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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A RUA ONDE VIVEM / Mary Higgins Clark
A RUA ONDE VIVEM / Mary Higgins Clark

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A RUA ONDE VIVEM

 

 

         Terça-feira, 20 de Março

Ele virou para a marginal e sentiu o impacto do vento forte vindo do mar. Observando as nuvens que deslizavam no céu, decidiu que não seria de admirar que daí a pouco começasse a nevar, embora o dia seguinte fosse o primeiro dia da Primavera. Havia sido um Inverno longo e todos estavam ansiosos pelo tempo quente. Todos menos ele.

 

Apreciava mais Spring Lake quando chegava o fim do Outono. Nessa altura os veraneantes fechavam as suas casas e não apareciam nem sequer nos fins-de-semana.

 

Desagradava-lhe que a cada ano que passava cada vez mais pessoas vendessem as suas casas de Inverno e se instalassem ali permanentemente. Haviam decidido que valia a pena percorrerem todos os dias os cento e doze quilómetros até Nova Iorque para poderem começar e terminar o dia naquela bonita e calma comunidade costeira de Nova Jérsia.

 

Spring Lake, com as suas casas vitorianas que pareciam imutáveis desde a década de 1890, valia o transtorno da viagem, explicavam.

 

Spring Lake, com a brisa fresca e revigorante do mar sempre presente, reanimava a alma, concordavam todos.

 

Spring Lake, com a sua marginal de três quilómetros, onde uma pessoa podia maravilhar-se com a magnificência prateada do Atlântico, era um tesouro, observavam.

 

Todas aquelas pessoas partilhavam tanto os visitantes estivais, os habitantes permanentes mas nenhuma delas partilhava os segredos dele. Podia passear-se pela Avenida Hayes e visualizar Madeline Shapley, tal como ela estivera naquele fim de tarde de 7 de Setembro de 1891, sentada no sofá de vime no alpendre que contornava toda a casa, o seu chapéu de abas largas ao lado. Na altura tinha dezanove anos, olhos castanhos, cabelo castanho-escuro, e estava linda no seu vestido de linho branco cheio de goma.

 

Só ele sabia por que motivo ela tivera de morrer uma hora mais tarde.

 

A Avenida St. Hilda, ladeada por pesados carvalhos que haviam sido meros rebentos a 5 de Agosto de 1893, o dia em que Letitia Gregg, de dezoito anos, não voltara para casa, trouxe-lhe outras visões. Ela tivera tanto medo. Ao contrário de Madeline, que lutara pela vida, Letitia implorara misericórdia.

 

A última do trio fora Ellen Swain, pequena e calada, mas demasiado inquiridora, demasiado ansiosa para documentar as últimas horas da vida de Letitia.

 

E, devido à sua curiosidade, a 31 de Março de 1896, seguira a amiga até à sepultura.

 

Ele sabia todos os pormenores, todas as nuances do que lhe acontecera a ela e às outras.

 

Encontrara o diário durante um daqueles dias frios e chuvosos que às vezes atravessam o Verão. Aborrecido, vagueara até à antiga cocheira que servia de garagem.

 

Subiu os degraus pouco firmes até ao sótão atafulhado e empoeirado e, como não havia nada melhor para fazer, começou a vasculhar as caixas que ali encontrou.

 

A primeira estava cheia de coisas inúteis: candeeiros enferrujados; roupa desbotada e fora de moda; tachos e panelas e uma tábua para lavar a roupa; escovas, pentes e espelhos lascados, estes últimos partidos ou manchados. Eram o tipo de objectos que se guardam para serem reparados ou oferecidos e que depois são esquecidos.

 

Outra caixa continha álbuns grossos, as páginas a desfazerem-se, cheias de fotografias de pessoas em poses rígidas e rostos sérios que se recusavam a partilhar as suas emoções com a máquina fotográfica.

 

Uma terceira continha livros empoeirados e inchados devido à humidade, as letras sumidas. Ele fora sempre um leitor, mas, embora na altura tivesse apenas catorze anos, pôde dar uma vista de olhos ao conjunto e pô-lo de parte. Não havia ali obras-primas escondidas.

 

Abriu mais uma dezena de caixas e viu que estavam repletas de tralha igualmente inútil.

 

Quando estava a guardar tudo dentro das caixas, descobriu uma capa de cabedal apodrecido que estivera escondida no que parecia ser outro álbum de fotografias. Abriu-a e viu que estava cheia de folhas, todas cobertas de palavras.

 

A primeira entrada datava de 7 de Setembro de 1891. Começava com as palavras ”A Madeline morreu às minhas mãos”.

 

Levara o diário e não falara dele a ninguém. Ao longo dos anos lera-o quase diariamente, até se tornar parte integrante das suas recordações. Com o passar do tempo, apercebeu-se que se tornara um só com o autor, partilhando a sua supremacia sobre as vítimas, rindo-se da sua representação e sofrendo com o sofrimento.

 

O que começou por ser um fascínio transformou-se gradualmente numa obsessão, numa necessidade de reviver sozinho a viagem de morte do escritor do diário. Não bastava aquela partilha indirecta.

 

Há quatro anos e meio tomara a sua primeira vida.

 

Fora o destino de Martha, de vinte e um anos, estar presente na festa anual de fim de Verão que os avós davam. Os Lawrence eram uma família proeminente, há muito estabelecida em Spring Lake. Ele fora à festa e conhecera-a lá. No dia seguinte, a 7 de Setembro, ela saíra cedo para uma corrida na marginal. Nunca regressara a casa.

 

Agora, passados mais de quatro anos, a investigação do seu desaparecimento continuava a decorrer. Numa reunião recente, o promotor público do município de Monmouth jurara não ir diminuir os esforços para descobrir a verdade do que acontecera a Martha Lawrence. Ao ouvir aquela promessa oca, ele rira-se interiormente.

 

Como gostara de participar nas discussões sombrias sobre Martha que surgiam de vez em quando durante o jantar.

 

”Eu podia contar-vos tudo, todos os pormenores”, pensava, ”e também podia falar-vos da Carla Harper.” Há dois anos ia a passar pelo Hotel Warren quando a vira a descer as escadas.

 

Tal como Madeline, como era descrita no diário, envergava um vestido branco, embora este não tivesse mangas, fosse curto e muito justo, relevando todos os centímetros do seu corpo jovem e elegante. Começara a segui-la.

 

Quando ela desaparecera três dias depois toda a gente acreditava que Carla fora abordada durante a viagem de regresso a Filadélfia. Nem mesmo o promotor, tão decidido a resolver o mistério do desaparecimento de Martha, suspeitou que Carla nunca chegara a sair de Spring Lake.

 

Exultante com a sua omnisciência, juntou-se aos transeuntes na marginal ao fim da tarde e cumprimentou vários amigos que encontrou pelo caminho, concordando que o Inverno insistia em fustigá-los mais uma vez antes de partir.

 

Porém, mesmo enquanto conversava com eles sentia a necessidade dentro de si, a necessidade de completar o seu trio de vítimas. O último aniversário estava a aproximar-se e ainda não a escolhera.

 

Dizia-se que Emily Graham, a compradora da casa Shapley, como ainda era conhecida, descendia dos proprietários originais.

 

Procurara na Internet informações a respeito dela. Tinha trinta e dois anos, era divorciada e advogada criminal. Ganhara dinheiro depois de receber algumas acções do proprietário de uma empresa on-line que defendera com êxito. Quando ela pudera vender as acções, ganhara uma fortuna.

 

Ele soubera que Graham fora perseguida pelo filho de uma vítima de homicídio depois de ter conseguido a absolvição do assassino. O filho, protestando a sua inocência, encontrava-se agora num hospital psiquiátrico. Interessante.

 

Mais interessante ainda era Emily ser extraordinariamente parecida com a irmã da tetravó, Madeline Shapley, cuja fotografia ele vira. Tinha os mesmos grandes olhos castanhos e pestanas compridas e fartas. O mesmo cabelo castanho com tons acobreados. A mesma boca encantadora. O mesmo corpo alto e esguio.

 

Havia diferenças, claro. Madeline havia sido inocente, confiante, reservada, romântica. Emily Graham era obviamente uma mulher sofisticada e inteligente. Seria um desafio maior do que as outras mas, por outro lado, isso tornava-a ainda mais interessante. Estaria ela destinada a completar o seu trio especial?

 

Havia uma ordem e um método naquela perspectiva que o fizeram estremecer de prazer.


Emily suspirou de alívio ao passar pela tabuleta que indicava que já se encontrava em Spring Lake.

 

Consegui! exclamou. Aleluia!

 

A viagem desde Albany levara quase oito horas. Saíra com um tempo que deveria ser ”de neve ligeira a moderada” mas que se transformara quase numa tempestade de neve que só amainou quando ela saiu do município de Rockland. Pelo caminho, os vários acidentes de pouca gravidade na auto-estrada haviam-na feito recordar os carrinhos de choque de que tanto gostara na infância.

 

Carregara no acelerador numa zona com boa visibilidade, mas depois testemunhara uma derrapagem assustadora. Durante um momento parecera que dois carros estavam em rota de colisão. O acidente fora evitado porque o condutor de um dos carros conseguira controlar o seu e guinar o volante para a direita uma fracção de segundo antes do embate.

 

”Faz-me lembrar a minha vida ao longo dos últimos anos”, pensara ela ao abrandar, ”sempre na faixa mais rápida e por vezes quase a ser esmagada. Preciso de mudar de rumo e de seguir mais devagar.

Como dissera a avó: ”Emily, aceita aquele trabalho em Nova Iorque. Sinto-me muito mais segura quando vives a algumas centenas de quilómetros. Um ex-marido cruel e um perseguidor são demasiado para o meu gosto.

E depois, como seria de esperar, a avó continuara: ”Por outro lado, nunca devias ter casado com o Gary White. O facto de ele te ter processado três anos depois do divórcio por teres dinheiro agora prova que sempre estive certa a seu respeito.”

 

Recordando as palavras da avó, Emily sorriu ao conduzir devagar pelas ruas escuras. Olhou para o tabliê. A temperatura exterior era de três graus. As ruas estavam molhadas ali a tempestade produzira apenas chuva e o pára-brisas começava a ficar embaciado. O movimento dos ramos das árvores sugeria que do mar vinham rajadas de vento bastante fortes.

 

No entanto, as casas, na sua maioria vitorianas, pareciam serenas e seguras. ”A partir de amanhã passo a residir oficialmente aqui”, pensou Emily. ”21 de Março. O equinócio. O dia e a noite igualmente divididos. O mundo em equilíbrio.”

 

Era um pensamento reconfortante. Ultimamente experimentara turbulência suficiente e agora queria e precisava de um período de paz absoluta e total. Tivera muitíssima sorte, mas também problemas assustadores que haviam colidido uns com os outros como meteoros. Mas, como dizia o velho ditado, tudo o que sobe tem de descer e Deus sabia que ela era prova disso.

 

Pensou em passar de carro pela casa, mas depois arrependeu-se. Ainda lhe custava a crer que dali a algumas horas ela seria sua. Mesmo antes de a ter visto pela primeira vez havia três meses já fazia parte do seu imaginário meio real, meio conto de fadas. Depois, quando entrara nela pela primeira vez, soubera de imediato que regressara a casa. O mediador imobiliário comentara que ainda era conhecida como ”a casa Shapley”.

 

”Chega de conduzir”, pensou. ”Foi um dia muito, muito longo.” O transportista de Albany devia ter chegado às oito. A maior parte dos móveis com que ela queria ficar já se encontrava no seu novo apartamento de Manhattan, mas, quando a avó se mudara para uma casa mais pequena dera-lhe alguns móveis antigos, por isso, ainda havia muita coisa para transportar.

 

Vai ser a primeira cliente do dia prometera o transportista com veemência. Conte comigo.

 

A carrinha só aparecera ao meio-dia. Por conseguinte, ela partira mais tarde do que estava a contar, e naquele momento eram quase dez e meia.

 

”Vou para a estalagem”, decidiu ela. ”E tomo um duche bem quente”, pensou, desejosa. ”Vejo o noticiário das onze. Depois meto-me na cama.”

 

Quando viera pela primeira vez a Spring Lake e fizera impulsivamente um depósito para segurar a casa, ficara alguns dias na Estalagem Candlelight para ter a certeza absoluta de que tomara a decisão certa. Ela e a dona da estalagem, Carrie Roberts, uma septuagenária, simpatizaram imediatamente uma com a outra. No caminho Emily telefonara a dizer que ia chegar tarde, mas Carrie garantira-lhe que não havia problema.

 

Virou à direita na Avenida Ocean, depois andou mais quatro quarteirões. Momentos mais tarde, com um suspiro de alívio, Emily desligou o motor e tirou do banco de trás a única mala que levara.

 

Carrie cumprimentou-a rápida e afectuosamente.

 

Pareces exausta, Emily. A cama está aberta. Disseste que jantavas no caminho, por isso pus-te na mesa-de-cabeceira um termo com cacau quente e um prato com alguns biscoitos. Falamos amanhã de manhã.

 

O duche quente. Uma camisa de dormir e o seu velho roupão preferido. Bebendo o cacau, Emily assistiu ao noticiário e sentiu os músculos, rígidos da viagem, começarem a descontrair-se.

 

Quando desligou a televisão, o seu telemóvel tocou. Adivinhando quem era, atendeu.

 

Olá, Emily.

 

Ela sorriu ao ouvir a voz preocupada de Eric Bailey, o génio tímido que era a razão por que ela se encontrava agora em Spring Lake.

 

Enquanto o informava de que fizera boa viagem, praticamente sem incidentes, pensou no dia em que o conhecera, quando ele se mudara para o gabinete minúsculo ao lado do seu. Com a mesma idade, havendo apenas um intervalo de uma semana entre os seus aniversários, haviam-se tornado amigos e ela reconhecera que, sob aquela aparência tímida de rapaz perdido, Eric era dotado de uma extraordinária inteligência.

 

Um dia, quando reparara que ele parecia deprimido, obrigara-o a contar-lhe o motivo. Parecia que a empresa que criara recentemente na Internet fora processada por um dos grandes fornecedores de software que sabia que ele não tinha dinheiro para um processo legal dispendioso.

 

Ela aceitara o caso sem pedir remuneração, esperando que fosse uma situação em favor do bem público, e pensara divertida que iria forrar as paredes com as acções que Eric lhe prometera.

 

Contudo, vencera o caso para ele. Eric fizera uma OPV, que aumentara imediatamente de valor. Quando as acções de Emily atingiram os dez milhões de dólares, ela vendera-as.

 

Agora o nome de Eric estava num edifício novo muito bonito. Ele adorava corridas de cavalos e comprara uma casa antiga em Saratoga, percorrendo diariamente a distância até Albany. A amizade de ambos mantivera-se e ele apoiara-a bastante durante a altura em que Emily fora perseguida. Até mandara instalar uma câmara ultramoderna na casa dela. A câmara apanhara o perseguidor.

 

Só queria saber se havias chegado bem. Espero não te ter acordado...

 

Conversaram alguns minutos e ficaram de falar em breve. Quando desligou o telemóvel, Emily foi até à janela e entreabriu-a. Uma rajada de ar frio e salgado deixou-a sem fôlego, mas ela obrigou-se a inspirar devagar. ”É uma loucura”, pensou, ”mas neste momento parece-me que durante toda a vida senti a falta do cheiro do mar.”

 

Virou-se e foi até à porta para se certificar de que dera duas voltas à chave. ”Pára de fazer isso”, admoestou-se. ”Já verificaste antes de te meteres no duche.”

 

Porém, no ano antes de o seu perseguidor ter sido apanhado, apesar dos seus esforços para se convencer de que se o homem quisesse fazer-lhe mal já o poderia ter feito em diversas ocasiões, Emily começara a sentir-se receosa e apreensiva.

 

Carrie dissera-lhe que era a única hóspede da estalagem.

 

Tenho tudo reservado para o fim-de-semana dissera. Os seis quartos. Há um casamento no country club no sábado. E depois do Memorial Day, a trinta de Maio, é para esquecer. Não tenho sequer um roupeiro disponível.

 

”Assim que ouvi que só cá estávamos nós as duas perguntei-me logo se as portas da rua estavam trancadas e se o alarme havia sido ligado”, pensou Emily, novamente irritada por não conseguir controlar a sua ansiedade.

 

Despiu o roupão. ”Não penses nisso agora.”

 

Entretanto, sentiu subitamente as mãos transpiradas ao recordar a primeira vez em que chegara a casa e se apercebera de que ele lá estivera. Encontrara uma fotografia sua encostada ao candeeiro da mesa-de-cabeceira, uma fotografia que a mostrava na cozinha em camisa de dormir, com uma caneca de café na mão. Nunca vira a fotografia antes. Nesse dia mandara mudar as fechaduras e pôr um estore na janela por cima do lava-louça.

 

Depois disso ocorreram vários outros incidentes envolvendo fotografias que lhe haviam sido tiradas quando estava em casa, na rua, no escritório. Às vezes um predador de voz suave ligava a comentar a roupa que ela trazia vestida. ”Esta manhã estava muito bonita a correr, Emily...” ”Com esse cabelo escuro, não pensei que a gostasse de ver de preto. Mas gosto...” ”Adoro esses calções vermelhos. Tem umas pernas muito bonitas...

E depois aparecia uma fotografia dela com a roupa descrita. Estaria na caixa do correio em casa, ou no pára-brisas do carro, ou metida no jornal da manhã que fora deixado à sua porta.

 

A Polícia descobrira o local de onde haviam sido feitos os telefonemas, mas de pouco servira: eram cabinas telefónicas. As tentativas para recolherem impressões digitais das fotografias que ela recebera haviam sido igualmente infrutíferas.

 

Durante mais de um ano a Polícia fora incapaz de prender o perseguidor.

 

Ilibou várias pessoas acusadas de crimes violentos, Ms. Graham dissera-lhe Marty Browski, o detective. Pode ser alguém da família de uma das vítimas. Pode ser alguém que a senhora tenha visto num restaurante e que a tenha seguido até casa. Pode ser alguém que sabe que ganhou muito dinheiro e tem uma fixação por si.

 

E depois descobriram Ned Koehler, filho de uma mulher cujo assassino ela defendera com êxito, perto da sua casa. ”Ele agora está preso”, tranquilizou-se Emily. ”Não tens de te preocupar mais com ele. Vai receber o tratamento de que precisa.”

 

Encontrava-se numa instituição psiquiátrica de alta segurança a norte de Nova Iorque e ela estava em Spring Lake, não em Albany. ”Longe da vista, longe do coração”, pensou Emily esperançosa. Meteu-se na cama, tapou-se com a roupa e estendeu a mão para o interruptor.

 

No outro lado da Avenida Ocean, parado na praia nas sombras da marginal deserta, com o vento do mar a despenteá-lo, um homem viu a luz do quarto apagar-se.

 

Dorme bem, Emily murmurou numa voz suave.

 

         Quarta-feira, 21 de Março

Com a pasta debaixo do braço, Will Stafford percorreu com passadas longas e rápidas a distância entre a porta lateral da sua casa e a cocheira convertida que, como a maior parte das que ainda existiam em Spring Lake, servia agora de garagem. A chuva parara durante a noite e o vento abrandara. Mesmo assim, o primeiro dia de Primavera estava fresco e Will pensou por breves momentos que talvez fosse boa ideia ter trazido um sobretudo.

 

”Isto mostra o que acontece quando estamos quase nos quarenta”, pensou com pesar. ”Se continuares assim ainda começarás à procura do gorro de lã em Julho.”

 

Advogado especializado nas leis do mercado imobiliário, ia encontrar-se com Emily Graham para um pequeno-almoço no Who’s on Third?, um café de esquina de Spring Lake. Depois iriam ver pela última vez a casa que ela iria comprar e, em seguida, passariam pelo escritório dele a fim de oficializar a compra.

 

Quando fez marcha atrás com o velho jipe até à estrada, Will reflectiu que estivera um tempo semelhante em Dezembro, quando Emily Graham entrara no seu escritório da Terceira Avenida.

 

Acabei de fazer um depósito para uma casa dissera-lhe ela. Pedi à intermediária que me recomendasse um advogado. Indicou-me três, mas sou muito boa a avaliar a opinião das pessoas. Você é o preferido dela. Aqui está o contrato de promessa de compra e venda.

 

Estava tão excitada com a casa que até se esquecera de se apresentar, recordou Will com um sorriso. Descobrira o nome dela pela assinatura no contrato: Emily S. Graham.

 

Não havia muitas raparigas bonitas que pudessem pagar a pronto dois milhões de dólares por uma casa. Mas, quando ele sugerira que ela podia fazer uma hipoteca por metade daquele valor, Emily explicara que não se imaginava a dever um milhão de dólares a um banco.

 

Ele chegou dez minutos adiantado, mas ela já se encontrava no café com uma caneca na mão. ”Deve querer mostrar que sabe pôr-se em vantagem”, pensou Will, ”ou será que chega sempre antes da hora?”

 

Depois perguntou de si para si se ela conseguiria ler a sua mente.

 

Normalmente não sou assim explicou ela, mas estou tão excitada com a compra da casa que vim antes da hora.

 

Naquele primeiro encontro em Dezembro, quando soubera que ela vira apenas uma casa, Will dissera:

 

Não gosto de perder um trabalho, Ms. Graham, mas está a dizer-me que acabou de ver a casa pela primeira vez? Não viu mais nenhuma? Esta é a sua primeira vez em Spring Lake? Não fez uma contraproposta e pagou o preço que lhe pediram? Sugiro que pense bem no assunto. Por lei tem três dias para retirar a sua oferta.

 

Fora nessa altura que ela lhe dissera que a casa pertencera à sua família, que o S no seu nome significava Shapley.

 

Emily fez o pedido à empregada. Sumo de toranja, um ovo mexido, torradas.

 

Enquanto Will Stafford estudava a ementa, ela estudou-o, aprovando aquilo que via. Era de facto um homem atraente, esbelto, com um metro e oitenta, ombros largos e cabelo cor de areia. Olhos azul-escuros e um maxilar quadrado dominavam o seu rosto de feições regulares.

 

No primeiro encontro ela gostara da combinação de afabilidade e de preocupação. ”Não são todos os advogados que estão dispostos a perder um trabalho”, pensou. ”Ele estava mesmo com receio que eu tivesse sido demasiado impulsiva.”

 

Exceptuando aquele dia em Janeiro em que ela fora até Spring Lake de manhã e regressara a Albany à tarde, de avião, sempre tinham comunicado por telefone ou por e-mail. Mesmo assim, todos os contactos com Stafford confirmavam que ele era realmente um advogado meticuloso.

 

Os Kiernan, que estavam a vender a casa, haviam-na tido apenas por três anos e tinham passado todo esse tempo a restaurá-la. Estavam na fase final da decoração interior quando Wayne Kiernan recebera uma proposta prestigiosa e lucrativa para um cargo que exigia que ele morasse permanentemente em Londres. Emily apercebera-se que não fora fácil para eles desistir da casa.

 

Naquela visita rápida em Janeiro, Emily visitara todas as assoalhadas com os Kiernan e comprara os móveis vitorianos, as carpetes e as peças que eles haviam comprado com tanto gosto e estavam agora dispostos a vender. A casa era espaçosa e o empreiteiro acabara de construir uma cabina de apoio e começara a escavar a piscina.

 

A única coisa de que não gosto é da piscina disse ela a Stafford quando a empregada lhes tornou a encher as canecas. Só hei-de nadar no mar. Mas, como a cabina já está pronta, é um disparate não avançar também com a piscina. E, para além disso, os filhos do meu irmão vão adorá-la quando vierem visitar-me.

 

Will Stafford tratara da papelada toda. Era um bom ouvinte, pensou Emily, quando deu por si ao pequeno-almoço a dizer-lhe que crescera em Chicago.

 

Os meus irmãos chamam-me ”reflexão tardia” disse ela com um sorriso. Têm dez e doze anos a mais do que eu. A minha avó materna vive em Albany. Frequentei o Colégio Skidmore em Saratoga Springs, que fica muito perto, e passei muito do meu tempo livre com ela. A avó dela era a irmã mais nova da Madeline, a rapariga que desapareceu em mil oitocentos e noventa e um com dezanove anos.

 

Will Stafford reparou na expressão triste de Emily, mas ela suspirou e continuou:

 

Bem, isso foi há muito tempo, não é verdade?

 

Há muito, muito tempo concordou ele. Creio que não me disse quanto tempo é que espera passar aqui. Tenciona mudar-se imediatamente, usar a casa apenas aos fins-de-semana, ou quê?

 

Emily sorriu.

 

Tenciono mudar-me assim que hoje fecharmos negócio. As coisas básicas de que preciso já lá estão, incluindo panelas, tachos e roupa de cama. A carrinha das mudanças deve chegar amanhã de Albany com as poucas coisas que tenciono trazer para cá.

 

Ainda tem casa em Albany?

 

Ontem foi o meu último dia lá. Ainda estou a montar o meu apartamento em Manhattan, por isso vou andar para trás e para a frente entre o apartamento e esta casa até ao dia um de Maio. É nessa altura que começo no meu novo trabalho. Depois disso só cá virei aos fins-de-semana e nas férias.

 

Já deve ter percebido que as pessoas de cá estão muito curiosas a seu respeito avisou Will. Só quero que saiba que não fui eu que lhes disse que você é descendente da família Shapley.

 

A empregada estava a pôr-lhes os pratos na mesa. Emily não esperou que ela se afastasse e disse:

 

Will, não estou a tentar manter isso em segredo. Referi-o aos Kiernan e a Joan Scotti, a agente imobiliária. Ela disse-me que há famílias cujos antepassados estavam aqui na altura em que a irmã da minha tetravó desapareceu. Gostava de saber o que é que eles ouviram a respeito dela, para além do facto, claro, de parecer ter desaparecido da face da terra. Também sabem que sou divorciada e que vou trabalhar em Nova Iorque, por isso, não tenho segredos tenebrosos.

 

Ele parecia divertido.

 

Não estava a vê-la a ter segredos tenebrosos.

 

Emily esperou que o seu sorriso não parecesse forçado. ”Tenciono guardar segredo sobre o tempo que passei este ano no tribunal sem ser a trabalhar.” Fora arguida no processo que o ex-marido lhe instaurara, dizendo que tinha direito a metade do dinheiro que ela ganhara com as acções, e também estivera no banco das testemunhas a depor contra o homem que a perseguira.

 

Quanto a mim continuou Stafford, você não me perguntou nada, mas vou dizer-lhe na mesma. Nasci e cresci a uma hora daqui, em Princeton. O meu pai era director executivo e presidente do conselho de administração da Lionel Pharmaceuticals em Manhattan. Ele e a minha mãe divorciaram-se quando eu fiz dezasseis anos, e como o meu pai viajava muito, fui viver com a minha mãe para Denver e terminei lá os estudos. Comeu o resto da salsicha. Todas as manhãs digo a mim mesmo que devia comer flocos de aveia e fruta, mas três vezes por semana contribuo para o aumento do colesterol. Você tem muito mais autodomínio do que eu.

 

Nem por isso. Já decidi que da próxima vez que cá vier tomar o pequeno-almoço hei-de comer o mesmo que você comeu agora.

 

Podia ter provado um pouco. A minha mãe ensinou-me a partilhar. Olhou para o relógio e pediu a conta. Não quero apressá-la, Emily, mas são nove e meia. Os Kiernan são os vendedores mais relutantes que já vi. É melhor não os fazermos esperar e não lhes dar a oportunidade para mudarem de ideias a respeito da casa.

 

Enquanto esperavam pela conta, ele disse:

 

Para acabar a pouco emocionante história da minha vida, casei assim que terminei o curso de Direito. Ao fim de menos de um ano soubemos que tínhamos cometido um erro.

 

Teve sorte comentou Emily. A minha vida teria sido muito mais fácil se eu tivesse sido tão inteligente.

 

Mudei-me para Este e entrei para o departamento judicioso da Canon and Rhodes, que, como deve saber, é uma importante firma de agentes imobiliários em Manhattan. Era um óptimo trabalho, mas muito exigente. Queria uma casa para os fins-de-semana e vim até cá espreitar. Acabei por comprar uma casa velha a precisar de muito restauro. Adoro trabalhar com as mãos.

 

Porquê Spring Lake?

 

No Verão, quando era miúdo, costumávamos ficar algumas semanas no Hotel Essex and Sussex. Foram tempos felizes. Ele encolheu os ombros.

 

A empregada pousou a conta na mesa. Will olhou-a de relance enquanto puxava da carteira.

 

Depois, há doze anos, apercebi-me de que gostava de viver aqui e de que não gostava de trabalhar em Nova Iorque, por isso abri este escritório. Há muito trabalho, não só com casas mas também com escritórios.

 

E por falar nisso, vamos a casa dos Kiernan. Levantaram-se ao mesmo tempo.

 

Mas os Kiernan já haviam deixado Spring Lake. O advogado deles explicou que tinha uma procuração para poder fechar a venda. Emily visitou com ele todas as assoalhadas, maravilhando-se de novo com os pormenores arquitectónicos que não apreciara antes.

 

Sim, creio que tudo o que comprei está aqui e que a casa está em perfeitas condições disse-lhe ela. Tentou refrear a impaciência relativamente à assinatura do contrato e de se ver sozinha em casa para poder vaguear por ela, mudar a disposição dos móveis da sala de forma a que os sofás ficassem de frente um para o outro e perpendiculares à lareira.

 

Precisava de pôr o seu carimbo na casa, de a fazer sua. Sempre considerara a casa em Albany como um sítio provisório embora lá tivesse morado três anos desde que regressara um dia mais cedo de uma visita aos pais em Chicago e encontrara o marido abraçado à sua melhor amiga, Barbara Lyons. Pegara nas malas, regressara ao carro e instalara-se num hotel. Uma semana mais tarde alugara uma casa.

 

A casa onde vivera com Gary pertencia à abastada família dele. Emily nunca a considerara sua. Mas caminhar nela parecia evocar memórias sensoriais.

 

Até parece que sinto que ela está a dar-me as boas-vindas comentou com Will Stafford.

 

Acho que talvez esteja. Devia ver a sua cara. Está pronta a ir ao meu escritório assinar os papéis?

 

Três horas mais tarde Emily regressou à casa e parou de novo no caminho de acesso à garagem.

 

Lar, doce lar disse alegremente quando saiu do carro e abriu o porta-bagagens para retirar de lá as compras que fizera numa mercearia depois de ter assinado o contrato.

 

Junto à cabana havia uma área que estava a ser escavada para construção da piscina. Encontravam-se ali três homens a trabalhar. Quando visitara a casa havia pouco fora apresentada a Manny Dexter, o encarregado. Ele viu-a naquele momento e acenou-lhe.

 

O ruído da escavadora abafou o som dos seus passos rápidos no caminho de lajes azuis que conduzia à porta das traseiras. ”Passava bem sem isto”, pensou, mas depois lembrou-se de novo que seria agradável ter a piscina quando os irmãos e as suas famílias fossem visitá-la.

 

Envergava uma das suas indumentárias preferidas, um calça-casaco verde-escuro e uma camisola branca de gola alta. Embora a roupa fosse quente, Emily estremeceu de frio quando mudou o saco das compras de um braço para o outro e enfiou a chave na fechadura. Uma rajada de vento empurrou-lhe o cabelo para a cara e, quando abanou a cabeça para o afastar dos olhos, inclinou o saco e uma caixa de cereais caiu no chão do alpendre.

 

O tempo que demorou a apanhá-lo significou que Emily ainda estava na rua quando Manny Dexter gritou muito perturbado ao operador da escavadora.

 

Desliga essa coisa! Não escaves mais! Está aqui um esqueleto.

 


O detective Tommy Duggan nem sempre concordava com o chefe, Elliot Osborne, o promotor público do município de Monmouth. Tommy sabia que Osborne considerava a sua investigação do desaparecimento de Martha Lawrence uma obsessão que só contribuía para manter o assassino em estado de permanente alerta.

 

A menos que o assassino seja um maluco que passou por cá, que tenha pegado nela e largado o seu corpo a centenas de quilómetros daqui observava Osborne.

 

Tommy Duggan tinha quarenta e dois anos e era detective havia quinze. Durante esse tempo casara, fora pai de dois filhos e vira o seu cabelo cair e a sua cintura aumentar. Com o seu rosto redondo e bem humorado, de sorriso fácil, dava a impressão de ser um homem afável que nunca tivera um problema mais sério do que um pneu furado.

 

Na verdade, era um excelente detective. No departamento, era admirado e invejado pela sua capacidade de agarrar numa informação aparentemente inútil e de a seguir até se provar que ela era a chave para solucionar o caso. Ao longo dos anos Tommy recusara várias ofertas generosas de trabalho em firmas de segurança privada. Adorava aquilo que fazia.

 

Vivera toda a vida em Avon by the Sea, uma vila costeira a alguns quilómetros de Spring Lake. Enquanto estudante universitário trabalhara como paquete e depois como empregado de mesa no Hotel Warren de Spring Lake. Fora aí que conhecera os avós de Martha Lawrence, pois estes costumavam jantar regularmente no hotel.

 

Naquele dia, sentado no seu minúsculo gabinete, passou de novo a hora de almoço a reler o dossiê Lawrence. Sabia que Elliot Osborne queria apanhar o assassino de Martha Lawrence tanto como ele. A única coisa que diferia eram as suas ideias acerca de como solucionar o crime.

 

Tommy olhou para a fotografia de Martha que havia sido tirada na marginal de Spring Lake. A rapariga envergava uma T-shirt e calções. O seu cabelo louro acariciava-lhe os ombros, o seu sorriso era alegre e confiante. Fora uma bela mulher de vinte e um anos que, quando aquela fotografia fora tirada, deveria ter vivido ainda cinquenta ou sessenta anos. Em vez disso, tivera menos de quarenta e oito horas.

 

Tommy abanou a cabeça e fechou o dossiê. Estava convencido de que se continuasse a observar as pessoas de Spring Lake acabaria por se lhe deparar algum facto crucial, alguma informação previamente ignorada que o conduziria à verdade. Como consequência, era uma figura habitual para os vizinhos dos Lawrence e para todas as pessoas que haviam estado em contacto com Martha durante as últimas horas da sua vida.

 

Os empregados da empresa de catering que haviam servido na festa dada pelos Lawrence na noite anterior ao desaparecimento de Martha eram funcionários de longa data. Falara várias vezes com eles e até ao momento não obtivera qualquer informação relevante.

 

A maior parte das pessoas que fora à festa era da terra ou tinha ali casas de Verão que visitava regularmente durante o ano aos fins-de-semana. Tommy tinha sempre uma cópia da lista de convidados na carteira. Não lhe custava muito ir até Spring Lake e visitar alguns deles só para conversar.

 

Martha desaparecera enquanto andava a correr. Alguns dos corredores matinais regulares afirmaram tê-la visto junto a North Pavilion. Todos eles haviam sido investigados cuidadosamente e ilibados.

 

Tommy Duggan suspirou ao fechar e guardar o dossiê na gaveta de cima. Não acreditava que Martha houvesse sido levada por alguém que tivesse parado por acaso em Spring Lake. Tinha a certeza de que quem a raptara era alguém em quem ela confiava.

 

”E trabalho nisto nas minhas horas vagas”, pensou amargamente ao observar o conteúdo do saco com o almoço que a mulher lhe preparara.

 

O médico mandara-o perder oito quilos. Ao desembrulhar uma sandes de atum em pão integral, decidiu que Suzie estava determinada a fazê-lo perder peso matando-o à fome.

 

Depois sorriu com relutância e admitiu que era aquela maldita dieta que estava a afectá-lo. Do que realmente precisava era de uma sandes mista em pão de centeio, com uma salada de batata. E um picle, acrescentou.

 

Ao dar uma dentada na sandes de atum, pensou que embora Osborne tivesse acabado de comentar que ele exagerava nos seus esforços para desvendar o caso Lawrence, a família de Martha não via as coisas da mesma forma.

 

Aliás, a avó de Martha, uma octogenária bonita e naturalmente elegante, parecera-lhe muito feliz quando a fora visitar na semana anterior. Fora então que lhe dera a boa nova: a irmã de Martha, Christine, acabara de ter um bebé.

 

O George e a Amanda estão tão contentes! exclamou ela. É a primeira vez que os vejo sorrir nos últimos quatro anos e meio. Sei que o nascimento de um neto os vai ajudar a ultrapassar a perda da Martha.

 

George e Amanda eram os pais de Martha. Depois, Mrs. Lawrence acrescentara:

 

Tommy, por um lado aceitamos todos que a Martha já não vai voltar. Ela nunca teria desaparecido voluntariamente. O que nos incomoda é a possibilidade de um maluco a ter raptado e de a ter ainda prisioneira. Seria mais fácil se tivéssemos a certeza de que ela desapareceu.

 

”Desaparecer” significando morrer, claro.

 

Fora vista pela última vez na marginal às seis e meia da manhã de 17 de Setembro, havia quatro anos e meio.

 

Enquanto acabava a sandes com pouco entusiasmo, Tommy tomou uma decisão. A partir das seis da manhã do dia seguinte iria tornar-se um dos corredores da marginal de Spring Lake.

 

Isso ajudá-lo-ia a livrar-se dos oito quilos, mas havia ainda outra coisa. Como se fosse uma comichão num sítio inalcançável, começava a ter a sensação que às vezes tinha quando trabalhava intensamente num homicídio, e embora tentasse livrar-se dela, não conseguia.

 

Estava a aproximar-se do assassino. O telefone tocou. Pegou nele quando deu uma dentada na maça que servia de sobremesa. Era a secretária de Osborne.

 

Tommy, vai ter já com o chefe ao carro.

 

Elliot Osborne acabara de se sentar no banco de trás quando Tommy, ligeiramente ofegante, chegou ao estacionamento reservado. Osborne não falou até o carro ter arrancado e o motorista ligado a sirena.

 

Foi descoberto um esqueleto na Avenida Hayes em Spring Lake. O proprietário estava a escavar um buraco para uma piscina.

 

Antes de Osborne poder continuar, o telefone do carro-patrulha tocou. O motorista atendeu e entregou o auscultador ao promotor público.

 

É o Newton, sir.

 

Osborne manteve o auscultador afastado da orelha para que Tommy pudesse ouvir o que o chefe da equipa forense dizia.

 

Tem aqui um caso e pêras, Elliot. Estão aqui enterrados os restos mortais de duas pessoas e, pelo aspecto, parece que uma está no chão há muito mais tempo que a outra.

 

Depois de ter chamado a Polícia, Emily correu lá para fora e ficou junto ao buraco a olhar para o que parecia ser um esqueleto humano.

 

Enquanto advogada criminal vira dezenas de fotografias de cadáveres. As expressões nos rostos de muitos deles eram de medo. Noutras tivera de detectar uma súplica nos seus olhos imóveis. Mas nada a afectara tanto como a visão daquela vítima naquele momento.

 

O corpo fora envolto em plástico grosso e transparente. O plástico estava a rasgar-se mas, embora a carne se tivesse decomposto, contribuíra para manter os ossos intactos. Por um momento ocorreu-lhe que os restos mortais da irmã da tetravó haviam sido acidentalmente descobertos.

 

Depois rejeitou essa possibilidade. Em 1891, quando Madeline Shapley desaparecera, o plástico ainda não havia sido inventado, por isso aquele esqueleto não podia ser o dela.

 

Quando o primeiro carro da Polícia parou junto à sua casa, com a sirena a tocar, Emily foi para dentro de casa. Sabia que os agentes haveriam de querer falar com ela e sentia a necessidade de ordenar as ideias.

 

”Ordenar as ideias”, uma expressão da avó.

 

Os sacos das compras encontravam-se na bancada da cozinha onde ela os pousara à pressa quando correra para o telefone. Com uma precisão mecanizada, encheu a chaleira, colocou-a no fogão, acendeu o lume, depois separou as compras e guardou algumas coisas no frigorífico. Hesitou um momento, depois começou a abrir e a fechar os armários.

 

Não sei onde é o lugar das mercearias disse em voz alta, nervosa, depois apercebeu-se de que aquela irritação infantil era resultante do choque.

 

A chaleira começou a apitar. ”Uma chávena de chá”, pensou. ”Isso vai ajudar-me.”

 

A janela grande da cozinha dava para o terreno atrás da casa. Com a chávena na mão, Emily deteve-se à janela, observando a eficiência rápida com que a área em redor da escavação estava a ser isolada.

 

Os fotógrafos da Polícia chegaram e começaram a fotografar o local. Ela soube que o homem que entrou no buraco, perto do sítio onde se encontrava o esqueleto, devia ser um especialista em patologia forense.

 

Sabia que os restos mortais seriam levados para a morgue e examinados. E depois seria emitida uma descrição física, com o sexo da vítima e o seu tamanho, peso e idade aproximados. Os registos dentários e o ADN ajudariam a confrontar a descrição com a de uma pessoa desaparecida. E para alguma família infeliz a agonia da incerteza chegaria ao fim, bem como a esperança de que talvez o seu familiar desaparecido pudesse voltar.

 

A campainha tocou.

 

Tommy Duggan, carrancudo, encontrava-se ao lado de Elliot Osborne no alpendre e esperava que a porta fosse aberta. Depois da conversa sussurrada com o chefe da equipa forense, os dois homens sabiam que a busca por Martha Lawrence chegara ao fim. Newton dissera-lhes que o estado do esqueleto envolto em plástico indicava que ele pertencera a um jovem adulto que, tanto quanto ele se apercebera, tivera dentes perfeitos. Recusou-se a especular sobre os ossos humanos soltos que encontrara junto ao esqueleto até que o médico legista pudesse examiná-los na morgue.

 

Tommy olhou por cima do ombro.

 

Já começam a juntar-se ali algumas pessoas. Não tarda nada, isto chega aos ouvidos dos Lawrence.

 

O doutor O’Brien vai apressar a autópsia disse Osborne com rispidez. Ele sabe que toda a gente em Spring Lake vai pensar imediatamente que é a Martha Lawrence.

 

Quando a porta se abriu, os dois homens tinham as suas identificações na mão.

 

Eu sou a Emily Graham. Façam favor de entrar disse ela.

 

Esperara que a visita fosse pouco mais do que uma mera formalidade.

 

Sei que comprou a casa esta manhã, Ms. Graham começou Osborne.

 

Emily estava familiarizada com funcionários públicos como Elliot Osborne. Impecavelmente vestidos, corteses, inteligentes, eram também bons relações públicas que deixavam as coisas mais importantes para os subalternos. Sabia que ele e o detective Duggan iriam mais tarde comparar notas e impressões.

 

Estavam de pé no vestíbulo, onde a única peça de mobiliário era um sofá vitoriano de dois lugares. Quando vira a casa pela primeira vez e dissera que desejava comprá-la, acrescentando que estaria também interessada em adquirir alguns móveis, Theresa Kiernan, a antiga proprietária, apontara para o sofá com um ligeiro sorriso.

 

Adoro esta peça, mas confie em mim, serve apenas para dar atmosfera. É tão baixa que temos de desafiar a força da gravidade para nos levantarmos dela.

 

Emily convidou Osborne e o detective Duggan para a sala. ”Tencionava mudar a disposição dos sofás esta tarde”, pensou enquanto eles a seguiam. ”Queria-os de frente um para o outro junto à lareira.” Tentou reprimir uma crescente sensação de irrealidade.

 

Duggan retirara do bolso um bloco de apontamentos.

 

Gostaríamos apenas de lhe fazer algumas perguntas simples, Ms. Graham disse Osborne. Há quanto tempo é que vem para Spring Lake?

 

A história de ali ter ido pela primeira vez havia três meses e de ter comprado imediatamente a casa pareceu estranha até aos ouvidos de Emily.

 

Nunca aqui esteve antes e comprou uma casa destas por impulso? Havia uma certa incredulidade na voz de Osborne.

 

Emily apercebeu-se que a expressão nos olhos de Duggan era especulativa. Escolheu cuidadosamente as palavras.

 

Vim a Spring Lake por impulso, porque toda a vida tive curiosidade acerca desta localidade. A minha família construiu esta casa em mil oitocentos e setenta e cinco. Tiveram-na até mil oitocentos e noventa e dois e venderam-na depois de a filha mais velha, Madeline, ter desaparecido em noventa e um. Quando procurei nos registos da cidade para ver onde ficava a casa, descobri que estava à venda. Vi-a, adorei-a e comprei-a. Não posso dizer-vos mais do que isso.

 

Não compreendeu a expressão perplexa dos dois homens.

 

Não havia percebido que esta era a casa dos Shapley disse Osborne. Calculamos que aquele corpo seja o de uma jovem que desapareceu há quatro anos, quando veio visitar os avós em Spring Lake. Com um breve aceno de cabeça indicou a Duggan que não era altura de referirem as segundas ossadas.

 

Emily sentiu-se empalidecer.

 

Uma jovem desapareceu há quatro anos e está enterrada aqui? murmurou. Meu Deus, como é isso possível?

 

É um dia muito triste para esta comunidade. Osborne levantou-se. Infelizmente, vamos ter de manter o local isolado até acabarmos de o analisar. Em breve poderá mandar o seu encarregado continuar a escavação da piscina.

 

”Não vai haver piscina”, pensou Emily.

 

Devem aparecer por aqui muitos jornalistas. Vamos fazer os possíveis para impedir que eles a incomodem disse Osborne. Talvez queiramos voltar a falar consigo.

 

Quando se dirigiram à porta, a campainha tocou insistentemente.

 

A carrinha das mudanças de Albany chegara.

 


Para os habitantes de Spring Lake, o dia começara da habitual forma calma. A maior parte das pessoas que trabalhava em Nova Iorque juntara-se na estação dos comboios para a costumeira viagem de hora e meia. Outras haviam estacionado os carros na vizinha Atlantic Highlands e apanhado a lancha que os deixaria num cais junto ao World Financial Center.

 

Ali, sob o olhar atento da Estátua da Liberdade, tinham-se apressado para os seus escritórios. Muitos trabalhavam na comunidade financeira como corretores. Outros eram advogados e empregados bancários.

 

Em Spring Lake a manhã decorreu com normalidade. As crianças encheram as salas da escola pública e de Santa Catarina. As bonitas lojas na típica Terceira Avenida abriram as suas portas. Ao meio-dia, um dos locais preferidos para o almoço era o Sisters Café. Os mediadores imobiliários levaram potenciais compradores a verem as casas para venda e explicaram que, mesmo com os preços a subir em flecha, uma casa ali era um excelente investimento.

 

O desaparecimento de Martha Lawrence havia quatro anos e meio permanecera como um manto de tristeza na consciência dos residentes, mas, para além desse terrível acontecimento, o crime era praticamente inexistente naquela povoação.

 

Agora, naquele primeiro dia de Primavera ventoso, essa sensação de segurança local foi profundamente abalada.

 

A notícia da actividade da Polícia na Avenida Hayes espalhou-se rapidamente. Seguiram-se rumores sobre a descoberta de restos humanos. O operador da escavadora pegou discretamente no telemóvel para ligar à mulher.

 

Ouvi o chefe da equipa forense dizer que, pelo estado dos ossos, calcula ter encontrado um jovem adulto murmurou. Há mais qualquer coisa ali em baixo, mas eles não disseram o que era.

 

A mulher apressou-se a ligar às amigas. Uma delas, jornalista em part-time para a cadeia CBS, telefonou a dar a informação. Foi enviado um helicóptero para cobrir a história.

 

Toda a gente sabia que a vítima iria ser Martha Lawrence. Os amigos de longa data juntaram-se aos poucos na casa dos Lawrence. Um deles encarregou-se de ligar aos pais de Martha que viviam em Filadélfia.

 

Mesmo antes de a notícia se tornar oficial, George e Amanda Lawrence cancelaram a viagem a casa da filha mais velha em Bernarsdville, Nova Jérsia, para visitarem a neta mais nova. Com uma premonição desagradável puseram-se a caminho de Spring Lake.

 

Àss seis da tarde, quando a escuridão começou a cobrir a costa Leste, o pastor de Santa Catarina acompanhou o promotor público a casa dos Lawrence. Os registos dentários de Martha, precisos na sua descrição dos dentes que haviam dado a Martha do seu sorriso radioso, eram exactamente idênticos ao molde que o Dr. O’Brien fizera durante a autópsia.

 

Agarradas ao crânio havia ainda algumas madeixas de cabelo louro comprido. Eram idênticos aos cabelos retirados da almofada e da escova de Martha depois do seu desaparecimento.

 

Toda a vila pareceu ficar de luto.

 

A Polícia decidiu reter por enquanto a informação sobre o segundo esqueleto. Também pertenciam a uma mulher jovem e os técnicos calculavam que havia estado no chão mais de cem anos.

 

Para além disso, não foi revelado que o instrumento da morte de Martha fora uma echarpe de seda com contas metálicas, firmemente enrolada ao seu pescoço.

 

Contudo, a revelação mais arrepiante que a Polícia não estava pronta a partilhar era que, dentro do seu sudário de plástico, Martha Lawrence fora sepultada com o osso do dedo anelar da vítima mais antiga e que nesse osso havia ainda um anel de safira.

 

Nem o alarme ultramoderno nem a presença de um polícia na cabina a guardar a cena do crime foram suficientes para acalmar Emily na sua primeira noite na casa nova. O barulho feito pelos homens e a necessidade de desempacotar as coisas e voltar a pôr ordem na casa tinham-na mantido entretida toda a tarde. Tanto quanto era humanamente possível, Emily tentou não pensar na actividade no seu jardim, na presença dos espectadores silenciosos na rua e no barulho penetrante do helicóptero lá em cima.

 

Àss sete horas fizera uma salada, cozera uma batata e grelhara as costeletas de borrego que comprara, juntamente com outras coisas, para celebrar a compra da casa.

 

Porém, embora tivesse baixado os estores e acendido a lareira da cozinha, continuava a sentir-se completamente vulnerável.

 

Para se distrair, levou para a mesa o livro que ansiava ler mas, apesar dos esforços, nada diminuiu a sua ansiedade. Os vários copos de chianti que bebeu não a aqueceram nem a descontraíram. Adorava cozinhar, e os amigos diziam sempre que ela era capaz de tornar especial uma refeição simples. Naquela noite mal foi capaz de saborear a comida. Releu duas vezes o primeiro capítulo do livro, mas as palavras pareciam não ter significado nem coerência.

 

Nada podia fazê-la esquecer que fora encontrado o corpo de uma jovem mulher no seu jardim. Disse a si própria que devia ser uma coincidência irónica o facto de a irmã da tetravó ter desaparecido dali e de naquele dia uma rapariga que desaparecera em Spring Lake ter ali sido encontrada.

 

Contudo, ao arrumar a cozinha, apagar o lume, verificar todas as portas e programar o alarme para disparar assim que alguma porta ou janela se abrisse, Emily foi incapaz de ignorar a certeza crescente de que a morte da sua antepassada e a morte daquela rapariga quatro anos e meio antes estavam inexoravelmente ligadas.

 

Com o livro debaixo do braço, subiu as escadas até ao primeiro andar. Eram apenas nove horas, mas só lhe apetecia tomar um duche, vestir um pijama quente e meter-se na cama, onde poderia ler ou ver televisão ou ambas as coisas.

 

”Como ontem à noite”, pensou.

 

Os Kiernan haviam sugerido que mantivesse Doreen Sullivan, a mulher-a-dias que vinha duas vezes por semana. Na escritura, o advogado deles informara que, como prenda de boas-vindas, tinham pedido a Doreen que limpasse a casa e pusesse roupa lavada nas camas e toalhas limpas nas casas de banho.

 

A casa ficava na esquina, a uma rua do mar. Das janelas do lado sul e do lado nascente do quarto via-se o mar. Vinte minutos depois de ter subido ao primeiro andar, Emily tomara duche e mudara de roupa e, já um pouco mais descontraída, abriu a cama.

 

Depois hesitou. Teria trancado a porta da frente?

 

Mesmo com o alarme ligado, tinha de se certificar.

 

Aborrecida, saiu do quarto e avançou pelo corredor. No patamar carregou no interruptor que acendia a luz do vestíbulo e desceu as escadas rapidamente.

 

Antes de chegar à porta viu o sobrescrito que fora enfiado debaixo dela. ”Por favor, outra vez não, meu Deus”, pensou ao baixar-se para o apanhar. ”Não permitas que aquilo comece de novo!”

 

Abriu o sobrescrito, rasgando-o. Tal como temia, continha uma fotografia, a silhueta de uma mulher numa janela, a luz por trás. Teve de concentrar-se para perceber que era a mulher na fotografia.

 

E então soube.

 

A noite passada. Na Estalagem Candlelight. Quando abrira a janela ficara um momento a olhar para a praia antes de baixar o estore.

 

Alguém estivera no passeio. Não, isso não era possível. Ela olhara para o passeio e não vira ninguém.

 

Alguém na praia tirara-lhe a fotografia, revelara-a e depois enfiara-a debaixo da porta durante a última hora. Não a vira ali quando subira as escadas.

 

Parecia que a pessoa que a perseguira em Albany a seguira até Spring Lake! Mas isso era impossível. Ned Koehler estava em Gray Manor, uma instituição psiquiátrica de alta segurança em Albany.

 

O telefone da casa ainda não fora ligado. O seu telemóvel encontrava-se no quarto. Com a fotografia na mão, subiu as escadas. Pegou nele e, com dedos trémulos, marcou o número das informações.

 

Bem-vindo às informações locais e nacionais...

 

Albany, Nova Iorque. Hospital Gray Manor. Ficou abalada ao aperceber-se de que conseguia apenas sussurrar.

 

Momentos depois estava a falar com o supervisor da unidade a que Ned Koehler se encontrava confinado. Identificou-se.

 

Eu conheço o seu nome disse o supervisor. Era a senhora que ele andava a perseguir.

 

Ele teve alta?

 

O Koehler? De maneira nenhuma, Ms. Graham.

 

Há possibilidade de ter conseguido fugir?

 

Vi-o quando fui verificar as camas há menos de uma hora.

 

Na mente de Emily surgiu uma imagem nítida de Ned Koehler: um homem magro com cerca de quarenta anos, a ficar careca, hesitante na fala e nos modos. No tribunal chorara em silêncio durante um julgamento. Ela defendera Joel Lake, acusado de matar a mãe de Ned durante um assalto.

 

Quando o júri absolvera Lake, Ned Koehler ficara louco e atravessara a sala de audiências direito a ela. Gritava obscenidades, lembrava-se Emily. ”Dizia-me que eu tinha ilibado um assassino. Foram precisos dois guardas para o acalmar.”

 

Que tal está ele? perguntou.

 

Farta-se de dizer a mesma coisa: que está inocente. A voz do supervisor era tranquilizadora. Ms. Graham, é natural que as vítimas de perseguições se sintam apreensivas mesmo depois de o culpado estar fechado a sete chaves. O Ned não vai a lado nenhum.

 

Quando pousou o auscultador Emily obrigou-se a estudar a fotografia. Nela, fora apanhada no centro da janela, um alvo fácil para alguém com uma arma em vez de uma máquina fotográfica, pensou.

 

Tinha de ligar à Polícia. ”E o agente que está nas traseiras, junto à cabina? Não quero abrir a porta. Imagina que ele não está lá. Que está lá outra pessoa...

 

Não, o número da esquadra estava no calendário da cozinha. Não queria que a Polícia chegasse com as sirenes ligadas. O alarme estava ligado. Ninguém podia entrar.

 

O agente que atendeu a chamada mandou imediatamente um carro. As luzes azuis vinham ligadas, mas não a sirene.

 

O polícia era novo, não devendo ter mais de vinte e dois anos. Ela mostrou-lhe a fotografia, falou-lhe do homem que a perseguira em Albany.

 

Tem a certeza de que não foi libertado, Ms. Graham?

 

Acabei de ligar para lá.

 

Calculo que algum miúdo que sabe que a senhora teve este problema tenha querido pregar-lhe uma partida aventou ele. Tem alguns sacos de plástico que possa dar-me?

 

Segurou a fotografia e o sobrescrito pelos cantos enquanto os punha nos sacos.

 

Vamos procurar neles impressões digitais explicou. Agora vou andando.

 

Ela acompanhou-o à porta.

 

Esta noite vamos vigiar a sua casa e alertar o agente que está no seu jardim para manter os olhos abertos disse ele. A senhora vai ficar bem.

 

”Talvez”, pensou Emily ao trancar a porta depois de ele ter saído.

 

Ao deitar-se, puxou a roupa da cama até ao queixo e obrigou-se a apagar a luz. Houvera muita publicidade quando Ned Koehler fora apanhado e preso, pensou. ”Talvez esta pessoa esteja a imitá-lo.

Mas porquê! E que outra explicação poderia haver? Ned Koehier era culpado. Claro que era. A voz do supervisor: ”Farta-se de dizer a mesma coisa: que está inocente.”

 

Estaria mesmo? Se fosse verdade, continuaria o verdadeiro perseguidor em liberdade e pronto a renovar as suas atenções?

 

Era quase madrugada quando, tranquilizada pela luz da alvorada, Emily finalmente adormeceu. Foi acordada às nove pelo latir dos cães que a Polícia levara para tentar descobrir se havia mais vítimas enterradas na sua propriedade.

 


Clayton e Rachel Wilcox estiveram em casa dos Lawrence na véspera do desaparecimento de Martha Lawrence. Desde essa altura, tal como todos os outros convidados, haviam sido regularmente visitados pelo detective Tom Duggan.

 

Ouviram a notícia surpreendente de que o corpo de Martha fora descoberto, mas, ao contrário de muitos outros convidados dessa última festa, não haviam ido a correr para casa dos Lawrence. Rachel dissera ao marido que apenas os amigos mais chegados seriam bem-vindos num momento de tamanho sofrimento. O tom da sua voz não deixou espaço para argumentos.

 

Com sessenta e quatro anos, Rachel era atraente, com cabelo grisalho pelos ombros que costumava usar apanhado. Alta e com um excelente porte, exsudava autoridade. A sua pele, sem o mínimo resquício de maquilhagem, era clara e firme. Os seus olhos, de um azul-acinzentado, tinham uma perpétua expressão sisuda.

 

Trinta anos antes, Clayton, deão assistente com quase quarenta anos, começara a cortejá-la e comparara Rachel a um viquingue.

 

Imagino-te na proa de um barco, armada para a batalha, com o vento a sacudir-te os cabelos murmurara ele.

 

Agora referia-se mentalmente a Rachel como ”A Viquingue”. O nome, contudo, já não era ternurento. Clayton vivia num constante estado de alerta, sempre ansioso por evitar a cólera da mulher. Mas, quando mesmo assim a provocava, a língua cáustica dela feria-o sem misericórdia. Logo no início do casamento ele aprendera que ela não perdoava nem esquecia.

 

Tendo sido convidado dos Lawrence poucas horas antes do desaparecimento de Martha, parecia-lhe ser razão suficiente para uma breve visita de condolências, mas Clayton era bastante esperto e decidiu ficar calado. Assim, enquanto assistia ao noticiário das onze, escutou num silêncio sofredor os comentários cáusticos de Rachel.

 

É muito triste, claro, mas pelo menos assim aquele detective vai deixar de vir cá aborrecer-nos disse ela.

 

”Há-de é fazer o Duggan vir cá ainda mais vezes”, pensou Clayton. Era um homem grande, com uma cabeça leonina de cabelo grisalho desgrenhado e olhar sensato, e parecia bem um académico.

 

Quando, havia doze anos, aos cinquenta e cinco, se aposentara da direcção do Colégio Enoch, uma instituição pequena mas prestigiada no Ohio, ele e Rachel haviam-se instalado definitivamente em Spring Lake. Tinha ali ido pela primeira vez em criança, de visita a um tio que se mudara para lá, e ao longo dos anos regressara para algumas visitas ocasionais. Nas horas vagas, estudara com entusiasmo a história da vila e agora era conhecido como o historiador local.

 

Rachel oferecera-se como voluntária para as várias instituições de caridade, onde era admirada pela sua capacidade de organização e pela sua energia, embora ninguém gostasse especialmente dela. Também se certificara de que toda a gente sabia que o marido fora director de um colégio e que ela própria estudara em Smith.

 

Todas as mulheres da nossa família, começando pela minha avó, se formaram lá explicava. Nunca perdoara a Clayton uma indiscrição com uma colega três anos depois do casamento. Depois, o erro que o obrigara a aposentar-se abruptamente do Colégio Enoch, um local onde ela gostara de viver, tornara-a permanentemente amarga.

 

Quando a fotografia de Martha Lawrence apareceu na televisão, Clayton Wilcox sentiu as mãos humedecerem-se de medo. Houvera mais alguém com cabelo louro comprido e um corpo perfeito. Agora que os restos mortais de Martha haviam sido encontrados, até que ponto iria a Polícia investigar o passado das pessoas que haviam estado na festa daquela noite? Engoliu em seco, tentando fazer desaparecer a secura na boca e na garganta.

 

Martha Lawrence fora visitar os avós antes de regressar à faculdade disse a apresentadora da CBS, Dana Tyler.

 

Pedi-te que guardasses a minha echarpe na festa queixou-se Rachel pela milionésima vez. E, claro, conseguiste perdê-la.

 


Todd, Scanlon, Klein e Todd, uma conhecida firma de advogados criminais com sede na Avenida Park, em Manhattan, fora fundada por Walter Todd. Como ele costumava dizer:

 

Há quarenta e cinco anos pendurei uma tabuleta numa janela junto ao tribunal. Ninguém apareceu. Comecei a travar amizade com os funcionários do tribunal. Simpatizaram comigo e começaram a dizer aos clientes que eu era um bom advogado. E, melhor ainda, que era barato.

 

O outro Todd da sociedade era o filho de Walter, Nicholas.

 

Parece-se comigo, soa como eu, e antes de morrer há-de ser tão bom advogado como eu vangloriava-se Walter Todd. Juro que o Nick era capaz de ilibar o próprio Diabo!

 

Ignorava sempre os protestos de Nick.

 

Não considero isso um elogio, pai.

 

A 21 de Março, Nick Todd e o pai trabalharam até tarde na preparação de um julgamento e depois Nick foi jantar com os pais ao espaçoso apartamento da Praça das Nações Unidas.

 

Às onze menos dez preparou-se para ir embora, mas decidiu esperar e assistir com eles ao noticiário das onze na CBS.

 

Pode haver alguma notícia sobre o julgamento disse. Já constou que estamos a tentar chegar a acordo.

 

A história de Martha Lawrence foi a primeira notícia.

 

Pobre família suspirou a mãe. Acho que é melhor para eles saberem, mas perder um filho... Arme Todd calou-se. Quando Nick tinha dois anos, ela dera à luz uma filha a que chamaram Amélia. A criança vivera apenas um dia.

 

”Se fosse viva fazia trinta e seis anos para a semana”, pensou Anne. ”Mesmo em recém-nascida era parecida comigo.” Na sua mente imaginava Amélia viva, uma jovem mulher de cabelo escuro e olhos azul-esverdeados. ”Sei que ela teria gostado tanto de música como eu. Teríamos ido juntas a concertos...

Reprimiu as lágrimas que apareciam nos seus olhos sempre que pensava na filha perdida.

 

Nick apercebeu-se do que andava a incomodá-lo no seu subconsciente.

 

Não foi em Spring Lake que a Emily Graham comprou uma casa? perguntou.

 

Walter Todd assentiu.

 

Ainda me pergunto porque é que a deixei escapar e esperar até Maio para vir trabalhar resmungou. Dava-nos jeito tê-la agora.

 

Talvez porque achaste que ela valia alguma coisa depois de a teres visto em Albany sugeriu Nick.

 

Na sua mente surgira uma imagem de Emily Graham. Antes de lhe terem oferecido trabalho, ele e o pai tinham ido a Albany vê-la trabalhar num tribunal. Fora brilhante, conseguindo a absolvição de um cliente acusado de homicídio por negligência criminosa.

 

Emily fora almoçar com eles. Nick recordava-se da eloquência com que o pai, habitualmente taciturno, a elogiara.

 

”São os dois igualzinhos”, pensou naquele momento. ”Assim que aceitam um caso estão quase dispostos a matar pelo cliente.”

 

Desde que comprara o apartamento em Nova Iorque, Emily fora visitá-los várias vezes, para começar a preparar o seu escritório e a conhecer os futuros colegas. Nick apercebeu-se de que estava ansioso por tê-la lá todos os dias.

 

Esticou o seu metro e oitenta e cinco ao levantar-se.

 

Vou andando. Amanhã de manhã quero ir ao ginásio e hoje tive um dia complicado.

 

A mãe acompanhou-o à porta.

 

Devias usar chapéu comentou. Está tanto frio lá fora.

 

Ele baixou-se e deu-lhe um beijo na cara.

 

Esqueceste-te de me dizer que devia usar um cachecol. Anne hesitou, depois olhou para a sala onde o marido continuava concentrado no noticiário. Baixando a voz, implorou:

 

Nick, diz-me por favor qual é o problema porque, escusas de negar, sei que há um problema. Estás doente e não me queres dizer?

 

Confia em mim. Estou de perfeita saúde tranquilizou ele. Só que o julgamento do Hunter anda a preocupar-me.

 

O pai não está preocupado protestou Anne. Diz que o pior cenário possível é um júri incapaz de concordar num veredicto. Mas tu és como eu. Estás sempre preocupado.

 

Estamos na mesma. Tu preocupada comigo e eu preocupado com o julgamento.

 

Sorriram. ”Por dentro o Nick é como eu, mas por fora é tal e qual o Walter, até na forma como franze a testa quando está concentrado.”

 

Não franzas a testa disse ela quando ele abriu a porta.

 

Eu sei. Fico com rugas.

 

E não te preocupes com o julgamento. Sabes que vais ganhar.

 

A caminho do elevador no trigésimo sexto andar, Nick pensou: ”É mesmo isso, mãe. Vamos ganhar por causa de um pormenor técnico, e aquele patife vai sair em liberdade.” O cliente deles era um advogado reles que mexera nos fideicomissos de alguns clientes, muitos deles a precisar desesperadamente desse dinheiro.

 

Decidiu ir a pé para a baixa e depois apanhar o metro para o seu apartamento no SoHo. Mas nem o ar frio da noite conseguiu aliviar a depressão que começara a instalar-se nele. Passou por Times Square e mal se apercebeu das tendas iluminadas.

 

”Não é preciso ser-se a Lady Macbeth e matar alguém para saber se temos sangue nas mãos”, pensou com amargura.

 

         Terça-feira, 22 de Março

Desde que haviam começado a escavar a piscina, ele soubera que talvez pudessem encontrar os restos de Martha. Podia apenas esperar que o osso do dedo continuasse intacto dentro da mortalha de plástico. Mas mesmo que não estivesse, deveriam encontrar o anel. Os relatórios diziam que toda a área da escavação estava a ser peneirada.

 

Claro que seria esperar demasiado que o médico legista percebesse que Martha e Madeline tinham morrido exactamente da mesma maneira. Martha com a echarpe enrolada ao pescoço, Madeline com a faixa de linho branco arrancada da cintura quando tentara fugir.

 

Ele era capaz de recitar de cor essa passagem do diário.

 

É curioso reparar que, sem um único gesto da minha parte, a Madeline percebeu que cometera um erro ao entrar na casa. Começou a puxar nervosamente a saia com aqueles dedos compridos e elegantes, embora a sua expressão não se tivesse alterado.

 

Viu-me trancar a porta.

 

Porque está a fazer isso? perguntou.

 

Deve ter visto qualquer coisa no meu olhar, porque levou a mão à boca. Vi os músculos do seu pescoço contraírem-se enquanto ela tentava em vão gritar. Estava demasiado assustada para fazer outra coisa que não fosse murmurar ”Por favor”.

 

Tentou passar por mim e chegar à janela, mas agarrei na faixa dela e arranquei-a, enrolando-a em seguida à volta do seu pescoço. Nessa altura, com uma força extraordinária, tentou bater-me e dar-me pontapés. Deixara de ser um cordeiro trémulo, transformara-se num tigre fêmea a lutar pela vida.

 

Mais tarde, tomei banho, mudei de roupa e fui visitar os pais dela, que na altura já estavam muito preocupados com o seu paradeiro.

 

Do pó vieste e ao pó hás-de voltar.

 

Havia uma fotografia de Martha na primeira página de todos os jornais, até do The Times. Porque não? Era notícia quando o corpo de uma jovem bonita era encontrado, especialmente quando ela pertencia a uma família privilegiada de uma comunidade elegante e pitoresca. E não seria uma notícia ainda mais espantosa anunciarem que haviam encontrado o osso de um dedo com um anel dentro do plástico? Se o tivessem encontrado, ele esperava que percebessem que tinha fechado a mão de Martha em volta dele.

 

A mão dela ainda estava quente e flexível.

 

Irmãs na morte, com cento e dez anos de diferença.

 

Fora anunciado que o promotor público iria dar uma conferência de imprensa às onze. Faltavam cinco minutos.

 

Esticou o braço e ligou a televisão, depois encostou-se ao sofá e aguardou expectante.

 

Quinze minutos antes da conferência, Elliot Osborne informou os seus assessores acerca do que iria dizer à imprensa e do que iria omitir.

 

Falaria nas descobertas da autópsia e diria que a causa da morte fora estrangulamento. Não iria contar-lhes que a arma do crime fora uma echarpe, nem que esta tinha umas contas metálicas em volta. Diria que o corpo da vítima fora envolto em folhas grossas de plástico que, embora já secas e quebradiças, haviam mantido o esqueleto intacto.

 

Vai falar do osso do dedo, siri Isso iria causar rebuliço.

 

Pete Walsh acabara de ser promovido a detective. Era inteligente e jovem. Também estava ansioso por dar nas vistas, pensou amargamente Tommy Duggan. Ficou satisfeito ao ouvir o chefe dizer a Walsh que o deixasse terminar, embora se tenha sentido um pulha ao ver o rosto de Walsh ficar vermelho como uma beterraba.

 

Ele e Osborne haviam voltado ali de madrugada. Tinham analisado pormenorizadamente o relatório da autópsia feito por O’Brien e revisto todos os pormenores do caso.

 

Não precisavam que Pete Walsh lhes dissesse que a comunicação social iria adorar aquilo.

 

Osborne continuou:

 

Na minha declaração direi que nunca esperámos encontrar Martha Lawrence com vida; que é comum os restos de uma vítima serem sepultados perto do local da morte. Pigarreou. Terei de revelar que, por qualquer razão estranha e bizarra, Martha Lawrence foi sepultada perto de outros restos humanos e que estes têm mais de cem anos.

 

Como sabem, há quatro anos e meio, quando a Martha desapareceu, o The Asbury Park Press publicou a velha história do desaparecimento de Madeline Shapley em mil oitocentos e noventa e um, com dezanove anos. É provável que a imprensa conclua que o osso do dedo encontrado junto a Martha pertencia a Madeline Shapley, uma vez que as ossadas se encontram na propriedade dos Shapley.

 

É verdade que a nova proprietária da casa é descendente dos Shapley?

 

É verdade, sim.

 

Então não pode comparar o ADN dela com o do osso?

 

Se Ms. Graham quiser, claro que faremos isso. No entanto, ontem à noite pedi que todos os dossiês acerca do desaparecimento de Madeline Shapley fossem examinados e que se analisassem todos os outros casos de mulheres desaparecidas em Spring Lake por volta dessa altura.

 

”Foi apenas uma tentativa”, pensou Duggan, ”mas acertámos em cheio.”

 

Os nossos agentes de investigação criminal descobriram que as duas mulheres haviam sido dadas como desaparecidas mais ou menos na mesma altura prosseguiu Osborne. Madeline Shapley foi vista pela última vez no alpendre da sua casa na Avenida Hayes no dia sete de Setembro de mil oitocentos e noventa e um.

 

Letitia Gregg, da Avenida Tutde, desapareceu a cinco de Agosto de mil oitocentos e noventa e três. Segundo o dossiê da Polícia, os pais temiam que ela tivesse ido nadar sozinha, e foi por esse motivo que o caso nunca foi considerado suspeito.

 

Três anos mais tarde, a trinta e um de Março de mil oitocentos e noventa e seis, Ellen Swain, a melhor amiga de Letitia, desapareceu. Fora vista a sair de casa de uma amiga ao pôr do Sol.

 

”E é nesta altura que a imprensa começa a falar num assassino em série do virar do século em Spring Lake”, pensou Tommy. ”É mesmo disto que estamos a precisar.”

 

Osborne olhou para o relógio.

 

Falta um minuto para as onze. Vamos.

 

A sala estava cheia. As perguntas feitas a Osborne foram rápidas e certeiras. Não pode contradizer o jornalista do New York Post quando este afirmou que a descoberta de dois esqueletos no mesmo local não podia ser uma coincidência bizarra.

 

Concordo disse Osborne. O osso do dedo com o anel foi deliberadamente colocado dentro do plástico com o corpo de Martha.

 

Dentro do plástico onde? perguntou o jornalista da ABC.

 

Dentro da mão de Martha.

 

Acha que foi uma coincidência o assassino ter encontrado o outro esqueleto quando abriu a sepultura de Martha, ou terá ele escolhido aquele local porque sabia que já fora utilizado para o mesmo fim? perguntou Ralph Penza, um jornalista veterano da NBC.

 

Seria ridículo eu sugerir que alguém ansioso por sepultar esta vítima e por evitar ser descoberto possa ter encontrado por acaso os ossos de outra vítima e ter decidido abruptamente colocar o osso do dedo dentro do sudário que criou.

 

Osborne pegou numa fotografia.

 

Isto é uma fotografia aérea ampliada do local do crime. Apontou para o fosso escavado nas traseiras da casa. O assassino de Martha escavou uma sepultura pouco profunda, mas esta poderia nunca ter sido encontrada se não fossem os trabalhos da piscina. Até há um ano, um grande azevinho tapava completamente aquela zona do jardim da vista de quem estava em casa ou na rua.

 

Em resposta a outra pergunta, verificou que Emily Graham, a nova dona da casa, era descendente dos primeiros proprietários e que sim, se estivesse disposta, um teste ao ADN confirmaria se os restos mortais encontrados junto de Martha eram os da irmã da tetravó de Ms. Graham.

 

A pergunta que Tommy Duggan sabia ser inevitável surgiu:

 

Está a sugerir que isto foi talvez um assassínio em série, ligado a um homicídio que ocorreu em Spring Lake há cento e dez anos?

 

Não estou a sugerir coisa alguma.

 

Tanto a Martha Lawrence como a Madeline Shapley desapareceram a sete de Setembro. Como explica isso?

 

Não explico.

 

Acha que o assassino de Martha é uma reencarnação? perguntou ansiosa Reba Ashby, do The National Daily.

 

O promotor público franziu o sobrolho.

 

Claro que não. Acabaram-se as perguntas. Osborne fez sinal a Tommy quando saiu da sala. Tommy

 

sabia que estavam a pensar a mesma coisa. A morte de Martha Lawrence acabara de tornar-se uma história sumarenta, e a única forma de parar com isso era encontrar o assassino.

 

Os restos de uma echarpe debruada a metal eram a única pista que tinham para poderem começar a busca.

 

Isso e o facto de o assassino, fosse ele quem fosse partindo do princípio que era um homem, saber que fora escavada uma sepultura no terreno dos Shapley havia mais de cem anos.

 

Às nove horas, Emily acordou do sono perturbado em que caíra depois de ter fechado as janelas, abafando os sons do jardim.

 

Um duche demorado ajudou a aliviar a sensação de peso que a invadira.

 

O corpo da rapariga desaparecida no seu jardim...

 

A fotografia metida por baixo da porta...

 

Will Stafford avisara-a de que fora muito impulsiva ao comprar a casa. ”Mas eu queria-a”, pensou ao apertar o cinto do roupão de turco. ”E continuo a querê-la.

Enfiou os pés nos chinelos e desceu as escadas para fazer café. Desde a faculdade que tinha o hábito de tomar duche, fazer café e vestir-se tendo por perto a caneca. Jurara sempre que sentia as luzes acenderem-se em diferentes partes do seu cérebro enquanto bebia o café.

 

Mesmo sem olhar lá para fora sabia que iria estar um dia bonito. Os raios de sol entravam pela janela de vitral no patamar das escadas. Quando passou pela sala, deteve-se para admirar a rede metálica decorativa da lareira e o suporte de ferro para a lenha que lá colocara na véspera.

 

Tenho quase a certeza de que foram comprados para a casa de Spring Lake quando esta foi construída em mil oitocentos e setenta e um dissera-lhe a avó.

 

Parecia que pertenciam ali. ”E eu também sinto que pertenço aqui”, pensou Emily.

 

Na sala de estar viu o antigo aparador de carvalho com painéis em madeira de buxo, outra peça que os homens das mudanças haviam trazido de Albany. Aquele aparador fora de certeza comprado para aquela casa. Há muitos anos a avó encontrara o recibo da compra.

 

Enquanto esperava que o café se fizesse, Emily foi até à janela e viu os agentes a peneirarem cuidadosamente a terra no buraco. Que tipo de provas esperariam encontrar quatro anos e meio depois da morte de Martha?

 

E porquê os cães naquela manhã? Esperavam mesmo que ali estivesse mais alguém enterrado?

 

Quando o café ficou pronto, encheu uma caneca e levou-a para cima. Em seguida ligou o rádio enquanto se vestia. A principal notícia era a descoberta do corpo de Martha, claro. Emily fez uma careta ao ouvir o seu nome, seguido de: ”A nova dona do terreno onde os restos mortais de Martha Lawrence foram encontrados é descendente de outra jovem que desapareceu misteriosamente há mais de cem anos.”

 

Desligou o rádio quando o seu telemóvel tocou. ”Deve ser a minha mãe”, pensou. Hugh e Beth Graham, os seus pais, haviam estado num seminário médico da Califórnia. Sabia que deviam ter chegado a Chicago na noite anterior.

 

A mãe não gostara muito da ideia de ela comprar a casa em Spring Lake. ”E agora não vai gostar do que lhe vou dizer”, pensou Emily. ”Mas não há maneira de evitar.”

 

A doutora Beth Graham estava muito perturbada com os acontecimentos.

 

Deus do Céu, recordo-me de em criança ter ouvido a história da Madeline e de como a mãe dela passou a vida à espera que um dia a Madeline lhe entrasse pela porta. Estás a dizer que desapareceu outra rapariga em Spring Lake e que os seus restos mortais foram encontrados no teu jardim?

 

Não deu a Emily a oportunidade de responder antes de continuar:

 

Tenho muita pena da família dela, mas, por amor de Deus, a única coisa que eu esperava era que pelo menos aí estivesses em segurança. Depois de aquele homem ter sido preso, respirei fundo pela primeira vez num ano.

 

Emily imaginou a mãe no consultório, pequenina mas sentada muito direita à sua secretária, o rosto bonito enrugado de preocupação. ”Ela não devia estar a preocupar-se comigo”, pensou. ”Tenho a certeza de que neste momento a sala de espera está cheia de bebés.

Os pais partilhavam um consultório. Embora já estivessem na casa dos sessenta, nenhum dos dois considerava ainda a hipótese de se reformar. A mãe dissera-lhe, e aos irmãos, várias vezes durante a adolescência: ”Se quiserem ser felizes um ano, ganhem a lotaria. Se quiserem ser felizes durante toda a vida, amem aquilo que fazem.”

 

Os pais adoravam todos os seus pequenos doentes.

 

Mãe, vê as coisas desta maneira: pelo menos a família Lawrence pode agora chorar a filha e tu não tens razão para te preocupares comigo.

 

Suponho que não admitiu a mãe com relutância. Não há hipótese de deixarem sair aquele homem, pois não?

 

Nenhuma respondeu Emily com ênfase. Agora vai tomar conta dos teus bebés. Dá um beijinho meu ao pai.

 

Quando desligou o telemóvel decidiu que nunca iria falar aos pais da fotografia que lhe haviam metido debaixo da porta. Também ficou satisfeita por ter participado isso à Polícia de Spring Lake, não fosse acontecer os pais virem mesmo a saber o que acontecera.

 

Vestira calças de ganga e uma camisola. Tanto quanto possível, queria que o dia corresse conforme o planeado. Os Kiernan tinham levado os móveis do pequeno quarto junto ao seu, e esse espaço daria um óptimo escritório. A sua secretária, as pastas e as caixas com os livros já lá se encontravam. Precisava de instalar o computador e o faxe e de desencaixotar os livros. O homem da companhia dos telefones iria lá naquela manhã fazer as ligações, e uma das linhas seria exclusivamente para o computador.

 

Queria espalhar fotografias da família pela casa. Ao prender o cabelo com um travessão, Emily pensou nas fotografias que deitara fora antes de sair do apartamento de Manhattan.

 

Todas as fotografias de Gary haviam desaparecido.

 

Também as fotografias que tirara na faculdade com Barb. A sua melhor amiga. A sua compincha. Emily e Barbara. Onde estava uma, estava a outra.

 

”Oh”, pensou Emily ao sentir a dor familiar. ”Apresento-vos o meu ex-marido. Apresento-vos a minha ex-melhor amiga.”

 

”Será que eles ainda se encontram? Sempre soube que a Barb tinha um fraco pelo Gary, mas nunca pensei que fosse correspondida.”

 

Após três anos não havia dúvidas. A dor residual era provocada pela enormidade da traição, embora ao nível pessoal ambos tivessem perdido a sua capacidade de a magoarem.

 

Fez a cama, esticando bem os lençóis e prendendo-os. A colcha creme combinava com os cortinados verde e rosa. Acabaria por trocar a chaise longue por dois sofás confortáveis junto à janela de sacada. Mas, por agora, combinava com a decoração e deixá-la-ia estar.

 

O toque firme da campainha podia significar duas coisas: ou eram os homens dos telefones ou a comunicação social. Olhou pela janela e ficou aliviada ao ver a carrinha dos primeiros.

 

Às onze menos cinco, os técnicos foram-se embora. Emily foi ao escritório e acendeu a televisão para apanhar as notícias.

 

... o osso de um dedo com cem anos e com um anel...

 

Quando o noticiário acabou, Emily desligou a televisão e ficou sentada em silêncio. Continuou a olhar para o ecrã depois de este ficar negro, a sua mente um caleidoscópio de recordações de infância.

 

A avó a contar-lhe uma e outra vez histórias sobre Madeline. ”Eu adorava ouvir as histórias acerca dela”, pensou Emily. ”Já em criança a achava fascinante.”

 

Os olhos da avó adquiriam uma expressão distante ao falar dela.

 

A Madeline era a irmã mais velha da minha avó... A avó ficava sempre muito triste quando falava dela. Madeline era a sua mana e ela adorava-a. Dizia-me como a achava linda. Metade dos jovens de Spring Lake estava apaixonada por ela.

 

Faziam todos questão de passar pela casa, na esperança de a verem sentada no alpendre. Nesse último dia estava muito excitada. O querido dela, o Douglas Cárter, falara com o pai dela e obtivera autorização para a pedir em casamento. Esperava que ele lhe levasse um anel de noivado. A tarde estava a chegar ao fim. Ela trazia um vestido de linho branco. Madeline mostrou à minha avó como havia mudado o anel do décimo sexto aniversário para a mão direita para não ter de o tirar quando o Douglas chegasse...

 

”Dois anos depois de a Madeline ter desaparecido o Douglas Cárter suicidou-se”, recordou Emily.

 

Levantou-se. De que mais se recordaria a avó a respeito dos acontecimentos de que lhe haviam falado em criança?

 

Já não via bem, mas continuava de óptima saúde. E, como acontecia a muitos idosos, a sua memória em relação às coisas mais antigas melhorara com a idade.

 

Ela e algumas amigas haviam-se mudado para um lar em Albany, onde cada uma tinha o seu pequeno apartamento. Emily marcou o número e ouviu o telefone ser atendido ao primeiro toque.

 

Fala-me da casa ordenou a avó após uma breve saudação.

 

Não era fácil contar-lhe o que acontecera.

 

Foi encontrada aí uma jovem que desaparecera? Oh, Emily, como foi isso possível?

 

Não sei, mas quero descobrir. Avó, lembras-te de me teres dito que a Madeline tinha no dedo um anel no dia em que desapareceu?

 

Estava à espera que o Douglas Cárter lhe levasse o anel de noivado.

 

Não me disseste que ela tinha um anel que lhe fora oferecido no décimo sexto aniversário?

 

Deixa-me ver. Oh, disse sim. Era um anel de safira com pequenos diamantes em volta. Pela descrição que me deram, mandei fazer um igual para o décimo sexto aniversário da tua mãe. Ela não to deu?

 

”Claro”, pensou Emily. ”E alguém mo roubou num albergue de juventude quando fui passar um Verão à Europa com a Barbara.”

 

Avó, por acaso ainda tens aquele gravador que te ofereci?

 

Sim.

 

Nos vários Verões que fora à Europa durante as férias da faculdade tinham gravado cassetes e haviam-nas enviado uma à outra.

 

Quero que faças uma coisa. Começa a falar para ele. Conta-me tudo aquilo que te lembras ter ouvido sobre a Madeline. Tenta lembrar-te dos nomes das pessoas que ela conheceu. Quero saber tudo aqilo de que te lembras sobre ela e os amigos. Fazes-me isso?

 

Posso tentar. Quem me dera ter aquelas velhas cartas e álbuns que arderam na garagem há cinco anos. Mas vou ver do que é que me consigo lembrar.

 

Adoro-te, avó.

 

Ao fim destes anos todos não estás a tentar descobrir o que aconteceu à Madeline, pois não?

 

Nunca se sabe.

 

O telefonema seguinte de Madeline foi para o gabinete do promotor público. Quando disse o seu nome, a chamada foi imediatamente transferida para Elliot Osborne.

 

Vi o noticiário disse. Por acaso o anel que encontraram tinha uma safira rodeada por pequenos diamantes?

 

Sim.

 

E estava no anelar da mão direita? Houve uma pausa.

 

Como é que sabe isso, Ms. Graham? perguntou Osborne.

 

Depois de desligar, Emily atravessou a sala, abriu a porta e saiu para o alpendre. Contornou a casa até às traseiras, onde a unidade de investigação ainda andava a peneirar a terra.

 

Haviam encontrado o anel de Madeline e o osso do seu dedo junto a Martha Lawrence. Os restos mortais de Madeline encontravam-se apenas a poucos centímetros do sudário de plástico. Na sua mente, Emily imaginou a irmã da trisavó como ela devia ter sido naquela tarde soalheira. Sentada no alpendre, com um vestido de linho branco, o cabelo castanho-escuro solto pelos ombros, com dezanove anos e apaixonada. À espera do noivo que lhe iria trazer um anel de noivado.

 

Seria possível, ao fim de cento e dez anos, saber o que lhe acontecera? ”Alguém descobriu onde ela estava sepultada”, pensou Emily, ”e decidiu enterrar a Martha Lawrence no mesmo sítio.

Mergulhada em pensamentos, com as mãos enfiadas nos bolsos das calças de ganga, voltou a entrar em casa.

 

Will Stafford tinha às nove da manhã a escritura de um prédio de escritórios em Sea Girt, a vila mais próxima de Spring Lake. Assim que chegou ao escritório tentou ligar a Emily, mas o telefone dela ainda não fora ligado e não sabia o número do seu telemóvel.

 

Era quase meio-dia quando conseguiu apanhá-la.

 

Ontem fui a Nova Iorque logo a seguir à sua escritura explicou e só soube o que estava a acontecer quando ouvi o noticiário da noite. Lamento muito pelos Lawrence e também por si.

 

Era gratificante ouvir a preocupação na voz dele.

 

Viu por acaso a entrevista com o promotor público? perguntou.

 

Vi, sim. A Pat, a minha recepcionista, veio dizer-me que estava a ser dada. Pensa que há alguma hipótese...?

 

Ela adivinhou a pergunta que ele ia fazer.

 

Se penso que o anel que encontraram na mão da Martha Lawrence pertencia à Madeline Shapley? Tenho a certeza. Falei com a minha avó e ela descreveu-mo, pois ouvira falar dele.

 

Então a irmã da sua trisavó esteve estes anos todos sepultada no terreno da casa?

 

Parece que sim disse Emily.

 

Alguém sabia disso e colocou o corpo da Martha ao pé do dela. Mas como é que alguém podia saber onde estava enterrada a Madeline Shapley? Will Stafford parecia tão intrigado como Emily.

 

Se houver uma resposta para isso, tenciono descobrir asseverou. Will, gostava de conhecer os Lawrence. Você conhece-os?

 

Sim. Davam muitas festas antes de a Martha desaparecer. Eu ia muitas vezes a casa deles e, claro, costumo vê-los na vila.

 

Pode telefonar-lhes a perguntar se se importam que me leve lá a casa um dia destes, quando se sentirem melhores?

 

Will não perguntou por que motivo.

 

Depois digo-lhe qualquer coisa prometeu.

 

Vinte minutos mais tarde, a voz da recepcionista, Pat Glynn, fez-se ouvir no intercomunicador.

 

Mister Stafford, está aqui a Natalie Frieze. Gostaria de lhe dar uma palavrinha.

 

”Era só o que me faltava”, pensou Will. Natalie era a segunda mulher de Bob Frieze, um antigo residente de Spring Lake. Há cerca de cinco anos, Bob aposentara-se da firma de corretagem e realizara o seu antigo sonho de abrir um restaurante fino em Rumson, uma vila a vinte minutos de distância. Dera-lhe o nome de The Seasoner.

 

Natalie tinha trinta e quatro anos. Bob sessenta e um, mas era evidente que ambos tinham naquele casamento o que queriam. Bob uma mulher para exibir e Natalie um estilo de vida luxuoso.

 

Tinha também um olhar sedutor que de vez em quando pousava em Will.

 

Porém, naquele dia, ao entrar, Natalie parecia não estar com a habitual disposição para namoriscar. Não o cumprimentou com a efusividade do costume, que incluía um beijo, e sentou-se na cadeira.

 

Will, isto sobre a Martha Lawrence é tão triste disse, mas será que vai espantar as abelhas na colmeia? Estou raladíssima.

 

Com o devido respeito, Natalie, você não me parece raladíssima. Aliás, parece ter vindo de uma sessão fotográfica para a Vogue.

 

Trazia vestido um casaco de cabedal cor de chocolate que lhe dava pelos joelhos, com gola e punhos de zibelina, e calças a condizer. O comprido cabelo louro pendia-lhe liso até abaixo dos ombros. O bronzeado, que Will sabia ter sido adquirido havia pouco em Palm Beach, realçava os olhos azul-turquesa. Estava inclinada para trás na cadeira, como se se sentisse demasiado cansada para estar direita, e cruzou as pernas, relevando um pé esguio e bem torneado numa sandália. Ela ignorou o elogio.

 

Will, depois de ter visto aquela conferência de imprensa vim logo ter consigo. O que acha daquele osso de dedo na mão da Martha? Não é um pouco esquisito?

 

É realmente bastante estranho.

 

O Bob quase teve um ataque cardíaco. Ficou a ver o promotor terminar a conferência antes de sair para o restaurante. Estava tão perturbado que eu nem quis que ele conduzisse.

 

O que é que o perturbou tanto?

 

Bem, sabe que aquele detective Duggan se farta de vir falar connosco, com as pessoas que estiveram naquela maldita festa em casa dos Lawrence, na noite antes do desaparecimento da Martha.

 

Onde é que quer chegar, Natalie?

 

Que se já nos fartávamos de ver o Duggan antes, iremos vê-lo muito mais agora que a investigação aqueceu. É evidente que a Martha foi assassinada, e se as pessoas aqui começarem a pensar que um de nós foi responsável pela morte dela, isso vai ser uma péssima publicidade.

 

Publicidade. Por amor de Deus, Natalie, quem é que está preocupado com a publicidade?

 

Eu digo-lhe quem é que está preocupado. O meu marido. Todos os tostões do Bob estão enterrados naquele restaurante. Por que motivo ele pensou que podia ter êxito sem perceber patavina do negócio é um mistério a que só um psiquiatra pode responder. Agora está todo aflito porque julga que se houver muitas atenções voltadas para nós por termos estado na festa, o negócio vai ser prejudicado. E posso acrescentar que já despediu três chefes.

 

Will fora algumas vezes ao restaurante. A decoração era luxuosa, exigia-se casaco e gravata ao jantar, o que não agradava às pessoas que estavam de férias. ”Eu sugeri que ele deixasse de exigir gravata”, pensou Will. A comida era regular e os preços demasiado elevados.

 

Natalie, compreendo que o Bob esteja muito tenso, mas acho um pouco exagerado ele pensar que as pessoas vão deixar de ir ao restaurante só por termos todos estado na festa dos Lawrence.

 

”E se ele perder uma data de massa com isso, o teu acordo pré-nupcial de pouco valerá”, pensou. Natalie suspirou e levantou-se.

 

Espero que tenha razão, Will. O Bob está uma pilha de nervos. Começa aos gritos comigo quando lhe faço uma sugestão.

 

Que tipo de sugestão? ”Tenho uma pequena ideia”, pensou Will.

 

Que talvez fosse boa ideia ele aprender a cozinhar antes de despedir os cozinheiros, para assim poder tomar conta da cozinha. Natalie encolheu os ombros e sorriu. Já me sinto melhor agora que falei consigo. Calculo que ainda não tenha almoçado. Vamos comer qualquer coisa.

 

Ia mandar comprar uma sandes.

 

Pois não vai. Vamos almoçar no Old Mill. Venha, preciso de companhia.

 

Quando estavam na rua, ela enfiou a mão no braço dele.

 

As pessoas podem comentar disse ele com um sorriso.

 

Oh, e depois? Já todos têm inveja de mim. Eu disse ao Bob que devíamos ter ido viver para outro lado. Esta vila é demasiado pequena para mim e para a primeira mulher dele.

 

Quando Will abriu a porta do carro e Natalie baixou a cabeça para entrar, o sol fez o seu longo cabelo louro brilhar.

 

Por qualquer razão desconhecida, Will recordou as palavras do promotor público. ”Foram encontradas na sepultura algumas madeixas de cabelo louro comprido.”

 

Bob Frieze, como a sua jovem mulher, era conhecido por ter olho.

 

Especialmente para mulheres bonitas com cabelo louro comprido.

 

A doutora Lillian Madden, uma psicóloga proeminente que utilizava regularmente a hipnose, acreditava piamente na reencarnação e fazia os doentes indicados regressar a vidas anteriores. Acreditava que o trauma emocional sofrido noutras vidas podia ser a fonte da dor emocional na experiência actual.

 

Muito solicitada para palestras, tinha uma frase favorita: que as pessoas que conhecemos nesta vida eram provavelmente pessoas que conhecemos noutras vidas.

 

Não quero dizer que o vosso marido foi o vosso marido há trezentos anos dizia ela aos seus ouvintes fascinados, mas acredito que ele pode ter sido o vosso melhor amigo. Da mesma forma uma pessoa com quem têm um problema pode ter sido um adversário numa outra vida.

 

Viúva e sem filhos, com casa e consultório em Belmar, uma vila perto de Spring Lake, ela ouvira falar da descoberta do corpo de Martha Lawrence na noite anterior e lamentava o sucedido, tal como todos os habitantes das vilas mais próximas.

 

A ideia de uma neta não estar em segurança enquanto corria numa manhã de Verão parecia incompreensível a todos. Descobrir que o corpo de Martha Lawrence fora sepultado tão perto da casa dos avós convenceu toda a gente de que alguém que parecia de confiança devia ser culpado do crime. Alguém que podia ser bem-vindo em qualquer uma das suas casas.

 

Depois de ter ouvido a notícia, Lillian Madden, insone de longa data, passara longas horas a meditar na finalidade daquela trágica descoberta. Sabia que a família de Martha ainda devia ter esperança de que um dia, miraculosamente, ela regressasse sã e salva.

 

Em vez disso, sabiam agora que haviam passado várias vezes perto do terreno onde o corpo estivera sepultado.

 

Passaram quatro anos e meio. Teria Martha voltado numa nova encarnação? Será que o bebé da irmã mais velha de Martha alojava a alma que outrora vivera no corpo de Martha?

 

Lillian Madden acreditava que era possível. Rezava para que a família Lawrence sentisse que ao receber e amar o bebé poderia estar também a receber Martha de novo em casa.

 

Começou a atender os doentes às oito da manhã, uma hora antes da chegada da secretária, Joan Hodges. Só ao meio-dia é que a doutora Madden foi ter com Joan à recepção.

 

Joan, vestida num calça-casaco preto feito por medida que exibia o seu recém-adquirido tamanho 46, não a ouviu entrar. Estava a afastar da testa uma madeixa de cabelo louro com uma mão e a escrever com a outra.

 

Alguma coisa importante? perguntou a doutora Madden.

 

Perplexa, Joan levantou a cabeça.

 

Oh, bom dia, senhora doutora. Não sei se são importantes, mas não vai gostar destes recados disse abruptamente. Com quarenta e quatro anos e já avó, Joan era, na opinião de Lillian Madden, a pessoa indicada para trabalhar no consultório de uma psicóloga. Jovial, terra-a-terra, imperturbável, e naturalmente compreensiva, tinha o dom de pôr as pessoas à vontade.

 

Do que é que não vou gostar neles? perguntou Lillian Madden ao pegar nas folhas que se encontravam na secretária atafulhada de Joan.

 

O promotor público deu uma conferência de imprensa, e durante a última hora recebi telefonemas de três dos tablóides mais sensacionalistas do país. Deixe-me dizer-lhe porquê.

 

Lillian ouviu espantada a sua secretária descrever a descoberta do dedo de outra mulher, com um anel, dentro da mão de Martha Lawrence, e o facto de Madeline Shapley ter desaparecido a 7 de Setembro, tal como Martha.

 

Com certeza eles não pensam que a Martha era a reencarnação da Madeline e que estava destinada a ter a mesma morte horrenda, pois não? perguntou Lillian. Isso seria um absurdo.

 

Não me perguntaram isso respondeu Joan Hodges. Querem saber é se a senhora acha que o assassino da Madeline pode ter reencarnado. Olhou para Madden. Se pensarmos bem, doutora, não podemos culpá-los, pois não?

 

Às duas horas, Tommy Duggan regressou ao gabinete, seguido de Pete Walsh. Depois de a conferência de imprensa ter terminado, uma equipa do Ministério Público começara a investigar o dossiê de Martha Lawrence. Todos os pormenores, desde o primeiro telefonema, havia quatro anos e meio, a comunicar o desaparecimento de Martha, à descoberta do seu corpo, estavam a ser escrutinados e analisados para ver se alguma coisa passara despercebida.

 

Osborne encarregara Tommy da investigação e colocara Pete Walsh como seu assistente. Walsh fora agente da Polícia em Spring Lake durante oito anos antes de se juntar ao Ministério Público havia dois meses.

 

Também fizera parte da equipa que passara a noite no arquivo do tribunal a vasculhar os dossiês empoeirados, à procura de material relacionado com o desaparecimento de Madeline Shapley em 1891.

 

Fora Walsh quem sugerira procurarem relatórios do eventual desaparecimento de outras mulheres na mesma altura, e fora assim que se descobriram os nomes de Letitia Gregg e Ellen Swain.

 

Tom Duggan olhou para Walsh com uma expressão divertida.

 

Ainda não te disse, mas estás com cara de limpa-chaminés.

 

Apesar dos esforços que fizera para se limpar, o pó e a sujidade haviam-se entranhado na pele e nas roupas de Pete durante a busca que durara toda a noite. Os seus olhos estavam raiados de sangue, e embora fosse um homem entroncado, os seus ombros encontravam-se curvados pela fadiga. Tinha trinta anos e o cabelo começava-lhe já a rarear, mas para Tom parecia apenas um miúdo cansado.

 

Porque não vais para casa, Pete? perguntou. Estás a dormir em pé.

 

Estou bem. Falaste nuns telefonemas que querias fazer. Vamos dividi-los.

 

Tom encolheu os ombros.

 

Como queiras. A morgue vai libertar mais logo os restos mortais da Martha. A família pediu à agência funerária que os fosse levantar e os levasse para o crematório. Os familiares mais chegados vão estar presentes e irão acompanhar a urna com as cinzas até ao mausoléu da família no cemitério de Santa Catarina. Essa informação não pode chegar ao conhecimento do público. A família quer que seja uma coisa privada.

 

Pete assentiu.

 

Um porta-voz da família já deve ter anunciado à imprensa que no sábado vai ser rezada uma missa em memória de Martha.

 

Tommy tinha a certeza de que a maior parte das pessoas que estivera na festa dos Lawrence iria assistir à missa. Já dissera a Pete que queria reuni-las todas e interrogá-las individualmente. As inconsistências nos seus depoimentos seriam corrigidas mais depressa se estivessem todos juntos ”ou talvez não corrigidas”, pensou ele taciturno.

 

Haviam estado vinte e quatro convidados e cinco empregados em casa dos Lawrence na noite anterior ao desaparecimento de Martha.

 

Pete, depois de os termos reunido, faremos o costume. Falamos com eles, um a um, e tentamos descobrir se alguém perdeu alguma coisa na festa. A nossa principal prioridade é saber se alguém levou uma echarpe de seda cinzenta com contas metálicas.

 

Tommy pegou na lista de convidados e colocou-a na secretária.

 

Vou ligar ao Will Stafford e perguntar-lhe se posso reunir toda a gente em casa dele depois da missa disse. Quando isso estiver esclarecido, começamos a fazer os telefonemas.

 

Pegou no telefone.

 

Stafford acabara de regressar do almoço.

 

Claro que pode juntar todos cá em casa concordou, mas é melhor marcar para um pouco mais tarde. Há um recado na minha secretária a dizer que os Lawrence convidam alguns amigos chegados para um almoço volante em sua casa depois da missa. Tenho a certeza de que a maior parte das pessoas que esteve na festa estará presente.

 

Então vou pedir-lhes que estejam em sua casa por volta das três. Obrigado, Mister Stafford.

 

”Dava tudo para estar naquele almoço”, pensou Tommy. Assentiu na direcção de Pete.

 

Agora que já temos o local e a hora vamos começar a fazer os telefonemas. Temos de estar em casa da Emily Graham daqui a uma hora. Vamos tentar convencê-la a autorizar que aquela máquina escave o resto do jardim.

 

Começaram a fazer os telefonemas e contactaram toda a gente menos Bob Frieze.

 

Ele liga-lhe quando puder prometeu um empregado do restaurante.

 

Diga-lhe que me ligue depressa ordenou Tommy. Vou ter de sair daqui depressa, não quando puder.

 

Correu melhor do que eu esperava disse ele a Pete quando compararam os resultados dos outros telefonemas. Com excepção de dois casais de idade que não podiam ter estado envolvidos no homicídio de Martha, todas as outras pessoas que haviam estado na festa tencionavam ir à missa no sábado.

 

Marcou de novo o número do restaurante The Seasoner e daquela vez Bob Frieze veio ao telefone. Quando lhe pediu para ir a casa de Stafford, ele protestou com veemência.

 

A tarde e a noite de sábado são muito concorridas no meu restaurante respondeu ele. Já falámos diversas vezes, detective Duggan. Posso garantir-lhe que não tenho nada a acrescentar àquilo que já lhe disse.

 

Não me parece que quer que eu diga à comunicação social que o senhor não quer colaborar com a Polícia retorquiu Tommy.

 

Quando desligou o telefone sorriu de satisfação.

 

Gosto de pressionar aquele tipo disse a Walsh. Sabe bem.

 

Sabe bem ouvi-lo a pressioná-lo. Quando estava na polícia de Spring Lake toda a gente tinha o número dele. A primeira Mistress Frieze é uma mulher encantadora que foi abandonada depois de lhe ter dado três belos filhos e de ter aturado as escapadelas dele durante mais de trinta anos. Todos sabíamos que o Bob Frieze era um mulherengo. E que tem um péssimo feitio. Quando entrei para a Polícia, há oito anos, multei-o por excesso de velocidade e pode ter a certeza de que ele fez tudo o que podia para que me despedissem.

 

Pergunto-me é se este segundo casamento o curou da tara de mulherengo comentou Tommy com ar pensativo. Acho-o muito à defesa. Levantou-se. Anda. Ainda temos tempo de comer qualquer coisa antes de irmos para casa da Emily Graham.

 

Tommy apercebeu-se subitamente de que ainda não comera nada desde o café e as sandes da manhã. Lutou por momentos com os seus demónios, depois concentrou-se no que iria pedir no McDonald’s. Um Big Mac, com uma dose dupla de batatas fritas. E uma Coca-Cola grande.

 

Às duas e quarenta e cinco, Emily estacionou diante da casa de Clayton e Rachel Wilcox, na Avenida Ludlam. Meia hora antes telefonara para Will Stafford e pedira-lhe que sugerisse onde ela deveria começar a investigar o desaparecimento de Madeline Shapley.

 

Com uma nota de desculpa na voz, disse:

 

Will, sei que julgou que se tinha livrado de mim depois da escritura de ontem, e era assim que devia ter sido. Sinto que corro o risco de me tornar inoportuna, mas quero mesmo saber como era Spring Lake na altura em que a minha família cá viveu. Tenciono pedir que me deixem ver os relatórios da Polícia sobre o caso da Madeline, se eles ainda existirem, e talvez haja também jornais da época. Só não sei por onde começar.

 

A nossa biblioteca na Terceira Avenida tem excelente material de consulta informou ele, mas a Sociedade Histórica do Município de Monmouth, em Freehold, irá ser a sua principal fonte.

 

Ela agradeceu-lhe e estava prestes a desligar quando ele acrescentou:

 

Espere um pouco, Emily. Um dos atalhos é falar com o doutor Clayton Wilcox. Foi director de um colégio e tornou-se o historiador não oficial da vila. Há outra coisa acerca dele que lhe poderá interessar: ele e a mulher, Rachel, estiveram em casa dos Lawrence na noite anterior ao desaparecimento da Martha Lawrence. Deixe-me telefonar-lhes.

 

Tornou a ligar um quarto de hora mais tarde.

 

O Clayton gostava de conhecê-la. Vá até lá. Eu contei-lhe o que você queria saber e ele disse que ia começar a reunir algum material para si. Aqui está a morada.

 

”E aqui estou eu”, pensou Emily ao sair do carro. A manhã estivera soalheira e relativamente quente, mas o sol do meio da tarde e o vento combinavam-se para criar uma atmosfera fria e sombria.

 

Subiu rapidamente os degraus do alpendre e tocou à campainha. Pouco depois a porta abriu-se.

 

Mesmo que ninguém lhe tivesse dito, ela teria adivinhado que o Dr. Clayton Wilcox era um académico. A cabeleira desgrenhada, os óculos empoleirados na ponta do nariz, os olhos de pálpebras pesadas, a camisola por cima da camisa e da gravata. ”Só lhe falta um cachimbo”, pensou.

 

A voz dele era grave e quando a cumprimentou o seu tom foi agradável.

 

Ms. Graham, entre por favor. Gostava de poder dizer-lhe: ”bem-vinda a Spring Lake”, mas, dadas as circunstâncias trágicas da descoberta do corpo da neta dos Lawrence no seu terreno, isso não é apropriado, pois não? Desviou-se e, quando passou por ele, Emily ficou surpreendida ao reparar que tinha quase um metro e oitenta. Curvava ligeiramente as costas, o que, à primeira vista, minimizara a sua altura.

 

Pegou no casaco dela, depois conduziu-a pelo corredor, passando pela sala.

 

Quando decidimos mudar-nos para Spring Lake, há doze anos, a minha mulher andou a ver casas explicou ele ao fazer-lhe sinal para que entrasse para um escritório onde, com excepção da janela, as quatro paredes se encontravam forradas de estantes do chão ao tecto. A minha única exigência era ter uma verdadeira casa vitoriana e que uma das assoalhadas tivesse espaço suficiente para os meus livros, a minha secretária, o meu sofá e a minha cadeira.

 

E não foi pedir pouco. Emily sorriu ao olhar em volta. Mas conseguiu aquilo que queria.

 

Era o tipo de assoalhada de que ela gostava. O sofá de cabedal cor de vinho era fundo e parecia confortável. Gostaria de poder dar uma olhadela às prateleiras. A maior parte dos livros parecia antiga, e ela calculou que os que estavam dentro da vitrina deviam ser raros.

 

No canto esquerdo da enorme secretária encontrava-se uma pilha de livros e papéis. Pelo menos uma dezena de cadernos estava em volta de um computador portátil. Emily reparou que este se encontrava ligado.

 

Interrompi-o disse. Peço imensa desculpa.

 

Ora essa. A escrita não estava a correr-me bem, e estava ansioso por conhecê-la. Sentou-se no sofá. O Will Stafford disse-me que está interessada em conhecer a história de Spring Lake. Tenho ouvido os noticiários, por isso sei que os restos mortais da sua antepassada foram encontrados junto aos da pobre Martha Lawrence.

 

Emily assentiu.

 

O assassino da Martha sabia com certeza que a Madeline Shapley estava ali sepultada, mas a pergunta é: como pode ele ter sabido?

 

Ele? Parte do princípio que o actual assassino é um homem? Wilcox arqueou uma sobrancelha.

 

Acho que é mais do que provável disse Emily. Mas poderei ter a certeza? Claro que não. Como não tenho certezas quanto ao assassino de há cem anos. A Madeline Shapley era irmã da minha trisavó. Se tivesse vivido até aos oitenta, teria morrido há algumas gerações e agora já teria sido esquecida, como todos seremos um dia. Mas foi assassinada aos dezanove anos. De certa forma, para a nossa família ela não morreu. É um assunto inacabado.

 

Emily inclinou-se para a frente e uniu as mãos.

 

Doutor Wilcox, sou advogada criminal, e sou boa no que faço. Tenho bastante experiência na recolha de provas. Há uma ligação entre as mortes da Martha Lawrence e da Madeline Shapley, e quando um desses homicídios for resolvido, pode ser que o outro também seja. Pode parecer ridículo, mas acredito que quem descobriu que a Madeline Shapley estava sepultada no terreno da minha família sabia também como e porquê ela havia morrido.

 

Ele assentiu.

 

Pode ter razão. É possível que haja algures um registo. Talvez uma confissão escrita. Ou uma carta. Mas então está a sugerir que quem encontrou esse documento não só o ocultou como utilizou a informação acerca do local da sepultura quando cometeu o seu próprio crime.

 

Creio que é isso que estou a sugerir, sim. E outra coisa ainda. Acredito que nem a Madeline, em mil oitocentos e noventa e um, nem a Martha, há quatro anos e meio, eram o tipo de mulheres que fossem com um desconhecido. O mais provável é terem-se deixado encurralar por alguém em quem confiavam.

 

Acho que isso é uma grande extrapolação, Ms. Graham.

 

Não necessariamente, doutor Wilcox. Sei que a mãe e a irmã da Madeline estavam em casa quando ela desapareceu. Foi num dia quente de Setembro. As janelas encontravam-se abertas. Tê-la-iam ouvido gritar.

 

A Martha Lawrence andava a correr. Era cedo, mas com certeza ela não era a única pessoa que andava a praticar desporto. Era preciso ter muita coragem para chegar ao pé dela e arrastá-la até um carro ou uma carrinha sem ser observado.

 

Tem pensado muito neste assunto, não tem, Ms. Graham?

 

Trate-me por Emily, peço-lhe. Sim, acho que tenho pensado muito no assunto. Não é difícil concentrar-me quando há uma equipa forense a vasculhar o meu jardim à procura de ossos de vítimas de homicídio. Felizmente, só no dia um de Maio é que começo o meu novo trabalho em Manhattan. Posso investigar muita coisa até essa altura. Levantou-se. Já lhe tomei demasiado tempo, doutor Wilcox, e tenho de ir encontrar-me com um agente de investigação criminal.

 

Wilcox pôs-se de pé.

 

Quando o Will Stafford me telefonou, reuni alguns livros e artigos sobre Spring Lake que poderão ajudá-la. Também juntei cópias de recortes de jornal da década de mil oitocentos e noventa. São apenas a ponta do icebergue, mas irão mantê-la ocupada durante algum tempo.

 

A pilha de livros e de papéis que vira na secretária era o que ele preparara para ela.

 

Espere um momento. Não pode levar isto assim disse Wilcox, mais para si próprio do que para ela. Abriu a gaveta de baixo da secretária e tirou de lá um saco de pano com as palavras ”Livraria do Colégio Enoch”.

 

Se guardar sempre os meus livros aqui dentro, eles não se separarão sugeriu. Apontou para a secretária. Estou a escrever um romance histórico passado em Spring Lake em mil oitocentos e setenta e seis, o ano em que foi inaugurado o Hotel Monmouth. É a primeira vez que tento escrever ficção, e estou a achar um desafio. Sorriu. Escrevi muitas coisas académicas, claro, mas estou a aprender que é muito mais fácil escrever sobre assuntos factuais do que sobre ficcionais.

 

Acompanhou-a à porta.

 

Vou reunir mais material para si, mas podemos falar depois de ter dado uma vista de olhos ao que leva aí. Pode ser que tenha algumas perguntas a fazer.

 

Foi muito simpático disse ela ao apertar-lhe a mão junto à porta. Emily não soube por que motivo sentiu subitamente um certo desconforto, uma certa claustrofobia. ”É aquela casa”, pensou ao descer os degraus e entrar no carro. ”Exceptuando o escritório dele, não tem graça nenhuma.”

 

Olhara para a sala de estar quando passara à porta. ”Os móveis escuros e as cortinas pesadas eram o pior da decoração vitoriana”, pensou, ”tudo pesadão, escuro, formal. Como será Mistress Wilcox?”

 

Da janela, Clayton Wilcox viu Emily afastar-se no carro. ”Uma jovem muito bonita”, pensou, ao virar-se com relutância e regressar ao escritório. Sentou-se à secretária e carregou na tecla enter do computador.

 

O screen saver desapareceu e a página em que ele estivera a trabalhar surgiu. Falava da busca desesperada de uma jovem que viera a Spring Lake com os pais para assistir à inauguração do Hotel Monmouth em 1876.

 

Clayton Wilcox tirou da gaveta de cima a cópia que fizera do microfilme da primeira página do Seaside Gazette de 12 de Setembro de 1891.

 

Começava: ”Suspeita-se de crime no misterioso desaparecimento de Miss Madeline Shapley, de Spring Lake, que ocorreu há cinco dias...

 

Não aguento mais disse Nick em voz alta. Estava à janela do seu gabinete de canto na firma de advogados Todd, Scanlon, Klein e Todd, a olhar para a rua trinta andares mais abaixo. Viu os carros desaparecerem no túnel entre a Rua Quarenta e a Rua Trinta e Três sob a Avenida Park Sul.

 

”A única diferença entre os carros e eu é o facto de eu estar preso no túnel”, pensou. ”Eles saem do outro lado.”

 

A manhã fora passada na sala de conferências com o caso Hunter. ”O Hunter vai sair em liberdade e eu contribuí para que isso fosse possível.” Essa certeza fez Nick sentir-se fisicamente doente.

 

”Não quero magoar o meu pai, mas já não aguento mais”, admitiu.

 

Pensou nas palavras sábias: ”Isto acima de tudo: Sê verdadeiro em relação a ti próprio e, tal como a noite se segue ao dia, não poderás ser falso para nenhum homem.”

 

”Já não posso ser falso para mim. O meu lugar não é aqui. Não quero estar aqui. Quero acusar estes bandidos, não defendê-los.

Ouviu a porta do gabinete abrir-se. Apenas uma pessoa faria isso sem bater. Virou-se devagar. Tal como esperara, viu o pai.

 

Nick, temos de fazer qualquer coisa pela Emily Graham. Devia estar de cabeça perdida quando lhe disse que podia esperar até ao dia um de Maio para começar a trabalhar. Acabámos de receber um caso talhado para ela. Quero que vás a Spring Lake e que lhe digas que precisamos dela aqui dentro de uma semana.

 

Emily Graham. Nick lembrou-se do que pensara quando a vira em acção no tribunal. Emily e o pai eram feitos do mesmo material. Nasceram para serem advogados criminais de defesa.

 

Estivera prestes a dizer ao pai que tinha de demitir-se da firma.

 

”Posso esperar mais um pouco”, decidiu. ”Mas, assim que a Emily estiver a bordo, saio.”

 

A pergunta que a jornalista fez com voz aguda ao promotor público durante a conferência de imprensa transmitida pela televisão deliciou-o:

 

Acha que o assassino de Martha é uma reencarnação?

 

Mas a negação brusca do promotor afrontou-o.

 

”Eu reencarnei”, pensou. ”Tornámo-nos um.”

 

”Posso prová-lo.”

 

”Irei prová-lo.”

 

Ao final da tarde decidira de que forma iria revelar a verdade sobre si próprio aos cépticos.

 

Um simples postal seria suficiente, pensou. Um desenho tosco, semelhante ao que uma criança mandaria.

 

Iria enviá-lo no sábado.

 

Quando fosse a caminho da igreja.

 

Tommy Duggan e Pete Walsh estavam no alpendre à espera de Emily quando esta chegou a casa.

 

Depois de ela ter pedido desculpa por ter chegado tarde, Tommy disse:

 

Nós é que viemos antes da hora, Ms. Graham. Apresentou Pete, que prontamente se baixou e pegou no saco de livros que Clayton Wilcox emprestara a Emily.

 

Deve estar a pensar em ler muito comentou ele enquanto ela destrancava a porta.

 

Acho que sim. Seguiram-na até ao vestíbulo.

 

Vamos para a cozinha sugeriu ela. Sabia-me bem um chá, e talvez consiga convencer-vos a fazerem-me companhia.

 

Pete Walsh aceitou. Tommy Duggan dispensou o chá, mas não foi capaz de resistir às bolachas com pedaços de chocolate que ela colocou num prato.

 

Sentaram-se na mesa da cozinha. A janela grande permitia ver a escavação e os montes de terra à volta. As palavras ”CENA DO CRIME, PROIBIDA A ENTRADA” encontravam-se impressas na fita que isolava a área. Podiam ver o polícia que guardava o local a olhar pela janela da cabana.

 

Vejo que a equipa forense já se foi embora disse Emily. Espero que isso signifique que acabaram a investigação por estes lados, não? Quero que o empreiteiro encha aquele buraco. Decidi que não vou avançar com a piscina.

 

Era precisamente sobre isso que queríamos falar consigo, Ms. Graham disse Tommy. Já que a escavadora está aqui, gostaríamos de revolver o resto do seu jardim. Emily ficou a olhar para ele.

 

E com que objectivo?

 

Com um muito importante. Mas quero que saiba que não terá outro choque como o que teve ontem.

 

Com certeza não acredita que há outros corpos enterrados ali? O choque na voz dela era inconfundível.

 

Ms. Graham, sei que viu o promotor na televisão, porque telefonou a falar do anel que foi encontrado.

 

Sim.

 

Depois ouviu-o dizer que depois da sua... como é que é, da irmã da sua trisavó? Bem, que depois de ela ter desaparecido em mil oitocentos e noventa e um, duas outras raparigas desapareceram de Spring Lake.

 

Deus do Céu, acha que elas podem estar enterradas ali? Emily gesticulou na direcção do jardim.

 

Gostaríamos de descobrir. Também gostaríamos de ter uma amostra do seu sangue para podermos verificar através do ADN se aquele osso pertenceu mesmo a Madeline Shapley.

 

Tom Duggan apercebeu-se subitamente que sentia a exaustão absoluta de quem não prega olho há dia e meio. Estava atordoado e as pálpebras pesavam-lhe. Sentiu pena de Emily Graham. Ela parecia chocada e perturbada.

 

Tinham-na investigado na véspera era uma excelente advogada criminal prestes a começar a trabalhar numa elegante firma de advogados em Manhattan. Divorciada de um idiota que tentara entrar-lhe pela casa dentro quando ela recebera dinheiro. Vítima de um perseguidor que se encontrava agora numa instituição psiquiátrica. Mas alguém tirara a sua fotografia na noite em que ela chegara a Spring Lake e metera-a debaixo da porta.

 

Qualquer pessoa podia tê-la investigado na Internet e descoberto o perseguidor. Houvera bastante publicidade quando por fim o apanharam. Qualquer criança idiota dali poderia achar piada a assustá-la. Os polícias de Spring Lake eram bons. Talvez conseguissem encontrar impressões digitais na fotografia ou no sobrescrito.

 

E agora ela estava naquela bela casa, com o jardim que parecia ter acabado de ser bombardeado porque os restos mortais de duas vítimas de homicídio, uma das quais era sua parente, se encontravam ali sepultados. Era triste.

 

Tommy sabia que Suzie, a sua mulher, haveria de querer saber mais coisas acerca de Emily Graham. Como é que ela era. O que tinha vestido. Suzie achara completamente inadequada a descrição que ele fizera do seu encontro com Emily Graham na véspera. Tommy tentou resumir as impressões que lhe iria comunicar quando chegasse a casa nessa noite.

 

Emily Graham vestia calças de ganga, uma camisola vermelha decotada e botins. As roupas não haviam sido compradas num armazém. Brincos de ouro simples. Nada de anéis. Cabelo castanho-escuro, macio, pelos ombros. Grandes olhos castanhos que naquele momento pareciam preocupados e apreensivos. Muito engraçada, talvez até bonita.

 

”Meu Deus, daqui a nada estou a dormir”, pensou.

 

Ms. Graham, este Verão não quero que se sente lá fora com os seus amigos a pensar se haverá mais ossos humanos que de repente poderão emergir da terra.

 

Mas não é verdade que se outras duas jovens desapareceram na década de mil oitocentos e noventa, e se os seus corpos forem encontrados aqui isso provará que havia um assassino em série nesta vila há cento e dez anos?

 

Sim, provará respondeu Duggan. No entanto, a minha preocupação é deitar a mão ao tipo que matou a Martha Lawrence. Acreditei sempre que era alguém de cá. Muita gente daqui é já a terceira ou quarta geração. Outros passaram cá os Verões ou trabalharam nos hotéis quando eram miúdos.

 

O Tom e eu trabalhámos no Warren observou Walsh. Com dez anos de diferença, claro.

 

Duggan lançou-lhe um olhar que dizia: ”Não interrompas.”

 

Os ossos que encontrámos aqui sob o esqueleto da Martha encontravam-se numa campa pouco profunda continuou ele. Teriam sido encontrados há muito se ali não tivesse estado aquela árvore. Alguns poderiam ter vindo à superfície ao longo dos anos. Acho que o que aconteceu foi que alguém os encontrou por acaso a certa altura, talvez até tenha encontrado o osso com o anel, o tenha guardado, e quando matou a Martha decidiu enterrá-la com ele. Olhou para Emily. Está a abanar a cabeça. Não concorda.

 

Baixei a guarda disse Emily. Um bom advogado de defesa tem sempre o rosto inexpressivo. Não, Mister Duggan, não concordo. Custa-me muito crer que alguém encontrou o osso, não disse nada, assassinou aquela pobre rapariga e depois tenha decidido enterrá-la aqui. Não acredito.

 

Então como explica isto?

 

Acho que quem matou a Martha Lawrence sabia exactamente o que aconteceu em mil oitocentos e noventa e um e decidiu imitar o outro assassino.

 

Não acredita naquela teoria da reencarnação, espero.

 

Não, mas acredito que o assassino da Martha sabe muito sobre a morte da Madeline Shapley.

 

Tom levantou-se.

 

Ms. Graham, esta casa mudou de donos várias vezes ao longo dos anos. Vamos dar uma olhadela aos registos, descobrir quem foram esses donos e ver se algum deles ainda está por cá. Autoriza-nos a continuar a escavar o jardim?

 

Sim respondeu ela resignada. E agora vou perguntar-lhe uma coisa. Deixe-me ver os dossiês que encontrou sobre o desaparecimento da Madeline Shapley e o desaparecimento das outras duas raparigas na década de mil oitocentos e noventa.

 

Os detectives olharam um para o outro.

 

Tenho de falar com o meu chefe, mas creio que não vai haver problema respondeu Duggan.

 

Ela acompanhou-os à porta.

 

O empreiteiro disse-me que pode começar a trabalhar logo pela manhã disse ela. Eu estava com esperança que ele fosse encher já o buraco, mas se todo o jardim tem de ser escavado, pois que seja.

 

Vamos mandar de novo a unidade forense. Não devem levar mais de um dia, no máximo dois, e depois a senhora poderá esquecer isto tudo prometeu Duggan.

 

De novo no carro, conduziram em silêncio durante alguns minutos.

 

Estás a pensar no mesmo que eu, Pete? perguntou Duggan a certa altura.

 

Talvez.

 

Aquela rapariga, Carla Harper, de Filadélfia?

 

Sim.

 

Desapareceu há dois anos, em Agosto.

 

Sim. Uma testemunha jura que a viu falar com um tipo numa área de descanso à saída de Filadélfia. Diz que iam em carros separados, mas que quando arrancaram ele foi atrás dela. A testemunha jura que ele tinha matrícula da Pensilvânia. Depois, uns dias mais tarde, a mala da Harper foi encontrada, com tudo lá dentro, num bosque perto da área de descanso. O caso foi conduzido pelo Ministério Público de Filadélfia.

 

Tommy pegou no telefone, marcou o número do trabalho e pediu que o passassem a Len Green, um dos outros detectives que trabalhava no caso.

 

Len, quando é que a segunda mulher desapareceu na década de mil oitocentos e noventa?

 

Dás-me um minuto? Houve uma pausa. Aqui está: cinco de Agosto de mil oitocentos e noventa e três.

 

Quando é que comunicaram o desaparecimento da Carla Harper?

 

Já te digo.

 

Tommy manteve o telefone encostado ao ouvido até ouvir as palavras que esperava.

 

Cinco de Agosto.

 

Vamos a caminho. Vejo-te daqui a vinte minutos. Obrigado, Len.

 

Tommy Duggan já não tinha sono. Precisavam de falar imediatamente com o detective de Filadélfia que se ocupara do caso de Carla Harper. O facto de Madeline Shapley e Martha Lawrence terem desaparecido a 7 de Setembro, embora com um intervalo de cento e dez anos, podia ser coincidência: o facto de duas jovens terem desaparecido a 5 de Agosto com o mesmo intervalo não podia ser coincidência.

 

Estavam mesmo perante um assassino imitador ali em Spring Lake.

 

Sabes o que significa isto, Pete? perguntou.

 

Pete Walsh não respondeu. Sabia que Tommy Duggan estava a pensar em voz alta.

 

Significa que se este tipo está a seguir um padrão, vai atacar outra mulher a trinta e um de Março.

 

Este trinta e um de Março?

 

Ainda não sei. Na década de mil oitocentos e noventa as três mulheres desapareceram com vários anos de intervalo. Voltou a pegar no telefone. Len, agora verifica isto começou.

 

Quando obteve a informação pretendida, disse:

 

Houve um intervalo de vinte e três meses entre os desaparecimentos das duas primeiras mulheres na década de mil oitocentos e noventa. Houve exactamente o mesmo número de meses entre o desaparecimento de Martha Lawrence e de Carla Harper.

 

Estavam a entrar no parque de estacionamento do Ministério Público.

 

Se uma mulher desaparecer em Spring Lake na próxima semana, a trinta e um de Março, o ciclo fica completo. E, para acrescentar à festa, podemos estar também perante um imitador do perseguidor da Emily Graham.

 

Quando Pete Walsh saiu do carro achou melhor não dizer a Tommy Duggan que a sogra acreditava na reencarnação e que também ele começava a achar que isso era possível.

 

Quando fora às compras depois da escritura, Emily comprara uma embalagem de frango com a intenção de fazer canja. Depois de os detectives se terem ido embora, ela decidiu começar a prepará-la para depois a comer ao jantar.

 

O buraco no jardim e a possibilidade de lá se encontrarem mais corpos fazia-a sentir que o cheiro da morte permeava o ar em seu redor. ”Para além do mais”, pensou, ”consigo sempre raciocinar melhor quando tenho as mãos ocupadas a cortar legumes ou a amassar massa.”

 

”A canja faz bem à psique e, neste momento, a minha bem que precisa de ajuda.”

 

Foi para a cozinha e baixou os estores, satisfeita por poder distanciar-se da cena macabra no jardim. As suas mãos trabalhavam sozinhas, a descascar cenouras, a cortar aipo e cebolas, a pegar nos temperos. Quando acendeu o bico sob a panela já tomara uma decisão.

 

Fora uma parvoíce não ter ligado imediatamente para a polícia de Albany a comunicar o que acontecera na noite passada. Os agentes deviam ser informados.

 

”Porque é que não lhes telefonei?”

 

Respondeu à sua própria pergunta. ”Porque não quero acreditar que isto está de novo a acontecer. Tenho estado a enterrar a cabeça na areia desde que vi aquela fotografia debaixo da minha porta ontem à noite.”

 

Sabia o que tinha a fazer. O detective Walsh levara-lhe o saco com os livros para a cozinha. Pegou nele, foi para o escritório e pousou-o na otomana em frente ao cadeirão. Aproximou-se da secretária, pegou no telefone sem fios e sentou-se na otomana.

 

O primeiro telefonema foi para o detective Marty Browski em Albany. Fora ele que apanhara Ned Koehler junto à casa dela. A reacção de Browski ao que ela lhe disse foi de espanto e preocupação.

 

Acho que temos um imitador, ou então que um dos amigos do Koehler recomeçou onde ele foi interrompido. Vamos investigar. Ainda bem que informou a polícia daí, Emily. Vamos fazer o seguinte: vou telefonar a alertá-los para a gravidade do problema. Posso pô-los ao corrente de tudo.

 

O telefonema seguinte foi para Eric Bailey. Já passava das cinco, mas ele continuava no escritório e ficou encantado por ouvi-la.

 

Albany não é o mesmo sem ti disse ele.

 

Ela sorriu ao ouvir o familiar tom de preocupação. ”O Eric não muda nem com uns milhões de dólares”, pensou Emily. ”É tímido, tem um ar perdido, mas é um génio.

Também tenho saudades tuas. E tenho de te pedir um favor.

 

Óptimo. Seja o que for, já é teu.

 

Eric, foi graças à câmara que instalaste na minha casa que a Polícia apanhou o Ned Koehler. Ofereceste-me uma para Spring Lake. Quero aceitar a oferta. Podes mandar cá alguém instalá-la?

 

Posso mandar-me a mim. Estou com vontade de te ver. Os próximos dias vão ser complicados. Pode ser na segunda?

 

Ela conseguia imaginá-lo, de testa franzida, os dedos a mexerem em qualquer coisa na secretária. Quando se tornara bem-sucedido, trocara as calças de ganga, as T-shirts e as parcas por um guarda-roupa dispendioso. Ela odiava o que as pessoas diziam a respeito dele: que continuava a parecer um zé-ninguém. Pobre coitado.

 

Segunda serve perfeitamente respondeu.

 

Que tal estão a correr as coisas aí?

 

Mais ou menos. Conto-te tudo na segunda. ”E não posso fazer mais nada”, pensou Emily ao pousar o auscultador. ”Agora, vamos ver estes livros.”

 

Passou as três horas seguintes enroscada no cadeirão, absorta nos livros que Wilcox lhe emprestara. Ele fizera uma boa escolha. Emily viu-se transportada para uma época de carruagens puxadas por cavalos, candeeiros a petróleo e ”vivendas” de Verão.

 

Depois de ter pago um balúrdio por aquela casa, Emily sorriu ao ler a postura municipal que dizia que o mínimo que um proprietário podia pagar pela construção de uma nova casa eram três mil dólares.

 

O relatório do presidente da Comissão Sanitária em 1893 acerca da necessidade de deixarem de deitar o lixo no mar ”para manter a nossa praia livre dos dejectos que ali chegam dia após dia” recordou-a de que há coisas que nunca mudam.

 

Um livro com muitas fotografias incluía uma de um piquenique da escola em 1890. A lista das crianças presentes incluía o nome de Catherine Shapley.

 

A irmã de Madeline. ”A minha trisavó”, pensou Emily. ”Quem me dera poder distingui-la.” No mar de rostos era impossível localizar aquele que já vira nas poucas fotografias de família que escaparam ao incêndio do sótão.

 

Àss oito horas regressou à cozinha e acabou de preparar o jantar. Colocou um livro aberto na mesa. Guardara aquele para o fim porque parecia ser o mais interessante. O título era Reflexões sobre a Infância de Uma Rapariga. Fora publicado em

  1. A autora, Phyllis Gates, passara os Verões em Spring Lake no final da década de 1880 e nos primeiros anos da de 1890.

 

O livro estava bem escrito e fazia um retrato fiel da vida social da época. Descrevia piqueniques e bailes, grandes festas no Hotel Monmouth, banhos no mar, cavalgadas e passeios de bicicleta. O que mais intrigou Emily foram os copiosos excertos de um diário que Phyllis Gates tivera durante aquela altura.

 

Emily terminara o jantar. Os olhos ardiam-lhe de cansaço e estava quase a fechar o livro quando virou uma página e se lhe deparou o nome de Madeline Shapley num excerto do diário.

 

18 de Junho de 1891. Esta tarde fomos a uma festa em casa dos Shapley. Foi para celebrar o décimo nono aniversário da Madeline.

 

No alpendre haviam sido colocadas doze mesas decoradas com flores do jardim. Fiquei sentada na mesa da Madeline tal como o Douglas Cárter, que está muito apaixonado por ela. Fartamo-nos de a provocar ao falar nele.

 

Num excerto de 1891, a autora escrevia:

 

Havíamos acabado de fechar a nossa vivenda e regressado a Filadélfia quando soubemos do desaparecimento da Madeline. Foi um grande sofrimento para nós. A minha mãe regressou a Spring Lake para apresentar as condolências e encontrou a família num estado de profundo sofrimento. O pai da Madeline confiou-lhe que iria tirar a família da vila por recear pela saúde da mulher.

 

Prestes a fechar o livro, Emily percorreu rapidamente as páginas. Uma entrada de Outubro de 1893 despertou-lhe a atenção.

 

O Douglas Cárter suicidou-se. Perdera o primeiro comboio que saiu de Nova Iorque naquele dia trágico e fora obrigado a esperar por outro. Ficou obcecado com a ideia de que se tivesse chegado mais cedo poderia tê-la salvo.

 

A minha mãe achou que os pais do Douglas haviam feito muito mal em não mudarem de casa, pois a deles ficava mesmo em frente à dos Shapley. Achava que a melancolia que se apoderou do Douglas poderia ter sido evitada se ele não tivesse ficado sentado hora após hora a olhar para o alpendre da casa dos Shapley.

 

Emily pousou o livro. ”Eu sabia que o Douglas Cárter se suicidara”, pensou. ”Não sabia é que ele vivia mesmo em frente.”

 

”Gostaria de descobrir mais coisas sobre ele. Será que perdeu mesmo o tal primeiro comboio?”

 

O rumor começara com a pergunta do jornalista do The National Daily ao promotor público: ”Acha que o assassino da Martha é uma reencarnação?

O telefone da Dr.a Lillian Madden começara a tocar sem interrupção na quinta-feira à tarde. Na sexta de manhã Joan Hodges, a sua secretária, tinha uma resposta automática que repetia vezes sem conta: ”A doutora Madden acha pouco apropriado falar-se de reencarnação no homicídio de Spring Lake.”

 

À hora de almoço de sexta, Joan Hodges não teve problema em discutir o assunto com a chefe.

 

Doutora Madden, olhe para o que dizem os jornais. Têm razão. Não foi uma coincidência a Martha Lawrence e a Madeline Shapley terem desaparecido a sete de Setembro. E quer saber a última?

 

”E fazes uma pausa para um melhor efeito dramático”, pensou Lillian Madden com secura.

 

A cinco de Agosto de mil oitocentos e noventa e três, Letitia Gregg, ouça bem, doutora, ”não regressou a casa”. Os olhos de Joan arregalaram-se. Doutora, houve uma rapariga, a Carla Harper, que passou o fim-de-semana no Hotel Warren há dois anos e que depois desapareceu. Lembro-me de ter lido qualquer coisa sobre isso. Pagou a conta no Warren e meteu-se no carro. Uma mulher jura que a viu perto de Filadélfia. Era para lá que a rapariga ia. Vivia em Rosemont. Mas agora, segundo o New York Post, essa testemunha começa a parecer maluca.

 

Nessa altura os olhos de Joan, muito abertos e inquiridores, viraram-se para o rosto da Dr.a Lillian Madden.

 

Doutora, acho que a Carla Harper não chegou a sair de Spring Lake. Acho... e parece que há muita gente a achar o mesmo... que havia cá um assassino em série na década de mil oitocentos e noventa e que agora esse assassino reencarnou.

 

Isso é um perfeito disparate retorquiu Lillian Madden com brusquidão. A reencarnação é uma forma de crescimento espiritual. Um assassino em série do século passado estaria agora a pagar pelas suas transgressões, não a repeti-las.

 

Com passos decididos, toda a sua postura a transmitir desaprovação em relação ao tom da conversa, Lillian Madden entrou no seu gabinete e fechou a porta. Ali, sentou-se na cadeira e pousou os cotovelos na secretária. De olhos fechados, massajou as têmporas com os indicadores.

 

”Não falta muito para que os seres humanos sejam clonados”, pensou. ”Todos os médicos compreendem isso. Os que acreditam na reencarnação acreditam que a dor que sofremos noutras vidas pode afectar a nossa existência presente. Mas o mal? Poderá alguém repetir exactamente os mesmos crimes que cometeu há mais de um século?

O que estaria a incomodá-la? Que recordação tentava chegar à sua mente consciente?

 

Lillian interrogou-se se naquela noite poderia faltar à palestra. Não, isso não seria justo para os alunos, decidiu. Durante dez anos não faltara a uma única aula do curso de Regressão que dava todas as Primaveras no Colégio de Monmoudi.

 

Havia trinta alunos inscritos no curso. O colégio estava autorizado a vender mais dez entradas para cada palestra. Iria algum dos jornalistas que lhe telefonara descobrir a existência dessas entradas e aparecer nessa noite?

 

Na segunda metade da sessão era seu hábito pedir a alguns voluntários para se deixarem hipnotizar e fazerem a regressão. Às vezes isso resultava em lembranças reais e pormenorizadas de outras encarnações. Lillian decidiu eliminar nessa noite a sessão de hipnose. Durante os últimos dez minutos respondia sempre às perguntas dos alunos e dos visitantes. Se estivessem lá jornalistas, teria de responder às perguntas deles. Não havia fuga possível.

 

Preparava sempre as suas palestras. Cada uma era cuidadosamente encaixada entre a anterior e a seguinte. A palestra daquela noite iria ser baseada nas observações de Ian Stevenson, um professor de Psicologia da Universidade da Virginia. Ele testara a hipótese de que para poder identificar duas diferentes histórias de vida como pertencentes à mesma pessoa, teria de existir uma continuidade de memórias e ou de traços de personalidade.

 

Não seria exactamente a palestra que ela preferiria dar naquela noite. Quando reviu rapidamente os apontamentos antes de sair, Lillian apercebeu-se de que as descobertas de Stevenson poderiam ser consideradas como a confirmação da teoria do assassino em série reencarnado.

 

Lillian encontrava-se tão mergulhada nos seus pensamentos que se assustou quando Joan bateu à porta. Esta abriu-se e Joan entrou antes de poder ser convidada a fazê-lo.

 

Mistress Pell está aqui, senhora doutora, mas veio cedo, por isso não tenha pressa. Veja o que ela lhe trouxe.

 

Joan tinha na mão um exemplar do The National Daily. Sob o nome do jornal encontravam-se as palavras EDIÇÃO ESPECIAL. O título dizia ASSASSINO EM SÉRIE REGRESSA DO TÚMULO.

 

A história continuava na segunda e na terceira páginas. Fotografias de Martha Lawrence e de Carla Harper, lado a lado, tinham a legenda ”Irmãs na Morte?”

 

A história começava: ”A Polícia, ruborizada, admite que a testemunha que afirma ter visto Carla Harper numa área de descanso perto de casa em Rosemont, Pensilvânia, pode estar enganada. Admite agora ser possível a mala de Carla Harper ter sido colocada perto dessa área de descanso pelo assassino depois de o relato da testemunha ter sido amplamente divulgado. A investigação está agora centrada em Spring Lake, Nova Jérsia.

É como eu lhe disse, senhora doutora. A rapariga foi vista pela última vez em Spring Lake. E desapareceu a cinco de Agosto, no mesmo dia em que a Letitia Gregg... não é um óptimo nome?... desapareceu em mil oitocentos e noventa e três!

 

O jornal tinha também retratos de três jovens mulheres com vestidos compridos de gola subida e manga comprida do final do século xix. A legenda dizia ”As Vítimas do Século XIX.”

 

Uma fotografia da altura mostrando a rua ladeada de árvores e as casas vitorianas fora colocada ao lado de uma rua actual muito semelhante. A legenda dizia ”Então e Agora.”

 

A notícia seguinte tinha a assinatura e a fotografia de uma colunista, Reba Ashby. Começava: ”Um visitante da bela vila costeira de Spring Lake tem a sensação de recuar no tempo e entrar numa era mais pacífica e tranquila. Mas, no passado, tal como no presente, a paz foi interrompida por uma presença sinistra e malévola...

Lillian dobrou o jornal e devolveu-o a Joan.

 

Já vi o suficiente.

 

Não acha que devia cancelar a sua aula de hoje, senhora doutora?

 

Não, não acho, Joan. Peça a Mistress Pell para entrar, se fizer favor.

 

Nessa noite, como Lillian Madden esperara, todas as entradas suplementares para a sua palestra haviam sido vendidas. Calculou que as várias pessoas que tinham chegado suficientemente cedo para ocuparem os lugares da frente poderiam ser da comunicação social. Traziam blocos de apontamentos e gravadores.

 

Os meus alunos sabem que não são permitidos gravadores nesta aula anunciou ela a olhar para uma trintona que parecia vagamente familiar.

 

Claro! Era Reba Ashby do The National Daily, a que escrevera a história do ”Então e Agora”.

 

Lillian levou algum tempo a ajeitar os óculos. Não queria parecer nervosa nem pouco à vontade perante Ms. Ashby.

 

No Médio Oriente, Ásia e noutros locais começou, há vários casos de crianças com menos de oito anos que falam sobre uma identidade anterior. Recordam-se com bastante pormenor da vida anteriormente vivida, incluindo dos nomes dos membros das suas famílias anteriores.

 

”A monumental investigação empírica do doutor Stevenson explora a possibilidade de as imagens na mente de uma pessoa e de as alterações físicas no seu corpo poderem manifestar-se como características num recém-nascido.

 

”Imagens na mente de uma pessoa”, pensou Lillian. ”Estou a dar à Ashby o tema para a próxima coluna.” Prosseguiu:

 

Algumas pessoas são capazes de escolher os seus futuros pais, e o renascimento tende a acontecer numa área geográfica bastante próxima de onde a anterior encarnação viveu.

 

As perguntas, quando começaram, foram bastante animadas. Ms. Ashby teve primeiro a palavra:

 

Doutora Madden, tudo o que a ouvi dizer esta noite parece validar a ideia de que um assassino em série que viveu na década de mil oitocentos e noventa reencarnou. Acha que o assassino de hoje tem imagens do que aconteceu às três mulheres no século xix?

 

Lillian Madden levou algum tempo a responder.

 

- A nossa investigação mostra que as recordações das vidas passadas deixam de existir por volta dos oito anos. Isso não quer dizer que uma pessoa não possa sentir uma certa familiaridade em relação a alguém que acabou de conhecer ou a um local que visita pela primeira vez. Mas isso não é o mesmo que imagens nítidas, recentes.

 

Houve outras perguntas, depois Ashby interveio de novo.

 

Senhora doutora, nas suas palestras não costuma hipnotizar alguns voluntários?

 

Sim. Mas decidi não o fazer esta noite.

 

Quer explicar-nos como faz para ajudar uma pessoa a regredir?

 

Com certeza. Costumam oferecer-se três ou quatro pessoas para a experiência, mas algumas podem não cooperar com a hipnose. Dirijo-me a cada uma das pessoas que está claramente num estado hipnótico. Convido-as a viajar no tempo através de um túnel quente. Digo-lhes que vai ser uma viagem agradável. Depois escolho datas ao acaso e pergunto se lhes surge alguma imagem na mente. Muitas vezes a resposta é não, e continuo a recuar até chegarem a uma encarnação anterior.

 

Doutora Madden, alguma vez alguém lhe pediu para regressar especificamente ao final do século XIX?

 

Lillian Madden olhou para o interlocutor, um homem corpulento, de olhar pensativo. ”Deve ser outro jornalista”, pensou, mas a questão não era essa. Ele fizera emergir a recordação que lhe andara a escapar todo o dia. Devia ter sido há quatro ou cinco anos que alguém lhe fizera realmente esse pedido. Ele estivera no seu consultório, com marcação, e dissera-lhe ter a certeza de ter vivido em Spring Lake no final do século XIX.

 

Mas depois resistira à hipnose, aliás, quase parecera receoso, e fora-se embora no final dos sessenta minutos. Lillian via-o com nitidez na sua mente. Mas qual era o nome dele? Qual era?

 

”Deve estar no meu livro de marcações”, pensou. ”Hei-de reconhecê-lo quando o vir.”

 

Estava ansiosa por chegar a casa.

 

Em Albany, Marty Browski subiu o caminho até Gray Manor, o hospital psiquiátrico onde Ned Koehler, o homem que fora condenado por perseguir Emily Graham, estava a ser tratado.

 

Marty, um homem baixo, em forma, com cinquenta anos e um rosto sisudo, atravessara a cidade vindo da esquadra porque tinha de ver com os seus próprios olhos que Koehler ainda se encontrava no seu devido lugar.

 

Embora não houvesse dúvidas de que o homem era potencialmente perigoso, houvera algo no caso que sempre incomodara Marty. Sem dúvida que Ned Koehler dera o último passo que todos os perseguidores davam: cortara os fios telefónicos para desligar o alarme no apartamento de Emily Graham e tentara entrar.

 

Felizmente, a câmara de segurança que Eric Bailey, o amigo dela que enriquecera com a Internet, instalara continuara a funcionar graças a um sistema de reserva e, para além de ter chamado a Polícia, filmara também Koehler, de faca na mão, a tentar forçar a fechadura da janela do quarto!

 

Koehler era maluco, disso não havia dúvida. Provavelmente, estivera sempre à beira do abismo e a morte da mãe acabara por empurrá-lo para lá. Mas tinha razão. Joel Lake, o vadio que Graham conseguira absolver, fora o assassino da mãe.

 

”Mas a Graham era uma excelente advogada”, pensou Browski, ”e a acusação não soube fazer o seu trabalho.”

 

E agora Graham estava a ser vítima de outro perseguidor, desta vez em Spring Lake. ”Sempre tive dúvidas em relação ao ex-marido dela”, pensou Browski ao abrir a porta do hospital e entrar na recepção.

 

Havia algumas pessoas junto ao balcão, à espera de serem acompanhadas às áreas de acesso restrito. Ele sentou-se pesadamente numa cadeira e. olhou em volta.

 

As paredes estavam pintadas de um amarelo suave e tinham alguns quadros bastante razoáveis pendurados. As cadeiras em imitação de cabedal dispostas em pequenos grupos pareciam ser confortáveis. Várias mesas baixas encontravam-se cobertas de revistas que pareciam ser recentes.

 

”Mesmo assim, por muito que tentemos alegrá-los, estes sítios são sempre soturnos”, pensou Browski. ”Todos os sítios de onde não podemos sair livremente o são.”

 

Enquanto esperava, deu consigo a considerar a hipótese de Gary Harding White poder ter sido e poder ainda ser o perseguidor. À família White era conhecida em Albany há gerações, mas Gary Harding White era diferente do resto dos membros do clã, todos eles pessoas bem sucedidas. Apesar do meio privilegiado, da beleza e de uma boa educação, Gary fracassara em tudo e começava a ter a reputação de patife. E também de mulherengo.

 

Depois da Faculdade de Gestão de Harvard, White instalara-se em Albany e entrara no negócio da família. Fora sol de pouca dura.

 

Depois o pai dera-lhe sociedade, mas a coisa não resultara. Agora estava metido noutra coisa, e também isso trazia pouco dinheiro. Corria na cidade o boato de que o pai estava farto de o sustentar.

 

Gary ficara furioso quando a ex-mulher ganhara uma data de dinheiro. Toda a gente se espantara quando ele a metera em tribunal para tentar deitar a mão a metade da verba, e durante o julgamento ele mentira com todos os dentes e fizera figura de idiota.

 

Estivera suficientemente amargurado para tentar destruir a paz de espírito de Emily Graham perseguindo-a?, interrogou-se Browski. Continuaria a fazê-lo?

 

Mas Koehler era potencialmente perigoso. Afinal de contas, tentara atacar Emily Graham no tribunal e tentara entrar-lhe em casa. Mas seria ele o perseguidor!

 

Vendo que a recepcionista já tratara das pessoas que aguardavam junto à secretária, aproximou-se e tirou a carteira do bolso. Mostrando a identificação, disse:

 

Marty Browski. Estão à minha espera. Importa-se de dizer ao doutor Sherman que vim interrogar o Ned Koehler? O advogado dele já chegou?

 

Mister Davis subiu há pouco tempo informou ela. Minutos depois, Marty encontrava-se sentado a uma mesa

 

frente a Koehler e Hal Davis, o advogado. A porta estava fechada, mas um guarda observava-os pela janela.

 

”O Ned é o tipo de pessoa pelo qual queremos sentir pena, mas não conseguimos”, pensou Browski. Com cerca de quarenta anos, Koehler era um homem particularmente feio. Tinha um rosto esquelético, olhos muito juntos e um queixo saliente. Noutra pessoa, o cabelo ralo grisalho poderia ter ficado bem, mas nele contribuía ainda mais para o seu aspecto desagradável.

 

Que tal vai isso, Ned? perguntou Browski num tom amigável.

 

Os olhos de Koehler encheram-se de lágrimas.

 

Tenho saudades da minha mãe. Era a reacção que Browski esperava.

 

Eu sei.

 

A culpa foi daquela advogada. Ela soltou-o. Ele devia estar na prisão.

 

Ned, o Joel Lake esteve no seu prédio naquela noite. Admitiu ter forçado a entrada no apartamento. Mas a sua mãe encontrava-se na casa de banho. Ele ouviu a água a correr na banheira. Ela não o viu. Ele não a viu. A sua mãe telefonou à irmã depois de o Joel ter sido visto a sair do prédio.

 

A minha tia não tem noção do tempo.

 

O júri achou que sim.

 

Aquela Graham deu a volta aos jurados.

 

”Talvez não lhes tenha dado a volta, mas fê-los acreditar na versão do Joel”, pensou Browski. Eram poucos os advogados capazes de ilibar um suspeito de homicídio depois de ele admitir ter forçado a entrada no apartamento da vítima perto da hora do crime.

 

Odeio a Emily Graham, mas não a segui nem lhe tirei fotografias.

 

Tentou entrar em casa dela naquela noite. Levava uma faca.

 

Queria assustá-la. Queria que ela visse como a minha mãe se deve ter sentido assustada quando viu o intruso pegar naquela faca.

 

Tencionava apenas assustá-la?

 

Não tem de responder a isto, Ned avisou Hal Davis. Koehler ignorou-o e olhou para Browski sem pestanejar.

 

Ia apenas assustá-la. Queria fazê-la perceber o que a minha mãe sentiu quando olhou para cima e... Começou de novo a chorar. Tenho saudades da minha mãe repetiu.

 

Davis deu umas palmadinhas no ombro do cliente e levantou-se.

 

Satisfeito, Marty? perguntou a Browski enquanto fazia sinal ao guarda para que levasse Koehler de volta ao quarto.

 

Nick Todd pegara meia dúzia de vezes no auscultador para ligar a Emily Graham, mas arrependera-se sempre. ”Quando lhe pedir para vir trabalhar antes do combinado, hei-de estar a realçar o volume de trabalho e o facto de precisarmos dela”, pensou. ”Depois, assim que ela cá estiver, vou-me embora.”

 

Mas não, decidiu, não era justo agir daquela forma nem revelar os seus planos a Emily antes de ter falado com o pai.

 

Na sexta, de manhã, Walter Todd chamou o filho pelo intercomunicador.

 

Já falaste com a Emily Graham?

 

Ainda não.

 

Julguei que tínhamos combinado que irias visitá-la nos próximos dias.

 

Tenciono fazer isso. Nick hesitou. Gostava de te convidar para o almoço.

 

Houve uma hesitação semelhante do outro lado da linha.

 

Acho que a firma tem conta aberta em vários restaurantes.

 

Temos uma no Four Seasons. Mas desta vez pago eu, pai.

 

Subiram a Avenida Park até à Rua Cinquenta e Dois. Concordaram que a brisa mais quente sabia bem depois do tempo frio e húmido. A Primavera estava perto, concluíram.

 

Falaram da bolsa de valores. Ninguém sabia se as empresas da Internet iriam recuperar.

 

Discutiram os cabeçalhos do caso de Spring Lake.

 

Gostava de apertar o pescoço às pessoas que transformam a morte de uma jovem num acontecimento mediático disse Walter Todd.

 

Como de costume, o Four Seasons estava cheio de caras conhecidas. Um antigo presidente da República encontrava-se na Sala Grill em conversa animada com um famoso editor. Um antigo presidente da Câmara estava na sua mesa habitual. Nick reconheceu directores de estúdios e de cadeias de televisão, escritores famosos e homens de negócios a habitual miscelânea do almoço composta por pessoas conhecidas e bem sucedidas.

 

Pararam em várias mesas para cumprimentar amigos. Nick fez uma careta ao ouvir o pai a apresentá-lo cheio de orgulho a um juiz aposentado:

 

O meu filho e sócio...

 

Contudo, depois de se encontrarem sentados na Sala Pool e de terem pedido ferrier, ele foi direito ao assunto.

 

Muito bem, Nick, o que se passa?

 

Nick sofreu bastante ao ver os músculos da garganta do pai contraírem-se, a expressão de ira no seu olhar e a dor espelhada no seu rosto enquanto ouvia os planos do filho.

 

Por fim, Walter Todd engoliu e disse:

 

Então é isso. É uma decisão muito importante, Nick. Mesmo que consigas ir trabalhar com o procurador-geral nunca irás ganhar o que ganhas agora.

 

Eu sei, e acho que não sou altruísta ao ponto de sentir a falta do dinheiro. Partiu uma carcaça e desfê-la em migalhas nos dedos.

 

Com certeza percebes que ser o braço da lei não é só prender os tipos maus. Vais ter de acusar muitas pessoas que talvez preferisses defender.

 

Isso é algo que terei de enfrentar. Walter Todd encolheu os ombros.

 

É evidente que tenho de aceitar a tua decisão. Mas será que estou satisfeito com ela? Não. Estou desapontado? Sim. Quando é que essa missão quixotesca vai começar?

 

”Também estás furioso”, pensou Nick, ”mas isso já era de esperar.”

 

O chefe de mesa veio com as ementas e enumerou os pratos do dia. Antigo funcionário do Four Seasons, sorriu benignamente para eles.

 

É sempre um prazer ver os dois Todd a almoçar juntos. Fizeram o pedido e quando o empregado já se afastara o suficiente, Walter Todd esboçou um ligeiro sorriso.

 

A cafetaria do tribunal não vem no Guia Michelin, Nick.

 

Foi um alívio ver que o pai recuperara o bom humor.

 

Bom, talvez me convides de vez em quando para vir aqui almoçar, pai.

 

Vou pensar no assunto. Já falaste disto com a tua mãe?

 

Ainda não.

 

Ela tem-te achado muito estranho ultimamente. Vai ficar aliviada por saber que não se trata de uma doença misteriosa. Confesso que também fiquei aliviado.

 

Os dois homens entreolharam-se por sobre a mesa, uma cópia um do outro distinguida apenas por trinta anos do inevitável processo de envelhecimento. Ombros estreitos; corpos magros, disciplinados; cabelo cor de areia que já estava completamente grisalho no homem mais velho. Marcas de rugas na testa de Nick, rugas profundas na testa do pai. Queixos firmes e olhos cor de avelã. Os olhos de Walter Todd encontravam-se atrás de óculos, os de Nick tinham uma cor mais viva, uma expressão zombeteira em vez de austera.

 

És um excelente advogado, Nick, o melhor. Depois de mim, claro. Quando te fores embora, vamos ficar com um enorme vazio na firma. É fácil encontrar bons advogados. Mas é difícil encontrar advogados muito, muito bons.

 

Eu sei, mas a Emily Graham vai preencher essa lacuna. Estou desmotivado. Em breve começaria a cometer deslizes. Sinto-o. Ela tem a mesma paixão que tu pelo trabalho, mas quando for visitá-la terei de lhe dizer que a carga de trabalho vai ser maior do que está à espera, pelo menos por enquanto.

 

Quando é que queres ir-te embora?

 

Assim que a Emily Graham começar a trabalhar nos meus casos. Vou mudar as minhas coisas para um gabinete mais pequeno na fase de transição.

 

Walter Todd assentiu.

 

E se ela não quiser vir trabalhar antes do dia um de Maio?

 

Nesse caso, vou ter de esperar.

 

”Ela há-de querer vir trabalhar antes”, pensou Nick. ”Hei-de fazer com que isso aconteça.

 

O barulho da escavadora começou exactamente às oito da manhã de sexta-feira. Quando espreitou pela janela da cozinha enquanto preparava o café, Emily fez uma careta ao ver a destruição dos canteiros, dos arbustos e do relvado. ”O sistema de rega também vai para o galheiro”, pensou, com um suspiro.

 

Era evidente que teria de contratar um arquitecto paisagista.

 

”Pois que assim seja”, pensou ela ao regressar ao primeiro andar para tomar duche e se vestir, levando o café na mão. Quarenta minutos depois estava instalada no escritório, um segundo café na mão, o caderno de apontamentos na otomana.

 

O livro Reflexões sobre a Infância de Uma Rapariga continuou a revelar-se uma excelente fonte de informação. A autora, Phyllis Gates, fora ainda passar três Verões a Spring Lake depois do desaparecimento de Madeline. No excerto de um diário de 1893, ela referia-se ao receio de que Letitia Gregg se pudesse ter afogado.

 

A Letitia adorava nadar e era muito ousada. O dia 5 de Agosto foi bastante quente. A praia estava cheia de visitantes e o mar encontrava-se bastante agitado. A meio da tarde, a Letitia ficou sozinha em casa. A mãe fora fazer uma visita e a criada gozava a tarde de folga da semana. O fato de banho da Letitia desapareceu, por isso se partiu do princípio de que ela foi sozinha refrescar-se no mar.

 

Dois anos depois do desaparecimento da Madeline Shapley, a tristeza da comunidade é palpável, e nota-se um certo medo no ar. Uma vez que o corpo da Letitia não deu à costa, há sempre a possibilidade de ela ter sido vítima de um criminoso a caminho da praia, ou já no regresso.

 

A minha mãe tornou-se uma guardiã feroz, e nem me deixa passear sozinha. Estou desejosa de voltar a Filadélfia no fim da temporada.

 

A autora continuava:

 

Lembro-me de como nós, os jovens, nos juntávamos nos alpendres uns dos outros, a comentar o que poderia ter acontecido à Madeline e à Letitia. Os rapazes eram o primo do Douglas Cárter, o Alan Cárter, e o Edgar Newman. Sempre achei que os dois eram irmãos no sofrimento porque o Edgar gostava muito da Letitia e todos sabíamos que o Alan adorara a Madeline, embora ela estivesse quase noiva do Douglas quando desapareceu. Outro membro muito desalentado do nosso grupo era a Ellen Swain. Era a melhor amiga da Letitia e tem imensas saudades dela.

 

Nessa altura, o Henry Gates, entrado à pouco em Yale, começou a aparecer com cada vez maior regularidade. Eu já decidira que queria casar com ele, mas é claro que naquela época as meninas eram muito circunspectas. Nunca poderia revelar afecto pelo Henry até ter a certeza absoluta de que ele estava apaixonado por mim. Brincámos bastante sobre isto ao longo dos anos. Tendo em conta o comportamento desregrado dos jovens de hoje, ambos achamos que o nosso namoro foi muito mais bonito.

 

”E este livro foi publicado em 1938!”, pensou Emily. ”Gostava de saber o que pensaria a Phyllis Gates dos namoros da minha geração.

Nas páginas seguintes, quando a autora recordava os Verões de 1894 e 1895 e o seu romance crescente com Henry Gates, referia muitas vezes os nomes de outros jovens.

 

Emily tomou nota deles no seu caderno. Aquelas pessoas deviam ter sido contemporâneas de Madeline.

 

A última entrada do diário datava de 4 de Abril de 1896.

 

Uma tragédia horrível. Na semana passada a Ellen Swain desapareceu de Spring Lake. Regressava a casa a pé depois de ter visitado Mrs. Carter, cuja saúde precária se deteriorara bastante desde o suicídio do Douglas, o seu único filho. Toda a gente acredita agora que a Letitia não se afogou mas que as três raparigas foram vítimas de um assassino. A minha mãe cancelou o aluguer da casa para este Verão. Disse que não tenciona pôr em risco a minha vida. Estamos a planear ir passar o Verão a Newport. Mas vou sentir muito a falta de Spring Lake.

 

A autora concluía:

 

O mistério dos desaparecimentos originou vários boatos ao longo dos anos. Os restos do corpo de uma jovem mulher dados à costa em Manasquan podem ter sido os da Letitia Gregg. Uma prima dos Mallard jura ter visto a Ellen Swain em Nova Iorque de braço dado com um homem bem-parecido. Algumas pessoas acreditaram nessa história, uma vez que a Ellen não era feliz em casa. Os pais eram extremamente exigentes e críticos. Nós que éramos suas confidentes e sabíamos do seu afecto pelo Edgar Newman nunca acreditámos que ela tivesse fugido com alguém para Nova Iorque.

 

O Henry e eu casámos em 1896 e dez anos depois regressámos a Spring Lake com os nossos três filhos para gozar a vida agradável dos residentes de Verão daquela colónia de férias agora tão na moda.

 

Emily fechou o livro e pousou-o na otomana. ”É como fazer uma viagem no tempo”, pensou. Pôs-se de pé e espreguiçou-se, apercebendo-se subitamente de que estivera muito tempo sentada sem se mexer. Ficou admirada por verificar que era quase meio-dia.

 

”Um pouco de ar fresco era capaz de me despertar”, pensou. Foi até à porta, abriu-a e saiu para o alpendre. A combinação do sol quente e da brisa suave parecia já mostrar o seu efeito na relva e nos arbustos. Estes estavam mais verdes, mais viçosos, prontos a crescer e a espalhar-se. ”No fim do mês que vem posso voltar a pôr tudo no alpendre”, pensou. ”Vai ser óptimo sentar-me aqui fora.”

 

Vinte e sete peças da mobília de vime original encontravam-se guardadas no sótão da cocheira.

 

Agora estão fechadas em plástico tinham-lhe dito os Kiernan. Mas foram reparadas e restauradas e têm novas almofadas de um tecido que acreditamos ser uma réplica do padrão floral original.

 

O conjunto incluía sofás, chaises longues, cadeiras e mesas. ”Provavelmente, algumas daquelas peças foram utilizadas no almoço dado para festejar o décimo nono aniversário da Madeline”, reflectiu Emily. ”E a Madeline pode ter estado sentada numa daquelas cadeiras enquanto esperava que o Douglas Cárter lhe trouxesse o anel de noivado.”

 

”Sinto-me tão próxima delas todas”, pensou. ”Ganharam vida naquele livro.”

 

Mesmo a um quarteirão de distância do mar, o ar do oceano era pungente e convidativo. Emily voltou a entrar em casa com relutância, mas depois percebeu que ainda não estava pronta para começar outra sessão de leitura.

 

”Vou dar um passeio pela marginal”, decidiu, ”depois como uma sandes na cidade antes de voltar para casa.”

 

Duas horas depois, ao regressar revigorada e sentindo-se de cabeça fresca, encontrou duas mensagens no atendedor de chamadas.

 

A primeira era de Will Stafford.

 

Dê-me uma apitadela, está bem, Emily? Tenho uma coisa para si.

 

A segunda era de Nicholas Todd.

 

Preciso de estar contigo, Emily. Espero que possas receber-me no sábado ou no domingo. Temos de conversar acerca de umas coisas. O meu número directo é o dois um dois, cinco cinco cinco, zero oito cinco sete.

 

Stafford encontrava-se no escritório.

 

Falei com Mistress Lawrence, Emily disse ele. Ela gostaria que fosse almoçar com eles depois do serviço fúnebre. Eu disse-lhe que você tencionava assistir.

 

É muito simpático da parte dela.

 

Ela quer conhecê-la. Porque não me deixa ir buscá-la e ir consigo ao serviço e depois acompanhá-la ao almoço? Posso apresentá-la a algumas pessoas da vila.

 

Gostaria muito.

 

Óptimo. Então até amanhã às onze menos vinte.

 

Cá estarei. Obrigada.

 

Marcou o número de Nick Todd. ”Espero que não tenham mudado de ideias quanto a contratar-me”, pensou, apreensiva. Essa possibilidade deixou-a abalada.

 

Nick atendeu ao primeiro toque.

 

Temos acompanhado as notícias. Não é uma forma muito agradável de começar a vida numa terra nova. Espero que não tenha sido muito desagradável.

 

Ela julgou detectar uma certa tensão na voz de Nick.

 

Foi mais triste do que desagradável respondeu. Deixaste recado a dizer que precisavas de me ver. O teu pai mudou de ideias quanto a contratar-me?

 

A gargalhada dele foi simultaneamente espontânea e tranquilizadora.

 

Nada poderia estar mais longe da verdade. Que tal almoçar ou jantar amanhã? Ou preferes o domingo?

 

Emily meditou. ”Amanhã é o serviço fúnebre e depois vou almoçar com os Lawrence. E quero acabar de ver estes livros para os devolver ao doutor Wilcox”, pensou.

 

Era melhor almoçarmos no domingo - respondeu. Vou descobrir um restaurante e reservar uma mesa.

 

Às cinco e meia, um membro da equipa forense tocou à campainha na porta das traseiras.

 

Terminámos, Ms. Graham. Não há mais nada aqui enterrado.

 

Emily ficou admirada por se sentir tão aliviada. Apercebeu-se de que esperara ver desenterrados os restos mortais de Letitia Gregg e Ellen Swain.

 

O rosto, as mãos e a roupa do agente veterano estavam cobertos de lama. Parecia cansado e com frio.

 

Isto foi muito desagradável comentou. Mas agora talvez deixem de falar no assassino em série reencarnado.

 

Espero sinceramente que sim. ”Mas porque é que tenho a sensação de que isto ainda vai piorar?”, pensou Emily enquanto agradecia ao agente, fechava e trancava a porta à escuridão crescente.

 

Uma sensação de perigo rodeia-me. É semelhante à que senti quando a Ellen Swain começou a relacionar-me com a morte da Letitia.

 

Nessa altura agi com rapidez.

 

Foi uma precipitação e uma parvoíce ter consultado a doutora Lillian Madden há cinco anos. No que é que estaria a pensar? Claro que não podia ter permitido que ela me hipnotizasse. Quem sabe o que eu poderia ter divulgado involuntariamente quando lhe abrisse a minha mente?

 

Foi apenas a possibilidade tentadora de ser colocado directamente na minha encarnação anterior que me tentou a visitá-la.

 

Será que ela se lembra que há cinco anos um cliente lhe pediu para regredir até mil oitocentos e noventa e um?

 

”É possível”, pensou com um arrepio.

 

Considerará confidencial uma conversa que teve lugar no consultório, entre um doente e a sua psicóloga?

 

Talvez.

 

Ou considerará seu dever ligar para a Polícia e dizer: ”Há cinco anos pediram-me que fizesse regredir um homem de Spring Lake ao ano de mil oitocentos e noventa e um. Expliquei-lhe que a menos que ele tivesse encarnado nessa altura não seria possível fazê-lo recuar no tempo.”

 

Conseguia visualizar a Dr.a Madden, os seus olhos inteligentes, a fitá-lo. Ela sentira-se desafiada por ele e também sentira curiosidade.

 

”A Ellen Swain morreu por causa da curiosidade”, reflectiu ele.

 

Nessa altura poderia a Dr.a Madden dizer à Polícia, tentei hipnotizar o doente. Ele ficou bastante agitado e saiu abruptamente do consultório. Isto pode não ter muita importância, mas achei que devia informá-los. O nome dele é...

 

A doutora Lillian Madden não podia fazer esse telefonema! Era um risco que ele não se podia dar ao luxo de correr.

 

”Tal como a Ellen Swain, ela irá em breve saber que é perigoso saber coisas a meu respeito, mesmo fatal”, pensou.

 

         Sábado, 24 de Março

Nunca ouvi tamanho disparate em toda a minha vida. Rachel Wilcox pousou o jornal na mesa do pequeno-almoço com uma expressão de desdém. Um assassino em série reencarnado! Por amor de Deus, será que aqueles jornalistas acham que nós engolimos tudo?

 

Durante muitos anos Clayton e Rachel Wilcox recebiam diariamente dois exemplares do The Asbury Park Press e do The New York Times.

 

Tal como ela, ele estava a ler o The Asbury Park Press.

 

Acho que o jornal está a dizer que na quinta se perguntou ao promotor público se era possível a existência de um assassino em série reencarnado. Não vejo em nenhum lado que o The Asbury Park Press dê crédito a uma possibilidade dessas.

 

Ela não lhe respondeu. ”Não é de admirar”, pensou Clayton. Rachel andava de péssimo humor desde que o detective Duggan ligara na quinta-feira à tarde. Estivera de saída, e ele encontrara-se a reunir livros para Emily Graham. Rachel ficara furiosa ao ser informada que as pessoas que haviam estado em casa dos Lawrence na noite anterior ao desaparecimento de Martha iriam ser reunidas e depois interrogadas pela Polícia. Outra vez.

 

A lata daquele homem! exclamara furiosa. Será que ele acha que um de vocês vai subitamente confessar ou acusar outra pessoa?

 

Clayton Wilcox sentiu-se divertido ao verificar que aparentemente Rachel considerava impossível que alguém a considerasse suspeita na morte de Martha.

 

Esteve tentado a fazer-lhe notar isso e a dizer:

 

Rachel, tu és uma mulher muito forte. Tens raiva dentro de ti, e essa raiva está sempre à espera de ser libertada. Antipatizas instintivamente com jovens bonitas de cabelo louro comprido, e não preciso de dizer-te porquê.

 

Depois de vinte e sete anos ela ainda o atormentava de vez em quando por causa daquele romance com Helene. Rachel tinha razão quando dizia que na altura só ela fora responsável pela salvação da carreira académica dele. Quando os boatos haviam começado a circular pelo complexo universitário, ele podia ter perdido o cargo. Rachel dera um raspanete ao professor que dera início ao rumor, e mentira para encobrir o marido quando outra pessoa afirmava tê-lo visto num hotel com Helene.

 

Ele gostara da sua carreira académica. Continuava a editar com regularidade artigos nos jornais académicos e tinha o respeito do mundo académico.

 

Ainda bem que nem Rachel nem mais ninguém do Colégio Enoch sabiam o motivo por que ele se aposentara prematuramente da direcção.

 

Clayton empurrou a cadeira para trás e pôs-se de pé.

 

Acho que o serviço fúnebre vai ser bastante concorrido disse. Sugiro que saiamos às dez e meia para ver se conseguimos lugares sentados.

 

Pensei que havíamos combinado isso ontem à noite.

 

Talvez sim. Virou-se para fugir para o escritório, mas foi detido por uma pergunta dela.

 

Onde é que foste ontem à noite? Ele virou-se para ela lentamente.

 

Depois de termos assistido ao noticiário, tentei trabalhar de novo no meu romance, mas estava com dores de cabeça. Fui dar um passeio, e sei que vais ficar contente por saber que isso resultou. Regressei a casa sentindo-me muito melhor.

 

Parece que tens sempre dores de cabeça a horas esquisitas, não é, Clayton? observou Rachel ao abrir a sua cópia do The New York Times.

 

Will Stafford estava determinado quando, ao acordar, decidiu comer papas de aveia ao pequeno-almoço em vez dos tradicionais ovos com presunto, ou das salsichas com waffles.

 

”Porque é que guardo aquelas coisas no frigorífico?”, perguntou a si próprio uma hora mais tarde, depois de ter treinado na bicicleta e na passadeira, quando se encontrava de fato de treino na cozinha a preparar ovos mexidos e salsichas.

 

Leu o New York Post enquanto comia. Os jornalistas tinham consultado um parapsicólogo sobre a possibilidade de um assassino em série de finais do século XIX ter reencarnado.

 

O parapsicólogo disse que não acreditava que alguém pudesse regressar exactamente com a mesma personalidade fosse ela criminosa ou não. Às vezes as características físicas eram transmitidas. Às vezes um talento inerente, quase místico, chegava com a nova pessoa. Mozart, por exemplo, fora um génio musical aos três anos de idade. Quase de certeza que a bagagem emocional de outras encarnações podia ser a razão por que algumas pessoas tinham de lidar com problemas ou obsessões emocionais aparentemente inexplicáveis.

 

Outro artigo levantava a possibilidade de o assassínio de Madeline Shapley em 1891 poder ter sido obra de Jack, o Estripador. A época era coincidente. Ele nunca fora apanhado, mas os seus crimes brutais haviam parado subitamente em Inglaterra, e sempre houvera a teoria de que ele emigrara para Nova Iorque.

 

Um terceiro artigo recordava aos leitores que embora outras duas jovens tivessem desaparecido de Spring Lake no final da década de 1890, não havia provas de que tivessem sido assassinadas.

 

Abanando a cabeça, Will levantou-se e, por uma questão de hábito, levou os pratos para o lava-louça e começou a arrumar a cozinha. Abriu o frigorífico para verificar se ainda tinha uma boa reserva de queijo.

 

”Esta tarde, quando o Duggan os juntar a todos, o ambiente irá ficar carregado”, pensou, mas ele iria servir queijo e bolachas de água e sal e oferecer a toda a gente um copo de vinho ou um café.

 

Interrogou-se se deveria convidar Emily Graham para jantar. Claro, iria acompanhá-la à igreja e a casa dos Lawrence para o almoço, mas apercebeu-se de que gostaria muito de estar sozinho com ela.

 

Emily era uma mulher muito interessante e muito bonita.

 

Talvez se oferecesse para cozinhar ali o jantar. ”Assim exibia-me”, pensou com um sorriso. Na quinta-feira, ao almoço, Natalie dissera na brincadeira que as pessoas dali imploravam ser convidadas para a sua mesa.

 

”Sou um excelente cozinheiro”, admitiu ele. ”Não, um excelente chefe”

 

Foi até à sala para se certificar de que não havia nada desarrumado. Na parede que dava para o alpendre havia uma fotografia da casa como ela era quando a comprara, com as telhas de madeira partidas, o alpendre torto, a tinta das gelosias a pelar. O interior estivera igualmente mau, se não mesmo pior.

 

Contratara um empreiteiro para o trabalho estrutural. O resto fora obra sua. Levara anos, mas fora um trabalho absolutamente satisfatório.

 

Era uma das casas mais pequenas, uma que havia sido denominada de ”pequena casa despretensiosa para todo o ano”. Divertia-o constatar que as mansões pretensiosas haviam desaparecido. Casas como aquela tinham uma procura constante no mercado imobiliário.

 

O telefone tocou. Will atendeu alegremente, mas, quando se apercebeu de quem estava do outro lado da linha, apertou o auscultador com mais força.

 

Estou bem, pai disse. E tu?

 

Será que ele nunca iria perceber?, perguntou Will de si para si ao ouvir a voz entrecortada do pai a dizer que estava a recuperar bastante bem da última sessão de quimioterapia e que ansiava por ver o filho em breve.

 

Já passou muito tempo, Will disse o pai. Demasiado.

 

Will cedera finalmente e jantara com o pai em Princeton no ano anterior. O pai tentara desculpar-se pelos anos em que não lhe ligara uma única vez.

 

Não estive disponível quando precisaste de mim, filho disse. Tão preocupado com o trabalho, tão atarefado; sabes como é.

 

Estou muito ocupado, pai disse Will agora.

 

Oh, que pena. Então talvez daqui a um mês, não? Gostava de ver a tua casa. Costumávamos divertir-nos bastante em Spring Lake, quando a tua mãe, tu e eu ficávamos no Essex and Sussex.

 

Tenho de ir andando, pai. Adeus.

 

Como sempre depois de um telefonema do pai, a dor intensa do passado assolou Will. Aguardou calmamente, tentando fazê-la desaparecer, depois subiu lentamente as escadas, a fim de se ir vestir para o serviço fúnebre de Martha Lawrence.

 

Quando Robert Frieze regressou a casa depois da corrida matinal, encontrou a mulher já na cozinha, a comer o habitual pequeno-almoço frugal: sumo, café e uma torrada sem manteiga.

 

Levantaste-te cedo comentou.

 

Ouvi-te pela casa e já não consegui voltar a adormecer. A sério, Bob, tiveste uns quantos pesadelos a noite passada. Fui obrigada a acordar-te. Lembras-te?

 

Lembrar. A palavra que começava a assustá-lo. Voltara a acontecer o mesmo nos últimos tempos. Aqueles períodos em branco em que ele não fora capaz de se recordar do que se passara durante algumas horas, ou até durante uma tarde. Como na noite passada. Saíra do restaurante rumo a casa por volta das onze e meia. Só lá chegou à uma. Onde teria estado durante a hora a mais?

 

Na semana anterior reparara que usava uma peça de roupa que não se lembrava de ter vestido.

 

Aquelas ocorrências perturbadoras tinham começado quando ele era adolescente. Primeiro tornara-se sonâmbulo, depois tivera períodos em que não se lembrava de determinados intervalos de tempo nem era capaz de explicar por onde andara.

 

Nunca contara nada a ninguém. Não queria que as pessoas pensassem que era maluco. Os pais tinham estado sempre envolvidos neles próprios e nas suas carreiras. Exigiam que tivesse bom aspecto, bons modos e boas notas na escola. De resto, estavam-se nas tintas para o que fazia.

 

Sofrera sempre de insónias. Três horas de sono eram suficientes. Às vezes ficava sentado a ler até altas horas da noite, outras deitava-se, depois tornava a levantar-se e ia até à biblioteca. Se tivesse sorte dormitava em cima de um livro.

 

Os episódios tinham abrandado durante a faculdade, depois parado completamente durante vários anos. Mas, durante os últimos cinco haviam voltado a surgir, e agora eram cada vez mais frequentes.

 

Ele sabia qual era a causa: o restaurante o erro mais colossal da sua vida. Sugava imenso dinheiro. Era o stresse que o fazia ter de novo aqueles períodos em branco.

 

Tinha de ser isso, decidiu ele.

 

Nem sequer contara a Natalie que pusera o restaurante à venda havia três meses. Sabia que ela lhe teria perguntado todos os dias se alguém se mostrara interessado. E se não, por que motivo? E depois voltaria a repetir que fora uma loucura tê-lo comprado.

 

O agente imobiliário ligara na tarde da véspera. Havia um certo interesse da parte de Dom Bonetti, que fora dono do Fin and Claw, um hotel de quatro estrelas na parte norte de Nova Jérsia. Bonetti vendera-o, mudara-se para Bay Head e agora tinha demasiado tempo livre. Na verdade, era mais do que um certo interesse. Ele já fizera uma oferta.

 

”Vou ficar bem assim que o vender”, prometeu Frieze a si próprio.

 

Queres deitar o café na chávena ou ficar aí com ela na mão, Bobby? O tom de Natalie era divertido.

 

Acho que quero deitá-lo.

 

Sabia que Natalie começava a ficar farta do seu comportamento, mas a maior parte das vezes não se queixava. Estava linda, mesmo com o cabelo despenteado pelos ombros, sem maquilhagem e com aquele velho roupão de felpa de lã que ele detestava.

 

Ele inclinou-se e deu-lhe um beijo na cabeça.

 

Um gesto de afecto espontâneo. Já há muito que não via um disse ela.

 

Eu sei. Só que tenho andado sob uma grande pressão. Decidiu falar-lhe da possível oferta. Pus o Seasoner à venda. Talvez tenhamos comprador.

 

Fantástico, Bobby! Levantou-se de um salto e abraçou-o. Vais recuperar o dinheiro?

 

A maior parte, mesmo que tenha de regatear um pouco o preço. Ao acabar de falar, Bob Frieze apercebeu-se que estava a mentir.

 

Então promete-me que assim que o negócio estiver concluído vendes esta casa e mudamo-nos para Manhattan.

 

Prometo. ”Também quero sair daqui”, pensou. ”Tenho de sair daqui.”

 

Acho que devíamos sair cedo para o serviço fúnebre. Não te esqueceste, pois não?

 

Era difícil.

 

”E depois disso, voltamos à casa dos Lawrence, onde não voltei a pôr os pés desde aquela noite em que passei tanto tempo a falar com a Martha. Em seguida vamos a casa do Stafford ser interrogados pelo Duggan sobre o que fizemos na manhã a seguir à festa.”

 

Temia as duas coisas. O problema era que se lembrava da festa, mas não do que fizera a seguir. Na manhã seguinte tivera um dos seus episódios. Só saíra dele quando dera por si a tomar duche na casa de banho. Tinha as mãos sujas e nas calças de ganga e na T-shirt havia manchas de terra.

 

Fizera tenções de arranjar o jardim nessa manhã. Era um dos seus passatempos, um que sempre o acalmava.

 

”Tenho a certeza de que naquela manhã estive entretido no jardim”, disse a si próprio enquanto subia para se ir vestir para o serviço fúnebre de Martha Lawrence, ”e é isso que vou dizer ao Duggan.”

 

Como prometera, no sábado de manhã Will Stafford chegou às onze menos vinte em ponto para ir buscar Emily. Ela aguardava-o no rés-do-chão, a mala e as luvas prontas na mesa do vestíbulo.

 

Apercebeu-se de que fora uma sorte ter levado para Spring Lake o novo fato com um padrão preto e branco, uma vez que a maior parte das suas roupas era bastante informal.

 

Will parecia partilhar da sua opinião sobre a roupa. Durante a escritura na passada quarta-feira, ele envergara um blusão; hoje, um fato azul-escuro, camisa branca e uma gravata azul haviam sido a sua escolha para a ocasião.

 

Está muito bonita comentou. Só gostava que estivéssemos assim vestidos para ir a outro tipo de reunião.

 

Também eu.

 

Ele indicou com um gesto a parte de trás da casa.

 

Estou a ver que o empreiteiro já começou a encher o buraco. Já se convenceram de que não há mais nada para desenterrar?

 

Sim, já.

 

Óptimo. É melhor irmos andando. Quando Emily pegou na mala e ligou o alarme, Will Stafford sorriu. Por que motivo acho que estou sempre a apressá-la? No outro dia, ao pequeno-almoço, foi porque tínhamos de vir ver a casa pela última vez. Se soubesse o que ia acontecer, será que teria desistido da compra?

 

Sabe, nem sequer pensei nisso.

 

Ainda bem.

 

Pôs uma mão sob o cotovelo dela enquanto desciam os degraus e Emily apercebeu-se de que o sentia emocional e fisicamente seguro por tê-la ali.

 

”Foram uns dias difíceis”, pensou. ”Talvez tenha sofrido mais do que julguei.”

 

”Mas não é só isso”, decidiu, enquanto Will lhe abria a porta do carro e ela se sentava. ”De certa forma, acho que este serviço fúnebre não é só para a Martha Lawrence. É também para a Madeline.”

 

Quando Will começou a conduzir, ela contou-lhe o que sentia e acrescentou:

 

Tenho estado a pensar que ir ao serviço fúnebre de uma rapariga que não conheci é um pouco de voyeurismo. Fiquei um pouco perturbada com isso, mas agora mudei de opinião.

 

Mudou como?

 

Acredito na vida eterna, na existência do Céu. Gostaria de pensar que aquelas duas raparigas... que devem ter-se sentido tão assustadas nos últimos momentos das suas vidas; que foram assassinadas com um intervalo de cem anos e sepultadas no meu jardim... continuam juntas. Quero acreditar que se encontram agora num local de descanso, luz e paz, como diz a Bíblia.

 

Onde acha que está agora o assassino? perguntou Will. E qual irá ser o destino dele?

 

Perplexa, Emily virou-se e olhou para ele.

 

Will, com certeza quer dizer assassinos. Duas pessoas diferentes.

 

Ele soltou uma gargalhada e olhou para ela.

 

Deus do Céu, Emily, já começo a parecer aqueles malucos dos tablóides. Claro que queria dizer assassinos. Dois. Plural. Um morto há muito. O outro deve andar por aí.

 

Estiveram em silêncio durante os poucos minutos que levaram a contornar o lago e a chegar à igreja de Santa Catarina. Era um belo edifício em estilo românico com uma cúpula. Emily sabia que fora construído em 1901 por um homem abastado em homenagem à filha de dezassete anos, falecida. Pareceu-lhe particularmente adequada para aquele serviço fúnebre.

 

Os carros chegavam a um ritmo regular e estacionavam em volta da igreja.

 

Será que o assassino da Martha está num daqueles carros, Will? perguntou Emily.

 

Se ele for de Spring Lake, como a Polícia parece acreditar, duvido que conseguisse manter-se afastado. Daria muito nas vistas não aparecer e não ser visto a sofrer com a família.

 

”A sofrer com a família”, pensou Emily. ”Gostava de saber qual dos amigos da Madeline, com sangue nas mãos, sofreu com a nossa família há cento e dez anos.”

 

Às onze horas da manhã de sábado Joan Hodges preparava-se para ir ao cabeleireiro alourar o cabelo quando o telefone tocou. Era Esther, a irmã da Dr.a Madden, a ligar do Connecticut.

 

A sua voz estava alterada.

 

Joan, a Lillian ia sair este fim-de-semana?

 

Não.

 

Tentei ligar-lhe ontem à noite pelas onze e meia. Como ela não atendeu, pensei que tivesse saído com amigos depois da aula, mas liguei duas vezes esta manhã e ainda não a apanhei.

 

Às vezes ela desliga o telefone. Com os jornalistas todos a chateá-la por causa da investigação deste homicídio, deve ter sido isso que ela fez. Vou passar lá por casa para confirmar que ela está bem. Joan tentou soar confiante, apesar do receio crescente.

 

Não queria obrigá-la a sair de casa.

 

Ora essa. São só quinze minutos de carro.

 

Tendo já esquecido a hora marcada no cabeleireiro, Joan conduziu o mais depressa que ousou. O aperto no estômago e o nó na garganta revelavam o pânico que ela tentava reprimir. Havia qualquer coisa errada. Ela sabia.

 

A casa da Dr.a Madden ficava num lote da Rua Laurel, a três quarteirões do oceano. ”Está um dia tão bonito”, pensou Joan ao estacionar. ”Por favor, meu Deus, faz com que ela tenha ido dar um passeio. Ou que se tenha esquecido de levantar o som do telefone.”

 

Quando Joan se aproximou da casa, reparou que os estores do quarto estavam baixos e que o jornal se encontrava no chão do alpendre. Com as mãos a tremer, procurou a chave da porta do consultório. Sabia que se a Dr.a Madden tivesse trancado a porta de ligação entre o consultório e o resto da casa, havia uma chave de reserva escondida na secretária.

 

Entrou no pequeno vestíbulo. Por causa do sol intenso, não se apercebeu de que as luzes do consultório estavam acesas. Com as mãos encharcadas de suor, a respiração ofegante, entrou na sua sala. As gavetas do arquivo encontravam-se abertas. Alguns dossiês tinham sido atirados para o chão e havia folhas espalhadas por todo o lado.

 

Com as pernas a resistir à tentação de fugir, Joan entrou no consultório de Lillian Madden.

 

O grito que surgiu dentro de si era apenas um gemido agonizante quando lhe chegou aos lábios. O corpo da Dr.a Madden encontrava-se debruçado sobre a secretária, a cabeça virada para um lado, a mão ainda fechada, como se tivesse agarrado qualquer coisa. Tinha os olhos abertos e salientes, os lábios entreabertos, como se ainda tentasse respirar.

 

Em volta do seu pescoço havia uma corda bastante apertada.

 

Joan não se recordou de ter saído a correr do consultório, de ter descido os degraus do alpendre e atravessado o relvado até ao passeio sempre aos gritos. Quando reparou novamente no que lhe estava a acontecer, viu-se rodeada pelos vizinhos de Lillian Madden, que haviam saído das suas casas atraídos pelos gritos histéricos dela.

 

Quando os seus joelhos cederam e a escuridão bem-vinda bloqueou a imagem grotesca da amiga e patroa assassinada, um pensamento surgiu na mente de Joan: ”A doutora Madden acreditava que as pessoas que têm uma morte violenta voltam rapidamente numa nova encarnação. Se isso for verdade, quanto tempo levará ela a voltar?”

 

”Eles estão a ser magníficos”, pensou Emily. Ela e Will Stafford tinham acabado de chegar a casa dos Lawrence, onde os anfitriões se haviam alinhado informalmente na espaçosa sala de estar para receber as pessoas. Os avós de Martha, os Lawrence mais velhos, octogenários de cabelo branco e costas direitas; os pais de Martha, George e Amanda Lawrence, um casal perto dos sessenta; a outra filha, Christine, uma versão mais jovem da mãe, e o marido de Christine estavam lado a lado a cumprimentar os convidados e a aceitar as condolências.

 

A dignidade e a serenidade com que se haviam comportado durante o serviço fúnebre provocara uma enorme admiração em Emily.

 

Ela e Will haviam-se sentado num banco perpendicular àquele que a família ocupara, donde puderam observá-los claramente. Embora tivessem lágrimas nos olhos, estiveram muito compostos e atentos durante a missa, Christine sentada ao lado dos pais com a filha bebé, que tinha o nome da tia falecida, nos braços.

 

Quando uma das amigas de Martha havia rompido num pranto ao fazer o elogio fúnebre, os olhos de Emily encheram-se de lágrimas. Nesse momento viu Amanda Lawrence inclinar-se e tirar o bebé dos braços de Christine. Segurara a neta com força, a cabecinha pequena aninhada sob o seu queixo.

 

”Beijei-a e ao retribuir ao beijo ela não podia saber que o meu beijo era dado à irmã dela, aninhada sob a neve cada vez mais alta.”

 

Os versos comoventes do poema de James Russel Lowell surgiram na mente de Emily quando vira Amanda Lawrence consolar-se com a neta recém-nascida ao mesmo tempo que era feita a elegia da filha assassinada.

 

Will apresentou-a. Perceberam de imediato quem ela era.

 

Isto aconteceu à sua família há várias gerações disse o pai de Martha. Só rezamos para que quem tirou a vida à nossa filha seja presente a tribunal.

 

Ignorando aquele disparate da reencarnação, acha que a morte da Martha foi uma tentativa de copiar o que aconteceu à Madeline Shapley? perguntou Amanda Lawrence.

 

Acho, sim respondeu Emily. E acredito que o actual assassino possa ter encontrado uma confissão escrita ou uma declaração. Ando a investigar uns livros antigos, para tentar formar uma imagem da Madeline e das amigas. Procuro referências a ela ou impressões que outras pessoas tinham dela na altura.

 

George e Amanda Lawrence trocaram um olhar, depois ele virou-se para os pais.

 

Mãe, não tens uns álbuns de fotografias e outras recordações do tempo da tua avó?

 

Oh, sim, querido. Está tudo guardado no sótão, num armário. A minha avó materna, Julia Gordon, era muito meticulosa. Punha legendas em todas as fotografias, com a data, o lugar, o acontecimento e os nomes das pessoas, e teve vários diários. A Mrs. Lawrence mais velha olhou para Emily com uma expressão inquiridora.

 

O nome de Julia Gordon surgira várias vezes no livro Reflexões sobre a Infância de Uma Rapariga. Havia sido contemporânea de Madeline.

 

Importava-se de me deixar ver o conteúdo desse armário? perguntou Emily. Talvez ache rebuscado, mas acredito que possamos aprender algo com o passado que nos ajude agora.

 

Antes que a mãe pudesse responder, George Lawrence respondeu sem hesitação num tom firme.

 

Faremos tudo o que pudermos para ajudar a encontrar o assassino da nossa filha.

 

Emily. Will Stafford apertou-lhe o braço, indicando que havia mais pessoas atrás deles para falar com os Lawrence.

 

Não posso tomar mais do vosso tempo apressou-se Emily a dizer. Posso telefonar-vos amanhã?

 

O Will tem o número. Ele há-de dar-lho.

 

A mesa do bufete encontrava-se na sala de jantar. Haviam sido colocadas mesas e cadeiras no alpendre das traseiras, que tinha o comprimento da casa.

 

De pratos na mão, dirigiram-se ao alpendre.

 

Aqui, Will chamou uma voz. Guardámos-lhe um lugar.

 

Aquela é a Natalie Frieze esclareceu Will enquanto atravessavam a sala.

 

Junte-se aos outros suspeitos disse alegremente Natalie quando eles chegaram à mesa. Estamos a tentar rever as nossas versões antes do interrogatório do Duggan.

 

Emily fez uma careta ao ouvir o comentário, concordando com a mulher sisuda sentada em frente a Natalie, que retorquiu:

 

Não se devia brincar com certas coisas, Natalie. A reprimenda pareceu não abalar Natalie Frieze.

 

Estou apenas a tentar animar o ambiente, Rachel ripostou ela. Mais nada. Não quis ofender ninguém.

 

O Dr. Wilcox encontrava-se sentado à mesa e cumprimentou-a. A mulher, Rachel, foi-lhe apresentada, bem como Bob e Natalie Frieze. ”Um romance curioso”, pensou Emily. ”Quanto tempo é que a rapariga ficará por cá? Aposto que o casamento não irá durar muito. Por outro lado, nunca se sabe”, pensou. ”Também pensei que o meu iria durar muito!”

 

Os livros foram-lhe de alguma utilidade? perguntou o Dr. Wilcox.

 

De muita.

 

Ouvi dizer que era advogada criminal, Emily disse Natalie Frieze. Tenho estado a pensar... se alguém nesta sala for acusado do homicídio da Martha, a Emily consideraria a hipótese de defender essa pessoa?

 

”Ela gosta de levantar ondas”, pensou Emily, reparando que a atmosfera na mesa se alterara de imediato. ”Alguém não achou piada à pergunta”, pensou.

 

Tentou responder de forma ligeira.

 

Bom, eu pertenço à comarca de Nova Jérsia, mas uma vez que tenho a certeza de que isso não irá acontecer, não me parece que tenha de arranjar trabalho aqui.

 

Quando iam a sair, Will apresentou-a a várias pessoas, a maior parte veraneantes ou residentes permanentes. Emily sentiu-se de imediato à vontade com eles como se, tal como muitos dos outros, a sua família tivesse casa em Spring Lake há várias gerações. A casa dos Lawrence datava de 1880. Teriam os Shapley estado como convidados naquela casa?

 

Conversaram alguns minutos com John e Carolyn Taylor, grandes amigos de Will, que perguntaram se ela jogava ténis.

 

Emily recordou-se de estar ao lado de Gary, a aceitar a taça dos pares no clube de Albany.

 

Sim, jogo.

 

Somos membros do Clube de Natação e Ténis disse Carolyn Taylor. Quando reabrir em Maio, vá almoçar connosco e leve a raquete.

 

Gostaria muito.

 

Durante a conversa ficara a saber que Carolyn tinha um infantário em Tinton Falis, uma localidade ali perto, e que John era cirurgião no Hospital North Jersey Shore. Apercebeu-se de imediato que gostaria de os conhecer melhor.

 

Quando estavam prestes a partir, Carolyn Taylor hesitou e disse:

 

Espero que perceba que toda a gente nesta sala... ou melhor, toda a gente desta comunidade... lamenta o facto de você ter tido tantos problemas nos últimos dias. Só queria dizer-lhe isto em nome de todos. Depois acrescentou: Somos a quarta geração de Spring Lake. Aliás, uma antiga prima minha, a Phyllis Gates, escreveu um livro sobre a vida aqui nas décadas de mil oitocentos e oitenta e noventa. Era muito amiga da Madeline Shapley.

 

Emily olhou para ela.

 

Li o livro de fio a pavio ontem à noite.

 

A Phyllis morreu em meados dos anos quarenta, quando a minha mãe era adolescente. Apesar da diferença de idades, gostavam muito uma da outra. A Phyllis costumava levar a minha mãe nas viagens.

 

Ela chegou a falar da Madeline à sua mãe?

 

Sim. Aliás, falei esta manhã ao telefone com a minha mãe. Claro que temos comentado tudo o que aconteceu nos últimos dias. Disse-me que a Phyllis não quis escrever isso no livro, mas sempre teve a certeza de que foi o Douglas Cárter quem matou a Madeline. Ele não era o noivo dela, ou será que estou a fazer confusão?

 

Tommy Duggan assistiu ao serviço fúnebre com Pete Walsh. Durante todo o tempo tivera a certeza de que o assassino de Martha estava algures na igreja, embora a sua expressão permanecesse composta e adequadamente grave quando se juntou às orações e elevou a voz no último hino.

 

”Viveremos na Cidade de Deus

 

Onde as nossas lágrimas serão transformadas em dança...

”Quando te encontrar, seco-te as lágrimas de crocodilo”, jurou Tommy, concentrado no assassino.

 

Depois da missa tencionara ir até ao gabinete e ficar ali até serem horas de se encontrar com o grupo em casa de Will Stafford, mas quando ele e Pete regressaram ao carro e verificaram as mensagens ficaram a saber da morte da Dr.a Lillian Madden.

 

Quinze minutos mais tarde Duggan estava na cena do crime, com Pete atrás. O corpo ainda ali se encontrava, e a equipa forense trabalhava activamente com a Polícia a guardar o local.

 

Calculam que a morte ocorreu entre as dez e as onze da noite de ontem disse Frank Willette, o chefe da Polícia de Belmar. Não foi um assalto que deu para o torto, isso lhe garanto. Há jóias e dinheiro no quarto, por isso quem fez isto estava apenas interessado em encontrar alguma coisa aqui no gabinete dela.

 

A doutora Madden tinha medicamentos guardados aqui?

 

Não. Era psicóloga, não médica. Claro que o criminoso podia não saber disso, mas... Encolheu os ombros. Foi a Joan Hodges, a secretária, quem a encontrou continuou Willette. Correu lá para fora e desmaiou na rua. Está a receber tratamento ali. Acenou na direcção da porta aberta que conduzia para a zona de habitação do outro lado do vestíbulo. Porque não fala com ela?

 

É o que tenciono fazer.

 

Joan Hodges encontrava-se reclinada sobre almofadas na cama do quarto de hóspedes, com um paramédico da equipa da ambulância ao lado. Um agente de Belmar aos pés da cama estava a guardar o bloco de apontamentos.

 

Não quero ir para o hospital dizia ela quando Duggan e Walsh entraram no quarto. Estou bem. Foi só o choque de a ter encontrado... Calou-se, e as lágrimas começaram a correr-lhe pelo rosto. É tão horrível murmurou. Porque haveria alguém de querer fazer-lhe aquilo?

 

Tommy Duggan olhou para o agente de Belmar; já o conhecia.

 

Falei com Ms. Hodges disse o agente. Calculo que também tenha algumas perguntas para lhe fazer.

 

Pois tenho. Tommy pegou numa cadeira, sentou-se junto à cama e apresentou-se.

 

Num tom calmo e compreensivo, apresentou as condolências, expressou o seu choque e começou a interrogar Joan.

 

Percebeu de imediato que Joan Hodges tinha uma opinião muito clara sobre a razão do homicídio de Lillian Madden.

 

Com a voz cada vez mais firme à medida que a ira se misturava à dor, Joan disse:

 

Anda aí um assassino em série, e começo a pensar que ele é a reencarnação daquele que viveu na década de mil oitocentos e noventa. Os jornalistas fartaram-se de ligar à doutora Madden na quinta-feira e ontem a fazerem-lhe perguntas sobre isso. Todos queriam saber a opinião que ela tinha dele.

 

Quer dizer que ela pode tê-lo conhecido? perguntou Tommy Duggan.

 

Não sei bem o que quero dizer. Talvez ela pudesse ter-lhes dito algo que ajudasse a Polícia a encontrá-lo. Quando a doutora Madden foi dar a aula ontem à noite tive um mau pressentimento. Disse-lhe que não deveria ir. Talvez alguém a tenha seguido até casa.

 

”A Hodges tem razão”, pensou Tommy. ”O assassino pode muito bem ter assistido à aula.”

 

Joan, você viu os dossiês espalhados pelo chão do consultório. Parece que o assassino andava à procura de alguma coisa, talvez do seu próprio dossiê. Lembra-se de algum dos doentes da doutora a ter ameaçado? Ou será algum deles suficientemente psicótico para se ter virado contra ela por algum motivo?

 

Joan Hodges afastou o cabelo da testa. ”Eu ia alourá-lo”, pensou. Desejou com todas as forças que o tempo pudesse voltar para trás, que o dia pudesse correr conforme o planeado, que naquele momento estivesse a comprar o vestido de que iria precisar para o segundo casamento da sua melhor amiga.

 

”A doutora Madden”, pensou. ”Os doentes adoravam-na. Era tão bondosa, tão compreensiva. Oh, claro, houve alguns que deixaram de vir, mas isso acontece a qualquer psicólogo. Ela costumava dizer que algumas pessoas só querem reforçar o seu comportamento pouco apropriado e não aprender a mudá-lo.

Não conheço um único doente que quisesse fazer mal à doutora Madden disse ela a Tom. É aquele assassino em série. Sei que é. Tem medo que ela tivesse descoberto alguma coisa sobre ele.

 

”Isso faz sentido, se ele tivesse sido doente dela”, pensou Tom.

 

Joan, para além dos dossiês, onde mais poderão estar o nome dos doentes?

 

No meu livro de marcações e no computador. Tommy Duggan levantou-se.

 

Joan, vamos encontrar este tipo. Prometo. O seu trabalho é começar a concentrar-se nos doentes. Se se lembrar de alguma coisa esquisita a respeito de um deles, por muito insignificante que lhe pareça, ligue-me imediatamente, está bem?

 

Colocou o seu cartão-de-visita na mesa-de-cabeceira. Quando ele e Pete regressaram ao consultório, o saco com os restos mortais de Lillian Madden estava a ser levado dali.

 

Acabámos disse o chefe da equipa forense. Duvido que tenhamos alguma coisa útil para vocês. Acho que este tipo teve a esperteza de usar luvas.

 

Deve ter encontrado aquilo que procurava nos dossiês disse o chefe Willette. Os arquivos com os dossiês dos doentes estavam no consultório, e a chave também. Ou o tipo a encontrou na gaveta de cima da doutora Madden, ou ela estava na fechadura.

 

Sabe se ela costumava trabalhar à noite? perguntou Pete Walsh.

 

A doutora Madden deu ontem uma palestra na faculdade. Parece que regressou da faculdade e veio directamente para aqui. O casaco e a pasta dela estão na recepção. O que seria assim tão importante? Ela estava a trabalhar na secretária quando foi morta. Provavelmente não ouviu o intruso.

 

Como é que ele entrou?

 

Não há nada arrombado. Talvez por uma janela destrancada? Encontrámos três ou quatro. O alarme estava desligado.

 

Ele era doente dela afirmou Tommy. Talvez tivesse falado de mais durante a hipnose e estivesse preocupado. Se não, por que motivo iria aos dossiês? A Joan Hodges disse que se ele fosse um doente o seu nome apareceria no livro de marcações.

 

Ele tentou destruir os computadores disse Willette. Tommy assentiu. Não ficara surpreendido.

 

Podemos ver o que é que eles têm, a não ser que os discos rígidos estejam partidos.

 

Vou ajudá-los. Joan Hodges, ainda muito pálida, mas determinada, seguira-os.

 

Uma hora mais tarde, Tommy Duggan, frustradíssimo, tinha a certeza apenas de uma coisa: que o assassino de Lillian Madden fora seu doente algures durante os últimos cinco anos. Todos os livros de marcações que abarcavam esse período haviam desaparecido, tanto as cópias da Dr.a Madden como as de Joan Hodges.

 

Joan parecia prestes a desfalecer.

 

Temos de ir andando, e você devia ir para casa disse Tommy. O Pete leva-a no seu carro. Começava a sentir-se inquieto. Há quanto tempo trabalhava com a doutora Madden, Joan?

 

Ia fazer seis anos para a semana.

 

A doutora Madden falava-lhe dos doentes?

 

Nunca.

 

Enquanto atravessava Belmar, seguindo o carro de Joan até casa dela em Wall Township, Tommy perguntou de si para si se o assassino da Dr.a Madden poderia começar a achar que a secretária era também sua confidente.

 

”Vou dizer aos tipos daqui para ficarem de olho na casa dela”, decidiu. Apertou o volante com mais força ao sentir vontade de esmurrar qualquer coisa.

 

Eu já estive com o assassino disse em voz alta, cuspindo as palavras. Senti a presença dele. Só não sei quem raio é ele.

 

Marty Browski, de Albany, Nova Iorque, não conhecia Tommy Duggan, do município de Monmouth, em Nova Jérsia, mas eram almas gémeas, detectives até à medula, com a tenacidade de buldogues quando se predispunham a resolver um crime.

 

Havia ainda outra coisa que os unia. Quando tinham aquela sensação quase mística de que alguma coisa estava errada num crime um crime que fora aparentemente solucionado a contento não descansavam até terem voltado a examinar todos os seus aspectos à procura de alguma injustiça.

 

Desde o telefonema de Emily Graham sobre a fotografia que fora metida debaixo da sua porta em Spring Lake, Marty Browski andava muito perturbado.

 

Estivera convencido de que Ned Koehler era o perseguidor e que havia sido apanhado mesmo a tempo, antes de ter a oportunidade de matar Emily. Mas agora já não tinha a certeza.

 

No sábado à tarde, Marty falou do assunto com a mulher, Janey, enquanto levavam Ranger, o labrador de ambos, a dar um longo passeio num parque perto da casa deles em Troy.

 

Quando prendemos o Koehler, ele encontrava-se à porta da casa da Emily Graham. O tipo disse que só tencionava assustá-la. Disse que não tivera intenção de entrar.

 

E tu acreditaste nele, Marty. Toda a gente acreditou. Ele foi condenado por tê-la perseguido observou Janey.

 

Ele mudou a história ontem, quando falámos. Acrescentou mais umas coisas, que queria que a Emily sentisse o medo que a mãe dele sentiu antes de morrer.

 

Que tipo simpático.

 

A Primavera está a chegar observou Marty, inspirando. Vai ser bom podermos andar de barco. Fez uma careta. Janey, o Ned Koehler diz que chegou a casa e encontrou a mãe morta, com uma faca espetada no peito. Enlouqueceu; pegou nela e levou-a para fora do apartamento enquanto gritava por ajuda. O Joel Lake estivera lá, assaltara-o. É um milagre a Emily Graham ter conseguido ilibá-lo da acusação de homicídio.

 

Se bem me lembro, os jurados acreditaram na irmã da Ruth Koehler, quando ela testemunhou que falara com a Ruth depois de o Joel Lake ter sido visto a sair do prédio.

 

Não julguei que eles acreditassem nisso. Achei que a velhota era tão pouco fiável como o boletim meteorológico.

 

Janey Browski sorriu. Ela e Marty conheciam-se desde a infância e haviam casado na semana a seguir a terem acabado o liceu. Aos quarenta e nove anos, tinha três filhos adultos e quatro netos e ninguém acreditaria nisso ao ver o seu aspecto jovem. Agora estava no segundo ano do Colégio Sienna, a tentar fazer o bacharelato, o mesmo que Marty fizera quando frequentara o ensino nocturno durante os primeiros cinco anos de casamento.

 

Sabia que quando Marty comparava um depoimento ao boletim meteorológico era porque não acreditava nada nele.

 

Estás a dizer que a Ruth Koehler pode ter surpreendido o Joel Lake quando ele lhe estava a assaltar a casa e que ele foi o assassino?

 

Tive a certeza de que era. Apanhámo-lo a poucos quarteirões dali. Estavam em seu poder coisas que tirara do apartamento. O facto de não estar sujo de sangue não tinha importância, porque a faca fora lançada na direcção da Ruth Koehler e apanhara-a no peito.

 

Impressões digitais?

 

O Joel Lake usou luvas durante o assalto. E o Ned Koehler estragou a cena do crime ao tirar a faca do corpo da mãe e ao levá-la para fora do apartamento. Todos acreditámos que ele a encontrara e que ficara histérico.

 

Janey Browski dobrou-se, a fim de apanhar um pau para atirar a Ranger, que queria que os donos brincassem com ele.

 

Janey atirou o pau. Este voou alto e para bem longe de Ranger, que correu atrás dele com um latido de satisfação.

 

Os Mets não se importariam que jogasses com eles comentou Marty com admiração.

 

Pois não. Classificaste o Ned Koehler de louco, mas ele era também um filho choroso que perseguiu a advogada que safou o assassino da mãe.

 

Certo.

 

Será que o detective sabichão está prestes a constatar que se precipitou para uma conclusão errada?

 

Roger saltitava na direcção deles com o pau nos dentes. Marty Browski suspirou.

 

Janey, porque é que a tua mãe não te ensinou a respeitar o teu marido? O Ned Koehler é maluco e é mentiroso. Depois de o ter visitado ontem acredito que ele é também um assassino, o assassino da mãe. E...

 

Que mais? perguntou Janey.

 

Também acho que ele pode não ter sido o tipo que andou atrás da Emily e lhe transformou a vida num inferno. Acho que quem enfiou a fotografia dela debaixo da porta na outra noite foi o verdadeiro perseguidor. Falei com a Polícia de Spring Lake. Pensa nisso. Se alguém daqui a seguiu até Spring Lake, descobriu onde ela estava instalada, até em que quarto se encontrava, depois pôs-se na praia à espera de a apanhar à janela, de lhe tirar uma fotografia, de a revelar e de a meter debaixo da porta dela na noite seguinte enquanto havia um polícia por perto... o que é que isso te diz?

 

Obsessão. Ousadia. Astúcia.

 

Exacto.

 

Então quem a seguiu até aqui não se importou de fazer a viagem até Spring Lake. Se eliminarmos o Ned Koehler, onde é que começamos à procura do assassino?

 

Talvez o Joel Lake? Ela safou-o. O tipo não presta. Recebeu uma sentença leve por furto e já estava em liberdade quando ela começou a ser perseguida. Depois investigava também o Gary White.

 

Ora, vá lá, Marty! A Emily Graham e o Gary White estão divorciados há mais de três anos. Ouvi dizer que ele acabou tudo com a tal Barbara e que já anda outra vez à caça. Não passa de um reles Don Juan.

 

Processou a Emily em cinco milhões de dólares, metade do que ela ganhou quando vendeu as acções da tal empresa na Internet. O que por acaso foi a coisa mais inteligente que ela fez na vida acrescentou Marty. O mercado está muito diferente agora.

 

Haviam chegado ao entroncamento do parque, onde davam sempre meia volta e regressavam a casa. Num gesto instintivo, pegaram na mão um do outro.

 

E a tua próxima paragem vai ser...? perguntou Janey.

 

Dar uma olhadela aos dossiês sobre a morte da Ruth Koehler, partindo do princípio que o Ned pode ser o assassino. E reabrir o caso do perseguidor.

 

Parece razoável.

 

E avisar a Emily Graham acrescentou Marty com ar soturno.

 

Às três horas um total de vinte e cinco pessoas, incluindo os cinco empregados que tinham andado a servir, encontravam-se reunidos na sala de Will Stafford. Cadeiras da sala de jantar haviam remediado a falta de lugares. Pouco à vontade, mas satisfeitos por serem úteis, os empregados correram a ir buscar as cadeiras e colocaram cinco um pouco à parte para si próprios.

 

Tommy Duggan encontrava-se de pé junto à lareira, o ponto fulcral da sala. Observou o grupo, a imagem do corpo da Dr.a Lillian Madden na cabeça. Havia boas possibilidades de o seu assassino se encontrar naquela sala e isso deixou-o excitado e ao mesmo tempo enojado.

 

Porém, tinha uma pista tangível a echarpe encontrada junto ao corpo de Martha Lawrence. Bastava uma pessoa lembrar-se de que alguém usara uma echarpe prateada com contas metálicas para ele ter uma ligação ao assassino.

 

Agradeço o facto de todos terem tido a amabilidade de se nos juntarem começou ele num tom conciliatório. Encontramo-nos aqui porque vocês foram as últimas pessoas a estar com Martha Lawrence. Estiveram na festa que teve lugar em casa dos Lawrence algumas horas antes de ela desaparecer e de, como agora sabemos, ter sido assassinada. Falei individualmente com todos vós durante os últimos quatro anos e meio. A minha esperança é que, juntando-vos, alguma coisa em que tenham reparado nessa noite, e depois esquecido, possa emergir nas vossas mentes. Talvez a Martha tenha comentado que tencionava encontrar-se com alguém nessa noite ou no dia seguinte. Gostava de vos levar para o escritório do Will, um de cada vez, e pedir-vos que contassem as vossas conversas com a Martha na noite da festa, ou qualquer conversa dela com alguém que possam ter ouvido. Fez uma pausa. E em seguida quero rever com cada um de vós onde estiveram na manhã seguinte entre as seis e as nove.

 

O olhar de Tommy percorreu a sala à procura de reacções. Robert Frieze parecia furioso. A pele que cobria as maçãs salientes do seu rosto tornara-se escarlate; os seus lábios estavam comprimidos numa linha fina, furiosa. Dissera ter estado a trabalhar nos seus canteiros naquela manhã. A mulher encontrava-se a dormir. Com as sebes altas em redor da casa, ninguém o vira para poder confirmar o seu álibi. Mr. McGregor no meio das couves. Tommy não sabia por que motivo se lembrava sempre do personagem de Beatrix Potter quando imaginava Robert Frieze no jardim, mas era o que acontecia. A imagem não o largava.

 

Dennis e Isabelle Hughes, os vizinhos dos Lawrence, franziam a testa em concentração. Pareciam ambos ansiosos por ajudar. Ela era muito conversadora. Talvez ver toda a gente ali junta fizesse surgir alguma recordação.

 

Um dos empregados, o chefe, Reed Turner, fora sempre um ponto de interrogação. Com cerca de quarenta anos, bem-parecido, considerava-se um Don Juan. Tommy reparou que ele parecia preocupado. Porquê?

 

O Dr. Wilcox ocultava-se atrás de uma expressão filosófica como sempre que Tommy o interrogara nos últimos quatro anos e meio. Admitira ter ido dar um passeio naquela manhã, mas não na marginal, apenas pela cidade. Talvez. Talvez não?

 

Mrs. Wilcox. Brunhilde. ”Detestava atravessar-me no caminho dela”, pensou Tommy. ”Parece ser dura de roer. A sua expressão faria parar um relógio. Faz-me lembrar Mistress Orbach.” Mrs. Orbach fora sua professora no quinto ano. ”Parecia um machado de guerra”, pensou.

 

Will Stafford. Bem-parecido. Solteiro. As mulheres sentiam-se atraídas por ele. Natalie Frieze dera-lhe um beijo muito caloroso quando chegara. Mesmo à frente do marido. Ter-se-ia Martha Lawrence sentido atraída por ele?

 

Havia outros quatro casais, e cada uma das mulheres lembrava-se perfeitamente de que o marido não saíra de casa naquela manhã. Prefeririam mentir a deixar que os maridos ficassem sob suspeita? Talvez.

 

Tommy imaginava cada um deles a dizer à mulher: ”Só porque saí para dar um passeio durante dez minutos não quer dizer que queira ter a cidade a interrogar-se se matei alguém. Não encontrei ninguém. Vamos dizer que não saí de ao pé de ti toda a manhã.

Mrs. Joyce. Perto dos oitenta anos. Amiga de longa data dos Lawrence mais velhos. Depois da investigação inicial, Tommy nunca mais conseguira falar com ela. Já não vivia ali. Ficava em The Breakers durante cerca de um mês no Verão. Viera propositadamente para o serviço fúnebre.

 

Porque não começo por si, Mister Turner? perguntou Tommy, virando-se depois para Pete Walsh. Tudo pronto?

 

Haviam combinado a forma como iriam conduzir as entrevistas. Não usariam o esquema do polícia bom e do polícia mau, mas Pete iria sentar-se atrás da pessoa que estava a ser entrevistada, com notas das últimas declarações na mão, e interromperia se encontrasse alguma discrepância.

 

Aquela técnica desconcertava sempre quem tentava esconder alguma coisa.

 

Tommy tinha duas perguntas para cada um. A primeira era: ”Lembra-se de alguma das mulheres usar na festa uma echarpe prateada com contas metálicas nas extremidades?” A segunda: ”Já alguma vez foi doente da doutora Lillian Madden ou foi a uma consulta dela?”

 

Quando Tommy começou a atravessar a sala em direcção ao escritório, Robert Frieze deteve-o.

 

Insisto para que me interrogue em primeiro lugar. Tenho um restaurante para gerir e as noites de sábado são muito movimentadas. Creio que lho disse ao telefone no outro dia.

 

Creio que sim. Tommy estava ansioso por dizer que não a Frieze, para lhe dizer: ”Estamos a investigar um homicídio, Mister Frieze. O senhor tem sido a pessoa menos cooperante desta sala. O que tem a esconder?”

 

Em vez disso, respondeu:

 

Terei muito gosto em falar consigo em primeiro lugar, Mister Frieze. Depois fez uma pausa e acrescentou: Não posso obrigar ninguém a ficar, mas é muito importante para a nossa investigação que toda a gente fique aqui até ao final dos interrogatórios. Podemos querer voltar a falar com alguém depois de termos conversado com todos.

 

A primeira hora passou devagar. Toda a gente manteve a história que contara ao longo dos últimos quatro anos e meio.

 

Ninguém sabia nada acerca de uma echarpe... Martha não comentara que tinha planos para o dia seguinte... Ninguém a vira usar o telemóvel.

 

Depois Rachel Wilcox entrou, todos os centímetros do seu formidável corpo a transmitir a sua ira e o seu desagrado em relação a tudo aquilo. As suas respostas às perguntas dele foram bruscas.

 

Falei com a Martha a respeito da pós-graduação, uma vez que sabia que tencionava fazê-la. Ela comentou que estava com certas dúvidas em relação ao MBA. Trabalhara como chefe de sala no Chillingsworth, um excelente restaurante em Cape Cod, e gostara bastante da experiência. Disse-me que estava a pensar rever a opção que fizera.

 

Nunca me havia falado nisso, Mistress Wilcox disse Tommy.

 

Se todas as palavras que as pessoas trocam durante os acontecimentos sociais fossem medidas e pesadas, o mundo afogar-se-ia em trivialidades retorquiu Rachel Wilcox, acrescentando em seguida: Deseja mais alguma coisa da minha parte?

 

Gostaria apenas de lhe fazer mais uma pergunta. Sabe se nessa noite alguém tinha uma echarpe prateada com contas metálicas?

 

Eu tinha uma. Já foi encontrada?

 

Tommy sentiu as palmas das mãos começarem a transpirar. ”Clayton Wilcox”, pensou. ”Terá sido estúpido ao ponto de ter usado a echarpe da mulher para matar Martha?”

 

Vou perguntar se a echarpe foi encontrada, Mistress Wilcox. Quando é que deu pela falta dela?

 

Aquela noite esteve bastante quente, por isso tirei-a. Pedi ao meu marido que ma guardasse no bolso e não voltei a pensar nela até à tarde do dia seguinte, quando lhe pedi que ma devolvesse. Ele não a tinha. Já foi encontrada?

 

Comentou-se que fora perdida uma echarpe respondeu Tommy num tom evasivo. A senhora ou o doutor Wilcox procuraram-na?

 

O meu marido percebera que eu queria que ele guardasse a echarpe na minha mala. Ligou para os Lawrence a perguntar se a echarpe ficara lá, mas não ficara.

 

Estou a ver. ”Não digas mais nada”, disse Tommy de si para si. ”Vamos ouvir a versão dele.” Contando que o homicídio de Belmar ainda não tivesse chegado aos ouvidos das pessoas que haviam saído de casa dos Lawrence e ido directamente para aquela reunião, Tommy perguntou: Mistress Wilcox, conhece a doutora Lillian Madden?

 

O nome não me é estranho.

 

É uma psicóloga que vive em Belmar.

 

Dá uma cadeira sobre reencarnação na faculdade de Monmouth, não é verdade?

 

Sim.

 

Não imagino uma perda de tempo maior. Quando ela saiu do escritório, Tommy Duggan e Pete

 

Walsh entreolharam-se.

 

Traz o Wilcox para aqui antes de ela poder falar com ele pediu Duggan.

 

Já vou a caminho. Pete desapareceu no corredor que dava para a sala.

 

A postura do Dr. Clayton Wilcox aparentava ser calma, mas Tommy perguntou de si para si se não estaria finalmente a sentir o cheiro que procurara todo o dia. Medo. Possuía o seu aroma pungente que nada tinha a ver com as glândulas sudoríparas. Clayton Wilcox não estava apenas com medo, estava perto do pânico.

 

Sente-se, doutor Wilcox. Gostaria de voltar a rever consigo algumas coisas.

 

”O velho truque”, pensou Tommy. ”Deixá-los assar na cadeira, a fazerem a si próprios as perguntas que receiam que eu lhes faça. Depois, quando começamos a falar já eles estão quase carbonizados.”

 

Perguntaram a Wilcox sobre que assuntos conversara com Martha Lawrence na festa.

 

Tivemos as conversas habituais para aquele tipo de acontecimentos. Ela sabia que eu tinha uma carreira académica e perguntou-me se conhecia alguém na Universidade Técnica de Tulane, em Nova Orleães, onde estava inscrita. Fez uma pausa. Tenho a certeza de que já falámos sobre isto, Mister Duggan.

 

Falámos, doutor Wilcox, mais ou menos. E na manhã seguinte o senhor foi dar um passeio mas não esteve na marginal nem se cruzou com a Martha?

 

Acho que já respondi várias vezes a essa pergunta.

 

Doutor Wilcox, a sua mulher perdeu uma echarpe prateada na noite da festa?

 

Sim, perdeu.

 

Tommy Duggan viu surgirem na testa do Dr. Clayton Wilcox algumas gotas de transpiração.

 

A sua mulher pediu-lhe que lhe guardasse a echarpe? Wilcox aguardou, depois respondeu.

 

A minha mulher diz que me pediu que guardasse a echarpe no bolso. Eu digo que ela me pediu que a guardasse na mala dela, que se encontrava numa mesa do vestíbulo. Foi precisamente isso que fiz, e não voltei a pensar no assunto.

 

Então, quando na tarde do dia seguinte deram pela falta da echarpe, o senhor ligou para os Lawrence a perguntar se ela lá ficara?

 

Não, não liguei.

 

”Contradição directa do depoimento da mulher”, pensou Tommy.

 

Não acha que teria sido melhor perguntar aos Lawrence se a echarpe ainda estava em casa deles?

 

Mister Duggan, quando demos pela falta da echarpe sabíamos já que a Martha desaparecera. Acha que eu seria capaz de perguntar por uma echarpe a uma família perturbada?

 

Disse à sua mulher que lhes perguntou por ela?

 

Para ter paz disse-lhe que fiz isso.

 

Uma última pergunta. Doutor Wilcox, conhecia a doutora Lillian Madden?

 

Não.

 

Alguma vez foi seu doente, consultou-a ou teve algum tipo de contacto com ela?

 

Wilcox pareceu hesitar. Depois, a tensão perceptível na sua voz, respondeu:

 

Não, nunca fui seu doente nem me lembro de a ter conhecido.

 

”Ele está a mentir”, pensou Tommy.

 

         Domingo, 25 de Março

Nicholas Todd telefonou a Emily às nove e um quarto de domingo.

 

A nossa combinação para hoje mantém-se de pé, espero...

 

Com certeza! Segundo me disseram, o Old Mill serve uns pequenos-almoços tardios deliciosos. Reservei mesa para a uma.

 

Óptimo. Vou ter a tua casa por volta do meio-dia e meia, se não te importares. Já agora, espero não ter ligado demasiado cedo. Acordei-te?

 

Já fui dar um passeio até à igreja, que fica a quilómetro e meio da minha casa. Isso responde à tua pergunta?

 

Estás a exibir-te! Agora diz-me como é que chego aí.

 

Depois de ter desligado o telefone, Emily decidiu passar uma ou duas horas a ler os jornais da manhã. No dia anterior, quando Will Stafford a levara a casa depois do almoço em casa dos Lawrence, passara o resto da tarde e a noite a folhear os livros que o Dr. Wilcox lhe emprestara. Queria devolver-lhos o mais depressa possível.

 

O facto de ele lhe ter dado um saco do colégio e de ter sugerido que mantivesse lá dentro os livros indicava a Emily que o Dr. Wilcox não gostaria que ela não lhos devolvesse rapidamente.

 

Para além disso ela queria poder ordenar mentalmente a informação acumulada. Na véspera disseram-lhe que Phyllis Gates, a autora de Reflexões sobre a Infância de Uma Rapariga, acreditara que Douglas Cárter fora o assassino de Madeline.

 

”Isso não pode ser”, decidiu ela. Douglas Cárter suicidara-se antes de Letitia Gregg e de Ellen Swain terem desaparecido. Teria Carolyn Taylor, a parente de Phyllis Gates, querido dizer que Phyllis desconfiava de Alan Cárter? Ele era o primo que ”adorara a Madeline, embora ela estivesse quase noiva do Douglas.”

 

”Adorara-a ao ponto de a matar em vez de a perder para o primo?” interrogou-se Emily.

 

”Não penses mais nisso esta manhã”, disse a si própria ao levar o café para o escritório, que estava a transformar-se na sua assoalhada preferida. Encontrava-se inundada pelo sol da manhã e à noite, com os estores baixos e o aquecedor a gás ligado, tinha um ar acolhedor, íntimo.

 

Instalando-se no cadeirão, abriu o The Asbury Park Press e leu o cabeçalho: ”Psicóloga Assassinada em Belmar.”

 

A palavra ”reencarnação” no primeiro parágrafo do artigo despertou a atenção de Emily.

 

”A Dr.a Lillian Madden, antiga residente de Belmar e leitora proeminente no tema da reencarnação, foi encontrada brutalmente estrangulada no seu consultório...

Com crescente terror, Emily leu o resto da história. A última frase era: ”A Polícia está a investigar a possibilidade de uma ligação entre a morte da Dr.a Madden e a pessoa que foi apelidada de ”o assassino em série reencarnado de Spring Lake”.”

 

Emily pousou o jornal, pensando na aula de Parapsicologia a que assistira quando era aluna de Direito na Universidade de Nova Iorque. O professor hipnotizara uma das alunas, uma jovem de vinte anos, e fizera-a regredir até uma vida anterior.

 

A rapariga estivera profundamente hipnotizada. O professor fê-la recuar até antes do nascimento, a um ”túnel quente”, garantindo-lhe que seria uma viagem agradável.

 

”Estava a tentar colocar a rapariga noutra época”, recordou Emily. Disse-lhe: ”Estamos em Maio de mil novecentos e sessenta. Há alguma imagem a formar-se na sua mente?”

 

A regressão causara um impacto tão profundo em Emily que, ali sentada no cadeirão, com o jornal no regaço, a fotografia da psicóloga assassinada a fitá-la, conseguiu recordar-se claramente de todos os pormenores.

 

O professor continuara o interrogatório:

 

Estamos em Dezembro de mil novecentos e cinquenta e dois. Há alguma imagem a formar-se na sua mente?

 

Não.

 

Estamos em Setembro de mil novecentos e quarenta e um. Há alguma imagem a formar-se na sua mente?

 

”E nesse momento ficámos todos espantados quando uma voz masculina e autoritária respondeu: ”Sim!””, pensou Emily.

 

Na mesma voz, a personagem dissera o seu nome e descrevera o que tinha vestido:

 

Sou o tenente David Richards, da Marinha dos Estados Unidos. Tenho vestida a minha farda.

 

De onde é?

 

De perto de Sioux City, no Iowa.

 

De Sioux City?

 

De lá perto.

 

Onde está agora?

 

Em Pearl Harbor, no Havai.

 

Porque está aí?

 

Achamos que pode haver uma guerra com o Japão.

 

Já passaram seis meses. Onde está agora, tenente?

 

”A arrogância desaparecera da voz dele”, recordou Emily. Dissera estar em São Francisco. O seu navio encontrava-se no estaleiro para ser reparado. A guerra começara.

 

O tenente David Richards descrevera em seguida com clareza a sua vida durante a guerra durante os três anos seguintes e a sua morte quando um contratorpedeiro japonês afundara o seu navio.

 

Oh meu Deus, eles já nos viram! gritara ele. Estão a dar meia volta. Vêm contra nós!

 

Tenente, estamos no dia seguinte interrompera o professor. Diga-me onde está.

 

”A voz era diferente”, recordou Emily. ”Calma, resignada.” Lembrava-se da resposta:

 

Está escuro e frio. Encontro-me na água. Há destroços à minha volta. Estou morto.

 

Seria possível que durante uma regressão no consultório da Dr.a Madden alguém regressara à vida que tivera em Spring Lake na década de 1890? Teria uma sessão de hipnose permitido a alguém saber o que acontecera nessa altura?

 

Seria possível a morte de Lillian Madden ter ocorrido para evitar que ela fosse à Polícia com a gravação da sessão de hipnose e com o nome do doente?

 

Emily atirou o jornal para o chão e levantou-se.

 

”Não sejas ridícula”, disse a si própria. ”Nunca ninguém entrou na mente de um criminoso que viveu há cento e dez anos.”

 

Ao meio-dia e meia em ponto, a campainha tocou. Quando Emily abriu a porta apercebeu-se que, desde o telefonema de Nick na sexta-feira, aguardava ansiosamente a sua visita. O sorriso dele era caloroso, o seu aperto de mão firme. Emily ficou satisfeita por vê-lo vestido informalmente, com casaco, calças de sarja e camisola de gola alta.

 

Quando o cumprimentou, disse-lho.

 

Prometi a mim mesma que, a menos que fosse absolutamente necessário, não iria vestir uma saia nem calçar sapatos de salto alto até me apresentar ao trabalho explicou. Vestia calças de ganga castanhas, uma camisola e um casaco de tweed da mesma cor que já tinha há tanto tempo que parecia ser a sua segunda pele.

 

Ainda pensara em apanhar o cabelo, mas decidira deixá-lo solto.

 

O traje informal fica-te muito bem comentou Nick. Mas é melhor levares a identificação. No restaurante podem querer confirmar se já és maior de idade antes de servirem o vinho. Sabe bem voltar a ver-te, Emily. Já passou mais de um mês.

 

Pois já. Nas últimas semanas que passei em Albany não tive um minuto de descanso a tentar organizar tudo. Estava tão cansada que durante os últimos cem quilómetros da viagem para cá, na terça-feira à noite, mal consegui manter os olhos abertos.

 

E de certeza que não descansaste desde que aqui chegaste.

 

É verdade. Queres ver a casa? Temos ainda muito tempo.

 

Claro, mas deixa-me dizer-te que já estou impressionado. É uma bela casa.

 

Na cozinha, Nick aproximou-se da janela e olhou lá para fora.

 

Onde é que encontraram as ossadas? perguntou. Ela apontou para o canto direito do jardim.

 

Além.

 

Estavas a abrir o buraco da piscina?

 

Já o haviam começado. Assusta-me pensar que estive prestes a mandar parar tudo e a mandar embora o empreiteiro.

 

Desejas tê-lo feito?

 

Não. Se o tivesse feito, os corpos não teriam sido encontrados. Assim a família Lawrence pôde encerrar um capítulo negro da sua vida. E agora que sei que a minha antepassada foi assassinada, vou descobrir quem foi o culpado e que ligação pode ele ter com o assassino da Martha Lawrence.

 

Nick afastou-se da janela.

 

Emily, quem tirou a vida à Martha Lawrence e depois pôs o osso do dedo da tua antepassada na mão dela tinha uma mente perigosa, louca. Espero que não andes por aí a dizer que estás à procura do assassino.

 

”É exactamente isso que ando a fazer”, pensou Emily. Pressentindo a desaprovação de Nick, escolheu cuidadosamente as palavras:

 

Sempre se partiu do princípio que a Madeline Shapley teve um fim triste, mas até há quatro dias não havia maneira de o provar. Desconfiava-se que fora vítima de alguém conhecido, mas, tanto quanto se sabia, ela podia ter decidido dar um pequeno passeio enquanto esperava pelo noivo, e ter sido enfiada numa carruagem por um desconhecido.

 

”Nick, não foi um desconhecido que a sepultou no jardim da casa dela. Foi alguém que conhecia a Madeline, que lhe era chegado, que fez isso. Estou a tentar juntar os nomes das pessoas que a rodeavam para ver se consigo estabelecer uma ligação entre o assassino dela e o homem responsável pela morte da Martha Lawrence há quatro anos e meio. Tem de haver algures uma referência, talvez até uma confissão pormenorizada. Ela pode ter sido lida por alguém desta geração cujo antepassado tenha sido o assassino da Madeline. A confissão pode ter sido encontrada por alguém que investigava registos antigos.

 

Mas há uma ligação, e disponho de tempo e de disposição para procurá-la.

 

A desaprovação no rosto dele diminuiu e foi substituída por outra coisa. ”Preocupação?”, interrogou-se Emily. Mas não era isso. ”Ia jurar que ele parece desapontado. Porquê?”

 

Vamos acabar a visita guiada e rumar ao Old Mill sugeriu. Não sei se tens fome, mas eu tenho. E estou farta dos meus cozinhados. Sorriu e acrescentou: Embora seja uma excelente cozinheira.

 

Só depois de se provar a comida é que se sabe retorquiu Nick Todd ao segui-la até às escadas que conduziam ao andar de cima.

 

A mesa deles no Old Mill tinha vista para um lago onde os cisnes deslizavam calmamente na água. Quando os Bloody Mary’s que pediram foram trazidos, a empregada entregou-lhes as ementas.

 

Vamos esperar mais uns minutos disse Nick. Durante os três meses após ter aceite o lugar na firma de advogados, Emily já jantara com Nick e Walter Todd, o pai, três ou quatro vezes em Manhattan, mas nunca sozinha com Nick.

 

A primeira impressão que tivera dele fora dúbia. Nick e o pai tinham ido a Albany e haviam passado lá a noite para a verem defender um político conhecido num caso de homicídio.

 

Ela fora almoçar com os Todd depois de o júri ter ilibado o seu cliente de homicídio por negligência criminosa. Walter Todd fizera muitos elogios à forma como ela conduzira o caso. Nick mostrara-se reticente, e os poucos elogios que o pai conseguira sacar-lhe pareciam ter sido forçados. Ela interrogara-se na altura se não seria uma certa insegurança e se Nick não a considerara uma potencial rival.

 

Mas isso não impedia que a atitude dele tivesse sido cordial e amigável desde que ela aceitara a oferta para se lhes juntar.

 

Naquele dia Nick parecia pouco à vontade. Seria por causa dela, ou estaria com algum problema pessoal? Emily sabia que ele não era casado, mas com certeza devia ter namorada.

 

Quem me dera poder adivinhar os teus pensamentos, Emily. A voz de Nick fê-la regressar à realidade. Pareces estar muito longe daqui.

 

Ela decidiu ser franca.

 

Digo-te com todo o gosto o que estava a pensar. Há qualquer coisa em mim que te incomoda, e gostava que me dissesses o que é. Queres que eu entre para a firma? Achas que sou a pessoa certa para o trabalho? Passa-se qualquer coisa. O que é?

 

Não és pessoa de fazer rodeios, pois não? Nick tirou o talo de aipo do copo e deu-lhe uma dentada. Se quero que entres para a firma? Com certeza! Gostava até que começasses a trabalhar já amanhã. E, por acaso, é por esse motivo que aqui estou. Pousou o copo e contou-lhe a decisão que tomara.

 

Enquanto ele lhe falava do seu desejo de abandonar a firma, Emily ficou surpreendida ao constatar que se sentia abalada com a notícia. ”Estava desejosa de trabalhar com ele”, pensou.

 

E vais candidatar-te onde? perguntou.

 

Ao Ministério Público. Era para aí que gostava mesmo de ir. Se não conseguir, tenho a certeza de que poderia regressar a Boston. Já fui assistente do delegado do Ministério Público lá. Quando me vim embora, o delegado disse que teria todo o gosto em voltar a receber-me se eu não gostasse de trabalhar na firma. Preferia ficar em Nova Iorque. Mas calculo que não vou conseguir convencer-te a começar a trabalhar já para a semana, pois não?

 

Receio bem que não. O teu pai vai ficar muito chateado?

 

Neste momento ele ainda deve estar a assimilar a notícia cruel da minha saída e a queimar a minha efígie. Quando o informar de que só poderás começar a trabalhar no dia um de Maio, há-de também queimar a tua.

 

Ou morremos enforcados juntos... Emily sorriu.

 

Ou separados. Exacto. Nick pegou na ementa. Negócio fechado. O que é que vais comer?

 

Já eram quase quatro da tarde quando Nick a deixou em casa. Acompanhou-a até ao alpendre e esperou enquanto ela enfiava a chave na porta.

 

Tens um bom alarme? perguntou.

 

Claro. E amanhã um velho amigo de Albany vem cá instalar umas câmaras.

 

Nick arqueou as sobrancelhas.

 

Depois daquele tipo que te perseguiu em Albany, percebo por que motivo queres as câmaras.

 

Ela abriu a porta. Viram-no ao mesmo tempo. Um sobrescrito no chão do vestíbulo, com a frente voltada para baixo.

 

Parece que alguém te deixou um bilhete disse Nick enquanto se baixava para o agarrar.

 

Pega-lhe pelas pontas. Pode ter impressões digitais. Emily não reconheceu a sua própria voz. Soara como um murmúrio forçado.

 

Nick olhou-a com estranheza, mas obedeceu. Quando se endireitou, a aba do envelope abriu-se e uma fotografia caiu. Era de Emily na igreja, durante o serviço fúnebre.

 

Em baixo encontravam-se três palavras: ”Reza por ti.”

 

         Segunda-feira, 26 de Março

Aguardo com impaciência a actividade de logo.

 

Estou satisfeito por ter mudado de ideias e ter enviado a mensagem a Emily Graham.

 

O correio dela deve ser distribuído em breve.

 

Como era de esperar, houve algumas perguntas sobre a echarpe, mas tenho a certeza de que ninguém pode provar quem ficou com ela naquela noite.

 

Recordo-me de que naquele preciso momento me ocorreu que a Martha acabara de escolher o instrumento da sua própria morte.

 

Afinal de contas uma echarpe, pensei, não deixa de ser parecida com a faixa que tirou da garganta da Madeline o último fôlego.

 

Pelo menos agora já não tenho de me preocupar com a psicóloga. Nem sequer com o facto de que alguém possa aceder aos ficheiros do computador.

 

Era já noite quando consultei a doutora Madden, e a recepcionista não estava lá, por isso ninguém me viu.

 

E o nome e a morada que lhe dei não significam nada para eles.

 

Porque não compreendem não querem compreender que somos um só.

 

Há só uma pessoa que, se vir esse nome e essa morada, pode começar a desconfiar, mas não tem importância.

 

Porque quanto a isso não tenho o mínimo receio. A Emily Graham vai morrer no sábado. Irá dormir com a Ellen Swain.

 

E depois disso, irei viver o resto da minha vida como até aqui, como um cidadão respeitável e honrado de Spring Lake.

 

Tommy Duggan estivera prestes a sair do escritório no domingo de tarde quando recebera o telefonema de Emily Graham. Fora imediatamente a Spring Lake e tirara-lhe o sobrescrito e a fotografia.

 

Na segunda de manhã, ele e Pete Walsh encontravam-se no gabinete do promotor público, a pô-lo ao corrente dos acontecimentos do fim-de-semana. Osborne estivera em Washington desde sexta à noite.

 

Tommy falou-lhe do homicídio de Madden e do interrogatório que fizera aos convidados da última festa dos Lawrence em casa de Will Stafford.

 

É a echarpe de Mistress Wilcox, e ela usou-a nessa noite. Diz que pediu ao marido que a guardasse no bolso. Ele afirma que ela lhe pediu que a guardasse perto da mala.

 

Os Wilcox foram de carro até casa dos Lawrence nessa noite interveio Walsh. O carro estava estacionado ao fundo do quarteirão. Se o doutor Wilcox enfiou a echarpe no bolso, ela pode ter caído em casa ou na rua; e aí qualquer pessoa pode tê-la apanhado. E se ele a pôs ao lado da mala, também qualquer pessoa pode ter pegado nela.

 

Osborne bateu na secretária com o dedo indicador.

 

Por aquilo que resta, a echarpe parece ter sido bastante comprida. Teria feito bastante volume no bolso de um casaco fino.

 

Tommy assentiu.

 

Foi também isso que pensei. Quando foi utilizada para estrangular a Martha, parte dela já havia sido cortada. Mas, por outro lado, o Wilcox mentiu à mulher quando disse que ligara aos Lawrence a perguntar se haviam encontrado a echarpe. Diz que nessa altura já toda a gente sabia do desaparecimento da Martha e que não lhe parecia muito bem incomodá-los por causa de uma echarpe.

 

Podia ter falado com a governanta observou Osborne.

 

Há mais uma coisa disse Tommy. Achamos que o Wilcox mentiu quando disse não conhecer a doutora Madden.

 

O que é que sabemos do Wilcox? Quero dizer, o que é que sabemos realmente sobre ele?

 

Tommy Duggan olhou para Walsh.

 

Pete, fala. Tu é que o investigaste. Pete Walsh sacou dos apontamentos.

 

Carreira académica sólida. Acabou como presidente do Colégio Enoch. É um daqueles lugares pequenos mas snobes. Aposentou-se há doze anos. Costumava vir a Spring Lake no Verão quando era miúdo, por isso instalou-se aqui. Publica regularmente nos jornais académicos. Não lhe pagam grande coisa, mas é uma honra ser-se publicado por eles. Desde que se mudou para cá escreveu bastantes coisas sobre a história de Nova Jérsia, em especial sobre o município de Monmouth. É considerado o historiador de Spring Lake.

 

O que se coaduna com a teoria da Emily Graham, segundo a qual o assassino da Martha Lawrence teve acesso a registos sobre as mulheres que desapareceram na década de mil oitocentos e noventa salientou Tommy. Juro que o tipo mentiu quando afirmou não conhecer a doutora Madden. Quero começar a investigá-lo com mais pormenor. Aposto que deve haver muita sujidade naquela vida.

 

Mais alguma coisa quanto ao caso da Carla Harper? perguntou Osborne.

 

A testemunha mantém a história de a ter visto numa área de descanso na Pensilvânia. Na altura, deu entrevistas a todos os jornalistas que quiseram falar com ela. A Polícia da Pensilvânia admite ter-se enganado ao aceitar a história da testemunha, mas quando a mala da Carla foi encontrada perto da área de descanso alguns dias mais tarde, a testemunha obteve a credibilidade de que precisava. O assassino deve ter-se rido quando a atirou da janela do carro. Agora o rasto está frio, especialmente desde que o Hotel Warren encerrou o ano passado. Foi aí que a Carla Harper esteve instalada no fim-de-semana antes de desaparecer. Encolheu os ombros. Era um beco sem saída.

 

Por fim, Tommy e Pete informaram Elliot Osborne do telefonema de Emily Graham que haviam recebido às quatro da tarde de domingo.

 

Ela tem coragem disse Tommy. Branca como a cal, mas muito calma quando lá chegámos. Acha que é algum imitador, e é para aí que a Polícia de Spring Lake também está inclinada. Falei com o Marty Browski, o tipo que tratou do caso dela em Albany.

 

- E o que acha o Browski? perguntou Osborne.

 

Acha que quem está a cumprir pena por isto é o tipo errado. Tornou a reabrir a investigação e diz que há dois suspeitos possíveis: Gary White, o ex-marido da Emily Graham, e Joel Lake, um patife que ela ilibou de uma acusação de homicídio.

 

O que é que você acha?

 

O melhor cenário: um imitador. Um adolescente ou vários adolescentes descobriram que a Emily foi perseguida em Albany e decidiram pregar-lhe uma partida. O cenário médio: ou o Gary White ou o Joel Lake. O pior cenário: o tipo que matou a Martha Lawrence anda a brincar com a Emily.

 

Em que cenário acredita?

 

No do imitador. A doutora Lillian Madden, a psicóloga que foi assassinada em Belmar, estava de certeza ligada ao caso Lawrence. Aposto tudo em como o assassino da Martha deve ter sido doente da doutora Madden e não podia correr o risco que ela nos falasse dele. Mas, por outro lado, acho que ele não seria tão idiota ao ponto de arriscar ser visto a rondar a casa da Emily Graham. Tem demasiado em jogo.

 

Faz ideia de onde poderia estar sentada a pessoa que tirou aquela fotografia da Emily Graham na igreja?

 

Do outro lado da nave. Num banco à esquerda.

 

Suponha que o Browski... é assim que ele se chama, não é?, tem razão quando diz que o perseguidor da Graham anda à solta em Spring Lake. Eu diria que, se ele está obcecado ao ponto de fazer a viagem desde Albany, a Emily Graham corre um grande perigo.

 

Se o perseguidor original estiver por trás disto sim, ela corre perigo concordou Tommy Duggan.

 

A voz da secretária de Elliot Osborne surgiu no intercomunicador.

 

Desculpem interromper, mas tenho Ms. Emily Graham ao telefone. Insiste que tem de falar imediatamente com o detective Duggan.

 

Tommy Duggan pegou no telefone.

 

Fala Duggan, Ms. Graham.

 

O promotor público e Pete Walsh viram as rugas no rosto do outro tornarem-se mais fundas.

 

Vamos já para aí, Ms. Graham. Desligou e olhou para Osborne. A Emily Graham recebeu um postal bastante perturbador no correio da manhã.

 

O perseguidor? Outra fotografia dela?

 

Não. Este é o desenho de duas lápides. Numa, o nome é Carla Harper. O nome da outra é Letitia Gregg. Se o postal não for brincadeira, elas encontram-se sepultadas no jardim do número quinze da Avenida Ludlam, em Spring Lake.

 

Eric Bailey começou cedo a manhã como convidado do noticiário de um canal de televisão de Albany.

 

Magro e de altura mediana, com cabelo desgrenhado e óculos sem armações que dominavam o seu rosto esguio, tinha aspecto e modos discretos.

 

O pivô do noticiário não ficara muito satisfeito ao ver o nome de Bailey na lista dos convidados.

 

Quando aquele tipo está no ar, os cliques que ouvimos são o barulho dos comandos à distância a mudarem para outro canal queixou-se.

 

Muita gente aqui da zona investiu dinheiro nesta empresa. O valor das acções tem descido ao longo do último ano e meio. Agora o Bailey diz que tem um software novo capaz de revolucionar a indústria informática retorquiu o editor financeiro. Pode soar como um rato, mas vale a pena ouvir o que ele tem para dizer.

 

Obrigado pelo elogio. Obrigado aos dois.

 

Eric Bailey entrara no estúdio silenciosamente, sem que nenhum dos dois homens o tivesse ouvido aproximar. Naquele momento, com um ligeiro sorriso, como se estivesse a gostar do desconforto dos outros, disse:

 

Talvez eu deva aguardar aqui ao lado até vocês estarem prontos para me receberem, não?

 

As câmaras de segurança ultramodernas que ele iria instalar em casa de Emily já se encontravam empacotadas na sua carrinha pelo que, logo após a entrevista, Eric Bailey começou a viagem rumo a Spring Lake.

 

Sabia que tinha de ter cuidado para não exceder o limite de velocidade. A ira, à mistura com a humilhação, davam-lhe vontade de carregar a fundo no acelerador, de mudar de uma faixa para a outra, assustando os ocupantes dos carros à frente dos quais se metia.

 

O medo era a sua resposta a todas as rejeições da vida, a todas as reprimendas, a todo o ridículo.

 

Aprendera a usar o medo como arma quando tinha dezasseis anos. Convidara três raparigas, uma a seguir à outra, para irem ao baile de finalistas consigo. Todas haviam recusado. Depois começaram os risinhos, as piadas.

 

”Até onde terá de ir o Eric Bailey para conseguir sair com alguém?

Karen Fowler era a rapariga que fazia a melhor imitação dele a convidá-la para sair. Eric ouvira-a a imitá-lo.

 

Karen, gostaria muito... quero dizer, importavas-te... seria agradável se...

 

E depois ele começou a espirrar contava Karen Fowler à assistência, rindo com tanta força que quase se engasgava. O pobre coitado começou a espirrar, acreditam?

 

Era a melhor aluna da escola, e chamara-lhe ”pobre coitado”.

 

Na noite do baile ele esperara com a máquina fotográfica no bar onde todos iam depois de a banda ter acabado de tocar. Quando as bebidas e os charros começaram a circular, Eric fotografou Karen de olhos vidrados, quase deitada em cima do acompanhante, o batom borrado, a alça do vestido quase no cotovelo.

 

Mostrou-lhe as fotografias na escola alguns dias mais tarde. Ainda se lembrava da forma como ela empalidecera. Depois começara a chorar e implorara-lhe que lhas desse.

 

O meu pai mata-me! exclamara ela. Por favor, Eric.

 

Ele voltara a guardá-las no bolso.

 

Queres imitar-me agora? perguntou ele com frieza.

 

Desculpa. Por favor, Eric, desculpa.

 

Ela ficara muito assustada, sem saber se Eric não lhe bateria à porta uma noite para entregar as fotografias ao pai ou se um dia lhas mandaria pelo correio...

 

Depois disso, sempre que passava por ele nos corredores da escola, lançava-lhe um olhar assustado e de súplica. E pela primeira vez na vida Eric Bailey sentiu-se poderoso.

 

A recordação acalmou-o naquele momento. Arranjaria maneira de punir os dois homens que o insultaram naquela manhã. Só precisaria de pensar um pouco, nada mais.

 

Consoante o trânsito, chegaria a Spring Lake entre a uma e as duas.

 

Já conhecia bem o caminho. Era a terceira vez que o percorria desde quarta-feira.

 

Reba Ashby, jornalista do The National Daily, instalara-se no Hotel The Breakers em Spring Lake e tencionava passar aí uma semana. Era uma mulher pequena, de feições marcadas, perto dos quarenta anos, e tencionava espremer a história do assassino em série reencarnado até onde desse.

 

Na segunda-feira de manhã encontrava-se a tomar o pequeno-almoço na sala de jantar do hotel, atenta às pessoas que apareciam para ver se poderia conversar com alguma delas. Primeiro viu apenas alguns homens de negócios nas mesas mais próximas e soube que de nada serviria interrompê-los. Precisava de encontrar alguém que falasse sobre os homicídios.

 

O seu editor partilhava da sua frustração por não ter conseguido entrevistar a Dr.a Lillian Madden antes de ter sido assassinada. Tentara contactá-la durante toda a sexta-feira, mas a secretária recusara-se a passar a chamada. Por fim, conseguira um ingresso para a palestra da Dr.a Madden na sexta à noite, mas nem assim conseguira falar com ela em particular.

 

Reba acreditava tanto em reencarnação como em elefantes capazes de voar, mas a palestra da Dr.a Madden fora fascinante e provocadora, e o que estava a acontecer em Spring Lake era suficientemente estranho para fazer as pessoas pensarem na hipótese de um assassino em série reencarnado.

 

Também reparou que Chip Lucas, do New York Daily News, assustara a Dr.a Madden quando lhe perguntara se alguém lhe pedira para regressar por hipnose à década de 1890. Isso pusera também termo ao fórum aberto da palestra.

 

Embora não pudesse ter chegado a casa antes das dez e meia da noite, Madden estava no seu consultório quando morrera. Teria andado à procura da ficha de um doente?, perguntou Reba de si para si, talvez de um doente que pedira para regressar a 1890? Já que não tinha mais nada, podia abordar aquele ângulo na história do assassino em série de Spring Lake.

 

Embora estivesse habituada a coisas brutais, Reba ficara muito chocada com o homicídio a sangue-frio da Dr.a Madden. Soubera dele pouco depois de ter saído do serviço fúnebre de Martha Lawrence e publicara grandes artigos sobre os dois acontecimentos na edição seguinte do The National Daily.

 

O que queria agora era uma entrevista exclusiva com Emily Graham. Tocara à campainha dela no domingo à tarde, mas não obtivera resposta. Quando passara novamente por sua casa uma hora mais tarde, vira uma mulher no alpendre, dobrada como se estivesse a enfiar qualquer coisa debaixo da porta.

 

Reba ficou esperançada ao ver que a mesa ao lado da sua fora levantada e que a recepcionista estava a sentar lá uma mulher que parecia rondar os oitenta anos.

 

A empregada vem já atendê-la, Mistress Joyce prometeu a recepcionista.

 

Cinco minutos mais tarde, Reba e Bernice Joyce estavam em amena cavaqueira. O facto de Joyce ser amiga da família Lawrence de pouco lhe servia, mas o facto de todas as pessoas que haviam sido convidadas para a festa em casa dos Lawrence na noite anterior ao desaparecimento de Martha terem sido interrogadas num grupo que incluíra Mrs. Joyce poderia ser o tipo de furo pelo qual os jornalistas dos tablóides tanto anseiam.

 

Com as perguntas hábeis de Reba, Mrs. Joyce contou-lhe como os convidados haviam sido chamados um a um para falarem com os dois detectives. As perguntas eram de carácter geral, mas todos tinham sido interrogados sobre se sabiam se se perdera alguma coisa nessa noite.

 

E perdeu? perguntou Reba.

 

Eu não sabia de nada. Mas depois de termos falado individualmente com os detectives, fomos interrogados todos juntos. Os detectives perguntaram se alguém reparara na echarpe de Mistress Wilcox. Parece que foi isso que se perdeu. Fiquei cheia de pena do pobre doutor Wilcox. À frente do grupo todo, a Rachel foi muito brusca, culpando-o de não ter guardado a echarpe no bolso como ela lhe pediu.

 

Consegue descrever a echarpe?

 

Lembro-me bastante bem dela porque estava ao pé da Rachel quando a Martha, pobre querida, a elogiou. Era de chifom prateado, com umas contas nas extremidades. Bastante vistosa para a Rachel Wilcox, por acaso. Ela costuma vestir-se de forma mais conservadora. Talvez tenha sido por isso que a tirou passado pouco tempo.

 

Reba já salivava ao pensar no artigo que iria escrever. A Polícia dissera que Martha morrera por estrangulamento. Não teriam feito perguntas sobre a echarpe se ela não fosse importante.

 

Estava tão entretida a compor o cabeçalho que nem reparou que a senhora idosa na mesa ao lado ficara subitamente muito calada.

 

”Tenho a certeza de que vi a mala da Rachel na mesa do vestíbulo”, pensou Bernice. ”Via-a da sala. Não reparei se ela estava em cima de alguma coisa. Mas depois será que vi alguém deslocá-la e pegar no que estava por baixo?”

 

Tentou colocar um rosto no vulto.

 

”Ou será que estou a imaginar coisas por causa desta agitação toda?”

 

”Não há nada pior do que uma velhota a fazer figura de tonta”, decidiu Bernice. ”Não vou falar disto com ninguém porque não tenho certezas.”

 

Não esperava voltar a ver-vos tão depressa disse Emily a Tommy Duggan e Pete Walsh quando lhes abriu a porta.

 

Também não contávamos voltar cá tão depressa, Ms. Graham respondeu Duggan, observando-a com atenção. Que tal dormiu esta noite?

 

Emily encolheu os ombros.

 

Isso quer dizer que dá para ver que dormi pouco. Acho que a fotografia de ontem me abalou. Não é verdade que, na época medieval, quando alguém vítima de perseguição entrava numa igreja podia gritar ”abrigo!” e considerar-se a salvo enquanto lá estivesse?

 

Parece que sim respondeu Duggan.

 

Acho que isso não funciona comigo. Nem na igreja me sinto a salvo. Tenho de admitir que estou bastante assustada.

 

Uma vez que vive sozinha, seria mais seguro... Ela interrompeu-o.

 

Não vou sair desta casa. Tenho o postal no escritório. Escolhera a correspondência na cozinha e encontrara-o entre o prospecto de jardinagem e um pedido de doação.

 

Depois de ter recuperado do choque da mensagem do postal, Emily fora até à janela e olhara para o jardim. Aquele dia nublado parecia sombrio e melancólico, como um cemitério. Como o cemitério que fora durante mais de um século.

 

Ainda com o postal na mão, correra para o escritório e ligara para a promotoria.

 

A correspondência que chegou desde que aqui vivo era dirigida aos Kiernan e ao ”Morador” disse ela aos detectives. Depois apontou para o postal que havia colocado na secretária. Mas aquilo vinha-me dirigido.

 

Era tal como ela havia descrito. O desenho tosco de uma casa e do terreno que a rodeava, o endereço Avenida Ludlam, 15, garatujado entre dois traços que supostamente eram um passeio. Na extremidade esquerda do terreno por trás da casa encontravam-se representadas duas pedras tumulares. Cada uma tinha um nome. Um era de Letitia Gregg. O outro, Carla Harper.

 

Tommy tirou um saco de plástico do bolso, pegou no postal pelas extremidades e meteu-o lá dentro.

 

Desta vez vim preparado disse. Ms. Graham, isto pode ser uma partida de mau gosto, mas também pode não ser. Verificámos o número quinze da Avenida Ludlam. É propriedade de uma viúva idosa que lá mora sozinha. Esperemos que ela colabore quando lhe falarmos disto e que nos deixe escavar o jardim ou pelo menos a secção indicada neste desenho.

 

Acha que é a sério? perguntou Emily.

 

Tommy Duggan olhou para ela um longo momento antes de responder.

 

Depois do que encontrámos lá fora... indicou com a cabeça o jardim de Emily acho que pode muito bem ser. Mas até termos a certeza, agradecíamos que não falasse disto a ninguém.

 

Não tenho ninguém com quem falar respondeu Emily. ”Não vou ligar aos meus pais para os deixar ainda mais preocupados”, pensou. ”Mas, se os meus irmãos vivessem perto, de certeza que gritava por eles. Infelizmente, estão a quase dois mil quilómetros daqui.”

 

Pensou em Nick Todd. Ele telefonara-lhe logo a seguir à distribuição do correio, mas ela não lhe dissera nada. Quando tinham encontrado a fotografia no vestíbulo depois da refeição de domingo, ele pedira-lhe que fosse para Manhattan e ficasse no seu apartamento.

 

Mas ela insistira que as câmaras que Eric iria instalar eram a melhor hipótese que ela tinha de descobrir quem lhe andava a fazer aquilo, e explicara que fora a câmara oculta que Eric instalara na sua casa que permitira que Ned Koehler fosse capturado quando tentava forçar a entrada. ”Depois de as câmaras estarem aqui instaladas poderemos identificar quem é que anda a fazer isto”, garantira ela a Nick.

 

”Palavras corajosas”, pensou ao acompanhar Tommy Duggan e Pete Walsh à porta e ao trancá-la depois de eles saírem, ”mas a verdade é que estou muito assustada.”

 

Durante as poucas horas em que conseguira pregar olho tivera imensos pesadelos. Num deles, estava a ser perseguida. Noutro, encontrava-se à janela, a tentar abri-la, mas alguém a prendia por fora.

 

”Pára com isso!”, ordenou Emily a si própria. ”Mete mãos à obra! Liga ao doutor Wilcox e pergunta-lhe se podes ir devolver os livros. Depois vai ao museu e faz alguma pesquisa. Vê se consegues descobrir onde as pessoas viviam na década de mil oitocentos e noventa.”

 

Queria identificar as casas dos amigos de Phyllis Gates e de Madeline Shapley, os amigos de que Gates falara várias vezes no livro.

 

Phyllis Gates referira que a sua família alugara uma vivenda durante o Verão, mas dera a entender que as outras famílias possuíam as suas próprias casas. ”Deve haver registos que indiquem onde elas moravam”, pensou Emily.

 

”Também deve haver um mapa da vila na altura. Preciso de ir a uma papelaria. E de comprar um monopólio. As casas que lá vêm são perfeitas para aquilo que preciso.”

 

Numa cartolina iria desenhar um mapa da vila como havia sido no século xix, escreveria os nomes das ruas, depois colocaria as casinhas nos terrenos onde haviam vivido os amigos de Madeline Shapley.

 

”Depois vou descobrir quem foram os proprietários das casas desde essa altura”, decidiu Emily.

 

Talvez de nada adiantasse, pensou enquanto se dirigia ao roupeiro para ir buscar o casaco Burberry, mas quanto mais perto se encontrava de entrar no mundo de Madeline, mais hipóteses teria de descobrir o que lhe acontecera e também a Letitia Gregg e a Ellen Swain.

 

O toque agudo da campainha incomodou-o. Rachel fora a Rumson almoçar com as amigas e Clayton Wilcox estava sentado em frente ao computador, ansioso por passar várias horas a trabalhar no seu romance sem ser interrompido.

 

Desde a reunião em casa de Will Stafford no sábado à tarde que Rachel andava mal-humorada por causa das perguntas que lhes tinham feito e desconfiada em relação ao motivo que o detective Duggan tinha para fazer perguntas sobre a echarpe desaparecida.

 

Não achas que tem alguma coisa a ver com a morte da Martha, pois não, Clayton? perguntara ela várias vezes. Depois, respondendo à sua própria pergunta, afastara subitamente a possibilidade como ridícula.

 

Clayton não a contradissera. Estivera prestes a dizer: É evidente que a tua echarpe tem tudo a ver com a morte da Martha, e tu incriminaste-me ao apregoar que me havias pedido para a guardar na tua mala”, mas contivera-se.

 

Quando foi abrir a porta, percebeu que estava à espera de encontrar o detective Duggan no alpendre. Em vez disso, deparou-se-lhe uma desconhecida, uma mulher pequena de lábios franzidos e olhos cinzentos inquiridores.

 

Antes de a mulher abrir a boca Wilcox já desconfiara que fosse jornalista. Mesmo assim, a pergunta que ela lhe fez abalou-o.

 

Doutor Wilcox, a echarpe da sua mulher está desaparecida desde a festa em casa dos Lawrence na noite antes do desaparecimento da Martha Lawrence. Porque é que a Polícia anda a fazer tantas perguntas acerca disso?

 

Clayton Wilcox apertou o puxador da porta com toda a força e começou a fechá-la. A mulher falou rapidamente.

 

Doutor Wilcox, chamo-me Reba Ashby. Trabalho no The National Daily e antes de escrever o meu artigo sobre a echarpe desaparecida se calhar era da sua conveniência responder a algumas perguntas.

 

Wilcox pensou breve, e depois abriu um pouco mais a porta, mas não convidou a jornalista a entrar.

 

Não faço ideia por que motivo a Polícia anda a fazer perguntas sobre a echarpe da minha mulher afirmou ele. Para ser mais exacto, os detectives perguntaram se desaparecera alguma coisa na noite da festa. A minha mulher tirara a echarpe e pediu-me que a guardasse junto à mala dela, que se encontrava numa mesa do vestíbulo.

 

Sei que a sua mulher disse à Polícia que lhe pediu que a guardasse no bolso retorquiu Ashby.

 

A minha mulher pediu-me que a guardasse ao pé da mala dela, e foi isso que fiz. Wilcox sentiu algumas gotas de transpiração formarem-se na sua testa. Ficou ali bem à vista e qualquer pessoa pode tê-la levado a qualquer momento.

 

Era a abertura por que Reba esperava.

 

Mas porque havia alguém de querer levá-la? Está a sugerir que a echarpe foi roubada?

 

Não estou a sugerir coisa alguma. Talvez alguém a tenha tirado do sítio onde eu a pus.

 

Porque havia alguém de fazer isso se não tencionasse levá-la?

 

Não faço ideia. Agora, se me dá licença... Desta vez Clayton Wilcox fechou a porta, ignorando a pergunta de Reba Ashby.

 

Doutor Wilcox, o senhor conhecia a doutora Lillian Madden? gritou ela através da porta fechada.

 

De novo instalado na secretária, Wilcox olhou para o ecrã. Nenhuma das palavras que acabara de escrever fazia sentido. Não duvidava de que Reba Ashby iria escrever um artigo sensacionalista acerca da echarpe. Ele acabaria por ser alvo de publicidade indesejada. Até que ponto o pasquim para onde ela trabalhava iria investigar o seu passado? Andaria também a Polícia a vasculhar o mesmo?

 

Segundo os jornais, os dossiês no consultório da Dr.a Madden haviam sido destruídos.

 

Todos.

 

Deveria ter admitido que a consultara?

 

O telefone tocou. ”Mostra-te calmo”, disse Wilcox de si para si. ”Deves aparentar calma.”

 

Era Emily Graham, a perguntar se podia passar por lá a devolver-lhe os livros.

 

Claro respondeu ele. Vai ser um prazer voltar a vê-la. Venha já.

 

Quando pousou o auscultador, recostou-se na cadeira. Uma imagem de Emily Graham atravessou-lhe a mente.

 

Uma mecha de cabelo castanho apanhada por um gancho na nuca, as madeixas a escaparem-se junto à testa e ao pescoço...

 

Um nariz aquilino delicadamente esculpido...

 

Pestanas fartas, negras, a emoldurar olhos grandes e interrogadores...

 

Clayton Wilcox suspirou, encostou os dedos ao teclado e começou a escrever. ”O desejo dele era tão grande que nem as inomináveis consequências do que estava prestes a fazer conseguiram detê-lo.

 

Robert Frieze começou a semana a discutir com Natalie. A reunião que agendara para segunda de manhã com Dominic Bonetti, o potencial comprador do The Seasoner, precipitou a amarga troca de palavras.

 

Insone como habitualmente, Robert fora correr às seis e meia da manhã, tencionando libertar a tensão que se acumulava dentro de si. Sabia que tinha de se mostrar o mais confiante possível quando falasse com Bonetti.

 

Ao regressar a casa viu Susan, a ex-mulher, a correr na sua direcção, e mudou de passeio para a evitar. A pensão de alimentos que lhe pagava duas vezes por ano deveria ser entregue no final do mês, e naquele dia ele não podia dar-se ao luxo de pensar de onde iria sacar o dinheiro.

 

Regressou a casa, ainda mais tenso, e ficou abalado ao encontrar Natalie na cozinha a tomar o pequeno-almoço. Tivera esperança de poder beber o café descansado e de rever os números que anotara durante a noite.

 

É este o novo regime? perguntou ele. Nos últimos três dias levantaste-te com as galinhas. O que aconteceu ao sono de beleza de que dizes precisar?

 

Ficou aborrecido ao ver que os papéis do banco com que trabalhara de madrugada se encontravam espalhados pela mesa.

 

É difícil dormir quando não se tem motivos para estar cansado ripostou ela. O comentário era a forma que Natalie tinha de o lembrar que desde que ele abrira o restaurante aos domingos à noite ela passava essas noites sozinha.

 

Depois passou ao ataque.

 

Bob, importas-te de me explicar o que querem dizer estes números? Em especial os da última folha? Não vais vender o restaurante por esta ninharia, pois não? Era melhor dá-lo.

 

Pode ser melhor dá-lo do que abrir falência declarou Bob com frieza. Por favor, Natalie, estou a tentar preparar-me para uma reunião em que, se tiver sorte, vou poder fechar negócio e tirar este peso morto dos ombros. O Bonetti pôs-me entre a espada e a parede, e é bom que o saiba. Tenho de lhe apresentar uma proposta que ele não recuse.

 

Bem, a menos que eu não saiba somar nem subtrair, parece-me que a tua proposta nos vai deixar nas lonas. Eu disse-te quando decidiste viver a tua fantasia de dono de restaurante que devias ter vendido aquelas acções, em vez de ter contraído um empréstimo. Agora, a menos que consigas um bom preço pelo restaurante, e não me parece que isso seja fácil ao olhar aqui para estes cálculos, vais ter de vender as acções para poderes pagar os empréstimos. Natalie fez uma pausa, depois continuou, a sua voz cada vez mais irada e desdenhosa: Espero não ter de te informar que aquelas acções valem metade do que valiam.

 

Bob sentiu o estômago contrair-se e o peito começar a arder. Estendeu a mão.

 

Dá-me esses papéis.

 

Vem buscá-los. Natalie empurrou os papéis para o chão, depois passou por cima deles quando saiu da cozinha.

 

Cinco horas mais tarde, Bob abanou a cabeça e olhou para os papéis que tinha na mão. Havia neles um buraco oval. Depois lembrou-se o salto dos chinelos de quarto de Natalie rasgara o papel quando ela o pisara.

 

Era a última coisa de que se recordava de ter discutido com ela quando regressara da corrida, em fato de treino, e de a ouvir bater com a porta no andar de cima. Fechou os olhos por um momento.

 

Abriu-os e olhou em volta devagar. Encontrava-se no escritório por cima do restaurante, envergando o casaco azul-escuro e as calças cinzentas.

 

Olhou para o relógio. Era quase uma hora. Uma hora!

 

O potencial comprador, Dominic Bonetti, devia estar prestes a chegar. Iriam discutir a venda durante o almoço.

 

Agitado, Bob tentou concentrar-se nos números que compilara. O telefone tocou. Era o chefe de mesa.

 

Mister Bonetti chegou. Sento-o na sua mesa?

 

Sim. Vou já descer.

 

Foi à sua casa de banho privada e molhou o rosto com água fria. Por insistência de Natalie, submetera-se a uma operação plástica aos olhos com um cirurgião de que os amigos dela se fartavam de elogiar. Agora as suas pálpebras estavam mais esticadas e os papos que haviam começado a formar-se sob os olhos desapareceram, mas ele sabia que o resultado não o favorecia. Ao olhar-se ao espelho, Bob teve a sensação de que a metade superior da sua cara estava dessincronizada em relação à metade inferior e isso desconcertou-o, alarmou-o. Sempre se orgulhara da sua aparência. Mas não agora.

 

”Com que raio eu havia de estar preocupado!”, pensou ao passar o pente pelo cabelo. Depois desceu as escadas.

 

Sabia que não tinham muitas reservas para o almoço na segunda, mas contara com alguns comensais sem reserva para fazer com que o restaurante parecesse minimamente cheio. Sentiu as palmas das mãos húmidas quando entrou na sala de estar e viu que apenas seis mesas se encontravam ocupadas. Dominic Bonetti aguardava-o, um bloco de apontamentos aberto sobre a mesa.

 

Seria bom sinal?

 

Só havia visto Bonetti uma vez, no campo de golfe. O homem era robusto, não muito alto, possuía uma cabeleira farta de cabelo e olhos escuros argutos. Tinha modos calorosos e expansivos, e quando não falava emanava um ar de confiança calma.

 

Só começaram a falar de trabalho depois de terem comido o salmão grelhado, que estava seco e pouco apetitoso. Bob conseguira a muito custo manter a conversa.

 

Quando o café foi servido, Bonetti foi direito ao assunto.

 

Você quer sair deste sítio. Eu quero entrar. Não me pergunte porquê. Não preciso dele. Tenho cinquenta e nove anos e o dinheiro todo que quiser para gastar. Mas faz-me falta ter um restaurante. Acho que me está no sangue. E você tem aqui um sítio óptimo.

 

No entanto, durante a meia hora seguinte, Bob ficou a saber tudo aquilo que o The Seasoner não tinha, o que era praticamente tudo.

 

A decoração:

 

Sei que gastou aqui uma fortuna, mas o resultado não é convidativo. A atmosfera é fria e desconfortável porque... A cozinha é má...

 

Natalie escolhera o decorador caro. O primeiro cozinheiro que ele contratara, aquele tipo famoso da Avenida Madison, decidira qual iria ser o aspecto da cozinha.

 

O preço que Dominic Bonetti lhe oferecia era meio milhão de dólares inferior ao mínimo que Bob Frieze julgava poder aceitar.

 

Essa é a sua primeira oferta disse ele com um sorriso. Terei muito gosto em regateá-la.

 

Os modos joviais de Bonetti desapareceram.

 

Se eu comprar este sítio, vou ter de gastar um dinheirão para o pôr como quero e para contratar funcionários de categoria retorquiu calmamente. Dei-lhe o meu preço. Não aceito uma contraproposta.

 

Levantou-se, de novo com um sorriso no rosto.

 

Pense no assunto, Bob. É realmente um preço justo, considerando o que precisa de ser feito e desfeito. Se decidir não aceitar, não levo a mal. A minha mulher vai ficar radiante. Estendeu a mão. Depois diga-me qualquer coisa.

 

Bob esperou que Bonetti saísse da sala de jantar, depois chamou a atenção do empregado de mesa e levantou o copo de vinho vazio.

 

Pouco depois o empregado aproximou-se com o vinho e um telemóvel.

 

Um telefonema urgente de Mistress Frieze.

 

Para surpresa de Bob, Natalie não lhe fez perguntas sobre a reunião com Bonetti.

 

Ouvi dizer que está uma escavadora a abrir um buraco no número quinze da Avenida Ludlam. Parece que andam à procura do corpo da Carla Harper, aquela rapariga que desapareceu há dois anos. Meu Deus, Bob, Avenida Ludlam, número quinze! Não é a casa em que a tua família viveu quando eras miúdo?

 

O seu pai está aqui para o ver, Mister Stafford. A voz da recepcionista soava intrigada. Parecia que estava a dizer: ”Não sabia que o seu pai era vivo.”

 

O meu pai! Will Stafford largou a caneta que tinha na mão. Zangado e abalado, esperou até ter a certeza de que a sua voz soava calma. Mande-o entrar.

 

Viu o puxador da porta rodar devagar. ”Tem medo de me enfrentar”, pensou. ”Medo que eu o expulse.” Não se levantou, mas permaneceu rigidamente sentado à secretária, forçando todos os músculos do corpo a deixar transparecer o seu desagrado em relação àquela intrusão.

 

A porta abriu-se devagar. O homem que entrou era uma sombra daquele que ele vira há um ano. Desde essa altura o pai perdera no mínimo vinte quilos. A sua compleição era agora amarelada, as maçãs do rosto salientes sob a pele esticada. A cabeleira abundante castanho-clara de que Will se recordava, e que também herdara, estava agora reduzida a algumas madeixas grisalhas.

 

”Tem sessenta e quatro anos e aparenta oitenta e quatro”, pensou Will. ”Será que eu devia sentir pena dele e abraçá-lo?”

 

Fecha a porta ordenou.

 

Willard Stafford, Sénior, assentiu e obedeceu. Nenhum dos homens reparou que a porta não se fechara completamente e que depois se abriu vários centímetros.

 

Will levantou-se devagar. Cuspindo as palavras e falando bem alto, perguntou:

 

Porque não me deixas em paz? Não percebes que não quero nada contigo? Queres que eu te perdoe? Muito bem. Estás perdoado. Agora vai-te embora.

 

Will, cometi alguns erros. Admito. Já não me resta muito tempo. Quero compensar-te.

 

Não podes. Agora vai-te embora e não voltes.

 

Devia ter percebido. Eras um adolescente... A voz do velho tornou-se mais alta.

 

Cala-te! Com duas passadas, Will Stafford contornara a secretária e estava em frente ao pai. As suas mãos fortes agarraram nos ombros magros e trémulos do outro.

 

Paguei por aquilo que outra pessoa fez. Tu não acreditaste em mim. Podias ter pago a uma equipa de advogados para me defenderem como devia ser. Em vez disso, lavaste as mãos do assunto e viraste-me costas, a mim, o teu único filho. Desonraste-me publicamente. Mas agora o meu cadastro juvenil está selado. Não preciso que apareças aqui e destruas aquilo que consegui construir nos últimos vinte e três anos. Vai-te embora. Mete-te no carro, volta para Princeton e fica lá.

 

Willard Stafford, Sénior, assentiu. De olhos húmidos, virou-se e estendeu a mão para o puxador da porta. Depois estacou.

 

Prometo não voltar. Queria ver-te uma última vez e pedir o teu perdão. Sei que te deixei ficar mal. Pensei apenas que talvez pudesses ver... Calou-se.

 

Will não respondeu.

 

O pai suspirou e abriu a porta.

 

Só que... murmurou ele, mais para si próprio do que para Will só que fiquei perturbado com aquilo que li sobre o que está a passar-se aqui. Refiro-me ao corpo daquela rapariga que foi encontrado. Fiquei preocupado. Compreendes...

 

Tens a lata de vir aqui dizer-me isso! Sai! Estás a ouvir? Sai!

 

Will Stafford não se importou com o facto de estar a gritar e de que Pat, a recepcionista, o ouvisse. Só lhe importava conseguir controlar a ira cega antes de deitar as mãos ao pescoço magro do homem que o criara, e apertá-lo até ele estalar.

 

O advogado de Ned Koehler, Hal Davis, não ficou satisfeito ao encontrar de novo Marty Browski em Gray Manor às três da tarde de segunda-feira.

 

O Estado não me paga o suficiente para o ajudar numa caça às bruxas queixou-se ele enquanto aguardavam que Koehler fosse levado para a sala de reuniões.

 

O Estado paga-me para garantir que as pessoas paguem pelos seus crimes retorquiu Browski. Como lhe disse esta manhã, reabrimos o caso Ruth Koehler e o seu cliente é suspeito de homicídio.

 

Davis olhou-o com ar incrédulo.

 

Deve estar a brincar. Não conseguiu provar isso em relação ao assassino de Ruth Koehler o Joel Lake saiu em liberdade, e agora anda a tentar limpar a porcaria que fez e culpar o pobre do Koehler? Vim cá falar com o Ned depois de você me ligar e aconselhei-o a não falar consigo. Mas ele afirma que está inocente e insiste que quer vê-lo.

 

Talvez ele seja mais esperto do que você pensa comentou Browski. Todos achámos que o Koehler estragou a cena do crime por causa do choque e da dor. Mas, se virmos as coisas por outra perspectiva, ele foi suficientemente astucioso para garantir que havia um motivo para que as suas impressões digitais estivessem naquela faca e para que tivesse a roupa cheia de sangue.

 

Ele pegou nela. Não sabia que estava morta. Correu a pedir ajuda.

 

Talvez.

 

A porta abriu-se. Ned Koehler foi escoltado até uma cadeira pelo guarda.

 

O Ned está um pouco agitado hoje disse o guarda. Eu fico lá fora, para o caso de precisarem de mim.

 

Porque é que me está a fazer isto? perguntou Koehler a Marty? Eu adorava a minha mãe. Tenho saudades dela.

 

Só tenho algumas perguntas disse Browski num tom apaziguador. Mas devo informá-lo de que é suspeito da morte da sua mãe, por isso tudo o que disser pode ser usado contra si. Leu-lhe o resto dos direitos.

 

Ned, sabe que não é obrigado a responder a qualquer pergunta. Hal Davis inclinou-se para a frente, como se ao aproximar-se de Koehler pudesse obrigá-lo a percebê-lo melhor.

 

Ned, falei com a sua tia disse Marty. Ela não se enganou. Falou mesmo com a sua mãe depois de o Joel Lake ter sido visto a sair do prédio.

 

A minha tia é maluca. Se a minha mãe tivesse falado com ela depois de aquele tipo se ter ido embora, ela ter-lhe-ia dito que havia sido assaltada.

 

Talvez ainda não o soubesse. Ned, a sua mãe alguma vez se zangou consigo?

 

A minha mãe amava-me. Muito.

 

Tenho a certeza que sim, mas às vezes ela zangava-se consigo, não é verdade?

 

Não. Nunca.

 

Ela estava particularmente zangada porque você não puxou a porta com força ao sair e esta ficou aberta. Não é verdade?

 

Eu trancava sempre a porta quando saía.

 

Sempre? O Joel Lake diz que a porta nem sequer estava fechada. Foi por isso que ele entrou em sua casa.

 

Os olhos de Ned Koehler semicerraram-se. A sua boca agitava-se.

 

Não é verdade, Ned, que na semana antes de a sua mãe ter morrido aconteceu a mesma coisa? Ela não gritou consigo e não lhe disse que qualquer pessoa podia entrar ali e espetar-lhe uma faca? Os seus vizinhos contaram-me que ela lhe dizia isso sempre que você deixava a porta aberta.

 

Ned, não quero que fale mais pediu Davis. Ned abanou a cabeça ao advogado.

 

Deixe-me em paz, Hal. Eu quero falar.

 

Ned, como é que sabe que a sua mãe ficou apavorada ao ver aquela faca e ao saber que ia morrer? perguntou Marty com aspereza. Não esperou pela resposta. Ela pediu-lhe que não a magoasse? Disse que pedia desculpa por estar sempre a implicar consigo? Encontrava-se sentada à mesa da cozinha. Acabara de perceber que o apartamento fora assaltado. Devia estar muito zangada. A faca encontrava-se ali na parede, no suporte. Ela apontou para a faca e disse-lhe que quem entrara podia ter-lha espetado e que a culpa seria sua?

 

Algo semelhante a um gemido e a um grito saiu da garganta de Ned Koehler, sobressaltando os dois homens. A porta abriu-se e o guarda entrou a correr.

 

Ned Koehler escondeu o rosto nas mãos.

 

Ela disse: ”Não, Ned, desculpa, Ned, não Ned, por favor.” Mas era tarde de mais. Não percebi que tinha a faca na mão e depois ela estava cravada no peito da minha mãe. O seu corpo foi sacudido por enormes soluços quando ele gritou: Desculpa, mãezinha! Desculpa, mãezinha!

 

Eric Bailey aguardava no alpendre de Emily quando ela chegou a casa depois de ter deixado os livros em casa do Dr. Wilcox, visitado o museu e comprado as coisas de que precisava para o projecto que tencionava iniciar.

 

Ele repeliu o pedido de desculpas dela com um gesto.

 

Não te preocupes. Vim a abrir, mas estou cheio de fome. O que é que tens para comer?

 

Ela trouxera coisas para fazer sandes fiambre e queijo suíço, alface, tomate e pão italiano e enquanto preparava o almoço ele começou a desencaixotar as câmaras.

 

Comeram na cozinha.

 

Acrescentei um resto de canja à ementa disse Emily. Fi-la outro dia e congelei o que sobrou. É boa, prometo.

 

Isto faz-me lembrar quando estávamos naqueles escritórios ranhosos em Albany disse Eric enquanto limpava o resto da canja da tigela. Eu ia buscar umas sandes ao café e tu aquecias a sopa.

 

Foi divertido comentou Emily.

 

Foi, e eu não teria tido a empresa se não me tivesses defendido em tribunal.

 

E tu tornaste-te rica. Estamos quites.

 

Sorriram um ao outro. ”O Eric é mais velho do que eu três dias”, pensou Emily, ”mas tenho sempre a sensação de que ele é o meu irmão mais novo.”

 

Fiquei preocupada quando vi que as acções da empresa haviam descido disse ela.

 

Eric encolheu os ombros.

 

Hão-de voltar a subir. Ganhaste muito dinheiro, mas ainda te vais arrepender de ter vendido as acções.

 

Cresci a ouvir dizer que o meu avô perdeu o dinheiro todo em mil novecentos e vinte e nove, aquando do crash da Bolsa. Acho que não me sentia bem com aquelas acções todas em meu poder. Preocupava-me que alguma coisa pudesse correr mal. Assim posso viver o resto da minha vida sem preocupações monetárias, graças a ti.

 

Sempre que precisares que alguém tome conta de ti... Eric deixou a frase no ar quando Emily abanou a cabeça a sorrir.

 

Porquê estragar uma bela amizade?

 

Ele ajudou-a a encher a máquina da louça.

 

Isso compete-me protestou Emily.

 

Gosto de te ajudar.

 

Como disseste que tens de regressar hoje a Albany, preferia que começasses a instalar as câmaras.

 

Poucos minutos depois ela fechou a máquina.

 

Okay. Está tudo pronto. Se trabalhares numa ponta da mesa da sala de jantar, eu instalo-me na outra. Contou-lhe o que tencionava fazer com as cópias dos mapas e os registos da vila.

 

Quero entrar na vida daquelas pessoas disse. Quero saber onde vivia o círculo de amigos da Madeline. Estou convencida de que foi alguém que a conhecia que a matou e depois a enterrou aqui. Mas como é que ele conseguiu safar-se? A Polícia deve ter andado a rondar a casa, pelo menos durante os primeiros dias, quando ela foi dada como desaparecida. Onde é que a mantiveram? Ou onde é que mantiveram o corpo dela? Ou será que o assassino a enterrou aqui no mesmo dia, depois de ter escurecido? O azevinho não deixava ver aquela zona do jardim.

 

Tens a certeza de que não estás a ficar obcecada com este crime, Emily?

 

Ela fitou-o.

 

Estou obcecada por encontrar uma ligação entre os crimes de mil oitocentos e noventa e os de agora. Neste momento a Polícia anda a escavar o jardim de outra pessoa perto daqui, e os agentes acham que talvez encontrem os restos mortais de uma rapariga que desapareceu há dois anos.

 

Emily, não fiques aqui sozinha. Disseste-me que tiveste dois incidentes durante os cinco dias que cá estiveste. Querias gozar uns dias de descanso, umas férias. Por aquilo que vejo, não é isso que está a acontecer.

 

O toque súbito do telefone fez com que Emily ficasse sem fôlego e se agarrasse ao braço de Eric. Conseguiu soltar uma gargalhada quando correu para o escritório a fim de atender.

 

Era o detective Browski. Não perdeu tempo a cumprimentá-la.

 

Emily, o seu cliente no caso Koehler é um patife e um vadio, mas talvez fique satisfeita por saber que não é um assassino. Acabei de deixar o Ned Koehler. Espere só até ouvir...

 

Quinze minutos mais tarde ela regressou à sala de jantar.

 

Que grande conversa comentou Eric com ligeireza. Um novo namorado?

 

Era o detective Browski. Tu conhece-lo. Esteve a dizer coisas bonitas a teu respeito.

 

Vamos lá ouvi-las. Não omitas nada.

 

Segundo ele, provavelmente salvaste-me a vida, Eric. Se a câmara que instalaste não tivesse apanhado o Ned Koehler, não teríamos sabido quem é que andava a perseguir-me.

 

O teu vizinho ouviu barulho e chamou a Polícia.

 

Sim, mas o Koehler soube como desligar o alarme. E foi-se embora antes da chegada da Polícia. Se ele não tivesse sido filmado, graças a ti, não saberíamos quem é que tentara entrar. A próxima vez pode ter um fim diferente para mim.

 

Emily apercebeu-se de que tinha a voz a tremer.

 

Ele admitiu hoje que tencionava matar-me. O Marty Browski diz que na mente retorcida do Koehler o Joel Lake, o tipo que defendi, causou a morte da mãe dele. Disse ao Browski que se o Joel não tem assaltado o apartamento dele, a mãe ainda hoje estaria viva, que o Joel foi o verdadeiro assassino.

 

Que lógica mais estapafúrdia. As mãos de Eric Bailey trabalhavam sem esforço enquanto reunia o equipamento necessário para instalar as câmaras que levara para Spring Lake.

 

Estapafúrdia mas, por outro lado, bastante compreensível. Tenho a certeza de que ele não tencionava matar a mãe e sei que não suporta pensar que foi ele a causa da morte dela. Se o Joel Lake tivesse sido dado como culpado, ele teria sido capaz de transferir a sua culpa para ele. Mas eu consegui a libertação do Joel, por isso tornei-me a má da fita.

 

Não és a má da fita retorquiu Eric Bailey com ênfase. O que me preocupa é, por aquilo que acabaste de dizer, o facto de o Browski estar preocupado com este novo perseguidor. Quem é que ele acha que é o culpado?

 

Ele investigou o meu ex-marido. O Gary pode ser muita coisa, mas não é homem para perseguir ninguém. Tem álibis para terça à noite e sábado de manhã, quando estas últimas fotografias foram tiradas. O Browski ainda não conseguiu localizar o Joel Lake.

 

Estás preocupada com o Lake?

 

Não fiques admirado por eu te dizer que, em certa medida, me sinto aliviada em relação a ele. Recordas-te de como o Ned Koehler se virou contra mim depois de o júri ter absolvido o Lake?

 

Podes crer. Eu estava lá.

 

Quando os guardas afastaram o Koehler, o Joel Lake ajudou-me. Estava mesmo ao meu lado, porque nos havíamos levantado para ouvir o veredicto. Eric, sabes o que ele me disse ao ouvido?

 

O tom da voz de Emily fez Eric Bailey interromper o que estava a fazer e olhar intensamente para ela.

 

Disse: ”Talvez o Koehler tenha razão, Emily. Talvez eu tenha mesmo morto aquela velhota. Como é que isso a faz sentir?” Não contei isto a ninguém, mas tenho andado atormentada desde essa altura. E, no entanto, não acreditei que ele a tivesse morto. Consegues perceber o meu raciocínio? Ele não passa de um tipo desprezível que, em vez de estar grato por não ir passar o resto da vida na prisão, precisava de me atormentar.

 

Sabes o que eu acho, Emily? Acho que ele se sentia atraído por ti e sabia que não teria a mínima possibilidade. A rejeição pode fazer coisas terríveis a algumas pessoas.

 

Bem, se é ele que anda atrás de mim espero que as tuas câmaras consigam apanhá-lo por mim.

 

Quando Eric se foi embora, pouco antes das sete, as câmaras encontravam-se colocadas em todos os lados da casa. O que ele não lhe disse foi que instalara outras dentro de casa e que pusera uma antena na janela do sótão. Agora, num raio de oitocentos metros, com o televisor na sua carrinha, ele conseguia seguir os movimentos dela e ouvir as conversas na sala de estar, na cozinha e no escritório.

 

Quando se despediu com um beijo na cara e iniciou a viagem de regresso a Albany, já estava a planear a próxima visita a Spring Lake.

 

Sorriu ao recordar-se de como ela saltara quando ouvira o telefone tocar. Estava mais nervosa do que aquilo que queria admitir.

 

O medo era a melhor arma da vingança. Ela vendera as suas acções quando valiam o máximo. Pouco depois começaram outras vendas, levando a outras ainda. Agora a empresa dele encontrava-se à beira da falência.

 

Até podia ter-lhe perdoado se ela não o tivesse rejeitado como homem.

 

Se não me amares, Emily disse em voz alta, irás viver o resto da tua vida com medo, à espera do momento em que alguém saia da sombra e não sejas capaz de fugir.

 

Na segunda à tarde, a escavadora que fora deixada no número 15 da Avenida Ludlam levantara apenas uma pazada de terra antes de avariar. Para sua frustração, os técnicos da equipa forense foram informados de que a máquina só voltaria a funcionar na terça de manhã.

 

Rendendo-se ao inevitável, selaram o jardim e deixaram um agente a guardar a casa.

 

Às oito da manhã de terça, ainda antes da chegada da nova escavadora, a comunicação social encontrava-se já presente. As ruas encontravam-se repletas de carrinhas com os logotipos de vários canais de televisão. Helicópteros pairavam sobre a zona enquanto os operadores de câmara filmavam o local das buscas. Jornalistas com microfones aguardavam para ver a equipa forense a vasculhar cada pazada de terra.

 

Emily, em fato de treino e óculos escuros, juntou-se às pessoas paradas no passeio em grupos silenciosos e ouviu os seus comentários.

 

Toda a gente sabia que a Polícia tinha de andar à procura de outro corpo. Mas de quem? Quase de certeza que seria o de Carla Harper, a rapariga que desaparecera havia dois anos, murmuravam. Alguém ouvira dizer que a Polícia duvidava que Carla tivesse chegado a sair de Spring Lake.

 

Havia duas perguntas na boca de toda a gente: ”Porque é

que eles decidiram investigar aqui?” e ”Terá sido porque alguém confessou o crime?”

 

Emily escutou uma avó de aspecto jovem com um carrinho de bebé dizer:

 

É melhor rezarmos para que tenham detido o assassino. É demasiado assustador pensarmos que há um assassino à solta nesta vila. A minha filha, a mãe deste bebé, é pouco mais velha do que a Martha Lawrence e a Carla Harper.

 

Emily recordou-se do que lera no livro de Phyllis Gates: ”A minha mãe tornou-se uma guardiã feroz e nem me deixa passear sozinha.”

 

”A tua mãe tinha razão, Phyllis”, pensou ela. Passara a noite de segunda, até depois da meia-noite, a preparar a maqueta da cidade e a escrever os nomes das ruas tal como haviam sido na altura do primeiro homicídio. Colocara as casas do monopólio na folha de cartolina, com indicação de onde haviam vivido os Shapley, os Cárter, os Gregg e os Swain.

 

Reparou que a jornalista do The National Daily estava perto de si e virou-se rapidamente, decidindo voltar para casa. ”Não quero que ela me faça perguntas”, pensou Emily. ”E depois do que aconteceu a semana passada, não quero estar presente se eles descobrirem mais corpos. Já sei o que precisava de saber sobre o número quinze.”

 

Contudo, ainda não descobrira um padrão que indicasse o assassino do século XIX.

 

Reba Ashby estivera ali na segunda, e regressara na terça, escrevendo furiosamente as suas impressões. Aquela era a história mais quente de toda a sua carreira, e ela tencionava espremê-la o máximo.

 

Ali perto, Irene Cornell, da rádio CBS, estava no ar com a sua reportagem:

 

O choque e a descrença encontram-se estampados nos rostos dos moradores desta pacata vila vitoriana enquanto aguardam para ver se o corpo de outra das mulheres desaparecidas será encontrado começou ela com dramatismo.

 

Às nove e meia, quase uma hora depois de a escavação ter começado, os espectadores viram a escavadora parar abruptamente e a equipa forense avançar para inspeccionar o buraco de onde havia sido retirada a última terra.

 

Encontraram qualquer coisa! exclamou alguém. Os jornalistas que se encontravam na relva, de costas para a casa, as câmaras focadas na escavadora, começaram a falar para os microfones com urgência.

 

Os espectadores aguardaram em silêncio, alguns segurando uma mão amiga. A chegada da carrinha da morgue confirmou que haviam sido encontrados restos humanos. O promotor público chegou num carro-patrulha e prometeu fazer em breve um comunicado.

 

Meia hora mais tarde, Elliot Osborne aproximou-se dos microfones. Confirmou que haviam descoberto um esqueleto embrulhado no mesmo tipo de plástico grosso que contivera os restos de Martha Lawrence. Uma caveira e vários ossos avulso foram encontrados perto dele. Não seriam feitas mais declarações até o médico legista ter tido oportunidade de proceder a um exame minucioso e de apresentar o seu relatório.

 

Osborne recusou-se a responder às dezenas de perguntas que lhe eram gritadas, a mais ruidosa das quais foi:

 

Isto não prova definitivamente que os senhores têm um assassino reencarnado na vila?

 

Tommy Duggan e Pete ”Walsh tinham planeado seguir o carro da morgue desde a cena do crime, mas atrasaram-se a falar com Margo Thaler, de oitenta e dois anos, a actual dona da casa.

 

Visivelmente perturbada, encontrava-se na sala de estar a beber uma chávena de chá que uma vizinha lhe preparara.

 

Não sei se conseguirei voltar a ir ao jardim disse ela a Tommy. Tinha umas roseiras no sítio onde encontraram aquele esqueleto. Costumava pôr-me lá de joelhos a arrancar as ervas daninhas.

 

Mistress Thaler, garantimos-lhe que não fica cá mais nada respondeu Tommy num tom apaziguador. As suas roseiras podem voltar a ser plantadas. Gostaria apenas de lhe fazer algumas perguntas, e depois vamo-nos embora. Há quanto tempo é que mora aqui?

 

Há quarenta anos. Sou a terceira proprietária desta casa. Comprei-a ao Robert Frieze, Sénior. Teve-a durante trinta anos.

 

Ele era o pai do Robert Frieze, dono do The Seasoner? No rosto de Margo Thaler surgiu uma expressão de desdém.

 

Sim, mas o Bob não é nada parecido com o pai. Divorciou-se da esposa, uma mulher encantadora, e casou com aquela Natalie! Depois abriu aquele restaurante. Fui lá uma vez com uns amigos. Os preços são elevados e a comida não presta.

 

”O Bob Frieze não tem muitos amigos nesta vila”, pensou Tommy, começando a fazer contas de cabeça.

 

Frieze tinha cerca de sessenta anos. Mrs. Thaler era dona da casa havia quarenta anos e a família Frieze fora-o durante trinta. Isso significava que Bob Frieze nascera dez anos depois de o pai ter comprado a casa e vivera nela os primeiros vinte anos da sua vida. Tommy arquivou a informação na cabeça para mais tarde voltar a utilizá-la.

 

Mistress Thaler, achamos que aquele esqueleto era o de uma rapariga que desapareceu há dois anos, no dia cinco de Agosto. Parece-me que a senhora teria dado porque alguém lhe tivesse aberto um buraco no jardim nessa altura do ano.

 

Teria dado conta, sim.

 

”O que significa que o corpo foi guardado noutro sítio até poder ser enterrado aqui”, pensou Tommy.

 

Mistress Thaler, eu estive na Polícia daqui durante oito anos interveio Pete Walsh.

 

Ela fitou-o.

 

Oh, claro. Desculpe. Devia tê-lo reconhecido.

 

Lembro-me que a senhora costumava ir para a Florida em Outubro e só regressava em Maio. Ainda costuma fazer isso? perguntou Pete.

 

Sim.

 

”Então está explicado”, pensou Tommy. ”Quem matou a Carla guardou o corpo algures, talvez numa arca congeladora, até o poder enterrar aqui sem ser visto.”

 

Levantou-se.

 

A senhora foi muito prestável e muito simpática por nos ter deixado falar consigo num momento como este, Mistress Thaler.

 

A mulher de idade assentiu e após alguma hesitação disse:

 

Sei que pode parecer um grande egoísmo da minha parte estar preocupada por me ter ajoelhado em cima de uma campa. Tenho a certeza de que já não faltará muito para que os meus filhos e netos se ajoelhem junto à minha. As rosas eram lindas. Se não resistirem por terem sido arrancadas, substituo-as. De certa forma, talvez não tenha sido tão mau estarem a enfeitar a campa daquela pobre rapariga.

 

Tommy estava já junto à porta quando se lembrou de outra coisa.

 

Mistress Thaler, quantos anos tem esta casa?

 

Foi construída em mil oitocentos e setenta e quatro.

 

Sabe a quem pertencia nessa altura?

 

À família do Alan Cárter. Tiveram-na durante cinquenta anos antes de a venderem ao Robert Frieze, Sénior.

 

O Dr. O’Brien ainda estava a examinar as ossadas quando Tommy Duggan e Pete Walsh chegaram à morgue.

 

Um assistente tomava nota da informação à medida que O’Brien a ditava.

 

Enquanto os escutava, Tommy Duggan recordou a descrição de Carla Harper que se encontrava na sua secretária: um metro e sessenta, cinquenta e oito quilos, olhos azuis, cabelo escuro.

 

A fotografia no dossiê mostrava uma rapariga atraente, alegre, com cabelo pelos ombros. ”Nunca hei-de conseguir habituar-me a esta parte”, pensou Tommy naquele momento, ao ouvir o peso dos ossos e o tamanho dos dentes.

 

O que descobriram era praticamente igual ao que ouviram na terça-feira. O esqueleto pertencera a uma rapariga. A causa de morte fora estrangulamento.

 

Olhem para isto disse O’Brien a Duggan e Walsh. Com as mãos enluvadas pegou num resto de tecido. Estão a ver estas contas metálicas? É um pedaço da mesma echarpe que encontrámos em volta do pescoço da Martha Lawrence.

 

Quer dizer que quando o assassino roubou a echarpe na festa... partindo do princípio que foi isso que aconteceu... não só matou a Martha com ela como também a cortou para poder utilizá-la de novo? perguntou Pete Walsh com descrença.

 

Duggan virou-se para ele.

 

Vai lá fora apanhar ar. Não quero que desmaies em cima de mim.

 

Walsh assentiu e saiu rapidamente, reprimindo os vómitos.

 

Não admira que ele fique naquele estado comentou Tommy Duggan, irritado. Está a ver o que isto significa, doutor? Este assassino está a seguir o calendário de mil oitocentos e noventa. Talvez não tenha havido nada de pessoal em matar a Martha Lawrence ou... olhou para o vulto na mesa a Carla Harper. Só devem ter sido escolhidas porque tinham aproximadamente a mesma idade das mulheres que desapareceram no século xix.

 

Uma comparação aos registos dentários irá provar se esta é a Carla Harper. O Dr. O’Brien empurrou os óculos para cima. A caveira que encontrámos à parte estava na terra há muito mais tempo. Calculo que pelo menos há cem anos. Poderemos reconstruir as feições da caveira, mas isso irá levar algum tempo. Mas a minha experiência diz-me que fazia parte do corpo de uma jovem com cerca de vinte anos.

 

Carla Harper e Letitia Gregg disse Tommy Duggan baixinho.

 

A julgar pelos nomes escritos naquele postal, parece provável concordou o Dr. O’Brien. Mas ainda há outra coisa que deve interessá-lo. Pegou num pequeno saco de plástico. Parece um par de brincos antigos explicou. Granadas incrustadas em prata, com uma pérola em forma de lágrima. A minha avó tinha uns parecidos.

 

Onde é que os encontrou?

 

No mesmo sítio do anel. Dentro da mão do esqueleto. Calculo que o assassino não tenha encontrado o osso de um dedo, mas que mesmo assim quis que você fizesse a ligação entre os dois esqueletos.

 

Acha que ele encontrou esses brincos no chão?

 

Creio que ninguém pode responder a isso. Ele teria tido muita sorte se tivesse encontrado o anel e os brincos. Mesmo assim, se ela os tivesse postos eles ainda estariam intactos, embora os lóbulos das orelhas tenham desaparecido há muito. Quando é que disse que a terceira rapariga desapareceu no século xix?

 

A Ellen Swain desapareceu a trinta e um de Março, trinta e um meses e vinte e seis dias depois da Letitia Gregg ter desaparecido, no dia cinco de Agosto. A Carla Harper desapareceu a cinco de Agosto. Faz trinta e um meses e vinte e seis dias este sábado, trinta e um de Março. Tommy sabia que, para além de responder à pergunta, estava a pensar em voz alta.

 

A Madeline e a Martha a sete de Setembro, a Letitia e a Carla a cinco de Agosto, e agora o próximo aniversário é já este sábado disse o Dr. O’Brien lentamente. Acha que este assassino tenciona escolher outra vítima e sepultá-la com a Ellen Swain?

 

Tommy Duggan sentia-se imensamente cansado. Sabia que os jornalistas lhe iriam fazer também aquela pergunta.

 

Doutor O’Brien, espero, e rezo, para que isso não aconteça, mas prometo-lhe que toda a gente ligada à autoridade nesta zona vai agir partindo do princípio que um psicopata tenciona escolher e matar outra rapariga daqui a quatro dias.

 

Se estivesse no seu lugar acharia o mesmo comentou o médico legista enquanto descalçava as luvas. E com todo o respeito que a autoridade me merece, vou mandar as minhas duas filhas visitar a avó no Connecticut durante o fim-de-semana.

 

Não o censuro, doutor concordou Tommy. Compreendo perfeitamente.

 

”E eu vou falar com o Dr. Clayton Wilcox, cuja própria mulher admite ter-lhe entregue a echarpe na noite da festa dos Lawrence”, pensou ele cada vez mais furioso.

 

”Eu e o Pete desconfiámos que o Wilcox nos mentiu no outro dia em casa do Will Stafford. Chegou a altura de lhe sacarmos a verdade.”

 

”Já começaram a acreditar em mim”, pensou ele. Naquela manhã, o ponto alto do programa Today fora uma entrevista com o Dr. Nehru Patel, um proeminente filósofo que escrevia sobre o tema da investigação psíquica. ”Ele acredita piamente que eu sou a reencarnação do assassino em série que viveu no final do século XIX!”

 

”O que intriga o bom doutor Patel, tal como ele explicou à entrevistadora, Katie Couric, é o facto de eu agir contra as leis do carma.”

 

Patel dissera que algumas pessoas podem ter preferido regressar ao local onde haviam vivido uma vida anterior porque precisavam de encontrar as pessoas que conheceram numa encarnação anterior. Queriam pagar as dívidas cármicas que podiam ter para com essas pessoas. Por outro lado, essas acções cármicas deviam ser boas, não más, o que era bastante intrigante.

 

”É possível”, continuara ele, ”que numa vida anterior a Martha Lawrence tivesse sido a Madeline Shapley e a Carla Harper tenha sido a Letitia Gregg.”

 

”Isso não é verdade, mas é um conceito interessante.”

 

”O doutor Patel disse que ao repetir os crimes do século XX eu estou a ir contra o carma e terei muito que expiar nas minhas próximas encarnações.

”Talvez sim, talvez não.”

 

”Por fim perguntaram-lhe se era possível a Ellen Swain estar agora viva num corpo diferente e eu tê-la reconhecido e ir atrás dela no sábado.”

 

”Bem, já escolhi a minha próxima vítima. Ela não é a Ellen, mas há-de dormir com a Ellen.”

 

”E acabei de conceber um plano que irá despistar a Polícia.”

”É delicioso e agrada-me bastante.”

 

Quando o telefone tocou às nove e meia, Clayton Wilcox encontrava-se no escritório, de porta fechada. Rachel fora insuportável ao pequeno-almoço. Uma amiga que comprara um exemplar daquele pasquim sensacionalista, o The National Daily, telefonara a dizer que vinha na primeira página uma história lúgubre sobre a echarpe desaparecida.

 

Pegou no auscultador, receoso, certo de que devia ser a Polícia a querer interrogá-lo de novo.

 

Doutor Wilcox? A voz era sedosa.

 

Embora já não a ouvisse há mais de doze anos, Clayton Wilcox reconheceu-a de imediato.

 

Como está, Gina? perguntou.

 

Estou bem, doutor, mas tenho lido muito sobre Spring Lake e sobre as coisas que estão a passar-se aí. Lamento saber que foi a echarpe da sua mulher que foi utilizada para estrangular a pobre Martha Lawrence.

 

Do que é que está a falar?

 

Da coluna da Reba Ashby publicada na edição de hoje do The National Daily. Já a leu?

 

Já ouvi falar dela. É um disparate. As autoridades ainda não confirmaram que a echarpe da minha mulher foi usada pelo assassino.

 

Na coluna está escrito que a sua mulher jura ter-lha dado para que o senhor a guardasse no bolso.

 

Gina, o que é que você quer?

 

Doutor, já há algum tempo que acho que fiz mal em contentar-me com tão pouco dinheiro depois daquilo que o senhor me fez.

 

Clayton Wilcox tentou engolir, mas os músculos da sua garganta não obedeceram.

 

Gina, ”aquilo que eu lhe fiz”, como referiu, foi responder à sua receptividade.

 

Doutor... O tom de escárnio continuava presente na voz dela. Depois desapareceu. Podia tê-lo processado, e ao colégio, e ter recebido uma boa indemnização. Em vez disso, deixei que me convencesse a aceitar uns míseros cem mil dólares. Dava-me jeito mais algum dinheiro agora. Quanto acha que o tablóide da Reba Ashby pagaria pela minha história?

 

Não seria capaz de fazer isso!

 

Seria sim. Agora tenho um filho de sete anos. Estou divorciada e acho que o meu casamento não resultou porque ainda estava psicologicamente abalada pelo que me aconteceu em Enoch. Afinal de contas, tinha apenas vinte anos. Sei que agora é demasiado tarde para processar o colégio.

 

Quanto é que quer, Gina?

 

Oh, acho que mais uns cem mil dólares chegavam.

 

Não consigo arranjar tanto dinheiro.

 

Conseguiu da última vez. Há-de conseguir desta. Tenciono ir no sábado a Spring Lake, para o ver a si ou à Polícia. Se não me pagar, o passo seguinte será descobrir quanto é que o The National Daily está disposto a pagar por uma história sumarenta sobre o respeitado antigo director do Colégio Enoch que teve o azar de perder a echarpe da mulher antes de ela ser utilizada para matar uma rapariga. Lembre-se, doutor, eu também tenho cabelo louro comprido.

 

No colégio chegou a aprender o significado da palavra ”chantagem”, Gina?

 

Sim, mas também aprendi o significado de outros termos como ”assédio sexual” e ”receptividade indesejada”. Ligo-lhe no sábado de manhã. Adeus, doutor.

 

Na segunda e na terça, Nick Todd pegara no telefone uma dezena de vezes, tencionando ligar a Emily, mas arrependera-se sempre. Sabia que antes de a deixar no domingo à noite exagerara na sua insistência para que ela ficasse no seu apartamento de Manhattan até que quem andava a persegui-la fosse descoberto e preso.

 

Ela acabara por se mostrar irritada e dissera:

 

Olha, Nick, sei que a tua intenção é boa, mas vou ficar aqui e ponto final. É melhor falarmos de outra coisa.

 

”A intenção é boa”, pensou Nick. ”Não há nada pior do que ser o tipo de chato com boas intenções.”

 

O pai também não ficara muito satisfeito quando ele lhe comunicara que Emily recusara começar a trabalhar antes do dia 1 de Maio a menos, é claro, que descobrisse entretanto o mistério do homicídio da sua antepassada.

 

Ela acha mesmo que vai solucionar um crime, ou uma série de crimes, que aconteceram no final do século xix? perguntara Walter Todd com ar incrédulo. Talvez seja melhor repensar a contratação daquela rapariga. Essa deve ser a proposta mais maluca que ouvi nos últimos cinquenta anos.

 

Depois disso, Nick decidira não contar ao pai que ou o homem que perseguira Emily em Albany ou um imitador andavam a incomodá-la em Spring Lake. Sabia que a reacção do pai seria igual à sua: ”Sai dessa casa. Aí não estás em segurança.”

Na quarta-feira, depois de ler nos matutinos os artigos sobre a descoberta macabra de mais duas vítimas, Nick não se admirou de ver o pai entrar disparado pelo seu gabinete, uma expressão irritada e frustrada no rosto que apavorava os novos associados da firma.

 

Nick, há um psicopata à solta lá em baixo e se ele descobre que a Emily Graham anda a tentar estabelecer uma ligação entre ele e o assassino do século XIX ela pode estar em perigo! exclamou.

 

Já pensei nisso respondeu Nick calmamente. Aliás, até discuti o assunto com a Emily.

 

Como é que eles souberam onde deviam procurar aquelas ossadas?

 

O promotor público disse apenas que foi uma informação anónima.

 

- É melhor a Emily ter cuidado. Ela é uma mulher inteligente. Talvez tenha descoberto alguma coisa. Nick, telefona-lhe. Oferece-lhe um guarda-costas. Conheço uns tipos capazes de olharem por ela. Ou talvez prefiras que seja eu a ligar-lhe.

 

Não, eu ligo. Já tencionava fazê-lo. Quando o pai saiu do seu gabinete, Nick pensou em Lindy, a editora de moda com quem namorara intermitentemente durante vários anos. Há seis meses, quando a deixara em casa uma noite, dissera: Eu depois telefono-te.

 

Óptimo respondera ela. Espero que me digas aquilo que quero ouvir. Ao ver a expressão de espanto no rosto dele, Lindy soltara uma gargalhada. Nick, acho que chegou a altura de avançarmos. Como casal, não vamos a lado nenhum, e eu estou cada vez mais velha. Ciao.

 

”Nem sequer sei se a Emily quer de mim um simples telefonema”, pensou Nick ao marcar o número dela.

 

Na quarta de manhã, Emily levantou-se às seis horas e, com a inevitável chávena de café na mão, foi direita à sala de jantar para trabalhar no seu projecto.

 

A descoberta do esqueleto e da caveira na Avenida Ludlam dera um novo ímpeto à sua busca de uma ligação que unisse os dois assassinos, o antigo e o novo.

 

Sentia o que sempre sentia quando preparava uma defesa que estava no caminho certo, que haveria de descobrir aquilo de que precisava para provar a sua teoria.

 

Também tinha a certeza de que, a menos que parasse, o assassino tiraria outra vida no sábado, dia trinta e um.

 

Às nove horas, George Lawrence telefonou.

 

Emily, eu e a minha mãe andámos a ver os álbuns de fotografias e as outras coisas que ela guardou no sótão. Não queríamos que você perdesse demasiado tempo com aquilo, por isso, pusemos de parte tudo o que não é importante. Se não lhe fizer diferença, passo por aí dentro de uma hora para lhe entregar as coisas.

 

Isso era óptimo! Emily correu para o primeiro andar, a fim de tomar banho, e tinha acabado de se vestir quando a campainha tocou.

 

George Lawrence entrou com duas caixas pesadas. Vestia um corta-vento e umas calças de sarja e Emily achou que ele parecia muito mais vulnerável naquele dia do que no sábado, altura em que tivera uma aparência mais composta.

 

Ele levou as caixas até à sala, reparando nas resmas de folhas nas cadeiras e na cartolina em cima da mesa.

 

Parece muito atarefada. Não tenha pressa em devolver-nos isto. A minha mãe não lhe tocava há mais de vinte anos. Quando estiver despachada, ligue-lhe. O marido da governanta há-de vir buscar as coisas.

 

Obrigada. Agora, deixe-me mostrar-lhe o que estou a tentar fazer.

 

George Lawrence escutou atentamente enquanto ela lhe mostrava como recriara a cidade no final do século XIX.

 

Havia muito menos casas na altura, como deve saber disse Emily, e os registos estão incompletos. Estou certa de que hei-de descobrir alguma coisa no material que me veio entregar.

 

Esta é a sua casa? perguntou ele tocando numa das casas do monopólio.

 

Sim.

 

E esta é a nossa?

 

Sim.

 

O que está a tentar fazer exactamente?

 

Descobrir como é que três raparigas podem ter desaparecido sem deixar rasto. Ando à procura da casa de um dos amigos delas... um dos rapazes, talvez... onde podem ter sido persuadidas a entrar. Por exemplo, conheci a Carolyn Taylor no vosso almoço do outro dia. Ela disse que a Phyllis Gates, antepassada dela, que era amiga da minha antepassada Madeline e da sua antepassada Julia Gordon, achava que fora o noivo da Madeline, o Douglas Cárter, quem a matara. Emily apontou. Pense nisto. Aqui está a casa dos Shapley e aqui, do outro lado da rua, a casa dos Cárter. Consta que o Douglas perdeu o primeiro comboio para casa no dia em que a Madeline desapareceu. Mas será que é verdade?

 

Mas não verificaram a história dele na altura?

 

Prometeram deixar-me ver os registos da Polícia. Estou muito interessada em ver o que é que eles me irão revelar. Imagine aquele dia. A Madeline estava sentada no alpendre, à espera do Douglas. Não me parece que ela se tenha levantado e ido dar uma volta sem avisar a mãe. Mas imagine que o Douglas apareceu de repente no alpendre dele e ela correu a cumprimentá-lo?

 

E que ele a puxou para dentro de casa, a matou e escondeu o corpo até arranjar forma de a enterrar no jardim da casa dela? George Lawrence parecia céptico. Qual seria o motivo dele?

 

Não sei, e admito que a teoria é rebuscada. Por outro lado, parece que o Alan Cárter, primo dele, estava também apaixonado pela Madeline. A família dele vivia nesta casa da Avenida Ludlam onde os corpos foram encontrados ontem. Imagine que ele passou por lá numa carruagem fechada e que disse à Madeline que o Douglas tivera um acidente?

 

Soubemos ontem da descoberta, claro. Agora a família Harper tem de enfrentar aquilo que enfrentámos a semana passada. Não os conhecemos pessoalmente, mas temos amigos comuns.

 

A dor que George Lawrence estava a sentir foi evidente para Emily quando, num tom simultaneamente amargo e triste, ele disse:

 

Talvez os Harper, a Amanda e eu acabemos no mesmo grupo de apoio.

 

Como está a Amanda? perguntou Emily. Admirei-a tanto no sábado. Deve ter sido tão difícil para ela, para todos vós.

 

Foi, e como você viu, a Amanda foi maravilhosa. Ter o bebé aqui foi uma grande ajuda. Mas a Christine, o Tom e o bebé voltaram para casa no domingo. Ontem visitámos o cemitério e a Amanda foi-se abaixo. Acho que provavelmente isso foi o melhor. Ela precisava de deitar tudo cá para fora. Bem, vou andando. Regressamos a casa esta tarde. A minha mãe pediu-me para lhe dizer que lhe ligasse se tivesse alguma pergunta.

 

Quando Emily fechou a porta depois de George Lawrence ter saído o telefone tocou. Era Nick Todd.

 

Emily ficou um pouco vexada ao aperceber-se que as suas emoções ao ouvir a voz dele eram contraditórias. Por um lado, sentia-se satisfeita por Nick ter telefonado. Por outro, desiludida por ele não se ter dado ao trabalho de telefonar desde o fim-de-semana para ver se ela tivera mais problemas com o perseguidor.

 

Porém, a explicação tímida dele agradou-lhe.

 

Emily, sei que não fui muito correcto quando tentei praticamente arrastar-te de casa na outra noite. Só que fiquei muito assustado quando percebi que o perseguidor deixara aquela fotografia. Devia ter-te ligado antes, mas não queria ser chato.

 

Então está descansado, pois eu não acho que sejas chato.

 

Espero que não tenhas tido mais incidentes com o tipo.

 

Nem um. E na segunda, o meu amigo Eric Bailey veio de Albany instalar câmaras no exterior da casa. Da próxima vez que alguém tentar enfiar alguma coisa debaixo da porta havemos de ver a imagem dele num ecrã.

 

E ligas as câmaras sempre que estás sozinha em casa? ”Agora estão desligadas”, pensou Emily.

 

Sempre que anoitece.

 

Não seria má ideia ligá-las também de dia.

 

Acho que não. Mas não quero viver numa jaula. Não quero ir ao alpendre respirar ar puro e ouvir aquela maldita sirena disparar porque me esqueci que o alarme estava ligado. A sua voz estava um pouco tensa.

 

Emily, desculpa. Não sei o que é que me faz pensar que tenho o direito de agir como um monitor.

 

Não precisas de pedir desculpa. Estás a portar-te como um amigo preocupado, simpático. Tenciono ser cuidadosa, mas às tantas começo a achar que quem fez aquilo está a ganhar. Não vou permitir que isso aconteça.

 

Compreendo. Os jornais só falam do que aconteceu ontem em Spring Lake.

 

Sim, está a fazer furor na comunicação social. Tinha ido correr e estava a pensar no projecto de que te falei quando os vi escavar aquele jardim.

 

Os artigos dizem que a Polícia recebeu uma informação anónima. Fazes ideia de quem?

 

De mim.

 

Assim que falou, Emily arrependeu-se. Teve de lhe contar imediatamente que recebera o postal.

 

Pelo silêncio chocado do outro lado da linha, percebeu que Nick Todd teve a reacção que ela esperaria dos pais.

 

Emily, achas que há alguma possibilidade de esse assassino de Spring Lake ser o tipo que te perseguiu em Albany? perguntou ele por fim.

 

Não, não acho. E o detective Browski também não. Como referira o nome do polícia de Albany, tinha de contar a Nick a confissão de Ned Koehler.

 

Quando a conversa terminou, ela recusara firmemente a oferta de um guarda-costas por parte de Walter Todd e aceitara o convite de Nick para outro pequeno-almoço tardio no Old Mill, no domingo.

 

Só espero que não falemos de outro homicídio disse ela.

 

Muito depois de se terem despedido, Nick Todd continuava sentado à secretária, com os dedos das mãos entrecruzados. ”Emily, porque é que és tão esperta e tão obtusa? Nunca te ocorreu que podes ter sido escolhida para próxima vítima?

 

Tommy Duggan e Pete Walsh começaram a manhã no gabinete de Elliot Osborne, onde a secretária se encontrava coberta de papéis.

 

Não é muito fotogénico, Tommy comentou Osborne.

 

Ainda não havia visto essa balbuciou Tommy. A fotografia fora tirada na véspera e mostrava-o a sair da casa da Avenida Ludlam. Ao estudá-la, começou a considerar dar mais atenção à sua dieta.

 

Walsh, claro, ficara muito bem nas fotografias.

 

Foi uma pena não teres tentado ser modelo para a revista da Polícia comentou Tommy num tom mordaz, olhando para a fotografia do colega.

 

Mas olha que devia ter tentado. Já na quarta classe desempenhava o papel do protagonista nas peças de teatro contou Pete.

 

Muito bem, parem com isso interveio Osborne. O momento de humor terminou. Osborne assentiu na direcção de Duggan.

 

Você primeiro.

 

Tommy abrira o bloco de apontamentos.

 

Como sabe, já identificámos o esqueleto encontrado ontem. Os registos dentários confirmam que ele pertence a Carla Harper. O bocado da echarpe que parece ter sido usado para a asfixiar faz parte da mesma echarpe utilizada para asfixiar a Martha Lawrence. O assassino usou uma ponta na Martha e o centro na Carla. Falta a outra ponta.

 

O que quer dizer que se o assassino seguir o que parece ser o seu plano, irá utilizar o resto da echarpe no sábado. Osborne franziu a testa e reclinou-se na cadeira. Por muitos agentes que metamos a patrulhar Spring Lake, não podemos estar em todas as ruas, em todos os jardins. Que tal está a correr a investigação sobre o Wilcox?

 

Até agora descobrimos pouco mais do que já sabíamos. Resumindo, ele era filho único e foi criado em Long Island. O pai morreu quando era criança. Era muito chegado à mãe, uma professora, que o ajudava nos trabalhos de casa, calculo. Foi sempre dos melhores alunos da turma.

 

A irmã do pai vivia em Spring Lake, daí a ligação dele a esta terra. Visitou-a todos os Verões durante vários anos. A mãe morreu quando ele tinha trinta e oito anos e alguns anos mais tarde casou com a Rachel. Tommy fez uma pausa. Chefe, se ela fosse minha mulher, teria arranjado emprego como caixeiro-viajante.

 

Foi progredindo pela carreira académica e acabou por aceitar a presidência do Colégio Enoch, no Ohio. Aposentou-se há doze anos, com cinquenta e cinco anos. Escreve para jornais académicos, tem pesquisado a história desta zona e já publicou vários artigos nos jornais locais. Disse há pouco tempo ao bibliotecário de Spring Lake que está a escrever um romance passado no velho Hotel Monmouth.

 

Não há nada de transcendente nisso comentou Osborne.

 

Se a Emily Graham estiver certa, pode haver. Ela acha que temos o assassino copista que encontrou pormenores explícitos dos homicídios do século xix e está a imitá-los. Outra coisa. Soubemos que o Wilcox se demitiu abruptamente do cargo de presidente do colégio. Na altura, ele acabara de ver renovado o contrato e tinha imensos planos para o futuro, palestras com grandes oradores e coisas do género.

 

Alguma explicação?

 

A oficial foi problemas de saúde. Parece que qualquer coisa no coração. Fizeram-lhe uma grande festa de despedida e até deram o nome dele a um edifício. Tommy sorriu. Adivinhe.

 

Elliot Osborne aguardou. Sabia que Tommy Duggan gostava de apresentar informações sumarentas com pompa. ”Como se estivesse a tirar um coelho de uma cartola”, pensou.

 

Desembuche, Tommy ordenou. Descobriu qualquer coisa.

 

Sim, talvez. É mais um palpite do que uma coisa concreta. Aposto que ele tem tantos problemas cardíacos como o senhor, eu ou o Pete. Acho que ou o mandaram demitir-se ou ele se demitiu por iniciativa própria porque tinha um grande problema e não queria que viesse a tornar-se público. Agora o nosso trabalho é sacar-lhe essa informação.

 

Vamos vê-lo às três horas acrescentou Pete Walsh. Achámos que seria boa ideia deixá-lo espernear um pouco enquanto espera por nós.

 

É boa ideia. Osborne fez menção de querer levantar-se, mas Pete Walsh tinha mais qualquer coisa a dizer.

 

Para que saiba, passei a noite a ler os relatórios da polícia sobre a investigação dos desaparecimentos daquelas raparigas no século XIX.

 

Osborne apercebeu-se de que o detective mais novo queria impressioná-lo.

 

Descobriu alguma coisa útil?

 

Não. Só uma grande semelhança com o que está a acontecer agora. Parece que as raparigas se sumiram da face da terra.

 

Vai dar uma cópia desses relatórios à Emily Graham? perguntou Osborne.

 

Pete pareceu preocupado.

 

Pedi autorização ao primeiro assistente.

 

Sei que sim. Normalmente não gosto que os relatórios, mesmo que tenham cem anos, saiam das vias habituais, mas se você lhos prometeu, vou autorizar.

 

Elliot Osborne levantou-se, indicando que a reunião chegara ao fim.

 

Duggan e Walsh imitaram-no.

 

Recebemos uma boa notícia disse Tommy enquanto se dirigia para a porta. O assassino da doutora Madden é melhor a estrangular pessoas do que a estragar computadores.

 

Os nossos técnicos estavam com receio de que o disco rígido tivesse ficado danificado, mas conseguiram pô-lo a funcionar. Com sorte, iremos recuperar os ficheiros da médica... e talvez descobrir que um dos convidados da festa dos Lawrence há quatro anos e meio também passou algum tempo a falar com uma psicóloga especialista em terapia de regressão.

 

Bob, o que estás a tentar fazer-me?

 

Não me apercebi que queria fazer-te alguma coisa.

 

Onde foste a noite passada?

 

Como não conseguia dormir, fui lá para baixo como de costume, ler um pouco. Subi por volta das cinco, tomei um comprimido para dormir e nessa altura ele funcionou.

 

Era quase meio-dia. Robert Frieze descera as escadas e encontrara Natalie, a mulher, sentada na sala, à sua espera.

 

Estás muito bonita comentou ele. Vais a algum lado?

 

Vou almoçar fora.

 

Estava a pensar em convidar-te para almoçar.

 

Não é preciso. Vai lá untar as mãos dos teus clientes no Four Seasons. Se conseguires encontrá-lo.

 

O nome do meu restaurante é The Seasoner. Não é Four Seasons.

 

Não, lá isso não é.

 

Bob Frieze olhou para a sua bela mulher, admirando o cabelo louro brilhante, as feições quase perfeitas, os olhos felinos azul-turquesa. Recordando-se de como já a achara excitante, ficou espantado ao constatar a indiferença que sentia por ela.

 

”É mais do que indiferença”, pensou. ”É saturação. Estou saturado dela.-”

 

Natalie envergava um calça-casaco verde-escuro feito por encomenda que ele nunca vira. Obviamente novo. Obviamente caro. Perguntou de si para si como arranjaria ela espaço no roupeiro.

 

Uma vez que não vou ter a honra da tua companhia, acho melhor ir andando.

 

Ainda não. Natalie levantou-se rapidamente. Quer acredites quer não, ultimamente não tenho andado a dormir muito bem. Esta noite vim cá abaixo às duas. Não te vi, Bobby. E o teu carro não estava lá fora. Agora importas-te de me explicar por onde é que andaste?

 

”Ela não me dizia uma coisa destas se não fosse verdade”, pensou Frieze agitado. ”Não sei onde fui.”

 

Natalie, estava tão cansado que me esqueci. Realmente fui dar uma volta. Queria apanhar ar fresco e pensar um bocado. Procurou as palavras. Decidi aceitar a oferta do Bonetti, embora seja bastante inferior à que esperava. Vamos vender esta casa e mudar-nos para Manhattan, talvez comprar um apartamento mais pequeno do que havíamos planeado...

 

Natalie interrompeu-o.

 

Quando foste dar a tua volta ontem à noite para pensar, deves ter pensado que uma bebida te ajudaria a aclarar as ideias. Uma bebida com uma amiga, quero eu dizer. Olha o que encontrei no teu bolso. Atirou-lhe um pedaço de papel.

 

Bob leu o que estava lá escrito. ”Olá, borracho. O meu número é o 555-1974. Não te esqueças de ligar. Peggy.”

 

Não sei como é que isso foi parar ao meu bolso, Natalie.

 

Eu sei, Bobby. Uma tipa chamada Peggy meteu-to lá. Tenho novidades para ti. Livra-te do restaurante. Vende esta casa. Paga as tuas dívidas e vende o que tiveres para vender. E depois recorda-te do que valias no dia em que me casei contigo. Aproximou-se e quase encostou o seu rosto ao dele. Deixa-me explicar-te porquê. É porque quando sair deste casamento tenciono levar metade do que valias nessa altura.

 

Estás louca, Natalie.

 

Estou? Bobby, tenho pensado muito sobre a festa dos Lawrence. Tu levaste aquele casaco volumoso que achas muito elegante. Podias ter escondido aquela echarpe debaixo dele. E na manhã seguinte quando me levantei encontrei-te a escavar o jardim. Não estarias por acaso a livrar-te do corpo da Martha até poderes levá-lo para o jardim dos Shapley?

 

Não podes acreditar numa coisa dessas!

 

Talvez possa. E talvez não possa. És um homem estranho, Bob. Há alturas em que olhas para mim como se não me conhecesses. Desapareces sem me dizeres onde vais. Talvez seja meu dever cívico dizer ao detective Duggan que tenho andado preocupada com o teu comportamento e que, para teu bem e para bem da comunidade, decidi comunicá-lo às autoridades.

 

As veias na testa de Robert Frieze começaram a inchar. Ele agarrou no pulso de Natalie e apertou-o até ela gritar de dor. Tinha o rosto alterado devido à fúria.

 

Se contares ao Duggan, ou a alguém, uma história dessas, é melhor começares a preocupar-te contigo. Percebido? ameaçou entre dentes.

 

Joel Lake foi encontrado às três da manhã de quarta-feira, depois de ter andado desaparecido. Preparava-se para assaltar uma casa em Troy quando a Polícia chegou, convocada pelo alarme silencioso.

 

Sete horas mais tarde, Marty Browski foi à prisão onde Lake se encontrava detido para o interrogar.

 

Vejo que estás de novo no teu habitat natural, Joel. Nunca mais aprendes, pois não?

 

O esgar trocista permanente no rosto de Joel Lake intensificou-se.

 

Aprendo, sim, Browski. Mantenho-me longe das casas com velhotas. Dão muito trabalho.

 

Podias ter tido mais trabalho se a Emily Graham não te tem safo da acusação de homicídio. Todos pensámos que tinhas morto a Ruth Koehler.

 

Pensaram! E agora mudaram de ideias? Lake parecia surpreendido.

 

”Erva daninha”, pensou Browski, observando atentamente o outro. Estava com vinte e oito anos e andava metido em sarilhos desde os doze. O seu cadastro juvenil era do comprimento de um braço. Provavelmente atraente para algumas mulheres, tinha ar de macho, com uma constituição robusta, cabelo encaracolado escuro, olhos muito juntos e uma boca cheia.

 

Emily contara a Browski que Lake tentara atirar-se a ela algumas vezes. ”É o tipo de gajo que não tolera a rejeição”, pensou Browski naquele momento, com a esperança de se encontrar perante o perseguidor.

 

O intervalo de tempo batia certo. Joel Lake infringira a liberdade condicional e desaparecera por volta da altura em que começara a perseguição.

 

Tivemos saudades tuas, Joel disse Browski com um sorriso. Agora deixa-me ler-te os teus direitos antes de irmos directos ao assunto. É um desperdício de palavras, claro. Já as conheces de cor.

 

Disse aos tipos que me prenderam que ia a passar por ali, vi a janela aberta e achei boa ideia ir espreitar para ver se ninguém estava metido em sarilhos.

 

Marty Browski riu com gosto.

 

Ora, vá lá, consegues fazer melhor do que isso. Joel, estou-me nas tintas para o teu assalto. Isso é com os xuis de Troy. Quero falar contigo acerca do teu paradeiro nos últimos tempos. E quero saber do teu interesse pela Emily Graham.

 

O que tem a Graham? A última vez que a vi foi no tribunal. Joel Lake sorriu. Consegui mesmo a sua atenção. Disse-lhe que talvez tivesse mesmo morto a velhota. Devia ter visto a cara dela. Aposto que é isso que anda a atormentá-la, a dúvida de que afinal eu não estava a brincar e a certeza de que não poderiam julgar-me de novo por esse crime.

 

Marty sentiu vontade de esmurrar aquela cara insolente, fazer desaparecer o sorriso satisfeito e cruel dos lábios do patife.

 

Já alguma vez foste a Spring Lake, Joel? perguntou.

 

Spring Lake? Onde é que isso fica?

 

Em Nova Jérsia.

 

Porque haveria de lá ir?

 

Diz-me lá.

 

Okay, vou dizer-lhe. Nunca lá pus os pés.

 

Onde estiveste no sábado de manhã?

 

Não me lembro. Provavelmente na igreja. Lake falava com uma expressão de falsa sinceridade e nos seus lábios bailava um sorriso de desdém.

 

Foi mesmo aí que pensei que havias estado. Acho que estiveste na Igreja de Santa Catarina em Spring Lake, Nova Jérsia.

 

Ouça, está a tentar culpar-me de alguma coisa? Porque se tem a ver com o sábado passado está a perder o seu tempo.

 

Estive em Buffalo, onde tenho estado no último ano e meio... e onde devia ter ficado.

 

Podes prová-lo?

 

Claro que sim. De que horas estamos a falar?

 

Do meio-dia, mais ou menos.

 

Não podia ser melhor. Estive a beber uns copos com uns amigos no Café Sunrise, na Rua Coogan. Lá conhecem-me como Joey Pond. Percebido? Achei melhor mudar de nome.

 

Marty empurrou a cadeira para trás e levantou-se. Aquele fora o nome que Lake tivera nos documentos pessoais que transportava quando fora preso. Com certeza o álibi seria confirmado e, pensando bem, o tipo não parecia ter subtileza nem sofisticação para perseguir Emily Graham daquela forma.

 

”Não”, pensou Marty, ”este vadio vingou-se do facto de a Emily o ter rejeitado sugerindo que era culpado da morte da Ruth Koehler, e deixando-a recriminar-se por tê-lo ajudado a sair do tribunal em liberdade.”

 

Não tem mais perguntas, Browski? Lake parecia surpreendido. Até gosto da sua companhia. O que aconteceu em Spring Lake para você me querer deitar as culpas?

 

Browski inclinou-se sobre a mesa que o separava de Lake.

 

Alguém tem andado a incomodar a Emily Graham.

 

A incomodar? Quer dizer a perseguir. Olhe, isso não é nada o meu género disse Joel.

 

Tinhas uns amigos muito chungosos a acompanhar-te no julgamento. Se um deles tem alguma fixação pela Emily Graham depois de a ter visto no tribunal e tu souberes, é melhor contares-me já. Porque se lhe acontecer alguma coisa, aviso-te que nunca mais pões os pés fora de Attica! exclamou Browski num tom grave e ameaçador.

 

Não me mete medo, Browski desdenhou Joel Lake. Pensei que o filho da senhora Koehler é que era o perseguidor. Bolas, Browski, você é mesmo um zero à esquerda. Enganou-se a meu respeito e enganou-se a respeito dele. É melhor tirar outro curso de detective!

 

Quando regressou ao gabinete, Marty ligou a Emily para lhe dizer que Joel Lake fora localizado e não era de certeza o perseguidor.

 

Outra coisa disse. Ele comentou que lhe deu a entender que tinha mesmo morto a Ruth Koehler. Para o caso de você pensar que libertou um assassino, ele acabou de admitir que o fez só para a aborrecer.

 

Quando você me disse que o Ned Koehler confessara, todas as minhas dúvidas desapareceram. Mas mesmo assim agrada-me que você o tivesse ouvido da boca dele.

 

Mais alguma coisa sobre o perseguidor, Emily?

 

Até agora não. O alarme é do mais moderno que há, embora admita que acordo a meio da noite a pensar que o Ned Koehler conseguiu neutralizar o que eu tinha na cidade. Mas sinto que as câmaras que o Eric Bailey instalou me dão mais alguma segurança. De certa forma, tenho pena que o Joel não seja o perseguidor. Pelo menos tinha a satisfação de saber que ele estava de novo atrás das grades

 

Browski apercebeu-se do tremor que de vez em quando surgia na voz de Emily Graham. Sentiu-se zangado e frustrado por estar de novo sem um suspeito. Admitiu que também estava com muito medo que Emily corresse mesmo perigo.

 

Emily, no ano passado investigámos várias pessoas que podem ter ficado zangadas com os veredictos de inocente que você conseguiu para alguns dos seus clientes. Nenhum deles pareceu suspeito. E quanto ao edifício onde era o seu escritório? Havia lá alguém que andava a fazer-lhe olhinhos ou que tenha ficado com ciúmes por você ter ganho aquele dinheiro todo?

 

Emily acabara de entrar na cozinha para fazer uma sandes para o almoço quando recebera o telefonema de Marty. Quando atendera, pegara no telefone e aproximara-se da janela.

 

Depois da manhã nublada, o dia tornara-se soalheiro e em redor das árvores pairava uma névoa rosada. ”Ando sempre à procura daquela névoa”, pensou Emily. ”É o primeiro sinal da Primavera.”

 

Marty Browski estava desesperado por encontrar outro suspeito que pudesse ser o perseguidor. Ela percebia porquê. Tal como Eric e Nick, ele tinha receio de que a certa altura o perseguidor, fosse ele quem fosse, pudesse tentar mesmo atacá-la.

 

Marty, tenho uma ideia disse. Sabe que o Eric Bailey trabalhou vários anos no escritório ao lado do meu. Talvez ele se lembre do nome de alguém no nosso prédio ou até de um fornecedor que lhe tenha parecido estranho. Sei que terá muito gosto em falar consigo. Costuma ligar-me várias vezes por semana para ver se estou bem.

 

Provavelmente seria outro beco sem saída, pensou Marty, mas nunca se sabia.

 

Vou fazer isso, Emily disse, acrescentando depois: Tenho andado a ler umas coisas sobre Spring Lake. A descoberta de mais dois corpos ontem deve ter sido um grande choque. Os jornais dizem que se o psicopata seguir o padrão, deve atacar outra vez no sábado. Talvez seja boa ideia...

 

Eu sair de Spring Lake e refugiar-me no apartamento em Manhattan? perguntou Emily. Marty, obrigada pela preocupação, mas descobri uns documentos novos que estou a estudar e sinceramente acho que a minha investigação está a avançar. Você é um querido, mas vou ficar por aqui.

 

Interrompendo os protestos dele, Emily despediu-se num tom firme:

 

Adeus, Marty.

A recepção no televisor da carrinha estacionada a seis quarteirões era excelente. Eric encontrava-se sentado na cadeira pequena mas confortável que colocara em frente ao aparelho. ”Muito bem, Emily”, pensou. ”Obrigado pelo voto de confiança. Contava ficar mais um dia, mas agora tenho de regressar para falar com Mister Browski amanhã. Azar.”

 

Tinha uma excelente fotografia de Emily a abrir a porta a George Lawrence, mas não era muito aconselhável mandar-lha naquele momento. Regressaria na sexta-feira à noite.

 

Mister Stafford pergunta se se importa de esperar alguns minutos, Mistress Frieze. Ele está a acabar de redigir um contrato.

 

Pat Glynn, de vinte e três anos, a recepcionista de Will Stafford, sorriu nervosamente para Natalie Frieze, que a intimidava bastante.

 

”Ela é tão elegante”, pensou Pat. ”De cada vez que entra por aquela porta sinto-me muito tosca.”

 

Quando se vestira naquela manhã gostara de se ver com o novo calça-casaco vermelho de lã, mas agora já não tinha tanta certeza. Comparado com o fato verde-escuro de Natalie Frieze era bastante grosseiro.

 

E fizera um corte drástico ao cabelo, que agora mal lhe cobria as orelhas. Dois dias antes achara-o muito moderno. Naquele momento, ao olhar para o cabelo louro comprido e sedoso de Natalie, Pat teve a certeza de que cometera um erro terrível.

 

Natalie Frieze parecia não trazer maquilhagem, mas ninguém podia parecer tão bem sem um pouco de ajuda, pois não?, pensou Pat esperançada.

 

Está muito bonita, Mistress Frieze elogiou timidamente.

 

Ora, muito obrigada agradeceu Natalie. Divertia-se sempre com o temor que inspirava à simplória da secretária de Will, mas apercebeu-se de que o elogio a deixara mais animada. É bom ouvir uma palavra simpática, Pat.

 

Não se sente bem, Mistress Frieze?

 

Nem por isso. Dói-me muito o pulso. Ergueu o braço, fazendo com que a manga deslizasse e revelasse uma nódoa negra muito feia.

 

Will Stafford saiu do gabinete.

 

Desculpe tê-la feito esperar. O que aconteceu ao seu pulso?

 

Natalie deu-lhe um beijo.

 

Eu conto-lhe ao almoço. Vamos. Virou-se para a porta, depois olhou para trás e dirigiu a Pat Glynn um sorriso.

 

Volto daqui a uma hora, Pat disse Will.

 

Diga antes daqui a hora e meia corrigiu Natalie. Quando saíram, Will fechou a porta atrás de si, mas não antes de Pat Glynn ter ouvido Natalie dizer:

 

Will, tive tanto medo do Bobby esta manhã! Acho que ele está a enlouquecer.

 

Ela parecia estar mesmo à beira das lágrimas.

 

Acalme-se disse Will quando entraram no carro. Falamos durante o almoço.

 

Haviam reservado mesa no restaurante de Rob, a três quilómetros, na vizinha povoação de Sea Girt.

 

Quando se sentaram e fizeram o pedido, Will olhou para Natalie com uma expressão intrigada.

 

Sabe que a Pat deve ter ouvido aquilo que disse sobre o Bob e que é um pouco alcoviteira? Neste momento deve estar ao telefone a contar tudo à mãe.

 

Natalie encolheu os ombros.

 

Nesta altura já não me interessa. Obrigada por ter aceite ver-me, Will. Acho que você é o único amigo que tenho por aqui.

 

Há muitas pessoas simpáticas na vila, Natalie. Oh, claro, algumas não gostaram que o Bob tivesse deixado a Susan por sua causa, mas, por outro lado, são pessoas justas. Sabiam que o casamento já estava mal, embora a Susan tentasse aguentá-lo. Creio que toda a gente acha que ela está melhor sem ele.

 

Que boa notícia. Fico muito contente por ela. Dei cinco anos da minha vida ao Bob Frieze. Cinco anos importantes, devo acrescentar. Agora ele não só está à beira da falência como começou a ficar esquisito.

 

Will arqueou as sobrancelhas.

 

Esquisito? O que quer dizer com isso?

 

Vou dar-lhe como exemplo uma coisa que aconteceu ontem à noite. Sei que o Bob lhe disse que sofre de insónias e passa muitas vezes metade da noite a ler.

 

Will sorriu.

 

Consigo acho que é um grande desperdício. Natalie retribuiu o sorriso.

 

Já percebi porque é que consegui convencê-lo a vir almoçar comigo. Precisava de ouvir essas suas bocas simpáticas.

 

Não sabia que dizia bocas simpáticas.

 

Mas diz. Bom, quanto a ontem à noite... Will, desci as escadas às duas da manhã e fui ao escritório do Bobby. Não vi sinal dele. Espreitei a garagem e vi que o carro dele não estava lá. Não sei onde é que foi, mas esta manhã encontrei-lhe no bolso um papel escrito por outra mulher, a dizer que queria que lhe ligasse. Quando o confrontei com isso, ficou chocado. Acho sinceramente que não se lembra de ter estado com ela! Tentou desculpar-se, mas creio que teve uma branca. Aliás, acho que ele tem brancas já há algum tempo.

 

O tom da voz de Natalie era cada vez mais elevado. Will reparou que as senhoras de idade na mesa ao lado estavam a ouvir a conversa.

 

É melhor falar mais baixo, Natalie sugeriu.

 

Não sei se quero retorquiu ela, mas depois, baixando a voz, continuou. Will, farto-me de pensar naquela noite em casa dos Lawrence. Refiro-me à noite antes do desaparecimento da Martha.

 

E então?

 

Tem graça, mas sabe como às vezes nos concentramos e conseguimos recordar-nos de alguns pormenores? Quero dizer, ainda não me havia lembrado que o Bobby levou vestido aquele casaco volumoso que ele julga fazê-lo parecer mais novo...

 

Bolas, quando você embirra com uma pessoa não desiste!

 

Natalie esboçou um sorriso nervoso a Will e nesse momento a empregada colocou dois copos de cerveja à frente deles.

 

Hoje enervei-o mesmo admitiu ela. Porque é que pediu cerveja?

 

Porque vai bem com a sandes de carne assada.

 

Se o Bobby tivesse um restaurante destes em vez daquele mausoléu do Seasoner havia de ter ganho umas massas.

 

Esqueça isso, Natalie. Está a sugerir que o Bobby roubou a echarpe da Rachel Wilcox?

 

Estou a dizer que quando fui à casa de banho a vi em cima da mesa e que quando voltei ela desaparecera.

 

E viu o Bobby nas redondezas? Natalie parecia um pouco insegura.

 

Parece-me que sim.

 

Porque não contou isso à Polícia?

 

Porque até ao outro dia ninguém sabia que eles andavam a fazer perguntas sobre a echarpe. Certo?

 

Certo.

 

Vou continuar a tentar lembrar-me de mais coisas sobre essa noite; talvez consiga concluiu Natalie, dando uma dentada na sandes.

 

Tenho outros livros que talvez esteja interessada em ver, Emily. Posso deixá-los aí dentro de meia hora?

 

Doutor Wilcox, não quero dar-lhe trabalho. Posso ir buscá-los.

 

Não é trabalho nenhum. Vou sair agora de casa para tratar de umas coisas.

 

Quando pousou o auscultador e viu as horas, Emily ficou admirada por ver que eram quase quatro da tarde. Depois de Marty Browski ter ligado, fizera um pequeno intervalo e regressara ao material que espalhara sobre a mesa da sala de jantar, para tentar localizar e identificar o assassino em série do século xix.

 

Havia mais casas do monopólio sobre o mapa que ela esboçara, todas com o nome das pessoas que viveram na altura nessa morada. Acrescentara casas para os Mayer, os Allan, os William e os Nesbitt. Os nomes das filhas e dos filhos apareciam nas listas dos convidados das festas, dos piqueniques e dos bailes frequentados por Madeline Shapley, Letitia Gregg, Ellen Swain, Julia Gordon e Phyllis Gates.

 

Abrira uma das caixas que George Lawrence trouxera e ficou encantada ao ver que continha diários e cartas. Fascinada, começou de imediato a ler alguns, mas depois percebeu que devia primeiro acabar de analisar o material do museu.

 

Acabou por estudar simultaneamente ambas as fontes. À medida que as histórias começaram a desenrolar-se, Emily sentiu-se recuar no tempo e chegar à década de 1890.

 

Às vezes quase desejava ter vivido nessa altura. A vida então parecia muito mais protegida, menos exigente do que a vida moderna.

 

Depois Emily perguntou abruptamente de si para si se estaria louca. Protegida! Três das amigas que haviam contado os seus segredos umas às outras, que estiveram em festas, piqueniques e bailes, haviam morrido com dezanove, dezoito e vinte anos. Não parecia que a protecção tivesse sido muita.

 

Um maço de cartas que parecia bastante prometedor fora escrito ao longo dos anos por Julia Gordon e dirigido a Phyllis Gates, quando a família Gates regressara a Filadélfia depois do termo do Verão. Phyllis Gates guardara-as e depois devolvera-as à família Lawrence.

 

Julia ficara noiva de George Henry Lawrence no Outono de 1894. Nesse Inverno ele foi à Europa com o pai em trabalho e quando regressou Julia escreveu à amiga:

 

Querida Phyllis,

 

O George regressou depois destes três longos meses, e estou muito feliz. A melhor forma de te fazer compreender a intensidade das minhas emoções é citar um romance epistolar que li recentemente:

 

”Tentar descrever a minha alegria e os meus sentimentos ao encontrar e cumprimentar o meu amor é praticamente impossível. Passámos um serão muito doce e agradável.”

E agora estamos a planear o casamento, que terá lugar na Primavera. Se ao menos a Madeline e a Letitia aqui estivessem para serem damas de honor contigo! O que aconteceu aos nossos queridos amigos? A família da Madeline mudou-se. O Douglas Cárter pôs termo à vida. O Edgar Newman continua muito abatido... acho que ele amava muito a Letitia. Temos de os manter a todos, os desaparecidos e os mortos, nos nossos pensamentos e nas nossas orações.

 

Da tua amiga, Julia

 

Com os olhos cheios de lágrimas, Emily releu a carta. ”Ela não fala na Ellen Swain”, pensou, mas depois apercebeu-se de que Ellen só desaparecera um ano mais tarde.

 

”O que pensaria a Julia se pudesse ter olhado para o futuro e sabido que a trisneta, Martha, iria ser enterrada junto de Madeline?”

 

Pousou a carta no regaço e ficou em silêncio. ”Madeline e Martha”, pensou, ”Letitia e Carla, Ellen e...”

 

A menos que acontecesse alguma coisa, haveria outra vítima no sábado; Emily estava convencida da inevitabilidade disso. ”Oh, meu Deus, ajuda-nos a arranjar forma de o travar”, rezou.

 

Tencionara fechar a sala de jantar antes da chegada de Clayton Wilcox, mas estava tão absorta na leitura das cartas que quando a campainha tocou correu a abrir a porta da rua, esquecendo-se de apagar as luzes e de fechar a porta da sala.

 

Durante um momento, depois de ter aberto a porta, o vulto corpulento do Dr. Clayton Wilcox ali no alpendre provocou-lhe um certo pânico. ”O que me estará a acontecer?”, perguntou de si para si quando se desviou para o deixar entrar e murmurou um cumprimento.

 

Estava à espera que ele lhe entregasse o saco dos livros e se fosse embora, mas em vez disso Wilcox entrou para o vestíbulo.

 

Arrefeceu bastante anunciou ele.

 

Pois. Emily sabia que não havia outra alternativa senão fechar a porta. Reparou que tinha as palmas das mãos suadas.

 

Wilcox segurava o saco dos livros e olhava em volta. O arco que dava para a sala de estar ficava à direita, revelando um aposento mergulhado na escuridão.

 

Havia também uma entrada para a sala de jantar no vestíbulo, e aí Emily acendera o candeeiro por cima da mesa, iluminando a cartolina com as casas do monopólio. A mesa e as cadeiras cheias de livros e papéis despertaram o interesse de Wilcox.

 

Vejo que está a trabalhar disse. Porque é que não ponho estes livros ao pé dos outros?

 

Antes de Emily poder detê-lo ele entrara na sala, pousara o saco no chão e pusera-se a observar a cartolina.

 

Eu podia ajudá-la com isto sugeriu. Não sei se lhe disse que estou a tentar escrever um romance passado em Spring Lake durante os últimos vinte e cinco anos do século XIX. Apontou para a casa no número 15 da Avenida Ludlam, onde ela escrevera o nome de Alan Cárter. Está correcta. Foi aqui que a família Cárter viveu durante muitos anos, depois de mil oitocentos e noventa e três. Antes disso, moravam aqui. Tirou uma casa da caixa e colocou-a directamente atrás da casa dela.

 

O Alan viveu atrás desta casa? perguntou Emily espantada.

 

Na altura a casa estava em nome da avó materna dele. A família vivia com ela. Quando ela morreu, venderam a casa e mudaram-se para a Avenida Ludlam.

 

O senhor investigou bastante a cidade, doutor Wilcox. Emily tinha a boca seca.

 

É verdade. Para o meu livro, claro. Posso sentar-me, Emily? Preciso de falar consigo.

 

Sim, claro.

 

Ela decidiu rapidamente que não iria convidá-lo para a sala de estar. Não queria entrar naquela área escura da casa com ele atrás de si. Sentou-se na cadeira mais próxima do vestíbulo. ”Posso fugir se ele tentar alguma coisa”, pensou. ”Posso ir lá para fora e gritar por ajuda...”

Wilcox sentou-se e cruzou os braços. Mesmo do outro lado da mesa tinha uma presença poderosa.

 

As palavras seguintes dele surpreenderam-na.

 

Emily, você é advogada criminal e, pelo que ouvi dizer, muito competente. Acho que me tornei o principal suspeito das mortes da Martha Lawrence e da Carla Harper. Quero que me defenda.

 

A Polícia disse-lhe que é um dos suspeitos, doutor Wilcox? perguntou Emily, tentando ganhar tempo. Estaria ele a brincar consigo? Estaria prestes a confessar, e depois... Ela tentou não completar o pensamento.

 

Ainda não, mas talvez o faça em breve. Deixe-me dizer-lhe porquê.

 

Por favor, não, doutor Wilcox interrompeu Emily. Tenho de lhe dizer que não poderia nunca representá-lo. Sou testemunha em qualquer um dos julgamentos que envolva a Martha Lawrence. Não se esqueça que estava cá quando o corpo dela... ou melhor, o esqueleto dela... foi descoberto.

 

Por isso, faça o favor de não me dizer nada que me possam pedir para repetir sob juramento. Uma vez que não posso ser sua advogada, o sigilo entre cliente e advogado não existiria. Ele assentiu.

 

Não havia pensado nisso. Levantou-se devagar. Então, claro, não irei partilhar consigo o meu problema. Olhou para a cartolina. Acredita na reencarnação, Emily? perguntou.

 

Não.

 

Não acha que pode ter tido uma vida anterior... como Madeline Shapley?

 

A imagem do osso do dedo com o anel de safira surgiu na mente de Emily.

 

Não, não acho, doutor.

 

Com tudo o que foi dito e escrito acerca do tema da reencarnação a semana passada, comecei a ficar com dúvidas. Será que vivi aqui antes numa destas casas? Terei escolhido regressar por esse motivo? O que poderei ter feito numa vida anterior para ter tantas dívidas psíquicas agora? No seu rosto surgiu uma expressão atormentada. Se ao menos pudesse desfazer um momento de fraqueza disse.

 

Emily sentiu que nesse momento o Dr. Wilcox havia esquecido a sua presença.

 

Tenho de tomar uma decisão muito difícil - continuou ele com um suspiro. Mas tenho de a tomar.

 

Ela encolheu-se quando ele passou por si. Não o acompanhou à porta e preparou-se para fugir até ao alpendre se ele se virasse para ela.

 

Para seu alívio, Wilcox dirigiu-se à porta e abriu-a. Depois hesitou.

 

Acho que seria boa ideia a Emily trancar bem estas portas durante as próximas noites avisou.

 

         Quinta-feira, 29 de Março

Já se sente a crescente apreensão dos moradores de Spring Lake.

 

Os polícias andam carrancudos. Patrulham as ruas com maior frequência.

 

Raramente se vê uma mulher a passear sozinha, mesmo em pleno dia.

 

 cada dia que passa os tablóides ficam mais sensacionalistas na sua tentativa de alimentar a curiosidade dos leitores.

 

”O Assassino em Série de Spring Lake Reencarnado” tornou-se notícia nacional e até internacional.

 

Esta manhã, no Good Morning America, outro especialista no tema explicou sobriamente que ao passo que muitas pessoas acreditam que a reencarnação lhes dá inúmeras novas oportunidades de continuar a vida, outras consideram-na um grande fardo.

 

Os Hindus, observou o especialista, têm a certeza absoluta de que irão reencarnar. Tentam desesperadamente interromper o ciclo de nascimento e renascimento, parar o processo. Por esse motivo, estão dispostos a suportar vários sacrifícios auto-infligidos e práticas espirituais muito exigentes para serem libertados.

 

Quererei eu ser libertado?

 

Daqui a dois dias, a minha missão terá chegado ao fim. Regressarei ao estado normal e viverei o resto da minha vida em paz e sossego.

 

Contudo, continuarei a fazer um relato pormenorizado de tudo o que acontece. Aí, tal como no outro diário, o ”quem”, o ”quê”, o ”porquê” e o ”quando” ficarão bastante claros.

 

Talvez um dia um rapaz de catorze anos encontre de novo o diário... os dois diários... e queira reviver o ciclo.

 

Quando isso acontecer, saberei que regressei a Spring Lake pela terceira vez.

 

Bernice Joyce decidira passar a semana em Spring Lake.

 

Como sabe, vim da Florida para o serviço fúnebre explicou a Reba Ashby enquanto tomavam o pequeno-almoço na quinta-feira de manhã. Tencionava regressar a Palm Beach na segunda à tarde, mas depois apercebi-me de que seria uma estupidez porque tenho de vir ao norte de novo para a semana que vem. Por isso, decidi prolongar a minha estada.

 

Encontravam-se sentadas a uma mesa junto à janela. Bernice olhou lá para fora.

 

Está um belo dia de Primavera, não está? perguntou num tom pensativo. Ontem dei um passeio de mais de uma hora pela marginal. Isso trouxe-me imensas recordações agradáveis. Depois jantei com os Lawrence em casa de outra velha amiga. O que nós recordámos!

 

Reba não vira Mrs. Joyce no hotel nem na terça nem na quarta e partira do princípio de que ela se fora embora conforme planeara. Ficou encantada ao encontrá-la no elevador naquela manhã, enquanto se dirigiam ambas à sala de jantar.

 

Durante a primeira conversa ela dissera que trabalhava numa revista de informação, tendo o cuidado de evitar mencionar o nome do The National Daily. ”Mas podia perfeitamente tê-lo feito”, pensou naquele momento, adquirindo uma expressão interessada enquanto ouvia mais outra piada sobre a Spring Lake dos anos 30. Tinha a certeza de que Bernice Joyce nunca lera o The National Daily, se é que alguma vez havia sequer ouvido falar dele.

 

”A imoralidade e qualquer impureza ou ganância nem sequer sejam mencionadas entre vós”, aconselhara São Paulo aos Efésios. Bernice Joyce devia pensar isso em relação aos tablóides.

 

Reba queria escrever sobre as outras pessoas que tinham estado na festa da noite anterior ao desaparecimento de Martha Lawrence. Tencionava continuar a espremer o ângulo do Dr. Wilcox, mas havia sempre a possibilidade de estar a dizer a verdade, que colocara a echarpe junto à mala da mulher e que alguém a levara.

 

Já esteve com alguma das pessoas que foram interrogadas pela Polícia no sábado, Mistress Joyce?

 

Por acaso conversei com dois casais que vivem perto dos Lawrence. Não conheço muito bem as outras pessoas. Por exemplo, simpatizo bastante com a primeira mulher do Robert Frieze, a Susan. A segunda mulher dele, a Natalie, não me diz nada. O Robert esteve lá com a Natalie. Depois esteve também...

 

Depois da segunda chávena de café, Reba tinha uma lista de nomes para investigar.

 

Quero escrever um artigo sensível sobre a Martha, tal como as pessoas se lembram dela explicou. Nada melhor do que começar pelas pessoas que estiveram com ela durante as últimas horas da sua vida. Olhou para a lista. Porque não leio em voz alta estes nomes para ver se estão todos?

 

Enquanto escutava, Bernice Joyce apercebeu-se de que estava a visualizar a sala de estar em casa dos Lawrence. Durante a semana pensara tantas vezes na noite da festa que as recordações eram cada vez mais nítidas.

 

”A echarpe estava na mesa do vestíbulo”, pensou. ”Vi a Natalie Frieze atravessá-lo com a mala na mão e parti do princípio que se dirigia à casa de banho. Estava à espera que ela voltasse.”

 

Na sua mente surgiu o rosto de outro convidado. ”Tenho cada vez maior certeza de que o vi deslocar a mala da Rachel. A echarpe estava por baixo dela.”

 

”Deveria falar disto com o detective Duggan? Terei o direito de referir um nome numa investigação se não tenho a certeza de que estou certa?”

 

Concentrou-se de novo na mulher sentada do outro lado da mesa. Reba Ashby era tão simpática. Parecia uma velha amiga. Como jornalista, deveria compreender os problemas éticos.

 

Ms. Ashby começou Bernice Joyce, posso partilhar consigo um problema? Parece-me que posso ter visto a echarpe ser levada da mesa na noite da festa. Aliás, tenho quase a certeza que vi.

 

Pode o quê? Reba Ashby ficou tão chocada que, por um instante, perdeu a postura profissional de velha amiga.

 

Bernice estava de novo a olhar para o mar pela janela. ”Se ao menos eu pudesse ter a certeza absoluta”, pensou.

 

Quem é que viu levar o lenço nessa noite, Bernice, quero dizer, Mistress Joyce?

 

Bernice virou a cabeça e olhou para Reba Ashby. Os olhos da mulher brilhavam. A sua linguagem corporal sugeria um tigre prestes a saltar.

 

Bernice apercebeu-se de que cometera um erro terrível Reba Ashby não era de confiança.

 

Acho melhor não dizer mais nada declarou num tom firme, fazendo sinal ao empregado para lhe trazer a conta.

 

Quando Marty Browski chegou ao gabinete na quinta de manhã ficou a saber que Eric Bailey respondera ao seu telefonema às sete da tarde de quarta-feira, o telefonema onde solicitava um encontro.

 

Adoro estes desencontros telefónicos disse Marty em voz alta ao marcar o número de Bailey. Quando a secretária dele atendeu, transferiu de imediato a chamada.

 

Lamento termo-nos desencontrado ontem à tarde disse Eric num tom agradável. Fiz gazeta. Tirei a tarde livre para desenferrujar o meu golfe.

 

Concordou prontamente com um encontro.

 

Esta manhã, se quiser. Por acaso estou livre às onze horas.

 

O escritório ficava localizado mesmo a seguir aos limites da cidade de Albany. Enquanto se dirigia para lá, de carro, Marty lembrou-se de que só vira Bailey uma vez antes, na sala de audiências onde Ned Koehler estava a ser julgado por perseguir Emily Graham. Bailey depusera por causa das câmaras que instalara em casa dela.

 

Estivera de ombros descaídos no banco das testemunhas a torcer nervosamente as mãos, recordou Marty. Falara em voz baixa e aguda. O juiz pedira-lhe várias vezes para repetir.

 

Desde essa altura, Marty vira a fotografia de Bailey nos jornais de vez em quando. Era uma celebridade local, uma miniversão de Bill Gates.

 

Não deveria adiantar muito falar com Bailey naquela altura para ver se ele tinha alguma informação útil que pudesse ajudá-los a encontrar o perseguidor. Contudo, Marty sabia que era preciso recorrer a medidas extremas, mesmo que de pouco adiantasse.

 

Estava a atravessar uma zona onde se situavam várias empresas, todas rodeadas de jardins. Nenhum dos edifícios tinha mais de três andares.

 

Prestando atenção aos números das portas, Marty abrandou o carro. A saída seguinte tinha de ser a de Bailey, calculou.

 

Um caminho longo ia dar a um edifício bonito de tijolo vermelho de dois andares com vidros espelhados. ”Muito bem”, pensou Marty, estacionando no parque das visitas.

 

Lá dentro, a secretária da recepcionista encontrava-se no centro do átrio. Dispendiosos sofás vermelhos de cabedal e cadeiras com tachas de latão encontravam-se colocados em torno de tapetes persas. Pendurados nas paredes havia quadros de boa qualidade. O efeito geral era descontraído, discreto e dispendioso.

 

Browski recordou-se de algo que lera, um comentário que o produtor teatral George Abbott fizera ao dramaturgo Moss Hart ao ver a casa que este tinha em Buckinghamshire: ”Mostra o que Deus poderia fazer se tivesse dinheiro.”

 

A recepcionista aguardava-o.

 

O gabinete de Mister Bailey fica no primeiro andar. Vire à direita e siga até ao fundo indicou ela.

 

Ignorando o elevador, Browski subiu a escada em caracol. Ao avançar pelo longo corredor do primeiro andar olhou para os gabinetes por onde passava. Muitos pareciam vazios. Ouvira rumores de que a empresa virtual de Bailey estava a perder muito dinheiro e que a tecnologia que construíra a empresa e a tornara próspera já fora ultrapassada por outros. Também ouvira dizer que alguns especialistas se mostravam um pouco cépticos quando Bailey afirmara ir introduzir no mercado um novo tipo de transmissor sem fios.

 

A porta dupla de mogno esculpido ao fundo do corredor indicava que chegara aos domínios de Eric Bailey.

 

”Devo bater ou perguntar se está alguém?”, perguntou Marty de si para si, acabando por decidir empurrar devagar a porta.

 

Entre, Mister Browski disse uma voz. Ao obedecer, uma mulher magra e elegante com cerca de quarenta anos levantou-se de trás da sua secretária. Apresentando-se como Louise Cauldwell, assistente de Mr. Bailey, encaminhou Marty para o outro gabinete.

 

Eric estava de pé junto à janela e virou-se quando os ouviu aproximarem-se.

 

Browski esquecera-se de como Eric Bailey era tão insignificante. Não que fosse baixo, pensou ao atravessar o gabinete. Era de estatura mediana. O problema era a postura. ”Uma péssima postura”, decidiu Marty, lembrando-se de como o pai costumava dizer-lhe ”põe-te direito e não curves os ombros!”

 

O problema era que, por causa dos ombros curvados, o casaco de caxemira castanha e as calças escuras, obviamente caros, pareciam demasiado grandes e assentar mal.

 

”Apesar do dinheiro todo que tem, o Eric Bailey continua a parecer um maluquinho”, pensou Marty ao estender-lhe a mão. ”Ao ver um tipo assim, nunca se pensaria que ele é um génio.

Detective Browski, tenho muito gosto em vê-lo de novo.

 

Igualmente, Mister Bailey.

 

Eric Bailey indicou o sofá e as cadeiras junto às janelas que davam para as traseiras da propriedade.

 

- Isto aqui é bastante agradável disse. Olhou para Louise Cauldwell com ar expectante.

 

Vou já mandar vir um café, Mister Bailey disse ela.

 

Obrigado, Louise.

 

Ao sentar-se no sofá de cabedal macio, Marty comparou aquele gabinete ao seu. Tinha um espaço de dois metros por quatro com uma pequena janela que dava para o parque de estacionamento. Janey estava convencida de que a secretária dele fora feita com madeira da arca de Noé. O arquivo estava a rebentar pelas costuras e os dossiês que lá não cabiam encontravam-se empilhados na única cadeira sobressalente ou amontoados no chão.

 

É um belo gabinete num belo edifício, Mister Bailey disse com sinceridade.

 

Um sorriso surgiu nos lábios de Eric, desaparecendo logo em seguida.

 

Chegou a ver o meu antigo gabinete? perguntou. Fica ao lado do da Emily.

 

Fui algumas vezes ao gabinete da Emily. Diria que era pequeno, mas agradável.

 

Imagine um terço desse tamanho e tem o meu antigo espaço de trabalho.

 

Então deve ter tido o meu actual gabinete antes de eu o herdar, Mister Bailey.

 

Daquela vez o sorriso de Bailey pareceu sincero.

 

Uma vez que não acredito que tenha vindo aqui para me ler os meus direitos, e uma vez que somos ambos amigos da Emily, porque não nos deixamos de formalidades? O meu primeiro nome é Eric.

 

O meu é Marty.

 

Fui visitar a Emily na segunda. Ela talvez lhe tenha dito que instalei umas câmaras lá em casa começou Eric.

 

Sim, ela disse-me.

 

Preocupa-me bastante que este tipo que anda a persegui-la possa tê-la seguido até Spring Lake. Ou julga que ele está apenas a imitar o outro?

 

Não sei respondeu Marty com franqueza. Mas digo-lhe uma coisa: qualquer perseguidor é uma bomba prestes a disparar a qualquer momento. Se se tratar do mesmo tipo que a chateou cá, está a preparar-se para encostar um fósforo ao rastilho. Ela mostrou-lhe as fotografias que ele lhe tirou em Albany?

 

Sim, mostrou. Creio que são as mesmas que ela lhe entregou...

 

Sim, e o que me intriga é o seguinte: a maior parte das fotografias de Albany foi tirada quando ela andava a correr, a entrar ou a sair do carro ou de restaurantes. As de Spring Lake são um pouco diferentes. Alguém tinha de descobrir onde é que ela ia ficar na primeira noite, depois pôr-se na praia ao frio e ao vento na esperança de a avistar.

 

Aqui está uma cópia da segunda, que foi tirada quatro dias mais tarde.

 

Eric inclinou-se e entregou a Marty a fotografia de Emily na Igreja de Santa Catarina no sábado de manhã.

 

O tipo teve a lata de seguir a Emily até ao serviço fúnebre da vítima que fora encontrada sepultada no jardim dela.

 

Tenho andado a pensar sobre isso disse Eric. Dá-me ideia que o perseguidor é alguém que ela não conhece. Quero dizer, mesmo numa igreja cheia de gente consegue-se ver um rosto conhecido. Creio que isso sugere que este tipo é um imitador.

 

Talvez tenha razão admitiu Marty contrariado. Mas, se tiver, isso quer dizer que talvez estejamos a lidar com duas pessoas, não com uma. O motivo por que quis falar consigo, Eric, foi para lhe pedir que se concentrasse nas pessoas que trabalhavam no edifício onde você e a Emily tinham os vossos gabinetes. Havia lá alguém que você ache que pode ter-se interessado por ela? Podia ser algum funcionário da limpeza, um fornecedor, ou um tipo simpático e discreto com mulher e filhos e que parecia não fazer mal a uma mosca.

 

Não se esqueça que já saí daquele edifício há três anos declarou Eric. A Emily saiu apenas na semana passada. Insistiu em concluir todos os casos que tinha em mãos em vez de dá-los a outros advogados.

 

A Emily fez isso porque faz parte da maneira de ser dela, e nenhum de nós quer pensar que pode acontecer-lhe alguma coisa. Marty pegou nas fotografias e voltou a guardá-las no bolso do peito. Eric, espero que dê voltas à cabeça para tentar lembrar-se de alguém que possa ter estado obcecado com a Emily Graham.

 

De certeza que vou tentar.

 

Mais uma coisa. Pode instalar mais algum aparelho que ajude a aumentar a segurança da Emily, pelo menos quando ela estiver sozinha em casa?

 

Quem me dera. Sugiro apenas que se instalem botões de alarme em todas as assoalhadas e que lhe digamos para andar sempre com um spray de Mace. Tenho a sensação de que, apesar da fachada forte, a Emily está muito assustada.

 

Assustada? Só pode. É humana. É claro que isto está a consumi-la. Nota-se na sua voz. É pena não ter um namorado que tome conta dela, de preferência um tipo corpulento.

 

Marty contava que Eric Bailey concordasse consigo. Depois viu a expressão de Bailey alterar-se e reconheceu-a: era uma expressão de dor e ira. ”O tipo está apaixonado pela Emily”, pensou. ”Oh, bolas!”

 

Louise Cauldwell regressou, seguida de uma empregada com um tabuleiro.

 

Marty bebeu rapidamente o café.

 

Você é um homem ocupado, Eric. Não vou roubar-lhe mais tempo disse, pousando a chávena e levantando-se.

 

”Mas vais começar a roubar muito do meu”, pensou ao despedir-se e começar a percorrer o longo corredor até às escadas.

 

”Talvez não faça mal ter uma conversinha com a recepcionista”, decidiu.

 

As palavras escarninhas de Joel Lake surgiram na sua cabeça. ”Pensei que o filho da senhora Koehler é que era o perseguidor... Enganou-se a meu respeito e enganou-se a respeito dele.”

 

”Talvez esteja de novo enganado”, pensou Marty, ”mas de repente acho que o nosso homem é o Eric Bailey.”

 

”Enganou-se a meu respeito e...”

 

”Porém, espera lá... com certeza o Eric Bailey não se arriscaria a ir à igreja no passado sábado... A Emily tê-lo-ia visto.”

 

”Talvez eu deva mesmo tirar um curso de detective”, pensou Marty desgostoso, ao descer as escadas e passar pela recepcionista sem parar para lhe falar.

 

Não há no Colégio Enoch nada que possamos aproveitar contra o Wilcox disse Tommy Duggan ao pousar o telefone. Nem uma sugestão de escândalo. Nada. O detective que nos fez a investigação é inteligente. Já trabalhámos juntos antes. Ele falou com algumas das pessoas que estavam na administração quando o Wilcox se demitiu. Todos se sentiram indignados com a sugestão de que o Wilcox havia sido forçado a sair.

 

Então porque é que ele se demitiu de um momento para o outro? perguntou Pete Walsh. Queres saber o que eu acho?

 

Adorava.

 

Acho que o Wilcox pode ter simulado problemas cardíacos porque havia qualquer coisa a incomodá-lo e ele não queria que o colégio se envolvesse e a coisa se tornasse pública. As pessoas de lá podem não saber o verdadeiro motivo por que ele se demitiu.

 

Encontravam-se no gabinete de Tommy, onde estiveram à espera do telefonema do detective de Cleveland. Depois do telefonema, levantaram-se e dirigiram-se para o carro. Iriam parar em casa de Emily Graham com as cópias dos relatórios que a Polícia fizera na década de 1890 e depois ter outra conversa com Clayton Wilcox.

 

Sempre pensaste que ele era culpado recordou Pete a Tommy. Imagina que foi uma vítima? Porque não damos uma olhadela ao IRS dele do ano em que se demitiu de Enoch para ver se se livrou de alguma quantia importante?

 

Talvez valha a pena. ”Este tipo é mais esperto do que parece”, pensou Tommy enquanto atravessavam o parque de estacionamento.

 

A caminho da casa de Emily Graham fez outro telefonema para o detective de Cleveland.

 

A que devo o prazer da tua visita? perguntou Bob Frieze quando se juntou a Natalie na sua mesa no The Seasoner. Ficara admirado e desagradado por receber um telefonema do chefe de mesa, informando-o de que a mulher iria fazer-lhe companhia ao almoço.

 

Território neutro, Bobby respondeu Natalie calmamente. Estás com um péssimo aspecto. Depois de me teres feito isto... indicou o pulso magoado fui dormir para o quarto dos hóspedes e tranquei a porta. Talvez tenhas estado aqui com a Peggy.

 

Fiquei aqui ontem à noite e dormi no sofá do meu gabinete. Achei que depois da cena de ontem seria boa ideia deixarmos passar algum tempo para que as coisas arrefecessem.

 

Natalie encolheu os ombros.

 

Território neutro. Tempo. Ouve, estamos os dois a dizer a mesma coisa. Estamos fartos um do outro e, para ser franca, fisicamente tenho medo de ti.

 

Que disparate!

 

Ai sim? Ela abriu a mala e tirou de lá um cigarro.

 

Não podes fumar aqui. Sabes perfeitamente.

 

Então vamos para o bar, para eu poder fumar; almoçamos lá.

 

Quando é que recomeçaste a fumar? Havias deixado logo a seguir ao nosso casamento, já há quase cinco anos.

 

Para ser mais precisa, prometi-te que iria deixar de fumar depois do dia do Trabalho, na primeira segunda-feira de Setembro, há quatro anos e meio. Sempre senti a falta do tabaco. Já não preciso de sentir.

 

Ao apagar a beata no prato, Natalie recordou-se subitamente de algo.

 

”É disto que tenho andado a tentar lembrar-me”, pensou. ”A última vez que fumei, antes do dia de ontem, foi na festa da Martha em casa dos Lawrence. Isso foi a seis de Setembro. Saí para o alpendre da frente, porque, claro, não se podia fumar dentro de casa.”

 

”Ele tinha qualquer coisa na mão e dirigia-se para o carro.”

 

O que se passa contigo? perguntou Bob. Parece que viste um fantasma.

 

Vamos esquecer o almoço. Achei que te devia dizer na cara que te vou deixar. Agora vou fazer as malas. A Connie deixa-me ficar no apartamento dela, na cidade, até eu encontrar uma casa. Já te disse ontem o que queria levar no divórcio.

 

- Nenhum juiz te irá dar aquela quantia obscena. Cai na real, Natalie.

 

Cai tu, Bobby! ripostou ela. Arranja maneira de fazer com que isso aconteça. E lembra-te de que as tuas declarações de IRS ainda não foram inspeccionadas, especialmente aquela onde declaras o dinheirão que recebeste da firma quando te aposentaste. Os tipos das finanças adoram recompensar chibos.

 

Natalie empurrou a cadeira para trás e quase correu até à porta.

 

O chefe de mesa, cheio de tacto, aguardou cerca de dez minutos antes de se aproximar.

 

Deseja fazer o pedido agora? perguntou.

 

Bob Frieze olhou para ele com uma expressão de apatia. Depois, sem responder, levantou-se e saiu do restaurante.

 

Ia jurar que ele não sabia que eu lhe estava a falar murmurou o chefe de mesa ao apressar-se a ir receber um raro e bem-vindo grupo de seis pessoas.

 

O mapa sobre a mesa da sala de estar tinha em cima mais uma dezena de casas. ”Todos os caminhos vão dar a Roma”, pensou Emily, ”mas mesmo assim continua a não fazer sentido. Tem de haver outra resposta.”

 

Os álbuns de fotografias que George Lawrence levara com o resto das coisas antigas ajudaram-na a associar rostos aos muitos nomes. Emily deu por si a andar constantemente entre as referências a pessoas e as páginas do álbum.

 

Descobrira uma fotografia de grupo com os nomes dos participantes escritos atrás. Estava esbatida e era demasiado pequena para que os rostos se pudessem ver com clareza, por isso, quando os detectives chegassem ela iria perguntar-lhes se o laboratório da Polícia poderia fazer uma cópia ampliada e retocada.

 

Era um grupo grande. As três vítimas, Madeline, Letitia e Ellen, encontravam-se listadas na parte de trás da foto como estando presentes, bem como Douglas e Alan Cárter e alguns dos pais, incluindo Richard Carter.

 

As traseiras da sua casa e as traseiras da casa onde Alan Cárter vivera na altura dos homicídios ficavam de frente uma para a outra. O azevinho que abrigara a sepultura encontrara-se praticamente na fronteira entre as duas propriedades.

 

Douglas Cárter vivera do outro lado da Avenida Hayes.

 

Ao rever o que descobrira sobre Letitia Gregg, Emily decidiu que a jovem podia perfeitamente ter querido ido dar um mergulho antes de desaparecer. O seu fato de banho nunca fora encontrado. A casa dela ficara na Avenida Hayes, entre a Rua Dois e a Rua Três. Tivera obrigatoriamente de passar pelas casas de Alan e Douglas Cárter para chegar à praia. Teria sido retida no caminho?

 

No entanto, Douglas Cárter suicidara-se antes do desaparecimento de Letitia.

 

Ellen Swain, contudo, não se encaixava naquele cenário. Vivia numa das casas junto ao lago.

 

Emily ainda estava a olhar para o mapa de ruas quando os detectives Duggan e Walsh chegaram. Entregou-lhes a fotografia de grupo e eles prometeram tratar dela.

 

Os nossos colegas do laboratório são muito bons disse Tommy Duggan a Emily. Vão conseguir ampliá-la e retocá-la.

 

Walsh estava a observar o mapa.

 

Belo trabalho elogiou. Já descobriu alguma coisa com isto?

 

Talvez respondeu Emily.

 

Ms. Graham, podemos ajudá-la? perguntou Tommy Duggan. Deixe-me pôr as coisas de outra forma: será que pode ajudar-nos? Descobriu alguma coisa que queira que investiguemos?

 

Não respondeu Emily com sinceridade. Ainda não. Mas obrigada por me trazerem cópias dos velhos relatórios.

 

Acho que o patrão não ficou muito satisfeito observou Pete, por isso, espero que sejam úteis. Pressinto que vamos ouvir um responso por tê-los copiado.

 

Depois de os detectives se terem ido embora, Emily preparou uma sandes e um chá, pô-los num tabuleiro e levou-os para o escritório. Pousou o tabuleiro na otomana, instalou-se no cadeirão confortável e começou a ler os relatórios da Polícia, começando pela primeira página do relatório sobre Madeline Shapley.

 

”7 de Setembro de 1891: telefonema alarmado recebido de Mr. Louis Shapley, do número 100 da Avenida Hayes, em Spring Lake, às 19h30, comunicando que a filha Madeline, de dezanove anos, desapareceu. Miss Shapley encontrara-se no alpendre da casa da família, à espera do noivo, Mr. Douglas Carter, do número 101 da Avenida Hayes, que vinha de Nova Iorque.”

 

”8 de Setembro de 1891: suspeita-se de crime no misterioso desaparecimento... a família foi interrogada... a mãe e a irmã mais nova encontravam-se em casa... sob a supervisão de Mrs. Kathleen Shapley. Catherine Shapley, de 11 anos, estava a ter lições de piano com a professora, Miss Johanna Story. Sugeriu que o som do piano pode ter abafado qualquer grito solto por Miss Madeline Shapley.”

 

”22 de Setembro de 1891: Mr. Douglas Cárter foi novamente interrogado sobre o desaparecimento da noiva, Miss Madeline Shapley, no passado dia 7. Mr. Carter continua a afirmar que perdeu por pouco o comboio que tencionava apanhar em Manhattan e foi obrigado a esperar duas horas pelo seguinte.

 

”A sua resposta à afirmação de uma testemunha que diz ter falado com ele na estação pouco antes do primeiro comboio ter começado a receber passageiros é que ele se encontrava bastante nervoso porque tencionava dar nesse dia o anel de noivado a Miss Shapley e sentira algumas náuseas. Disse que correra para a casa de banho dos homens e que quando partira o comboio estava a sair da gare.

 

”O comboio seguinte ia bastante cheio e Mr. Douglas afirma não ter visto ninguém conhecido a bordo. Nem o revisor do primeiro comboio nem o do segundo se lembram de lhe ter picado o bilhete.”

 

”Não admira que ele seja suspeito”, pensou Emily. ”Será possível que tenha estado nervoso porque não queria avançar com o noivado? E eu a julgar que era um grande amor!”

 

Por momentos recordou o seu próprio casamento e a primeira dança com Gary. Na altura, também ele parecera muito apaixonado.

 

”E eu pensei que estava”, disse Emily de si para si. ”Mas agora, olhando para trás, sempre soube que faltava qualquer coisa.”

 

”Um marido que fizesse esquecer tudo.”

 

O toque do telefone intrometeu-se naqueles pensamentos deprimentes. Era Will Stafford.

 

Tenho andado para lhe ligar, mas tive uma semana muito atarefada disse. Olhe, sei que isto é um bocado em cima da hora, mas quer jantar comigo esta noite? O Whispers é um óptimo restaurante e fica mesmo aqui na vila.

 

Gostaria muito respondeu Emily. Acho que estou a precisar de fazer um intervalo e de regressar ao mundo presente. Tenho vivido toda a semana na década de mil oitocentos e noventa.

 

E o que é que está a achar?

 

Sinto-me encantada.

 

Estou a imaginá-la numa saia-balão.

 

Está atrasado quarenta anos. As saias-balão usaram-se durante a guerra civil.

 

E que percebo eu disso? Só ajudo as pessoas a comprarem... ou a venderem... o tecto que têm sobre as cabeças. Às sete horas está bem para si?

 

Está óptimo.

 

Então até logo.

 

Emily desligou o telefone e então, apercebendo-se de que tinha as pernas rígidas por ter estado sentada tanto tempo, fez alguns exercícios de alongamento.

 

Silenciosamente, a câmara gravou todos os seus movimentos.

 

Joan Hodges passara os últimos quatro dias a tentar reordenar o ficheiro dos doentes. Era um trabalho que fazia com gosto. Na medida do possível, estava determinada a garantir que os doentes da Dr.a Madden, já a recuperarem do choque provocado pela sua morte, não sofressem porque os seus dossiês não se encontravam disponíveis para o médico substituto.

 

Era uma tarefa entediante. O assassino fora bastante minucioso na destruição dos dossiês a informação clínica bem como as observações e as notas da Dr.a Madden haviam sido espalhadas e misturadas. Joan sentia-se algumas vezes derrotada e achava que não seria capaz de concluir a tarefa. Quando isso acontecia, dava um passeio de meia hora pela marginal e regressava ao trabalho algo repousada.

 

Combinara-se que o Dr. Wallace Coleman, colega e amigo da Dr.a Madden, ficaria com aquele consultório. Durante o tempo livre, ele tentava ao máximo ajudar Joan na sua tarefa.

 

Na quinta-feira um técnico da Polícia regressou com o computador reconstruído.

 

O tipo fez tudo para destruir isto disse, mas vocês tiveram sorte. Não chegou ao disco rígido.

 

Isso significa que todos os ficheiros podem ser recuperados? perguntou Joan.

 

Sim. O detective Duggan quer que a senhora procure já o do doutor Clayton Wilcox. O nome é-lhe familiar?

 

Não têm vindo umas coisas sobre ele no jornal? Não foi a echarpe da mulher dele que...

 

Precisamente.

 

Talvez seja por isso que o nome dele não me é estranho. Não costumo... Joan fez uma pausa. Quero dizer, não costumava ver todos os doentes da doutora Madden. Havia os que vinham quando ela trabalhava de noite. Ela pedia-me apenas que deixasse preparados os recibos.

 

Joan encontrava-se em frente ao computador e os seus dedos voavam no teclado. Se a Polícia lhe pedia que procurasse um nome era porque essa pessoa era considerada suspeita. Com todas as fibras do seu ser Joan desejava que a pessoa que matara a Dr.a Madden fosse encontrada e punida. ”Se ao menos eu pudesse fazer parte do júri quando ele for julgado”, pensou.

 

Dr. Clayton Wilcox.

 

O ficheiro dele apareceu no ecrã. Joan começou a carregar no rato para visualizar o conteúdo. Depois disse num tom triunfante:

 

Ele foi doente dela há quatro anos e meio, durante o mês de Setembro, e de novo há dois anos e meio, em Agosto. Vinha à noite, por isso nunca o vi.

 

O técnico da Polícia já agarrara no telemóvel.

 

Preciso de falar imediatamente com o Duggan disse. Tenho uma informação que ele precisa de saber imediatamente.

 

Reba Ashby sabia que quando a sua história fosse publicada no The National Daily, na sexta-feira, iria haver escândalo.

 

               TESTEMUNHA DO ROUBO

               DA ARMA DO CRIME

               HESITA EM FALAR

 

Na história da primeira página que se encontrava a escrever, Reba descrevia a conversa que tivera durante o pequeno-almoço no Hotel Breakers, situado na Avenida Ocean, em Spring Lake, com ”Bernice Joyce, uma viúva idosa e frágil que considerou a echarpe desaparecida ”vistosa” e depois disse à jornalista que tinha um problema ético: ”Tenho a certeza de que vi a echarpe ser levada da mesa. Tenho quase a certeza de que vi.””

 

”Detectives, tomem nota!

 

Um dos convidados da festa dos Lawrence naquela noite fatídica roubou a echarpe e usou-a no dia seguinte para asfixiar a Martha Lawrence. Quem é ele?

 

Aqui vão as possibilidades, tal como Bernice Joyce as apresentou:

 

Havia vários casais de idade vizinhos dos Lawrence.

 

O Dr. Clayton Wilcox e a sua formidável mulher, Rachel. Ele é um presidente de colégio aposentado. Ela foi quem levou a echarpe para a festa. Rachel dirige várias comissões, faz muitas coisas, mas não é muito apreciada. Diz que pediu ao marido para guardar a echarpe no bolso.!

 

Bob e Natalie Frieze. Bernice Joyce gosta bastante de Susan, a primeira Mrs. Frieze, mas não liga nada à segunda, muito elegante.

 

Will Stafford, advogado. Bonito, um dos poucos homens solteiros em Spring Lake. Cuidado, Will: Bernice Joyce acha-o umbonitão!”

 

Fora isto que Reba escrevera até então. Queria ir dar uma espreitadela a Will Stafford para poder formar uma opinião. Depois disso iria até ao The Seasoner ver se Bob Frieze se encontrava por lá.

 

Localizou o escritório de Will Stafford na Terceira Avenida, no centro da vila. Quando Reba abriu a porta viu de imediato a recepcionista e rezou para que Stafford estivesse fora ou ocupado.

 

Estava fora, informou Pat Glynn, mas devia voltar em breve. Será que Miss Ashby queria esperar?

 

”Podes crer que sim, miúda!”, pensou Reba.

 

Sentou-se na cadeira mais próxima da secretária da recepcionista e virou-se para Glynn, com modos calorosos e confiantes.

 

Fale-me do seu patrão, o Will Stafford.

 

O rubor denunciador nas faces de Glynn e o lampejo súbito nos seus olhos disse a Reba aquilo que já esperava. A recepcionista-secretária tinha um fraco pelo patrão.

 

Ele é a pessoa mais simpática do mundo afirmou Pat Glynn. Toda a gente o procura para pedir ajuda. E ele é tão justo. Diz às pessoas que não se apressem em comprar uma casa, e se acha que os clientes não estão satisfeitos com uma para a qual já deram sinal, faz tudo para que eles recuperem o dinheiro. E...

 

A frase mais importante para Reba fora: ”Toda a gente o procura para pedir ajuda.” Sabia que a história andaria à volta disso.

 

Creio que o que está a dizer é que as pessoas lhe vêm chorar no ombro sugeriu. Ou que ele é pessoa para emprestar dinheiro na hora ou reduzir a comissão se...

 

Oh, que as pessoas lhe vêm chorar no ombro lá isso vêm disse Pat Glynn com um sorriso. Depois o sorriso desapareceu. Há quem se aproveite disso.

 

Calculo que sim disse Reba. Lembra-se de alguém que o tenha feito há pouco?

 

A Natalie Frieze.

 

”Natalie Frieze. É a mulher do Bob Frieze, o dono do The Seasoner”, raciocinou Reba. Haviam estado presentes na festa em casa dos Lawrence na noite anterior ao desaparecimento de Martha.

 

Pat Glynn decidiu desenvolver o assunto. Durante as últimas vinte e quatro horas, desde que vira Natalie Frieze beijar Will Stafford tão afectuosamente e depois ir almoçar com ele pela segunda vez naquela semana, a disposição de Pat alternara entre a ira e a tristeza.

 

Ninguém de cá gosta dela. É uma exibicionista, a desfilar pelas ruas toda empiriquitada como se estivesse num desfile de moda. Ontem decidiu atirar-se a Mister Stafford e tentou que ele ficasse com pena dela. Mostrou-lhe a nódoa negra que o marido lhe fizera no pulso.

 

Uma nódoa negra? E foi de propósito?

 

Não sei. Pode ser. Estava inchado e vermelho-escuro. Ela disse-me que sentia muitas dores. Olhar para os olhos compreensivos de Reba era como ir ao confessionário. Pat Glynn respirou fundo e decidiu continuar. Ontem, quando iam a sair daqui, Mister Stafford disse-me que voltaria dentro de uma hora. Natalie Frieze sorriu e emendou-o: ”Diga antes daqui a hora e meia”. E ele estava mesmo muito ocupado. Tinha muito trabalho em cima da secretária.

 

Ele tem alguma namorada? perguntou Reba.

 

Oh, não! Divorciou-se há imenso tempo. Casou logo a seguir a ter acabado o curso, na Califórnia. A mãe morreu também nessa altura. Tem uma fotografia dela na secretária. Pensei que o pai também morrera, mas apareceu aqui na semana passada e Mister Stafford ficou bastante zangado e chateado... Glynn calou-se.

 

”Meu Deus, faz com que ninguém entre”, rezou Reba. ”Faz com que ela não pare.”

 

Talvez o pai tenha tratado mal a mãe e ele não lhe queira perdoar sugeriu Reba, esperando continuar a conversa. Apercebeu-se de que Pat Glynn começava a estar pouco à vontade, talvez pressentindo que já falara de mais.

 

Era a mesma expressão que Reba vira no rosto de Bernice Joyce.

 

Mas Pat superou as dúvidas que tinha e mordeu o isco.

 

Não, foi entre os dois. Mister Stafford expulsou praticamente o pai do gabinete. Nos dois anos em que aqui estive nunca o ouvi sequer levantar a voz, mas ele gritou com o pai... disse-lhe para se meter no carro, voltar para Princeton e ficar lá. Também lhe disse: ”Não acreditaste em mim, desonraste-me, o teu único filho, podias ter pago para me defenderem.” O pai vinha a gritar quando saiu, e vê-se que está muito doente, mas não senti pena dele. Deve ter sido muito mau para Mister Stafford quando ele era miúdo.

 

Pat Glynn fez uma pausa para respirar, depois olhou para Reba.

 

A senhora é muito simpática e é muito fácil falar consigo. Não lhe devia ter dito isto tudo. Fica só entre nós, está bem?

 

Reba levantou-se.

 

Com certeza respondeu num tom firme. No entanto, acho que não posso esperar mais por ele. Depois telefono a marcar. Prazer em conhecê-la, Pat. Empurrou a porta, saiu e começou a descer rapidamente a rua. A última coisa que queria naquele momento era encontrar Will Stafford. Se ele a visse e percebesse quem ela era iria obrigar a tagarela da secretária a admitir quanto é que lhe contara.

 

O jornal do dia seguinte teria na primeira página a história de Bernice Joyce.

 

No dia seguinte, sábado, a história dela concentrar-se-ia em Natalie Frieze, uma mulher agredida, que buscava conforto nos braços de Will Stafford, um dos outros potenciais suspeitos nos homicídios de Martha Lawrence e Carla Harper.

 

No domingo, se a equipa de investigação do The National Daily conseguisse desenterrar informação suficiente, Reba perguntaria no seu artigo por que motivo Will Stafford, o advogado mais popular e bonito de Spring Lake, teria sido desonrado pelo abastado pai, que não quis pagar para o defender em tribunal.

 

Reba, claro, estava apenas a aventar hipóteses. Ainda não sabia se o pai era abastado, mas ele era de Princeton, uma zona fina; para além disso, ficaria bem no artigo.

 

Depois de terem deixado Emily, Tommy Duggan e Pete Walsh haviam ido directamente para casa do Dr. Clayton Wilcox. A conversa que tiveram com ele fora frustrante e pouco satisfatória.

 

Wilcox insistira na história de ter colocado a echarpe debaixo da mala da mulher. Quando lhe perguntaram se conhecia a Dr.a Lillian Madden, ele recordara-se de que há uns anos sofrera uma ligeira depressão e que podia tê-la consultado. ”Ou alguém com um nome parecido.”

 

Há quanto tempo foi isso, doutor Wilcox? perguntara Tommy Duggan.

 

Há bastante tempo. Não tenho bem a certeza.

 

Cinco anos? Três anos?

 

Não me lembro.

 

Tente, doutor sugerira Pete Walsh.

 

A única satisfação dos dois detectives depois da conversa fora verem Wilcox começar a ir-se abaixo. Tinha os olhos encovados. Quando falava, passava o tempo todo a abrir e a fechar as mãos. A sua testa estava constantemente coberta por gotas de transpiração, embora a temperatura no escritório estivesse desagradavelmente baixa.

 

Depois, às quatro da tarde, duas coisas aconteceram quase simultaneamente. O técnico ligou do consultório da Dr.a Madden e deu-lhes as datas em que o Dr. Clayton Wilcox consultara a psicóloga.

 

Ele viu-a durante quatro semanas a seguir ao desaparecimento da Martha Lawrence e durante três semanas a seguir ao da Carla Harper repetiu Tommy Duggan, o seu tom simultaneamente incrédulo e excitado. E ele diz que não se lembra! O tipo é um mentiroso de primeira apanha!

 

Disse-nos que a consultou por causa de uma ligeira depressão. Se realmente matou aquelas raparigas, não admira que se tenha sentido deprimido comentou Pete Walsh com sarcasmo.

 

Joan Hodges, a secretária, disse-me que ainda não encontraram o ficheiro com os apontamentos da médica sobre o Wilcox, mas mesmo que consigam encontrá-lo, precisamos de autorização do tribunal para o ver. A boca de Tommy Duggan formava uma linha fina e zangada. Mas haveremos de conseguir deitar a mão àquele ficheiro!

 

A segunda dose de maná dos céus surgiu na forma de um telefonema do detective em Ohio.

 

Tenho um contacto da firma de corretagem onde o Wilcox tem a sua carteira de acções. Ele perderia o emprego se se soubesse, mas mesmo assim foi dar uma espreitadela ao dossiê do Wilcox. Há doze anos, quando se aposentou, pediu um empréstimo de cem mil dólares sobre o valor das suas acções. Levantou-o na forma de um cheque passado em seu nome. No entanto, o cheque foi depositado num banco em Ann Arbor, Michigan, numa conta nova aberta por uma tal Gina Fielding. Alguém escreveu na parte de trás do cheque ”Mesa e secretária antigas”.

 

Será a Gina Fielding proprietária de um antiquário? perguntou Tommy.

 

Pelo sorriso de Duggan, enquanto ouvia a resposta, Pete calculou que aquela devesse ser boa.

 

Vais adorar isto, Duggan. A Gina Fielding era aluna do primeiro ano no Colégio Enoch e saiu de lá abruptamente, pouco antes de o Wilcox se demitir.

 

Onde está ela agora?

 

Estamos a tentar localizá-la. Mudou-se para Chicago, casou-se e divorciou-se. Havemos de localizá-la amanhã ou depois.

 

Quando Tommy Duggan desligou o telefone olhou para Pete Walsh com um ar satisfeito.

 

Podemos estar perto do fim disse. Amanhã de manhã vamos fazer outra visita ao famoso ex-director do Colégio Enoch. Não me admirava que antes do fim disto tudo tenham tirado o nome dele daquele edifício que lhe dedicaram lá.

 

         Sexta-feira, 30 de Março

Foi uma manhã bastante cansativa. Na altura em que o meu plano final estava a correr na perfeição, tive de tomar uma decisão radical e potencialmente fatal.

 

Tenho comprado o The National Daily todas as manhãs. Aquela colunista insidiosa, a Reba Ashby, passou a semana no The Breakers e esteve omnipresente na comunidade, a juntar mexericos.

 

Esta manhã apercebi-me de que a conversa dela com a Bernice Joyce seria a minha perdição ou a minha salvação.

 

Mrs. Joyce contou à Ashby que tinha quase a certeza de saber a identidade da pessoa que tirara a echarpe de baixo da mala.

 

Se ela tivesse contado isso aos detectives, estes tê-la-iam forçado a revelar o meu nome. Nessa altura, começariam a investigar todos os pormenores da minha vida. Deixariam de aceitar o que lhes disse sobre o meu paradeiro e as minhas acções na altura do desaparecimento da Martha.

 

Teriam chegado à verdade, e esta vida que escolhi viver chegaria ao fim.

 

Tive de correr o risco. Sentei-me num banco da marginal, perto de The Breakers, ostensivamente mergulhado na leitura do jornal, tentando desesperadamente decidir como seria possível entrar no hotel e descobrir o quarto de Mrs. Joyce sem que ninguém desse por mim. Sob o capuz meti uma peruca, por isso, se alguém me quisesse descrever diria que eu tinha cabelo grisalho a cair-me sobre a testa. Também pus óculos escuros.

 

Sabia que era uma fraca tentativa de disfarce, mas também sabia que se os detectives tivessem a oportunidade de interrogar Mrs. Joyce ela revelaria de certeza o meu nome.

 

E então surgiu uma oportunidade.

 

Está um dia lindo, soalheiro e ameno.

 

Às sete e meia Mrs. Joyce saiu do The Breakers para um passeio matinal. Vinha sozinha e segui-a ao longe, tentando pensar numa forma de a separar dos outros transeuntes madrugadores. Felizmente, os primeiros a chegar já se haviam ido embora e ainda era demasiado cedo para as pessoas que dão o passeio depois do pequeno-almoço.

 

Após vários quarteirões, Mrs. Joyce sentou-se num banco numa da extensões da marginal destinadas às pessoas que desejam estar sentadas a contemplar o mar sem ter quem lhes passe constantemente à frente.

 

Um local perfeito para o meu objectivo!

 

Estava prestes a ir ter com ela quando o Dr. Dermot O’Herlihy, um médico aposentado que nunca falha o seu passeio diário, viu Mrs. Joyce e parou para conversar com ela. Felizmente, demorou-se apenas alguns minutos e seguiu caminho. Sei que não reparou em mim quando passou pelo banco onde me encontrava sentado.

 

Havia pessoas a vir de ambas as direcções, mas nenhuma delas se encontrava a menos de um quarteirão. Com a corda na mão, sentei-me calmamente ao lado de Mrs. Joyce, que estava de olhos fechados a saborear o sol.

 

Abriu-os quando sentiu a pressão em volta do seu pescoço, virou a cabeça, surpreendida e assustada, enquanto eu apertava a corda, e compreendeu o que estava a acontecer.

 

Reconheceu-me. Os seus olhos abriram-se mais.

 

As suas últimas palavras antes de morrer foram:

 

Enganei-me. Não pensei que tivesse sido você.

 

Não dormiste muito bem esta noite disse Janey Browski a Marty enquanto lhe punha à frente uma tigela com papas de aveia a fumegar.

 

De facto, não sinto que tenha dormido muito bem respondeu Browski. Fartei-me de sonhar. Sabes aqueles sonhos que nos fazem sentir mal e dos quais não nos lembramos quando acordamos? Os sonhos desapareceram. A sensação de mal-estar continua.

 

O teu subconsciente está a tentar dizer-te qualquer coisa. Se conseguisses lembrar-te nem que fosse de um bocado do sonho, eu podia ajudar-te a analisá-lo.

 

Janey Browski deitou o café nas canecas, sentou-se à mesa e começou a espalhar doce de morango numa fatia de pão torrado.

 

Andas a aprender a analisar sonhos no teu curso de Psicologia? perguntou Marty com um ligeiro sorriso.

 

Falamos de como eles podem ajudar-nos.

 

Bem, se eu sonhar esta noite acordo-te, conto-te o sonho e depois podes começar a análise.

 

Põe um bloco de apontamentos na mesa-de-cabeceira e anota todos os pormenores. Mas não acendas a luz quando fizeres isso. O tom de Janey tornou-se mais sério. O que se passa, Marty? Alguma coisa específica ou é a preocupação do costume com o perseguidor?

 

Ontem à noite foste fazer de baby-sitter e eu deitei-me cedo, por isso não pude falar contigo. Estive com o Eric Bailey. Marty descreveu o encontro e a sua súbita suspeita de que Bailey pudesse ser o perseguidor.

 

Francamente, acho isso um pouco rebuscado observou Janey, mas, por outro lado, há alguma maneira de o investigares?

 

Janey, o senso comum diz-me que ele não esteve na Igreja de Santa Catarina no passado sábado durante o serviço fúnebre, sentado num banco perto do da Emily. Tudo teria acabado se ela o tivesse visto. Como sabes, é muito mais difícil para um homem disfarçar-se do que para uma mulher.

 

Olhou para o relógio e terminou rapidamente o pequeno-almoço.

 

Vou andando. Não estudes muito. Não me agradava nada ser intelectualmente inferior a ti. Fez uma pausa. E não tenhas a lata de dizer que já o sou avisou ele dando-lhe um beijo na nuca.

 

”É muito mais difícil para um homem disfarçar-se do que para uma mulher.” Tal como os sonhos perturbadores de que ele não conseguia lembrar-se, a frase pairou no subconsciente de Marty durante todo o dia.

 

Chegou ao ponto de descobrir a matrícula da carrinha de Bailey e a do Mercedes descapotável e de investigar se eles haviam passado em alguma via verde das auto-estradas.

 

A actividade dos veículos indicava que nenhum deles fora conduzido para mais de 45 quilómetros a sul de Albany durante a semana anterior.

 

”Desiste”, disse Marty a si próprio, mas, tal como um dente com uma moinha constante, a suspeita de que Eric Bailey era o perseguidor não desapareceu.

 

Quando Emily acordou na sexta de manhã e olhou para o relógio ficou admirada por ver que já eram oito e um quarto. ”Isto só prova o que alguns copos de vinho podem fazer para nos descontrair”, pensou ela afastando para trás os cobertores.

 

Porém, o sono prolongado e sem sonhos fê-la sentir-se muito mais repousada do que sentira durante toda a semana. E fora uma noite agradável, reflectiu enquanto efectuava o ritual matinal de preparar o café e de o levar para o quarto, a fim de o beber enquanto tomava duche e se vestia.

 

”O Will Stafford é um tipo simpático”, pensou ela ao abrir as portas do quarto de vestir e ao interrogar-se sobre o que iria usar nesse dia. Escolheu calças de ganga brancas e uma camisa de algodão aos quadrados vermelhos e brancos, já um pouco usados mas confortáveis.

 

Na noite anterior envergara um fato de seda azul-escura com umas pregas discretas nas mangas e nos punhos. Will Stafford elogiara-o várias vezes.

 

Fora buscá-la meia hora antes da hora combinada. ”Eu estava a abotoar o casaco enquanto descia as escadas”, pensou Emily. ”Ainda não pusera o batom nem as jóias.”

Deixara-o no escritório quando vira o noticiário e ficara satisfeita por ter fechado as portas da sala de estar. Não queria ninguém a observar o seu mapa.

 

Naquela manhã, ao vestir as calças de ganga e a camisa e ao calçar os ténis, pensou que era engraçado o facto de a impressão que se tinha da vida de alguém poder ser bastante diferente daquilo que realmente era verdade.

 

”Como o Will Stafford”, pensou Emily, ao começar a fazer a cama. ”Por aquilo que ele me disse no dia em que fechámos o negócio da casa, fiquei a pensar que a vida dele fora sempre despreocupada.”

 

Contudo, durante o jantar Will abrira-se e surgira outra imagem.

 

Sabe que sou filho único dissera ele. Fui criado em Princeton e, com doze anos, fui para Denver com a minha mãe depois do divórcio dos meus pais. Creio que lhe disse que até essa altura costumávamos vir para Spring Lake todos os Verões durante duas semanas e ficávamos no Essex-Sussex. Mas depois as coisas modificaram-se explicara. Um ano após ter sido promovido a director da empresa onde trabalhava, o pai divorciara-se da mãe e casara com a secretária, a primeira de três mulheres sucessivas.

 

Os olhos de Will haviam reflectido uma grande tristeza quando ele dissera:

 

A minha mãe ficou arrasada. Nunca mais foi a mesma. Ele destruiu-a. Depois hesitara e acrescentara: Emily, vou contar-lhe uma coisa que mais ninguém nesta vila sabe. Não é uma história agradável.

 

”Tentei impedi-lo”, recordou-se Emily, ”mas ele não me ouviu. Contou-me que depois do baile de finalistas em Denver ele e um amigo haviam pegado num carro.” Tinham ambos bebido muita cerveja. Houvera um acidente e o carro ficara desfeito. O amigo, que ia ao volante, tinha dezoito anos e pedira a Will que trocasse de lugar com ele. ”Ainda não fizeste dezasseis anos”, argumentara. ”Vão ser mais benevolentes contigo.”

 

Emily, eu estava tão bêbado que disse que sim. Só que não sabia que não fora um simples acidente. Na confusão, não me tinha apercebido que ele atropelara e matara um peão, uma rapariga de quinze anos. Quando tentei dizer aos polícias o que realmente acontecera, não acreditaram em mim. O meu amigo mentiu no banco das testemunhas. A minha mãe foi muito forte e apoiou-me. Sabia que eu estava a dizer a verdade. O meu pai decidiu ignorar a minha existência e eu passei um ano numa casa de correcção.

 

”Havia tanta dor no rosto dele quando falou daquele período”, pensou Emily. Mas depois Will encolhera os ombros e dissera:

 

Então aí está. Ninguém nesta vila sabe o que acabei de lhe dizer. Preferi contar-lho agora porque tenciono convidá-la para jantar daqui a uma ou duas semanas, e se a história a incomoda é melhor que a saiba já. Mas de uma coisa tenho a certeza: não irá falar disto a ninguém.

 

”Eu tranquilizei-o a respeito disso”, pensou Emily, ”mas também lhe disse que deixasse passar mais algum tempo antes de voltar a convidar-me para jantar. Não quero que se pense que ando a sair com alguém, nem em Spring Lake nem noutro lado.”

 

Começou a descer as escadas, detendo-se para admirar a forma como a luz do Sol entrava pelo vitral do patamar.

 

”Da próxima vez que namorar a sério com alguém... se houver uma próxima vez... hei-de certificar-me de que não estou a cometer outro erro.”

 

”Uma coisa boa”, pensou com secura enquanto se dirigia à cozinha, ”é que não tenho de me preocupar com o facto de poder apaixonar-me como na faculdade. Graças a Deus que isso só acontece uma vez na vida!”

 

”Mas como mudou a minha vida”, pensou. ”Como casei com o Gary logo a seguir a ter terminado o curso de Direito, fui viver para Albany porque ele ia trabalhar na empresa da família. Se não tivesse casado com ele, tinha começado a trabalhar em Manhattan.”

 

”Mas se não tivesse vivido em Albany, não teria defendido o Eric naquele processo e não teria ganho dez milhões de dólares a vender as acções que ele me dera.”

 

”E de certeza que não estaria aqui nesta casa”, pensou ao deter-se na sala para pegar num livro trazido por George Lawrence. Era um diário que Julia Gordon Lawrence escrevera depois do casamento. Emily estava ansiosa por saber o que ele lhe poderia revelar. Abriu-o enquanto comia uma torrada e uma toranja e começou a lê-lo.

 

Numa das entradas Julia escrevera:

 

”A pobre Mrs. Carter continua a ir-se abaixo. Nunca há-de recuperar da perda do Douglas. Visitamo-la muitas vezes e levamos-lhe flores para lhe animar o quarto, ou um doce para lhe abrir o apetite, mas nada parece ajudar.

 

Fala constantemente do Douglas. ”O meu único filho”, soluça quando tentamos confortá-la.

 

A minha sogra e eu falamos várias vexes do assunto e concordamos que a vida de Mrs. Carter se tornou muito triste. Ela foi abençoada com uma grande beleza e uma riqueza substancial. Mas o reumático começou a afectá-la logo a seguir ao nascimento do Douglas. Já há uns anos que está praticamente inválida e agora nunca sai da cama.

 

A minha sogra acha que durante bastante tempo, para tentarem aliviar-lhe a dor, os médicos lhe receitaram doses diárias de láudano demasiado fortes. Agora Mrs. Carter encontra-se num estado de letargia que não a deixa interessar-se pela vida e, com o passar do tempo, talvez encontrar alguma fonte de interesse. Em vez disso, a única saída para a sua dor é derramar copiosas lágrimas.”

 

Emily fechou o diário depois de ter acabado de ler aquela entrada e foi para a sala de jantar. ”Mistress Carter estava em casa no dia em que a Madeline desapareceu”, recordou. ”Mas imaginem que o Douglas apanhou mesmo o primeiro comboio, chegou a casa e a Madeline atravessou a rua para o cumprimentar.”

 

”Se alguma coisa correu mal entre a Madeline e o Douglas, ter-se-ia Mistress Carter, lá em cima no quarto, atordoada pelo láudano, apercebido da tragédia que se desenrolava lá em baixo?”

 

Ou teria Madeline deixado o alpendre e ido ao jardim das traseiras, onde encontrara Alan Carter no jardim dele. Alan estava apaixonado por ela e era capaz de saber que ela iria receber o anel de noivado do seu primo. Podia ter-se declarado a ela, reflectiu Emily, e ficado furioso quando ela o rejeitara.

 

Ambas as possibilidades eram intrigantes. ”Acredito piamente que a Madeline morreu nessa tarde, perto de casa, e que o Douglas ou o Alan Cárter estiveram envolvidos na sua morte.”

 

”Se o Douglas estava inocente da morte da Madeline, então o Alan é o suspeito mais provável”, pensou.

 

Geograficamente vivia muito perto de Madeline. Letitia tinha de passar pela casa dele para chegar à praia. No diário, Julia escrevera que ela e as amigas visitavam regularmente a mãe inválida de Douglas. Teria Ellen Swain ido visitar Mrs. Carter no dia em que desaparecera? Os antigos registos da Polícia poderiam dar alguma informação a esse respeito.

 

Quando Emily voltou a guardar o diário junto às outras coisas, ocorreu-lhe uma nova possibilidade.

 

Ter-se-ia Douglas Cárter suicidado mesmo? Ou teria sido assassinado porque começara a suspeitar da verdade?

 

Na sexta-feira de manhã, Bob Frieze foi acordado pelo toque estridente do telefone na mesa-de-cabeceira. Abriu os olhos e estendeu a mão para pegar no auscultador. Resmungou um cumprimento com voz rouca.

 

Bob, é a Connie. Estava a contar com a Natalie ontem à noite para jantar. Ela não me ligou nem apareceu. Está tudo bem?

 

Bob Frieze levantou a cabeça. Estava deitado em cima da colcha. ”Natalie”, pensou ainda meio ensonado. ”Estávamos no restaurante. Ela disse que não queria almoçar e saiu quase a correr.”

 

Bob, o que se passa? A voz de Connie soou irritada, mas ele detectou ainda outra coisa. Medo.

 

Medo? Provavelmente Natalie contara a Connie que haviam discutido. Ele tinha a certeza. Teria também falado a Connie do pulso magoado?

 

Bob tentou pensar. ”A Natalie disse-me que se ia embora. Que vinha para casa fazer as malas. Que ia ficar no apartamento da Connie em Nova Iorque. Não apareceu lá?”

 

Já era manhã, e Connie dissera-lhe que Natalie devia ter lá chegado na véspera à noite.

 

”Perdi quase um dia”, pensou Bob Frieze. ”Quanto tempo terei estado inconsciente?”

 

Tapou o bocal com a mão, pigarreou e disse:

 

Connie, eu estive com a Natalie no restaurante ontem à hora do almoço. Disse-me que vinha para casa fazer as malas e que tencionava ir para tua casa. Não a vi desde essa altura.

 

E ela fez mesmo as malas? As malas estão aí? E o carro dela?

 

Espera um pouco. Bob Frieze levantou-se e apercebeu-se de que estava com uma enorme ressaca. ”Não costumo beber muito”, pensou. ”Como é que isto aconteceu?”

 

Comprara aquela casa e mudara-se para lá enquanto esperava o fim do processo de divórcio com Susan. Natalie insistira em decorar a casa e quisera fazer algumas obras. Assim, o pequeno quarto ao lado do deles fora transformado em dois quartos de vestir. Ele abriu o dela.

 

Havia uma única prateleira à altura da cintura a um canto do quarto de vestir que era utilizada para pousar as malas quando se emalavam coisas. A mala maior de Natalie encontrava-se aberta nessa prateleira. Bob olhou lá para dentro e viu que estava meio cheia.

 

Com receio do que poderia encontrar, cambaleou até ao quarto de hóspedes, lembrando-se de que fora ali que ela lhe dissera que passara a noite anterior. A cama estava feita, mas ele abriu a porta da casa de banho e viu que os cosméticos ainda estavam na prateleira, por embalar.

 

Tinha ainda de fazer outra coisa antes de pensar no que iria dizer a Connie. Correu até à cozinha no rés-do-chão e abriu a porta que dava para a garagem. O carro dela estava estacionado.

 

”Onde está a Natalie?”, perguntou de si para si. O que lhe teria acontecido? Era evidente que lhe havia acontecido alguma coisa, disso tinha ele a certeza.

 

Mas por que motivo tinha ele a certeza?

 

De volta ao quarto, pegou no auscultador.

 

Parece que a Natalie mudou de ideias, Connie. As coisas dela estão aqui.

 

Então onde está a Natalie?

 

Olha, não sei. Tivemos uma discussão na quarta à noite. Ela tem dormido no quarto de hóspedes. Ontem à noite cheguei a casa tarde, como de costume, e vim directamente para a cama. Não fui vê-la. Tenho a certeza de que está bem. A Natalie às vezes não se dá ao trabalho de ligar às pessoas quando muda de ideias.

 

O clique que ouviu disse a Bob que a melhor amiga da mulher lhe desligara o telefone na cara.

 

Connie ia ligar à Polícia. A certeza disso atingiu-o como o impacto de uma arma disparada à queima-roupa. O que deveria fazer?

 

”Agir com normalidade”, decidiu. Abriu a cama, os cobertores e deitou-se um minuto nos lençóis para dar a impressão que dormira ali.

 

”Onde é que estive desde o meio-dia de ontem?”, perguntou de si para si, tentando recordar-se. ”O que andei a fazer?” Não se lembrava de nada. Passou a mão pela cara e sentiu a barba.

 

”Vai tomar duche. Faz a barba. Veste-te. Quando a Polícia chegar, age com naturalidade. Discutiste com a tua mulher. Quando chegaste a casa ontem à noite, não foste ver se ela estava no quarto de hóspedes. Parece que mudou de ideias quanto a ir para Nova Iorque.”

 

Quando um agente lhe tocou à campainha meia hora mais tarde, Bob Frieze estava preparado para ele. Mostrou-se calmo, mas explicou que começava a ficar preocupado.

 

Com tudo o que aconteceu aqui durante a semana, começo a estar seriamente preocupado com o desaparecimento da minha mulher. O seu rosto exibia uma expressão preocupada. Depois acrescentou: Não suporto pensar que lhe possa ter acontecido alguma coisa!

 

Mesmo aos seus ouvidos, aquela frase não soava verdadeira.

 

Pete Walsh fora a uma loja de conveniência comprar leite antes de sair para o trabalho às oito da manhã. Por insistência da mulher, comprara-lhe também um exemplar do The National Daily. Enquanto esperava pelo troco, olhou para o cabeçalho. Menos de um minuto depois, encontrava-se ao telefone com a esquadra de Spring Lake.

 

Mandem alguém ao The Breakers disse. Digam ao agente para ficar junto de uma senhora de idade chamada Bernice Joyce, que está lá hospedada. Ela foi apontada como testemunha do roubo da echarpe no homicídio Lawrence. Pode correr perigo de vida.

 

Tendo esquecido o leite, saiu da loja a correr e meteu-se no carro. A caminho do gabinete do promotor público, contactou Duggan que ia a caminho de lá.

 

Dez minutos depois encontravam-se a caminho de Spring Lake no seu veículo especialmente equipado.

 

Tommy Duggan ligou para a recepção do Hotel The Breakers. Mrs. Joyce tinha ido dar um passeio pela marginal, disseram-lhe. A Polícia já andava à procura dela.

 

O Dr. Dermot O’Herlihy foi a pé até aos correios e depois decidiu voltar a casa pela marginal. Ficou admirado por ver Bernice Joyce ainda sentada no banco. Estava de costas para ele, pelo que não conseguia ver-lhe a cara. ”Deve ter adormecido”, pensou. Mas a forma como a cabeça dela estava inclinada para a frente fê-lo acelerar o passo.

 

Contornou o banco, olhou para Bernice e viu a corda apertada em volta do pescoço dela.

 

Acocorou-se, abarcando os olhos fixos, a boca aberta, as gotas de sangue nos lábios.

 

Conhecia Bernice Joyce há mais de cinquenta anos, desde a altura em que ela e Charlie Joyce, e ele e a mulher, Mary, costumavam vir para Spring Lake com os filhos.

 

-Ah, Bernice, minha querida, quem é que te ia fazer uma coisa destas?

 

O som de passos a correr fê-lo olhar para cima. Chris Dowling, o agente mais novo da vila, aproximava-se pela marginal. Momentos depois parava junto ao banco, acocorando-se ao lado de Dermot e olhando para o corpo sem vida.

 

Vens tarde de mais, rapaz disse Dermot enquanto se levantava. Ela está morta há mais de uma hora.

 

Embora ele não lhe tivesse dito nada, Pat Glynn sabia que Mr. Stafford estava zangado com ela. Via-o nos olhos dele e sentiu-o na forma como ele chegou ao escritório na sexta de manhã e passou pela secretária dela cumprimentando-a com frieza.

 

Quando ele regressara ao escritório na véspera à tarde, ela dissera-lhe que estivera lá uma tal Miss Ashby para lhe falar.

 

Miss Ashby? A alcoviteira daquele tablóide? Espero que não a tenha deixado sacar-lhe muita informação a meu respeito, Pat. Aquela mulher é uma venenosa}.

 

Com o coração apertado, Pat recordara-se de tudo o que contara a Ashby.

 

Só lhe disse que o senhor era uma pessoa maravilhosa, Mister Stafford contou.

 

Pat, tudo o que você lhe disse vai ser distorcido. Pode ajudar-me se me disser exactamente o que lhe contou. Prometo que não me zango, mas preciso de estar preparado. Costuma ler o The National Daily!

 

Ela admitira que às vezes lia.

 

Bem, se o leu esta semana, viu o que essa Ashby tem andado a fazer ao doutor Wilcox. E vai fazer o mesmo comigo. Então que perguntas é que ela lhe fez e o que é que você lhe disse?

 

Pat estava com dificuldade em concentrar-se no trabalho que tinha na secretária. Precisava de resistir ao impulso de ir ao gabinete de Mr. Stafford dizer-lhe o quanto estava arrependida.

 

Foi então que um telefonema da mãe a deixou chocada ao ponto de se esquecer dos remorsos.

 

Pat, houve outro homicídio na vila. Uma senhora de idade, Bernice Joyce, uma das convidadas da festa dos Lawrence na véspera do desaparecimento da Martha, foi encontrada morta num banco da marginal. Ela contou àquela jornalista do The Daily National que achava que podia identificar a pessoa que levara a echarpe que matou a Martha, a jornalista escreveu acerca disso e agora Mistress Joyce está morta. Acreditas numa coisa destas?

 

Eu já te ligo, mãe. Pat desligou o telefone e, caminhando como um robô, avançou pelo corredor. Sem bater, abriu a porta do gabinete de Will Stafford.

 

Mister Stafford, Mistress Joyce está morta. Sei que o senhor a conhecia. Ela disse àquela jornalista que julgava ter visto alguém levar a echarpe naquela festa e a jornalista escreveu sobre isso. Mister Stafford, tenho a certeza de que não contei a Miss Ashby nada que possa provocar a morte de alguém! A voz de Pat elevara-se, trémula, e foi interrompida por uma torrente de lágrimas. Sinto-me tão mal!

 

Will levantou-se e deu a volta à secretária. Pousou as mãos nos ombros dela.

 

Pat, não faz mal. Claro que não disse à Ashby nada que possa provocar a morte de alguém. Agora explique-me lá o que é que disse. O que aconteceu a Mistress Joyce?

 

Pat sentia as mãos quentes e fortes nos seus ombros. Acalmou-se e repetiu o que a mãe acabara de lhe contar.

 

Lamento imenso disse Will. A Bernice Joyce era uma senhora muito bondosa e elegante.

 

”Estamos a falar de novo como amigos”, pensou Pat. Ansiosa por prolongar a intimidade do momento, perguntou:

 

Mister Stafford, acha que o doutor Wilcox pode ter feito aquilo a Mistress Joyce? Quero dizer, segundo os jornais a mulher dele disse-lhe que lhe deu a echarpe a guardar.

 

Calculo que irão interrogá-lo respondeu Will com brusquidão.

 

Pat apercebeu-se da mudança de tom. O momento de intimidade terminara. Era altura de voltar para a sua secretária.

 

Ao meio-dia as cartas para o senhor assinar estarão prontas prometeu. Vai sair para almoçar?

 

Não. Pode mandar vir qualquer coisa para os dois. Ela tinha de aproveitar a oportunidade.

 

Vou esperar um pouco para fazer o pedido, não vá o senhor mudar de ideias. Mistress Frieze pode aparecer, como no outro dia.

 

Mistress Frieze vai mudar-se permanentemente para Nova Iorque.

 

Pat Glynn regressou à secretária em êxtase.

 

No seu gabinete, Will Stafford estava ao telefone com a agência de emprego que lhe enviara Pat Glynn havia dois anos.

 

E por amor de Deus, mandem-me alguém com maturidade e sensibilidade, que não seja alcoviteira nem ande à procura de marido implorou.

 

Temos uma pessoa que acabou de deixar o seu contacto. Quer mudar de emprego. Chama-se Joan Hodges e trabalhava com aquela psicóloga que foi assassinada a semana passada. É eficiente. Inteligente. Boa pessoa. Acho que vai ficar muito satisfeito com ela, Mister Stafford.

 

Mande-me o currículo dela, num sobrescrito sem identificação. Escreva que é pessoal.

 

Com certeza.

 

Quando Will pousou o auscultador, Pat anunciou outro telefonema. Este era do detective Duggan, pedindo uma reunião com ele o mais depressa possível.

 

Na quinta-feira à tarde, não querendo voltar a encontrar-se de novo com Bernice Joyce, Reba Ashby saíra do Hotel The Breakers e instalara-se no Inn at the Shore, em Belmar, a alguns quilómetros. Esperara ser confrontada quando o jornal com o seu cabeçalho sobre Joyce chegasse às bancas na sexta de manhã, mas ficou muito abalada quando ouviu no rádio que a senhora tinha morrido.

 

Então o seu instinto natural de autoprotecção começou a funcionar. ”A Bernice devia ter ido à Polícia”, disse de si para si. ”A culpa foi dela. Só Deus sabe a quantas mais pessoas, para além de mim, é que ela contou que havia visto alguém levar a echarpe. Ninguém confia numa só pessoa. Para além do mais, se não conseguem guardar segredo não podem esperar que os outros fiquem calados.”

 

”Tanto quanto sei, a Bernice pode até ter perguntado ao assassino se ele pegou na echarpe só para a admirar, e depois a largou noutro sítio. Era suficientemente ingénua para fazer isso.”

 

Mesmo assim Reba telefonou de imediato a Álvaro Martinez-Fonts, o seu editor, a fim de combinar como iria lidar com uma eventual reacção da Polícia. Depois contou-lhe que fora jantar ao The Seasoner na quinta à noite, mas que Bob Frieze não estivera lá.

 

Dei cinquenta dólares ao chefe de mesa contou. Isso fê-lo falar. Segundo ele, há muito tempo que o Frieze anda estranho. O chefe de mesa acha que ele se encontra à beira de um colapso nervoso ou de algo do género. Ontem, a Natalie Frieze apareceu no restaurante, mas não se demorou. Ela e o Bob trocaram algumas palavras à mesa e o chefe de mesa ouviu-a dizer-lhe que tinha medo dele.

 

Isso encaixa-se no ângulo da mulher agredida.

 

E há mais. Um empregado que estava a servir a mesa ao lado ouviu-os falar de divórcio e está disposto a pôr a boca no trombone, mas quer muito, muito dinheiro.

 

Paga-lhe e escreve o artigo ordenou Álvaro.

 

Hoje vou tentar ver a Natalie Frieze.

 

Mete-a a falar. O Robert Frieze costumava ser famoso em Wall Street. Não faz mal termos alguns cabeçalhos acerca dele, mesmo que não tenha nada a ver com o homicídio.

 

Mas olha que não é nada famoso na restauração. A comida não é nada de especial. A decoração é exagerada e pouco confortável. A casa tem pouca clientela. Confia em mim. Não há-de ir longe.

 

Continua o bom trabalho, Reba.

 

Podes crer que sim. Que tal te estás a sair com o Stafford?

 

Até agora ainda não descobri nada. Mas, se houver alguma coisa, havemos de a desenterrar.

 

Basta de o deixarmos ficar no escritório a comandar tudo disse Tommy Duggan a Pete Walsh quando abandonaram o local do crime. Temos de o obrigar a mostrar os trunfos... e depressa. O corpo de Bernice Joyce já fora levado. A equipa forense fizera o seu trabalho e estava a preparar-se para partir. Tal como o chefe da equipa dissera a Tommy: ”Com a brisa do mar não temos qualquer hipótese de descobrir alguma coisa útil. Procurámos impressões digitais, mas todos sabemos que o assassino devia estar de luvas. É um profissional.”

 

É um grande profissional comentou Tommy com Pete quando entraram no carro. O rosto de Bernice Joyce não lhe saía da cabeça, tal como o vira na semana anterior, quando a interrogara em casa de Will Stafford.

 

Ela fora sincera quando ele lhe perguntara se reparara na echarpe. Sabia que Rachel Wilcox a levara posta. ”Mas lembrar-se-ia de que vira alguém pegar nela?”, perguntou Tommy a si mesmo. ”Acho que não”, decidiu ele. ”Deve ter-se lembrado mais tarde.”

 

”Ela disse-me que ia regressar a Palm Beach na segunda. Mas mesmo que tivesse sabido que iria ficar mais uns dias, nunca me teria ocorrido voltar a falar-lhe.”

 

Sentia-se triste e zangado consigo próprio. O assassino lera o artigo no jornal e assustara-se, pensou, assustara-se tanto que se arriscara a matar Mrs. Joyce em plena luz do dia. E se continuasse a seguir o padrão, no dia seguinte mataria outra pessoa, lembrou Tommy a si próprio. E a vítima seguinte seria uma mulher jovem.

 

Para onde vamos? perguntou Pete.

 

Ligaste ao Stafford?

 

Sim. Ele disse para passarmos lá quando quiséssemos. Vai estar todo o dia no escritório.

 

Vamos começar por ele. Mas telefona primeiro para a esquadra.

 

Foi nessa altura que ficaram a saber do desaparecimento de Natalie Frieze.

 

Esquece o Stafford disse Tommy. Os agentes locais estão a interrogar o Frieze. Quero assistir.

 

Recostou-se no banco, pensando na arrepiante possibilidade de o assassino ter já escolhido a vítima seguinte: Natalie Frieze.

 

Nick Todd telefonou a Emily assim que ouviu a notícia da morte de Bernice Joyce.

 

Emily, conhecias aquela mulher? perguntou.

 

Não.

 

Achas que ela foi morta por causa do artigo naquele pasquim?

 

Não faço ideia. Ainda não li o artigo, mas parece-me que é bastante mau.

 

Foi uma sentença de morte para a pobre mulher. E este tipo de coisas que me faz querer ir já trabalhar para o Ministério Público.

 

Que tal vai isso?

 

Sondei algumas das pessoas mais importantes que trabalham com ele. Ganhei um caso importante contra eles o ano passado, e isso tanto pode prejudicar-me como beneficiar-me. Houve uma mudança subtil no tom dele. Liguei-te ontem à noite, mas calculo que tenhas saído.

 

Fui jantar fora. Não deixaste recado.

 

Pois não. Que tal vai o projecto?

 

Posso estar enganada, mas creio que descobri um padrão naquelas mortes todas, e é terrível. Lembras-te de te ter dito que o Douglas Cárter, o rapaz que estava noivo da Madeline, se matou?

 

Sim, lembro.

 

Nick, foi encontrado com uma caçadeira ao lado. Estava muito deprimido com o desaparecimento da Madeline, mas também era jovem, bem-parecido, rico, e tinha um futuro promissor em Wall Street. Tudo o que está escrito acerca dele nos diários e nas outras coisas que tenho é bastante positivo e nada sugere que fosse um potencial suicida. Outra coisa ainda. A mãe dele estava muito doente, e parece que ele lhe era muito chegado. Devia saber que a sua morte iria destruí-la. Imagina só... o que sentiria a tua mãe se alguma coisa te acontecesse?

 

Nunca me perdoaria disse Nick com secura. Mas o que sentiria a tua mãe se te acontecesse alguma coisa?

 

Não iria gostar, claro.

 

Então até o teu perseguidor e este assassino que estás a tentar identificar serem detidos, mantém por favor as portas trancadas e o alarme ligado, especialmente quando estiveres aí sozinha. Olha, tenho de atender uma chamada. Vemo-nos no domingo, se não falarmos antes.

 

”Porque é que o Nick tem de soar tão paternalista?”, perguntou Emily de si para si ao desligar o telefone. Eram onze e meia. Durante as últimas duas horas e meia ela alternara a leitura entre os velhos relatórios da Polícia e as coisas dos Lawrence.

 

Também telefonara para os pais em Chicago e para a avó em Albany e contara-lhes muito animada o quanto estava a gostar da casa.

 

”E é tudo verdade”, pensou ao recordar também o que estava a esconder deles.

 

Julia Gordon Lawrence mantivera diários anuais. Não escrevera entradas diárias, mas escrevera muitas vezes. ”Gostava imenso de ler tudo”, pensou Emily, ”e é isso que farei se os Lawrence me deixarem ficar com eles o tempo suficiente. Mas, por enquanto preciso de encontrar neles informações ligadas aos desaparecimentos e à morte do Douglas.” Sobressaltada, apercebeu-se de que já não considerava a morte dele um suicídio e que acreditava que fora vítima da mesma pessoa que matara as três raparigas.

 

Ellen Swain desaparecera a 31 de Março de 1896.

 

”Claro”, pensou Emily. ”A Julia deve ter escrito a respeito disso.” Procurou entre os diários e encontrou um daquele ano.

 

Contudo, antes de começar a ler quis fazer outra coisa. Abriu a porta do escritório que dava para o alpendre, foi lá para fora e olhou para o outro lado da rua. Os registos indicavam que a velha casa dos Cárter fora destruída num incêndio em 1950 e substituída pela que lá se encontrava naquele momento, uma cópia das casas do final do século xix, com alpendre a toda a volta e tudo.

 

”Se a Madeline estava aqui sentada e o Douglas, ou o Alan, a chamou...”

 

Emily queria verificar se o cenário que imaginara na véspera era possível.

 

Contornou a casa caminhando pelo alpendre e desceu as escadas para o jardim. O empreiteiro alisara a terra, mas os ténis dela ficaram imediatamente cheios de lama quando avançou até à sebe que assinalava o fim do seu terreno.

 

Dirigiu-se ao local onde haviam sido encontrados os restos mortais das duas vítimas e deteve-se lá. O enorme azevinho com os seus ramos pesados e baixos impossibilitava quem estava dentro de casa de saber se Alan Cárter vira Madeline sair e se depois a magoara propositada ou acidentalmente. O som do piano enquanto a irmã de Madeline estava a tocar teria abafado qualquer grito.

 

”Porém, mesmo que tivesse acontecido assim”, pensou Emily, ”de que forma é que esses homicídios estão ligados ao presente?”

 

Emily voltou para dentro de casa, pegou no diário de 1896 e procurou as entradas posteriores a 31 de Março.

 

No dia 1 de Abril de 1896, Julia escrevera:

 

”A minha mão treme enquanto escrevo isto. A Ellen desapareceu. Ontem foi visitar Mrs. Carter e levou-lhe um manjar-branco para ver se lhe tentava o apetite.

 

Mrs. Carter disse à Polícia que a visita foi agradável mas breve. A Ellen estava muito pensativa, disse ela, e parecia bastante excitada. Mrs. Carter encontrava-se a descansar numa cadeira junto à janela do quarto e viu a Ellen sair e começar a descer a Avenida Hayes em direcção a casa. Foi a última vez que a viu.”

 

”O que quer dizer que ela passou pela casa do Alan Cárter”, pensou Emily.

 

Virou rapidamente as páginas seguintes e depois parou. A entrada datada de três meses mais tarde dizia: ”A querida Mrs. Carter foi chamada esta manhã para a sua morada celeste. Estamos todos muito tristes, mas achamos que para ela foi uma grande bênção. Foi libertada da dor e do sofrimento e agora reuniu-se ao seu adorado filho, Douglas. Durante os últimos dias esteve muito confusa. Às vezes achava que o Douglas e a Madeline estavam no quarto com ela. Mr. Carter suportou corajosamente a doença prolongada da esposa e a perda do filho. Todos esperamos que o futuro seja mais benevolente para com ele.”

 

”E quanto a ele, o marido e pai?”, perguntou Emily de si para si. ”Há pouca coisa escrita a seu respeito. Por outro lado, é evidente que nem ele nem a mulher iam a festas e comemorações.” Pelas poucas referências que lhe eram feitas, Emily ficou a saber que o seu primeiro nome era Richard.

 

Continuou a virar as páginas, à procura de mais referências a alguém de nome Cárter. Havia ainda mais algumas a Ellen Swain durante o resto de 1896, mas nenhuma a Richard ou a Alan Cárter que Emily pudesse detectar.

 

A primeira entrada de 1897 fora feita a 5 de Janeiro.

 

”Esta tarde fomos ao casamento de Richard Carter com Lavinia Rowe. Foi uma cerimónia muito discreta, uma vez que Mrs. Carter morreu há menos de um ano. No entanto, ninguém censura Mr. Carter pela sua felicidade. Ele é um homem muito bonito e ainda está nos quarenta. Conheceu a Lavinia quando ela veio visitar a prima, a minha amiga Beth Dietrich. Lavinia é uma rapariga muito bonita, calma e madura. Com vinte e três anos, tem metade da idade de Mr. Carter, mas todos já assistimos a muitos romances de Maio e Dezembro e alguns deles foram bem sucedidos.

 

Dizem que vão vender a casa da Avenida Hayes, que conheceu tanta dor, e já compraram uma mais pequena mas muito bonita, no número 20 da Avenida Brimeley.”

 

”No número vinte da Avenida Brimeley”, pensou Emily. ”Porque é que essa morada me é tão familiar?”

 

E então lembrou-se. Estivera lá na semana anterior.

 

Era onde vivia o Dr. Wilcox.

 

Tommy Duggan e Pete Walsh chegaram a casa dos Frieze e encontraram o dono bastante agitado sentado no sofá da sala, a falar com alguns agentes.

 

A minha mulher estava desejosa de se mudar para Manhattan, e já há algum tempo que andamos a pensar nisso estava ele a dizer. Acabei de vender o restaurante e vou pôr imediatamente esta casa à venda. Uma amiga convidou-a para ficar em casa dela e a Natalie tencionava ir para lá ontem. Não sei por que motivo mudou de ideias. É bastante impulsiva. Pode ter apanhado um avião para Palm Beach. Tem lá bastantes amigos.

 

Reparou se as roupas quentes dela desapareceram? perguntou o agente.

 

A minha mulher tem mais roupas do que a rainha do Sabá. Já a vi comprar a mesma indumentária duas vezes porque se esqueceu que tinha o duplicado pendurado no roupeiro. Se a Natalie meteu na cabeça que ia apanhar um avião para Palm Beach, não se incomodaria nada de não levar roupa nenhuma e, quando lá chegasse, de passar algumas horas na Avenida Worth com o cartão de crédito na mão.

 

Quanto mais Bob Frieze falava, mais credível a sugestão lhe parecia. Ainda no outro dia Natalie se queixara do tempo. Escuro. Frio. Monótono. Medonho. Aquelas haviam sido algumas das palavras que ela usara para descrever a altura do ano.

 

Importa-se que demos uma olhadela por aqui, Mister Frieze?

 

De maneira nenhuma. Nada tenho a esconder.

 

Tommy sabia que Bob Frieze o vira a ele e a Walsh quando entraram na sala, mas não se dera ao trabalho de os cumprimentar. Tommy dirigiu-se para o lugar que o agente deixara vago.

 

Mister Frieze, achei que talvez o senhor não me tivesse reconhecido. Já nos vimos várias vezes.

 

Muito mais do que ”várias vezes”, creio eu, Mister Duggan respondeu Frieze num tom sarcástico.

 

Tommy assentiu.

 

Lá isso é verdade. Por acaso foi correr esta manhã, Mister Frieze?

 

”Será que fui?”, perguntou Bob Frieze de si para si. ”Tinha o fato de treino vestido. Quando é que o vesti? Ontem à tarde? Ontem à noite? Esta manhã? Terei vindo atrás da Natalie quando ela saiu do restaurante? Será que tivemos outra discussão?”

Levantou-se.

 

Mister Duggan, estou farto das vossas acusações. Já há muito que estou farto, há quatro anos e meio, para ser mais preciso. Não me vou submeter a outro interrogatório feito por si ou por outra pessoa. Tenciono começar a ligar para os meus amigos de Palm Beach para saber se alguém viu a minha mulher ou se a minha mulher está em casa de algum deles. Fez uma pausa. No entanto, Mister Duggan, o meu primeiro telefonema vai ser para o meu advogado. Quaisquer perguntas que me queira fazer deverão ser dirigidas a ele.

 

Joan Hodges estava a abrir os ficheiros do computador e a fazer listas de todos os doentes da Dr.a Madden durante os últimos cinco anos.

 

Fora enviado um técnico da Polícia para ajudá-la. Dois psicólogos, ambos amigos da Dr.a Madden, ofereceram-se para vir ajudar a reunir os dossiês confidenciais dos doentes que haviam ficado espalhados pelo gabinete.

 

O ritmo acelerado das actividades fora pedido por Tommy Duggan. Se o dossiê do Dr. Clayton Wilcox continuasse desaparecido, havia fortes possibilidades de ele ter sido o assassino.

 

Joan já tivera oportunidade de confirmar que mais nenhuma das pessoas da lista que Duggan lhe dera fora doente da Dr.a Madden.

 

Mas isso não quer dizer que uma dessas pessoas não tenha usado um nome falso preveniu Tommy. Precisamos de saber se o dossiê de alguma das outras pessoas da lista desapareceu, porque, se assim for, iremos investigar essa pessoa.

 

Tinham arrumado os dossiês por ordem alfabética em longas mesas de metal que haviam sido colocadas na sala de estar da Dr.a Madden. Em alguns dos casos, as etiquetas adesivas com os nomes haviam sido rasgadas ou arrancadas, pelo que sabiam que os resultados seriam no mínimo inconclusivos.

 

O trabalho policial é entediante disse o técnico da Polícia a Joan com um sorriso.

 

Estou a ver.

 

Acima de tudo, Joan queria acabar o trabalho ali e encontrar um novo emprego. Já telefonara para a agência. Vários dos psicólogos conhecidos da Dr.a Madden haviam dado a entender que gostariam de falar com ela a respeito de trabalho, mas Joan sabia que precisava de uma mudança radical. Continuar num gabinete com a mesma atmosfera serviria apenas para a fazer recordar a imagem assustadora da Dr.a Madden sentada na cadeira com a corda apertada em volta do pescoço.

 

Deparou-se-lhe um nome que tinha morada em Spring Lake e franziu o sobrolho. Leu o nome e não conseguiu localizá-lo, embora se tenha apercebido de que não o conhecia. Podia ter sido um dos doentes da noite; Joan nunca os via.

 

”Mas espera lá”, pensou. ”Não foi ele que só cá veio uma vez, há cerca de quatro anos?

 

”Vi-o entrar no carro quando voltei atrás para vir buscar os meus óculos. Lembro-me dele”, pensou, ”porque parecia estar muito aborrecido. A doutora Madden disse que ele se fora embora de repente. Deu-me uma nota de cem dólares que ele lhe tinha atirado para cima da secretária”, recordou Joan. ”Eu perguntei-lhe se ela queria que eu cobrasse o resto ao homem, mas ela disse-me para esquecer o assunto.

 

”É melhor dar já o nome dele ao detective Duggan”, decidiu ela pegando no telefone.

 

Douglas Carter, do número 101 da Avenida Hayes, em Spring Lake.

 

Tommy Duggan e Pete Walsh encontravam-se no gabinete do promotor, onde tinham acabado de lhe comunicar o que haviam descoberto acerca do homicídio de Bernice Joyce e do desaparecimento de Natalie Frieze.

 

Então o marido disse-nos que ela deve estar em Palm Beach e que a partir de agora só fala connosco por intermédio do advogado concluiu Tommy.

 

Qual é a probabilidade de ela vir a aparecer em Palm Beach? perguntou Osborne.

 

Estamos a contactar as companhias de aviação para saber se ela voou com alguma. Acho que a probabilidade é de um para mil respondeu Tommy.

 

O marido convidou-vos a dar uma olhadela à casa?

 

Os agentes de Spring Lake deram. Não havia sinais de luta ou de violência. Parece que ela estava a fazer a mala e depois desapareceu.

 

Cosméticos? Carteira?

 

O marido disse que quando estiveram ontem no restaurante ela envergava um casaco de cabedal dourado, uma camisa de seda às riscas castanhas e douradas e calças de lã castanhas, e que trazia uma mala castanha ao ombro. Em casa não vimos nem o casaco de cabedal dourado nem a mala castanha. Ele admite que discutiram e que ela dormiu no quarto de hóspedes na noite anterior. Portanto, na quarta. Havia cosméticos, perfumes, loções e sprays em quantidade suficiente nos quartos para abrir uma perfumaria.

 

Imagino comentou Osborne. Vamos ter de esperar para ver se ela aparece. Enquanto adulta, tem o direito de sair de casa sempre que lhe apetecer. Disse que o carro dela estava na garagem? Alguém deve ter ido buscá-la. Há algum namorado em cena?

 

Não, tanto quanto nos apercebemos. Falei com a mulher-a-dias disse Walsh. Vai três tardes por semana. Mas não calhou a ir na quinta.

 

O promotor arqueou as sobrancelhas.

 

Vai de tarde? A maior parte das mulheres-a-dias vai de manhã!

 

Ela estava a chegar quando íamos a sair hoje. Explicou que Mistress Frieze costuma dormir até tarde e que não gosta de ser incomodada pelo barulho do aspirador. Não me pareceu que a senhora gostasse muito da Natalie Frieze.

 

Então por agora vamos ter de esperar para ver o que acontece disse Osborne. O que foi, Duggan? Não parece muito satisfeito.

 

Tenho um mau pressentimento quanto à Natalie Frieze explicou Tommy. Será que alguém antecipou o trinta e um por alguns dias?

 

Houve silêncio durante um longo momento.

 

Porque pensa isso? perguntou então Osborne.

 

Porque ela se encaixa no padrão. Tem trinta e quatro anos, não vinte nem vinte e um, e, tal como a Martha Lawrence e a Carla Harper, é uma mulher bonita. Duggan encolheu os ombros. Seja como for, tenho um péssimo pressentimento a respeito da Natalie Frieze e não gosto do marido. O Frieze tem um álibi fraco para o seu paradeiro aquando do desaparecimento da Martha Lawrence. Diz que esteve no jardim a tratar dos canteiros.

 

Walsh assentiu.

 

Viveu os primeiros vinte anos da vida na casa onde foram encontrados os restos mortais da Carla Harper e talvez os da Letitia Gregg disse. E agora a mulher dele desapareceu.

 

Sir, é melhor irmos falar com o doutor Wilcox sugeriu Tommy Duggan. Ele vem cá ter às três horas.

 

O que é que descobriu? perguntou Osborne. Tommy inclinou-se para a frente na cadeira com as mãos unidas, uma posição que significava que estava a pesar cuidadosamente as suas opções.

 

Ele estava com vontade de vir. Sabe que não é obrigado. Quando cá chegar, vou voltar a repetir-lhe que pode ir-se embora quando quiser. Desde que esteja consciente disso, não precisamos de lhe ler os direitos e, para ser sincero, também prefiro não o fazer. Ele pode fechar-se em copas.

 

O que acha dele? perguntou Osborne.

 

Está a esconder muita coisa, e sabemos que mentiu. São dois grandes defeitos para mim.

 

Clayton Wilcox chegou precisamente às três horas. Duggan e Walsh acompanharam-no a uma pequena sala de interrogatórios, onde as únicas peças de mobiliário eram uma mesa e várias cadeiras, e convidaram-no a sentar-se.

 

Ele interrompeu-os quando voltaram a assegurar-lhe que não estava detido e que era livre de se ir embora.

 

Com um brilho de divertimento nos olhos, Wilcox disse:

 

Devem ter discutido se haviam ou não de ler-me os meus direitos e chegaram à conclusão de que enfatizar a minha liberdade vos protege no tocante à lei. Sorriu ao ver a expressão no rosto de Pete Walsh. Cavalheiros, parecem ter-se esquecido que passei a maior parte da minha vida no mundo académico. Não fazem ideia a quantos debates sobre liberdades civis e sobre o sistema judicial assisti, nem a quantos julgamentos fingidos assisti. Fui presidente de um colégio, sabem.

 

Era a abertura por que Tommy Duggan esperava, e ele aproveitou-a.

 

Doutor Wilcox, tendo em conta o seu passado, admira-me que se tenha aposentado do Colégio Enoch aos cinquenta e cinco anos. E ainda por cima acabara de assinar um contrato por mais cinco anos.

 

A saúde não me permitia continuar as minhas obrigações. Acreditem, o cargo de presidente de uma instituição pequena mas de prestígio requer muita energia, bem como tempo.

 

Qual é a natureza do seu problema de saúde, doutor Wilcox?

 

Problemas cardíacos graves.

 

Falou disso com o seu médico?

 

Com certeza.

 

Faz exames regulares ao seu coração?

 

A minha saúde tem-se mantido estável nos últimos tempos. A aposentação permitiu libertar-me da maior parte da tensão que existia na minha vida.

 

Doutor, isso não responde à minha pergunta. Faz exames regulares?

 

Tenho sido um bocado descuidado a esse respeito. No entanto, sinto-me muito bem.

 

Quando foi a última vez que foi ao médico?

 

Não sei.

 

Também não sabia se tinha ou não tido uma consulta com a doutora Madden. Ainda mantém isso ou mudou de ideias?

 

Talvez a tenha consultado uma ou duas vezes.

 

Ou nove ou dez, doutor. Temos os registos.

 

Tommy prosseguiu o interrogatório com cuidado. Percebeu que Wilcox estava a ficar intrigado, mas não queria que ele se levantasse e se fosse embora.

 

Doutor, o nome de Gina Fielding diz-lhe alguma coisa?

 

Wilcox empalideceu ao recostar-se na cadeira e, tentando ganhar tempo, olhou para o tecto com uma expressão pensativa.

 

Não sei bem.

 

Deu-lhe um cheque de cem mil dólares há doze anos, na altura em que se aposentou. Indicou que o cheque era para pagar uma mesa e uma secretária antigas. Isso refresca-lhe a memória?

 

Compro antiguidades em muitos lados.

 

Miss Fielding deve ser muito esperta, doutor. Na altura tinha apenas vinte e um anos e estava no primeiro ano. Não é verdade?

 

Houve uma longa pausa. Clayton Wilcox olhou directamente para Tommy Duggan, depois para Pete Walsh.

 

Tem toda a razão. Há doze anos a Gina Fielding era uma caloira de vinte e um anos no colégio. Uma rapariga de vinte e um anos muito mundana, devo acrescentar. Trabalhava comigo e dedicava-me muitas atenções. Comecei a ir a casa dela visitá-la. Desenvolveu-se por pouco tempo uma relação consensual que, é claro, era inteiramente inapropriada e potencialmente escandalosa. Ela era bolseira e vinha de uma família com poucos rendimentos. Comecei a dar-lhe dinheiro para gastar.

 

Wilcox olhou para a mesa durante bastante tempo como se achasse fascinante a superfície riscada. Depois tornou a olhar para cima e pegou no copo de água que tinham colocado em cima da mesa para ele.

 

Acabei por cair em mim e disse-lhe que a relação tinha de terminar. Ofereci-me para lhe arranjar trabalho noutro departamento, mas ela ameaçou processar-me e ao colégio por assédio sexual. Estava disposta a jurar que eu ameaçara retirar-lhe a bolsa se ela não tivesse uma relação comigo. O preço do seu silêncio foram cem mil dólares. Fez uma breve pausa e respirou fundo. Paguei. Também me demiti da presidência porque não confiava nela, e se ela quebrasse a promessa e processasse o colégio, eu sabia que a comunicação social estaria menos interessada se eu já não fosse presidente.

 

Onde está agora a Gina Fielding, doutor?

 

Não faço ideia de onde mora. Sei que virá amanhã à cidade, à procura de outros cem mil dólares. É evidente que tem lido os jornais sensacíonalistas e ameaçou vender a sua história a quem lhe pagasse mais.

 

Isso é extorsão, doutor. Sabia disso?

 

Conheço a palavra.

 

Tencionava pagar-lhe?

 

Não. Não posso viver o resto da minha vida assim. Vou dizer-lhe que não lhe darei nem mais um tostão sabendo, claro, as consequências dessa decisão.

 

A extorsão é um crime muito grave, doutor. Sugiro que nos deixe equipá-lo com um microfone. Se conseguir gravar Miss Fielding a exigir-lhe dinheiro para comprar o seu silêncio, podemos processá-la.

 

Vou pensar nisso.

 

”Acredito nele”, pensou Tommy Duggan. ”Mas isso ainda não o safa. Quando muito, prova que gosta de mulheres novas; para além disso, a arma do crime continua a ser a echarpe da mulher dele. E ele ainda não nos apresentou um álibi para a manhã do desaparecimento da Martha Lawrence.”

 

Doutor, onde esteve esta manhã entre as sete e as oito?

 

Fui dar um passeio.

 

Esteve na marginal?

 

A determinada altura sim. Por acaso, comecei o passeio por lá, depois contornei o lago.

 

Viu Mistress Joyce na marginal?

 

Não, não vi. Tive muita pena ao saber da morte dela. Que crime brutal!

 

Viu alguém conhecido, doutor?

 

Francamente, não prestei atenção. Como deve perceber agora, tenho tido bastante com que me preocupar. Levantou-se. Posso ir-me embora?

 

Tommy e Pete assentiram. Tommy levantou-se também.

 

Depois diga-nos se nos deixa colocar-lhe o microfone quando for falar com Miss Fielding. E devo dizer-lhe ainda outra coisa, doutor... estamos muito empenhados na investigação dos homicídios de Miss Lawrence, Miss Harper, da doutora Madden e de Mistress Joyce. As suas respostas às nossas perguntas foram bastante evasivas, para não dizer mais. Havemos de voltar a falar consigo.

 

Clayton Wilcox saiu da sala sem responder. Walsh olhou para Tommy Duggan.

 

O que é que achas?

 

Acho que decidiu contar-nos o que se passou com a Fielding porque não tem alternativa. Ela deve ser o tipo de mulher capaz de lhe comprar o silêncio e mesmo assim ir direita aos jornais. Quanto ao resto, ele parece ter o hábito de dar longos passeios sem nunca encontrar alguém que possa confirmar o seu paradeiro.

 

E também parece ter uma queda por mulheres jovens acrescentou Walsh. Será que nos contou tudo a respeito da história da Fielding?

 

Regressaram ao gabinete de Tommy onde os aguardava o recado de Joan Hodges.

 

Douglas Carter! exclamou Tommy. O tipo morreu há mais de cem anos!

 

Eric Bailey tencionara ir a Spring Lake na sexta-feira à noite, mas mudou de ideias depois de fazer um telefonema a Emily. Ela disse-lhe que ia jantar com a dona da estalagem na qual ficara durante as visitas que fizera à vila antes de comprar a casa.

 

Não valia a pena desperdiçar tempo em Spring Lake se não sabia onde Emily estava, decidiu Eric. Não valia a pena só para a ver chegar a casa no final da noite.

 

Iria até lá no dia seguinte, e chegaria a meio da tarde. Estacionaria a carrinha num local discreto. Havia muitos lugares de estacionamento na Avenida Ocean e ninguém ligaria a uma carrinha azul-escura de último modelo. Passaria despercebida no meio dos outros veículos dispendiosos que entravam e saíam dos lugares de estacionamento junto à marginal.

 

Perante uma noite sem compromissos, Eric começou a sentir-se cada vez mais impaciente. Tinha tanto em que pensar, tanta coisa com que se preocupar nos dias seguintes. O céu estava prestes a abater-se sobre ele. Na semana seguinte as acções da empresa passariam a valer quase nada. Tudo o que ele tinha teria de ser vendido. Passara de pobre a pobre em cinco anos, pensou ele irritado.

 

Estava metido naquele pesadelo por causa da Emily Graham. Ela iniciara a tendência da venda das acções da sua empresa. Não investira um tostão na empresa mas ganhara dez milhões de dólares devido ao génio dele. Depois rejeitara a sua oferta de amor com um sorriso. E tinha a vidinha garantida.

 

Eric sabia que em breve não bastaria mantê-la com medo.

 

Iria ser obrigado a dar outro passo.

 

         Sábado, 31 de Março

Toda a vila receava o pior devido aos acontecimentos dos últimos dez dias.

 

Como é possível que isto esteja a acontecer aqui? perguntaram os madrugadores uns aos outros ao encontrarem-se na padaria. Estamos a trinta e um de Março. Acham que vai acontecer alguma coisa hoje?

 

O estado do tempo contribuía para a sensação de mal-estar. O último dia de Março estava a ser tão caprichoso como o fora o resto do mês. A brisa quente e o céu azul da véspera tinham desaparecido. As nuvens eram agora pesadas e cinzentas. O vento vindo do mar era gelado e cortante. Parecia impossível que dali a algumas semanas as árvores estariam de novo carregadas de folhas, a relva ficaria de um verde aveludado e as sebes floridas iriam de novo rodear as casas centenárias.

 

Depois de um serão agradável com Carrie Roberts, Emily passara uma noite cheia de sonhos vagos, não tão assustadores quanto tristes. Acordou de um deles com lágrimas nos olhos e sem saber o que as provocara.

 

Não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.

 

O que fizera surgir aquilo?, perguntou ela de si para si ao voltar a pousar a cabeça na almofada, sem vontade de começar já o dia. Eram apenas sete da manhã e ela esperava conseguir dormir um pouco mais.

 

Mas era difícil; tinha tanto em que pensar. Pressentia que estava prestes a descobrir a ligação entre o passado e o presente e de ser capaz de relacionar os dois conjuntos de homicídios.

 

Também esperava poder encontrar a pista de que precisava num dos diários de Julia Gordon Lawrence.

 

A caligrafia era linda, mas pequena e cheia de rabiscos e, por conseguinte, difícil de ler. Em muitos locais a tinta desvanecera-se e ela tivera de se concentrar bastante em secções inteiras dos diários.

 

O detective Duggan ligara enquanto ela estivera fora a jantar e deixara recado que o laboratório teria a ampliação da fotografia de grupo no final do dia seguinte. Estava ansiosa por vê-la.

 

Ter aquela fotografia iria permitir-lhe finalmente conhecer as pessoas de que tanto ouvira falar. ”Quero ver as caras delas com clareza”, pensou Emily.

 

A manhã nublada deixava o quarto na penumbra. Emily fechou os olhos.

 

Eram oito e meia quando voltou a acordar, desta vez mais animada e sem se sentir cansada.

 

Essa disposição durou apenas uma hora. Quando o correio foi entregue vinha no meio dele um sobrescrito simples com o seu nome escrito numa letra infantil.

 

Emily sentiu um aperto na garganta. Vira aquela letra no postal com as lápides que recebera havia alguns dias.

 

Com dedos trémulos rasgou o sobrescrito e tirou lá de dentro o postal.

 

Embora tivesse vindo com um sobrescrito, o postal era-lhe também dirigido. Emily virou-o e viu o desenho de duas lápides. Os nomes escritos nelas eram Natalie Frieze e Ellen Swain. Estavam colocados no centro de uma área arborizada adjacente a uma casa. A morada escrita na parte de baixo do cartão era Avenida Seaford, 320.

 

Tremendo tanto que se enganou duas vezes a marcar o número, Emily ligou a Tommy Duggan.

 

Marty Browski foi ao escritório no sábado à tarde para tentar arrumar a secretária, desejoso de trabalhar algumas horas sem ser interrompido. Porém, ao fim de alguns minutos decidiu que mais valia ter ficado em casa. Era incapaz de se concentrar. A sua atenção estava centrada numa única pessoa. Eric Bailey.

 

As páginas de economia dos matutinos indicavam que a empresa de Bailey seria forçada a abrir falência e que as declarações enganadoras do seu fundador a respeito do desenvolvimento de novos produtos eram uma enorme preocupação para o director da Bolsa de Nova Iorque. O artigo especulava que ele podia ser acusado criminalmente.

 

”Ele encaixa-se tão bem no perfil de um perseguidor que podia ter posado para ele”, pensou Browski. Mandou investigar de novo os registos da via verde, mas isso só serviu para confirmar que nenhum dos carros de Eric Bailey se dirigira para o Sul de Albany.

 

Não havia mais nenhum carro em nome dele e era pouco provável que tivesse alugado um, porque teria de preencher a papelada.

 

E quanto a um carro da empresa?.

 

A ideia ocorreu a Browski quando ele estava prestes a desistir de tentar trabalhar e ir para casa. ”Vou pedir aos tipos que investiguem isso”, decidiu. ”Podem ligar-me para casa se descobrirem alguma coisa.”

 

Havia apenas mais uma possibilidade: a secretária de Bailey. Como é que ela se chamava? Marty Browski olhou para o tecto enquanto esperava que uma voz dos céus lhe respondesse.

 

Louise Cauldwell o nome ocorreu-lhe subitamente.

 

Vinha na lista telefónica. Tinha o atendedor de chamadas ligado.

 

Desculpe, mas de momento não posso atender. Por favor, deixe a sua mensagem. Responderei logo que possível.

 

”O que quer dizer que talvez não esteja em casa ou que talvez esteja”, pensou Marty, irritado, enquanto se identificava e deixava o número de telefone de casa. Se alguém sabia se Bailey tinha ou não outro transporte para além dos dois veículos registados em seu nome, esse alguém devia ser Ms. Cauldwell.

 

Pela terceira vez em dois dias, fitas com as palavras ”Cena de Crime” escritas rodearam a casa de outra pessoa em Spring Lake.

 

Esta casa, uma das mais antigas da vila, fora originariamente uma quinta e ainda retinha as linhas simples do seu design de início do século XIX.

 

O terreno grande era composto por dois lotes. A casa e o jardim ficavam no da esquerda, ao passo que a área à direita continuava praticamente no seu estado selvagem.

 

Foi ali, à sombra de vários plátanos, que o corpo de Natalie Frieze, envolto em plástico grosso, foi encontrado.

 

Para os habitantes locais, os acontecimentos que se seguiram não eram novidade. A comunicação social invadiu a cena em enormes carrinhas com antenas. Os helicópteros pairavam lá em cima. Por contraste, os vizinhos reuniram-se com uma dignidade calma no passeio e na estrada cortada ao trânsito.

 

Depois de receber o telefonema chocado de Emily, Tommy Duggan e Pete Walsh alertaram de imediato a Polícia de Spring Lake, transmitindo-lhes a mensagem do postal. Ainda antes de chegarem a casa de Emily receberam a informação de que o postal não era uma brincadeira. A diferença era que daquela vez o corpo não fora enterrado.

 

Por que será que ele não a sepultou? perguntou Pete Walsh, vendo uma vez mais a equipa forense a executar a lúgubre tarefa de examinar e fotografar a vítima e o meio envolvente.

 

Antes de Tommy poder responder, um carro-patrulha parou no local. Do banco traseiro saiu Bob Frieze, muito pálido e abalado, que, ao avistar Duggan, correu para ele.

 

É a Natalie? perguntou. É a minha mulher?

 

Duggan assentiu, mas não disse nada. Não tencionava sequer dar as condolências ao homem que podia muito bem ser o assassino.

 

A alguns metros de distância, Reba Ashby, disfarçada com uns óculos escuros e com um lenço que lhe cobria a cabeça e lhe ensombrava o rosto, estava a escrever no seu bloco de apontamentos: ”Assassino em série reencarnado reclama a terceira vítima.”

Ali perto, Lucy Yang, jornalista do Canal 7 de Nova Iorque, enfrentava a câmara, empunhando o microfone e dizendo calmamente:

 

A repetição macabra dos crimes de finais do século XIX reclamou a sua terceira e, possivelmente, última vítima. O corpo de Natalie Frieze, de trinta e quatro anos, esposa de Bob Frieze, proprietário de um restaurante e antigo executivo de Wall Street, foi encontrado hoje...

 

Duggan e Walsh seguiram a carrinha que levava o corpo de Natalie até à morgue.

 

Ela morreu há trinta e seis horas, talvez há quarenta disse-lhes o Dr. O’Brien. Só poderei ser mais específico depois da autópsia. A causa da morte parece ser a mesma da das outras vítimas... estrangulamento. Olhou para Duggan. Vai abrir agora um buraco à procura da vítima de trinta e um de Março de mil oitocentos e noventa e seis?

 

Tommy assentiu.

 

Tem de ser. Provavelmente iremos encontrá-la ali. Este assassino mantém-se mesmo fiel na sua imitação dos crimes do século passado.

 

Porque é que acha que ele não esperou até ao dia trinta e um para matá-la? perguntou o médico legista. Assim continuaria a seguir o padrão de igualar as datas deste ano com as do século xix.

 

Creio que ele quis certificar-se que a matava enquanto tinha a oportunidade, e com o reforço da segurança na vila deve ter achado que não podia arriscar-se a abrir uma vala. Contudo, para ele o mais importante era que o corpo fosse descoberto hoje, dia trinta e um disse Tommy.

 

Há mais um factor que deve considerar retorquiu o médico legista. A Natalie Frieze foi estrangulada com o mesmo tipo de corda que o assassino usou na Bernice Joyce. O terceiro pedaço da echarpe usada para matar a Martha Lawrence e a Carla Harper ainda anda por aí.

 

Se assim for, talvez isto ainda não tenha terminado retorquiu Tommy.

 

Quando Emily atendeu o telefone animou-se ao ouvir a voz de Nick Todd.

 

Tenho estado a ouvir rádio disse ele.

 

É tudo tão horrível! exclamou Emily. Ainda há uns dias estive com ela no almoço que os Lawrence deram depois do serviço fúnebre!

 

Como é que ela era?

 

Muito bonita. Do género que faz as outras mulheres sentirem que precisam de mudar o visual.

 

Que tipo de pessoa, era? perguntou Nick.

 

Vou ser sincera: não a escolhia para amiga. Era um bocado fútil. Custa-me a crer que ainda há uma semana estive sentada à frente dela e que agora está morta... foi assassinada!

 

Nick apercebeu-se da agitação na voz de Emily. Ele encontrava-se no seu apartamento do SoHo e tencionara ir ao cinema e em seguida jantar massa no pequeno restaurante italiano de Greenwich Village onde sempre ia.

 

O que vais fazer esta noite? perguntou, tentando manter um tom casual.

 

Nada. Quero acabar de ler os velhos diários que me emprestaram e depois voltar ao século XIX. Algo dentro de mim me diz que chegou a altura.

 

Depois disso Nick perguntou a si próprio por que motivo não sugerira ir jantar a Spring Lake nessa noite. Em vez disso, confirmou que iria buscá-la no domingo ao meio-dia e meia hora para um pequeno-almoço tardio.

 

Contudo, quando desligou reparou que se sentia demasiado inquieto para sequer pensar em ir ao cinema. Decidiu jantar mais cedo, telefonou a reservar um quarto no The Breakers e, às sete horas, meteu-se no carro rumo a Spring Lake.

 

Marty estava a terminar o jantar quando o telefone tocou. Louise Cauldwell, a secretária de Eric Bailey, acabara de chegar a casa e estava a responder aos recados. Marty foi direito ao assunto:

 

Ms. Cauldwell, tenho de perguntar-lhe uma coisa. Sabe se o Eric Bailey costuma conduzir outro carro que não os dois registados em nome dele?

 

Oh, creio que não. Trabalho com ele desde o início da empresa e nunca o vi ao volante de outros veículos que não o descapotável e a carrinha. Troca-os todos os anos, mas é sempre por um modelo mais recente.

 

Estou a ver. Sabe se Mister Bailey tenciona viajar este fim-de-semana?

 

Sim, vai esquiar para Vermont. Costuma fazê-lo com frequência.

 

Obrigado, Ms. Cauldwell.

 

Algum problema, Mister Browski?

 

Pensei que podia haver, mas afinal parece que não. Marty sentou-se na sala para passar o serão em frente ao televisor, mas, depois de ter estado a olhar para ele durante quase uma hora, percebeu que não fazia ideia do que estivera a ver. Às nove horas levantou-se de um pulo.

 

Acabei de me lembrar de uma coisa! anunciou ele a Janey.

 

A via verde confirmou o seu palpite. Nenhum dos veículos de Eric Bailey mostrava qualquer actividade naquele dia.

 

Ele anda a conduzir outro carro murmurou Marty. Tem de ter outro carro.

 

”Ela deve ter saído”, pensou ao tentar de novo o número de Louise Cauldwell. ”É sábado à noite e ela é uma mulher bonita.”

 

Contudo, Louise Cauldwell atendeu ao primeiro toque.

 

Ms. Cauldwell, há algum carro da empresa que o Eric Bailey possa estar a utilizar?

 

Ela hesitou.

 

Fizemos o leasing de alguns carros em nome dos directores. Vários abandonaram a empresa há pouco tempo.

 

Onde se encontram os carros que eles usavam?

 

Alguns continuam no parque de estacionamento. Não podemos quebrar os contratos de leasing, sabe? Creio que é possível Mister Bailey estar a usar um deles, embora não imagine por que motivo.

 

Sabe em que nome os carros estão registados? Isto é muito importante.

 

Mister Bailey está metido nalgum sarilho? Quero dizer, ele tem andado tão tenso ultimamente. Estou muito preocupada com ele.

 

Há alguma coisa no comportamento dele que a perturbe, Ms. Cauldwell? perguntou Marty calmamente. Por favor, não pense na confidencialidade num momento destes. Não estará a ajudar o Eric Bailey se não colaborar.

 

Houve outro momento de hesitação.

 

A empresa está a ir ao fundo e ele está a ser arrastado acabou ela por dizer numa voz emocionada. Outro dia entrei no gabinete dele e vi-o a chorar.

 

Ele pareceu-me muito bem quando o vi.

 

Mantém sempre a fachada.

 

Alguma vez o ouviu falar na Emily Graham?

 

Sim, ainda ontem, por acaso. Parecia irritado depois de o senhor se ter ido embora. Disse-me que culpa Ms. Graham pela ruína da empresa. Disse que quando ela vendeu as acções, outras pessoas ficaram nervosas e seguiram o exemplo.

 

Isso não é verdade. As acções subiram mais cinquenta pontos depois de ela as ter vendido.

 

Acho que ele se esqueceu disso.

 

Ms. Cauldwell, não posso esperar até segunda para obter a matrícula do carro que ele pode estar a conduzir. Tem de me ajudar.

 

Meia hora mais tarde, Marty Browski encontrou-se com Louise Cauldwell nos escritórios escuros da empresa de Bailey. Ela desligou o alarme e depois subiu as escadas até à contabilidade. Minutos depois tinha as matrículas dos carros em leasing e os nomes em que estavam registados. Dois dos carros encontravam-se no parque de estacionamento. Marty verificou o terceiro junto da via verde. Passara na Garden State Parkway às cinco da tarde e saíra na saída 98.

 

Ele está em Spring Lake disse Marty, pegando no telefone e ligando para a Polícia de lá.

 

Vamos manter a casa dela sob vigilância prometeu o oficial de dia. A vila está cheia de jornalistas e de curiosos, mas prometo-lhe que se o veículo cá estiver nós vamos encontrá-lo.

 

O prazer de Emily ao ouvir a voz de Marty Browski ao telefone transformou-se em choque quando ela percebeu por que motivo ele estava a ligar.

 

Isso é completamente impossível! exclamou.

 

Não é não, Emily retorquiu Marty com firmeza. Agora ouça: a Polícia daí vai vigiar a sua casa.

 

E como?

 

Vão passar por aí de quinze em quinze minutos. Se o Eric telefonar e quiser vê-la, despache-o. Diga-lhe que está com dor de cabeça e que se vai deitar mais cedo. Mas não lhe abra a porta. E quero que mantenha o alarme ligado. Os agentes de Spring Lake vão andar à procura do Bailey. Sabem que veículo ele levou. Agora, verifique as fechaduras!

 

Esteja descansado. Quando desligou, Emily foi de assoalhada em assoalhada, a verificar as portas que davam para o alpendre, e depois as portas da frente e das traseiras. Ligou o alarme e viu a luz passar de verde a vermelha.

 

”Eric”, pensou. ”Amigo, companheiro, irmão. Esteve aqui na segunda a instalar as câmaras, dizendo-se tão preocupado comigo, e afinal...”

 

Traição. Hipocrisia. ”A instalar câmaras de segurança e a rir-se de mim ao mesmo tempo.” Emily pensou em todas as noites no passado ano em que acordara, sobressaltada, certa de que ouvira alguém em casa. Pensou em todas as vezes em que tivera dificuldade em concentrar-se na preparação da defesa de um cliente, porque uma fotografia que Eric lhe tirara fora enfiada por baixo da porta ou presa no pára-brisas.

 

Espero que quando encontrarem aquele maluco o condenem à pena máxima disse em voz alta, sem saber que nesse preciso momento estava a olhar directamente para uma câmara e que Eric Bailey se encontrava estacionado na sua carrinha a seis quarteirões, vendo-a no ecrã.

 

Só que tu não vais estar por perto quando eles me condenarem à pena máxima respondeu Eric em voz alta.

 

O choque de saber que fora descoberto e de ter ouvido Marty Browski ligar a Emily Graham a dizer que ele era o perseguidor deixara Eric atordoado. ”Tenho tido tanto cuidado”, pensou, olhando para a caixa que continha o casaco, o vestido e a peruca de mulher que ele usara na Igreja de Santa Catarina no sábado, e pensando em todos os disfarces que usara para se aproximar de Emily no passado sem ser detectado.

 

E agora a Polícia andava à procura dele e sem dúvida iria prendê-lo em breve. Iria ser mandado para a prisão. A sua empresa estaria falida. As pessoas que tanto o haviam elogiado iriam atirar-se a ele como cães.

 

Depois tornou a concentrar-se no ecrã e inclinou-se para a frente, os seus olhos subitamente muito abertos, a excitação a invadi-lo.

 

Emily voltara para a sala de jantar e estava de joelhos junto a uma caixa de livros, claramente à procura de algum em particular.

 

No entanto, na outra metade do ecrã Eric viu que a maçaneta da porta que dava do alpendre para o escritório estava a girar. ”Eu sei que ela tem o alarme ligado”, pensou. ”Alguém deve tê-lo inutilizado!”

 

Um vulto com uma máscara de esqui e um fato de treino escuro entrou no escritório. Num movimento rápido e furtivo, o intruso esgueirou-se para trás da poltrona em que Emily sempre se sentava e ajoelhou-se. Enquanto Eric observava, o homem mascarado tirou um bocado de tecido do bolso, segurou-o com as duas mãos e esticou-o, como se para testá-lo.

 

Emily regressou ao escritório com um livro na mão, sentou-se na poltrona e começou a ler.

 

O intruso não se mexeu.

 

Ele está a saborear isto murmurou Eric. Não quer que acabe demasiado cedo. Eu compreendo. Compreendo.

 

Tommy Duggan e Pete Walsh ainda estavam no escritório às oito e meia de sábado à noite. Bob Frieze recusara-se terminantemente a responder às perguntas sobre o seu paradeiro na quinta-feira à tarde e agora, alegando dores no peito, dera entrada no Hospital Monmouth para ser observado.

 

Ele está a adiar até conseguir inventar uma história que se aguente em tribunal disse Tommy a Pete. Isto pode desenrolar-se de várias maneiras. Uma é o Frieze ser o assassino em série e ser responsável pelas mortes da Martha Lawrence, da Carla Harper, da doutora Madden, de Mistress Joyce e da mulher dele, Natalie. Outra é ele poder ter morto a mulher mas não as outras. E, claro, há uma terceira maneira: ele ser inocente de todas as mortes.

 

Preocupa-te o facto de o terceiro bocado da echarpe continuar desaparecido observou Pete.

 

Podes crer que sim. Porque é que tenho a sensação que o homicídio da Natalie Frieze foi um estratagema para nos levar a pensar que o assassino completou o ciclo?

 

A menos, é claro, que o homicídio da Natalie seja o resultado de uma discussão entre marido e mulher, disfarçado para passar um dos homicídios em série. Isso faria de Bob Frieze um suspeito, mas faria desaparecer o ângulo do assassino em série.

 

O que também quer dizer que outra jovem pode morrer esta noite em Spring Lake. Mas quem? Verifiquei ainda há pouco: nenhuma foi dada como desaparecida. Vamos acabar por hoje. Está a fazer-se tarde e aqui já não conseguimos fazer mais nada disse Tommy.

 

Bem, alguma coisa se fez. Enquanto estávamos na cena do crime, o Wilcox ligou a autorizar que lhe metamos um microfone. Temos uma gravação da Gina Fielding a tentar extorquir-lhe dinheiro.

 

E agora o seu segredo sujo será tornado público no The National Daily depois de amanhã. Continuo a dizer que ele tentou passar-nos à frente ao concordar em implicá-la. De certa forma, isso torna-o mais simpático. Mas continuo a não confiar nele. E continuo a considerá-lo suspeito.

 

Já estavam prestes a sair quando Pete disse:

 

Espera aí! apontando para um sobrescrito na secretária de Tommy. Não chegámos a deixar isto em casa da Emily Graham tal como prometemos.

 

Leva-a contigo e passa por lá amanhã de manhã. Quando Pete pegou no sobrescrito, o telefone tocou. Era a polícia de Spring Lake, a informar que o perseguidor de Emily Graham fora identificado e que devia estar algures na vila.

 

Ao ouvir as novidades, Tommy voltou atrás.

 

Pensando melhor, talvez seja boa ideia passarmos por casa dela esta noite.

 

Emily tinha o telemóvel no bolso, um hábito que criara desde que a fotografia que lhe havia sido tirada na igreja fora metida sob a sua porta no passado domingo. Estendeu a mão para lhe pegar, esperando que a avó não se tivesse ido deitar cedo e desligado já o telefone. Estivera a ler o último diário de Julia Gordon Lawrence que fora incluído no material que os Lawrence lhe haviam emprestado e tinha uma pergunta a fazer à avó, esperando que ela soubesse responder-lhe.

 

Lera anteriormente que a segunda mulher de Richard Carter dera à luz uma filha em 1900. Relativamente a isso, uma entrada de 1911 intrigara-a. Nela, Julia escrevera: ”Tive notícias da Lavinia. Diz que está muito contente por ter regressado a Denver. Passado um ano, a filhinha dela recuperou totalmente da perda do pai e está a crescer bem. A própria Lavinia confessa estar tremendamente aliviada. Aliás, ela foi muitíssimo franca quando decidiu escrever-me. Diz-me que o Douglas tinha dentro um poço profundo de frieza e que às vezes sentia muito medo dele. Diz que foi uma bênção a morte dele tê-la libertado daquele casamento e ter permitido à criança crescer num ambiente mais terno e caloroso.”

 

Emily pousou o diário e abriu o telemóvel. A avó atendeu logo com um olá rápido, o que indicava que estava a ver televisão e não ficara encantada por receber um telefonema.

 

Avó disse Emily, preciso de te ler uma coisa que não faz sentido.

 

Está bem, querida.

 

Emily explicou-lhe a entrada e leu-a em voz alta.

 

Porque é que ela se refere a ele como Douglas se o nome dele era Richard?

 

Oh, isso eu sei dizer-te. O nome dele era Douglas Richard, mas naquela altura era comum tratar um homem pelo nome do meio se ele tinha o mesmo nome que o pai. O noivo da Madeline chamava-se Douglas Richard III. Sei que o pai era um homem muito bonito.

 

Era um homem bonito com uma mulher inválida e o dinheiro era dela. Avó, deste-me uma grande ajuda. Sei que estavas a ver televisão, por isso vai-te lá sentar. Telefono-te amanhã.

 

Emily desligou o telefone.

 

O assassino não era o jovem Douglas disse ela em voz alta. Também não era o primo Alan Carter. Era o pai dele. E quando ele morreu, a mulher e a filha mudaram-se para Denver.

 

Denver! Subitamente ela percebeu a ligação.

 

O Will Stafford cresceu em Denver! A mãe dele viveu em Denver! exclamou.

 

Emily sentiu subitamente uma presença atrás de si e imobilizou-se aterrorizada quando ouviu uma voz murmurar-lhe ao ouvido.

 

Exactamente, Emily disse Will Stafford. Eu cresci em Denver.

 

Antes de conseguir mexer-se, Emily sentiu os braços presos junto ao tronco. Tentou pôr-se de pé, mas uma corda rodeou-lhe rapidamente o peito, prendendo-a à poltrona.

 

Movendo-se com uma enorme rapidez, Stafford pôs-se de joelhos à frente dela para lhe amarrar os pés e as pernas.

 

Ela obrigou-se a não gritar. Não serviria de nada, percebeu, e ele poderia decidir tapar-lhe a boca com adesivo. ”Fá-lo falar contigo”, sussurrou uma voz dentro de si, ”mantém-no a falar! A Polícia está a vigiar a casa. Talvez os agentes toquem à campainha”, pensou, ”e ao verem que ninguém vai abrir arrombem a porta.”

 

Ele levantou-se. Tirou a máscara de esqui da cara. Abriu o fecho do blusão. Despiu as calças largas.

 

Sob a camada exterior de roupa Will Stafford envergava uma camisa antiquada de colarinho subido e uma gravata estreita.

 

As lapelas largas do seu fato azul-escuro do virar do século acentuavam a camisa com demasiada goma. Tinha o cabelo penteado com risco ao lado puxado para trás. Este também estava um pouco mais escuro do que a sua cor natural, assim como as sobrancelhas.

 

Então Emily reparou sobressaltada que ele pintara um bigode fino sobre o lábio superior.

 

Permita-me que me apresente, Miss Graham disse ele com uma ligeira vénia formal. Chamo-me Douglas Richard Carter.

 

”Não entres em pânico”, pensou Emily. ”Acaba tudo se entrares em pânico. Quanto mais tempo ficares viva, maiores probabilidades haverá de a Polícia cá vir.”

 

Muito prazer em conhecê-lo respondeu ela, tentando ocultar o terror, conseguindo falar através dos lábios quase demasiado secos para formarem palavras.

 

Sabe, com certeza, que tem de morrer? A Ellen Swain tem estado à espera que se lhe junte na sepultura.

 

”A voz dele também está diferente”, pensou Emily. ”As palavras são mais precisas, mais bem articuladas. Parece que ele tem um ligeiro sotaque britânico. Argumenta com ele”, ordenou a si própria.

 

Mas a Natalie Frieze está com a Ellen conseguiu ela dizer. O ciclo está completo.

 

A Natalie não era para se juntar à Ellen. O seu tom era de impaciência. Foi sempre você. A Ellen está sepultada junto ao lago. O desenho que lhe mandei a mostrar a sepultura da Natalie junto à da Ellen foi só para despistar. Elas não estão juntas. Mas em breve você irá dormir com a Ellen. Ele baixou-se e acariciou as faces de Emily. Faz-me lembrar a Madeline sussurrou. Com a sua beleza, a sua juventude e a sua vitalidade. Percebe o que foi para mim olhar para o outro lado da rua e ver o meu filho consigo e saber que estava condenado a viver a minha vida com uma mulher doente cuja beleza já havia desaparecido, cuja única atracção era a sua saúde?

 

Mas com certeza o senhor amava o seu filho e queria que ele fosse feliz!

 

Com certeza que não iria permitir que alguém tão belo como a Madeline estivesse nos braços dele enquanto eu me sentava junto a uma inválida estúpida.

 

Da rua veio o brilho das luzes de um carro-patrulha.

 

A nossa Polícia em Spring Lake faz os possíveis para garantir a nossa segurança disse Will Stafford, metendo a mão no bolso e tirando de lá um bocado de tecido prateado com contas metálicas. Uma vez que acabaram de verificar esta casa, teremos no mínimo mais alguns minutos. Há mais alguma coisa que gostaria que eu lhe explicasse?

 

O carro-patrulha da Polícia de Spring Lake deslizava pela Avenida Ocean.

 

Ali está! exclamou o agente Reap, apontando para uma carrinha azul-escura estacionada num dos lugares de frente para o mar.

 

Estacionaram no espaço ao lado e bateram na janela da frente.

 

Há luz na parte de trás disse Phil. Bateu de novo, com mais força.

 

Polícia, abra! gritou.

 

Lá dentro, Eric olhava fascinado para o ecrã e não fazia tenções de ser interrompido. A chave da carrinha encontrava-se no seu bolso. Tirou-a de lá e carregou no botão que destrancava as portas.

 

Entrem disse. Estou aqui. Tenho estado à vossa espera. Mas, por favor, deixem-me acabar de assistir ao espectáculo.

 

Reap e o seu robusto colega abriram a porta e viram imediatamente o televisor. ”O que é que ele julga que está a fazer? O tipo deve ser maluco”, pensou Reap, ao olhar para o ecrã. Por momentos pensou que estava a assistir a um filme de terror.

 

Ele vai matá-la disse Eric. Estejam calados, ele está a falar. Ouçam o que tem para dizer.

 

Os dois agentes ficaram imóveis por momentos, hipnotizados pelo que estava a acontecer diante deles e chocados com a calma da voz que saía pelas colunas.

 

Na minha actual encarnação só tinha esperado repetir o padrão do passado dizia Will Stafford, mas as coisas acabaram por ser diferentes. Achei que a Bernice Joyce era uma ameaça que tinha de ser eliminada. As últimas palavras que me disse antes de morrer revelaram que se enganara. Achou que vira outra pessoa levar a echarpe. Que pena. Afinal de contas não precisava de ter morrido.

 

Porquê a Natalie? perguntou Emily, tentando ganhar tempo.

 

Lamento o que aconteceu à Natalie. Na noite da festa dos Lawrence ela fora ao alpendre fumar o último cigarro antes de deixar o tabaco de uma vez por todas. De lá pode ter-me visto levar a echarpe para o carro. Quando começou de novo a fumar durante o nosso almoço de quarta-feira tive a sensação de que ela começava a lembrar-se. Tornara-se um perigo. Não podia permitir que vivesse. Mas não se preocupe. A morte dela foi misericordiosamente suave. Foi sempre assim. Será também consigo, Emily, prometo.

 

Perplexo, o agente Reap apercebeu-se de repente que ia assistir a um homicídio.

 

... quando eu tinha catorze anos, vim pela primeira vez com a minha mãe a Spring Lake. Para ela foi uma viagem sentimental. Nunca deixou de amar o meu pai. Passámos pela casa onde a mãe dela, a minha avó, nascera.

 

Deus do céu, aquele é o Will Stafford e a Emily Graham! exclamou Reap. Estive em casa dela no domingo depois de lhe terem enfiado debaixo da porta aquela fotografia tirada no serviço fúnebre. Fica aqui com ele! gritou ao outro agente enquanto saía da carrinha e desatava a correr.

 

... a mulher que vivia na casa do meu bisavô convidou-nos a entrar. Aborreci-me e comecei a vasculhar o primeiro andar da cocheira. Encontrei este velho diário. Estava destinado a encontrá-lo, percebe, porque sou o Douglas Richard Carter. Regressei a Spring Lake.

 

”Por favor, meu Deus, não permitas que eu chegue tarde de mais!”, rezou Phil Reap enquanto voltava a entrar no carro-patrulha. Ao acelerar até ao número 100 da Avenida Hayes, contactou a esquadra via rádio a pedir reforços.

 

Nick Todd decidiu que, para ter paz de espírito, passaria de carro por casa de Emily para se certificar de que estava tudo em ordem. Ia a chegar lá quando um carro-patrulha apareceu disparado vindo do outro lado da rua e se deteve junto à casa.

 

Atemorizado, Nick parou atrás do carro e saiu rapidamente.

 

Aconteceu alguma coisa à Emily? perguntou ele. ”Por favor, meu Deus, não permitas que nada lhe aconteça”, rezou mentalmente.

 

Esperemos que não respondeu o agente Reap. Não se meta no meu caminho.

 

”A Polícia vai voltar a passar por aqui”, prometeu Emily a si própria. ”Mas, se não o viram entrar, de que serve?”, raciocinou. ”Conseguiu safar-se com os homicídios da Martha, da Carla, da Natalie e de Mistress Joyce, e provavelmente de outras. Eu sou a seguir. Oh, Deus do Céu, eu quero viver!”

 

Fale-me dos diários pediu ela. Manteve um registo de tudo, não foi? Deve ter anotado todos os pormenores do que aconteceu, das suas emoções na altura. Das reacções das famílias das raparigas?

 

Exactamente. Ele pareceu ficar satisfeito por ela ter compreendido. Emily, para mulher você é bastante inteligente, mas a sua inteligência é limitada pelo inimigo natural de uma mulher: a sua generosidade de espírito. Com a compaixão estampada no olhar, ouviu a minha história de aceitar a culpa por um amigo que fora a conduzir bêbado num acidente. Eu contei-lhe que por causa da minha recepcionista ter admitido que revelara grande parte dessa história àquela jornalista, tinha medo que alguma coisa aparecesse nos jornais e sugeri-lhe que tivesse cuidado.

 

Independentemente do que você fez, o seu cadastro juvenil teria permanecido selado.

 

O que eu fiz foi seguir o exemplo do meu bisavô. Dominei uma mulher jovem, mas antes de conseguir terminar a minha missão, os gritos dela foram ouvidos. Passei três anos numa casa de correcção, não um como lhe disse. Chegou a altura, Emily, de se juntar à querida Madeline, chegou a altura de repousar junto da Ellen.

 

Emily olhou para o tecido rasgado nas mãos dele. ”O tipo está a divertir-se”, pensou. ”Fá-lo responder às tuas perguntas. Ele quer vangloriar-se.”

 

Quando eu estiver com a Ellen acabará tudo? perguntou.

 

Ele encontrava-se agora atrás dela, a envolver-lhe suavemente o pescoço com o que restava da echarpe.

 

Quem me dera que isso pudesse ser verdade, mas infelizmente ainda há mais uma. A secretária da doutora Madden viu-me na noite em que lá fui. Não deve tardar a lembrar-se disso. Tal como a Bernice Joyce e a Natalie Frieze, é um risco que não posso correr. Inclinou-se para a frente e tocou na cara dela com os lábios. Beijei a Madeline enquanto apertei a faixa dela murmurou.

 

Tommy Duggan e Pete Walsh chegaram a casa de Emily mesmo a tempo de verem o agente Reap subir a correr as escadas do alpendre seguido de outro homem.

 

Reap informou-os rapidamente do que vira no monitor na carrinha de Bailey.

 

Esqueça a porta da frente! Tente uma das do alpendre à direita! gritou Duggan. Ele e Walsh, seguidos por Nick, correram para a esquerda. Ao chegar à porta que dava para o escritório, os três homens espreitaram pela janela e viram a echarpe ser apertada em torno do pescoço de Emily.

 

Tommy sabia que dali a alguns segundos seria demasiado tarde. Sacou da pistola, fez pontaria e disparou através do vidro.

 

O impacte da bala fez Will Stafford cair para trás e depois tombar no chão, os restos da echarpe que roubara a vida a Martha Lawrence e a Carla Harper ainda presos na sua mão.

 

         Domingo, 1 de Abril

No domingo de manhã Tommy Duggan e Pete Walsh juntaram-se a Emily e a Nick numa mesa de canto sossegada na sala de pequenos-almoços do The Breakers.

 

Você tinha razão, Emily disse Tommy. Havia um registo escrito completo de tudo o que o bisavô dele fez. Para além disso, o Stafford escreveu o seu próprio diário e anotou os pormenores da mesma forma clínica que o bisavô. Obtivemos um mandado de busca para a casa do Stafford e encontrámos o diário do Douglas Cárter original, bem como o do Stafford continuou Tommy Duggan. Passei a noite acordado a lê-lo. Foi exactamente como você tinha imaginado. A mulher do Douglas Cárter estava quase inconsciente com a quantidade de láudano que tomava. E provavelmente ele dava-lhe ainda mais. Escreve no diário que chamara a Madeline para sua casa, dizendo que a mulher tivera uma crise. Quando pôs os braços à volta dela e tentou beijá-la, ela começou a lutar e ele soube que estaria perdido se ela falasse.

 

Custa-me a crer que foi o bisavô do Will Stafford que fez isto observou Emily. Era como ser tocado por dedos saídos de um túmulo. ”Ainda me sinto tão assustada”, pensou. ”Voltarei a sentir-me em segurança?”

O Douglas Cárter tinha quase cinquenta anos quando a segunda mulher, Lavinia, deu à luz uma rapariga em mil e novecentos disse Duggan. Deram-lhe o nome de Margaret. Depois da morte do Douglas, em mil novecentos e dez, a Lavinia e a Margaret mudaram-se para Denver. A Margaret casou em mil novecentos e trinta e cinco. A filha dela, Margo, era a mãe do Will Stafford.

 

Ele disse-me que descobriu esse diário por acaso quando veio com a mãe visitar Spring Lake e entrou na casa onde os bisavôs haviam vivido disse Emily.

 

Sim, e vasculhou o sótão da cocheira e encontrou o diário do bisavô confirmou Duggan.

 

Parece-me interveio Nick que as sementes da corrupção já existiam dentro dele na altura. Uma criança normal teria ficado horrorizada e teria mostrado o diário a um adulto.

 

Ao ouvir a conversa, Emily sentiu que ainda estava numa espécie de mundo dos sonhos. Will chegara obviamente cedo na noite em que a levara a jantar para poder retirar o sensor do alarme da porta que dava para o escritório. ”Ele deve ter tirado a chave daquela porta do jogo de chaves que os Kiernan lhe deram para entrar em casa antes da venda.”

 

Na noite anterior, depois de o corpo de Stafford ter sido levado e de a equipa forense ter terminado a fastidiosa tarefa de procurar provas, Nick dissera-lhe que arranjasse um saco com uma muda de roupa e levara-a para o Hotel The Breakers.

 

Mais uma vez a minha casa foi a cena de um crime dissera ela.

 

Não vai voltar a ser depois disso tranquilizara-a ele. Já acabou tudo.

 

Porém, mesmo na segurança do The Breakers Emily acordou às três da manhã, sobressaltada, assustada, certa de ter ouvido passos no corredor. Depois, o facto de saber que Nick estava no quarto ao lado foi o suficiente para a fazer parar de tremer e para lhe permitir adormecer.

 

O Douglas Richard Carter matou o filho? perguntou Emily.

 

O diário não é muito claro nesse ponto respondeu Duggan. Ele diz que o Douglas tinha uma arma e que lutou com ele. Depois de a arma se ter disparado, ele conseguiu fazer com que parecesse suicídio. Não me admirava que o Douglas tivesse percebido o que o pai fez e o tivesse confrontado. Talvez nem mesmo ele tivesse conseguido suportar o facto de ter assassinado o único filho. Quem sabe?

 

E quanto à Letitia e à Ellen? Emily sabia que havia de conhecer também os destinos delas para poder pôr tudo aquilo atrás das costas.

 

A Letitia ia a caminho da praia respondeu Pete Walsh. Apanhara no jardim dela um bouquet de flores para Mistress Carter e o Cárter estava por acaso em casa. Quando os seus avanços foram de novo repelidos, ele tornou a matar.

 

Tommy Duggan abanou a cabeça.

 

A leitura do diário não é muito agradável. A Ellen Swain fora visitar Mistress Carter e pôs-se a fazer perguntas, tendo aparentemente começado a desconfiar que o Carter era o causador do desaparecimento das amigas. Não chegou a sair daquela casa nesse dia, embora, dado o estado de confusão da mulher, tivesse sido fácil para o Cárter convencer a pobre de que vira Ellen ir-se embora. Duggan franziu o sobrolho.

 

Ele é bastante específico a respeito do local onde a sepultou. Vamos tentar encontrar os restos mortais dela e pô-los no jazigo da família. Ela morre a tentar descobrir o que acontecera à amiga Letitia. Por isso, de certa forma ainda bem que os dois jazigos estão lado a lado no cemitério.

 

Eu era para ser enterrada com a Ellen disse Emily.

 

Era o que ele havia planeado para mim.

 

Colocou o braço de Nick Todd sobre os seus ombros. Naquela manhã ele batera à porta do quarto dela e levara-lhe um café.

 

Sou madrugador explicara. Isto é uma das coisas de que vais sentir falta na firma, porque se eu conseguir o trabalho que espero, vou estar na baixa. Convidei o meu pai para almoçar na cafetaria do Ministério Público. Também podes ir. Melhor ainda, podes ir sem ele.

 

”E irei”, pensou ela. ”Podes crer que irei.” Pete Walsh tinha acabado uma dose dupla de ovos mexidos com salsichas e bacon.

 

O seu escritório está a ser limpo neste momento, Emily. Acho que a partir de agora terá paz em casa.

 

O pequeno-almoço de Tommy Duggan fora sumo de laranja, café simples e uma banana.

 

Tenho de ir andando disse. A Suzie, a minha mulher, tem grandes planos para mim. Ameaçou que no primeiro fim-de-semana quente vou ter de limpar a garagem. E chegou o dia.

 

Antes de ir interveio Emily, diga-nos o que aconteceu ao doutor Wilcox e ao Bob Frieze.

 

Acho que o doutor Wilcox se sente muito aliviado. Já toda a gente sabe que ele se envolveu com uma aluna há uns anos. A fotografia aparece hoje em todos os jornais. Embora não tenha sido correcto envolver-se com uma aluna quando era presidente da universidade, quem olhar para a fotografia dela hoje não vai achar que ele se aproveitou de uma donzela inocente.

 

E a reacção da mulher dele?

 

Acho que a humilhação pública vai acabar com o casamento. Ela sabia por que motivo ele se demitiu da presidência do colégio de forma tão abrupta. Era impossível ele lhe ter escondido isso, e calculo que ela lho tenha atirado à cara várias vezes. Por acaso, acho que ele está aliviado. Disse-me que acha que o romance que está a escrever é bastante bom. Quem sabe? Pode vir a ter uma carreira completamente nova. Tommy empurrou a cadeira para trás. Quanto ao Frieze, pode agradecer à Natalie o facto de estar safo. Ela deu-lhe um papel que encontrara no bolso de um casaco dele, com um número de telefone e o nome Peggy escrito, pedindo-lhe que lhe ligasse. Os nossos colegas investigaram-na. O Frieze tinha o hábito de aparecer num bar em Morristown. Diz que não se lembra de nada, mas é evidente que não perdeu tempo durante as brancas. A Peggy é jeitosinha. Com o testemunho da Peggy e os diários do Will Stafford, o Frieze está safo. Tommy levantou-se. Uma última informação. O Stafford abordou a Martha depois de ela ter saído da marginal. Aproximou o carro do sítio onde ela estava e disse-lhe que sentia dores no peito. Pediu-lhe que o levasse a casa no carro. Ela conhecia-o e foi na conversa, claro. O Stafford obrigou a Carla a ir com ele no carro quando ela se lhe dirigia depois de sair do Hotel Warren. Mais tarde voltou para trás e foi buscar o carro dela. Um tipo simpático, hein? Virou-se para partir. Saboreiem o resto do vosso pequeno-almoço. Nós vamos embora.

 

Depois de os detectives terem saído, Emily ficou em silêncio durante um longo momento.

 

Nick, o Tommy Duggan foi a minha casa ontem à noite para me entregar uma fotografia ampliada. Estive a olhar para ela esta manhã.

 

E o que é que descobriste?

 

O laboratório da Polícia fez um excelente trabalho de ampliação e de retocagem. Os rostos estão agora muito nítidos e consigo relacioná-los com os nomes escritos na parte de trás. Madeline, Letitia, Ellen, Phyllis e Julia. E os homens. George e Edgar, o jovem Douglas, Henry, e até o Douglas Cárter Sénior, ou Will Stafford tal como o conhecíamos no presente.

 

Emily protestou Nick, não me estás a dizer que acreditas mesmo que ele reencarnou!

 

Olhou directamente para ele, os seus olhos implorando compreensão.

 

Nick, o Will Stafford era igualzinho ao bisavô tal como ele está naquela fotografia, mas...

 

O que foi, Emily?

 

Encontrei a fotografia no meio das coisas dos Lawrence. É quase impossível o Will tê-la visto.

 

A mão dele, firme e quente, pousou sobre a dela.

 

Nick sussurrou Emily, naquela fotografia o Douglas Cárter tinha na mão o que parecia ser uma echarpe de mulher com contas metálicas.

 

                                                                                Mary Higgins Clark  

 

                      

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