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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A RUIVA IRRIQUIETA / Erle Stanley Gardner
A RUIVA IRRIQUIETA / Erle Stanley Gardner

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A RUIVA IRRIQUIETA

 

A fim de evitar o engrossamento de trânsito, Perry Manson antecipou o seu percurso à hora de ponta e arrumou o carro no parque de estacionamento do Tribunal de Riverside, meia hora antes do encontro que marcara com o juiz Dillard que o aguardava ao meio-dia.

O juiz pensara que o julgamento que tinha entre mãos seria capaz de prolongar-se pela tarde adiante. Por isso, tinha combinado com o famoso advogado criminalogista uma breve troca de impressões, nesse período destinado ao almoço.

Quando Perry Mason entrou na sala de audiências, o julgamento decorria monotonamente. Um jovem advogado, obviamente consciencioso, estava de pé, em frente da mesa da Defesa, aparentando não saber que perguntar em seguida.

A testemunha, sentada muito à vontade, olhava para a assistência.

- Ora diga-me, Mr. Boles, era já escuro, não é verdade? - perguntava o advogado.

- O quê que era escuro? - desconversou a testemunha.

- O dia..., quero dizer, a noite. Era uma noite escura?

- A noite estava escura, mas a rua estava iluminada.

- Iluminada, como ?

- Havia um candeeiro à esquina.

- Dava luz suficiente?

- A necessária.

- Portanto, o senhor podia ver claramente ?

- Podia ver tudo.

- Tudo o quê? - precisou o advogado.

- Vi a acusada, Evelyn Bagby, tirando uma mala do porta-bagagens de um automóvel. Pôs a mala no chão, inclinou-se sobre ela, abriu-a e tirou de lá de dentro...

- Sim, sim - interrompeu o advogado. - Já nos disse isso, antes.

- Bem, o senhor perguntou-me o que vi. Pensei que quisesse que lho repetisse.

- Quero que me diga apenas o que viu exactamente.

- Vi-a fazer exactamente o que lhe disse.

- Mas a ré não estava de costas viradas para si ?

- Estava.

- Nesse caso, como conseguiu vê-la abrir a mala ?

- Vi-a inclinar-se sobre a mala, vi-a mexer no fecho da mala e vi esta abrir-se. Que mais quer que lhe descreva ?

- Conseguiu ver que foi que ela tirou da mala ?

- Não, isso não pude ver.

O advogado olhou para uns apontamentos que tinha sobre a mesa, depois fitou a testemunha, relanceou a vista pela sala de audiências e hesitou, antes de fazer nova pergunta que colocasse a acusada numa situação ainda pior do que aquela em que já se achava.

- Nessa altura, ainda não sabia a quem pertencia o automóvel ? - inquiriu.

- Não. Ainda não sabia.

- Quando foi que soube a quem pertencia o carro?

- Quando a polícia mo disse - respondeu a testemunha.

- Foi você que o perguntou à polícia, ou foi...

- Ouvi a notícia na rádio e dirigi-me à polícia - adiantou-se Boles. - A rádio dizia que...

- Não interessa o que a rádio dizia - cortou o advogado. - Limite-se a responder ao que lhe pergunto.

O jovem casuístico sentou-se e virou-se para a sua cliente. Era uma moça, com cerca de vinte anos, de cabelos ruivos, bonita, de figura atraente, embora vestida com um fato de tecido barato que lhe assentava mal, aqui e além. Via-se que devia ter sido comprado feito, desses de saia-casaco de “pronto-a-vestir, tão infeliz como a expressão do rosto da sua dona.

O advogado e a jovem trocaram algumas palavras apenas murmuradas. Depois, o rapaz tornou a consultar as suas notas.

Pondo-se novamente de pé, inquiriu:

- Como sabe que era realmente a ré ?

- Vi-a.

- Que viu dela ?

- Vi-lhe o rosto e como estava vestida.

- Olhou bem para o seu rosto ?

- O suficiente para reconhecê-la.

- A que distância se encontrava dela?

- Quanto bastava.

- Que quer dizer com "bastava" ? - sondou o advogado.

- “Bastava" para reconhecê-la.

- A que distância estava da ré, em metros ?

- Já lhe disse isso uma data de vezes. Estava a cerca de quinze ou vinte metros. Não estive a medi-los.

- Nunca se achou mais perto do que essa distância ?

- Não, enquanto abriu a mala. Mas, depois, virou-se e caminhou na minha direcção.

- Que traje usava ela, nesse momento ?

- Um casaco comprido, espécie de sobretudo feminino.

- Pode descrevê-lo ?

- Um casacão do género desse que foi apresentado como prova, no Tribunal. Pelo que sei, é esse que está pendurado, ali em frente.

A testemunha apontou para um sobretudo de mulher que se achava suspenso de um cabide de pé alto, junto da mesa da Acusação.

- Que estava a fazer a ré, quando a viu pela primeira vez?

- A abrir o porta-bagagens do carro.

- Tinha uma chave ? - indagou o advogado.

- Não sei.

- Viu-a lutar com a fechadura ?

- Só notei que abria a tampa do porta-bagagens e tirava a mala para fora.

- Estava inclinada sobre a mala e de costas para si?

- Foi o que já tive ocasião de repetir mais do que uma vez - respondeu Boles, mostrando-se enfastiado.

- Que mais viu ?

- Vi-lhe as pernas.

O riso generalizou-se entre a assistência. Contrariado, o advogado atreveu-se a inquirir:

- Eram bem feitas ?

- Perfeitas. Posso até afirmar que as achei mesmo muito boas - retorquiu a testemunha.

- E depois ?

- Vi-a tirar qualquer coisa da mala, fechar esta e tornar a enfiá-la no porta-bagagens.

Neste ponto, o advogado sorriu-se, mordeu o lábio superior e evidenciou não saber que mais inquirir a Mr. Boles. Consultou, hesitante, o relógio.

O juiz Dillard decidiu vir em auxílio do advogado e declarou:

- Creio que este caso poderá ser, ainda hoje, discutido pelo júri. Acabo de notar a presença nesta sala de um advogado que veio de outra cidade, para entregar-me uns papéis que devo assinar sem demora. É Mr. Perry Mason que deve partir com urgência, logo que tenha discutido certo assunto comigo. É agora meio-dia menos um quarto. Embora faltem ainda quinze minutos para encerrar os debates deste período da manhã, se a Acusação se não opuser e a Defesa também concordar, proponho que se estabeleça, desde já, o intervalo habitual. A audiência prosseguirá às duas horas desta mesma tarde. Alguma objecção.

O Procurador do Distrito, representando a Acusação, meneou a cabeça concordantemente e o jovem advogado da Defesa não escondeu natural alívio.

- Se o Tribunal me permite - disse ele -, gostaria ainda de fazer mais algumas perguntas a esta testemunha, mas desejaria conferenciar, alguns minutos, com a ré, durante o sequente intervalo. Lembro o Tribunal que fui nomeado oficialmente para representar a defesa e confesso não ter tido oportunidade para...

- Muito bem - abreviou o juiz Dillard. - A audiência fica suspensa até às duas horas da tarde. O Tribunal lembra os senhores jurados que não podem discutir entre si, nem com qualquer outra pessoa, o assunto referente ao presente caso, nem exprimir qualquer opinião, antes que esta lhe seja pedida pelo próprio Tribunal quando for altura devida.

O juiz ergueu-se e dirigiu-se para o seu gabinete, nas traseiras da sala de audiências.

A escassa dúzia de espectadores saiu desconsoladamente.

O Procurador do Distrito agarrou num molho de papéis e meteu-os numa pasta e o jovem advogado conversou durante alguns segundos com a sua cliente, antes de o guarda que a escoltava a ter reconduzido ao compartimento dos réus, tão protegido e gradeado, como se fora uma cela prisional.

Uma moça morena de olhos negros e brilhantes, alta e esbelta, que ocupara uma das cadeiras da frente, na sala de audiências, e se destacara do resto da assistência pelo interesse com que acompanhara os debates, pôs uma mão no braço do advogado e exclamou, pestanejando nervosamente:

- Oh, Frank! foste maravilhoso!

Apesar do tom de voz vibrante com que o disse, o jovem Frank não pareceu compartilhar da mesma opinião.

Mason, ao passar pelo parzinho, para dirigir-se ao gabinete do juiz, notou que o rapaz corara, comprometido.

Ao abrir a porta do gabinete do juiz, Perry Mason foi encontrá-lo a acender um cigarro.

- Olá Mason - saudou o magistrado. - Desculpe tê-lo feito esperar.

- Não esperei por sua causa, mas porque decidi vir mais cedo. Que caso é este que está em julgamento?

O juiz abanou a cabeça e declarou:

- Um aborrecimento!

- Porquê ?

- É desses processos que se encerram, mal são iniciados. É muito possível que a ré esteja realmente culpada, mas incomoda-me verificar que não lhe são facultadas todas as possibilidades de defesa.

- Advogado escalado oficialmente ?

- Exactamente. Não teve sequer tempo para assenhoriar-se, a fundo, da matéria a debater. Fui eu que indiquei Frank Neely. É um esplêndido rapaz e o pai é um importante homem de negócios, nesta cidade. Conheço-o desde os meus tempos de rapaz. Quanto a Frank, foi um bom aluno de Direito, mas há casos em que não basta o conhecimento das leis. Exigem experiência de foro, técnica de contra-interrogatório, por exemplo.

- Tem dúvidas acerca da identificação feita pela testemunha ? - interessou-se Mason.

O juiz Dillard ponderou a pergunta, antes de responder:

- Tive sempre dúvidas quanto a identificações. No presente caso, há qualquer coisa de irritante na segurança e ar paternal com que a testemunha faz as suas declarações. Esse Boles parece-me demasiado bem “ensaiado.

Após uma ligeira pausa, acrescentou:

- Como sabe, temos de ir metendo os novos advogados a estes casos de Defesa mais simples, isto é, de menor dúvida quanto à culpabilidade dos réus, para que possam ir adquirindo experiência. Não podemos, por outro lado, escalar advogados de maior prática, pois têm mais casos a tratar e não querem ser prejudicados na sua vida profissional. Este é um desses casos perdidos, mas um jovem advogado sempre vai ganhando alguma experiência... Bem, vamos lá assinar esses papéis, Mason.

- Aqui estão - disse Perry Mason, abrindo uma pasta. O juiz sentou-se à secretária, leu os vários documentos que Mason lhe apresentou e assinou-os, o advogado mostrava-se pensativo.

- Quer almoçar comigo? - convidou.

- Lamento - respondeu o juiz -, mas já tenho um almoço combinado com uma pessoa minha amiga que não vejo há muito tempo e está de passagem por aqui. Fica para outra vez, valeu? Como vão as coisas pela sua grande cidade?

- Rotineiras.

- Tenho acompanhado a sua fulgurante carreira, Mason. Você especializou-se em tirar coelhos de dentro do chapéu, no último minuto. Como consegue isso?

Mason sorriu e replicou:

- Creio que é uma questão de procurar bem, dentro do chapéu. Às vezes são os próprios coelhos que me saltam para as mãos.

O juiz soltou uma pequena gargalhada e comentou:

- Alguns advogados pensam que você até os traz dentro das mangas.

- Limito-me a acreditar na possibilidade de ganhar uma causa, quando acredito num cliente. Ajuda imenso.

O juiz olhou para o relógio, levantou-se e apertou-lhe a mão.

- Gostaria muito de almoçar consigo, se estivesse livre. Outra vez será. Tenho lido os seus casos nos jornais e fiquei com uma grande admiração por si, Mason. Avise-me com antecedência, quando tornar a passar por cá. Combinado?

Perry Mason agradeceu e saiu. Ao atravessar a sala de audiências, viu o jovem advogado sentado e embrenhado a consultar algumas notas.

O rapaz ergueu os olhos, viu Mason, relanceou a vista em redor e, como que tomado por súbito impulso, levantou-se e foi ao seu encontro.

- Mr. Mason!

Perry Mason parou e cumprimentou com ligeira vénia:

- Sim?

- Chamo-me Neely - apresentou-se o outro. - Frank Neely. Quis apenas cumprimentá-lo. Não fazia a mais pequena ideia que estivesse na sala, antes de o juiz Dil-lard ter mencionado o seu nome. Só então o reconheci imediatamente pelas fotografias dos jornais. Quero dizer-lhe quanto o admiro..., quantas vezes tenho pensado em... Bem, quero somente apertar-lhe a mão, sem tomar-lhe mais tempo.

- Obrigado .- disse Mason. - Como está a correr este caso?

- Não muito bem - confessou Neely.

- Qual a dificuldade ?

- Bem gostava de saber o que me encrava, mas a verdade é que me sinto num beco sem saída.

- Talvez não tenha mesmo saída alguma - admitiu Mason, rindo.

Por momentos, Neely pareceu indeciso. Depois inquiriu:

- Gostava de saber, Mr. Mason, como consegue interrogar um homem que fez uma identificação positiva, embora saibamos que essa identificação é resultante de um erro, ou deliberadamente falsa?

Mason riu-se e declarou:

- Isso é o mesmo que perguntar a um montannista, como consegue subir a montanha. Tudo depende da montanha. Geralmente começa-se a subir e vai-se até ao cume. De outras vezes, porém, temos de contornar cristas e picos, descer veredas, para tornar a galgar os penhascos mais abruptos. Não há fórmula constante para resolver o problema. Pensa, realmente, que a testemunha está a mentir deliberadamente ?

- Não creio que a ré esteja culpada - respondeu Neely.

- Bem, esse é o melhor ponto de partida - observou Mason.

- Oh..., sei que não tenho o direito de estar a tomar o seu tempo, Mr. Mason, mas... sinto-me tão fútil, tão desnorteado, que não sei que fazer, em seguida!

- De que se trata? - interessou-se Mason.

- Essa moça, Bvelyn Bagby, ia a caminho de Los Angeles, à procura de trabalho. Ultimamente, trabalhava como criada de mesa. Passou por cá conduzindo o seu velho carro e este avariou-se. É de modelo tão antigo que só em Los Angeles poderá arranjar um semieixo igual ao que se partiu. Entretanto, Evelyn hospedou-se num motel de Corona. Foi aí que o drama se desenrolou. Essa Irene Keith cujas jóias foram roubadas é uma jovem ricaça que ia para Las Vegas servir de madrinha, num casamento. Tinha um encontro marcado com todos os convidados e os noivos, num restaurante de Corona onde, após o cocktail de reunião, todos partiriam em cortejo nupcial, para Las Vegas. Provavelmente já leu a notícia acerca do que aconteceu, não?

Mason abanou a cabeça. Neely prosseguiu:

- A noiva era Helene Chaney, a famosa actriz. Irene Keith transportava várias caixas, contendo jóias, dentro de uma mala de viagem. Algumas dessas jóias eram suas, outras eram de Irene Keith e outras ainda, presentes de casamento. A noiva ia com ela no mesmo carro. Arrumaram-no em frente ao restaurante e entraram, para esperar pelos demais convidados.

- Segundo ouvi há pouco, foi desse carro que roubaram as jóias?

- Exactamente, Mr. Mason. Quando Irene Keith saiu do restaurante, verificou que alguém tinha aberto o porta-bagagens. Examinou então a mala de viagem e compreendeu que tinham furtado todas as jóias. Cerca de quarenta mil dólares! Queixou-se à polícia. Esta desconfiou de alguém que estivesse hospedado no motel, junto ao restaurante e interrogou várias pessoas, até que apareceu esse Boles que ouvira a notícia do roubo, pela rádio. Fez uma tal descrição de Evelyn Bagby, que os detectives não tiveram a menor dificuldade em localizá-la no próprio motel. Revistaram-lhe o quarto e encontraram, numa das gavetas, entre a roupa, um bracelete de diamantes que pertencia ao conjunto das jóias furtadas.

- E o resto delas ? - inquiriu Mason.

- Não foi encontrado. A polícia pensa que Evelyn teve oportunidade de esconder as restantes, noutro local.

- Muito estranho, hem ? O caso está muito feio para a sua cliente?

- Assim parece. Contudo..., estou convencido de que está inocente.

- Porquê ?

- Não sei..., é uma questão de palpite. Por outro lado, gostava de poder ganhar esta causa - confessou Neely. m

- É natural.

- A moça não tem dinheiro e o Tribunal indigitou-me para representar a Defesa. Ora, a verdade é que tenho trabalhado imenso em questões legais, mas não tenho a menor experiência de foro. Quero andar para diante neste caso e não sei por onde pegar-lhe. Se eu conseguisse apanhar Boles numa mentira evidente, tudo mudaria.

- Esse Boles tem passado criminal ?

- Aparentemente, está limpo.

- Escute, Neely - disse Mason. - Vim até cá para assinar uns papéis. Já estive com o juiz Dillard e agora estou livre. Quer vir daí almoçar comigo e trocar umas impressões sobre esse assunto ?

- Decerto que gostaria, Mr. Mason, mas... Acontece que já tinha convidado uma pessoa e... Não tem importância. Adio o meu convite e...

- Tencionava almoçar com essa jovem que está na sala de espera?

Neely corou e confirmou com um aceno de cabeça.

- Traga-a consigo - propôs Mason.

- Posso ? - disse Neely, entusiasmado. - Ela vai ficar encantada. Espero torná-la Mrs. Neely, muito em breve. É filha de um amigo de meu pai e...

- Pois bem - cortou Mason -, não percamos mais tempo. - Vá buscá-la e vamos almoçar, mas acho conveniente não falarmos do caso, enquanto almoçamos. Trataremos disso depois, concorda?

- Pensei que...

- Este caso vai ser o seu caso. Se nos despacharmos, teremos ainda meia hora, durante a qual tentarei contra-interrogá-lo, a si, como se fosse Boles. Valeu?

Depois de um momento de êxtase, Neely declarou:

- Oh, Mr. Mason! Pressinto que vai ser a minha bóia de salvação! Se soubesse como me sinto!

- Sei perfeitamente, caro colega. Já passei por isso.

 

A uma e trinta e cinco, Mason fechou a porta da biblioteca do tribunal, sentou Frank Neely numa cadeira e postou-se de pé, em sua frente.

- Agora, você vai fazer de Harry Boles e eu vou desempenhar o seu papel na Defesa. Vou contra-interrogá-lo. Faça o possível por responder-me como Boles lhe respondeu, no mesmo ritmo e em termos semelhantes.

Neely anuiu, com uma expressão de inteira confiança em Perry Mason.

- Quando voltar à sala de audiências - prosseguiu Mason -, deverá lembrar-se de certas coisas. Uma delas é que terá de manter sempre desperto o interesse dos jurados. Não o conseguirá, se perder tempo a consultar papéis. Quando tem uma testemunha em sua frente, no decurso de um contra-interrogatório e começa a interrompê-lo para estudar quaisquer notas, o interesse do júri dispersa-se. Dá a impressão de que não sabe que há-de inquirir à testemunha; ora, é essencial que esta seja constantemente sob o fogo das suas perguntas e estas terão de ser rápidas, umas atrás das outras.

- Receio não ser capaz de interrogá-lo tão rapidamente como isso - disse Neely lugubremente. - Pois se, por vezes, não sei que mais possa perguntar-lhe. Ando à roda do mesmo assunto. Repito-me e torno a repetir-me.

- Está bem que o faça, tentando desmascará-la, mas não a interrogue, seguindo sempre a mesma ordem por que ela própria apresentou as suas declarações. Se as ensaiou, torna-se necessário alterar essa ordem, de maneira a poder confundi-la e a fazê-la descair-se. Compreende ?

- Receio não compreender muito bem...

- Nesse caso, vamos fazer uma experiência - propôs Mason. - Você agora é Boles. Vai responder-me como ele o fez, procurando prejudicar o mais possível a ré. Combinado?

- Não vai ser fácil - observou Neely -, mas farei o possível.

- Muito bem. Vamos começar. Está pronto?

O jovem acenou com a cabeça afirmativamente. Apontando-lhe um dedo, Perry Mason começou:

- Você testemunhou ter visto a acusada retirar a mala do porta-bagagens, da traseira do automóvel; viu-a colocá-la no chão e abri-la, não foi assim?

- Exactamente. Vi nitidamente a acusada proceder desse modo.

- Nesse caso, descreva a maneira como a viu agir. Ela estava de costas para si e inclinou-se sobre o porta-bagagens, não é verdade?

- Exactamente.

- Nessa altura, não suspeitou do que ela ia fazer, pois não?

- Que quer dizer com isso ?

- Não sabia se o automóvel era dela, ou sabia? Tinha algum motivo para pensar que se tratava de um furto?

- Oh, não! Nessa altura, ainda não sabia...

- Certamente que não podia saber. Portanto, olhou para a ré, nessa posição, e foi o facto de vê-la mostrar as pernas que chamou a sua atenção, não é verdade? Viu-lhe as pernas, não foi o que disse ?

- Sim.

- Eram bem feitas ?

- Muito bem feitas.

- Reparou nelas, quando a acusada se inclinou para diante, não?

- Exactamente.

- Quando ela se inclinou, viu-lhas até aos joelhos ? Bastou-lhe vê-las até aos joelhos, para poder apreciá-las e considerá-las dignas de ser vistas, ou Miss Bagby, ao abrir a mala, inclinou-se ainda mais, de maneira a que a sua visão fosse ligeiramente acima da curva dos joelhos ?

- Inclinou-se muito. Vi-lhe as pernas um pouco acima dos joelhos.

- Foi isso que lhe chamou a atenção para a ré ?

- Sim, senhor.

- E notou, então, que ela tirava qualquer coisa dessa mala?

- Sim.

- Levou muito tempo a tirar essa coisa ?

- Não muito. Agiu apressadamente.

- E que fez ela a essa coisa que tirou da mala?

- Meteu-a na algibeira do sobretudo.

- Numa só ?

- Não. Meteu várias coisas, nas duas algibeiras do sobretudo.

- Que sobretudo ?

- No que está ali pendurado, junto à mesa da Acusação.

- O sobretudo que constitui a Prova G da Acusação?

- Exactamente.

- Tem portanto a certeza de que a ré tinha esse sobretudo vestido, quando se inclinou para tirar a tal coisa da mala e metê-la nas duas algibeiras, não é verdade?

- Tal e qual.

- Muito bem! - exclamou Mason, demonstrando inteira concordância. - Vou agora pedir à acusada que vista esse sobretudo, Prova C da Acusação, e se vire de costas para o júri.

Neely fitou Mason com os olhos espantados e este explicou: !

- Quando Miss Bagby o fizer, tanto Boles como os jurados e o juiz verificarão que, com aquele comprido sobretudo, por muito que ela se curvasse para diante, seria absolutamente impossível verem-se-lhe as pernas até à curva dos joelhos. Quando muito, só se ergueria um pouco acima da barriga das pernas. Não será assim ? Embora a moça seja alta, notei que o sobretudo era muito comprido. Mesmo curvada sobre a mala, a sua bainha inferior só subiria cerca de dez centímetros.

- É extraordinário - exclamou Neely. - Nunca teria pensado numa coisa dessas!

Voltando a incarnar a personagem de advogado da Defesa, Mason continuou:

- Diga-me, Mr. Boles, quando foi que tornou a ver a acusada ?

- Numa fila de outras mulheres que se achavam na esquadra de polícia de Corona.

- Tem a certeza ?

Neely hesitou e deixando de ser Boles, para voltar a ser o advogado indeciso, observou:

- Não sei que responder-lhe, Mr. Mason.

- Mas vai saber - replicou o advogado. - É costume da polícia mostrar à testemunha a pessoa suspeita, antes de fazerem a cena da identificação em linha. Fazem-no sempre sub-repticiamente, para que a posterior identificação não falhe. Você terá de insistir nesse ponto. Verá como acerta em cheio. É uma velha técnica* policial que os “chuis” nunca deixam de pôr em prática. Arranjam sempre maneira de a testemunha ver a pessoa suspeita, antes de meterem esta no meio de outras. Compreende?

- Sim, Mr. Mason. Não deixarei de fazê-lo. E acha que isso basta?

- Para confundir a testemunha e convencer o júri de que mentiu, já é suficiente sublinhar que foram as pernas (que ela não pôde ver) que lhe chamaram a atenção para um furto que leu nos jornais. Terá de demonstrar a incongruência das suas declarações e para a irregularidade da identificação feita na esquadra, depois de lhe terem mostrado a pessoa suspeita. Tudo isso soma e pesa. Além disso, se as jóias estavam em várias caixas, como pôde a ré actuar rapidamente? Como poderia saber o que nelas se achava? Como podia adivinhar que vinham no porta-bagagens daquele carro? Está a ver a incongruência da acusação. Onde conseguiu esconder o resto das jóias desaparecidas? Porque guardou consigo um bracelete que, obviamente, iria incriminá-la? Não descanse um só momento. Terá de atirar pergunta sobre pergunta, desnorteando completamente a testemunha.

- Meu Deus, Mr. Mason. Como pôde pensar nisso tudo tão depressa?

- Se quiser ser realmente um advogado capaz de debater questões desta natureza criminal, terá de pensar rapidamente e conduzir o seu contra-interrogatório à mesma velocidade. Isso entusiasma o júri e desnorteia uma testemunha que você Julgue perjura. Compreendeu?

- Sim, Mr. Mason. Acha que Boles está realmente a mentir?

- Tudo indica que sim, pelo menos no que respeita ao casacão da sua cliente. Assim tão comprido, até está fora de moda. Ainda bem, porque isso dá-lhe um pretexto deveras válido para desmentir a testemunha. Agora, prepare-se para o ataque e... não diga a ninguém que tivemos esta conversazinha.

 

Já no seu escritório, Mason deu uma vista de olhos pelos jornais da manhã.

- Está à procura de alguma coisa especial ? - indagou a sua muito bela e eficiente secretária, Della Street.

Mason confirmou:

- Não sei se publicaram a notícia do julgamento de Riverside, mas gostaria de saber o que por lá se passou.

- Se se refere ao caso de Corona, está nesse mesmo jornal que tem na mão, na página 18, ou 20, na secção, “Pelos Tribunais”.

O advogado abriu o diário na página 18, dobrou-o e passou-o a Della. Esta pegou-lhe e leu:

- “Um jovem advogado, de nome Frank Neely, desenvolveu ontem um brilhante contra-interrogatório no julgamento do caso em que está envolvida a madrinha do futuro casamento de Helene Chaney. A identificação da acusada, Evelyn Bagby, anteriormente feita pela testemunha, Harry Boles, foi completamente desmantelada e o júri concluiu que o bracelete, pertencente a uma colecção de jóias roubadas, encontrado no quarto da ré, fora aí plantado propositadamente para inculpá-la do crime que não cometera, a fim de desviar a atenção da polícia dos verdadeiros ladrões ainda não identificados.”

- Hum, hum! - fez Mason, sorridente.

- O Chefe está a mostrar os dentes, como um gato siamês - observou Della. - Mas nota-se que o faz de satisfação.

- Aconteceu que tive ontem ocasião de assistir a uma fase dos debates e fiquei interessado em saber como terminariam.

- Teve qualquer outro interesse neles ? - sondou Della.

- Pensei que o jovem advogado que representava a Defesa poderia safar-se satisfatoriamente, durante a audiência da tarde.

- Nada mais ?

- Que mais quer que lhe conte ?

Della examinou os olhos de Mason, atentamente e sorriu. Em seguida pegou na factura de despesa do restaurante e disse:

- Vejo que convidou duas pessoas para almoçar. Quem eram?

- Um casal de Riverside - respondeu Mason, com desprendida naturalidade.

- Os inspectores de impostos vão exigir mais explicações, se quer que apresente esta conta como despesas de relações públicas em serviço.

- Não se tratou de serviço - atalhou Mason. - Foi um almoço de relações pessoais, puramente particular. Convidei para almoçarem comigo, um rapaz, chamado Frank Neely e a moça com quem ele espera casar, Miss Estelle Nugent.

Della Street levantou-se, levando consigo a factura e, já na porta, comentou:

- Bem me parecia.

Momentos mais tarde reaparecia, sorridente.

- Pois bem, senhor “Bom Samaritano”. Vejo que andou a espalhar bocadinhos de pão na água do lago e já andam peixinhos à superfície.

- Que história é essa ? - estranhou Mason.

- Está ali na sala de espera uma jovem de grandes olhos e cabelo ruivo, com um corpo muito mais atraente do que o vestido que o envolve. Diz chamar-se Evelyn Bagby e quer, à força, falar consigo. Insiste em que é muito importante vê-lo pessoalmente e está tão determinada a consegui-lo, como é verdadeira a cor do seu cabelo.

Mason franziu as sobrancelhas e admirou-se:

- Como pode ser isso ? Ficou combinado que ela nunca viria a saber que eu me interessara pelo seu caso.

- Mas soube.

- Nesse caso, mande-a entrar. Receberei os seus agradecimentos e pô-la-ei a andar, no mesmo instante. A não ser que me engane e ela tenha vindo procurar-me, apenas para arranjar emprego.

- Não se esqueça de que tem imensa correspondência para assinar e outra tanta, para ditar - recordou Della, -apontando para uma pilha de cartas.

- Sim, bem sei. Despacharei parte delas ainda hoje. Mande lá entrar essa moça.

Evelyn Bagby, parecendo muito mais alta, ali de pé, junto de Della, do que quando Mason a vira sentada na cadeira, por detrás de Neely, olhou para o advogado com uma expressão sinceramente reconhecida e limitou-se a dizer: - Obrigada!

- Por que razão me agradece ? - inquiriu Mason, examinando-lhe os grandes olhos azuis.

- Por aquilo que fez por mim.

- Que foi ?

- Mr. Neely contou-me.

Mason franziu o sobrolho e comentou:

- Não devia tê-lo feito.

- Disse-me que desejava ser franco comigo e... Bem, estou-lhe imensamente reconhecida. Mr. Mason. Mr. Neely mudou completamente de método de ataque, durante a audiência da parte da tarde e desfez a identificação de Boles, em pedaços. O homem foi-se logo abaixo, às primeiras, e depois toda a teoria da Acusação ficou destruída. Perguntei a Mr. Neely como conseguira operar aquele milagre e ele explicou-me ter falado consigo.

- Queira, sentar-se, Miss Bagby - convidou Mason. A jovem abanou a cabeça e recusou:

-'Não, Mr. Mason, obrigada. Sei que deve estar imensamente ocupado e não quero incomodá-lo. Vim somente agradecer-lhe.

- Não tem que agradecer-me coisa alguma, Miss Bagby. Tive muito gosto em discutir o seu caso com Mr. Neely... Ele disse-me que você andava à procura de trabalho...

Evelyn confirmou com um aceno de cabeça.

- Crê que pode arranjar alguma coisa, por cá ?

- Vou tentar.

- Sabe o que aconteceu a esse Boles que testemunhou contra si ?

- Francamente, não sei, Mr. Mason. Fiquei tão feliz por ter sido absolvida que não me interessei por mais nada. Só me custa é ter ficado com registo policial. É sempre desagradável, quando se anda em busca de emprego, numa cidade em que ninguém nos conhece. A minha ficha diz: “detida por suspeita de furto, mas despronunciada por falta de provas”. Isto acaba sempre por levantar suspeitas a qualquer futuro patrão. Enquanto não for descoberto o ladrão das jóias, ninguém pode considerar-me verdadeiramente absolvida, compreende, Mr. Mason ?

- Na verdade, foi apenas despronunciada. O seu advogado referiu-se à possibilidade de conseguir-lhe uma indemnização pelos prejuízos materiais e morais sofridos, durante a sua detenção, julgamento e publicidade consequente ?

- Não. O Procurador do Distrito tomou uma atitude de generosidade, como se me fizesse um grande favor em deixar-me sair em liberdade. A polícia mostrou-se deveras contrariada em abrir-me a cela e devolver-me os poucos dólares que trago comigo. Julgavam já ter o caso resolvido e viram-no fugir-lhe por entre os dedos.

Mason virou-se para Della e pediu:

- Ligue-me para Frank Neely, por favor. É advogado em Riverside.

Dirigindo-se a Miss Bagby, insistiu:

- Queira sentar-se. Só lhe tomarei alguns minutos.

A jovem olhou para ele pensativamente, com uma expressão especulativa, enquanto Della fazia a chamada. Depois, sentou-se no grande maple, em frente da secretária de Mason.

- Se acha que posso pedir-lhe qualquer coisa, isto é, se tenho direito a exigir qualquer coisa, como compensação... há algo que desejo muito mais do que dinheiro - disse Evelyn.

- Que é ? - interessou-se Mason.

- Não se ria. Desejava ser sujeita a um teste cinematográfico.

Mason fitou-a com crítica aprovação. Lentamente acenou com a cabeça.

- É possível que tenha sorte - declarou -, mas não pensa que é?...

- Já sei que vai dizer-me que será uma prova muito difícil e que, mesmo que passe nesse teste, Hollywood está cheio de artistas que passaram nessas provas e não tiveram sorte nenhuma... Que as minhas probabilidades serão uma, num milhão. Não será isso?

- Mais ou menos - confirmou Mason, sorrindo.

- Bem sei. Toda a gente me diz o mesmo e tenho-o lido em todas as revistas teatrais e cinematográficas mas ainda não desisti. Há sete anos que a ideia não me sai da cabeça e sempre lutei por poder vir um dia até cá.

Della Street interveio para anunciar:

- As linhas para Riverside estão ocupadas, Chefe. A ligação vai demorar ainda alguns minutos.

Sem tirar os olhos da sua visitante, Mason indicou:

- Diga a Gertie, Della, para continuar tentando obter essa ligação.

E virando-se para Evelyn, indagou:

- Por que razão esperou sete anos para tentar esse teste?

A jovem riu e respondeu:

- Há sete anos, eu era ainda uma garota de dezoito anos. Tinha realmente boa figura, diziam-me ser extremamente bonita e representei num teatro amador.

- Ainda é muitíssimo atraente - elogiou Mason.

- Não como o era nessa altura. Sete anos a servir às mesas, por vezes até a lavar pratos, dão cabo de uma pessoa que procura manter as formas e a suavidade da pele.

Uma mulher endurece sempre com a vida de trabalho árduo. Só agora antevejo uma probabilidade mais positiva.

- Que probabilidade ?

- Se tenho realmente direito a uma compensação, preferia que, em vez de ser monetária, fosse transformada no desejado teste. Helen Chaney é uma figura proeminente no mundo cinematográfico e pensei...

- É necessário que ela esteja de acordo em dar-lhe uma ajuda - observou Mason.

- Espero que aceda em fazer-me esse jeito, em vez de pagar-me uma indemnização, se é que tenho realmente direito a ela. Aos dezoito anos a minha ambição era entrar para o cinema. Herdei algum dinheiro, quando meu pai morreu... nessa mesma altura. Depois, minha mãe também faleceu, quando fiz vinte, e recebi a sua parte. Decidi então vir para Holywood, tentar a minha sorte, e tive grandes esperanças, quando conheci um homem chamado Gladden. Ainda guardo um cartão-de-visita dele, como recordação.

- Que aconteceu com esse homem ?

- Falava constantemente de teatro e de filmes em que comparticipara. Afirmava-me ser actor e ainda mais me entusiasmou no meu sonho de transformar-me numa estrela. Passava a vida a dizer-me que tratava todos os grandes artistas da tela, pelos seus próprios nomes, tu cá, tu lá.

- Nunca ouvi falar dele.

- Nem ninguém mais - disse ela amargamente. - Levou-me todo o dinheiro, convencendo-me de que iria tratar da minha promoção como artista. Que iria conseguir-me testes e tudo o mais, não deixando de usar da sua influência pessoal nos meios cinematográficos.

- E que sucedeu ?

- Gladden..., Stauton Vester Gladden, de seu nome completo, desapareceu e com ele tudo quanto eu tinha herdado e as minhas próprias economias. Enfim, o costume. Isso já tem acontecido a milhares de raparigas com as mesmas ambições. Não vale a pena estar para aqui a choramingar no seu ombro, Mr. Mason. É uma história absolutamente trivial e não quero roubar-lhe o seu precioso tempo.

Mason apontou para o telefone e redarguiu:

- Estamos à espera de uma chamada, Miss Bagby, e estou agora interessado no seu caso. Um advogado interessa-se sempre por questões humanas e..., se quer fazer um teste cinematográfico, conhecer o seu passado pode ajudar-me a apoiá-la nessa diligência. Chegou a apresentar queixa à polícia contra esse aventureiro, esse tal... Gladden ?

- ^ Certamente que me queixei, mas ninguém soube dar-lhe com a pista. Logo da primeira vez que procurei informar-me, junto das autoridades, a polícia riu-se e limitou-se a comentar: “Mais uma! Parece que isso acontece constantemente em todos os Estados deste país. Finalmente, depois de ter arranjado algum dinheiro, das minhas novas economias, decidi-me a fazer esta viagem. Comprei um velho automóvel, quase a desfazer-se, e meti-me a caminho. Foi então que me sucedeu entrar a polícia no meu quarto de motel e acusar-me de ter roubado jóias do carro de Irene Keith, que viajava com a actriz Helen Chaney. O resto, já o senhor sabe.

- A polícia chegou a investigar o paradeiro de Gladden ?

- Disseram-me que Stauton Vester Gladden nunca existira e que, se eu não sonhara com ele, decerto se desvanecera no ar.

- E não perdeu a sua ambição de tornar-se uma “estrela ?

- Pelo contrário. Quanto mais punha e limpava mesas, quanto mais tinha de aturar clientes atrevidos, alguns até brutais, mais desejava realizar o meu sonho.

- E veio directamente para Hollywood?

- Fiz duas etapas. Uma, em Needles onde ainda trabalhei durante algum tempo, para arranjar fundos, e a segunda, em Corona onde tive aquela infelicidade. Mason fitou-a pensativamente e recordou:

- Como explica terem-lhe encontrado aquele bracelete de diamantes, entre a sua roupa?

- Não explico coisa alguma. Nunca o vira antes de mo mostrarem. Fiquei mais admirada do que eles. Alguém o plantou dentro da gaveta do armário do motel, durante a minha ausência.

Neste momento, o telefone tocou e Della atendeu:

- Eis a chamada que pediu, Chefe - anunciou. Mason pegou no auscultador e saudou:

- Bom dia Mr. Neely. Daqui, Perry Mason. Parabéns! Depois de breve troca de amabilidades, Neely declarou:

- Tinha razão, Mr. Mason. Boles era uma testemunha fraudulenta. Acabou por declarar-se impotente para identificar a acusada.

- Que tal se portou a jovem ?

- Foi-se embora de cá, mal a soltaram.

- Está aqui, no meu escritório - disse Mason. Após um instante de embaraçoso silêncio, Neely confessou:

- Não tive coragem para... Não resisti à tentação de contar-lhe o que efectivamente se passara e disse-lhe como o senhor me ajudara e quanto ela lhe devia.

- Miss Evelyn Bagby diz-me agora desejar ver tudo esclarecido. Concorda com isso?

- Certamente. Se ela quer andar para diante, estou ao seu inteiro dispor.

O jovem advogado falava tão alto que Evelyn podia ouvir tudo quanto dizia.

- É um homem encantador - comentou ela. - Estou-lhe imensamente grata...,'assim como a quem o inspirou na defesa do meu caso.

Mason meditou por instantes e depois inquiriu:

- Escute, Mr. Neely. Você chegou a apresentar queixa pela prisão de Miss Bagby, sem justa causa?

- Bem..., ainda não. Não sabia que a minha cliente tinha essa intenção.

- Obrigado - disse Mason. - Se houver novidade, tornaremos a contactar.

Momentos depois, desligava o telefone.

- Você não pensou em queixar-se, depois do julgamento, Miss Bagby? - indagou Mason.

- Nessa altura, não. Quis vir-me logo embora daquele malfadado lugar. Compreende, Irene Keith era madrinha da noiva, isto é, estava para ser madrinha de casamento da grande actriz Helene Chaney, com o fabricante de barcos, Mervyn Aldrich. Li isso nos jornais que relataram o meu caso. Não quis intrometer-me no assunto, numa altura daquelas...

O telefone tornou a tocar e, pouco depois, Della Street anunciou:

- Está novamente na linha Mr. Frank Neely.

- Que se passa ? - indagou Mason, pegando no auscultador.

- Está?... Está lá?... Daqui Neely, de Riverside. Desculpe incomodá-lo, outra vez, mas acabei de receber um telefonema de Irene Keith - disse o rapaz, nervosamente. - Mal desliguei a comunicação que mantinha consigo, Miss Keith ligou para aqui, declarando que desejava entregar algum dinheiro a Miss Bagby, visto ela ter sido despronunciada da acusação que lhe fora feita. Falou em setenta e cinco, ou mesmo cem dólares. Que devo responder-lhe ?

Com uma careta, Mason decidiu:

- Diga-lhe, por favor, Mr. Neely que eu sou seu associado neste caso e que ela deve tratar esse assunto directamente comigo. Isso poupa-lhe a maçada de acusar como intermediário, já que Miss Bagby está agora por cá. Sempre encurta as diligências. De resto, acho que não devemos tratar dessa matéria directamente com Irene Keith. Seria melhor que ela indicasse qual o seu advogado.

- Okay, Mr. Mason. Concordo plenamente consigo. Dir-lhe-ei, pois, que somos” associados, o que me honra muito, e indicar-lhe-ei que contacte consigo. É isso?

- Exactamente.

Depois de desligar o telefone, Mason virou-se para Evelyn e expôs:

- Parece, Miss Bagby, que alguém aconselhou Irene Keith a pagar-lhe uma pequenina indemnização para travar qualquer queixa ulterior. Propõem uma quantia entre setenta e cinco e cem dólares. Que diz a isso?

- Cem dólares, agora, na situação em que me encontro, parecem-me um maná caído do céu, mas, para falar francamente... não era isso o que eu pretendia.

- Quanto dinheiro traz consigo, neste momento, Miss Bagby ?

Evelyn corou e respondeu:

- Cerca de cinco dólares.

- Mas tem um automóvel ?

- Um calhambeque. Não vale nada.

Mason pensou durante alguns instantes e perguntou:

- Quer arranjar emprego?

- Certamente.

- Que quer fazer ?

- Seja o que for.

- Disse-me ter trabalhado em restaurantes. É boa nisso ?

- Tenho grande experiência desse género de trabalho, já que foi o melhor que arranjei nestes últimos tempos.

Virando-se para Della, Mason indicou:

- Veja, Della, se consegue ligar para Joe Padena. Instantes depois, Mason ouviu um homem ao telefone.

- Está ? Daqui Joe Padena. Quem é que quer falar com Joe Padena?

- Daqui Perry Mason - respondeu o advogado. - Quero pedir-lhe um favor.

- Se quer um favor de Joe Padena, Mr. Mason, Joe Padena está pronto a prestar-lhe todos os favores. De que se trata ?

- Tem uma vaga de criada de mesa?

- Se é sua amiga e boa criada, arranja-se sempre uma vaga, Mr. Mason.

- Vou mandar-lhe a moça... Vai aí ter consigo. Chama-se Evelyn Bagby.

- É uma moça, ou é uma criada de mesa ? - inquiriu Padena.

- Ambas as coisas.

- Fino. Talvez Joe Padena não esteja a fazer-lhe favor algum, Mr. Mason. Talvez seja o grande Perry Mason a fazer um favor a Joe Padena. Se for realmente boa na profissão, é decerto um favor que lhe fico a dever. Se quiser, pode ficar a viver aqui, connosco. Joe Padena não se mete com as empregadas que contrata, mas prefere que elas vivam aqui onde trabalham. Passam a ser da família. Outros patrões metem-se com as criadas. Joe Padena não pensa nisso.

- Vou explicar-lhe isso - disse Mason. - Depois, mando-a para aí.

-Quando ?

Mason consultou Evelyn com o olhar.

- Quando julga poder começar a trabalhar ?

- Imediatamente - respondeu ela.

- Estará aí, dentro de uma hora - transmitiu Mason.

- Belo - disse Padena. - Agora, Mr. Mason, sou eu a pedir-lhe um favor.

- Qual é?

- Que aparência tem essa moça ?

- Boa, mesmo muito boa.

- Já receava isso. Bem, diga-lhe por favor, que não pergunte por Joe Padena, quando cá vier. Peça-lhe para apresentar-se a Mrs. Padena. Está a compreender?

- Percebo onde quer chegar. Esteja descansado.

- Okay, adeus.

Padena desligou e Mason elucidou Evelyn Bagby:

- Vai ver como gosta do lugar. Joe Padena é meu cliente. Ele e a mulher dirigem um belo restaurante chamado Crowncrest Tavern. Fica situado no topo de uma das montanhas, por detrás de Hollywood. Mesmo lá no cimo. Tem uma vista maravilhosa sobre todo o vale San-Fernando, para um dos lados, e sobre Hollywood, para o outro. É frequentado por uma data de gente do cinema. Não é muito grande, mas tem uma esplêndida atmosfera, com elementos da alta-roda e “estrelas” de renome. Você terá de ficar lá instalada, porque, quando acabar o seu trabalho, já passará da meia-noite e fica longe da cidade.

- Quanto a mim, é perfeito. Considero esse lugar uma magnífica oportunidade.

- Quando se apresentar no restaurante, pergunte por Mrs. Padena e não pelo marido. Não dê muita atenção ao seu futuro patrão. Mrs. Padena é quem trata da caixa e está sempre a puxar-lhe os cordões à bolsa. Está a perceber onde quero chegar?

- Perfeitamente. É ela quem usa calças, no negócio.

- Exactamente. Estará aí absolutamente segura. Padena não vai meter-se consigo e tudo correrá pelo melhor.

- Se é do género de ter medo da mulher e não se meter com as criadas, pode crer, Mr. Mason, que é uma excepção na profissão. Quanto é que pagam?

- Não sei ao certo, mas creio que pagam bem. O local é de luxo. Agora, escute: quero estar em comunicação consigo. Seria conveniente que me telefonasse a confirmar se ficou com o lugar. Até arrumarmos este seu caso, quero ter possibilidade de contactar consigo em qualquer altura. Posso ter de tomar uma decisão e...

- Se acha que pode obter uma indemnização, Mr. Mason, não sou alérgica ao dinheiro, mas não se esqueça de que preferiria me concedessem um teste' cinematográfico.

- Esteja descansada. Não esquecerei essa sua primordial pretensão.

Evelyn sorriu, exprimindo gratidão e perguntou:

- Onde fica Crowncrest Tavern?

- Della far-lhe-á um mapa. Pode seguir pela Mulholland Drive, que é a estrada que a maioria do tráfego costuma tomar, mas há uma outra estrada, mais estreita, que poderá poupar-lhe alguns quilómetros de caminho.

Evelyn hesitou e acabou por dizer:

- Há uma coisa que desejo explicar-lhe, Mr. Mason.

- Que é?

- No dia em que cheguei a Corona, partiu-se-me o semieixo da esquerda da velha carripana. Fiquei com algum tempo livre, sem nada que fazer e comprei umas revistas para entreter-me. Numa delas vi um artigo acerca de Helene Chaney. Descrevia-a como sendo uma criatura muito generosa, muito rica e infeliz nos amores. Parecia que desta vez acertara e ia casar com alguém que a merecia. O artigo incluía fotografias dos seus dois primeiros maridos e um deles, o segundo, Steve Merrill..., a sua cara pareceu-me terrivelmente familiar.

- Sob que aspecto ?

- Era Sauton Vester Gladden, por uma pena!

Os olhos de Mason estreitaram-se, interessado.

- Que fez, depois de dar por isso? - indagou.

- Telefonei para a redacção da revista e aí deram-me a direcção de uma agência de contratos de artistas que me forneceria a morada de Steve Merril. Para abreviar, consegui falar com ele ao telefone.

- E depois? - inquiriu Mason, em tom inexpressivo.

- Disse-lhe quem eu era e onde estava instalada. Expliquei-lhe que o meu carro sofrera uma avaria, pelo que não podia sair de lá imediatamente. Declarei que esperava que me mandasse algum dinheiro e que se preparasse para pagar-me, pelo menos, parte do dinheiro que me extorquira; que o resto, poderia devolver-mo dentro de seis meses; caso contrário, iria queixar-me à polícia.

- Que sucedeu, depois disso?

-Retorquiu que eu devia estar doida, que nunca ouvira falar de nenhum Gladden, em toda a sua vida, e muito menos de qualquer Evelyn Bagby.

- Mais quê ?

- Mais nada. Desligou o telefone.

- Ficou com alguma dúvida acerca da sua identidade ?

- Nessa altura, fiquei, mas depois pus-me a pensar que, se Merrill fosse realmente Gladden, não iria confessá-lo, logo à primeira, pelo telefone.

-Continua, portanto, convencida de que pode ser ele?

- Quanto mais penso nisso, mais me convenço.

- Muito bem. Vamos descobrir isso. Entretanto, há outros assuntos mais prementes a tratar. Vai precisar de algum dinheiro, para resolver a sua vida, de imediato, até receber o seu primeiro salário do restaurante.

Mason virou-se para Della Street e indicou:

- Queira passar a Miss Bagby um cheque de cem dólares. Peça-lhe que o endosse e entregue-lhe cem dólares, em dinheiro, do nosso cofre.

A jovem abriu os olhos azuis e inquiriu:

- Para que é isso?

- ´É um avanço que vou fazer-lhe sobre o seu salário. Não pode andar por aí, sem dinheiro, antes que Padena lhe pague.

- Não gosto de andar com dinheiro adiantado, e, muito menos, por uma pessoa que nada me deve e para quem não vou trabalhar. Antes pelo contrário, sou eu que lhe devo...

- Deixe-se disso, Miss Bagby. Estou associado, desde há pouco, ao seu advogado, Frank Neely. Considere este adiantamento como referente à indemnização que ele vai receber, para si, de Miss Irene Keith. Creio que precisa...

Como Mason hesitasse, Evelyn olhou para os seus próprios vestidos e riu-se:

- Tem razão, Mr. Mason. Preciso realmente de roupa nova. Este fato saia-casaco e o sobretudo, foram comprados em Needles, onde a moda leva tempo a chegar. Eram baratos e, para o que lá se usa, não estavam muito antiquados, mas aqui, as saias já têm menos vinte centímetros de altura... e algumas, segundo vi, até menos. Além disso a qualidade deste tecido não é realmente famosa... direi até bastante imprópria para uma grande cidade onde as criadas de mesa vestem melhor do que as elegantes dos vilarejos do interior.

Evelyn recebeu o dinheiro das mãos de Della Street, apertou a mão do advogado, com firmeza, fitou-o nos olhos lealmente e disse apenas:

- O senhor é um “tipo fixe”!

Em seguida, Della acompanhou-a à porta. Depois de a jovem ruiva sair, Mason comentou:

- Pobre garota! Parece que a vida não lhe tem sorrido muitas vezes!

- E agora - suplicou Della -, que já fez de Pai Natal, veja se me despacha essa correspondência.

O telefone tocou e a bela secretária atendeu, contrariada.

- Que é agora, Gertie?... Mr. Mason está ocupado... Quem ?... Um minuto.

Virou-se para o advogado e indagou: ;

- Quer falar com Irene Keith, pessoalmente ?

Com uma careta, Mason anuiu: - Ligue para aqui.

Em seguida, saudou:

- Como está, Miss Keith?

A voz de Irene Keith soou ao aparelho, calma e confiante:

- Bom dia, Mr. Mason. Creio que representa Miss Bagby?

- Estou associado com Mr. Frank Neely, advogado de Riverside. Tem algum advogado, Miss Keith, que represente os seus interesses?

- Não. Costumo tratar dos meus próprios problemas.

Mason replicou:

- Preferia tratar com um advogado. O caso é que Miss Bagby está virtualmente sem meios. A sua reputação e o seu nome foram afectados por uma acusação terrivelmente injusta e infundada. Anda à procura de emprego nesta cidade. Espero que possam fazer qualquer coisa para ajudá-la.

- Procuro ser caridosa.

- Diga, antes, justa, Miss Keith.

- Vai processar-me ?

- Ainda não.

- Mas tenciona fazê-lo ?

- Isso depende das circunstâncias - retorquiu Mason. - Vou ser franco consigo, Miss Keith. Não estou ainda completamente familiarizado com os factos, mas tenciono investigá-los pormenorizadamente. Se tem algum advogado encarregado de aconselhá-la nos seus assuntos, sugira-lhe que se ponha em contacto comigo.

- Prefiro tratar do caso directamente consigo, Mr. Mason. Vai estar no seu escritório todo o dia?

- Assim tenciono.

- Pode receber-me?

Após uns segundos de hesitação, Mason respondeu:

- Estou terrivelmente atarefado, Miss Keith. Além disso, insisto em que se faça representar por um advogado.

- Não quero meter um advogado num assunto que posso resolver sozinha. Além disso, não gosto de tratar os meus problemas ao telefone. Estou disposta a dar algum dinheiro a essa rapariga e é disso que quero falar consigo. Quer receber-me, ou não?

- Está bem. Venha até cá, mas não se esqueça de que a aconselhei a enviar-me um advogado, em seu nome.

- Fá-lo-ei, quando entender precisar dele - respondeu Irene -, mas penso que poderei obter melhores resultados, falando consigo pessoalmente, do que através de um advogado.

- Porquê ?

- Porque um advogado não tem sex-apeal - disse ela, rindo-se. - Os encantos femininos, muitas vezes, valem mais do que um cérebro cheio de leis. Posso estar aí às duas horas e meia? Isso dá-me tempo para ir a um cabeleireiro. Já o avisei, Mr. Mason. É a sua vez de pôr-se na defensiva. '

Perry Mason riu-se também e aquiesceu:

- Está bem. Nesse caso, às duas e meia.

Mal desligou o telefone, Della Street meteu-lhe debaixo do nariz uma pilha de correspondência. Como uma mestra dirigindo-se a um aluno, prometeu: { - Depois de ter assinado essa meia dúzia de cartas que está ao de cima e de ter ditado as quatro mais importantes que já não podem ser adiadas, deixo-o ler a coluna da “Vida de Hollywood do jornal da manhã.

Mason franziu os olhos e inquiriu: -'Refere-se ao caso?

- Não propriamente ao caso, mas o articulista serviu-se dele como pretexto para comentar o romance de Helene Chaney.

- Conte lá isso, Della - pediu Mason, enquanto ia assinando as cartas.

Conforme lhas ia passando, Della Street relatou:

- Helene Chaney ia agora casar-se com Mervyn Aldrich. Seria este o seu terceiro casamento, pois já estivera casada, em segundas núpcias com Steve Merrill, actor de terceira ordem, no tempo em que ela era apenas corista e não fora descoberta como actriz de mérito.

- Quanto tempo esteve ela casada com esse Merrill ?

- Cerca de um ano, mas pô-lo a andar. Quis casar-se novamente e pagou todas as custas de um divórcio no México. Estava cheia de pressa de ver-se livre desse sujeito, mas desconfiou da legalidade daquele divórcio e pediu uma confirmação no Estado da Califórnia. Só anteontem conseguiu que o seu pedido fosse deferido.

- Ficou portanto livre para casar de novo?

- Quase. Mervyn Aldrich, fabricante de barcos, andava há muito tempo desejoso de desposá-la. As coisas pareciam correr sobre rodas, ao ponto de o seu advogado ter declarado à imprensa que obtivera o divórcio às 10 horas e que casariam às 11 dessa manhã. Entretanto, Steve Merrill declarou que Helene era sua sócia, pois fora ele quem investira todo o dinheiro para financiar a publicidade que originara a carreira artística de Helene Chaney. Nesta base, exigia metade dos direitos de propriedade dos bens da actriz.

- Nisso, Merrill tinha razão ?

- Helene desmente-o formalmente, mas é natural que ele a tenha ajudado, pois não seria com o salário de corista que poderia obter quanta publicidade alcançou. Explica que, julgando-se casada com Merrill, tinham conta comum, binominal. O certo é que, querendo casar com Aldrich, divorciou-se dele em Las Vegas e...

- Porque disse “julgando-se casada” com Merril ? - interrompeu Mason. - Não há dúvidas que tinham casado...

- Tinham e não tinham. Esse sujeito vem agora declarar que Helene era simplesmente sua sócia e não sua legítima mulher, em virtude de o seu primeiro divórcio não ter validade. Ela divorciara-se, no México, do primeiro marido, casando logo a seguir com Merrill. Ora, como sabe, Chefe, o Estado da Califórnia reconhece os casamentos efectuados no México, mas não ratifica os divórcios. Desta maneira, de nada lhe serviu ter-se divorciado de Merrill, em Nevada, pois esse casamento era nulo, em virtude de permanecer casada com o primeiro esposo.

- Foi para não cometer bigamia (*) que não chegou agora a casar-se com Aldrich ?

- Não foi bem isso. Não chegou a casar porque a cerimónia foi atrasada, em virtude do roubo das jóias, ocorrido na noite anterior. Merrill aproveitou o atraso causado pelo roubo, em Corona, para apresentar queixa no

 

(•) O Autor emprega o termo bigamia por Mandria, neste caso de uma mulher casada simultaneamente com mais de um marido. (N. do T.)

 

tribunal, acusando-a de estar ainda casada com o primeiro marido.

- Não me parece que venha a simpatizar com esse Merrill, se algum dia lhe puser a vista em cima - comentou Mason.

- Não, decerto - apoiou Della, sarcasticamente. - E muito menos, se descobrir que ele é o mesmo maroto que enganou a sua Evelyn Bagby.

- Alto lá! - protestou o advogado. - Que graça é essa de “sua Evelyn Bagby”?

- Oh, Chefe! Havia de ver os olhos dela, a comerem-no todo! E o Chefe ficou pelo beicinho! Nem precisou de vê-la derramar lágrimas de crocodilo, para dispensá-la de pagar-lhe um cêntimo contratual! Pelo contrário, até lhe passou um cheque...

- Por favor, Della - cortou Mason. - Deixe-se de brincadeiras! Vamos tratar desta correspondência atrasadíssima. Queira dedicar toda a sua atenção ao que vou passar a ditar-lhe.

 

Às duas horas e meia, já Perry Mason despachara dois terços da pilha de cartas que tinha sobre a secretária.

O telefone tocou e Della Street, depois de ter ouvido o recado de Gertie, passou o auscultador ao advogado.

- Irene Keith está na sala de espera - anunciou. - Quer deixá-la esperar, até acabarmos o resto?

Mason abanou a cabeça.

- Não, Della. O juiz Carver pode esperar. Ele disse que queria estes dois documentos, lá para o fim da tarde. Combinei receber Irene às duas e meia e chegou pontualmente. Gertie deu-lhe alguma novidade acerca de Miss Bagby ?

- Sim, Gertie disse-me, agora mesmo, que ela telefonara a informar que Joe Padena lhe arranjara trabalho.

Estava falto de pessoal e Evelyn caiu-lhe como sopa no mel.

- Ainda bem. Vamos dar uma vista de olhos a essa Irene Keith. Avisou-me de que iria exercer sobre mim a sua fascinação e quero ver até onde me leva.

- Se for ruiva, Chefe, leva-o à certa. Não acha preferível acabarmos, primeiro, os documentos para o juiz e mais esta meia dúzia de cartas?

- Não, Della. Isto é um caso de emergência.

Della Street, juntou a correspondência e saiu para escoltar Irene Keith até ao gabinete de Mason.

Quando o fez, parecia impressionada. Foi com um ar de aprovação que apresentou:

- Miss Keith, Mr. Mason.

Irene Keith parou em frente do advogado. A sua personalidade encheu o ambiente, deixando na obscuridade toda a dignidade das estantes de livros encadernados e o coiro austero dos maples.

-Olá - saudou ela .- Saí agora mesmo do instituto de beleza e trago as minhas armas afiadas.

Avançou e estendeu a mão.

- Tenho ouvido falar muito de si, Mr. Mason. É tal qual como o imaginava nas fotografias. Ou melhor, as fotografias não o favorecem. Torna-se agradável olhar para si.

O advogado sorriu e indicou-lhe o maple fronteiro à secretária.

- Calculo que esteja muito ocupado e não aprecie perder tempo em cumprimentos - prosseguiu ela. - Pretende que eu faça qualquer coisa por essa rapariga, não é verdade ?

Mason confirmou com um aceno de cabeça.

- Mervyn ficou de vir aqui ter comigo - anunciou Irene. - Não se importa, pois não ?

- Mervyn... ?

- Mervyn Aldrich. É o noivo de Helene Chaney. Esteve quase a “dar o nó. Neste caso - continuou Irene, - o roubo das jóias serviu de gong para interromper o combate.

- Que combate ?

- O que resulta sempre de um casamento - riu-se ela.

- Refere-se a Aldrich... dos barcos ? - fez-se Mason de novas.

- Exacto. É ele quem os constrói, mas é Helene quem o faz "embarcar".

- Estavam para casar-se ?

- O mais possível. É um noivo completo. Só que ainda não "embarcou".

- Que aconteceu?

- Deviam encontrar-se em Corona. Mervyn vinha de' Balboa, pelo Canhão de Santa Ana. Helene e eu, vínhamos, no meu carro, de Hollywood. De Corona, seguiríamos em cortejo, com os demais convidados, para Las Vegas. Ia ser um casamento de arromba, mas falhou.

- Porquê ?

- Então, Mr. Mason! Vem no noticiário desta manhã.

- Gostava de ouvir os factos, relatados por si - disse Mason.

- Do princípio? Pois bem, Helene ascendeu a “estrela”, fulgurantemente. Merril era como uma trave metida nos raios das rodas que a impediam de andar para diante. Estava falido. E continua a ser uma trave. Está agora a impedir-lhe o casamento.

- Como ?

- Talvez não acredite - continuou Irene, - mas Helene é uma dessas mulheres que aspira a segurança, a vida calma e farta,... especialmente farta,... gosta de cozinhar e todas essas coisas que as mulheres dizem gostar, quando estão noivas. Ainda não a caçou, por uma unha negra... Fizemos o trajecto a uma velocidade louca, porque Mervyn tem a mania da pontualidade e tínhamos acertado os relógios, por telefone.

- Chegaram a Corona, antes dele ?

- Conseguimos. Arrumámos o carro vinte minutos antes da hora aprazada.

- Que aconteceu?

- Entrámos no restaurante para tomar um cocktail e esperar por ele. Quando saímos, notei que o porta-bagagens estava aberto... Meu Deus! Nem sonha a quantidade de presentes que estavam lá dentro. Só numa das malas ia uma fortuna em jóias.

- Todas misturadas?

- Não. Iam em três caixas. Como doida, corri a telefonar à polícia. Bem,... foi o meu grande erro.

- Porquê ?

- Porque o chefe da polícia acorreu imediatamente. Creio que em busca de glória e fama. Invadiu toda a zona com os seus guardas e Mervyn, quando chegou, ficou furioso. Lá se ia a pontualidade por água abaixo. Nunca vi tanta raiva concentrada num homem só.

- Porquê ?

- Detesta publicidade, não gosta de polícias e sobretudo enfurece-se, quando lhe provocam atrasos de qualquer espécie, é um homem que vive ao compasso do relógio.

- Portanto, o casamento ficou adiado ?

- Se a polícia não tivesse decidido prender essa Bagby e não nos tivesse detido como testemunhas, o cortejo nupcial teria sido um sucesso. Dessa maneira, com todas aquelas formalidades policiais, desfez-se..., o cortejo, quero eu dizer. Creio que já sabe o resto.

- Que resto? - sondou Mason.

- Steve Merrill interveio junto do tribunal, declarando que o casamento não poderia realizar-se, pois Helene estava ainda casada com o primeiro marido.

Neste ponto, os lábios de Irene estreitaram-se exprimindo indignação, quando exclamou:

- O patife! Foi um autêntico acto de chantagem! Aquele crápula!

O telefone tocou. Mason fez um sinal a Della Street que atendeu. Depois de trocar algumas frases com Gertie, anunciou:

- Acaba de chegar Mr. Mervyn Aldrich que tem um encontro marcado com Miss Keith. neste escritório.

Consultando a visita com os olhos, Mason acabou por inquirir:

- Quer que ele entre, agora mesmo ?

- Acho que seria esplêndido. Mr. Mason. Receio que ele se melindre, se vir que vim consultá-lo as ocultas.

Segundos depois, Aldrich entrava no gabinete. Pareceu a Mason que Irene se esquecera de tudo, ficando extasiada a olhar para o noivo de Helene.

- Olâ, Mervyn! - saudou ela, estendendo-lhe ambas as mãos. - Entra e deixa-me apresentar-te Mr. Perry Mason.

Mervyn Aldrich, tão alto como Mason, com os ombros igualmente largos e um rosto saudável, denunciando vida; ao ar livre, pegou nas mãos de Irene e olhou-a demoradamente, após o que exclamou: !

- Que linda estás, Irene! Vou ter a mais bela madrinha do mundo!

Depois disso, Miss Keith fez as apresentações sociais.;

- Vejamos pois, do que se trata - começou Mervyn. - Recebi o teu recado telefónico, Irene, dizendo que querias dar uma compensação àquela jovem que roubou os* presentes de casamento. Foi isso?

- Ela não os roubou, Mervyn - observou Irene.

- Como sabes que não os roubou ?

- Foi despronunciada.

Mervyn Aldrich sorriu com um sorriso que pretendia ser mais eloquente do que a frase.

- Sei que não o fez - insistiu Irene. - Sinto que a rapariga está inocente. Há qualquer coisa que não encaixa, em toda aquela história.

Aldrich virou-se para Mason e inquiriu:

- Posso perguntar-lhe porque se encontra ligado a esta diligência?

- Fui para ela arrastado.

Mervyn Aldrich franziu o sobrolho e declarou:

- Aquela testemunha..., como diabo se chamava o tipo?... Boles, não era isso?... Viu a rapariga a rondar o porta-bagagens do carro e foi categórico ao identificá-la.

- O seu testemunho foi reduzido a cinzas - replicou

Irene.

- É um pobre diabo, sem cultura de espécie alguma e o advogado, atrapalhou-o, mas não me convenceu. Na minha opinião, essa moça teve foi muita sorte em ser posta em liberdade. Onde pára ela, agora?

- Trabalha - esclareceu Mason.

- Onde?

- Nesta cidade.

- Tens de acreditar-me, Mervyn - interveio Irene. - Acho que devo fazer qualquer coisa por essa rapariga.

O industrial de barcos, que estivera a fitar Mason com olhos de aço, virou-se para Miss Keith, com uma expressão mesclada de ternura e sarcasmo, e disse:

- O teu mal, Irene, é teres um coração demasiado bondoso. Foste sempre a melhor de todo o grupo, mas incapaz de compreenderes o que realmente vai por este mundo.

Em seguida, voltando-se para Mason, inquiriu:

- Qual é a sua proposta, Mr. Mason ?

Calmamente, o advogado elucidou:

- Miss Irene Keith assinou uma queixa contra Evelyn Bagby, na qual a acusava de furto de jóias. A acusada compareceu em tribunal, depois de ter sido coagida à prisão. Durante o julgamento verificou-se que a acusação de felonia era injustificada. Foi pois considerada legalmente inocente. Isso deixou-a numa situação correspondente à de absolvida, mas tal não a compensa da publicidade prejudicial de que foi alvo, nem do traumatismo moral de que foi vítima.

- Irene não teve intenção de molestá-la - objectou Mervyn. - Nunca a vira antes. O Procurador do Distrito disse-lhe para assinar uma queixa e Irene fê-lo, naturalmente. Este caso não tem base legal por onde se lhe pegue. Qualquer advogado diria o mesmo.

- Avisei Miss Keith que seria melhor ter mandado o seu advogado falar comigo - replicou Mason. - Foi Miss Irene Keith quem declarou preferir tratar do assunto pessoalmente comigo. É por esse motivo e só por ele que aqui se encontra, a seu pedido.

- Tudo isso é muito bonito, mas não pode exigir de Miss Keith seja que compensação for. Não foi movida por malevolência. Apenas agiu de acordo com a indicação das próprias autoridades.

- Está tentando ensinar-me leis ? - perguntou Mason.

- Sim.

- Bem me queria parecer - declarou Mason, pondo-se de pé.

- Hem?... Um momento!... Creio que compreendi mal a sua intenção, Mr. Mason - titubeou Mervyn.

- Também o creio, mas agora é tarde de mais para que isso faça alguma diferença.

Dito isto, o advogado avançou para a porta do gabinete que dava acesso directo ao exterior. Com uma ligeira vénia, abriu-a, como que convidando as visitas a saírem.

Irene Keith olhou de relance para Aldrich e em seguida virou-se impulsivamente para Mason.

Mervyn Aldrich pegou-lhe firmemente por um braço e puxou-a para a porta.

- Vamos embora, Irene - comandou.

Mason fechou a porta suavemente, mal saíram.

Ao clique do fecho da porta, seguiu-se o de Della Street desligar o gravador em que registara toda a conversa.

- E agora ? - indagou ela.

Mason ficara de pé, com o sobrolho franzido, ainda virado para a porta.

- Escute, Chefe - disse Della. - Se Irene queria tratar do assunto sozinha, porque marcou aqui um encontro com Aldrich, à mesma hora.

- Acaba de dar-me a chave do problema, Della - observou Mason. - Mervyn é um homem extremamente pontual. Isso significa que Irene não marcou o encontro com ele às duas e meia, mas às duas e quarenta e cinco. Quis expor-nos o seu ponto de vista, a sós, e pretendeu que ele estivesse presente, logo a seguir, para dizer-nos quanto ela é generosa e que não tem nada que abrir a bolsa.

- Acha que estariam combinados, um com o outro, Chefe?

- Não tenho a menor dúvida - confirmou Mason.

- Há uma coisa que gostaria de dizer-lhe, do ponto de vista feminino - arriscou Della. - Essa Irene é...

- Desabafe, pequena - instigou Mason.

- Irene Keith está muito interessada em Mervyn, mesmo muito. Quando ele chegou e ela lhe estendeu as mãos, olhou-o como noiva e não como madrinha. Posso assegurar-lhe que a interrupção do casamento de Mervyn com Helene não fez brotar a mínima lágrima a Miss Keith. Deve ter dado pulos de satisfação. Se Irene pudesse, levá-lo-ia ao altar, em vez de Helene.

- Eis uma análise muito interessante, Della, para a qual me inclino logicamente. Precisamos de investigar certas coisas sobre as relações desse triângulo.

- Por outras palavras - concluiu Della -, quer pôr Paul Drake em acção?

- Exactamente. Veja se o apanha no escritório da agência e arraste-o até cá. A banha que pusemos na frigideira, ao lume, já começou a ferver.

- Geralmente, quando isso acontece, há sempre alguém que se enerva e acaba por queimar-se - observou Della, dirigindo-se para a porta.

 

Paul Drake, director e proprietário da Agência de Detectives Drake que tinha os seus escritórios no mesmo andar que Perry Mason, entrou no gabinete particular do advogado e sentou-se no grande maple, à sua maneira habitual, com as pernas dobradas pelos joelhos, por cima de um dos braços do móvel.

- Okay, Perry, atira - prologou.

Depois de acender um cigarro, Mason indagou: -Conheces uma tal Helene Chaney, Paul?

- A actriz ?

- Sim.

- Quem é que a não conhece ?

- Pessoalmente ?

- Não.

- Que sabes acerca dela ?

- Não muita coisa. De vez em quando, o seu agente de publicidade lança uns artigos nos jornais e umas entrevistas em periódicos especializados, para efeitos de propaganda artística. O costume. Mostra que é escultural, muito sexy, muito sedutora, com uns olhos capazes de comer um homem em qualquer posição, com vestidos tão decotados em cima, como curtos em baixo, e envergando camisolas transparentes que se lhe colam ao corpo como uma segunda pele. Tudo isto acompanhado de uma descrição de quanto é respeitável e recatada! Montes de fotografias, algumas das quais exibindo-a a cozinhar, quase nua, por baixo do avental. Fazem constar que a tragédia da sua vida é desejar dedicar-se apenas a um lar, quando é forçada a ganhar a vida, representando filmes que a mostram sob personalidades totalmente diferentes da sua. Nem gosta dos trinta casacos de peles, nem dos montes de jóias que é forçada, coitadinha, a usar por imperativo da sua carreira. Além disso...

- Já chega - cortou Mason. - Helene Chaney ia casar-se em Las Vegas com Mervyn Aldrich, mas roubaram-lhe as jóias, numa paragem que fez em Corona. Por esse motivo, o casamento foi adiado e, entretanto, o seu segundo marido, um tal Steve Merrill, aproveitou a oportunidade para apresentar uma impugnação, em tribunal, contra esse casamento, alegando que Helene estava ainda casada com o primeiro marido. Sabes algo acerca disso?

- Pouco. Esse Merrill foi actor, se tal se lhe pode chamar com propriedade. Conseguiu, um dia, fazer um papel de terceira ordem, num filmeco qualquer, em que desempenhava o papel de jornalista coreano. Disse três ou quatro frases, por junto, em todo o filme. A partir daí, passou a encarregar-se da publicidade artística da mulher, enquanto era corista, com pretensões a actriz. Porque te interessas por ele?

- Uma jovem, chamada Evelyn Bagby foi presa por roubo de jóias - esclareceu Mason. - Mas foi solta e despronunciada, ontem, ao fim da tarde.

- Okay, li isso nos jornais. Esse caso passou-se num desses distritos de vacas...

- De laranjas - corrigiu Mason. - Foi julgada no tribunal de Riversidade.

- Mais quê ? - interessou-se Drake.

-. Estou interessado em conseguir uma indemnização para Miss Bagby.

- Consegui-la, de quem ?

- Em princípio, de Irene Keith, autora da queixa contra Evelyn Bagby. Esta moça estava completamente inocente e foi presa, sujeita a julgamento e correu o risco de ser condenada injustamente, porque apareceu por lá uma testemunha que jurou poder identificá-la como autora do roubo, um tal Harry Boles.

- Queres que também investigue esse Boles, Perry?

- Sim, Paul. Quero saber se Boles confundiu as mulheres, tomando Evelyn pela ladra, ou se teria sido um plano urdido, para implicar a minha cliente. Descobre-me isso, sim?

- Okay. Quanto tempo me dás ?

- Anda-me depressa, Paul.

Drake ergueu-se lentamente da cadeira e motejou:

- És tão bom para mim, Perry! Contigo, qualquer detective acaba por engordar de inacção. Queres tudo, sempre, para “ontem”!

- Ainda uma coisa - acrescentou Mason, quando o amigo já estava na porta. - Descobre tudo quanto puderes acerca desse Steve Merrill. Vê se alguma vez usou o nome de Stauton Vester Gladden.

- Suponho que queres essa informação, em menos de cinco minutos, não? Repete lá o nome. Stauton quê?

- Stauton Vester Gladden.

Quando o detective ia a fechar a porta, o advogado ainda lhe disse:

- Cinco minutos é tempo de mais. Arranja-te de maneira a dares-me essa informação, ontem e de manhã.

 

As quatro e quarenta e cinco dessa tarde, o telefone não registado na lista começou a terrintar sobre a secretária de Mason. Della Street atendeu e anunciou:

- É Paul.

- Dê cá - pediu Mason, estendendo a mão para o auscultador.

- Paul diz ter obtido uma informação de um dos seus homens de Corona - avisou Della passando-lhe o aparelho.

- Desfecha, Paul - incitou Mason.

- Olá, Perry - saudou o detective. - Um dos meus homens descobriu uma pista não detectada pela polícia, em Corona. O motel, mesmo em frente do restaurante, alugou um apartamento, às 11.30 h do dia em que as jóias foram roubadas, a uma mulher, ainda nova, que usava óculos escuros e cujo nome e morada parecem ser falsos. A criada do motel disse que viu sair essa mulher do apartamento de Evelyn Bagby. Não ligou muita importância ao facto, visto a tal mulher parecer muito à vontade e consciente do que fazia. Declarou ter-se simplesmente enganado de apartamento.

-. Disseste às onze e meia ?

- Exactamente, ou melhor, essa é a hora que o gerente declara ter-lhe alugado o apartamento, mas pode haver uma margem, entre as dez e meia e as onze e quarenta e cinco. A criada também mencionou onze e meia.

- Que descrição fez dessa hóspede ? - inquiriu Mason.

- Alta. cerca de um metro e setenta. Óculos grandes e escuros, vestido de boa qualidade e bom corte. Conduzia um automóvel dispendioso. A criada julgou tratar-se de um Cadillac, mas o gerente inclina-se mais para um lincoln.

- Número da matrícula ?

- Não foram verificar. O número que essa mulher indicou é falso, conforme o meu detective averiguou.

- Morada ?

- Também fictícia.

- Mais alguma descrição da hóspede ?

- Bem vestida, como te disse, voz agradavelmente modulada, nunca tirou os óculos. O gerente diz que devia andar pelos vinte e oito, trinta anos. Saltou-lhe uma coisa à vista: usava uns sapatos de pele de crocodilo, de modelo caro. Lembra-se disso, porque a olhou bem da cabeça aos pés. Não gosta de alugar apartamentos a mulheres não acompanhadas, a essa hora da manhã. Geralmente, fazem-no para “engatar" qualquer hóspede masculino e dão má fama ao motel.

- Mas alugou-lho ? - estranhou Mason.

- Sim, porque ela alegou ter guiado durante toda a noite e estar exausta, necessitando descansar umas horas, antes de prosseguir viagem. Disse ir para Hollywood e querer dormir umas três horas. Pagou a diária completa, como se só partisse no dia seguinte.

- Quanto tempo é que permaneceu nesse apartamento, Paul?

- Aí é que está o busílis, Mason. Nem sequer desfez a cama. Esta não apresentava o menor vestígio de ela se ter deitado nela, nem sequer sobre a colcha, para repousar uns minutos. Pagou a conta à uma da tarde e sumiu-se.

- Essa é boa! Em que ocupou ela o tempo?

- A criada notou que tomou um duche e se enxugou a uma das toalhas turcas de banho. Desapareceu, deixando a chave do lado de fora da porta. Nem levou malas para o quarto.

- E a criada está certa de que ela esteve no apartamento de Evelyn Bagby, Paul ?

- Não tem a menor dúvida. Foi positiva nesse ponto.

- Mas, Paul - estranhou Mason -, a essa hora, as jóias não tinham sido ainda roubadas, pois não?

- Pois não. Isso é o esquisito da história. Se as jóias às onze e meia não tinham sido roubadas e vinham ainda a caminho, não pode ter sido ela quem colocou o bracelete entre as roupas de Evelyn Bagby. As jóias vinham, nessa altura, a caminho, em plena estrada.

- Onde estava Evelyn, a essa hora ?

- Devia estar na sala de refeições, a tomar o pequeno-almoço. Levantou-se tarde e avisara a portaria do motel de que não queria ser acordada.

Após uns segundos de meditação, Mason indicou:

- Arranja umas fotografias de Irene Keith, Paul. Vê se a criada consegue identificar essa mulher como sendo Irene Keith. Se o conseguir, temos uma bela pista.

- Mas a tipa estava de óculos escuros.

- Bem sei. Tente identificá-la, excluindo os óculos.

- Okay - anuiu Drake. - Vou trabalhar a coisa sob esse ângulo.

Quando desligou, Mason resumiu a Della a conversa que mantivera com o detective. Depois, pediu:

- Ligue-me para Miss Bagby, Della.

- Quer falar com ela pessoalmente ?

- Não. Diga-lhe apenas que, provavelmente, Irene Keith irá procurá-la, para convencê-la a aceitar uma compensação monetária qualquer. Advirta-a de que não deverá aceitar coisa nenhuma. Que em qualquer circunstância, seja ela qual for, deve responder-lhe que eu sou o seu advogado e que só eu estou encarregado de chegar a um acordo. Que não fale a respeito de coisa alguma. Deve atirar tudo para cima dos meus ombros.

- Okay, Chefe - aquiesceu Della. - Mais alguma coisa?

- Sim. Por favor, contacte com Frank Neely, em Biverside. Diga-lhe que estamos a trabalhar numa pista ainda fresca e inesperada.

Della Street saiu do gabinete, para fazer os telefonemas noutro gabinete, a fim de permitir que Mason continuasse a trabalhar nos seus papéis mas voltou de seguida, anunciando:

- Acabo de falar com Joe Padena. Evelyn não está no restaurante.

- Não ? - estranhou Mason.

- Padena disse que ela trabalhou, do meio-dia às três, e que torna a pegar, das oito à uma da manhã. O Chefe deu-lhe cem dólares. Eis o resultado. Deve ter ido comprar vestidos novos.

- Elementar! - exclamou Mason, sorrindo.

- Padena deu-me ainda outra informação - prosseguiu Della. - Perguntei-lhe se alguém procurara ou telefonara a Evelyn. Joe respondeu-me que, efectivamente, um homem que declarou chamar-se S.M. desejava falar com ela, insistindo para que Joe não se esquecesse de lhe dar esse recado.

- S. M. ? - repetiu Mason.

- Sim. Só essas duas iniciais - Pode ser Steve Merrill - admitiu o advogado. - Como diabo conseguiu ele descobrir o paradeiro de Evelyn ?

- Talvez ela mesma lhe tenha telefonado.

- É possível. Esse telefonema deve referir-se à indemnização. Ora, se conseguirmos identificar a estranha hóspede, como sendo Irene Keith, teremos um pretexto para arrancar-lhe vinte mil dólares, em vez de cem.

- Deixo alguma mensagem a Joe Padena, para Evelny Bagby?

- Ela vai, decerto, contactar primeiro com o seu S.M. - disse Mason, consultando o relógio de pulso.

- Nesse caso que fazemos. '

Tomando súbita decisão, o advogado indicou:

- Escute, Della. Pegue no meu carro e vá até lá. Siga pelo caminho mais curto. Logo que Evelyn entre no restaurante, dê-lhe a minha mensagem. Transmita-a, antes que Padena lhe fale na de S. M. Telefone-me, mal tenha conseguido falar com ela. Encontrar-nos-emos depois, para jantar em Hollywood..., no caso de você estar livre.

- Estou sempre livre para jantar e tenho um magnífico apetite - disse Della. - Vou meter-me a caminho. Provavelmente, telefonar-lhe-ei dentro de uma hora.

Vestiu o casaco, pôs o chapéu e ia sair, quando levou, a mão à testa e exclamou:

- Oh, céus! Esqueci-me de telefonar a Frank Neely.

- Gertie pode fazer isso por si. Ponha-se a andar, querida amiga - comandou Mason.

Depois de Della Street sair e de Gertie ter conseguido a ligação para Riverside, Mason informou o jovem advogado de que tinha surgido uma nova pista, deveras interessante, e não seria aconselhável discutir qualquer indemnização, antes de averiguar-se aonde aquela os levaria.

- Okay - concordou Neely, rindo. - Deixo tudo em suas mãos, Mr. Mason. Se alguém começar a fazer-me perguntas, nem sequer lhes respondo que horas são. Continuamos associados, por mera cortesia.

- De maneira nenhuma - contrariou Mason. - Você vai continuar com este caso e receberá honorários que o recompensem, da maneira como defendeu Miss Bagby.

- Acha que o caso se afigura agora prometedor?

- Ainda é difícil afirmá-lo. Depende da pista que surgiu. Caso consigamos obter provas de uma actual hipótese, a indemnização que Miss Bagby deverá receber pode vir a ser muito apreciável.

-. Ainda bem. A moça está muito precisada de dinheiro. Estou sempre ao seu dispor, Mr. Mason - afirmou Neely.

Depois de desligar, o advogado ficou a meditar na informação que Drake lhe transmitira. Não tinha contudo acabado de fumar um cigarro, quando Gertie bateu à porta, depois de entrar no gabinete particular de Mason, anunciou:

- Miss Irene Keith está na sala de espera. Diz que pretende falar consigo acerca de um assunto que só poderá ser tratado pessoalmente.

- Veio sozinha? - indagou Mason.

- Sim.

- Mande-a entrar - decidiu Mason, esmagando a ponta do cigarro no cinzeiro. - Já agora, Gertie...

- Sim, Mr. Mason ?

- Se, dentro de minutos, aparecer por aí um tal Mervyn Aldrich, com intenções de encontrar-se com Miss Keith, diga-lhe que estou em conferência e que não posso ser interrompido.

Gertie acenou com a cabeça, compreensivamente.

- Dirá o mesmo a qualquer outra pessoa que venha cá meter o nariz, percebeu? Não quero ser perturbado durante essa conferência e escusa de dizer quem é que está comigo aqui dentro.

Gertie sorriu e saiu, diligente.

Notava-se uma fria e calma eficiência, na maneira como Irene entrou no gabinete, indicando que estudara cuidadosamente o seu plano de campanha.

Avançou para Mason, estendeu-lhe a mão e declarou com tranquila seriedade:

- Olá, Mr. Mason. Lamento imenso o que se passou, há pedaço.

Mason ergueu as sobrancelhas interrogativamente.

- Acerca de Mervyn..., de Mr. Aldrich - precisou ela.

- Que houve com ele ?

- Bem... refiro-me ao modo como se expressou, ao seu ponto de vista completamente desumano, observando o problema sob um ângulo estritamente económico.

- Tenha a bondade de sentar-se - convidou Mason.

-Desejo fazer qualquer coisa por essa pobre rapariga - prosseguiu Irene, ainda de pé.

- Penso - observou Mason, olhando-lhe para os sapatos de pele de crocodilo -, que seria melhor mandar-me cá o seu advogado, Miss Keith.

Irene sentou-se no grande maple fronteiro, cruzou as longas e bonitas pernas, exibindo um panorama mais vasto do que seria considerado conveniente, e sorriu.

- Porquê ? Está com medo de mim, Mr. Mason ?

- Não, mas a situação pode ser bem mais complicada do que me pareceu à primeira vista. Um exame ulterior do caso leva-me a insistir na presença de um advogado.

Franzindo a testa, Irene sondou:

- Porquê? Tenho sempre tratado dos meus assuntos sozinha e quero continuar a fazê-lo sem envolver neles terceiras pessoas. Só procuro a assistência de um advogado, quando pressinto estar envolvida em qualquer sarilho.

- Está envolvida num, agora mesmo. Devo adverti-la, Miss Keith, de que surgiram novas provas que poderão tornar-se-lhe desagradáveis, tornando-se até susceptíveis de constituírem causa para Miss Bagby processá-la por difamação caluniosa de carácter, acusação malévola, detenção indevida e prisão injusta.

- Meu Deus! Como o senhor está solene! - gracejou.

- É essa a minha intenção.

- E porque poderá ela processar-me?

- Por ter assinado uma acusação formal - esclareceu o advogado.

- Já tive ocasião de dizer-lhe, Mr. Mason, que o fiz a instâncias do Procurador do Distrito. Disse-me: assine aí. E eu assinei.

- Parece ignorar a lei referente a acusação imotivada.

- Conheço a lei - teimou Irene.

- Consultou um advogado?

- Certamente. Consultei o meu advogado acerca desse ponto. Mas penso que posso resolver o assunto, sem ter de gastar um dinheirão com ele.

- De facto, o dinheiro não é tudo - observou Mason.

- Bem sei.

- O seu advogado, que lhe disse, Miss Keith ? - inquiriu Mason.

- Quer saber, textualmente, o que me aconselhou? - perguntou Irene, rindo.

- Que foi?

- Disse-me que mandasse essa Bagby para o diabo.

- E mesmo assim, a senhora veio procurar-me?

- Como vê.

- Para quê ?

-'Para fazer um contrato consigo.

- Pode ser mais difícil do que pensa - advertiu Mason.

- Deixe-se disso, Mr. Mason. Estou na disposição de dar a essa rapariga mil dólares, para compensá-la da maçada que lhe causei. Decidi-o, em plena consciência. Aqui está um cheque, no valor dessa importância. Entrego-lhe, como advogado de Miss Evelyn Bagby, a titulo de compensação por uma queixa indevida, quanto ao roubo das jóias. Em contrapartida, ela não poderá, a partir desta data, apresentar qualquer outra reclamação, por prejuízos sofridos.

- Foi o seu advogado que a aconselhou a agir dessa maneira ?

- Sim - confessou ela.

- Pois bem, Miss Keith - replicou Mason. - Aconselho-a a dizer ao seu advogado que venha aqui, pessoalmente, mandar Miss Bagby ao diabo.

- Não compreendo! Estou aqui a oferecer mil dólares a essa moça, numa bandeja de prata. Não quer aceitá-los? Vai recusar este cheque, sem sequer consultar a sua cliente ?

- Poderei transmitir-lhe essa oferta e aconselhá-la a que a recuse.

- Porquê ? - espantou-se Irene.

- Onde se achava, Miss Keith, no dia do roubo das jóias, às onze e meia da manhã?

- Não vejo que tenha isso a ver com o caso, mas posso responder-lhe facilmente. Estava com Helene Chaney, num salão de beleza, a abonecarmo-nos para o nosso encontro em Corona. Se quiser, pode obter a confirmação do que lhe digo, junto dos cabeleireiros e manicuras que nos atenderam. Depois, fomos almoçar e... Bem, o senhor referiu-se apenas ao que fizemos, na parte da manhã?

- Sim.

- Pois bem, já lhe dei a informação que pediu - respondeu calmamente. - Vai agora aceitar esses mil dólares ?

- Provavelmente, não - retorquiu Mason.

- Um momento. Não percebo que espécie de poker está a tentar jogar comigo, mas desde já lhe digo que é pegar ou largar. Vou conceder-lhe precisamente cinco horas para aceitar ou recusar. Estarei em minha casa, até as dez e meia desta noite. Se não me telefonar até essa hora, depreenderei que aceitou a minha oferta. Caso contrário, telefonarei ao Banco, dando ordem para suspensão do pagamento desse cheque. O meu número de telefone é: Halverstead, 6-7801.

O telefone não registado de Mason tocou nesse mesmo instante. Só Della Street e Paul Drake possuíam o número desse telefone.

- Se me dá licença - pediu Mason, levantando o auscultador.

Ouviu, no extremo do fio, a voz de Della Street.

- Olá, Chefe. Podemos falar?

- Você pode.

- E o Chefe?

- Não.

- Alguém relacionado com o caso Bagby?

- Sim.

- Bem, então escute. Estou aqui na Crowncrest Tavern. Evelyn já regressou das suas compras. Só tive ocasião de trocar algumas palavras com ela. A mensagem de S. M. provinha realmente de Steve Merrill. Evelyn descobriu outras revistas com fotografias dele. Está certa de que é o mesmo patife que se intitulava Stauton Vester Gladden e que lhe levou a “massa”. Portanto, Evelyn telefonou-lhe. Não o encontrou, mas uma mulher atendeu o telefone e prometeu transmitir-lhe a mensagem.

- Que mensagem ? - inquiriu Mason.

- Evelyn deu-lhe o nome e morada e disse-lhe que comunicasse a Mr. Merrill, ou Mr. Gladden, como ele preferisse, que poderia telefonar-lhe até às cinco horas de hoje.

- Só isso?

- Sim, mas resultou. Foi realmente Merrill quem lhe telefonou para o restaurante, quando Evelyn saíra. Foi a que Joe Padena recebeu e nos transmitiu.

- Não houve, portanto, outros contactos?

- Não.

- Nesse caso, venha até cá para discutirmos esse assunto.

- Quer que vá já para aí? Não quer, primeiro, falar com ela ?

- Não.

Mason pousou o auscultador e virou-se para Irene, esperando que esta tivesse mais qualquer coisa a acrescentar.

Subitamente, Irene ergueu-se, estendeu-lhe a mão e declarou:

- Creio que esteve apenas a fazer bluff comigo, Mr. Mason. Gostei imenso de si, no nosso primeiro encontro. Agora..., já não estou tão certa.

- Ora aí tem as desvantagens de querer tratar dos seus assuntos pessoalmente - retorquiu Mason. - Se tivesse permitido que o seu advogado viesse entrevistar-me, não sofreria essa desilusão.

Irene Keith abriu a porta, atirou-lhe um beijo de longe, e, despediu-se, trocista:

- Até à vista, advogado.

- Boa noite - correspondeu este.

A porta fechou-se lentamente. Lá fora, ouviram-se os saltos altos dos sapatos de crocodilo, afastando-se ao longo do corredor.

 

Naquela altura do ano, escurecia mais cedo e Perry Mason, enquanto esperava por Della Street, ficou junto à janela do gabinete, meditativo e olhando para o tráfego que inundava a rua de luzes brancas e vermelhas.

A dado momento, foi até à sala de espera e espreitou para o gabinete da recepção, na intenção de ver se Gertie ainda se encontrava junto dos telefones. Verificou então que esta já tinha saído. Estava tudo às escuras e a caixa de comutação telefónica tinha a cavilha do telefone do advogado ligada directamente para o seu gabinete, como era costume. Só então se recordou de Gertie ter-se despedido dele, antes de retirar-se.

Deu uma volta pela biblioeteca do escritório e tornou a parar em frente da janela. Depois, virou-se para a secretária de mogno polido e fixou o olhar sobre o cheque de mil dólares que Irene Keith aí deixara.

De quando em quando, impacientemente, consultava o relógio de pulso, aguardando o regresso de Della e pensando que o tempo continuava a correr e que ele tinha de decidir, em breve, se deveria ou não aceitar aquele cheque, destinado a Miss Bagby.

Já passava das seis, quando Della entrou no escritório.

- Meu Deus, Chefe! Que tráfico diabólico! Estava a ver que nunca mais cá chegava!

- Receei que lhe tivesse sucedido qualquer coisa, Della. Como está a nossa cliente?

- Nervosa, com essa história de Steve Merrill. Aposto que está necessitada de fundos e um pagamento parcial da dívida de Merrill cairia como sopas no mel.

- Irene Keith esteve cá novamente - informou Mason. -  Deixou um cheque de mil dólares para Evelyn. E trazia sapatos de pele de crocodilo.

- Oh, oh! - exclamou Della.

- O cheque está aí, em cima da secretária. Tenho, porém, de telefonar-lhe até às dez e meia desta noite, para dizer-lhe se aceito ou rejeito o pagamento que nos propõe. Deixou-nos o seu número de telefone e declarou ficar à espera de uma resposta nossa, até aquela hora.

- É simpático da parte dela, não, Chefe?

- Simpático, uma figa! - resmungou Mason. - Presumo que mil dólares vão ser uma tentação para Evelyn Bagby. Não sei como poderei aconselhá-la a recusar mil dólares. Dir-me-á, obviamente, que mais vale um pássaro na mão do que dois a voar. Se a convenço a rejeitar tal oferta e, depois, não consigo arranjar-lhe uma compensação mais vantajosa, fico na posição moral de lhe ter de pagar mil dólares, da minha própria algibeira.

-'Isso significa que tem de falar com Evelyn, antes de dar uma resposta a Miss Keith?

- Acho que sim.

- Quer que lhe telefone ?

- Ainda não, Della. Preciso de pensar... Que ruído é esse? Não parece a campainha da entrada.

- Pois não, Chefe. Quando entrei, notei que o telefone exterior estava comutado directamente para aqui. Como já cá estou, tornei a desligá-lo.

- Tem razão Della. Como o vi ligado para o meu gabinete, não percebi tratar-se do som de chamada do PBX.

A bela secretária correu a atender e Mason ouviu-a saudar:

- Boa noite.

Mas o resto das palavras soaram dispersas e confusas. Segundos depois, Della voltou ao gabinete, para informar:

- É Evelyn Bagby. Está excitadíssima e diz que tem de falar consigo, urgentemente.

- Por favor, querida amiga, ligue-me essa chamada para aqui, mas ponha-se à escuta no PBX e estenografe quanto dissermos.

- Sim, Chefe - disse Della, tornando a correr para a saleta da recepção.

Quando a ligação foi estabelecida, o advogado ouviu uma voz ofegante gritar-lhe:

- É Mr. Mason? Ainda bem que o encontro! Aconteceu uma coisa... Não sei que fazer.

- Que sucedeu ?

- Fui às compras - relatou Evelyn -, e quando voltei coloquei-as em cima da cama, pois queria tomar um duche, antes de vesti-las para ir trabalhar. Quando voltei ao quarto, para arrumar os vestidos que adquirira, numa gaveta do armário, encontrei uma coisa que me arrepiou.

- Não me diga que descobriu outra jóia roubada! - adiantou Mason, cepticamente.

- Não, Mr. Mason, pior do que isso.

- Que foi, então ?

- Uma arma.

- Uma arma?

- Sim. :

- Onde estava ela ?

- Na gaveta onde guardo a minha roupa, debaixo de uma combinação de nylon, portanto, bem visível, à transparência. Dei logo por ela mal abri a gaveta.

- Não há hipótese de essa arma já lá estar, quando você pôs as suas coisas na gaveta?

- Nem por sombras, Mr. Mason! Quem a lá pôs, colocou-a entre as calcinhas e as combinações, praticamente à superfície, como coisa mal escondida, para ser facilmente descoberta.

- Onde está agora?

- Meti-a na minha bolsa. Tenho-a comigo. Estou a falar-lhe da cabina telefónica do andar de cima.

- Dê-lhe uma vista de olhos, Miss Bagby - aconselhou Mason, - e descreva-ma.

.- Já a examinei, Mr Mason - disse Evelyn, excitadamente.- É um revólver Oolt. É muito leve. Quase não pesa nada. Está completamente carregado. É de calibre 38, de cano muito curto, do género que os detectives da polícia usam. Tem tambor para seis cartuchos.

- Sabe se foi disparado há pouco tempo? Veja se cheira a pólvora.

- Já o fiz. Apenas cheira a óleo.

Após uma breve hesitação, Mason inquiriu: . - Tem aí o seu carro? Pode dar cá uma saltada e trazer-me isso?

- Receio não conseguir ir ao seu escritório e estar aqui, de volta, a tempo de entrar de serviço, Mr. Mason. Se quiser, posso deixar a arma em qualquer lado e...

- Nada disso - contrariou o advogado. - Tome atenção, que isto* é muito importante. Deixe lá o serviço e saia daí imediatamente. Salte para o carro e venha até Hollywood. No 6538 da Pemberton Drive há um restaurante chamado Joshua Tree Café. Joe Padena pode explicar-lhe como chegar lá mais depressa. Pergunte aí por Mike, que é o chefe de mesas. Ele conhece-me e indicar-lhe-á um compartimento onde você vai esperar por Della e por mim. Chegaremos pouco depois de si. Vamos partir imediatamente.

- Muito bem - respondeu Evelyn. - Mais alguma coisa?

- Sim - acrescentou Mason. - Antes de sair, dê uma busca cuidadosa ao seu quarto e assegure-se de que não plantaram mais qualquer coisa, durante a sua ausência.

Mal Mason pousou o auscultador, Della apareceu à porta, inquirindo:

- Quer que telefone a Mike, para o Joshua Tree Café?

- Por favor, faça isso Della - confirmou Mason, pegando no cheque de mil dólares que estava ainda sobre a secretária. Colocou-o na carteira, pegou no chapéu e no de Della Street, que o colocara, e inquiriu:

- Que tal está o tempo ?

- De chuva - informou Della. - Ameaça cair uma carga de água.

Mason foi ao armário e tirou dos cabides as respectivas gabardinas.

- Muito bem, Della, toca a andar - comandou. - "Vamos ter com Evelyn, ao Joshua Tree Café.

- Ela vai lá chegar antes de nós - observou Della.

- É natural, pois está mais perto.

- Que pensa da arma, Chefe ?

- Da primeira vez que telefonou a Merrill, apareceu-lhe uma jóia, entre a roupa. Da segunda vez, surgiu-lhe uma arma... e só esteve fora do quarto durante um pedaço da tarde.

- Céus! - exclamou Della. - Não será demasiado cinismo da sua parte, Chefe?

- Um advogado tem de ser tão cínico, como é provável que o seja o espírito de um criminoso.

- Mas ela disse que a arma não fora disparada.

- Isso foi o que ela disse.

- Quer dizer que lhe mentiu ?

- Pode ter mentido e, com o receio de ser inculpada em qualquer coisa, pode tê-la limpo; ou pode, quem a lá pôs, ter-se dado a esse trabalho. O facto de cheirar só óleo, não quer dizer que não tenha sido utilizada, horas antes. Uma boa limpeza elimina o odor de pólvora.

- Não pensa que ela a tenha utilizado e, depois, limpo?

- Agora é você que está a ser cínica, Della.

- Uma secretária de advogado-criminalogista tem de ser tão cínica, como os clientes do seu patrão - ripostou Della, sorrindo. .

- Sim - retribuiu Mason, com uma pequena gargalhada. -  é também uma hipótese: a pior!

Desceram no ascensor, em silêncio, e foi também em silêncio que Mason começou a conduzir o carro através das ruas, agora já molhadas por uma chuva incipiente. Pouco tempo depois, o porteiro do Joshua Tree Café manifestava a sua alegria em vê-los.

~- Boa noite, Miss Street. Boa noite, Mr. Mason. Prazer em tê-los por cá. Parece que vai chover a sério, esta noite - previu.

- Não há dúvida.

-  Vêm jantar?

- Exactamente.

- Terão o carro novamente à porta, quando saírem.

Mason e Della entraram no restaurante e Mike apressou-se a recebê-los.

- Está aí uma jovem à nossa espera, Mike ? - indagou Mason.

Não, que eu saiba - respondeu o chefe de mesas.

- Diabos! - exclamou o advogado. - Já devia cá star... Ah, aí vem ela.

Efectivamente, Evelyn Bagby acabava de aparecer à entrada do restaurante. Della Street correu para a ruiva.

Como Evelyn se mostrasse extremamente nervosa, sondou:

Encontrou mais alguma coisa?

A jovem abanou a cabeça, ofegante, como se lhe custasse ainda responder.

- Pensámos que chegasse antes de nós.

- É que... passei por uma aventura - começou a explicar Evelyn, calando-se bruscamente.

Della conduziu a ruiva para o pé de Mason e Mike escoltou-os até a uma mesa de compartimento reservado, a um canto da sala.

Enquanto Evelyn recuperava o fôlego, Mason encomendou:

- Della e eu tomamos cocktails de Bacardi. E você?

- Gosto disso. Posso beber um duplo?

- Nesse caso, três duplos. Vai chover a potes e isso manter-nos-á mais quentes.

- Por mim, faço questão - disse Della, sorrindo, mas sem se lhe desvanecer uma certa preocupação no rosto, ao observar a da ruiva.

- Que lhe aconteceu ? - inquiriu Mason, notando-lhe essa mesma expressão.

- Estou toda a tremer - respondeu Evelyn. - Pareço cheia de energia, mas receio ir-me abaixo, de um momento para o outro. Deixe-me beber primeiro o cocktail.

- Podemos não ter muito tempo - contrariou Mason, lembrando-se das horas que condicionavam a validade do cheque. - Conte já.

- Fui atacada.

- E serviu-se da arma?

- Não tive outro remédio.

Seguiu-se uma pausa, durante a qual a jovem procurava recompor-se.

- Nunca tive um susto tão grande, em toda a minha vida - acabou por dizer. - Foi uma terrível experiência por que passei. Dir-se-ia que tentaram obrigar-me a parar, mas estou certa de que quiseram matar-me.

- Devagar, Evelyn - pediu Mason. - "Viu quem foi que a atacou ?

A ruiva acenou com a cabeça afirmativamente.

- Quem era ?

- Não posso dizer-lho. Tinha o rosto coberto. Tentou lançar-me fora da estrada, numa zona em que há um precipício... De resto, quase toda a estrada da montanha é assim.

- Porque levou tanto tempo a chegar aqui?

- Estive a revistar o quarto, cuidadosamente, como me recomendou.

- Encontrou mais alguma coisa?

- Nada.

-E depois?

- Meti-me no meu “ferro-velho” e... Deixe-me acalmar, Mr. Mason por favor.

Della e o advogado trocaram olhares, no momento em que um criado trazia os cocktails.

- Gosta de bifes de lombo ?

- Não posso comer aqui. Tenho de ir trabalhar e...

- Não vai trabalhar hoje - decidiu Mason. - Pelo menos, tão cedo. E não pode estar com o estômago vazio. É capaz de comer um bife ?

- Sou sempre capaz de comer um bife - respondeu ela, tentando sorrir.

- Como gosta deles ?

- Meio passados.

Virando-se para o criado, o advogado encomendou: -'Três meio passados, com batatinhas no forno e cebolinhas francesas fritas, montes de manteiga e paprika; um vinho tipo Chianti, tinto. Depois, café. O criado anotou a encomenda e retirou-se.

- E depois? - interrogou Mason.

Com as mãos trementes, Evelyn tirou a arma da bolsa e passou-a, ocultamente, a Mason, por debaixo da mesa.

- Oh, oh! - exclamou o advogado, sopesando-a.

- Que é? - interessou-se Della.

- É um desses lindos brinquedos de alumínio - respondeu Mason. - É uma arma moderna, de durália, conhecida por Colt Cobra. Quer acreditem quer não, pesa apenas 420 gramas, é um brinquedo deveras mortífero, com resistência suficiente para disparar balas de alta velocidade. É um revólver de sonho, muito portátil e, ultimamente, preferido por profissionais do crime. Sabe se tem número de registo ?

- Não verifiquei isso.

Mason virou a arma, de maneira que a luz lhe incidisse e indicou a Della.

- Tome nota deste número: 17474 - LW. Depois, analisando melhor a arma, acrescentou:

- Esta gracinha tem pouco ou nenhum uso. Foi comprada ainda muito recentemente... Oiça, Della...

- Sim, Chefe?

- Dê um salto ao telefone e veja se consegue apanhar Paul Drake, antes de ele se escapar para jantar. Dê-lhe o número deste revólver e diga-lhe para mandar um dos seus detectives procurar saber, imediatamente, em nome de quem foi registada, no acto de compra. Pode ter sido roubado, mas é sempre bom saber de onde proveio.

- “Imediatamente” não vai ser fácil - lembrou Della. - Os registos de armas devem estar fechados a esta hora da noite.

- Há uma maneira de saber isso, em qualquer altura Os registos das armas são feitos em triplicado, seguindo uma das cópias para o Departamento de Homicídios. Têm lá um arquivo especial e Paul Drake conhece alguns elementos do pessoal. Se a arma foi adquirida neste Estado, tem ficha no arquivo geral. Se não..., pode levar mais dez horas a descobrir.

Mason fez rodar o tambor e declarou:

- Tem todos os alvéolos com cartuchos, mas dois deles foram deflagrados. Disparou duas vezes?

- Sim - respondeu Evelyn cujos dedos ainda tremiam ao levar à boca a taça do cocktail.

- Quer contar-me como a coisa se passou ?

A jovem tossiu ao dar um golo na bebida.

- Ficará a pensar mal de mim, se lhe pedir para beber outro? - sondou.

- Não ficaria muito indignado, mas acho que pode ser mau para si.

- Porquê?

- Quero ouvir toda a história lucidamente, antes que você esteja... “menos sóbria”.

- Não estou com grande fome, mas confesso precisar de mais um estimulante.

- Despeje o saco e depois veremos se não será imprudente meter-lhe mais cocktails no papo. Que aconteceu ?

- Levei mais de cinco minutos a revistar o quarto, depois de ter recebido o seu telefonema. Depois...

Neste momento, Della Street regressava da cabina telefónica.

- Apanhou Paul? - inquiriu Mason.

-'Sim. Dei-lhe o número da arma e já pôs um dos seus homens a tratar de identificá-la. É amigo do funcionário que está hoje de serviço.

-Teve qualquer informação acerca do caso de River-side?

- Aparentemente, não.

Mason virou-se para Evelyn, consultou o relógio de pulso e declarou:

- Tive hoje uma oferta de Miss Keith, como compensação pelo prejuízo moral e material que lhe causou. Entregou-me um cheque de mil dólares, livre de impostos.

- Quanto? - espantou-se a ruiva. - Mil... dólares?

- Sim.

- Quais são os seus honorários, Mr. Mason?

- Neste caso, os meus são de cinquenta dólares, mas deve pensar em pagar duzentos a Frank Neely, pela sua defesa, em tribunal.

- Não me parece justo, Mr. Mason, cobrar tão pouco. Foi o senhor, afinal de contas, que fez todo o trabalho e...

Sem retorquir, Mason tirou o cheque da algibeira.

- Nem sonha o que o dinheiro representa para mim, neste momento - disse a ruiva.

- Ainda os não tem em seu poder - observou Mason. - Veja o que Irene Keith escreveu no verso.

Evelyn leu o texto do endosso e perguntou:

- Que quer isto dizer?

- Que não poderá intentar qualquer acção contra Miss Keith, se receber esse pagamento.

- Mas posso processar Steve Merrill, não é verdade?

Mason confirmou com um aceno de cabeça.

- Nesse caso, aceito a oferta. Sei que Merrill ficou apavorado e que vai entregar-me parte do dinheiro que me deve. Não se arrisca a que venha a público a maneira como me extorquiu as minhas economias e o que herdei de meus pais. Desse modo...

- Não creio que lhe convenha aceitar esse cheque, Evelyn - cortou Mason.

- Porque não ?

- Creio que pode receber muito mais do que isso.

- Este dinheiro representa muito para mim, nesta altura. Não vou deixá-lo escapar-me por entre os dedos.

Mason tornou a guardar o cheque na carteira.

- Não quer que o assine ? - indagou a ruiva.

- Não precisa endossar-mo - declarou Mason. - Como seu advogado, posso recebê-lo por si, desde que o endosse eu próprio. Noutras circunstâncias, preferiria que você o assinasse comigo, mas... não quero que o faça, até alguns minutos antes das dez e meia desta noite. Quero aguardar até ao último momento.

- Porquê?

- Porque pode acontecer qualquer coisa que inverta as posições em que nos achamos - retorquiu Mason, fitando Evelyn perscrutadoramente.

- Que pode alterar as nossas posições, neste caso ? - estranhou a jovem.

Mason, mudando subitamente de semblante riu-se e respondeu:

- Muita coisa pode mudar, de um momento para outro. Conte-me lá agora esse assalto de que foi vítima.

- Como lhe disse, meti-me no meu calhambeque e comecei a descer a estrada de montanha, tão depressa quanto aquela chocolateira mo permitia. Rezava para que a reparação do semieixo tivesse sido feita conscienciosamente e não me falhassem os travões. Só na curva seguinte ao entroncamento de Mulholland Drive é que dei por ele.

- Por ele quem ?

Pelo automóvel que me seguia, cada vez mais próximo, com as luzes dos máximos, em cima do meu retrovisor, o que me encadeava terrivelmente, em especial no momento em que ao entrar numa curva, mais precisamos de vê-la. Por essa razão tive de vir ainda mais devagar e acabei por encostar-me totalmente à berma, de forma a dar-lhe passagem.

- E o carro ultrapassou-a ?

- Não. Pelo contrário, pôs-se a rodar ao meu lado. tentando forçar-me a despenhar-me no precipício. Apertava cada vez mais.

- Você que fez, então?

- Compreendi que, se não me escapasse para diante, ele acabava por empurrar-me da berma para fora. Por isso pus o pé no acelerador e carreguei com quanta força tinha. Era um pedaço de recta, embora curta, mas isso surpreendeu-o, deixando-o ficar, por momentos, para trás. Foi então que olhei para ele, mais atentamente, num momento em que os seus faróis não incidiam sobre o meu retrovisor. Tive a confirmação do que já vira, de relance, quando estivera quase ao meu lado. Nessa altura não pudera olhar para ele atentamente, pois era uma zona de curvas e contracurvas contínuas. Efectivamente o homem, ou lá o que era, tinha uma cara sem feições, extremamente branca, apenas com dois olhos negros.

“Só o percebi, quando tornou a aproximar-se de mim. Tinha uma espécie de saco branco, enfiado pela cabeça, com dois buracos abertos no sítio dos olhos. Fiquei aterrorizada. Compreendi que era mesmo um bandido que pretendia atirar-me pelo desfiladeiro abaixo. Foi então que me lembrei da arma que trazia comigo. Apavorada, receando guiar com uma só mão, consegui finalmente abrir a minha bolsa e tirar o revólver.

- Fez fogo com ele?

- Bem viu que disparei duas vezes. Peguei na arma com a mão esquerda, enquanto conduzia com a direita... Bem, num dos momentos em que o motor do carro dele já ia ao lado do meu assento, disparei...

- Sobre o seu perseguidor ?

- Era bom que o tivesse atingido, mas creio que a primeira bala se perdeu e a outra..., essa sim, pareceu-me ter batido no seu automóvel, pois ouvi distintamente o ruido de um impacto metálico. Ia jurar que lhe acertei no carro.

- Bem - sugeriu Mason -, não diga a ninguém que “era bom que o tivesse atingido”. Podia não ser bom para si.

- Ora, é uma forma de expressão^ Eu queria simplesmente assustá-lo, de maneira que deixasse de perseguir- me.

- Conseguiu-o ?

- Consegui. A luz dos seus faróis não tornou a aparecer na curva seguinte.

- Estupendo. Quer dizer que o assustou... Ou talvez não seja assim tão estupendo... - reconsiderou Mason.

- Porquê ? - admirou-se Evelyn.

- Analisemos toda a história, desde o seu início. Você encontra uma arma que lhe plantaram no quarto e que não fora ainda disparada. Se agora vierem perguntar-lhe por que razão disparou esses dois tiros com ela, mesmo que conte a sua versão, não poderá confirmá-la. Suponha, porém, que alguém cometeu um assassínio com o mesmo revólver, e o limpou convenientemente e recarregou, antes de ir pô-lo entre as suas roupas. A polícia poderá facilmente atribuir-lhe esse crime, visto você não poder justificar, nem provar, a cena da perseguição de estrada.

Erguendo-se lestamente, o advogado declarou:

- Acho que é melhor notificar, desde já, o xerife do condado desta ocorrência. Vou explicar-lhe que você foi atacada na estrada e que disparou dois tiros em legítima defesa, para o ar, tentando amedrontar o assaltante. Por favor, Della, deixe-me passar. Quero fazer pessoalmente esse telefonema.

Della afastou as pernas e Mason saiu do compartimento reservado.

- Daqui fala Perry Mason, advogado. Estou, neste momento no Joshua Tree Café. Tenho junto de mim uma cliente que acaba de passar por uma terrível aventura, nas montanhas da encosta de Hollywood. Um homem mascarado tentou assaltá-la. Procurou impeli-la a parar ou a galgar o parapeito de protecção que separa a berma da estrada do precipício. Felizmente ela trazia um revólver consigo, disparou um par de tiros e conseguiu que o homem se assustasse. Quer tomar conta da ocorrência?

- 'tá visto que quero! - gritou o interlocutor, do outro lado da linha. - Vou mandar-lhe um par de detectives, para falarem convosco, dentro de dez ou quinze minutos. Tem havido uma data de sarilhos desse género nas estradas de montanha e também uma data de ataques de maníacos-sexuais. Temos evitado dar-lhes publicidade, por consideração pela identidade das vítimas que têm passado os piores vexames e até sofrido afrontosas violentações. Esse tipo é capaz de ser um que temos andado a procurar ultimamente... Disse que a sua cliente disparou dois tiros ?

- Sim, dois tiros para alarmá-lo... Ao calhar... - acrescentou Mason.

- Até dava dois meses de salário para deitar as unhas a esse bandido! - confessou o homem do xerifado. - Onde podemos dar consigo, Mr. Mason ?

- No Joshua Tree Café - repetiu o advogado. - Basta perguntar ao criado. Somos conhecidos cá na casa.

- Okay. Vou mandar imediatamente alguém ao seu encontro. Estarão aí, dentro de quinze, vinte minutos, o mais tardar.

-Cá os espero - assegurou Mason.

Desligou e regressou à mesa. O criado estava nesse instante a servir o jantar.

Quando se afastou, Perry Mason declarou: - Vamos assentar na seguinte versão. Nada de se descaírem em contradições. Atenção: Evelyn Bagby transportava a arma consigo, a meu pedido. Conduzia o carro, por essa estrada de montanha, quando jâ era bastante escuro. Eu próprio lhe sugerira que trouxesse a arma, para o caso de ser assaltada. Tem havido vários casos de assaltos desse tipo, perpetrados por maníacos sexuais. Por enquanto, prefiro que pensem que fui eu quem lhe entregou essa arma. Notem que eu não digo que a aconselhei a vir armada. Sim, que trouxesse a arma consigo. É a pura verdade, embora eles possam pensar que a aconselhei a proteger-se contra um possível assalto.

- Os polícias vão interrogar-me - inquiriu Evelyn Bagby.

- Certamente que nada os impedirá de fazê-lo. É precisamente para isso que os convoquei aqui. Andam ansiosos por resolver o mistério dos constantes ataques nocturnos de estrada. Mas tudo quanto lhe perguntarão será matéria referente à identificação do carro e do seu condutor. Terá que descrevê-los o melhor que puder e indicar o local onde se efectuou o assalto.

- Meu Deus! Nada posso dizer-lhes acerca do automóvel. Só sei que era um carro fechado. Estava escuro e chovia.

- Pode descrever o homem ?

- Também não. Já lhe disse, Mr. Mason, que trazia uma espécie de saco branco enfiado pela cabeça. Creio que o tinha preso à cabeça, por meio de um elástico, género liga, ou lá o que era, na testa. Creio que tinha um sobretudo... Pareceu-me ver-lhe a gola levantada... E é tudo.

- Bem, conte Isso. Agora, ataquemos, nós, os nossos bifes.

- E quanto ao cheque?

- Vamos esperar até ao último minuto.

- Está bem, mas não os deixe passar. Esse dinheiro significa imenso para mim, nesta altura da minha vida.

- Okay - prometeu Mason. - e quanto a Stauton Vester Gladden, ou Steve Merrill?

- Creio que o assustei, mas duvido que tenha muito dinheiro à mão. Provavelmente, anda “teso” como sempre.

- É possível, mas como anda a fazer uma espécie de chantagem com Helene Chaney, é possível que arranje algum dinheiro por essa via. As notícias referem-se-lhe como sendo Steve V. Merrill. Espero que esse V. seja o mesmo Vester. Não lhe conhece o nome de família?

- Nada sei a seu respeito... Isto é, sei muito, mas é tudo falso. Tudo quanto me contou da sua vida estava relacionado com a sua posição em Hollywood e isso já eu sei que não passa de balelas.

- Bem, toca a jantar e deixemos para daqui a bocado as coisas desagradáveis - propôs Mason.

Durante alguns momentos comeram em silêncio. Evelyn Bagby mostrava-se nervosíssima e Della observava-a, pensativa. O advogado parecia só estar preocupado com o que comia.

Pouco depois, Mike aproximou-se com um indivíduo que mais parecia um funcionário de estatística do que um adjunto do xerife.

- Queira sentar-se junto de nós - convidou Mason, quando o homem se apresentou, como sendo Ferron. - Toma alguma coisa ?

- Não, obrigado. Estou aqui em serviço. Trata-se de um assalto, não é verdade?

- Exactamente. Sou Perry Mason. Tenho muito prazer em conhecê-lo. Esta senhora é Miss Della Street, minha secretária. Esta outra senhora, Miss Evelyn Bagby, é quem foi assaltada, esta noite. Tentaram atirá-la fora da estrada.

- Onde - inquiriu Ferron, sacando de um bloco-notas, da algibeira.

- Miss Bagby começou a trabalhar, há pouco tempo, na Crowncrest Tavern. Sabe onde é?

O detective confirmou com um movimento de queixo.

- Vinha a descer a estrada..., essa estrada que atalha caminho...

- Bem sei.

-... por ter menos trânsito e encurtar o percurso - prosseguiu Mason.

- A que horas ?

- Que horas eram, Evelyn ? - consultou Mason.

- Não sei ao certo. Não olhei para o relógio, mas creio que aquilo aconteceu há coisa de quarenta e cinco minutos.

- Que sucedeu ? - indagou Ferron, olhando directamente para ela.

Mason respondeu:

- Miss Bagby está ainda muito nervosa. Alguém fez o possível para lançá-la pela ribanceira abaixo e quase o conseguiu.

- Que foi que o impediu ?

- Miss Bagby disparou dois tiros - declarou Mason, firmemente.

- Dois tiros, de quê ?

- De uma arma que transportava consigo.

- Trazia uma arma? - inquiriu Ferron, dirigindo-se novamente à ruiva.

- Não costuma trazê-la habitualmente - respondeu Mason. - Fê-lo a meu pedido.

- Tem licença de porte de arma ? - sondou o detective.

- Por amor de Deus! - protestou o advogado. - Que é isso? Estamos a dar parte de um atentado criminoso, em que quase perdeu a vida, e o senhor está a colocar a vítima, ainda apavorada, na defensiva! Se assim é, cancele desde já a queixa. Se não estão interessados em descobrir que espécie de criminoso anda por aí à solta, a vitima recusa-se a prestar declarações, que só possam vir a incomodá-la.

- Tenho que informar o xerifado dos factos ocorridos - justificou-se Ferron. - Estava apenas a tentar obtê-los.

- Pois bem, ela trazia uma arma consigo. Fui eu quem a aconselhou a trazê-la. Pedi-lhe para fazê-lo, porque tinha uma razão especial para isso. Mas, como vítima de um assalto, é sobre esse assalto que está disposta a prestar declarações. Não, acerca da arma. Esse assunto é puramente secundário. Quer saber o que se passou na estrada, ou não?

- Certamente que quero saber tudo quanto se relacione com a ocorrência. Para isso aqui vim - disse Ferron. - E pode crer que não foi devagar. Vim a queimar os pneus pelo caminho. Estamos muito interessados em descobrir esta série de assaltos nas estradas de Hollywood. Gostaríamos de eliminar de uma vez para sempre, esse tipo de criminosos, geralmente, tarados-sexuais. Se disparou dois tiros, espero que tenha acertado no alvo.

- Oh, não - replicou ela. - Somente disparei para assustá-lo, de maneira a impedi-lo de continuar a empurrar-me para fora da estrada.

- Pode descrever-me o carro do seu assaltante ?

- Era um carro fechado - explicou a ruiva. - Pareceu-me de boa marca. Tinha uma pintura brilhante. Andava muito depressa, mas a luz dos seus faróis incidiam constantemente no meu espelho-retrovisor, ofuscando-me a vista, e as curvas da estrada não me permitiam olhar para trás, pela janela. Peguei na arma com a mão esquerda e disparei duas vezes, quando ele estava quase ao meu lado. Antes disso, pensei que quisesse ultrapassar-me e abrandei, encostando-me à berma. Foi então que percebi a intenção do homem. Tornei a acelerar e, quando o motor do seu carro se alinhava com o meu assento, tirei a arma da bolsa de mão e fiz fogo.

- Acertou-lhe ?

- Devo ter falhado uma das balas, mas a outra creio que bateu no metal do automóvel. O som que ouvi deu-me essa impressão.

- Isso já é alguma coisa - comentou Ferron. - Deve haver um buraco de bala em qualquer parte desse carro. E quanto ao condutor ?

- Seria impossível identificá-lo - prosseguiu Evelyn. - Tinha uma espécie de saco enfiado na cabeça, preso com qualquer coisa semelhante a uma liga de borracha. Era um saco branco, com dois buracos abertos para os olhos. Nem sonha como fiquei aterrorizada.

- Calculo - disse o homem. - Que fez à arma ?

- Tenho-a aqui, a meu lado, na minha bolsa.

- É uma maçada! - comentou novamente Ferron. - Andamos à procura de uns tipos que obrigam senhoras a parar nas estradas para abusarem delas... e ninguém consegue descrevê-los convenientemente.

- Costumam usar sacos, na cabeça ?

- Não. Ou têm barbas postiças e óculos, ou usam uma dessas máscaras de carnaval. Portanto, não disparou directamente contra o assaltante. Apenas tentou assustá-lo e conseguiu atingir-lhe o carro. E depois?

- Deixou de perseguir-me.

- É! tudo muito vago, como sempre - queixou-se o adjunto do xerife. - O meu parceiro, que está lá fora junto do carro-patrulha, e eu temos andado na pista dessa canalha, mas, geralmente, utilizam automóveis roubados. Chegam a actuar aos pares e a atacar casais. Manietam-nos, amordaçam-nos, despojam-nos de todos os valores que transportam consigo e, na maioria dos casos, chegam a violentar as senhoras... É uma dor de cabeça que se vem avolumando, de há uns tempos para cá. Não se preocupe com escândalo, ou publicidade, Miss Bagby. Consideraremos as suas declarações estritamente confidenciais, como já fizemos nos casos precedentes.

- Ainda bem - suspirou Evelyn, aliviada.

- Quer dar um salto até ao local da ocorrência? - indagou Mason.

- Certamente que queremos ir até lá. Gostaríamos que Miss Evelyn Bagby viesse connosco, no nosso carro, para indicar-nos, exactamente, onde foi que isso aconteceu. No caminho, poderá responder-nos a outras perguntas. Queremos deitar a luva a esses patifes, quanto mais cedo, melhor.

Mason fez um sinal ao criado e pagou a conta. Em seguida, virou-se para Ferron e perguntou:

- Tem um camarada seu, lá fora. Não é verdade?

- Está à nossa espera.

- Esplêndido. Nesse caso, você e eu podemos ir no carro de Miss Bagby; o seu colega conduz o carro-patrulha e Miss Street irá no meu carro. Dessa maneira poderá interrogar Miss Bagby, durante todo o trajecto até lá.

Mason pegou na bolsa de Evelyn, tirou a arma para fora, soltou o cilindro, de maneira a evidenciar claramente os cinco cartuchos que enchiam o tambor, dois dos quais já deflagrados, e colocou o gatilho na posição de descanso. Então, naturalmente, como se a arma lhe pertencesse, meteu-a no bolso do casaco.

Ferron mostrava-se muito interessado no revólver.

Sem ter tirado os olhos dele, enquanto Mason o manipulara, observou:

- Se todas as senhoras agissem como teve coragem de fazê-lo, Miss Bagby, dar-se-iam muito menos assaltos dessa natureza.

Evelyn estremeceu, deveras convenientemente.

- Toca a andar - exortou Mason. - Não posso perder toda a noite nisto.

 

A caravana de automóveis seguiu ao longo da estrada principal e atalhou, em dada altura, para a secundária por onde a ruiva viera. Em breve entraram na zona de curvas de montanha. Rodavam em silêncio. Chovia agora com violência e apenas se ouviu o ruído dos limpa-pára-brisas, sobrepondo-se ao ronronar dos motores, na subida. Mason sentara-se ao volante, com a ruiva a seu lado.

- Logo que cheguemos ao local, Evelyn, diga-nos para parar.

- Não estou bem certa do ponto em que disparei a arma... Creio que foi logo a seguir à próxima curva, ali em cima - indicou ela.

Momentos depois, corrigia:

- Não, não foi aqui. Poi mais para diante. Aqui, jâ o homem deixara de incomodar-me com os faróis.

Pouco depois, alertava. Já devemos estar perto. Lembro-me de que, naquele sítio, havia um desses paredões de cimento, para protecção contra quedas. Era um paredão baixo, por altura do eixo das rodas. De qualquer modo, qualquer carro podia despenhar-se por ali abaixo, pois essas guardas são muito fáceis de galgar... Ali está o paredão... Foi duas curvas mais acima. Pode abrandar aqui, Mr. Mason. Estamos já muito perto.

- Um momento - interveio Ferron. - Viu aquilo?

Mason abrandou com uma travagem cautelosa e olhou para trás. Ferron estava todo inclinado sobre o vidro traseiro do carro.

- Não foi aqui - observou Evelyn. - Foi um pouco mais acima.

Os carros de trás pararam atrás do da ruiva e comutaram as luzes para os mínimos.

- Pode recuar um pouco ? - pediu Ferron.

Mason obedeceu, ficando quase a tocar no carro-patrulha.

- Que se passa ? - inquiriu o advogado.

- Está partido - explicou Ferron. - A guarda-de-estrada foi derrubada.

Via-se efectivamente o baixo paredão protector derrubado, num espaço de cerca de três metros.

Ferron abriu a porta traseira e saiu do carro. Quase imediatamente desapareceu na escuridão chuvosa.

- Viu aquilo ? - admirou-se Evelyn.

- Sim. Parece que um automóvel saiu da estrada, partiu a guarda e foi pela ribanceira abaixo.

Evelyn Bagby começou a tremer de apreensão.

- Não posso ter sido eu. Só um dos meus tiros acertou no carro..., e creio que só atingi o motor. Disparei para trás...

- Calma, Evelyn - aconselhou Mason. - Não se excite. Ainda não sabemos do que se trata.

- O que aconteceu a esse automóvel, poderia ter-me acontecido a mim - disse ela, cada vez mais nervosa.

- Mantenha-se quieta e calada - ordenou Mason. - Não abra a boca. Deixe as coisas comigo. Não há dúvida que um carro qualquer se despenhou no precipício, mas não sabemos de que automóvel se trata. Pode ter sido o do seu assaltante, ou o de outra pessoa qualquer. Bico calado. Deixe-me agir pessoalmente e sozinho, percebeu?

Evelyn emitiu um som semelhante a um soluço. Nesse momento, Ferron aproximou-se do carro e declarou a Mason:

- Temos obra. Vão ter que esperar, neste sítio.

- Posso ajudá-lo ? - ofereceu-se o advogado.

- Provavelmente, não. Parece que o bandido tentou empurrar outro carro para fora da estrada, que falhou o golpe e ele próprio se precipitou no abismo.

O outro detective que viera a conduzir o carro-patrulha torceu este, na estrada, de maneira a iluminar o local em que a guarda fora destruída. Por sua vez, Ferron foi buscar uma corda ao porta-bagagens, amarrou-lhe uma das pontas à guarda-de-estrada, e lançou o resto ao precipício.

Em seguida, prendendo ambos lanternas de mão ao cinto, começaram a descer o desfiladeiro, quase na vertical.

Della Street fora sentar-se ao lado de Evelyn Bagby.

Mason, debruçando-se do paredão, viu os dois fachos luminosos recortarem-se na noite, ora lambendo as paredes da falésia, ora apontando para os lados, casualmente. De quando em quando, uma superfície lisa de rocha saliente reflectia alguma claridade para o fundo da ribanceira e vislumbrava-se um automóvel, com as quatro rodas no ar.

- Vou descer também - gritou Mason, logo que viu um dos homens, lá em baixo, com os pés em terra.

- Cuidado, que a rampa é Íngreme - avisou Ferron. O advogado segurou a corda com ambas as mãos, e, utilizando as saliências das rochas e os arbustos, como degraus, foi deslizando até ao fundo do precipício. Quando chegou junto dos detectives, ouviu um deles sugerir:

- É melhor chamarmos os tipos do Departamento de Homicídios. Isto aqui já está dentro dos limites da cidade.

- Que encontraram? - interrogou Mason.

- Já cá está em baixo! - admirou-se Ferron. - Vai ser-lhe mais penoso amarinhar pela corda, no regresso, Mr. Mason. Veio sozinho? Certamente que as pequenas ficaram lá em cima.

- Sim - respondeu Mason. - A minha secretária está no carro de Miss Bagby.

Na sua queda, o carro sinistrado fizera uma autêntica razia na vegetação que encontrara pelo caminho. Estava menos amolgado do que seria de esperar após um salto daqueles, pelo que se percebia que os arbustos e ramos de árvores partidos lhe tinham amortecido a descida. Picara com as quatro rodas para o ar, ligeiramente inclinado para a vertente, do lado da qual um tronco de árvore o detivera.

- Diabos! - exclamou Mason, ao ver um homem caído no tejadilho invertido do automóvel.

Tinha uma fronha de almofada de cama enfiada pela cabeça, com dois buracos no sítio dos olhos.

- Já viu isto? - apontou Ferron, através do vidro partido da janela.

À fronha branca apresentava uma mancha vermelha no local onde cobria a têmpora direita. Ao lado e um pouco à frente dessa mancha, causada pelo sangue, via-se um orifício.

- Parece um buraco feito por uma bala - arriscou Mason, preocupado.

- Sem tirar nem pôr.

- Quer dizer que foi possível acertar-se em cheio, dando um tiro ao calhar, de um carro para outro, indo ambos em andamento ?!

- Acontece - disse Ferron. - As vezes, uma pessoa, mesmo sem fazer pontaria, acerta na mouche. E como se apontasse um dedo para um objecto. A bala parte e, zás, dá no pleno.

- Tiramos o tipo, pela janela? - inquiriu o outro detective.

- Não - discordou Ferron. - Não gosto de arrancar cadáveres através de vidros partidos. Os médicos-legistas desatam a resmungar connosco. Vamos tentar abrir a porta.

Estava perra, como que empenada. Entretanto, Ferron apresentava o parceiro, como sendo o detective Morris, do xerifado. Este agarrou num ramo partido e conseguiu forçar o fecho da porta que ficara torcido. Ao cabo de alguns esforços, a porta abriu-se.

Antes de retirarem o corpo para o exterior, Ferron tomou-lhe o pulso.

- Está mais que cadáver, não há dúvida - comentou. Agora, a chuva começara a cair com mais violência.

Mason sentia a gabardina completamente ensopada.

- Raios - queixou-se Morris. - Devíamos ter trazido as nossas capas de oleado. Vamos apanhar um resfriamento. O melhor é deixarmos o corpo, como está.

- Sim - concordou Ferron. - Não há nada a fazer, a não ser participarmos o caso ao xerife e aos Homicídios. Se quiser, Mr. Mason, suba à nossa frente, mas tome cuidado onde põe os pés. A rocha, com a chuva, está escorregadia.

A chuva tornara-se ainda mais intensa e o vento começara a soprar em rajadas, violentamente.

Com uma firmeza que espantou os polícias, Mason começou a trepar pela corda, vertente acima. Chegou à estrada, muito antes de Ferron que iniciara a subida, logo após ele, pela outra corda.

Aproximando-se das jovens, disse-lhes:

- Virem o carro, no sentido da Crowncrest Tavern e preparem-se para arrancar, quando eu vo-lo disser.

O automóvel que ficara com os faróis apontados para o local onde o paredão fora derrubado, endireitou-se na estrada.

- Está numa sopa! - preocupou-se Della, olhando-o pela janela da viatura.

- E sem fôlego - confessou Mason. Entretanto, Ferron chegava ao pé deles.

- Miss Bagby tem de ir trabalhar no restaurante - avisou Mason. - Vocês precisam de mim?

- Não, Mr. Mason - decidiu Ferron. - Vão todos para o restaurante, não é verdade?

- Sim. Acompanhamos Miss Bagby.

Neste momento, Morris alcançava o topo do precipício e começava a recolher ambas as cordas.

- Podem seguir - indicou o advogado, dirigindo-se às jovens. - Irei atrás de vocês.

Pouco depois, o carro-patrulha dirigia-se para o xerifado e Mason punha o seu em andamento, seguindo atrás do de Evelyn, com Della ao lado, em direcção a Mulhol-land Drive. Em breve viam a frontaria iluminada da Crowncrest Tavern.

Evelyn arrumou o “calhambeque" no parque destinado aos empregados do restaurante e Mason parou o carro em frente da porta principal.

Quando abria a porta para sair, viu Joe Padena vir ao seu encontro.

- Viva, Joe - saudou Mason. - Está um belo dia para patos!

- Maldita chuva - resmungou Joe. - Não chove durante todo o dia, às horas a que os clientes estão nas suas ocupações. Quando se aproxima a hora do jantar, é isto: um autêntico dilúvio. Ninguém fica com disposição para subir a montanha, com um tempo destes. É um raio de azar para o negócio!

- É realmente uma maçada - concordou Mason, simpaticamente.

Evelyn Bagby e Della Street apareceram, vindas de uma porta lateral.

Como Joe Padena olhasse para o relógio, Mason declarou:

- Ela chegou tarde, mas a culpa foi minha. Que tal vai no serviço ?

- É boa rapariga e estou muito contente com ela. Veio numa altura em que tinha duas vagas e em que se torna difícil arranjar bom pessoal. Querem jantar? - inquiriu esperançado.

- Lamento imenso - disse Mason -, mas já jantámos, na cidade.

- Bem. Vejo que está encharcado. Que diz a dois café-rums bem quentes?

- Boa ideia - concordou o advogado, despindo a gabardina. - Miss Bagby pode falar comigo, durante um instante ?

- Bem - objectou Padena -, podem entrar clientes, de um momento para o outro... Seria melhor que falasse com ela, no quarto, lá em baixo.

Quando Mason e Della Street entraram no quarto de Evelyn, o advogado olhou para a janela e estacou, pensativo.

- Que se passa, Chefe ? - interessou-se Della.

- Essa janela aí. Talvez seja melhor correr as cortinas.

- Oh, não deve ser preciso. A janela é bastante alta, em relação ao piso, desse lado do restaurante. Como viu, há um grande desnível no solo. Esta cave, que é subterrânea, em relação ao lado norte, fica quase num primeiro andar, desta banda sul. Só com uma escada podiam espreitar cá para dentro.

- Nesse caso, porque puseram este tipo de cortinas translúcidas ?

- Fui eu que as pus.

- Para embelezar o ambiente ?

- Não só. Lá adiante, na estrada, estão às vezes carros parados. Ontem, de manhã, vi um homem com um binóculo, a observar as árvores, como se fosse um desses amadores de pássaros. Como não gosto de ser tomada por arvéola, comprei estas cortinas, quando fui à cidade arranjar roupa nova. Nunca se sabe até onde vai a mania de um espião de passarada!

- Quer dizer, que, da estrada, pode olhar-se para dentro do seu quarto ?

- Decerto, já que dessa janela posso ver a estrada... e até daqui, do meio do quarto. Repare.

Mason verificou o que Evelyn explicara e foi correr as cortinas.

- É melhor que ninguém nos espie - decidiu. - Fale-, -me agora da arma. Como foi que deu com ela ? Mostre- me onde a achou.

Evelyn Bagby obedeceu, abrindo uma gaveta do armário e apontando para várias peças de roupa íntima, devidamente dobradas e arrumadas.

- Estava aqui - indigitou.

- Bem - sugeriu Mason -, é melhor ir agora lá para cima. Podem chegar clientes, de um momento para outro. Não quero que Joe se indisponha comigo, pela sua ausência.

-'Deve ser pouco provável que apareça alguém, com um tempo destes! - observou a ruiva.

- Esse alguém podem não ser clientes - lembrou Mason. ^~ Talvez apareça por aí um detective, a fazer-lhe perguntas.

- Outra vez? Que espécie de perguntas? - inquiriu Evelyn, receosa.

- Vão insistir para que repita, vezes sem conta, como foi que disparou aqueles dois tiros. Devo informá-la que o homem que encontrámos no fundo da ravina, com uma fronha de almofada enfiada na cabeça, foi morto por uma bala que lhe entrou pela têmpora direita.

- Meu Deus! - exclamou Evelyn, surpresa. - Não é possível!

- A polícia pensa que um dos seus tiros, provavelmente o segundo, atingiu em cheio o seu perseguidor e...

- Não pode ser - objectou a moça. - O primeiro perdeu-se e o segundo pareceu-me ter embatido numa superfície metálica.

- Estou apenas a explicar-lhe o que a polícia pensa. Neste momento, estão muito felizes consigo, por ter-lhes posto um facínora fora de combate. Mas podem mudar de opinião.

- Porquê ?

- Não sei ainda as conclusões dos peritos de Medicina Legal. As vezes descobrem coisas surpreendentes.

- Não vejo que possam descobrir que nos cause surpresa. Disparei ao calhar. Mesmo que a bala que ouvi bater na chapa tenha feito ricochete e lhe tenha entrado na cabeça, isso não é demasiado estranho - alegou Evelyn.

- Há uma coisa que eu notei e que aos detectives passou, de momento, desapercebida. As luzes dos faróis do carro sinistrado estavam apagadas.

- Podem ter-se fundido com o choque da queda.

- Não, Evelyn - contrariou Mason. - As do tablier também estavam extintas e não se tratava de inacção da bateria. Notei também que o botão de comutação de luzes estava na posição vertical. Ora é pouco admissível que o homem, sentindo-se despenhar no abismo, tivesse a tola ideia de apagar as luzes.

- Deus do Céu! Como pode ser isso?... A polícia não notou esse pormenor, quando encontrou o corpo?

- Chovia torrencialmente e estavam muito apressados em transmitir o caso ao Departamento de Homicídios, visto a ocorrência ter-se dado num local que já fica dentro dos limites da cidade e, portanto, fora da sua área de acção.

- Tem de haver uma explicação para essa história das luzes, Mr. Mason. Só se o homem apagou os faróis antes de ser atingido pela bala...

- Não pode ser, Evelyn. Você declarou que ele continuou a persegui-la, durante alguns metros, encadeando-a pelo retrovisor, embora abrandasse a marcha. Lembre-se que, só na curva imediata, você notou que as luzes já não a incomodavam. E um morto não pode apagar luzes algumas... Não faz sentido.

- Está qualquer coisa errada nisso tudo - balbuciou a ruiva.

Mason deu alguns passos pelo quarto e parou junto da cama. Como ficasse imóvel, as duas moças acercaram-se dele.

Mason apontou:

- Repare, Evelyn. Uma das suas almofadas tem fronha e a outra, não.

- Meu Deus! - exclamou a jovem, levando ambas as mãos à boca.

- Onde estará ela?

- Não sei, Mr. Mason! - murmurou espantada, num tom de voz subitamente rouco.

- Ainda aí estava, quando você cá veio da última vez ?

- Não sei. Não reparei. Estive a procurar, no armário, se havia qualquer outra coisa plantada, mas, confesso, não reparei nessa fronha. Estava tão excitada... Fui logo telefonar-lhe e...

- "Vai ser-lhe difícil explicar isso à polícia - alertou Mason.

- Acha que vão interrogar-me a esse respeito?

- Não tenho a menor dúvida.

- Nesse caso - decidiu Evelyn -, só há uma coisa a fazer: ir buscar outra fronha e...

Ia já a caminhar para a porta, quando Mason a deteve.

- -Não faça isso - advertiu. - Se põe uma nova fronha nessa almofada, acaba por arranjar um bilhete de ida, sem volta, para a câmara de gás.

- Porquê ?

- Porque verificarão que a fronha que o homem usava é igual à sua. Acabarão por verificar quantas há cá na casa, e verificarão que falta uma. As suspeitas cair-lhe-ão logo em cima, Evelyn.

- Mas, Mr. Mason - protestou a jovem. - Não podemos consentir que a polícia descubra uma coisa dessas. Alguém plantou uma arma na minha gaveta. Certamente que esse mesmo alguém tirou a fronha de uma das minhas almofadas. Querem incriminar-me. Se reúnem esses factos aos dois tiros que desfechei contra o homem, concluirão que preparei tudo, premeditadamente.

- Vejo que é muito esperta, Evelyn. Será disso mesmo que a acusarão. E o pior é que não acreditarão que disparou com os carros em andamento, em legítima defesa. Dirão que foi um golpe montado por si, para eliminar essa pessoa.

- Pensa que poderá ser alguém que eu conheça ? - inquiriu a ruiva, apavorada.

- Corre esse risco - confirmou Mason.

- Que posso eu fazer, meu Deus? - quase gritou Evelyn, com a voz tremente de comoção.

- - Aconselho-a a mostrar-se quase histérica, aterrorizada com a ideia de que foi capaz de, embora involuntariamente, ter morto um homem que a perseguia. Terá de convencer o médico que a examinar. Este dar-lhe-á uma injecção que a ponha a dormir, durante algumas horas, fora destas lides. Acha que é capaz de simular esse estado de nervos?

- Sou boa actriz, Mr. Mason, e no estado em que me sinto, não terei a menor dificuldade em consegui-lo. Estou mesmo a ficar histérica.

- Óptimo. Recapitulando, eu informei-a de que, provavelmente, matara o homem com um dos seus tiros. Você ficou de cabeça perdida. Agora, chame Mr. Padena e mostre-lhe as almofadas e pergunte-lhe se ambas teriam as respectivas fronhas.

- Pensa realmente que a fronha que o homem tinha na cabeça é a que falta aqui?

- Porque não ? O contrário é que me espantaria, depois de saber que lhe plantaram a arma no quarto.

- E se me interrogarem sobre o assunto ?

- Geralmente, aconselho todos os meus clientes a não abrirem a boca e delegarem em mim todas as respostas. Neste caso, terei de agir ao invés. Você vai contar toda a sua história, de uma ponta à outra, sem omitir o menor pormenor. Quanto mais falar, melhor. Deixe-os gravar o que entenderem. Conte toda a verdade, tal como ma descreveu. É importantíssimo que verifiquem que não lhes pomos quaisquer reservas. E se aparecerem repórteres dos jornais, diga-lhes o mesmo. Conte tudo. Será a sua única salvação.

Virando-se para Della, inquiriu:

- Sabe o que vai fazer, minha amiga ?

- Percebi que devo levar Miss Bagby a um médico e arranjar as coisas de maneira que ele a ponha na cama, a dormir, durante doze horas, pelo menos, não é assim?

- Vejo que está bem treinada, Della. Depois de ter metido Evelyn na cama, meta-se você num táxi e vá ter com Paul Drake. Esperarei nesse escritório por si. Não diga a ninguém onde me encontro.

- E depois para onde vai, Mr. Mason? - indagou a ruiva.

- Isso é uma coisa que ninguém vai saber. Estarei como morto para o mundo.

 

Mason arrumou o carro no parque do edifício onde ele e Drake tinham as suas instalações profissionais e apressou-se a entrar, dirigindo-se ao ascensor.

O empregado de serviço ao elevador saudou-o amigavelmente:

- Boa noite, Mr. Mason.

- Aqui tem cinco dólares - respondeu este, estendendo-lhos.

- Para que mos dá?

- Pelo erro que cometeu.

- Que erro, Mr. Mason?

- Erro de identidade. Não sou Mr. Mason. Terá de anotar, nesse seu registo de entradas e saídas, que foi um tal Harry Marlow e não eu quem subiu à Agência de Detectives Drake.

- Sim, Mr. Marlow - respondeu o empregado, sorrindo. -'Desculpe tê-lo confundido com o célebre advogado, Perry Mason.

Quando Mason entrou na agência, Inquiriu:

- Paul Drake está cá ?

A telefonista-recepcionista confirmou:

- Sim, Mr. Mason.

- Diga-lhe que vou ter com ele. Se alguém vier aqui à minha procura, não se esqueça de que não me viu. Só estou à espera de Miss Street.

- E se for a polícia? - perguntou a rapariga.

- O mesmo. Não me pôs hoje os olhos em cima, percebeu ?

- Receio não poder fazer-lhe isso, Mr. Mason. Neste lugar e nesta agência, não posso mentir à polícia. Mr. Drake proibiu-me terminantemente de fazê-lo. Arriscava-se a perder a licença. Importa-se de tornar a sair?

- Porquê ?

- Porque, quando tornar a entrar, não me verá aqui. Nesse caso, poderá passar, sem ser visto e, se eu for interrogada pela polícia, responderei, sem mentir, que o senhor apareceu por cá, perguntou por Mr. Drake e tornou a sair.

- Saio já - anuiu Mason, sorrindo.

Quando tornou a entrar, a agência não tinha recepcionista de serviço.

Ao fundo do corredor, abriu a porta do gabinete de Drake e foi encontrá-lo a comer um hamburger, dentro de uma carcacinha, e a beber café.

- Olá, Perry. Que excitação é essa ? - saudou Drake.

- Sarilho.

- Conta lá.

- Conta tu, primeiro. Que novidades há? Descobriste alguma coisa acerca da arma?

- Bem sei que não tenho de meter o nariz nos teus assuntos mas, se fosse comigo, deixava de tentar complicar a vida a Mervyn Aldrich.

- Quem é que quer complicar-lhe a vida ?

- Tu. Desde já te digo que tem fama de não ser boa rês.

- Explica-te, Paul.

- As armas.

- Que armas ?

- Os dois revólveres. Deste-me o número de um deles e foi fácil determinar-lhe a origem, pois compraram-no, ainda não há muito tempo. Foi adquirido juntamente com outro, gémeo por uma pena, num armazém de artigos de desporto de Newport Beach: Gun and Gaff Sporting Goods.

- Continua.

- Aldrich comprou-os no dia vinte e cinco do mês passado.

- E um deles era esse cujo número te indiquei ?

- Exactamente. Deste-me o 17474 - LW e ele também adquiriu o 17475.

Por momentos, Mason manteve-se pensativo e acabou por inquirir:

- Para que diabo queria ele duas armas?

- Isso não sei. Só posso dizer-te que pagou em dinheiro contado.

- O empregado da loja contou-te alguma coisa ? Interrogaste-o ?

- Só sabe o que agora te disse.

- Devo concluir que comprou uma arma para seu uso e outra para oferecê-la a alguém.

- Assim parece. Provavelmente, tanto ele como esse alguém tiveram motivo para pensar que corriam qualquer risco. - Iria jurar que comprou esse segundo revólver para Helene Chaney. Escuta, Paul. Vou estar com ela esta noite. Pois bem, quero ter a certeza de que Mervyn Al-drich aparece por lá, enquanto estiver com ela.

- Telefona-lhe e dá-lhe essa ordem, Perry.

- Não, Paul. Tu é que vais telefonar-lhe anonimamente. Vais dizer-lhe que Perry Mason foi interrogar-lhe a noiva. Aposto que se mete imediatamente a caminho.

- Se conseguir localizá-lo, conta comigo, Perry.

- Como podes saber se ele vai lá ou não, Paul ? E se consigo caçá-la em casa?

- - Não posso, mas sou capaz de andar muito perto disso. Pegou no aparelho e indicou à telefonista:

- Telefone para Helene Chaney, a actriz cinematográfica. Ela tem um telefone que não vem registado na lista, mas nós temos um registo de todos esses números, no ficheiro de cima, à esquerda. Quando a apanhar na linha, diga-lhe que está a falar-lhe dos Estúdios e que tem uma peça que desejava que ela lesse urgentemente. Pergunte-lhe se estará em casa, esta-noite.

Drake acendeu um cigarro e prosseguiu:

- Espere um momento; ainda. Em seguida, ligue para Mervyn Aldrich. O número do seu telefone vem na lista. Diga-lhe, ou transmita a quem atender, que fala dos serviços telegráficos dos Correios e que tem um telegrama urgente, para ser-lhe entregue, registado, com aviso de recepção. Se ele atender à chamada, pergunte-lhe se espera em casa pelo telegrama, ou onde quer que lho enviem. Se não for ele a responder, informa-se do local onde pára, para poder contactar com ele.

Colocou o auscultador no descanso, pousou o cigarro no cinzeiro e deu mais uma dentada na sanduíche de hamburger.

- Como diabo consegues comer e fumar, ao mesmo tempo? - admirou-se Mason.

-'Fumo para manter-me acordado, com os nervos finos, e como para não morrer de inanição. Já jantaste, Perry?

- Hum, hum - confirmou o advogado.

- Fazes-me inveja. Infelizmente, eu continuo nesta vida de sanduíches e café. Aposto que estiveste a bater-te com um rico bife de lombo e batatinhas coradas no forno,, com cebolinhas francesas.

- Acertaste.

- Não foi difícil. é o teu pitéu preferido. Vais para o teu gabinete?

- Não. Ando a monte. Estou aqui escondido. Não tarda, que Della venha ter comigo.

- Não me agrada nada ter-te aqui escondido. Se a polícia anda à tua procura.

- Bem sei. A tua telefonista disse-me o mesmo, quando cheguei. Fez-me tornar a sair, para que pudesse entrar, de novo, sem que ela me visse.

- O truque é giro, mas receio que os polícias não se deixem enrolar tão facilmente.

- Não sabem que estou cá.

- OKay, Perry. Isso melhora a situação... temporariamente.

- Onde está Della ?

- A meter uma jovem na cama.

- Pois é. Desses serviços não me encarregas tu. Qual é a ideia?

- Evelyn Bagby foi assaltada esta noite. Um homem com a cabeça coberta por uma fronha de almofada tentou atirá-la pela berma fora de uma estrada da montanha, no topo de Hollywood.

- Que aconteceu ?

- A moça trazia uma arma com ela e disparou duas vezes, para amedrontá-lo.

- Conseguiu ?

- A polícia pensa que ela o matou com um dos tiros.

Drake pousou a chávena de café e espantou-se:

- Cos diabos! Fê-la bonita!

- Talvez - admitiu Mason. - Mas pode ter-se passado qualquer outra coisa.

- Que coisa ?

- Ainda não sei.

- Bem, se foi ela que o matou, poderá alegar legítima-defesa - concluiu Drake. - Acertou-lhe em cheio num ponto mortal!

- Assim parece e com os dois carros em movimento.

- Vai contar isso a outro! Não é razoável, Perry.

- Pois não, mas é o que a polícia pensa, pelo menos até eu deixar o local onde estivemos. Preciso de saber mais factos e estar a par do curso dessa investigação. Consegues isso, sem dizer para quem andas a trabalhar?

- Vou tentar.

Pegou no telefone directo para o exterior e discou um número.

- Olá, Jim. Daqui, Paul Drake. Estás hoje de serviço-noticiário à polícia?... Hum, hum!... Novidades?... Isso parece interessante! Podes obter mais informações acerca desse caso?... Okay, obrigado. Olha, não digas a ninguém que estou interessado na história, porque ainda não estou, mas posso vir a estar. Obrigado. Até breve.

Mal Drake desligou, o telefone ligado ao PBX começou a tocar.

- Diga lá - pediu Drake à telefonista. - Hum, hum!... Okay. Obrigado.

Ao mesmo tempo que escrevia uma nota num pedaço de papel, o detective anunciou:

- Helene Chaney estará hoje em casa, até às dez e trinta. Terá muito gosto em receber a peça, mas só poderá lê-la amanhã. Se o portador chegar depois daquela hora, terá de deixá-la ao mordomo.

- E Aldrich? - interessou-se Mason.

- Mervyn não estava em casa. Só lá o esperam muito tarde. Contudo, sugeriram que poderíamos tentar contactá-lo em casa de Helene Chaney. Parece que teria um encontro com ela e que iria,buscá-la para levá-la a qualquer lado.

-Oiro sobre azul - comentou Mason, esfregando as mãos. - Parece que as dez e meia serão a hora desse encontro. Coincide com a hora que Irene Keith me indicou para dar-lhe uma resposta, sobre a compensação por prejuízos que quer dar a Evelyn Bagby.

- Tempo de bruxas - motejou Drake. - Antigamente era a meia-noite. Evelyn vai aceitar essa “massa”?

Mason consultou o relógio e respondeu:

- Talvez não.

- Ela sabe ?

- Quem ?

- Evelyn ?

- Hum, hum - confirmou Mason.

- Nesse caso, qual é a ideia? - estranhou Drake.

- Evelyn quer encaixar mil dólares de Irene Keith e eu prefiro que os rejeite.

- Mil dólares não nascem debaixo dos pés, Perry!

- Parece que, a Irene, saltam-lhe do pé para a mão. Decuplicou a oferta, em menos de duas horas. Ela tem muito dinheiro?

- Herdou alguma “massa" e parece que é uma boa administradora das suas coisas.

Após uma pausa para um golo de café, Drake comentou:

- Essa história da fronha de almofada soa bastante a falso, Perry!

- Pois soa, mas é mesmo assim. Vi-a com estes olhos...

- Geralmente, um homem usa uma máscara. Uma fronha, ou um saco, induz à possibilidade de tratar-se de uma mulher, para poder tapar o pescoço e a parte superior do vestido..., o decote, por exemplo. Se uma mulher quisesse fazer-se passar por um homem... É o que acontece no Carnaval.

- E não sabes o melhor, Paul. A fronha que o homem trazia enfiada na cabeça parece ter sido tirada de uma almofada da cama de Evelyn Bagby.

- Oh, diabo! - exclamou Drake, surpreso. - Isso não a deixa em muito bons lençóis!

- Péssimos! - concordou Mason.

- Onde está ela ?

- Onde espero que a polícia a não encontre.

- Deixa-te disso. Dize lá.

- Começou um ataque de histeria e Della teve de levá-la a um médico.

- Estou a perceber - disse Drake. - Estás agora à espera de Della?

- Sim. Pedi-lhe que viesse o mais depressa que pudesse.

- Talvez tivesse dificuldade em encontrar o médico “conveniente. - sugeriu Drake. - Depois de tratá-la, para onde a leva?

- Vai deitá-la no seu próprio apartamento.

- A polícia é muito capaz de ir até lá.

- Talvez. Mesmo assim, Evelyn vai dormir durante umas doze horas.

- Não podes fazer muita coisa nesse espaço de tempo - observou o detective.

- Tenho de fazê-lo. Estou a trabalhar contra-relógio.

Neste momento, o telefone tocou.

Drake atendeu e disse:

- Hum, hum!... Okay - e desligou, anunciando: - Della Street vem já aí. Cuidado, Perry, não te metas em sarilhos.

- Já estou metido neles até às orelhas.

- Vai custar-te a respirar - gracejou Drake.

Quando a porta se abriu para dar entrada a Della Street, Perry Mason indagou:

- Tudo arrumado ?

- Como mandou, Chefe - sossegou ela.

- Onde a meteu ?

- Nem sonham! Uma das minhas vizinhas foi para fora e pediu-me que lhe tomasse conta do papagaio. Deu-me a chave e... bem, escondi lá Evelyn.

- O médico, como se portou?

- Catitamente. Evelyn é uma boa actriz. Levou-o à certa e recebeu a picadinha. Depois de muito choro e gritinhos de desespero, ficou a dormir.

- Magnífico! - aprovou Mason.

- Não sei - murmurou Della.

- Não sabe o quê ?

- Se é assim tão magnífico...

- Porque diz isso ?

- Porque a sua ruiva é realmente uma actriz extraordinária. Talvez demasiado convincente. Quase me convenceu a mim, do que fingia sentir. Não sei se...

- Como está o tempo, lá fora, agora, pequena ? - desviou Mason a conversa, sorrindo compreensivamente. - Ainda está a chover?

- A potes!

- Paciência, Della. Saia e verifique se não haverá lobo na costa. Se vir detectives ou jornalistas, não pare. Telefone-me para aqui, a avisar. Caso contrário irei atrás de si, dentro de cinco minutos.

Depois da bela secretária sair, Mason acendeu um cigarro e permaneceu, alguns instantes, pensativo. Finalmente disse:

- Vou pôr-me a andar, Paul. Continua a investigar esta história, sim? Entrarei em contacto contigo, mais tarde.

- Não te arrisques de mais, Perry - aconselhou o detective. - Quando tens um cliente em apuros, preferes afogar-te com ele, a consentires que tentem enterrá-lo sozinho. Bem..., esta imagem não faz muito sentido, mas deves alcançar o que quero dizer-te.

- Eu sei Paul - terminou Mason, com um aceno de simpatia para o amigo, enquanto se encaminhava para a porta.

 

Quando chegou ao carro, Della Street já pusera, o motor a trabalhar. Deslizou para o assento lateral, deixando o do volante a Perry Mason, que arrancou lentamente em direcção à casa de Helene Chaney.

Logo que lá chegaram, arrumou o carro com a frente virada para a saída.

- Tem algum plano especial, na ideia - sondou Della.

- Sim. Quero que Mervyn Aldrich arranje um álibi para Evelyn, no caso de a polícia começar a importuná-la com perguntas que a incriminem desastrosamente..

Subiram, lado a lado, os degraus de acesso à casa, Mason premiu o botão de madre-pérola que se via do lado direito da porta.

Dentro de casa, ouviram-se as notas melodiosas de um gongo eléctrico.

A porta abriu-se e uma linda morena surgiu no limiar. Estava esplendorosamente vestida para sair, em traje de noite. Ao ver Della e Mason, a sua expressão alterou-se notoriamente.

- Oh, desculpem-me... Pensei que fosse... Um momento, sim? - titubeou.

Virou-se para o interior e chamou:

- William!

Um mordomo, de aspecto muito digno, apareceu no átrio, atrás dela.

- Sim, minha senhora ?

Olhando novamente para Mason, Helene Chaney inquiriu:

- Desejava ver alguém ?

- A si - respondeu o advogado. Helene abanou a cabeça e defendeu-se:

- Lamento imenso, mas estou à espera de uma pessoa, para sair esta noite. Por favor, William, acompanhe estes senhores... Um momento! Não é o advogado, Perry Mason?

Mason confirmou com um gesto atencioso.

- Bem, isso altera um pouco as circunstâncias -• concedeu ela. - Deseja falar comigo?

- Sim, Miss Chaney.

- Nesse caso, reservo-lhe alguns minutos. Sorriu amavelmente e completou:

- Mas muito escassos, sabe? Tenho de sair dentro de momentos. William levá-los-á para a sala. Volto dentro de instantes.

Mason fez passar Della à sua frente. Pouco depois Helene Chaney reunia-se-lhes.

- É a minha secretária, Miss Della Street - apresentou o advogado.

- Tenho imenso prazer em conhecê-los a ambos - declarou a actriz. - Queiram fazer o favor de sentar-se.

Depois dos apertos de mão convencionais, arrumaram-se em confortáveis maples e Mason passou ao ataque:

- Desejo fazer-lhe umas perguntas, Miss Chaney.

- A propósito de quê ?

- De certo modo, relacionadas com Mr. Mervyn Aldrich.

Helene riu-se e declarou:

- Sejamos francos, Mr. Mason. Conheço perfeitamente a sua posição, como representantes dos interesses dessa criada...

- Miss Evelyn Bagby - precisou Mason.

- E creio que um júri qualquer a absolveu de um certo roubo de jóias. Contudo, julgo que é bastante significativo o facto de essas jóias, parte das quais me pertencem, nunca terem aparecido.

- Sob o meu ponto de vista, Miss Chaney, esse facto é realmente deveras significativo, provavelmente num ângulo bem oposto do seu.

- Irene falou-me de si. Confessou-me que o senhor a impressionara muito favoravelmente. Creio que lhe fez uma proposta de, chamemos-lhe, indemnização, extremamente generosa. Irene está convencida de que percebe de leis e adora tratar pessoalmente dos seus assuntos. Eu sou inteiramente diferente. Detesto pensar em problemas e para resolver casos de dinheiro, tenho os meus administradores; para a vida artística, tenho os meus agentes; para questões legais, chamo os meus advogados. Isso deixa-nos a matéria da nossa conversa reduzida a um âmbito muito reduzido. Podemos falar de flores, mas já vos digo que, com este tempo diluviano, os meus jardineiros nada auguram de bom.

- Deixa-nos, ainda, um assunto que deverá interessar-lhe, Miss Chaney - insinuou Mason, sorrindo.

- Qual?

- A arma que Mervyn Aldrich comprou para oferecer-lhe.

Helene olhou para o advogado, pensativamente, e não respondeu logo. Depois, com evidente cautela, arriscou:

- Que há acerca dessa arma?

- Gostaria de vê-la, se não se importa.

- Francamente, Mr. Mason! Veio visitar-me a esta hora da noite, para que eu lhe mostre um revólver? Que ideia a sua!

- Venho lembrar-lhe, Miss Chaney, que a venda de armas de fogo, na Califórnia, está estritamente regulamentada. Cada arma tem um número e esse número é registado numa ficha que indica o seu comprador. Essa ficha tem várias cópias e uma delas vai para o Departamento de Homicídios.

- Não me diga! - motejou ela. - E que tenho eu a ver com isso?

- Devo informá-la de que, possivelmente, a sua arma foi utilizada numa acção que pode trazer-lhe incómodas consequências.

- Disparate! - exclamou ela, com um risinho nervoso, já pouco seguro. - A minha arma não pode ter sido utilizada em coisa alguma dessa natureza!

- Porque está certa disso ?

- Bem, creio que... Estou certa de que continua na minha posse.

- Importa-se de ir verificar se ainda a tem-onde costumava guardá-la?

Como Helene hesitasse, Mason insistiu:

- É apenas para sua conveniência e segurança que lhe sugiro se certifique do paradeiro dessa arma, Miss Chaney.

- Muito bem - decidiu ela. - Já que insiste, vou ver. Queiram esperar um minuto. Volto já.

Caminhou direita à porta da sala, com um andar pousado, estudado, como se estivesse a representar perante uma câmara cinematográfica. Quando desapareceu, Mason olhou para o relógio e trocou um olhar com Della.

A porta ficara entreaberta e Della compreendeu. Olhando para um espelho que lhe ficava fronteiro, viu, pela abertura da entrada, Helene Chaney discando um número do telefone do átrio.

Com um movimento de mímica, Della indicou a Mason o que via. Pouco depois, Helene voltava para o pé deles.

- Está tudo normal - anunciou. - Tal como lhe disse, Mr. Mason o meu revólver está no seu lugar habitual. Como vê, a hipótese de que me falou não tem a menor realidade.

Ficou de pé, em frente da porta, como a convidá-los a saírem.

- Ainda bem que assim é. Nesse caso, esta arma não pode ser a sua. Fizeram fogo com ela, sabe? Mas como o seu revólver está no seu lugar, estes dois cartuchos deflagrados não podem dizer-lhe respeito, Miss Chaney. Tem carradas de razão. Desculpe-me.

A. vista da arma, Helene tornou a hesitar. Finalmente declarou:

- Exacto, Mr. Mason. Essa arma não é a minha. Agora, lamento imenso, mas tenho de lembrar-vos de que estou à espera de uma pessoa que vem buscar-me para sair. Se me dispensam...

- Certamente - concordou Mason, pondo-se de pé. - Lamento igualmente tê-la incomodado. Pensei poder ser-lhe útil e nada mais.

- Aprecio imenso a sua gentileza - retorquiu ela, com uma expressão de desagrado que estava visivelmente em contradição com as palavras.

O melodioso gongo da porta soou, quando atravessavam o átrio. Helene não alterou o compasso da marcha. Como o mordomo hesitasse em abrir, a actriz fez-lhe um sinal de consentimento.

Mervyn Aldrich recortou-se na entrada, envolto num belo impermeável, com um chapéu de veludo preto e um lenço de seda ao pescoço.

-Olá, William - saudou ele. - Está um tempo...

Calou-se abruptamente, ao ver Della e Mason, ao lado de Helene, avançarem para a porta.

Tirando o chapéu, o construtor de barcos saudou:

- Olá, Helene.

Em seguida, fitando gelidamente Mason e Della Street, disse com nítida dureza:

- Boa noite, Mr. Mason. Creio que é Miss Street, não é verdade?

- Exactamente - confirmou Mason.

- Espero que não tenham vindo incomodar Miss Chaney, com essa história da compensação para a criada. De resto, um advogado deve tratar desses assuntos com outro ^advogado e não contactar directamente com as pessoas interessadas. Espero que Miss Chaney o tenha advertido de que tem advogados...

- Advertiu - replicou Mason, também com frieza. - Foi outro assunto que me trouxe cá. Pensei que poderia evitar a Miss Chaney uma avalanche de publicidade desagradável.

- Sim ? - desafiou Aldrich, beligerantemente. - Quer dizer-me de que se trata?

Helena interveio, esclarecendo sarcasticamente:

- Mr. Mason julga que a minha arma foi utilizada para perpetrar um nefando crime!

A gargalhadinha que soltou soou demasiado falsa, para uma boa actriz.

- A sua arma ? - exclamou Aldrich. - Que quer dizer com isso, Mr. Mason? Como se permite...

- Permito-me referir-me à arma que o senhor lhe ofereceu.

- Mas eu não lhe dei arma alguma - negou o outro, elevando a voz.

-O revolverzinho que me ofereceste, querido - interpôs Helene, rapidamente. - Lembras-te? Aquela arma-zinha que me deste, para minha protecção, e que tenho sempre guardada no meu quarto.

- Quem lhe falou nisso, Mason ? - inquiriu Aldrich. Tirando novamente o revólver do bolso, Mason declarou:

- Fui forçado a verificar o número de registo desta arma e fui informado de que é uma das duas que comprou num armazém de artigos desportivos de Newport Beach. O senhor guardou um desses revólveres e deu o outro a Miss Chaney.

Bruscamente, Aldrich mudou de opinião e fechou a porta atrás de si. Passando à frente de William, propôs:

- Vamos lá falar disto, um instante.

Olhou para o relógio, controlando o tempo.

- Temos poucos minutos - lembrou.

-'Lamento imenso, querido - desculpou-se Helene. - Estava à porta à tua espera, para que não esperasses nem um segundo, quando estes senhores apareceram... Pensei que fosses tu...

- Está bem Helene - dissç-Mervyn. Virou-se para Mason e inquiriu:

- Que motivo tem para pensar que esse revólver é um dos que comprei e que ofereci a Miss Chaney?

- Não se faça tolo - retorquiu Mason, usando da mesma atitude beligerante. - Posso indicar-lhe o número dessas armas, a data e o local da compra.

- Mas isso não significa que eu tenha dado um deles a Miss Chaney. Eu...

- Oh, Mervyn! - cortou Helene, desesperadamente. - Não te esqueças de que Mr. Mason é advogado. Se o assunto não fosse importante para mim, não estaria aqui. Falou-me da arma que me ofereceste e fui ver ao quarto se ainda lá estava.

- E então ?

- Está no lugar habitual. Ninguém lhe mexeu, querido. A troca de olhares que efectuaram teve um sentido especial. Mantendo ainda um tom hostil, Aldrich observou:

- Mason representa uma mulher que penso ser perigosa e não me admiraria se ela viesse a processar-te, também a ti, por difamação e prejuízos morais e materiais.

- É possível. - admitiu Mason, sorrindo.

Mervyn Aldrich avançou um passo, em direcção ao advogado, e disse em tom ameaçador:

- Não me agrada a sua ideia de vir aqui tentar obter declarações da boca de Miss Chaney.

- Estou-me nas tintas para aquilo que lhe agrada ou deixa de agradar - retrucou Mason. - Estou farto da sua estúpida arrogância. Você trate dos seus negócios, que eu trato dos meus. "Vim aqui porque pensei ter oportunidade de salvar Miss Chaney de uma situação deveras embaraçosa. Você, em vez de armar-se em parvo, como um colegial “peneirento”, dê uma vista de olhos a esta arma. Vá, olhe para ela!

Mason mostrou-lhe o revólver e abriu o tambor.

- Está a ver dois cartuchos deflagrados? - prosseguiu, em tom desafiador. - Para sua informação, essas duas balas foram disparadas há cerca de três horas e meia. Ora, esta arma foi paga por si. Está agora interessado em saber onde estão os projécteis que aí faltam?

Toda a afectada exaltação de Mervyn se esboroou perante a veemência do ataque de Mason. Ficou-se a olhar para a arma, como que fascinado.

- Conseguiu descobrir essa arma? - perguntou momentos depois.

- Parece evidente, não? - replicou Mason. - Por esse motivo é que aqui estou. Olhe para o número de registo. Tenho uma agência de detectives a trabalhar para mim. Foi através dela que tive essa prova de que você comprara duas armas, no dia vinte e cinco do mês passado, na Gun and Gaff Sporting Goods Store.

- Deve haver qualquer erro - disse Aldrich, de"bilmente.

- Se este revólver não é o que deu a Miss Chaney, tem de ser o seu. São as únicas hipóteses possíveis.

Mudando subitamente de táctica, com voz desta vez quase atenciosa, Mervyn Aldrich solicitou:

- Deixe-me ver essa arma.

- Veja-a à sua vontade - concedeu Mason, passando-lha para a mão.

- Tens a certeza de que o teu revólver está lá em cima, Helene? - indagou Mervyn.

- Absoluta.

O noivo da actriz semicerrou os olhos e declarou:

- Acho, Mr. Mason, que devo apresentar-lhe as minhas desculpas pela atitude que estive a tomar para consigo. Receio, realmente, que esta arma seja a que ficou comigo e, se é a minha, isso significa que alguém a roubou do porta-luvas do meu carro, onde costumo trazê-la.

Olhou para o número do revólver e acrescentou, viran-do-se para Helene:

- Vou tomar nota do número desta arma, para que não possa dar lugar a qualquer erro. É melhor, querida, verificares o número da tua.

- Não há engano possível, Mervyn. O meu revólver está lá em cima, no meu quarto.

- Nesse caso - afirmou Aldrich. com firmeza -, não há dúvida que este é o meu. Roubaram-no do porta-luvas.

- Quando foi que o roubaram ?

- Não sei. Não passo a vida a verificar se tenho lá a arma, mas, se não é a de Miss Chaney, então, tem de ser a minha. Tens a tua no quarto, Helene?

- Sim, Marvyn - repetiu ela.

- Desculpa, querida, mas tenho de Ir verificar esta história.

Sem pedir licença a Mason, abriu a porta e meteu-se à chuva. O vento, entrando no átrio, agitou as saias de Helene e de Della.

- Lamento o Mervyn ter sido tão rude para consigo, Mr. Mason - desculpou-o a actriz. - É muito impulsivo e tem andado, ultimamente, muito nervoso, com todo este caso do casamento adiado, em virtude do roubo das jóias. Depois, trabalha como uma máquina. É o seu vício.

- Acredito - ajudou Mason.

- Além disso, tem a monomania da pontualidade. A sua vida corre ao compasso de um cronómetro. Qualquer atraso incomoda-o extraordinariamente. Geralmente as raparigas fazem esperar os seus pares, enquanto acabam de arranjar-se. Com ele tenho de portar-me de maneira oposta. Eu própria vos abri a porta, porque estava à espera de Mervyn, já pronta para sairmos.

- Compreendo.

- Reconheço quanto devo estar-lhe grata, a si, Mr. Mason, por ter cá vindo. Vejo agora que procurou realmente evitar-me uma publicidade desagradável. Posso perguntar-lhe o que aconteceu com aquele revólver?

- Uma das balas disparadas por ele matou uma pessoa.

- A sério ? Quem ?

- Não sei..., ainda.

Helene franziu as sobrancelhas e comentou:

- É um homem muito misterioso, Mr. Mason!

- Passo a vida a lidar com mistérios.

- Sim. Deve ser isso... - respondeu ela, tolamente. Ouviram-se passos nas escadas exteriores e Mervyn entrou de rompante, fechando a porta.

- Era o que eu pensava - declarou, indignado. - Alguém roubou a minha arma do porta-luvas do carro. Já me tinham aconselhado a não a deixar ali, quando o arrumo, em qualquer lado, mas... nunca se acredita que uma coisa destas nos possa vir a acontecer! Posso saber como foi este revólver parar às suas mãos?

Como o tivesse estendido para diante, Mason aproveitou a oportunidade para pegar-lhe e metê-lo na algibeira do casaco.

- Alguém teve a desfaçatez de plantá-lo no quarto de um dos meus clientes.

- Sim?

- E como esta serviu para cometer um homicídio - prosseguiu Mason -, achei ser meu dever vir avisar Miss Chaney da ocorrência. Desta maneira já poderia alertar os seus advogados e evitar uma propaganda nociva.

- Foi muito correcto da sua parte, Mr. Mason. Devo-lhe as minhas sinceras desculpas. Fui realmente pouco cordial consigo e começo a pensar que formei uma ma opinião acerca da sua cliente..., essa moça... Bagby. Certamente que as jóias ainda não apareceram, mas há circunstâncias que nos fazem reconsiderar nas suspeitas que tivemos inicialmente. Vou pôr-me, amanhã, em contacto com Miss Keith. Estou certo, Mr. Mason, de que havemos de encontrar uma solução conveniente, quanto à compensação a atribuir à sua cliente.

- Muito obrigado - disse Mason.

Com um sorriso contrafeito, Aldrich acrescentou:

- Bem, espero que me perdoe... Ando um pouco cansado, sobrecarregado com os negócios...

Virando-se para Helene, acrescentou:

- Querida, deixa-me fazer um telefonema. Acho que devo participar imediatamente à polícia o desaparecimento da minha arma. Tem aí o número dela anotado, Mr. Mason?

- Pode colhê-lo directamente da arma, se deseja telefonar, mas creio que já o escreveu, há pedaço - lembrou o advogado.

- Ah, é verdade! Como estou parvo! Não faça caso. Dirigiu-se ao telefone do átrio e discou o número do Departamento da Polícia.

- Desejo participar o roubo de uma arma - preambulou, mal conseguiu a ligação. - Acabo de descobrir que ma roubaram do porta-luvas do meu carro... Sim. É uma Colt Cobra... Um desses modelos ligeiros, muito leves... O número é...

Tirou o livrinho de apontamentos do bolso interior do casaco, deixou-o cair e estendeu o braço para Mason.

- Deixe-me ver a arma, por favor. É mais rápido, Mr. Mason.

O advogado estendeu-lha. Aldrich leu o número ao telefone.

- Sim... absolutamente! - continuou ele. - Decerto. Tenho licença de porte de arma... Daqui fala Mervyn Aldrich, da Aldrich Cruisers Corporation... dos iates, sim... Tenho-a para protecção pessoal. Costumo guiar o meu carro, de noite, muitas vezes, e transporto quantias consideráveis... Deixei-a no porta-luvas... Bem sei que não devia fazê-lo. É realmente falta de cuidado... Esqueci-me de guardá-la comigo, quando arrumei o carro... Não sei quando foi. Talvez, há um ou dois dias. Não a vi depois disso... Sim, sim. Sei onde está neste momento. Está em poder de Mr. Perry Mason, o advogado. Foi-lhe dada por um cliente... Bem, pensei que era melhor comunicar...

Aldrich pousou o auscultador no descanso, bruscamente. Devolveu o revólver a Mason e apertaram as mãos.

- Estou-lhe realmente muito grato e renovo as minhas desculpas - disse. - Peço-lhe que as aceite. Sem rancor, Mr. Mason.

- Não teve importância - contemporizou Mason. - Desejo-lhe, a si e a Miss Chaney uma noite agradável.

- A minha já ficou encoberta. Está a chover - tentou Helene gracejar.

- Bastante! - completou Mason, conduzindo Della Street para a porta.

Momentos depois, rodavam, estrada fora.

- Foi um esplêndido acto - comentou Della. - Helene representou magnificamente.

- Ele, também - apoiou Mason.

- Acha, Chefe, que Aldrich trocou as armas ?

- Estou certo disso.

- Mas o Chefe tinha o número do revólver e ele copiou-o! Céus! E ela viu-o copiar esse número! É a palavra de duas testemunhas contra a sua!

Mason limitou-se a acenar com a cabeça, afirmativamente.

Minutos depois, parou o carro na berma da estrada, tirou o revólver da algibeira, inspeccionou o tambor, à luz do tablier, e verificou que tinha dois cartuchos deflagrados. Levou o cano ao nariz, cheirou-o e passou-o a Della.

- Gosta de cheirar ? - perguntou, sorrindo.

- Cheira apenas a óleo. Não tem o odor habitual de uma arma que foi disparada.

- Exactamente - confirmou Mason.

- Portanto, não temos dúvida de que Aldrich trocou as armas e mudou, para essa, os cartuchos deflagrados da outra. ,

- Tal e qual.

- Temos de verificar os números. Registei o número da outra arma no meu livro de apontamentos e...

- Para que vamos dar-nos a todo esse trabalho? - cortou Mason.

- Essa é boa! Para podermos provar que Mervyn trocou os revólveres.

-,E vê alguma vantagem nisso, Della?

- Ah!... Já percebi! - concluiu Della Street. - O Chefe...

Calou-se prontamente.

- É isso mesmo, Della. Somos crianças inocentes, no meio de um bosque. Decerto, não percebemos que os lobos-maus nos trocaram as armas. Nunca nos passaria pela cabeça que Aldrich seria capaz de uma coisa dessas! Nunca! Um homem da sua reputação jamais desceria tão baixo, a menos que estivesse implicado em qualquer coisa suja. Ninguém me acreditaria, se ousasse insinuar uma manigância dessa natureza, por parte do construtor de iates que vai casar com a grande actriz! Diriam logo que eu estava a mentir, para proteger uma cliente.

 

Perry Mason parecia estar de muito bom humor, quando rodava em direcção a Hollywood.

- Aonde vamos, Chefe ? - interessou-se Della Street.

-Creio que seria conveniente dar uma vista de olhos à cena do crime. Mas, primeiro, quero telefonar a Paul Drake, a saber novidades. Estou a dar-lhe o maior tempo possível para que possa reunir-me os factos essenciais.

- Quer telefonar-lhe pessoalmente, ou posso eu fazê-lo ?

- Se tem muito gosto nisso, vá lá saber que informações tem para nos dar.

- Não é por gosto. É para que o Chefe não saia do volante, nem o vejam na cabina.

- Creio que tem razão, mas avie-se. Não podemos perder muito tempo.

Pelos vidros da cabina, Mason podia apreciar as reaçôes faciais de Della, enquanto telefonava. Acendeu um cigarro e viu-a de olhos semicerrados, apreensivos, e em seguida tirar o bloco-notas da bolsa. Escrevinhou qualquer coisa e saiu da cabina, a correr, deixando o auscultador pendurado, a baloiçar.

Entrando no carro, comunicou, consternada:

- Oh, Chefe! O homem..., o cadáver que encontraram no carro era de Steve Merrill. Uns amigos dele confirmaram que, em tempos, usou o nome de Stauton Vester Gladden. Nessa altura dedicava-se a falsificações e burlas. Foi o tipo que extorquiu a pequena herança de Evelyn Bagby. Ela queixou-se dele à polícia e esta tem em seu poder esse documento, transcrito do gravador.

- Hum, hum! - emitiu Mason, tranquilo.

- A morte do homem não se passou da maneira como Evelyn a descreveu. Foi assassínio premeditado.

- Como foi isso?

- Além das luzes do carro terem sido apagadas no comutador do tablier, há outras coisas que não encaixam. Pouco antes do meio-dia, a sua cliente telefonou à vítima, marcando-lhe um encontro. A polícia foi informada disso por uma tal Ruby Inwood que recebeu o recado. Ela vive na mesma casa de apartamentos onde Steve Merrill morava. Não se sabe como, mas este conseguira arranjar dinheiro para pagar-lhe. Cerca de sete mil e quinhentos dólares, em notas, que mostrou aos seus associados. Declarou-lhes também que tinha de pagar a Evelyn, para a calar e que ia telefonar-lhe, para combinar esse encontro.

- Combinaram, pois, encontrar-se ?

- Sim, Chefe. Ela disse-lhe que trabalhava até às três horas e que, depois, estaria livre até às oito. Evelyn sugeriu-lhe que se encontrassem na estrada de montanha, não muito longe da Crowncrest Tavern. Foi ela quem designou o local.

- Parece que a polícia trabalhou depressa – apreciou Mason.

- Os detectives que estão a averiguar o caso arranjaram várias testemunhas que se fartaram de dar à língua.

- Estou a ver que sim.

- E ainda há mais. Steve Merrill tinha uma arma. Andava a exibi-la por todo o lado, visto ser um desses Colt modernos, e mostrava-se muito orgulhoso em possuí-lo.

- Olá! - interessou-se o advogado.

- Que é, Chefe!

- Nesse caso, deve tê-lo roubado. Não ouviu Mervyn Aldrich queixar-se disso?

- Mas o Chefe sabe muito bem que ele mentiu. Disse que lhe tinham roubado a arma, apenas para proteger Helene Chaney. Vai deixá-lo escapar-se com uma treta dessas ?

- Ainda é cedo para decidir, Della, mas quem é que se atreverá a acusar um cidadão respeitável como Aldrich de uma manigância dessa natureza? Que mais contou, Drake?

- Os polícias estão loucos de entusiasmo. Andam à sua procura, por todo o lado. Agora o caso depende já do Departamento de Homicídios e o sargento Holcombe foi encarregado da investigação. Está, neste momento na Crowncrest Tavern tentando averiguar o paradeiro de Evelyn Bagby. Joe Padena contou-lhes que o Chefe informara a sua cliente de que o homem fora provavelmente morto pelo tiro que ela disparara. Isso tornara-a histérica a ponto de ter sido tratada por um médico. Os polícias estão de guarda ao seu escritório e têm apertado Drake com perguntas. Paul está muito preocupado.

- Muito bem - disse Mason, calmamente.

- Bem, como ? Drake está convencido de que o caso de Evelyn é daqueles em que nada há a fazer. Todas as provas estão contra ela. A polícia descobriu que a sua cliente tirou a fronha de uma das almofadas da cama, antes de ir encontrar-se com Merril. Abriu-lhe os dois orifícios para os olhos e enfiou-lha na cabeça. Depois, matou-o.

Em seguida, apagou as luzes do carro, apontou-o em direcção ao precipício, pôs o motor em ponto morto e destravou. Saltou para fora e deixou o automóvel deslizar no plano inclinado da estrada. Chega à curva, embateu no paredão, destruiu-o e despenhou-se no precipício.

- Não está mal imaginado, não senhor - aprovou Mason.

- Então - prosseguiu Della -, Evelyn telefonou ao Chefe, declarando terem-lhe plantado uma arma entre as roupas da gaveta, quando, afinal de contas, utilizou o Colt que Merrill trazia consigo. Feito isso, sugeriu-lhe, a si, que seria melhor levar-lhe a arma e contou-lhe essa história rocambolesca do assalto de que fora vítima.

- A polícia julga ter provas disso tudo ?

- Assim o crê Paul Drake. Ficou na linha, à espera que o Chefe vá falar com ele. Está sobre brasas.

- Magnífico - disse Mason. - Comunique-lhe que agradeço todo o trabalho que teve para obter essas informações e aconselhe-o a que vá deitar-se, pois deve estar exausto. Diga-lhe que faço votos para que durma bem e tenha lindos sonhos, que amanhã também é dia de trabalho e pressinto que terá muito que fazer para desvendar novos factos.

Della Street começou por fitar Perry Mason, com uma expressão irritada, depois perplexa e, finalmente, desatou a rir.

- Porque acha graça ?

- O Chefe é a pessoa mais exasperante que eu conheço. Parece estar perante um caso perdido e isso não o perturba visivelmente.

- Disse muito bem, Della. Parece um caso perdido.

A bela secretária saiu do carro e voltou ao telefone, para transmitir a mensagem a Paul Drake. Quando regressou, censurou:

- Não devia fazer isso, Chefe.

- O quê?

- Portar-se assim com Paul Drake. Ele andou a virar tudo de pernas para o ar, à procura de informações concretas, antes de a polícia começar a agir. Pôs uma data de pessoal a tratar do assunto e manteve-se toda a noite acordado, à custa de cigarros e café. Queixou-se de que, com outra noite como esta, é capaz de ir-se abaixo das pernas.

- Paul é muito mais resistente do que ele próprio pensa. Depois de dormir uma hora, fica de novo fino e pronto para outra.

- Qual é a sua ideia? Antevê uma saída?

- Ainda não prevejo nada - respondeu Mason.

- Está bem. Se gosta de fazer-se misterioso comigo, continue. Acha que não lhe mereço suficiente confiança para expor-me os seus planos ?

Em vez de responder-lhe, Mason indicou:

- Há uma paragem de táxis, a alguns quarteirões mais abaixo. Vou levá-la até lá, Della. Você apanha um deles e vai para o seu apartamento fazer ó-ó. Valeu ? Trate de dormir bem e recompor-se, porque amanhã precisarei de si, fresca e eficiente.

- E o chefe, aonde vai ?

Naturalmente, Mason anunciou:

- Vou até a Crowncrest Tavern ver se posso ajudar o sargento Holcomb na sua investigação. Se a polícia anda à minha procura, acho que devo cooperar com as autoridades.

 

Mason meteu o carro na garagem do edifício onde tinha o seu apartamento e disse para o guarda do parque:

- Não vale a pena arrumar a carripana, Joe. Vou só dar um salto a casa e já volto.

Subiu pelo ascensor de serviço, desde a garagem até ao andar onde tinha o apartamento, entrou neste e correu para o armário onde tinha uma caixa com munições de vários calibres. Escolheu dois cartuchos de calibre 38 e, instantes depois, estava de volta ao carro.

Seguiu cuidadosamente através das ruas da cidade, procurando não cometer a menor transgressão, nem sofrer um acidente de trânsito e meteu pela estrada mais curta de acesso à Crowncrest Tavern.

Quando chegou ao local da tragédia, verificou que a polícia não só já tinha removido o cadáver, como também levara o automóvel que estivera no fundo da ravina. Deviam estar a recolher impressões digitais.

Viam-se na estrada, apesar de molhada, vestígios de manobra de carros e muitas lâmpadas de flash, o que Indicava que os jornalistas se tinham fartado de tirar fotografias.

O advogado parou o carro junto à berma e saiu para a chuva.

Tirou o revólver da algibeira e carregou-o com os dois cartuchos que fora buscar a casa, guardando os já deflagrados. Então, apontou para um poste vermelho, dos que servem de base ao guarda-estrada, e fez fogo. Em seguida, apontou para o tronco de um carvalho, dos que se alinhavam ao longo das bermas, e tornou a disparar.

Feito isto, retirou os cartuchos vazios e substituiu-os pelos que anteriormente extraíra e guardara na algibeira. Os que acabara de descarregar, enfiou-os no bolso das calças.

Voltou ao carro e pôs a arma no porta-luvas. Dirigiu-se então para o restaurante de Joe Padena, mas, antes de lá chegar, parou novamente, saiu do automóvel e aproximou-se da berma da estrada, já muito afastado do local onde estivera. Aí, tirou os seus dois cartuchos do bolso e lançou-os para longe, no meio do mato do desfiladeiro.

Momentos depois, chegava à Crowncrest Tavern, onde viu dois carros-patrulha da polícia, outros de jornalistas e outros ainda de presumíveis clientes de Joe Padena. Este, em virtude da propaganda que a rádio fizera do crime, já não podia queixar-se de que a chuva o privara de clientela.

Mason arrumou o automóvel em frente da porta, apagou as luzes e saiu. Um repórter que estava à entrada do restaurante aproximou-se e, reconhecendo-o, tirou-lhe uma fotografia. A luz do flash alertou outros fotógrafos que acorreram, no momento em que o advogado entrava no edifício.

Durante alguns segundos, Mason ficou encadeado com as violentas luzes das câmaras. Quando estas deixaram de fotografá-lo, viu o sargento Holcomb, em sua frente, furioso como um toiro.

- Onde diabo meteu essa sua cliente, Mason ? - inquiriu, excitado.

- A última vez que a vi - respondeu o advogado -, estava com um terrível ataque de histeria. Creio que a levaram a um médico.

- Que médico?

- Não posso dizer-lho.

- Não comece com isso - protestou Holcomb, Irritadamente. - Bill Ferron disse-me que ela lhe entregara, a si, a arma com que cometeu o crime. Essa arma constitui uma prova material. O senhor é advogado e sabe que não pode ocultá-la da polícia.

- Para começar - declarou Mason -, não está provado que qualquer crime tenha sido cometido com essa arma. Depois, não lhe teria Ferron também dito que eu lhe sugerira que, se quisesse ver a arma...

- Isso foi antes de Ferron saber que se cometera um homicídio com essa mesma arma.

- Homicídio ? - admirou-se Mason. - Com essa arma ?

- Ouviu bem, não ouviu? - rugiu Holcomb. - Trata-se de assassínio.

- Creio, Sargento, que não está bem dentro do assunto. Miss Evelyn Bagby foi assaltada na estrada e...

- Não me venha com contos de fadas. Guarde isso para o júri. Onde diabo está essa arma?

Olhando para o carro, o advogado franziu o sobrolho.

- A arma? - repetiu. - Sabe, sargento... O que acaba de informar-me coloca-me numa posição bastante peculiar. Não sei se deva... Bem, é um Colt...

- Não se ponha a tentar cortar-me as voltas - exasperou-se Holcomb. - Já sei tudo acerca dessa arma. um revólver Colt Cobra, de calibre 38, em durália. dos mais leves e modernos que se fabricam. Constitui prova vital, neste caso. Estou a dizer-lhe, como agente da autoridade, que foi cometido um crime com essa arma. Quer entregar-me essa prova, ou não?

Mason dirigiu-se ao carro, estacionado em frente da entrada do restaurante, e parou junto dele, hesitante. O sargento do Departamento de Homicídios estacou também, a seu lado.

- Estou à espera - protestou.

O advogado, evidenciando forte contrariedade, abriu a porta do automóvel, estendeu a mão para o porta-luvas, mas tornando a recuá-la, observou:

- Não faço a menor objecção em apresentar à polícia qualquer objecto que seja efectivamente uma prova de crime. Mas exijo que este ponto fique bem explícito na sua mente, Sargento: SE, neste momento, lhe, entrego uma arma, de maneira alguma quero que interprete a minha acção, como estando a apresentar-lhe a arma do crime. Na minha opinião, caso tenha havido realmente homicídio premeditado, não foi esta a arma utilizada para executá-lo. Quero que fique bem assente que apenas lhe entrego o revólver que Miss Evelyn Bagby disse ter utilizado para amedrontar um homem que tentou matá-la, despenhando-o por um precipício. Os senhores jornalistas, aqui presentes, são testemunhas de que...

- Deixe-se de balelas - vociferou Holcomb, metendo um ombro ao peito de Mason e afastando-o violentamente para o lado. Em seguida, abrindo o porta-luvas, tirou o Colt para fora, num gesto triunfante.

- Não pode fazer isso - censurou Mason.

Como resposta, Holcomb abriu o tambor da arma, viu os dois cartuchos deflagrados e emitiu um grunhido de satisfação.

A cena foi fortemente iluminada pelos flashes das câmaras fotográficas.

- Mais uma, sargento - pediu um dos repórteres. - Simule estar a tirar a arma do porta-luvas.

Holcomb estava demasiado exultante para negar-se a essa prova do seu triunfo. De maneira bem visível, aproximou novamente a arma do tablier.

Mason afastara-se, discretamente, de forma a não ficar na imagem.

Em seguida, o sargento virou-se para o advogado e ordenou:

- Vai agora apresentar-me a sua cliente, Evelyn Bagby suspeita de homicídio do terceiro grau.

Era a sua festa e mostrava-se radiante com a vitória obtida.

- Apresentá-la-ei, logo que o médico me autorize a fazê-lo - respondeu Mason.

- Esse médico cometeu uma fraude - afirmou Holcomb, sarcástico. - Provavelmente nem existe. Você escondeu-a em qualquer lado.

- Não sei onde Miss Bagby se encontra - declarou Mason -, e afirmo, perante testemunhas, que o senhor não tinha o direito de empurrar-me violentamente, nem sequer de abrir o porta-luvas do meu carro, sem minha acordância, nem mandato de busca.

- Deixe-se de fitas - rosnou o sargento. - Não estou para discussões consigo. O que eu queria, já cá canta.

Virou as costas bruscamente e entrou no restaurante.

Aproveitando o facto de os jornalistas terem corrido atrás de Holcomb, Mason contornou a viatura, sentou-se ao volante e partiu discretamente, estrada fora.

 

Enquanto Della Street retirava, de cima da cama onde se encontrava Evelyn Bagby, uma bandeja com pratos e talheres, Mason sentou-se junto da cadeira e perguntou à sua jovem cliente:

- Como vai isso ?

A ruiva que envergara uma camisa de noite transparente que Della, impensadamente, lhe emprestara, em vez de outra, mais opaca, respondeu ainda:

- Alegre como um cheque de mil dólares. Sinto ainda a cabeça um pouco esvaída, mas dormi esplendidamente.

Numa gaiola perto, um papagaio, excitado pela presença de tantos visitantes, esticou o pescoço de lado, para ver melhor e pairou:

“Polly lindo! Polly lindo! Polly quer bolacha.

- Prepare-se, Evelyn, para ter um dia agitado - advertiu Mason.

- A polícia pensa que...

- Conte-me o que se passa, Mr. Mason.

- Agarre-se bem à cama, para não cair.

- Porquê ?

- Porque vai sofrer um sacão dos rijos. O cadáver encontrado no fundo da ravina foi morto por um tiro na têmpora direita...

- Já sabia isso - disse a ruiva.

- A bala que o matou atravessou a fronha da almofada que ele tinha enfiada na cabeça...

- Bem sei.

- ... e morreu instantaneamente, “Poly quer bolacha!” gritou o papagaio.

- A polícia já descobriu a identidade do morto - prosseguiu Mason.

- Quem era ele?

- Steve Merrill, ou Stauton Vester Gladden..., se preferir.

Evelyn empalideceu e exclamou:

- Não me diga!

- Não só lho digo, como afirmo que está metida numa camisa-de-onze-varas.

Após um momento de refexão, Evelyn recompôs-se e declarou:

- Isso explica tudo!

- O quê ?

-Não está a ver? Desmascarei Stauton, ao identificá-lo como sendo Steve Merrill. Ameacei-o de denunciá-lo à polícia, caso não me pagasse o dinheiro que me extorquiu. Só Deus sabe quantas pessoas não estariam no meu caso. Se soubessem quem ele era, na vida real, também o acusariam de fraude. Sentiu-se perdido e resolveu calar-me para sempre. Por isso telefonou a declarar concordar em fazer-me um primeiro pagamento. Então, esperou-me na estrada e tentou matar-me.

- E você disparou sobre ele, duas vezes?

- Exactamente.

- Agora, preste atenção. A fronha tinha um orifício, presumivelmente rasgado por uma bala, mas este não se encontrava manchado de sangue. Fora aberto um pouco mais à frente do ponto em que a bala fatal penetrou no crânio de Merrill.

- Não percebo - disse a ruiva, confusa. - Só se a minha primeira bala apenas lhe perfurou a fronha...

- Não Evelyn. Nesse caso, haveria dois buracos de bala..., ou três.

- Três, como?

- Teria de haver um, no sítio da mancha; outro, que só atravessara a fronha e... se a atravessara, saiu por outro lado, causando terceiro orifício.

- Não pode ser! - reflectiu Evelyn. - Só há uma explicação possível: a fronha estava noutra posição, quando Merrill foi atingido; depois deslocou-se e o sangue manchou um ponto da fronha que não fora furado.

- Também não pode ser - contrariou Mason. - Se a fronha estava desviada para um lado, Merrill não podia ver a estrada, porque os buracos abertos para os olhos, coincidiriam com. o nariz e uma orelha. De resto, foi encontrado com essa espécie de máscara bem presa à cabeça, por um elástico. Ora, não seria, depois de morto, que poderia repor a fronha no seu lugar, a direito, com as aberturas sobre os olhos.

“Poly é lindo!, gabou-se a ave.

O olhar de Evelyn começava a dar indícios de um desespero incipiente.

- Não compreendo! Não... consigo perceber! - balbuciou.

- A polícia vai sustentar a tese de que você matou Merrill a sangue-frio e, depois, lhe enfiou uma fronha da sua própria cama, na cabeça, tendo tido o cuidado de abrir-lhe um buraco para simular ter este sido feito pela bala acidental.

“Poly quer bolacha!", insistiu o papagaio.

- Não será possível meter este bicho num sítio qualquer onde não nos mace? - protestou Mason, virando-se para Della.

Rindo, a jovem secretária conseguiu desanuviar o estado de tensão que começara a invadir Evelyn. Pegou na gaiola, levou-o para a casa de banho e fechou a porta.

- Pode dar-me mais pormenores do que se passou? - pediu a ruiva.

Mason olhou para o relógio de pulso e satisfez:

- Merrill alugou um automóvel. Vivia num edifício de apartamentos, Stemwooã Apartments, que tem parque de estacionamento. Oscar Loomis habitava o mesmo edifício e possuía um carro do mesmo modelo que Merrill alugara. Arrumou-o perto do de Steve Merrill. As quatro e quarenta, Loomis quis sair de carro e verificou que lho tinham levado. Apressou-se a apresentar queixa à polícia. Poucos minutos depois, Boles que também alugara um

- apartamento nos Sternwood, para estar perto dos seus associados, apareceu e sugeriu a Loomis que, provavelmente, Merrill confundira os automóveis e levara o de Loomis, por engano. Vira Steve sair do parque, levando uma mulher, no carro, a seu lado.

- Boles! - interrompeu Evelyn. - Que diabo estava ele a fazer ali? Julgava que vivia em Riverside!

- Também eu, mas telefonei a Paul Drake, antes de vir para cá e foi ele quem me deu essa informação. Já pôs dois detectives a verificarem essa discrepância. Merril deve ter planeado e executado esse roubo de jóias, não só para ganhar uma data de “massa”, como para implicá-la, a si, num caso de crime e, ao mesmo tempo, para adiar o casamento de Helene Chaney com Aldrich. Ainda não tenho provas, mas não me custa a acreditar que Boles tenha sido seu cúmplice, acusando-a, a si, do furto das jóias.

- Mas Boles afirmou, no tribunal, estar em Corona porque...

- Não interessa o que Boles aí declarou. Sabemos que cometeu prejúrio, para incriminá-la. O que é importante é ter ele agora afirmado à polícia que não conhecia Merrill, antes de as jóias terem sido roubadas. Que, só depois de ele ser convocado e ter prestado declarações como testemunha, é que Merrill o procurou, para perguntar-lhe o que se passara no tribunal.

- Acredita nisso, Mr. Mason? -indagou Evelyn, sarcástica.

- Como advogado, encaro essa declaração com o maior cepticismo. Boles afirma que, só a partir de então, se tornou amigo de Steve Merrill. Este falou-lhe de si, Evelyn, e do sarilho em que se achava porque você o reconhecera pelas fotografias.

- Boles sabia que Steve ia pagar-me sete mil e quinhentos dólares?

- É natural que o soubesse. Merrill deve ter-lho dito, da mesma maneira que parece ter contado isso a Loomis. O que interessa agora é que Boles tem um álibi. Estava na companhia de Loomis, às cinco horas menos vinte minutos. Foi nessa altura que uma rapariga, Ruby Inwood, que vive no mesmo edifício de apartamentos, se lhes juntou. Os três foram jantar juntos e assim se mantiveram até depois das oito horas.

“Pôôllyye liinduu!" ouviu-se através da porta da casa de banho.

Com uma careta, Mason prosseguiu:

- Ruby Inwood parece ser uma dessas moças que vivem a vender prazeres. Não trabalha, mas veste bem, tem um belo apartamento e muitos amigos masculinos. Consta que o seu carro novo lhe foi oferecido por um tipo qualquer que lhe frequenta a cama assiduamente.

- Fazem um belo grupo! - criticou Evelyn. Mason tornou a ver as horas e continuou:

- Parece que Boles nada tem a ver com a morte de Merrill, mas continuo a investigar o seu verdadeiro comportamento no roubo das jóias, pois estou convencido de que foi cúmplice no golpe.

- Por isso estava tão interessado em...

Com um gesto, Mason interrompeu a irrequieta ruiva e prosseguiu:

- Agora analisemos o caso de Mervyn Aldrich. É incapaz de apresentar um álibi, ou indicar uma testemunha que explique por onde andou, entre as quatro e meia e as sete e meia. Irene Keith disse-me que estava em casa, aguardando o meu telefonema. É plausível, mas também não tem outro álibi mais ponderável. Nem mesmo se pode considerar álibi válido. Pelo sim, pelo não, disse a Paul que pusesse um dos seus homens a verificar essa sua declaração. De forma que você, Evelyn, é a única suspeita sobre quem a polícia se encarniça.

- A polícia... Que intenta ela fazer ?

- Por enquanto, está a radiofundir um comunicado a todos os médicos da cidade, ordenando àquele que a tratou que se apresente no Departamento de Homicídios, ou telefone dando notícias suas, imediatamente. Não se atrevem a pensar que eu a tenha escondido, sem me escudar com o diagnóstico de um médico, mas admitem que arranjei um que acedeu a pô-la fora da circulação. Isto significa que não posso mantê-la oculta por muito mais tempo.

- Paciência - murmurou ela.

- O que a espera, nestas próximas horas, não vai ser muito agradável.

- O que é ?

- É provável que tenha de passá-las numa cela - advertiu Mason.

- Já começo a estar habituada - filosofou a jovem.

- Portanto, quero que faça uma coisa, incansavelmente.

- Que é ?

- Que fale.

- Que quer que eu diga ?

- Tudo que lhe vier à cabeça. Fale pelos cotovelos. Obrigue os polícias a encherem páginas e páginas de relatório com as suas declarações. Recite-lhes a sua infância, o seu desejo de vir a ser actriz, como foi vítima da corte fraudulenta de Steve Merrill, sob o nome falso de Gladden... Fale até mais não poder. A sua salvação reside no tempo que conseguir proporcionar-me para averiguar mais factos.

- Mas isso não será estar a meter-me na boca do lobo ? Não parecerá que tive uma razão poderosa para matar Merrill?

- Assim é, mas a polícia acabaria por descobrir os seus antecedentes e pôr a nu toda essa história. Portanto, é preferível que seja você a contá-la, em vez de fechar-se em copas, compreende. Aparentemente, nem faz sentido que você, sendo culpada, desate a dar toda essa publicidade a um motivo para vingar-se de Merrill. Temos de jogar com a lógica dos jornalistas e do público. Não se esqueça de que os jurados são escolhidos entre os cidadãos desta cidade e que os cidadãos desta cidade têm a mania de ler jornais e raciocinarem, enquanto os lêem ao pequeno-almoço e antes de ir para a cama.

- Acha que os jornais verão essa hipótese com bons olhos, Mr. Mason?

- Há uma data de repórteres femininas que irão procurá-la, a fim de obter entrevistas. Realce especialmente essa sua ambição de ser artista cinematográfica e do muito que estudou teatro. Fale, fale, fale!

- E não haverá jornalistas que suspeitem de que estou propositadamente a fazer autopropaganda, para atrair a compaixão do público.

- É possível..., é mesmo provável e sempre benéfico. Quanto mais publicidade em volta deste- caso, tanto melhor para si. É a antítese de quantos tenho defendido até aqui. Quase sempre exijo silêncio aos meus clientes e evito um escândalo por todos os meios. Desta vez, o que se torna necessário é uma torrente de opiniões, de falatório, de propaganda pessoal. Conte a história da sua vida. Se começarem a pintá-la como tendo sido uma tola, uma inconsciente, uma sonhadora inconsequente; se a apresentarem como a criada de mesa que quis ser “estrela”, não se importe. Quanto mais tonta, menos capaz seria de ter forjado aquele plano maquiavélico, para eliminar Merrill. É a sua salvação.

- É a única possibilidade que tenho de salvar-me?

- Bem - confessou Mason -, também conto arranjar alguns trunfos nas mangas.

- E à polícia, também me apresento sob esse ângulo?

- Quanto mais crédula e inexperiente das coisas da vida, tanto melhor.

“Quêêru buulâchas!" teimou o papagaio, abafadamente.

- Se me perguntarem por que razão, Mr. Mason, me autorizou a que falasse, que lhes respondo?

- Que tenho a certeza absoluta de que está inocente e, por isso, achei que não devia esconder coisa alguma às autoridades. E use esses seus olhos, como sabe servir-se deles, quando quer encantar um homem, é um bom truque.

- Oh, Mr. Mason. Não me sirvo dos olhos para truques. Consigo fui sempre sincera.

- Já a vi olhar para mim dessa maneira, Evelyn. Não me esqueço de que é realmente boa actriz.

- Bem..., confesso que treinei ao espelho alguns efeitos de expressão - replicou ela, com certo azedume-, mas não os usei consigo, Mr. Mason. Só se o fiz impensadamente, mecanicamente...

- Okay, Evelyn - terminou Mason, consultando o relógio pela terceira vez. - Já tem pouco tempo. Conte à polícia o que se passou com o médico e com Miss Street; da injecção para dormir doze horas e tudo o mais.

- Quanto tempo pensa que terei ainda, antes de eles chegarem ?

- Unicamente o suficiente para tomar um duche e vestir-se.

Evelyn começou a sair da cama.

Lembrando-se da transparência da camisa de noite, Mason apressou-se a anunciar:

- Vou sair com Della. Os “chuis” estarão aqui dentro de vinte minutos.

Della Street pegou num braço de Mason e puxou-o para a saída.

Evelyn Bagby saltara da cama e encaminhava-se preguiçosamente para a casa de banho.

- Ponha o bicho cá fora, outra vez - recomendou Mason, da porta.

Evelyn virou-se de frente para ele e prometeu:

- Esteja descansado, Mr. Mason. Já no corredor, Della comentou:

- Não a acha descarada de mais, para fazer de inocente ?

- Conto com a sua arte de representar - confessou Mason.

Quando iam a fechar a porta do elevador, ainda ouviram o papagaio gritar:

 “Poly quer bolacha!”

“E o que ela queria sei eu" resmungou Della, baixinho.

 

Frank Neely estava a sofrer um ataque agudo de “medo de palco”.

Como o caso Evelyn Bagby envolvia uma famosa “estrela” cinematográfica, o tribunal estava cheio de jornalistas e os fotógrafos bombardeavam os olhos de Neely com exagerada frequência, já que a acusada se achava por trás dele.

Perry Mason, sentado ao lado de Neely, compreendeu o seu nervosismo e animou-o:

- Este tipo de publicidade vai ajudar-nos junto da opinião pública e do júri, verá, caro colega. Aceite a tempestade de flashes como um veterano; sorria, como se estivesse cheio de confiança no nosso triunfo, que é o da nossa cliente.

- As provas compiladas pelo sargento Holcomb e a sua teoria sobre o crime não nos deixam margem alguma para a Defesa. São verdadeiramente esmagadoras.

-São aparentemente esmagadoras - corrigiu Mason.

Esteja atento às declarações das testemunhas, como um falcão aos movimentos da presa. Ao mais pequeno deslize que pressuponha uma contradição, caia-lhe em cima, em voo picado.

- Mas as provas...

- As provas apresentadas pela polícia parecem sempre inabaláveis. Contudo, nem sempre correspondem aos factos reais. Esse é o calcanhar de Aquiles do Procurador do Distrito e compete à Defesa acertar-lhe com a flecha fatal. Bem, aí vem o juiz.

Efectivamente, nesse momento, o juiz Kippen dava entrada na Sala de Audiências. Depois de ter ordenado silêncio a todos os circunstantes, inquiriu:

- A Acusação está pronta para iniciar os debates ?

Geoffry Strawn que representava o Procurador do Distrito respondeu com evidente satisfação:

- Pronta, Sr. Dr. Juiz.

- Está pronta a Defesa ?

- A Defesa está pronta - respondeu Mason tranquilamente.

Strawn que se permitira declarar aos jornalistas ter muito gosto em “esgrimir” nesse duelo da Lei com Perry Mason e estar certo de que, desta vez, o célebre advogado-criminal veria os seus “golpes secretos” parados e seria “trespassado”, lado a lado, sem hipótese de utilizar os costumeiros “truques de armas”, chamou Harry Boles, como primeira testemunha da Acusação.

Frank Neely, inclinando-se para Perry Mason, comentou:

- Lá vem este, novamente, à baila.

Apercebendo-se da impressão que Boles causara em

Neely, pela expressão incomodada do jovem advogado, Geoffry Strawn sorriu sarcasticamente e começou por inquirir: -. Conheceu Steve Merrill, em vida ?

- Sim, senhor - respondeu Boles.

- Onde está ele, agora ?

- No necrotério.

- Viu o cadáver de Merrill ?

- Sim.

- Reconheceu-o?

- Sim.

- Teve alguma dificuldade na sua identificação ?

- Não, senhor. É mesmo Steve Merrill o homem que vi assassinado...

- Basta -' interrompeu Strawn. - A Defesa pode interrogar.

Mason sorriu para Boles.

- Há quanto tempo conhece Steve Merrill? - perguntou.

- Há pouco tempo. Por acaso, aluguei um apartamento no mesmo edifício onde ele tinha o dele.

- Por acaso, disse ? Muito bem. Sabe se o falecido Steve Merrill usava também, a falsa identidade de Stauton Vester Gladden ?

- Objecção, por incompetente, irrelevante e Imaterial - interpôs Strawn.

- É contra-interrogatório correcto, Sr. Dr. Juiz - alegou Mason.

- Um momento - disse o juiz Kippen, inclinando-se para diante sobre a secretária e olhando para Mason por cima dos óculos. Está a decorrer um exame preliminar. Não se trata de um debate formal, em julgamento. A Justiça dos Estados Unidos determina, como os senhores advogados estão perfeitamente inteirados, que a finalidade de um exame preliminar é apresentar as provas obtidas de um crime e verificar se estas provas permitem razoavelmente inculpar o réu como presumível autor desse crime.

Mason baixou as pálpebras, em sinal de assentimento.

- Portanto, o Tribunal não deseja ouvir uma série de argumentos técnicos e de objecções constantes, com o intuito de tornar o caso espectacular. Não quer também consentir dramatismos pirotécnicos de grande efeito emocional, e opõe-se terminantemente a demonstrações de rivalidades pessoais. A objecção é rejeitada e a testemunha vai responder à pergunta.

- Sabe se Steve Merril se fazia passar por Stauton Vester Gladden ? - repetiu Mason.

- Só o soube no dia em que morreu. Foi a primeira vez que me disse ter usado esse nome.

- É tudo - disse Mason.

- Não pretende mais nada da testemunha? - estranhou o juiz.

- Não senhor Dr. Juiz. É tudo - confirmou Mason. Strawn chamou então "William Ferron.

Este, depois de ajuramentado, declarou ter visto a ré, pela primeira vez, no restaurante Joshua Tree Café, na noite em que o crime fora cometido.

- A acusada prestou então quaisquer declarações ? - perguntou Strawn.

- Sim, senhor.

- Fê-lo voluntariamente ?

Ferron sorriu e respondeu:

- Fê-las na presença do seu advogado.

- Mr. Perry Mason ?

- Exactamente.

- Que foi que ela lhe comunicou ?

Ferron relatou o que Evelyn lhe contara, arrastando a sua narrativa e não se furtando a pormenores. Depois, declarou ter ido ao local da estrada de montanha onde se verificara a ocorrência, ter encontrado o paredão derrubado e o carro no fundo da ravina. Acrescentou ter descoberto o cadáver e descreveu a maneira como o encontrara.

- Contra-interrogatório - propôs Strawn.

- Não tenho perguntas a fazer - declinou Mason, com uma breve vénia ao detective Ferron que não pôde esconder o seu espanto.

- Queira o sargento Holcomb vir ao “banco” das testemunhas - solicitou Strawn.

Este avançou, inchado como um peru, prestou o juramento formal e, com um ar de grande aprazimento, sentou-se na cadeira das testemunhas, procurando o conforto de quem prevê demorar-se nela muito tempo.

Respondendo concisamente ao interrogatório da Acusação, explicou quais as suas funções, como elemento do Departamento de Homicídios, e relatou como fora chamado a investigar o caso de um cadáver encontrado no fundo de um precipício da estrada de montanha, entre Hollywood e o restaurante Crowncrest Tavern, nos limites da cidade.

- Quais eram as condições atmosféricas, nessa altura? - inquiriu Strawn.

- Chovia. O carro estava no fundo da ravina, assim como o cadáver. Estavam lâ dois representantes do xerife da zona limítrofe e muitos fotógrafos dos jornais. Ao dizê-lo, o sargento, olhou de relance para a bancada onde se achavam os elementos da imprensa.

-Que fez, ao chegar ao local do sinistro?

- Quando cheguei ao local do crime - precisou Hol-comb -, desci até ao fundo da ravina, examinei o cadáver e presidi à sua remoção, depois de os fotógrafos da polícia terem obtido as necessárias provas fotográficas. Descobri então vários indícios que tinham passado desapercebidos aos representantes do xerife, um dos quais de primordial importância.

Pelas respectivas expressões, tornava-se evidente que Ferron e Morris ficaram revoltados com a gabarolice do sargento dos Homicídios. Este mostrava-se orgulhoso pela sua autoproclamada eficiência.

- Pode precisar alguns desses indícios que detectou?

- Verifiquei que as luzes do carro tinham sido desligadas.

- E interrogou a ré acerca da luz dos faróis, quando, segundo a sua versão, estava a ser perseguida na estrada?

- Sim, senhor.

- Que respondeu ela?

- Que os faróis tinham estado sempre acesos, encadeando-lhe a vista pelo espelho retrovisor.

A evidente contradição da acusada dava tanta satisfação a Strawn como a Holcomb.

-Conseguiu apoderar-se da arma com que o-crime foi cometido ?

-Sim, senhor.

- Onde encontrou essa arma?

- Estava na posse de Mr. Mason, advogado da ré.

- Onde a tinha ele ?

- No compartimento do seu automóvel, comummente designado por “porta-luvas”.

- Muito bem, muito bem. E a que horas conseguiu obter essa prova?

- Por volta das onze da noite.

- Em que local?

- À entrada da Crowncrest Tavern onde, aparentemente, a ré teria um emprego. Mr. Mason tencionava falar com ela, antes de...

- Não interessam as suas conclusões, Sargento Holcomb, neste ponto do inquérito - cortou Strawn, antecipando-se a uma possível objecção de Mason. - Queira prosseguir, relatando ao Tribunal o que mais aconteceu?

- Bem, pedi a Mr. Mason a arma que a acusada lhe entregara no restaurante onde estivera a contar a sua história a Ferron..., ao detective Ferron, representante e adjunto do xerife.

- E Mr. Mason entregou-lhe essa arma, voluntariamente ?

- Bem..., não foi voluntariamente, mas fez um gesto em direcção ao porta-luvas, denunciando o local onde a escondera, pelo que abri esse compartimento e tirei a arma.

- Onde está ela agora ?

- Tenho-a em meu poder.

- Em que condições estava essa arma, no momento em que conseguiu obtê-la ?

- Nas mesmas em que se encontra agora, neste momento.

- Referindo-nos precisamente ao tambor, notou alguma coisa de relevante nesse cilindro?

- Apresentava dois cartuchos deflagrados.

- E a arma encontra-se, positivamente, nas mesmas condições em que a retirou do carro de Mr. Mason? Pode jurá-lo?

- Exactamente. Mantém os mesmos cartuchos, tal como os encontrei. Posso jurá-lo..., positivamente - afirmou Holcomb, com ênfase, cioso da sua honorável responsabilidade.

Virando-se para o juiz Kippen, Strawn Indicou:

- Peço que esta arma seja incluída no processo como Prova A da Acusação.

- Desejo contra-interrogar a testemunha - interveio Mason -, quanto à admissibilidade dessa arma como prova, no processo.

- Muito bem - aquiesceu o juiz Kippen. Holcomb encarou Mason com notória desconfiança - Disse que esta arma se encontra, exactamente, nas mesmas condições em que se achava, quando a retirou do porta-luvas do meu carro?

- Disse e jurei-o - retorquiu Holcomb.

- Quer dizer que ninguém lhe tocou, depois disso ?

- Foi tocada, mas nada foi alterado. Está precisamente como estava.

- Mas passou pelo Departamento de Balística, não é assim?

- Sim.

- Sabe portanto que, nesse Departamento, para dispararem balas de teste-comparativo, tiveram de remover os cartuchos deflagrados?

- Certamente. É sua obrigação verificar os vestígios característicos deixados por essa arma nos cartuchos que deflagra. Mas não iriam utilizar os cartuchos que, originalmente, se achavam dentro do tambor. Serviram-se de outros, do mesmo calibre e tipo, para teste-comparativo.

- O senhor estava presente, Sargento Holcomb ?

- Está visto que estava presente. Nunca abandonei a arma por mãos alheias. Eu próprio tirei os cartuchos do tambor, para substitui-los por cartuchos de teste, e extraí estes, para repor os originais.

- óptimo. Vê-se que é um polícia consciente. Portanto, tornou a introduzir os cartuchos originais, exactamente nos mesmos alvéolos do cilindro, de onde os retirara?

- Porquê?... Faz alguma diferença? - indagou o sargento, desconfiado.

- O Sargento jurou ter deixado a arma exactamente nas mesmas condições em que a obtivera. Devo, em consequência, concluir que reintroduziu todos os cartuchos nos mesmos alvéolos do tambor de onde, anteriormente, os tinha extraído, não será assim?

- Bem..., sim.

- Deu^se ao incómodo de verificar a origem dessa arma?

- 'tá visto! - respondeu Holcomb, quase indignado com a astúcia da pergunta.

- Viu portanto o seu número de registo ?

O juiz Kippen interveio para observar:

- Vejo que essa pergunta, devendo constar do interrogatório da Acusação, provém do advogado da Defesa. Decerto que Mr. Mason prevê poder ela prejudicar a acusada... Bem..., o Tribunal deseja apenas saber o motivo que leva a Defesa a referir-se a uma permissa da Acusação ainda não mencionada em interrogatório directo.

- Evidentemente que se essa pergunta fosse feita pela Acusação, a Defesa teria o direito de contra-interrogar a testemunha sobre a matéria, interpondo as devidas objecções, quando pertinentes, e exigindo a prestação de declarações por parte das testemunhas que venderam a arma, etc. - declarou Mason. - Mas, pessoalmente, tenho a maior confiança na competência do Sargento Holcomb e dou crédito ilimitado à sua eficiência no campo da investigação criminal.

- Muito obrigado - disse a testemunha, sarcastica-mente.

- Por esse motivo, estou plenamente consciente e seguro, quando o interrogo acerca do que descobriu quanto à origem da arma. Que foi? - insistiu Mason.

- Averiguei que esta arma fora adquirida por um indivíduo de nome Mervyn Aldrich, numa casa de artigos desportivos de Newport Beach, no dia vinte e cinco do mês passado. Fui depois informado de que Mr. Mervyn Aldrich trazia essa arma consigo, para sua protecção pessoal, possuindo licença de porte de arma. Guardava-a no porta-luvas do seu automóvel. Recentemente, declarou à polícia terem-lhe furtado a arma desse compartimento e...

- Um momento - interveio o juiz. - Não vejo razão para as declarações da testemunha continuarem sobre matéria de “ouvir dizer”. Mr. Mervyn Aldrich está presente no Tribunal, Sr. Procurador do Distrito?

- Sim, Sr. Dr. Juiz - respondeu Strawn.

- Compreendi bem, ao ouvir declarar que a arma foi roubada do porta-luvas do carro de Mr. Aldrich e que este apresentou queixa à polícia ?

- Não foi bem isso, Sr. Dr. Juiz. Mr. Aldrich informou a polícia de que a arma lhe fora roubada do porta-luvas, depois de a mesma lhe ser mostrada por Mr. Mason, advogado da acusada.

- Devo portanto depreender que se sugere ter sido a ré quem presumivelmente teria roubado essa arma?

- Essa é a tese da Acusação, Sr. Dr. Juiz - declarou Strawn, disfarçando a consolação que lhe ia na alma.

- Bem, nesse caso, não podemos aceitar as declarações da testemunha, por “ouvir dizer”. Será o próprio Mr. Aldrich quem deverá ser ouvido sobre a matéria.

- Sim, Sr. Dr. Juiz - concordou Strawn, notoriamentf satisfeito com o curso do exame preliminar.

- Resta-me sugerir que Mr. Mervyn Aldrich seja chamado ao “banco” das testemunhas - disse Mason, parecendo um tanto ou quanto resignado com a situação que lhe fora criada, por sua própria falta de tacto.

Strawn nada tinha de tolo. Aquela súbita submissão de Mason, a sua inesperada inabilidade, alertou o advogado de Acusação.

- Um momento, Sr. Dr. Juiz - disse, prontamente. - Mr. Aldrich é testemunha da Acusação no presente processo. Será chamado na devida altura, para provar que a arma que se achava em poder da ré é a mesma que lhe foi furtada do porta-luvas do carro e a mesma que assassinou Steve Merrill.

O Juiz Kippen consultou Mason com o olhar e declarou:

- Quero ouvir a opinião da Defesa a esse respeito.

- Não haveria nada a alegar, quanto à proposta da Acusação, sob o ângulo de correcção legal, se não fora a existência de duas ligeiras irregularidades na motivação dessa mesma proposta - expôs Mason. - A primeira reside no facto de a Acusação não ter provado que essa arma foi a mesma que matou Steve Merril e a segunda, no facto de não ter sido provado que a arma se achasse em poder da acusada.

- Ora essa! ? - espantou-se Strawn. - O senhor mesmo, Mr. Mason, entregou essa arma ao Sargento Holcomb.

- Não é exacto - contrariou Mason. - O Sargento Holcomb permitiu-se tirar do porta-luvas do meu carro uma arma. Ora, eu não sou a acusada.

- Mas está a representá-la, não só neste momento; já então era o seu advogado.

- Como advogado, apenas represento a minha cliente, na defesa dos seus direitos. Além disso, nada declarei a respeito dessa arma. Talvez consiga esclarecer esse ponto, fazendo mais algumas perguntas adicionais ao Sargento Holcomb.

Sorrindo afavelmente, Mason virou-se para a testemunha ainda sentada na respectiva cadeira e inquiriu:

- Vamos lá reconstituir os acontecimentos. Quando parei o carro à entrada da Crowncrest Tavern, você avançou na minha direcção e exigiu-me que eu lhe entregasse a arma que me fora dada pela ré, não é verdade?

- Sim. Pedi-lha, porque sabia que era uma Prova para o processo-crime a instaurar contra Evelyn Bagby, pelo assassínio de Steve Merrill - respondeu Holcomb, olhando para o júri convincentemente.

- E não é também verdade que você me empurrou violentamente para o lado, metendo-me um ombro ao peito, e que, contra minha vontade, abriu o porta-luvas do meu carro de onde tirou uma arma, sem dar-se ao cuidado de identificá-la?

- O senhor não quis dar-ma de bom grado, e eu tive de tirá-la - justificou-se Holcomb. - "Um agente da Autoridade representa a Lei e...

Nesta altura, o juiz Kippen interrompeu a oratória do sargento para observar:

- Esse ponto técnico parece-me muito importante. Apercebo-me de uma velada insinuação, por parte da Defesa, de que essa arma, Prova A da Acusação, não é aquela com que o homicídio foi perpetrado. É isso, Mr. Mason?

- Penso, Sr. Dr. Juiz - esclareceu Mason -, que poderei demonstrar, positivamente, que o crime não pôde ser cometido com esta arma.

- Quer explicar-me como ? - convidou o juiz, admirado.

- Os técnicos da polícia examinaram esta arma e dispararam com ela tiros experimentais, durante o teste comparativo. Pretendo agora forçá-los a apresentarem, como provas, as fotografias obtidas durante esses testes, tanto das balas, como dos cartuchos que as deflagraram. A Defesa tem o direito de comparar as marcas indiciais deixadas pelas estrias da arma nos projécteis, assim como as do percurtor dessa mesma arma, na base dos cartuchos. Só assim poderá certificar-se de que essa arma foi a utilizada no crime; só assim, pela análise dessas fotografias, poderei preparar convenientemente a Defesa.

- Compreendo perfeitamente o seu ponto de vista, Mr. Mason - disse o juiz, fitando-o por cima das lentes. - " Indubitavelmente, a Defesa tem direito a examinar as provas fornecidas pelo Departamento de Balística. A Acusação não pode mantê-las secretas, devendo apresentá-las em processo. Estou certo de que Mr. Strawn não terá dificuldade em provar que foi essa arma a utilizada no assassínio.

- Essa é a dificuldade - declarou Strawn. - A bala fatal apresenta-se completamente amolgada, de um dos lados e, do outro, ficou bastante danificada, quando da sua extracção do crânio da vítima.

- Quer dizer, com isso, que a bala fatal não pode ser identificada? - surpreendeu-se o juiz Kippen.

- Bem..., realmente, não pode. É por esse motivo que desejo fazer à testemunha algumas outras perguntas, de modo a esclarecer-se o assunto.

- Pois pergunte - disse o juiz, recostando-se na cadeira de espaldar alto.

- Se o Tribunal me permite - preambulou Strawn -, tenciono focar dois ou três assuntos de natureza tão in-criminativa que julgo permitirem prescindirmos de provas periciais de balística. Receio que a apresentação dessa arma, como prova, tenha sido prematuramente introduzida no processo. Peço agora ao Sargento Holcomb que se refira à fronha de uma almofada de cama que apareceu enfiada na cabeça da vítima. Tem essa fronha consigo ?

- Tenho, sim senhor - confirmou o sargento, tirando a fronha de dentro de um saco de plástico.

- Que nota, nessa fronha, de especial ?

Holcomb mostrou a mancha de sangue e evidenciou que o buraco da bala não era coincidente com a mancha.

- Verificou se essa fronha tem alguma marca de lavandaria?

- Sim, senhor.

- Verificou a origem dessa marca ?

- Sim, senhor.

- Encontrou outra fronha com a mesma marca ?

- Sim, senhor. Encontrei várias.

- Iguais ?

- Absolutamente iguais.

- Onde as encontrou ?

- Na rouparia da Crowncrest Tavern.

- E examinou a cama da acusada ?

- Sim, senhor.

- Que foi que encontrou aí, de especial ?

- Estavam duas almofadas à cabeceira da cama. Uma delas tinha uma fronha exactamente igual a esta...

- E a outra? - interrogou Strawn, pondo-se de pé.

- Não tinha fronha. Alguém tinha despojado a almofada da respectiva fronha.

- E a que foi encontrada na cabeça do assassinado era idêntica à fronha que estava na almofada da ré?

- Era igual.

- É essa que tem na sua mão ?

- Sim, senhor.

Com um sinal de alívio e agrado, Strawn prosseguiu:

- Muito bem. Agora, diga-me: pode dizer-nos se a fronha que se encontrava enfiada na cabeça do morto foi aí colocada antes, ou depois de ter sido assassinado?

- Enfiaram-lhe depois - respondeu Holcomb, com determinação.

- Um momento - interveio o Juiz. - Está a ser solicitada uma conclusão por parte da testemunha. A Defesa deve objectar...

- Não faço objecção - declarou Mason. Surpreendido, o juiz inquiriu:

- Quer dizer que aceita a hipótese de a fronha ter sido colocada na vítima, depois de esta ter sido morta?

- É minha política, Sr. Dr. Juiz, não objectar contra factos evidentes. Seria manipular dificuldades de natureza técnica que só poderiam prejudicar os trabalhos do Tribunal. A Defesa luta pelo esclarecimento da Verdade e não por ocultá-la ou mistificá-la perante o Júri e será com a Verdade que conta provar a inocência da ré.

Strawn sentou-se, visivelmente confuso. Com certa irritação, o juiz Kippen ordenou à testemunha:

- Responda à pergunta.

Holcomb endireitou-se na cadeira, pigarreou e prosseguiu:

- Além das duas aberturas feitas propositadamente na fronha da almofada, para que esta servisse de máscara, permitindo ver através dela, havia um terceiro buraco, aparentemente feito pela bala fatal. Ora, este orifício não podia ter sido feito por uma bala, visto não apresentar as marcas de pólvora que os projécteis de armas de fogo geralmente deixam nos fios do tecido, detectáveis pelo exame microscópico. Em contrapartida, a ferida causadora da morte da vítima apresentava, nos bordos, uma auréola causada por partículas microscópicas de pólvora. Para conseguirem uma auréola semelhante, os peritos de balística verificaram que a arma só poderia ser disparada a cerca de vinte e cinco centímetros do alvo.

- Que arma foi utilizada nessa experiência ? - inquiriu Mason.

- Que arma havia de ser ? - retrucou Holcomb. - Esta que está aqui, como Prova A do processo.

- Por outras palavras - precisou o juiz -, está partindo da hipótese que foi esta arma a utilizada no crime?

- Não se trata disso... Isto é, o facto não é primordial - interveio Strawn. - Uma série de circunstâncias peculiares não nos permitem, realmente, apresentar, como identificada, a bala fatal, mas teremos ocasião de demonstrar ao Tribunal, provas circunstanciais de que esta arma foi utilizada no assassínio.

- Então, demonstre-o - convidou o juiz Kippen.

- Há alguma razão para que tenha referido a ausência de vestígios de pólvora nos rebordos desse orifício aberto na fronha da cama da acusada?

- Sim. O buraco não foi feito por uma bala.

- E tem outros motivos para afirmar que a fronha foi colocada na cabeça da vítima, depois de ter sido assassinada ?

- Tenho, sim senhor.

- Quais são ?

- Quando uma pessoa enfia na cabeça uma máscara-saco daquele tipo, tem de acertar os buracos com os olhos, de maneira a poder ver através das aberturas. Pois a fronha estava nessa posição, em relação aos olhos do morto. Um elástico, em feitio de liga de borracha, prendia-lhe a fronha, em volta da cabeça, por altura do meio da testa. Ora, a mancha de sangue coincidia perfeitamente com o ferimento causado pela bala fatal. O terceiro buraco que se julgou a priori ter sido causado pela bala, é que não. Estava aberto, três dedos mais à frente, e não apresentava, como seria natural, marcas de pólvora. Estas estavam nitidamente impressas nos rebordos da ferida letal.

Neste ponto, Holcomb não resistiu à tentação de ver a impressão que causara no público, particularmente, entre os representantes da imprensa e da rádio.

- Deixem-me ver essa fronha - indicou o juiz Kippen. Examinou-a e acenou com a cabeça, concordantemente.

- Não há dúvida que a testemunha está baseando as suas declarações em conclusões pessoais, mas essas conclusões são evidentes.

- É essa a minha opinião - apoiou Mason.

- Mas não pode admitir esse ponto! - espantou-se Strawn. - Só nele poderá basear-se todo o plano da Defesa!

- Então, meus senhores! - interveio o juiz, abrindo os braços e inclinando-se para trás. - Este caso está a apresentar um volte-face extremamente estranho. É a primeira vez que vejo o representante da Acusação a aconselhar o da Defesa, quanto à maneira de salvar a crítica posição da ré! Não se poderá considerar isso um procedimento académico, conquanto muito generoso. Em contrapartida, não compreendo o plano da Defesa. Vejo, com surpresa, que aceita inquestionavelmente as conclusões da testemunha, no que se refere às provas circunstanciais!

- Sim, Sr. Dr. Juiz - confirmou Mason. - A Defesa chega às mesmas conclusões que a testemunha, quanto às provas circunstanciais, no mero pormenor da fronha que o verdadeiro assassino deve ter enfiado na cabeça da vítima, o plano da Defesa reside, substancialmente, na identificação da arma do crime.

- Não aceita a identificação apresentada pela Acusação ? - inquiriu o juiz.

- Ainda não foi feita, Sr. Dr. Juiz - lembrou Mason. - Foram disparadas duas balas, de acordo com os dois cartuchos deflagrados. A testemunha declara que uma delas, exactamente a que foi extraída do crânio da vítima, não pode ser identificada, em relação à arma. Resta-nos saber onde pára a segunda bala. Por enquanto, a prova material de que o projéctil foi disparado por essa arma é nula.

- Tem razão - disse o Adjunto do Procurador do Distrito, com azedume. - Iremos agora provar a nossa teoria.

Virando-se novamente para o sargento Holcomb, Strawn interrogou:

- Foram disparados dois cartuchos, não é verdade?

- Sim, senhor.

- Pela arma utilizada no crime ?

- Objecção - interpôs Mason. - É isso que a Acusação tem de provar.

- Pela arma que, plausivelmente, se julga ter sido utilizada no crime - corrigiu Strawn.

- Quase correcto - observou Mason. - Plausivelmente é um termo impreciso. Correcto seria mencionar aparentemente, de acordo com a frustrada intenção da Acusação. - Que aconteceu à outra bala ? - inquiriu Strawn, irritadamente.

- Foi cravar-se num poste vermelho, desses que suportam a guarda-estrada, num ponto mais acima, em relação ao percurso dos carros.

- Como vê, Sr. Dr. Juiz - interveio Mason -, a testemunha, neste ponto, afasta-se da sua própria teoria, admitindo que essa bala teria sido disparada noutro local, com os carros em andamento.

- Alto lá! Alto lá - interrompeu Strawn, desesperado.

- O advogado da Defesa está jogando com as palavras da testemunha. Certamente que o assassino, depois de ter morto a vítima, poderia ter disparado essa segunda bala, noutro local, exactamente para comprovar a versão da acusada. Esse facto, de per se, ainda mais incrimina a ré, pois só ela colheria vantagens com essa comprovação.

Mason sorriu e perguntou a Holcomb:

- Pode indicar ao Tribunal onde encontrou essa segunda bala?

- Sim, senhor. Tenho aqui uma fotografia que foi tirada no dia imediato ao do crime, logo que houve luz diurna suficiente que nos permitisse uma busca cuidada e eficiente. Esta segunda bala foi extraída desse poste e apresenta-se em excelente estado de conservação. Embora não a tivesse extraído pessoalmente, assisti à sua extracção. Não há hipótese de...

- Bem. Não comece a testemunhar como perito de balística - cortou Strawn. - Não é perito nessa matéria.

- Sou um detective habilitado e os meus conhecimentos permitem-me...

- Sim, sim, compreendo - tornou Strawn a interromper. - Mas tenciono chamar um perito de balística, como testemunha, a fim de identificar essa bala. Quero apenas que me diga se operou qualquer marca no projéctil, com vista a evitar qualquer troca.

- Sim, senhor. Fiz um risco que me permite identificá-lo.

- O projéctil que foi extraído do poste vermelho da guarda-estrada ?

- Exactamente, no próprio local indicado nessa fotografia.

- Muito bem - disse Strawn. - Vou agora chamar, como testemunha, o perito de balística e peço que essa bala seja inclusa no processo, como Prova C, sendo a fotografia do local a Prova B e a arma, a Prova A.

- Um momento - interveio Mason, vendo que o sargento Holcomb se erguia da cadeira das testemunhas. - A Acusação acaba de introduzir no processo uma nova Prova. A Defesa tem o direito de contra-interrogar a testemunha acerca dessa bala.

- Como queira - concedeu Strawn, de mau modo.

- Quando foi que descobriu, pela primeira vez, essa bala incrustada no poste vermelho ?

Holcomb previu, imediatamente, que Mason o iria acusar de negligência, durante a investigação da noite do crime. Astuciosamente, respondeu:

- É impossível ver-se uma bala que está cravada num poste de madeira. Só depois de extraída é que se torna viável examiná-la. Antes disso, só é possível descobrir o buraco.

- Quando foi que detectou esse buraco, no poste vermelho, pela primeira vez?

- Pouco depois de ter chegado à cena do crime. A arma fora disparada duas vezes. Portanto tinha de haver duas balas em qualquer lado. Uma delas estava no crânio da vítima. A outra teria de estar algures.

-Os detectives do xerifado, Mr. Ferron e Mr, Morris, sugeriram-lhe, porventura, onde estaria essa segunda bala?

- Não - apressou-se a refutar Holcomb esse atentado aos seus méritos policiais. - A investigação, nessa altura, fora exclusivamente confiada ao Departamento de Homicídios. Fui eu que descobri o buraco da bala.

- Os detectives do xerifado estavam presentes, na altura em que o descobriu?

Holcomb pressentiu nitidamente que Mason procurava pôr em dúvida o seu achado. Portanto, respondeu firmemente:

- Não. Andavam a auxiliar a remoção do carro, no fundo da ravina para a estrada.

- Estou a ver - aceitou Mason a explicação. - Pelos vistos, o Sargento descobriu o buraco da bala e fixou o local onde o vira para que, no dia seguinte, com luz suficiente, pudesse processar à sua extracção, não é assim?

- Exactamente - respondeu Holcomb, triunfante, vendo que anulara a iminente acusação de negligência, por parte de Mason.

- Perfeito - aplaudiu este. - Fez mais investigações, nessa área da estrada?

Holcomb hesitou. Depois justificou:

- 'tá visto que fiz, mas nada mais havia a procurar, já que descobrira o segundo buraco de bala.

- Compreendo - terminou Mason, aparentemente vencido. - Nada mais tenho a perguntar-lhe... por ora.

- Vou pedir ao Sargento Holcomb para abandonar a cadeira das testemunhas e dar lugar a Mr. Alexander Redfield, perito de balística - anunciou Strawn, solene.

Alexander Redfield era um indivíduo alto, estreito de ombros, de maçãs do rosto muito salientes e de olhos cinzentos protuberantes que lhe rodavam nas órbitas enquanto avançava para a cadeira das testemunhas. Pausadamente prestou juramento e enunciou as suas habilitações periciais, quanto a balística e identificação de armamento ligeiro portátil.

Ao ser inquirido por Strawn, declarou:

- Sim. Foi-me entregue uma bala para identificação.

- Essa segunda bala que o Sargento Holcomb detectou num poste vermelho da estrada e posteriormente por ele marcada para identificação, ora inserta no processo comoProva C?

- Sim, senhor. Vi-a quando foi extraída desse poste, depois de ter examinado o buraco em que se presumiu estar, e vi o Sargento do Departamento de Homicídios marcá-la com um pequeno risco de canivete, para ulterior identificação.

- Não houve possibilidade de troca dessa bala por outra qualquer?

- De maneira alguma! - respondeu o perito, positivamente.

- Muito bem. Pode indicar, nesta planta topográfica, a localização aproximada do referido poste?

A testemunha ergueu-se, aproximou-se da planta e marcou com um X o local onde estava o poste.

Enquanto voltava a sentar-se, Strawn explicou ao Tribunal:

- Esta carta topográfica é um documento oficial. -Já que se trata da ampliação de uma carta oficial. Espero que não haja objecção, por parte da Defesa, quanto a ser inserida no processo, como Prova D.

- Nenhuma - aceitou Mason.

Em seguida, inclinando-se para Neely, recomendou-lhe em voz baixa:

- Interponha algumas objecções, de quando em quando, para provar que está a colaborar no caso.

- Receio objectar, no momento e no assunto errado - murmurou Neely.

- Faça objecções, seja contra o que for, mesmo que lhe não pareça importante. Quanto mais o Adjunto do Procurador do Distrito estiver confuso e enervado, tanto melhor. Procure obrigá-lo a pensar, a desnortear-se. Não se esqueça de que a sua pequena está lá atrás, entre a assistência, com os olhos postos em si.

- Okay - concordou Neely, num sussurro. - Puxe-me a aba da toga, se vir que estou a fazer asneira.

Strawn continuou:

- Como perito em armamento ligeiro, está familiarizado com esta arma de modelo recente, conhecida por Colt Cobra, de calibre 38, introduzida no processo como Prova A?

- Sim, senhor.

- Disparou balas-teste com essa arma?

- Sim, senhor.

- Como procedeu ?

- Carreguei o revólver com cartuchos do mesmo calibre e tipo e disparei para dentro de uma caixa cheia de rama de algodão e feltro, de maneira a poder verificar a natureza das marcas operadas pelas estrias da arma na superfície dos projécteis.

- E depois?

- Examinei essas marcas ao microscópio.

- Pode descrever o que detectou?

- Detectei vários riscos produzidos pelas estrias do cano da arma, que são característicos.

- Característicos, como ?

- São marcas características individuais. Cada a arma deixa marcas diferentes nas balas por ela disparadas.

- Como as impressões digitais humanas ?

- De certo modo, sim. Mas só uma observação ao microscópio nos permite diferenciar essas marcas, de arma para arma.

- Muito bem. Vê-se que é uma ciência altamente especializada. Teve, depois, oportunidade de comparar essas balas-teste com aquela que foi extraída do poste da estrada?

- Sim, senhor.

- Como perito, poderá afirmar que esta última bala, extraída do poste, foi disparada pela mesma arma, Prova A do processo?

- Sim, senhor.

- Positivamente  - Sem a menor dúvida - respondeu Redfield.

- E quanto à bala fatal. Também a sujeitaram ao seu exame pericial?

- Sim, senhor.

- Que notou nela, de especial ?

- Foi disparada por um revólver Colt Cobra de calibre 38. Infelizmente, estava demasiada deteriorada para que se pudesse fazer uma identificação positiva. Metade dessa bala estava totalmente amolgada e a outra metade fora riscada, provavelmente pelo bisturi e pinças do cirurgião que procedeu à autópsia.

- Agora - declarou Strawn, virando-se para o juiz -, desejo renovar o meu pedido para que esta arma seja introduzida no processo, como Prova A.

- Objecção -gritou Neely, um pouco esganiçadamente.- Várias vezes tem o Sr. Adjunto do Procurador do Distrito mencionado essa arma como Prova A do processo, quando nem sequer tinha sido formalmente introduzida no mesmo, por carência de identificação. A Defesa tem consentido que se labore nesse erro, puramente verbal, pois a arma não foi identificada, nem introduzida no processo. Mantenho a posição da sua inadmissibilidade.

- Porquê ? - inquiriu Strawn, como se acabasse de ouvir um disparate. - Está já provado, pelo testemunho de um perito, que essa arma disparou as duas balas, uma das quais fatal...

- Não foi provada tal coisa - acalorou-se Frank Neely.- Apenas se provou que essa arma disparou a segunda bala, achada incrustada num poste vermelho. Ora, disparar contra um poste, não é crime, em parte alguma do mundo. O que importa é provar que foi essa arma que disparou a bala fatal e isso ninguém o provou, até ao presente instante, neste Tribunal.

Strawn mostrou-se exasperado.

- Isto não faz sentido -gritou, virando-se para o juiz Kippen. - A própria acusada declarou que disparou duas balas com esta arma, durante o percurso dos dois carros na estrada. Uma delas atingiu o morto e a outra foi cravar-se no poste.

Pondo-se de pé, Mason observou:

- Tal como, há pouco, o Sargento Holcomb, a Acusação baseia-se na versão da acusada que declara ter disparado os dois tiros, em andamento na estrada. Ora a própria teoria da Acusação e do Departamento de Homicídios rejeitou essa teoria. ´´É uma contradição que, : se não fosse trágica, pareceria irrisória. Se a Acusação provou, com argumentos circunstanciais que parecem válidos, que a bala fatal foi disparada, antes de a vítima ter a fronha enfiada na cabeça, como pode a mesma Acusação, quando lhe convém, abandonar a sua própria tese, para voltar a adoptar a tese das balas disparadas na estrada?

- Aonde é que isso leva ? - inquiriu o juiz, aturdido.

- A tese da Defesa: que a ré disparou duas balas, com uma arma, durante o seu percurso na estrada, quando perseguida por alguém que procurava despenhá- la num precipício.

O juiz Kippen sentou-se direito na cadeira e estendeu um dedo para Mason, perguntando abismado:

- Quer dizer que andaram dois homens na estrada, ambos com fronhas enfiadas na cabeça?

- Porque não? -admitiu Mason.- A Defesa limita-se a aguardar que a Acusação consiga provar a sua teoria.

- Estamos a mergulhar num pântano de complicações técnicas. Por este método, não vejo saída possível - considerou o juiz Kippen desnorteado.

- Proponho, Sr. Dr. Juiz, que o Tribunal se desloque ao local da ocorrência para inspeccioná-lo cuidadosamente.

- Que ganhamos com isso?-inquiriu, quase lastimosamente, o juiz.

- Pretendo apresentar, iw loco, a teoria da Defesa e só poderei fazê-lo, após um eficiente exame das permissas. Não duvido da competência pericial do Sargento Holcomb, mas ...

Aquele “mas" foi deveras erudito e Holcomb revolveu-se na cadeira onde se sentara, corado como um pimentão.”

- Um momento, um momento -interveio Geoffry Strawn, pondo-se de pé. - Isto é um exame preliminar. Estas manigâncias de pirotecnia teatral não têm cabimento legal. São puro fogo-de artifício, arte em que o advogado da Defesa é proverbial mestre ...

- Faça o favor de conter-se - censurou o juiz, fitando o Adjunto do Procurador do Distrito.- Não é forma de referir-se ao representante da Defesa. Logo no início da audiência, tive o cuidado de proibir manifestações de rivalidade pessoal. Quanto ao exame do local da ocorrência, o Tribunal concorda com a proposta do senhor advogado da Defesa.

- Obrigado - disse Mason, sentando-se.

- Um momento -observou o juiz.- Eu não adiei os debates da presente audiência. A Defesa pode continuar o seu contra-interrogatório.

- Não há nada a debater, na situação em que nos encontramos - explicou Mason. - Não havendo fundamento legal para a introdução da arma, como tendo sido a utilizada no disparo da bala fatal, a Acusação não pode demonstrar que a acusada tenha assassinado Steve Merril, por carência de prova material. Ora, como muito bem disse Vossa Excelência, Sr. Dr. Juiz, no início do presente julgamento e, ainda há pouco, o Sr. Adjunto do Procurador do Distrito teve ocasião de recordar, a finalidade de um exame preliminar é provar a possibilidade de um réu ter cometido um crime. Com os dados que ora possuímos, tal prova é impraticável. Teremos pois de procurar novos dados que tenham escapado à investigação do responsável, neste caso, representante do Departamento de Homicídios.

- Não compreendo o que a Defesa pretende investigar no local da ocorrência -contrariou Strawn.- Já temos as duas balas disparadas e contamos com todas as fotografias daquele local.

- Bem - concedeu o juiz. - Podemos aceitar essas fotografias como provas e chamar os fotógrafos a testemunharem a sua autenticidade.

- O que não nos levará a lado algum - observou Mason. - Ficaremos no mesmo impasse. Concordo, contudo, que as fotografias sejam insertas no processo, como provas complementares de localização. Porém, antes de sê-lo, a Defesa tem o direito de examiná-las. Posso ver essas fotografias, Sr. Dr. Juiz?

- Certamente - concordou este.

Mason deu-lhes uma ligeira vista de olhos, separou uma de entre as restantes e declarou:

- Há aqui uma mancha negra, muito peculiar, nesta fotografia.

- De que se trata - interessou-se o juiz Kippen.

- Dir-se-ia um buraco de bala, num tronco de uma árvore... Parece um carvalho. É uma dessas árvores que ladeiam a berma da estrada, do mesmo lado onde está aquele poste vermelho que foi atingido.

- No mesmo local ? - inquiriu o juiz.

- Isso, não posso precisar - respondeu Mason. - Só o fotógrafo poderá testemunhá-lo. Todavia, inclino-me para que seja um buraco de bala.

- Sr. Dr. Juiz - protestou Strawn. - Isto é mais um dos habituais truques de Mr. Mason. Não pode, de forma alguma, ser um buraco de bala, porque...

Antes que o juiz o admoestasse, Strawn calou-se bruscamente.

- Não pode ? - indagou Mason. - Porque não pode, quererá dizer-me?

- Porque... Porque só foram disparadas... duas balas - titubeou Strawn.

- Só foram disparadas duas balas, por essa arma - sublinhou Mason.- Essa é a tese da Defesa. Uma das balas incrustou-se no poste vermelho e a outra, em qualquer outro ponto. Admissivelmente, num tronco de árvore.

- Se o Tribunal me permite - protestou Strawn - isto é absurdo. Não sei que truque preparou o advogado da Defesa, mas todos sabem que teve a arma em seu poder. Quem nos assegura que não foi ele próprio quen disparou, mais tarde, esses tiros, no poste e na árvore ? .. Só para confundir as permissas e poder ilibar de suspeitas a sua cliente?

Sorrindo, Mason respondeu:

- O Sargento Holcomb do Departamento de Homicídios foi positivo quando declarou ter visto o buraco de bala no poste vermelho, logo que chegou à cena do crime. E chegou lá, antes de os representantes do xerife se terem ido embora.

- Mas o Sargento Holcomb nada disse acerca do buraco de bala do poste vermelho aos detectives do xerifado.

- O quê! -espantou-se Mason.- Está a pôr em dúvida a veracidade das declarações da sua própria testemunha, Mr. Strawn ?!!

Nesse instante, o juiz Kippen tomou uma decisão.

-.Dadas as circunstâncias, o Tribunal decide seja examinado o local do crime e examinadas novas permissas. Não levará muito tempo.

Virando-se para o perito de balística, acrescentou;

-O Tribunal convoca-o, desde já, para estar presente durante este exame. Terá de ver o que se passa com esse carvalho da berma da estrada.

- Muito bem, Sr. Dr. Juiz - anuiu Redfield. Pressentindo uma reviravolta sensacional e dramática, os jornalistas e fotógrafos correram para os telefones do átrio do tribunal.

Pensativo, o juiz Kippen suspendeu a audiência e retirou-se para o seu gabinete, levando consigo as fotografias que ia examinando pelo caminho.

 

A “cavalgada” automobilística começou a trepar a estrada até atingir o sítio onde o paredão fora destruído e cuja guarda-estrada começava agora a ser reparada.

Com imensa importância, o sargento Holcomb indicou:

- O carro despenhou-se por aqui abaixo, Sr. Dr. Juiz.

- Onde é que está o poste , vermelho ? - perguntou este, dirigindo-se ao fotógrafo da polícia. - Ah... já sei. Estou a vê-lo.

- E ali está o carvalho - indigitou Mason.

Primeiro, o juiz olhou para a árvore cepticamente, mas logo em seguida denunciou visível interesse.

- Parece, realmente, um buraco de bala - observou.

Ao ouvir isto, o sargento Holcomb precipitou-se, chegando a empurrar para o lado o Adjunto do Procurador do Distrito.

Este, exasperado, declarou:

- Sr. Dr. Juiz, a Acusação não pode aceitar novas permissas, antes de certificar-se de quando foram feitas e por quem.

O juiz retorquiu-lhe: - Sei muito bem os processos técnicos legais, Mr. Strawn, mas também tenho uma noção muito precisa daquilo que é necessário fazer para julgar com justiça e essa é a minha missão. Vamos pois compilar quantos factos nos pareçam susceptíveis de relacionar-se com o caso que julgamos.

- Eu não posso estar sempre aqui, para impedir que qualquer bicho-careta desate aos tiros na minha ausência - justificou-se Holcomb.

- Se a sua primeira investigação tivesse sido completa e eficiente, não precisaria, realmente, de estar aqui de sentinela.

- Mas eu vi o buraco da bala no poste, não vi? - retorquiu o sargento de maneira mais truculenta do que conviria a um agente da autoridade dirigindo-se a um juiz.

- Podia ter visto também este, na árvore, tanto mais que ficou na fotografia - respondeu o juiz Kippen, visivelmente agastado.

Depois, olhou para cima e observou:

- Está ali uma casa, adiante, com uma marquise envidraçada.

- Vive lá uma mulher ... uma artista - elucidou

Holcomb, ainda enfiado. - Aí vem ela.

Efectivamente, aproximava-se uma mulher de meia-idade, muito alta, de cabelo todo branco, queixo saliente e um nariz mais comprido do que a estética preconiza.

- Que se passa ? - indagou ela. O juiz Kippen sorriu e esclareceu:

- Estamos a investigar uma cena de tiros que ocorreu aqui, ontem à noite. Sou o juiz Kippen e...

- Oh, sim - cortou ela. - Eu sou Mary Eunice. Sou artista e vivo lá em cima, retirada do mundo. Aquilo é o meu eremitério.

Era praticamente um “eremitério" de milionária de Hollywood.

Antes que a mulher começasse a falar de outros assuntos, provavelmente das suas memórias artísticas, o juiz perguntou:

- Tem um escadote que possa emprestar-nos? Queremos examinar um buraco que parece ser de bala, ali, no tronco daquele carvalho.

- Tenho muito gosto em emprestar-lho, Sr. Juiz ...?

- ... Kippen.

-... desde que não mo estraguem. Os homens são tão desastrados! E os polícias ainda são piores que os outros!... Não me diga que tem aí polícias consigo!

- Está aqui o Sargento Holcomb, do Departamento de Homicídios.

- Ah, sim. A sua cara não me é estranha!

- Estive esta manhã a falar consigo, mi'sora - resmungou Holcomb.

- Ah, sim, já me lembro. Entrou lá em casa, sem limpar os pés. Fiquei com o átrio todo enlameado. A minha criada é que lhe achou graça ...

- Posso mandar buscar o seu escadote ? - lembrou o juiz.

- Ah, é verdade! Pode sim, Sr. juiz... ?

- Kippen.

- Kippen, sim!... Que nome tão giro!

Por momentos, o magistrado embatucou, mas não por muito tempo.

- Já que andam à procura de balas, posso dar-lhes uma - anunciou Miss Mary Eunice.

- O quê? - sobressaltou-se o juiz.

- Ontem à noite ouvi um baque e pensei que fossem os pássaros. Os pássaros não sei se sabe, costumam, às vezes atirar-se contra os vidros do estúdio. Hâ-de vir ver os meus quadros, não é verdade? Sou retratista e tenho pintado a maior parte das grandes “estrelas” de Hollywood. Estou agora...

- Foi ontem à noite que ouviu esse tiro ?

- Ao fim da tarde. Mas podia muito bem ter sido um pássaro. Estão sempre a fazer beng-beng-iang de encontro às vidraças do estúdio, quando tenho a luz acesa.

- Mas disse que tinha uma bala... ? - interrompeu o juiz.

- Ah, pois'... Uma bala.

- Importa-se de acompanhar-me a sua casa?

- Oh! Que gentil! Quer ver os meus quadros?

- Sim,... certamente, mas mais tarde, noutra ocasião - disse Kippen, aturdido. - Agora só desejava ver essa bala.

- Oh, a bala! Isso não tem importância - replicou Eunice, desdenhosa.

Instantes depois, em fila indiana, funcionários do tribunal, advogados, peritos, fotógrafos da polícia e o sargento Holcomb seguiam atrás do juiz que quase corria para alcançar as largas passadas de Miss Mary Eunice. Chegados à casa, a “eremita” mostrou um buraco de bala, numa vidraça.

- Aí tem - indigitou.

- Onde está a bala? - inquiriu Redfield que se tornara subitamente activo.

- A bala?... onde é que eu a vi?... Ah, já me lembro. Foi a minha criada que a descobriu. Está ali em cima, na viga do tecto.

Era um desses tectos, ao gosto mexicano, com grossos toros de carvalho da região. Efectivamente, notava-se um buraco, certamente feito por uma bala.

Pouco depois, Redfield, no alto de um escadote, olhava da trave para o buraco do vidro e confirmava.

- A coisa ajusta-se. Daqui vê-se a estrada. Esta bala deve ter sido disparada do local onde nos encontrávamos.

Em seguida, observava:

- Percorreu mais de cinquenta metros e está pouco incristáda na madeira.

Em breve, extraía o projéctil e analisava-o cuidadosamente.

- Calibre 38 - sentenciou.

Com notório nervosismo, Strawn declarou:

-Não me responsabilizo pela autenticidade dessa bala, como prova.

- Não lhe estou a pedir que se responsabilize, seja pelo que for - ripostou o juiz. - É à polícia que compete responsabilizar-se pelo prosseguimento de uma investigação que, pelos vistos, foi muito incompleta.

- Mas..., mas eu estive aqui - titubeou Holcomb...

- Vou reabrir a audiência às três da tarde - prosseguiu o juiz, alheando-se das justificações de Holcomb. - Espero que, a essa hora, Mr. Redfield já possa prestar-me quaisquer informações sobre as características dessas balas.

- Ela só me falou de pássaros! - queixou-se Holcomb, procurando interessar Strawn.

Miss Mary Eunice tinha bom ouvido.

- Está visto que só lhe falei de pássaros - retorquiu. - O senhor, sargento, ou lá o que é, entrou por aqui dentro, com os pés enlameados, e perguntou-me se eu ouvira o ruído de tiros. Eu respondi-lhe que não. Que só tinha ouvido o baque de um pássaro embater contra esta vidraça. Que queria que lhe dissesse? Que era uma bala? diabo é que anda aos tiros por estes sítios? Que ideia disparatada! E nem tirou o chapéu..., nem agora!

O sargento apressou-se a deschapelar-se.

- A minha criada é que notou o buraco da bala, esta manhã. Ela embriaga-se, sabe? A noite, quando acaba o trabalho... e bem pouco faz, benza-a Deus... mete-se nos copos, para esquecer o homem que a abandonou, já lá vão vinte anos. Só hoje de manhã viu o buraco na viga do tecto. E ainda achou giro esse sargento. Não vai agora tornar-se responsável por essa bala, juiz?...

- Kippen ... Isso, Kippen. Nem sequer tenho armas em casa!

- Receio que me tenha interpretado mal, Miss Eunice - disse o juiz.

- Isso não é razão para o senhor me interpretar mal, juiz Kopen!

Satisfeita por julgar ter acertado, desta vez, no nome, Mary Eunice sorriu e convidou:

- Quer vir ver agora os meus quadros ?

- Oh, não! Lastimo imenso! - desculpou-se o magistrado. - Tenho de regressar imediatamente à cidade.

"Voltando-se para os circunstantes, repetiu:

- Reabertura da audiência, às três, em ponto. E saiu, para fora, em marcha acelerada.

 

A notícia espalhara-se como incêndio em celeiro seco. As três horas, a sala de audiências estava à cunha.

Hamilton Burger, advogado veterano, desempenhando as funções de Procurador do Distrito, de volumosa estatura e pescoço taurino, viera representar, pessoalmente, a Acusação e achava-se agora sentado ao lado de Strawn. Pela sua atitude, dir-se-ia que estava na disposição de esmagar esse habilidoso prestidigitador dos tribounais, Perry Mason.

O juiz Kippen emergiu do seu gabinete, com uma velocidade que parecia resultante da mesma embalagem que tomara ao deixar o “eremitério" de Miss Mary Eunice.

-Causa do Povo, contra Evelyn Bagby - anunciou. - Audição preliminar. As partes estão prontas?

- Pronto -; disse Strawn.

- A Defesa está pronta - satisfez Mason.

- O Tribunal deseja ouvir agora o Sr. Procurador do Distrito, para informar-se do que foi descoberto, ultimamente, na cena do crime.

Levantou-se Strawn, por indicação de Burger e declarou:

- Além da bala encontrada numa trave do tecto da casa de Miss Mary Eunice, temos também a bala extraída do tronco de carvalho, da berma da estrada. Essas balas foram recolhidas por Mr. Redfield e tenho de irterrogá-lo, directamente, para saber qual a sua conclusão pericial.

- Muito bem, pergunte-lhe - apressou o juiz Kippen. - Mr. Redfield já estava no banco das testemunhas, antes da interrupção da audiência anterior. Fora então ajuramentado. Pode, portanto, começar, desde já, a prestar as suas declarações.

Pondo-se de pé, Strawn inquiriu:

- Que sabe acerca da bala extraída do tronco da árvore ?

- Um momento - interrompeu o juiz. - Vamos lá dar um pouco de ordem a toda esta complicação. Chamemos Número Um à bala fatal; Número Dois, à bala extraída do poste vermelho da guarda-estrada; Número Três, à retirada do carvalho e Número Quatro, à encontrada na viga do tecto de Miss Eunice. Temporariamente, esta discriminação parece-me satisfatória.

- Muito bem - anuiu Strawn. - Refira-se à bala Número Três, encontrada na árvore, Mr. Redfield.

- Que descobriu nessa bala? - interrogou o juiz Kippen, interceptando a palavra a Strawn.

- Bem, Sr. Dr. Juiz. Descobri que a bala que estava embebida no tronco do carvalho foi disparada pela arma presente neste Tribunal... que era para ser designada

Prova A...

- Deixe lá isso. Não tem dúvidas acerca da proveniência dessa bala? Foi mesmo disparada por esta arma?

- Não tenho dúvidas, Sr. Dr. Juiz! Foi efectivamente disparada por essa arma.

- Nesse caso, temos já três balas disparadas pela mesma arma, para dois cartuchos vazios - concluiu o juiz, coçando a cabeça.

Majestosamente, Hamilton Burger pôs-se de pé.

- Um momento, Sr. Dr. Juiz - interveio. - Desejo ser ouvido nessa matéria. Creio que houve uma deliberada acção, por parte de alguém que, por enquanto, não pretendo nomear, mas espero poder indigitar, quando este caso estiver concluído, na intenção de confundir as provas da presente causa.

- Advirto o Sr. Procurador do Distrito que está a fazer uma acusação altamente grave - disse o juiz.

- Exactamente e desde já declaro que, logo que possa esclarecer as estranhas circunstâncias em que se verificou tão fraudulenta manipulação, exigirei a máxima responsabilidade ao seu autor.

- Registo a sua declaração - disse o juiz, de sobrolho franzido. - Para já quero que me explique a que manipulação fraudulenta se refere, já que interrompeu um interrogatório directo, para mencioná-la preambularmente.

- Bem..., isto é..., não estou ainda preparado para responder a essa pergunta - titubeou Hamilton Burger. - Penso, contudo, que a Prova da bala Número Quatro ( provavelmente, mais importante do que a Prova da bala Número Três.

Virando-se para o perito, o juiz Kippen inquiriu:

- Que há com a bala Número Quatro, Mr. Redfield?

- A bala que constitui a Prova provisória Número Quatro, encontrada em casa de Miss Eunice, foi disparada por uma arma do mesmo calibre e tipo da que foi presente a este Tribunal, mas não por essa arma.

- Refere-se a uma segunda arma, Uma arma desconhecida ?

- Sim, Sr. Dr. Juiz.

-'Está absolutamente certo do que afirma?

- Sim, Sr. Dr. Juiz.

- Muito bem - decidiu o juiz, dirigindo-se ao Procurador do Distrito -, queira renovar o seu pedido para introdução da arma no processo.

- Perdão, Sr. Dr. Juiz - disse Mason. - Julgo ter o direito de contra-interrogar esta testemunha.

- Certamente, mas isso não impede o Tribunal de introduzir a arma, como prova, no processo.

- Decerto - aquiesceu Mason, delicadamente -, mas posso, entretanto, contra-interrogar a testemunha?

- Tenha a bondade, Mr. Mason - disse o juiz correspondendo à gentileza do advogado. - Estão a suceder coisas neste julgamento, que me desgostam de sobremaneira. O Tribunal espera que o Sr. Procurador do Distrito não deixe de justificar a sua velada acusação, logo que este caso seja esclarecido.

- Também o espero - apoiou Mason, sorrindo atenciosamente, como se a acusação de Burger lhe não tivesse sido dirigida.

Encarando Redfield, indagou:

- Quando recebeu essa arma que tem sido alvo de tão renhida discussão, quantos cartuchos encontrou nela deflagrados?

- Dois - respondeu o perito.

- Na sua qualidade de técnico de balística e de armamento ligeiro, está familiarizado com tambores de revólver, alvéolos, percutores e cartuchos, não é assim?

- Sim, senhor.

- Pode portanto identificar um cartucho deflagrado, em relação à arma cujo percutor o deflagrou, não é verdade?

- Sim, senhor.

- Como procede, nesse caso ?

- Examino a base do cartucho, ao microscópio, o percutor deixa uma marca individual, quando fere o fulminante do cartucho.

- Quer dizer que cada arma, com seu percutor, deixa uma marca diferente de outra arma qualquer, nos cartuchos que percute?

- Exactamente.

- Deu-se, porventura, ao trabalho de examinar ao microscópio os cartuchos percutidos pela arma introduzida no processo como Prova A?

- Eu ? Não. Porquê ?

- Porque não ?

- Porque não era necessário - respondeu Redfield, sorrindo contrafeito. - Os cartuchos vazios estavam ainda no respectivo tambor. Devem lá ter estado...

Mason interrompeu-o bruscamente:

- Ouviu o Sargento Holcomb declarar ter removido os cartuchos dessa arma, particularmente, os vazios, para substituí-los por cartuchos virgens?

- Assim se procedeu, para que eu pudesse disparar as balas-teste.

- E tem em seu poder alguns desses cartuchos deflagrados?

- Sim. Estão no meu laboratório.

- É perto daqui ?

- Sim, senhor.

- Nesse caso sugiro, para um mais correcto e eficiente relatório pericial, que analise comparativamente as marcas de percussão impressas nesses cartuchos.

- Sim, senhor. Posso fazê-lo com facilidade e em pouco tempo - aquiesceu Redfield. - Isto é, creio poder fazê-lo.´

- E - prosseguiu Mason -, sugiro-lhe também qui compare as marcas patentes na bala Número Quatro, con as da bala fatal. Não chegou a fazer esse exame, pois não?

- Não!... Decerto que não!... Para quê? Não tenho menor dúvida de que a bala Número Quatro não foi disparada pela arma que temos em poder do Tribunal.

- Eu sei, Mr. Redfield, e longe de mim tencionar pôr em dúvida a sua qualidade pericial. Contudo, considero importante que compare as marcas da bala fatal com as da Número Quatro. Talvez que um novo exame microscópico de ambas as balas lhe faculte o merecimento de desvendar este intrincado problema. Voltarei a contra-interrogá-lo quanto a esse ponto - terminou Mason.

Virando-se para o juiz, Mason advertiu:

- Pode dar-se o caso de que este novo exame de Mr. Redfield venha a tornar inadmissível a introdução da arma como Prova A do processo.

- Pretende a anulação dessa prova? - espantou-se o juiz Kippen.

- Sim, Sr. Dr. Juiz, se o exame pericial demonstrar que não é Prova, como arma fatal.

- Também a Acusação está desejosa de saber como é que quatro balas saíram de dois cartuchos deflagrados - interveio Hamilton Burger.

- Mas só duas balas foram disparadas por essa arma, Mr. Burger - replicou Mason. - Não esteja a causar confusão no espírito do Tribunal. Já se provou que, pelo menos, uma das balas não foi disparada pela arma que possuímos. Por minha parte, estou firmemente convicto de que a bala fatal também o não foi, como em breve o saberemos.

- Se houve substituição de armas - ameaçou o Procurador do Distrito -, envidarei todos os esforços e meios policiais para desvendar quando foi substituída, onde foi substituída e qual o autor dessa substituição. Será com prazer que me incumbirei da obrigação de desmascará-lo e condená-lo publicamente por atentado à Justiça.

- Também espero que o faça - apoiou Mason, sentando-se.

Olhando para Strawn, por cima dos óculos, o juiz Kippen perguntou:

- Tem mais alguma testemunha para interrogatório directo?

— Sim, Sr. Dr. Juiz. Desejo chamar Mr. Meryvn Aldrich,

— Muito bem — concordou o juiz. — Enquanto Mr. Red-lield vai fazendo o seu exame pericial comparativo às balas Número Um e Número Quatro, podemos prosseguir com esta audição preliminar.

Depois de Mervyn Aldrich se ter sentado na cadeira das testemunhas e formulado as frases da praxe, Strawn

inquiriu:

— Estou a mostrar-lhe, Mr. Aldrich, um revólver Colt Cobra de calibre 38, cujo número de registo é 17475-LW, marcado como Prova A deste processo. Poderá dizer-me se esta arma lhe é familiar?

— Sim senhor. Fui eu quem a adquiriu em Newport Beach, numa casa de artigos desportivos denominada Golf, Gun nã Gaff Sporting Goods Store.

— Que fez com esta arma, depois de tê-la comprado ?

— Durante  algum  tempo  guardei-a em casa.  Depois, passei a trazê-la no porta-luvas do meu carro.

— Esse compartimento, chamado correntemente porta-

-luvas, tem chave ?

— Tem, mas  infelizmente, nunca o fecho, por  comodismo. Essa falta de cuidado causou-me recentemente um dissabor. "Verifiquei que me tinham roubado a arma.

— Em que dia deu por falta dela ?

— Na noite do dia 10.

— Deste mês ?

— Sim, senhor.

— E como lhe aconteceu dar por falta da arma?

— Mr. Perry Mason mostrou-ma e perguntou-me se eu a reconhecia. Achei-a realmente semelhante à, que comprara.

— Tem  alguma marca  individual  que  a  distinga   de

qualquer outra arma'semelhante?

— Sim, senhor.

— Que marca?

— Se olharmos atentamente para ela, poderemos notar um ligeiro risco feito com uma lima.

- Quem fez essa marca ?

- Eu próprio. Comprei uma pequena lima de três faces e risquei a base da coronha, de maneira a poder identificar a minha arma facilmente.

- Porque agiu dessa maneira ?

Neely levantou-se e interpôs:

.- Objecção, por incompetente, imaterial e irrelevante. A testemunha não é obrigada a desvendar as suas intenções particulares.

- Objecção aceite - decidiu o juiz Kippen.

- Farei a pergunta de outra maneira - disse Strawn, mal-humorado. - Quando comprou esta arma, adquiriu outra semelhante?

- Sim - respondeu Aldrich, contrariado.

- Que fez a essa segunda arma?

- Ofereci-a à minha noiva, para sua protecção pessoal.

- A que noiva se refere?

- A única que tenho - retorquiu Aldrich. - Miss Helene Chaney.

- Fez essa marca na sua arma, logo a seguir a ter comprado as duas, ou só a fez mais tarde?

Mason inclinou-se ao ouvido de Frank Neely e segredou-lhe:

- Interessa-nos introduzir essa nova arma, no processo. Vá interpondo objecções e demore tanto quanto possível a testemunha a prestar declarações. Quanto mais falar, mais oportunidades teremos de surpreendê-la em contradições. Chegou a altura de exigir que Aldrich mostre a marca que gravou na coronha desta segunda arma.

Nelly fez um sinal de aquiescência. Entretanto, Aldrich respondera:

~ Fi-la pouco depois de ter oferecido a outra arma a Miss Chaney. Queria diferençar uma da outra.

- A marca foi, portanto, feita na sua arma?

- Exactamente.

- Muito bem. Agora diga-me: até que data se recorda de ter a arma em seu poder ?

- Até ao dia nove do corrente mês.

- E onde se achava nesse dia ?

- Estava em Riverside, na Califórnia.

- Que foi lá fazer ?

- Fui assistir ao julgamento de Miss Bagby.

Strawn voltou-se para o juiz e declarou:

- A pergunta que tenciono fazer, a seguir, vai certamente levantar objecções, por parte da Defesa. Todavia é minha intenção desvendar o caminho que levou a referida arma.

- Se houver objecções, logo se vê - disse o juiz Kippen, calmamente.

- A que julgamento se refere ?

- Aquele em que Miss Bagby, acusada do presente julgamento, foi também ré, por crime de furto de jóias, conquanto tenha sido considerada inocente pelo Júri.

- Viu a ré, fora do tribunal, nessa tarde, após o julgamento de Riverside?

-Sim, senhor.

- Onde ?

- Vi-a junto do meu carro, estacionado no parque, em frente ao tribunal. Nessa altura, não pensei que...

- Não interessa o que pensou. Restrinja-se a apresentar factos - corrigiu Strawn.

-'Bem. Já relatei os factos - terminou Aldrich.

- Pode contra-interrogar - declarou Strawn, dirigindo-se a Mason.

Este segredou a Neely.

- Vá para diante. Ataque.

- Que devo perguntar-lhe? - disse Neely num sussurro.

- O que lhe vier à cabeça. Só me interessa que o demore - respondeu Mason, baixinho, recostando-se na cadeira e cruzando as mãos atrás da nuca.

Neely pigarreou para aclarar a voz e inquiriu:

- Comprou ambas as armas, no mesmo dia ?

- Sim, senhor - respondeu Aldrich.

- No dia vinte e cinco do mês passado ?

- Sim, senhor.

- Porquê nessa data ?

- Porque vi as armas num armazém de Newport Beach, gostei delas e resolvi comprá-las.

- E pensou logo oferecer uma a sua noiva, Miss Chaney?

- Sim. Já que adquiria uma, para minha defesa pessoal, podia oferecer-lhe outra.

- Por que razão marcou a sua arma?

- Para diferençá-la da que lhe ofereci.

- Vivem juntos?

Aldrich corou e respondeu:

- Não. Vivemos separados. Não estamos ainda casados.

- Porque receava confundir as armas ?

- Podiam ir, em viagem, na mesma mala..., quero dizer, porta-luvas, Sei lá? Marquei a minha, para diferençá-la mais facilmente da de Miss Chaney.

- Mas as armas já têm um número de registo diferente - observou Neely.

- Pois têm, mas é preciso estar a abrir o tambor, para poder verificá-lo. Um risco na coronha é mais simples.

Neely inclinou-se para Mason e segredou:

- Isto não nos leva a lado algum. Que rumo devo tomar para sair deste impasse?

- Pergunte-lhe o que fez, quando lhe mostrei a arma - sugeriu Mason.

- Segundo ouvi, Mr. Aldrich, o advogado da Defesa, aqui presente, mostrou-lhe uma arma, no dia dez do corrente mês, não foi assim?

- Sim, senhor.

- A que horas ?

- Por volta das dez e meia.

- Onde se achava ?

- Em casa de Miss Chaney.

- Que fez Mr. Mason?

- Mostrou-me a arma e perguntou-me se a conhecia.

- Que lhe respondeu, Mr. Aldrich ?

- Que parecia ser minha, pelo que pensava que ma tivessem roubado do porta-luvas do meu carro.

- Pegou na arma, nessa ocasião?

- Peguei sim, para ver se a reconhecia.

- Que fez, em seguida?

- Dirigi-me ao carro, para ver se tinha a minha arma no porta-luvas.

- E levou aquela arma consigo?

- Levei, sim senhor.

- Para quê ?

- Para ver se me teriam roubado a minha.

Neste ponto, Frank Neely animou-se e inquiriu:

- Para verificar se lha tinham roubado, não precisava de levar uma arma consigo. Para que efeito a levou?

- Bem para poder compará-las.

- Comparar o quê? A que levava na mão com a que faltava no porta-luvas?

- Bem..., não é isso que quero dizer...

- Que pretendia, então, comparar?

- A arma que tinha na mão, com a que estava no porta-luvas ?

- Para que desejava compará-las ? Não reconhece a sua?

- Bem..., reconheço, mas queria verificar se não haveria troca.

- Mas o senhor, Mr. Aldrich acabou de referir que tinha feito um risco na coronha para identificar facilmente as armas.

- Eu..., eu estava confuso, nessa noite.

- E agora, está confuso ?

- Agora, não.

- Então queira fazer o favor de explicar para que levou a arma que Mr. Mason lhe passou para a mão, a fim de compará-la com a que estaria, ou não, no porta-

- luvas, se lhe bastaria olhar para a coronha da arma que levava ?

- Não sei... Estava confuso..., tinha várias preocupações...

- E ao regressar junto de Mr. Mason, afirmou-lhe que se tratava da sua própria arma ?

- Sim, senhor.

- Como a reconheceu ?

- Pela marca que lhe fizera na coronha.

- Nesse caso, escusava de ir ao porta-luvas do seu carro, com ela. Bastava-lhe olhar para a coronha, para verificar que tinha na mão a sua própria arma, não será assim ?

- É... Não sei!

Era evidente que Mervyn Aldrich metia os pés pelas mãos, sem poder justificar a estúpida acção.

Neely consultou Mason com o olhar e este piscou-lhe o olho.

- É tudo - disse Frank Neely, sentando-se.

Meio aparvalhado, Aldrich abandonou a cadeira das testemunhas. Mason apertou o cotovelo de Neely e disse-lhe:

- Bravo, meu rapaz. Bom trabalho. Quando, amanhã, ler os jornais, verá como os jornalistas o elogiarão, descrevendo como virou o grande Aldrich de pernas para o ar, na presença da própria noiva, a famosa “estrela” Helene Chaney.

Hamilton Burger ergueu-se e dirigiu-se ao juiz:

- Poder-se-ia fazer agora um breve intervalo de um quarto de hora, Sr. Dr. Juiz ?

- Muito bem - concedeu este. - Faremos um intervalo de quinze minutos, enquanto aguardamos o relatório da Balística.

Um grupo de advogados que estavam entre a assistência dirigiu-se para Frank Neely, para o cumprimentarem.

- Uma boa intervenção, advogado - disse um deles.

- Belo contra-interrogatório - aplaudiu outro.

Um terceiro, dirigindo-se a Mason, elogiou:

- Teve um auxiliar muito hábil, Mr. Perry Mason.

Neely estava vermelho de satisfação.

Estelle Nugent atravessou a sala de audiências, direita ao noivo e agarrou-lhe as mãos.

- Oh, Frank! - exclamou. - Estou tão orgulhosa de ti! Foste maravilhoso!

Em seguida, virou-se para Perry Mason e para Miss Bagby que se achava no estrado atrás dele e disse:

- Do fundo do coração, espero que tudo corra bem para Miss Bagby. E o senhor, Mr. Mason, foi tão generoso para Frank, consentindo-lhe que se sentasse a seu lado e proporcionando-lhe a oportunidade de brilhar daquela maneira!

- Vai correr tudo bem - vaticinou Mason. Evelyn Bagby, apertando a mão que Estelle lhe estendia, virou a cara para o lado, para esconder as lágrimas. Mason tocou-lhe num braço e recomendou:

- Coragem, Evelyn. Não chore aqui dentro. Isto já não vai demorar muito.

- Acha que já falta pouco ?

- Estou certo de que virá cá para fora, muito em breve - animou o advogado.

Um polícia, aproximando-se de Evelyn, avisou:

- Tem de ir agora para a sala dos réus, Miss Bagby.

Evelyn seguiu atrás do polícia e saiu da sala, pela porta que se achava atrás do seu estrado.

Neely, tendo já recebido todos os cumprimentos dos colegas, aproximou-se de Mason e indagou:

- Por que diabo Mervyn Aldrich levou a arma com ele, para ver se lhe faltava uma, no carro?

- Para podê-las trocar - esclareceu Mason.

- O quê ? - admirou-se Neely. Explique-me isso, por favor, Mr. Mason.

Verificando que só ali estavam Estelle Nugent, Della Street, o jovem advogado e ele, sem que mais ninguém pudesse ouvi-los, Mason anuiu:

- Aldrích, ao olhar para a coronha da arma que eu lhe passara para a mão, verificou imediatamente que aquela não tinha nenhuma marca e que, portanto era o revólver que oferecera a Miss Chaney. Como eu anunciara que alguém praticara um crime, com ela, e porque a via efectivamente, na minha posse, fingiu não poder reconhecê-la e levou-a consigo para trocá-la com a que, sabia-o muito bem, tinha no porta-luvas do seu carro.

Após ligeira pausa para acender um cigarro, Mason continuou:

- Dessa maneira, Aldrich queria evitar problemas à noiva. Simplesmente, teve de fazer ainda outra coisa. Como a arma que eu lhe entregara e que era a de" Miss Chaney, apresentava dois cartuchos vazios no tambor, Aldrich teve de retirá-los e substituí-los por outros dois da arma que tinha no porta-luvas. Foi esta, portanto, a sua, que veio devolver-me, simulando ser a mesma que eu acabara de entregar-lhe e afirmando terem-lhe roubado a que tinha no porta-luvas. Durante todo o tempo em que falara comigo sobre a arma, antes de ir trocá-la ao carro, notei que Helene Chaney se fartara de fazer-lhe sinais com os olhos. Além disso, quando, antes de Aldrich chegar, a interrogara sobre se teria a sua arma em casa, disse-me que sim e fingiu ir ao quarto verificar esse facto. Contudo, ficou no átrio a telefonar para alguém, sem subir ao andar superior. Della pôde vê-la reflectida num espelho da sala, através da porta entreaberta. Quando Helene voltou, mentiu-me, declarando que fora verificar se a sua arma estava no quarto e que a encontrara no sítio do costume.

- Mas isso agora vai dar uma trapalhada dos diabos, com as armas trocadas e dois cartuchos deflagrados, por uma, metidos na outra - observou Neely.

- Assim o espero - replicou Mason.

- Mas qual será o efeito dessa balbúrdia ?

- Provavelmente o nosso ilustre e estimado Procurador do Distrito, Mr. Hamilton Burger, vai ficar com a tensão muito alta. Baseado na teoria de que Evelyn Bagby disparou aqueles dois cartuchos com a arma entregue ao tribunal, achar-se-á completamente baralhado, quando um perito lhe afirmar que esses cartuchos foram deflagrados por outra arma. E convencido, como está, de que a bala fatal foi disparada pela arma que se achava em poder de Evelyn, quando lhe provarem que o foi por um. outro revólver, então começará a sentir perturbações mentais.

- Nesse caso, como vai terminar este imbróglio para

Miss Bagby ?

- Prevejo que assistiremos a uma reviravolta espectacular e são precisamente essas reviravoltas que tornam os debates causísticos verdadeiramente interessantes, meu caro colega.

 

Já tinham passado bem vinte minutos, quando o juiz Kippen regressou à sala de audiências, declarando ter acabado de receber um telefonema do perito de balística, a anunciar-lhe vir já a caminho.

Sentou-se na sua cadeira de espaldar, ao centro do grande estrado do fundo da sala e tinha acabado de limpar os óculos, quando viu Mr. Redfield entrar na sala de audiências.

- Aí vem o nosso perito - avisou, interessado. Alexander Redfield entrava esbaforido, justificando-se:

- Foi-me impossível vir mais depressa, Sr. Dr. Juiz...

- Compreendo - disse este. - Já completou os seus testes ?

- Não, Sr. Dr. Juiz.

- Como não? - irritou-se o juiz Kippen. - Julguei tê-lo ouvido dizer que esse trabalho não oferecia grande dificuldade e demoraria pouco tempo, ou não?

- Ultimei os testes preliminares, Sr. Dr. Juiz, mas sobrevieram certas discrepâncias...

- Que discrepâncias? - impacientou-se o magistrado.

Passando a mão pelo queixo, Redfield expôs:

- Verifiquei que as balas Números Um e Quatro foram provavelmente disparadas pela mesma arma. Porém essa arma não pode ter sido o revólver marcado como Prova A do processo.

- Tem a certeza absoluta de que a bala fatal não partiu da arma que aqui temos?

- Não me atrevo ainda a precisar, Sr. Dr. Juiz, mas inclino-me fortemente para essa improbabilidade. Neste meu exame preliminar, directo e visual, ao microscópio, notei que a bala removida do crânio da vítima, apesar de bastante danificada, apresenta certas marcas de estrias, deveras semelhantes às que caracterizam a bala extraída da viga do tecto de Miss Eunice. Ora este último projéctil não foi, de modo algum, disparado pela arma - Prova A. Deixei no laboratório de balística o meu ajudante ocupado em fotografar ambos esses projécteis, com a câmara microscópica, de maneira a obterem as imagens cuja macro-ampliação nos permita identificar a bala fatal, Número Um, por método comparativo, com a bala Número Quatro, da viga do tecto.

Franzindo o sobrolho, o juiz Kippen indagou:

- E mais quê ?

- Verifiquei que, efectivamente, as balas Números Dois e Três foram disparadas pelo revólver-Prova A. Isto, em relação às marcas de estrias do cano impressas na superfície cilíndrica das balas.

- Quer dizer que a arma que temos em nosso poder, inclusa no processo como Prova A, foi a que disparou as balas encontradas no poste vermelho e no tronco de carvalho?

- Sim, Sr. Dr. Juiz. Sem a menor dúvida, esses projécteis foram disparados por esse revólver... E nisso que surge a discrepância.

- Não vejo em quê! - confessou o magistrado, perplexo.

- É que, examinando os cartuchos vazios, Insertos nos alvéolos do tambor dessa arma... Bem, tenho de informar, positivamente, será a mínima hipótese de erro, que não foram deflagrados pela mesma arma.

- Que me diz ?

- Digo que os cartuchos vazios que se encontram no tambor do revólver-Prova A não foram por ele deflagrados, embora as balas tenham passado pelo seu cano.

- Como é isso possível ? - inquiriu o juiz, abismado.

- Alguém disparou duas balas com esses cartuchos, por meio de outra arma, e transferiu-os, já vazios, para o revólver-Prova A; e alguém disparou duas balas com o revólver-Prova A e fez desaparecer os cartuchos deflagrados, visto aqueles que lá se encontram não terem sido percutidos pelo percutor dessa arma.

- O quê ? - gritou Hamilton Burger, pondo-se de pé, num salto. - Já era de esperar os malabarismos do costume.

O juiz Kippen fitou Mason, por cima dos óculos, e observou:

- Parece, Mr. Mason, que alguém esteve a manipular as provas deste caso! - Também tenho essa mesma impressão, Sr. Dr. Juiz - comentou Mason, calmamente.

- O revólver, marcado como Prova A, esteve em seu poder, Mr. Mason?

- Nem sempre esteve em meu poder, Sr. Dr. Juiz. Como já foi dito neste Tribunal, esteve também nas mãos do Sargento Holcomb, nas de Mr. Mervyn Aldrich, nas da acusada e nas da pessoa que o introduziu entre as roupas da gaveta do quarto de Miss Bagby, pessou essa que presumo tenha sido o assassino de Steve Merrill. É para tentar esclarecer este caso que se me impõe chamar, como testemunha, Miss Helene Chaney.

Neste momento, Mervyn Aldrich saltou, como que impelido por uma mola, da cadeira em que se encontrava, entre a assistência, e declarou:

- Helena Chaney não tem nada que testemunhar.

Inclinando-se para diante, o juiz Kippèn ordenou.

- Mr. Aldrich venha aqui, imediatamente.

Mervyn avançou, excitado, e colocou-se em frente do estrado onde se achava o juiz* - Que foi que disse ? - inquiriu o juiz.

- Que Helene Chaney não vai sentar-se nessa cadeira de testemunhas - retorquiu o noivo, desafiadora mente.

-O Tribunal verifica, neste momento, que Míss Chaney está ali presente, entre a assistência. Nessas circunstâncias nada poderá impedir que obedeça à ordem do Tribunal, para que preste declarações como testemunha. O senhor vai sentar-se, e já, junto do Procurador do Distrito. Miss Chaney, tenha a bondade... Aonde é que vai Miss Chaney?... Bailio..., bailio agarre-me essa mulher! - gritou o juiz, vendo a actriz correr para a porta.

O bailio não chegou a tempo de detê-la e teve de persegui-la, através do átrio daquele segundo piso, só conseguindo alcançá-la quando a “estrela” premia desespera-damente o botão de chamada do ascensor.

A sala de audiências transformou-se num verdadeiro pandemónio. Jornalistas e fotógrafos precipitaram-se também para o átrio e vários espectadores .seguiram-nos, ávidos de curiosidade.

O juiz Kippen batia furiosamente com o martelo sobre o tampo da sua enorme secretária, gritando:

- Ordem! Ordem!

Mas ninguém lhe obedecia.

Quando o bailio voltou com Miss Chaney, a reboque, por um braço, o juiz ordenou-lhe: - Feche-me essa porta à chave. Quem saiu fica lá fora, e quem ficou cá dentro-só sai quando eu determinar. Se a assistência não se: acalmar imediatamente, mando evacuar a sala.

A pouco e pouco os ânimos serenaram, já que a curiosidade de assistir ao curso dos debates sofreou a exaltação^ que o dramatismo da cena anterior provocara.

De pé, Hamilton Burger propôs:

- Sugiro, Sr. Dr. Juiz, um pequeno intervalo, para revisão da situação. Uma vez mais, o ilustre representante da Defesa conseguiu...

- Não se faz intervalo algum, nesta altura - recusou o magistrado, sem tirar os olhos censuradores do rosto de Helene que fora arrastada até ele, com o rosto afogueado e o peito arfante. - Sente-se nessa cadeira, imediatamente - intimou, apontando o "lugar das testemunhas. - Agora, queira responder ao que lhe for perguntado. Ela olhou para Mervyn, suplicando protecção.

- Está a ouvir o que lhe disse, Miss Chaney ? - zangou-se o juiz. - Sente-se imediatamente. E não tente mentir ao Tribunal, ouviu? Preste juramento.

Em voz sumida, Helene Chaney murmurou:

- Sim, senhor.

- Quando se me dirigir, deve mencionar: “Senhor Doutor Juiz". É uma formalidade da praxe legal que tem de ser observada, por respeito a este Tribunal. - Por que motivo fugiu ?

- Porque não quero servir de testemunha - respondeu Helene, contrafeita.

- Porque não ?

- Porque..., porque não quero publicidade.

- Não se trata aqui de querer ou não querer. Preste juramento. Escrivão, queira ditar o formulário a esta testemunha.

Helene Chaney ergueu a mão direita, identificou-se e repetiu as palavras que o escrivão lhe recitou.

- Ouviu as declarações de Mr. Aldrich? - interrogou o juiz.

- Sim, Sr. Dr. Juiz.

- Essa testemunha jurou ter-lhe oferecido um revólver Colt Cobra, de calibre 38, exactamente igual ao que ele possui e que se encontra constituindo a Prova A do decorrente processo. Ouviu isso?

- Sim, Sr. Dr. Juiz.

- Onde está ele?

Helene apontou para a bolsa que tinha sobre o colo.

- Está carregado ?

- Sim, Sr. Dr. Juiz.

- Porque traz essa arma carregada, consigo ?

- Para minha protecção pessoal.

- Tem licença de porte de arma?

- Eu... Mr. Aldrich disse-me...

- Não me interessa o que lhe disseram. Tem ou não tem porte de arma ?

- Não..., Sr. Dr. Juiz.

O juiz Kippen virou-se então para o bailio e indicou:

- Recolha a arma que Miss Chaney tem em seu poder e descarregue-a. Em seguida entregue-a para ser introduzida no processo, como Prova material E,

O bailio obedeceu, entregando a arma descarregada e as respectivas balas ao escrivão. Então, o juiz, voltando-se para este inquiriu:

- Qual é o número de registo dessa arma que acaba de ser-lhe entregue, como Prova E do processo?

O escrivão fez deslizar o tambor no seu eixo e leu:

- Número 17474-LW.

- Muito bem. Temos agora duas armas, identificadas como Prova A e E. Serão novamente entregues a Mr. Redfield, para exame pericial. O senhor, Mr. Redfield, fica pessoalmente responsabilizado pela segurança dessas duas armas e...

- Sr. Dr. Juiz - protestou Hamilton Burger. - Mr. Redfield é testemunha da Acusação e, como tal, essa arma deve ficar a cargo...

- Não me interessa de quem Mr. Redfield é testemunha. Acabo de responsabilizá-lo directamente pelas armas que são Provas materiais deste caso. Mr. Redfield está agora dependente, directamente, do Tribunal.

- Como se aproxima a hora de adiamento do presente julgamento - solicitou Mason, melifluamente -, desejava contra-interrogar esta testemunha...

- Não acho conveniente prolongarmos esta situação de sensacionalismo, por hoje, Mr. Mason. A testemunha poderá ser interrogada, amanhã. O Sr. Procurador do Distrito providenciará para que seja convocada oficialmente para esse fim.

- Sr. Dr. Juiz - insistiu Mason. - Permito-me sugerir, nesse caso, para esclarecimento deste Tribunal, que Vossa Excelência interrogue a testemunha, acerca do motivo : que a levou, desde o dia vinte e cinco do mês passado, a considerar necessária a sua protecção pessoal.

- Porquê? - surpreendeu-se o juiz Kippen. - Que tem isso a ver com o caso?

- Porque, Sr. Dr. Juiz, a tese da Defesa baseia-se no facto de a testemunha transportar essa arma carregada, a fim de proteger-se de Steve Merrill, o homem que foi assassinado com uma dessas armas.

- Objecção - gritou Hamilton Burger, exaltado. - Aqui está o advogado da Defesa a tentar enredar ainda mas este já emaranhado caso. A Acusação...

- A Acusação, Mr. Burger...

O juiz conteve-se e emendou:

- Objecção rejeitada.

- Virando-se para Helene Chaney, indagou:

- Por que motivo tem trazido consigo essa arma carregada?

- Porque Mr. Aldrich me disse...

- Não iluda a pergunta - censurou o magistrado, fulminando-a com os olhos. - Porque passou a andar armada, a partir do dia vinte e cinco do mês passado?

- Porque fora ameaçada.

- Por quem ?

O Procurador do Distrito pôs-se novamente de pé e interveio:

- Sr. Dr. Juiz! Lavro o meu veemente protesto. Este interrogatório foge a todas as normas processuais. Esse assunto nada tem a ver com o exame preliminar em curso, com o objectivo de determinar-se a culpabilidade provável da ré. A vida particular de Miss Chaney...

- Queira sentar-se, Mr. Burger e não torne a interromper o interrogatório porque o senhor mesmo, Mr. Burger, exigiu que se desmascarasse o autor da troca das armas. Queira responder, Miss Chaney.

- Estava a ser ameaçada por Steve Merrill. Fez-se um silêncio súbito no Tribunal. Em seguida, o juiz Kippen indagou, em tom mais suave:

- Pode explicar-me porquê e como eram feitas essas ameaças ?

- Steve Merrill esteve casado comigo, em tempos. Queria agora opor-se ao meu novo casamento. Começou a exigir-me dinheiro, para deixar de causar-me dissabores.

- Isso não é uma ameaça.

- Fez a ameaça, no mês passado, no dia vinte e quatro, dizendo que “eu não viveria tempo suficiente para gozar as delícias do matrimónio”.

- E pediu-lhe dinheiro ?

- Não pediu, Sr. Dr. Juiz. Exigiu, exercendo chantagem sobre a sua oposição a meu casamento.

- Quanto dinheiro lhe exigiu Steve Merrill ?

- Sete mil e quinhentos dólares - respondeu Helene.

Ergueu-se na sala novo burburinho e o juiz Kippen voltou a bater com o martelo de madeira na secretária. Finalmente, enfurecido, decidiu:

- O julgamento é adiado, até amanhã, às nove horas da manhã. Mr. Redfield apresentará então o relatório do seu exame pericial definitivo. Não se esqueça de que é responsável pela segurança dessas duas armas que, ora, o Tribunal lhe confia. É tudo.

O juiz Kippen recolheu, visivelmente irado, ao seu gabinete.

O bailio abriu a porta da sala de audiências e os jornalistas precipitaram-se em direcção às cabinas telefónicas. Outros, que tinham ficado no átrio, interrogavam as pessoas presentes, para obterem as informações que lhes tinha sido impossível recolher directamente. A assistência saiu, discutindo o caso e formando pequenos grupos que o bailio e alguns agentes da polícia iam, gradualmente, empurrando para a saída.

Hamilton Burger já se havia retirado, com Strawn, ambos denunciando um mau humor concentrado.

Della Street e Estelle Nugent tinham sido arrastadas para o exterior, pela acção do bailio e dos polícias.

Na sala de audiências, agora vazia, só tinham permanecido Perry Mason e Frank Neely. Este fitou Mason, apreensivamente, e inquiriu:

- O juiz suspeita de si, Mr. Mason?

- Sob que aspecto ?

- A respeito daquelas balas disparadas sobre o poste vermelho e no carvalho da estrada?

- Não posso evitar que suspeite - desculpou-se o advogado.

- Mas, só para meu esclarecimento, Mr. Mason, foi o senhor quem disparou essas balas?

- Não creio que possa responder-lhe a essa pergunta,

Neely.

- Oh, meu Deus!... Quer dizer que... Santo Deus! - exclamou Neely, visivelmente apoquentado.

- Quer abandonar o caso e livrar-se de qualquer responsabilidade comum? - sondou Mason.

- Não, Mr. Mason. De maneira nenhuma. Nunca fui desertor. Mas... essa sua acção não poderá ser considerada contrária à ética...

- A que ética?

- Bem..., manipular uma prova material...

- Porquê prova material?

- A arma do crime!

- Se essa arma, tal como estou convencido, não matou Steve Merril, não é prova material. Qualquer pessoa pode disparar com ela os tiros que lhe apeteça. É como se fosse uma outra arma qualquer.

- Mas Mervyn Aldrich jurou que essa arma é aquela que o senhor lhe entregou para identificação e, se era a que Miss Bagby lhe deu, a si, tem de ser a que matou Steve Merrill.

- Já sabemos que não foi a arma que matou Merril, pelo exame pericial das balas, assim como sabemos que os cartuchos deflagrados insertos no seu tambor, também não foram percutidos pelo percutor dessa arma.

- Nesse caso - admitiu Neely -, alguém trocou também os cartuchos das duas armas!

- Evidentemente - concluiu Mason.

- Mas... quem poderia ter trocado os cartuchos das duas armas? - indagou Neely, pensativamente.

- É fácil, meu caro colega. Só podia ter trocado as armas e os respectivos cartuchos a única pessoa que as teve simultaneamente em seu poder.

- Mervyn Aldrich ?

- Elementar, meu caro colega! - parafraseou Mason. (i)

Deram alguns passos em direcção à saída mas, antes de atingirem a porta, Frank Neely tornou a perguntar:

- Como foi possível disparar a arma, no poste vermelho, se o sargento Holcomb a viu, quando foram remover o corpo e o carro? Ninguém teria oportunidade para fazê-lo!

- A credulidade excessiva é um grande defeito! Está apenas a basear-se nas declarações do sargento Holcomb. Ora eu assustei-o, insinuando evidenciar a sua negligência nas investigações que operou, na noite do crime. Como ele vira, na manhã seguinte, um buraco de bala no poste vermelho que foi fotografado, resolveu declarar que, já na véspera, esse orifício lhe não passara desapercebido. Entre as restantes fotografias, estava a do tronco de carvalho. Mas todas elas foram tiradas na manhã posterior ao crime. Isso significa que quem disparou a arma, fê-lo

 

(1) O autor parafraseia Conan Doyle, na sua personagem Sherlock Holmes, dirigindo-se ao médico Dr. Watson, seu colaborador: “Elementar, meu caro Watson”. (N. do T.)

 

na noite do crime, depois das investigações policiais nocturnas e antes das diurnas da manhã imediata.

- Compreendo - disse Neely. - Contudo, continuo a não perceber que plano tenciona pôr em execução.

- Remexo os factos.

- Não percebo, Mr. Mason.

- Já alguma vez fez ovos estrelados, com outras pessoas presentes?

- Sim.

- E já lhe aconteceu, ao colocá-los na frigideira, rebentar as gemas? Para não se ficar malvisto, geralmente, misturam-se logo as gemas com as claras e diz-se ter-se decidido fazer ovos mexidos. Nunca lhe aconteceu?

Frank Neely riu-se e confessou- Não tenho grande prática de cozinheiro e, muito menos, em público.

- Pois bem, a mim já isso me aconteceu num acampamento, em que mostrava as minhas habilidades culinárias de “cozinheiro de ovos estrelados...”, que quase sempre saem mexidos. Ora, nestes debates de tribunal, quando todas as provas se acumulam esmagadoramente contra um cliente que acreditamos esteja inocente, só temos um expediente para tentar salvá-lo: remexer os factos. Alguma coisa há de aparecer, com isso, que nos conduza à verdadeira solução do caso.

 

O juiz Kippen entrou na sala de audiências, abriu a sessão de continuação do exame preliminar e declarou:

- De acordo com a nossa Constituição, os julgamentos devem ser públicos. Isso não significa que a sala de audiências se torne numa casa de espectáculos dramáticos, cheia de um público que apenas acorre ávido de sensa-cionalismo. O Tribunal compreende a função da Imprensa e da Informação, em geral, mas não pode concordar com o comportamento tumultuoso de alguns dos seus elementos. Por esses motivos, desde já advirto as pessoas presentes que, ao menor desrespeito à ordem devida ao Tribunal, mando evacuar a sala. Posto isto, chamo Mr. Red-field, como testemunha.

- Deseja que interrogue a testemunha? - ofereceu-se Hamilton Burger.

- Não, Sr. Procurador do Distrito. Quem vai interrogá-la sou eu - resolveu o juiz, animadamente.

Virando-se para Redfield, indagou:

- Terminou a sua investigação, quanto a exames balísticos e testes microscópicos?

- Sim, Sr. Dr. Juiz.

- Que concluiu, Mr. Redfield ?

- A bala fatal, Número Um, e a Número Quatro, encontrada em casa de Miss Eunice, foram ambas disparadas pelo revólver-Prova E. As balas Números Dois e Três foram disparadas pelo revólver-Prova A.

O juiz Kippen ouvia a testemunha, cheio de interesse, com os olhos semicerrados e as sobrancelhas franzidas.

- E acerca dos cartuchos vazios que se acham na arma-Prova A?

- Esses cartuchos foram deflagrados pela arma-Prova E e não pelo percutor da Prova A, em cujo tambor se encontram.

- Deve, portanto, concluir-se que os cartuchos vazios deflagraram as balas Um e Quatro, dentro do revólver-Prova E. Foram ulteriormente removidos para o revól-ver-Prova A. É essa a sua opinião?

- É a única solução possível, Sr. Dr. Juiz - confirmou o perito. - Quem tirou os cartuchos deflagrados da arma do crime, Prova E, substituiu-os por cartuchos novos. Os vazios foram introduzidos no tambor do revólver-Prova A que esteve em poder da ré. É tudo quanto posso testemunhar, como perito de balística.

- Muito bem - disse o juiz. - Pode deixar a cadeira das testemunhas. Vou agora chamar Miss Helene Chaney.

Um indivíduo deveras corpulento avançou direito ao juiz.

- Sr. Dr. Juiz - declarou -. Informo Vossa Excelência que compareço neste Tribunal, como advogado de Miss Helene Chaney. Sou Harmon Passing.

- Muito bem - disse o juiz Kippen. - Mande Miss Chaney sentar-se no “banco das testemunhas.

- Miss Chaney não está presente, Sr. Dr. Juiz - respondeu o advogado.

- Como não ? Por que razão não compareceu no Tribunal?

- Porque não foi intimada oficialmente. Ninguém lhe entregou qualquer contrafé.

- Mas esteve cá ontem!

- Esteve sim, senhor Dr. Juiz, e prestou declarações como testemunha.

- Devia saber que teria de comparecer hoje, aqui, para prosseguimento do seu interrogatório.

- Não recebeu qualquer indicação formal nesse sentido, Sr. Dr. Juiz. Em consequência, pensou ter sido dispensada. Tive o cuidado de estudar a Lei, cuidadosamente, sob esse aspecto. O comportamento de minha cliente é perfeitamente legal.

O magistrado corou, dominando a fúria e inquiriu:

- E o senhor, como seu advogado, aconselhou-a a furtar-se aos seus deveres para com este Tribunal?

- Respeitosamente, informo Vossa Excelência de que, como advogado de Miss Chaney, tenho por missão defender os seus interesses. Aconselhei-a de acordo com a minha consciência, nos termos da Lei e de acordo com a ética profissional que nos rege.

Durante uns segundos, o juiz Kippen mastigou mentalmente a situação e, depois, virou-se para o Procurador do Distrito. - Miss Chaney devia ter recebido uma contrafé - disse, secamente. Tornando a encarar Passing, indagou:

-Suponho que se ausentou para fora dos limites da jurisdição deste Tribunal, não ?

- Segundo julguei entender, encontra-se em Las Vegas, no Estado de Nevada. Foi aí tratar de um assunto de importância primordial.

- Muito bem. Vamos ver o que Mr. Mervyn Aldrich tem a dizer a esse respeito - decidiu o juiz, francamente irritado.

Com indestrutível calma, Passing declarou:

- Mr. Aldrich encontra-se na mesma situação de Miss Chaney, Sr. Dr. Juiz. Segundo creio, foi igualmente para Las Vegas, impelido pelo mesmo assunto de importância primordial. Não foi formalmente convocado, nem recebeu qualquer contrafé.

- Hem ? - gritou o juiz, voltando-se novamente para o Promotor de Justiça. - Como se explica que estas duas testemunhas não tenham sido convocadas formalmente?

- Também eu, Sr. Dr. Juiz, estou veramente surpreendido. Presumi que essas duas testemunhas estivessem, hoje, aqui presentes - disse Burger.

- Não estou a perguntar-lhe o que presumiu, Sr. Procurador do Distrito. Estou a perguntar-lhe porque não foram passadas contrafés a essas duas testemunhas essenciais, neste julgamento ?

Burger segredou qualquer coisa a Strawn e este encolheu os ombros, sacudindo as mãos, como a justificar não ter responsabilidade no assunto.

- Foi a si, Mr. Burger, que me dirigi - insistiu o juiz. - Tive ocasião, ontem à tarde, no fim da audiência, de adverti-lo da necessidade de convocar essas duas testemunhas para serem ouvidas, hoje.

- Lamento muito - respondeu Burger, num tom mais furioso que contrito.

- Bem, o que está feito, está feito. Sem o esclarecimento que essas duas testemunhas poderia prestar a este caso, em que posição ficamos?

- No que respeita à Acusação - disse Burger -, consideramos a versão da acusada completamente urdida e falsa.

- Como sabe que é falsa?

- A história da fronha enfiada na cabeça da vítima não passou de mera montagem teatral imaginária. Além disso, não há dúvida e ela própria confessou que disparou a arma duas vezes...

- A arma disparada pela ré nada tem a ver com o crime - objectou o juiz Kippen, impacientando-se.

- Mas, Sr. Dr. Juiz - lembrou Burger -, alguém trocou as armas. É indiscutível que essa troca se efectuou depois de os tiros terem sido disparados. E quem o fez, substituiu, igualmente, os cartuchos deflagrados. Essa manipulação de provas só pode ter sido perpetrada, na intenção de ilibar a ré do crime que lhe é imputado.

Uma vez mais, o Procurador do Distrito olhou de relance para Perry Mason.

Este, encontrando o olhar do juiz, sorriu-se tranquilamente:

- Na minha opinião, logo que se prove quem operou essa fraudulenta troca, deveria ser expulso da Ordem dos Advogados - concluiu Hamilton Burger.

- Da Ordem dos Advogados? - repetiu o juiz,  chocado. - Está fazendo uma acusação específica, Mr.

Burger ?

Compreendendo ter ido demasiado longe, o Procurador do Distrito emendou o libelo:

- Exprimi-me na generalidade, no caso de o autor da manipulação das Provas ter sido um advogado.

- Aconselho-o, Mr. Burger - advertiu o juiz -, a moderar as expressões que utiliza para expor as suas ideias. As rivalidades pessoais e subjacentes complexos de hostilidades têm de ser banidas deste Tribunal. A isso me referi na abertura deste decorrente exame preliminar.

Virando-se para Perry Mason, o magistrado inquiriu:

- Tem alguma declaração a fazer, Mr. Mason?

- Sim, Sr. Dr. Juiz.

- Queira sentar-se, Sr. Procurador do Distrito - ordenou o juiz Kippen. - Qual é a sua pretensão, senhor advogado da Defesa ?

- Desejo chamar uma testemunha a prestar declarações.

- Muito bem, Mr. Mason. Quem é essa testemunha ?

- Miss Irene Keith.

Momentos depois, Irene Keith, sentada na cadeira das testemunhas, respondia ao interrogatório de Mason, com uma expressão nitidamente hostil.

- É amiga íntima de Helene Chaney? - indagou o advogado.

- Fui - replicou Irene.

- E de Mervyn Aldrich ?

- Sim.

- Estou, neste momento, a indigitar-lhe um revólver Colt Cobra, de calibre 38, Prova E do processo. Já alguma vez teve ocasião de ver esta arma ?

- Não sei.

- Estou a apontar, agora, para uma arma idêntica, Prova A do processo. Viu-a, porventura, alguma vez ?

- Não sei.

- Já viu armas deste tipo ?

- Aconteceu-me ver várias - retorquiu Irene, evidenciando o seu antagonismo. - Semelhantes a este revólver?

- Sim.

- Teve algum revólver em seu poder, no dia dez do corrente mês ?

- Oh, Sr. Dr. Juiz - interrompeu Hamilton Burger. -' A Defesa não pode sujeitar a testemunha a um interrogatório deste tipo. Está obviamente tentando incriminá-la, em vez de debater a matéria em causa, relacionada com a suspeita de crime perpetrado pela ré.

- Estou interrogando uma testemunha hostil - justificou Mason.

- Objecção rejeitada - decidiu o magistrado.

-  Receio não poder responder a essa pergunta - replicou Irene Keith.

- Helene Chaney emprestou-lhe um revólver carregado, não é verdade?

- Sim.

- No dia dez deste mês ?

- Sim, creio que sim.

- Nega ter-lhe sido emprestado o revólver-Prova-E ? Veja bem o que responde, Miss Keith, pois está sob juramento - advertiu Mason.

- Bem, eu... Esse revólver foi-me efectivamente emprestado.

- Que fez com esse revólver?

- Não posso dizê-lo - declarou a testemunha.

O juiz Kippen inclinou-se sobre a secretária, fitou Irene perscrutadoramente e disse para Perry Mason:

- Eu próprio interrogarei essa testemunha. Dirigindo-se a Irene avisou:

- Este assunto, Miss Keith, é muito grave. A paciência do Tribunal está prestes a esgotar-se. Já não é altura para admissão de subterfúgios de qualquer natureza. Queira responder claramente ao que se lhe pergunta.

Irene Keith olhou para o chão, depois encarou o magistrado e retorquiu:

- Recuso-me a responder.

Um rumor de surpresa percorreu a sala de audiências.

- Recusa-se a responder! - repetiu o juiz, incredulamente.

- Exactamente.

- Com que fundamento?

- Com o fundamento de a resposta poder incriminar-me.

- Mas admitiu ter tido essa arma em seu poder, não é verdade ?

- Sim Sr. Dr. Juiz. Foi-me emprestada, creio que no dia dez, e tive-a em meu poder.

- Refere-se à Prova E?

- Sim, Sr. Dr. Juiz.

- E recusa-se a responder, no prosseguimento do interrogatório ?

- Depende da natureza das perguntas - especificou Irene.

- Tem o seu advogado presente neste Tribunal?

- Não, Sr. Dr. Juiz.

- Mas aconselhou-se com um advogado, antes de comparecer neste Tribunal?

- Sim, Senhor Doutor Juiz.

- Foi esse advogado que a aconselhou a não responder a certas perguntas?

- Sim, Sr. Dr. Juiz.

Após um momento de hesitação, o juiz Kippen inquiriu:

- Responda-me, Miss Keith: está, de qualquer modo, relacionada com a morte de Steve Merrill?

- Não, Sr. Dr. Juiz. Nada tive a ver com a morte desse homem.

- Estava presente no momento em que o assassinaram ?

- Não, Sr. Dr. Juiz.

- Faz alguma ideia de quem o matou ?

- Não, Sr. Dr. Juiz.

- Foi cúmplice de conspiração conducente à morte de Steve Merrill ?

- Não, Sr. Dr. Juiz.

- Nesse caso - observou o magistrado -, não vejo motivo para negar-se a responder às perguntas referentes ao assassinato de Steve Merril. Diga-me, pois, que fez com essa arma, Prova E do processo.

-Recuso responder, com o fundamento de que a resposta possa incriminar-me.

O juiz Kippen pareceu ficar momentaneamente atordoado. Finalmente, declarou:

- O Tribunal não vai tolerar uma situação de rebeldia desta natureza. Se nada tem a ver com o crime cuja execução está a ser dissecada em exame preliminar, não pode escusar-se a responder, alegando que as suas respostas podem incriminá-la - explicou o juiz.

- Se o Tribunal me permite - interveio Mason -, creio que entrevejo o motivo que força a testemunha a escudar-se nessa posição legal defensiva. Gostaria que me fosse permitido fazer-lhe algumas perguntas.

- Prossiga - determinou o magistrado. Levantando-se e postando-se em frente de Irene Keith, o advogado disse-lhe:

- Acabou de mencionar, sob juramento, não estar implicada na morte de Steve Merrill. Porque tenho a veleidade de julgar conhecer a sua personalidade e a firmeza do seu carácter, creio, Miss Keith, que disse a verdade. Porém, ao invocar o Artigo 5º do Código Processual de Justiça dos Estados Unidos, é-me lícito deduzir que a sua atitude resulta de recear ser incriminada, não no assassinato de Steve Merrill, mas noutro crime de diversa natureza, acidentalmente relacionado com o presente caso.

Raivosamente, Irene desfechou-lhe:

- O senhor é o culpado de tudo quanto está a acontecer-me!

- Que a testemunha se limite a responder às perguntas - intimou o juiz Kippen.

- Não creio ser obrigada a responder-lhes.

- Eu afirmo-lhe que sim - teimou o juiz.

- O meu advogado elucidou-me perfeitamente, quanto à extensão do Poder da Lei. Relatei todos os factos ao meu advogado e estou agindo de acordo com as suas directivas.

Kippen hesitou e olhou de relance para Perry Mason.

- A Defesa tem alguma ideia do motivo que induz a testemunha a manter-se determinantemente escudada nos termos do Artigo 5º?

- Creio que sim, Sr. Dr. Juiz.

"Voltando a encarar Irene, Mason inquiriu:

- Manteve alguma discussão com Steve Merrill, acerca de um assunto de jóias, no dia dez do corrente mês ?

- Recuso-me a responder, porque a minha resposta pode Incriminar-me - replicou Irene Keith.

- É ou não verdade que teve em seu poder o revólver Colt Cobra, Prova E, do processo e que o deu a Steve Merrill ?

- Oh, Sr. Dr. Juiz - interferiu Burger. - Apresento veemente objecção contra este processo de interrogatório.

- Objecção rejeitada - decidiu o juiz Kippen.

- Posso ser ouvido ? - insistiu Burger.

- Certamente que tem toda a liberdade de falar, Sr. Procurador do Distrito. Estamos num país livre. Mas só poderei aceitar uma objecção, desde que seja legalmente fundamentada e não me parece esse o caso.

- Sucede, Sr. Dr. Juiz - justificou Burger -, que a testemunha, por recear ver-se implicada num crime alheio ao que ora se debate em exame preliminar, recita, sistematicamente, o formulário do Artigo 5º do Código Processual de Justiça. É evidente que o advogado da Defesa, tendo-se apercebido dessa limitação da testemunha, vai conduzindo o seu interrogatório de maneira arbitrária, servindo-se da repetição desse formulário, por parte de testemunha, para ir insinuando ao Tribunal toda uma teoria meramente fictícia. Se perguntassem a Miss Keith: “assassinou ou conspirou para assassinar o Presidente dos Estados Unidos”, ela replicaria: “recuso-me a responder, porque a resposta pode incriminar-me”. Desta maneira, o Tribunal concluiria que ela assassinara ou conspirava contra a vida do Presidente.

Notou-se na assistência e, particularmente, na bancada dos jurados, um movimento de aprovação. Imediatamente, Perry Mason interveio:

- Sugiro, Sr. Dr. Juiz, que faça essa pergunta à testemunha.

Num ápice, o juiz Kippen assimilou a intenção de Mason.

Reprimindo um sorriso, interrogou com o ar mais sério deste mundo:

- Diga-me, Miss Keith: assassinou, ou conspirou contra a vida do Presidente dos Estados Unidos?

- Não, Sr. Dr. Juiz - declarou Irene, firmemente. A assistência teve de sufocar os risos, sob o olhar ameaçador do juiz Kippen.

Hamilton Burger, furioso, sentou-se bruscamente na cadeira da Acusação e passou um dedo pela abertura do colarinho, como se este o estrangulasse.

- Queira prosseguir, Mr. Mason - indicou o magistrado.

Com redobrada vitalidade, Burger tornou a levantar-se para declarar:

- O interrogatório da Defesa afasta-se deliberadamente da matéria em causa. Está procurando devassar as fronteiras de outro crime, provavelmente relacionado com aquele de que a mesma ré foi precedentemente acusada, e desviando a atenção do Tribunal para o assassínio de Steven Merrill, cujo exame preliminar está em curso..., ou deveria estar.

- A sua insinuação, Sr. Procurador do Distrito, é impertinente. O Tribunal não pode autorizar tal comportamento por parte da Acusação e tomará as devidas medidas disciplinares em relação ao seu representante. A pertinência da observação processual foi deteriorada pela impertinência da insinuação final.

- A Acusação lamenta ter-se precipitado, Sr. Dr. Juiz. Pede desculpa da critica insinuada, mas insiste em sublinhar a impropriedade do interrogatório da Defesa.

- Está aconselhando a testemunha a recusar-se a responder ao meu interrogatório ? - indagou Perry Mason, indignado.

- Repito que hostilidade de carácter pessoal não pode ter lugar entre as paredes deste Tribunal - gritou o juiz Kippen. - Vou passar a interrogar, pessoalmente, a testemunha. Tome atenção, por favor, Miss Keith. Aparentemente, manteve relações com Steve Merrill, relações essas alheias à matéria do presente caso. O Tribunal compreende a sua posição legal..., a sua atitude defensiva. Desejaria porém que respondesse a uma outra pergunta: entregou a Steve Merrill uma importância, em dinheiro, de cerca de sete mil e quinhentos dólares, no dia dez do corrente mês?

- Recuso-me a responder a essa pergunta, porque a resposta pode incriminar-me - retorquiu Irene Keith.

Desnorteado, o juiz olhou para Perry Mason.

- Se o Tribunal me permite - solicitou Hamilton Burger -, desejaria também inquirir a testemunha sobre determinado ponto.

- Queira interrogar, Sr. Procurador do Distrito - concedeu o juiz.

-'Foi o advogado, Mr. Perry Mason, quem a aconselhou a manter a presente atitude, escudando-se com o Artigo 5º?... Não como representante da Defesa, nesta causa, mas como seu consultor jurídico, noutra matéria?

- Não, senhor - respondeu Irene, com ar desprezador. Vermelho e comprometido, Burger tornou a sentar-se, disfarçando o notório embaraço com uma troca de impressões com Strawn.

- O Tribunal fará, neste momento, um intervalo de trinta minutos - resolveu o juiz Kippen, erguendo-se da sua cadeira de espaldar. Antes de retirar-se, porém, acrescentou:

- Estão algumas pessoas, presentes nesta sala, que tendo recebido uma contrafé, não tenham compreendido a determinação de regressarem dentro de trinta minutos? Quero que todas as pessoas convocadas, como testemunhas, estejam aqui presentes, dentro de meia hora.

Olhando para Irene Keith, por cima dos óculos, inquiriu:

- Ouviu bem o que eu disse, Miss Keith? Estará aqui, dentro de trinta minutos?

- Sim, Sr. Dr. Juiz.

-Sabe que a sua ausência será considerada desrespeito a este Tribunal e punida de acordo com as disposições legais?

- Sim, Sr. Dr. Juiz - respondeu ela.

- Muito bem... Agora, o Tribunal deseja conferenciar, primeiramente, com Mr. Burger e Mr. Strawn: seguidamente, com Mr. Mason e Mr. Neely. Essa conferência terá lugar no meu gabinete.

Perry Mason olhou para Frank Neely e fez-lhe uma careta sorridente.

 

O bailio aproximou-se da mesa ocupada pelos representantes da Defesa e anunciou:

- O Juiz Kippen convoca Mr. Mason e Mr. Neely ao seu gabinete.

Quando Mason e Neely se aproximaram do gabinete do juiz, cruzaram-se com Burger e Strawn que vinham a sair.

Hamilton Burger, afogueado de cólera, passou rente a Mason, olhando em frente, como um touro que nada visse.

- Queiram sentar-se - convidou o magistrado, quando os dois advogados da Defesa foram introduzidos no gabinete pelo bailio que lhes abrira a porta, com um sorriso cúmplice.

O juiz Kippen fitou Mason com um ar de satisfação.

- Desejava pôr algumas das minhas cartas na mesa, Mr. Mason - prologou. - Devo confessar-lhe que, antes do presente exame preliminar, fui avisado pelo Juiz-Presidente de que a maioria dos seus casos, Mr. Mason, se revestem de habilidades jurídicas pouco usuais e invulgarmente espectaculares. Embora o Juiz-Presidente reconheça que tem ganho as suas causas, em prol da Justiça, considera inconveniente, para a austeridade de que os julgamentos devem revestir-se, o dramatismo que os debates, em que Mr. Mason intervém, provocam entre a assistência e na opinião pública. Apercebi-me de que o Sr. Procurador do Distrito não foi alheio a essa opinião do Juiz-Presidente e consequente advertência que me foi feita. Pessoalmente concordo que, conquanto a Defesa deva ter a maior amplitude na salvaguarda dos interesses do réu, um Tribunal não pode transformar-se num circo de sensacionalismo. E, na realidade, isso vai sendo comum no decurso das causas por si defendidas, Mr-Mason.

Perry Mason mostrava-se quase contrito e, nos lábios do juiz Kippen, aflorou um mal contido sorriso.

- Uma vista de olhos pelos jornais desta manhã - prosseguiu -, que só agora pude dar, graças à amabilidade do Sr. Procurador do Distrito, realçam essa espec-tacularidade, contrária à devida solenidade dos julgamentos, e lesaram profundamente o prestígio da Acusação, representada pelo Sr. Hamilton Burger, particularmente no que se refere à negligência do seu Gabinete, quanto à não convocação formal das duas testemunhas essenciais ausentes.

Mason coibiu-se de fazer qualquer comentário e Neely que começara por mostrar-se enfiado, como se as palavras do magistrado constituíssem uma admoestação, não pôde, desta vez, evitar que os olhos lhe brilhassem de satisfação.

- Não sei se terei oportunidade de falar hoje com o Juiz-Presidente -• continuou Kippen -, mas antevejo quanto as notícias da rádio, da televisão e da imprensa lhe desagradarão. Pressinto que, neste preciso momento, o Sr. Procurador do Distrito está em contacto telefónico com o Juiz-Presidente, relatando-lhe a sua versão das ocorrências verificadas no Tribunal, justificando a ineficiência do seu Gabinete e da investigação do Departamento de Homicídios, ao mesmo tempo que sublinha a nocividade, para uma austera imagem da Justiça, causada pela teatralidade que o senhor, Mr. Mason, consegue sempre incutir às causas que defende. Por esse motivo, confesso-lhe que desejaria, Mr. Mason, que o prosseguimento do exame preliminar em curso não decorresse no mesmo âmbito de sensacionalismo dramático.

Com um aceno de cabeça, Mason concordou, gravemente.

- No ponto em que se encontra o caso em debate, não vejo qualquer solução lógica imediata. Não consigo discernir qualquer justificação pertinente para a conduta da testemunha, Miss Irene Keith. É uma mulher mentalmente saudável, numa boa posição social e o seu comportamento, agora muito criticado desfavoravelmente pelos jornais, parece injustificável. Por outro lado, Helene Chaney é uma “estrela" cinematográfica de nome já famoso e não se entende como, encontrando-se envolvida no presente caso, se ausenta determinantemente para furtar-se a prestar declarações em tribunal. O mesmo se verifica com Mr. Mervyn Aldrich, proeminente industrial deste distrito.

Mason agitou as pálpebras concordantemente. - Voltando a Miss Irene Keith, se efectivamente se encontra envolvida no crime, não vou permitir que se furte ao esclarecimento da verdade. Sabemos que foi aconselhada por um advogado astuto, mas teremos de encontrar uma via para obrigá-la a prestar declarações concretas ou, pelo menos, a entrar em contradições que nos permitam considerá-la juridicamente suspeita de crime, ou de cumplicidade no mesmo. Bem, Mr. Mason, pus as cartas na mesa. O Sr. Procurador de Distrito não faz a menor ideia do que está no espírito de Miss Keith. Aparentemente, o senhor, Mr. Mason, é o único que consegue compreender os meandros da presente situação. Pois, bem, gostaria que me elucidasse quanto à sua visão do problema.

Com um gesto eloquente, o juiz Kippen deu a entender que terminara a sua exposição.

-Vou expor-lhe a minha posição, Sr. Dr. Juiz - anunciou Mason, modestamente. - Como advogado da Defesa, tenho de usar todos os meios ao meu alcance para evitar que um réu inocente seja condenado por um conjunto de provas habilmente urdidas de maneira a condená-lo. É esse o caso de Miss Evelyn Bagby. O testemunho de Miss Chaney e de Mr. Aldrich poderiam ter feito luz sobre todo o mistério, se não fora a negligência do Sr. Procurador do Distrito. Na ausência dessas duas testemunhas, as declarações de Miss Keith poderiam contribuir para aclarar o problema, se não fora o seu advogado tê-la aconselhado a escudar-se com o Artigo 5." do Código Processual. Não há dúvida de que foram perpetrados dois crimes, sendo o segundo uma ramificação do primeiro. Si admissível que certas declarações de Miss Keith, em relação à morte de Steve Merrill, possam implicá-la, de qualquer modo, no primeiro crime praticado, especificadamente, no roubo de jóias de Corona, River-side.

- Como consegue interpretar o mistério das armas? - interessou-se o juiz.

- Miss Evelyn Bagby - relatou Mason -, entregou-me uma arma. Não fui eu quem substituiu essa arma por outra. Portanto, indubitavelmente, alguém o fez, trocando igualmente os cartuchos percutidos. Para defesa da minha cliente, vi-me imperativamente obrigado a descobrir a verdade e dei os passos necessários nesse sentido.

- O quê? Está tentando dizer-me que foi o senhor quem disparou os tiros sobre o poste vermelho e sobre o carvalho da estrada? - espantou-se o juiz Kippen.

- Não, Sr. Dr. Juiz. É exactamente isso que estou tentando evitar dizer-lhe.

Subitamente o juiz rompeu numa gargalhada.

- Muito bem, continue, Mr. Mason - incitou.

- Alguma coisa aconteceu, no dia dez deste mês, para que Steve Merrill estivesse na posse de sete mil e quinhentos dólares. Ele exigira-os a Miss Chaney, sua ex- mulher, mas ela recusara-lhos. Ele ameaçou-a, velada-mente, de morte e Mr. Mervyn deu-lhe o revólver-Prova E, para sua segurança pessoal. Contudo, Steve Merrill mostrou aos seus amigos estar na posse daquela quantia. Alguém lhe entregou, portanto, os sete mil e quinhentos dólares e, provavelmente, quem o fez, emprestou-lhe também o revólver-Prova E. Ouviu o testemunho de Miss Irene Keith, confessando ter entregue essa mesma arma a Steve Merril, não é verdade ? -

O juiz Kippen confirmou com um aceno de cabeça, perguntando seguidamente:

- E o revólver-Prova A?

- Ouviu também o testemunho de Mervyn Aldrich, Sr. Dr. Juiz - observou Mason -, embora, agora, já nada possa ser dele aproveitado. Se casou com Miss Chaney, em Las Vegas, a Lei impedi-los-á de testemunharem um contra o outro. Foram espertos.

Pensando durante uns instantes, o magistrado observou:

- Não está a dar-me grande ajuda, nesse ponto, pois não, Mr. Mason ?

- Bem, Sr. Dr. Juiz - disse o advogado -, se me der carta-branca na audiência imediata, prometo-lhe envidar os meus esforços no sentido de esclarecer todo o problema. Não prometo, contudo, satisfazer o Juiz-Presidente, evitando que ele leia nos jornais de amanhã, novas cenas de dramaturgia jurídica.

- Porque pensa que consegue resolver o enigma, Mr. Mason? O Procurador do Distrito não faz a menor ideia do que se tenha passado. O seu espírito labora positivamente no vácuo!

- Não se pode lutar contra a própria natureza - observou Mason, sarcástico.

Kippen riu-se e sondou:

- Qual vai ser o plano de acção, Mr. Mason.

O advogado satisfez:

- Vou baseá-lo num facto simples: quem quer que tenha assassinado Steve Merrill era-lhe suficientemente familiar para seguir com ele no mesmo automóvel, para saber que ele acabara de receber sete mil e quinhentos dólares e que Evelyn Bagby ameaçava desmascará-lo, quanto ao dinheiro que Merrill lhe extorquira fraudulentamente. Tinha de ser, evidentemente, uma pessoa da sua confiança.

- Na sua opinião, foi portanto a pessoa que o acompanhava dentro do carro que o matou?

- Precisamente, Sr. Dr. Juiz. É essa a minha teoria. A pessoa que o acompanhava assassinou-o com um tiro na têmpora, utilizando a arma-Prova E que Merril tinha em seu poder, e fê-lo dentro do automóvel. Depois, arrumou a viatura, com o cadáver escondido, numa estrada secundária e pouco frequentada, de acesso à de montanha. Então, o assassino, substituiu os cartuchos deflagrados por outros virgens, limpou cuidadosamente o revólver e foi plantá-lo entre a roupa interior, numa gaveta do quarto de Miss Bagby. Esse revólver era, nessa altura, a arma -Prova E. Não há dúvida que o assassino sabia onde estava Miss Bagby instalada. Do quarto desta, retirou uma fronha de almofada da cama e levou-a consigo.

- Como poderia o assassino saber onde se achava Miss Bagby a trabalhar e a dormir? - interessou-se o juiz.

- Pode ter obtido essa informação da boca do próprio Merrill, ou através de quem recebera o recado de Miss Bagby, para que o burlão se encontrasse algures com ela. Além disso, pôde vigiar facilmente o quarto de Miss Bagby, utilizando um binóculo e postando-se numa casa fronteira, numa elevação de terreno, não muito distante da Croumcrest Tavern. Através da janela do quarto, deve tê-la visto guardar aquela arma na bolsa de mão.

- Mas Miss Bagby confessou ter disparado dois tiros com o mesmo revólver - observou o juiz.

- Exactamente. O assassino perseguiu Miss Bagby, não para matá-la, como ela supôs, mas para aterrorizá-la. Quando esta, aterrorizada se lembrou de que trazia a arma consigo, disparou dois tiros, ao calhar, com os dois carros em andamento. Era o que o assassino pretendia. Dessa maneira, o tambor do revólver com que o crime fora praticado, tinha agora dois cartuchos deflagrados. A partir de então, interrompeu a perseguição já desnecessária. Sabia, de antemão, que Miss Bagby viria entregar-me a arma e que não deixaria de informar a polícia dessa ocorrência.

- E a fronha ? - inquiriu o juiz Kippen, interessadíssimo.

- O assassino abriu dois buracos nessa fronha, transformando-a numa máscara improvisada,  fez um terceiro orifício que simulasse a penetração de uma bala. Em seguida, enfiou a fronha na cabeça de Merrill e prendeu-lha com um elástico. Depois, despenhou o carro, com o cadáver lá dentro, pela ribanceira, destruindo a guarda-estrada e o pequeno paredão.

- É realmente uma teoria deveras interessante - comentou o juiz. - Infortunadamente, não há provas que a materializem.

- Dê-me carta-branca, Sr. Dr. Juiz, e eu apresentar-lhe-ei as provas - prometeu Mason.

O juiz Kippen levantou-se e declarou:

- Não sei qual a extensão da sua ideia, quanto a “carta-branca". Terá de observar um procedimento jurídico correcto. Se as objecções de Mr. Burger forem pertinentes, não terei outro remédio senão aceitá-las.

- Muito obrigado - disse Mason. - Estou certo de que nos compreendemos, um ao outro, perfeitamente, Sr. Dr. Juiz.

- Olhe que não estou muito bem certo disso - observou o magistrado, com certa petulância. - Você colocou-me numa posição deveras periclitante.

- Espinhosa, direi - corrigiu Mason -, mas não periclitante. O perigo de um desaire já passou. Embora com os pés bem firmados em terra e todo aquele peso em cima deles, Hamilton Burger continuará com a cabeça no vácuo.

Seguido de Neely, Mason saiu do gabinete, deixando o Juiz Kippen ainda de pé, entregue a profundas cogitações.

 

O juiz Kippen entrou na sala de audiências, com uma expressão que indicava ter tomado uma firme resolução. Momentos depois, indagava:

- Há mais algumas testemunhas a serem ouvidas ?

- Sim, Sr. Dr. Juiz - confirmou Mason.

- Muito bem. Queira chamá-las a prestar declarações - indicou o magistrado.

- Mr. Oscar Loomis - disse Mason.

Loomis avançou para a cadeira das testemunhas.

- Um momento - interrompeu o juiz. - A Defesa convocou Mr. Loomis, na qualidade de sua testemunha?

- Exactamente.

- Prossiga, Mr. Mason.

Instantes depois do cumprimento das formalidades processuais, o advogado perguntava:

- Estava relacionado com Steve Merrill, enquanto viveu ?

- Sim.

- Há quanto tempo o conhecia ?

- Há pouco. Vivia no mesmo edifício de apartamentos que habito.

- Está relacionado com Mr. Harry Boles ?

- Sim.

- Há quanto tempo o conhece ?

- Há dois ou três meses.

- Como se relacionou com ele ?

- Através de Steve Merrill. Ele e Steve eram amigos, há muito tempo. Vinha frequentemente visitar Steve e, no dia nove deste mês, instalou-se num apartamento que vagara no mesmo andar no edifício em que vivemos.

- Agora diga-me: quando o cadáver de Stev* Merrill foi encontrado pela polícia dentro do seu carro, Mr. Loomis, já o senhor se queixara, antecipadamente, de que lho tinham roubado?

- Sim.

- Viu Mr. Boles, nesse dia?

- Sim.

- Quando ?

- Por volta das cinco horas, quando eu andava preocupado, porque me haviam roubado o carro. Mr. Boles aproximou-se e começou a falar connosco.

- Disse “connosco" ?

- Sim. A minha namorada estava comigo.

- Como se chama a sua namorada ?

- Ruby Inwood.

- Já a conhece há muito tempo ?

- Oh, sim, já vai para mais de dois anos. Vive também no nosso edifício de apartamentos.

- No mesmo andar ?

- Sim.

- Quer dizer, que, a partir do dia nove deste mês, tanto Miss Ruby, como o senhor, Mr. Boles e o falecido Steve Merrill viviam no mesmo andar do mesmo edifício de apartamentos?

- Sim - respondeu Loomis, com um gesto de mão e um encolher de ombros que procurava significar não ter essa coincidência a menor importância.

- Que aconteceu, quando se encontrou com Mr. Boles, por volta das cinco horas ?

- Bem, Harry foi o primeiro...

- Refere-se a Mr. Boles? - indagou Mason.

- Sim. Harry Boles foi o primeiro que sugeriu ter o meu carro sido levado por Steve... Steve Merril, por engano, visto que os carros eram iguais, mas o meu cani, nessa altura...

- Objecção - interpôs Hamilton Burger. - Não faço ideia aonde o advogado da Defesa quer chegar, mas estamos perante uma série injustificável de declarações por “ouvir dizer". Objecto contra tudo o que Mr. Loomis declara ter sido proferido por Mr. Boles.

- Objecção pertinente e aceite - decidiu o juiz Kippen.

- Que fez, depois de ter falado com Mr. Boles ? - inquiriu Mason.

- Telefonei à polícia e admiti que a minha queixa de roubo do automóvel poderia tratar-se de um engano: podia ter-se dado o caso de um meu amigo, Steve Merrill, ter levado o meu carro, julgando tratar-se do seu, visto serem iguais.

- Portanto, estava ainda, nessa altura, em companhia de Mr. Boles?

- Sim, senhor.

- Manteve-se na sua companhia, durante quanto tempo ?

- Desde essa hora, até às oito e meia..., talvez já próximo das nove.

- Quem mais estava convosco ?

- Ruby Inwood.

- Miss Inwood encontra-se presente no tribunal?

- Sim. Está sentada ali ao fundo - apontou Loomis.

- Nada mais - dispensou Mason. - Desejo agora interrogar Miss Ruby Wood.

- Não tenho perguntas a fazer - declarou Burger, visivelmente aliviado por Perry Mason lhe não ter atirado com uma nova complicação para o regaço.

Ruby Wood avançou, prestou juramento e sentou-se na cadeira das testemunhas. Era uma moreninha atraente, com olhos pestanejantes e consciente de que possuía uma suculenta figura.

- Conheceu Mr. Steve Merrill, enquanto foi vivo? - indagou Mason.

- Sim, senhor.

- Viu-o no dia dez deste mês?

- Sim senhor.

- Há quanto tempo o conhecia?

- Há vários meses.

- E conhece Mr. Harry Boles ?

- Sim.

- E Mr. Oscar Loomis ?

- Muito bem.

- São amigos ?

- Somos namorados... Tencionamos casar.

- Dava-se tão bem com Steve Merrill, como com Mr. Loomis ?

- Oh, não! Como lhe disse, Oscar e eu tencionamos casar.

- Mas era amiga de Mr. Merrill.

- Sim, era.

- Quer, portanto, significar ser mais amiga de Mr. Loomis do que de Mr. Merrill, enquanto vivo?

- Certamente.

- Ora, no dia dez do corrente mês, Mr. Merrill mostrou-lhe sete mil e quinhentos dólares, em notas e declarou-lhe...

- Alto aí! - interrompeu Hamilton, com a sua habitual rudeza. - Objecção. Lá voltamos às declarações por “ouvir dizer". De resto, não interessa se Merrill lhe mostrou as notas, ou não.

- O acto de exibição do dinheiro é um facto e não “ouvir dizer" - corrigiu Mason -, e interessa, porque pode demonstrar um motivo, Sr. Dr. Juiz.

- Motivo ? - repetiu o juiz. - Que quer dizer com isso?

- Motivo para o assassinato de Steve Merrill - indicou Mason. - O facto de ter em seu poder uma grande soma de dinheiro, em notas correntes, pode ter constituído uma tentação e razão para o crime.

- Muito bem - decidiu o juiz. - Considero pertinente a referência ao dinheiro na posse do morto, mas não o relato da conversa mantida entre Mr. Merrill e a testemunha a esse respeito.

- Viu muitas notas nas mãos de Steve Merrill, Miss Inwood ?

- Sim, senhor.

- Viu a arma que o falecido Mr. Merrill tinha em seu poder ?

- Sim, senhor.

- Estou a mostrar-lhe agora um revólver Colt Cobra de calibre 38, Prova E do processo. Sabe se era esta a arma que viu nas mãos de Steve Merrill?

- Não sei se era essa arma, mas era uma, tal e qual - respondeu a moreninha.

- Ele disse-lhe como conseguira obter essa arma ?

- Objecção com o mesmo fundamento - interpôs Burger.

- Aceite - disse o juiz.

- Disse-lhe que sofrera um tremendo golpe e que teria de efectuar o pagamento de uma larga soma a Miss Evelyn Bagby, ré do presente processo ?

- Objecção - gritou Hamilton Burger, arrastado pelo impulso antecedente. Verificando, porém, que a resposta poderia constituir um motivo incriminativo para a acusada, emendou: - Não..., não faço objecção, neste caso.

Ouviu-se um murmúrio de ligeira galhofa, entre a assistência.

- Sim - respondeu Ruby. - Disse-me isso. Costumo atender os telefones, quando eles estão ausentes e receber mensagens. Só há um telefone, instalado no corredor de cada andar do edifício.

- No dia dez, recebeu uma mensagem para Mr. Merrill; uma mensagem transmitida por Miss Evelyn Bagby?

- Sim. Pouco depois do meio-dia, ela quis falar com Steve Merrill. Steve não estava no apartamento. Então Miss Bagby disse-me como se chamava e indicou a morada onde se encontrava e o número de telefone. Explicou que trabalhava na Crowncrest Tavern, na estrada da montanha e que tinha lá um quarto onde dormia.

- Transmitiu essa mensagem a Mr. Merrill?

- Sim. Dei-lhe o recado, pouco depois do meio-dia.

Ele ficou terrivelmente alarmado. Disse-me que uma coisa que lhe acontecera na vida estava, agora, a vir ao de cima: uma coisa que ele pensava estar já bem morta e enterrada. Disse que tinha de arranjar uma data de “massa" do pé para a mão.

- Sabe se Mr, Merrill conseguiu arranjar esse dinheiro ?

- sondou Mason.

- Arranjou, sim. Deviam ser umas três horas da tarde, quando me mostrou um grande maço de notas e também um revólver.

- Ao mostrar-lhe esse dinheiro e essa arma, viu qual era a soma que tinha em seu poder?

- Disse-me serem sete mil e quinhentos dólares, mas que não pagaria a Miss Bagby senão dois mil; nem mais um chavo.

- Foi, efectivamente, jantar com Mr. Loomis que diz ser seu namorado, e com Mr. Boles, nessa noite de dez do corrente ?

- Sim, senhor.

- Onde jantaram ?

- Num restaurante da estrada de North Broadway logo à saída da cidade.

- Como se deslocaram até esse restaurante ? Foram de táxi?

- Não. Fomos no meu carro.

- E permaneceram nesse restaurante da Nort Broad way. até que horas ?

- Até cerca das oito e meia, nove horas.

- E depois ?

- Voltámos para casa.

- No seu carro ?

- Está visto.

- Depois disso, que fez ao seu automóvel ? Arrumou-o no parque do edifício onde vivem ?

- Não. Emprestei-o a Harry Boles que tinha de ir falar a uma mulher que ia dar-lhe umas “massas”. Foi então que a polícia avisou Oscar..., Mr. Loomis, da que tinham localizado o seu carro.

- Trocaram-lhe o carro sinistrado por um outro, não é verdade? Em que dia?

- Na manhã do dia onze. Foi um Fora, igualzinho, novo em folha.

- Foi a senhora, Miss Inwood, que comprou esse carro, ou ofereceram-lho ?

- Objecção, por irrelevante e incompetente - interveio

Burger.

- Aceite - disse o juiz.

- Considero esta resposta altamente significativa e fundamental, para o esclarecimento do caso - apelou

Mason.

- O Tribunal considera-a altamente irrelevante -  replicou o juiz.

Perry Mason tornou a encarar a testemunha e perguntou:

- Quando comprou o seu novo automóvel, devolveu o anterior, em troca?

- Sim, senhor.

- E o seu velho carro foi entregue, por troca, na manhã do dia onze do corrente mês?

Ruby Inwood hesitou e depois respondeu:

- S... sim.

- E recebeu o carro novo, imediatamente ?

- Sim.

- Foi a própria Miss Inwood quem efectuou essa troca, ou alguém se ofereceu para fazê-la, por si?

Nova hesitação da testemunha. Por fim, confirmou:

- Foi um amigo meu quem trocou os automóveis.

O advogado da Defesa, neste ponto, virou-se para o juiz e declarou:

- Pretendo, Sr. Dr. Juiz que o Tribunal envie uma contrafé, duces tecum, à agência onde os referidos carros foram trocados, para que apresente o automóvel velho, sinistrado, em processo, a fim de ser examinado pericialmente. Proponho-me provar que esse carro tem, algures, um orifício provocado por uma bala de calibre 38, provavelmente disparada pela arma-Prova E.

- Uma bala no automóvel? - surpreendeu-se o juiz Kippen.

- Exactamente, Sr. Dr. Juiz. Falta-nos uma bala - observou Mason.

- Falta-nos uma bala? - repetiu o juiz, abismado. - Mais uma? Não compreendo, Mr. Mason. Parece-me, até, que já temos balas de mais no processo!

- Mas não chegam, Sr. Dr. Juiz. Acredito na inocência da acusada, porque estou certo da verdade das suas declarações. Miss Bagby afirmou ter disparado dois tiros contra o homem que a perseguia, tentando despenhá-la no precipício. Uma dessas balas foi alojar-se numa viga do tecto da casa de Miss Mary Eunice. A outra, aparentemente, de acordo com as declarações da ré, teria embatido na superfície metálica do automóvel conduzido pelo assaltante. Ouviu o ruído particular desse impacto. Portanto, é-me lícito admitir que essa bala se tenha incrustado no carro que a perseguia. Penso que a razão que levou alguém a trocar esse carro, por um novo, sem que Miss Inwood tivesse oportunidade de ver o velho, reside exactamente no facto de este último ter um orifício de bala.

- - Estamos perante mais uma habilidade do advogado... - começou Burger a dizer, calando-se, subitamente, sob o olhar censurador do juiz.

- E agora - continuou Mason, apontando um dedo acusador para Oscar Loomis -, o motivo que me leva, Sr. Dr. Juiz, a requisitar esse carro à respectiva agência, por meio de uma contrafé duces tecum, é a necessidade impreterivel de demonstrar que essa testemunha, Mr. Oscar Loomis, cometeu perjúrio voluntário e premeditado, quando se referiu ao tempo que passou na companhia de Harry Boles. A sua declaração de que esteve com Miss Inwood jantando com Mr. Boles, até às oito e meia, ou nove horas, é uma pura mistificação. Proponho-me provar que Boles e Miss Inwood foram jantar, enquanto Oscar Loomis conduziu o carro velho à montanha, a fim de assaltar Miss Bagby, tentando despenhá-la na ravina. Provarei que agiu desse modo, para forçá-la a disparar dois tiros e...

- Alto lá! - cortou Hamilton Burger, pondo-se de pé. - Cá vem, novamente o advogado da Defesa com a fantasiosa teoria de que...

Olhando-o' por cima das lentes, o juiz Kippen interrompeu-o com brusquidão.

- Sente-se, Mr. Burger. Esteja calado. Deixe Mr. Mason terminar a sua proposição. Poderá objectar, depois disso, se houver motivo que o justifique.

O Procurador do Distrito engoliu em seco e sentou-se, visivelmente comprometido. Mason continuou:

- Proponho-me provar o que verdadeiramente aconteceu, interrogando os empregados da agência que efectuou a troca dos carros de Miss Inwood e do pessoal do restaurante onde a testemunha disse terem jantado. Provarei que tanto Mr. Harry Boles, como Mr. Oscar Loomis, como a própria testemunha, Miss Ruby Inwood, mentem deliberadamente, cometendo perjúrio...

A morena, que estivera a ouvir Mason com uma atenção concentrada, explodiu subitamente, num grito desesperado:

- Não, não, não! Não atirem as culpas para cima de Oscar. Ele não teve culpa! Foi Harry Boles quem nos pediu que lhe assegurássemos um álibi. Harry pedira-me o carro emprestado para essa tarde. Ofereceu-me vinte e cinco dólares, como se fosse um aluguer, e disse que pagava a gasolina e o óleo. Apareceu, depois, às oito e meia, explicando que tivera um acidente com o meu Ford, pelo que ia dar-me um carro igualzinho, novo em folha. Nem eu nem Oscar pensámos que Boles se tivesse metido num caso de assassínio. Não podem acusar Oscar de coisa alguma. Esteve sempre comigo, não é verdade que estiveste, Oscar? Vem cá e conta a verdade. Não te deixes enterrar por causa de Harry. Vem cá, Oscar...

- Venha cá Oscar - intimou o juiz, inclinando-se para a frente. - E Boles? Onde está Mr. Boles? O Tribunal ordena-lhe que se apresente como testemunha? Onde diabo se meteu Boles ?

Vendo o juiz perder a tramontana, Perry Mason sentou-se, sorrindo.

- Bailio - gritou o juiz. - Traga-me Mr. Boles, imediatamente.

Uma pessoa qualquer, de entre a assistência informou:

- Saiu daqui, há coisa de cinco minutos.

Tendo chegado em frente da secretária do juiz, Oscar Loomis declarou, assustado:

- Ruby está a falar verdade. Quando combinámos com Harry afiançar-lhe um álibi, não sabíamos que ele tinha “limpo o sebo” a Steve. Depois..., sabe como é, Sr. Dr. Juiz, tivemos de manter a coisa, tal como estava, para não arranjarmos “chatices” com a polícia.

Pondo-se de pé, Hamilton Burger interveio:

- Sr. Dr. Juiz, isto é absolutamente irregular...

- Sente-se e esteja quieto - ordenou-lhe o juiz. - Vamos aclarar tudo isto, num minuto. Quero que me tragam esse Boles, aqui, sem tardança. A polícia que mexa essas pernas.

Compreendendo que se alterara demasiadamente, o magistrado esforçou-se por serenar e perguntou a Miss Ruby Inwood:

- Segundo compreendi, forneceu um falso álibi a Mr. Boles ?

- Só por causa do automóvel - justificou-se ela.

- E o senhor, Mr. Loomis ?

- O mesmo.

- Muito bem. Ficam ambos sob custódia do Tribunal. Virando-se para Hamilton Burger, indicou:

- Sr. Procurador do Distrito. Quero interrogar esse Harry Boles, o mais depressa possível. Trate de mandar um apelo pela rádio e ponha-me os carros-patrulhas da polícia a fazer qualquer coisa. Desta vez, o Tribunal espera que actue eficientemente. Já deixámos escapar duas testemunhas essenciais, o que atrasou desgraçadamente a solução do problema. Por pouco, não descobríamos nada. Não me deixe, agora, escapar-se o presumível assassino de Steve Merril. O Tribunal vai passar uma contra-fé aos responsáveis e empregados da agência que efectuou a troca dos Fords de Miss Inwood, na manhã do dia onze. Se os peritos da polícia descobrirem um buraco de bala no carro velho, quero vê-lo, pessoalmente. E não fique, aí parado, a olhar para mim, Mr. Burger.

Tomou fôlego, depois da longa e exaltada tirada, e virou-se para as duas testemunhas, notoriamente preocupadas.

- Vocês aí... Pigarreou e corrigiu:

- As testemunhas, Miss Inwood e Mr. Loomis, ficam detidos, sob custódia do Tribunal. A audiência está encerrada.

 

Perry Mason, Della Street, Frank Neely, Evelyn Bagby e Paul Drake achavam-se reunidos no escritório do advogado.

- Suponho - disse Drake, dirigindo-se a Mason -, que vais gabar-te de que já tinhas previsto a solução do caso, há muito tempo.

- Não. Desta vez, não tinha - confessou Mason -, mas estava certo de que Miss Bagby falava verdade. Sabia, de facto, que Mervyn Aldrich substituíra as armas, porque eu mesmo, praticamente, o instigara a fazê-lo. Della estava comigo e assistiu à cena de eu lhe pôr a isca no anzol. Aldrich mordeu-o logo, correndo, com a arma que eu lhe entregara, para o carro onde a substituiu pela sua. Um advogado, por vezes, tem de pescar, um pouco, em águas turvas.

Drake sorriu, meneando a cabeça aprovadoramente.

Neste momento, Gertie apareceu à entrada e anunciou:

- Está Miss Irene Keith ao telefone, Mr. Mason. Diz que tem de falar consigo, imediatamente.

Quando Mason atendeu, quase se limitou a ouvir, apenas emitindo monossílabos de confirmação, de quando em quando. Finalmente, ao desligar o aparelho, perante o olhar de intensa curiosidade dos circundantes, perguntou a Della Street:

- Tomou nota de quanto ouviu?

A bela secretária que estivera no outro telefone de comutação de bloco-notas e caneta, em punho, a estenografar a comunicação de Irene Keith, confirmou com um movimento suave de cabeça.

- Cos diabos! - exclamou Drake. - Que raio de mistério é esse? Que se passa, Perry?

- Finalmente - explicou Mason -, temos quase todas as peças do puzzle encaixadas nos devidos lugares. Steve Merrill subornara e cortejara uma tal Celeste, criada de Irene Keith, para que esta o mantivesse a par dos acontecimentos, quanto ao noivado de Helene Chaney com Mervyn Aldrich. A troco de umas “massas”, Celeste ia-o informando de todo o falatório que conseguia interceptar, das diligências que estavam a ser feitas, nesse sentido, e dos preparatórios de casamento, ponto de reunião, presentes, etc... Merrill, ao mesmo tempo, ia exercendo uma espécie de chantagem, sobre Helene, exigindo-lhe dinheiro em troca da sua não intervenção junto das autoridades, no que respeitava aos anteriores casamentos e divórcios da “estrela" novamente noiva. Merrill estava convencido de que Helene cederia às suas exigências e esperou que esta lhe pagasse os sete mil e quinhentos dólares que estipulara. Contudo, Mervyn Aldrich convenceu Helene a mandar Merrill “à fava”, não lhe pagando um chavo. Planeou partir com ela para Las Vegas onde poderiam. de “uma cajadada” não só obter o divórcio do primeiro marido de Helene, registando-o legalmente no Estado da Califórnia, como também provar a ilegitimidade do pseudo-matrimónio da “estrela” com Merrill e, finalmente, casarem à face da Lei.

Após uma breve pausa, para acender um cigarro, Mason continuou:

- Contudo, por intermédio de Celeste, provavelmente sua recente amante, Steve Merrill foi avisado deste último plano e não pôde esperar mais tempo. Viu-se na necessidade de intervir, apresentando uma queixa contra Helene acusando-a de pretender, deliberadamente, cometer bigamia, repetindo um casamento fictício, como fora o seu. Além disso, processá-la-ia por ter-se locupletado com parte dos bens que considerava comuns.

- Merril chegou a denunciá-la às autoridades? - perguntou Drake.

- Não porque, entretanto, Miss Bagby vira as fotografias dele, numa revista, e reconhecera-o como sendo o mesmo Stauton Vester Gladden que, anteriormente, a burlara. Miss Bagby telefonou para Merrill, de Corona, e Merrill compreendeu que, de maneira alguma, lhe convinha aparecer em tribunal, nessas circunstâncias, num caso que teria enorme publicidade. Então, sabendo, por Celeste, que os noivos e a comitiva iriam encontrar-se em Corona, onde Miss Evelyn Bagby se hospedara temporariamente, decidiu aproveitar essa coincidência que lhe caía do céu. Pensou que, se pudesse roubar as jóias de Helene e atribuir a culpa a Evelyn, não só deixaria esta em maus lençóis, mas também adiaria o casamento da outra, para ulterior chantagem, e apoderar-se-ia de uma pequena fortuna.

- Mas a criada do motel de Corona viu Miss Keith entrar no quarto de Miss Bagby - lembrou Paul Drake. - Que tinha Irene a ver com Merrill?

- Já lá vamos, Paul - acalmou Mason. - Não foi Miss Keith quem a criada viu. Na manhã do dia do roubo, muito cedo, enquanto Helene e Irene estavam no salão do beleza, a alindar-se para o casamento, Celeste enfiou um vestido da patroa, calçou os seus sapatos de crocodilo, pôs os seus grandes óculos escuros e foi até Corona. Ao chegar aí, alugou um apartamento do motel e, aproveitando o momento em que Miss Bagby estava a tomar o pequeno almoço no restaurante, entrou-lhe no quarto e plantou-lhe, entre a roupa, um bracelete de diamantes. Em seguida voltou para Hollywood, antes que a patroa e a amiga regressassem do salão de beleza, para almoçarem.

- Mas quem foi que roubou as jóias ? - inquiriu Miss Bagby, interessadíssima.

- Calma, Evelyn - disse Mason. - Também já lá vamos. Celeste arranjou maneira de emprestar a chave do porta-bagagens da patroa a Steve Merrill, para que este fizesse um duplicado. Mais tarde, na noite da véspera do casamento, a criada ajudou Irene a arrumar as jóias, era três caixas que meteram na mala de viagem, para seguir no dia seguinte, dentro do porta-bagagens. Todos sabiam que Aldrich era um “doente" por pontualidade. Ninguém ousava fazê-lo esperar. Por isso, Celeste, antes que a patroa e a amiga regressassem do salão de beleza, tornou a abrir a mala de viagem e furtou todas as jóias que estavam dentro das três caixas, deixando-as vazias. Quando as senhoras voltaram, para almoçar à pressa, Celeste já tinha a mala pronta a ser colocada no porta-bagagens. Quando Irene Keith partiu com Helene, viu-a arrumar a mala e fechou aquele compartimento à chave.

- Onde é que entra Boles ? - inquiriu Drake.

- Steve Merril estava, havia muito, associado a Harry Boles. Entregou-lhe a chave-duplicado do porta-bagagens e encarregou-o de ir até Corona e espiar a chegada de Helene e Irene. Quando estas arrumassem o carro e fossem para o restaurante, esperar pelos demais convidados, Boles teria apenas de abrir o porta-bagagens. Aguardaria que alguém se apercebesse de que ele fora aberto, desse pela falta das jóias e alarmasse a polícia. Só então Boles apareceria, denunciando Evelyn como autora do roubo.

- Não percebo, contudo, por que razão Irene Keith confessou, no tribunal, ter entregue o dinheiro e o revólver a Steve Merrill - declarou Della.

Esmagando a ponta do cigarro, no cinzeiro, Mason esclareceu :

- Durante o julgamento de Evelyn Bagby, Irene Keith começou a perceber o que acontecera. Depreendeu que o roubo fora cometido pela sua própria criada e receou estar numa posição muito vulnerável, por ter feito uma falsa acusação contra Miss Bagby. Quando esta nossa amiga foi despronunciada, graças à acção do meu colega, aqui presente, Mr. Neely...

- Oh, Mr. Mason! - protestou o jovem advogado, corando.

-... Irene Keith compreendeu a necessidade de pagar uma compensação a Evelyn Bagby.

- Não percebo por que motivo Miss Keith não denunciou a criada - disse Drake.

Mason sorrindo filosoficamente, respondeu:

- Na vida das mulheres da alta sociedade americana, há sempre muita coisa a esconder. Não foi realmente apenas o receio de ser processada por falsa acusação. Isso seria uma falta menor. Acontece, porém, que uma criada particular sabe sempre muita coisa que a respectiva patroa não deseja que possa vir a ser divulgada. As relações de Irene com Mervyn Aldrich tinham sido muito íntimas. Irene Keith ficaria encantada se o casamento do seu antigo amigo íntimo fosse adiado ou sofresse qualquer impedimento. Se um escândalo viesse a desinteressá-lo da “amiga” Helene, talvez pudesse reconquistá-lo. Além disso, deu-se um acontecimento que a forçou a tomar uma atitude drástica. Quando Miss Bagby foi praticamente inocentada do roubo, Steve Merrill telefonou a Irene Keith e pôs as cartas na mesa. Anunciou-lhe ter em seu poder quarenta mil dólares de jóias, parte das quais da própria Irene. Propôs-lhe devolver-lhas, na sua totalidade, em troca de sete mil e quinhentos dólares, em dinheiro contado; não aceitaria cheque e exigia uma garantia de que não seria perseguido, pelo que fizera. Alegou que apenas pretendera impdir o casamento de Helene com Mervyn; afinal de contas, “amigos íntimos" comuns, respectivamente, de Merrill e de Irene. Mesmo que o casamento fosse somente adiado, entretanto muita coisa poderia acontecer, para melhoria dos interesses de ambos.

- E Irene Keith caiu nessa esparrela ? - admirou-se Frank Neely. - Não correu logo a consultar um advogado?

- Irene consultou o seu advogado. Como é natural, este aconselhou-a a ligar um gravador de som ao telefone de sua casa, a gravar a próxima conversa com Merrill e a comunicar todos os factos à polícia. Explicou-lhe que, se pagasse a Merrill pela restituição das jóias, sem o denunciar às autoridades, após o prejuízo que Miss Bagby sofrera, seria não só cúmplice de felonia, mas também responsável directa daquele prejuízo moral e material. Mas Irene Keith pôs uns e outros factos na balança dos seus interesses pessoais e os quarenta mil dólares de jóias que poderia recuperar, por sete mil e quinhentos, juntos aos outros motivos já referidos, pesaram mais. Resolveu aceitar a proposta de Merrill e referiu-a a Helene, no que respeitava à recuperação das jóias. Miss Chaney aceitou igualmente a proposta do ex-pseudomarido. Foi nessa altura que Irene Keith pediu o revólver emprestado a Helene Chaney, pois não tinha grande confiança em Steve Merrill. Pelo sim, pelo não, sempre gravou a segunda conversa com ele.

- Como diabo foi esse revólver parar às mãos de Merrill? - perguntou Drake.

- Quando chegou à altura de ultimar o acordo, Merrill tornou-se desconfiado. Suspeitou da existência de um microfone, algures, e começou a inspeccionar a sala onde se encontravam. Acabou por ver o dispositivo ligado ao telefone, seguiu os fios e descobriu um gravador oculto debaixo de um móvel. Imediatamente confiscou a cassette de fita magnética. Irene apontou-lhe a arma, mas não teve coragem para disparar e Merrill saltou sobre ela e tírou-lha. Então, Miss Keith entregou-lhe os sete mil e quinhentos dólares, em troca das jóias. E agora, receando que eu tivesse adivinhado o que se passara, resolveu telefonar-me e pôr as cartas na mesa. Quer estabelecer um acordo decente com Miss Evelyn Bagby e limpar-se de toda aquela porcaria. Foi o que acabou de fazer e que Della esteve a estenografar.

- E quanto ao assassínio - inquiriu Drake.

- Quanto ao crime, temos de fazer uma suposição que presumo pertinente: Boles devia estar a contar com uma boa talhada do roubo das jóias. Ia com Merrill no carro deste. Devem ter discutido. Boles tirou o revólver do porta-luvas, lutaram e ele desfechou a arma.

- É admissível - concordou Paul Drake. - Fui informado, por um dos meus homens, que Boles andava a ser perseguido por dívidas de apostas e esses corretores formam um gang que não perdoa. Merrill também andava a ser pressionado por vários lados. Tinha igualmente muitas dívidas e percebeu não ter outro remédio senão pagar a Miss Bagby. Sete mil e quinhentos dólares sempre eram melhor do que nada, num período de angústia. Custa-me porém compreender como Boles se arriscou a ir parar à câmara de gás...

- Bem, Paul, não creio que Boles tivesse intenção de matar Merrill, quando começaram a discutir. Merrill devia tencionar ir até à Crowncrest Tavern, falar com Miss Evelyn Bagby e chegar com ela ao melhor acordo possível, para ele, evidentemente. Devia querer fazer-lhe uma entrega inicial de uns cem, ou duzentos dólares, e uma série de promessas enganadoras. Merrill conduzia um carro alugado. Não estava muito habituado a ele. Era exactamente do mesmo modelo do carro de Loomis e, como todos sabemos, acontece que, muitas vezes, as chaves de ignição de um automóvel servem noutro da mesma marca e modelo. Deduzo que Boles e Merrill discutiram acerca do montante de dinheiro que este teria de pagar àquele. Boles, aflito como estava com as dívidas de jogo, deveria querer uma grossa “fatia”. Merrill devia querer dar-lhe apenas uma percentagem para pagamento da sua acção de cumplicidade. Discutiram. Boles devia ter visto o revólver, que Merrill tirara a Irene, no porta-luvas do carro. Pegou nele e apontou-o ao outro. Merrill tentou tirar-lho e Boles premiu o gatilho, talvez até involuntariamente. Numa luta, isso acontece. Quando Boles se apercebeu do sarilho em que estava envolvido, com um cadáver nos braços, pensou logo em atribuir o crime a qualquer outra pessoa.

- Naturalmente, escolheu-me, a mim - concluiu Evelyn.

- Temos disso a certeza, minha querida amiga - observou Mason, sorrindo.

- Em que altura se teria travado essa luta ? - interessou-se Frank Neely.

- Presumo que o homicídio se perpetrou quando Merrill ia a caminho da Crowncrest Tavern, para falar a Miss Bagby. Não deve ter sido muito longe do local onde o cadáver e o carro vieram a ser encontrados. Há ali perto uma estrada secundária que vem entroncar na principal, onde estivemos. Boles levou o carro para essa via pouco frequentada, tirou os sete mil e quinhentos dólares a Merrill, extraiu os cartuchos deflagrados, limpou o revólver e foi ao restaurante da montanha. Verificou aí que Miss Bagby se ausentara. Ser-lhe-ia fácil ir à casa de banho “para homens” e, daí, descer ao quarto da nossa amiga, então devoluto. Pensou que Miss Bagby teria ido à cidade comprar roupas e plantou o revólver na gaveta. Em seguida tirou uma das fronhas das almofadas da cama saiu pelo mesmo caminho. Veio então, a correr, para Hollywood, procurou Ruby Inwood e pediu-lhe o carro emprestado, a troco de vinte e cinco dólares. Foi provavelmente por essa altura que Loomis descobriu que lhe tinham roubado o carro e apresentou queixa à polícia. Isso deu a Boles um esplêndido pretexto para forjar um álibi. Disse a Oscar Loomis que vira Merrill a guiar um carro igual, alguns minutos antes, levando uma mulher a seu lado, e que certamente o amigo lhe levara o carro, por engano. Isso permitia-lhe consolidar o álibi, porque parecia que Merrill ainda estaria vivo pouco antes das cinco horas e, ao mesmo tempo, atirava as suspeitas para cima da nossa amiga Evelyn Bagby.

- Mas como podia saber que Miss Bagby iria à gaveta e encontraria a arma ?

- Pensou que as senhoras, quando vão fazer compras, a primeira coisa que fazem no seu regresso a casa é tornar a vê-las e, consequentemente, arrumá-las no seu lugar. Para certificar-se de que ela encontrava o revólver, foi postar-se numa casa fronteira e espreitou-a através da janela do quarto. Quando verificou que Evelyn descobrira a arma, compreendeu que se apressaria a telefonar-me e que, certamente, viria trazer-me a arma. Se a nossa amiga assim não procedesse, teria ainda a hipótese de denunciá-la por um telefone anónimo à polícia. Esta descobriria o cadáver no fundo da ravina e encontraria Evelyn na posse da arma do crime. Mas tudo lhe correu de maré. Esperou-a na estrada, viu-a passar e foi em sua perseguição, ameaçando precipitá-la no abismo. Quando ela, aterrorizada, disparou dois tiros, Boles deixou imediatamente de persegui-la. Conseguira o que planeara. Se Evelyn tivesse saído da estrada e caído pela ribanceira, tanto melhor. Pareceria que teria morto Merrill e perdido o controlo do seu próprio carro. A polícia ficaria plenamente satisfeita. Teria tudo nas mãos. Provas materiais e motivo. Como tal não sucedeu, completou o plano que urdira. Enfiou a fronha na cabeça de Merrill e fez nela um orifício, simulando o buraco de uma bala, - Mas o buraco não coincidia com o ferimento fatal - disse Drake.

- Tanto melhor. O crime, de aparente legítima defesa, transformar-se-ia em assassínio premeditado. Com a mesma intenção, apagou as luzes do carro, antes de despenhá-lo na ravina. Os polícias não deixariam de notar essa discrepância, como eu próprio fui o primeiro a notá-la.

- Raios! - exclamou Drake. - Foi um golpe realmente bem planeado. Conseguir-se-á provar tudo isso?

- Consegue-se - afirmou Mason. - Infelizmente para Boles, Irene Keith é uma gata muito esperta. Tomou nota dos números das notas que lhe entregou, ao pagar-lhe os sete mil e quinhentos dólares. Será agora fácil, para a polícia, identificá-las. Boles está irremediavelmente perdido. O álibi que Loomis e Ruby Inwood lhe forneceram, por julgarem tratar-se apenas de um acidente de estrada, desfez-se na última sessão do tribunal, como viram. Se não fosse a fé que tive na veracidade da história desta nossa amiga, não teria descoberto a solução do caso, mas ela dissera-me que ouvira um som metálico de impacto da bala contra o carro que a perseguia, ao disparar o seu segundo tiro. Isso deu-me a ideia de que esse carro deveria ter a marca desse tiro. Quando soube que Ruby Inwood tinha um carro novo, em troca do velho, percebi que estava aí a resolução do problema. O buraco da bala tinha de lá estar. E estava.

- Foi um caso extraordinariamente complexo - observou Frank Neely.

- Foi um exemplo típico de como pequenos factos, aparentemente insignificantes, podem, tornar-se determina tivos.

- Não sei como e quando poderei pagar-lhes - disse Evelyn Bagby. - Estou-lhes imensamente... infinitiva mente grata!... A propósito..., afinal, perdemos aqueles mil dólares que Miss Keith tencionava dar-me! Com toda esta agitação, Mr. Mason não chegou a telefonar-lhe!

- Pois não, minha querida amiga. Esses seus mil dólares, lá se foram pelo ar.

Perante o ar constrangido da jovem, Mason acrescentou:

- Incidentalmente, Miss Keith, acaba de fazer-me, uma oferta de vinte mil dólares, para “compensação, por prejuízos materiais e morais, causados a Miss Bagby”.

- Vinte mil dólares!... Vinte... mil! - exclamou Evelyn extasiada. - E teve sempre fé em mim, Mr. Mason! - murmurou com a voz embargada pelas lágrimas.

Tirando um lenço da algibeira e limpando a fronte, Frank Neely despediu-se: - Bem, Mr. Mason, cá vou a caminho de Riverside.

-Não, antes de saber que Miss Bagby, já em tempos, falara em retribuir-lhe quanto lhe deve, meu caro colega. Porque, agora que é “milionária”, vai tratar de satisfazer os nossos honorários e os de Paul Drake, inclusos nos meus. Já tínhamos combinado isso, quando a nossa amiga apenas pensava vir a receber mil dólares de Miss Irene Keith.

No olhar de Neely espelhou-se evidente satisfação.

- Bom, cá vou andando - anunciou. - Depois destes últimos dias de excitação, tenciono dedicar-me unicamente a casos de rotina, mas não sei se serei capaz de acomodar-me a eles...

- Nunca se consegue entrar numa rotina normal, quando nos surgem casos com uma ruiva formosa - sentenciou Mason, com uma careta sorridente.

 

                                                                                            Erle Stanley Gardner  

 

                      

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