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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A SABEDORIA DA NOITE / Adam Williams
A SABEDORIA DA NOITE / Adam Williams

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O Palácio dos Prazeres Celestiais

A SABEDORIA DA NOITE

2º Volume / 1º Parte

 

MARCHAMOS PELO NOSSO IMPERADOR; IMPELIREMOS OS DEMÓNIOS DESDE TENTSIN ATÉ AO MAR.

 

O Dr. Airton inquietava-se de cada vez que uma das freiras se aprestava a partir para uma aldeia isolada. Alguns anos antes, quando as irmãs Elena e Caterina haviam anunciado a sua intenção de continuar o trabalho pastoral do padre Adolphus, o médico invocara os perigos que elas iriam correr e oferecera-se para as acompanhar nas suas visitas. Nellie tivera de lhe lembrar como aquela proposta era inadequada.

 

- Não queres com certeza que os nossos estimados colegas da Igreja Católica pensem que estás a maquinar algum plano para lhes roubar o rebanho e convertê-lo num rebanho presbiteriano - dissera-lhe, antes de o acusar de estar a ser tolo. - Além do mais, a Elena e a Caterina vagueavam sozinhas pelo campo havia já vários meses antes de tu chegares a Shishan. O que te leva a pensar que precisam da tua protecção? São camponesas italianas robustas, meu querido, e, provavelmente, seriam elas que acabariam por te proteger.

 

E, de facto, ele tivera de reconhecer que as freiras nunca haviam sofrido qualquer ataque, apesar de algumas das aldeias católicas ficarem a dias de viagem, aninhadas nas encostas de montanhas infestadas de bandidos. O padre Adolphus fora um viajante incansável na paróquia que criara. O velho padre não só era venerado como também possuía os dotes de um jesuíta para a organização e a diplomacia, e conquistara o respeito até dos não-cristãos, que viviam lado a lado com os convertidos, naquelas aldeias remotas. O médico ouvira muitas histórias acerca da forma como o velho homem, de barbas brancas, montado no seu burro, evitara uma disputa por causa de um poço, ou exercera a sabedoria de Salomão sobre uma discussão familiar, ou, ainda, mediara uma contenda de muitas gerações acerca da posse de terras, para satisfação de todas as partes envolvidas.

 

O padre Adolphus fundara pequenas igrejas em cerca de dez aldeias diferentes, afirmando que nelas convertera quase mil almas. Escolhera para seus pastores homens de valor, respeitados nas suas comunidades, mas, após a morte do padre Adolphus, raramente esses homens conseguiam conter os ânimos mais exaltados ou apaziguar os ressentimentos que se geravam, todos os anos, quando os cristãos se recusavam a pagar as tradicionais taxas ao templo local. A harmonia só fora mantida graças à memória e ao exemplo do velho padre. Por conseguinte, o médico reconhecia a importância das visitas regulares das freiras. Não só eram o elo de ligação com a comunidade cristã, no exterior da cidade, como asseguravam também a continuidade da memória do santo padre Adolphus, e isso tinha um efeito benéfico tanto para os cristãos como para os não-cristãos. Assim, independentemente do seu receio pela segurança pessoal das freiras, sabia que nunca poderia proibi-las de fazer aquelas viagens.

 

Por outro lado, também reconhecia que não podiam ser ignorados os recentes incidentes em algumas aldeias onde, ao que parecia, não-cristãos haviam queimado propriedades cristãs. Esses incidentes, instigados ou não pelos Boxers, eram suficientemente sérios para que a milícia local, sob o comando do major Lin, fosse chamada para proceder a investigações muito embora ninguém, tanto quanto o médico sabia, tivesse ainda sido punido. Naqueles tempos conturbados, era ainda mais importante que as freiras se mantivessem em comunicação com os seus paroquianos.

 

- Ainda assim, tenho o direito de me preocupar - dissera ele a uma risonha irmã Elena, que albardava uma mula à luz das lanternas, pouco antes do amanhecer. Trocara a sua touca de freira por um lenço simples de camponesa, e a sua figura roliça tornava-se mais disforme do que nunca, por baixo do pesado casaco almofadado e das calças. A freira tinha o costume de, sempre que viajava para lá dos confins de Shishan, se vestir com as sensatas roupas de viagem dos Chineses.

 

- Repito: embalou comida suficiente para a viagem? perguntou o Dr. Airton.

 

- E eu repito: sim, embalei. Sim. Sim. Sim. Sim. Mamma mia! Parece a minha avó. Caríssimo Dottore, vai ver. Quando regressar, estarei tão gorda como esta mula. Terá de me dar medicamentos para a minha barriga inchada.

 

- Muito bem - resmungou o médico. - Suponho que sabe o que faz. Já esteve nessa aldeia, antes?

 

- Muitas vezes. Muitas vezes - replicou a irmã Elena, enquanto apertava uma corda. - Estarei entre amigos. Não precisa de se preocupar. Gostam muito de mim, em Bashu. E também gostam muito da Caterina, quando ela vai até Bashu. Dão-nos as boas-vindas, e oferecem-nos comida e vinhos fortes também. Não tem de se preocupar com nada.

 

- Assim parece, assim parece... mas não sei porque se recusa a levar um criado consigo.

 

- Para que quero eu um mofu? Sou uma freira dos pobres. Não uma dama de roupas finas. Oh, doutor - exclamou, pegando nas mãos de Airton. - Não se apoquente tanto. Nosso Senhor Jesus Cristo proteger-me-á, assim como o bom padre Adolphus, que está sempre a zelar por nós do Céu.

 

Por uma vez, falava a sério. O médico olhou para as suas maçãs do rosto redondas e os olhos castanhos e calorosos, fixos nos seus, e reparou nas rugas de preocupação vincadas na sua pele seca bem como nos pés-de-galinha e em outras rugas que lhe sulcavam a testa. A irmã Elena parecia envelhecida, com muito mais do que os seus vinte e oito anos.

 

- Doutor, é consigo que eu me preocupo. A Caterina e eu reparámos que está mudado, desde que regressou das colinas Negras. Porquê, doutor? Porque está tão alarmado? Não pode ser só por causa daqueles fanáticos Boxers. É... é... por causa de Miss Delamere?

 

Airton tentou tirar as mãos que a freira ainda continuava a apertar nas suas.

 

- Porque diz isso? - exclamou.

 

- Pela maneira como olha para ela, quando pensa que ninguém está a ver. Os seus olhos... mostram sofrimento respondeu simplesmente a irmã Elena.

 

- Que disparate.

 

- Não, doutor, nós vemos, a Caterina e eu. E tem razão em estar preocupado com Miss Delamere... Ela não está bem. Atente no que lhe diz uma rapariga simples do campo. A alma dela está perturbada, e talvez não seja só isso.

 

- Aonde quer chegar?

 

- As mulheres vêem certas coisas e penso que o senhor, Dottore, também vê, embora prefira não o ver. Mas ela é uma grande mulher, cheia de vida e de amor para dar. - Apertou com mais força as mãos do médico nas suas. - Vai ajudá-la, neste momento sombrio, doutor? A irmã Caterina diz-me para eu não falar de nada. Mas creio que o senhor sabe que há algo de errado, de muito errado, e que fará o que estiver certo.

 

- Não sei do que... do que está a falar - resmungou Airton, mas o seu bigode tremeu ao de leve.

 

Os olhos penetrantes da irmã Elena pousaram nos seus, durante mais algum tempo. Por fim sorriu e, num movimento rápido, inclinou-se para a frente e beijou o médico na face.

 

- Obrigada, doutor. Grazie. É um bom homem - e largou as mãos de Airton. - Oh, está a atrasar-me - queixou-se, olhando para as nuvens rosadas que apareciam por cima dos telhados. - Ainda tenho de fazer uma longa viagem hoje, se quero chegar a Bashu antes do pôr do Sol. Adeus, doutor, vemo-nos daqui a quatro, talvez cinco dias. Lao Zhang, por favor, abra o portão. Estou pronta.

 

Airton pigarreou.

 

- Adeus, minha querida. - As faces do médico estavam enrubescidas e os seus olhos humedecidos. - Cuide bem de si!

 

E ficou a vê-la afastar-se da missão.

 

Permaneceu imóvel onde estava. Zhang Erhao, o seu mordomo, fechou os portões e, ao passar pelo amo, fitou-o com curiosidade. Airton tirou o cachimbo do bolso, mas não o encheu; limitou-se a girar a haste com os dedos, contemplando absorto o chão.

 

Sabia o que tinha a fazer, mas nunca se atrevera a agir. A irmã Elena tinha razão; efectivamente, o seu comportamento alterara-se, desde aquela terrível experiência nas colinas Negras. Pela primeira vez na vida, não partilhara com Nellie o que descobrira. Nem conseguira sequer falar-lhe das suas suspeitas acerca do estado de Helen Francês. Na verdade eram mais do que simples suspeitas. Ele era médico e detectava os sinais: era um facto e, se ele podia ver, os outros também re parariam em breve. Aliás, as freiras já suspeitavam. Tinha de encarar a verdade. A rapariga estava grávida. Grávida de Manners. Grávida de Manners. Perante aquele pensamento, a sua mente turvou-se, vencida pela confusão. O pai dela e Tom deviam regressar dentro de alguns dias. O que ia ele fazer?

 

Depois, havia as outras suspeitas, mais sombrias. Havia algo mais no estado da rapariga, que os enjoos matinais não chegavam para explicar. A palidez, a indiferença, as olheiras vincadas. Durante meses, o médico recusara-se a chegar à conclusão óbvia. Uma rapariga de trato tão fino como Helen Francês?

 

Como era possível? No entanto, via-a agora sob uma nova luz, como amante de Henry Manners, e o que não era possível, quando estava envolvido na questão um homem como aquele? Contudo, o médico nada fizera, ignorando o juramento de Hipócrates, apesar do seu papel de guardião. Apercebeu-se, para sua vergonha, de que esperara que os dois amantes encontrassem por si uma solução, fugindo, casando-se, saindo da cidade, fazendo qualquer coisa por forma a que a responsabilidade não lhe pesasse em cima dos ombros. Sentia o mais profundo desprezo por si próprio. Quão hipócrita fora, pregando na capela sermões sobre o Bom Pastor que zela pelo rebanho. Pela primeira vez na vida, estava a viver uma mentira. E que diria o mandarim, se soubesse? Rir-se-ia na sua cara.

 

Agora haviam passado semanas e os amantes não tinham resolvido o problema por eles. Na realidade, mal se tinham visto durante aquele período. Manners visitara a missão, um ou dois dias depois de regressarem das colinas Negras. Tinham todos bebido chá ao modo afectado dos ingleses que vivem no estrangeiro: Nellie a falar de banalidades, ele mostrando-se convencional, tecendo piadas, o que lhe provocara pele de galinha. Helen Francês aparecera quando a chamaram e escutara em silêncio a conversa, contribuindo com frases monossilábicas, a que, por aquela altura, já eles estavam habituados. Airton vira como Manners tentara chamar a atenção da rapariga, ou como manipulara a situação com o objectivo de ficar a sós com ela. Sentindo-se um proxeneta, o médico inventara um pretexto para levar Nellie com ele até à cozinha e deixar os amantes sozinhos - mas quando regressavam estavam os dois sentados, como estátuas: Helen, imóvel, na sua cadeira de espaldar alto, Manners, com o queixo apoiado no antebraço, a contemplar o lume que ardia na lareira. Uma semana após a visita de Manners, o médico sugerira a Helen que fossem visitar o acampamento do caminho-de-ferro, sugerindo que o passeio lhe faria bem, mas ela murmurara algo acerca de estar ocupada na enfermaria. Era como se quisesse refugiar-se na escuridão da sua própria alma. Até mesmo Nellie começava a achar o ambiente pesado, muito embora Airton acreditasse - e esperasse - que a mulher ainda não se tivesse apercebido da causa.

 

No entanto, algo tinha de ser feito. Helen Francês estava doente. Estava grávida. Podia mesmo planear atentar contra a própria vida.

 

E onde estava a sua compaixão? Andava assim tão preocupado com as aparências morais, na sua pequena comunidade de estrangeiros, que ia negar-se a estender uma mão para ajudar uma alma perdida?

 

- Ah, hipócrita. Fariseu - murmurou, agarrando o rosto com as duas mãos. O cachimbo caiu ao chão.

 

Passado algum tempo, tirou o lenço do bolso, enxugou os olhos e assoou-se. Endireitou os ombros e atravessou, com passos deliberados, os corredores e passagens até chegar ao dispensário que ficava por detrás da enfermaria dos opiómanos. Tentou abrir a porta. Estava fechada à chave, mas tinha sempre um molho de chaves sobressalentes no casaco. Precisou de algum tempo para encontrar a chave certa. Abriu de rompante a porta e deparou com Helen, sentada no chão, perto da janela. Tinha tirado o avental e desapertado a parte de cima do vestido. Respirava com dificuldade e o médico viu a sombra dos seus seios mover-se ritmicamente por baixo da combinação. Um braço alvo mas sardento saía da manga arregaçada do vestido e jazia, inerte, de lado, parecendo independente do corpo. O cabelo achava-se em desalinho e caía-lhe, em tufos desgrenhados, para o rosto, que sorria sedutoramente. Os seus olhos brilhantes de gato, captando a luz da manhã, reflectiram uma expressão de boas vindas, que lembrou ao médico a rapariga alegre que chegara a Shishan havia tão pouco e, simultaneamente, tanto tempo.

 

- Oh, doutor Airton! - exclamou jovialmente. - Como foi esperto! Descobriu o meu pequeno segredo.

 

Airton debruçou-se, pegou na seringa e olhou para o recipiente vazio de morfina.

 

- Aquele bruto! Aquele bruto! - murmurou. - O que foi que ele lhe fez, pobre rapariga?

 

Uma hora antes, naquela mesma alvorada, Fan Yimei estava deitada ao lado de Manners, no seu pavilhão. Devagar, para não o acordar, ergueu a mão pesada que caíra sobre o seu ombro e pousou-a delicadamente sobre o tufo de pêlos que cobria o peito dele. Urinou, por entre as cortinas, e pegou no vestido, caído no tapete.

 

- Tens de ir tão cedo? - perguntou Manners, por entre o bocejo próprio de alguém que acabou de despertar de um sono profundo.

 

- Sabe bem o que me acontecerá, se me encontrarem aqui.

 

- Nada te acontecerá. Não o permitirei.

 

- Não tem esse poder.

 

- És muito bonita, sabias? Pura porcelana.

 

- Fico contente por o satisfazer.

 

- Também te tornaste um pouco fria comigo, ultimamente. Mais uma vez, tal como a porcelana...

 

Ela não respondeu, concentrando-se em atar a faixa à volta da cintura. Quando terminou, afastou um dos lados das cortinas e sentou-se delicadamente na cama. Manners pegou-lhe na mão, mas ela puxou-a.

 

- Deve-me meu Ma Na Si Xiansheng.

 

- Outra vez essa conversa? Recusaste todos os presentes e dinheiro que te ofereci.

 

- Julgava que tínhamos um acordo, Ma Na Si Xiansheng.

 

- Xiansheng. Xiansheng... Não podes ser menos formal? Somos amantes, pelo amor de Deus!

 

- Ma Na Si Xiansheng, eu sou a sua prostituta.

 

- Nunca pensei em ti dessa forma - respondeu calmamente Manners.

 

- Nesse caso, está enganado e... insulta-me.

 

- Oh, pelo amor de Deus! Ouve, o que me pedes é impossível. Esse rapaz, se é que existe, o que me custa a acreditar, está trancado na parte mais segura da casa.

 

- Já lhe disse que posso levá-lo até onde ele se encontra.

 

- Passar por Ren Ren e todos os guardas?

 

- Você é um homem habilidoso e esperto. Descobrirá uma maneira.

 

- Minha querida, ouve, o melhor que temos a fazer, e já to disse umas cem vezes, é participar a situação às autoridades.

 

- Isso é condená-lo a uma morte instantânea. O rapaz terá desaparecido antes que o primeiro guarda do yamen chegue ao portão.

 

Manners voltou a deitar a cabeça na almofada.

 

- E o que te acontecerá se eu o salvar?

 

- O que me acontecer não importa.

 

- O que te acontecer não importa - repetiu Manners.

- Isso não serve, minha linda - Pôs a mão em volta da cintura de Fan Yimei, que se virou, perdendo o frágil controlo sobre si própria. Duas manchas vermelhas de raiva afloraram-lhe às faces. Os olhos gritaram um desespero silencioso. As unhas compridas traçaram um arranhão rosado no peito de Manners. Esmurrou-lhe os braços e o rosto. Depois, afastou-se dele, ofegante, e endireitou as costas, muito embora ainda tremesse de raiva. Os seus traços voltaram a desenhar uma máscara inexpressiva; uma lágrima desenhou um carreiro no pó branco que lhe cobria o rosto.

 

- Já estou morta... Mal era um sussurro.

 

- Está bem - replicou Manners.

 

- Não compreendo, Ma Na Si Xiansheng... Voltou-se e fitou-o, desconfiada.

 

- Eu disse.

 

- Está bem”. Vou fazê-lo. Mas com uma condição.

 

- Que... Que condição?

 

Havia um vivo desprezo na voz de Fan Yimei.

 

Eu tiro-te daqui com o rapaz.

 

Isso é impossível.

 

- É a minha condição.

 

- Não. Não. Isso não... é necessário.

 

- Vou levar-te daqui para fora com o rapaz. Caso contrário, não há acordo.

 

- Não, só o rapaz.

 

- Não negoceio contigo, minha querida

 

- Já tínhamos um acordo. Eu... Eu forneci os meus serviços. Muitas vezes.

 

- Mudei os termos do acordo.

 

- Eu pertenço ao major Lin. Manners beijou-lhe os lábios.

 

- Agora já não.

 

- E a sua amante? A rapariga de cabelo ruivo? A quem... ama. E ela?

 

Manners beijou-a de novo e enxugou-lhe as faces húmidas.

 

- Que tem ela a ver com o caso? - murmurou.

 

- Como vai fazê-lo? - quis saber Fan Yimei.

 

- Não faço a menor ideia - respondeu ele em inglês. Depois, em chinês acrescentou: - Arranjaremos uma manobra de diversão.

 

- Sim, uma manobra de diversão - repetiu ela, pensativa.

- É uma boa ideia. Qual é o seu plano?

 

- Confia em mim.

 

Após um momento, eía anuiu com a cabeça.

 

- E quando será? - perguntou.

 

- Muito em breve. Hoje ou amanhã. Fica atenta.

 

Fan Yimei perscrutou o olhar dele. A expressão do seu rosto suavizou-se. Com um dedo trémulo, tocou os lábios de Manners. Depois, ajoelhou-se e fez uma vénia. O seu carrapito desfez-se e o cabelo espalhou-se pelo tapete.

 

- Duoxie! Duoxiel Obrigada, Xiansheng.

 

- Não me trates mais por Xiansheng, está bem? - murmurou Manners, levantando-a gentilmente e beijando-lhe a testa.

 

- Sim, Xiansheng. Agora, tenho... tenho de ir.

 

Manners largou-a.

 

- Aguarda pela minha visita - disse, e a rapariga saiu.

 

- Uma manobra de diversão? - disse Manners para si próprio, depois de ficar sozinho. - Meu Deus, ajudai-me! Preferia fugir de um grupo de homens armados!

 

- Achas que eles estão a conspirar alguma coisa? - perguntou Mãe Liu. Tomara o pequeno-almoço, dissera as suas preces no santuário privado e, depois de Su Liping transmitir o habitual relatório, mandara chamar Ren Ren ao boudoir para falarem dos assuntos do dia. Como era costume, preparara um ou dois cachimbos de ópio e, naquele momento, estava absorta a aquecer uma pequena bola com uma vela.

 

Ren Ren, envergando as usuais vestes (só usava o uniforme dos Punhos Harmoniosos para raldes nocturnos às aldeias cristãs), estava estendido sobre a cama, tentando recuperar de uma dor de cabeça. Bebera muito na noite anterior, depois de um encontro com o conselho dos Bastões Negros.

 

- Porque dizes isso? - grunhiu. - Ele é um animal como todos os outros bárbaros. Ela, uma prostituta. Fodem um com o outro. Que há de misterioso nisso?

 

- Sempre foste muito grosseiro, meu querido - replicou a mãe, recostando a cabeça na almofada de madeira e levando o cachimbo aos lábios. Inalou o fumo até lhe chegar aos pulmões e suspirou, satisfeita. - A questão é que eles se encontram não apenas para foder. A pequena S u diz que passam grande parte do tempo a conversar.

 

- Talvez ele seja uma dessas flores que não conseguem endireitar a haste.

 

- Ele é quase tão bem fornecido como tu, e muito activo.

 

- Ah, sim? Bom, talvez se excite quando ela lhe recita poesia. Sempre disseste que ela era uma cabra com veia de artista.

 

- Não me parece que o Ma Na Si esteja interessado em poesia. isso intriga-me. que falarão eles assim tanto?

 

- Se estás assim tão interessada, posso levá-la para a cabana e dar-lhe uma sova até ela mo dizer.

 

- Esse momento há-de chegar, meu querido, mas não é para já.

 

- Não percebo porque não dizes ao Lin que o bárbaro tomou certas liberdades com a puta dele. Eu próprio mato o inglês, se ele não tiver coragem de o fazer. Assim como posso encarregar-me da rapariga.

 

- Meu pobre Ren Ren. Privado dos seus prazeres durante tanto tempo. Deves aprender a ser paciente e a pensar primeiro nos negócios.

 

- Não vejo que negócio podes tu fazer, permitindo que dois dos nossos clientes façam o que muito bem querem com as nossas galinhas, à borla. Ainda por cima, um deles é um bárbaro. Mais valia abrirmos as portas do estabelecimento, enfiar paus de incenso pelo eu acima e oferecermo-nos a quem quisesse lambê-los.

 

- Que linguagem encantadora. Não me tinha apercebido que saías assim tanto ao teu pai. Sim, porque tenho a certeza de que não herdaste essas maneiras de mim. De qualquer maneira, e já que mo perguntas, ainda tens muito que aprender quanto a estratégias básicas de negócios, mesmo que agora sejas muito poderoso com os teus Boxers e os teus Bastões Negros.

 

- Tem cuidado, mãe. Há certas coisas acerca das quais nem tu deves brincar.

 

- Quem está a brincar? Tenho orgulho em ti. Penso que a tua nova posição de relevo será muito boa para o negócio, quando chegar o momento adequado.

 

- Bom, esse momento está para breve, mãe. Muito, muito breve. Não teremos de continuar a suportar os vícios dos estrangeiros por muito mais tempo, disso tenho a certeza. Vão todos morrer.

 

- Mesmo teu querido da porta ao lado?

 

- Fartei-me daquele miúdo. De qualquer maneira, já tinha decidido livrar-me dele.

 

- Tem cuidado com o modo como o fizeres. Ele já reembolsou largamente o nosso investimento. Só o que recebemos do japonês... Mas os constantes subterfúgios são cansativos, e os convidados começam fartar-se, pouco tempo, mesmo dos frutos mais exóticos. Olha o Jin Lao. Agora, nem toca no rapaz, quando, há algum tempo, achava que ele era ”uma flor de pessegueiro depois da chuva”. O rapaz já perdeu a utilidade, meu querido.

 

- Há outra coisa que não compreendo... Tu e o Jin Lao. Porque passas tanto tempo fechada com aquele velho paneleiro? Se ele não estivesse já tão curvado como um anzol, pensaria que andava a fazer saltar esses teus ossos velhos. Que visão! O seu sapo velho e encarquilhado a entrar na tua gruta de cinábrio ressequida! Risinhos no cemitério, querida mãezinha? Que perspectiva mais hedionda!

 

E resfolegou de tanto rir, fazendo estremecer a cama. Mãe Liu lançou-lhe um olhar frio. Com dignidade, pegou noutra bola de ópio para aquecê-la na chama da vela.

 

- Olha bem para o teu rosto, mãe. Nunca pudeste aceitar uma piada, pois não? Está bem, está bem, peço desculpa. Eu sei que tu e o Jin Lao têm uma relação de negócios.

 

E deixou-se cair para trás, acometido por novo ataque de riso.

 

- Por acaso, é uma relação de negócios - replicou friamente Mãe Liu -, e muito proveitosa. A propósito: quando chegar o momento, preciso que poupes uma das estrangeiras, por motivos de negócios...

 

- Ah, sim? E quem vai ser?

 

- A rapariga que parece uma fada-raposa. A ruiva. A filha do velho De Falang.

 

- Aquela cabra horrorosa? A prostituta do inglês? Não presta para nada. Porque a queres?

 

- Tenho um cliente especial que está interessado nela.

 

- Continua. Diz-me quem é.

 

- Ficarás a sabê-lo na devida altura. Não te preocupes. Não te desagradará. Até poderá ajudar-te na tua nova carreira.

 

- Posso levá-la para a cabana, primeiro?

 

- Claro que podes. Ela deve ser devidamente treinada.

 

- Então está bem. Hei-de apanhá-la por ti. Entretanto, que queres que faça com o Ma Na Si e a cabra da Fan?

 

Mãe Liu fumava já o seu segundo cachimbo.

 

- A minha intuição diz-me que eles estão a tramar alguma. Há mais qualquer coisa do que luxúria entre eles. Porque haveria uma rapariga inteligente como Fan Yimei de se arriscar tanto? Vamos vigiá-los mais atentamente. E pode ser útil ter alguns dos teus rapazes por aqui, durante algum tempo. Só para o caso de ser preciso. Acalma as preocupações de uma velha mulher, que aprendeu alguma coisa acerca da sobrevivência neste mar de tristeza. Podes fazer isso por mim, meu querido Ren Ren?

 

- Claro - respondeu Ren Ren, encolhendo os ombros, e bocejou.

 

- Devia ter falado comigo mais cedo - disse Nellie. Helen olhava pesarosamente para o chão. O tiquetaque do relógio de pêndulo ressoava na sala de jantar. Das cozinhas vinha um ténue gemido - era Ah Lee a cantar trechos de ópera chinesa, enquanto preparava o almoço.

 

Airton mantinha-se de pé, junto à prateleira da lareira, tirando baforadas do seu cachimbo.

 

- Nellie... - começou ele, mas estacou perante o olhar fulminante da mulher.

 

- Segundo creio, deve ter pensado que de mim não teria qualquer compaixão - continuou Nellie. - Desconfio de que sempre teve um certo medo de mim, Helen. Sei que não gosta de mim.

 

A rapariga ergueu a cabeça e fitou a outra mulher, olhos nos olhos.

 

- Não preciso da sua compaixão. Já lho disse. Eu teria partido mais cedo. Só que... Só que não tinha dinheiro. Se me pagarem o salário de Abril e Maio, poderei partir no próximo comboio.

 

- E para onde irá?

 

- Isso importa?

 

- Acho que importa ao seu pai... e ao Tom.

 

- Mistress Airton, sei qual a sua opinião acerca de mim. Não prolonguemos mais esta desagradável conversa. Pedi ao seu marido que me pagasse o meu salário. Façam-me, pelo menos, essa caridade. Deixem-me partir no comboio que chega de Tientsin amanhã.

 

- O seu pai e o Tom são esperados a todo o momento.

 

- É por isso mesmo que quero partir de Shishan amanhã.

 

- Quer fugir?

 

Os olhos de Helen faiscaram.

 

- Sim, Airton, favor... de fugir. Nellie olhou para o marido. Airton pigarreou nervosamente.

 

- Minha querida, bem sabe que não podemos permitir uma tal coisa. O seu estado...

 

- O meu estado, doutor, é da minha única responsabilidade. Não há mais ninguém a culpar. Nem eu vos peço ajuda.

 

- E o que espera que digamos ao seu pai? - perguntou Nellie, calmamente.

 

- Digam-lhe a verdade - respondeu Helen, num tom de voz estridente. - Quanto mais cedo ele souber que desgraça eu fui para ele, mais depressa esquecerá que teve uma filha. Quanto ao Tom, será uma caridade para ele.

 

- Não creio que se dê conta do quanto é amada - comentou Nellie.

 

- Mistress Airton, de lhe relembrar? uma mulher perdida. Não é isso que pensa de mim? Forniquei, Mistress Airton. E mais, gostei de o fazer, Mistress Airton. E sou viciada em ópio. A sua preciosa Bíblia não lhe diz para expulsar pecadoras como eu?

 

- A minha Bíblia diz-me para não atirar a primeira pedra.

 

- Oh, não me venha com essa lengalenga, Mistress Airton. Sei quanto me despreza. E não me diga que tenciona salvar a minha alma. Não sou um daqueles patéticos cristãos de arroz do vosso hospital, que vocês julgam poder encaminhar para Jesus com um emplastro e uma tigela de massa quente. Se quer realmente ajudar-me, dê-me o meu salário para que eu possa comprar o bilhete e tomar o comboio daqui para fora. A minha danação só diz respeito a mim e a mais ninguém.

 

- E Mister Manners? Tenciona ir consigo e zelar por si?

 

- Não. Ele nada tem a ver com a decisão que tomei.

 

- O homem que a desgraçou não tem nada a ver com a sua decisão?

 

- Ninguém me desgraçou, Mistress Airton. Sou responsável pelos meus actos. O Henry foi... sempre cavalheiresco. Você não compreenderá, mas o que sinto pelo Henry é gratidão e respeito. Acima de tudo gratidão.

 

- Por lhe dar um filho ilegítimo?

 

- Eu sabia que não iria compreender. O Henry é um espírito livre. E libertou-me.

 

Airton tossiu.

 

- Tudo isto me ultrapassa. No que me diz respeito, o homem é um pulha, um mentiroso, um mulherengo... e pior ainda. Também deve ser uma espécie de Svengali1, se ainda continua a ter esse poder sobre si, depois de a ter maltratado de forma tão abominável. Se bem que o ópio possa ter alguma influência nisso.

 

”Eu sou apenas um médico e, para mim, é uma questão prática: como pô-la boa novamente, libertá-la do seu vício. Não lhe vai fazer bem algum andar por aí, num país estrangeiro, quase sem dinheiro e, por conseguinte, sem meios para satisfazer o vício. As consequências morais e físicas são demasiado terríveis para sequer pensarmos nelas. Depois, há a questão da saúde do bebé. Suponho que deseja que essa criança viva... Ora, para isso, temos de tratar da saúde da mãe. Ou seja, você, minha querida. E não posso tratar de si se pretende fugir de comboio por aí.

 

”Sendo assim, não permitirei que parta para Tientsin amanhã, e não se fala mais nisso. E antes que comece a dizer-me que é responsável pelos seus próprios actos (já tivemos a nossa parte desses disparates modernos, obrigado), deixe-me lembrar-lhe de que tem menos de vinte e um anos, pelo que está sujeita à autoridade do seu pai. E uma vez que, na sua ausência, somos os seus guardiões, isso significa que vai ter de fazer o que nós lhe dissermos. A minha primeira instrução, minha menina, é que atravesse o corredor até ao seu quarto, se deite e descanse. O seu tratamento começa esta noite. Trabalhou na enfermaria e sabe quanto vai ser duro. Mas aqui estou, assim como a Nellie, que também gosta muito de si, embora você seja demasiado pateta para o ver, e tudo faremos para a ajudar e salvar o seu bebé que, se não me engano, é o único inocente nesta história trágica.

 

1 Svengali: personagem do romance Trilby (1894), do escritor inglês George du Maurier (1834-1896), personificação do hipnotizador malévolo. (N. do E)

 

- Ele tem razão, minha querida. Gostamos muito e cuidaremos de si - acrescentou Nellie.

 

- Não me tornarei no objecto da vossa caridade nem da vossa hipocrisia - replicou Helen. Duas manchas vermelhas avivavam-lhe as faces encovadas.

 

- Chame-lhe o que quiser, mas não me parece que tenha outra alternativa. É para seu próprio bem e para o bem do seu filho.

 

- Do meu bastardo.

 

- Do seu bebé - insistiu Nellie.

 

Helen abriu a boca, disposta a ripostar, mas o seu rosto crispou-se involuntariamente, enrugando-se como um dióspiro ressequido, e os seus ombros começaram a tremer. Soluçando, prostrou-se aos pés de Nellie e agarrou-se à bainha do seu vestido. As palavras saíam-lhe em grandes golfadas, por entre as lágrimas.

 

- Imploro-lhe... Suplico-lhe... Por favor... Sejam misericordiosos. favor... partir... não posso... Não consigo encarar... O meu pai... Tom... Como poderei...

 

Nellie ajoelhou-se a seu lado, abraçando-a com força, pressionando o seu rosto contra o rosto quente e marejado de lágrimas da rapariga, como se procurasse, pela força de vontade, transferir a sua calma para a rapariga, que tremia. O corpo de Helen estremeceu e debateu-se, na agonia da morte da sua independência, como um espadim acabado de pescar, asfixiado pelo ar. Os seus suspiros eram como o sussurro de uma brisa moribunda, que se ouvia por entre os aprestos de um navio, em alto mar. Por fim, as convulsões cessaram. Nellie colocou a cabeça de Helen sobre o seu peito e começou a afagar-lhe o cabelo.

 

- Pronto, pronto. Vai correr tudo bem. Vai correr tudo bem...

 

Helen, dominada pelo cansaço, fitou-a, com olhos esbugalhados, como um peixe preso na rede que constituíam os fortes braços de Nellie.

 

Nellie ergueu-a gentilmente, até a rapariga ficar de joelhos. Apertou-lhe com força ambas as mãos e olhou, com ar autoritário, para o seu rosto, forçando-a a retribuir-lhe o olhar.

 

- Agora, ouça o que vou dizer-lhe. Tem de ser forte. Mais forte do que alguma vez foi. Sim, vai ter de encarar o seu pai e o seu noivo na devida altura, e vai ser terrível, tanto para si como para eles. Mas isso fica para outro dia. Agora, vou levá-la até ao seu quarto. O Edward dar-lhe-á... o que precisar. Depois, quero que durma.

 

Helen acenou submissamente.

 

- Óptimo. Linda menina.

 

Se as virtudes da caridade e do perdão se manifestavam em casa dos Airton, os clarins de um cristianismo mais marcial soavam na casa dos Millward. Depois de rezar e de jejuar, Septimus preparava-se agora para travar a luta do bem contra o mal.

 

Mergulhara numa confusão temporária, após a visita do comissário das Missões Americanas, que lhe dera ordens para interromper as actividades evangélicas até a comissão julgar o seu ”caso”. A princípio, sucumbira docilmente à autoridade superior, e levara várias semanas para compreender a terrível tentação através da qual o Diabo procurara fazê-lo cair na armadilha. Aparecera-lhe numa visão, pouco depois de haver desmaiado por desnutrição; por obra da Providência, a sua mulher Laetitia, um verdadeiro anjo misericordioso, obtivera dispensa dos santos para interromper o jejum e dar-lhe uma tigela de papa de aveia. Fora durante o sono dos justos, após a refeição, com a mulher e os filhos reunidos em volta da cama a rezar, que o anjo Gabriel lhe revelara, em sonhos, a verdade acerca da criatura que dizia chamar-se Mr. Burton Fielding. Septimus sabia que havia um verdadeiro Mr. Fielding; vira o seu nome na correspondência e nas listas dos membros da comissão, impressas na parte inferior dos panfletos publicados pela comissão. Contudo, não fora esse Burton Fielding que visitara Shishan. Septimus fora enganado por um príncipe das Trevas, um demónio enviado por Lúcifer, com a forma de Mr. Fielding, para o desviar do caminho da integridade. Fora assim, de modo tão simples. E ele caíra no engodo.

 

Mas, agora, procedera já à expiação. Continuar o jejum. Flagelara a carne com vergastadas - ou melhor, permitiu que Laetitia lhe ministrasse o castigo, repreendendo-a por vezes pela sua fraqueza, quando esta não lhe batia com força suficiente. Duas semanas mais tarde, tivera outra visão, cuja recordação ainda o fazia tremer, agora de humildade. Deus estivera presente, mas fora o Seu Filho que o pusera de pé e lhe lavara as feridas nas costas. Percebeu que fora perdoado. O Salvador ataviara-o depois com uma armadura de prata, um manto, grevas e um elmo reluzente, e depositara nas suas mãos uma espada. São Miguel montara-o num cavalo chamado Perseverança, e uma multidão de anjos fora destacada para o seguir na batalha. Ao acordar, sabia o que tinha de fazer.

 

O problema era que estava tão fraco por causa do jejum que mal conseguia manter-se de pé, e Laetitia multiplicara-se em cuidados para lhe devolver algo que se parecesse com a sua antiga força; mesmo assim, ainda não estava totalmente recuperado. Tinha desmaios frequentes e estranhos pontos vermelhos flutuavam-lhe à frente dos olhos. Limpar os óculos não ajudava. Não obstante, sabia que estava pronto. Se o corpo se achava fraco, o seu espírito era forte. O Senhor dos Exércitos estava com ele.

 

E chegara o dia. Acordou a família de manhã cedo. Juntos, rezaram e entoaram hinos. Depois, reuniram-se no pátio, à excepção de uma das filhas, Mildred, que ficaria em casa para zelar pelos órfãos e pelos bebés. Nada carregavam nas mãos, a não ser tochas de junco, feitas com a forma da Cruz - desde que Hiram partira haviam dissolvido a banda. O Senhor fornecer-lhe-ia todas as outras armas de que precisassem. Numa fila solene e silenciosa, Septimus conduziu a família através do portão e passou por cima dos esgotos.

 

À frente dele achava-se a Casa da Babilónia, onde, conforme o Senhor lhe revelara, se encontrava preso Hiram. Naquele dia, Septimus travaria a batalha com as forças das trevas; derrubaria o Templo das Abominações; libertaria o povo de Shishan da escravatura a que fora submetido pelas forças do mal. Talvez até salvasse o filho Hiram, mas isso não era o mais importante.

 

O médico ministrara a Helen uma dose diluída de morfina e saíra do quarto para que Nellie pudesse despi-la e metê-la na cama. Regressara à sala, para junto da lareira, fumando cachimbo. Nellie ficou à cabeceira de Helen, até ter a certeza de que a rapariga adormecera. Agora, também ela regressara à sala de estar. Deixou-se cair numa poltrona, recostou a cabeça no espaldar e fechou os olhos.

 

- Oh, Edward... - murmurou. - O que vamos fazer? Airton ficou tão surpreendido como confuso ao vê-la chorar. Constrangido, ajoelhou-se a seu lado e pegou-lhe na mão.

 

- Isto já me passa - disse Nellie, enxugando as lágrimas.

- É que... Oh, quando penso naquela pobre rapariga, dá-me vontade de...

 

- O Manners é um monstro.

 

- Oh, todos somos culpados. Só de pensar que tudo isto deve ter começado debaixo do nosso próprio tecto, quando devíamos estar a protegê-la... Eu devia ter adivinhado.

 

- Não podias saber - replicou o marido.

 

- Nunca me perdoarei - continuou Nellie. - E também não te devia perdoar, seu tonto, por não me revelares mais cedo as tuas suspeitas.

 

- Não queria preocupar-te - justificou-se Airton.

 

- Pobre rapariga... Consegues imaginar pelo que terá passado? Provavelmente, está convencida de que não tem nenhum amigo no mundo. Obrigada - agradeceu, pegando na chávena de chá que o marido enchera. - Não que lhe perdoe o que fez. Sabes, de certa maneira, ela tem razão quando afirma que é da sua inteira responsabilidade. Mesmo que tenha sido enganada por aquele homem detestável, ela pecou, Edward, e prejudicou-se, a ela e aos outros.

 

- Não devemos ser tão duros para com ela...

 

- Porque não? Foi uma rapariga vaidosa, tola, teimosa, que cedeu à luxúria e à tentação do mal. Tudo isto vai ser um grande desgosto para o pai, para não falar daquele nobre rapaz que foi suficientemente idiota para querer casar com ela.

 

- Penso que agora nem se coloca a questão de o casamento ir avante...

 

- A Helen disse-me, ainda há pouco, que a sua maior vergonha e o seu maior receio é que o Tom ainda queira casar com ela. Afirmou que era essa a principal razão por que queria partir. Ele é um verdadeiro cavalheiro, com aquelas estúpidas ideias de sacrifício próprio e de fazer o que é certo. Além do mais, ama-a realmente. Pode ver-se pela expressão sonhadora com que olha para ela. Não passa de um idiota de coração generoso que se disporia a educar o filho bastardo de um outro homem.

 

- Seria maravilhoso se o filho dela pudesse nascer dentro do matrimónio.

 

- O homem que devia ser obrigado a casar com ela, com uma pistola apontada, se eu mandasse alguma coisa, é o ilustre Henry Manners. Eles que colham ambos os frutos do seu pecado. O que foi que ela disse acerca de se encarregar da sua própria perdição? Eles que se percam juntos.

 

Airton suspirou.

 

- Dizes essas coisas, Nellie, mas não as sentes.

 

- Desculpa, Edward. Estou cansada e zangada. Com ela. Comigo. Contigo. Que terrível tragédia.

 

Beberam o chá.

 

- Teremos de dar a notícia ao Frank e ao Tom, assim que eles regressarem - disse o médico, no tom hesitante de alguém que gostaria que o contradissessem.

 

- Não será possível ocultar-lhes esta história?

 

- Penso que não - replicou Airton.

 

- Podes curá-la do seu vício?

 

- Sim. Com o tempo.

 

- E o bebé? O vício da mãe afectá-lo-á?

 

- Não necessariamente. Se a Providência estiver do nosso lado, espero conseguir evitar os efeitos mais nefastos. A gravidez ainda está no início.

 

- Nesse caso, confiemos na Providência. E rezemos para que o pai dela e o Tom demonstrem alguma compreensão e capacidade de perdão.

 

- Ámen - corroborou Airton, pousando a sua chávena.

- Que barulho é este?

 

Avançou para a janela e espreitou por entre as persianas. Naquele mesmo instante, Ah Lee transpôs a porta da rua, seguido por Jenny e George, que abandonaram a sala de aulas e entraram no pátio ao primeiro ruído de tumultos. Ah Lee apontava para algo. Foi George quem gritou:

 

- Pai, vem depressa! É o tio Frank. Regressaram, e penso que o Tom está ferido. Está coberto de sangue e estendido sem se mexer. Se calhar está morto.

 

- Mas o que vem a ser isto? - resmungou uma irritada Mãe Liu, ao ser acordada da sua sesta por alguém que lhe batia à porta. - Entre! - gritou, furiosa. - Ah, és tu. O que queres?

 

- Desculpe, Mãe, desculpe - Só O seu rosto atraente deixava transparecer nervosismo ao qual se mesclava uma certa excitação. - Espero não a ter incomodado.

 

- Claro que me incomodaste! O que é? Deves achar que é importante, para me vires acordar. Desembucha.

 

- São os estrangeiros, Mãe. Estão lá fora na praça, a fazer uma manifestação contra a nossa casa.

 

- Estás doida? Quais estrangeiros?

 

- Aqueles esquisitos, Mãe. Os missionários vestidos com roupas chinesas e com todas aquelas crianças. Estão a tentar entrar à força na loja de bolinhos de massa, lá em baixo.

 

- A loja de bolinhos de massa? A nossa loja de bolinhos de massa? Está bem, já vou. Ajuda-me a calçar os chinelos. Onde está o Ren Ren?

 

- Não sei, Mãe. Penso que saiu. Mandou-me ir com um dos seus amigos, antes do almoço, aquele horrível Macaco, e antes de termos acabado, entrou e disse ao Macaco que se vestisse. Falou em ter de ir a uma aldeia qualquer. Saíram logo de seguida e nem sequer recebi uma gratificação, apesar de lhe ter feito a posição dos Patos Selvagens Voando às Arrecuas e a posição das Borboletas Batendo as Asas - e Su Liping fez beicinho.

 

- Esquece isso. Ele disse-te quanto tempo estaria ausente?

 

- Não, Mãe, mas acho que pode ser durante muito tempo, porque vestiu roupas de viagem e calças de montar.

 

- E os outros homens? Puxa, rapariga! Uma cinta não se aperta por si só. Onde estão os outros homens? Aqueles que lhe pedi que vigiassem a casa?

 

- Acho que saíram Pareciam com pressa.

 

- Estás a querer dizer-me que não ficou ninguém aqui? Nenhum dos homens ficou?

 

- Bom, há o porteiro e os cozinheiros. A Chen Meina está com o negociante de fazendas gordo da Rua Shuangqian e a Xiao Gen está com os dois gémeos que vêm vê-la uma vez por semana para fazer a posição do Gato e Rato Partilhando Um Buraco, e...

 

Mãe Liu, com o rosto púrpura de cólera, esbofeteou a rapariga com toda a força. Su Liping gritou e desatou a chorar.

 

- Mãe, porque me bates? O que foi que eu fiz de errado?

 

- Cala-te e deixa-me pensar! - rosnou Mãe Liu. - Estou rodeada de idiotas. E, ao que parece, o maior idiota deles todos é o meu filho. Deixa isso! - vociferou, arrancando a cinta das mãos de Su Liping.

 

Meio vestida, dirigiu-se aos tropeções para a porta, com Su Liping atrás dela. Os seus pés de lótus tornavam-lhes difícil andar depressa, mas a raiva de Mãe Liu fê-la atravessar o corredor com passos apressados. Parou junto de uma das portas e encostou um olho ao postigo. Lá dentro, o rapaz estrangeiro estava sentado na cama, com uma perna presa por uma corrente a uma das colunas. O seu rosto revelava-se atento e colocara uma mão junto à orelha. Mãe Liu percebeu então um som abafado, como um murmúrio, que vinha do exterior do edifício. Grunhiu e continuou a marcha. Ao fundo do corredor havia uma janela que dava para a praça. Era alta e Mãe Liu teve de pedir ajuda a Su Liping para subir a um banco, o que lhe permitiu levantar a janela coberta por papel encerado e espreitar lá para fora. Houve um agigantar imediato do rugido da multidão, e conseguiu identificar gritos, risos e insultos.

 

Su Liping trepara para o banco, postando-se a seu lado, e apontou.

 

- Ali estão eles, Mãe, mesmo por baixo de nós. Consegue vê-los?

 

Uma multidão de curiosos rodeara a família Millward, troçando deles, enquanto se ajoelhavam em semicírculo e começavam a rezar. Mãe Liu reparou que cada um dos estrangeiros empunhava uma cruz, aparentemente feita de palha. O pai, um homem alto e esquelético, com barba e um rabicho louro mal preso, murmurava uma espécie de feitiço em voz esganiçada. A seu lado, uma mulher olhava para ele com expressão preocupada. Algumas das crianças, de todos os tamanhos e idades, desde adolescentes a bebés que mal sabiam andar, tinham os olhos muito fechados, enquanto outras olhavam à sua volta, aterrorizadas. Estranhamente, metade da família, incluindo os pais, parecia usar óculos de lentes grossas, que brilhavam ao sol da tarde.

 

- Parecem-me inofensivos - comentou Mãe Liu.

 

- Estavam a gritar coisas contra a nossa casa, ainda há pouco. É difícil compreender o seu estranho chinês, mas o homem dizia qualquer coisa acerca de um filho perdido que vive aqui.

 

Su Liping olhou para a ama, com uma expressão inocente.

 

- A sério? - replicou Mãe Liu. - Mas tu sabes que isso é um disparate, não é verdade?

 

- Claro que sei, Mãe.

 

- Bom, não vou desperdiçar a minha tarde a olhar para um bando de estrangeiros loucos que rezam, se é só isso que eles fazem. Ajuda-me a descer.

 

- Mãe, veja! - gritou Su Liping.

 

Mãe Liu olhou novamente pela janela e estacou. O homem alto e esquelético tirara de debaixo das dobras da túnica uma grande garrafa verde. Regou com cuidado a sua cruz com uma espécie de líquido castanho. Depois passou a garrafa à mulher, que fez o mesmo. Por fim, enfiando a mão por trás do cinto, tirou dois objectos metálicos que bateu um contra o outro. Horrorizada, Mãe Liu viu a primeira faísca. Volvidos escassos segundos, a cruz do homem estava a arder.

 

- Ajuda-me descer daqui! gritou, uma manga da assustada Su Liping. - Ajuda-me!

 

No momento seguinte, coxeava a grande velocidade pelo corredor fora, em direcção à cortina que cobria a porta secreta que levava às escadas.

 

- Baldes! - bradou, ao alcançar a porta seguinte. Tragam baldes com água! Depressa!

 

As portas abriram-se e raparigas perplexas e alguns clientes admirados saíram para o corredor. Uma das raparigas, completamente nua, apareceu, qual ninfa no friso de um templo, flanqueada por dois veneráveis mas igualmente nus velhotes, que tentavam tapar os flácidos órgãos sexuais com as compridas barbas brancas. Um homem gordo, com o rosto grotescamente maquilhado e envergando o fato de uma cantora principal da Ópera de Pequim, agarrava-se a Chen Meina.

 

- Não fiquem aí parados! - gritou Mãe Liu. - Vão procurar baldes e água! Eles ameaçam deitar fogo ao edifício!

 

Não foi uma frase sensata. De imediato, o pânico instalou-se. Quando deu por si, Mãe Liu era empurrada por entre um emaranhado de carnes nuas e de roupa de cama, pela escada de caracol estreita que conduzia ao piso térreo, aterrando pesadamente no fundo e batendo com a cabeça num vaso. Atordoada, ouviu o ruído de passos, quando pés descalços correram até ao pátio, enquanto os gritos cessavam lá fora.

 

Com algum esforço, pôs-se de pé. Su Liping apareceu com dois dos cozinheiros, curvados pelo peso de uma selha cheia com água ensaboada.

 

- Para onde devemos levar isto, Mãe? - perguntou nervosamente Su Liping.

 

- Sigam-me! - resmungou Mãe Liu, da sensação de desorientação e das vertigens causadas pela queda. Conduziu-os ao quarto que Ren Ren usava como gabinete. Removendo uma das pinturas pornográficas penduradas nas paredes, premiu uma mola escondida e o painel deslocou-se. Alguns degraus conduziam a uma cave, onde sacas de farinha e cântaros de vinho de arroz estavam guardados em pilhas desarrumadas, sobre o chão de lajes. Era o armazém da loja de bolinhos de massa.

 

- Por aqui - ordenou, indicando um outro lanço de degraus, que levavam a uma cortina de couro rasgada que cobria o umbral de uma porta. Su Liping e os cozinheiros seguiam-na com dificuldade, carregando a selha. O barulho por detrás da cortina era ensurdecedor. No seu frenesim, Mãe Liu arrancou a cortina do respectivo varão.

 

Olharam incrédulos.

 

Podia ser uma cena da ópera Macaco no Pomar dos Pessegueiros, onde as crianças acrobatas, representando os discípulos antropóides de Sun Wukong, provocam o caos no céu. A pequena loja de bolinhos de massa era um emaranhado de corpos que lutavam entre si, de mesas e bancos virados de pernas para o ar. Os filhos dos Millward, como enguias escapando às mãos dos pescadores, viam-se por toda a parte, fugindo por entre os magotes de cidadãos que tentavam apanhá-los, saltando sobre outros que haviam caído ao tentar capturá-los. No centro da loja, a figura alta de Septimus lutava com três porteiros entroncados; um deles encavalitara-se nas suas costas, com os braços em volta do seu pescoço, tentando derrubá-lo. Laetitia, pregada ao chão, brandia uma concha de sopa com uma mão, enquanto com a outra puxava o rabicho do jovem de tronco nu sentado em cima dela. Mãe Liu ficou aliviada quando percebeu que, à primeira vista, o lançamento das cruzes em chamas fora apenas parcialmente bem-sucedido. Tochas fumegantes de junco jaziam por toda a parte, já apagadas. Contudo, algumas chamas subiam por uma das paredes da loja, onde uma tocha incendiara um barril caído com vinho gaoliang derramado. Duas das criadas - raparigas que também prestavam os seus serviços à ralé que frequentava a loja do piso térreo - abanavam corajosamente, mas em vão, uma toalha de mesa, na tentativa de apagar o fogo, ao mesmo tempo que procuravam libertar-se de dois dos filhos mais novos dos Millward que tentavam morder-lhes os tornozelos. Mãe Liu reparou, mais preocupada, que a luta entre Septimus e os outros homens se aproximava dos fogões a carvão que eram usados para cozinhar os bolinhos de massa. Se os fogões caíssem seria uma catástrofe. Nada poderia controlar o incêndio.

 

No entanto, graças a um esforço sobre-humano, os cozinheiros, arfando, haviam trazido a grande selha pelas escadas acima. Excederam-se ao erguer o pesado recipiente de madeira, com a água ensaboada a pingar, à altura dos ombros. Com um grito, arremessaram-na com toda a força, mesmo que sem pontaria, para o ar, por cima da multidão. Feito aquilo, fugiram escada abaixo, não sem se virarem e olharem assustados para Mãe Liu. Não era má ideia evitar ser apanhado no incêndio, mesmo que isso provocasse a ira de Mãe Liu.

 

O seu míssil, contudo, produziu efeito de forma espectacular. A selha pareceu pairar por instantes a meio do ar. Seguiu-se uma explosão de água e de bolhas de sabão, que desceram como uma nuvem sobre os homens que continuavam a lutar, encharcando-os a todos; também apagou, com um silvo, a pequena chama azul de fogo que subia pela parede. Mais decisivo ainda foi o facto de a selha cair directamente sobre a cabeça de Septimus Millward. Mãe Liu captou um vislumbre de reconhecimento nos olhos azuis ampliados pelas lentes dos óculos, quando o infeliz missionário sentiu o peso do instrumento da desforra cair-lhe em cima, vindo das alturas. Abateu-se sobre ele e partiu-se; os anéis que o compunham, e centenas de fragmentos, cobriram-lhe o corpo.

 

Ouviu-se um grito desesperado de Laetitia e o choro das crianças. A luta acabou ali. Não demorou muito até as crianças serem agarradas uma a uma, debatendo-se nos braços dos seus captores. A própria Mãe Liu agarrou pelo colarinho uma minúscula rapariga de óculos que tentava esconder-se atrás do fogão; puxou-a para fora por uma orelha, apertou-lhe o pescoço com maldade e atirou-a a um muleteiro robusto, que a ergueu no ar e a colocou debaixo do braço, enquanto a rapariga não parava de espernear.

 

Quando Jin Lao e os guardas do yamen chegaram, Mrs. Millward e os filhos estavam cercados, no interior de um círculo feito com mesas. Laetitia embalava o corpo ainda inconsciente de Septimus no seu colo, tentando em vão estancar o sangue que escorria do golpe no alto da cabeça.

 

As pessoas, que até ali tagarelavam e celebravam a sua vitória, calaram-se e afastaram-se para deixar passar o venerável oficial e os seus guardas.

 

- Ora, ora, Mãe Liu, mas que confusão... - comentou Jin Lao, com um sorriso.

 

- Espero que leve estes incendiários daqui e os castigue com todo o peso da lei. Veja os estragos que causaram à nossa loja.

 

- Sim, de facto... O Ren Ren não vai ficar nada contente, pois não? Quem diria que mulheres e crianças podiam ser tão violentas... Ao que este mundo chegou...

 

Foi interrompido por uma explosão emocional de Laetitia, que, ao perceber a presença das autoridades, começou a implorar piedade, no seu mau chinês.

 

- Alguém me consegue explicar o que está esta mulher bárbara a dizer? - perguntou Jin Lao. - Se está a tentar falar uma língua civilizada, não é nenhuma que eu compreenda.

 

Respondeu-lhe um coro de vozes, cada um com a sua tradução do que os estrangeiros loucos tinham dito.

 

- Vejo que me encontro numa loja repleta de sábios - replicou Jin Lao. - Você - acrescentou, apontando para um homem de barba que usava o avental de couro dos curtidores -, compreende o que esta mulher está a dizer?

 

- Diz que o filho dela está aqui. Que foi raptado e está lá em cima no bordel.

 

- A sério? - exclamou Jin Lao. - Lembro-me que executámos os criminosos que assassinaram um dos filhos deles, no ano passado. Perderam outro?

 

- É o mesmo - continuou o homem. - A mulher afirma que, afinal, ele não foi assassinado. Que foi raptado e trazido para o bordel. Claro que é um disparate. São todos malucos, como qualquer pessoa pode ver, mas é o que ela diz.

 

- Compreendo. Bom, se é esse o motivo para este acto de vandalismo, então o caso deve ser investigado. Mantém um rapaz estrangeiro no seu estabelecimento, Mãe Liu?

 

- Claro que não, Jin Lao - respondeu docemente Mãe Liu.

 

- Ficaria muito surpreendido se tivesse um rapaz estrangeiro no bordel, em especial um rapaz morto ou um fantasma. Seria um grande desleixo da sua parte - acrescentou, em tom mordaz. - Como é evidente, terei de inspeccionar o estabelecimento.

 

Os olhos de Mãe Liu faiscaram de fúria.

 

- Com certeza isso não é necessário. Não pode acreditar numa invenção tão maliciosa.

 

- Quer eu acredite quer não, a lei tem de seguir o seu curso - replicou Jin Lao. - Virei inspeccionar o estabelecimento amanhã à tarde. Isso dá-lhe tempo suficiente... para se preparar?

 

E o camareiro voltou a sorrir.

 

Desta vez, Mãe Liu também sorriu.

 

- Tempo de sobra, Jin Lao. Tenho a certeza de que encontrará tudo em ordem... por essa altura.

 

- Nem eu esperava outra coisa - retorquiu Jin Lao.

 

Os guardas levaram a família Millward, com as mãos atadas, para fora da loja. Dois cidadãos foram encarregados de transportar Septimus, que não parava de gemer, numa padiola. A sua cabeça já fora ligada e, após uma rápida inspecção, um médico local confirmara que o ferimento não era grave. Jin Lao deu ordens para que toda a família fosse escoltada de volta a casa, onde ficaria sob guarda até o mandarim decidir que acção tomar.

 

Mãe Liu, com uma paciência que não sentia, acabou por convencer a multidão curiosa a abandonar a loja, com promessas de refeições gratuitas quando o estabelecimento reabrisse. Dava-se por contente por os estragos não serem avultados. Precisou de mais uma hora para apaziguar a fúria dos clientes do bordel. Os veneráveis gémeos mostravam-se particularmente irritados, pois serem obrigados a andar por ali como vieram ao mundo não contribuía em nada para prestigiar a sua dignidade, e um deles batera com o dedo do pé durante a correria escada abaixo. A promessa de um novo jogo do Gato e do Rato Partilhando Um Buraco, desta vez por conta da casa e com uma mortificada Su Liping, que era mais atraente, em todos os aspectos, do que a robusta Xiao Gen, acabou por acalmá-los. Já era quase noite quando Mãe Liu terminou - e ainda tinha de tratar do assunto do rapaz estrangeiro. Deu consigo a amaldiçoar Ren Ren, enquanto subia as escadas até ao andar privado. Onde estava o filho, hoje que tanto precisava dele?

 

Sentia a cabeça a latejar. Perguntou-se se não estaria já velha de mais para aquele tipo de vida. Do que precisava era de uma chávena de chá e talvez de um cachimbo. Haveria tempo para isso. Era preciso tratar do rapaz. Não seria a primeira vez que o poço ao fundo do jardim seria usado para tal propósito.

 

Haveria de conseguir sozinha, de uma maneira ou de outra. Já o fizera no passado. Só precisava de um bom pretexto para iludir a desconfiança do rapaz. Um cliente que esperava por ele num dos pavilhões? Talvez a promessa de o libertar? Desprendidos os tijolos ao lado do poço, bastaria um forte empurrão. Ninguém daria por nada.

 

No topo da escada, teve de parar para recobrar o fôlego. Coxeou devagar ao longo do corredor, parando novamente em frente da porta de Hiram. Cansada, estendeu a mão para erguer a tampa do postigo, e sobressaltou-se quando essa leve pressão abriu a porta. Com o coração a bater com força, examinou o quarto vazio e a corrente partida.

 

O rapaz desaparecera.

 

- Estás bem, Hiram? - perguntou Henry. Agora, que o crepúsculo tombara e se certificara de que não era seguido, pusera a égua a passo, e seguiam pelas ruelas que levavam ao rio e ao acampamento do caminho-de-ferro. Segurava Hiram, montado na parte da frente da sela. Atrás dele, na garupa da égua, com os braços à volta da sua cintura e um manto sobre os ombros, seguia Fan Yimei.

 

- Estou óptimo, acho eu - respondeu Hiram. O rapaz mostrava-se cansado, mas de resto, pelo menos, aparentemente não parecia pior agora do que antes.

 

- És um rapaz forte. Vou prometer-te uma coisa, e trata-se da palavra de um oficial do exército britânico, e sabes como isso tem valor. Nunca mais terás de voltar àquele lugar. Ouviste? Prometo-to. É uma promessa que te faço, o que significa que é tão sólida como uma placa esculpida em pedra. Nunca, nunca mais. Nem tu - acrescentou, inclinando a cabeça para Fan Yimei.

 

- Não compreendo as palavras que diz quando fala na sua língua - respondeu ela - mas depois do que fez hoje tenho uma dívida eterna para com o senhor. Sou sua escrava.

 

- Ninguém é escravo de ninguém, Fan Yimei. Fizemos um pacto, lembras-te? Além do mais, a escravatura é proibida no lugar de onde venho. Foi abolida por uma Acta do Parlamento em mil oitocentos e trinta e três!

 

Apercebeu-se de que era necessária uma resposta mais séria e puxou as rédeas, fazendo parar a égua. Procurou as mãos geladas de Fan Yimei e pegou nelas.

 

- Escuta. Tal como o Hiram, viveste um pesadelo, mas agora acabou. Pode levar algum tempo até o compreenderes, mas és livre. Nunca mais vais ter de voltar, nem para o major Lin, nem para o Ren Ren, nem para a Mãe Liu. E também não deves nada a ninguém. Muito menos a mim. Aliás, que fiz eu? - riu-se, estugando novamente o passo da égua. Disse que precisava de uma diversão e arranjei uma, sem estar à espera, e tudo graças ao pai deste rapaz. Nunca imaginei que pudesse ser tão fácil. Não creio que alguém tenha reparado em nós. Toda aquela gente nua, no pátio, muito preocupada em preservar a dignidade! O porteiro estava tão atarantado com tanta nudez que passámos por ele com a maior facilidade. De qualquer maneira, nunca nos teria reconhecido, por baixo das nossas capas. Provavelmente pensaria que éramos honestos cidadãos, a escapulir-nos dali antes que as nossas mulheres descobrissem... Há muitos anos que não me divertia tanto! Nem sequer tive de partir umas cabeças! Se bem que - acrescentou, num tom que revelava pesar - tivesse gostado bastante de dar uma tareia ao Ren Ren. Cumpriria um dever para com a sociedade.

 

- Por favor, não brinque com coisas sérias, Ma Na Si Xiansheng. Continuo a ter medo do Ren Ren, mesmo agora, que estou longe dele. E do major Lin, que também vai ficar furioso. Você diz que pode fazer com que eu desapareça, mas é por si que temo, se eles vierem para se vingarem.

 

- Ninguém suspeitará sequer de mim. Quando eu voltar ao Palácio dos Prazeres Celestiais, o major Lin terá o meu ombro para chorar. Mostrar-me-ei compreensivo para com a sua perda e continuarei a ser o seu amigo do peito, como dantes. Até porque ele ainda tem negócios a fazer comigo, por ordem do mandarim. Não pode tocar-me, mesmo que suspeite de mim.

 

”E não te preocupes com o que te acontecerá. Estarás perfeitamente segura no acampamento do caminho-de-ferro até chegar o próximo comboio que te levará para Tientsin. Assim que lá chegares, ficarás instalada em casa de umas pessoas que conheço, e poderás começar uma vida nova como uma respeitável matrona. Bom, não demasiado respeitável, espero. És demasiado bonita para tal!

 

- É um sonho, Ma Na Si Xiansheng. Tal como esta cavalgada. Tinha-me esquecido de como eram as estrelas vistas a céu aberto e do cheiro do campo.

 

- Neste instante, estás a cheirar estrume, minha linda, e tresanda.

 

- Não, tem a sua própria fragrância. Não pode dar-se conta de como tudo isto é belo para quem acabou de ser libertada de uma prisão. Ainda esta manhã, eu estava morta. Era um montículo de terra. Era um pequeno nada num grande vazio. Agora, é como se a deusa Nu Wa tivesse regressado para soprar vida no barro seco, criando as estrelas e o Sol e a Lua novamente, como no princípio do mundo. E tenho de agradecer-lhe por esta nova vida, Ma Na Si Xiansheng. Mesmo se acordar amanhã e der comigo novamente na minha prisão, tenho de agradecer-lhe eternamente por me dar este sonho.

 

- Não é um sonho, minha querida. E não vais voltar para lá. Nunca mais.

 

- Mister Manners?

 

- Sim, Hiram.

 

- Vou ter que voltar para os meus pais?

 

- Não to aconselho, pelo menos por enquanto. Imagino que após a confusão que o teu pai armou hoje passará a ser um homem marcado perante as autoridades. É melhor ficares comigo durante algum tempo no acampamento do caminho-de-ferro, até a poeira assentar. No entanto, posso enviar-lhe um recado.

 

- Nunca mais quero voltar a ver os meus pais - disse Hiram, num fio de voz.

 

- Suponho que por seres livre não és obrigado a tal replicou Henry, depois de algum tempo em que prosseguiram em silêncio. - Vê - acrescentou, apontando para algumas luzes que brilhavam numa colina, à sua direita. - É a casa dos Airton. A missão e o hospital. Se quiseres, um dia levo-te para ali. O Airton tem filhos. São um pouco mais novos do que tu, mas têm cavalos, animais e livros. Tens toda uma vida para recuperar, meu jovem.

 

- É ali que vive o médico de bigode, Ma Na Si Xiansheng?

 

- Claro! Tu conheceste-o, não é assim? Disseste-me que ele foi atencioso para contigo, certa vez.

 

Fan Yimei ergueu o olhar para as luzes, mas não respondeu. Pensou que havia outra pessoa que também vivia ali, onde as luzes brilhavam. O Ma Na Si havia-lhe dito que a rapariga de cabelo ruivo trabalhava no hospital. Pensou que podia ter sentido ciúmes - se acreditasse, no fundo do seu coração, que estava realmente livre.

 

Airton parecia exausto e havia uma pequena mancha de sangue no punho da sua manga. Aceitou, agradecido, a chávena de chá que a mulher lhe estendeu. Frank Delamere encontrava-se desconfortavelmente sentado no sofá, ainda com as roupas de viagem; a sua habitual compleição corada estava branca pela poeira, que também lhe coloria de cinzento o bigode preto. A pequena chávena de chá que segurava nas grandes mãos parecia singularmente deslocada, assim como a sua presença rude na aprimorada sala de estar. Os seus olhos redondos pestanejaram, à espera do pior.

 

- Ele vai viver - anunciou o médico. - Fez um bom trabalho ao ligar-lhe o ferimento. Não perdeu tanto sangue quanto seria de esperar. E tem uma constituição forte. Felizmente, as balas não romperam nenhuma artéria, se bem que tenha estilhaços no braço esquerdo e uma perna partida. Estava mais preocupado com o ferimento no seu baixo-ventre. A propósito, o que causou aquele ferimento? É um golpe muito feio...

 

- Uma espécie de pique - resmungou Frank.

 

- Bom, ele teve sorte... Um centímetro mais ao lado e não teria sobrevivido à viagem...

 

- O rapaz é um verdadeiro herói. Um verdadeiro herói.

 

- Ele ainda não está a salvo. Havia uma infecção, mas creio ter cauterizado as feridas a tempo. Vai ter muita febre, nos próximos dias. Aliás, receio que neste momento esteja já a delirar. Mas é um rapaz forte e vai safar-se.

 

- Graças a Deus! - Os olhos de Frank haviam-se humedecido. - Estava convencido...

 

- Foi por pouco - replicou Airton, reparando na chávena que tremia na mão de Frank. - Dê cá isso, homem! Nellie, dá-lhe um pouco de uísque.

 

- Sabe que mais? Não me importaria... - murmurou Frank.

 

- Dá-lhe a garrafa e deita uma pequena dose num copo para mim. Bom, Delamere, já se sente melhor, agora? Pode contar-nos o que aconteceu?

 

- Fomos vítimas de uma emboscada armada pelos Boxers.

 

- Os Boxers? Tem a certeza? Não seriam bandidos? Como anteriormente?

 

- Boxers. Bandidos. Que faz? exclamou Frank. - Eram centenas, ao longo das árvores, onde a estrada para norte contorna a floresta que fica no sopé das colinas Negras. Eles sabiam que nós íamos passar por ali, disso tenho a certeza absoluta. O Lu já seguiu para a cidade, desta vez determinado a descobrir quem é realmente o informador dos Boxers.

 

- Quer dizer que o Lu está bem? É que me perguntava o que poderia ter-lhe acontecido, quando vi que não estava convosco.

 

- Ele sofreu um golpe de espada na canela da perna. Nada de grave. Não ficou ferido como o Tom ou como o Lao Pang, um dos nossos muleteiros. Morreu, coitado, com a primeira rajada.

 

- Vi pelo ferimento do Tom que eles estavam armados. Extraí uma bala de espingarda e não de mosquete. Ora, isso é uma novidade, não é assim?

 

- Sim, eles tinham algumas espingardas. Felizmente, não sabiam dispará-las eficazmente; de outro modo, agora estaríamos todos mortos. tudo muito estranho. Muitos deles usavam uniformes: túnicas amarelas e faixas laranjas na cabeça. Daí eu afirmar que eram Boxers.

 

- É melhor começar pelo princípio. Encha novamente o seu copo.

 

- Não há muito que contar. A viagem correu bem. Em Tsitsihar, o velho Ding comprou tudo o que tínhamos levado e pagou-nos acima do combinado, quando lhe instalámos o processo de fabrico do álcali. O Ding é bom homem. Assim, como é evidente, tomámos todas as precauções na nossa viagem de regresso, afastando-nos da estrada sempre que podíamos. Todo o cuidado é pouco, quando se tem uma caixa-forte cheia de moedas de prata na carroça. Parecia estar a correr tudo bem. Houve semanas em que não vimos vivalma, apenas quilómetros intermináveis de charcos de sal e planícies. Muito monótono, se bem que o Tom tenha caçado um pouco. Aquele rapaz é um herói, um verdadeiro herói.

 

- Já o disse. Continue.

 

- O Lu insistiu para que seguíssemos em passo lento, sempre que nos desviávamos da estrada. Não queria correr riscos, embora soubéssemos que, a dada altura do percurso, teríamos de atravessar a floresta Negra. Não há outro caminho para Shishan. O Lu queria seguir por um desvio ainda maior, indo até meio caminho de Mukden e voltando para trás, a fim de podermos entrar no desfiladeiro, a sul, mas isso não se revelou viável, com os nossos mantimentos quase no fim. Além do mais, pensávamos que, com seis muleteiros a cavalo, tínhamos armas de fogo suficientes para aguentar um ataque de surpresa do Homem de Ferro Wang e dos seus bandidos. Enganámo-nos.

 

”Mas tomámos precauções. O Tom e o Lao Zhao partiram à frente, como batedores, quando chegámos à passagem estreita que atravessa a floresta. Não vimos nada de suspeito, nem um vulto, nem um som. Eles deviam estar muito bem escondidos por trás das árvores. O que também é estranho. Não se espera uma tão grande capacidade de organização por parte de meros bandidos.

 

”Entrámos na passagem pouco antes do meio-dia, quando o Sol estava no zénite e havia alguma visibilidade. Não podíamos ir muito depressa por causa das carroças, mas seguíamos o mais depressa que podíamos. Passámos pela parte mais perigosa, e pensei que estávamos a salvo, quando, de súbito, foi um verdadeiro inferno. Nunca vi nada igual. Fumo que saía dos arbustos, disparos de mosquete e tiros de espingarda. Balas e setas silvando por cima das nossas cabeças, vindas de toda a parte. Foi quando o Lao Pang foi atingido no pescoço. Gorgolejou durante algum tempo e depois caiu da mula. Era sangue por todos os lados. Foi terrível.

 

”Num abrir e fechar de olhos, estávamos cercados. Na sua maioria, eram rapazes, ou pelo menos assim me pareceu. Jovens vestidos com fatos de carnaval; mas eram perigosos: olhos brancos e redondos em rostos castanhos, investindo contra nós com as suas lanças, piques e espadas. Por essa altura, já ripostávamos com as nossas espingardas, e eles caíam como tordos, mas a maioria avançava, aos gritos, investindo contra nós. ”Não vamos escapar”, gritei ao Tom, que batia e disparava contra os demónios que o cercavam, como um Lancelote do presente, enfiado no meio de uma batalha. ”Fujamos!”, disse eu. ”E a prata?”, exclamou ele. ”Pouco me importa!”, respondi. ”São muitos contra nós!”. Assim, esporeámos os nossos cavalos e galopámos por entre a multidão. O Lao Zhao e os outros muleteiros seguiram-nos. Galopámos para aquela massa humana como se fôssemos a Carga da Cavalaria Ligeira, na Guerra da Crimeia. E acreditam que passámos por eles? O silêncio era total à nossa volta, à excepção do chilrear de alguns pássaros nas árvores e das borboletas a bater as asas sobre as flores selvagens.

 

”Foi então que o Tom perguntou, com ar preocupado: ”Onde está o Lu Jincai?” Não estava connosco. Lembrei-me, com um súbito sentimento de culpa, de que o Lu conduzia a carroça que transportava a prata. ”Devem tê-lo apanhado”, respondi. ”Vou buscá-lo”, replicou o Tom. Antes que eu me apercebesse, tirou-me a espingarda de repetição das mãos e enfiou um novo carregador. Já recarregara a sua, e, com uma espingarda em cada mão, galopou pelo caminho por onde tínhamos vindo. O Lao Zhao seguiu-o, tão determinado e corajoso quanto o Tom. Mas é esse o efeito que ele tem nos outros. É um líder nato. Deus é minha testemunha. Tenho muito orgulho que ele venha a ser meu genro.

 

”Soube de toda a história mais tarde, pelo Lu. Naquela altura já fora cercado e dominado na carroça, lutando com um grupo de camponeses imundos, ansiosos por abrir o cofre com a prata, a que o Lu se agarrara como se fosse a própria vida.

 

Disse-me que só lhe tirariam o cofre por cima do seu cadáver, e estava a falar a sério. Mas não foi preciso tanto, porque o Tom e o Lao surgiram do nada cavalgando, com as armas a brilhar em cada mão. Os Boxers saltaram da carroça como coelhos. O Tom apanhou-os desprevenidos. Eles julgavam que a batalha terminara e que o saque era já deles. Por isso, estavam desatentos e alguns haviam mesmo pousado as armas.

 

”O Tom saltou do cavalo para a carroça e pegou nas rédeas. O Lu teve a presença de espírito de se apoderar de uma espingarda e começar a disparar em todas as direcções, enquanto o Lao Zhao agarrou no cavalo da frente pelo freio e lhe bateu na cabeça com a coronha até o animal desatar num galope desenfreado, seguido pelas outras mulas.

 

”E os Boxers ficaram tão atordoados que deixaram a pesada carroça ganhar velocidade e partir. Alguns, mais corajosos, ainda avançaram, arremessando os seus piques, mas foram esmagados pelas rodas da carroça, enquanto os atiradores, com as espingardas, disparavam dos arbustos. Foi nessa altura que feriram o Tom, muito embora ninguém tenha dado por nada. Ele manteve as rédeas apertadas nas mãos até estarmos todos fora de perigo. Eu disse-vos que ele era um herói.

 

”Por essa altura, eu e os muleteiros havíamos recuperado da surpresa e também cavalgávamos para o local da emboscada, a fim de os ajudar. Foi quando os vi, por entre os pinheiros. Conhecem aquela imagem que retraía a guerra na África do Sul? Tem saído ultimamente em todos os jornais ilustrados. ”Salvando as espingardas no rio Modder”, ou lá o que é. Bem, deixem-me que vos diga, se houvesse um artista que pudesse retratar o Tom, o Lao Zhao e Lu, naquela carroça, a todo o galope, salvando a minha prata com todos os demónios do Inferno atrás deles, bom, seria um quadro para vender por uma fortuna... Disso podem ter a certeza.

 

Sorrindo orgulhoso, enquanto lágrimas sentimentais lhe escorriam pelas faces, transformando em lama a poeira ressequida que as cobria, Frank esvaziou o copo e serviu-se de mais uísque.

 

- Como foi que conseguiram escapar? - perguntou Nellie, com voz entrecortada, maravilhada e algo excitada por ouvir uma tal história na sua sala de estar.

 

- Depois disso, não foi difícil. Ainda houve uma perseguição, mas já não estávamos no local da emboscada, e éramos nós que disparávamos, com espingardas melhores e muito melhor pontaria. Não sei quantos matámos. Ao fim de algum tempo, eles perceberam que era de mais para eles e desapareceram. Só então nos demos conta do que acontecera ao pobre Tom. Ele continuou a disparar até ao fim, apesar de ter um braço ferido. Só quando viu que estávamos a salvo é que se permitiu desmaiar. Que homem!

 

- Depois, ligaram o seu ferimento o melhor que puderam e trouxeram-no para cá, não é verdade? - rematou Airton.

 

- Sim. Foi a parte mais terrível de toda a história - respondeu Frank, num tom de voz mais sóbrio. - Não podíamos viajar a todo o galope, com o Tom naquele estado, mas a cada minuto que passava mais receávamos pela sua vida. Ao fim de dois dias, ele mergulhou num estado de inconsciência quase permanente e... bom, pensei que era o fim. Precisámos de mais um dia para chegar até aqui.

 

- Pois penso que você, o Lu Jincai e os outros fizeram um excelente trabalho - disse calmamente o médico.

 

As lágrimas tinham enchido novamente os olhos de Frank.

 

- Sabem, o Tom quase foi morto ao salvar a nossa prata. Se ele... Se ele tivesse... Por aquilo! Como me poderia perdoar?

 

- O Tom foi ferido por salvar a vida de um dos seus companheiros - contrapôs o médico. - A prata nada tem a ver com o que ele fez. Como diz o evangelista: ”Maior amor não existe do que quando um homem abdica da sua vida pelos seus amigos.” Não tem de se envergonhar, meu velho, e, como disse e bem, ele agiu como um herói.

 

- Está muito cansado, Mister Delamere - disse Nellie.

- Fique connosco esta noite.

 

- Amanhã, iremos ver o mandarim para lhe comunicar este ultraje - acrescentou Airton. - Mas a Nellie tem razão: primeiro, precisa de descansar. E talvez de um banho - rematou, rindo-se.

 

- Calculo que esteja a dar um triste espectáculo - disse Frank. - São muito amáveis, mas primeiro tenho de ver a Helen. Suponho que esteja no hospital com o Tom, não é assim? Deve estar muito transtornada.

 

Nellie e o médico entreolharam-se. Nellie acenou ao marido quase imperceptivelmente.

 

- Delamere - começou Airton, afavelmente. - A Helen não está no hospital. Na realidade, ela ainda não sabe de nada. Encontra-se aqui em casa, num dos quartos, a dormir. Receio que não esteja muito bem.

 

- Não está bem? - repetiu Frank, atónito. - Mas porquê? O que é que ela tem? - Levantou-se do sofá. - Se está doente, tenho de ir vê-la.

 

- Deixe-se ficar sentado mais um momento. Receio ter más notícias para lhe dar. Sabe, desde que partiu, descobrimos que a Helen tem... - O médico tossiu nervosamente. - Que a Helen tem...

 

- Que a Helen tem gripe - apressou-se Nellie a rematar. Airton olhou para a mulher, espantado.

 

- Ela apanhou uma constipação? - perguntou Frank.

- É só isso?

 

- Bom, é mais grave do que uma simples constipação respondeu Airton, ciente de que as faces lhe ardiam. - É uma nova espécie de gripe, muito contagiosa, e... e ela tem estado muito doente... - concluiu, sem grande convicção.

 

- Mas agora está tudo bem, não é verdade? - inquiriu Frank, de súbito muito divertido. - A gripe, em geral, não constitui um perigo para a vida do paciente, não é assim? Não é pneumonia, certo? Ela não corre perigo, pois não?

 

- Não, não. É apenas uma gripe. Mas tem estado realmente muito doente, e, bom, de momento...

 

- Não me vão dizer que não posso ir ver a minha própria filha!

 

- Não nos parece que deva ser incomodada, agora, Mister Delamere - replicou Nellie, tentando acalmá-lo. - Está muito, muito fraca, e penso que o receio do meu marido é que, se ela soubesse de todas as coisas terríveis que vos aconteceram, se enervasse. Não é verdade, Edward? Porque não toma o seu banho, Mister Delamere, e dorme uma noite sossegada? Amanhã de manhã, quando estivermos todos recuperados e a sua filha se sentir mais forte, podemos dizer-lhe que o senhor regressou... e também falar-lhe do Tom.

 

- Muito bem - concordou Frank, um tanto mal-humorado. - Então, fica para amanhã. Mas ela está bem? A convalescer devidamente e tudo o mais?

 

- Oh, sim, está tudo bem - sossegou-o Nellie. - É que o meu marido acha que ela não deve ser incomodada esta noite.

 

Depois de chamar Ah Lee, e de Frank ser conduzido para o seu banho, Nellie reclinou-se na poltrona e suspirou.

 

- O que foi que te passou pela cabeça, minha querida?

- perguntou Airton, abismado. - Porque mentiste?

 

- Oh, não compreendes, Edward? Com o Tom entre a vida e a morte, como podemos dizer-lhe a verdade? O Frank Delamere, abençoado seja, é o homem mais temperamental e indiscreto que conhecemos. Deus sabe como vai reagir. E se ele contasse ao Tom? Partilhar um segredo com o Frank é como fazer uma proclamação pública. Não quero ter a morte de um rapaz tão bom a pesar-me na consciência, quando podemos esperar mais uma semana e dizer-lhe tudo quando já tiver forças suficientes para aguentar o choque. Se ele souber agora perderá a vontade de viver. Percebes agora?

 

- E como vamos guardar segredo?

 

- Vais manter a Helen na cama e tratá-la de uma gripe, e de qualquer outra doença plausível que desencantes nos teus livros de medicina. Não te preocupes com o facto de ela não ter um aspecto de pessoa doente, assim que os sintomas da falta do ópio começarem. E, amanhã de manhã, antes que veja o pai, nós dois dir-lhe-emos o que está em jogo. Ela vai cooperar. Confia em mim. Não há outra alternativa.

 

Airton condescendeu, com um aceno de cabeça, e bebeu o seu uísque.

 

- Nellie... - murmurou, após uma longa pausa. - há outra pessoa que me preocupa ainda mais...

 

- Quem?

 

- Depois do relato do Frank, não podemos ignorar o perigo que representam os Boxers, e a irmã Elena foi visitar as aldeias cristãs.

 

- Eu sei. Também penso nisso. Mas nada podemos fazer, esta noite.

 

- Vou enviar o Zhang Erhao buscá-la, amanhã de manhã.

 

- Até lá, só nos resta rezar para que esteja bem. Oh, Edward, que dia! O que está a acontecer à nossa volta, tão de repente? O nosso pequeno mundo está a desfazer-se em pedaços.

 

Já começara a anoitecer quando a irmã Elena alcançou a periferia de Bashu. O pastor John e as suas duas filhas, Mary e Martha, esperavam-na na colina, e ficaram tão aliviados por ouvirem o som dos cascos do seu cavalo como ela ficou por os ver.

 

As duas meninas continuavam tão alegres quanto ela se lembrava. Mary tinha catorze anos e era a beldade da aldeia. As faces salientes e o nariz arrebitado eram típicos dos camponeses do Norte, mas a sua pele rosada e suave como um pêssego, os olhos maliciosos, que se curvavam para cima, como a cauda de uma fénix, e os lábios vermelhos e ovais, ladeados por duas covinhas sempre que sorria, eram os de uma tímida princesa da ópera. A sua trança sedosa e brilhante, presa com uma fita azul, balouçou atrás dela quando avançou, ou, antes, dançou, pelo caminho, fazendo lembrar a Elena um potro ou um veado brincalhão, cheio de energia com a chegada da Primavera. Não podia imaginar uma noiva de Cristo mais improvável, mas a ambição de Maria era tornar-se freira, e, com o consentimento do pai, Elena e Caterina haviam prometido levá-la para o convento em Tientsin quando ela completasse dezasseis anos. Martha, de doze anos, era o oposto da irmã, uma criança pequena, séria, cujos olhos muito grandes, quando olhavam fixamente para Elena, revelavam uma sabedoria e uma tristeza interior que faziam com que a freira sentisse vontade de a abraçar com ternura. Elena gostava muito das duas meninas, que conhecia desde bebés.

 

Rindo, cantavam os versos do hino que Caterina lhes ensinara dois meses antes:

 

- Jesus ama-me, sei-o porque a Bíblia mo diz. Geralmente, a irmã Elena caminhava a seu lado, cantando com elas, mas, naquele fim de tarde, não tinha vontade – e não apenas devido ao cansaço da viagem. Caminhando ao lado do pastor John, reparou que também ele se mostrava mais calado do que de costume. Apesar da alegria das meninas, a caminhada foi sombria, durante mais de um quilómetro, até chegarem à aldeia.

 

Mãe Wang acolheu-a calorosamente, mas a irmã Elena reparou no seu olhar preocupado, por detrás do sorriso. Após uma rápida ceia de caldo de milho e de galinha, deitaram-se cedo. A irmã Elena ficou deitada, sem dormir, durante algum tempo, escutando a respiração dos outros, revendo mentalmente os estranhos acontecimentos daquele dia.

 

Não era o facto de as estradas estarem desertas. Havia um bom número de razões para explicar tal facto. Nem ficara particularmente surpreendida pelo ambiente tenso que descobrira na comunidade de cristãos de Bashu. Era natural que se preocupassem com os boatos acerca dos Boxers e do incendiar de propriedades privadas. Fora esse, aliás, um dos motivos que a levara a fazer aquela viagem.

 

O que a deixara alarmada fora o encontro que tivera, ao meio-dia, com uma companhia de milícia comandada pelo major Lin.

 

Estavam a dar de beber aos cavalos num poço, quando ela chegara. Cumprimentara-os calorosamente, como sempre, mas em troca recebera olhares silenciosos de rostos frios.

 

O major aproximara-se dela, enquanto Elena comia o seu almoço sozinha, à sombra de um aprisco.

 

- Fala a nossa língua? - perguntara, em tom irónico. A cicatriz e os traços distorcidos conferiam-lhe um ar ameaçador.

 

- Falo um pouco - respondera ela.

 

- Vai dizer-me para onde se dirige?

 

- Dirijo-me para Bashu.

 

- A aldeia cristã - comentara o major em tom desdenhoso, cuspindo. A saliva quase atingira as botas dela. - Os seus cristãos têm causado problemas a muitos ultimamente.

 

- Ouvi dizer que eles é que têm sido alvo de muitos problemas.

 

- Não faz diferença. A paz está a ser perturbada. Porque vai até Bashu?

 

- Porque eles são o meu povo - respondera a irmã Elena, com simplicidade.

 

- Não são o seu povo. Você é uma estrangeira. Eles apenas foram influenciados pelas vossas ideias estrangeiras. Recusam-se a pagar as taxas.

 

- Não pagam as taxas dos templos, mas obedecem à lei.

 

- Às leis estrangeiras. - E o major Lin voltara a cuspir.

 

- Tem noção de que é perigoso viajar por estas estradas sozinha? Pode acontecer muita coisa a uma mulher.

 

- Estou confiante de que soldados como o senhor podem proteger honestos cidadãos que têm de tratar dos seus assuntos.

 

- Eu e os meus homens regressamos a Shishan. Mantivemos a paz entre os seus aldeões cristãos durante estas últimas semanas. Agora voltamos para casa. Pode juntar-se a nós, para sua protecção.

 

- Vou a Bashu.

 

- Desaconselho-a fortemente.

 

- É o meu dever.

 

- Eu também cumpri o meu dever. Avisei-a dos perigos que enfrenta.

 

- Que perigos pode haver para mim em Bashu, major? Ele fitara-a friamente, virando-lhe depois as costas.

 

- Que perigos pode haver para mim em Bashu, major? - insistira ela.

 

O major virara-se para a fitar de novo.

 

- Foi avisada. O que lhe acontecer não será da minha responsabilidade.

 

Deu uma ordem e os seus homens montaram os respectivos cavalos. O sargento trouxera-lhe o seu pónei cinzento e ele saltara para a sela, encabeçando as tropas. Pouco depois, afastavam-se pela estrada, envoltos numa nuvem de poeira.

 

Agora, deitada no kang, relembrava as palavras hostis do major. ”Foi avisada”, dissera-lhe. Avisada acerca do quê?

 

Pareceu-lhe que acabara de adormecer quando acordou com o canto dos galos e o ruído dos outros, que se levantavam. Eram os sons naturais da manhã.

 

”Foi avisada”, ouviu mais uma vez aquelas palavras dentro da cabeça. ”O que lhe acontecer não será da minha responsabilidade.”

 

ESTA CIDADE É TÃO GRANDE - MAS MARCHAMOS RUAS COMO OS HERÓIS OUTRORA

 

Helen estava sentada na sua cama improvisada. Vestira-se e tinha uma expressão de desafio e de rancor no olhar. Abrira as persianas e o sol resplandecente da manhã espalhava-se pelo quarto. Nellie, que se mantinha com as costas apoiadas à porta, reparou que Helen arrumara todas as suas roupas em três malas, alinhadas em frente do aparador vazio. O quarto era arejado e com uma decoração leve; as cenas escocesas emolduradas nas paredes brancas conferiam-lhe uma alegria que não era sentida por nenhuma das três pessoas que se entreolhavam naquele momento.

 

- Porque se levantou da cama? - perguntou Airton, em voz baixa, puxando uma cadeira de forma a ficar de frente para a rapariga.

 

- Mudei de idéias - respondeu Helen. - Quero que me dê o meu dinheiro. Vou-me embora, mas só depois de me dar a morfina que me prometeu ontem à noite. Apanharei o primeiro comboio daqui para fora.

 

- Eu prometi-lhe morfina ontem à noite? - exclamou o médico, ignorando o último comentário. Helen abriu os olhos e comprimiu os lábios, franzindo as sobrancelhas. A sua expressão lembrou a Nellie uma raposa a rosnar.

 

- Sim, bem sabe que me prometeu, doutor. - A sua voz era áspera, esganiçada; para Nellie, era a voz de uma estranha.

- Preciso da morfina. Já se passaram doze horas, desde ontem à noite. Prometeu que voltaria de manhã.

 

- E voltei de manhã, minha querida.

 

Os olhos desconfiados de Helen passaram do médico para Nellie e para o aparador.

 

- Então? Onde está? Onde está a bandeja? Trouxe-a numa bandeja ontem à noite. Onde está?

 

Airton fitou-a, impassível. Até ali, Helen estivera sentada, muito calma, mas começou então a tremer e os nós dos dedos dobrados ficaram tão brancos como a colcha que apertava com mãos trémulas.

 

- Por favor, doutor, não me torture. Dê-me a minha dose. Só um pequeno frasco. - Os seus olhos brilharam com uma súbita esperança. - Ou o meu cachimbo. Devolva-me o meu cachimbo com a pasta. Aquele que tirou da minha gaveta. É meu. Meu, doutor. Por favor, devolva-mo! Não pode tirar-me o que me pertence! Mistress Airton... - Os seus olhos suplicantes viraram-se para a figura que permanecia junto à porta. - Por favor, peça ao seu marido que me dê alguma morfina. Ou o meu cachimbo. Por favor!

 

- Acho que devia voltar para a sua cama - replicou Nellie.

 

- Ouçam, eu vi o meu pai hoje de manhã, como vocês queriam. - Falava muito depressa, pronunciando cada palavra com grande excitação, e uma gota de suor escorria-lhe pela testa. - Deixei-o entrar e fiquei aqui deitada, fingindo que tinha gripe. Menti-lhe, como vocês me disseram. Cumpri a minha parte. Agora, têm de cumprir a vossa e dar-me a morfina que me prometeram. Então, ir-me-ei embora e não terão de voltar a ver-me. Nunca mais. Foi o que combinámos! - gritou.

- Foi o que combinámos.

 

Airton tentou pegar-lhe nas mãos, mas ela tirou-as e rolou sobre a cama até se pôr de pé, do outro lado, ofegante, com os punhos cerrados.

 

- Vou contar toda a verdade ao meu pai - sibilou. Vou dizer-lhe que me mantêm aqui fechada contra a minha vontade. Que me iniciaram na droga. Vou dizer-lhe... Vou dizer-lhe...

 

Lançando-se para a frente, deu um empurrão a Nellie para a afastar e estendeu a mão para a maçaneta da porta. Nellie colocou os braços à volta dela, enquanto Airton lhe agarrava as pernas, que desferiam pontapés no ar. A irmã Caterina, que ficara à espera, do outro lado da porta, entrou e apressou-se a ajudar Nellie. Com uma facilidade surpreendente, os três carregaram a rapariga, que não parava de se debater e os arranhava e mordia, e deitaram-na na cama. Enquanto as duas mulheres a mantinham deitada, o Dr. Airton, arfando, depois daquele esforço, levou uma mão ao bolso para tirar alguns bocados de corda. Não sem alguma dificuldade, pegou-lhe nos braços, que se agitavam, e atou-lhe as mãos às barras da cama. De seguida, descalçou-lhe as botas e atou-lhe também os pés. Helen estava agora estendida de costas na cama, com as pernas e os braços afastados. Sentiam-se todos exaustos, incluindo a própria Helen. Depois daquela pequena luta, e durante algum tempo, os únicos sons que se ouviram no quarto foram soluços e respirações ofegantes.

 

Uma lágrima escorria pela face da irmã Caterina, mas os rostos do Dr. Airton e de Nellie apresentavam um ar severo. Helen, com o rosto pálido parcialmente coberto por um emaranhado de cabelo da cor da pelagem de uma raposa, olhou para os seus ”captores” com olhos esbugalhados, assustados, parecendo um animal ferido.

 

- Não, minha querida, da minha parte não conte com mais morfina. - A voz do médico era inflexível. - Não foi isso que lhe prometi ontem à noite. Prometi que a curaria, e é o que vou fazer.

 

Nellie viu o horror despontar no rosto da rapariga e sentiu os músculos das próprias faces contraírem-se, ao tentar manter a calma. Teve de desviar o olhar, ao ouvir um fio de voz, que lhe metia dó, elevar-se da cama.

 

- Isso não é justo. Não é justo. Não priva os seus pacientes chineses do ópio. Não totalmente. Eu vi, e o senhor explicou-me. Administra-lhes doses reduzidas. Eu também preciso da droga, doutor. Sabe-o bem. Não pode... Não pode... privar-me. - A cabeça de Helen começou a tremer. - Não pode fazer-me uma coisa dessas! - gritou.

 

- Agora escute-me com atenção, Helen. Tem de ser corajosa. Não estará sozinha. Ou eu ou Mistress Airton ou a irmã Caterina estaremos sempre consigo. É verdade que administro doses reduzidas aos viciados chineses, mas a maior parte fuma ópio há muitos anos. Se tentasse livrá-los abruptamente do seu vício, provavelmente não sobreviveriam, mas você é jovem, é forte, o seu vício tem poucos meses, e penso que posso curá-la completamente. De qualquer maneira, vou correr esse risco, para seu bem, para bem do seu pai e do Tom, e, mais importante do que tudo o resto, porque transporta consigo uma criança no ventre. E penso que, lá no fundo, você quer que eu ajude a salvá-la de si própria. A salvar o seu bebé.

 

”Pode gritar, pode chorar, pode debater-se à vontade, que isso não mudará nada. Lamento muito, mas durante os próximos dias ficará amarrada à cama. Daqui a pouco, a irmã Caterina ajudá-la-á a despir essas roupas e a vestir uma camisa de dormir. Terá água e comida, se o desejar. Vou obrigá-la a comer um pouco de sopa, quer queira quer não.

 

Os olhos de Helen, como duas pedras reluzentes, haviam-se fixado no Dr. Airton enquanto ele falara. A sua expressão revelava choque e consternação.

 

- Penso que deve saber, enquanto ainda está lúcida e consegue compreender-me, o que vai acontecer-lhe quando o seu corpo se sentir privado da droga. Por favor, preste atenção. Não há maneira de disfarçar todo o horror por que vai passar. Mas talvez a ajude, se o souber.

 

Ao dizer aquilo, olhou para Nellie, como que para procurar apoio. Nellie pousou gentilmente uma mão no seu ombro. Quando falou novamente, foi num tom objectivo, embora sem conseguir ocultar completamente a emoção.

 

- Dentro de poucas horas, os primeiros efeitos serão visíveis. Vai dar consigo a bocejar sem conseguir controlar-se. Chorará e transpirará muito. Ficará com o nariz a pingar. Por fim, adormecerá. Será um sono muito agitado, com pesadelos horríveis. E quando acordar irá desejar que os pesadelos fossem verdadeiros porque parecerão mais agradáveis do que a realidade. Terá dores por todo o corpo. Não conseguirá ficar parada na cama. As suas pupilas contrair-se-ão. Terá cãibras nas pernas. Depois, começará a vomitar. E receio que vá ter também uma grande diarreia. Mergulhará num estado em que estará meio acordada, meio inconsciente, desejando adormecer, mas não sendo capaz de dormir. Se, por essa altura, tiver consciência, sentirá nojo de si própria. Lamento, mas ainda não é tudo. Terá febre, tensão alta, delírios; mas não se preocupe, pois eu estarei aqui para a observar e tratar, e para me certificar de que nada de mal lhe acontece. Parecer-lhe-á um pesadelo sem fim. Alguns pacientes tentam suicidar-se. É por isso que a amarrei à cama. Mas acredite, minha querida, tudo isto terá um fim. Dentro de dois ou três dias, alcançará o pico do seu sofrimento, mas depois, lentamente, muito lentamente, começará a voltar ao normal. É o que lhe prometo, segundo tudo o que sei. E um dia, com a ajuda de Deus, acordará, será novamente a rapariga de antigamente e ter-se-á libertado do vício. Pode levar, no mínimo, uns dez dias, mas também pode demorar mais tempo. Mas esse dia há-de chegar.

 

Suspirou, evitando o olhar cheio de ódio de Helen.

 

- Pronto, disse-lhe o pior. Não a poupei a nada. Se lho disse, foi porque, quando passar por todo esse suplício, haverá uma pequena parte de si que compreenderá o que está a passar-se e porquê. Agarre-se a essa parte de si mesma, porque será ela que a trará de volta. Agora, vou deixá-la, enquanto as senhoras a despem, mas volto daqui a pouco.

 

E saiu apressadamente do quarto.

 

Para Helen, deitada de costas, indefesa, os rostos preocupados de Nellie e da irmã Caterina, debruçados por cima do seu, enquanto ambas lhe desabotoavam gentilmente as roupas e lhe acariciavam a testa suada, eram como o abraço de demónios que arrastavam a sua alma para o Inferno, Ficou deitada, muito hirta, por algum tempo, enquanto as duas mulheres tratavam dela, depois cuspiu no rosto de Nellie. Os seus olhos refulgiram, os lábios esticaram-se por cima das gengivas, revelando os dentes cerrados e, na sua impotência e no seu desespero, gritou como uma raposa presa numa armadilha, uivando para o céu indiferente.

 

Assim que Zhang Erhao, o principal criado do médico estrangeiro, dissera que uma das bruxas a que chamavam freiras partira sozinha, naquela manhã para ir visitar uma aldeia remota, Ren Ren reunira os seus homens, interrompendo os jogos de prazer com as raparigas de uns, impedindo outros de terminar as suas refeições.

 

Ainda se sentia irritado com a conversa com a mãe naquela manhã. Não gostava que zombassem de si e detectava sempre uma ironia no tom de voz dela - apesar de ela ser demasiado esperta para o manifestar por palavras que ele pudesse contestar - o que fazia supor que o considerava um idiota. Ele, um irmão de sangue da Sociedade do Bastão Negro e agora capitão de uma companhia dos Punhos Harmoniosos, que granjeara a confiança do Homem de Ferro Wang e de todos os outros líderes! Pois bem, provaria à mãe que não era um idiota. Ela pedira-lhe um favor. Pedira-lhe que trouxesse uma mulher estrangeira para o bordel. Ele mostrar-lhe-ia quão rápido seria a prestar-lhe aquele favor. Não seria a cabra que se parecia com uma fada-raposa, mas quem daria pela diferença? Um pedaço de carne branca era igual a outro, todos rançosos, no seu entender. Se a mãe queria impressionar o velho mandarim e Jin Lao - Ren Ren supunha que era isso que estava em jogo -, então teria de contentar-se com a freira.

 

Já decidira livrar-se do rapaz choramingas. Um dia ou dois com a bruxa na cabana - o que lhe agradava sobremaneira - e ela poderia ocupar o quarto do rapaz. Quem a descobriria? Pouco lhe importava que os outros estrangeiros dessem pela falta da mulher. Já não faltava muito para chegar o dia em que todos eles teriam o que mereciam. E, ao comandar um ataque a uma aldeia cristã, receberia os maiores elogios do Homem de Ferro Wang e de todos os Punhos Harmoniosos. Quem seria então o idiota?

 

Saiu da cidade a todo o galope, com o Macaco e os outros, em cavalos roubados, dirigiu-se ao templo em ruínas, perdido entre as florestas que havia perto do rio. Era ali que a sua companhia de Boxers, com uns cem homens, se treinava nas artes marciais. Sabia que havia acampamentos similares, escondidos a toda a volta de Shishan. Em breve, receberiam ordem para descer, como uma só força militar, até à cidade. Nesse dia, o sangue jorraria. Por ora, mantinha-se o mais estrito secretismo. Ren Ren aprovava aquela táctica. Havia sido um guarda do Bastão Negro durante tempo suficiente para saber que era preciso manter a informação em pequenas células, isoladas umas das outras. Dessa forma, o poder podia ser concentrado naqueles que chefiavam cada célula. O Grande Mestre era agora o Homem de Ferro Wang, que controlava aquela vasta rede, como uma grande aranha que devora uma mosca suculenta. Um dia, essa aranha seria Ren Ren. Um dia, seria ele! Mas por enquanto devia mostrar-se leal. Por enquanto, gostava de ser um Boxer, com o poder e a magia sob o seu comando. Por vezes, chegava mesmo a convencer-se de que acreditava em tudo aquilo.

 

Houvera o atraso e a confusão habituais até a companhia estar pronta para entrar em acção, e já a tarde ia avançada quando se puseram a caminho de Bashu. Houve um momento de nervosismo quando viram à sua frente o major Lin e a sua milícia. Não havia tempo para se esconderem, mas isso também não importava. Ren Ren supunha que o major Lin recebera ordens para não interferir. Passara com as suas tropas por eles, com os olhos fixos em frente, como se o grupo de Boxers não estivesse ali. De certa forma, aquela atitude do major agradara a Ren Ren. Podia sempre fantasiar que eram um bando de fantasmas invisíveis que se encaminhavam para as trevas da noite com o objectivo de saciar a sua justa vingança. Por outro lado, também teria apreciado que o major tivesse retribuído a saudação que lhe dirigira orgulhosamente, quando passara por ele - na qualidade de um soldado que reconhecia outro -, mas o major Lin ignorara-o. Que ovo de tartaruga arrogante! Um dia, haveria de ter a sua vingança. Ren Ren encarregar-se-ia pessoalmente disso.

 

A marcha nocturna fora cansativa e fria; as três horas de descanso antes do amanhecer foram desconfortáveis e Ren Ren dormiu mal. Na manhã seguinte, estava mal-humorado e rabugento nas primeiras etapas da marcha e deu um murro no Macaco quando este começou a contar uma das suas intermináveis piadas. No entanto, animou-se quando a neblina matinal se desvaneceu e viu que tinham alcançado o topo da colina que dominava Bashu.

 

Reuniu os seus tenentes e transmitiu-lhes as ordens. Metade da companhia devia circundar a aldeia, com os homens ocultos entre as árvores, prontos a apanhar quem quer que tentasse fugir.

 

Assim que estivessem nos seus postos, os outros deveriam segui-lo até à aldeia. Deu duas horas aos homens para se colocarem em posição, e passou esse tempo a jogar aos dados com o Macaco e os seus amigos. Nesse meio-tempo, ordenou a um dos Boxers que subisse a uma árvore e lhe relatasse tudo o que se passava na aldeia. Pouco antes do meio-dia, o rapaz desceu para o avisar de que uma multidão começara a juntar-se na praça. Pouco depois, anunciou que parecia haver uma espécie de reunião entre os anciãos. Sim, havia no meio deles uma mulher que parecia ser estrangeira.

 

- Óptimo - exclamou Ren Ren, enquanto recolhia o que ganhara ao jogo. - Estão todos num mesmo lugar, o que vai facilitar-nos muito as coisas. Agora, vamos.

 

A irmã Elena sentia-se frustrada. A reunião durava havia já uma hora. O chefe Yang, um homem fanfarrão, com sobrancelhas pretas, de quem ela nunca gostara, e os outros representantes da aldeia tinham-se mostrado hostis desde o princípio. Isso entristecia-a. Sempre pensara que conhecia bem aquelas pessoas. Havia Lao Dai, o muleteiro e estalajadeiro, em cuja casa ela pernoitava frequentemente. A seu lado achava-se Wang Haotian, tio do pastor John, que tantas vezes a convidara para piqueniques nos seus pomares na colina para colher maçãs com as sobrinhas de Wang. Ao fundo da mesa sentara-se o amável e tolo Zheng Fujia, pai de Pequena Borboleta, que se preocupara durante toda a noite quando a filha dera à luz o seu neto. Até mesmo aqueles homens que, para ela, eram como da sua família e que, até há poucos dias, tinha na conta de seus amigos, a fitavam friamente, com um ténue lampejo de ódio nos olhos.

 

Desejou que o sol, que incidia sobre a mesa, na praça, não fosse tão opressivo, porque lhe provocava dores de cabeça. Em Itália, ter-se-iam sentado debaixo das folhas das videiras, mas ali não havia a menor sombra. Tinha de se concentrar para compreender o rude dialecto local, sobretudo quando a reunião degenerou numa troca de injúrias entre o chefe Yang e o seu barulhento primo, o moleiro Zhang, que abrira caminho para participar no debate, ladeado pelos seus dois filhos, com aspecto de vilões, apesar dos apelos do pastor John para que ele se abstivesse de falar. O moleiro Zhang era cristão, mas toda a gente sabia que só se convertera para obter um trunfo suplementar nas suas eternas disputas que tinha com o primo acerca das terras.

 

A irmã Elena desejava que o padre Adolphus estivesse ali. Ele teria encontrado palavras sábias para harmonizar as duas partes. Ou até mesmo o Dr. Airton, cujo sentido de humor talvez aliviasse a tensão. Sentia-se sozinha e deprimida. Mas, acima de tudo, não se sentia à altura das suas responsabilidades.

 

O pastor John tentara limitar a ordem do dia às mais urgentes razões de queixa, na esperança de que fosse possível chegar-se a um compromisso, mas a reunião começara com uma longa e conflituosa troca de insultos velados e de recriminações mútuas que, na sua maioria, eram incompreensíveis para Elena. Durante aquela fase inicial, o pastor John mantivera-se em silêncio a maior parte do tempo. O seu propósito era o de que alguma daquela fúria se esgotasse por si só, antes de ele intervir com o que esperava ser uma mensagem conciliatória, capaz de conduzir a uma solução positiva.

 

A sua oportunidade chegara após a intervenção do monge budista. O bonzo fizera alguns comentários comedidos acerca das taxas do templo, explicando como a recusa por parte dos cristãos em pagá-las reduzira a capacidade do templo de contribuir para muitos dos projectos da aldeia, tal como o novo sistema de drenagem e as celebrações do Festival do Ano Novo. Não revelara má vontade para com o direito dos cristãos de não pagar a taxa, ao contrário de muitos aldeões. Limitara-se a comentar que causava problemas às finanças do templo.

 

O pastor John julgara ser aquele o momento apropriado para fazer o seu discurso. Ajustando os óculos, e depois de olhar uma última vez para as suas anotações, dirigira-se cortesmente aos anciãos. Como fora sua intenção, o discurso revelara-se sereno, sensato e, a princípio, parecera suscitar a compreensão de todos aqueles que o escutavam. Invocara a sua linhagem comum, o orgulho que tinham pela aldeia, os anos em que haviam trabalhado juntos, durante boas e más colheitas, e o facto de que não devia haver divisões entre amigos. Não podia haver respeito mútuo, dissera, entre aqueles que acreditavam num deus e aqueles que acreditavam em vários? Infelizmente, nos últimos tempos, a tensão aumentara entre os cristãos e os não-cristãos, mas os motivos de tais fricções raramente estavam relacionados com a religião em si. Se a questão era de ordem financeira - como, por exemplo, o pagamento da taxa do templo (e agradecera ao monge budista as suas sábias palavras) -, pois que se discutissem outras formas de os cristãos contribuírem para o bem da aldeia. Se continuava a haver uma disputa entre o chefe Yang e o moleiro Zhang, que os sábios da aldeia colaborassem na procura de uma solução, tal como o padre Adolphus havia feito no passado...

 

Não pudera acabar. A menção da disputa acerca das terras fora o sinal para os dois primos, de cada lado da mesa, recomeçarem os insultos, comentário acusatório de um a responder à letra ao insulto deliberado do outro. A dada altura, parecera que iam passar a vias de facto. O pastor John batera na mesa e tentara restabelecer a ordem, apelando às duas partes para que honrassem a memória do padre Adolphus.

 

Foi um erro. O chefe Yang desviou-se do primo para encarar o pastor John. Lançou-lhe um olhar furioso e depois virou o rosto desdenhoso para a irmã Elena e cuspiu deliberadamente para a mesa, à frente dela.

 

- Eis o que penso do vosso padre Adolphus! Não passava de um mágico demoníaco, que se servia dos seus truques para enganar pessoas honestas e trazer vantagens para vocês, cristãos, que adoram o Diabo. E agora tentam trazer para aqui a sua súcuba, a sua bruxa, para fazer o mesmo!

 

Os cristãos, agrupados do lado de Elena, ergueram-se em sinal de protesto. O moleiro Zhang levou a mão à faca que trazia ao cinto, mas o pastor John, desferindo um murro na mesa, gritou:

 

- Ordem! Ordem!

 

No silêncio que se seguiu, o pastor John tentou argumentar:

 

- Como pode ser tão insultuoso, chefe? E tão ingrato, depois de todas as boas coisas que os nossos amigos fizeram por nós durante todos estes anos? Peço-lhe que se desculpe junto da nossa irmã mais velha pelo seu comentário irreflectido. Podemos ter os nossos diferendos na aldeia, mas a irmã Elena está inocente de tudo, excepto da gentileza que tem para connosco.

 

O chefe Yang lançou a cabeça para trás e riu-se.

 

- Inocente? Diga isso à minha vaca, que adoeceu esta manhã, logo depois de ela chegar à aldeia. Ou à tua mula, Lao Dai, que morreu quando a outra bruxa estrangeira veio até aqui, há dois meses. Inocente? As nossas mães temem pela vida dos seus filhos. O que acontecerá se a bruxa perseguir um deles?

 

- O meu neto teve febre esta manhã - interveio Zheng Fujia, nervosamente. - A sua cabeça estava muito quente, quando a minha filha o trouxe do rio, depois de encontrar esta mulher perto do lavadouro - acrescentou, apontando para Elena.

 

Elena, chocada, tentou encontrar palavras para protestar. Ao mesmo tempo, apercebeu-se de um barulho a toda a sua volta. Estivera tão concentrada no debate que não prestara atenção à multidão de espectadores, cristãos de um lado e não-cristãos do outro, que observavam a cena. O ar encheu-se de gritos enraivecidos. Uma velha brandiu um dedo ossudo para ela e guinchou:

 

- A minha neta clama vingança! Envenenou-a, deu-lhe medicamentos e, duas semanas depois, a menina estava morta!

 

Um outro homem gritava algo acerca de uma epidemia de tinha nos carneiros.

 

- Não é verdade. Não é verdade - murmurou Elena, virando-se para o pastor John, no patético desejo de se justificar. - Aquela criança tinha uma doença do cérebro. Apenas lhe dei medicamentos para aliviar as dores. Nunca afirmei que a salvaria. Como podem eles dizer tais coisas?

 

O pastor John levantara-se; o seu rosto, geralmente plácido, tremia de raiva, assim como os seus ombros, e agitava os punhos cerrados.

 

- Como se atrevem? - bradou, com uma voz incrivelmente portentosa. - Como se atrevem a dar voz a esses disparates, fruto da maldade e da superstição? Acusam-nos de adorar o demónio, os vossos templos estão cheios de ídolos de barro! Porque julgam que nos tornámos cristãos, senão para escapar a essa ignorância maléfica e idiota em que todos vocês estão atolados? Não se apercebem de que Nosso Senhor Jesus Cristo nos indica o caminho para sairmos da nossa escravatura e vivermos num mundo melhor?

 

O chefe Yang também se levantara e o seu rosto estava iluminado por um sorriso triunfal.

 

- Escutem-no! - vociferou, com uma voz ainda mais poderosa. - Ele admite! Ouviram-no? Admite que quer esmagar as nossas tradições! Ouviram-no escarnecer dos nossos deuses! Quer um mundo melhor e chama-nos escravos! O que é isso senão um ataque contra o imperador em pessoa? Aldeões, vamos permitir esta traição? Traição e magia negra que ameaçam os nossos lares!

 

- Eu dou-te a traição, saco de mijo de cabra! - gritou o moleiro Zhang, saltando para cima da mesa com o intuito de bater no chefe. Os dois lançaram-se numa luta violenta e confusa, mordendo-se, puxando o cabelo um do outro, arranhando-se. De todos os lados, Elena viu cristãos e não-cristãos atirarem-se uns aos outros, gritando, empurrando-se, com alguns a baterem no companheiro do lado. Os anciãos da aldeia, sentados nos bancos, entreolhavam-se, confusos. O pastor John parecia atordoado. Elena achou que devia fazer qualquer coisa e deu consigo de pé em cima da mesa. Mais devido à frustração de não conseguir pôr termo à horrível luta do que em consequência de algum plano, lançou a cabeça para trás e emitiu um grito longo, muito agudo e ululante. O grito trespassou a algazarra à sua volta, como um apito num jogo de futebol, fazendo com que todos parassem em silêncio. Todos os rostos se viraram para fitar a mulher estrangeira, com os braços levantados e a cabeça lançada para trás, que, transfigurada, se achava acima deles.

 

- Parem! Parem! Parem! Pelo amor da Virgem, parem!

- repetia, mas as palavras eram estranhas para a audiência, porque, na sua confusão, falara em italiano.

 

Ao fim de alguns segundos, também ela parou, ciente de que a calma regressara à sua volta. Corou, envergonhada, e virou-se para o pastor John, como para lhe perguntar o que devia fazer.

 

Então uma voz, do lado dos não-cristãos da aldeia, gritou:

 

- Ela lançou-nos um feitiço na sua língua demoníaca! Bruxa! Bruxa!

 

E a multidão repetiu, em coro:

 

- Wupo! Wupo! Wupo! Wupo! Wufol

 

O momento parecia adequado, e Ren Ren ordenou ao Macaco que disparasse o mosquete para o ar, a fim de se fazer ouvir no meio da confusão. O eco do tiro ricocheteou em volta da praça, calando os aldeões espantados, que olharam perplexos para as figuras armadas e uniformizadas que se haviam postado em silêncio à volta do perímetro da praça em posições estratégicas, bloqueando todas as saídas. Ninguém vira Boxers anteriormente, mas identificaram-nos de imediato pelos turbantes amarelos, as faixas cor de laranja e as posturas estudadas, típicas de quem pratica artes marciais.

 

Ren Ren, seguido pelo Macaco e pelos outros tenentes, atravessou a praça em silêncio até ao centro, passando por entre duas fileiras de aldeões paralisados pelo medo.

 

- Amigos - exclamou. Empregava um tom casual, mas a sua voz arrastada revelou-se algo frágil, naquele ambiente tenso. - Amigos, parece que chegámos no momento certo. Apanharam uma bruxa? Revelam grande astúcia. Uma estrangeira, pelo que vejo. Uma cabra gorda e feia, não acham?

 

A irmã Elena, ainda de pé em cima da mesa, sentiu os joelhos tremerem, mas sabia que tinha de dominar o medo.

 

- Sou a irmã Elena, da missão cristã de Shishan. Não sei quem são, mas terão problemas se fizerem mal a alguém daqui.

 

Ren Ren sorriu.

 

- Quem é o chefe da aldeia? - perguntou tranquilamente. O chefe Yang precipitou-se para a frente e prostrou-se aos pés do jovem.

 

- Mestre, não era nossa intenção fazer mal... - balbuciou, engolindo poeira.

 

- Se estão a desmascarar bruxas, não há mal nenhum nisso. Na verdade, é até recomendável. Até mesmo útil. Mas estou confuso. Ouvimos contar histórias terríveis, não é verdade, Histórias que esta aldeia terá sido dominada pelos cristãos. E pergunto a mim próprio porque é que um bom chefe, sem dúvida leal ao império dos Ch’ing, permite que a sua aldeia seja dominada por cristãos e traidores ao imperador. Também é cristão?

 

Pela convulsão de soluços aterrorizados e de protestos a seus pés, Ren Ren conseguiu estabelecer que não, que o chefe Yang não era cristão. Pelo contrário, odiava-os e tinha medo deles. Haviam lançado feitiços sobre os aldeões inocentes e roubado as suas terras. Ele próprio sofrera com a magia deles, bem como toda a sua família; mas eram tão numerosos, tão numerosos - e que o mestre lhe perdoasse por isso - que ele pouco pudera fazer...

 

- Pode ao menos pôr-se de pé e parar de choramingar ordenou Ren Ren. - Já seria um começo. Depois, é melhor indicar-me quem são os cristãos e, em troca, mostrar-lhe-ei como se lida com esses ovos de tartaruga. - Virou-se para dar ordens aos seus homens, mas foi detido pela figura alta do pastor John, que, com grande dignidade, se levantara e lhe barrava o caminho. Ren Ren ergueu os olhos para o rosto calmo e trigueiro emoldurado por cabelo grisalho.

 

- Quem é você? - perguntou.

 

- Com todo o respeito que me merece, gostaria de lhe fazer a mesma pergunta. E também saber com que autoridade vem até aqui para intimidar a nossa comunidade. Sou mestre-escola e o meu nome é Wang. Também tenho a honra e o privilégio de ser o pastor da igreja católica desta aldeia. Não somos bruxos e somos súbditos leais do imperador. Gostaria de ver a sua ordem, por favor. O senhor e os seus... soldados, à primeira vista, não parecem representar as forças regulares do império Ch’ing.

 

Durante alguns instantes, Ren Ren e os seus tenentes olharam abismados para o pastor John. Então, o Macaco começou a rir-se.

 

- Posso mostrar-lhes a nossa ordem, Ren Ren? - propôs-se, sacando um grande sabre que trazia ao cinto.

 

- Ainda não - respondeu Ren Ren, sorrindo. - O homem tem alguma razão. Fomos descorteses, ao que parece. Devíamos ter começado por nos apresentar. Com todo o respeito que me merece, senhor mestre-escola cristão - disse em tom irónico ao pastor John -, vou mostrar-lhe daqui a pouco qual o direito que nos trouxe até aqui. Não se vá embora. Com três grandes passadas, alcançou a mesa. A irmã Elena recuou quando ele subiu para cima do tampo, mas Ren Ren agarrou-a pelo pulso.

 

- Fique - sibilou. - Seja uma cabra boazinha. Largou-a e virou-se para contemplar a multidão. Todos os olhos estavam postos nele, revelando ansiedade. Com um grande sorriso, ergueu a mão, como que para agradecer uma salva de palmas inexistente, e os seus dentes brilharam como os de um artista de feira.

 

- Está ali um homem - gritou - que acaba de perguntar quem somos. Também quer saber com que direito estamos aqui. que quase todos vocês sabem quem somos, quem nos enviou a Bashu. quem ainda tenha dúvidas?

 

Um silêncio previsível respondeu à sua pergunta.

 

- Xiao Tan! Vem até cá e mostra-lhes o que sabes fazer. O jovem que ele chamara correu até ao centro da praça, despindo a túnica. Fez uma vénia a Ren Ren e iniciou uma elegante demonstração de kungfu, dando pontapés, saltando e desferindo socos no ar. Rodopiando cada vez mais depressa, saltou no ar, abrindo as pernas. Aterrou apoiado numa só perna, enquanto movia os punhos. As suas profundas inalações mesclavam-se num ritmo perfeito com o silvo provocado pelos seus membros ao cortar o ar, formando um som quase musical que realçava a beleza dos seus movimentos. De súbito estacou, balançando-se num ângulo impossível. Aqueles que estavam mais perto puderam ver que os seus olhos se reviravam por debaixo das pálpebras fechadas. Parecia estar possuído ou em transe. Quando recomeçou a mexer-se, o seu porte era estranho, quase desumano, curvado para a frente e galopando pelo chão. Parou apoiado numa perna. Levou a mão a uma orelha, como se escutasse um som longínquo; a boca e as narinas contraíram-se, como se cheirasse o ar. Os olhos pestanejaram e os movimentos eram vivos, simiescos. Uma exclamação percorreu a multidão, porque a maior parte conhecia desde a infância a personagem que ganhara vida.

 

- Reconhecem-no? - exclamou Ren. É Sun Wukong, o deus-macaco ele próprio, que encarnou neste rapaz! E é apenas um dos deuses que podemos invocar e que descem do céu para nos ajudar! Olhem atentamente para ele. Reparem bem como se mexe. Vejam com os vossos próprios olhos como é estar possuído por um deus! É esse o nosso poder. Conseguem imaginar? Dá-nos invulnerabilidade e uma força sobrenatural na prática das nossas artes marciais. Torna-nos os Boxers do céu. Boxers celestes. Somos a Companhia do Tigre da secção de Shishan dos batalhões da Justa Harmonia. Somos uma milícia leal, que jurou servir o imperador, e temos o céu connosco!

 

Ren Ren fingiu-se desiludido por não ouvir quaisquer aclamações.

 

- Deviam crer em nós, sabiam? Os deuses descem realmente à terra para formar um exército invencível, aqui em baixo. E nós somos a sua vanguarda. Mas devem interrogar-se, bravas gentes de Bashu, porque vêm eles. Porque usufruem de tão grande honra. Sabem porquê? Porque o nosso país corre perigo! O Império do Meio e o trono do imperador estão ameaçados pela magia dos estrangeiros... Ameaçados pela bruxaria dos cristãos.

 

”Têm cristãos na aldeia, não é verdade? Parecem pessoas como vós, não é assim? Tirando os seus estranhos rituais e as suas ideias em relação a pagar taxas, poderão pensar que, no todo, são perfeitamente inofensivos. Até falam de coisas bonitas, não é verdade? De amor fraternal e da conquista do Céu, através de Jesus. Não se deixem enganar. É justamente isso que neles é tão diabólico e tão perigoso. Parecem iguais a nós, mas se olharem para os seus corações encontrarão apenas a maldade e a corrupção. Em cada um dos seus corações negros fermentam conspirações. Oh, sim, eles podem dar-vos sorrisos afáveis, mas no seu íntimo só querem uma coisa: destruir-vos, destruir as vossas famílias, a vossa aldeia e derrubar o Império.

 

Viu com satisfação o efeito produzido pelas suas palavras: as pessoas na multidão começavam a afastar-se dos seus vizinhos.

 

- Sim, devemos estar sempre de sobreaviso - prosseguiu. - Os deuses estão connosco mas a magia do nosso inimigo também é poderosa. Por vezes, a maldade é tão forte que até os deuses têm dificuldade em vencê-la. Essa maldade é tanta que pode conspurcar, em certos casos, a pureza do barco que transporta o deus no nosso íntimo. Os nossos deuses podem resistir às balas dos nossos inimigos, mas nem sempre podem resistir à magia negra dos bruxos cristãos. É por isso que viemos exterminar as bruxas e os diabos que dizem chamar-se cristãos, onde quer que os encontremos.

 

”E é por isso que estamos aqui em Bashu. Queríamos ver que tipo de perigos esta aldeia corria. E que foi que descobrimos? Que já identificaram uma bruxa. - Agarrou a irmã Elena pela mão e puxou-a para si. - É esta, não é assim? Bom, que é feia, disso não restam dúvidas. Cheira a ranço e tem um aspecto nojento, mas será realmente uma bruxa? Que tal prová-lo? Que pensam de uma pequena demonstração, bravas gentes de Bashu? Apenas para ver que espécie de perigo correm?

 

Fez uma pausa a fim de empolar o efeito dramático do seu discurso.

 

- Nobre senhor Sun Wukong! - chamou. - Agradar-lhe-ia honrar esta cena com a sua presença neste palco?

 

Enquanto a criatura simiesca se aproximava da mesa aos saltos, Ren Ren esboçou um rápido movimento para agarrar nas duas mãos da irmã Elena e torcê-las atrás das costas. O boxer possuído saltou para o tampo da mesa, equilibrando-se numa só perna, esticando o pescoço, numa imitação perfeita do Sun Wukong que todos conheciam da ópera. Nesse meio-tempo, Ren Ren sacou de uma faca. A irmã Elena ficou tão surpreendida que, apesar da dor, não gritou, mas o pastor John, que assistia à cena, soltou um grito, furioso. Foi imediatamente agarrado por dois homens de Ren Ren, que o impediram de ir em socorro da freira e que o amordaçaram.

 

- Agora, vejamos qual é a magia mais forte! - vociferou Ren Ren.

 

Abriu um corte na parte da frente do casaco e da camisa da freira da gola até à cintura, cortando também o cordão das suas calças, que lhe caíram aos pés. O ventre e o sexo da irmã Elena ficaram expostos à vista de todos; um pequeno crucifixo pendia entre os seus seios pesados. Uma exclamação abafada ergueu-se da multidão, causada pelo choque de ver repentinamente nua uma mulher que se haviam habituado a respeitar, mas sobretudo pelo efeito produzido no deus-macaco. Este emitiu primeiro um grito muito agudo, seguido de grunhidos indistintos; ao mesmo tempo, perdeu a sua postura heróica e tombou nas tábuas da mesa, onde tremeu e estrebuchou, com as costas arqueadas, como se estivesse cheio de dores. Com um último grunhido, os seus pés martelaram a madeira durante alguns instantes, até que por fim se imobilizou. A paragem foi apenas momentânea; no momento seguinte, o jovem boxer, que parecia cansado, mas já sem qualquer vestígio da possessão, sentou-se coçando a cabeça e perguntando a si próprio porque estava ali, espantado pela visão da estrangeira nua a seu lado.

 

- Surpreendidos? - perguntou Ren Ren, em tom empolado. - Não deviam estar - acrescentou logo de seguida. É o que acontece uma força vence E, neste caso, o efeito de impureza da bruxa era tão forte que enviou o deus-macaco de volta para o céu. Ele não podia suportar a visão das suas partes baixas. Não podia suportar a obscenidade de uma bruxa e de uma prostituta que fornica com os diabos cristãos... - Ren Ren passou uma mão por entre as pernas da irmã Elena e depois cheirou os dedos num gesto teatral. - Puah! Que fedor! O cheiro pestilento da corrupção e do mal!

 

”Mas não se deixem desanimar, boas gentes. Nós também temos uma magia poderosa. Apenas queria mostrar-vos até que ponto o nosso inimigo é perigoso, e até que ponto esses cristãos que estão entre vós são verdadeiramente maléficos. Provámos que ela era um demónio. Quem mais aqui é como ela?

 

A irmã Elena já não lhe interessava; empurrou-a para fora da mesa e ela caiu desamparada no chão. Na sua vergonha, apanhou o que restava das suas roupas e dobrou-se em posição fetal, soluçando. Nenhum dos cristãos se atreveu a aproximar-se dela. Os seus olhos assustados estavam fixos em Ren Ren.

 

- Esqueçam a bruxa. Ela já não tem qualquer poder, agora que estamos aqui. Será eliminada, claro, assim que eu regressar ao quartel-general dos Punhos Harmoniosos. O que mais me preocupa é o que vamos fazer com todos os outros cristãos adoradores do diabo que vocês têm aqui e que são do vosso próprio povo.

 

”Eles não vão fugir, caso essa ideia já tenha passado pela cabeça de algum deles. Bloqueámos todas as saídas desta praça, e os meus homens já estão a revistar as casas para apanhar aqueles que se esconderam. Não precisaremos de muito tempo para descobrir quem é quem. Até porque todos vocês sabem quem eles são, não é verdade? E, se não me engano, provavelmente conseguiremos identificá-los pelo fedor que emanam. Se ainda não se borraram todos, não faltará muito.

 

Começou a andar de um lado para o outro, sobre a mesa.

 

- Conseguem sentir o medo que eles têm de nós? Eu consigo. E a sua malevolência? Também a sinto. Tomemos por exemplo esse pastor, esse mestre-escola, aquele que quer ver as minhas credenciais. Você aí, chefe. Porque não me dá um conselho? Que vamos fazer com ele? Ele já confessou ser o cabecilha dos cristãos desta aldeia. E você disse-me que os cristãos, servindo-se dos seus poderes mágicos, atacaram a sua família. Se ele é o cabecilha, então deve ser um bruxo, não é assim.

 

Ren Ren colocou a mão em volta de uma orelha, em parte parodiando o deus-macaco que regressara ao céu.

 

- Fale mais alto. Não consigo ouvir... Só gemidos... Só queixumes. homem, é mais tímido do que uma noiva na noite de núpcias. Vamos, diga-me: o que devemos fazer com o mestre-escola?

 

- Matem-no! - gritou uma voz feminina na multidão.

 

- É um facto. São sempre as mulheres que se revelam mais sedentas de sangue - comentou Ren Ren. - Então? É isso que você também quer? É o chefe desta aldeia. É isso que devemos fazer? Matá-lo?

 

Uma ou duas outras vozes elevaram-se para repetir a decisão da mulher; pouco depois, um tímido coro de aldeões assustados exigia a morte do pastor John. O chefe Yang, com os olhos esbugalhados pelo medo, acabou por aquiescer com um aceno de cabeça.

 

- Sim - murmurou. - Matem-no, por favor. Matem-no por nós.

 

- Então, tragam-no para aqui - ordenou Ren Ren, e o pastor John, amarrado e amordaçado, foi empurrado para a mesa. - E você, suba também.

 

O chefe Yang subiu nervosamente, colocando-se ao lado de Ren Ren.

 

- Ora vejamos... Como vai fazê-lo? - continuou Ren Ren. - Com uma faca? Com um machado? Uma forquilha? Sei que os camponeses podem ter uma grande imaginação. Oh, quer que eu o faça por si, não é verdade? Não, não, não. É da sua responsabilidade, chefe. Afinal, é a sua aldeia.

 

Ren Ren divertiu-se durante algum tempo à custa do chefe, até que perdeu a paciência. Tirando a sua própria faca, colocou-a na mão de Yang.

 

- Aqui é o coração dele. Crave-a aí. Como se estivesse a matar um carneiro.

 

Yang, com a boca retorcida por um esgar, virou-se para o pastor, que continuava amordaçado.

 

- Perdoe-me - murmurou. - Lamento muito, venerável Wang... Ele obrigou-me...

 

Os olhos do pastor John deixaram transparecer desprezo.

 

- Despache-se - ordenou Ren Ren.

 

Yang fechou os olhos e, agarrando com as duas mãos o cabo da faca, desferiu um golpe no peito do pastor, deixando escapar um gemido. Ren Ren, com o rosto quase colado ao do pastor John, sorriu, ao ver os seus olhos esbugalharem-se pela dor e o ouviu sufocar, por baixo da mordaça.

 

- Está agora convencido da minha autoridade? Já não tem mais perguntas a fazer acerca da minha legitimidade? perguntou, cuspindo depois sobre o corpo tombado, já agonizante.

 

A multidão assistiu à execução em silêncio. De súbito, porém, ouviram-se gritos lancinantes. Duas meninas e uma mulher de idade tinham avançado e estendiam em vão os braços por entre o cordão formado pelos Boxers, para o corpo do pai e do marido. Ren Ren reparou que uma das meninas, a que tinha faces rosadas, era muito bonita. Podia ser um belo presente para a sua mãe. A velha andava sempre à procura de novas aquisições. Além do mais, a menina parecia ter a idade certa. Mas pensaria nisso mais tarde.

 

- E agora, quem se segue? - perguntou ao chefe Yang, que, empapado em sangue e arfando, olhava para a faca manchada que tinha na mão. - Vamos tentar ser mais eficazes da próxima vez, está bem?

 

Não foi preciso muito para incitar os aldeões a identificar e denunciar os cristãos; depois, foi fácil para os Boxers reuni-los na pequena sala situada num dos lados da praça que o pastor John utilizava como igreja. Não ofereceram resistência. Estavam assustados com a chegada dos Boxers, o discurso teatral e intimidante de Ren Ren, a humilhação pública da irmã Elena e, por fim, o assassínio do pastor John. Até o moleiro Zhang e os dois filhos se deixaram despojar das suas facas sem lutar, seguindo docilmente os outros até à igreja, onde esperaram pelo seu destino.

 

Não demorou muito tempo. A família Zhang foi a primeira a ser chamada a comparecer perante o tribunal que Ren Ren instalara na praça. Os mesmos anciãos que haviam discutido com os cristãos antes, naquela manhã, achavam-se agora sentados em volta da mesa, como juizes dos seus vizinhos e amigos. Quanto a Ren Ren, andava de um lado para o outro com ar muito convencido, como um encenador que admira a sua própria produção.

 

O moleiro Zhang e os dois filhos saíram da igreja, tropeçando, cegos pela luz do sol, e tiveram de passar por um cordão formado por aldeões até chegarem à mesa. Muitos tinham ido a casa em busca de forquilhas e sacholas, e tal era na aldeia o ódio por aquela família que pai e filhos foram atingidos por golpes mesmo antes de se apresentarem no tribunal improvisado.

 

O julgamento foi perfunctório. O chefe Yang recuperara o seu sangue-frio; parecia até contente consigo próprio, convencido de que, ao esfaquear o pastor, havia cometido um acto nobre, até mesmo heróico. Não houve qualquer referência à disputa pelas terras. O moleiro Zhang era demasiado orgulhoso para negar que a sua família era cristã. Além do mais, ostentara de tal forma essa condição que lhe era agora praticamente impossível negá-la. Por outro lado, sabia que Yang nunca permitiria que ele repudiasse a sua religião. Enquanto aguardava, na penumbra da igreja, decidira morrer com coragem. Se o conseguiu ou não foi difícil determiná-lo. A um sinal de Yang, aldeões armados com enxadas rodearam Zhang e os filhos e cortaram-nos aos pedaços.

 

O julgamento da vítima seguinte foi mais demorado. Tratava-se de um sapateiro, cuja passividade - ao contrário dos Zhang - nunca havia suscitado qualquer problema na aldeia. Ajoelhou-se, chorando, confessou o seu erro e prometeu deixar de ser cristão. Já no fim, Ren Ren teve de intervir, salientando a verdade evidente que consistia em que todos os cristãos eram mentirosos e, por conseguinte, o seu arrependimento nunca poderia ser considerado genuíno. O sapateiro foi morto à machadada.

 

O próximo julgamento foi mais breve e Ren Ren elogiou o tribunal.

 

- Estão a ganhar ritmo, o que é bom.

 

A irmã Elena continuava estendida no chão, em choque, mas ninguém lhe prestava atenção. Tinha consciência do que se passava, mas tudo lhe parecia distante e irreal, como se assistisse a uma peça de teatro. Uma parte dela reconhecia que estava a revelar cobardia e que era seu dever fazer alguma coisa para proteger aquelas pessoas, suas amigas, que estavam a ser assassinadas umas atrás das outras - mas, ao mesmo tempo, sentia-se completamente impotente e incapaz de se mexer. Invocar todos os santos para que lhe dessem força não lhe serviu de nada. Algo morrera no seu íntimo quando vira o bondoso pastor John, de quem tanto gostava, cair morto. A irmã Elena não conseguia alcançar aquela parte serena do seu espírito, repleto de amor e de alegria, que lhe dava forças sempre que ficava perturbada. Sentia-se abandonada e maculada. A sua nudez era como uma acusação, e apertava as roupas rasgadas em volta do corpo como se tentasse ocultar um crime. A curtos intervalos, ouvia os gritos desagradáveis e triunfais, seguidos do ruído hediondo das sacholas a matar os paroquianos. Fechou os olhos para mergulhar nas trevas da sua alma, e derramou lágrimas de pena por si própria.

 

Foi então que, mais do que ver, sentiu uma presença amigável ajoelhada a seu lado. Abriu os olhos e fitou o rosto enrugado do bonzo da aldeia, que lhe sorriu à luz do sol enquanto lhe oferecia a sua capa cor de açafrão.

 

- Não compreendo a vossa religião - disse-lhe -, mas nunca pensei que fosse maléfica. Envolva-se na minha capa. As pessoas precisam de si, pessoas que pode ajudar, antes de iniciarem a grande jornada.

 

A irmã Elena obedeceu docilmente. Prendeu a gola da longa capa com dedos trémulos. O monge deu-lhe também o seu cinto, que, uma vez apertado, fechou a capa e assegurou o pudor de Elena. Seguiu a silhueta curvada do velho homem através da praça. Um guarda dos Boxers postou-se à sua frente, com ar ameaçador. O bonzo fez-lhe sinal para que se afastasse.

 

- Vou levá-la para a sala onde estão os outros - explicou. - Responsabilizo-me por ela.

 

Os guardas que se achavam à porta da igreja estavam ali para evitar que as pessoas saíssem e não que entrassem.

 

- Tenho de deixá-la aqui - despediu-se o bonzo. - Foi ferida e humilhada, mas saberá o que fazer, assim que entrar ali dentro. Esta noite, acenderei um pau de incenso e rezarei para que você e o mestre-escola Wang tenham uma feliz reencarnação. Sabe, ele sempre foi meu amigo. Talvez nos voltemos a encontrar, para além deste mar de tristeza.

 

A irmã Elena despediu-se do monge com um aceno de cabeça e, envolta pela capa budista, entrou na igreja. Precisou de alguns minutos para se acostumar à penumbra; a princípio, os gemidos que lhe chegaram aos ouvidos fizeram-na entrar em pânico. Não se sentia com força suficiente para enfrentar tudo aquilo. Julgava-se mais inadequada do que nunca para a sua missão. Foi então que começou a discernir figuras na penumbra. Viu Mãe Wang acocorada no chão de pedra, com os olhos marejados de lágrimas, a boca aberta e o rosto fixo numa máscara de queixume. Mary enterrara a cabeça no seu colo, e os soluços estremeciam-lhe o corpo. A pequena Martha estava ajoelhada a seu lado, com uma expressão de puro desespero estampada no rosto magro, por querer consolar a mãe e não saber como fazê-lo. Elena olhou para o fundo da sala e viu todas as mulheres da aldeia, acabrunhadas pelo medo e pela tristeza. Ainda restavam alguns homens - sobretudo os mais velhos, porque os Boxers haviam levado primeiro os novos -, que esperavam a sua vez. Alguns estavam ajoelhados, a rezar; outros, encostados às paredes, contemplavam os próprios pés, numa atitude de total angústia. Um novo grito de triunfo soltado pela multidão no exterior chegou-lhes aos ouvidos. Pouco depois, dois boxers entraram. Olharam em volta, escolheram um homem que rezava, e arrastaram-no para fora da igreja. Um coro de gritos lancinantes acompanhou a sua saída, para esmorecer em choros anónimos assim que as pesadas portas voltaram a fechar-se.

 

A irmã Elena sentiu uma mãozinha agarrar a sua e deparou com Martha, que olhava para ela.

 

- Oh, porque demorou tanto tempo, tia? Sentimos muito a sua falta.

 

Elena abraçou-a, e os seus olhos marejaram-se de lágrimas quando enterrou a cabeça no ombro da pequena. Durante algum tempo, as duas ficaram abraçadas, soluçando em silêncio.

 

- Eles foram à nossa casa - disse Martha - e forçaram-nos a acompanhá-los até à praça. Foi quando vimos o pai... Quando vimos o baba...

 

- Eu sei, eu sei - murmurou Elena, procurando acalmá-la. - Não penses nisso agora.

 

- Mas eles mentiram-nos. Disseram-nos que íamos embora, que devíamos sair da aldeia e que devíamos levar as nossas coisas. Depois, roubaram tudo o que tínhamos e não pudemos fazer nada.

 

- Eu sei. Não penses nisso, pequenina.

 

- Mas não compreende? Não ouviu o que aqueles homens hediondos disseram a nosso respeito, que os cristãos são bruxos? Isso não é verdade. Eles não passam de ladrões, tia. E estão a matar-nos apenas porque nos querem roubar...

 

Elena estendeu as mãos para pegar no rosto húmido e quente da rapariga e beijou-a.

 

- Pronto, minha querida - Sentiu outro braço em volta da cintura. Era Mary, que se abraçara também a ela. Elena ergueu o olhar, viu outras figuras à sua volta, e rostos ansiosos que a fitavam. O choro colectivo parou à medida que, um a um, os cristãos fechados na igreja perceberam que a irmã Elena havia regressado.

 

Lao Yi, um fazendeiro que fora um dos primeiros em Bashu a ajudar o padre Adolphus e a ser convertido por ele, contemplava-a com ar sério.

 

- Irmã mais Velha, poderemos fazer algo para nos salvarmos?

 

- Oh, Lao Yi, não creio - respondeu Elena, sentindo uma dor no peito.

 

- Era o que eu supunha - respondeu Lao Yi. - Sabe, nunca fui muito esperto, e não conseguia aprender as Escrituras. O padre Adolphus muitas vezes zangava-se comigo por eu não compreender as histórias, mas você pode dizer-me uma coisa. Há um propósito nisto tudo, não é assim? Deus tem um desígnio, não é verdade?

 

- Sim, Lao Yi, Deus tem sempre um desígnio - anuiu Elena, reprimindo as lágrimas. - Mesmo que não compreendamos qual é.

 

Lao Yi acenou com a cabeça.

 

- Era o que eu calculava. Nesse caso, está tudo bem. Irmã mais Velha, fico contente que esteja connosco nestes últimos momentos. - Fez uma pausa. - Sei que não é um padre nem um pastor laico, como o pastor John, mas pensei que talvez nos pudesse conduzir nalgumas orações ou hinos. Há quem esteja muito assustado e não há nada como um hino ou uma oração para nos animar, não é verdade?

 

Quando os Boxers regressaram, ficaram espantados por ver uma mulher com o traje dos budistas, de pé, em frente do altar, e os cristãos ajoelhados em semicírculo à sua volta. Com voz forte, recitava uma oração, enquanto os outros murmuravam as palavras ao mesmo tempo que ela. Quando os Boxers deram uma palmada no ombro de Lao Yi, este pôs-se de pé imediatamente, ajoelhou-se em frente do altar, endireitou as costas e caminhou com passos decididos à frente dos guardas em direcção à porta. Desta vez, não houve gritos nem choros. Os outros continuaram a oração até ao fim. Antes que as portas se fechassem, Lao Yi ouviu as primeiras palavras de um hino. Assim que se viu no exterior, à luz do sol, começou a cantar, com a sua voz rouca e desafinada:

 

- Jesus ama-me, sei-o porque a Bíblia mo diz...

 

Os Boxers entraram na igreja mais cinco vezes, até não haver um só homem na sala. As mulheres continuavam a entoar os hinos, apesar de as lágrimas escorrerem pelos rostos de algumas delas.

 

E cantavam ainda quando as portas se voltaram a abrir de par em par e Ren Ren, flanqueado pelos seus tenentes, o chefe Yang e aldeões, com sacholas e forquilhas ensanguentadas, entraram na igreja. Todas as cabeças se viraram, com medo, mas a irmã Elena, com os olhos postos em Ren Ren, forçou-se, numa voz mais alta e desafiadora, a entoar as palavras do salmo, e apesar do tom vacilante, o coro de murmúrios continuou. Era o salmo 23 - ”O Senhor é meu pastor” - que o Dr. Airton traduzira e para o qual a irmã Caterina, que tinha jeito para a música, havia composto uma melodia que ficava no ouvido. Enquanto cantava, sentiu uma força e uma determinação que julgava ter perdido:

 

- ”Ainda que eu caminhe pelo vale das sombras da morte, não temerei qualquer mal, porque Tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado consolam-me. Preparas uma mesa perante mim na presença dos meus inimigos...”

 

Sustentou o olhar de Ren Ren, na outra extremidade da sala, até este desviar os olhos, rindo nervosamente. Então, piscando um olho aos companheiros, começou a bater palmas, num aplauso lento, irónico, gritando: - Haol Que belo! imitando uma audiência que expressasse o seu agrado por uma cantora da ópera chinesa. Sorrindo, os outros homens fizeram o mesmo. O cântico pairou acima das palmas, até cessar, e os rostos assustados fitaram, como que hipnotizados, o sangue que pingava das sacholas.

 

Mas a irmã Elena não ia deixar-se desencorajar. Fechou os olhos para fortalecer a alma, e numa voz ainda mais vigorosa, quase irreconhecível, entoou o pai-nosso.

 

- ”Pai-nosso que estais no Céu, santificado seja o Vosso nome, venha a nós o Vosso reino...”

 

Ren Ren, contudo, sabia o que fazer para que a sua voz se ouvisse melhor do que a da irmã Elena.

 

- Atentem na maneira como estas bruxas entoam os seus feitiços! Nunca desistem! É como se estivessem a pedir que as queimassem. Não vem mesmo a calhar? Porque é exactamente o que viemos aqui fazer.

 

O significado das suas palavras demorou alguns momentos a surtir efeito. Uma mulher gritou, e a prece de Elena foi abafada por um gemido que depressa se transformou num grito geral de terror.

 

Ren Ren, ciente de que era ele quem mandava agora, ergueu uma mão.

 

- Senhoras, senhoras! Por favor! Não vamos queimar todas vocês... Pelo menos, enquanto nos divertimos um pouco primeiro. Algumas podem até ser poupadas, mas só se forem boazinhas...

 

Enquanto falava, os outros homens começaram a cercar as mulheres, que se encolhiam à sua passagem. A razão que os levara até ali era agora óbvia e as mulheres que tinham filhas novas tentaram desajeitadamente, fazê-las passar despercebidas, acabando por produzir o efeito contrário. Um dos aldeões, com um brilho libidinoso nos olhos, estendeu um braço, agarrou numa jovem de dezasseis anos e arrancou-a dos braços da mãe, que caiu no chão, o rosto lavado em lágrimas. Em poucos minutos, dez ou onze raparigas agarravam-se umas contra as outras no local para onde as haviam atirado, junto da porta. Os homens continuaram a vasculhar por toda a parte, à procura das suas vítimas.

 

Uma das mulheres mais velhas - a irmã Elena reconheceu-a como sendo a esposa do fazendeiro Zhang Aifan, que fora um dos primeiros homens a ser levado e morto - avançou e agarrou-se a uma das pernas de Ren Ren.

 

- Levem-me a mim! - começou a gritar. - Levem-me! Não sou uma verdadeira cristã! Não quero morrer!

 

- Não. És feia - rosnou Ren Ren, dando-lhe um pontapé. - Onde está aquela que vi há pouco, a que tem a pele rosada? Ah, ei-la...

 

A irmã Elena apercebeu-se chocada de que ele olhava para Mary, a filha do pastor John, que se aninhara nos braços da mãe. Viu os olhos da menina abrirem-se de terror e sentiu um aperto no coração. Tinha de fazer qualquer coisa. De nada lhe serviria, mas não podia ficar de braços cruzados e permitir que levassem e desonrassem a filha do pastor John. Mas Martha, a irmã mais nova de Mary, avançou primeiro. Com a sua figura, pequena mas muito direita, e de olhos reluzentes, foi colocar-se à frente de Ren Ren, com os punhos cerrados.

 

- Não vai levar a minha irmã! - disse com voz nítida.

- Ela vai ser freira!

 

A maior parte dos homens riu-se. Ren Ren olhou para ela com uma expressão de divertimento, enquanto a avaliava.

 

- Como é corajosa... Também és capaz de servir. Vais dar uma bela franganita, daqui a uns dois anos. Podemos aproveitá-la para o mercado de virgens. Macaco! Apanha-a para mim, está bem?

 

Quando o Macaco estendeu o braço para agarrar em Martha, ela mordeu-lhe a mão, o que o fez rugir de dor. Tirou a faca do cinto e cortou a garganta da rapariga de uma orelha à outra.

 

- Desculpa, Ren Ren - comentou, enquanto enxugava o sangue que lhe salpicara a túnica, - mas é que me doeu...

 

- Não! - urrou a irmã Elena. Corria pela sala quando viu o homem que respondia pelo nome de Macaco levar a mão a uma faca e os olhos de Martha, calmos, interrogadores, quando esta, franzindo ligeiramente as sobrancelhas, caiu no chão. Elena deu-se conta de que era tarde de mais mas a sua fúria impulsionou-a para a frente. Ren Ren havia arrancado Mary dos braços da mãe e erguia-a pela cintura, apesar dos pontapés violentos que a rapariga tentava dar-lhe. Ren Ren e o Macaco viram a freira avançar para eles. Elena atirou-se ao Macaco e arranhou-lhe o rosto; instintivamente, ele impulsionou a faca para cima, antes de a força do ataque o atirar ao chão. Ao rolar para longe a faca manteve-se cravada na parte superior do tronco de Elena.

 

A freira ficou estendida de costas, perplexa, enquanto uma insensibilidade se lhe espalhava pelo tronco, primeiro, e depois pelos braços e pernas. Ouviu o som gorgolejante da sua própria respiração e, vinda do altar, a voz impertinente de Ren Ren:

 

- O que se passa contigo, Macaco? Já mataste duas das minhas frangas. Maldito ovo de tartaruga! És uma porra de um ovo de tartaruga, sabias?

 

Elena pensou que o homem empregava uma linguagem muito ordinária, uma linguagem que o padre Adolphus não aprovaria. Viu acima dela o rosto de Mary, estranhamente suspenso no ar. Apercebeu-se da expressão chocada da menina e tentou pronunciar palavras para a reconfortar. Sentiu os lábios mexerem mas pareceu-lhe que apenas conseguira esboçar um sorriso. Logo a seguir, um golpe terrível no ventre, enquanto a cabeça pareceu explodir. Depois, tudo ficou negro.

 

Ren Ren deixara cair Mary, que chorava, encolhida no meio de uma poça de sangue. Ele estava de pé, com as mãos nas ancas, e olhava para dois aldeões que orgulhosamente tiravam uma forquilha do ventre da freira morta e extraíam uma sachola do que sobrara do seu crânio. Um deles ria estupidamente, enquanto o outro emitia gritos triunfais.

 

- Malditos camponeses! - resmungou, sacudindo a cabeça.

 

Deu ordens para que os homens levassem as raparigas escolhidas, para que barricassem as portas e deitassem fogo ao edifício. Enquanto as primeiras chamas começavam a subir pelos flancos da igreja, provocando os gritos estridentes das mulheres fechadas no interior, perguntou a si próprio como iria transportar até Shishan tudo o que os homens tinham pilhado nas casas dos cristãos.

 

Reinava a calma na missão dos Airton. Um estreito quarto de lua apareceu no céu por breves instantes quando duas nuvens se separavam, e uma luz pálida iluminou o quarto ao fundo do corredor, onde uma rapariga se achava amarrada à cama. O fedor era intenso no quarto. De um dos lados da cabeceira da cama achava-se um balde repleto de vomitado. A irmã Caterina levá-lo-ia dali e trocá-lo-ia por outro, mas de momento enfiava num cesto uma trouxa feita com lençóis sujos de diarreia que acabara de tirar da cama. Helen estava nua; todas as suas camisas de dormir estavam sujas e ainda faltava limpar uma mancha na sua coxa. O médico dormitava numa poltrona. O cansaço impedia-o de ouvir os rugidos e grunhidos animalescos que a paciente emitia, por entre os dentes cerrados, havia cinco horas, enquanto se retorcia, embora estivesse amarrada. A luz do luar brilhou-lhe nos olhos, que, abertos e inexpressivos, pareciam fitar o nada - a menos que contempiassem os sonhos e os delírios interiores que faziam tremer violentamente todo o seu corpo e a torturavam. Por instantes, um clarão de lucidez pareceu perpassar pelos seus olhos; mas, logo depois, estes fecharam-se, quando as dores insuportáveis nos braços e pernas a fizeram arquear todo o corpo para cima. Quando Caterina via aquilo, suspendia o que estava a fazer e segurava na cabeça de Helen, virando-a para o balde, porque àquelas crises seguiam-se inevitavelmente os vómitos. Era uma espécie de rotina, à qual o médico, a freira e Nellie - quando tinha tempo - se haviam habituado de há uma noite e um dia para cá. Quanto ao espírito da rapariga, pairando algures entre o sonho e a insónia, lutava para compreender o que lhe acontecia e para derrotar o ódio que sentia pelos seus carrascos e, mais ainda, por si própria.

 

Dois dias depois, Frank Delamere estava num restaurante com os seus amigos mercadores, Lu Jincai e Jin Shangui. Desde o misterioso desaparecimento do velho Tang Dexin e os rumores de que seria membro de uma sociedade secreta e sócio do Homem de Ferro Wang, Lu deixara de suspeitar de Jin, e voltara a estabelecer-se entre eles alguma da antiga intimidade. A comida, como de costume, era deliciosa, mas Frank apercebeu-se de que os dois homens se encontravam tensos. Fizeram-lhe várias perguntas acerca da conversa que ele e o médico tinham tido com o mandarim, naquela manhã.

 

- Bom, foi tudo um pouco estranho - disse Frank, servindo-se de mais um copo de vinho de arroz quente. O Airton certamente terá pensado o mesmo, e ele assistiu a muito mais audiências do que eu. Por norma, está habituado a ver o mandarim a sós, nos seus aposentos privados, mas desta vez conduziram-nos à sala de audiências principal, um lugar algo intimidante. Vagueavam por ali muitas personagens pouco recomendáveis, que o doutor nunca vira antes. Homens muito diferentes dos funcionários elegantes que é costume ver num yamen. Foi tudo muito estranho. Jin e Lu entreolharam-se.

 

- Pode dizer-nos quem eram? - perguntou calmamente Lu.

 

- Não faço a mais pequena ideia. Fulanos de aspecto rude, um ou dois com peles de carneiro às costas, encostados à parede como se estivessem em casa. Imaginem que um deles estava a palitar os dentes com a ponta da faca! E os guardas ignoravam-no, pura e simplesmente!

 

- O mandarim não disse nada? - quis saber Jin. - Em geral, dá muita importância à etiqueta.

 

- Não, e isso é que foi ainda mais esquisito. Quase não disse palavra. Limitou-se a permanecer sentado no estrado, com ar absorto, como se desejasse estar longe dali, como se tudo aquilo fosse um grande frete para ele.

 

- Então, quem conduziu a audiência?

 

- O camareiro de aspecto sinistro. Foi ele quem falou durante todo o tempo. Um sujeito repugnante. também não completamente bom da cabeça, na minha opinião. Parecia obcecado pelos cristãos. Não parou de se queixar de que perturbam a paz e planeiam todo o tipo de actividades atrozes.

 

Jin e Lu entreolharam-se mais uma vez.

 

- Como é evidente, ainda estavam algo enervados por causa do espectáculo do velho Millward. Não é de admirar. O seu comportamento foi inadmissível, mesmo para um excêntrico como ele. Nós dissemos que o Millward é doido, que nada temos em comum com ele e que a sociedade à qual ele pertence vai despachá-lo, mas o camareiro não pareceu convencido. Pelo modo como falou com o Airton, poderia pensar-se que fora o doutor que planeara tudo e dera ordens ao Millward. O Airton aceitou as acusações veladas com uma grande calma. Repetiu pacientemente qual era a nossa posição, mas pude ver que estava contrariado. Especialmente por o mandarim não intervir. Quem não teria ficado contrariado, no lugar do Airton?

 

Esvaziou o copo, que voltou a encher.

 

- Falaram-lhe do ataque à nossa caravana? - perguntou Lu. - E do ferimento de Mister Cabot?

 

- Sim, no fim, quando pudemos usar da palavra, depois das queixas intermináveis do camareiro acerca dos cristãos. Não tenho que me queixar da reacção deles. Disseram o que se esperava. Grande pesar geral, grande embaraço por hóspedes no seu país terem sido atacados e feridos. Prometeram capturar os bandidos e fizeram-nos algumas perguntas: quando e como tudo acontecera e quantos eram os atacantes. Pediram-nos para transmitirmos as nossas felicitações ao jovem Tom pela sua coragem, e de lhe dizer que esperava que ele se restabelecesse depressa. As patranhas do costume. Um pouco superficial, em meu entender, e não gostei dos sorrisos dos vadios que se achavam por ali... Mas prometeram investigar o caso e pensar numa forma de indemnização, de acordo com o que vier a ser apurado. Não se podia pedir muito mais.

 

- Falaram-lhes das vossas armas e acerca dos estranhos uniformes? - perguntou Lu.

 

- Também foi tudo muito estranho, no que toca a esse ponto. Eles não se mostraram muito interessados. A ideia fê-los rir. Afirmaram que já tinham ouvido esse género de histórias antes e que um tribunal tão eminente como o yamen não iria levá-las em conta. O Airton insistiu, explicando que os nossos atacantes usavam turbantes amarelos e revelavam uma grande disciplina, mas o camareiro respondeu-lhe, com voz rude, na minha opinião, que ele estava a ser demasiado crédulo. Porque não teria o Homem de Ferro Wang ou qualquer outro bandido mandado os seus homens usar aquele tipo de vestimenta? Sabendo que, dessa forma, as pessoas teriam ainda mais medo? Agora que penso nisso, suponho que é possível - concluiu Frank, em tom desalentado e servindo-se de mais vinho de arroz. À sua maneira, aquele camareiro é esperto... Os vadios que se achavam espalhados pela sala pareceram pensar o mesmo. Riram como se o camareiro tivesse dito algo engraçado, apesar de eu não ver qual era a graça.

 

- Não está a beber de mais, De Falang Xiansheng? exclamou Jin, enquanto Frank chamava o criado e pedia outro jarro de vinho de arroz.

 

- Sim, penso que sim. E sabem porquê? Porque preciso de me embriagar, mesmo ao de leve, depois destes dias que passei fechado na missão. O Airton é bom homem, mas raciona o seu precioso uísque como se fosse o vinho da taça da comunhão. Isto para já não falar da minha preocupação pelo velho Tom, que, a propósito, está a recuperar bem, e pela minha filha, que se encontra acamada com uma doença qualquer, da qual ninguém parece querer falar-me. Creiam-me, não tem sido fácil.

 

- Lamento saber que a sua filha está doente - murmurou Lu, depois de olhar novamente para Jin. - De que sofre ela?

 

- Bem, eles dizem que é uma gripe, mas o mais esquisito é todo o secretismo acerca do seu estado. Talvez seja uma coisa de mulheres e eles se sintam envergonhados de falar sobre o assunto. A Helen não se mostrou muito comunicativa, da única vez que pude vê-la. Ela mudou muito, nestes últimos meses. E a Nellie revela-se tão protectora para com ela como uma mãe-galinha, enquanto o Airton vai vê-la a toda a hora e todo o instante, com uma bandeja de seringas. Sabem, estou consumido de preocupação pela minha filha... - O rosto de Frank tornara-se vermelho e os seus olhos ficaram húmidos.

 

- Ela está com muito mau aspecto.

 

- Os Airton falaram-lhe do outro inglês, o Ma Na Si Xiansheng? - inquiriu prudentemente Lu.

 

- Não. Mas porquê? O que tem ele a ver com o assunto? - exclamou Frank, com alguma brusquidão.

 

- Talvez nada, De Falang. Mas desde o ataque do outro louco ao Palácio dos Prazeres Celestiais, correm muitos rumores pela cidade. O Jin e eu estivemos lá ontem à noite, e algumas raparigas falaram com uma certa liberdade. Contaram-nos histórias estranhas acerca do Ma Na Si e de uma... uma mulher estrangeira que ia visitá-lo regularmente ao seu pavilhão.

 

O rosto de Frank conseguiu a invulgar proeza de passar do vermelho ao branco, para se tornar de seguida novamente vermelho.

 

- Não compreendo o que está a querer insinuar, caro amigo - sibilou entre dentes.

 

- Suplico-lhe, Falang... Isto é muito difícil para mim, e o Jin e eu conversámos durante muito tempo antes de decidirmos contar-lhe. Faço-o apenas porque podem estar vidas em jogo.

 

- Continue - pediu Frank, em tom frio.

 

Encheu a sua taça com vinho, que bebeu de um gole, e voltou a enchê-la.

 

- De Falang Xiansheng - começou gentilmente Jin -, talvez tenha ouvido dizer que durante o ataque dos cristãos ao Palácio dos Prazeres Celestiais uma das raparigas fugiu?

 

- Não, não ouvi nada, e ficar-vos-ia reconhecido se fossem directamente ao assunto.

 

Jin prosseguiu, não se deixando desencorajar:

 

- Essa rapariga era Fan Yimei. Talvez se lembre dela. Era muito chegada a uma sua antiga companheira, Ping.

 

- Sim, talvez me lembre dela. E depois?

 

- Fan Yimei usufruía de uma situação particular naquele estabelecimento. Era a amante permanente do major Lin Fubo, que comanda a milícia do mandarim. O major Lin, que regressou ontem do campo, está furioso com a perda de Fan Yimei, quer vingar-se do responsável, seja ele quem for.

 

- Faz muito bem, mas não continuo perceber aonde querem chegar.

 

- Correm também outros rumores, De Falang - retomou Lu. - Diz-se que Fan Yimei não foi a única a evadir-se durante a confusão. Diz-se que os Liu mantinham prisioneiro num dos andares superiores um rapaz estrangeiro, talvez o filho do pregador Millward, e que o estavam a prostituir. Ao que parece, ele também terá desaparecido.

 

- Mas que disparate! - explodiu Frank. - Toda a gente sabe que o rapaz foi morto por bandidos e que os seus assassinos foram executados. E o que tem isso tudo a ver com a minha filha?

 

- Se é verdade, De Falang, a sua filha pode correr perigo, porque muitos pensam que foi o inglês, o Ma Na Si, que ajudou a fugir tanto a Fan Yimei como o rapaz.

 

- Lá estão vocês outra vez! Fariam melhor se me dissessem as coisas directamente. O que se passou entre o Ma Na Si e a minha Helen?

 

- Se é verdade que a Mãe Liu e o filho tinham lá aquele rapaz, eles tudo farão para destruir as provas e eliminar quem possa acusá-los. Porque, com testemunhas, serão declarados culpados de sequestro e de coisas piores. É mais do que certo que irão desconfiar do Ma Na Si e de todos os que lhe são próximos. Isso inclui a sua filha, que visitou o Ma Na Si... Lamento muito, caro amigo, mas é um facto inegável. Eu e o Jin procedemos a uma investigação minuciosa. Receio até que ela possa estar grávida do Ma Na Si. Infelizmente, o que acaba de nos dizer acerca da sua doença parece confirmá-lo.

 

Jin e Lu olharam para Frank afectuosamente. O seu rosto estava distorcido pela angústia e não conseguia encontrar palavras.

 

- O Ren Ren regressou a Shishan esta manhã, e já sabe de tudo. Acredite em mim, De Falang, aquele homem é perigoso. Não recuará perante nada.

 

- Porque haveria eu de ter medo de um miserável rapaz de bordel como o Ren Ren?

 

- Porque ele é mais do que isso, agora. Ouvi dizer que é poderoso na sociedade do Bastão Negro. Correm também rumores de que também dirige um grupo boxer. Normalmente, recorrer às autoridades poderia servir para alguma coisa, mas a situação piorou, como pôde constatar esta manhã na sua visita ao mandarim. Não lhe parece estranho que ele não tenha falado? E que houvesse pessoas estranhas no yamen? Receio que estejamos a viver tempos muito conturbados.

 

- Queríamos avisá-lo, De Falang - acrescentou Jin. Ainda está a tempo de sair de Shishan, levando a sua filha e Mister Cabot. Talvez devesse também avisar os outros estrangeiros. Somos vossos amigos e aconselhamos-vos vivamente a fazê-lo. Os Boxers são uma ameaça real, independentemente do que as pessoas dizem, e vão chegar a Shishan em breve. Se for esse o caso, o mandato do mandarim cessará. Qualquer estrangeiro, e todo e qualquer amigo de um estrangeiro, correrá perigo de morte. Além do mais, o Ren Ren tem agora um motivo pessoal para se livrar de si e da sua família. Se os Boxers chegarem a Shishan, ele e todos os da sua laia serão todo-poderosos.

 

- Não tenho medo dele - rosnou Frank. Lu olhou para Jin, que acenou com a cabeça.

 

- Pois devia, meu amigo. Ele já assassinou uma pessoa de quem você gostava muito.

 

- O que quer dizer com isso?

 

- Corta-me o coração por ter de lho revelar, e esperava poupá-lo a tamanho desgosto, mas é quase certo que ele assassinou a sua companheira, Shen Ping.

 

Frank olhou-o fixamente.

 

- Ela não voltou para o campo como eu lhe disse, De Falang. O Ren Ren espancou-a e torturou-a por ela haver ousado apaixonar-se por si. Mais tarde, ela enforcou-se, depois de a Mãe Liu o ter convencido de que ela lhe fora infiel. Provavelmente, o próprio Ren Ren colocou no pescoço da rapariga o nó da corda.

 

Frank tentou dizer algo, mas faltaram-lhe as palavras. As lágrimas escorriam-lhe pelas faces. Enxugou o rosto com um guardanapo, fungou, levantou-se, voltou a sentar-se, gemeu um som revelador do mais terrível desespero. Por fim dirigiu-se cambaleante para a porta.

 

Lu e Jin tentaram detê-lo, mas ele afastou-os.

 

- Desculpem-me, - murmurou entre soluços. - Sinto-me um pouco indisposto.

 

Lu e Jin voltaram para a mesa. Olharam um para o outro, em silêncio.

 

Ao fim de uma longa pausa, Lu Jincai comentou:

 

- O De Falang esqueceu-se do chapéu.

 

- Pobre De Falang - replicou Jin.

 

- Pobres de nós - rematou Lu Jincai, após outro longo silêncio.

 

Ao sair do restaurante, Frank não fazia ideia do que ia fazer nem para onde ia. Com passos incertos, mergulhou no barulho, na agitação e no cheiro intoxicante da rua principal. Um muleteiro que conduzia uma pesada carroça gritou-lhe que se afastasse e ele cambaleou para trás, pisando uma poça com urina de cavalo e bostas de animais, manchando os sapatos pretos envernizados. Envergava ainda a casaca que usara na audiência no yamen, essa manhã. Sentiu o sol escaldante incidir sobre a cabeça destapada e teve de semicerrar os olhos perante a resplandecente luz branca, a fim de discernir o que o rodeava. Não se tinha apercebido de quanto bebera ou de quanto se sentia desorientado.

 

Alguns transeuntes fitavam com ar carrancudo, enquanto outros sorriam com curiosidade, observando aquele estrangeiro de rosto avermelhado caminhando aos tropeções pela rua.

 

Mal tinha consciência de onde estava e isso pouco lhe importava. Na sua mente, havia apenas uma imagem: o rosto risonho, emoldurado por almofadas de seda, de uma rapariga em quem ele pouco pensara durante os últimos meses. Agora, porém, os olhos alegres piscavam-lhe ironicamente, por cima das faces rosadas que lhe eram tão familiares, enquanto a boca, com os seus dentes brancos, se revelava aberta para emitir o que ele sabia ser um comentário jocoso.

 

A recordação de Shen Ping trespassou-lhe o coração. O sangue pulsou-lhe violentamente nas veias e quase se sentiu sufocado pelos remorsos e pelo desgosto. Depois, outras recordações vieram-lhe à mente, tão vivas como cenas a desenrolar-se à sua frente num cinematógrafo: a sua conversa com Mãe Liu, o rosto dela com um sorriso severo, torcendo o colar de pérolas nas mãos, despedaçando-lhe o coração com a impiedosa descrição da traição de Shen Ping; as suas palavras cheias de maldade, que ele sabia agora serem tão falsas que só um homem ingénuo e estúpido como ele podia ter acreditado nelas; o sorriso satisfeito de Ren Ren, quando ele saíra da sala, desesperado; a longa noite passada em frente da sua secretária, com uma garrafa de uísque, papel e tinteiro, a escrever a cruel carta de rejeição, que havia selado o destino da sua querida Shen Ping. As palavras de Lu Jincai trespassaram-lhe a memória, como uma acusação: ”... haver ousado apaixonar-se por si.... enforcou-se depois de a Mãe Liu o ter convencido de que ela lhe fora infiel”.

 

Frank avançava, sem rumo, pela rua principal, indiferente às pessoas que tinham de se afastar do seu caminho. Uma outra imagem assombrava-o e dominava-o: o mesmo rosto da sua querida Shen Ping, mas agora esvaído de sangue e de cor, pendendo de uma corda numa divisão sombria, com os olhos vítreos, a censurá-lo por ter sido tão cego.

 

Inconscientemente, saiu da rua principal para enfiar por um beco deserto. O fedor dos esgotos a céu aberto, acrescentado ao efeito do álcool, provocou-lhe náuseas e vomitou para uma sarjeta. De joelhos, com as duas mãos apoiadas na imundície, começou a soluçar; passado pouco tempo, todo o seu pesado corpo era sacudido por uma dor desesperada.

 

Lembrou-se então das outras palavras de Lu no restaurante: ”Ren Ren espancou-a e torturou-a... Provavelmente, o próprio Ren Ren colocou no pescoço da rapariga o nó da corda.” E, apesar de não se sentir menos culpado pela sua própria traição, a fúria apoderou-se de todo o seu ser. As suas ideias eram mais claras, agora que vomitara, e compreendia o significado daquelas palavras em todo o seu horror. Espancou-a e torturou-a. A sua Shen Ping torturada? Espancada? Agora, na sua mente, havia a imagem de um rosto zombeteiro, com marcas de varíola, que o fitava ironicamente, enquanto mastigava uma semente de melão e lhe cuspia para os pés.

 

- Ren Ren... - sibilou, ainda ajoelhado perto da sarjeta. E, em vez de ver o seu próprio reflexo, viu o reflexo do odioso Ren Ren na lama imunda. - Vou matar-te - disse ao rosto de sorriso sardónico -, depois de te arrancar os braços e as pernas.

 

Pôs-se de pé, cambaleante, até recuperar o equilíbrio.

 

- Vou retalhar-te em pedaços! - rugiu na ruela deserta. Ainda estava desorientado e não sabia ao certo onde se achava, mas o irresistível impulso de ir arrombar os portões do Palácio dos Prazeres Celestiais e torcer o pescoço ao seu inimigo empurrou-o para a frente. Com largas passadas, saiu da ruela para entrar numa outra, também quase deserta. Num canto da sua mente, lembrou-se de que não devia apenas vingar-se de Ren Ren; também havia Manners, e a forma escandalosa como tratara a sua filha.

 

- Um de cada vez. Um de cada vez - resmungou, na sua fúria, ainda com a imagem hedionda de Ren Ren na mente.

 

Teve a vaga noção de que um pequeno grupo de pessoas bloqueava o fundo da ruela, onde um indefinido pailou marcava um cruzamento. Eram homens que usavam os trajos azuis dos artesãos e pareciam estar a assistir a um espectáculo, muito embora Frank não conseguisse ver de que se tratava.

 

Abriu caminho dando cotoveladas por entre o círculo formado pelos espectadores; foi quando deu consigo em frente de um jovem atlético, que fazia uma demonstração de artes marciais. Algo no seu fato - o turbante amarelo, a túnica de pele de tigre, o cinto vermelho - era-lhe vagamente familiar, mas Frank não queria pensar nisso. Tudo o que queria era avançar e acabar, quanto antes, com Ren Ren. No entanto, o jovem, ao ver aquele estrangeiro de rosto avermelhado irromper no seu círculo, parou a demonstração, colocou as mãos nas ancas e barrou o caminho a Frank.

 

Este, impaciente, tentou contorná-lo pela direita; o jovem deu um passo para o lado, a fim de o impedir de passar. Frank tentou contorná-lo pela esquerda, mas o jovem voltou a bloquear-lhe a passagem.

 

Ouviu risos e alguns insultos, vindos do círculo formado pelos artesãos, enquanto o jovem continuava a fitá-lo.

 

Frank ergueu o que julgou ser a sua bengala para afastar o rapaz. Só depois se apercebeu de que não a levara consigo. Seguiram-se mais risos, enquanto ele gesticulava. O jovem não desviou o olhar.

 

- Já chega! - rosnou Frank. - Afaste-se do meu caminho!

 

O outro não se mexeu.

 

Desta vez, Frank tentou desferir-lhe um murro no rosto. O jovem esquivou-se facilmente, evitando o murro, enquanto Frank, levado pelo súbito ímpeto, perdeu o equilíbrio. Os espectadores assobiaram e vaiaram.

 

Com um rugido de raiva, Frank atirou-se para a frente, estendendo os braços para agarrar o jovem e o tirar do seu caminho. O outro recuou rapidamente, pondo-se fora do seu alcance e enfiou uma mão nas pregas da túnica, de onde tirou uma machadinha, cujo cabo era ornado por uma borla. Com um gesto gracioso, lançou-a ao ar, apanhou-a e depois enterrou-a no peito de Frank.

 

Um grande silêncio espalhou-se pela assistência. Frank baixou os olhos para a sua camisa branca e pareceu examinar o sangue que se espalhava lentamente à superfície. Talvez tivesse reparado que era da mesma cor da borla carmesim no cabo da machadinha. Com dificuldade, ergueu a mão para sentir a arma, colada a ele de forma tão incongruente. A borla deslizou por entre os seus dedos inertes, o sangue jorrou-lhe pela boca e caiu para a frente.

 

Durante breves momentos, o grupo de espectadores manteve-se imóvel, como que fascinado pelo corpo estendido no chão. Então, um a um, desfizeram o círculo e afastaram-se rapidamente. O boxer ainda se deixou ficar mais alguns instantes, perguntando a si próprio se devia levantar o corpo para reaver a machadinha. Por fim, desistiu da ideia, pegou no seu saco, que deixara no chão, e correu, com passos ágeis e ligeiros, na direcção do pailou, até desaparecer numa das ruas que saíam do cruzamento.

 

Os olhos injectados de sangue de Frank fitavam furiosos o fundo da rua. Passado algum tempo, moscas começaram a voar em volta da substância pegajosa e coagulada que lhe havia manchado o bigode e o queixo e que alastrava agora pela areia.

 

OS ESTRANGEIROS AGACHAM-SE POR DETRÁS DAS PAREDES DAS SUAS CASAS, MAS NÓS NÃO TEMOS MEDO

 

Herr Fischer, sentado em frente da mesa com os mapas, pensava no que devia ter dito durante a exasperante conversa com Manners nessa manhã. A sua opinião acerca do ”maldito respeitável” era tão negra quanto o conteúdo da grande caneca de café que mexia com uma colher.

 

Mal dormira na noite anterior. Durante todo o dia, aguardara com crescente inquietação o comboio de Tientsin. Às duas da madrugada, desistira da vigília e regressara à sua tenda. Tirara as botas e enfiara a camisa de dormir às riscas e o gorro, mas mal os seus roncos haviam começado a estremecer os pêlos da barba e a vacilar a chama da vela na mesa-de-cabeceira, fora acordado pelo chiar do vapor e o assobio da locomotiva ao entrar na via de resguardo. Consultara o relógio: quinze horas e vinte e dois minutos de atraso.

 

Deparara com um Bowers exausto, cujas palavras eram incoerentes. Única explicação para aquele atraso: um resmungar confuso acerca de obstáculos na via e de grupos de camponeses enfurecidos atirando pedras. No estado em que Bowers se encontrava, não serviria de nada fazer-lhe mais perguntas. Fischer mandara-o recolher-se aos seus aposentos, onde ainda dormia. Apesar de tudo, o profissionalismo do maquinista deixara-o impressionado: não obstante o cansaço, Bowers passara vinte minutos a manobrar a locomotiva e o furgão dos guardas na placa circular, reposicionando ambos nas extremidades opostas do comboio, por forma a que, quando partisse para Tientsin no dia seguinte, a locomotiva puxasse majestosamente as carruagens pela frente, deixando o meticuloso Fischer orgulhoso.

 

O comboio transportara alguns passageiros. Os chineses que vinham a bordo haviam recolhido as bagagens e desaparecido na noite. O missionário americano, Burton Fielding, único passageiro da primeira classe, não se mostrara muito comu nicativo; partira de imediato para a casa dos Airton, na carroça puxada por uma mula que esperara por ele todo o dia.

 

Fischer e Charlie haviam inspeccionado a locomotiva e as carruagens à luz de uma lanterna, fechando as portas, fixando bem o travão e desatrelando a locomotiva, antes de apagar o lume na caldeira. O laranja-pálido anunciador da alvorada iluminava já o céu quando deram por terminadas as diferentes tarefas.

 

Fora ao regressar aos seus aposentos, para fazer a barba e tomar um banho, que vira Manners sair da sua tenda, seguido por um rapaz europeu, com o cabelo esgadelhado, e por uma mulher chinesa, com um elegante vestido azul. Herr Fischer não era estúpido; orgulhava-se do seu poder de observação e de análise, atributos indispensáveis para um engenheiro. E também julgava ser suficientemente objectivo para encarar os factos de frente. Bastara-lhe um simples olhar para avaliar a situação, e um exame mais aprofundado apenas confirmara a hipótese. A prova conclusiva era fornecida pelo rosto pintado e o penteado elaborado e com pequenos adornos da mulher. A sua profissão não teria sido mais explícita se fosse referida num cartaz com o seu retrato. Quanto ao rapaz, usava um pijama de seda bordada e tinha os mesmos traços de maquilhagem em volta dos olhos! Fischer começara por se perguntar como pudera um rapaz daqueles ter chegado a Shishan; logo de seguida, lembrara-se do que Charlie lhe contara certo dia a propósito do tráfico de seres humanos em Xangai e no Sul da China. Haveria alguma vilania, por muito improvável ou engenhosa, de que Manners não fosse capaz? Herr Fischer adoptara aquilo que esperava ser uma expressão magistral, ao jeito de Catão ou de Cícero. Endireitara os ombros para preparar a sua triste mas severa reprimenda. Mas, antes que pudesse pronunciar palavra, Manners, longe de ostentar o menor remorso, culpa ou embaraço por haver sido descoberto, limitara-se a tirar o chapéu.

 

- Bom dia, Fischer - saudara-o com todo o descaramento. - Está um belo dia para um passeio, não acha? Vejo que o comboio já chegou. Ainda bem. Tenho passageiros para si.

 

O torrencial e muito digno discurso que Fischer preparara desfez-se de imediato. Apenas sobrara uma série de queixas e de reprimendas. Como se atrevia Mr. Manners a adoptar um tom tão insolente? Não tinha vergonha? Não se ralava com a reputação da sua família? Exigia-lhe uma explicação para aquele último ultraje! Sabia que o inglês era um depravado, mas nunca, até ali, se havia atrevido a levar as suas amantes para o acampamento. Para não falar do rapaz maquilhado, um... Ganimedes! Era óbvio que os três haviam passado a noite juntos na tenda, violando a moral, uma conduta civilizada e as regras da companhia de caminho-de-ferro. Até mesmo Manners não podia negá-lo. Herr Fischer apanhara-o in flagrante delito...

 

- Mas que imaginação tão libertina, Herr Fischer - replicara o homem com frieza. - Se observasse mais de perto, veria que há duas camas no chão, no exterior da tenda. Ò Hiram passou a noite numa e eu noutra. E muito bem, devo acrescentar. Creio que deve um pedido de desculpa aos nossos convidados, meu velho.

 

Então, atrevera-se a apresentar aquelas criaturas - quase tão cerimoniosamente como se estivessem numa recepção como sendo suas amigas: Miss Fan Yimei, que se preparava para uma viagem até Tientsin, e o seu companheiro, o menino Hiram (não referira o apelido de família).

 

- Era minha intenção explicar-lhe tudo isto numa altura mais apropriada - prosseguira, não se deixando perturbar pela expressão reprovadora de Herr Fischer. - Estou certo de que, assim que ficar a par das circunstâncias, compreenderá que é necessário grande discrição, e quererá ajudá-los tanto como eu.

 

- Discrição, Mister Manners? - Na sua ira, Herr Fischer tentara adoptar um tom fortemente irónico. - Para os seus amantes? Talvez queira um compartimento privado para as suas diversões? Munido de cortinados e de uma cama dupla?

 

- Não me parece que seja o momento e o local adequado para falarmos. Parece cansado, Herr Fischer, e prometi aos meus amigos que os levava a dar um passeio a cavalo. Irei vê-lo mais tarde, ainda hoje, quando já tiver recobrado a calma.

 

Aquele último comentário fizera Herr Fischer perder definitivamente a paciência.

 

- Sim, falaremos mais tarde, respeitável Mister Manners! - gritara. - Desta vez, foi longe de mais! Não se trata apenas de ter trazido essas pessoas de má reputação para o acampamento! Desde que chegou, troçou da minha autoridade e tratou a companhia que o emprega com patente desprezo. Mais grave, nunca trabalhou. O senhor não passa aqui - e pensara na palavra adequada para expressar o desdém que sentia - de um passageiro, Mister Manners. Vou escrever para a direcção da companhia. Está despedido, Mister Manners! Despeço-o. Ouviu? Despeço-o aqui e agora!

 

- Nesse caso, não porá qualquer objecção a que eu leve os meus amigos a dar um passeio, pois não?

 

O homem sorrira-lhe e afastara-se, com passos calmos, em direcção aos estábulos. Quanto às duas criaturas que o acompanhavam, haviam-lhe lançado olhares nervosos ao passar por ele.

 

Ia despedir Manners, decidiu Fischer, enquanto mexia o café. Pouco lhe importava quem protegia o inglês. Levaria o caso até às mais altas instâncias, mesmo se a consequência fosse a sua própria demissão. Aquilo era intolerável! O homem era seu subordinado e, no entanto, não sabia o que ele fazia durante as longas ausências na cidade. De uma coisa tinha a certeza: o que quer que Manners andasse a maquinar com o mandarim não beneficiaria a companhia do caminho-de-ferro. Fischer duvidava de que houvesse um tal relacionamento entre os dois homens; suspeitava antes que Manners passava o tempo naquele infame bordel onde, certa vez, tivera a ousadia de levar o pobre Charlie.

 

Por que motivo a direcção da companhia enviara Manners para Shishan era algo que o ultrapassava. Desconfiava que se tratara de uma troca de favores que envolvia uma potência oriental. Fosse qual fosse a razão, era lamentável que ele, Fischer, houvesse sido usado, mesmo que passivamente, naquelas maquinações. Ele, Gott sei Dank, era um simples engenheiro, com uma tarefa, um orçamento e um prazo para cumprir. Faria o seu dever, como profissional que era, e nada mais.

 

- Nada mais, de ora em diante - disse a si próprio. Não sou nenhuma alta entidade, mas sei qual é o meu dever e também tenho a minha honra....

 

Bebeu um grande gole de café que lhe queimou a língua, o que nada contribuiu para o pôr de bom humor. Assim, quando Charlie entrou na tenda, Herr Fischer gritou-lhe, o que não era seu hábito, que voltasse a sair e batesse à porta, como um ser humano civilizado.

 

Charlie ignorou-o. O seu rosto não espelhava humor ou ironia, como habitualmente. O olhar fixo e os lábios crispados traíam a expressão de um homem assustado. A sua voz revelava calma, mas era visível que recorria a todas as suas reservas de sangue-frio.

 

- Tem de vir imediatamente, Fischer. operários... Temos uma greve e não consigo controlá-la.

 

Fischer pôs-se de pé, esquecendo-se por completo de Manners.

 

- Que estão eles a fazer, neste instante? - perguntou, bruscamente.

 

- Alguns atiram pedras ao comboio, enquanto outros arrancam os carris que levam à ponte.

 

- E melhor nesse sentido do que na linha que leva ao túnel e a Tientsin. Quem os lidera?

 

- O capataz, Mestre Zhang Haobin.

 

- Lao Zhang? Mas ele nunca foi um agitador! Fischer dirigiu-se para a porta, mas, mudando de ideias, regressou ao gabinete, tirou um revólver de uma gaveta e enfiou-o no cinto. Também pegou numa caçadeira e em alguns cartuchos que se encontravam numa prateleira.

 

- Sabe servir-se disto? - perguntou a Charlie.

 

O chinês meneou a cabeça com uma expressão de repugnância.

 

- Nesse caso, leve-a para a tenda de Bowers. Acorde-o, se ele estiver a dormir, e diga-lhe que venha ter comigo imediatamente. Espero por si aqui. Despache-se.

 

Charlie obedeceu. Enquanto esperava que ele voltasse, Herr Fischer percorreu a tenda com olhar atento. Apanhou alguns papéis do chão e marcou a combinação que abria o grande cofre-forte de metal. Enfiou ali os papéis e tirou um maço de dólares americanos, que meteu no bolso. Depois, estendeu a mão para o livro preto onde mantinha meticulosamente as contas da obra e enfiou-o no bolso interior do seu casaco, não sem fazer um rasgão no forro. Por fim, fechou o cofre-forte, pegou numa outra espingarda e numa caixa de cartuchos e avançou para a porta com passos decididos.

 

Foi o silêncio que mais o espantou. Era um silêncio ameaçador. Não se escutava nenhum dos sons comuns do acampamento. Do local onde se encontrava, tinha vista para a via-férrea e a ponte. Uma multidão de cules e de carregadores apressava-se, sem aparentar qualquer objectivo determinado, pelo menos que ele pudesse identificar. Apercebeu-se então de que a maior parte olhava para os operários do caminho-de-ferro que, sob a direcção de Zhang Haobin, batiam com barras de metal nas travessas e nos carris para os arrancar. O tinir de metal contra metal ressoava no ar calmo da manhã, mas não se ouvia nenhum outro som, nem mesmo um grito. Muito menos o clamor de uma multidão de operários em cólera, manifestando as suas queixas e reivindicações. Por detrás das tendas, à direita, avistava-se a chaminé e a cúpula de vapor da locomotiva, e dali também vinha um ruído de pedras a bater no metal - mas nenhuma voz humana enfurecida.

 

Perplexo, Fischer apressou-se a carregar o revólver e a espingarda. Ao fim de alguns minutos, Charlie regressou com Bowers; este parecia estranhamente formal, com o seu casaco azul, com botões de latão, e o seu boné alto de pala. Com a espingarda ao ombro, a postura muito direita, a barba negra e o rosto grave fazia lembrar um agente da polícia, e Fischer pensou que gostaria de ter um ou dois agentes à sua disposição naquele momento.

 

- Dormiu bem, Bowers?

 

- Razoavelmente - respondeu o outro, com expressão sombria.

 

- Então, está preparado para se juntar a mim e termos uma pequena conversa com aqueles vândalos?

 

- Ficarei feliz se pudermos impedi-los de danificar a minha locomotiva.

 

- Óptimo. Vamos dar uma volta juntos, daí Nós seguimo-lo, Charlie.

 

Desceram lentamente a pequena colina. Charlie olhou nervosamente para um lado e para o outro.

 

- Não está ninguém connosco? - perguntou Fischer a Charlie, em voz baixa.

 

- Desta vez, não. Estão todos envolvidos nisto, ou então foram pressionados...

 

- Compreendo. E quem os pressionou?

 

- Não sei. Até hoje, sempre que tínhamos problemas, eu conseguia falar com eles. Ou pelo menos ouvir o que tinham para me dizer. Desta vez, quando tentei aproximar-me, atiraram-me pedras.

 

Tinham alcançado as últimas fileiras da multidão, que se afastava para os deixar passar. Por entre os rostos que os rodeavam, Herr Fischer distinguiu algumas expressões de franca hostilidade. Apercebeu-se de risos, de sobrolhos franzidos, de murmúrios. Alguns dos operários mais novos, com os troncos musculosos orgulhosamente nus, endireitavam os ombros de forma ameaçadora. Mas era uma minoria. A maior parte dos rostos tisnados pelo sol fitava-os, alguns com expressão hostil, mas em geral sobretudo com curiosidade. Houve vários sorrisos e acenos de cabeça; Fischer deu consigo a corresponder a dois veteranos que lhe sorriram cordialmente.

 

”Deveras curioso”, pensou. Não restavam dúvidas de que se tratava de uma greve e era preocupante, sobretudo se abrangesse todos os operários - no entanto, pessoalmente, não se sentia ameaçado. Uma atmosfera de excitação pairava no ar, mas nada parecido com o azedume associado às greves. Não obstante, tinha consciência da enorme diferença numérica, se a situação se deteriorasse.

 

- Onde estão os homens de Mister Bowers? - perguntou a Charlie. - Os maquinistas e os empregados que vieram no comboio ontem à noite?

 

- Estão fechados na sua tenda. Não quiseram sair, mesmo quando Mister Bowers os ameaçou.

 

- Bowers? É verdade?

 

- Sim - foi a curta resposta.

 

- Bom, ao que tudo indica, cavalheiros, estamos por nossa conta.

 

Falava num tom jovial mas tinha consciência de um frio no estômago. Passou mentalmente em revista as orações que conhecia, perguntando a si próprio qual seria a mais apropriada naquelas circunstâncias.

 

Os últimos homens afastaram-se para os deixarem passar, e deram de caras com o capataz, um homem de rabicho grisalho, com uma barba de vários dias, traços honestos e uma ruga melancólica a vincar-lhe a testa. Enquanto subiam pela encosta, os operários que haviam começado a arrancar os carris pararam, com os pés-de-cabra no ar, e lançaram olhares interrogadores a Zhang Haobin.

 

- Muito bem, rapazes - disse o capataz na sua voz triste -, descansem um bocado.

 

Depois virou-se para Herr Fischer e esperou pacientemente que o alemão lhe dirigisse a palavra.

 

- Mister Zhang - começou educadamente Fischer. Viemos interromper o seu trabalho.

 

Charlie traduziu.

 

- Não tem importância - resmungou Zhang.

 

- Posso perguntar por que razão estão a destruir o nosso belo caminho-de-ferro? O senhor e outros homens trabalharam com orgulho e tenacidade durante vários anos...

 

Zhang baixou a cabeça, contrafeito, mas, quando voltou a erguer os olhos, cravou-os em Herr Fischer. Murmurou uma primeira frase, entre dentes; depois ganhou confiança e ergueu o tom de voz, para que todos os operários pudessem ouvi-lo.

 

- Ele diz que é verdade, que trabalharam muito, mas isso foi antes de saberem que os tinham enganado, e que era um erro construir esta linha para os estrangeiros e os traidores traduziu Charlie, que falava num tom frio; a ira havia dissipado o seu nervosismo, e tinha uma mancha avermelhada em cada face. - Diz que ele e os seus homens não têm nada contra o senhor, Mister Fischer, que sempre foi justo para com eles. Nem contra Mister Bowers. Mas receberam instruções dos novos poderes, como ele diz, embora eu não saiba a quem ele se refere, para destruir a magia estrangeira. Por isso, estão a destruir a linha do caminho-de-ferro.

 

- Diga-lhe que acho os seus argumentos interessantes, mas que não estou ao corrente de que haja um novo governo na China, nem de qualquer mudança na política na companhia. Diga-lhe também que estou surpreendido por ele falar do caminho-de-ferro de uma maneira tão supersticiosa.

 

Zhang escutou cautelosamente a tradução de Charlie e deu a sua resposta. O que o capataz disse enfureceu Charlie, que lhe ripostou algo. Os operários que se achavam junto de Lao Zhang começaram a trocar murmúrios, mas o capataz ergueu os braços para os acalmar. Quando voltou a falar, as suas palavras eram duras e deliberadas, o que pareceu enfurecer ainda mais Charlie. Herr Fischer tocou gentilmente no braço do seu intérprete.

 

- Seja bom rapaz, Charlie. Limite-se a traduzir o que o Lao Zhang lhe diz.

 

- Este insolente falou com patente desrespeito acerca da direcção da companhia do caminho-de-ferro e acusou Sua Excelência, o ministro Li-Hung-chang de trair o Trono do Dragão. Respondi-lhe que, se há traidores, devem ser ovos de tartaruga como ele e todos os que estão a sabotar a reconstrução do país.

 

- Foi muito corajoso da sua parte, Charlie, mas nas circunstâncias actuais sugiro que sejamos mais moderados nas nossas afirmações. Que mais disse ele?

 

- Diz que trabalha sob as ordens do próprio yamen. Mas é mentira. Ele e os seus homens têm andado a escutar os camponeses ignorantes que querem rejeitar a nossa nova civilização e destruir tudo o que há de bom no país.

 

- Charlie, fique com essa opinião para si mesmo, imploro-lhe, e cinja-se ao seu papel de intérprete. Diga a Mister Zhang que o ouvi, mas que, como director deste trecho do caminho-de-ferro, preciso de ver cada nova ordem por escrito. Se tais ordens foram entregues ao mandarim, devemos esperar que elas nos sejam apresentadas, antes de cometermos actos dos quais poderemos arrepender-nos mais tarde. Diga-lhe que ainda não houve grandes danos e que lhe peço respeitosamente que ordene aos seus homens que cessem o trabalho até a situação ser mais clara. É um pedido razoável, não acha?

 

Charlie traduziu, visivelmente contrariado, e o seu tom continuava a parecer hostil aos ouvidos de Herr Fischer. Contudo, Zhang Haobin aquiesceu com a cabeça aos diferentes pontos de Herr Fischer, e por fim voltou-se para consultar alguns dos operários que o rodeavam. Seguiu-se um aceso debate.

 

- O que estão eles a dizer?

 

- São uns traidores, é o que é - desdenha Charlie. Falam dos Boxers, dos Punhos Harmoniosos. Houve uma visita ao acampamento deles, ontem à noite. Parece que são os deuses que lhes ordenam que ajam desta forma - acrescentou, em tom sarcástico.

 

Concentrou-se novamente para escutar Zhang, que, tendo aparentemente chegado a um acordo com os seus homens, retomara a palavra.

 

- Era o que eu pensava - comentou Charlie, ao fim de algum tempo. - Pura superstição. Afirmam ter recebido ordens de uma autoridade ainda mais alta do que os poderes temporais. deuses desceram dos céus para lhes falarem. Acredita nisto? E quem pode desobedecer às ordens dos deuses? Ele vai mesmo ao ponto de afirmar que o yamen está de acordo com as instruções divinas. Parece que um desses acrobatas que se tornou um deus mostrou um documento oficial com o selo do mandarim. O que é cómico, não acha?

 

- Então, vamos ter de esperar que nos apresentem esse documento?

 

- Não. As ordens dos deuses são o suficiente para eles. Vou perguntar-lhes que deus é mais grandioso do que o nosso imperador, no Trono do Dragão, que comunica diariamente com o imperador Jade, no Céu. E também lembrar-lhes que desobedecer ao imperador é uma traição.

 

- Não, Charlie! - gritou Fischer, mas não conseguiu impedi-lo.

 

Um clamor mais hostil elevou-se da multidão e, desta vez, nem mesmo Zhang tentou acalmar os seus homens. Gritou algo que fez rir Charlie.

 

- Segundo ele diz, o imperador Jade era um dos deuses que desceram ao acampamento dos cules, ontem à noite. Ao que parece, ouviram-no falar. - Charlie rosnou então três palavras em chinês, que Fischer reconheceu:

 

- Mentiroso! Traidor! Ovo de tartaruga!

 

Fischer viu com horror um chuço descrever um círculo por cima da multidão, descer e atingir Charlie na cabeça. Quis apontar a espingarda aos agressores do assistente, mas os seus braços foram agarrados e presos atrás das costas. Ao mesmo tempo, ouviu um tiro. Bowers fora mais rápido do que ele. No entanto, também foi imobilizado por dois operários corpulentos, e Fischer vislumbrou sangue na sua barba preta. Viu, à sua frente, os pés-de-cabra subirem e descerem, subirem e descerem. Pensou estar com alucinações, porque de seguida distinguiu o rosto de Charlie, sorridente, por cima do pequeno grupo de homens que tentava assassiná-lo. A cabeça do intérprete continuou a subir, cada vez mais alto, e Fischer depressa compreendeu que o tinham decapitado e espetado a cabeça na ponta de um dos pés-de-cabra.

 

Agora, a multidão rugia de todos os lados. O silêncio fora quebrado.

 

Fischer não conseguia desviar os olhos da cabeça de Charlie, que oscilava na ponta de um pé-de-cabra e parecia ainda viva. O seu jovem ajudante parecia refeito do mau humor e os lábios moviam-se no que poderia ser um dos seus comentários irónicos acerca das superstições e das loucuras dos seus compatriotas. Só depois Fischer se deu conta de que não era a língua que se mexia mas a luz reflectida no sangue que pingava da boca aberta. Ouviu uma voz insistente junto ao seu ouvido e virou-se para ver o capataz, Zhang Haobin, que lhe falava, mas não compreendeu o que lhe dizia. Zhang acenou num gesto de melancólica frustração. Fechou os olhos como que para se lembrar de algo. De seguida, disse num inglês arrevesado:

 

- Você, Mestre. Você pertencer aqui.

 

Depois, bateu na cabeça como que para encontrar a palavra adequada:

 

- Amigos - acrescentou, indicando, primeiro, o peito de Fischer e depois o seu.

 

A primeira reacção de Fischer foi de cólera. Como se atrevia o capataz a usar da palavra? Tinha acabado de matar, ou permitira que os seus homens matassem, à sua frente, o melhor companheiro que Fischer alguma vez tivera. Soltou um grito, o rosto crispou-se de raiva e debateu-se para escapar aos braços dos homens que o agarravam; queria dilacerá-los com as suas próprias mãos e unhas... Mas lembrou-se de Bowers e da situação frágil de ambos, compreendendo que o rosto ansioso à sua frente, que lhe murmurava ”amigos”, parecia sinceramente querer ajudá-lo.

 

- Faça como entender - acabou por resmungar, deixando de se debater contra os homens que o agarravam, oprimido por uma vaga de dor e de desgosto ao pensar em Charlie. Mal se apercebeu das mãos - rudes, mas não brutais - que o fizeram atravessar a multidão, ele e Bowers, e voltar a subir a colina em direcção à tenda que abrigava o seu gabinete.

 

A visão familiar das mesas e dos mapas trouxe-o de volta à realidade e ao seu sentido de dever. A consciência dizia-lhe que era um engenheiro e que devia fazer algo de prático. Lavar e enfaixar a ferida na têmpora de Bowers foi tarefa fácil. Mas depressa se apercebeu de que planear e executar mais que isso ultrapassava a sua competência, compreendendo quanto se havia habituado a contar com Charlie para todos os assuntos relativos aos Chineses. Sem Charlie, nem sequer podia falar com eles. Era pior do que ser surdo-mudo. Prisioneiro na sua própria tenda, Herr Fischer percebeu rapidamente que a única pessoa que podia ajudá-lo era Henry Manners.

 

O passeio a cavalo não tivera o êxito que Hemry esperara. As belas paisagens não tinham sido suficientes para amenizar o espírito de Hiram e este mantivera-se montado no pónei, alheio ao que o rodeava. Fan Yimei esforçara-se por ajudar, falando de um passeio com o pai, na infância, quando este lhe ensinara os nomes de todas as flores e dos arbustos, lhe indicara quais os que queria pintar e como pai e filha tinham depois corrido por um carreiro, imitando as várias aves que voavam por cima dos campos. Hiram limitara-se a acenar. A linha fina formada pelos seus lábios mantinha-se crispada e os inexpressivos olhos nada mais reflectiam do que os pesadelos que continuavam a atormentá-lo. Ao fim de algum tempo, também Fan Yimei se entregara a uma introspecção melancólica. O piquenique perto da margem do rio decorreu em silêncio.

 

No caminho de regresso, Henry tentara animá-los com as perspectivas da sua nova vida em Tientsin. Dar-lhes-ia uma carta que deveriam entregar ao seu amigo George Detring, director do Astor House Hotel, que os instalaria numa das melhores suítes e velaria por eles até Manners acabar o que tinha a fazer em Shishan. Depois, juntar-se-ia aos dois e trataria de encontrar uma casa para eles na cidade. Não pensava demorar-se. Os seus negócios com o major Lin estavam quase concluídos. Durante esse tempo, Detring poderia ajudar Hiram a encontrar vaga na prestigiosa escola secundária de Tientsin. Na qualidade de seus amigos, seriam tratados com todo o respeito. Acrescentara, em jeito de brincadeira, que Fan Yimei poderia mesmo dar um passeio com as senhoras inglesas no Parque Victoria. Estava certo de que as inglesas a fitariam, por cima dos leques, imaginando que se trataria de alguma princesa exótica exilada em Tientsin após uma misteriosa intriga palaciana.

 

As suas palavras não haviam animado Fan Yimei. A menção das senhoras inglesas fizera-lhe recordar Helen. Não tinha qualquer ilusão quanto ao que seria a sua vida, como amante de um estrangeiro, desprezada por dois povos. Além do mais, Fan Yimei sabia que um dia ele se fartaria dela e perguntava a si própria se esse dia não tinha já chegado. Durante as duas noites que passara na estranha tenda, ficara acordada à espera que fosse ter com ela, desejando sentir a protecção que os seus braços lhe conferiam, mesmo sabendo que ele não a amava mas sim à rapariga do cabelo ruivo. Não percebera por que motivo ele ficara no exterior, deitado numa cama de criado, ao lado de Hiram. Sem dúvida, fora por estar preocupado com o rapaz e não querer deixá-lo sozinho, entregue aos demónios que lhe atormentavam o espírito. Era um gesto característico da sua nobreza e generosidade. Quanto a ela, devia-lhe a vida, apesar de ele não concordar com essa ideia. Nada era pior do que o inferno de onde ele a tirara. Se continuasse a viver, seria nas condições que ele exigisse, fossem quais fossem, mesmo que ele fizesse o que ameaçava e a tornasse livre.

 

Entretanto, podia ajudá-lo a tomar conta do rapaz. Como vítima de Ren Ren, estava qualificada para o fazer. Acreditava conseguir alcançar o espírito do rapaz; tinha-o conseguido quando tratara dos ferimentos de Hiram depois de este ser espancado pelo japonês. E agora conhecia a angústia por que ele passava, bem como as suas causas. Lembrava-se das primeiras noites no Palácio dos Prazeres Celestiais, ainda menina, depois das violações, dos espancamentos e todas as demais humilhações que não se atrevia sequer a recordar. De novo foi invadida pelo sentimento de incompreensão da criança que se sente abandonada, da sensação de culpa e de ódio por si mesma, porque nenhuma criança acredita que não merece todo o mal que lhe é infligido. Reviveu a maior de todas as vergonhas, o segredo guardado a sete chaves, apenas conhecido pelos que sofrem torturas e que o tempo nunca pode apagar ou enterrar em definitivo num recanto obscuro da memória. Conhecia o amor do torturado pelo carrasco. Aquela terrível intimidade, tão desejada quanto temida. Conhecia a vergonha de Hiram porque também a sentira: ambos tinham sido amantes de Ren Ren. No seu íntimo, ambos partilhavam aquela vergonha. Cavalgaram em silêncio pelo campo, cada um absorto nos seus pensamentos. Não repararam de imediato na calma que reinava no acampamento do caminho-de-ferro, e foi apenas quando nenhum mafu saiu dos estábulos para os acolher que Henry se apercebeu de que algo de muito grave se passava.

 

- Hiram - disse -, quero que fiques aqui e que tomes conta da Fan Yimei. Se eu não estiver de volta dentro de dez minutos, ou se achares que algo está errado, voltem a montar os vossos póneis e saiam daqui o mais depressa possível. Dirijam-se para casa do médico... Lembras-te do caminho por onde viemos? Mas mantenham-se escondidos. Cavalguem fora da estrada. Farás isso por mim?

 

Os dois fitavam-no, espantados. Henry agarrou nas mãos de Hiram e fitou-o.

 

- És um homem e deves proteger uma dama. Não sei o que se passa mas tenho de descobrir o que aconteceu a Herr Fischer e aos outros. Provavelmente, regressarei depressa, mas, se não voltar dentro de dez minutos, farás o que te pedi?

 

Pela primeira vez desde que fora libertado, uma centelha de vida passou pelos olhos de Hiram.

 

- Sim, senhor - respondeu timidamente.

 

- Óptimo. - Abraçou o rapaz e depositou um beijo na testa de Fan Yimei. - Tens de ficar com o Hiram, aconteça o que acontecer - ordenou-lhe. - Compreendeste?

 

Ela aquiesceu com a cabeça sem desviar os olhos de Henry.

 

- Toma - disse este a Hiram, tirando o revólver do coldre. - Aqui é o fecho de segurança. Tens de puxá-lo, assim. Só o utilizes se for necessário. Mas lembra-te da minha promessa: nenhum de vocês regressará àquela casa.

 

Manners correu até às fileiras formadas pelas tendas. Passou a cabeça pelo canto da primeira, passou por cima das cordas e desapareceu.

 

Bowers aquecia fleumaticamente a chaleira no fogão. Tinha uma ligadura à volta da cabeça, mas não parecia muito combalido. Herr Fischer andava de um lado para o outro, resmungando em alemão. Durante a última hora, haviam fumado seis cachimbos, enquanto discutiam o que deviam fazer, ou antes, Herr Fischer sugerira vários planos inconcebíveis e Bowers escutara-o, sacudindo a cabeça de tempos a tempos. Quando Fischer abandonou o último plano e amaldiçoou mais uma vez o ausente Manners, Bowers sugerira-lhe que bebessem chá.

 

- Se me permite uma opinião - disse, após encher duas chávenas com o líquido -, em situações como esta devemos contar acima de tudo com a Providência. Não nos abandonou até agora. Ainda estamos vivos, e mesmo um grupo de cules teria dificuldade em demolir uma locomotiva construída num estaleiro de York. Até agora, as coisas não são assim tão más como isso, à excepção da triste perda do seu amigo. Enquanto os três cavalheiros que estão por detrás daquela porta tiverem as nossas armas, penso que é imprudente tentar o que quer que seja de demasiado aventuroso. Sendo assim, e na minha humilde opinião, é melhor esperarmos e vermos o que vai acontecer.

 

- Mas que podemos nós fazer? - perguntou Fischer, gesticulando. - Somos prisioneiros de loucos e de assassinos que crêem em demónios!

 

- Sim, de facto não é uma situação agradável. Mas você falou de Mister Manners como sendo um homem de grandes recursos. E se ainda existir um governo em Shishan, duvido que goste de saber que andam a destruir bens do Estado. As coisas acabarão por se resolver, se lhe dermos tempo.

 

- Mas onde está o Manners? - guinchou Herr Fischer, frustrado. - A fazer um piquenique! Com prostitutas! Pode demorar horas!

 

Ficou espantado ao ver o enigmático Mr. Bowers a rir baixinho.

 

- Desculpe, Mister Bowers, mas não vejo nada de cómico na nossa situação nem no que acabo de dizer.

 

- Perdoe-me - Bowers tossiu, ainda vermelho pelo riso.

- Apenas pensava em como Deus por vezes escolhe instrumentos estranhos e misteriosos

 

E foi quase como um salvador alado ou um deus ex machina no final de um melodrama que, poucos segundos depois, Henry Manners apareceu. Os dois homens viram, boquiabertos, as abas da tenda agitar-se e uma figura surgir, com um chapéu de cule e um jaquetão de palha entrançada usado pelos operários do caminho-de-ferro. A figura endireitou-se, revelando tratar-se do esperado ”herói” inglês. Trazia três espingardas Remington debaixo do braço e, com um movimento ágil, lançou uma a Bowers e outra a Fischer.

 

- Senhores - disse -, queiram desculpar-me pelo meu traje. A sarja inglesa é um tanto ou quanto vistosa nos tempos que correm. Sugiro que sigam o meu exemplo. - Estendeu o braço por trás dele, abrindo de novo a aba da tenda, e apresentou um fardo de roupa. - Os três guardas à entrada estão... Digamos que estão a descansar... Não que os seus fatos lhes façam particularmente falta, mas seria melhor não estarmos aqui quando eles... acordarem... O caminho parece estar livre e cavalos já devidamente selados esperam-nos na cavalariça.

 

- Mas e o meu acampamento, Mister Manners? Está a sugerir que o abandone?

 

- Sim, Herr Fischer, se tivermos em conta que foi invadido pelos seus operários e que eles estão a redecorá-lo com as cabeças de alguns dos seus colegas.

 

- As cabeças? O meu Charlie foi brutalmente assassinado, mas...

 

- Ao que parece, já outros partilharam o seu triste fim. Reconheci o seu fogueiro, Bowers. O sorriso que arvorava na ponta de um pé-de-cabra era quase tão alegre como o do Charlie. A situação está a tornar-se sangrenta lá em cima, cavalheiros. Muito sangrenta.

 

O maquinista inclinou a cabeça, mas o seu rosto era calmo, quando voltou a erguê-la.

 

- Não temos qualquer hipótese de chegar à locomotiva? Se ao menos pudéssemos sair daqui no comboio...

 

- Lamento, Bowers, mas lá em cima está instalado um verdadeiro pandemônio! Vamos, Fischer, seu barco está a afundar-se rapidamente. É tempo de abandonar o convés. Os ratos, espertos como são, já devem ter fugido. Vamos, antes que seja tarde de mais.

 

Mas já era tarde de mais, como o descobriram antes de sair da tenda.

 

Hiram viu tudo. Quando ele e Fan Yimei avistaram a poeira na colina e ouviram o ribombar dos cavalos que se aproximavam a galope, Fan Yimei quisera voltar ao acampamento para avisar Henry. Hiram tentara impedi-la, mas a rapariga batera com a chibata no lombo da mula, que desatou a galopar em direcção à fileira composta pelas tendas. Hiram, no seu esforço para puxar as rédeas, caíra do cavalo, que fugira. Estendeu-se no solo, escondido atrás de um pedregulho, quando a tropa de cavaleiros uniformizados surgiu por entre as árvores, apanhando rapidamente Fan Yimei. Alguém agarrara nas rédeas e parara a mula. O oficial que comandava as tropas, um homem elegante, de rosto cruel, semelhante a um falcão, trotara o seu cavalo branco até Fan Yimei e os dois haviam olhado fixamente um para o outro durante algum tempo

- ele impassível, ela com uma expressão de desafio mesclada com resignação. Então, com um gesto rápido, o homem chicoteara-a com a chibata, deixando uma fina marca vermelha na face branca da rapariga. Depois, gritara uma ordem e dois soldados postaram-se de cada lado de Fan Yimei. Escoltada, nada mais podia fazer do que seguir a coluna, enquanto esta continuava o seu percurso em direcção ao acampamento.

 

Hiram ficou a ver a poeira assentar, quando os cavalos desapareceram por entre as tendas. Nas suas brincadeiras de criança com os meninos de rua de Shishan, aprendera a deslocar-se discreta e silenciosamente. Com todo o cuidado, seguiu o mesmo trajecto que Mr. Manners fizera pouco antes, permanecendo escondido na penumbra das tendas e rastejando quando tinha de passar por áreas descobertas. Encontrou um esconderijo no meio de um amontoado de latas de óleo abandonadas. Dali tinha uma boa vista para a tenda que albergava o escritório de Fischer. Os soldados haviam-se colocado em leque a toda a volta da tenda, com as carabinas apontadas para a entrada. Por trás deles, acotovelavam-se várias centenas de operários. O oficial de rosto de falcão apeara-se do cavalo e falava com um operário de cabelo grisalho que parecia ter autoridade sobre os outros. Apontou primeiro para a tenda e depois para três cules nus, sentados no chão, com ar envergonhado, que esfregavam as cabeças doridas. Hiram sentiu-se aliviado ao ver Fan Yimei montada sobre a sua mula e ladeada pelos guardas; um deles segurava numa sombrinha que se abria por cima do seu rosto para a proteger do sol.

 

O oficial aproximou-se da entrada da tenda e chamou:

 

- Ma Na Si!

 

Seguiu-se uma conversa que não conseguiu ouvir. O oficial voltou para junto da linha de cavaleiros e deu uma ordem. Um dos soldados disparou um tiro de carabina para o ar, que ecoou por todo o acampamento e foi seguido por um murmúrio geral, vindo dos operários. O oficial esperou cerca de um minuto e deu outra ordem. O soldado voltou a disparar, desta vez, para o alto da tenda. A bala embateu no mastro e ouviu-se um som metálico quando fez ricochete.

 

A aba da tenda acabou por se abrir e três homens saíram, envergando trajes de camponeses chineses. Um deles era Mr. Manners, o outro Mr. Fischer e o terceiro um homem alto, barbudo, que Hiram nunca vira. Tinham espingardas nas mãos e, durante alguns instantes, Hiram pensou que iam servir-se delas. Sacou do revólver que trazia ao cinto e puxou o fecho de segurança.

 

Então, Mr. Manners riu-se e atirou a sua espingarda ao chão. Os outros imitaram-no. Seis soldados precipitaram-se para eles e agarraram-nos pelos braços.

 

O oficial voltou-se para a multidão e ergueu a voz, para fazer uma espécie de proclamação. Hiram percebeu algumas palavras: ”salvo-conduto” e ”protecção”.

 

Mr. Manners sorria indolentemente aos seus captores. Só depois o seu olhar se pousou em Fan Yimei e se sobressaltou. A inquietação espelhou-se no rosto da rapariga. Gritou algo que Hiram não conseguiu ouvir. Mr. Manners tentou em vão libertar-se das mãos dos dois soldados.

 

O olhar do oficial com ar de falcão ia de um ao outro, e os seus lábios curvaram-se num esgar desdenhoso. Avançou para Manners, enquanto a ponta do seu sabre traçava um sulco na areia, atrás de si, pegou na espingarda de um dos soldados, desferiu um golpe atingindo Manners no estômago e recomeçou, até este tombar. Pontapeou as costelas do inglês e depois acertou-lhe também no rosto, desferindo por fim um golpe na nuca com a coronha da espingarda.

 

Hiram sentiu as lágrimas arderem-lhe nos olhos. Apontou o revólver às costas do oficial, mas o cano tremeu, vacilou e inclinou-se para o chão. O rapaz abafou um soluço de cólera e de vergonha, mas não conseguiu desviar os olhos da cena.

 

O oficial confiara aos seus homens a tarefa de espancarem Manners. Dois soldados levantaram-no para que um sargento entroncado o esmurrasse. O seu rosto era uma máscara de sangue e de contusões. Continuaram, muito depois de ele perder os sentidos. A multidão assistia, em silêncio, e os únicos sons eram os dos murros e dos soluços de Fan Yimei, agarrada pela sua escolta. O oficial contemplava a punição com um sorriso sardónico.

 

Ao fim do que pareceu uma eternidade, ordenou aos homens que parassem. Já não havia sinais de vida no corpo de Mr. Manners. Deixaram-no na areia, todo torcido e ensanguentado, na posição em que tinha caído.

 

Os dois outros estrangeiros haviam visto tudo, aterrorizados. O oficial avançou para eles, esboçou uma vénia e ordenou aos soldados que os libertassem. Trouxeram-lhes dois cavalos e formou-se uma pequena escolta para os acompanhar até Shishan.

 

O oficial ainda se demorou mais algum tempo a conversar com o capataz do caminho-de-ferro. Foi dada ordem à multidão para dispersar e alguns soldados foram patrulhar a pequena estação improvisada. Volvida uma hora, as tropas que tinham ficado para trás selaram as montadas. No último momento, o corpo de Henry Manners foi atirado para o dorso de um dos cavalos e ali ficou, pendurado, mole e sem vida. O oficial de rosto frio saiu do acampamento, seguido pelos seus homens. Não olhou uma só vez para Fan Yimei, ainda escoltada pelos dois guardas, no fim da coluna. Havia muito que deixara de chorar. Agora, o seu rosto era tão frio e inexpressivo como o do oficial.

 

Quando achou que o caminho estava livre, Hiram saiu em silêncio do esconderijo, da mesma forma discreta que se aproximara do acampamento. Sem cavalo, não precisava de viajar pela estrada e, poucos minutos depois, dirigia-se para a cidade através dos campos de milho-miúdo.

 

Nellie saíra-se muito bem, pensou Airton. Nunca parava de o surpreender e, mais uma vez, agradeceu à Providência por o ter abençoado com uma companheira tão indispensável. Uma mulher com menos valor - não era um especialista do sexo feminino, tirando grande parte dos seus conhecimentos dos romances que lia - teria pretextado calores, retirando-se para o seu boudoir. Não que ela tivesse um boudoir para onde pudesse retirar-se, numa casa relativamente pequena, mas podia ter entrado em pânico, como quase lhe acontecera a ele, quando Zhang Erhao chegara com a terrível notícia. Pouco depois, chegara aos portões da missão o corpo de Frank Delamere, envolto numa serapilheira e amarrado a um carrinho de mão.

 

Airton e a irmã Caterina estavam absortos numa operação complicada para extrair o apêndice inflamado de uma camponesa e fora a Nellie que calhara a incumbência de fazer frente à multidão de curiosos que tinha seguido o corpo desde a cidade. Com a ajuda de Ah Lee e de Zhang Erhao, arrancara o carrinho de mão às pessoas que se apinhavam para o ver e tocar no pano manchado de sangue, arrastando-o pelo pátio; depois, puxara sozinha as pesadas barras que fechavam os portões. Antes, tivera a presença de espírito de reparar nos dois mercadores amigos de Frank, Lu Jincai e Jin Shangui, que se mantinham, hesitantes, a certa distância da multidão. Tinham tratado de fazer vir o corpo da cidade, e mostravam-se bastante abatidos. Nellie instara-os a entrar na missão, convidara-os a sentar-se na sala de espera do hospital e ordenara a Ah Sun que lhes preparasse rapidamente um chá. Sentindo que o mais urgente era reconfortar os dois homens, deixara Frank - que podia fazer agora por ele? - e sentara-se entre os dois homens, pegando-lhes nas mãos, até o médico concluir a operação. Noutras circunstâncias, aqueles dois confucionistas teriam preferido fugir do que ser tocados de forma tão íntima por uma mulher estrangeira, mas tão grande era o seu choque e o alívio por se verem livres da multidão que nem sequer protestaram, limitando-se a bebericar o chá.

 

Tudo aquilo parecia ter acontecido há já muito tempo, tantas coisas tinham ocorrido desde então, mas Airton lembrava-se perfeitamente da estranha cena, e também da sua incredulidade e surpresa quando Lu Jincai, recuperado o sangue-frio e alguma dignidade, tirara de debaixo da túnica um objecto embrulhado num pano de seda cinzenta. Abriu-o exibindo uma machadinha com o cabo ornado por uma borla encarnada, explicando que era a arma que matara Mr. Delamere. Ao recordar aquilo, o médico deu-se conta de que percebera naquele mesmo instante que as suas vidas em Shishan nunca mais seriam as mesmas.

 

Reprimira o arrepio que lhe percorreu as costas e fez a pergunta para a qual já conhecia a resposta.

 

- É uma arma dos Boxers?

 

- Sim, Daifu - respondeu Lu Jincai.

 

- Então, eles estão em Shishan?

 

Lu Jincai acenou afirmativamente. Jin Shangui limpava os óculos com um lenço de seda que tirara do interior da manga.

 

- Que está o mandarim a fazer em relação a isto? - inquiriu Airton, num tom quase agressivo.

 

Não obteve resposta. Os dois mercadores baixaram os olhos, fitando o chão.

 

- Estou a ver.

 

Então revoltou-se e acrescentou, encolerizado:

 

- Não, não estou a ver! Trata-se de um sangrento assassínio de um estrangeiro. O mandarim recusa-se a preocupar-se com os Boxers, mas que vai ele fazer relativamente a isto?

 

Os mercadores mantiveram-se em silêncio. Jin Shangui encolheu os ombros. Airton sentiu a mão da mulher sobre o seu joelho.

 

- Acalma-te, Edward - murmurou Nellie. - Estes pobres homens não têm culpa de nada.

 

Um sorriso triste passou pelo rosto de Lu Jincai.

 

- Eu e o Shangui temíamos isto há já algum tempo disse. - Quem poderá dizer porque tem o mundo de passar por períodos de total loucura, mas o destino inflige tempos destes a cada geração. Agora, todos nós devemos preparar-nos para enfrentar... dificuldades. Grandes dificuldades. Isto é apenas o começo, Daifu. Mostremo-nos gratos por o nosso querido amigo De Falang não ter sofrido muito. Na verdade, não teve tempo de sentir dores. Talvez um momento de surpresa, antes do fim. A bem dizer - um sorriso afectuoso iluminou-lhe o rosto -, estava algo tocado naquele momento. Creio que os deuses foram misericordiosos, como o são para os grandes homens simples de que gostam. Quem sabe se não nos espera um futuro ainda mais terrível, e se não acabaremos um dia por invejar o De Falang pelo seu fim rápido e fácil. Estou a dizer-lhe o que me vai no coração, Daifu.

 

Airton pigarreou. Sentia as faces em fogo e uma lágrima formou-se-lhe ao canto do olho, ao pensar em Frank a morrer sozinho na areia.

 

- As suas palavras são rudes - replicou -, mas penso que o pobre Delamere teve sorte em ter-vos como amigos.

 

- Talvez tenhamos de responder por isso um dia - disse Lu calmamente. - Não vivemos numa época muito propícia à compreensão.

 

- Mas vocês são chineses... Os Boxers por certo concentram a sua crueldade nos estrangeiros.

 

- Isto é a China, Daifu. Reservamos as piores crueldades para os outros chineses. É um costume nosso. Sempre assim foi.

 

- Nesse caso, tiveram coragem vindo aqui.

 

- O De Falang era nosso amigo - replicou com simplicidade Jin Shangui. Tinha acabado de limpar os óculos mas estes pareceram embaciar-se novamente, quando os recolocou sobre o nariz.

 

Haviam selado os póneis das crianças para que os dois mercadores pudessem regressar a Shishan. Lu Jincai agradeceu ao médico pela sua gentileza e prometeu devolver os animais, assim que fosse possível. No momento em que partiram pelas traseiras da missão, a fim de evitar a pequena multidão ainda agrupada junto dos portões da frente, Lu Jincai aconselhara o médico a não confiar em ninguém, nem mesmo nos seus criados.

 

- São assim os tempos que vivemos - explicou. - Todos estão sujeitos a várias pressões.

 

Houvera algo de definitivo na despedida.

 

Airton e Nellie regressaram ao primeiro pátio, onde o corpo de Frank repousava ainda ao carrinho de mão. Moscas zumbiam por cima da serapilheira ensanguentada. Ah Lee tentava enxotá-las em vão. Fora preciso algum tempo até Airton decidir o que fazer.

 

Mentalmente, bloqueara a questão de saber como dar a notícia a Helen e a Tom. Primeiro, teriam de encontrar um local onde colocar o corpo, limpar as feridas e preparar Frank para o enterro. Caterina podia ajudá-lo. Haviam ambos adquirido bastante experiência em relação à forma de preparar cadáveres, durante a epidemia de peste. Contudo, Airton estava preocupado com a freira. Tinham-se passado vários dias desde as últimas notícias da irmã Elena, e agora, com aquele assassínio, seria de pasmar que Caterina não pensasse no pior. Seria outro problema que o médico teria de resolver, a seu tempo. Sentiu algum conforto pelo facto de Burton Fielding ter chegado à missão na madrugada daquele mesmo dia. Estava em casa com as crianças, a descansar depois da longa viagem. Ao menos, havia um homem com quem Airton podia contar. Um homem prático, de acção, habituado às dificuldades do faroeste. Naquela noite, discutiriam a melhor maneira de pedir ajuda ao mandarim. Talvez solicitassem a protecção de alguns dos soldados do mandarim para guardar a missão ou, pelo menos, ajudar a evacuar as crianças e as mulheres para Tientsin, caso fosse necessário. Mas isso ficaria para mais tarde. Primeiro, tinha de se ocupar de Frank Delamere. Pobre Frank, sempre embriagado. Parece que, por fim, bebera de mais. Airton revoltou-se consigo próprio por pensar na situação de uma forma tão ligeira mas a verdade é que parecia começar a delirar. O assassínio de Frank fizera vacilar todas as suas certezas acerca do conforto da sua existência. O horror que tal acto representava, juntamente com os maus presságios de Lu Jincai acerca dos Boxers e do controlo cada vez mais reduzido do mandarim na cidade, haviam-no enervado, confirmando as suas piores suspeitas após a frustrante experiência no tribunal do mandarim, naquela manhã; isto para já não falar da preocupação que sentia relativamente à irmã Elena, e do facto de Tom se achar numa enfermaria a recuperar de ferimentos de balas, enquanto Helen se encontrava num quarto lutando contra os efeitos da dependência do ópio. Tudo aquilo se assemelhava a um pesadelo.

 

Nem sequer teve tempo de abrir a serapilheira que cobria o corpo de Frank. Ouviu pancadas violentas nos portões da missão. Correu pelos corredores do hospital, à luz ténue do crepúsculo, até encontrar Nellie e Burton Fielding. Ah Lee e Zhang Erhao achavam-se perto da cerca, aterrorizados de mais para abrir os portões.

 

- Abram, em nome do yamen - ouviu gritar do outro lado. Novas pancadas atingiram as portas.

 

- O que pensa disto? - perguntou a Fielding.

 

- Se o homem ordena que abram os portões em nome do yamen, é melhor fazê-lo - foi a resposta lacónica.

 

- Tem razão - concordou o médico, sentindo uma súbita esperança renascer. - Pode ser uma mensagem do mandarim a propósito do assassínio. Talvez tenham afinal iniciado um inquérito.

 

- Se não abrir, nunca o descobrirá - fez notar Fielding.

 

- Julga que pode ser o mandarim em pessoa?

 

Mas não era o mandarim. Era Septimus Millward e a sua família, bombardeados com lama por uma multidão indisciplinada.

 

Um mensageiro do yamen, que o médico não reconheceu, apresentou-lhe um documento para que o assinasse.

 

- É o daifu Ai Dun? Confiamos-lhe estes incendiários e criminosos à espera de julgamento. Sua Excelência o mandarim decidiu que todos os bárbaros do oceano devem ficar alojados num mesmo local até que o estado de emergência seja levantado.

 

- Emergência? Que estado de emergência? - balbuciou o médico, mas o homem não respondeu, limitando-se a entregar-lhe o papel, um pincel e tinta.

 

- É melhor fazer o que ele diz - aconselhou Fielding, enquanto observava os Millward, que tentavam escapar aos mísseis de legumes e de lama -, caso contrário eles ficarão tão sujos que não terá água que chegue para os lavar a todos. Além do mais, palpita-me que, quer o queira quer não, eles vão ficar aqui. E curioso... - acrescentou. - Ia amanhã vê-los à cidade. Ao que parece, a montanha veio até Maomé...

 

Mais uma vez, foi Nellie quem tomou conta da situação. Assim que os portões foram devidamente fechados, os Millward, ignorando os seus anfitriões, caíram de joelhos no pátio. Septimus, com uma ligadura à volta da cabeça - que mais parecia uma coroa de Baco, devido às folhas de couve e de espinafres que pendiam das faixas -, ergueu os braços para o céu e agradeceu, com voz possante, ao Todo-Poderoso por haver preservado os Seus eleitos. Como medida de precaução, acrescentou algumas invocações ao Senhor dos Exércitos para que castigasse os ímpios e os depravados.

 

Nellie não quis ouvir mais.

 

- Você! Venha comigo! - gritou em tom severo, puxando pela barba um perplexo Septimus. - Levante-se, e a sua inacreditável família também. Se têm de ser meus convidados, então haverá banhos e camas para todos! Poderão fazer todas as preces que muito bem entenderem, mas só depois de uma refeição quente. Ouviu? Meu Deus, o estado destas crianças. Mete dó...

 

E talvez a coisa mais estranha daquela estranha tarde tenha sido os Millward seguindo docilmente Nellie.

 

O médico e Burton Fielding ficaram sozinhos no pátio. A princípio, nenhum deles falou. Fielding acabou por tirar do bolso a caixa de charutos.

 

- Saboreie-o bem até ao fim, doutor. Vamos ter de fazer com que a caixa dure.

 

- Que quer dizer com isso, Fielding?

 

- A situação torna-se muito clara. Parece que vamos ter de nos fechar em Fort Laramie com as mulheres e as crianças, enquanto os peles-vermelhas fazem o que têm a fazer lá fora. O problema é que não vejo a cavalaria americana vir em nosso socorro. Não repita este último reparo às senhoras, de acordo?

 

- Não posso crer que o mandarim...

 

- Talvez tenha razão, Airton. Você conhece-o e eu não... Mas nada nos garante que o mandarim nos possa ajudar, mesmo que queira fazê-lo. O meu conselho, doutor, numa situação como esta, é que seja independente. Aos primeiros raios de sol, de manhã, devemos pôr as mulheres e as crianças nos carros e dirigirmo-nos para o acampamento do caminho-de-ferro, chegando lá antes que o comboio em que vim parta para Tientsin.

 

- Não está a falar a sério, pois não? Meu caro Fielding, isso parece-me um conselho derivado do pânico. Como podemos nós fugir? Tenho aqui doentes que precisam de tratamento. É impensável.

 

- Você conhece o seu dever, doutor, e eu conheço o meu. Se fossem os meus amigos e familiares, sei o que faria. Graças a Deus, a minha responsabilidade limita-se unicamente àquela família perdida que acabou de chegar. Vim até cá para os levar comigo. A comissão decidiu que eles são uma ameaça para si próprios e para a comunidade; por isso, partirei com os Millward, nem que tenha de os levar amarrados. Tencionava ficar mais tempo, mas não é possível. O que decidir fazer é lá com a sua consciência.

 

- Fielding, Fielding... - Airton não sabia o que dizer. Sentia-se afundar na corrente de acontecimentos e decisões a tomar. - Até os Millward têm pessoas a seu cargo. Então e todos os órfãos da missão deles?

 

- Se alguém está a ocupar-se deles, não são com certeza os Millward, não é verdade? O mandarim encarregou-se disso, ao enviar a família para aqui. doutor, ao ponto em que não pode fazer tudo. É preciso tomar decisões difíceis em situações desesperadas. Se não conseguir salvar toda a gente, ao menos salve quem puder.

 

- Ainda me custa a crer que a nossa situação seja assim tão desesperada. Posso pedir à Nellie para que ela e as crianças... Mas também há a Helen e o Tom. A Helen não está em condições de viajar e a Nellie nunca a abandonaria. Recusar-se-ia categoricamente. Conheço a minha mulher. O mesmo se aplica ao Tom. E há ainda todos os pacientes chineses...

 

- Decisões difíceis, doutor, é preciso tomar decisões difíceis - murmurou Fielding, puxando baforadas do charuto.

 

Menos de duas horas depois, novo tumulto em frente dos portões provocou ainda mais inquietação no hospital. Desta vez, os soldados de Lin trouxeram Herr Fischer e Bowers ”para sua protecção”. Nellie, Fielding e o médico conduziram os dois assustados homens para o interior da casa e escutaram em silêncio a sua terrível história. Estavam ainda por de mais atordoados pelos acontecimentos do dia para expressar qualquer reacção ou surpresa. Herr Fischer começara a chorar ao tentar descrever a morte de Charlie. A notícia de que Henry Manners, ao que parecia, fora espancado até à morte pelo major Lin apenas provocou um triste meneio de cabeça do médico, enquanto Nellie lhe pegava na mão e a apertava gentilmente. Depois de os dois homens contarem a sua história, esvaziarem os copos e comerem a sopa que Nellie lhes dera, pouco mais havia a dizer. Estavam todos exaustos e as decisões teriam de ficar para o dia seguinte. Por ora, a informação mais importante era a de que estavam encurralados em Shishan.

 

Existe uma espécie de válvula de segurança natural nas sociedades civilizadas que leva a que as pessoas se agarrem à ideia e às actividades da normalidade mesmo nas circunstâncias mais extremas. Dois dias depois da morte de Frank e da chegada imprevista dos Millward e dos engenheiros do caminho-de-ferro, Nellie dirigia o seu lar alargado como se se tratasse de uma festa de fim-de-semana. Enquanto o médico, sentado em frente da escrivaninha, preparava a sua petição para o yamen, podia ouvir o barulho das crianças que brincavam nos corredores, o tinido das panelas proveniente das cozinhas e as eternas discussões entre Ah Lee e Ah Sun. Um cheiro reconfortante de guisado espalhava-se pela casa.

 

Se estava orgulhoso de Nellie, não o estava menos dos filhos, que não haviam revelado qualquer má vontade por ter de ceder o seu quarto de brincar à família Millward. Ali, talvez pela primeira vez, os americanos não viviam em condições sórdidas. Adaptaram-se à disciplina de Nellie:! colchões e cobertores arejados, roupas arrumadas e inspecções! regulares, com Nellie a manejar um grande espanador e Laetitia a segui-la docilmente. Fora comovente ver as crianças Millward, na primeira manhã, contemplar os brinquedos de George e de Jenny empilhados nas prateleiras, meio maravilhadas, meio assustadas, enquanto os seus olhos se pousavam no pai, sentado a um canto a ler a Bíblia.

 

George e Jenny tinham-se revelado à altura da situação. Seguira-se um momento de silêncio desconfortável quando o médico os apresentou aos filhos dos Millward. Mas George pegara na mais nova e colocara-a no cavalo de balouço, onde a menina se deixara ficar, pestanejando por trás dos óculos. Após algumas oscilações furiosas, começara a rir-se, deliciada com a brincadeira. Jenny dera as suas bonecas às outras meninas, enquanto George tirara os seus soldadinhos de chumbo da arca de brinquedos para os partilhar com os rapazes. Laetitia, ainda assim, não deixara de olhar nervosamente para o marido, mas Septimus continuava absorto na leitura. Que as crianças não soubessem o que fazer com as bonecas e os soldadinhos de chumbo, pouco importava a George e a Jenny. A sua paciência e boa vontade para com as outras crianças fora infinita e agora a amizade parecia desenvolver-se entre algumas das crianças mais velhas. Daí o barulho nos corredores. Nellie e Airton haviam receado um chorrilho de protestos por parte de Septimus, mas o homem parecia exilado no seu mundo. Passava o dia a virar as páginas da Bíblia e comia no quarto. Nellie teve a impressão de alcançar uma pequena vitória quando, na tarde do segundo dia, Laetitia, com voz hesitante, se ofereceu para a ajudar na lida da casa.

 

De forma geral, as coisas correram melhor do que se esperava, pensou Airton. A situação deles mantinha-se incerta, mas, pelo menos, reinava a ordem, e até alguma alegria, no seu pequeno mundo.

 

Houve um momento difícil, na manhã que se seguira ao ”Dia da Catástrofe”, como Fischer o descrevera, no seu inglês pomposo. Airton levantara-se cedo e despachara rapidamente as visitas no hospital. Ficara aliviado por ver que a doente com apendicite estava em boa forma e sentira o mesmo ao constatar a recuperação de Tom. Este mostrava-se impaciente por sair da cama e cheio de curiosidade acerca da algazarra e da agitação que ouvira na véspera. O médico tomara a decisão de lhe revelar toda a verdade, sem mais demoras. De uma maneira ou de outra, Tom descobri-lo-ia mais cedo ou mais tarde. Airton fora mesmo ao ponto de lhe contar tudo acerca de Helen, sem lhe esconder nada. Tom reagira como um homem. Quando soube da morte de Frank, baixou a cabeça; quanto ao resto, não demonstrou qualquer sinal de emoção. Escutou, com expressão impassível a história da relação amorosa de Helen com Manners, da gravidez e da dependência do ópio. As notícias pareciam não o surpreender. Limitou-se a acenar afirmativamente, a cada novo e desagradável pormenor. Não havia maneira de tornar os factos menos duros e o relato de Airton fora exacto, até mesmo frio. Tom, contudo, parecera reagir da mesma forma. Quando o médico terminou, apenas fez duas perguntas.

 

- E como está a HF? Vai recuperar?

 

Airton respondera-lhe que ainda era muito cedo para se saber. Helen fora submetida a um tratamento em virtude dos sintomas causados pela privação do ópio. Sofrera, mas era uma rapariga forte, e o médico estava convencido de que ela haveria de vencer o vício, com o tempo. Ainda estava debilitada e ninguém podia visitá-la. Quanto ao bebé, tudo corria pelo melhor.

 

- Fico contente em sabê-lo - fora o curto comentário de Tom. - Ela tem muita sorte por estar ao cuidado de um bom médico.

 

Depois, seguira-se a segunda pergunta, que Tom formulara num tom de voz tão calmo que quase assustara Airton:

 

- E o pai? O Manners? Disse que ele morreu?

 

- Foi espancado até à morte, Tom.

 

- Tem a certeza?

 

- Foi o que Herr Fischer nos disse. Ele e o Bowers assistiram a tudo.

 

- Obrigado, Agora, trate de descansar. Irei juntar-me a vocês daqui a nada.

 

- Tom, não me parece que deva sair da enfermaria até... Mas algo na expressão do jovem levara o médico a calar-se. Como era de esperar, Nellie ficou furiosa ao saber que o marido contara toda a verdade a Tom. Acusou-o de falta de bom senso e sensibilidade. Para sua própria surpresa, Airton reagiu violentamente.

 

- Tem tento na língua! Ainda não te apercebeste da situação em que nos encontramos? O Tom, como todos nós, tem de fazer frente a esta emergência, e não o conseguirá se continuarmos a apaparicá-lo!

 

Ordenou-lhe que se encarregasse da lida da casa enquanto os homens se reuniam. Experimentou um sentimento de satisfação quando ela se rendeu aos seus argumentos com um:

 

- Está bem, tens razão.

 

Não se lembrava de ter feito frente à mulher uma só vez até então. Assim, foi com uma impressão - nova para ele de autoridade que entrou na sala de jantar, onde Fischer, Fielding e Bowers acabavam de tomar o pequeno-almoço. Expôs-lhes a situação, em termos tão objectivos quanto possível.

 

- Senhores, sabem o que aconteceu ontem. Estamos todos preocupados e é normal, mas há coisas que ignoramos. É óbvio que se passa qualquer coisa de muito grave na cidade de Shishan. A morte do Delamere prova que os Boxers estão cá e que são demasiado poderosos, de modo que o mandarim nos juntou a todos para nossa própria protecção. Sim, para nossa própria protecção. Foi o que nos disseram os oficiais que vos trouxeram até cá. Como você sublinhou ontem à noite, Fielding, conheço o mandarim e não tenho qualquer motivo para pensar que ele não é nosso amigo. Quando afirma que quer proteger-nos, acredito nele. E também acredito que o melhor é não cometer imprudências, como seja a de tentar fugir daqui, como alguns talvez já tenham pensado.

 

Olhou para Fielding, que sorriu e lhe fez sinal para que prosseguisse, agitando o cachimbo.

 

- Como poderíamos escapar? Não podemos aceder à linha do caminho-de-ferro e não dispomos de meios para organizar uma caravana de mulas. Não, a hipótese da fuga não é realista, nem sequer desejável. Estamos na China há tempo suficiente e já conhecemos, por experiência própria, como são estas rebeliões. Acabam por passar, quando as autoridades retomam o controlo da situação. Enquanto aguardamos, o que importa é não perder a cabeça.

 

- Desculpe, doutor - interrompeu Fielding, com uma ponta de humor espelhada no rosto -, mas, dadas as circunstâncias, a sua frase é deveras significativa. A nossa principal preocupação é justamente não perder a cabeça. Mas a questão é também: vamos realmente ficar aqui de braços cruzados?

 

- Não, Fielding, nem estou a propor que fiquemos de braços cruzados. Tenciono escrever uma carta ao mandarim, uma espécie de petição, para exprimir não somente a nossa consternação perante os acontecimentos mas também a nossa vontade de o apoiar nesta crise, e de lhe assegurar a nossa total colaboração. Creiam-me, cavalheiros, só o mandarim leva os nossos interesses a peito e está em posição de nos ajudar. Acredito nisso piamente, como acredito que a Providência não abandonará aqueles que confiam nela.

 

- Vai escrever uma carta? - sorriu Fielding. - Mais nada?

 

- Tem alguma sugestão melhor, Fielding?

 

- Esta não é a minha missão. Tudo o que vos posso dizer é que se vir uma oportunidade de sair daqui, agarrá-la-ei, com ou sem mandarim.

 

Sobressaltaram-se ao ouvir um ruído vindo da porta. Tom entrou, apoiado a uma muleta e com um braço ao peito. Atravessou a custo a sala de jantar e deixou-se cair numa cadeira com um suspiro.

 

- Peço que me desculpem, cavalheiros. Ouvi a maior parte do que acaba de ser dito. Mister Fielding, o doutor disse que não havia quaisquer meios de sair daqui, por enquanto. Nessas condições, estou de acordo com o que ele propõe.

 

- Confiar numa carta e na Providência?

 

- O senhor foi ordenado pastor, Mister Fielding. Sabe mais do que eu acerca da Providência, mas o doutor referia-se à necessidade de encontrarmos formas de convencer as autoridades civis a intervir a nosso favor. E, sim, talvez algumas preces possam ajudar, mas tenho outras sugestões, doutor, se me dá licença...

 

- Sim, Tom?

 

- Uma carta destinada ao mandarim é um acto sensato, e estou de acordo com o senhor: até ao fim do dia, provavelmente, a ordem será restabelecida. Mas não nos custa nada prepararmo-nos para o pior, e é possível que o mandarim leve algum tempo a resolver os seus problemas com os Boxers. Ele tem o major Lin e tropas devidamente treinadas, que lhe são leais...

 

- Os homens que assassinaram Henry Manners - contrapôs Fielding.

 

- Sim - replicou Tom -, mas o Manners era um homem que criara inimigos. Não sei que disputa pessoal havia entre ele e o major Lin. Sei apenas que tinham negócios, provavelmente negócios duvidosos. Alguns de nós sabiam do que era capaz um homem como o Manners.

 

- Mesmo assim, Tom...

 

- Limito-me apenas a afirmar que não temos a certeza de que o major Lin, independentemente dos seus defeitos ou dos inimigos que possa ter, não permanecerá leal ao mandarim. Mas até a protecção oferecida pelas tropas do major Lin podem revelar-se insuficientes, a curto prazo. Devemos encarar a possibilidade de os Boxers nos atacarem, antes que a ordem civil seja restabelecida.

 

- Continue - pediu Fielding.

 

- Bom, se estivermos preparados, devemos ser capazes de os expulsar daqui. Gozamos de uma boa posição na colina. Temos caçadeiras e munições, e muitas provisões. Até há um poço no jardim para a água.

 

- Sim, mas... é uma missão, Tom, um hospital...

 

- É um edifício, e todo e qualquer edifício pode ser protegido. É feito de tijolos, com um telhado de chapa ondulada, o que significa que é muito difícil lançar-lhe fogo. Podemos colocar barras nas janelas e reforçar as portas. Podemos fazer seteiras para poder disparar. Não estou a dizer que tudo isso venha a ser necessário, mas não perdemos nada em estarmos preparados.

 

- Afinal, sempre vai ser um Fort Laramie! - comentou Fielding, rindo-se. - O que foi que eu lhe disse, Airton?

 

- Essa ideia é ridícula - replicou o médico. - Como podemos transformar o nosso hospital num forte? É demasiado grande...

 

- Talvez devêssemos deixá-lo - sugeriu Tom calmamente. - Mas poderemos defender-nos nà mesma nesta casa.

 

- Não, não e não! - respondeu Airton. - Jamais abandonarei os meus pacientes. E que pensarão as mulheres e as crianças, se nos virem prepararmo-nos para uma... para uma guerra?

 

- Pensarão que tu és um bom pastor, que defende o seu rebanho o melhor que pode - interveio Nellie, que entrara discretamente na sala sem que ninguém desse por isso. E também um homem corajoso, meu querido, como eu sempre o soube.

 

- Eu sou a favor da ideia - anunciou Bowers, quebrando o silêncio pela primeira vez.

 

Herr Fischer, ainda consumido pelos remorsos em relação a Charlie, também aquiesceu.

 

- Pode ser apenas por precaução - disse Tom. Também acredito que o mandarim virá em nosso socorro, muito antes de ser preciso carregar a primeira espingarda. Ainda precisa de escrever a petição, doutor.

 

- É uma forma de estarmos ocupados, enquanto aguardamos - comentou Fielding. - Não barrico uma casa desde a última revolta dos Apaches, em mil oitocentos e oitenta e seis.

 

- Nesse caso, poderá dar-nos instruções sobre o que devemos fazer - replicou Tom. - Não quer reconsiderar, doutor?

 

É claro que Airton acabou por concordar - e agora não se arrependia da sua decisão. Tal como Fielding dissera, os preparativos forneceram-lhes uma ocupação, servindo também para levantar o moral de todos. Muito embora não as achasse necessárias, já se acostumara às barras nas janelas que reforçavam as persianas. Pouca diferença fazia, porque no Verão tinham sempre de manter as persianas fechadas. Ao mesmo tempo, trabalhava duramente na sua carta para o mandarim, consultando os dicionários, a fim de encontrar as palavras exactas e esforçando-se por se lembrar dos clássicos para empregar a melhor frase.

 

Estava satisfeito por o hospital funcionar como era normalmente ou quase. A irmã Caterina insistira em permanecer no quarto que tinha no hospital, para ficar perto dos doentes. O desaparecimento de Elena continuava a perturbá-la, mas Airton tinha de reconhecer que ela se saía muito bem, ocupando-se das enfermarias com a alegria habitual. Se estava preocupada com a amiga, não o demonstrava publicamente, se bem que passasse a maior parte do seu tempo livre na capela, a rezar.

 

Como não podia deixar de ser, os pacientes haviam-se dado conta das tensões que agitavam Shishan. Alguns decidiram, não sem pedir desculpa, deixar o hospital mais cedo, e não foram hospitalizados novos doentes, nem apareceu ninguém na consulta externa, o que já era de esperar. Airton teve uma desilusão no dia em que o seu mordomo, Zhang Erhao, não compareceu na missão, mas também não podia censurá-lo. Não era homem para atirar a primeira pedra. Por outro lado, o bom humor revelado pelos doentes que tinham ficado muitos eram cristãos convertidos - animara-os a todos. Nunca vira Ah Lee e Ah Sun dedicar-se às suas duras tarefas com tão grande entusiasmo.

 

- Somos cristãos e marchamos no mesmo exército de Jesus - dissera-lhe orgulhosamente Ah Lee, dando uma palmadinha nas costas do amo. Airton ficara tão comovido quanto divertido com aquele gesto.

 

Um dos episódios mais engraçados durante a preparação da defesa civil dera-se quando Tom tentara ensinar Ah Lee a servir-se de uma arma. Ao fim de algum tempo, ambos haviam decidido que um cutelo nas mãos de Ah Lee seria mais eficaz.

 

A pequena comunidade adaptara-se rapidamente às suas novas condições de vida e pouco depois encarava as seteiras, os fardos de cereais apinhados contra as portas e as barricadas em cada abertura do edifício como se sempre ali tivessem estado.

 

Houvera um momento triste, na tarde do segundo dia, quando o médico presidira ao enterro simples de Frank Delamere, num pequeno recanto do jardim onde os Airton haviam enterrado o seu próprio filho nascido morto, pouco depois de chegarem a Shishan. Uma rudimentar cruz de madeira passara a ladear a cruz de pedra talhada de Teddie. Todos assistiram ao serviço, excepto a pessoa que mais importava: a filha de Frank, Helen Francês, ainda ignorava que o pai morrera. Estava demasiado debilitada para receber tal notícia. As crianças depositaram sobre o túmulo uma coroa de flores silvestres, com o nome de Helen Francês. A um dado momento da cerimónia, o médico vira Nellie erguer os olhos para a janela entaipada da rapariga, com lágrimas nos olhos. Que tempos terríveis estes!

 

O único consolo para o médico era que tinham feito o seu melhor, dadas as circunstâncias. Airton estava convencido de que Frank teria gostado de um serviço mais imponente do que aquele agrupar furtivo de algumas pessoas em volta de um túmulo, sob o sol escaldante da Manchúria. Frank também teria considerado o elogio fúnebre do médico vulgar e, provavelmente, demasiado pomposo. Airton reconhecia que as palavras de Tom, por serem mais simples, tinham sido muito mais comoventes. O rapaz dissera que Frank era um velho patife e teria sido um sogro difícil de suportar, mas que não conhecera homem mais generoso, e ainda que gostava tanto dele como a própria filha. Tom teria saudades do amigo. Fora tudo, mas todos ficaram com os olhos húmidos. Frank e Airton haviam tido os seus diferendos, mas por debaixo da sua desaprovação, o médico gostava sinceramente daquele homem e também sentiria saudades dele. Vieram-lhe lágrimas aos olhos ao proferir aquela frase. Talvez, quando tudo passasse e Helen estivesse recuperada, pudessem pensar numa cerimónia fúnebre mais adequada. Um serviço na catedral de Tientsin, com coros e ave-marias e um Nunc Dimitris cantado ou o que os papistas preferissem. Mas isso ficaria para dias mais felizes. Para uma época mais feliz.

 

Agora, tudo o que podia fazer era trabalhar na sua petição para o mandarim. Quando terminasse e se sentisse satisfeito com o resultado, dobraria as folhas e enfiá-las-ia cuidadosamente num sobrescrito encarnado. Restava resolver o problema de a fazer chegar ao yamen, mas haveria de encontrar uma solução. Talvez um dos pacientes aceitasse levá-la, mediante pagamento. Até lá, aguardava impacientemente a diversão anunciada para aquela noite. Como nos velhos tempos, Nellie e Herr Fischer tinham prometido um recital de piano e de violino, depois do jantar.

 

Nellie interpretou com grande empenho um dos nocturnos de Chopin e Herr Fischer surpreendeu-os ao tocar com paixão um concerto para violino de Brahms. As lágrimas afloraram-lhe aos olhos enquanto fazia deslizar o arco no Allegro non troppo. Nellie teve de se esforçar para seguir a partitura. Todos compreenderam, pela emoção que transparecia do desempenho de Fischer, que chorava o seu Charlie. O próprio Airton sentiu lágrimas nos olhos quando Fischer chegou ao Adagio; e reparou que Bowers estava sentado, muito direito, no sofá, mantendo nas mãos a chávena de chá em que não tinha tocado. Foi quase um alívio para todos quando o trecho terminou, e Nellie e Fischer começaram um pot-pourrí alegre de Cannen para acabar o serão. Estavam a meio da ”Dança dos Contrabandistas” quando ouviram os tambores. Encontravam-se tão absortos com a música que, durante alguns instantes, lhes pareceu um acompanhamento imprevisto das toadas ciganas; Nellie e Fischer pararam, e todos estacaram, enquanto o estranho barulho parecia ressoar pela sala.

 

Fielding foi o primeiro a dirigir-se à janela, espreitando pela seteira que havia nas persianas; foi seguido por Tom, tão depressa quanto as suas muletas lho permitiram. Fielding deixou-lhe o lugar.

 

- O que se passa, Fielding? O que vêem? - perguntou Airton, ansiosamente.

 

- Está tudo mergulhado nas trevas, doutor. Acho que vi movimento, mas não tenho a certeza.

 

- Depressa, doutor, a porta! - gritou Tom. - É a irmã Caterina! Está a correr para a casa.

 

Nellie, Airton e Bowers precipitaram-se para a entrada e passaram longos instantes a lutar com as barras e os ferrolhos. No exterior, ouviam-se pancadas na madeira e os gritos aterrorizados da irmã Caterina. Quando por fim a porta se abriu, a silhueta encapuçada de branco caiu chorosa nos braços de Nellie. Bowers e Airton apressaram-se a fechar a porta, mas no curto intervalo em que estivera aberta o médico avistou silhuetas a correr pelo relvado, e o sangue gelou-se-lhe nas veias.

 

- Viu aquilo, Bowers? - murmurou. - Os fatos, os turbantes...

 

- Sim - respondeu Bowers.

 

- Meu Deus, o Tom tinha razão. Eles estão aqui.

 

- Sim - repetiu Bowers. - Avistou as chamas? Creio que lançaram fogo ao hospital...

 

- Oh, meu Deus! Oh, meu Deus!

 

Airton apoiou-se à parede. Duas pequenas silhuetas ao fundo do corredor olhavam-no com ar ansioso.

 

- Voltem para o vosso quarto imediatamente! - gritou o médico, em tom ríspido, mais ríspido do que pretendia. Jenny e George escapuliram-se como dois coelhos.

 

- Vou buscar a minha espingarda - disse Bowers. Defenderei o quarto principal.

 

Na sala, Tom já tinha a sua espingarda pronta e olhava atentamente através da seteira. Fielding não se via em lado nenhum; sem dúvida, fora ocupar o seu posto na sala de jantar. Herr Fischer estendia um conhaque à irmã Caterina, que tremia de medo sentada numa das poltronas. No exterior, os tambores continuavam a rufar com insistência.

 

- Edward, vou levar as crianças para o quarto de brincar juntamente com os Millward - disse Nellie. - Talvez também possas levar para lá a irmã Caterina, quando ela tiver recuperado. - Ao passar à frente dele, acrescentou em voz baixa:

 

- Não lhe faças perguntas agora. Está em estado de choque. Entraram-lhe pelo hospital a dentro. Edward, eles estão a matar os doentes. A irmã Caterina nada podia fazer.

 

Nellie desapareceu e Airton cerrou os punhos. Aquilo não podia estar a acontecer - mas ali estava Caterina, com o rosto crispado pelo medo, e Tom, engatilhando a arma e enfiando pela seteira.

 

- Tom, que está a fazer? - exclamou o médico.

 

- Eles estão a agrupar-se no relvado, doutor. É difícil ver, mas alguns têm archotes. Devem ser, pelo menos, uns cem. Não vejo nenhuma espingarda. A maior parte tem espadas e lanças. Vou disparar um tiro de admoestação.

 

- Meu Deus, Tom, acha que é sensato? Tom ignorou-o.

 

- Fielding! Vou atirar uma vez, para o ar! Pode fazer o mesmo?

 

- Claro! - gritou-lhe o americano.

 

- Bowers - voltou a gritar Tom. - Não dispare!

 

- De acordo! - foi a resposta longínqua.

 

O ruído dos tambores foi subitamente abafado por duas detonações, enquanto o cheiro a fumo se espalhava pelo ar; em seguida, o eco dos tiros dissipou-se e o rufar lancinante voltou.

 

- O que vê, Fielding? - perguntou Tom.

 

- Eles ficaram no mesmo sítio, Tom. Não, espere, eles... Meu Deus, alguns deles começaram a dançar!

 

Airton experimentou uma sensação irreal de calma. Então, tinha realmente acontecido. Tudo o que ele lera era verdade.

 

- Estão a praticar artes marciais, Tom - explicou. Atraem os poderes dos deuses para os seus próprios corpos disse. - Julgam que isso os torna invulneráveis às balas.

 

- Ai julgam? Fielding! - bradou Tom. - Bowers, vamos deixá-los dançar durante mais algum tempo, e depois mostramos-lhes o que significa ser invulnerável às balas!

 

- Vai disparar contra eles, Tom? Vai matá-los?

 

- Sim, doutor - Tom voltou-se para o encarar. - Eles deitaram fogo ao hospital e massacraram os doentes. Farão o mesmo aqui. Quer negociar com eles?

 

- Não, Tom - respondeu Airton, subitamente decidido.

- Parece-me que há outra espingarda algures. Pode dizer-me onde serei mais útil?

 

- Obrigado, doutor. Estava enganado quando duvidei de si - replicou Tom, dando-lhe uma palmada nas costas. Será melhor ir defender a porta da cozinha. Aproveite para ver como estão os criados. Não seria nada conveniente que o cozinheiro entrasse em pânico e deixasse entrar o inimigo. Quando me ouvir disparar, faça o mesmo. Aponte para baixo.

 

Airton sentiu-se envergonhado por se ter esquecido dos criados. Atravessou o corredor com passadas rápidas e encontrou Ah Sun agachada, por baixo da grande mesa de cozinha, e Ah Lee de pé, junto da porta barricada, com o cutelo pronto. Uma expressão encantada iluminou-lhe o rosto, quando viu que o médico empunhava uma espingarda.

 

- Oh, então se juntou ao exército de Deus! Morreremos juntos e iremos directamente para o Paraíso!

 

- Espero que isso não seja para hoje - retorquiu Airton, enfiando um carregador na espingarda e postando-se perto da porta.

 

Foram os cinco minutos mais longos da sua vida. Através do estreito buraco, via os Boxers dar os seus saltos e cambalhotas no relvado. Descobriu, surpreendido, que não sentia ódio por eles. Lembravam-lhe antes os teatros de marionetas acerca de heróis mitológicos que vira no mercado. Lembrou-se dos espectáculos de marionetas da sua juventude passada no campo, e percebeu que, quando o momento chegasse, seria tão fácil atirar contra aqueles bonecos como fora disparar contra cocos numa barraca de feira. Ao mesmo tempo, via toda a ironia da situação: ali estava um suposto homem de Deus prestes a infligir a morte aos seus semelhantes... Mas logo depois, para sua vergonha, uma outra fantasia mais agradável lhe ocorreu. Como tudo aquilo calhava bem, para um amante dos romances populares do faroeste... Ele, Airton, o grande romântico, encontrara finalmente o seu lugar atrás de carroças imaginárias, disposto a defender a sua família dos peles-vermelhas. O rufar contínuo podia muito bem ser o dos tambores índios.

 

Acima do ruído, apercebeu-se de um grito vago. Devia ser Tom a dar ordem para se preparar. Focou a vista numa grande figura, envolta numa pele de tigre, que brandia um machado. O seu dedo começou a premir lentamente o gatilho.

 

- Senhor, perdoai-me... - murmurou.

 

Ouviu então um barulho de pés que corriam e logo depois a voz da irmã Caterina.

 

- Não dispare, doutor! Mister Cabot pediu-me para lhe dizer que não disparasse!

 

Airton recuou, espantado.

 

- Mas porquê, irmã Caterina?

 

- É o major Lin! Chegou com as suas tropas! ”Graças a Deus”, pensou Airton, ”a cavalaria americana finalmente chegou...”

 

O som que se seguiu, de facto, foi o embater suave dos cascos de cavalos no relvado.

 

- O mandarim prometeu-lhe a sua protecção e esta ser-lhe-á concedida - disse em tom frio o major Lin. Estava montado no seu cavalo, perto da porta da casa. Atrás dele, as suas tropas espalhavam-se em leque, de olho nos Boxers, agora reunidos em grupos dispersos, contemplando a cena num silêncio sinistro. Airton, Fielding e Tom achavam-se de pé na entrada, agarrando com firmeza as espingardas. Pelo canto do olho, Airton viu a arma de Bowers que saía da seteira. Toda a cena era vivamente iluminada pelas chamas que se elevavam do hospital, ao fundo da colina.

 

- Que garantia temos? - perguntou.

 

- A minha - respondeu Lin. - Não há mais nenhuma.

 

- Como podemos crer em si, se os seus homens permitem que esses Boxers continuem armados, depois de deitar fogo ao meu hospital e matar os meus pacientes?

 

- A maneira como tratamos dos Boxers é um assunto estritamente chinês. Lamento muito no que respeita ao seu hospital. Certamente será indemnizado um dia, pela perda da sua propriedade. Não é uma indemnização que vocês, os estrangeiros, costumam pedir? - acrescentou Lin, em tom zombeteiro. - Quanto aos pacientes, pelo que compreendi, eram chineses. Por conseguinte, também é um caso chinês, que não lhe diz respeito.

 

- Eu tinha responsabilidades para com eles - protestou Airton. - Esses homens assassinaram-nos.

 

- Está a fazer-me perder o meu tempo, doutor. Ofereço unicamente a minha protecção aos estrangeiros, mediante os termos do tratado de extraterritorialidade - Havia de novo uma nota de sarcasmo na sua voz. - Quer conhecer as minhas condições.

 

- Condições? Muito bem, continue.

 

- Em primeiro lugar, deverá entregar-me todas as armas que tem nesta casa. Os meus homens passarão depois uma revista para nos certificarmos de que não fica nenhuma escondida. Não queremos que ocorram acidentes, nem a si nem aos outros. Não precisarão de armas porque os meus homens proteger-vos-ão.

 

- Continue.

 

- Em segundo lugar, a minha protecção aplica-se unicamente aos estrangeiros que se encontram na casa. Todo e qualquer chinês que aqui se encontre deverá partir imediatamente.

 

- Pois bem, isso é inaceitável. Mais alguma coisa?

 

- Comprometer-se-á a obedecer às leis que foram impostas nesta emergência e, por conseguinte, permanecerá neste edifício, que está protegido, até nova ordem.

 

- É tudo?

 

- Sim. Os meus homens trar-lhe-ão provisões uma vez por semana. Poderá utilizar o poço do jardim, uma vez por dia, sob a vigilância dos meus soldados.

 

- E se não aceitarmos essas condições?

 

- Então, serão tratados como malfeitores, e toda a infracção às nossas leis de emergência será punida.

 

- Estou a ver - replicou Airton. - Pois bem, tudo isso é inaceitável. E, como reparou, temos armas e vocês também, por isso, parece que estamos num impasse. Posso, no entanto, garantir-lhe uma coisa: toda e qualquer tentativa para fazer respeitar as suas pretensas leis de emergência custar-lhe-á caro, major. Obrigado, mas preferimos protegermo-nos por nossa conta.

 

Lin ergueu o braço para fazer sinal aos seus homens. Ao fim de algum tempo, Airton e os outros viram os Boxers que se achavam junto à porta afastarem-se.

 

- Meu Deus - exclamou Tom. - Ele trouxe os velhos canhões das muralhas da cidade!

 

Num silêncio estupefacto, olharam para a fila de mulas que, arrastando os pesados canhões, subia a encosta à força de chicotadas.

 

- Creio que as minhas armas são maiores do que as suas, doutor - disse o major Lin. - Quer que lhe faça uma pequena demonstração?

 

- Xeque-mate - resmungou Fielding.

 

- Não, Fielding - sibilou o médico. - Ele quer que lhe entreguemos Ah Lee e Ah Sun. Não podemos fazer tal coisa.

 

- Não podemos lutar contra a artilharia.

 

- Teremos de o fazer. Não posso... Não posso entregar os meus criados para que sejam massacrados. Deixe-me falar com ele. - Major Lin - disse, dirigindo-se ao oficial. - Concordamos com todas as suas condições menos uma. Não lhe entregaremos os nossos criados chineses.

 

O major Lin fingiu bocejar.

 

- Nesse caso, retiro a minha oferta de protecção. Boa noite - rematou, puxando as rédeas.

 

- Ouça, major Lin, por favor. Suplico-lhe. Tenho aqui uma petição. Sim, veja... - Com dedos desajeitados, tirou do bolso do casaco a carta para o mandarim. - Por favor, entregue-a ao mandarim e esqueçamos... esqueçamos por ora essa história de chineses na minha casa, até que ele tome uma decisão sabiamente reflectida. Concordamos com todos os outros termos. Até mesmo no que respeita às armas. Mas suplico-lhe, reconsidere, por questões humanitárias...

 

O major Lin contemplou o sobrescrito com ar indiferente, enfiando-o depois no estojo da sua sela.

 

- Já recebi as ordens do mandarim.

 

- Pagar-lhe-ei um resgate por eles. Sim, um resgate. Tenho aqui dinheiro. - Airton remexeu nos bolsos para procurar a carteira; com a outra mão, agarrou na brida do cavalo de Lin, na desesperada tentativa de impedir que o outro partisse. De súbito, ouviu uma voz familiar atrás dele.

 

- Amo, por favor, deixe-nos passar...

 

Ah Lee e Ah Sun achavam-se no umbral da porta, com trouxas debaixo dos braços.

 

- Ah Lee! - O médico tentou incutir cólera na sua voz, mas não o conseguiu. - Volta para casa! É uma ordem... Ah Sun, diz-lhe...

 

Ah Lee sorria, mas lágrimas escorriam-lhe pelas faces, como acontecia no rosto enrugado de Ah Sun.

 

- Amo muito teimoso - disse no seu inglês arrevesado.

- Pensa ser muito bom para pobres Ah Lee e Ah Sun. Mas amo também homem muito avarento - Sacudiu a cabeça de forma cómica. Salários muito baixos. sempre avarentos. Ah Lee quer melhor trabalho, melhor amo. Talvez encontrar trabalho como cozinheiro no céu? Fazer ovos com bacon para Jesus. Ele muito bom amo. Ah Lee e Ah Sun muito, muito felizes com Jesus.

 

Ah Lee pousou os embrulhos e beijou Airton.

 

- Lembrar por vezes velho amigo? É melhor assim acrescentou em chinês. - Zelar por Miss Nellie e menino George e Miss Jenny - disse em inglês. - Ter filhos muito bons. Ah Sun e eu pensar neles como netos. Adeus, querido amo.

 

Ah Sun, soluçando, apertou as mãos de Airton. Estava demasiado emocionada para falar, assim como o médico, que durante alguns minutos se sentiu indeciso, enquanto os dois criados começavam a afastar-se lentamente em direcção aos portões.

 

- Não! - gritou, tentando correr atrás deles, mas Fielding reteve-o e o major Lin avançou com o cavalo para lhe bloquear a passagem.

 

Um dos Boxers avançou quando os dois criados se aproximaram. Chocado, Airton reconheceu o antigo mordomo, Zhang Erhao, que usava agora um turbante e o traje completo dos Boxers. Efectuou uma vénia elaborada a Ah Lee, como para o acolher no seu bando, mas Ah Lee cuspiu-lhe no rosto. Então, as fileiras de homens fecharam-se à volta dos dois e Airton perdeu-os de vista.

 

Os soldados de Lin vasculharam minuciosamente a casa e apoderaram-se das armas. Tudo se passou sem qualquer impedimento, excepto quando Nellie se postou em frente da porta do quarto de Helen e tiveram de a afastar. Pouco depois, as tropas partiam, deixando sentinelas nas portas. Os Boxers também dispersaram, mas os tambores continuaram a ressoar até altas horas da noite. Os estrangeiros reuniram-se na sala de Airton, sentados nos sofás e poltronas, como se quisessem esconder-se de si próprios. Ninguém tinha nada para dizer. Passado algum tempo, Septimus Millward entrou, seguido pela mulher e pelos filhos. Contemplou calmamente os outros e declarou:

 

- Cavalheiros, estamos nas mãos do Senhor. Não acham que é tempo de fazermos uma prece?

 

Na sua bela voz de barítono, entoou:

 

- Glória a Deus, Todo-Poderoso, Rei da Criação... Um a um, todos começaram a cantar com ele. Sentiram um certo conforto nos hinos e nas orações que Septimus entoou até de madrugada. Muito direito, qual severo profeta do Antigo Testamento erguendo o seu bastão contra as forças do caos, parecia tomar uma nova dimensão. E foi uma prova de quão trágica era a situação o facto de, pela primeira vez, não ter parecido louco aos olhos dos outros membros da pequena comunidade tão duramente castigada.

 

No exterior, as cabeças de Ah Lee e Ah Sun, cravadas em varas, pareciam atentas, como se tentassem escutar os hinos que se ouviam vindos de dentro de casa. Mas na realidade era apenas um efeito produzido pelas correntes de ar sugadas pelo incêndio que ainda grassava no hospital em ruínas.

 

MUITOS DOS NOSSOS HOMENS PARECERAM MORRER, MAS MESTRE ZHANG DIZ QUE NÃO, POIS AS BALAS NÃO NOS PODEM FERIR. ENTÃO, PORQUE FOI QUE O PEQUENO IRMÃO NÃO VOLTOU?

 

Missão cristã e hospital Shishan, Mancharia, China, Domingo, 16 de Junho de 1900

 

Meu caro James,

Passaram quatro dias desde o incêndio do nosso hospital pelos Boxers e o nosso encarceramento forçado na minha casa. Não te escrevi mais cedo porque o terrível massacre dos doentes e dos criados que se achavam sob minha responsabilidade me pesa na consciência. No entanto, temos razões para alimentar esperanças.

Todos os dias, vemos sinais reveladores de que a Providência não nos abandonou. Anteontem, os nossos inimigos cercaram a casa, tocando os seus tambores e atormentando-nos dia e noite com os seus gritos e cânticos, enquanto executavam as suas danças e rituais hediondos no relvado. Faziam-nos gestos obscenos com as armas, por saberem que não temos nada com que possamos defender-nos. Apelaram aos seus deuses para que descarregassem violência sobre nós, acusaram-nos de crimes diabólicos e ameaçaram-nos de castigos terríveis. Podes imaginar o terror dos nossos filhos, tremendo debaixo dos lençóis enquanto aqueles gritos medonhos rasgavam a noite, lá fora. Apesar de serem os dois muito corajosos, que conforto lhes podemos dar? Só os piquetes do major Lin se interpõem entre nós e a morte, e consideramos esses soldados indisciplinados fracos protectores. No entanto, a crise passou. O Septimus Millward acredita que, para além dos piquetes da cavalaria de Lin, também há à nossa porta anjos celestiais com espadas em brasa para nos proteger. Pois bem, em sentido figurado, suponho que deve mesmo haver. O Senhor tem zelado para que nenhum mal nos aconteça.

Ontem, quando acordámos, reinava um estranho silêncio. Pela primeira vez em dias, podíamos escutar o delicioso ruído que é o canto das aves. Durante breves instantes, imaginei-me de volta à nossa pequena casa em Dumfries, deitado na minha velha cama de criança, ouvindo os alegres ruídos de uma manhã de Verão, com a luz do sol a brilhar lá fora e a perspectiva de um dia de pesca à beira-rio. Ao abrir as persianas, vimos que os Boxers tinham partido. Os únicos movimentos eram os dos soldados a bocejar, sentados em volta das fogueiras em que preparavam o pequeno-almoço.

Não nos foi dada qualquer explicação - os soldados receberam ordens para não nos dirigir a palavra -, mas senti no meu coração uma vaga de confiança e de gratidão. Estou convencido de que a minha carta já chegou às mãos do mandarim e que ele deu instruções para que os nossos perseguidores nos deixassem em paz. Não compreendo a situação política actual, mas suponho que o mandarim trata de um problema de cada vez, adaptando-se às circunstâncias. Quando tiver restabelecido a ordem e a paz na cidade, encarregar-se-á então de nós. Por enquanto, protege-nos o melhor que pode.

A minha boa e forte mulher, a Nellie, envia-te cumprimentos afectuosos, assim como os meus filhos, que vivem agora a sua própria aventura, tão excitante como aquelas que lhes enviaste pelo Natal no pacote de livros. Reza para que esta nossa aventura também tenha o final feliz que se espera desse género de histórias! E diz aos meus queridos Edmund e Mary, quando os visitares no colégio, que, como sempre, os seus pais têm muitas saudades deles, e assegura-lhes que estamos todos BEM!

 

Terça-feira, 18 de Junho de 1900

 

Os Boxers não voltaram. Fomos abençoados com um terceiro dia de calma.

 

O major Lin manteve a sua palavra, pelo menos no que diz respeito às provisões de comida. Hoje recebemos sacas de arroz e de legumes e três grandes peças de porco. Vai ser uma agradável variante da monótona carne de vaca enlatada que comemos nestes últimos dias. Felizmente, tínhamos reabastecido por completo a nossa despensa, e temos latas de conserva que nos permitirão subsistir durante mais de um mês, se as racionarmos. A Nellie ocupa-se da casa com grande rigor e as nossas refeições são, por força das circunstâncias, espartanas, mas, em cada dia que passa, ela consegue surpreender-nos com um novo tesouro. Ontem à noite, deleitámo-nos com um pudim de ameixa da Fortnum, uma prenda de Natal dos Gillespie. Herr Fischer deitou umas gotas de conhaque na sobremesa ainda fumegante, e as crianças insistiram para que apagássemos todos os candeeiros e admirar assim as belas chamas azuis, quando a Nellie trouxe cerimoniosamente a bandeja.

Como vês, mantemos o moral e continuamos a manter-nos ocupados. Não há nada como o trabalho para afugentar ideias pessimistas. A Nellie teve a boa ideia de inventar tarefas domésticas. Recrutou Mr. Bowers para a ajudar na cozinha, onde ele supervisiona as provisões. Etiquetou e numerou todas as latas de feijões! A mais pequena medida de óleo de cozinha é anotada no seu grande livro! A irmã Caterina, Mrs. Millward e duas filhas dela foram nomeadas lavadeiras. Temos lençóis limpos todos os dias, sem falar de uma muda de roupa. Por vezes, a casa cheira a uma verdadeira lavandaria! Entretanto, Herr Fischer, com Mr. Fielding como ajudante, recebeu a incumbência de limpar o pó e dar lustro. Fischer encara o trabalho com uma eficiência germânica, mantendo o espanador debaixo do braço como se fosse um bastão de marechal. Não há uma única partícula de pó na casa e a superfície do piano brilha como um espelho. Assim como os soalhos! Até mesmo o Tom, que ainda tem dificuldade em andar, se mantém ocupado areando as pratas. Imagino que nenhum paquete cintile mais do que o nosso humilde lar. Não deve haver muitos mais locais de reclusão forçada neste mundo que se possam candidatar a Lar Ideal da revista Woman’s World

O Septimus Millward e eu somos os únicos a ser dispensados destas tarefas. Desde o extraordinário serviço religioso que conduziu na noite da chegada dos Boxers, Mr. Millward é o nosso pastor. Talvez aches estranho, tendo em conta o que te disse a respeito dele no passado. Não que tenha mudado minimamente; continua o mesmo fanático de mente perturbada. Continua intransigente, e os seus sermões, com muitas chamas do inferno e ira divina à mistura, que pessoas como tu e eu em geral não apreciam, nem sequer beiram a loucura: vão muito para além dela! No entanto, não podemos duvidar por um instante que seja da absoluta firmeza da sua fé, que tem qualquer coisa de tranquilizador para nós, nas circunstâncias actuais. É difícil explicar. De qualquer forma, toleramo-lo e, como diz Mr. Fielding, se não fosse assim, o que faríamos dele? Quando se está a preparar para o serviço, à noite, ao menos fica fechado no quarto, onde não incomoda ninguém, nem mesmo os filhos, que, segundo Nellie, são vítimas há tempo de mais da sua tirania.

Quanto a mim, tenho, como é evidente, as minhas tarefas de médico, que, como deves calcular, com a nossa casa cheia de gente, me mantêm ocupado o tempo todo. Além dos meus dois pacientes principais, Helen e Tom, trato de várias pequenas maleitas, desde queimaduras a dores de cabeça, e um dos cavalheiros (não direi qual) apresenta um caso desagradável de hemorróidas! Foi uma sorte eu ter a minha maleta de médico em casa quando o cerco começou, e também uma caixa inteira de remédios que ainda não levara para o hospital, incluindo uma importante reserva de morfina. Não que tenha precisado dela como antes. Até agora, não precisei de voltar a ministrar a droga à Helen. A pobre infeliz está quase curada da sua dependência. Sofreu atrozmente e houve dias em que me senti desesperado quanto às hipóteses de a curar e de salvar o filho. Lembras-te quando, certa vez, me foste visitar ao hospital em Edimburgo? Mostrei-te pacientes que combatiam a dependência. Por isso, conheces o estado quase animalesco a que chegam, no ponto mais alto da privação. A rapariga ainda tem cicatrizes nos pulsos e nos tornozelos, de tanto se debater quando tive de amarrá-la à cama. A culpa não é dela. Foi vítima de uma terrível invasão ao seu corpo e à sua mente. O responsável foi Mr. Manners, que primeiro a seduziu e depois a viciou no ópio. Um crime terrível, mas não quero estar a falar mal dos mortos. Ele encontra-se agora para lá do castigo terreno. E teve uma morte cruel.

Agradeçamos a Deus por Helen ser nova e forte. Estou contente por poder afirmar que, agora que recuperou, come normalmente e engordou. Reencontrou até um pouco da sua antiga beleza - embora eu duvide que a tristeza que lhe vinca o rosto possa alguma vez dissipar-se por completo. Estranhamente, confere-lhe uma aparência etérea, uma espécie de langor, que não é desagradável e me faz pensar num quadro pré-rafaelita. Talvez Mariana at the Moated Grange. A comparação não é de todo inadequada.

Ao menos, recomeça a interessar-se pela vida. Cobarde como sou, dei à Nellie a espinhosa missão de lhe contar tudo o que se passou, enquanto ela esteve ”fora deste mundo”. O assassínio do pai. A morte do amante. Os Boxers e tudo o resto. Tínhamos a morfina à mão para o caso de a angústia a dominar - mas não foi preciso. Acolheu as notícias com uma calma e uma determinação espantosas. Apenas pediu que a levássemos até à janela e abríssemos as persianas para que pudesse ver o túmulo do pai. Só então chorou. O seu carácter forte, sobretudo depois de tudo por que passou, é verdadeiramente extraordinário. Nessa noite, a irmã Caterina ficou no quarto com ela, mas dormiu profundamente. Virou-se ao de leve na cama, gritou uma ou duas vezes, mas de resto passou uma noite calma.

Não sei porque te escrevo tão longamente acerca dela. Suponho que o faço porque não posso partilhar as minhas preocupações com ninguém aqui em casa. Para a nossa pequena comunidade, tenho de ser o médico responsável, omnisciente, e também o dono da casa cheio de confiança e de autoridade. Nunca me vi como um líder, mas é esse papel que tenho agora de desempenhar. Mas estou preocupado, James. Não tanto por causa dos Boxers - creio que, quanto a isso, o perigo diminui mas mais pela Helen e o Tom. Não sei o que fazer a respeito deles.

Ela não quer vê-lo. A sua calma, quando a Nellie lhe anunciou a morte do Henry Manners, tinha qualquer coisa de assustador. Quase de anormal. Mal pareceu ouvir. No entanto, fica quase à beira da histeria quando lhe sugiro que o Tom a visite. Sacode a cabeça na almofada, fecha os olhos, cerra os dentes. Aliás, o Tom também não demonstra particular desejo de a ver. Pergunta educadamente por ela, mas sem grande convicção, e parece aliviado quando eu mudo de assunto ou o deixo sozinho, entretido a arear as pratas. Pobrezinhos, ambos tão feridos pelas crueldades da vida. Fui médico durante tempo suficiente para saber que o corpo só pode estar totalmente curado quando o espírito também o está. Mas que posso eu fazer se eles se recusam a encontrar-se?

É aqui que o médico atinge o limite, no que toca ao seu poder de curar. Nem encontro qualquer solução. No entanto, suspeito que terei de fazer algo para provocar a reconciliação entre os dois, mesmo que não o queiram. A Helen não pode ficar confinada à cama por muito mais tempo e terá de encontrar uma ocupação aqui em casa, pelo menos enquanto esta situação de emergência continuar. O que acontecerá ao nosso frágil moral se dois dos nossos se recusarem a falar um com o outro?

Meu caro James, era minha intenção escrever-te uma carta tranquilizadora, mas receio ter-te aborrecido com as minhas dúvidas e os meus medos. É um erro da minha parte e nem as circunstâncias o merecem: como te disse, estou convencido de que o pior já passou e que, neste preciso instante, o mandarim trabalha no sentido da nossa libertação. Como é evidente, fiquei desiludido por não receber nem uma carta nem um recado dele hoje, quando o major Lin nos trouxe as provisões. Na verdade, o major mostrou-se frio e muito pouco comunicativo. Deixou as provisões e partiu, mas não me sinto minimamente desencorajado. A adversidade ensina-nos a ter paciência.

 

Oh, ela tentara. Como tentara.

 

Lembrava-se vagamente do que lhe acontecera durante os dias, as semanas, os meses, a eternidade durante a qual ficara fechada naquele pequeno quarto. Tinha uma imagem de si própria estendida na cama, como um animal selvagem preso, lutando, babando, rosnando, puxando as cordas. Era como se tivesse saído do seu corpo e pudesse observar-se a si mesma, de cima. Via os seus lábios arrepanhados, deixando a descoberto os dentes, os olhos que se reviravam nas órbitas, as costas arqueadas e as pernas que se debatiam. Via o médico com o seu casaco preto e largo, sentado numa cadeira junto à cama, com a sua maleta de couro; tinha os olhos fechados e tapava as orelhas com as mãos, enquanto lágrimas lhe escorriam pelas faces. Via a sua própria boca torcer-se para deixar sair palavras hediondas, via os seus olhos chispar de ódio. A outra parte de si mesma, aquela que flutuava, sentira um súbito acesso de simpatia pelo pobre homem que tentava ajudá-la. Havia decidido que o ajudaria, que se bateria com ele contra aquela coisa estendida na cama.

 

Então, um dia, acordara e soubera que era novamente ela própria. Quando o médico entrara com a bandeja, os frascos e a seringa, ela pedira-lhe, num fio de voz, que saísse, voltara a adormecer, e, por uma vez, não tivera pesadelos.

 

Havia sido uma semana abençoada. Ouvira ruídos no exterior, gritos e tambores a tocar, mas pareciam-lhe longínquos e não tinham nada a ver com ela. Tinha apenas consciência do seu corpo, do sangue que lhe corria nos braços e nas pernas, dos batimentos do coração, do ritmo da respiração, do calor do seu ventre, onde sabia que uma outra vida se desenvolvia. Dormir, comer, dormir e recuperar forças. Nada de pensamentos, excepto acerca das sensações que regressavam ao seu corpo, e também acerca da outra vida que ainda não conseguia sentir mas que carregava no ventre. E um sono sem pesadelos.

 

Então, Nellie entrara e contara-lhe o que acontecera ao seu pai e a Henry. Com a notícia da morte de ambos, a sua própria vida recomeçara. A princípio não alcançara o pleno significado do que ouvira, até Nellie a ajudar a levantar-se da cama, levá-la até à janela, abrir as persianas e mostrar-lhe a cruz de madeira no jardim, sob a qual o pai descansava. Chorava em silêncio, e Nellie certamente pensara que eram lágrimas de uma filha dedicada ao pai; na realidade, chorava por ela, porque agora não podia mais esconder-se do que fizera, daquilo em que se tornara, nem escapar ao ódio que sentia por si própria devido ao mal que causara. O pai e Henry estavam mortos. Do mais profundo do seu ser, como a água que sobe do fundo de um poço contaminado, veio-lhe a noção, acompanhada pela culpa, de que, de certa forma, a responsabilidade era sua.

 

Depois, voltara para a cama, contemplando o tecto estalado, tão familiar. O estuque rachado era como um símbolo da sua própria vida arruinada.

 

Onde estava a jovem confiante que saíra do convento, tão cheia de entusiasmo e alegria de viver, pronta a descobrir o mundo? Aquela rapariga inteligente, a melhor aluna da sua classe? ”Helen Francês, és uma jovem moderna pronta para um século moderno, mas não deixes que essa tua famosa curiosidade te leve a melhor”, haviam-lhe dito, por entre risos, quando dera um passo em frente a fim de receber o diploma.

 

Essa curiosidade - não, essa fome por todas as sensações que a vida tinha para oferecer - acabara por traí-la, como ela traíra todos aqueles que a tinham amado ou sido bondosos para com ela. O pai, que sempre quisera o melhor para a filha, fitando-a maravilhado, quando ela chegara a Shishan, de lágrima ao canto do olho, chamando-lhe a sua princesa. Teria ele sabido? Procurara ele a morte, ao avançar às cegas por aquela ruela onde tinha sido encontrado, porque ela lhe despedaçara o coração? O médico e Nellie, a sua hospitalidade da qual ela tanto havia abusado... Poderia redimir-se? E o Tom. Como o tratara cruelmente.

 

Tom, o bondoso Tom.

 

O estúpido, o tosco Tom.

 

Nunca o amara realmente. Fora um brinquedo, um passatempo conveniente, numa altura em que o seu universo se expandia e as paixões despertavam no seu íntimo, paixões que exercitara no homem mais à mão. Pusera-se à prova, com o amor dele, entregando-se àquela nova sensação, tal como a todas as outras sensações que descobrira na Ásia. O maleável Tom, que não passara de mais uma especiaria, num banquete oriental de pratos exóticos confeccionados para o seu próprio prazer. Oh, ela fingira que se tratava de amor verdadeiro, na época. Iludira-se, tanto a si própria como aos outros. E Tom, ao seu jeito, fora amoroso, e o afecto que nutria por ele não era menor do que o que sentia pelo cão da raça colite que criara desde cachorro em casa da tia - mas as lágrimas que vertera quando o cão foi atropelado por uma carroça não duraram mais de uma semana. E o afecto que nutria por Tom não sobrevivera à primeira vez em que vira Henry, galopando para a festa dada por Sir Claude MacDonald. A partir daquele dia, Tom passara a ser um hábito agradável, um ornamento, um pequeno ramo de flores, enquanto ela fingia brilhar na provinciana sociedade de Shishan.

 

Como pudera ser tão má?

 

Mas era ser má ter fome e desejo pelo toque de um outro homem, cuja simples presença a excitava, a transformava numa torrente de paixão desinteressada? A última coisa que sentira, quando estivera com Henry, fora que não pecava, em especial pelo acto amoroso, quando os seus membros se entrelaçavam, suados, e pareciam ser só uma pessoa, uma alma. Era algo natural e correcto, como nada jamais o fora em toda a sua vida. Só passara a ser um pecado quando o deixara, porque uma parte de si ainda se preocupava com o que o mundo e a sociedade diriam ou pensariam.

 

E sabia o que o mundo pensava de Henry. Via-o nos olhares de esguelha, escutava-o nas palavras não proferidas, de cada vez que o Dr. Airton ou Nellie falavam do filho que carregava no ventre. Para eles, não passava de um aventureiro impiedoso, um sedutor, um pretensioso. Mas que sabiam eles? Henry não a seduzira. A fome fora sua, a caçadora fora ela e Henry, qual Actéon, sucumbira ao ataque dos seus cães. Quando estavam juntos, quando os seus corpos se enroscavam, o primeiro desejo partia dela, e sentia-se orgulhosa por ter despertado o desejo nele também. Tê-la-ia amado? Ela esperava que sim, mesmo que só um pouco. Mas que direito tinha de exigir esse amor? Que direito tinha de prendê-lo à sala de um lar, onde ela tricotava esperando que ele chegasse para o chá? Teria sido como tentar domar o vento. Henry era um espírito livre, uma criatura selvagem, um macho. Ela conhecia-lhe os defeitos, a infidelidade, mas não deixava de amá-lo por isso. Ele representava a sua parte não realizada, a liberdade que ela, como mulher, nunca alcançaria. Sabia que ele estava em Shishan para uma missão importante e que apenas poderia ser uma parte da sua vida. Deixara-o por não querer prendê-lo mais. O mundo pensava que ele a magoara, mas isso não era verdade. Fora ela que se magoara a si própria. E agora ele estava morto.

 

E ela ficara, chorando pela violenta tempestade tropical que iluminara o seu mundo e desaparecera agora no céu, deixando apenas nuvens negras a flutuar sobre um mar insípido e calmo. Um mar no qual ela nem sequer podia afogar-se porque devia continuar a viver.

 

Porque o seu bebé também vivia. Devia isso ao doutor. Era essa a sua obrigação.

 

Tom, o enfadonho Tom. Tremeu ao pensar nele, mas casaria com ele, se ainda a quisesse. O médico trouxera-a de volta à vida, e ela tinha uma dívida para com a vida. Bebera a chávena da vida até a esvaziar, mas agora tinha de provar as borras. E estava disposta a fazê-lo para se redimir de todo o mal que causara.

 

Alvorada, sexta-feira, 21 de Junho

 

Escrevo à pressa. Os Boxers voltaram. O Fielding e o Tom tinham razão e eu estava enganado. Os piquetes do major Lin abandonaram-nos. Ignoramos o que pode acontecer, mas tememos o pior.

 

Escondo as cartas que te escrevi, conjuntamente com alguns objectos de valor, debaixo de uma das tábuas do soalho da sala de jantar. Se leres estas linhas, reserva um pensamento afectuoso para o teu irmão e a sua família. Confio-te o Edmund e a Mary. Educa-os como cristãos.

 

Havia tanta coisa a dizer, mas lá fora os tambores ecoam.

 

Que o Senhor possa proteger-nos a todos.

 

É triste, Edward, que as coisas tenham de acabar assim. AJenny e o George são ainda tão novos.

 

Sexta-feira, 21 de Junho de 1900

 

Sobrevivemos a um dia terrível. Hoje de manhã, senti-me tentado a pronunciar as palavras do desespero: Eli, eli, Lama sabachthani? Mas Deus não nos abandonou. Estamos juntos, sãos e salvos. A Providência continua a zelar por nós e as asas da sua misericórdia envolvem-nos e protegem-nos do mal.

 

Os Boxers devem ter regressado às primeiras horas da madrugada, antes do nascer do Sol. A princípio, não faziam barulho, e podiam ter-se aproximado discretamente não fora pela presença de espírito de Mr. Bowers. Tinha-se levantado cedo, como é seu hábito enquanto maquinista, e lia a Bíblia na sala de estar quando ouviu um barulho. Pela janela, avistou vultos que se aproximavam da casa. Lembrou-se então de que na arrecadação havia uma caixa de petardos chineses, que eu confiscara certo dia à Jenny e ao George. Encontrou-os sem grande dificuldade, assim como uma pistola de brincar. Enfiou o cano da pistola falsa por uma das seteiras; na penumbra da alvorada devia parecer-se com o cano de uma espingarda. Depois, passou rapidamente de seteira em seteira, acendendo e arremessando os petardos; toda a casa foi acordada pelo que soava como uma fuzilaria. Como é óbvio, era isso que ele pretendia. Surtiu efeito nos Boxers, que se meteram imediatamente em debandada. A cena foi com certeza cómica - vultos de turbante fugindo na penumbra, como crianças assustadas apanhadas a brincar com as roupas do Carnaval - mas nenhum de nós sentiu a mínima disposição para rir. Tão pouco ficámos contentes com a nossa vitória. Estávamos preocupados por os Boxers terem regressado. Também sabíamos que os petardos não os manteriam afastados por muito tempo. Pouco depois do seu ataque falhado, os tambores começaram a rufar, desta vez de mistura com horríveis cânticos e frases sarcásticas, cuja memória nos provocara pesadelos desde a última vez em que tínhamos estado cercados.

 

O que foi incompreensível, e certamente alarmante, é que não se viam em parte alguma os soldados do major Lin, os nossos únicos protectores. Tinham desmontado as tendas, levado as marmitas e tudo o resto. Era manifesto que estávamos à mercê dos Boxers.

 

Podes imaginar o sentimento de traição que todos experimentámos.

 

Reunimo-nos na sala de estar, uns em roupão, outros de calças vestidas apressadamente por baixo das camisas de dormir, tão desamparados como um grupo de maltrapilhos. As crianças estavam muito assustadas, e a Nellie e a irmã Caterina tiveram dificuldade em acalmá-las. Um dos filhos dos Millward berrava a plenos pulmões, um ruído tão horrível como os gritos que ouvíamos no exterior... mas estou a ser injusto. Espero nunca voltar a ver rostos tão assustados e lívidos. Os homens decidiram reunir-se em conselho de guerra. O Bowers e o Tom mostravam-se calmos, mas o Fischer parecia muito abatido, e o Fielding não ajudou, criticando-me por ter aceitado tão facilmente as condições impostas pelo major Lin e ter-lhe entregado as nossas armas.

 

Passarei à frente da troca de palavras mais azedas. Por fim, estipulámos um plano, desesperado, no meu ponto de vista, mas naquelas circunstâncias qualquer coisa era melhor do que nada. Quando os Boxers atacassem, o Bowers e o Fielding, sendo os homens fisicamente mais aptos, defenderiam as portas enquanto pudessem, munidos de cutelos, pás e outras armas que conseguissem improvisar. Isso daria tempo ao Fischer, ao Millward e a mim, com o Tom, de muletas, a sair pela pequena janela situada na parte de trás da casa. Haveríamos de encontrar uma forma de descer a encosta íngreme da colina, levando connosco as mulheres e as crianças. O Bowers e o Fielding juntar-se-iam a nós quando pudessem. Ninguém deu sugestões quanto ao que faríamos depois disso. A verdade é que não fazíamos a menor ideia - mas havia algo de repulsivo na perspectiva de esperar passivamente pelo ataque dos Boxers, e uma morte rápida parece preferível à ideia de ser queimado vivo. Acreditávamos que seria esse o nosso fim, se ficássemos onde estávamos. Quem sabe? Talvez alguns de nós conseguissem escapar.

 

O Septimus Millward nem quis ouvir o nosso plano. ”O Senhor colocou-me aqui e aqui ficarei”, entoou, e ficámos perplexos a olhá-lo. O Fielding insurgiu-se, dizendo-lhe que geralmente o Senhor ajuda aqueles que se ajudam a si próprios, e o Tom tentou chamá-lo à razão, pedindo-lhe que pensasse na segurança da mulher e dos filhos. ”Este lugar é tão bom como qualquer outro para esperar pela nossa passagem para o Paraíso”, foi a resposta dele. ”Quem sou eu para questionar os Seus grandes desígnios?” Nada o demoveu.

 

Dei comigo a ferver de cólera contra aquele homem obstinado. Penso que lhe chamei velho idiota. Nunca fugiríamos deixando a sua família ser queimada viva juntamente com um pai tirano como ele. Era impensável. Além do mais, eu estava preocupado com a Helen, que ainda não se encontrava em condições de andar. Uma vez que os outros homens teriam de defender a nossa retirada, o único com forças para a carregar nos braços era o Septimus Millward.

 

Cada um de nós defendeu os seus argumentos. O Millward ignorou-nos, caindo de joelhos naquele jeito pomposo, com a cabeça erguida para o alto, enquanto rezava. Eram quase nove horas. Já amanhecera havia algumas horas, e Mr. Bowers, que se postara junto à janela, informando-nos de tempos a tempos acerca da concentração dos Boxers, avisou-nos de que havia sinais de uma súbita actividade no relvado. Vinte homens dançavam, no habitual ritual de possessão que conhecíamos de ataques precedentes.

 

Exasperado, voltei-me para os outros:

 

- O que vamos fazer? - perguntei - Lutar? Fugir? Ficar?

 

O silêncio que se seguiu disse-me que era eu que tinha de tomar rapidamente uma decisão.

 

- Millward! - gritei. - Levaremos avante o nosso plano! Não posso forçá-lo a juntar-se a nós, mas posso implorar-lhe que deixe Mistress Millward e os seus filhos irem connosco.

 

Laetitia levantou-se. Estava muito corada.

 

- Eu e os meus filhos ficaremos com o Septimus - sussurrou.

 

Olhei para os rostos queixosos das crianças, e ouvi-me a responder:

 

- Nesse caso, iremos sem vocês. Creio que acrescentei:

 

- Que Deus vos proteja.

 

James, foi indiscutivelmente o momento mais terrível por que passei em toda a minha vida.

 

Sem dizer mais nada, o Bowers e o Fielding saíram para reunir as suas armas. Lançando-me um olhar insondável, a Nellie saiu com a irmã Caterina para ir preparar a Helen para a viagem. Quanto a mim, deixei-me ficar junto à janela, observando os Boxers, sentindo-me perdido.

 

Não sei o que teria acontecido se não se tivesse dado o milagre. Para te ser sincero, o nosso plano era muito arriscado. Estava eu a observar os Boxers no relvado, saltando numa dança cada vez mais frenética, quando ouvi o toque de um clarim, longo, áspero, discordante, elevando-se por trás das últimas fileiras. Os tambores cessaram, os cânticos pararam. Os homens imobilizaram-se num estranho silêncio, e viraram-se, hesitantes. Uma voz forte bradou uma ordem, e todos correram para junto dos companheiros. Depois, e foi isso o mais estranho, toda a multidão fez meia volta e desapareceu em silêncio. No espaço de poucos segundos não havia ninguém onde estivera uma horda de demónios exigindo a nossa morte.

 

Cerca de meia hora mais tarde, o major Lin e a sua cavalaria chegaram aos portões da missão. Vimo-lo apear-se e marchar com ar decidido para os portões, onde bateu com a mão enluvada. Fui ao seu encontro, mas antes que pudesse dizer o que quer que fosse, ele fez uma grande vénia e bateu os tacões. Pedia desculpa! Segundo as suas palavras, os vadios que tinha deixado para nos proteger tinham sido subornados, abandonando os seus postos. Depois de os Boxers nos matarem, eles seriam encontrados amarrados e amordaçados, como se tivessem sido atacados pelos Boxers. Felizmente, um deles fora ter com o major e denunciara os outros. Lin viera o mais depressa possível, e os Boxers tinham batido em retirada quando viram a poeira levantada pelos cavalos que se aproximavam. Afirmou sentir-se envergonhado por um tal acto de indisciplina por parte das suas tropas. Os autores seriam punidos, e ele encarregar-se-ia pessoalmente de que tal incidente não voltasse a repetir-se. Uma guarda formada por soldados da sua mais inteira confiança substituiria os homens que haviam faltado ao seu dever.

 

Assim, achamo-nos de novo em segurança, meu caro irmão - mesmo que continuemos a ser prisioneiros -, e a minha confiança no mandarim foi restabelecida. Não restam dúvidas de que a autoridade civil representada pelo major Lin, que responde perante o mandarim, continua a mandar em Shishan e é temida pelos Boxers, o que é um bom presságio para o futuro.

 

Contudo, sinto que não devemos estar gratos apenas a um poder temporal pela nossa salvação. Depois de falar com o major Lin, quando regressei à sala de estar o Millward continuava ajoelhado. Não proferiu uma só palavra, mas havia uma expressão no seu olhar que parecia dizer: ”Eu sabia. Eu disse-lhe.” E não teve ele razão em colocar a sua vida nas mãos do nosso único Salvador? Pois tenho a certeza de que foi Ele e só Ele que nos salvou do mal, hoje. De todos, apenas o Septimus Millward - esse homem obstinado - se manteve fiel à sua fé. E quem tinha razão?

 

A cabeça tomba-me de sono. Todas estas coisas constituem grandes mistérios. Por ora, apenas posso agradecer humildemente ao Senhor por ter preservado as vidas dos meus queridos Nellie, George e Jenny.

 

Recomendo-te a Ele, meu querido irmão.

 

Terça-feira, 25 de Junho de 1900

 

Pouco aconteceu desde que te escrevi da última vez, mas depois do ataque da semana passada uma espécie de tensão abateu-se sobre a nossa casa, dissipando o bom humor que caracterizou os primeiros dias da nossa prisão forçada.

 

Os homens do major Lin revelam-se eficientes para impedir que os Boxers se aproximem da casa, mas eles continuam a ser uma presença ameaçadora, do outro lado da barreira. Os tambores tocam sem parar, dia e noite. Estamos roucos e temos dores de garganta, à força de gritarmos para nos fazermos ouvir; na maior parte do tempo, comunicamos entre nós por gestos, como os monges de Cister cumprindo voto de silêncio. Estamos com os nervos abalados, dormimos mal, sentimo-nos cansados e irritáveis e perdoamos menos facilmente as pequenas idiossincrasias uns dos outros.

 

A cada dia que passa, temos direito a uma demonstração de artes marciais, à mistura com invectivas. Os soldados não intervêm, sem dúvida para permitir que os nossos agressores descarreguem alguma da tensão acumulada. Vemos essas demonstrações porque pouco mais temos para fazer. Quase parece um espectáculo de feira, e seria inofensivo se não houvesse esse atroz objectivo de nos matar por detrás dos seus saltos e malabarismos com espadas. Terão os nossos antepassados romanizados assistido por detrás das muralhas das suas cidadelas às danças guerreiras dos invasores saxónios, com um misto semelhante de desdém e medo? Hoje de manhã, para variar, a demonstração foi feita por mulheres, a quem chamam Lanternas Vermelhas. Essas raparigas de olhar feroz, envergando pijamas encarnados, parecem ser as sacerdotisas do culto - mas não imagines, meu caro irmão, que essas jovens feiticeiras tenham algo de feminino e muito menos de sagrado: foram treinadas para as mesmas danças com espadas e lanças que os homens, e os gritos e injúrias que saem das suas bonitas bocas parecem ainda mais abomináveis em vozes de soprano.

 

A tensão que pesa sobre os nossos filhos é terrível. Com o rosto pálido, encolhem-se e abrem muito os olhos. O George e a Jenny esforçam-se, coitados, mas os brinquedos que provocavam tanto deleite ainda há uma semana jazem agora no chão sem qualquer utilidade. O George fica sentado durante horas com um dos seus livros de aventuras, mas eu vejo que o seu espírito está ausente e que as páginas não são viradas. Os filhos dos Millward retomaram os seus antigos hábitos e ficam ajoelhados durante horas intermináveis, com a mãe, enquanto o Septimus lá vai entoando as suas orações, quase inaudíveis sob o troar dos tambores. Não sei onde aquele homem vai buscar forças. Ou talvez saiba. Apesar da sua loucura, há qualquer coisa de admirável na sua devoção fanática. De todos nós, talvez seja o único que não baixa a cabeça perante a tensão a que somos submetidos. Inconscientemente, deixamo-nos influenciar por ele. Ontem, fiquei surpreendido por ver a irmã Caterina ajoelhada, no meio da família do Septimus, enquanto ele rezava.

 

Por outro lado, o Fielding não consegue ocultar o ódio que sente pelo Septimus e evita a sua companhia. Dir-se-ia que sente que o outro desafia a sua autoridade. Mas desde o ataque que o Fielding tem tido um comportamento estranho. É trágico ver decair assim um homem que respeitava e cujos conselhos tanto estimava. Nada sobrou do seu sentido de humor lacónico, e a sua conversa não passa agora de uma sucessão de queixas amargas. Recrimina-me, em particular, pela nossa difícil situação, afirmando que, se lhe tivéssemos dado ouvidos, teríamos fugido quando ainda havia uma hipótese para o fazer. Não é menos crítico para com os outros. Na realidade, parece desprezar-nos a todos. Fecha-se em si próprio, fitando-nos com uma intensidade que poderia ser ódio. Assim, temos tendência a evitá-lo. Hesito em considerar cobarde um homem que, a acreditar nas suas próprias palavras, terá enfrentado em tempos os selvagens Apaches, mas tudo indica que se deixou agora dominar pelo desespero.

 

Felizmente, os outros mantêm-se relativamente confiantes quanto à nossa libertação. O Bowers, ao seu jeito, é a calma em pessoa, o Fischer tem uma fé cega na companhia do caminho-de-ferro, que há-de vir libertar-nos. Quanto à coragem e ao sangue-frio do Tom, são inabaláveis. No entanto, preocupo-me com ele. À minha revelia e sem que o soubesse, foi até ao quarto da Helen há três dias. Não sei o que disseram um ao outro, mas não foi certamente a reconciliação pela qual tanto rezei. O pobre rapaz comporta-se como se nada se tivesse passado, mas há qualquer coisa de severo no seu rosto, de frio nos seus modos, que me faz pensar num coração despedaçado. Não restam quaisquer vestígios, nesse gélido estranho, do jovem afável e descontraído que nos encantou à sua chegada a Shishan, no ano passado. Pelo contrário; há algo de insondável e implacável nele que é quase assustador. Mesmo a Jenny, que gostava tanto dele e abusava da sua paciência, passou a evitá-lo. O mais triste disto tudo é que ele nem sequer repara nem se rala. E a Helen? No que diz respeito à sua saúde, a recuperação é espantosa, mas mal fala, mesmo com a Nellie. Fica deitada na cama, com os olhos fixos numa fenda do tecto. Quem sabe o que vai na sua cabeça? Entretanto, lá fora os tambores continuam a rufar.

 

Quem me dera poder voltar a instaurar as actividades que nos mantinham optimistas no princípio do cerco, mas receio não ter imaginação para mais. Não te falei, na minha última carta, porque o ignorava, mas o ataque à nossa casa na semana passada teve uma terrível consequência. A dada altura, taparam o poço. Agora estamos completamente dependentes dos guardas, que percorrem duas vezes por dia o longo caminho até ao riacho, ao fundo da colina. A água é salobra, e quatro baldes por dia não chegam para saciar a nossa sede, especialmente quando a maior parte do líquido é derramado no regresso. Racionámos a pouca quantidade disponível para um bule de chá de manhã e outro à noite.

 

Cada um tem direito a uma chávena desse líquido ”ao natural” à hora do almoço. Se acrescentar que a temperatura chegou aos trinta graus, nestes últimos dias, podes imaginar a nossa provação. Nem sequer se coloca a questão de tomarmos banho e lavarmos as roupas. Sem dúvida que as consequências desagradáveis, como as comichões e outras coisas, contribuem tanto para a nossa irritabilidade como o barulho contínuo dos tambores.

 

Por entre este calor e estas privações, os meus pensamentos regressam frequentemente à nossa amada Escócia, e sonho com a brisa nas charnecas. Quando tudo isto tiver acabado, decidi que iremos de férias. Gostaria de fazer uma longa caminhada contigo, meu irmão, pelas colinas e vales. E voltar a ver o Edmund e a Mary, a quem envio todo o meu amor e, também, os da sua mãe, do seu irmão e da sua irmã. Visita-os por mim no colégio, de tempos a tempos, se puderes, James.

 

Oh, estes tambores, estes tambores! Como anseio por um momento - nem que seja apenas um - de sossego!

 

Esperara no pequeno quarto que Tom fosse vê-la. Esperara, contemplando com olhar vago o estuque rachado e a sua vida arruinada, deitada, como uma vítima das suas próprias esperanças perdidas.

 

Ao fim de muitos dias, ele apareceu finalmente. Entrou sem fazer barulho e encostou-se à porta.

 

- Então... - disse ele ao fim de uma eternidade.

 

- Casarei contigo, Tom, se ainda me quiseres - respondeu, fixando o tecto e as fendas.

 

Ele riu-se, uma risada dura e brutal como ela nunca ouvira.

 

- Não me parece que isso ainda seja uma possibilidade. Não me vejo a criar o filho de um filho-da-mãe.

 

Helen seguiu com os olhos uma formiga que saíra de uma das fendas.

 

- Além do mais - continuou Tom -, é tudo algo teórico. Suponho que já te apercebeste da situação. Se não nos tirarem daqui para nos executar, provavelmente seremos queimados vivos aqui mesmo. Eu, tu e o teu bebé por nascer. Lamento, minha cara. - A formiga desapareceu. - Não é propriamente a altura mais adequada para o repicar de sinos, pois não? De qualquer maneira, nunca os ouviríamos com o rufar dos tambores.

 

E riu-se de novo.

 

- Estiveste a beber? - perguntou Helen calmamente.

 

- Beber? Podes crer que estive. Não que os outros tenham reparado. Para eles, eu continuo a ser o bom, honesto e calmo Tom, o amável cornudo. Sou a sua grande esperança, mesmo aleijado. Mas por certo não reparaste que ando com muletas, pois não? Estiveste acamada, a recuperar da tua dependência da droga. O doutor disse-me que eu não devia ver-te porque ainda não estavas totalmente curada, mas eu não sou tão tonto como pareço. Ou talvez seja... Também pouco me importa...

 

- Pobre Tom... - Pela primeira vez, olhou para ele.

 

- Isso é compaixão, minha querida? Como te fica bem. Eu sabia que tinhas bom coração, mesmo tendo andado a fornicar com meio mundo nas minhas costas.

 

- Apenas com o Henry - protestou ela, virando a cabeça.

 

- Apenas com o Henry? - repetiu Tom, rindo-se. Que alívio! Apenas com o Henry... Nesse caso, as minhas condolências! Tenho tanta pena que aquele pulha tenha sido espancado até à morte. Gostaria tanto de o ter feito eu mesmo.

 

- Porque vieste até aqui? - perguntou ela docemente.

 

- Bom, minha cara - respondeu Tom numa voz falsamente jovial, cambaleando ao de leve. - É uma boa pergunta. Sabes, estava sentado na sala de jantar a beber um copo sozinho, Sabes nós, homens, uns sentimentais... Comecei a pensar no meu amor perdido. E disse para comigo: ”Ela não está assim tão longe. E, com o velho Henry morto, pode ser que se esteja a sentir sozinha.” Por isso, aqui estou.

 

Helen lançou-lhe um olhar frio, mas não disse nada.

 

- E comecei a perguntar a mim mesmo: ”O que tinha o velho Henry que eu não tenho?”

 

Voltou a abrir a boca e parecia que ia continuar, mas meneou apenas a cabeça. Largando a porta, cambaleou pelo quarto até se deixar cair numa cadeira. Helen estremeceu mas sentou-se na cama, com o lençol puxado até ao queixo. Tom tinha agora um olhar perdido e a boca pendia-lhe molemente.

 

- Porquê, Helen Francês, porquê?

 

Era quase um queixume, e os seus olhos estavam marejados de lágrimas.

 

- Eu amava-o.

 

- E eu? Nunca pensaste que eu te amava? Que te desejava?

 

- Sim.

 

- Estávamos noivos, caramba! E entregaste-te a ele, deixaste...

 

- Deixei o quê, Tom? Não foi assim que as coisas se passaram.

 

Ela olhou para o homem alto que soluçava, sentado na pequena cadeira de madeira. Não experimentava qualquer sentimento particular por ele. Podia estar a contemplar um actor no seu papel, mas lembrou-se do seu dever, ao qual se havia resignado. Casar-se-ia com aquele homem, se ele a aceitasse. Por causa do filho de Henry.

 

- Está tudo bem, Tom. Está tudo bem.

 

- Vamos todos morrer aqui - gemeu Tom, por entre os soluços. - Os Boxers vão matar-nos, e eu vou morrer... vou morrer sem nunca ter estado com uma mulher.

 

Helen aproximara-se do fundo da cama, para tentar confortá-lo, mas ao ouvir as últimas palavras, estacou.

 

- É por isso que vieste até aqui? - perguntou. - Pensaste que eu ia dormir contigo?

 

- Não - rosnou ele -, mas entregaste-te ao Manners. Prostituíste-te com ele...

 

- É realmente o que pensas acerca de mim, Tom? Que sou uma prostituta?

 

Tom deixara de chorar, mas o seu peito continuava a arfar. Assoou-se. Ao jeito das pessoas embriagadas, a sua disposição mudou subitamente; arvorou uma expressão matreira, como uma criança que adula alguém para conseguir o que quer.

 

- Não te importas?

 

- De quê? De ir para a cama contigo? É isso que queres? Tom baixou a cabeça, mas a expressão matreira não se desvanecera do rosto.

 

- Não pensei no que disse - resmungou. - É a bebida. Ainda te amo, Helen.

 

Ela fitou-o friamente; afastou o lençol e voltou a fitá-lo. Tom observava-a com uma expressão que era um misto de tristeza e de fanfarronice.

 

- Não és obrigada... - murmurou.

 

Ela desfez o laço da camisa de dormir e, sem desviar os olhos de Tom, fê-la passar pela cabeça. Estava agora nua à frente dele. Nenhum dos dois se mexeu.

 

- Vais ficar aí sentado? - perguntou Helen ao fim de algum tempo. - Ou vais continuar a. queixar-te?

 

Lentamente, desajeitadamente, Tom pôs-se de pé e assim ficou, oscilando um pouco.

 

- Helen...? - sussurrou com voz hesitante, debruçando-se para a frente e estendendo uma mão. Ela sobressaltou-se e recuou, mesmo contra a sua vontade, quando sentiu os dedos frios dele no peito.

 

- Então é assim - sibilou Tom, e baixou o braço. Cabra! - bradou, esbofeteando-a. - Se alguma vez voltar a tocar-te, será para te torcer o pescoço. Puta...

 

E saiu aos tombos, batendo a porta atrás de si.

 

Ela ficou deitada na cama. A face ardia-lhe. Outras formigas saíam da fenda no tecto. Contemplou-as. Os tambores tocavam, lá fora no relvado. Helen estendeu a mão para pegar na camisa de dormir, mas não a vestiu. Amassou-a numa bola a que se abraçou, com os joelhos dobrados a tocar-lhe no peito, em posição fetal. Enterrou o rosto na almofada mas não conseguiu chorar.

 

Sábado, 29 de Junho de 1900

 

Aconteceu a coisa mais extraordinária!

 

A noite ia alta. Estávamos já quase todos deitados e Herr Fischer preparava-se, na sua maneira meticulosa, para o primeiro turno da vigia, colocando sobre a mesa da sala de jantar o relógio, a Bíblia, o lenço, o cachimbo, a bolsa de tabaco, o frasco de brande, o pequeno retrato emoldurado da mãe (tanto método é cansativo de ver). Eu estava a apagar os candeeiros e a fechar as persianas.

 

Estava a dar corda ao relógio de pêndulo - é engraçado como nos agarramos aos nossos velhos hábitos de um tempo em que as nossas vidas eram normais quando dei comigo a ouvir uma pancada discreta numa das persianas. Podia muito bem não a ter ouvido, se não tivesse havido nesse preciso instante uma pausa no horrível rufar dos tambores. (Nestes últimos dias, gozámos de afortunados períodos de silêncio. Ao que parece, até mesmo os Boxers se cansam, às vezes.) A princípio, julguei que seria um ramo a bater contra as persianas. Há uma árvore perto de uma das janelas da sala de jantar e na altura o vento soprava com força. (O calor abrasador e a pressão atmosférica carregada têm propiciado noites de tempestade, mas, para mal dos nossos pecados, não chove.) No entanto, era um som demasiado persistente e regular para ser provocado por causas naturais. Com todo o cuidado, ergui a persiana uns três centímetros e, com a minha lanterna, perscrutei a noite lá fora. Vi um rosto branco, com um turbante boxer, e o meu moral ensombrou-se ao pensar que eles estavam a atacar novamente a casa. Foi então que reparei na insistência do olhar, no nariz pontiagudo, manifestamente não chinês, e ouvi-o murmurar em inglês:

 

- Deixe-me entrar... Sou eu, o Hiram...

 

Podes imaginar o choque que tive. O único Hiram que eu conhecia fora assassinado meses antes, e eu assistira inclusivamente à execução dos assassinos! Durante alguns segundos, perguntei a mim próprio se teria à minha frente um fantasma! Mas olhei melhor e era indiscutivelmente o Hiram Millward. Não se tratava de um fantasma.

 

- Depressa - murmurou. - Deixe-me entrar, antes que eles me vejam.

 

Depois de chamar o Fischer, abri as persianas - tive a presença de espírito de apagar primeiro a lanterna - e juntos içámos o rapaz para o interior. Conduzimo-lo à sala de estar e, à luz do candeeiro, examinámos com espanto a figura magra, vestida como os Boxers da cabeça aos pés.

 

- Meu caro rapaz, estás vivo... - exclamei. Deve ter sido um comentário idiota, mas eu não sabia o que dizer.

 

Encontrava-se num estado de total exaustão; mal se aguentava nas pernas, tinha grande dificuldade em manter os olhos abertos e tremia.

 

- Depressa! - ordenei ao Fischer. - Vá chamar o pai dele, enquanto lhe dou um gole de brande.

 

Encaminhei o rapaz para uma poltrona, onde se sentou sem protestar. Engasgou-se a princípio com a bebida forte, mas lá aguentou alguns goles.

 

No instante seguinte, o Septimus Millward estava à ombreira da porta; os seus olhos faiscavam, a barba parecia em chamas. Projectou uma sombra enorme na sala.

 

O rapaz ergueu os olhos para a severa personagem que o contemplava e pareceu encolher-se por entre as almofadas. O rosto já lívido empalideceu ainda mais sob o efeito do medo. Durante um instante de tensão, pai e filho olharam um para o outro. O olhar de Septimus era implacável e receei uma explosão de emoções. Mas, com duas passadas, aproximou-se do filho, levantou-o e apertou-o com toda a força nos braços; enfiou o rosto no ombro ossudo do rapaz e o seu grande peito estremeceu de emoção. Quando voltou a erguer a cabeça, as lágrimas escorriam-lhe pelo rosto. Só depois captou o meu olhar e fiquei estupefacto ao ouvi-lo rir.

 

- Não sei se tem um vitelo gordo à mão, doutor disse, no tom mais dócil que alguma vez ouvi da sua boca -, mas vinha mesmo a calhar. O meu filho estava morto e regressou à vida; estava perdido, e reencontrou-se. Agora, queira dar-nos licença. O Hiram precisa da mãe.

 

Aqui tens, James. O filho pródigo regressou. Pai e filho saíram juntos para o quarto, e, desde então, deixámos a família viver aquele reencontro. Saberemos mais amanhã de manhã, com certeza.

 

De qualquer forma, estamos mudos de espanto e ninguém consegue explicar esta extraordinária reaparição de alguém que julgávamos morto. Por ora, sinto o coração a transbordar de alegria e foi por isso que me sentei esta noite e te escrevo uma longa carta. O Senhor sabia-o: precisávamos de algo para nos reconfortar, nesta terrível provação, e o que podia ser mais alegre do que esta misteriosa ressurreição? Gostava muito de ter um vitelo gordo. Há muito tempo que não ”comemos e festejamos”, como diz o Evangelho.

 

Não obstante, uma dúvida assalta-me. Três homens foram executados pelo assassínio do rapaz. O mandarim autorizou e foi mesmo ao ponto de presidir à execução. Foi realmente um erro judicial ou um homicídio em vez de um julgamento? Quem é afinal o homem de quem dependem as nossas vidas?

 

Domingo, 30 de Junho de 1900

 

A alegria pelo regresso de Hiram, infelizmente, dissipou-se com as notícias que ele nos trouxe. A nossa situação parece ser muito pior do que imaginávamos. O nosso caso não é isolado. Todo o norte da China está inflamado pela revolta. Mais grave ainda, a corte imperial abraçou publicamente a causa dos Boxers. O Hiram mostrou-nos a cópia de uma proclamação que arrancou de um muro. Em caracteres pretos sob o selo imperial, incita os súbditos leais ao trono a sair para a rua e matar todos os estrangeiros.

 

Os rumores que se espalham pela cidade são alarmantes. Os Boxers e as tropas imperiais - parece não haver grande diferença entre eles - lançaram-se em grandes ataques contra os estrangeiros, em Tientsin e Pequim. As missões diplomáticas estão cercadas. Alguns afirmam que já caíram, que a cabeça do ministro britânico foi enviada numa bandeja à imperatriz viúva. Em Tientsin, a comunidade estrangeira aguenta-se, mas um exército que visava ajudá-los, vindo de Taku, foi derrotado, e vários dos nossos navios foram afundados pelos canhões dos fortes dessa cidade. Trofeus, e até mesmo partes de corpos de soldados estrangeiros que tombaram no campo de batalha passeiam de cidade em cidade. Hiram assistiu a uma demonstração dos Boxers na praça do mercado onde exibiram uma túnica escarlate manchada de sangue, um colar de orelhas humanas e ainda outras partes anatómicas que não posso mencionar.

 

Segundo ele, a situação em Shishan é precária. Aparentemente, o poder do mandarim no yamen passou a existir apenas no papel. É o Homem de Ferro Wang quem detém o verdadeiro poder na cidade. Lembras-te de eu te ter falado deste rei dos bandidos, meio mítico, que vivia escondido nas florestas das colinas Negras? Pois bem, não é um mito. É um monstro sanguinário que tomou o controlo não só dos Boxers mas de todas as associações criminosas da cidade, decidindo sobre a vida e morte das pessoas a partir do seu quartel-general, estabelecido numa loja de bolinhos de massa perto da praça. Mantém o mandarim no lugar apenas para cometer os seus crimes com a devida aprovação legal. Toda e qualquer pilhagem à casa de um mercador é feita com um mandato do yamen. Ninguém está livre dos seus ataques, já que é fácil manchar a reputação seja de quem for, acusando-o de ser um ”simpatizante cristão”. Temo pelos nossos amigos, Mr. Lu e Mr. Jin.

 

O facto de o mandarim aprovar estes crimes - mesmo obrigado a tal - choca-me muito; mas, assim sendo, tudo indica que mantém alguma liberdade de acção. A milícia do major Lin ainda recebe ordens dele, mesmo que os partidários do Homem de Ferro Wang tenham substituído muitos dos criados do palácio e que os bandidos se sintam como em casa no yamen. Talvez devamos estar gratos por continuar a existir uma administração civil. Aparentemente, o mandarim mantém algum poder de negociação e pode corrigir alguns dos piores excessos. Afinal, representa a autoridade imperial, e suponho que o Homem de Ferro Wang, apesar do seu poder, está consciente de que, em última análise, deve continuar nas boas graças da corte, em nome da qual todas as atrocidades parecem ser cometidas. É um pobre consolo para nós, pois deixa uma pergunta no ar: se o mandarim deve obedecer às ordens de Pequim, e se Pequim exige a eliminação dos estrangeiros, durante quanto tempo poderá ele continuar a proteger-nos?

 

Depois de tudo o que viu e ouviu, o Hiram está convencido de que não existe um verdadeiro desejo de nos proteger. A nossa situação é bem conhecida e fala-se muito de nós na cidade. A populaça pretende que nos mantenham vivos para um julgamento encenado, após o qual seremos todos executados. Aparentemente, já foi fixada uma data, e estão a redigir a proclamação.

 

Confesso que, pela primeira vez, começo a aceitar que a minha confiança no mandarim era imerecida. Não preciso de um triunfante Burton Fielding para me dizer que estava enganado desde o princípio. Não me alongarei sobre os meus sentimentos a esse respeito. São demasiado tumultuosos. Foi um dia muito triste, meu irmão, e precisaremos de toda a nossa força moral se esperamos sobreviver para desfrutar de um futuro que se tornou subitamente tão incerto.

 

Segunda-feira, 1 de Julho de 1900

 

O Hiram é um rapaz espantoso.

 

Estava sentado no sofá, depois do almoço, com ar modesto, depois de ter recuperado por completo com uma noite de descanso. O Septimus encontrava-se a seu lado, inclinando a cabeça e sorrindo com complacência, como um empresário exibindo os dotes do seu jovem prodígio. Quanto mais aterrorizadoras eram as experiências que o filho contava, mais ele parecia complacente. Creio que este homem estranho leva a parábola à letra. Que importa o pecado do filho pródigo, se ele se arrependeu e o pai lhe perdoou? Que importa quanto sofreu, uma vez que a ovelha tresmalhada voltou ao rebanho? A alegria que o Septimus sente com o regresso do filho é genuína, mas a sua serenidade parece desumana a alguns de nós, porque o que o rapaz contou faria chorar uma pedra; precisei de todo o meu sangue-frio para manter a calma, e a Nellie teve de sair da sala. O Hiram falou, tranquilamente e com voz neutra, acerca de experiências que teriam comovido os homens mais duros, mas que ele, apesar da sua juventude, arranjou maneira de superar.

 

Consegues imaginar, James, que enquanto nós continuávamos a levar a nossa vida confortável e pretensiosa em Shishan, aquele rapaz, no centro da cidade onde vivíamos, sofria as piores torturas? Foi iludido por rufias que o levaram para uma casa de pecado e o encarceraram num quarto. Ali, dia após dia, mês após mês, foi submetido a tais vergonhas e crueldades que só espero que não consigas imaginá-las. Levantou a camisa e mostrou-nos marcas de queimaduras de cigarro nas costas, bem como cicatrizes deixadas pelo que penso serem vergastadas. Quem sabe que feridas as marcas de Sodoma deixaram na sua pobre alma? Era um joguete na mão de brutos. Durante a maior parte do tempo, se compreendi bem, estava acorrentado à cama. Oh, é demasiado horrível, só pensar em tal coisa.

 

No entanto, não falou sempre das crueldades a que foi submetido. Evocou também a gentileza que encontrou naquele inferno. Havia uma rapariga, uma prostituta, que fazia o seu melhor por zelar por ele, tratando-lhe os ferimentos e transmitindo-lhe o seu exemplo de coragem e vontade de suportar aquele suplício. Foi essa Maria Madalena que convenceu o Manners - sim, esse patife que desgraçou a pobre Helen Francês - a salvar o Hiram. É estranho ouvir falar do Manners em termos elogiosos, mas o rapaz considera-o seu salvador e não quer ouvir uma só palavra crítica contra ele. Também não aceita a ideia de que ele esteja morto, muito embora tenha testemunhado o espancamento infligido pelo major Lin. Foi para descobrir onde se encontra actualmente Manners que o Hiram se disfarçou de boxer e regressou à toca do lobo, em Shishan.

 

A minha admiração é tanta que fico sem palavras quando penso na coragem daquele pobre rapaz perseguido que, mal salvo do perigo, volta de sua própria vontade para enfrentar os piores perigos, por lealdade para com o amigo. Viveu entre os Boxers, comeu com eles, participou dos seus rituais. Frequentou a casa de chá onde o Homem de Ferro tem a sua corte, e chegou a falar com o seu carrasco no bordel, um tal Ren Ren, que tem agora uma posição de destaque na hierarquia dos Boxers. Como conseguiu que não o desmascarassem, não faço a menor ideia. Limitou-se a encolher os ombros, quando lhe fiz essa pergunta e disse-me que, durante o seu encarceramento, aprendera a desempenhar um papel. Segundo parece, conseguiu dissimular os seus traços de ocidental enrolando à volta da cara, como um tuaregue, um turbante, e só saía com os Boxers depois de escurecer, ficando nas sombras projectadas pelos archotes. Que ele tenha conseguido escapar com um disfarce tão rudimentar é extraordinário. A sua audácia é impressionante, mas quando lhe fazemos perguntas, mostra-se tímido e subestima-se. Tanta coragem num rapaz de quinze anos! De qualquer maneira, afirmou que a sua audácia foi recompensada. Ouviu falar de um prisioneiro fechado nos calabouços do yamen, um demónio estrangeiro que cometera crimes tão terríveis que o mantinham numa cela isolada para lhe infligir um castigo especial. Um grande mistério envolvia esse prisioneiro; corria o boato de que o mandarim conduzia pessoalmente o interrogatório e presidia às torturas. Os segredos que esse homem detém em seu poder dizem respeito à segurança do Império, segundo consta. O Hiram decidiu que tinha de entrar no yamen para tirar o caso a limpo. Fê-lo aproveitando-se de uma demonstração efectuada por um bando de Boxers que tinham ido prestar juramento de lealdade aos Ch’ing.

 

Não sei como, mas encontrou o caminho para os calabouços até à porta da tal cela secreta. Por entre as barras, viu um homem fechado numa gaiola suspensa no ar. Estava nu, e o braço que pendia fora da gaiola apresentava-se ensanguentado e coberto de contusões, e, num dos dedos, usava um anel fino de ouro, parecido com o anel de sinete do Manners. Chamou-o pelo nome e obteve uma resposta. A mão tombada fez-lhe gestos insistentes, como que dizendo que se fosse embora. Depois o homem falou, num chinês arrevesado, com voz rouca. O rapaz julgou perceber: ”Vai ter com o doutor. Vai ter com o doutor. Não é o que parece. Eu irei mais tarde. Vai.” Nesse instante, sobressaltou-se ao ouvir os passos de guardas que se aproximavam, e apressou-se a partir

- mas estava convencido de ter encontrado o Manners, que lhe dera instruções para ir esperá-lo na missão. Do seu ponto de vista, cumprira a sua tarefa.

 

No entanto, não veio de imediato para cá. Ainda tinha uma dívida de lealdade para com a sua amiga, a cortesã que o Manners também ajudara a fugir do Palácio dos Prazeres Celestiais. Também fora capturada pelas tropas do Lin, no acampamento do caminho-de-ferro, e tinham-na certamente levado de volta ao bordel, onde fora a amante pessoal do major. O Hiram temia o pior quanto ao destino da rapariga. E eis o mais espantoso desta história: regressou, por vontade própria, ao sítio onde estivera encarcerado tanto tempo! Podemos imaginar as consequências se o reconhecessem, mas, mesmo assim, ele encontrou a coragem necessária para ir até lá, e tudo pela amiga. Arriscou-se muitíssimo, mas encontrou-a. Fora brutalmente espancada pelo major Lin, mas para o Hiram era menos grave do que se tivesse sido espancada pelo proprietário do bordel, esse tal Ren Ren, que é conhecido por ter torturado raparigas até à morte. Os piores horrores, e o rapaz fala deles com toda a simplicidade! A rapariga convenceu-o de que estava em segurança sob a protecção do major Lin, que, depois de a castigar, voltara a atribuir-lhe o antigo estatuto de sua amante pessoal. O rapaz, no entanto, entregou-lhe um revólver, que o Manners lhe dera e que ele guardara desde então escondido nas dobras das roupas. Chegado a esta altura do relato, o Fielding saiu encolerizado da sala, resmungando: ”Quando penso no que poderíamos fazer com esse revólver! E o rapaz deu-o à prostituta!” Ficámos todos envergonhados, mas o rapaz continuou. Pouco mais havia a contar. Saíra de Shishan e tomara o caminho até à nossa missão, atravessando o campo. Mas ainda teve de esperar dois dias no meio dos Boxers que cercam a casa, antes de julgar que podia aproximar-se em segurança.

 

Que história, James! Raramente ouvi um tal relato de privações, de crueldade e de bravura. Como é evidente, não tivemos coragem de expressar ao rapaz as nossas dúvidas quanto à possibilidade de o prisioneiro que ele viu ser o Manners. O encontro foi fugaz e a mensagem parecia-se mais com o delírio de um pobre infeliz, torturado há já muito tempo. Mas, se era o Manners, porque falou em chinês? No entanto, não nos custa nada deixar o rapaz acreditar que o Manners sobreviveu, se isso o reconforta - desde que a Helen não venha também a crer em tal coisa. Isso poderia reabrir feridas antigas.

 

Oh, James, que tempos terríveis vivemos, e como o futuro, de súbito, parece sombrio. O que mais me entristece é aperceber-me de que o homem em quem tanto confiei parece ter-nos traído. O mandarim talvez nos tenha protegido até agora, mas, ao que tudo indica, fê-lo apenas para nos reservar um destino pior.

 

Pensar que mantive com ele tão grande intimidade, tendo-o na conta de meu amigo, para depois perceber que me enganou durante todo este tempo acerca do seu verdadeiro carácter! Perdoei o mal e chamei-lhe pragmatismo. Confundi a venalidade com o compromisso, e o oportunismo com a sabedoria. Dou-me agora conta de que fechava os olhos ao assassínio - ou pior, porque cometido sob o véu protector da lei.

 

A história do Hiram convenceu-me de que eu estava redondamente enganado. Por um motivo qualquer (dinheiro? chantagem?), agora não restam dúvidas de que o mandarim é conivente com criminosos, que mandou executar inocentes para que os terríveis crimes cometidos contra o Hiram não fossem descobertos. Quem, à excepção desse louco que é o Millward, poderia continuar a crer que o rapaz ainda estava vivo, depois da condenação dos seus assassinos numa sessão de julgamento no yamen. Mais uma vez, o Septimus teve razão, enquanto os mais sábios se deixaram enganar.

 

Há uma lição nisto tudo, James. O Septimus depositou a sua confiança no Senhor. Acreditou no que o seu coração - ou as suas vozes - lhe dizia, enquanto todos os outros, incluindo eu, estavam cegos pelo que acreditávamos ser a razão. Aconteça o que acontecer - e, sinceramente, com Tientsin e Pequim cercadas, e até mesmo a corte imperial contra nós, que esperança nos resta?

 

Seria melhor seguir o exemplo do Millward e confiar nesse Poder Superior, entregando-nos humildemente nas. Suas mãos, sem nos determos com as pequenas desgraças deste mundo, mas, antes, preparando as nossas almas para esse Regresso que a Graça de Nosso Senhor Jesus Cristo nos prometeu.

 

Mais uma vez, toda a minha admiração vai para o rapaz, pois de todos os seus actos corajosos, o mais corajoso foi o de ter decidido vir juntar-se a nós, mesmo sabendo que estamos condenados por decreto imperial, e que, se viesse para aqui, partilharia o nosso destino. Ele pode falar do Manners, mas no fundo estou convencido de que deseja estar com a família, unida no seu amor, antes do fim. Sei o consolo que me dá ter a Nellie e as crianças a meu lado. Se houvesse a mínima esperança de os salvar, daria a minha vida por eles - mas como não restam quaisquer esperanças, o simples facto de pensar que viveremos e morreremos juntos é já um sinal de misericórdia. É mais do que isso. É uma espécie de alegria. O que pode vencer o amor?

 

Já é tarde. Tenho de dormir. Devemos ser fortes para encarar o dia de amanhã, e o seguinte, e o outro que se lhe seguirá - todos aqueles que nos restam viver.

 

Pensa em nós. Lá fora, os tambores recomeçaram a tocar.

 

Mais dias se tinham passado, e ela decidira levantar-se. Encontrou Tom na despensa e sorriu-lhe, mas ele contentou-se em resmungar qualquer coisa e afastou-se. Nellie e o médico mostraram-se gentis para com ela. Herr Fischer pegou-lhe nas mãos e disse-lhe que estava contente por ela haver recuperado da sua doença. Mas todos naquela casa pareciam transtornados - e compreendeu que tinham recebido notícias de que a sua execução era agora certa. Passou o tempo a tricotar com Jenny: a menina parecia encontrar algum conforto na sua companhia e, naqueles momentos, Helen não tinha de pensar. Contudo, sentia-se triste por uma menina tão encantadora ter de morrer em breve.

 

Quanto a si própria, sentia-se aliviada. Agora, já não havia outra alternativa. Era de pasmar que a sua vida miserável tivesse sido prolongada, mas ela ansiava o nada, o desaparecimento.

 

Quinta-feira, 4 de Julho de 1900

 

Agora, sei o que se sente quando se vive numa cela de condenado à morte. Talvez isto te surpreenda, mas não é tão intolerável como se possa pensar. Estranhamente, a ideia de um fim iminente não nos ocupa o espírito. Para os cristãos, o que é a morte senão uma libertação de todos os problemas, a travessia de um riacho para um mundo mais feliz? O mais intolerável é a espera. Seríamos mais felizes se soubéssemos quando irá acontecer.

 

Isto também pode surpreender-te, mas nos últimos dias recuperámos alguma da alegria que reinou em tempos aqui em casa. Já mal damos pelos gritos e o rufar dos tambores no exterior. Receava que as inquietantes notícias trazidas pelo Hiram fizessem com que todos perdessem a coragem, mas foi o contrário. Agora que sabemos que o pior vai sem dúvida acontecer, deixámos de nos preocupar.

 

Cada um parece adaptar-se à situação à sua maneira. A família Millward dá a impressão de estar em férias, tão contentes estão com o regresso do Hiram. A Nellie contou-me, no outro dia, que ouviu o Septimus dizer uma piada. Não era uma piada particularmente engraçada, e por isso não a repetirei, mas ultimamente tem-se revelado aquilo que eu poderia descrever como brincalhão, se consegues imaginar um severo profeta do Velho Testamento a ser brincalhão. Foi mesmo ao ponto de participar em alguns dos jogos das crianças. O George instalou o seu comboio no quarto de brincar e o Septimus consegues imaginar? - brinca aos chefes de estação, com um lenço atado à volta do pescoço e o boné do Bowers na cabeça. De tempos a tempos, sopra solenemente um apito. É deveras cómico.

 

O Bowers e o Fischer tornaram-se os melhores amigos do mundo. Estabeleceram uma rotina: leitura da Bíblia de manhã, partidas de xadrez à tarde. Para nosso prazer, o Fischer voltou a tocar violino à noite, e dá-nos pequenos concertos regularmente com a Nellie. É difícil ouvi-los, por causa do ruído ensurdecedor dos tambores, mas esforçamo-nos.

 

A irmã Caterina remeteu-se à contemplação, rezando horas a fio, durante o dia, à imagem da Virgem Maria que tem no seu quarto. Diz-me que se sente muito próxima da pobre irmã Elena, acerca da qual devemos presumir o pior, e está feliz por saber que as duas vão reunir-se em breve.

 

O Tom e a Helen? Estou muito triste por eles. Não foram capazes de ultrapassar os seus diferendos. Suponho que agora já não tenha grande importância, mas teria gostado de vê-los novamente juntos. Como sabes, sou muito sentimental. Ao menos, parece que não há qualquer rancor, de parte a parte. Ela já se levantou da cama, recuperou a saúde e também a beleza - embora pareça mais velha e mais triste do que anteriormente. Ela e a Jenny tornaram-se inseparáveis, cosendo juntas e tagarelando não sei acerca do quê. Pobre Jenny - ter-se-ia tornado tão encantadora. O Tom levou um dos quebra-cabeças das crianças e parece feliz por estar sozinho. Também ele parece mais velho e triste, mas, de tempos a tempos, quando está concentrado, assobia, sem se aperceber, uma melodia alegre; posso ser incompetente como médico, mas sei que se um homem consegue assobiar pouco ou nada lhe atormenta a alma!

 

A Nellie e eu passamos a maior parte do tempo um com o outro, falando da Escócia e das nossas muitas recordações felizes, mas em regra limitamo-nos a ficar em silêncio, como um casal de idosos, junto à lareira. Certo dia, ela reparou que estávamos de mãos dadas e corou, comentando que era uma excelente altura para começar uma segunda lua-de-mel!

 

O único Malvolio1 no nosso pequeno grupo é, para meu pesar, o reverendo Fielding, que não se conforma com o nosso destino. Felizmente deixou de nos criticar como fazia, mas é triste vê-lo a andar de um lado para o outro, na sala, e a levantar as persianas para ver os Boxers lá fora. Habituámo-nos a ignorá-lo, como fazemos com os Boxers. É melhor assim.

 

Meu caro James, não fiques triste por nós. Estamos em paz connosco próprios.

 

Tencionava escrever-te uma longa carta formal, como meu executor testamentário, pedindo-te que te encarregasses disto, que tomasses conta daquilo - mas as coisas materiais que, em tempos, tinham tanta importância, especialmente para nós, escoceses, sempre muito ligados ao dinheiro, agora já não significam nada. Sei que darás o melhor uso aos meus bens e que zelarás pelos meus queridos Mary e Edmund. Não podia deixá-los em melhores mãos. Meu caro James, sempre foste um amigo, para além de irmão, e serás um pai dedicado para os meus filhos.

 

Espero que esta não seja a minha última carta, mas é possível que o seja. É tudo uma questão de tempo. De qualquer maneira, pouco mais há a dizer. Deixamos este mundo de crueldade, crendo que viajaremos juntos para o Paraíso, de que são herdeiros aqueles que sempre acreditaram no Salvador. Somos terríveis pecadores, com os piores defeitos, mas sei que Deus nos tratará com misericórdia. E não tenho a menor dúvida, meu caro James, de que, um dia, tu e eu nos encontraremos lá, e que passearemos mais uma vez pela charneca (pode haver um Céu sem charnecas?)

 

Adeus, James. E viva a Escócia para todo o sempre!

 

1 Malvolio: personagem de Shakespeare. (N. do E.)

 

Domingo, 7 de Julho de 1900

 

Meu caro James,

 

É como esperávamos. O Lin veio hoje, trazendo-nos uma mensagem do mandarim. Finalmente respondeu à minha carta, mas não é a resposta que eu esperava. Antes uma proclamação oficial, reconhecendo o meu ”apelo à clemência” mas declarando também que os estrangeiros ”foram justamente condenados pelas suas iniquidades” e que devemos aguardar a ”sentença do imperador”. Belo julgamento, não há dúvida. Parece já ter tido lugar sem a nossa presença.

 

Talvez seja melhor assim. Sinto-me contente por a Nellie e as crianças terem sido poupadas à indignidade de ter de ajoelhar numa sala do yamen. Perguntei ao Lin para quando estava prevista a nossa execução, mas ele mostrou-se frio, como de costume. Seremos ”informados”, respondeu. Imagino que agora já falta pouco.

 

Talvez haja alguma humanidade nele. Trouxe-nos uma carroça repleta de suculentas melancias, um presente para os condenados. Podes imaginar que boa surpresa foi para pessoas sedentas como nós, que tivemos para beber nas últimas semanas apenas uma dose reduzida de água salobra.

 

Levámo-las para a cozinha e empilhámo-las sobre a mesa, fazendo esperar, com dificuldade, as crianças. Com um sentido de humor algo duvidoso, o Bowers pegou num cutelo e ia cortando as melancias, dizendo ”Zás! Zás! Zás!”

 

Oh, James, terias rido se o visses...

 

TODOS OS DIAS ATACAMOS AS MURALHAS SEM ÊXITO. A MAGIA DOS DEMÓNIOS DO OCEANO É DIFÍCIL DE VENCER

 

”Terias rido se o visses.” Sentado em frente da escrivaninha, Airton sorriu, perguntando a si próprio como podia descrever o ar solene de Bowers ao dar-se conta de quão inoportuna era a sua pequena encenação e subsequente embaraço. Queria descrever a cena com sentido de humor. Afinal, talvez fosse a última carta que escrevia ao irmão, e queria transmitir-lhe o ambiente de bom humor que reinava na casa, apesar ou talvez devido àquela terrível situação. Nunca se sentira tão em paz consigo próprio. Nunca antes apreciara as coisas mais simples ou como era maravilhoso estar vivo. Era quase inebriante. Até o feio pisa-papéis da sua secretária parecia ter uma certa beleza. Sentia-se invadido pelo amor pela sua família, pelos seus camaradas prisioneiros e até pelos objectos da casa. As partículas de poeira que rodopiavam à luz dos raios do sol que passava pelas persianas fazia-o pensar em anjos voadores. Como era evidente, temia o que iria acontecer. Não suportava a ideia de os seus filhos terem de sofrer. Mas, estranhamente, embora o seu lado racional lhe recordasse todas aquelas coisas e soubesse que seria uma questão de dias, a alegria de viver cada momento bastava para afugentar os pensamentos negativos. Era como durante as férias, na sua juventude, quando se divertia na praia com uma espécie de despreocupação intemporal, sem um pensamento para as enfermarias do hospital, nem para os estudos em que devia voltar a concentrar-se. Deu consigo a pensar se não lhes havia sido concedida a graça de saber na Terra como era o Paraíso.

 

Absorto, enfiou a mão no bolso para tirar a bolsa de tabaco; em vez do couro macio e familiar, sentiu algo duro. Admirado, tirou um pequeno embrulho de tela. Com o corta-papéis, desfez o cordel que o atava; no interior havia uma folha de papel dobrada e um anel de sinete em ouro. Chocado, reconheceu o brasão, um grifo meio rastejante e a divisa em latim auxilium ab alto. A última vez que vira aquele anel fora no dedo de Henry Manners.

 

A folha dobrada estava pousada sobre o mata-borrão, mas sentiu-se relutante em tocar-lhe. Provocava-lhe uma certa aversão. Até agora, tudo era tão nítido e preciso. O caminho à sua frente estava traçado num crescendo em direcção ao martírio, tão bonita. Bastava-lhes aceitar o que o destino lhes reservara, o que lhes trazia paz. Mas agora aparecia aquela nota aguda e dissonante. Instintivamente, soube que, fosse qual fosse o conteúdo daquela mensagem, complicaria a vida de todos. A simples ideia de Manners ainda estar vivo - e agora não podia haver quaisquer dúvidas - alarmava-o. Acorreu-lhe mesmo à mente um pensamento muito pouco caritativo: ”Oh, porque não ficou ele morto?” No passado, Manners só lhes dera problemas. Aliás, o facto de o major Lin lhe ter entregue a mensagem cheirava a intriga. Porque aquele embrulho só podia vir dele. Lin era o seu único elo de ligação com o mundo exterior. Sim, agora se lembrava como Lin tropeçara nas esporas, de uma maneira muito estranha, e se agarrara ao casaco do médico para não cair. Devia ter-lhe enfiado o embrulho no bolso nessa altura. Airton sentiu emoções familiares, que julgava haver dominado para sempre: medo e, pior ainda, esperança.

 

Com dedos trémulos, desdobrou a folha e leu o texto. Era curto, mas explícito.

 

Estão todos condenados. Posso salvá-lo, a si, à sua família e a Helen Francês, mas a mais ninguém. Não diga nada, mas esteja preparado para partir rapidamente. A janela do seu quarto, depois da meia-noite. Lin será o mensageiro.

 

O Dr. Airton deixou cair o papel. Depois, pousou a cabeça na escrivaninha e soltou um gemido.

 

- Meu caro Ma Na Si - disse o mandarim. - Para um homem que está a ser torturado até à morte, os seus gritos são muito baixos. Por favor, tenha um pouco mais de consideração para com a minha reputação. Temos uma audiência algures lá fora, e eu detestaria que o Homem de Ferro Wang ficasse com tão má opinião acerca das minhas capacidades.

 

- Queira perdoar-me - respondeu Manners, e deixou escapar um rugido selvagem de dor. - Está melhor assim? Quando vou morrer de vez?

 

- Você é muito impaciente, como todos os demónios estrangeiros. Devia saber que a tortura neste país é uma arte longamente amadurecida e refinada, e que somos especialistas em manter as pessoas vivas durante tempos infindos. Por isso, peço-lhe que se concentre mais na sua tarefa. O bambu rachado que lhe foi introduzido no recto deveria agora estar a rasgar alguns dos seus órgãos interiores. Gostaria de um grito muito forte. Depois, talvez permita que desmaie durante alguns minutos.

 

Henry gritou novamente.

 

- Obrigado. Assim, está melhor. Agora, pode considerar-se desmaiado.

 

- Ainda bem. Nunca fui grande coisa como actor.

 

- Baixou tristemente os olhos para as pernas ensanguentadas, que as correntes haviam deixado quase em carne viva. - Não que tenha fingido assim tanto, ultimamente...

 

- A gaiola deve ter sido muito desconfortável. Foi concebida para criminosos mais baixos... Deve ter-se sentido muito apertado. É um dos preços que tem de pagar por ser um bárbaro alto e peludo. Talvez possa escrever um dia um livro descrevendo as nossas atrozes práticas pagãs.

 

- Deixo isso para os missionários. Se algum sobreviver. Tem mesmo de executar assim tantos?

 

- As ordens imperiais são muito claras. E sou, como bem sabe, um leal funcionário do Estado. Além de que, neste momento, não sou totalmente o chefe da minha casa. O Homem de Ferro Wang tem uma grande sede de sangue, que receio ter de saciar.

 

- Sabe que as potências regressarão com um exército? É muito imprudente da parte da imperatriz atacar as legações. A China não conseguirá vencer.

 

- Estou certo de que tem razão e que as potências destruirão esta dinastia demasiado fraca, mas felizmente estamos muito longe de Pequim. E o caos fornece oportunidades às pessoas sem escrúpulos, espingardas.

 

Quem sabe... Talvez as potências possam mostrar-se gratas para com um aliado leal que limpou a cidade de bandidos e Boxers responsáveis pelas piores atrocidades.

 

- É um homem mau, Da Ren.

 

- É o que o meu caro amigo, o Daifu, não pára de me dizer. Mas você não devia queixar-se, Ma Na Si. De acordo com o nosso negócio, eu terei as armas e você o meu ouro. Pense nas recompensas que o seu governo lhe dará, quando encher tão largamente os seus cofres. Se o seu governo alguma vez chegar a receber o ouro, claro... Num país em convulsão, são tantas as coisas que se perdem... Mas não lhe dizia eu que o caos fornece oportunidades às pessoas sem escrúpulos?

 

- Não o esquecerei. Mas primeiro temos de sair daqui. Enquanto continuo inconsciente, que tal se aproveitasse para me voltar a falar dos preparativos? Respeitará a sua parte do negócio, no que toca ao doutor e a Helen Francês?

 

- Sim, se as minhas condições forem cumpridas.

 

- Para mal dos meus pecados, estou a par das suas condições.

 

- Devia antes mostrar-se grato pela minha generosidade. Na minha posição, é uma loucura poupar alguém além de você. Preciso de si, mas não dos outros. Devo confessar, no entanto, que nutro um certo afecto pelo Daifu, e saber que ele concordou com minha proposta, que à sua amante, constitui um interessante desenvolvimento de um debate filosófico que me deu muito prazer ao longo de todos estes anos. Vou também ter de poupar a vida da mulher e dos filhos dele. Ele é tão orgulhoso que podia não aceitar fugir se a família não estivesse incluída no acordo.

 

Henry cuspiu para o chão saliva mesclada de sangue.

 

- Aquele pulha do seu major deve ter-me dado cabo dos pulmões, além de me partir as costelas. A propósito, o senhor também é um pulha, e ainda por cima libidinoso. E eu sou um pulha, por deixá-lo obter o que deseja.

 

- Não tem grande alternativa, se quer preservar a vida da rapariga. Aconselhei-o desde o princípio a deixá-la e a encontrar outra, mas o sentimentalismo ocidental é sempre uma incógnita. Contudo, protesto contra o termo ”libidinoso”. Quem é libidinoso é você. E, se sofre pela sova que o Lin lhe deu, culpe-se apenas a si próprio. Não o avisei para evitar a prostituta dele?

 

O mandarim espreguiçou-se e bocejou.

 

- Serei libidinoso? - perguntou, absorto. - Não, mas sou curioso. Cheguei a dizer-lhe que vi a sua mulher, certa vez, do meu palanquim? O cabelo dela é de uma cor deveras interessante. Parece a pelagem de uma raposa. Bom, mas isto são conversas próprias para quartos de vapor. Estou a deixar-me distrair da tortura que devia estar a infligir-lhe. Um grito penetrante vinha a calhar. Tente imaginar que é um homem que recobrou os sentidos devido às dores agonizantes.

 

- Como vou sair daqui? - quis saber Manners.

 

- Não lho disse já? Que negligência da minha parte! Num caixão, meu caro Ma Na Si, num caixão. De que outra forma queria sair?

 

- E quando eu tiver reunido o médico e. os outros, para onde nos conduzirão?

 

- A princípio, ao palácio dos Prazeres Celestiais. Consegue pensar num local mais apropriado?

 

A poeira ergueu-se das estradas brancas de Verão, enquanto o carro, puxado por póneis, descia a colina. Os arreios tilintaram e a estrutura de madeira estalou em razão do peso. À sua volta, os arbustos desabrochavam em flores e botões, e os ramos dos carvalhos balouçavam por cima das suas cabeças. Os pássaros cantavam e o sol reflectia-se, tépido, nos seus rostos. Ao longe, podiam ver Ashdown Forest, erguendo-se por entre mantos de giesta, enquanto nuvens brancas e altas surgiam no céu, sob a forma de navios, castelos e cavalos empinados. Helen Francês estava sentada sobre os joelhos do pai. O seu casaco de tweed irritava-lhe a pele dos braços, mas, mesmo assim, ela abraçava-o, meio assustada, meio excitada, e sobretudo feliz. O sol e a brisa fresca acariciavam-lhe o rosto. O pai puxava as rédeas, com uma gargalhada jovial, e o carro ganhava velocidade, enquanto os camponeses, com enxadas aos ombros, paravam para os ver passar e acenar-lhes. O ar estava perfumado com as fragrâncias de todas as flores do mundo.

 

Olhou, com adoração, para os olhos profundos e castanhos do pai, que pestanejaram de alegria por baixo de sobrancelhas espessas e pretas.

 

- Agarra-te bem, querida! - avisou ele. - Estamos a chegar ao vau!

 

Ela abraçou-o com mais força, mal se atrevendo a olhar. Viu nascentes de água brotando à sua volta, e o ruído ensurdecedor da represa, quando passaram para o outro lado. Frank ria, ria enquanto ela gritava e ria também, e o carro balançava ao longo da estrada lamacenta, e o assento chiava enquanto os fazia saltar, para cima e para baixo, para cima e para baixo, como um berço que balançasse para a frente e para trás, para a frente e para trás... E ela soergueu-se e acariciou as faces coradas e o bigode farfalhudo e preto do pai...

 

E o movimento continuou... Para cima e para baixo, para cima e para baixo, e ela ria, gritava, chorava, enquanto sentia, no seu interior, um calor que mal conseguia conter, vulcões de fogo no seu ventre, espalhando-se pelos seios, os braços, as coxas, as faces. A sua cabeça sacudia-se de um lado para o outro e, quando voltou a abrir os olhos, viu Henry, por cima dela, com as feições distorcidas, enquanto a penetrava, e ela apertava as coxas em volta do seu corpo, para que ele pudesse ir mais fundo, e lhe puxava o cabelo suado e lhe acariciava o pescoço, o peito, e o suor dos dois corpos se misturava, e a pele latejava e os ventres embatiam um contra o outro. E Henry arfava, e lava derretida escorria do baixo ventre para o útero e por todo o corpo, e o movimento tornou-se um arrepio. Henry rolou para o lado e ela viu a beleza do seu corpo, os seus braços e pernas de um branco imaculado, o ventre liso, e colocou-se em cima dele e sugou a humidade dos pêlos do seu peito e ventre, e tocou-lhe no pénis e viu-o entrar em erecção novamente, enquanto a sua boca se fechava em torno da deliciosa carne macia, beijando-a, acariciando-a, sugando-a...

 

Sugando a madeira macia do cachimbo de ópio, esperando que o fumo doce e algo enjoativo lhe entrasse nos pulmões e dissipasse todos os seus problemas. Antecipando o langor, a paz, a ausência de pensamentos ou desejos. Uma tão pequena baforada de fumo. Era tudo o que precisava. Apenas de um cachimbo. Conseguia mesmo ver a pasta negra a derreter-se à chama da vela. Estaria pronta em breve. Estaria pronta em breve, com certeza... mas a pasta borbulhou por cima da chama, e ela voltou a sugar o cachimbo. E o fumo não veio...

 

Acordou, desesperada. Por momentos, não soube onde estava. Levada pelo pânico, procurou as cortinas da sua casa, no Sussex, e tentou escutar o som de tordos, no peitoril da janela. Mas tudo o que viu foram as persianas que não deixavam entrar o sol brilhante do Norte da China; que não conseguiam bloquear o calor abafado do Verão do Norte da China, nem abafar os gritos dos Boxers, no exterior. Por cima dos lençóis empapados de suor onde estava deitada, lá estava o tecto branco que ela tanto odiava, onde uma aranha tecia pacientemente uma teia numa fenda do estuque.

 

Detestava os seus sonhos. Que direito tinha o pai de voltar à vida e de fazê-la reviver os momentos felizes da sua infância? Que direito tinha Henry de fazer amor com ela, reacendendo o fogo adormecido no seu baixo-ventre? Henry e o pai estavam mortos, e não havia problema, porque ela também morreria em breve, e tudo acabaria.

 

A cada dia que passava, ela esperava que fosse o dia. Por vezes, na sua imaginação, beijava a lâmina, antes de esta ser brandida para lhe cortar a cabeça. Imaginava-se até a beijar a mão do carrasco, como um penitente ajoelhado beija, reverente, o anel de um cardeal. Só que ela esperava que, depois, não houvesse o Paraíso. Apenas o nada eterno, um abandono que nem o sono, nem o cachimbo de ópio, nem a seringa lhe podiam proporcionar.

 

E agora tinha de se levantar para um novo dia. Adormecera muito tarde. Já devia ser meio-dia. Maquinalmente, vestiu a blusa e a saia. Estava a pentear-se quando alguém bateu à porta. Era o médico, que parecia muito nervoso.

 

- Quero que se sente - disse-lhe. - Tenho notícias surpreendentes.

 

Helen sentou-se no rebordo da cama. O médico vasculhou os bolsos.

 

- O meu cachimbo - explicou. - Não se importa?

 

É um vício deveras deplorável, eu sei, e este é o seu quarto, mas ajuda-me a acalmar os nervos.

 

Ela viu-o acender meticulosamente o cachimbo e soprar o fumo.

 

- Não podem ser notícias piores do que as que já conhecemos - comentou ela ao fim de algum tempo.

 

- Não, minha querida, pelo contrário. Trata-se de boas notícias.

 

- No entanto, não parece feliz.

 

- Oh, mas estou, mas estou. É que... não sei muito bem como lhas dar. E pode revelar-se um choque para si...

 

Ela esperou, algo aborrecida.

 

- É que, sabe... Parece que há uma hipótese de sermos salvos.

 

- Eu não quero ser salva.

 

- Lá está você outra vez... Tenho a certeza de que não está a falar a sério. De qualquer maneira, recebi uma carta, uma carta muito secreta. Não pode falar dela aos outros, pelo menos por enquanto... Mas tudo indica que alguns de nós foram escolhidos para serem poupados.

 

- Alguns de nós?

 

- Sim, infelizmente somente alguns são mencionados na carta. Mas sempre é melhor do que ninguém, não é verdade? E você é uma dessas pessoas. Assim como a minha mulher, Jenny e George, graças a Deus. E o Tom, claro. Sim, o Tom também é um dos escolhidos.

 

- Essa carta é de quem, doutor? Posso vê-la?

 

- Não, queimei-a. É melhor assim. Não quero que isto se saiba já e vá parar aos ouvidos errados. Na realidade - o médico baixou a voz -, ainda não falei com ninguém a não ser consigo.

 

- Está a ser muito misterioso, doutor. Porquê falar só comigo?

 

- Porque quero que me ajude, Helen. A respeito da Nellie. Ela é muito teimosa, como sabe, e... bom, talvez se recuse a ir, se souber que eu não vou.

 

- Quer dizer que o senhor não é um dos escolhidos?

 

- Não. Infelizmente, não. Ninguém quer um velho tolo como eu... Só as mulheres e as crianças. E é assim que deve ser, aliás.

 

- Mas não são apenas mulheres e crianças... Então e a Laetitia Millward e os filhos? Não disse que eles constavam da lista... E o Tom, porque é ele um dos escolhidos? Ouça, doutor, não quero partir. Tem de tomar o meu lugar.

 

Ficou estarrecida ao ver o olhar atormentado do médico.

 

- Oh! Helen... Não julga que eu quero viver? Mas não posso, não posso partir convosco. O meu lugar é aqui, com o meu... com o meu rebanho, à falta de uma palavra melhor. Não os posso abandonar, não vê?

 

De súbito, Helen compreendeu.

 

- O seu nome estava na lista, não é verdade? E está a tentar salvar-me, no seu lugar!

 

- Não seja tola! - replicou o médico, em tom severo, mas as suas faces enrubesceram. - Quem julga que eu sou? Deus? Para me pôr a decidir quem vive e quem morre? Julga que sou capaz de uma tal... blasfémia?

 

Helen estendeu o braço e pegou-lhe na mão.

 

- Não, doutor. Sei que o senhor é um homem muito bondoso, corajoso e generoso. Mas não sou digna de ser salva. Não enquanto o senhor tiver mulher e filhos para proteger.

 

Airton tirou a sua mão.

 

- Escute-me com atenção. Não substituí o seu nome pelo meu. Você foi expressamente escolhida. E irá partir, se não por si, ao menos pelo seu bebé. E pelo Tom. Preciso que vá, caso contrário, a Nellie pode não ir. Ela só vai para se ocupar de si.

 

- Ela vai para se ocupar dos seus filhos. Doutor, não me está a contar tudo. O mandarim não tem qualquer motivo para querer salvar-me. Nem sequer sabe quem eu sou. Então, porquê? Porquê eu?

 

Airton fez virar o cachimbo com dedos sempre trémulos.

 

- Não foi o mandarim que enviou a carta - conseguiu dizer. - Foi o Manners. O homem está vivo.

 

De repente, tudo começou a brilhar com uma nitidez límpida, como se uma lâmpada fosforescente tivesse iluminado o quarto. Helen reparou no fio que pendia do punho da camisa do doutor, no local onde faltava um botão. Viu a costura no tapete, onde este se esgaçara, a bacia de esmalte azul e o cântaro no seu suporte, o pó no espelho e a pequena aguarela emoldurada das ilhas Hébridas na parede caiada. Era como se o tempo tivesse parado, e ela e o médico se tivessem transformado em figuras de uma fotografia, imobilizados num momento eterno. Depois, com um grande estrondo, o barulho dos tambores regressou, e sentiu o sangue subir-lhe à cabeça e a sala começou a rodar. O olhar inquieto do médico foi quase cómico, quando estendeu o braço para a amparar.

 

- Eu estou bem - ouviu-se balbuciar, muito ao longe. Logo depois, flutuava por cima de um mar tropical onde, na noite estrelada, uma tempestade irrompia.

 

- Como está ela, Edward? - perguntou Nellie, que esperava no quarto do casal.

 

- Oh, chocada. De que estavas à espera? Mas vai recompor-se.

 

- Então, contaste-lhe a história? Que ela tinha de ir para me convencer?

 

- Sim.

 

O médico sentou-se na cama ao lado da mulher, pegou-lhe na mão e contemplaram-se em silêncio.

 

- Então, estás decidido? Decidido a abandonar a tua mulher e os teus pobres filhos? Sabes, ninguém pensará mal de ti, se vieres connosco.

 

- Tenho de cumprir o meu dever e tu sabes disso.

 

- Presunçoso e egoísta até ao fim.

 

- Como podes dizer tal coisa? - protestou Airton tristemente. - Já falámos sobre isso e concordámos... A Helen precisa do Tom para a proteger do Manners, e eu sou preciso aqui. Repeti não sei quantas vezes...

 

- Estou só a espicaçar-te, meu tonto. - Estendeu o braço para o marido, e ele aninhou a cabeça no peito avantajado de Nellie, que começou a subir e a descer ritmicamente, enquanto as lágrimas lhe caíam pelo rosto. - Oh, mas como eu queria, Edward, como eu queria...

 

- Eu sei, eu sei - murmurou o médico, colocando a cabeça da mulher contra o seu peito e beijando-lhe o cabelo castanho, salpicado de fios grisalhos.

 

Ficaram abraçados um ao outro durante algum tempo. Por fim, Nellie ergueu-se e enxugou as lágrimas com o lenço que guardava na manga.

 

- Olha para mim, Edward. Estou a ficar tão tola e sentimental como tu. ainda tenho de pentear o meu cabelo

 

- Estás muito bem assim.

 

- Não, não. Estou velha. Que par de jarras. Como vivemos juntos durante tanto tempo?

 

- Por força do hábito? - sugeriu o médico.

 

Nellie riu-se, mas as suas sobrancelhas franziram-se e virou-se para o marido com uma expressão decidida no olhar.

 

- Sabes que só vou por causa das crianças? Sabes que ficaria aqui contigo, Edward, se não fossem os nossos filhos?

 

- Isso se eu deixasse que ficasses...

 

- Nunca conseguirias meu consentimento. Ficaria contigo, Edward...

 

- Até que os ”mares sequem”?

 

- Oh, Edward, sim, canta-me essa canção...

 

Erguendo-se acima do ruído dos tambores, a voz de Edward Airton ecoou, num tom de barítono surpreendentemente forte.

 

Até que os mares sequem, minha querida, e as pedras se derretam com o sol, mesmo assim, continuarei a amar-te, minha Enquanto a areia da vida correr.

 

Já era de noite quando as portas do yamen se abriram e, sob a supervisão do major Lin, o caixão foi transportado até à carroça. Os guardas do yamen haviam sido substituídos por dois partidários do Homem de Ferro Wang, que exigiram saber o que continha.

 

Henry, encolhido no interior, estremeceu quando ouviu o major responder calmamente:

 

- Abram-no e logo verão...

 

Escutou um estalido quando a tampa do caixão foi levantada e sentiu o ar fresco e viu a luz de uma lanterna, filtrada através da palha e dos dejectos com que o tinham coberto.

 

- Tresanda - disse um dos guardas. - O que é?

 

- Um traidor - respondeu Lin. - Eles tresandam todos, não é verdade?

 

- Ta made, já nem sequer parece um ser humano. Não resta muita coisa. O que lhe fizeram?

 

- Interrogámo-lo.

 

- Mas que interrogatório! Para onde o levam?

 

- Para a sua família, para o enterro.

 

- Vão gostar de vocês por isso. Podem seguir. E continuem a exterminar os estrangeiros.

 

- E a salvar os Ch’ing - completou Lin.

 

Henry percebeu que voltavam a pôr a tampa, e pressionou o lenço contra o rosto, mas não podia evitar que o cheiro fétido se infiltrasse nas suas narinas. Daí a pouco era atirado de um lado para o outro enquanto a carroça descia a colina. Sentiu o sangue pingar-lhe pela testa e teve grande dificuldade em reprimir os vómitos.

 

Passaram por nova inspecção às portas da cidade e só depois de deixar para trás as muralhas da cidade é que Lin mandou parar a pequena caravana. Assim que a tampa foi levantada, Henry saiu, apressando-se a tirar as tripas de carneiro e de porco misturadas às suas roupas andrajosas. Ajoelhou-se na lama, respirando grandes golfadas de ar puro. O seu corpo quase nu, coberto de sangue e de esterco da cabeça aos pés, parecia negro ao luar.

 

O major Lin examinou-o com desdém.

 

- Ma Na Si, agora parece-se realmente com o animal que é. Há um riacho na berma da estrada e poderá lavar-se lá. Leve estas roupas. Mas despache-se. E não tente fugir. Sinto comichão nos dedos só de pensar numa oportunidade de abatê-lo a tiro.

 

- E a Fan Yimei, também está bem? - replicou Henry, por cima do ombro.

 

- Não me tente, Ma Na Si. Por favor, não me tente...

 

O camareiro fumava um cachimbo de ópio com Mãe Liu. Estava cansado, depois de uma hora frenética com um jovem camponês que ainda tresandava a quinta. Não gostara da experiência.

 

Talvez estivesse a ficar velho. Talvez fosse dos tempos que viviam. Agora, Mãe Liu era obrigada a recorrer às suas reservas para satisfazer os clientes regulares. Todas as suas raparigas e rapazes, tão talentosos, estavam agora ocupados a divertir os brutamontes do Homem de Ferro Wang. Ele podia escutá-los, mesmo do quarto isolado de Mãe Liu, a urrar na casa de chá ou a celebrar na sala de jantar ou no andar superior. Eram verdadeiros animais. Esforçou-se por escutar o que lhe dizia a sua velha amiga. Todas aquelas negociações eram fastidiosas - mas era importante concluir aquela.

 

- Sim, serão seis. Duas crianças - repetiu pela enésima vez. - Poderá facilmente escondê-los no seu andar secreto.

 

- Mas o perigo, Jin Lao...

 

- É exactamente por isso que será tão bem paga. E usufruirá ainda da gratidão do mandarim, o que é inestimável.

 

- Hoje em dia, nada é inestimável. Pense a que ponto isto pode comprometer o Ren Ren. Ele agora é um oficial, um capitão dos Boxers. O que lhe acontecerá, se o Homem de Ferro Wang descobrir?

 

- Ninguém descobrirá nada.

 

- Farei o que me pede pelo dobro do que me oferece.

 

- Isso é um absurdo. Pode abrir mais cinco bordéis com o que lhe ofereço.

 

- Então, uma vez e três quartos a mais.

 

- Metade.

 

- Combinado. Mas a rapariga depois fica cá, e talvez as duas crianças também, se me agradarem.

 

- Não posso prometer-lho. Isso depende do mandarim.

 

- Quanto tempo continuará ele a ser mandarim, se eu disser ao Homem de Ferro Wang que o mandarim escondeu seis demónios estrangeiros no meu sótão?

 

- Durante quanto tempo espera usufruir dos seus rendimentos mal adquiridos se fizer tal coisa? Quem pensa você que a está a proteger? E quanto tempo pensa que duraria tendo o Homem de Ferro Wang como protector? Não me ameace, minha velha amiga. Quem sabe que eu levo a peito os seus interesses.

 

- Antes de tudo, leva os seus. Tenho tanta roupa suja a lavar a seu respeito como você acerca de mim.

 

- Mãe Liu, porque se mostra assim desagradável numa noite tão deliciosa?

 

”Indolentemente, vejo cair as flores de cássia.

 

Calma é a noite, vazia a colina na Primavera.

 

A lua ergue-se no céu, assustando os pássaros na montanha.

 

De tempos a tempos, cantam no ribeiro.

 

- Jin Lao, controle-se. Este não é o momento apropriado para poesia. Ouça, posso convencer o Ren Ren. O dinheiro é suficiente, mas ele quererá outra coisa pelo seu esforço. Dê-lhe a rapariga. De qualquer maneira, quem a quererá assim que o mandarim se fartar dela? Seja prático, Jin Lao. Pense nesta pobre velha e nos problemas que tenho com o meu indisciplinado filho.

 

- Prepare-me outro cachimbo e acabemos com este regatear.

 

- Então aceita?

 

- Eu não disse isso. Vou apenas pensar no seu pedido.

 

- Isso não chega.

 

- Muito bem, pensarei no seu pedido com boa vontade.

 

- Oh, Jin Lao, você é uma verdadeira fonte de generosidade, como sempre. Como posso eu, uma pobre velha, ser digna de tal amizade? Vejamos, como era esse delicioso poema que estava a recitar?

 

Fica comigo, a noite cai rapidamente. A escuridão adensa-se. Senhor, fica comigo. Quando outras ajudas falham e falta o consolo, Ó Tu, ajuda dos indefesos, fica comigo.

 

O médico olhou para Nellie, sentada em frente do piano; a luz do candeeiro a gás aclarava-lhe o cabelo e o pescoço, por cima do colar de pérolas. A música triste do hino oprimia-lhe a alma e sentiu lágrimas nos olhos. Fitou Helen, sentada no outro lado da sala; tinha uma mão na de Jenny e com a outra segurava o seu hinário. A jovem reparou na angústia do médico e sorriu-lhe. Airton baixou a cabeça, para lhe mostrar a sua gratidão. Pouco a pouco, conseguiu recompor-se. Sabia que tinha de mostrar-se forte, mas, no seu íntimo, sentia o coração despedaçado. Talvez George se tivesse apercebido de algo estranho no pai, porque ergueu a mãozinha para o médico. Airton apertou-a na sua, enquanto os olhos se lhe humedeciam novamente.

 

”Oh, faz com que seja rápido!”, pensou. ”Faz com que a meia-noite chegue depressa. Não aguento muito mais tempo. Ao menos, que o hino termine.” Mas as estrofes sucediam-se, umas após outras, e cada nota surda do piano era como uma seta trespassando-lhe o coração.

 

Não temo o mal, com a tua benção; As adversidades não pesam; as lágrimas não são amargas. Onde está a picada, da morte? Onde está, sepultura, a tua vitória?

 

Triunfarei, se ficares comigo.

 

Septimus, muito direito, com a mão sobre o peito, o queixo espetado, cantava com todo o vigor. A voz estridente de Laetitia acompanhava-o. As crianças perfilavam-se, por ordem decrescente de altura, em duas filas, de cada lado dos pais. Hiram achava-se ao lado do pai. ”Olhem para eles”, pensou o médico. ”Vão morrer juntos e felizes, como uma verdadeira família.” Sentiu uma súbita inveja, perguntando a si próprio como conseguiria viver, assim que Nellie e os filhos o deixassem. Experimentou um momento de terror, ao imaginar-se sozinho, ajoelhado na areia, com a cabeça sob a espada do seu carrasco. Iria chorar? Desgraçaria a família, o seu nome, o seu Deus, e morreria como o cobarde que sabia ser? Olhou para Burton Fielding, afastado dos outros, sacudindo a cabeça de um lado para o outro, com ar distraído. ”Graças a Deus, eis um homem mais fraco do que eu”, pensou com azedume. Não, iria ser forte. Não seria como Fielding. Fizera a escolha acertada por ser a atitude correcta, por ser a única coisa que podia fazer. O Diabo oferecera-lhe uma hipótese de escapar ao seu dever, mas não cedera à tentação. Fazia o que devia ser feito. Oh, mas era difícil...

 

O hino, algo fúnebre, chegou à última estrofe. Airton apertou o hinário com as mãos e a sua voz de barítono fez-se ouvir acima das dos outros, mais forte ainda que o tom confiante de Septimus.

 

Empunha a tua cruz ante os meus olhos fechados;

 

Brilha por entre a escuridão e indica-me o caminho para os céus.

 

A manhã nasce, no Paraíso, as vãs sombras terrenas dissipam-se;

 

Na vida, na morte, Oh Senhor, fica comigo.

 

Naquela última noite, os Airton levaram as crianças para o seu próprio quarto. George e Jenny tiveram um sono agitado, com o barulho dos tambores a perturbar-lhes os sonhos. O médico e Nellie já tinham dito tudo um ao outro. Estavam sentados lado a lado de mãos dadas, olhando os filhos. Uma pequena mala de couro achava-se pousada no chão. Continha roupas.

 

Pouco depois da meia-noite, o médico julgou escutar um ruído, mas quando abriu a persiana não viu nada além do relvado. Aguardaram. O relógio de pêndulo bateu uma hora.

 

- Julgas que se trata de uma armadilha, Nellie? - murmurou. - Ou ter-lhe-á acontecido alguma coisa?

 

Ela apertou-lhe a mão. Aguardaram. O relógio de pêndulo da entrada bateu as duas horas.

 

- Oh, não consigo aguentar mais tempo - resmungou Airton. - Tenho vontade de gritar.

 

- Sê corajoso, Edward. Coragem.

 

- Não sabes quanto te amo.

 

- Sei, sim.

 

Sobressaltaram-se ao ouvir a leve pancada na janela. Nenhum dos dois queria admitir que chegara o momento. Houve uma nova pancada, desta vez mais forte. Foi Nellie que se recompôs primeiro e foi abrir as persianas; recuou, tapando a boca com as mãos. Uma figura vestida de negro saltou rapidamente para o interior do quarto. Avançou com passos decididos para a porta, entreabriu-a e espreitou para o corredor.

 

Aparentemente satisfeito com o silêncio que reinava, voltou-se para os Airton e avançou até ao candeeiro. Nellie reprimiu um grito e Edward estremeceu.

 

- Meu Deus, o que aconteceu ao seu rosto? - murmurou o médico.

 

- Imagino que não seja muito agradável de se ver - respondeu Manners. - Digamos que usufruí da hospitalidade do yamen durante estas últimas semanas. Tem um espelho? Sim, agora percebo... Muito feio, realmente. Mas não se preocupem com isso. Onde está a Helen?

 

- No seu quarto - informou Nellie.

 

- Pois bem, vá buscá-la, sem fazer barulho. Não temos muito tempo.

 

Nellie apressou-se a sair.

 

- Então, doutor? Espero que esteja de boa saúde.

 

- Sim, na medida do possível.

 

- Folgo em sabê-lo.

 

- Não irei consigo.

 

- Não?

 

- O meu lugar é aqui, com os outros. Eles precisam de mim.

 

- Sabe o que vai acontecer àqueles que ficarem aqui?

 

- Sim, tenho uma ideia.

 

- Então, é um homem muito nobre, muito corajoso ou muito estúpido. Mas isso não importa. Irá connosco.

 

- Não pode obrigar-me.

 

- Pois não, mas se você não for, mais ninguém vai.

 

- Não pode estar a falar a sério. Levará as mulheres e as crianças consigo. Até um bárbaro faria isso.

 

- Não, doutor, as coisas não são assim. Ou vêm todos ou não vem ninguém.

 

- Dei o meu lugar ao Tom Cabot.

 

- Receio que o lugar não seja seu para poder dá-lo... A sério, doutor, se não vier comigo, partirei sozinho. É melhor decidir-se rapidamente.

 

- Partiria sem a Helen?

 

- Quer apostar?

 

- Mas que lhe importa a si que eu vá ou não?

 

- A mim? A mim é-me indiferente, mas não para o mandarim. As condições são dele. Ele é que é o árbitro da vida e da morte, não eu.

 

- Isso é uma loucura. Não acredito em si.

 

O médico teria continuado a discutir mas nesse mesmo instante Helen entrou no quarto; trazia um saco de couro e tinha o cabelo desgrenhado. Parou ao ver Henry; durante algum tempo, olharam um para o outro, constrangidos. Depois, lançando um grito, ela lançou-se nos seus braços.

 

- Oh, meu amor, disseram-me que estavas morto... Oh! Deus seja louvado. Deus seja louvado...

 

E cobriu-lhe o rosto cheio de contusões com beijos arrebatados de alegria.

 

As crianças estavam sentadas na cama, boquiabertas; Airton mantinha-se imóvel, sem saber o que fazer ou dizer. Foi então que Nellie entrou no quarto, servindo de apoio a Tom, que se sustentava com a ajuda das muletas. Lançou um único olhar aos amantes, e desviou o rosto. O rosto de Airton empalideceu.

 

Henry achava-se de frente para a porta. Por entre os beijos arrebatados de Helen, também viu o seu rival entrar no quarto e largou a rapariga, que se voltou.

 

- Oh, meu Deus - murmurou ela, afastando-se, mas sem largar o braço de Henry.

 

- Airton - sussurrou Manners -, confio em si para tratar desta situação. Não posso levá-lo, como sabe.

 

- Olá, Tom - acrescentou, em tom casual.

 

- Manners - resmungou Tom, sem erguer a cabeça.

 

- Estamos os dois bons para a reforma, se me permite o comentário. Foram os Boxers?

 

- Sim - respondeu Tom. - No caminho de regresso a Shishan. E você?

 

- Um castigo do major Lin, e mais duas ou três sovas pelos guardas da prisão do mandarim. Não foi uma experiência propriamente agradável.

 

- Mas sobreviveu.

 

- Sim, de facto sobrevivi.

 

- Cheguei a desejar o contrário. Houve uma altura em que fiquei contente por você estar morto.

 

- Compreendo.

 

- Gostaria mesmo de o ter morto com as minhas próprias mãos. Durante muito tempo... Bom, antes de os Boxers chegarem... Só sonhei com isso. Mas agora já não.

 

- Traí a sua amizade. É compreensível.

 

- Não, não me fiz entender - insistiu Tom, erguendo a cabeça com uma expressão ansiosa no olhar. - É que, sabe, você sempre foi... sempre foi o melhor...

 

- Não diga disparates, Tom.

 

- Mas foi. É por isso que, na outra noite, quando a HF...

 

- Tom, não digas mais nada! - implorou Helen.

 

- Mas é verdade - continuou o jovem. - Nunca fui digno de ti, HF. Sinto-me grato por... pelos momentos que vivemos, pelo que me deste... agora estou contente por o Henry estar vivo e ter voltado para ti.

 

- Não posso levá-lo connosco, Tom - disse Henry gentilmente.

 

- Nunca foi minha intenção ir convosco. Lamento, doutor Airton. Enganei-o esta tarde, quando me fez a pergunta. Pensei que isso me daria a oportunidade de ver o Henry e a Helen uma última vez, para lhes dizer o que me ia na alma. Para pôr tudo em pratos limpos, por assim dizer. Para pedir desculpa por ter sido tão idiota.

 

- Oh, Tom... - murmurou Helen... - Lamento tanto, mas tanto...

 

- Não lamentes. há razões para tal. Na verdade, creio que conseguirei encarar relativamente bem a situação. Animar os outros e tal. Não será agradável para os filhos dos Millward nem para a irmã Caterina. E o Fischer e o Fielding não estão nas melhores condições. A equipa precisa de algum dinamismo. Quando os meus velhos souberem da história, talvez se orgulhem de mim. A propósito, tenho uma carta para eles. Talvez um de vós a possa levar.

 

- É um homem corajoso, Tom - comentou Henry. Sinto-me orgulhoso por o ter conhecido.

 

Os dois homens trocaram um aperto de mão.

 

- Agora, receio que tenhamos de partir, Tom...

 

- Helen, na outra noite...

 

- Não se passou nada, Tom, nada.

 

Aproximou-se dele para o beijar na face, mas acabou por abraçá-lo com toda a força. Foi Tom que acabou por se afastar.

 

- Adeus, Helen Francês.

 

- Adeus, Tom.

 

Ela ainda lhe tocou na face; o jovem crispou-se, apoiado às muletas, cabisbaixo. Helen virou-se e pegou na sua mala. Nellie tirara da cama as crianças. Davam a mão à mãe, com os olhos abertos de espanto pela dramática reviravolta dos acontecimentos.

 

- E o senhor, Vem - perguntou Henry. - Não tenho tempo para discutir. Sabe o que significa, se recusar.

 

- Eu.... Eu não posso.

 

- Nesse caso, não posso levar nenhum de vocês. Foi o acordo que fiz com o mandarim.

 

- O que disse, Mister Manners? - perguntou Nellie. Edward, o que é que ele disse?

 

A porta abriu-se bruscamente e Burton Fielding entrou no quarto com uma faca na mão.

 

- Eu vi-vos, suas ratazanas! - vociferou. - Vi-os a correr pelo corredor! Escutei-vos, cambada de cobardes, a preparar a vossa fuga! Mas não pensem que alguém vai a parte alguma sem mim!

 

- Mas quem é você? - quis saber Manners. - Isto começa a parecer uma opereta de má qualidade...

 

- Quer saber quem sou? Sou o superintendente da Comissão Americana para as Missões Estrangeiras na China, e o pastor mais antigo! Não que algum de vocês tenha qualquer respeito pela autoridade. Especialmente esse cobarde do Airton, que, pelo que vejo, é o primeiro a querer fugir, deixando para trás os seus deveres. Se alguém vai fugir, esse alguém sou eu, e cortarei às fatias quem me tentar impedir!

 

Os outros fitavam-no, com um misto de pena e de estupefacção. Os olhos de Fielding faiscavam e brandia a faca como um louco. Poderia ter ferido alguém, se a grande figura de Septimus Millward não tivesse aparecido por trás, dominando-o, torcendo-lhe a mão até a faca cair ao chão.

 

- Minhas senhoras, fui acordado pela algazarra. Doutor Airton, este homem tresloucado estava a importuná-lo? perguntou educadamente, tapando com a mão a boca de Burton Fielding, que se debatia em fúria.

 

- Na verdade, vamos partir - disse Henry. - Pelo menos, assim o espero. Doutor?

 

- Como posso eu partir? - ripostou encolerizado o médico. - Não posso fazer parte de um acordo com o mandarim.

 

- Os escrúpulos caíram muito ripostou Henry -, mas vai condenar à morte a sua mulher, os seus filhos e Helen Francês. A decisão é sua, e pergunto-lhe pela última vez. O major Lin já deve estar a estranhar a demora e não deve tardar aí.

 

- Nellie, que devo eu fazer?

 

- Edward, não posso tomar essa decisão por ti.

 

- Oh, meu Deus! - gemeu Airton, tapando o rosto com as mãos. - Ajuda-me...

 

Fitaram-no, enquanto se debatia com a sua angústia; apenas Septimus, na sua longa túnica chinesa, parecia calmo, e foi ele quem quebrou o silêncio.

 

- Queira perdoar-me, doutor, sei que não me diz respeito, mas se bem compreendi, este homem oferece-lhe a escolha entre a vida e a morte para a sua família. E o senhor hesita? Não estará em risco de sucumbir ao pecado mortal do orgulho?

 

Airton caiu de joelhos, respirando com dificuldade.

 

- Não há nada que eu queira mais do que fugir com a minha família - disse, num fio de voz. - Mas como poderei fazê-lo? Como?

 

- Pela janela? - sugeriu Septimus. - Era por aí que eu fugiria.

 

- Vamos, meu grande tolo. Levanta-te - interveio Nellie. - Diga-nos o que temos de fazer, Mister Manners. Devemos segui-lo?

 

Um após outro, todos passaram pela janela e saltaram para o relvado. Henry ajudava-os no exterior. Septimus - que trancara temporariamente no armário Burton Fielding, amordaçado e a espernear - estendeu-lhes as duas malas das senhoras e a maleta do médico. Henry fez um gesto na direcção das sombras das árvores, onde uma carroça os esperava. Felizmente, as nuvens encobriam a lua e havia boas hipóteses de não serem vistos pelos Boxers, cujas fogueiras ardiam, ao fundo da colina. Pegou nas malas e instigou-os a despacharem-se. Nellie segurava em George e Jenny, que avançavam aos tombos, enquanto Helen carregava a maleta de Airton. O médico voltou-se para lançar um último olhar angustiado à casa. Os rostos à janela gravaram-se para sempre na sua memória: não apenas os de Septimus e de Tom, mas também os de Herr Fischer, da irmã Caterina e de Mr. Bowers, sem dúvida acordados pelo barulho provocado por Burton Fielding, e que tinham chegado a tempo de ver o seu pastor abandoná-los. Os seus rostos eram sombrios, melancólicos e, aos olhos do médico, reprovadores. Nenhum deles lhes acenou um último adeus.

 

Aqueles rostos foram tudo o que o médico viu, atordoado como esteve durante a fuga. Não parecia ter consciência do que acontecia, e Henry teve de conduzi-lo pelo braço, por entre a espessa vegetação. Lin e os seus soldados, que os esperavam ao pé da carroça, fizeram-lhes sinal para se apressarem. Os Boxers podiam surpreendê-los a qualquer momento, e os soldados tinham as carabinas prontas a disparar. Lin olhou para as malas, descontente, mas atirou-as para o interior da carroça. Partiram, com os soldados à frente, conduzindo pelas rédeas os seus cavalos.

 

Só quando alcançaram a estrada é que Lin se mostrou menos nervoso e deu ordem aos soldados para montar. Afastaram-se rapidamente sob o céu estrelado. A carroça avançava aos solavancos pela estrada de terra batida.

 

Pararam numa pequena quinta, em cujo pátio se empilhava uma meda de feno. Lin ordenou-lhes que se deitassem nas tábuas ásperas da carroça, antes de os soldados começarem a encher a carroça com feno. O médico pensou: ”Estou a ser enterrado pelos meus pecados”, e os rostos reprovadores continuaram a fitá-lo, quando fechou os olhos.

 

Quando chegaram às portas da cidade, houve uma nova inspecção à carroça. Vozes ásperas perguntaram ao major Lin porque chegava ele à cidade a meio da noite. Ouviram-no responder que levava feno para os seus estábulos e que tinham os guardas que ver com as horas em que ele saía e chegava? Talvez quisessem falar sobre isso com o mandarim, a quem ele obedecia. As portas abriram-se com um ranger e a carroça entrou na cidade.

 

Antes de chegarem à praça, viraram numa rua lateral. Por fim pararam e Lin ordenou-lhes que saíssem da carroça. Abriram caminho por entre o feno que os sufocava e lhes arranhava os rostos. Estavam numa rua sombria. Dois leões de pedra guardavam uma porta de madeira. Deram-lhes compridas capas de lã com capuz, e só depois Lin bateu à porta. Uma mulher de olhar impiedoso esperava-os, com o rosto coberto de pó branco e de maquilhagem.

 

- Major Lin, que alegria voltar a vê-lo! - exclamou, com voz afectada. - E o senhor, Ma Na Si Xiansheng! Há quanto tempo...

 

Ergueu a lanterna e reconheceu Helen.

 

- Não é a primeira vez que nos honra com a sua presença nesta casa, pois não? - perguntou, estendendo os dedos ossudos cobertos de anéis e beliscando uma das faces da jovem, que recuou, assustada. - Vejo que continua a ser muito bonita... entrem - acrescentou, se dirigia, mancando, pelo carreiro ladeado de lanternas. - Devem estar muito cansados e com fome, depois da vossa árdua viagem. Que filhos tão encantadores - elogiou, com voz melíflua. É o famoso Ai Dun Yisheng, não é verdade? Seja bem-vindo, Daifu, seja bem-vindo. Todos os amigos do mandarim são bem-vindos aqui. Sentimo-nos muito honrados por vos receber na nossa humilde casa...

 

Atravessaram os vários pátios. Helen sentiu um arrepio ao reconhecer um pavilhão familiar, e Henry passou um braço protector por cima dos seus ombros. As crianças contemplavam tudo à sua volta, com os olhos muito abertos. Nunca tinham visto uma casa tão palaciana.

 

- Agora, não devem fazer barulho, enquanto subirmos a escada - disse a mulher. - Em princípio, está toda a gente a dormir, mas nunca se sabe. Recebemos tanta gente, actualmente... Tantos convidados... mas, claro, nenhum é tão bem-vindo como vocês...

 

Subiram pela escada escura atrás da mulher, que arfava. Um cheiro enjoativo a perfume pairava no edifício, e ouviram estranhos estalidos provenientes do interior de alguns quartos do segundo andar; depois, um riso brutal e violento, seguido de um grito estridente. George choramingou, com medo. Quando a mulher se virou, a luz de um candeeiro próximo revelou um sorriso cruel no seu rosto.

 

- Não há nada de que ter medo, meu querido. São apenas os convidados a divertir-se. Eu deixava-te espreitar, mas não me parece que a tua mãe gostasse da ideia - acrescentou, emitindo um cacarejo, enquanto os conduzia pelo corredor.

 

Pararam em frente de uma parede lisa, mas a mulher levantou um rolo, fez girar um trinco que havia por trás e uma porta abriu-se, revelando outra escada.

 

- Já não falta muito. Um de cada vez, por favor, e mantenham-se em silêncio. Não é emocionante, crianças? Uma porta secreta! Oh, que encantadoras criaturas vocês são - sibilou, acariciando o cabelo de Jenny.

 

Nellie agarrou na filha e Mãe Liu riu-se. Pouco depois, alcançavam um corredor sem qualquer decoração.

 

- Eis o meu quarto - anunciou a mulher, indicando uma porta. - Não hesitem em bater a qualquer hora, seja para que serviço for. E este é o seu quarto, Daifu.

 

Abriu outra porta, que dava para uma divisão iluminada por velas. Era dominada por uma grande cama de dossel coberta de vermelho; no chão, dois sofás tinham sido preparados para as crianças. Mas o que despertou a atenção de Nellie foram os quadros nas paredes: mostravam amantes em diversas posições indecentes.

 

- Ah, reparou na minha colecção de arte - comentou Mãe Liu, com um sorriso malicioso. - Foram pintados pelos melhores artistas, sabia? Espero que fiquem bem instalados e que desfrutem da vossa estadia nesta casa.

 

Sempre sorrindo, fechou a porta atrás de si, mas o médico e a mulher ainda conseguiram ouvir a. voz dela ao longo do corredor.

 

- Oh, um quarto para si, Ma Na Si, e para a sua amiga...

 

Nellie deixou cair a mala sobre o sumptuoso tapete.

 

- Meu querido, parece que o Henry e a nossa Helen vão passar juntos uma noite de pecado - disse alegremente.

 

Airton deixara-se cair sobre a cama, com a cabeça entre as mãos. A grande custo, focou a atenção no que a mulher lhe dizia.

 

- Sim - murmurou. - Suponho que sim.

 

- Não podemos fazer grande coisa, pois não? Além disso, não é a primeira vez. Só nos resta imaginar que eles já estão casados perante Deus.

 

- Sim - concordou Airton, num fio de voz. - É a forma mais generosa de ver as coisas.

 

- Venham cá! - exclamou Nellie, dirigindo-se aos filhos. - Jenny, fecha a boca e deixa de olhar para esses quadros. Ainda és muito nova para compreender. Agora, para a cama, os dois! Tu também, meu menino. Vamos precisar de todas as nossas forças para os próximos dias.

 

Quando se certificou de que as crianças estavam confortavelmente deitadas, foi tomar o seu lugar ao lado do marido, que estava sentado na grande cama e fitava o chão, com ar ausente.

 

- Edward - murmurou -, este lugar é o que eu penso? Airton limitou-se a emitir uma espécie de grunhido.

 

- Que diriam o teu irmão James ou os meus pais, se soubessem que vamos dormir num bordel? Imaginas a reacção deles? - Sorriu e desatou a rir. Era um riso franco e profundo, que fez estremecer a cama. Airton despertou da sua introspecção.

 

- Enlouqueceste de vez? - resmungou. - Tens noção de onde estamos? Oh, meu Deus, o que foi que eu fiz? Viste os rostos deles, Nellie, quando os abandonámos? E tudo isto para te trazer para este antro do vício, para esta Babilónia... Que foi que eu fiz?

 

Nellie beijou-o.

 

- Salvaste a minha vida e a dos nossos filhos. Foi isso que fizeste. Foste um bom marido e um bom pai. E revelaste uma grande coragem. Não tens de te recriminar de nada, Edward. De nada. E só por isso ainda te amo mais.

 

Airton deixou cair a cabeça entre as mãos, vendo continuamente os rostos reprovadores da irmã Caterina, de Herr Fischer e de Frederick Bowers, acusando-o pela sua deserção. Sentia-se vil, corrompido, amaldiçoado até ao mais fundo da sua alma.

 

- Podes ficar aí sentado a ter pena de ti próprio, se quiseres, meu querido - continuou Nellie -, mas eu estou cansada e quero dormir.

 

Apagou as velas, até o quarto ficar imerso na escuridão. Airton manteve-se onde estava, contemplando os rostos das pessoas que traíra.

 

Assim que a tagarela Mãe Liu fechou a porta atrás de si, Henry e Helen caíram nos braços um do outro, arranhando-se ao despirem-se mutuamente, devorando-se com beijos ardentes, gemendo, na ânsia de sentir pele contra pele, carne contra carne. Cada frase incoerente era interrompida por um beijo faminto.

 

Ofegando, afastaram-se. Henry tirou as botas, saltando ora num pé ora no outro. Helen já lhe tirara a camisa, e ele a blusa dela. Caiu de costas na cama enquanto desapertava a saia e a atirava ao ar. Henry já fizera o mesmo com as suas calças. Helen levantou os braços, gemendo de impaciência, enquanto ele lhe tirava a combinação. Por fim, deitou-se sobre a cama, soerguendo a parte inferior do corpo para que ele pudesse penetrá-la. O sangue fervilhava-lhe nas veias, os olhos ardiam-lhe, as mãos tremiam-lhe. Ardendo de desejo, estendeu os braços para Henry.

 

Mas ele imobilizara-se e contemplava-a em silêncio. Perplexa, ela levantou-se, apoiando-se sobre os cotovelos.

 

- O que se passa, meu querido?

 

- O teu ventre... - murmurou Henry. Helen deixou-se tombar para trás.

 

- Meu Deus, eu não sabia... - disse ele.

 

Ela gemeu e uma lágrima formou-se no canto do olho.

 

- Não consegui dizer-te - murmurou. - Eu sabia...

 

Eu já o sabia durante a caçada às colinas Negras... Foi por isso que te disse que queria sair de Shishan. Mas agora é diferente, não é? Não tem importância, pois não? Começou a chorar.

 

- Sim, diferente. Deus, que foi que eu fiz? O que foi que eu fiz?

 

Os olhos de Helen imploraram.

 

- Ama-me - murmurou.

 

- Oh, minha querida! - exclamou Henry, tomando-a nos braços e cobrindo-lhe o rosto de beijos. - Se eu tivesse sabido... Se eu soubesse...

 

Docemente, pousou a palma da mão sobre a leve protuberância do ventre de Helen, onde crescia uma vida.

 

- Oh, minha querida, perdoa-me, perdoa-me...

 

As suas bocas tocaram-se; ele deitou gentilmente o corpo dela contra o seu. Quando a penetrou, ela arranhou-lhe as costas.

 

No piso térreo, numa das salas de jantar do Palácio dos Prazeres Celestiais, os esbirros do Homem de Ferro Wang, perdidos de bêbedos, disparavam as suas armas contra o tecto. Mas o barulho não incomodou os dois amantes. Os corpos moviam-se ao seu próprio ritmo. A velha cama de dossel rangia. Naquele mundo privado onde se haviam refugiado, nada podia atingi-los. Não naquela noite; não enquanto os seus braços estivessem ali para se abraçarem um ao outro. Nem mesmo depois, quando a cabeça de Helen pousou sobre o ombro de Henry e ele inalou o perfume do cabelo dela, colado ao seu. Porque naquela noite estavam protegidos um pelo outro contra todos os demónios que rondavam lá fora.

 

AS TROPAS IMPERIAIS SÃO BRUTAIS. NÃO COMPREENDEM A MAGIA PROFUNDA. MESTRE ZííANG DIZ PARA SERMOS PACIENTES. A VITÓRIA CHEGARÁ

 

As tropas do major Lin chegaram à missão pouco depois das dez horas. Desta vez, não levavam melancias.

 

Herr Fischer abriu a porta. Estava em camisa de dormir e tinha na mão um bule de chá.

 

- Chegou a hora - disse rapidamente Lin.

 

Herr Fischer pestanejou ao ver os soldados de rostos severos atrás do seu oficial. Duas carroças cobertas por toldos achavam-se perto da porta. O alemão compreendeu.

 

-Já. Vou informar os outros.

 

Os soldados, munidos de baionetas, seguiram-no pelo vestíbulo.

 

Tudo se passou ordeiramente. Os Millward foram os primeiros a ficar prontos. As crianças seguiram Laetitia como na escola, em duas filas, até à porta. Septimus marchava solenemente atrás, apertando contra o peito um livro de orações. Com a outra mão, agarrava com firmeza o cotovelo de Burton Fielding, puxando o assustado reverendo para a frente. Depois de uma meia hora passada no armário, e o resto da noite em prece forçada com Septimus, o chefe da Comissão Americana para as Missões Estrangeiras na China tornara-se um homem bastante mais humilde, embora ainda parecesse algo atordoado pelo sucedido. Caterina seguia sorrindo, envergando o seu hábito de ursulina e touca. Levava um terço nas mãos. Frederick Bowers envergara o seu uniforme de maquinista. Herr Fischer, de sobrecasaca, ajudou Tom a descer a escada.

 

Sentiram-se gratos pela protecção proporcionada pelas carroças fechadas, enquanto estas abriam caminho por entre as fileiras de Boxers. Houve os gritos e os insultos esperados, e projécteis foram atirados contra eles. A irmã Caterina, sentada perto do taipal, podia ver os rostos enfurecidos, cheios de ódio, dos homens e mulheres que se acotovelavam para ver os seus inimigos condenados. Reparou num homem que, ao contrário dos outros, sorria. Estremecendo, reconheceu Zhang Erhao, que partilhara outrora com ela as tarefas quotidianas no hospital, como mordomo do Dr. Airton. Os seus olhares cruzaram-se e ele lançou um escarro que foi depositar-se no hábito da freira.

 

Foi um alívio sair do acampamento dos Boxers e chegar ao campo.

 

Estava um dia magnífico. Longas nuvens desfilavam num céu de um azul intenso; a leve brisa fazia farfalhar as folhas dos olmos. Pegas e corvos voavam por entre os ramos. Noutras circunstâncias, com um dia daqueles podiam partir em excursão numa carroça parecida com aquela, com Jenny e George. A irmã Caterina lembrou-se da irmã Elena, e começou a chorar.

 

- Então... - Sentiu uma mão grande pousar-se no seu ombro e viu o rosto avermelhado e sorridente de Tom a seu lado. - Dê-me a sua mão.

 

Da carroça que seguia à frente, onde seguiam os Millward, chegavam-lhes os sons de um hino. Conseguiam distinguir algumas palavras, quando a voz possante de Septimus e as das crianças, mais agudas, abafavam o ranger das rodas dos veículos.

 

Alcançaremos a terra do Verão, num belo dia, em breve; passearemos pela praia dourada, num belo dia, em breve...

 

- Não conheço essa - disse Tom -, mas conseguimos fazer melhor do que os ianques, não é verdade? Vamos, Bowers, mostremos-lhes um hino inglês. Vamos, Caterina, você tem uma bela voz. Acompanhe-me, porque eu tenho uma voz de cana rachada! Muito bem, vou começar.

 

E, inspirando profundamente, entoou:

 

Há uma. colina verde longe daqui

 

Onde não se vislumbram as muralhas de uma cidade.

 

- Então, amigos, juntem-se a mim...

 

- Disse que tinha voz de cana rachada, Mister Cabot? comentou Bowers, rindo-se. - Pois a mim soa-me mais como o coaxar de uma rã. Deixe-me mostrar-lhe como é que cantamos, nos nossos vales do Norte da Inglaterra, sobretudo depois de uma ou duas cervejas. Está uma bela manhã e teremos muito tempo para a religião, até o dia acabar. Há uma velha canção que a minha mãe me ensinou. Os estrangeiros poderão achar as palavras algo estranhas, a princípio, mas sigam-nos.

 

Pigarreou e entoou Na Charneca de Ilkley. Tom acompanhou-o entusiasticamente.

 

Onde estavas desde que te vi, te vi Na charneca de Ilkley...

 

Herr Fischer não conteve o riso.

 

- Oh, vocês, os ingleses... Nunca conseguem portar-se como deve ser.

 

Mas, não se fazendo rogado, cantou com os outros:

 

Fazia a corte a Mary Jane... Fazia a corte a Mary Jane...

 

A sua voz de baixo, áspera e gutural, em nada contribuiu para a harmonia do conjunto, mas exibia um largo sorriso estampado no rosto, enquanto cantava.

 

- Muito bem, Mister Fischer. Muito bem - elogiou Bowers. - Ainda acabaremos por fazer de si um inglês. Agora, irmã Caterina, acompanha-nos na terceira estrofe?

 

Então, vais morrer de frio, morrer de frio Na charneca de Ilkley...

 

Ela também cantou, com voz débil, a princípio, mas que se tornou mais forte à medida que iam entoando, a plenos pulmões e em uníssono as estrofes absurdas, rindo ao mesmo tempo. Depois de Na Charneca de Ilkley, Bowers fê-los cantar Conhecem John Peei? Tom cantou o hino da equipa de remo de Eton, Herr Fischer lembrou-se de uma canção de bar que aprendera em Heidelberga, e a irmã Caterina terminou com Funiculi Funicula. Depois, por comum acordo, voltaram a cantar Na Charneca de Ilkley.

 

Ostentando uma expressão severa, o major Lin seguia-os, montado na sua égua cinzenta. Perguntava a si próprio se os prisioneiros teriam noção do destino que os esperava. Como podiam fazer tanto barulho? Não tinham medo? Um chinês teria enfrentado a morte com dignidade. Sim, até mesmo a escumalha, como o Homem de Ferro Wang e os seus bandidos, ou o mais miserável dos camponeses. Detestava aqueles estrangeiros. Mesmo no momento derradeiro, pareciam troçar dele. Detestava-os quase tanto como detestava os Boxers. Gentalha indisciplinada. Ansiava por uma sociedade ordeira, as virtudes antigas, o respeito pela imponência e o receio pela lei. Ele restabeleceria a ordem com as espingardas do mandarim. Mas aqueles estrangeiros... porque não revelavam medo?

 

A pequena caravana avançou pelas veredas, e os cânticos elevavam-se das carroças dos condenados até à cúpula azul do céu; de uma erguia-se Abençoa a Minha Alma, Senhor do Céu; da outra, Na Charneca de Ilkley.

 

Quando avistaram as muralhas da cidade, o major Lin fez parar a caravana. Seguiriam a pé as últimas centenas de metros que levavam à praça.

 

Tiraram-lhes as roupas. Na China os criminosos marchavam em tronco nu até ao local da execução. Até as mulheres foram despidas até à cintura, embora as deixassem levantar as orlas das saias para preservar algum pudor. Mas o momento não se prestava a esse género de pormenores, e nem Caterina nem Laetitia protestaram. Eram demasiado numerosos para que lhes pusessem cangas. Assim, apenas quatro, Septimus Millward, Herr Fischer, Burton Fielding e Frederick Bowers tiveram de suportar os pesados colares de madeira. Tom foi poupado devido à sua invalidez. Tinham preparado uma padiola para ele, mas o jovem gesticulou encolerizado, dando a entender que marcharia com as muletas, e o major Lin não se opôs. Também não insistiu para que os prisioneiros fossem acorrentados. Isso só serviria para atrasar ainda mais a marcha. Os ferros foram por isso atirados para dentro de uma das carroças.

 

Os oficiais do yamen esperavam-nos. O camareiro Jin Lao achava-se no seu palanquim; era ele que detinha a responsabilidade de os conduzir até à praça. Porta-bandeiras brandiam os seus estandartes, que adejavam ao vento, enquanto outros empunhavam grandes varas, para abrir caminho por entre a multidão e deixar passar o cortejo. Um tocador de tambor carregava o instrumento atado ao peito, enquanto dois músicos afinavam compridas trombetas; a sua função era marchar à frente da procissão e avisar a multidão para se afastar.

 

Reinou o habitual caos chinês, enquanto cada um tentava encontrar o seu lugar na coluna de marcha. Do alto da sua montada, o major Lin contemplava a cena, irritado com o atraso. Finalmente, o camareiro fez sair uma mão elegante do palanquim, e o major iniciou a marcha.

 

O pesado tambor começou a rufar e as trombetas retiniram. A um ritmo desesperadamente lento - o das crianças e de Tom com as muletas -, a procissão avançou.

 

A torre fortificada agigantava-se por cima deles. Lá em cima, soldados e bandidos debruçavam-se por cima das ameias para as ver. Depois foram tragados pela caverna escura que constituía o seu interior, com as pontas da grade levadiça suspensas, ameaçadoras, por cima das suas cabeças. Quando chegaram ao outro lado, a luz do sol cegou-os por instantes, e só depois repararam na imensa multidão que enchia os lados da rua. Mesmo as varandas das casas estavam apinhadas de gente. Muitos habitantes de Shishan tinham saído à rua só para ver morrer os estrangeiros. Mas não era a multidão chinesa do costume: era silenciosa, como se as pessoas não pudessem crer no que viam. Burton Fielding avançava aos tropeções, sob o peso da canga, com a cabeça tombada para a frente; os outros mantinham-se mais ou menos direitos. Septimus Millward marchava orgulhosamente à frente, com grandes passos e olhar altivo - excepto quando se virava para lançar um olhar afectuoso a Hiram, que seguia a seu lado. As mulheres tinham esquecido o seu pudor e davam a mão às crianças mais novas, uma de cada lado. Tom esforçava-se por avançar com as muletas, mais atrás, e Frederick Bowers mantinha uma mão firme pousada sobre o seu ombro. O maquinista de barba preta contemplava a multidão com um olhar sereno.

 

- É um povo pitoresco, não concorda, Mister Cabot? comentou. - É uma pena que tenham nascido bárbaros. Não tive muito tempo para me debruçar sobre os cinco mil anos da famosa civilização chinesa, mas não me parece que ela os tenha levado muito longe.

 

- De facto, hoje não estão a comportar-se de uma forma muito civilizada - replicou Tom, ofegante, parando para respirar entre cada palavra. - Sabe, penso que seria o momento ideal para cantarmos uma nova canção.

 

- Na Charneca de Ilkley não seria muito apropriado, agora...

 

- Não, pensava em algo mais animado - replicou Tom.

- Algo que lhes mostre do que somos feitos.

 

Ganhou fôlego e chamou Septimus, que seguia à frente do grupo.

 

- Millward! Conhece Marchem, Soldados de Cristo.

 

- Claro que sim! - respondeu Septimus. Endireitou-se e começou a cantar. A família juntou-se-lhe

 

de imediato e de imediato todos os outros. Até mesmo Fielding. O chamamento cristão às armas, evocado pelas vozes agudas, erguia-se acima dos tambores e das trombetas, e um murmúrio percorreu a multidão. O major Lin voltou-se na sela, e olhou para trás, franzindo o sobrolho, mas não podia fazer nada. O camareiro espreitou pela janela do palanquim e, inconscientemente, as suas unhas compridas começaram a martelar na porta, ao ritmo da melodia. Sorriu ao pensar no espectáculo que se seguiria. Uma voz na multidão gritou:

 

- Exterminem os estrangeiros! Salvem os Ch’ing!

 

Mas a maior parte manteve-se em silêncio, olhando com espanto aquele pequeno grupo de peregrinos que marchava para o martírio a cantar.

 

Tinham adormecido de madrugada. As crianças ainda não tinham acordado quando Nellie e Airton se levantaram. O médico consultou o relógio. Já passava do meio-dia.

 

- Deixemo-los Edward. Os pobrezinhos estão exaustos - pediu Nellie.

 

Lavaram-se. Havia um balde de madeira repleto de água, assim como uma concha, a um canto do quarto, junto a um largo bacio. Já vestidos, voltaram a sentar-se na cama. Não havia mais nada para fazer.

 

- Estou com alguma fome - disse Nellie. - Achas que podemos pedir àquela mulher horrível que nos prepare algo de comer?

 

Não tiveram de o fazer, porque, ao sair do quarto, o médico encontrou no corredor deserto um tabuleiro pousado sobre um banco. Havia um bule de chá, chávenas e pequenas taças com doces e bolinhos chineses.

 

- É o serviço de quartos? - comentou Nellie.

 

- Sim - respondeu o médico em tom abatido, enquanto enchia uma chávena para a mulher.

 

- Nenhum sinal dos dois pombinhos?

 

- Não.

 

- Bom, penso que só nos resta esperar que aconteça alguma coisa. Alguém deve ter planeado alguma coisa para nós.

 

- Sim - resmungou Airton, com o espírito longe dali. Bateram à porta. Era Henry, que apresentava um ar sinistro.

 

- Doutor, é melhor vir ver. Quanto à senhora, Mistress Airton, é melhor ficar no quarto.

 

- Eu vou com o meu marido - decretou Nellie.

 

- Como queira. Mas não vai ser agradável. Seguiram-no pelo corredor. Podiam ouvir o ruído surdo feito por uma multidão. Helen estava empoleirada num banco comprido, que lhe permitia ver o exterior através de uma janela alta. Tinha o rosto vermelho e ostentava a mesma expressão trágica de Henry.

 

- Vou ajudá-la a subir - disse a Nellie, estendendo-lhe a mão.

 

Os quatro alinharam-se no banco, olhando pela janela. Dali viam as curvas dos telhados do templo mesmo em frente, assim como, mais ao longe, a vasta extensão de telhas cinzentas da cidade. Também tinham uma excelente vista para a praça, invadida por uma multidão exuberante. O centro da praça estava vazio: um círculo de areia, no meio do qual se achava um homem alto, nu até à cintura e apoiado a uma espada. Parecia trocar piadas com as pessoas que o rodeavam.

 

- Oh, meu Deus! - gritou Airton. - Vai haver uma execução! Manners, não é... não é...?

 

Henry não respondeu. Em baixo, houve um movimento e viram chegar o mandarim, acompanhado por um homem que parecia um urso, vestido com peles de animais; conversavam e o mandarim ria-se de algo que o companheiro lhe dizia. Atrás deles, seguia-os um grupo desordenado de oficiais e de outros homens com aspecto pouco recomendável. Tomaram os seus lugares indolentemente nas cadeiras colocadas num dos lados da praça.

 

- O Homem de Ferro Wang - comentou Henry e os seus bandidos. Nem eu estava à espera de outra coisa...

 

Durante alguns instantes, nada se passou. O mandarim e os seus companheiros fumavam longos cachimbos. O homem parecido com um urso, sentado a seu lado, bebia de uma cabaça. A multidão agitou-se. Um grupo envergando o uniforme dos Boxers, começou a gritar o já familiar mote:

 

- Exterminem os estrangeiros! Salvem os Ch’ing!

 

No entanto, os gritos esporádicos que irrompiam da multidão não duravam muito tempo. Incitado pelos outros, o homem com a espada começou a fazê-la girar por cima da cabeça, executando uma espécie de dança inspirada nas artes marciais. Recebeu alguns aplausos, mas também ele parou e gradualmente a multidão calou-se, à espera.

 

Manners, Airton, Helen e Nellie também esperavam, petrificados, espreitando pela janela.

 

Ouviu-se então um lento rufar de tambores e o gemer de trombetas. A multidão animou-se e as pessoas esticaram os pescoços, impacientes. Pouco depois, ouviu-se um som diferente, misturado ao barulho geral. Era um hino!

 

- Oh, Edward... - balbuciou Nellie. - É Jerusalém, a Dourada Não aguento mais.,.

 

Os porta-bandeiras fizeram a sua entrada na praça e foram postar-se nas primeiras filas da multidão. O major Lin seguia-os. Descera do cavalo e marchava ao lado do camareiro Jin. Este, uma silhueta magra de cabelos brancos, inclinou-se perante o mandarim, antes de tomar o seu lugar, um pouco à frente dos outros, na extremidade da praça. Mais porta-bandeiras entraram. Foi então que avistaram Septimus Millward, com um braço à volta dos ombros do filho. Um a um, reconheceram os outros, até chegar a vez de Tom, que coxeava no fim do grupo, apoiado nas muletas. O hino terminou. Septimus, ignorando a multidão, endireitou-se, estendendo os braços para a frente - não podia erguê-los ao alto por causa da canga. Abriu o livro de orações, os outros ajoelharam-se à sua volta, formando um círculo, e começaram a rezar.

 

O camareiro desenrolou um rolo. Leu a acusação, com voz aguda e algo teatral, terminando com um retumbante ”Tremam e obedeçam”. O mandarim, que havia pousado o cachimbo, inclinou a cabeça e fez um sinal com a mão. O homem alto com a espada efectuou uma vénia elaborada e a multidão reteve a respiração.

 

Dois homens, os ajudantes do carrasco, correram em direcção aos condenados. Arbitrariamente, escolheram Burton Fielding, por ser o que estava mais perto. Este começou a debater-se e a gritar, enquanto lhe tiravam a pesada canga. Um murmúrio de satisfação percorreu a multidão. Septimus Millward parou de ler e disse qualquer coisa ao lacrimejante compatriota. O que quer que tenha sido, pareceu surtir efeito. Fielding, de súbito, relaxou. Não ofereceu resistência, quando o levaram para o centro da praça. Septimus retomou a leitura. Nenhum dos condenados ergueu a cabeça para ver a cena, concentrando-se nas suas preces, mas o médico e os outros viram tudo. Não conseguiam desviar os olhos. Fielding foi forçado a ajoelhar-se, puxaram-lhe as mãos para trás das costas e, com um só golpe de espada, a sua cabeça separou-se do corpo.

 

Henry pôs um braço em volta de Helen, que se apoiou contra ele, chorando em silêncio. O Dr. Airton e Nellie estavam petrificados pelo choque e pela incredulidade.

 

Herr Fischer foi o seguinte. Ao contrário de Fielding, não se debateu quando lhe tiraram a canga. Fez uma curta vénia a Septimus, depois a Bowers, afastou as mãos dos carrascos e avançou, muito empertigado e de sua própria vontade, para o homem com a espada agora já manchada. Caiu de joelhos, benzeu-se e pôs ele próprio as mãos atrás das costas. A multidão manteve-se em silêncio quando a cabeça de cabelo grisalho rolou pela areia.

 

Tom estava pronto quando os carrascos foram buscar a vítima seguinte. Durante a decapitação de Fischer, tivera tempo de apertar a mão de Bowers e de beijar gentilmente a irmã Caterina na testa. Antes mesmo que os dois ajudantes se aproximassem dele, abriu caminho, apoiando-se nas muletas, em direcção ao carrasco. Passou outro murmúrio na multidão, talvez de admiração pela sua coragem, mas tudo voltou a mergulhar no mais profundo silêncio quando Tom atirou as muletas para o chão e se ajoelhou. Mesmo de tão longe, Henry e os outros conseguiram ouvi-lo assobiar.

 

- Que Belo Tempo para Andar de Canoa - murmurou Henry. - Está desafinado, mas é mesmo do Tom. Que homem corajoso.

 

- Oh, não quero ver - murmurou Helen.

 

- Não olhes.

 

A lâmina da espada caiu mais uma vez.

 

Para variar, escolheram então uma mulher. A irmã Caterina parecia nervosa, passando os olhos pela multidão e cobrindo com as mãos o peito, mas avançou com passos firmes. Teve um momento de confusão quando se aproximou do carrasco, fitando fascinada a lâmina manchada e as poças de sangue na areia. O carrasco revelou-se mais brando com ela e pediu-lhe que se ajoelhasse; ela obedeceu, benzendo-se. Um ajudante puxou-lhe os braços para trás e o outro puxou-lhe o cabelo para cima, desnudando-lhe a nuca. Por aquela altura, a lâmina já estava embotada e foi preciso dois golpes para lhe cortar a cabeça.

 

- Oh, Caterina! - soluçou Nellie, e também começou a chorar baixinho, como Helen.

 

Airton fitava, muito hirto, com as mãos crispadas no peitoril da janela. Tinha-se cortado no rebordo e sangrava, mas nem se apercebera.

 

Houve uma longa pausa, enquanto se trazia uma pedra de amolar para afiar a lâmina da espada. O carrasco enxugou o suor do corpo com uma toalha e bebeu sofregamente de um cântaro de vinho que alguém tinha ido buscar à loja de bolinhos de massa. Um ruído de vozes conversando entre si erguia-se da multidão, e a excitação pairava no ar. O grupo que rodeava Millward, agora mais reduzido, continuava a rezar.

 

As cabeças de Fielding, Fischer, Tom e Caterina jaziam sobre a areia, nos locais onde tinham caído. As moscas voavam à sua volta.

 

A seguir foram buscar Bowers. Caminhou para a execução como um soldado da guarda, e tudo acabou rapidamente. A sua cabeça rolou para perto da de Fischer. De uma maneira macabra, pareciam estar a conversar. Só restavam os Millward.

 

Laetitia abraçara os dois filhos mais novos, Lettie e Hannah. Não quiseram deixar a mãe, e os ajudantes permitiram que a acompanhassem até ao centro da praça. Antes de se ajoelharem com cuidado Laetitia tirou-lhes os óculos, e depois tirou os seus. O carrasco cortou primeiro as cabeças das meninas, e em seguida a da mãe, com golpes precisos.

 

Seguiu-se Hiram. Beijou o pai na face e avançou para o carrasco, com a cabeça levantada, mas não por muito tempo. Seguiu-se-lhe Mildred. Tal como a irmã Caterina, sentia-se envergonhada por expor os seus pequenos seios. Chorou quando viu as cabeças da mãe e dos irmãos na areia, mas o carrasco foi lesto, e pouco depois a sua cabeça juntava-se às outras.

 

Ainda restavam Millward e quatro dos seus filhos.

 

O carrasco estava visivelmente cansado. Talvez por causa do vinho que bebera no intervalo das decapitações. Deixou os ajudantes ocuparem-se das crianças, enquanto descansava e bebia mais vinho. Isso não provocou qualquer reacção na multidão, que se mantivera em silêncio durante as últimas decapitações. Isaiah, Míriam, Thomas e Martha, que tinham parado de rezar quando a mãe fora levada, agarraram-se aterrorizados às pernas do pai. Os ajudantes tiveram de lhes abrir as mãos, uma a uma, e agarrá-las firmemente, enquanto as crianças se debatiam. Não as decapitaram, mas abriram-lhes as gargantas com cutelos de talhante. Era mais rápido.

 

Nem Nellie nem Helen assistiram à cena. Depois da morte de Laetitia, haviam-se sentado no banco. Helen tremia nos braços de Nellie, que fitava a parede com olhos esbugalhados. Apenas o médico e Henry permaneciam no seu posto de observação - Airton petrificado na mesma posição havia uma hora. Henry olhava para ele com ar preocupado de vez em quando.

 

Só restava Septimus. Depois de lhe arrancarem os filhos, fechara o livro de orações e assistira à sua execução com um olhar frio. Voltara-se agora para o mandarim, com o dedo estendido, qual profeta do Antigo Testamento, sem dúvida apelando à ira divina para que se abatesse sobre o mandarim e todos os responsáveis daqueles crimes hediondos. Airton não conseguia ouvir as palavras de Septimus, mas não pareciam surtir qualquer efeito. O homem peludo sentado ao lado do mandarim - que Henry dissera ser o Homem de Ferro Wang -, desatou a rir à gargalhada e estendeu a garrafa para Septimus, como se brindasse à saúde do condenado. Quanto ao mandarim, pelo que o médico conseguia ver, parecia aborrecido. Com a mão, fez sinal ao carrasco para se despachar.

 

Septimus voltou-se e marchou para o carrasco, empurrando energicamente os dois ajudantes para os lados. Parou em frente do carrasco, fitando-o olhos nos olhos. O homem susteve o olhar com alguma impudência durante alguns instantes, mas acabou por desviar a cabeça. Septimus estendeu a mão e deu-lhe uma leve palmada no ombro. Ajoelhou-se e deixou os ajudantes, visivelmente impressionados, tirar-lhe a canga. Baixou a cabeça para uma última prece, e só depois deixou que um dos homens lhe puxasse os braços para trás. O outro agarrou desajeitadamente o seu rabicho louro, deixando a nuca a descoberto. O carrasco hesitou por um instante mas acabou por continuar. A cabeça obstinada de Septimus pareceu manter-se firmemente presa ao corpo. Foram precisos quatro fortes golpes para que a carne, os músculos e os tendões se separassem e que a cabeça de Septimus rolasse para se ir juntar às da sua família.

 

Tinha acabado.

 

Ou quase. O médico, ainda pregado ao chão, ignorou a mão que Henry lhe colocou no ombro. Viu o mandarim levantar-se da cadeira e avançar para o local da chacina, observando os corpos sem qualquer emoção, como um general empedernido que inspecciona o resultado de uma batalha. Ergueu a cabeça e pareceu olhar directamente para a janela onde se encontrava o médico. A expressão do mandarim era impenetrável, mas parecia tentar comunicar algo a Airton. Talvez o fizesse compreender que sabia que ele estava ali e assistira a toda a cena. Fez meia volta abruptamente e afastou-se.

 

- Venha, doutor - dizia Henry. - Não há mais nada para ver.

 

Quando abandonou a janela é que reparou nas palmas ensanguentadas das suas mãos. Meneou a cabeça e agarrou Henry pela manga da camisa.

 

- Sou um Judas - murmurou. - Devia ter lá estado com eles. Devia lá estar.

 

- Venha, doutor – falou gentilmente Henry. Apoie-se em mim. Deixe-me ajudá-lo.

 

Ouviram uma voz afectada ecoar do fundo do corredor e viram Mãe Liu coxeando na sua direcção.

 

- Oh, estão todos aqui - comentou. - Que quadro encantador... Estão a aproveitar a luz do sol e a nossa bela vista. Espero que estejam bem instalados e que tenham comido bem... Tenho notícias excelentes para vós. Sim, verdade. O mandarim, o mandarim em pessoa, vem ver-vos amanhã.

 

                                                                                 CONTINUA 

 

                      

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