundo.

Judite, por mais laços e fitas da cabeça aos pés, não ia desaparecer como foi vista pela primeira vez na casa à beira da estrada. Uma casa de feitor, nua por dentro e por fora, com duas camas de ferro onde os percevejos se recolhiam, nas juntas, para sair à noite, ávidos, vampiros do sangue morno que os ia inchar até ser difícil voltarem aos esconderijos.

- É preciso queimar estes insurrectos - disse a Estrelinha. E o pai trazia o maçarico e acendia-o como se fosse assaltar a cova dum dragão, ele próprio armado como S.Jorge com o fogo e um casco para se prevenir. Isto fazia muita impressão a Judite, que tinha três anos. Era preciso tanto para matar? E as pequenas bestas fugiam, logo abrasadas; Judite ia mexer-lhes com uma palha de sorver o seu leite achocolatado. Sentia orgulho por ser o pai vencedor daquela batalha; e Estrelinha Sopa-de-Massa interrompia o seu prazer, esfregando a cama com aguarrás. A casa nunca cheirava bem. Era a sardinha assada, a couves que iam ganhando um sabor choco, do almoço para o jantar. Não eram muito pobres, o pai chegou mesmo a comprar uma carrinha para serviço e trazia nelas as compras do supermercado. Às vezes havia uma surpresa entre as compras: um docinho, um cromo. Judite trepava-lhe pelas pernas e não o largava.

- Esta rapariga é como uma videira, agarra-se e não larga.

- É doida - disse Estrelinha, arrumando as compras. Tinha uma figura soberba, alta e bem quebrada na cintura. Às vezes, uma nódoa de sangue estampava-se na saia; ela ria-se, indiferente, se o notavam. Não era limpa, não se importava em parecer bem; sabia talvez que aquilo a fazia desejada.

Tudo mudou quando Judite tinha oito anos e começaram as grandes brigas em casa. Era como as grandes caçadas. O pai saía de noite, voltava tarde, Estrelinha esperava-o acordada. Ou fingia dormir, imóvel, com o coração trespassado por setas e punhais, qual deles o mais afiado. Uma mulher com ciúmes, que finge dormir na cama desfeita, os travesseiros escurecidos pelo pó e o suor do trabalho, era uma coisa assustadora; e doce, porque, nos olhos muito abertos e secos de febre, ela carregava um amor extraordinário.

O pai voltava, não se ouvia senão ele a descalçar-se e depois nada. Ia fumar para a varanda das traseiras, que tinha ninhos velhos de andorinhas pegados no muro, em cima. Porque não se ia logo deitar? Judite sustinha a respiração e, como a irmã dormia, de boca aberta e ressonando brandamente, ela abanava-a para que ela mudasse de posição e se calasse. Não queria perder nada das grandes caçadas.

Primeiro era o rosnar da mãe, tentando parecer calma, oferecendo-se para fazer café. Mas depressa o tom dela subia, punha-se a gritar, a vociferar, como uma fera descoberta no seu covil. Chorava e depois punha-se a rasgar, a quebrar, amotinada contra os objectos que eram recordações. Uma vez que reduziu a pedaços a fotografia do casamento, o homem bateu-lhe. Com as costas da mão, bateu-lhe. Talvez fosse um insulto mais provocador, porque Estrelinha ganhou forças para maior alarido. Dizia pragas horríveis, queria para ele as doenças mais fatais; queria-o desfigurado, trôpego, impotente e velho a arrastar-se como um cão atropelado. Judite, sentada na cama, ouvia com atenção.

Acontecia que o pai voltava a sair e ia dormir para a casa dos lagares, morto de fadiga, de desespero, não querendo mais do que fechar os olhos e cair num bom sono como se estivesse num colchão de penas. Estava saciado e feliz com a amiga, que recordava com gratidão. A gratidão havia de o levar para ela, um orgulho macho seria para sempre a sua virtude, mais do que a fidelidade e o amor do casamento.

Talvez Judite percebesse qualquer coisa. Um dia, quando o pai saiu, a tropeçar, ela foi levar-lhe um casaco velho; mas como o visse encolhido, a dar voltas sobre ele mesmo, duma maneira automática, como a expulsar um sofrimento imenso, retirou-se. Nunca mais pôde esquecer a figura do pai, à luz da lâmpada do armazém, que iluminava pouco até porque estava coberta de sujidade. Era como uma dança primitiva, destinada a achar alívio numa grande aflição. O coração de Judite como que parou. Pareceu-lhe que o cabelo do pai estava branco, mesmo branco.

Passou esse tempo de desespero, de paixões cruzadas, com uma loucura qualquer que as crianças partilhavam. Se a mãe as punha fora de casa, voltavam, sem fazer barulho, descalçando-se na varanda e fingindo entreter-se com jogos, se eram surpreendidas. Fugiam da escola para ir a casa, cuja chave estava na porta e a mãe desaparecida. Esperavam. Estrelinha nem as via, metida com os seus delírios, as suspeitas, a morte no coração. Bebia; o marido encontrava-a suja, estendida na cama, sem dar acordo.

- Que fiz eu para este castigo?

- Não me queres. Queres a todas, todas te servem, grande cão.

- Está bem, tu é que sabes.

- Vejo-te com elas, com as mãos nas pernas delas.

- Olha as pequenas, que são inocentes.

- São mulheres e as mulheres não são inocentes. Sabem mais do que tu e eu. - Ela ria-se, fazendo ninho na cama, chamando-o, os olhos marejados de desejo, sem ver nada senão o homem que lhe fugia. Ela achava que ele a culpava de alguma coisa, de não lhe ter dado um filho macho. Quando ia para o hospital, com a grande barriga que abria as costuras da bata, ele dizia-lhe:

- Vê lá se me trazes mais loiça rachada.

Queria um rapaz, mas gostava das filhas, encantado de as ver bonitas e a crescer bem. Estrelinha Sopa-de-Massa sentia no peito um amor que lhe fazia a voz estrangulada. Teria amado outro homem como aquele? Achava-o bonito, desde o primeiro olhar que o achara bonito, destinado a ser dela. Um dia que encontrou um vestido largo meio desmanchado, disse:

- É de quando eu estava de barriga...

Já se dizia "estar de bebé", mas ela não fazia caso dessas merdices, como ela dizia. Para ela um filho era a barriga crescida, a roupinha que ia minguando, o primeiro riso, o primeiro dente. Os sustos, os gritos de aviso, as sapatadas de cólera breve e o ensino no carregar do sobrolho e no fingir desamor. "Parir é dor, criar é amor." Todos entendiam e, pondo a roupa ao sol, as vizinhas contavam coisas em que eram parceiras, coisas de mães que se receiam sem que o saibam.

A primeira comunhão: era aos sete anos, para reforçar os laços da comunidade católica. Era apenas um dia extra, melhorado, em que as comungantes se pareciam todas umas com as outras. Depois é que era vê-las crescer, ganhar formas, tomar ares de segredos, olhar com desprezo para os rapazes, fazer recados misteriosos à mãe.

- Que levas aí?

- Eu? Nada.

Não passava duma receita para a farmácia ou dinheiro miúdo para comprar uma fatia de bola de carne. Mas Judite fazia-se muda, não dava a entender senão que tinha muito que contar, se quisesse. - Se soubesses o que eu sei!

- Que é que tu sabes?

- Não posso contar. -Judite continuou a andar, orgulhosa do seu segredo. Doía-lhe a barriga, às vezes pensava que ia cair, apeteciam-lhe coisas estranhas: beber pelo fundo dum copo, misturar leite com fruta, ir atrás para dar outra volta a uma chave, de modo a que ela fique horizontal ao soalho do quarto. Tudo isso eram sinais, exigências, sem as quais não sossegava, não dormia, ficava com a sensação de ter cometido uma falta e de que seria punida por isso.

Comunhão era a solene. Com um envolvimento sensual do ritual, com o primeiro vestido sacerdotal em que se desposa a noção da virtude e da honra investida. Tudo é claro, simples, inteligente, a começar pelos atavios, desde os pés às orelhas, onde algumas recebem as pérolas da apresentação laica, num baile. Os homens gemiam perante as despesas; e Maria Rosa mandou chamar Estrelinha para lhe oferecer por um dia o vestido que Paula usara. Estrelinha mostrou-se agradecida, mas não aceitou.

- Espera mais um ano. O pai já disse: um ano e as coisas vão-se compor.

- Um ano e Judite cresce mais e fica acima da cabeça das outras todas. Até aos vinte e cinco não pára de crescer; é dessas, que eu sei. Queres levar o vestido, ou não? Não sabes o que perdes, está novinho em folha. Conservei-o em papel de seda, nem uma mancha.

- O vestido e a touca, se fizer favor.

Maria Rosa pensou que ela nem sequer avaliava o preço daquele bonito modelo, mais de noiva do que de comungante. A única coisa que fazia a diferença era a touca de organdi com fitas que recolhia os cabelos, como a duma religiosa. Mas Judite não quis a touca, e sim um véu como o das companheiras, e luvas de algodão. O pai olhou para ela, de lado, sem querer dar-lhe atenção.

- A ver se se calam com isso.

- Não está bem arranjada? O terço é de prata.

- A ver se te calas.

Um ano depois, Judite tinha crescido mais, e o vestido já não lhe poderia servir. Quando se casou com Martinho encontrou-o numa caixa e teve a mesma impressão de pertencer à pobreza cujo desprezo não podia ser compensado, por mais méritos que ela tivesse. Martinho acariciou-lhe o rosto como se faz a uma criança amada. Mas uma criança tem esse atributo da pobreza que a faz alvo de alguma coisa de grosseiro, como se jamais pudesse ser senão vinculada a ele. Era por isso que as mulheres pobres eram facilmente escolhidas e até mais queridas no casamento: porque o desprezo as punha ao alcance do desejo, melhor do que se fossem respeitáveis pela fortuna.

Logo depois do drama, que comoveu toda a província, as crianças foram entregues a uma espécie de orfanato para serem educadas até idade de maior discernimento. A mais nova foi encaminhada para Branca, para casa de família chegada. Judite, não. Era uma rapariga alta e com aqueles olhos violeta que faziam prever coisas pueris, tão do desejo em que elas adormecem. Maria Rosa mandou-a trazer a casa e ela ficou oito dias; depois mais oito e assim se adaptou sem parecer interessar-se verdadeiramente com o que pudesse acontecer-lhe. Maria Rosa tratava-a como uma boneca, vestia-a a seu gosto e, por fim, tinha Judite vinte anos, disse a Martinho que casasse com ela. Aí, deu-se o diálogo que já relatei noutro lugar.

Se o entusiasmo é o recurso da melancolia, Judite até se prestou a uma lua-de-mel que foi o que devia ser: uma iniciação à compatibilidade da razão. Assim, tinham que criar uma família e ensiná-la a ficarem juntos e juntos morrerem. Mas não vieram crianças desse encontro, talvez porque não há um decreto especial para a fecundidade.

É preciso dizer que Maria Rosa teve um mau relacionamento com a maternidade. Sozinha em campo, Paula deu em ser uma inimiga de todas as horas. Ridicularizava-a pela força do ciúme que se desenvolveu nela como uma infecção. Mesmo

depois de já não ter idade para aquelas pequenas perfídias em que se pratica o mal para estar a par dos golpes a retribuir durante a vida, Paula ainda não perdia a ocasião de humilhar a mãe, de a ofender, se possível, e, sobretudo, de a deixar insegura e "esvaída". Esvaída em sangue era o que seria adequado dizer; porque o duelo de duas pessoas que se amam é como um talhe duma espada destinado a fazer jorrar o sangue.

O primeiro casamento de Paula (o marido era coxo e arrastava-se dificilmente, preferindo estar sentado a mexer-se, pela fraca figura que fazia) destinou-se a magoar Maria Rosa. Sobretudo, a hipótese de o fazer partilhar a alegria da beleza, estava excluída. Ele morreu prematuramente, sendo o único filho Martinho. Não havia em casa muitos retratos do pai, excepto do tempo em que ele fora estudante em Coimbra; mostrava-o pálido, embrulhado na capa como se fosse uma mortalha, e o sorriso não bastava para transmitir confiança. Ao lado de Paula, bonita e cheia de força, com o gosto pela ginástica desportiva, aquilo parecia o que era realmente: uma partida indecente.

Como ele se formou só três anos depois do casamento, viveram todos na mesma casa, quando era época de férias, o bastante para se odiarem cordialmente, como se diz. Quando o pai morreu, dum A.V.C., Paula desapareceu por uma temporada e foi viajar. Maria Rosa desconfiou de que ela estivesse grávida outra vez e que quisesse abortar em paz; era uma rapariga muito decidida e com pouco juízo, razão por que lhe fez bem o segundo casamento com um marinheiro que foi seu instrutor e seu conselheiro em coisas de heranças, que foram tumultuosas quando o pai Nabasco morreu. O herdeiro mais favorecido era Martinho. Herdava os solares em ruínas, e Maria Rosa todo o dinheiro que pôde encontrar debaixo dos colchões. Porque o Nabasco escondia as notas nos lugares mais incríveis, dentro dos livros que ninguém lia, como as Biografias de Plutarco, ou como se chamam. Era um homem que fazia da imprudência uma forma de justiça. "Quem cá ficar que se arranje", costumava dizer. Era um vicioso ponderado que conseguia parecer de bem com Deus e com o Diabo. Para ele não havia mulher honesta, bastava o homem querer. Ainda chegou a conhecer Judite, mas não lhe prestou atenção porque estava diabético e só pensava em comer. É provável que com mais oportunidades ele a descobrisse para um prazer que concede algum limite à morte. Mas a casa era um quartel de Inverno, toda a gente se cruzava lá dentro e havia vigias em todas as portas. Como encontrar Judite sozinha, disponível, com os joelhos descobertos, sentada na beira da cama? Enfiava contas de cores para fazer anéis e não parecia afectada pela morte da mãe, que lhe deixara uma espécie de vazio que ela não sabia preencher. Talvez fosse o momento ideal para a deitar para trás na cama e a cobrir de beijos, levantando-lhe as saias com um desejo que ela não podia reprimir, e que ela recebia como uma consolação sem conflito algum. Mas era impossível. A cara, com um sinal carnudo no nariz, aparecia à porta do quarto. Era a da velha cozinheira, já há muito retirada das suas obrigações e que se arvorava em carrasco de toda a gente, encontrando nisso a sua forma de utilidade e até de promoção. Com ela não havia armário trancado, sótão despejado de crianças que iam para lá brincar aos doentes e doutores, maneiras de descobrir o sexo e os seus elementos próximos, o prazer e a angústia do grande segredo. Ela, a cozinheira velha, ainda que enferma do coração, aparecia por todo o lado, tornando tudo uma interrompida manobra, abortando o desejo e caindo de surpresa sobre as brincadeiras de Paula e fazendo-as parecer o que realmente eram, insídias do corpo que exigia o seu preço.

- Não sejas tão desconfiada - disse Maria Rosa, olhando à distância o polido das unhas. - São crianças.

- Ninguém sabe de que coisas imundas são capazes as crianças. Não sei como se demora tanto a crescer e a ter juízo.

Maria Rosa chamava à velha cozinheira a Czarina. Quando se casou com o Nabasco e entrou naquela casa que parecia um bivaque abandonado, com a Ronda a ocupar uma parede e a tapar as manchas de humidade, lá estava a Czarina, com o ventre duro como pedra e os olhos como pevides de melancia. Tinha assistido aos casamentos e aos partos das mulheres, vira morrer muita gente. - Nada de mais. Parecem escapar de qualquer coisa e aproveitam a ocasião de estarmos mais distraídos: ou a almoçar, ou a mandar as vacas para a cobrição - dizia. O Nabasco morreu antes dela, o que pareceu causar-lhe confusão e desalinho nas ideias. Mas com a morte do Nabasco acabaram-se as vigílias, as entradas de surpresa nos momentos em que até Paula estava em perigo. Maria Rosa sabia que o seu leito era habitado por Paula aos quinze anos, tão bela que a luz que ela emitia iluminava a casa toda. O pai coçava-lhe as costas, estando Paula debruçada sobre a mesa da braseira onde se jogava, depois de jantar. Os dedos dele eram hábeis para procurar pequenas saliências na pele, e Paula sentia gozo naquele catar, arranhar, desprender de crostas mortas.

- Anda, Paula. São horas de deitar. - A Czarina aparecia com o grosso avental de cozinha que tinha um remendo quadrado como um brasão duma bandeira.

- Tão cedo!

O Nabasco calava-se, suspenso, alerta, sem mostras de ser apanhado na sua pesquisa que lhe trazia à garganta um soluço de prazer. Esperava qualquer coisa, a morte da Czarina talvez, tanto mais que ela sofria do coração e era preciso aplicar-lhe ventosas para que respirasse nas suas horas de crise. Ventosas, estricnina, receitas que soavam a mistérios de alquimistas. Mas Paula casou antes de fazer dezoito anos e saiu de casa no Inverno, coberta de peles, e até os sapatinhos suíços eram forrados de pele de rato ou coisa parecida.

O Nabasco ficou desapontado; passou a ir à cidade mais demoradamente, e Maria Rosa sofreu o abandono da sua carne, que era ainda exigente e que se julgava apetecível.

Não se podia saber se avinda de Judite não correspondia a uma forma de criar elos entre os parceiros do amor. A Czarina recebeu-a com indiferença aparente, mas dedicou ao caso uma atenção cautelosa. Sabia que o seu cansado coração já não podia acompanhar a grande ronda que era necessária naquelas situações. Talvez fosse ela a única pessoa capaz de descobrir quem era a criança metida na Ronda como por acaso, munida de poderes mortais e tão feliz no meio dos homens que se preparavam para obedecer a uma ordem. Era o desejo na sua forma irresistível e compulsiva, capaz de provocar as desordens mais alucinantes, como serão capazes os bons rapazes da Ronda da Noite. Um dispara o seu arcabuz, outro faz rufar o seu tambor. Tudo está preparado para uma ligeira carga enfeitiçada de sentidos fáceis, mas, de facto, cheia de enigmas, de horrores, de maldosas faces, como a do pequeno feiticeiro que acompanha a alegre Saskia, nessa altura já arrastada para o seu coval.

A Czarina bem merecia figurar na Ronda, com a sua cara sardónica e o olho espreitador. Com a entrada de Judite na casa, que já era outra e depois foi o Torreão Vermelho, as coisas mudaram de rumo. A Czarina era praticamente uma moribunda, não podia percorrer os corredores com as suas chinelas de pano, sem dar sinal da sua presença nem ao cão de Maria Rosa que dormia no seu cesto, ressonando ou, nos sonhos, perseguindo os gatos.

Como aconteceu o Nabasco morrer tão inesperadamente, com o copo na mão, na sua cadeira de bunho, não foi sequer muito comentado. Ninguém se lembrou de tirar-lhe o copo da mão senão a própria Czarina. E quando Horácio Assis, o médico, chegou, já o Nabasco estava estendido na cama do casal para ser observado. Os ramos da palmeira, no jardim, defronte da varanda, moviam-se e a chuva começava a cair. A presença dum morto não impedia que a casa fosse achada confortável, um verdadeiro ninho de amores à margem do sistema conjugal. A pele de leão com a bocarra aberta, parecia acolhedora. Mas Maria Rosa recusou-se a continuar na Casa do Cão por mais tempo, motivo por que voltou ao solar da Ronda, onde Martinho passava muito tempo.

- É tempo de encontrarmos lugar para ele - disse Martinho. Falava do quadro, que parecia ter crescido na parede da sala de jantar. De facto, era uma tela enorme, coberta por uma camada de sujidade que lhe dava a cor nocturna e patética. De facto, fora pintado para a luz do dia, e nisso consistia a sua força orientada para um acto diurno e aliciante. Depois de muitos anos e da mudança para o Torreão Vermelho, a Ronda encontrara por fim o seu lugar, se não certo, pelo menos adequado às suas dimensões. O salão nobre do Torreão Vermelho, com todas as incongruências de estilo que o cutileiro tinha adoptado, arte-nova e restos duma pesada carga político-literária do século XIX (o famoso retrato de Vitor Hugo estava nos corredores e invadia até os quartos de dormir), abrigou a Ronda. Depois ela ainda mudou para a antecâmara, ao cimo das escadas, onde podia ser vista por todos os visitantes sem que significasse uma desconsideração de qualquer género da família Nabasco. É certo que muitas pessoas, até as mais íntimas da casa, nunca tinham visto a Ronda da Noite. Por exemplo, Patrícia Xavier nunca lhe tinha posto a vista em cima, e morreu sem ter conhecido a tela que, de resto, era tida por falsa. Porém, Patrícia sempre se mostrou solidária com a opinião de que a Ronda merecia ser investigada. Um antigo Nabasco fora embaixador na Rússia e recebia presentes valiosos de que ninguém fez caso quando ele se retirou e se tornou uma espécie de boiardo da região, falando apenas francês com o seu barbeiro que era também o seu sangrador. A tigela das sangrias ainda estava no lavatório de mármore rosa e, durante muito tempo, ninguém sabia para o que servia.

A Ronda excedia muito um presente entre parceiros da diplomacia. Não era possível datar a sua chegada a Portugal, mas tinha-se adiantado a hipótese de que teria feito parte da espécie de saque que a duquesa de Mântua, vice-rainha deposta, levara consigo na altura da Restauração. Havia muito de complô naquela história da emancipação de Castela, e a duquesa não foi impedida de carregar os tesouros que lhe apeteceu levar e ganhar as suas terras em perfeita segurança. A Ronda seria parte desse tesouro, não como próprio, mas sendo ela a guardiã de muitos valores que pretendia repartir com a princesa de Carignan, sua cunhada, tão altaneira e insuportável como ela. Atribuíram ao feitio da duquesa, inepta e sem diplomacia, os incidentes de Lisboa. Cinco anos antes da sublevação de Portugal, já a duquesa de Mântua era julgada pelos fidalgos portugueses como criatura desrespeitosa e impossível de aturar.

A ser verdade que a Ronda viajava na bagagem da duquesa, sempre lamurienta e queixosa do pouco dinheiro que recebia da corte, seria ou não a Ronda, original? Em 1642 foi quando Rembrandt pintou o seu quadro. Teria pintado outro antes dessa data? Em 1643, a Mântua estava em Madrid, a pedido da rainha, e a intriga das damas ia selar a queda de Olivares.

Um dos erros de Filipe III teria sido o rompimento da trégua com os Holandeses. E se, antes disso, perante os auspiciosos tratados de matrimónio entre a infanta Maria e o príncipe de Gales, o quadro fosse encomendado? Ele transpira uma graciosa aura de preparativos para algo festivo que se vai dar. Não é uma ronda, é uma festa.

Chegado a este ponto, Martinho perdeu completamente contacto com o mundo real e particularmente o mundo de Judite que se anunciava tempestuoso. A ideia de a Ronda poder ser outra coisa muito diferente da companhia do capitão Cocq, transtornou-o a ponto de lhe provocar um estado febril e dores musculares. O doutor Horácio receitou-lhe conforme os seus conhecimentos, inclinando-se para uma febre reumática, o que o comprometeu com medicamentos que se revelaram ineficazes. Dum lado, Maria Rosa com o seu esquadrão de médicos em franco galope; doutro lado, a Ronda tornada uma obsessão cada vez mais ansiosa, parecendo ter um destino que subitamente pode interromper a respiração do seu estudioso. Martinho emagreceu até se lhe conhecerem os malares; tinha uma veia na fonte que se tornara saliente e que lhe doía.

No dia em que fez uma descoberta que o tornou de repente mais febril, Judite veio pedir para lhe falar. Achou-o doente, mas não quis acentuar isso. Conservara-se direita diante da mesa de trabalho do marido e os cabelos loiros caíam em massa pelos ombros.

- Tenho que lhe dizer uma coisa importante - começou ela. Martinho arredou alguns papéis como se lhe fizesse lugar, e esperou. - É que o meu pai sai da prisão daqui a pouco e eu vou viver com ele.

- Não tinha apanhado a pena máxima? Desculpe... Então está em liberdade não tarda... - Calou-se, calmo, sem perder de vista os livros abertos e as notas que tinha tomado. - Acha uma decisão certa?

- Não sei.

- Não sabe e faz as malas como se fosse para as termas? Não volta mais?

Ele teve a noção absolutamente segura de que Judite matara a Estrelinha Sopa-de-Massa. Tudo era duma simplicidade assustadora, mas ele não podia desviar-se da pequena vivandeira da Ronda da Noite e da descoberta extraordinária que tinha feito: que no retrato da mulher do conde-duque de Olivares se via uma pistola pendurada à cinta por uma fita de seda. Era um sinal de poder, um poder doméstico e absoluto que Quevedo louvara em termos encomiásticos? Inês de Zuniga, sobre o seu vasto guarda-infante, ou seja, as anquinhas, mostra claramente a pistola ao alcance da mão. De qualquer maneira, Martinho teve a ideia, a que não pôde furtar-se nunca mais, de que a Ronda tivera duas orientações: primeiro, era uma parada festiva, duma anedota em que tudo mexe e se destaca; depois, desaparecido o sentido da Ronda, talvez o fim das tréguas com a Flandres, erro reconhecido na história militar e diplomática espanhola, a tela ficou abandonada. Quando o riquíssimo capitão Frans Banning Cocq lhe pede que pinte a sua companhia, Rembrandt não hesita: tira da sombra do atelier a grande parada, que não condiz de facto com o teor do tema que lhe foi apresentado. Por isso foi mal recebido, suscitou risos e escândalo. A sua glória será póstuma. O que fez o pintor não foi inventar uma parada alegre e quase carnavalesca, mas fazer o retrato do senhor de Purmerland que está prestes a dar ao jovem Vlaardingen ordem de marcha. Atrás deles todos os outros mantêm o humor inicial, inclusive a pequena Saskia mascarada e os energúmenos envolvidos na festa, entre os quais haveria outras personagens de fábula que dariam sentido ao enigma da Ronda da Noite. O senhor de Purmerland, e o seu lugar-tenente encobrem o que poderia explicar aquele tumulto cheio de improviso e alegria. São dois quadros: um folião e desordenado, outro destinado a retratar homens que não têm nada de improvisado nem de estranho à sua classe.

Martinho olhou para Judite com uma espécie de reconhecimento.

- Sente-se, não fique de pé. O seu pai é assim tão importante?

- Devo-lhe muito - disse Judite, com voz fraca. Era uma decisão tomada há muito, desde talvez em que o ouvira uivar de dor, estando a ser interrogado no armazém onde empoçava o vinho escuro, como sangue. Ela julgou que era sangue, quando o levaram.

- Não é sangue, não vês que não é?

Mas para ela aquilo estava assente e significava um lugar de suplício, imerecido, injusto. Nessa noite rebentou-lhe o primeiro óvulo no ventre e ela ficou menstruada. Por muito que se lavasse o sangue, em postas escuras, não parava. E Judite achou que ia morrer, o que lhe deu uma certa esperança, não sabia de quê, não sabia na verdade.

Martinho, ao acordar da surpresa que a mulher lhe dera, sem parecer fazer mais do que dar a notícia duma pequena alteração na rotina caseira, perguntou a ele próprio o seguinte: seria que a revelação repentina que tivera correspondia à realidade? "Esta rapariga ficou doida na noite em que mataram a mãe e está aqui como tal. Tenho que ficar quieto e deixar que as coisas levem o seu rumo." Maria Rosa chamou-o e disse-lhe:

- Judite sempre me saiu uma vadia! Não esperava isto. Etu?

- Eu espero tudo de toda a gente. É como na Ronda, se me faço entender. Todos preparam a entrada num papel que pode nunca acontecer. São ligeiros e felizes na expectativa, mas depois da ordem dada pelo capitão, não se sabe como agiriam.

- Tu e a tua Ronda que está a tirar-te o juízo todo! Olha, meu menino, segura Judite e não a deixes tomar atitudes. As pessoas não foram feitas para tomar atitudes, mas para resistirem a elas.

- Eu penso que Judite matou a mãe, a tal Estrelinha Sopa-de-Massa e o pai foi condenado mas estava inocente.

- E se fosse? Ela não tem nada que tomar uma atitude e ir servi-lo como o escravo Jau ao Camões. É tua mulher.

- Antes disso, já tinha doze anos de duradouras lembranças. O cheiro do pai quando entrava e despia o colete donde tirava os cigarros e a navalha, não era para esquecer mais na vida. São coisas imensas como o mar.

- Não a amas, é o que é.

- Amo-a mas não como coisa minha. Estou a vê-la como a pequena feiticeira da Ronda, a escapulir-se daquela barafunda. Nada a pode impedir. Eu não a posso impedir. Rembrandt não a pôde impedir e deixou ver como era bonito ela passar por detrás do capitão Banning Cocq. Podia tê-lo pintado mais para a esquerda e apagar a pequena criatura da pistola e do frango à cinta. Mas não quis.

- Só dizes disparates. A Ronda deu-te a volta à cabeça e não há remédio. - Mexeu-se tão sacudidamente na cama, alisando a dobra do lençol e fazendo voar as almofadas por cima dela, que o cão no seu cesto levantou a cabeça e gemeu como se receasse um castigo.

- Está a assustar o cão - disse Martinho. Não perdia nunca o sentido das prioridades. De todas as coisas que mais admirava no mundo, não eram os gregos nem os egípcios, mas Emily Bronté, tão apagada, tão desconhecida na manhã fria da sua charneca. Ela, com a escudela dos cães na mão e os animais a babujar com as beiças no caldo de farinha e ossos. Depois ela sentou-se à lareira, e morreu. Isto sim, é que é ter o sentido das prioridades. O que nos é pedido segredado ao ouvido, selado na fronte angélica dos homens.

Martinho disse:

- Não ouvi bem o que Judite estava para ali a falar. Estava preso a outras coisas. A pistola no cinto da duquesa de Olivares.

Maria Rosa desistiu de continuar a conversa. Aquele neto, educado para ser primeiro entre pares, revelava-se uma pessoa muito perto de ser doida. Tinha ideias que mais condiziam com adivinhações do que com qualquer outra coisa.

- Diz à Elisa que me traga o chá.

Elisa já tinha morrido e a Czarina também. Quem andava pelo Torreão Vermelho, com um pequeno transmissor no bolso, ou então um telemóvel sempre cheio de mensagens eram meninas novas que cuidavam da pele como a imperatriz Popeia. Temiam mais a celulite do que a febre das aves.

Judite não partiu logo. Como as amantes de longa duração, tinha acumulado roupas e objectos de todos os feitios e de improvável utilidade. Como tinham aparecido aqueles malões de cabina forrados de cretone às flores, não se podia conjecturar. Ocupavam os corredores e dia após dia enchiam-se até às bordas de roupas e adereços, caixas grandes e pequenas, todas elas com estojos de luvas e jóias de pechisbeque com que Judite gastava fortunas. Parecia a partida de Eva Braun de Berghof, e não uma simples mudança de vida duma burguesa sem importância, como Judite se qualificava. Pela primeira vez Martinho compreendia que ela o invejava, deixando na sombra qualquer afecto que tivesse nascido nos anos de casados. As mulheres não se dão bem com a felicidade. Se Martinho a tivesse tratado mal, ela não se tornaria tão vingativa e sedenta de qualquer espécie de reparação. Judite não perdia a ocasião de louvar o bom entendimento conjugal, fazendo sobressair as virtudes do marido. Mas seria ela sincera? Não preferia que ele a desprezasse e a agredisse de qualquer maneira? Um bom marido sabe que às vezes é propício a relações saudáveis, de sexo e de tudo o mais, aplicar umas pequenas punhaladas nas costas da paciente esposa. Luís XIV ridicularizava as pretensões de nobreza da sua "rainha" Maintenon; e decerto isso ajudava a que se entendessem bem na cama, fazendo do amor um cruzeiro de longa distância.

Mas Martinho, tão correcto, incapaz de humilhar Judite em privado ou em público, não podia, por isso mesmo, esperar gratidão dela. Ela punha um certo gosto de espectáculo ao fazer carregar os malões escadas abaixo (porque não cabiam no pequeno ascensor de serviço) e olhava, desde o varandim do patamar, como se estivesse na amurada dum barco, e partisse para as índias Orientais, as operações do carregamento das malas, fardos e uma infinidade de caixas onde chocalhavam coisas metálicas, pratas decerto de boudoir ou até argolas de guardanapos e molduras de retratos. Judite revelava-se uma mulher de negócios naquilo de se apoderar de bens que praticamente não lhe pertenciam.

- Meu Deus - disse Maria Rosa, estupefacta -, ela levou o meu binóculo de teatro que estava num saquinho de veludo lilás. Para que quer ela um binóculo de teatro? Tu fizeste infeliz essa mulher para que ela ficasse tão avarenta.

- Eu? - Martinho estava pouco concentrado na partida de Judite. Tudo aquilo lhe passava por cima da cabeça e já se habituara aos malões abertos e àquele despejar de gavetas como se fosse o esventrar dum corpo. Ficava para trás um velho peignoir, o que provocava uma sensação de desprazer quando mais tarde o descobria.

Entretanto estava todo envolvido com a Ronda, tendo feito um dossier que, a avaliar pelo número de páginas, era um verdadeiro roteiro de navegação do famoso quadro. Não pôde ir além dum tal Salmanazar Figueiroa, que esteve na Flandres em data aproximada à celebridade de Rembrandt, e que poderia ter trazido a Ronda para Portugal, de maneira a ela cair no tesouro da duquesa de Mântua. Sôfrega como ela era de honras e de dinheiro, talvez aceitasse a Ronda como penhor dum apreço que ela não assegurava devido ao feitio orgulhoso e inapto. Nesse tempo, talvez a companhia do capitão Banning Cocq não tivesse tanto valor e fosse fácil negociá-la, sobretudo depois do mau recebimento que teve ao ser exposta ao público.

Tudo isto deixava Martinho Nabasco cada vez mais perplexo e envolvido com o que considerava uma tese de doutoramento, a possível duplicação da Ronda ou o significado primitivo do desfile de rua, sem a participação das personagens de primeiro plano. Entretanto Judite ia arrumando a sua bagagem, que se tornava cada vez mais volumosa; era vista, sentada no chão, de pernas cruzadas, como quando jogava o jogo das cinco pedrinhas com as companheiras de escola, e assim ia destribuindo retratos e cartas que queria ou não levar com ela. Podia dizer-se que preparava uma mudança como quando há uma morte em casa, e só o cão de Maria Rosa se apercebia de quanto aquilo era suspeito. Com esforço, saía do seu cesto para ir fazer sentinela à porta do quarto e depois voltava a amodorrar, uma orelha pendente da cama dele e definitivamente desinteressado do mundo. Sofria duma grave doença do coração e estava proibido de correr atrás dos gatos e de engordar, ambas as coisas pesavam mais no seu estado tido por desesperado.

Maria Rosa tinha dito que só se mantinha a viver no Torreão Vermelho enquanto o seu cão mexesse a cauda e a olhasse com os seus grandes olhos castanhos. Era um spaniel cor de canela, que tinha o nome aristocrático de Lemy de La Vallée. Ocupava no coração da sua dona um lugar insubstituível. Todos sabiam que uma vez morto Lemy de Ia Vallée, Maria Rosa se mudava para um apartamento em frente ao mar, e nessa altura Martinho tinha de decidir levar a Ronda para onde ela coubesse, decerto outra vez para o solar transmontano donde ela viera. Era mais do que certo que Martinho não abandonava o quadro nem a sua decifração.

- Cheguei até aqui, hei-de ir até ao fim - dizia. O doutor Horácio Assis achava que ele estava doente do juízo, ainda que admirasse as brilhantes deduções de que Martinho era capaz. O caso da pistola à cinta da pequena Saskia era explorado com suma perspicácia e inteligência. Fora descobrir que Inês de Zuniga, esposa do primeiro ministro Olivares, fora pintada por Juan Carreno de Miranda, bem no estilo de Velasquez e tinha à cinta, pendente duma fita de seda, uma "surpreendente" pistola dourada. Era um símbolo de poder ou de pura afectação em contraste com a juventude da retratada, no esmerado traje de corte com delicados laços rosados. Rosa que também se vê nas mangas e por entre as plumas do penteado. Embora Inês de Zuniga, condessa de Monterrey, não tivesse grandes encantos físicos, aos vinte anos, com alguma deferência do pintor, podia ser retratada como uma beldade, dando no entanto ao seu olhar uma expressão de inteligência furtiva. Martinho apurara que Inês de Zuniga e Velasco participava com o seu marido e parente, o conde-duque de Olivares, de 2664 linhas de estirpes reais e 169 de santos. A razão da pistola à cinta resta insolúvel, o que maravilhava Martinho, pondo-o na perseguição de porfiadas e contínuas pistas. Porquê a pequena Saskia, feita vivandeira ou o que fosse, leva presa à cinta uma pistola e uma galinha morta?

É possível que a entrada de Maria de Médicis em Amesterdão (rainha-mãe em França) motivasse os artistas para glorificarem esse acontecimento. Mas Martinho pensava que o quadro de Rembrandt não entrava no número dessas obras de circunstância. Como outras, na sua vasta galeria de retratos e de factos de celebração urbana, a Ronda da Noite fica por relacionar com qualquer encomenda. Rembrandt não pintava só profissionalmente. Uma parte dos seus quadros são indecifráveis. Obedecem a um temperamento agitado que se manifesta sobretudo na década de 1630-1640.

Esta contínua busca em que, sem dar-se conta, Martinho mergulhava cada vez mais, fazia com que tudo o que se passava à sua volta tivesse pouco relevo e merecesse pouco da sua atenção. Debateu com Maria Rosa a partida de Judite e manteve-se sempre numa linha que tocava a irresponsabilidade.

- Achas que ela acaba por pedir o divórcio? - disse Maria Rosa, nesse dia enroupada e séria, o que lhe dava um ar de doente.

- Divórcio? Não acredito. É um plano burguês que não me assenta bem. Dou-lhe o que ela quiser para viver com conforto, ela e o pai que, ao que parece, bem o merece.

- Achas que Judite matou a mãe? Imagino como foi. Com a tesoura de vindimar que a própria Estrelinha trazia no bolso. Caiu e a Judite apanhou-a. Talvez não soube o que fez.

- Talvez - disse Martinho, distraidamente. Media com o olhar as dimensões do quarto da avó, uma verdadeira cripta com janelas que pareciam vitrais e que ela velara de musselina rosa-claro. Como nos anos cinquenta do cinema americano, revelador da vida dos ricos e das suas extravagâncias. Ele estava a pensar que Rembrandt não podia pintar ali a Ronda, como não a pintou na sua luxuosa casa; terá utilizado um alpendre ou um pátio interior. "Ele tinha o seu lado de doido, não tenho dúvida", pensou Martinho.

Ouviu à entrada da casa o carro de Judite, barulhento e rouco. Era um pequeno carro de sport, amarelo, que ela conduzia com precauções; mas nesse dia parecia querer demonstrar qualquer coisa de mais desafiador. Martinho desceu para a despedida. Os famosos malões de cabina tinham desaparecido e o corredor do primeiro andar apresentava o ar ministerial, com um sofá e dois cadeirões, separados entre si, como se fossem destinados a visitantes estranhos, de etnias diferentes, por exemplo: um negro muçulmano e um sikh de Benares.

Quase não reconheceu Judite. Nem um dos seus caracóis loiros era visível, escondidos debaixo do chapéu de abas de couro preto. Tinha um rosto mais fino e os olhos azuis escuros não se distinguiam por detrás dos grandes óculos de sol. Martinho teve o pressentimento de que estava a despedir-se duma desconhecida. Ela beijou-o repetidamente na cara e fez notar que ele não se barbeara naquela manhã.

- Não me parece com boa saúde - disse ela. Talvez tivesse lágrimas na voz. Ele retribuiu-lhe os beijos e ao abraçá-la, o chapéu dela caiu para trás e os cabelos cortados rentes apareceram.

- Onde estão os seus caracóis? Parece que vai tomar o véu nas carmelitas ou coisa parecida.

- Não vou tomar o véu, mas trata-se de professar, é um pouco isso.

Martinho comoveu-se, de repente; apanhou o chapéu do chão e entregou-lho, não sem antes sacudir um pouco a aba. E disse, duma maneira absurda:

- E se fosse uma sátira? - Estava a pensar na Ronda e nas infinitas avaliações feitas no sentido de a explicar como alegoria ou como padrão de festa. Como no quadro da autópsia dum criminoso, havia um sentido oculto na composição da cena. Era macabra no seu academismo mas, ao mesmo tempo, tinha qualquer coisa de hilariante. O corpo inchado podia de repente explodir e banhar os doutores de fezes e líquidos infecciosos. Eles não pareciam preocupados inteiramente com a lição do professor Tulp, excepto para obedecer a uma admiração pelo mestre que se pode dizer estar a retalhar uma luva. É frequente na pintura de Rembrandt uma nota satírica, possivelmente própria do artesão que se vê preterido na hierarquia social porque "trabalha com as próprias mãos". Abrir e dissecar o cadáver dum criminoso é serviço mais limpo do que o seu. Quando se casar escolhe uma mulher que não tenha de corar pelo ofício do marido. De resto, uma mulher rica. Não esqueçamos que Rembrandt gosta do dinheiro e se faz pagar regiamente. É um pintor cru, se não sanguinário, e tem aquele dom que lhe atribuem de pintar o Cristo como homem vulgar, descalço, quase sempre tímido e que parece incorrupto pela sua própria inocência quanto a uma missão. O que caracteriza Rembrandt é a sua vontade de poder que o faz tão prodigioso trabalhador, tão insistente nos retratos dele próprio. Ele não quer pintar um Deus; o Cristo de Emaús não passa dum pobre que se senta à mesa com desconhecidos e que gostaria de não ter que se revelar. Martinho achava-o maior do que a própria obra e não podia senão fazer dela, da obra, uma carta de identificação.

A partida de Judite não deixou um grande vazio. Parecia que a esperavam a qualquer momento e durante uma semana uma camisa de dormir dela esteve sempre desdobrada na cama e os seus chinelos prontos a serem calçados mal ela se levantasse. Nem sempre os chinelos estavam de biqueira virada para fora, como exigia o protocolo da criada de dentro. No tempo de Maria Rosa, ela era capaz de acordar uma criada às quatro da manhã para lhe colocar os chinelos correctamente, a biqueira virada para fora. Tempos esses que ela não queria que voltassem. Tudo era mais difícil de gerir e de ter em ordem. Agora ela só queria meter-se num andar frente ao mar e não sair de lá para nada. Lemy de la Vallée era um impedimento a esse projecto; embora estivesse cada vez mais obeso e efegante, não morria. Tornara-se irascível, como quase todos os velhos, e mordia as pessoas por pura antipatia. Até mordia Maria Rosa de vez em quando, afastando-se em seguida para retomar o seu lugar no cesto. Foi preciso pôr uma cancela no cimo das escadas para que ele, ouvindo no jardim o regougar dos gatos, não se precipitasse com todo o seu peso, louco de cólera. Lemy de la Vallée tinha recuperado a memória dos seus antepassados, caçadores carniceiros. A ociosidade fizera-lhe crescer o pêlo ao torná-lo cão de companhia e todo ele era um sedoso manto dourado que ia perdendo o brilho. Urinava em qualquer parte e, enquanto o fazia, punha um olhar de través que parecia desfrutar da sua impunidade.

- Devia abater-se esse cão - dizia Martinho. Não sabia que era o mesmo se lhe dissessem a ele mutilar a Ronda para que coubesse no seu quarto.

A sua investigação sobre a Ronda assumira foros de paixão, ora idílica, ora atormentada. Estava convencido de que se tratava duma espécie de sátira dedicada à visita de Maria de Médicis a Amesterdão. "A banqueira", como lhe chamava a sua rival na cama real, não podia deixar de render homenagem à cidade provavelmente mais rica do mundo. Só ali Rembrandt podia auferir um pagamento tão exorbitante pelos seus retratos. Nunca se achava respeitado e admirado como lhe era devido. E o facto de Maria de Médicis o incluir na sua lista de pintores que devia honrar, não fosse ela uma florentina protectora das artes, não o satisfazia. Sabe que a rainha lhe prefere Rubens e que este a pinta em estilo de alegoria, cobrindo as paredes de Versailles a ponto de a igualar às Junos e às Ceres, duma maneira escandalosamente fútil em toda a sua ridícula grandeza. O alegórico não é o estilo de Rembrandt. Os seus retratos são íntimos, surpreendem um gesto familiar, a entrega dum bilhete, a explicação dum versículo a uma mulher-criança, quando o que ela queria era ir à janela ver passar os arcabuzeiros. Tudo nele é vingativamente conforme a realidade. As carnes das suas Susanas no banho não são apetecíveis. São moles, de ventre muito parido, quase repelentes sem os seus atavios. Mas outro dos enigmas que se deparou a Martinho foi o rosto da pequena Saskia. Estava pintado de maneira pouco anatómica, como a cara da Maja desnuda, de Goya; o que fazia supor que havia ali uma sobreposição (como de resto já foi afirmado antes) e que Rembrandt não quis que o modelo fosse reconhecido. Ainda que os seus conhecimentos de anatomia fossem precários, como se vê pela lição do doutor Tulp, só um olhar muito penetrante podia encontrar qualquer anomalia na cabeça da estranha figura de mulher-criança. Deixou-lhe porém os símbolos que se querem relacionar com os arcabuzeiros, como as garras duma ave. E a pistola, perfeitamente indecifrável se não a formos encontrar no retrato de dona Inês de Zuñiga, mulherdo conde-duque de Olivares. Nesse caso, com a tendência pelos símbolos exteriores dos espanhóis da época, a pistola dourada significava um poder absoluto na corte e propriamente na casa senhorial de origem. Era este um caminho que Martinho percorreu durante meses a fio, uma vez que o seu estudo da Ronda o ocupava como se fosse um tema de laboratório. O estudo de Georg Simmel sobre Rembrandt rompeu algumas brumas que até aí impediam Martinho de obter resultados na sua busca. Diz Simmel: "Na fisionomia do retrato de Rembrandt sentimos muito claramente que um curso vital, unindo o destino ao destino, engendra esta imagem presente". A mobilidade da vida está maravilhosamente captada na presença do instante.

Não são só os desenhos de Rembrandt que têm algo de inacabado. Toda a sua obra tem essa respiração que se prolonga noutro quadro, o que torna o simples bosquejo em algo mais do que um movimento genial da mão sempre em experiência e gozo da sua arte.

A avó perguntou-lhe, a Martinho, se a atenção dedicada ao impenetrável conteúdo de um quadro não o desviava da área humana e não o tornava árido para o relacionamento com as pessoas. Como com Judite, que parecia ter-se escapado duma ratoeira onde, mais tarde ou mais cedo, deixaria a vida. As notícias que ela prometera mandar tardaram a chegar. É certo que ela nunca ia traduzir as suas impressões quanto ao encontro com o pai que achava uma pessoa do seu meio, com um sabor que fica para sempre no paladar.

- Nunca tive ilusões a esse respeito - disse Maria Rosa, que estava a banhar as suas pérolas em água do mar para lhes conservar o brilho, ao que julgava.

- Ela nunca disse nada sobre o pai, e acho que até tinha esquecido o nome dele.

- Grande prova de amor é esquecer o nome de quem se ama - disse Martínho. Judite passara por ele em diferentes maneiras; luxuosamente vestida ou nua como Susana no banho. As mulheres de Rembrandt nunca tinham um ar provocador. Talvez ele atingisse o âmago do feminino. A mulher talvez ame tão inteiramente a vida, que isto é algo de irracional para quem estiver na periferia do amor. Martinho tinha breves sobressaltos quando pensava em Judite como um corpo e uma alma. Tinha-os separado quando (outra vez Simmel) "o objecto e o sujeito do amor actuam sempre como uma completa unidade". Disse isto a Maria Rosa, que não lhe respondeu. Pôs-se a evocar a morte do marido, pregado na sua cama de hospital, alugada para que ele beneficiasse do mecanismo de que ela estava munida. Amara-o em corpo e alma? Recusava-se a velar por ele toda a noite e queixava-se.

- Não sou capaz. Os mercenários fazem isso melhor do que eu. Lavam e alimentam o corpo até isso nos parecer indecência. Eu não seria capaz de separar o corpo da alma.

Foram tempos duros, tanto mais que, com a morte, Filipe Nabasco deixava a descoberto uma série de dívidas e negócios mal parados. A venda de terras, a revisão de alguns pleitos que acabaram em acordos ruinosos, mas acabaram (Paula quis a sua parte sem perdoar um tostão), deram à casa algum desafogo. Os Nabasco viviam de heranças desde há séculos; quando estavam mais apertados de finanças, lá vinha o legado duma tia que nunca mexera no dote nem no enxoval.

E tudo se equilibrava, como um pião outra vez atirado, a dormir pela força do lanço. Depois eram outra vez as hipotecas, os empréstimos a juros de particulares. Paula não se calava com a sua parte do pai nunca bem definida e muito menos entregue. Dava-se uma dessas meadas de família em que todos ralham e todos têm razão. Terras ao abandono, solares arruinados, jóias, loiças, objectos de decoração, tudo era avaliado de forma exagerada, sobretudo se os avaliadores eram comprados, entrando na conspiração de forças. A inteligência amesquinhava-se, ganhava autoridade o que menos contava na pessoa, a cobiça e a fraude. Sobretudo os filhos de Paula, funcionários públicos de alta aliança com os sucessivos governos, reclamavam o melhor da herança impondo os direitos da sua posição.

Maria Rosa, que teve o desgosto de encontrar Lemy de la Vallée morto no seu cesto, uma bela manhã, desentendia-se de tudo.

- Essa gente não me é nada excepto meus herdeiros - dizia. Lemy de la Vallée fazia-lhe falta, era "algo que mexe" numa vida cada vez mais solitária. Também Horácio Assis, médico da casa há muitos anos, deixava de a visitar porque a saúde dele se ia deteriorando. Dizia sempre coisas acertadas e Maria Rosa apropriava-se dos seus aforismos como se dela fossem. "Entre dois que bem se querem um que pensa basta", dizia ele. Era ainda bela, loira, de pele lisa e pernas redondas como as duma rapariga. Paula não gostava que falassem na fresca aparência da mãe e atribuía aquilo a nunca ter feito nada, nem sequer mudado as fraldas dos filhos. Os cadetes, João e Bernardo, achavam a avó "gira".

- É pena ser tão rica, senão era melhor pessoa e nós também - diziam.

Aquilo que o doutor Assis sempre punha em relevo era que, depois de certa idade, não há filhos, há herdeiros. Maria Rosa, ao ouvi-lo, tinha um assomo de garridice e mandava fazer vestidos por atacado, caríssimos, ainda para mais.

- Aonde vai com esses luxos todos? - perguntava Paula, a quem ela desfrutava abrindo os seus armários cheios de coisas esplêndidas.

- É sempre bom estar preparada.

Referia-se a quê? A morte? A um casamento? No fim de contas Judite era mais doce e atenciosa. Por isso dera-lhe muita roupa, depois de escolher entre a que não usava. Roupa Chanel, que não era cópia mas autêntica, com franjinhas e botões originais. Mas depois que morreu Lemy de la Vallée que ela passou a chamar pelo nome de pedigree, De La Vallée du Devens, Maria Rosa mudou muito. Mandara tirar a cancela do cimo da escada e caiu até ao patamar em baixo, ficando muito amachucada. Não que se ferisse a ponto de ter que ser hospitalizada, mas ganhou o que se pode chamar "a vergonha da velhice". Vergonha de perder as forças que tinha por certas e intocáveis.

- Gostava de ter ficado nos meus setenta anos - dizia. - É uma idade madura, com alguma graça para os homens, com quem nos reconciliamos. A idade do corpo e da alma. Nada é visto em separado: o coração e o ventre descansam no mesmo sentimento, gratidão e ternura.

Mas quem a compreendia? Esperava que Judite ainda voltasse atrás e entrasse em casa com os seus baús cheios de setas e toucados de penas para distribuir pelos amigos. No fim de contas não acreditava que ela fosse uma Electra perniciosa, capaz de matar a mãe por amor pelo pai. Nada disso. Conhecia-a desde que nascera, era caladinha, olhava para a gente grande com assombro, escondia-se atrás da Estrelinha se lhe falavam. Ela ria-se, pedia desculpa. Era dessas mulheres que fazem do matrimónio uma estação de cio ou, melhor, um ofício sagrado. Remendar, mexer o caldo, esperar o seu homem, são estádios dum mesmo preceito. Deixam a saia sempre um pouco a escorregar-lhe pela barriga, às vezes um fio de sangue desce-lhe pelas pernas e elas sorriam, sem pressa em mudar o penso de menstruada.

Era Santo António quem dizia do púlpito: "Isso vale tanto como o pano duma menstruada", depreciando as honras deste mundo. Mas o pano duma menstruada vale mais do que sei lá o quê. Estrelinha Sopa-de-Massa sabia isso. E, assim, deixou que um fio de sangue escorresse à vista de quem lhe parecia: o taberneiro, gordo e manhoso em coisas de cama, e que foi o primeiro a acusar o Farinha de ter matado a mulher e quase jurava a pés juntos que o tinha visto, não perdia esse pequeno choque de prazer ao descobrir os sinais de calor numa criatura como Estrelinha. Embora fiel, ela gozava sempre dessa impunidade sexual que é oferecer sem sucumbir. Com a camisola interior manchada de vinho, suado e peludo, o taberneiro lançava do seu portal, no cimo da calçada, um olhar entendido e ávido, de que a mulher dele lhe pedia contas. E ele, santarrão e fechado nos seus desejos:

- Tás tola!

- Bem te conheço, anda lá com a tua vida, meu melro. Quem não te conheça que te compre.

- Tás a brincar comigo; se não, sabes o que te fazia...

Mas as brigas domésticas não passavam daí. Havia o freguês para atender, o vinho para servir ao copo, negro e, ao esbordar, vermelho como o fio de sangue nas pernas de Estrelinha. Ela voltava para casa. Tendo ido comprar fósforos, ou três ovos para a merenda, voltava com um sorriso esquecido na cara e perdoava às filhas as travessuras da ocasião. Gostava da vida de casada, do cheiro de homem em casa; de ver o cinto dele pendurado no cabide e de tudo que um homem deixa como conversa sem palavras. Raramente se beijavam, e nunca em público. Nem se tocavam sequer. Se Estrelinha queria que alguém lhe arranjasse a gola do vestido, ou apertasse o fio de ouro, recorria a uma vizinha, sendo as filhas pequenas. Nunca pedia ao marido, sabia que ele não lhe prestava esse favor.

Carregar um balde com água, pregar um prego na parede, acender a máquina de petróleo, sim. Mas nada de aflorar-lhe a nuca, apertar-lhe a saia com um alfinete de ama quando ela estava grávida. O amor não se quer mexido, era talvez o seu lema de homem.

Um dia mudou, fez-se mais evasivo, levantava-se de noite para ir fumar para a varanda das traseiras. Não a olhava nos olhos, mostrava uma ternura pouco habitual para com Judite, que tinha onze anos.

- Gostas de mim, Dita?

Atava-lhe os cordões do calçado, ela desatava-os às escondidas para o ver repetir aquilo. Achava a mãe garrida demais quando se compunha ou então suja, distraída, com ar de velha, achando gosto em desprezar-se. O Farinha desbocava-se quando ela lhe perguntava se tinha outras mulheres. Até desconfiou da artista de circo que fazia o número dos cavalinhos, quando o circo esteve na cidade. Em pequena, ela lembrava-se que era preciso expulsar o circo que esgotava as economias dos pobres e os deixava sem uma côdea, tão famintos eram da luxúria do espectáculo.

- Espectáculo é luxúria? - disse Maria Rosa.

- Se é!

Mas as ideias dele já tinham levado outro rumo e corriam na feição da Ronda da Noite que cada vez mais o prendia à terra. A desordem da arte atacava o princípio da autoridade, que estava a declinar no ensino oficial, nos laços conjugais, no dogma religioso. No entanto, Martinho tinha às vezes alucinações como a de ouvir tocar a campainha da porta e ir abrir. Deparava-se-lhe Judite, com o seu chapéu de couro preto molhado pela chuva. Abraçava-a tão apertadamente que sentia o ar fugir do peito dela. Era um amor sem razão, um amor por uma criminosa, sem instrução, sem fortuna alguma.

Mas o correr dos dias que passara com ela era inesquecível, fazia que um elo de corpo e alma se tivesse soldado com eles. O homem é infeliz enquanto não troca as leis que orientam a vida pública e particular pela virtude criadora da destruição. As suas paixões estavam a ser fixadas nas coisas passadas, coisas que não tinham algum poder sobre ele, que ele pode viciar, se quiser inventar, reconstruir como um puzzle desfeito e voltado a reunir em todas as suas peças que ocupariam outro lugar e não o que lhes fora destinado. Por isso é que a ordem de Banning Cocq não era obedecida. Atrás dele estava uma turba de pessoas felizes por lhe desobedecerem e que não preparavam qualquer cortejo; simplesmente, estavam a negar-se a cumprir fosse com o que fosse. Um entusiasmo fresco e cheio de actividade saudava a destruição da ordem. Assim, as figuras convencionais dos retratados ficavam tão destituídas de poder que fora isso que provocara o riso dos admiradores de Rembrandt; de repente, acharam-no fora da sua ordem, da sua marcha dos arcabuzeiros, das suas insígnias e bandeiras. Era a epopeia duma total destruição. A destruição necessária e vital em que o homem alimenta a criação que tem a seu cargo. Porém, destruir como no caso das guerras, das torturas, das sevícias brutais sobre os mais fracos, o que ganha um peso primordial é o prazer sexual. Entendendo isso, é preciso que outro consumo da destruição seja efectuado.

Martinho não ignorava que a sua porfiada busca em volta da Ronda, as suas imperativas razões, criações suas, se equiparavam a um prazer intenso que o comovia até às lágrimas; Judite nunca tivera aquele efeito sobre ele. Enquanto corpo, ela dera-lhe momentos de entendimento e de felicidade. Mas desde a hora em que o casamento se foi recortando dentro duma obrigação devoradora da sensualidade e do improviso, deu-se a separação. De vez em quando havia aqueles bruscos apelos, como realidades que pertencessem à liberdade mesma, tão exigida e tão aparentada com a destruição. E parecia-lhe ouvir chegar Judite e o bater da porta do seu carrinho amarelo. Sentia um frio na espinha.

- Quem tocou? Não vai abrir?

Respondia-lhe uma empregada nova, que trazia o tele-móvel no cinto, e para quem servir burgueses era uma coisa quase desonrosa. Descia, arrastando os pés como uma pessoa velha e deformada pelo reumatismo.

- Não ouvi nada, e tenho bom ouvido.

Não era ninguém; só um gato ou dois, o que sobrava da quadrilha que Lemy de la Vallée punha em debandada. O Torreão Vermelho ia-se esvaziando, na perspectiva da grande mudança que Maria Rosa preparava pode dizer-se que desde a cama onde vivia a maior parte do tempo. Por fim, uma queda até ao primeiro patamar da escada, donde retirou a cancela destinada ao cão, sem lhe causar danos de maior, inferiorizou-a mais. Nunca usava o elevador; tinha medo de ficar presa dentro dele.

Conhecia tudo o que acontecia em casa pelos cheiros e pelos sons. O peixe a fritar, as sopas a ferver; mas nunca mais o doce perfume das compotas, com um laço amargo nas grandes caldeiras de cobre, como se usava em casa dos pais dela. Advertia momentos de felicidade pousados como uma borboleta no fio das recordações. E apeteciam-lhe os antigos manjares há muito esquecidos, o redenho encrespado pela alta fritura, coisa que só se comia em Dezembro quando da matança dos porcos; sempre dois: um para gasto de casa, outro para o arranjo da caseira e os "precisos" dos trabalhadores. Vestia-se mal, um vestido durava anos e não o espaço duma moda. As tias casadas, vinte anos depois das bodas, ainda aproveitavam os vestidos do enxoval para andar por casa.

- Quando hei-de ter roupa bonita e tudo o que eu quero?

A mãe respondia-lhe que havia de ser conforme o casamento que fizesse: camisas de rendas e cambraia, se o noivo fosse entendido em luxos e mulheres de importância. "Que o luxo não se fez para os pequeninos", rematava. O que ela levou nos seus malões de casada não se acreditava. Ainda tinha guardadas peças de linho que nunca foram talhadas. Era preciso arejar e lavar tudo de vez em quando, um trabalho louco, pouco compensador porque o enxoval, o acumular, não era mais um investimento, era uma gestão duma personalidade em desaparecimento.

Como a casa ficava vazia, os ecos, as vozes, o bater de portas, os toques de campainhas tornavam-se mais acentuados. Era lúgubre o chiar dos armários, que pareciam gemer o seu abandono. Maria Rosa queimou papéis, cartas, recibos que davam, como ela dizia, para encher seis ou mais colchões. Um dia, deu por finda a sua tarefa e preparou-se para deixar o Torreão Vermelho. No fim de contas não levava saudades; tinha poucas recordações do tempo que lá vivera e fazia-lhe impressão o último lanço da escada que levava aos quartos das criadas. De Elisa, particularmente, cujo grito de apelo, quando estava mais sufocada, lhe era dirigido. Embora Maria Rosa tirasse os sapatos para não ser pressentida. A morte prolongada de Elisa incomodava-a como uma ofensa pessoal.

Levava com ela uma rapariga chamada Josefa, de cabelo cortado à escovinha e um ar de guarda prisional. As vezes aparecia com o cabelo pintado de vermelho e as unhas pretas pareciam carapaças de insectos. Era, no entanto, boa funcionária, como ela queria ser chamada.

- Sou a funcionária - respondia, ao telefone. Correspondia-se pela internet com a família que estava no Canadá. Todavia, pouco caso fazia da gente mais próxima, a quem chamava "os de cá". Tinha necessidade duma fantasia universal que dava vigor aos fenómenos da sua vida. Maria Rosa gostava dela. "Parece-se comigo" - dizia. Era difícil de acreditar que Josefa, feia e com aquela cabeça que parecia ter rolado do cesto dum patíbulo, tivesse alguma coisa a ver com a fina e elegantíssima senhora do Torreão Vermelho.

- Isso explica-se - disse Martinho, num dos seus momentos de distracção que a Ronda lhe permitia. - Cada um de nós tem um mínimo que coincide com o mínimo do outro. O que é feio pode tocar-se com a nossa aspiração ao feio. Não há fórmulas fixas para quaisquer fenómenos, eles entretecem-se uns nos outros.

De repente Maria Rosa não pareceu prestar-lhe atenção. Um golpe de velhice abateu-se sobre ela e, sem que houvesse antecedentes que o pudessem prever, instalou-se a morte à sua cabeceira. A febre não a deixou mais e, no seu quarto meio vazio, ela esperou o fim com uma espécie de indiferença amável. Nada a fazia reagir: nem o sol nos olhos (porque as cortinas tinham sido retiradas), nem a comida que dantes teria recusado por não estar ao seu paladar. Josefa estava comovida, fazia o seu melhor por a servir bem, mas não obtinha bons resultados. Era uma rapariga saudável, que gostava de cantar, o que lhe era permitido fazer quando estivesse fora de casa. Os irmãos tinham morrido em tenra idade e os avós davam-se por felizes com a sua reforma e os medicamentos pagos pela Assistência. Como se sentiam livres nas suas poucas necessidades, os laços profundos de família tinham-se diluído numa espécie de recordação tribal. Passavam a maior parte do tempo sentados à porta de casa, com as mãos abertas nos joelhos e mostrando-se descontentes mas não infelizes. Josefa tinha feito o décimo segundo ano, mas depressa esqueceu o que aprendera e soletrava mais do que lia. Foi um espanto, quando Maria Rosa morreu, que ela a mencionasse no testamento, pois era uma empregada nova e sem vínculos à casa.

- Nem sequer a tratou na doença - disse Paula, escandalizada ou ciumenta. Maria Rosa não sofrera de nenhuma doença, excepto de sintomas que não se puderam enquadrar num diagnóstico mais ou menos sólido. "Acordou morta", numa manhã de domingo, como disse Josefa que foi dar a notícia a Martinho. Este levantou-se, meio aturdido, mas sem pressas. Barbeou-se e vestiu um fato escuro.

O quarto da avó pareceu-lhe estranhamente arrumado; mas isso era efeito da retirada dos móveis e dos reposteiros que varriam o chão e nunca tinham sido mudados. Um jarrão de flores secas estava a um canto e Martinho mandou que as levassem, com medo que as velas lhes pegassem fogo. Antes disso tratava-se de lavar e vestir Maria Rosa. Ele sabia que a avó temia os mercenários, os seus gestos precisos, a sua habilidade quase marcial. Disse a Josefa:

- Vai buscar uma bacia, a de prata, que está no hall da entrada.

Ele próprio escolheu o vestido e os sapatos. Ele quis retirar a aliança, pareceu-lhe que Maria Rosa resistia. Fez uma pausa e depois puxou-a, sem olhar, e meteu-a no bolso do peito do casaco. Quando Josefa voltou com a bacia de prata, viu-a, na cama, estendida como uma imagem jacente, duma beleza austera. Não se podia dizer que era uma mulher mas um ser híbrido, de feições sólidas e conventuais. O efeito era tal que Martinho recuou para analisar melhor o bonito vestido preto com transparências dum cinzento marítimo. "Não lhe fica bem, vou mudá-lo." Entretanto lavou-lhe os pés com uma toalha, evitando esfregá-los, como se ela estivesse viva e se pudesse queixar. Eram pés grandes, secos; só um pequeno indício de artrose se percebia no dedo médio, muito chegado ao dedo grande, como na estatuária grega. Calçou-lhe meias finas, cinzentas; depois, como se romperam ao calçá-las, foi buscar outras, duma cor indecisa, de pérola. E, para dizer com elas, um vestido de grandes pregas que (ele sabia) tinha como complemento um manto com a gola de chinchila. "Paula vai-me matar"-pensou ele. Gostou de ver e acariciar a orelha de Maria Rosa, o pêlo doce ao toque como nenhum outro. "Vai, querida alma, sem lágrimas, com sorrisos." Voltou-se para afogar o pranto na garganta e Josefa pôs-lhe a mão no braço, familiarmente, o que Martinho achou irritante. A família veio tão depressa que parcia combinada para ocupar postos estratégicos numa operação bélica. Paula trouxe um esquadrão de espias que se meteu por todos os cantos a fazer o inventário do que restava. Admirou-se de ver tão poucos móveis. Alguns eram do tempo do cutileiro, grandes mesas, sideboards, louceiros que, vazios das suas loiças, eram como jazigos esventrados. Só alguns restaurantes e hotéis de luxo se atreveram a licitar no leilão que Paula organizou.

- E o colar? Espero que não o tenha debaixo da almofada -gemeu, prevendo a perda daquele emblema da família, já um pouco desbotado mas que Maria Rosa continuava a banhar com água do mar. Martinho tranquilizou-a.

- Ficou para si, minha mãe.

- Onde? Onde está?

Era uma sofreguidão de velha, como a Leonora Galigai, a favorita de Maria de Médicis; e que, em perigo de ser massacrada, se apegava às suas jóias como parte da sua própria carne. Esta ideia ocorreu a Martinho e ele caiu em si. Seria que a Ronda entrava no espólio da morta? Nessa noite faltou ao jantar de família e quando "os cadetes" o foram chamar correu a grande cortina que escondia o quadro e fechou-o à chave. Mas ninguém se mostrou interessado na Ronda da Noite. Estava classificada como uma cópia e as suas dimensões afastavam qualquer pretendente.

- Se eu pudesse recortar a rapariga do frango, levava-a para minha casa. Tem um ar pícaro e endiabrado que diz bem na sala dum homem solteiro - disse Bernardo que, todos sabiam, vivera em união de facto com um rapaz de boa gente, pintor de algum sucesso.

Em três dias o Torreão Vermelho foi saqueado e até o cesto de Lemy de la Vallée levou caminho. O quarto de Martinho foi poupado, mas ele preferiu não dormir mais lá. A avó tinha-se volatilizado. Segundo os seus desejos, fora cremada e, de repente, a sua imagem perdeu-se no ar, na espiral do fogo e no estrondo dos gases, como nas antigas cerimónias da Inquisição. Martinho fez por não entender o terrível processo que reduzia a cinzas uma pessoa tão querida e com tantas graças.

O que sobrava da fortuna dos Nabasco, que fora grandiosa e tivera períodos de ascensão conjugados com a escravatura e alianças, subornos, cumplicidades? Os negreiros contavam-se em surdina, mas eles lá estavam acenando das varandas pelos triunfos da liberdade. Os solares dos Nabasco, que eram cinco ou seis, couberam a Martinho. Um ou outro, destinados a turismo de habitação, estavam em parte defendidos de agressões maiores. Nem todos tinham as proporções ideais para abrigar a Ronda, que tinha estado muitos anos nas cavalariças onde cresceram árvores de grande porte. Uma palmeira, a árvore de Adónis, subira acima dos telhados. Martinho achou aquilo um bom presságio.

Mudou-se na Primavera, levando, com todas as precauções, a Ronda da Noite, que lhe oferecia todos os dias novos enigmas. Os enigmas eram propostas festivas no tempo de Alexandre o Grande. Martinho tinha levado com ele A Vida de Alexandre e, embora não a lesse continuadamente, folheava-a para tirar dela ideias encantadoras. E passava o tempo sentado num velho cadeirão de veludo pelado, a olhar para os seus próprios dedos entrelaçados. Parecia-se com um judeu sedentário, daqueles que contam histórias.

 

                               CAPÍTULO IX - CORPO E ALMA

Dava-se por feliz por não ter, como Dário, rei dos persas, duzentas pessoas de família à sua volta. No entanto, a presença de Maria Rosa tornou-se, durante um período que achou ser o do verdadeiro luto, muito insistente. Recordava o que lhe tinham dito, que os ossos não ficam todos calcinados com a cremação, e isso dava-lhe um sentimento de compensação, pensando que a ressurreição podia fazer-se a partir desses despojos.

Por algum tempo, repugnava-lhe entrar nas cavalariças onde velhas mantas e selas estavam abandonadas e a Ronda esperava por ele. Mas depois voltou o hábito de entrar na enigmática maneira de Rembrandt, naquilo que nele era inabordável e motivo de assombro sempre renovado. Não era só um assombro que parte do conhecimento da arte de pintar; era uma emoção convertida em carne e predicado dela que era talvez uma qualidade de partilhar com o mundo inteiro o valor da vida.

Deitava-se cedo, vendo ainda pelas frinchas das portadas o dia claro. Não lia na cama, mas variados textos dos livros que tinha lido lhe acudiam à memória. E saboreava-os, como se travasse com eles uma conversa desconexa e, no entanto, profunda em que a personalidade inteira dele próprio se desenhava.

Uma caseira vinha fazer-lhe a comida e os filhos dela depressa invadiram a casa, a ponto de Martinho pensar mudar-se mais uma vez. Mas a casa dos Nabasco, se não era a do crescimento da família, tinha qualquer coisa que existe nos quadros de Rembrandt: era a beleza, sem que isso envolva uma configuração clássica, mas tudo o que se pode adicionar como suas combinações, tanto o excitante como a paixão obscura do demoníaco. Abria uma porta e hesitava em transpor o umbral, de tal modo o acometia um sentimento de descoberta, de ir revelar o que ali estava guardado para ele.

As coisas compuseram-se no dia em que Josefa apareceu. Como a casa ficava no cimo duma colina e não havia estrada até lá, ela estava corada da subida e parecia quase agradável: vermelha como um pimento, como disse a caseira que lhe abriu a porta a contragosto, pressentindo que acabava de ser despejada.

Josefa trazia na cabeça um boné, desses que se usam para assistir às partidas de futebol, e o seu aspecto era caricato. "Como pintaria Rembrandt esta rapariga?" - pensou Martinho quando a viu. Pintava-a como ela era, descrevendo uma liberdade assegurada pelo auto-domínio, o que a fazia realmente parte dum acontecer cósmico. Olhou para Josefa com simpatia, como se encontrasse alguém da sua mais íntima relação. Notou que ela tinha a mão meio aberta estendida para ele. Adiantou-se e cumprimentou-a.

- Não a esperava, não senhor.

- Não venho incomodar? - Ela pousou o saco de viagem e olhou em volta, entregue à sua natureza doméstica que a levava a dar a cada objecto o seu lugar peculiar.

- Não. Gosto muito de a ver. - E pensou se ela se chamaria Josefa ou qualquer outra coisa. Ficou com a mãos entre os joelhos, sentado numa cadeira, a olhar para ela, como se esperasse uma explicação. Josefa desatou a chorar. Limpou o rosto com um lenço de papel amarrotado e não disse nada. Mas era evidente que ela queria ficar e que viera com essa ideia assente na cabeça. Era o único elo que Martinho tinha com Maria Rosa, uma coisa que lhe fazia chegar a vida desaparecida da avó. Mas o que de facto assegurou o lugar de Josefa foi o caso de ele a ter surpreendido na cama, ao abrir por engano a porta do quarto dela. A impressão que recebeu foi acompanhada pelo sobressalto de ter cometido uma indiscrição. Ela, com o braço direito inteiramente nu e o seio descoberto, tinha uma expressão de surpresa mas de obediência ao mesmo tempo. Parecia esperar que Martinho a mandasse fazer qualquer coisa, como recolher as gamelas dos cães cuja comida salgada os punha furiosos. Deixava-lhes água em abundância, o que os fazia cair numa sonolência pacífica.

Ele recuou um passo sem, no entanto, deixar que a porta se fechasse. Josefa era assombrosamente parecida com Hendrickje, a segunda mulher de Rembrandt, a sua beleza inculta arrastava uma sensação de conforto e de saciedade. Desde aí, a sorte de Josefa estava traçada. Ela ia ser a dona da casa, ia conhecer todas as chaves, todos os lugares de provisões, até aqueles que eram mais escondidos, quase subterrâneos. Onde as salgadeiras respiravam um suor salino; onde as caixas do azeite forradas de zinco mostravam, ao abrirem-nas, uma limpidez maciça como se contivessem âmbar. Josefa entrou na posse de todo o movimento da casa; das horas, repartidas como os espaços num quadrante solar. Agradava-lhe ser a serva, mais do que a patroa. E nunca, na sua cabeça, se poria a ideia de casar com Martinho ou fazer com ele vida conjugal. É certo que ele a procurava às vezes na cama; mas antes de a manhã clarear já Martinho estava no seu próprio leito, onde recebia o almoço abundante, o café a fumegar numa tigela vidrada e os pãezinhos frescos em que a manteiga derretia.

Só ela sabia entender os seus gostos, sabia alimentá-lo e dar valor à sua solidão. Porque Martinho, pela primeira vez, conhecia o calor duma vida que tem a consistência duma devoção. Para isso, era preciso que ninguém o acompanhasse e tentasse compreendê-lo. Ou esperasse qualquer coisa dele, como a partilha dos mesmos lugares e gostos. O que Josefa tinha de bom era que nada a rebaixava ou a punha numa situação elevada. Fazia o seu trabalho e não se preocupava senão com isso e apenas isso.

Perguntar a Josefa se ela o amava, seria criar uma textura absurda numa unidade sociológica cujo sentido se estropiava. E ele sentia como era confortável viver assim, sem dar explicações dos seus sentimentos e sem se deter com qualquer choque de situações.

Lembrava-se de vez em quando de Judite, mas sem saudade ou remorso. Quando um deles morresse, tardariam a saber isso; e até a comover-se, sendo preciso recorrer a imagens antigas, convencionais, como a do dia do casamento, do qual, o que melhor retinha, era o chapéu de Maria Rosa, preto com uma grande flor cor-de-cravo a balançar sobre a aba.

A casa foi ganhando a traça monumental para que fora criada. No tempo dos barões Nabasco ela não passara dum solar tradicional, com os três salões de entrada e as alcovas escuras que defendiam do frio. A escadaria exterior, talhada num granito tão grosseiramente como a pedra dum lavadouro, sofreu alguns retoques. Fora feita para ser usada por gente que morria cedo, sem artrites e dificuldades de movimento. Embora Martinho se lembrasse de ver descer os degraus, um a um, e de lado, um tio que nunca se casara e bebia a sua aguardente branca como água da fonte.

Uma das salas foi ampliada para receber a Ronda da Noite. Uma moldura de veludo carmesim fez desperceber as suas mutilações, e o cão encontrou-se tapado pelas pregas sumptuosas dum reposteiro. Podia dizer-se que Martinho criara um altar para o seu Rembrandt. Pouco iluminado, com um fulgor interior que estava em acordo com a cena espontânea e improvisada, o quadro parecia, mais do que nunca, uma brincadeira maliciosa que tocava as raias do abuso.

Este livro está prestes a terminar da maneira como devia ter começado. Pela paisagem. Não havia paisagem naquele retalho do cemitério visitado no dia de finados por Maria Rosa e Martinho. Havia apenas datas, sem nada que desse uma ideia da organização interna duma vida. Nascimento e morte era tudo o que ficava disponível; a paisagem, como a arte, concerta um sentimento de gratidão. Uma criança não a percebe; uma pessoa grosseira e inculta quanto à sua personalidade, não a distingue.

O lugar que Martinho escolheu para se fixar com a Ronda da Noite, pertencia a uma paisagem. Dizia-se (ainda que essa recordação não existisse mais e fosse apenas a prestação conferida a uma lenda) que a casa e os quintais, pomares e tanques, lavadouros e minas de água, tinham sido levantados sobre um cemitério romano. Dois ciprestes altíssimos faziam ainda sentinela a essa memória incerta.

Pelo lado da fachada, com as suas dez janelas de guilhotina, a paisagem era em descida que nada mais oferecia como acesso senão uma espécie de barranco bordejado dum lado por oliveiras, e do outro por uma sebe de amoreiras bravas. Foi por aí que Josefa subiu, como fazia toda a gente que encurtava caminho para aldeias mais altas e desconcertadas na paisagem. Mas, pelo lado Norte, a entrada principal fora há muito inutilizada pelos sucessivos Invernos que cavaram barrancos intransitáveis. Diversos planos, no sentido de restituir ao estradão antigo uma parte da sua viabilidade, foram abandonados pelos serviços públicos. O caminho servia apenas a casa dos Nabasco que, desde longa data, tinham abandonado a região, deixando a monte o que tinha sido uma espécie de castro inexpugnável.

Martinho pensou refazer a traça da estrada, mas não se apressou com o projecto. Gostava desse abrigo sinistro que o lado Norte tornava mais arcaico. O portão de ferro foi tudo o que ele ajustou nos velhos gonzos, tendo que substituir as lanças da cimeira. Pintou-o de verde, e o reluzir da tinta nova percebia-se entre a folhagem como um tremor de luzes fugazes e tristes.

A entrada, imediatamente orientada para o pátio que era a antecâmara de casa nesse estilo, tinha um encanto peculiar. Martinho achava-a parecida a um obscuro fundo à Rembrandt. Hendrickje podia mergulhar as pernas até ao joelho nas enxurradas que, desde o Outono, faziam do pátio um lago em que boiavam ervas e folhas. E logo, atrás dela, os pesados reposteiros da primeira sala de receber, às vezes encharcados de água da chuva porque entre o pátio e a sala só havia alguns curtos degraus em leque, duma beleza surpreendente. Percebia-se como a jovem Hendrickje se mostrasse curiosa do seu prazer, ao arregaçar a camisa para banhar à vontade as pernas. A carne mole e macilenta ganhava uma luz fresca debaixo da sombra do pátio. Martinho, depois da companhia da Ronda, preferia a do pátio e toda a discreta alma dessa entrada principal. A capela, o bastante espaçosa para um par de noivos e o oficiante, era pintada de azul com estrelas, no que se entendia como abóbada celeste. Josefa dedicava-lhe, como a todo o resto da casa à sua guarda, umas horas por semana. Removia as flores secas, mudava o pano do altar e deitava um pouco de veneno nas cavernas do bicho da madeira. Tudo isto com um solidário espírito de limpeza que excedia a sua capacidade de devoção.

Martinho nunca a vira rezar. "Tanto melhor, não se distrai com as coisas da alma, o que, nas mulheres, é uma variante da sedução", pensava. Mas Josefa também não era do tipo sedutor nem sabia para que servia levantar os braços para mostrar a delgada cintura; como via fazer às jornaleiras que iam levar o almoço aos trabalhadores, descendo a rampa do caminho, com um balançar das ancas deveras tentador. Martinho nunca teve a ideia de selar com Josefa qualquer compromisso; mas um dia, no abrir da madrugada e porque não dormia, falou-lhe nisso.

- Isto pode não ser duradouro. Tu és tu e eu sou eu. As coisas podem mudar.

- Que mudem. Não estou cá para lhe pedir favores. Deixe-me dormir.

Ele levantou-se e foi para o quarto, meio desconcertado. Tentou ler um bocado, mas as letras dançavam-lhe diante dos olhos. "Diabo de rapariga!" - pensou. "A liberdade é difícil de consentir nos outros." Mais uma vez a Ronda se tornou clara para ele: não era convencional em nada, mas antes retratava um tumulto feliz de gente entregue à vontade de agir sem que ouvissem a voz de comando do capitão Banning Cocq. A lei ficava à margem, abrangia um ritmo de progresso que a multidão não podia ou não queria acompanhar. Bastava que a criança luminosa atravessasse a cena para tudo ficar explicado: ela era a forma universal, prestes a desaparecer na individualidade de todos, no que eles tinham de singular.

Já não estava tão atento à obra cujo significado o deslumbrara. Ainda que desse à Ronda da Noite um lugar privilegiado na moldura de veludo carmesim, não passava tanto tempo na sua companhia. Fingia muitas vezes estar mergulhado em profunda meditação quando Josefa batia à porta com uma refeição que ele gostava de tomar sozinho. Mas até ela se retirar não perdia nenhum dos seus movimentos que registavam apenas a ocupação dum dia de trabalho. Humilhava-o que Josefa não o incluísse nas suas preocupações. Uma galinha doente ou o vento que se levantava e ia enrolar a roupa nas cordas, a secar, eram para ela motivo de maior concentração. Corria a recolher a roupa ou a medicar a galinha; e Martinho sentia-se relegado para um plano que não era honroso para ele.

"Será que compreendemos as mulheres?", pensava. "Temos um lugar na vida delas e isso é tudo." Tentou explorar o ciúme dela e excitá-la para depois não a satisfazer. Josefa ficou apenas desconfiada. Mas não deixou de cumprir com as suas obrigações e de o servir pontualmente.

Havia nos arredores algumas casas com raparigas na idade de casar. Martinho, ainda que não estivesse livre do vínculo do casamento, era um alvo a considerar. Foi convidado para jantares, recebeu o melhor tratamento, quase como se fosse um viúvo com rendimentos e saudades a gerir. Mas quando voltava para o solar caía-lhe em cima uma sensação de desperdício e quase de medo. Seria que tinha uma alma e essa era um objecto investigável? Quando se dedicava a detalhar a Ronda em todos os sentidos, não estaria a averiguar a natureza da alma?

Um dia, descendo pelo pátio em direcção ao pomar, viu Josefa inclinada no lavadouro. O facto de ela não se voltar ao sentir-lhe os passos, incomodou-o. Mas, ao mesmo tempo, que ela estivesse, arregaçada, com a água a escorrer-lhe dos cotovelos, deixava-o a sós com a sua nudez. Era a alma dela que estava a ser consumida, e não o corpo, pelos olhos que a averiguavam. Ela sabia. Voltou-se devagar, limpou um salpico de espuma no rosto e dispensou-lhe um grande sorriso. Seria amor? Era, em todo o caso, um acto de salvação.

Lembrou-se de que, quando era pequeno, as pessoas não se cumprimentavam - davam-se a "salvação". Entre as primeiras horas da manhã e as Trindades, que anunciavam o crepúsculo, trocavam "a salvação". Antes ou depois disso, não se dirigiam a palavra. Era como se os perigos da alma apertassem o cerco e ela estivesse mais indefesa. Não estar fora de casa depois das Trindades era recomendável. O sorriso de Josefa encheu-o de alegria.

Porém, no dia seguinte, anunciou-lhe que Judite não se opunha ao divórcio e que era provável ele casar-se outra vez. Josefa estava diante dele, com o avental recolhido em ponta sobre a barriga, como todas as vezes que ele a chamava e ela não se achava apresentável. Não disse nada.

- Não dizes nada? - disse Martinho, depois do silêncio que se tornara difícil.

- Eu? - Ela pareceu tomada de surpresa.

- Estou a falar contigo.

- Comigo?

- Com quem há-de ser?

Em parte não era verdade nada do que Martinho lhe dizia sobre Judite. Ela continuava a viver com o pai e nada fazia supor que ia pedir o divórcio. Estava satisfeita com a mesada que recebia e, como mulher casada, tinha mais respeito com que valorizar a sua triste história propícia a mal-entendidos. As coisas extraordinárias que acontecem às pessoas vulgares ficam, em geral, no mais profundo desconhecimento. É preciso que a relação dum espírito com outro as faça claras à luz da pequena história. Se não fosse a Ronda e todas as viagens morais feitas em volta dessa obra enigmática, Josefa não teria praticamente existido na vida de Martinho Nabasco. Foi no momento em que entreabriu a porta do quarto dela, para lhe perguntar qualquer coisa acerca da rotina doméstica, que ele a inseriu no tempo de Rembrandt. Desde aí, ao ver o ombro que a camisa ao escorregar deixava a descoberto, ao ver a sua expressão de surpresa meio inquieta, Martinho recebeu-a no seu coração como se fosse a própria Hendrickje. Desde aí ela entrava na sua vida. Doutro modo, não passava de alguém que lhe comunicava impressões externas; o seu cheiro a fritos nos cabelos quando ela fazia ceboladas de peixe, não era decerto a melhor dessas impressões. Mas por detrás da imagem sensível de Josefa, do seu rosto que não tinha nada de bonito, estava uma alma que era o material para o conhecimento do outro. Nunca tinha encontrado uma criatura tão livre e tão exposta ao mesmo tempo. Era como uma lagartixa que, ao ser pisada, deixava a cauda e escapava-se, como se nada tivesse acontecido, para a fenda do muro. Se havia alguém digno de figurar na Ronda da Noite era Josefa. Podia ser incluída, com as mangas arregaçadas e uma galinha morta que não era o símbolo de nada, mas muito simplesmente o anúncio dum jantar suculento. Martinho não podia impedir-se de a provocar.

- É contigo que estou a falar.

- Estou a ouvir.

Mas a atenção dela estava posta em muitas outras coisas do seu dia-a-dia. A roupa que tinha que tirar dos arames antes que chovesse; a calda para o arroz, que era sempre o acepipe preferido desde que se descobriu a índia. Arroz de forno, com loureiro seco; arroz de grelos, de feijão, de hortos, de manteiga, de peixe, de carne, de simples estrugido de cebola. - Como quer o arroz? - disse Josefa.

Mandou-a sair. Era uma mulher estúpida ou só capaz de reagir a coisas solidárias com a sua natureza? Natureza prática, sem a qual ela flutuaria no vazio. Uma coisa o maravilhava: a sintonia erótica em que ela estava com o mundo. Criava um objecto de amor nas circunstâncias adequadas. E era por isso que Martinho duvidava de ser o homem da vida dela, mas o objecto do amor dela, que era uma natureza erótica e a repartia por todas as realidades concretas da sua vida.

Não havia maneira de fazer-lhe compreender nada fora dos conteúdos vitais que eram quatro, como os dos sáurios de há quinhentos milhões de anos. Eram comandos cerebrais em que a sensibilidade não tinha entrada senão por imitação. O seu mundo reagia admiravelmente àquele regime oposto a conceitos rígidos fechados, a uma lei, em suma. Quase tudo o que Martinho lhe dizia soava como palavras e ele sentia-se completamente à deriva supondo em Josefa uma completa falta de necessidade de crescimento interior. E, todavia, a compreensão de um conteúdo particular, o nascimento, a morte, era para ela de fácil acesso: a vida, na sua unidade, enfim. As vezes, tinha medo dela; do que ele se recompunha, achando que a falta de cultura de Josefa, a sua completa falta de aproveitamento escolar que tivera na infância, era uma prova de inferioridade pronta a ser declarada pelo Parlamento Europeu como uma espécie de fatalidade de grupo que uma forma económica de séculos não conseguira senão viciar cada vez mais.

Quando afinal era o contrário. Em princípio, teria de admitir que Josefa não tinha carácter. Isso implica considerações pejorativas, se não trágicas. Era dotado dos atributos de sobrevivência, mas a supervivência como sinal duma estrutura em evolução permanente, não se percebia nela. Como no quadro de Rembrandt, o que Simmel notara conforme um pensamento de Goethe (que há certos fenómenos da humanidade que são errados por fora e verdadeiros por dentro), a estrutura da Ronda é desproporcionada vista por fora mas, desde dentro, está conforme. Porque a própria vida é assim: segundo as entregas dos conteúdos da existência que o indivíduo faça movido pelos acontecimentos, por insignificantes que sejam, tudo parece casual e desproporcionado. É o que na mulher se chama histeria e injustificado procedimento. Mas, visto do interior, este procedimento obedece a uma evolução contínua, necessária e conforme a sua unidade. Pelo que Josefa, com a sua obtusa moral e dados restritos de compreensão das coisas, estava mais pronta a evoluir correctamente do que um filósofo aparentemente capaz de perseguir uma forma universal.

Como não tinha uma educação académica e não estava impressionado por teorias sobre a lei universal, Martinho era mais capaz de entender Rembrandt e o seu modelo, a segunda mulher Hendrickje. É possível que esta, mais do que Saskia, tivesse o comportamento interior dum modelo: uma qualidade individual que vivia e morreria com ela. Não é causa de reflexão uma coisa dessas; assim, a Ronda não é igualmente causa de reflexão. Todos os detalhes estão ali, a posição social, a riqueza, o lado vulgar e sensual; tudo isso é o impessoal do homem, e seria um erro conhecê-lo através dessas diferenças. O capitão Banning Cocq e o seu ajudante de campo não são apenas os soberbos dignitários com ambições políticas. Como o porta-bandeira e a criança que atravessa a multidão, não são apenas figuras simbólicas e muito menos satíricas. Há em todas elas um desapego das suas funções e da sua natureza, que não se entende senão como felicidade. A lei não as obriga, não as oprime: são pessoas felizes, indivíduos presentes no universal que é o comum das suas vidas.

A dada altura Josefa teve um comportamento estranho. Parecia estar preocupada por alguma coisa que não se atrevia a confessar, e Martinho, muito cautelosamente, fez-lhe algumas perguntas. Não afastou a ideia de ela estar grávida.

- Tens comido o suficiente? E o trabalho que tem sido demais?

- Não, não. Para o trabalho chego eu. Mas, se quer saber, eu vou-lhe dizer. - Embora ele introduzisse no serviço as inovações há muito rotineiras na casa de Maria Rosa, máquinas de lavar e limpeza, Josefa preferia ainda lavar o chão da cozinha de joelhos, pela força do braço. Era assim que ela estava, de rastos, com a saia recolhida entre as pernas e tendo ao lado o balde onde mergulhava a escova. Levantou-se e teve o mesmo gesto de sempre, de quem enxuga o suor ou um salpico de espuma com o braço. Era um gesto que pressupunha a entrada noutro episódio. Martinho, não sem alguma inquietação, preparou-se para a ouvir. E se fosse de facto uma criança que ela ia anunciar-lhe? Quase começou a conversa nesse sentido. Mas Josefa antecipou-se:

- Pelo que me consta, a sua mulher, a dona Judite, não volta mais. Estou enganada?

- Não sei dizer, Zefa. Trata das coisas que entendes e deixa o resto que não te diz respeito.

O que dizia respeito a Josefa era a casa com a sua grande cozinha lajeada e que mantinha ainda a lareira tradicional com duas colunas de pedra que delimitavam a zona do fogo. Além disso, havia o forno do pão, com a boca enegrecida pelas labaredas de muito tempo de aquecimento; e havia também duas grandes masseiras que serviam agora para arrumo de trastes sem uso, tampas desirmanadas, utensílios de ferro que não tinham mais préstimo e que eram mais ou menos objectos de museu.

De resto, a cozinha, toda ela era um museu. Na obscuridade estavam as peneiras, os aquecedores das camas, os ferros de brunir que eram meros pedaços de ferro fundido e que, mesmo sendo diminutos, pesavam sobre as pregas, os colarinhos e tudo o que fosse preciso fazer brilhar como laca. O mundo do trabalho estava ali bem presente, sem desfalecimento nas tarefas que se sucediam: lavar e descascar legumes, cortar a carne com um deleite fundo e sensual, depenar as aves, abrir-lhes os ventres com um golpe que lhes expunha os intestinos e o fígado cuja pétala de fel esverdeada era preciso extirpar. Josefa era gulosa dos intestinos de galinha, que, depois de lavados, esvaziados, se enrolavam num pau fino de salgueiro e eram guisados como um acepipe. E também gostava de refogar pés de cabrito, que desapareceram do mercado pela dificuldade que traziam aos matadouros, sendo considerados subprodutos a moer para o gado e a juntar às rações de farinhas.

A cozinha era um reino. Não se entrava nela sem fazer três vénias, como no protocolo dos antigos papas. A primeira, desde a porta que dava para o exterior e pela qual tinham acesso todos os estranhos: pedintes, compradores de vinho e azeite, alguém que trazia um recado ou pretendia um favor.

A segunda vénia era para ser feita pelos que entravam pela porta de serviço, sobre um lanço de escadas donde se descobriam as capoeiras e os quartos dos hortelãos ou moços de estrebaria, que não estavam mais a uso. Em tempos, a casa tivera baias para seis cavalos, onde agora havia um longo alpendre e uma arrecadação de tonéis destinados a serem vendidos.

A terceira vénia era a da porta que dava para o interior, um corredor estreito em cujas paredes se podiam adivinhar quadros de Santa Luzia, com o prato e os olhos no prato; assim como ramos de oliveira benzida entalados na moldura dos quadros. Quem chegava a essa porta eram os patrões, as criadas de dentro e um sem número de aderentes à casa, como as mulheres sem ofício certo que contavam novidades e comentavam em detalhe a vida dos lugares, vizinhos ou não. Havia também os barbeiros dos vivos e dos mortos, os padres, os doutores, as costureiras cuja máquina se ouvia a espaços no seu cubículo onde se amontoavam retalhos, linhas e botões.

Josefa era a prima dona desses sítios, vividos como nenhuns outros na casa. Enquanto as visitas de Martinho à sua cama foram regulares, ela teve ao seu dispor um quarto que não era principal e dava para uma sala de passagem. Era o quarto do capelão, com janelinha meio devorada pelos pés de vinha que cresciam em baixo. Cerca desse quarto ficava o oratório, uma peça soberba do século XVIII, que foi vendida à revelia dos herdeiros ausentes e que Paula qualificava como um roubo. Em vez do oratório, verde e ouro, havia agora um armário onde se guardavam lençóis e cobertas de cama. Mas persistia o cheiro da cera e das grinaldas dos "anjinhos", as crianças que tinham morrido na família.

Quando as noites e as sestas de amor se espaçaram até se tornarem raras, entre Josefa e Martinho, ela mudou para um cubículo junto da cozinha que se destinara a despensa e donde ela podia ouvir tudo o que se passava na área de trabalho. Quem subia e descia as escadas, quem vinha buscar o leite ou trazia o pão, e coisas assim. Martinho não gostava de lá entrar, pelo cheiro que recebia nas narinas, de velhos untos e conservas caseiras apodrecidas em vinagre, nas talhas de barro: pimentos, pepinos, ou azeitonas pretas que reluziam como olhos de gente.

Todo o objecto de culto não funcionava mais. Na capela, a pedra de ara tinha sido retirada e o sacrário não tinha porta; via-se o interior constelado de estrelas douradas. Apenas a Ronda merecia uma espécie de liturgia, com a sua moldura de veludo carmesim e os jarrões da China a fazer-lhe sentinela. A falta doutra devoção, Josefa dedicava-lhe uma veneração que era cópia da oração diária que Martinho dedicava ao quadro. Endireitava o cadeirão posto em frente do capitão Banning Cocq, no melhor ângulo, para captar as suas palavras, caso as fosse ouvir. E o olhar da pequena Saskia, acreditava que se cruzava voluntariamente com o dele. Travava com ela um diálogo de grande cortesia e afabilidade e Josefa várias vezes o vira mexer os lábios e sorrir como se estivesse a gozar uma conversação. Percebia até algumas palavras:

- Falou comigo?

- Eu? Não... Vai à tua vida e deixa-me em paz.

Recebeu uma carta de Judite, em vez dos lacónicos telefonemas, e ela era muito clara: queria finalmente divorciar-se. Entendeu que ela talvez estivesse grávida e quisesse regularizar uma situação menos airosa. Mandou-lhe os papéis que Judite pedia e não quis entrar em detalhes fastidiosos. Ficava pois livre para ele próprio casar e ter filhos, o que lhe parecia uma coisa como outra qualquer. Havia nas cercanias raparigas educadas ainda à moda antiga que podiam agradar a Maria Rosa, se ela estivesse viva. "Mulheres que gostem de lavar a loiça", como ela dizia. Era, no seu entender, prova dum espírito franco e de sensualidade.

As saídas de casa tornaram-se mais frequentes para Martinho e às vezes colhia uma flor nos caixotes que Josefa tinha plantado à beira do tanque. Primeiro, fazia disso um certo segredo, depois não escondia mais esse gesto de galanteria para uma mulher que ele "tinha em vista". Com a idade, as jovens comoviam-no a ponto de as lágrimas lhe subirem aos olhos.

Josefa punha nos seus programas de limpeza um maior ardor. Lavava as janelas de cima a baixo e grandes ondas de espuma escorriam das vidraças como nuvens descidas do céu. Martinho disse-lhe, uma noite, depois de jantar:

- Talvez me case.

- Quando?

- Desde que encontre a pessoa certa.

- Não há pessoa certa para isso. Há a pessoa certa quando se quer um electricista, mas para casar não há. Convém que não seja de todo pobre nem demasiado rica.

- Cá temos a Zefa a filosofar! Que tem uma pobre de mal? E uma rica?

- A pobre é para sempre um poço de inveja; a rica deita-lhe à cara tudo o que comer e diz: "Sai do meu bolso..."

O que incomodava Martinho é que ela não demonstrava ciúme nem tristeza. "Qualquer outra deixava de comer, é o que as mulheres fazem quando querem parecer desgostosas". Mas Josefa não parecia sentir o mínimo desgosto. Martinho atribuía isso a o sentimento de rivalidade não fazer parte dos quatro comandos cerebrais.

Uma vez saiu de casa pela manhã e telefonou a dizer que não vinha almoçar. Josefa achou que o dia era todo dela e que podia iniciar as limpezas da Primavera.

"Agora é que vão ser elas" - pensou. E pôs-se a cantar com todas as forças, coisa que Martinho não permitia dentro de casa. Ela gostava de cantar no trabalho no lavadouro, sobre qual os ramos da nespereira desenhavam sombras movediças; à janela, sacudindo tapetes como se estivesse a defenestrar inimigos. Gostava de cantar, e cantava. Não era uma prova de alegria; mas de força poderosa e imparável.

Naquele dia a força manifestava-se e ela enchia consecutivamente baldes que despejava no pátio fazendo correr a água pelo plano inclinado. Voltando para dentro, o olhar dela pousou na Ronda que estava no último salão; e mesmo este tivera que ser provido dum pé direito mais elevado, sacrificando-se para isso as mansardas. O fato do lugar-tenente, com as suas galochas de luxo, causava uma boa impressão. Era um belo homem, com o bigode loiro e as plumas brancas no chapéu. "O resto está muito sujo, não se vê nada" - pensou Josefa. E, num repente, decidiu-se. Ia lavar a Ronda com os seus detergentes e esponjas duras. Até o cão não se sabia de que raça era, tendo escondido a cauda entre as pernas, assustado pelo rufar do tambor.

Ela preparou-se. Todo o seu material de campanha foi trazido e Josefa começou a sua limpeza. Até onde chegava a sua estatura, que não era alta, ela esfregou, inundou, raspou, até que fios de tinta começaram a correr. Voltou-se para trás, julgava ter ouvido passos. Mas era o vento que carregava nos ramos da nespereira. Já não se intimidava; cada vez que atacava um figurante da Ronda fazia-o com mais empenho e atrevimento. O desastre estava consumado e ela recuou um pouco; só o porta-bandeira e o jovem do capacete de bombeiro, como ela dizia, tinham ficado intactos. Saskia tinha simplesmente desaparecido com a sua galinha à cinta. Josefa deu uma última demão de água limpa ao rosto diluído numa mancha mais clara. Sentia uma espécie de contentamento que lhe fazia bater o coração com força. Onde estava o ícone de Martinho, aquilo por que ele se enternecia até às lágrimas e o fazia estudar até altas horas os livros que pudessem trazer-lhe informações sobre o pintor? O seu enigma não podia mais ser auscultado. O seu efeito tinha desaparecido. A sua linguagem intuitiva não se ouvia mais. Josefa admirou-se de ter, em tão pouco tempo, destruído a unidade dessa extraordinária obra. Estava encharcada, o frio fazia tiritar. Mas teve discernimento para arrumar os baldes e as esponjas e voltar a pôr no lugar a cadeira de Martinho. Agia distraidamente, como se, pondo ordem nas coisas, tudo voltasse ao que era. E o capitão Banning Cocq lá estava a dar as suas ordens, ainda que só fosse a sombra dele.

Quando, já no avançado da noite, Martinho entrou em casa, viu luz no quarto do capelão. Depois a luz extinguiu-se e ele pensou que Josefa a tinha apagado. "Porque mudou ela de quarto?" - pensou. Mas não estranhou nada, sabendo como ela resolvia limpar tudo e desalojar as coisas dos seus lugares, deixando no ar um cheiro de lavanda, de pinheiro, tão forte que causava náuseas.

Antes de se deitar, como de costume, foi ver a Ronda. Primeiro achou que as luzes não se tinham acendido e precisou duns instantes para se adaptar ao que julgava ser o segundo salão com os retratos austeros dos Nabasco. Não via a Ronda, mas só uma figura com uma alta cartola. Era o que restava da Ronda da Noite. Franziu os olhos e voltou a abri-los. Um grande grito travou-se-lhe na garganta e ele caiu quase de bruços, quase sem acordo, o sangue a latejar-lhe nas fontes. Se tivesse sido atingido por um disparo, não ficava mais atordoado. Depois levantou-se e, com toda a força da sua alma, verificou os estragos. Eram totais, a Ronda tinha desaparecido; e só o porta-bandeira, talvez o próprio Rembrandt com uma faixa brilhante e o chapéu de plumas cinzentas, parecia apresentável e intacto.

- Josefa! - disse Martinho, entre dentes. Lembrou-se da luz acesa e a seguir apagada no quarto do capelão. Precipitou-se para lá, a porta estava apenas encostada, ele abriu-a, metendo o ombro nela porque a julgou trancada. Josefa estava sentada na cama, os pés com as chinelas apenas seguras pelo dedo grande; parecia ébria e cantarolava baixinho. Em vez de gritar com ela, de lhe bater até, Martinho foi tomado duma estranha comiseração

- Estás aí? Que andaste a fazer, sua tola? Parece que saíste do tanque, como uma bruxa, à meia noite. - E, como ela não dava mostras de entender nada, aproximou-se e, com uma ponta da coberta da cama, pôs-se a enxugar-lhe o cabelo - Vamos, não tenhas medo, mulher! Não te faço mal. O que passou, passou...

Como não podia remediar o estado em que ela estava sem a despir, pôs-se a desapertar-lhe a roupa, o que, porque estava molhada, era difícil. Josefa ficou nua e a sua pele pardacenta ganhava aos poucos calor. Rembrandt não teria ignorado as pregas do ventre balofo e o punho fechado contra o sexo. Impassível, Martinho executava como um enfermeiro a sua tarefa de samaritano. E, subitamente, veio-lhe à ideia a soma de desgastes e de violência que tinha sofrido a Ronda da Noite; mais do que qualquer outro quadro ou obra de arte, a Ronda da Noite sofrera variadas agressões tanto físicas como as devidas ao desgaste do tempo e dos restauros. Cortes devidos às suas dimensões e destinados a fazer caber o quadro em espaços mais estreitos, deram à Ronda uma perda que não pode ser mais recuperada. O facto de Martinho assegurar que a pretensa cópia em seu poder era de facto um original, fundava-se na integridade da pintura e nas suas dimensões conforme o original.

Em 1976 um homem investiu contra o quadro com uma faca de cozinha e desferiu golpes que tiveram que ser reparados; assim como houve muitos outros danos, devidos à fricção de todo o género, da luz, do calor e da humidade. Borrifada com água e ácido, a Ronda continuou a ser alvo de ataques que se atribuíram a doentes mentais. Mas haveria no suposto doente mental uma lucidez para além da razão comum? Martinho pensava que sim, depois do deplorável acto de Josefa cujas consequências julgou não puder suportar. Mas o estado daquela mulher, os seus soluços que pareciam um estertor, sobrepôs-se ao desgosto que ele acabava de sofrer. Não acreditava que um afã de limpeza levasse Josefa àquela violência exercida sobre o quadro. Um momento de loucura não parecia próprio dela, sempre tão cabal e séria no seu trabalho. Era alguma coisa que ele pôde desvelar quando a apertou nos braços para a acalmar. Era a solidão que ela sentia perante a divinização da obra de arte. Martinho fez com que ela falasse, ainda que só lhe arrancasse palavras entrecortadas, mal decifradas por ele que apurava o ouvido para não perder nenhuma delas.

- O que te deu, mulher? Conta-me, que eu não digo a ninguém... Conta-me só a mim.

Depois de a ver agasalhada e limpa na cama do capelão, voltou a interrogá-la. Mas Josefa só disse que não se lembrava. Quando Martinho voltava costas, ela chamou-o.

- Eu pensava que gostava mais do quadro do que de mim. De mim e de tudo que tem de ser amado pelas pessoas para que possam viver. A vida faz-se com o amor dos outros.

- Mas que tolice! O que te deu... que ideia a tua... Estava embaraçado, descontente. Quando se retirou não passou pelo terceiro salão onde estavam os restos da Ronda da Noite. Era cedo para avaliar os estragos que sabia serem irreparáveis. Fechou, com cuidado, a porta atrás dele e não quis pensar mais no que tinha sucedido. Um elo de paixão sem argumentos ligava-o agora substituída no serviço da mesa por uma rapariga de fora. Depois as coisas foram-se ajustando a uma realidade que não excluía o desejo de se entenderem.

O quadro foi desapeado e convertido em retalhos, depois queimados. Só o porta-bandeira resistiu e foi emoldurado para ser pendurado sobre o fogão da primeira sala, a que dava para o pátio e que era a entrada principal. Depois, como aquilo o incomodava, relegou o "porta-bandeira", que tinha sido identificado como sendo o retrato de Jan Cornelis Visscher, amador de obras de arte, de música e de livros, foi colocado numa salinha escura onde havia duas estantes e dois sofás de veludo verde. O cão, também poupado à esfrega de Josefa, ainda que indistinto na pintura, mereceu as atenções de Martinho que o fez, como ele dizia, "embalsamar" e pôr na parede do corredor, entre dois cadeirões Luís XIII.

Ainda que todo o desastre se mantivesse em silêncio, acabou por chegar aos ouvidos de Paula e dos cadetes, que pediram contas do sucedido. A ideia que lhes acudiu foi que a Ronda tinha sido vendida com bom proveito para Martinho e que ele ensaiara a sua destruição para não a ter que repartir como herança. A Ronda ficara indivisa, sendo considerada mais uma mania de Martinho do que um objecto de valor. E se fosse verdade e ela valesse alguma coisa? Isto não chegou a cavar um fosso nas relações de família porque a preguiça se impôs a todos os outros sentimentos. Martinho estava tão longe que Bernardo, um dos cadetes, não lhe chamava parente próximo.

O mais estranho foi que Josefa resolveu ir-se embora; apresentou-se diante de Martinho depois de jantar e pediu-lhe que lhe fizesse as contas.

- Que contas? Não te pago todos os meses e até ficas com alguns trocos das compras, quando calha?

Isto ofendeu muito Josefa, nem ela sabia porquê, porque era verdade. Mas dava aos pobres esmola do seu bolso, com o que se sentia equilibrada no deve-e-haver. Exigiu esmiuçar a dívida de Martinho, que nunca lhe pagara somas muito atrasadas do terceiro mês; e do subsídio de férias também não recebera por inteiro o que lhe era devido. Tudo isso perfazia uma conta calada e Martinho ficou estupefacto. - Sabes o que tu és? Uma vigarista de primeira apanha. E as consultas na clínica privada quando foi preciso?

- Não lhe pedi nada.

Olhou para ela com vontade de lhe saltar ao pescoço, mas, de repente, achou-se tão farto daquele diálogo que a dispensou com um gesto. Teve a noção de que ela não perdoava a ela própria tê-lo ofendido com a limpeza do quadro; e agora queria criar um ponto de ataque para sair honrosamente das suas perplexidades. Nunca mais tinham abordado aquela terrível noite; mas ela estava presente como qualquer coisa de injusto, uma lesão nas suas relações. Ela disse: - Quando precisar de mim estou ao dispor. Se casar e tiver filhos eu venho ajudar a criá-los. Posso ainda ser-lhe útil, nunca se sabe.

Era isso que lhe devia; ser útil era uma ferida aberta no seu peito. Não pedia mais, mas também não se satisfazia com as carícias dele que não eram senão parte dum sentimento de plenitude de que ela ficava impedida. "Há paixões muito diferentes que não derivam da sexualidade", pensou Martinho; porque tinha lido isto nalgum livro, não sabia onde. E se Rembrandt pintasse como se fosse conhecedor duma libido que ainda não se diferenciasse o suficiente e que, por isso, tinha que manifestar-se pela forma sexual? O que havia entre ele e Josefa pertencia a essa área desconhecida, o que fazia que ela não se sentisse bem com ele; e que ele a amasse, apesar de tudo.

- Que vais fazer para casa? - perguntou. Mas era como se outra pessoa tivesse perguntado.

- É a minha mãe que está velhota e precisa de mim.

- Julguei que a tua mãe tinha morrido. - Não lhe deu tempo para replicar, e acrescentou: - Fazes bem. Se eu te chamar, tu voltas?

- Volto, esteja descansado.

Mas percebia-se que ela estava desejosa por desaparecer, como um rato que encontra uma saída num labirinto. As pessoas eram assim. Quando Josefa virou as costas, ele teve um momento de sofrimento como nunca tivera outro assim. As lágrimas corriam-lhe pela cara sem que as pudesse parar. Antes pelo contrário: agradava-lhe que fossem tão abundantes e sinceras. Como sempre, as pessoas que mudam o curso da sua vida, ou morrem, deixam para trás uma série de indícios que fazem com que a sua presença não se desvaneça durante algum tempo. De vez em quando Martinho ia encontrar qualquer coisa que tinha pertencido exclusivamente a Josefa: um par de chinelos perdidos debaixo duma cama ou uma peça de roupa não tão usada que ele não pensasse em devolvê-la. Mas, retendo-a em casa, criava na sua mente a ideia de que Josefa ia voltar. Depois, isso foi-se desvanecendo e já não pensava nela senão com pequenos desejos de macular a sua recordação pondo em relevo os seus defeitos.

Agora que a Ronda da Noite deixara de ser o seu altar de meditação, não via como justificar a sua permanência ali. Todavia, estava enredado com as famílias vizinhas, as que tinham filhas casadoiras e que viam nele um partido muito de considerar. A força desses interesses munidos de sentimentos apaixonados em que participavam mães e filhas, paralisava-o a ponto de querer ceder e acabar assim a sua vida de visionário: extinguindo-se o poder da sua neurose, ele não tinha outro caminho senão submeter-se à via doméstica que lhe era indicada. No simples gesto da parte duma das suas prováveis noivas, de lhe passar a saladeira à mesa, havia uma representação sexual. Era como se ela dissesse: "O meu ventre está ao teu alcance, basta que aceites esta taça de alface." Ela não via o instinto sexual como sendo parcial no feixe dos instintos que contêm forças impossíveis de clarificar. Mas um homem era diferente. O seu trajecto na vida, a soma dos seus interesses profundos, derivam de fontes eróticas não determinadas apenas pela sexualidade. Ainda que esta desse um impulso ao instinto de sobrevivência que se mede com todos os outros como limite do sentido da própria vida. Quando se dá uma inflação da sexualidade, a energia do intelecto sofre um golpe que pode ir até à alteração da realidade.

Parecia-lhe agora a Martinho que a Ronda da Noite se apoderava dele (o termo é possessão) como um símbolo cujo significado fosse o seu próprio pensamento. A pessoa era iluminada para se transformar na própria obra de arte. A carga afectiva contida em Rembrandt e nos seus modelos resultavam na imagem do mundo com o qual, assim, Martinho criou uma aproximação. Essa tonalidade afectiva ia ter importância na relação com as outras pessoas.

Os seus projectos de casamento não deram resultado, e Martinho acabou por não ser benvindo no seio das famílias que o tinham recebido com uma espécie de histeria da procriação. Quase de repente, perderam todo o escrúpulo e lançaram sobre Martinho as calúnias que podiam significar mais para a sua perda. Em primeiro lugar, avançando além da suspeita, declararam-no homossexual. Ele próprio se interrogou sobre isso e procurou na sua infância indícios duma natureza que se teria tornado "oculta". Descobriu que, aos quatro anos, costumava esconder-se debaixo das fraldas da camilha, ainda em uso em casa dos Nabasco. Gostava de sentir o cheiro do sexo das mulheres sentadas à mesa. Era preciso tirá-lo à força do seu esconderijo e, sem alcançarem outro significado que não fosse o duma brincadeira teimosa, distraírem-no com guloseimas e jogos.

Martinho, já com dez anos, desenvolveu um horror à sua própria nudez. Vestia-se voltado para a parede e fechava-se no quarto à chave enquanto se olhava com desgosto. Invejava as raparigas porque o sexo delas não era exposto e não podia assim despertar qualquer repugnância. Achava mesmo que o culto pela beleza se destinava a ofuscar um sentimento de desagrado pelo sexo e o programa doloroso do nascimento.

Quando Martinho contava quatro anos, teve a primeira fase que se podia dizer nutritiva, em que a casa da avó lhe foi revelada. E, com ela, a Ronda da Noite. A primeira noção que teve da cena, foi que era real. O tamborileiro estava a tocar no seu tambor; a menina brincava com alguém que não se via no quadro. E as personagens principais, o capitão Banning Cocq e o seu lugar-tenente estavam numa situação precária; porque, tendo a obra, pelas suas dimensões, sido apeada até ao chão, para caber na parede da sala de jantar, como medida de precaução, foi-lhe posto diante um sofá de palhinha, desses que eram peças de resistência nos casarões brasileiros. O belo sofá de jacarandá ocultava até à cintura as figuras do primeiro plano, que ficavam trucidadas. Elisa, que não recebeu de boa vontade o pequeno Martinho, porque ia alterar-lhe a rotina do seu trabalho, explicava em termos apocalípticos o que era a Ronda: um agrupamento de aleijados e pessoas disformes, agrupados na noite com intenções que não podiam ser recomendáveis. Para Elisa tratava-se duma revolução, dum assalto, ou qualquer coisa desse teor onde Banning Cocq e o seu ajudante de campo tinham perdido as pernas. E como Martinho rompia a chorar, aos gritos e em riscos de perder a respiração, ela dizia-lhe que as pernas deles voltavam a crescer; para ilustrar o que dizia, afastava o sofá e lá apareciam os belos cavalheiros no esplendor da sua pose.

Martinho, ao crescer, fez da Ronda a sua leitura preferida. Quando outras crianças se distraíam com legos e carrinhos de corda; ou até a banda desenhada com aventuras dos seus super-heróis, Martinho só comia diante da Ronda e adormecia com o dedo espetado na sua direcção, a tentar decifrar, entender e, por conta própria, criar uma versão satisfatória. Quando Paula o levava com ela e o vinha buscar no meio de muitas e aliciantes promessas, Martinho enfurecia-se e atirava-lhe com o que tivesse à mão. Paula culpava a mãe desse desaforo, mas a verdade é que Maria Rosa não retinha a criança nem mesmo a cativava, ocupada que andava sempre com os seus chapéus, luxo de após-guerra e volumosos como um canteiro de flores. Nesse tempo, Maria Rosa era ainda o bastante nova para inspirar paixões, facto de que se admirava porque não estava interessada em jogos eróticos. Mas até Martinho, aos dez anos, sabia avaliar o encanto da avó, como se fosse uma feiticeira, de tal modo excitava a sua fantasia, abrindo caminhos por onde circulava uma libido nem sempre luminosa. Aprendia que o amor nasce dessa torrente maliciosa de que o corpo tem o mapa espiritual.

Com o segundo casamento de Paula e porque nasceram João e Bernardo quase só duma vez, a situação de Martinho esclareceu-se: nunca mais haveria aquela batalha campal entre ele e a mãe, observada por Elisa que, com as mãos cruzadas na barriga, só podia dizer: "isso não se faz", meio divertida com a ira do pequeno Martinho.

Era a casa da avó que ele temia deixar, ou era a Ronda que ele não dispensava na sua vida? A verdade simbólica emanava da Ronda e não da presença de Paula, inadequada como sua mãe. A Ronda era, no fim de contas, o seu oratório e a sua religião; tanto mais que qualquer invocação de fé não passava, na família Nabasco, senão duma inútil e vaga petição de princípio.

Em tempos muito antigos, quando Maria Rosa não era ainda nascida, a fé era ainda referida na igreja como qualquer coisa que junta comodidade ao dia-a-dia das pessoas. As cadeirinhas, os genuflexórios da família, estavam na sombra dos pilares do transepto. Havia também coxins de veludo vermelho onde os joelhos doentes podiam arrimar-se. Mas depois tudo isso foi desaparecendo e só Elisa, por hábito e efeito da sonolência, à noite, rezava o terço e tinha à cabeceira uma pequena pia de água-benta que foi ficando seca e sem uso.

Este livro parece que acaba onde devia ter começado: a infância de Martinho Nabasco. Mas o fim justifica o princípio. Sem o pequeno Martinho de quatro anos, assediado pelo tropel da Ronda a todas as horas do dia, tendo por imaginária companheira de surpresas e brincadeiras pensadas a fada luminosa do quadro.

Entre a avó snobe que não lhe prestava muita atenção porque ela própria enchia o espaço de todos os processos emocionais; entre ela e Elisa que nunca soube ser inimiga ou amiga, ele era feliz. Porque muita coisa escapava às duas mulheres, como por exemplo o abuso das criadas mais novas, pobres raparigas da província cuja maior aspiração era ganhar para uma gargantilha de oiro e depois para um volumoso relógio de pulso. Na realidade, o verdadeiro problema que conduzia a uma neurose profunda, não era a sexualidade. O sexo é muitas vezes o desvio de causas que procedem de muito longe e cujo perigo se tenta saldar com as contravenções do prazer proibido. Os governos sabem-no. Por isso estimulam festivamente o acto sexual, as fantasias que ele reclama, para ocultar dos cidadãos as suas autênticas preocupações. O que consegue é uma neurose colateral que vai até ao abandono da personalidade e da vontade criadora.

Quando Elisa se apercebeu que Martinho era alvo de atenções pecaminosas das jovens, expôs em público as suas suspeitas (às vezes nada mais do que suspeitas), obtendo com isso uma satisfação extra na sua vida de espia e de delatora. Martinho ganhou uma imunidade a respeito das mulheres. Como adolescente não se impressionava com a nudez delas; e isto dava-lhe uma sensação de poder sobre as dificuldades e contribuiu para uma concentração maior nos problemas, charadas, enigmas que se lhe apresentavam ao correr dos seus dias.

A sua educação não teve nada de formal. Maria Rosa quis educá-lo como um príncipe. Ou quis torná-lo disponível para a realidade interior, o mundo dos espíritos e dos sonhos; dos feiticeiros e dos demónios. Dos deuses também, ainda que ela os ignorasse, ficando a sua relação com eles convertida na espuma das lendas e da ficção melhor ou pior elaborada. Ela não sabia nada dos deuses, que sempre tinham guiado os homens através da sua existência irracional. Fez, sem intenção, de Martinho um primitivo; daí a atracção dele por Rembrandt, um mago da selva que nunca se desbrava completamente no mundo interior. Num tempo em que a superstição parece completamente desbancada pelo civilizado, Martinho tinha que precaver-se para não o tomarem por doido. Ao contrário dos cadetes, seus irmãos germanos, ele não tomava as ideologias político-sociais senão como novas apropriações da mágica que se arroga como medida de salvação. A prova disso era que muitos governantes tinham as suas bruxas particulares, que os visitavam regularmente para incutirem-lhes segurança, sobretudo quando as epidemias psíquicas se declaravam. Fosse porque debaixo da frivolidade que temperava a sua tendência aos excessos Maria Rosa atingia uma realidade profunda; fosse por snobismo, que ela tinha em mente ser o seu próprio culto da personalidade, ela não deu a Martinho uma educação que lhe favorecesse uma carreira.

A carreira tornou-se a alma da emancipação. A emancipação em relação à mãe, em suma, que simbolizava a autoridade e a obrigação de fazer alguma coisa para corresponder às suas próprias necessidades. Há povos dotados para a inatividade, assim como há outros que se satisfazem na obediência e são adequados à aprendizagem. Os primeiros são povos condenados à pobreza, uma pobreza mítica porque pressupõe a carência das necessidades. Qualquer plano para os enriquecer tem de falhar porque a inatividade pressupõe um estado mais invejável do que todo o sucesso material.

A carreira pode significar competitividade, mas não se assume como objectivo. A educação de Martinho teve como resultado um estado interior cada vez mais vasto. Adiantou-se para dentro de si próprio. O tempo primitivo era reconhecido em cada uma das suas caminhadas interiores; o mesmo acontecia com a província rural em vias de desaparecimento. Por exemplo, o hábito de quando se encontrava uma ferradura no caminho, ela devia ser considerada como um bom presságio. Assim como pendurar a ferradura à porta de casa, posto que a ferradura é uma protecção contra os feitiços. Sobre o portal das antigas cavalariças (onde a Ronda encontrou abrigo durante algum tempo), lá estava a ferradura, que Martinho achava indispensável no seu foro íntimo. Se descesse um pouco no escalão social, verificava que havia imediatamente uma linguagem que aparentava as pessoas muito para além dos laços de família. Algumas lendas que perduravam no meio urbano, apenas como efeito romântico na imaginação, não se extinguiam, ainda que sofressem deturpações. Como aquela de se dizer que as éguas lusitanas eram fecundadas pelo vento. É o cavalo que simboliza o vento e, na lenda alemã, ao vento é atribuída uma lascívia com efeito sobre as mulheres jovens.

Vestígios do culto do cavalo encontram-se sobretudo no Ribatejo, cujas danças sapateadas simbolizam o tropear dos cascos no solo; e é muito possível que esse exercício de homens fosse outrora uma invocação de fertilidade de que as mulheres eram excluídas. Comer carne de cavalo é ainda visto como uma emergência miserável e o seu uso não esteve nunca generalizado, posto que o cavalo é uma figura mítica.

Depois da destruição da Ronda da Noite e passado o período de luto, todos os projectos de Martinho se desvaneceram. O seu casamento com uma jovem da região perdeu toda a viabilidade e ele espaçou as suas visitas até que ela compreendeu que não estava mais no caminho de Martinho e que ele não pensava casar-se. De resto, os papéis do seu divórcio não chegavam, e ele não tinha qualquer empenho em apressar o caso. Tanto quanto sabia, Judite também não tinha em vista mudar de estado. Limitava-se a cuidar do pai, e as coisas funcionavam como se ele fosse eterno e não admitissem qualquer mudança.

Entretanto, o rosto de Judite tinha-se esfumado na sua memória e só olhando para os retratos que tinha dela podia aproximar-se da realidade que tivera na sua vida. O retrato do casamento, a que Maria Rosa quisera dar alguma ênfase, não lhe dizia grande coisa. Talvez o que é humano não esteja tão ligado a nós como se pensa, e por isso prescindimos do que amamos, tão depressa.

Como nas pessoas que se concentram no sentimento da melancolia, a ideia do seu amor extinto por Judite recriava-se ainda com o seu desaparecimento. Podia-se dizer que lhe era mais grata a memória embelezada pela necessidade de a honrar, do que tudo o que vivera como casado. Os mestres, ainda que mais medíocres do que sublimes, tinham-lhe ensinado a arte de sentir, a mais fácil de degenerar e de redundar na extravagância. Sem o notar, viu-se preso de inspirações súbitas e tentações semelhantes a gostos grotescos. Rembrandt devia ser como ele, um homem sério, por exemplo, obediente às leis da cidade; mas que, com o sucesso e a riqueza, se transformasse num melancólico que se acha atraído pelo desejo de vingança iluminado por ofensas e injustiças mais ou menos reais. Ele próprio, Martinho, quis dedicar-se à pintura e fazer versos. O facto de se dizer que Portugal é um país de poetas vem dessa sombra de melancolia e insucesso que a todos afecta.

Tendo passado uma geração que ele reconhecia pelas modas que lhe eram comuns, viu-se incapaz de ver as mudanças senão com uma ponta de desprezo. Sem a capitosa presença de Maria Rosa, para quem os outros faziam parte do encantamento por si própria, Martinho não era senão um adulto por convicção e, de facto, um homem tímido a quem a liberdade assustava.

Amputado da Ronda da Noite, Martinho esteve muito tempo imóvel e encontrou nisso uma satisfação que qualquer trabalho ou dedicação por alguma coisa no mundo não lhe podiam dar. Pensou se as ideias mais nobres do homem não passavam duma encenação dum efeito teatral que partia da sua má consciência. O que estava bem explícito no Jardim do Éden, era esse compromisso do homem para com Deus: o de construir um palco gigantesco onde se ia imitar a criação.

O valor cultural duma obra em liberdade torna-se discutível e até condenável; como ficou provado com a apresentação da Ronda da Noite aos poderes de Amesterdão, incluindo os das mulheres que se apressaram a rir-se de Rembrandt e a humilhá-lo, tomando a plenitude caótica da obra em questão como uma silenciosa aversão aos ditos poderes. O que de facto era.

A arte, na obra de Rembrandt, não pertence à herança que todos esperavam do seu génio. É uma captura do acontecimento e não a história dele. É tanto mais extraordinário esse acontecimento quanto joga com o que lhe é simultâneo: a nudez de Susana no banho não ignora o olhar concupiscente dos velhos embora ela não se aperceba da presença deles. Tudo o que concorre para um efeito é simultâneo; e antes de um facto se produzir ele já concorria para a unidade através de pequenos acontecimentos auxiliares. No caso da casta Susana, um arrepio que podia ser atribuído à água da piscina, denuncia o desejo em que ela participa porque é motivo dele. O erro é o acompanhante duma verdade e o que a faz percorrer o seu caminho em segurança. Porque erramos? Naturalmente porque a verdade se adianta a nós e ameaça assim a nossa liberdade. É preciso atrasá-la com o erro, que não é efeito da estupidez humana, mas uma delinquência propositada que nos faz ganhar tempo sobre a verdade.

Muita coisa se escreveu sobre o crime, mas deixou-se de dizer muita coisa sobre ele. Martinho, ao dobrar a casa dos sessenta anos, teve a revelação de que tinha uma personalidade policial.

O extraordinário interesse que o crime desperta, tanto no aspecto ritual (sacrifício sangrento) como no carácter de transgressão absoluta, tem um significado que escapa ao racionalismo habitual. Martinho perguntava a ele próprio o que tinha movido Maria Rosa a adoptar a órfã de Estrelinha Sopa-de-Massa. Seria só indulgência e uma forma de extravagância, o desejo de desafiar a sua auto-estima, ou outra coisa mais inconfessável, como o prazer de aplaudir a singularidade do crime?

Desde a ira de Caim que, de resto, criou a seita dos caimitas, os que contestavam a preferência de Deus pelo pacífico Abel, que a psicologia histórica do erro esteve em causa. A violência foi consagrada como um processo útil de provar a aptidão do homem para a relevância dos seus direitos.

Tudo isto seria muito impopular se Martinho Dias Nabasco se dedicasse a uma carreira pedagógica, ou simplesmente a uma convivência normal com as pessoas do seu tempo. Mas, à parte a tentativa de não se manter à margem da sociedade, como quando pensou casar outra vez e gerar filhos (não esquecia a promessa de Josefa de os criar), ele não via saída para a sua situação.

Feitas as contas com Paula e os irmãos, os seus meios não eram abundantes. Paula levara tudo o que pudera, inclusive a pequena ânfora com as cinzas de Maria Rosa, do que se arrependeu; porque não sabia onde pôr o que considerava uma relíquia, mas não tanto que lhe dedicasse um oratório como os japoneses aos antepassados. Os cadetes olhavam para aquilo com indiferença, tanto mais que estorvava em qualquer parte.

- E se as lançássemos ao mar? - disse João, puxando as meias brancas até ao joelho, como sempre fazia quando se sentava. Era um genuíno cidadão urbano e tudo o que se passava além da Rotunda do Relógio era a província, ou seja, território bárbaro. Lisboa acabava no fim da Avenida das Descobertas. E todas aquelas casas dum carácter palaciano (dizia-se palacete no antigamente) estavam adaptadas a fins sociais; a vida de família tinha sido extinta, um tanto porque a raiz capitalista não era mais exposta nos indícios de riqueza francos e pomposos. Paula reagiu com a ideia de atirar ao mar as cinzas de Maria Rosa. Martinho viveu a lembrança das férias em Vila do Conde, coutada da gente da capital, onde o mar era alteroso e onde às vezes apareciam afogados com camarões presos nos cabelos. Nunca viu nenhum, mas essas histórias causavam-lhe arrepios. Lançar ao mar as cinzas de Maria Rosa parecia-lhe uma profanação. Optou por fazer-lhe um nicho numa salinha que tinha sido de costura e agora não tinha mais utilidade. - Assim está bem - disse João. A avó era uma imagem descontínua em volta do tronco da família que ia sofrendo golpes, apagando as inscrições amorosas. Lendas, ditos de espírito ou pacóvios, que sedimentavam a memória de grupo, tinham sido arrumados num canto onde ninguém passava, como na salinha de costura de Paula. Um dia, quando João se casasse e tivesse filhas, elas haviam de lançar gritinhos de júbilo ao descobrir os vestidos de Maria Rosa, obras de arte com molas forradas e remates artesanais. "Meu Deus, no que se perdia o tempo..." - diriam.

Desde o dia em que Martinho, aos quatro anos, encontrou o seu caminho na Ronda da Noite, como se fosse a floresta do Pequeno Polegar, a avó passou a ser a rainha má da história. Aos sete anos internou-o num colégio de padres onde não sabia o que fazer senão interrogar-se sobre tão terrível castigo. Por fim, um dos contínuos, que tinha o ar dum guarda prisional, aconselhou Maria Rosa a levar a criança.

- Não se sabe defender e vai apanhar uma doença - disse. Martinho passou a ter um grande respeito por todo o tipo de guardas, fossem enfermeiros, porteiros ou até jardineiros municipais. Achava que eles tinham enormes poderes e eram capazes de libertar da sua condenação pessoas como ele. Martinho passou todo o ano seguinte com pequenas febres que não era possível detectar. Comia batatas fritas e lia revistas de banda desenhada. Maria Rosa mostrou-se compreensiva, tanto mais que o doutor Horácio Assis e Bento Webster, o poeta, lhe diziam para ser paciente. Martinho ia abrir as asas e mostrar o que valia, em qualquer altura.

Aos dez anos sabia muito pouco da matéria do liceu. Era indolente, não brincava, excepto quando construía cidades de cartolina às cores. Isto prometia que ele fosse arquitecto. Quando se encontra o destino para uma criança parece que todas as coisas se ajustam e que os bens culturais positivos foram cumpridos. Mas Martinho era incapaz do mesmo ritmo de progresso que faz feliz uma geração sem a fazer cultivada. A política cultural da sua época fazia parte dum conteúdo objectivo sem limites; enquanto que a cultura subjectiva só muito lentamente se aprofundava.

Fosse pelo desinteresse de Maria Rosa, que não via os efeitos da idade da razão manifestados tão depressa como ela desejava, a verdade é que Martinho ficou entregue a si próprio. Tiveram fracos resultados as lições dos professores particulares, que acabavam sempre por insinuar a incapacidade do aluno para aprender. Só quando apareceu na sua vida um jovem mestre, por quem Martinho se pode dizer que se apaixonou é que ele despertou para o estudo e venceu todos os exames com extrema facilidade. O jovem professor, quando não teve mais que ensinar, foi dispensado. Martinho mergulhou num desespero que tratou de ocultar de toda a gente. A avó era uma eterna coquete, sem mais alma do que a que lhe davam os vestidos e o seu desejo de eternidade. De vez em quando falava dele com orgulho, porque tudo era matéria para o seu snobismo. Dizia-se oriunda dos Diez de Espanha e foi ela que inventou a Ronda da Noite como fazendo parte do tesouro da duquesa de Mântua; que o deixou ficar para trás nos caminhos da Estremadura por causa das suas dimensões exorbitantes.

Quando os Nabasco estavam o que chamavam "bem de finanças", mudavam-se para a cidade, a pretexto de irem a banhos para as praias do Molhe ou de frequentarem gente importante. A beleza de Maria Rosa abria-lhe as portas e, tendo já a filha casada segunda vez, ainda despertava paixões. Não que ela lhes desse motivo, porque a sua melhor táctica era a duma amizade amorosa, muito em voga com o flirt. Os costumes, depois da primeira Guerra Mundial, tinham-se tornado "infanticidas", como dizia Margô, a cunhada de Maria Rosa. Os contraceptivos, a higiene íntima, tornavam o acto amoroso estéril. As famílias numerosas desapareciam e o filho único melhorava as condições da vida doméstica. Quando a segunda Guerra estalou, com o ideal germânico da prole bem nascida e educada para um conceito de vitória compreendido como realidade construtiva, encheu o espaço europeu como uma grande bolha de ar. Apareceram as refugiadas, que não usavam meias e tomavam banhos de sol completamente nuas na praia. Paula tratava de as imitar, mas as restrições tradicionais da família impunham-lhe um decoro que era o garante do casamento conveniente.

No solar dos Nabasco não havia vestígios quase de Maria Rosa. Ela negociava com o marido o pulo para a cidade e conseguia passar os invernos fora, algumas vezes até em Paris, que era a sua metrópole muito querida. Passava por parisiense, com o seu ar desinibido e elegante. Mas depois de Paula se casar pela segunda vez e o Nabasco comprar na Maia a Casa do Cão, as coisas mudaram radicalmente. Foi quando a Ronda ficou abandonada, com o sofá de palhinha a tolher as pernas do capitão Banning Cocq. Passaram alguns anos antes que Martinho desse pela sua falta. Foi por acaso que se encontrou com a Ronda. O avô tinha morrido e foi sepultado, no lugar da sua origem e não no território dos Dias. A grande pedra do sepulcro abriu-se para ele e foi a última vez que se abriu. Maria Rosa impressionou-se com aquela pesada laje sobre uma grelha de ferro destinada a deixar cair o corpo, conforme se ia desfazendo, na cova funda. Varrida e limpa, a cova não apresentava vestígios doutros enterros. O que faziam aos restos, coveiros ou quem fosse, não se sabia. Decerto procuravam os dentes de ouro e mexiam nos ossos como em desperdícios sem valor. Talvez fossem parar ao lixo, e daí aparecerem caveiras intactas entre os resíduos fumegantes que pareciam arder eternamente à beira da estrada.

Quando o avô morreu (ainda não se falava no casamento com Judite), Martinho fez uma visita à casa da Ronda. Tratava-se, mais propriamente, de proceder às obras no jazigo, muito danificado por infiltrações e o andar do tempo em geral.

O dia apresentava-se tempestuoso e Martinho teve a ideia de abrigar-se na Ronda, que era perto, na colina com ares de castro romano. Mas o caminho estava intransitável. Martinho meteu o carro por um estradão que acabava alguns metros adiante. Lembrava-se das trovoadas que se formavam nos quatro cantos do vale, e preocupou-se. Mas o portão da Ronda estava à vista, ainda que fechado e coberto de ferrugem. Só havia maneira de passar adiante, era saltar por cima da sebe que murava a entrada; o que Martinho fez, ficando pouco apresentável e coberto de ramos enegrecidos pela chuva.

A porta da casa estava encostada, provavelmente tinha-se perdido a chave.

Se havia cães, ele não deu por isso. "Era o que me faltava", pensou. A água corria, cobrindo-lhe os sapatos e ele percebeu que estava num lugar seu conhecido. Martinho sabia que havia um pátio diante da entrada principal, um pátio musgoso e empedrado. Um alto cipreste montava guarda à entrada. Ele entrou. Percorreu os três salões, as luzes da cidade próxima cintilavam por entre os fios de chuva. E à luz espaçada dos relâmpagos ele viu a Ronda. Parecia ter uma iluminação própria, com a menina vestida de seda, a correr por entre a companhia do capitão Banning Cocq e do seu lugar-tenente. Um sentimento à margem da sua cultura, à margem daquela noite em que a chuva se despenhava do telhado, apoderou-se dele. Pelas suas dimensões, o quadro estava arrimado à parede como se tivesse escorregado; a sua base estendia-se pelo soalho e parava porque uma trave pregada no chão o impedia de se estender completamente na sala. Martinho tinha o capitão junto dos seus pés, mas não o podia ver graças à escuridão. A única parte visível era a jovem vivandeira ou fada que parecia esgueirar-se alegremente para o outro lado do salão. Parecia ter vida e despedir um olhar travesso em direcção a Martinho.

A chuva abrandara, mas ele não tinha vontade de voltar a fazer o caminho de volta. Quem lhe dizia que não podia haver uma derrocada e o passo estar impedido? Ou até ele ser apanhado nela, de mistura com pedras e raízes?

Procurou velas e achou, no lar da cozinha, um prato que servia de castiçal. Tinha em cima um bocado de estearina a que ele ateou lume; brilhou uma luz fumosa e, lentamente, para prevenir os golpes de vento que apagassem a vela, Martinho voltou para a sala.

Era nessa noite que ele pensava, muitos anos depois, já quando a Ronda da Noite não existia, e ele estava sentado diante da porta principal aberta de par em par. Decorria a canícula em Julho, e um bafo quente, filtrado pela ramada do pátio, chegava-lhe ao rosto. Tinha na mão um enxota-moscas feito de papel de jornal, como se usava em tempos; de vez em quando Martinho agitava o ar com ele e o seu pequeno rugido lembrava-lhe que não estava só. Tinha vestido um fato de linho que lhe ficava largo; não se lhe viam os pés debaixo das pernas das calças que arrastavam.

Pensou com uma ternura súbita no quadro que o acompanhara desde a sua tenra idade, e não sentiu pena de o ver destruído. Deixara-lhe uma ideia profética, como se o mundo começasse, desde a sua obscura pincelada, a conhecer-se melhor. A companhia do capitão Banning, mau grado a sua ordem de marcha, divertia-se desobedecendo, porque "toda a lei é uma injustiça". O desafio estava lançado pela intuição do artista. Já quando a segunda Guerra Mundial quis impor uma disciplina universal, moral, étnica, artística, as coisas estavam no fim. Não se tinha combatido por paixão guerreira, por fixação num lugar mental que se queria eterno; combatia-se cegamente porque todas as razões estavam em causa e entravam em agonia.

"Se assim for, melhor é" - disse Martinho. A lei era a consciência de cada um; e ainda que nem em dez mil anos isso fosse um pressentimento que se troca na interacção dos homens, mesmo os mais insignificantes e transitórios, valia a pena esperar.

O vento cálido, que arrastava a flor do sabugueiro, entrou pela sala. Era como se a Ronda chegasse, com o seu porta-bandeira e homens armados de escopetas; e a pequena fada, vibrante de entusiasmo, se juntasse a eles, para rir, para provocar, para dizer quanto a terra é jovem.

Martinho teve uma pneumonia na entrada do Inverno e não pôde vencer a doença. A enfermeira que vinha recolher sangue para análises perguntava-lhe sempre a mesma coisa:

- Então não consegue? Não consegue?

Ele estava convencido que conseguia. Como toda a gente, aliás.

 

                                                                                Agustina Bessa Luis

 

 

                      

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