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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A SABEDORIA DO PADRE BROWN / G.K.Chesterton
A SABEDORIA DO PADRE BROWN / G.K.Chesterton

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A SABEDORIA DO PADRE BROWN

 

O escritório do Dr. Orion Hood, eminente criminologista e especialista em certos problemas de ordem moral, situava-se à beira-mar, em Scarborough. Uma série de grandes janelas envidraçadas e bem iluminadas davam para o Mar do Norte como se este fora uma parede externa, sem fim, de mármore verde-azul. Nesse lugar o mar tinha algo da monotonia de uma decoração invariavelmente verde-azul. As próprias salas eram dominadas por um terrível vazio semelhante ao vazio do mar. Não se pode com isso dizer que as salas do Dr. Hood fossem despidas de luxo e poesia. Luxo e poesia lá estavam, no seu devido lugar; tinha-se, porém, a impressão de que nunca lhes era permitido sair de seus devidos lugares. Luxo havia: sobre uma mesa especial, oito ou dez caixas dos melhores charutos, mas dispostos em ordem, os mais fortes sempre mais perto da parede e os mais fracos junto à janela. Um armário, conten­do três espécies do que havia de melhor em bebidas, ficava sempre sobre aquela luxuosa mesa; mas o fantasista garantiria que o uísque, o conhaque e o rum iriam permanecer sempre no mesmo nível em que estavam. Havia poesia: o canto à es­querda da sala estava tão coberto de uma série de clássicos ingleses, quanto o lado direito de fisiologistas ingleses e estran­geiros. Mas, se apanhássemos um volume de Chaucer ou Shelley daquela fila, sua ausência irritava a mente como a falta de um dente frontal de uma pessoa. Não se podia dizer que os livros nunca tivessem sido lidos; provavelmente, o tivessem, mas a impressão era de que estavam presos à seus lugares, como as Bíblias nas igrejas antigas. O Dr. Hood tratava sua biblioteca particular como se fosse uma biblioteca pública. E, se essa rigorosa intangibilidade científica chegava até as pra­teleiras de poesias líricas e de baladas, passando pelas mesas cheias de bebidas e de fumo, nem é preciso dizer que, com muito mais intensidade essa mística pagã protegia as demais prateleiras, onde se encontrava a biblioteca do especialista, e as outras mesas que sustentavam os frágeis e mesmo maravi­lhosos instrumentos de química ou de mecânica.

Orion Hood percorria passo a passo a extensão de sua série de salas, limitadas, como dizem os manuais de geografia, a leste pelo Mar do Norte e a oeste pelas fileiras compactas de sua biblioteca sócio-criminológica. Embora vestido num terno de veludo artístico, faltava-lhe aquela negligência típica de um artista; seu cabelo, bastante matizado de cinza, era abundante e saudável; no rosto magro, mas sangüíneo, um olhar inquieto e observador. Tudo em torno dele e de sua sala sugerida algo ao mesmo tempo austero e agitado, como o grande Mar do Norte, junto ao qual construíra (por meros princípios de higiene) sua casa.

Talvez tenha sido o destino que, divertido, naquele mo­mento batesse à porta para introduzir naquelas salas compri­das e austeras, com janelas voltadas para o mar, uma pessoa que talvez fosse o oposto mais surpreendente de tudo isso e de seu dono. Em resposta a uma ordem breve, mas educada, a porta se abriu e por ela entrou, caminhando desajeitadamen­te, um tipo pequeno e deselegante, que parecia achar seu pró­prio chapéu e guarda-chuva tão incomodativos como um amontoado de bagagens. O guarda-chuva era um feixe preto e pro­saico que há muito tempo pedia conserto; o chapéu também preto, de abas largas e recurvadas, eclesiástico, mas de um tipo não muito comum na Inglaterra; o homem era a própria encarnação de tudo que é desgracioso e insólito.

O médico observou o recém-chegado com um espanto mal contido, não muito diferente do que teria demonstrado se algum animal marinho imenso, muito embora inofensivo, se tivesse arrastado até seu consultório. O recém-chegado olhou para o médico com aquela cordialidade ofegante, mas satisfeita, típica da doméstica bem gorda que acaba de conseguir um lugar num ônibus na hora do rush. Seu chapéu caiu no tapete, o pesado guarda-chuva escorregou entre seus joelhos com um baque; apanhou um e abaixou-se para apanhar o outro. Ao mesmo tempo, com um sorriso inalterado em seu rosto redondo, começou a falar:

Chamo-me Brown. Queira desculpar-me. Vim tratar do negócio das MacNabs. Ouvi dizer que o senhor muitas vezes ajuda as pessoas a resolver problemas dessa espécie. Perdoe-me se me engano.

Naquele momento, já tinha conseguido apanhar o chapéu e, inclinado sobre ele, o examinava como a verificar se tudo estava em ordem.

Não o compreendo — respondeu o cientista, frio e visivelmente insensível. — Lamento que o senhor tenha errado a porta. Sou o Dr. Hood e meu trabalho é essencialmente literário e educacional. É verdade que às vezes tenho sido con­sultado pela polícia, mas só em casos de importância e de difi­culdades especiais, porém...

Oh, este é da maior importância — interrompeu o homenzinho chamado Brown. — Pois a mãe dela não quer permitir o casamento.

E recostou-se em sua cadeira em estado de radiante racionalidade.

Dr. Hood contraíra o cenho sombriamente, mas seus olhos brilhavam com algo que tanto poderia ser raiva como divertimento.

Mesmo assim — disse —, ainda não compreendo.

Olha, eles se querem casar — afirmou o homem de chapéu eclesiástico. — Maggie MacNab e o jovem Todhun - eles querem casar-se. Pode haver algo mais importante do que isso?

Os grandes triunfos científicos de Orion Hood tinham-no privado de muitas coisas, uns diziam de sua saúde, outros de seu Deus; mas não o tinham despojado de seu senso de absurdo. Ao último argumento do padre simplório, explodiu num riso há muito reprimido, jogando-se numa poltrona numa ati­tude irônica de médico consultado sem motivo.

Mr. Brown — disse, tornando-se novamente sério —, há quatorze anos e meio fui solicitado a resolver um pro­blema pessoal. Foi o caso da tentativa de envenenamento do Presidente francês em um banquete oferecido pelo Prefeito de Londres. Agora, seu caso, segundo posso compreender, é se uma amiga sua chamada Maggie é ou não a esposa ideal para o namorado dela chamado Todhunter. Bem, Mr. Brown, sou um esportista. Vou entrar no negócio. Darei à família MacNab meu melhor conselho, tão bom como o que dei à Repú­blica francesa e ao rei da Inglaterra. Talvez, melhor ainda, pois são mais quatorze anos de experiência. Não tenho nada para fazer esta tarde. Conte-me sua estória.

O pequeno clérigo chamado Brown agradeceu-lhe com evidente entusiasmo, embora conservasse ainda uma estranha espécie de simplicidade. Era mais como se estivesse agradecendo a um estranho, numa sala de fumar, pelo obséquio de lhe ter emprestado o fósforo, do que como se estivesse (como de fato estava) praticamente agradecendo ao conservador dos Kew Gardnes por vir com ele a um campo para descobrir um trevo de quatro folhas. Quase sem fazer uma pausa depois de seus agradecimentos cordiais, o homenzinho começou sua narração:

Disse-lhe que me chamo Brown, mais precisamente, sou o padre daquela igrejinha católica que suponho o senhor tenha visto além daquelas ruas irregulares, onde termina a ci­dade, na direção norte. Na última e mais irregular daquelas ruas que se estendem ao longo do mar como se fossem um cais, mora uma alma honesta, ou melhor, rigorosa, de meu rebanho. Trata-se de uma viúva chamada MacNab que tem uma filha e aluga cômodos. E entre ela e a filha e entre ela e os inquilinos, bem, tenho de dizer que muita coisa devia ser dita de ambos os lados. Atualmente tem apenas um inquilino, o jovem chamado Todhunter; mas esse tem dado mais proble­mas do que todos os demais, pois quer casar-se com a moça da casa.

E a moça da casa — perguntou Hood, divertindo-se no seu íntimo —, que diz ela?

Bem, quer casar-se com ele — exclamou o padre Brown, ajeitando-se impacientemente na cadeira. — Aí é que está a grande complicação.

É realmente um terrível enigma... — disse o Dr. Orion Hood.

O jovem Todhunter — continuou o padre — parece ser um moço muito correto, mas nunca se sabe. É inteligente.


Um tipo baixo, ágil como um macaco, de pele bem tratada como um ator e educado como um cortesão. Parece ter bastante dinheiro, mas ninguém sabe qual é o seu ramo de negó­cio. A senhora MacNab, que é de temperamento pessimista, tem certeza, por isso mesmo, de que se trata de algo escuso, provavelmente ligado a dinamite, que deve ser fraca e silen­ciosa, pois o pobre sujeito se isola durante várias horas, do dia, estudando algo, trancado em seu quarto. Afirma que seu iso­lamento é temporário e justificado, prometendo explicá-lo antes do casamento. É tudo que se sabe ao certo, mas a se­nhora MacNab lhe contará muito mais além do que tem cer­teza. O senhor sabe que as estórias crescem como a relva, num lugar ignorante como aquele. Fala-se de duas vozes ouvi­das conversando no quarto, embora, aberta a porta, Todhun­ter fosse encontrado só. Há estórias de um homem alto, de cartola de seda, que uma vez ao lusco-fusco surgiu da névoa marítima, aparentemente do próprio mar, e, atravessando tran­qüilamente a praia e o pequeno quintal, foi ouvido conversan­do com o inquilino, junto à janela aberta. O colóquio pareceu terminar numa discussão. Todhunter fechou a janela com violência e o homem de cartola misturou-se de novo com o nevoeiro do mar. Essa estória é contada pela família com a mais aterradora mistificação; mas acho realmente que a se­nhora MacNab prefere sua própria versão original da estória: o Outro Homem, ou coisa que o valha, sai toda noite de uma grande caixa, que fica fechada durante o dia todo, no canto do quarto. O senhor vê, portanto, que a porta fechada do quarto de Todhunter é tratada como se fosse o portão de todas as fantasias e monstruosidades das "Mil e Uma Noites". E, apesar de tudo, ali está um sujeitinho, num respeitável terno preto, tão pontual e inocente como um relógio de sala. Paga pontualmente seu aluguel; é praticamente abstêmio, sempre bondoso com as crianças e capaz de mantê-las entretidas du­rante todo um dia. Por fim, o que é mais importante de tudo, tornou-se igualmente popular com a filha mais velha, que está disposta a casar-se com ele amanhã.

Um homem profundamente interessado em quaisquer grandes teorias tem sempre atrativo por aplicá-las em alguma trivialidade. O grande especialista, tendo condescendido com a simplicidade do padre, o fez generosamente. Refestelado em sua poltrona confortável, começou a falar no tom de conferencista distraído:

— Até num caso insignificante, o melhor é apreciar, primeiro, as tendências principais da Natureza. Uma determina­da flor pode não estar morta no início do inverno, embora as flores estejam moribundas; um determinado seixo pode nunca ser molhado pela onda, mas a onda está chegando. Aos olhos do cientista, toda a história humana é uma série de movimen­tos coletivos, de destruições ou migrações, como o massacre das moscas no inverno ou a volta dos pássaros na primavera. Ora, o fato radical de toda história é a raça. A raça produz a religião, a raça produz guerras legítimas e éticas. Não há exemplo mais forte do que o do povo rude, espiritual e abne­gado que comumente chamamos de celta, do qual descendem seus amigos MacNab. Pequenos, trigueiros e portadores desse sangue sonhador, aceitam, facilmente, a explicação supersti­ciosa de quaisquer incidentes, do mesmo modo como aceitarão, perdoe-me a franqueza, aquela explicação supersticiosa de todos os incidentes que o senhor e sua igreja apresentam. Não é de admirar que essas pessoas, com o mar rugindo atrás delas e a Igreja, desculpe-me mais uma vez, com sua lengalenga a sua frente, criem aspectos fantásticos para fatos provavelmente simples. O senhor, com apenas suas pequenas responsabilida­des paroquiais, vê somente essa senhora MacNab, atormenta­da com essa determinada estória de duas vozes e do homem alto que sai do mar. Mas o homem com imaginação cientí­fica vê, por assim dizer, todos os clãs de MacNab espalhados pelo mundo, tão uniformes em sua média final, como um ban­do de pássaros. Vê milhares de senhoras MacNabs, em milha­res de casas, despejando sua pequena gota de morbidez nas taças de chá de seus amigos. Vê...

Antes que o cientista pudesse concluir sua sentença, outros chamados, desta vez impacientes, vieram do lado de fora; alguém com uma saia farfalhante foi conduzida apressadamente pelo corredor e a porta se abriu para uma jovem, decente­mente vestida, mas desordenada e excitada pela pressa. Tinha cabelos louros entufados pelo vento do mar e poderia ser con­siderada toda bela, não fossem as maçãs de seu rosto, à ma­neira escocesa, um pouco salientes demais e intensas na cor. Sua desculpa foi quase tão brusca como uma ordem.

- Lamento interrompê-lo, senhor — disse ela —, mas tive de seguir o padre Brown imediatamente; é nada mais nada menos, uma questão de vida ou de morte.

O padre começou a levantar-se desajeitadamente.

O que foi que aconteceu, Maggie? — perguntou.

James foi assassinado, pelo que posso concluir — res­pondeu a moça, ainda ofegante pela corrida. — O homem Glass esteve com ele novamente. Eu os ouvi perfeitamente conversando, através da porta. Duas vozes distintas, pois James falava baixo, meio engrolado, e a outra voz era alta e trêmula.

Que homem Glass é esse? — perguntou o padre Brown perplexo.

Sei que se chama Glass — respondeu a moça com impaciência. — Ouvi através da porta. Estavam discutin­do... sobre dinheiro, acho, pois ouvi James repetir "está bem, Mr. Glass", ou, "não, Mr. Glass" e então, "dois ou três, Mr. Glass". Mas estamos falando demais; o senhor precisa vir imediatamente e talvez haja ainda tempo.

Tempo para quê? — perguntou o cientista, que estivera estudando a jovem com profundo interesse. — O que há com esse Mr. Glass e suas dificuldades monetárias que exijam tanta pressa?

Tentei abrir a porta, mas não pude — respondeu a moça apressadamente. — Então rodeei o quintal e consegui subir até a soleira da janela do quarto. Estava tudo escuro e parecia vazio, mas juro que vi James estendido e enrolado num canto, como se tivesse sido drogado ou estrangulado.

Isso é muito grave — disse o padre, juntando o cha­péu e o guarda-chuva espalhados e se levantando. — Estava acabando de expor seu caso a esse senhor, e seu ponto de vista...

Foi muito alterado — cortou o cientista gravemente. — Não acho que esta jovem seja tão céltica como eu pen­sava. Como não tenho mais nada a fazer, vou pôr meu chapéu e acompanhá-los à cidade.

Poucos minutos depois, os três se aproximavam da melancólica extremidade da rua dos MacNabs: a jovem com o passo firme e agitado de montanhesa, o criminologista com o ar indolente (que não era destituído de uma certa agilidade do leopardo) e o padre num trote vigoroso inteiramente desprovido de distinção. O aspecto dessa parte da cidade não era inteiramente sem justificativa para as alusões do médico sobre atmosfera e ambientes desolados. As casas dispersas se afas­tavam cada vez mais, numa fila interrompida, ao longo da costa; a tarde estava chegando ao fim com um crepúsculo prematuro e em parte sombrio; o mar, roxo-escuro, sussurrava sinistramente. No quintal irregular dos MacNabs, que descia para a praia, duas árvores escuras, aparentemente improduti­vas, pareciam mãos do demônio levantadas de assombro e, quando a senhora MacNab desceu a rua correndo para encon­trar-se com eles, com as mãos magras estendidas e expressão sombria, ela própria pareceu um demônio. O médico e o pa­dre quase não prestaram atenção a suas estridentes reiterações da estória de sua filha, com seus detalhes pessoais mais per­turbadores, unidos aos votos de vingança repartidos contra Mr. Glass pelo assassinato, contra Mr. Todhunter por ser assassinado, ou por ter ousado querer desposar sua filha e não ter vivido para o fazer. Passaram através do corredor estreito diante da casa até que chegaram à porta do inquilino, no fun­do, onde o Dr. Hood, com a experiência de velho detetive, atirou-se de ombro contra a almofada da porta, arrombando-a.

A porta se abriu para um cenário de indiscutível catás­trofe. Quem o visse, mesmo de relance, não podia duvidar de que o quarto fora palco de luta entre duas ou, talvez, mais pessoas. Cartas de baralho jogadas em cima da mesa, outras espalhadas no chão, como se um jogo tivesse sido interrom­pido. Dois copos de vinho estavam preparados numa mesinha lateral, mas um terceiro jazia quebrado como uma estrela de cristal sobre o tapete. A poucos passos dali, algo que parecia uma faca comprida ou uma espada curta, mas com um punho ornamental ou pintado; sua lâmina fosca mal refletida a pouca luz da janela sombria que mostrava as árvores negras contra a superfície plúmbea do mar. Do outro lado do quarto uma cartola de seda rolara no chão como se tivesse sido arrancada da cabeça de alguém; tal era a sua posição que quase se tinha a impressão de que estivesse ainda rolando. No canto atrás da cartola, atirado como um saco de batatas, mas amarrado como um dormente de estrada de ferro, jazia Mr. James Tod­hunter, com um cachecol na boca e os braços e os pés forte­mente amarrados com cordas. Seus olhos castanhos estavam vivos e se mexiam atentamente.

O Dr. Orion Hood fez uma pequena pausa junto à en­trada do quarto e absorveu todo o cenário de surda violência. Em seguida, atravessando rapidamente o tapete, apanhou o chapéu de seda e o colocou gravemente na cabeça de Todhunter ainda manietado. Era tão excessivamente grande para ele que quase desceu até seus ombros.

O chapéu de Mr. Glass — disse o médico, voltando com ele e o examinando por dentro com uma lente de bolso. — Como explicar a ausência de Mr. Glass e a presença do chapéu de Mr. Glass? Pois Mr. Glass não é pessoa descuidada com suas roupas. Este chapéu é estilizado, sistematicamente escovado e limpo, embora não seja muito novo. Um velho janota, diria.

Mas, ora essa — gritou Miss MacNab —, não vão soltar primeiro o moço?

Eu digo "velho" de propósito, embora não com cer­teza — continuou o médico. — A razão disso poderia parecer de pouco alcance. O cabelo dos seres humanos cai em diver­sas etapas, mas quase sempre cai lentamente. Ora, com a lente, eu deveria encontrar pequenos fios de cabelo num chapéu re­centemente usado. Não tem nenhum, o que me leva a crer que Mr. Glass seja calvo. Acrescente-se a isso a voz queixosa e alta que Miss MacNab descreveu tão vivamente... paciên­cia, minha cara jovem, paciência... uma cabeça calva e o tom comum de ira senil, me levariam a deduzir algum pro­gresso nos anos. Não obstante, é provavelmente vigoroso e quase certamente alto. Poder-se-ia apoiar até certo ponto na estória de seu aparecimento anterior junto à janela, como um homem alto de chapéu de seda, mas acho que tenho um indí­cio mais exato. Esse copo de vinho foi quebrado no lugar, mas um de seus estilhaços está em cima da arandela ao lado do consolo da lareira. Nenhum fragmento poderia ter caído ali se o vidro tivesse sido quebrado na mão de um homem re­lativamente baixo como Mr. Todhunter.

A propósito interrompeu-o o padre Brown —, não seria interessante soltar Mr. Todhunter?

Nossa lição de copos quebrados não termina aqui — continuou o especialista. — Posso afirmar, logo, que é possível que o homem Glass fosse calvo ou nervoso mais por dissipação que mesmo por idade. Mr. Todhunter, como foi obser­vado, é um cavalheiro bem comportado e econômico, essen­cialmente abstêmio. Essas cartas e copos de vinho não fazem parte de seus hábitos normais; foram trazidos por algum com­panheiro. Mas, como acontece, podemos ir adiante. Mr. Tod­hunter pode ou não possuir este serviço de vinho. O que, então, conteriam esses copos? Eu sugeriria imediatamente um pouco de conhaque ou de uísque, talvez de alguma marca de luxo, de um frasco no bolso de Mr. Glass. Temos, assim, algo semelhante ao retrato falado do homem, ou pelo menos do seu tipo, alto, idoso, bem vestido, embora a roupa um tanto gasta, que certamente gosta de bebidas e de jogo; talvez goste demais disso. Mr. Glass não é cavalheiro desconhecido nas orlas da sociedade.

Olhem aqui — gritou a jovem —, se não me deixarem soltá-lo, irei correndo chamar a polícia.

Eu não a aconselharia, Miss MacNab — disse-lhe Hood gravemente —, a ir logo atrás da polícia. Padre Brown, peço-lhe seriamente que contenha sua ovelha, por causa deles e não por minha causa. Bem, vimos alguma coisa da imagem e qualidade de Mr. Glass; agora, quais são os fatos principais sobre Mr. Todhunter? São substancialmente três: econômico, mais ou menos rico e possui um segredo. Ora, aí estão, sem sombra de dúvida, as três principais características do homem que é chantageado. E é igualmente óbvio que a indumentária espalhafatosa, os hábitos libertinos e a estridente irritação de Mr. Glass são marcas insofismáveis da espécie de homem que o chantageia. Temos as duas figuras típicas de uma tragédia do suborno: de um lado, o homem respeitável com um misté­rio; do outro, o abutre do bairro aristocrático de Londres com o faro de mistério. Esses dois homens se encontraram aqui hoje e brigaram, usando socos e um punhal.

O senhor não vai desatar aquelas cordas? — pergun­tou a moça teimosamente.

Hood repôs calmamente o chapéu de seda sobre a mesa ao lado e caminhou na direção do jovem manietado. Estudou-o atentamente, movendo-o mesmo um pouco e o virando pelos ombros, mas apenas respondeu:

Não. Acho que essas cordas lhe farão muito bem, até que seus amigos da polícia tragam as algemas.

O padre, que estivera olhando obtusamente para o tapete, levantou o rosto redondo e perguntou:

Que quer dizer com isso?

O homem da ciência apanhou o punhal do tapete e, en­quanto o examinava atentamente, respondeu:

Porque se encontrou Mr. Todhunter amarrado, che­garam todos à conclusão de que Mr. Glass o havia amarrado, fugindo depois. Há quatro objeções contra isso. Primeiro, por que deveria um cavalheiro tão elegante como nosso amigo Glass sair deixando seu chapéu, se o fez por sua própria von­tade? Segundo — continuou, caminhando para a janela —, há uma única saída e esta está fechada pelo lado de dentro; e terceiro, esta lâmina aqui tem uma ligeira mancha de sangue na ponta, mas não há ferida alguma em Mr. Todhunter. Mr. Glass levou essa ferida com ele, morto ou vivo. Acrescente-se, finalmente, a isto a dedução primária de que é muito mais provável que a pessoa chantageada tente matar o chantagista, do que este tente contra a vida da sua galinha-de-ovos-de-ouro. Aí está na minha opinião uma estória completa.

E as cordas? — perguntou o padre, cujos olhos per­maneciam arregalados com uma admiração apática.

Ah, as cordas — prosseguiu o perito com uma ento­nação singular. — Miss MacNab queria muito saber por que eu não libertava Mr. Todhunter de suas cordas. Bem, vou-lhe dizer. Não fiz, porque Mr. Todhunter pode livrar-se delas quando quiser.

O quê? — exclamaram todos em tons diferentes de admiração.

Observei todos os nós da corda que amarra Mr. Tod­hunter — reiterou Hood calmamente. — Acontece que enten­do um pouco de nós; é um ramo da ciência criminal. Cada um desses nós foi feito por ele e por ele mesmo podem ser desfei­tos; nenhum teria sido feito por um inimigo que desejasse manietá-lo. Todo esse negócio de cordas é pura fraude, para nos fazer crer que ele fosse a vítima da luta, em vez do infeliz Glass, cujo cadáver talvez esteja escondido no jardim ou metido na chaminé.

Houve um silêncio um tanto constrangedor; o quarto es­tava escurecendo, as árvores do jardim, talvez sob a influência do mar próximo pareciam mais inclinadas e mais escuras do que antes. Tinha-se a impressão de terem chegado para mais perto da janela. Quase que se poderia imaginá-las como monstruosos moluscos marítimos, que se tivessem arrastado do mar para ver o fim dessa tragédia, uma vez que ele, o vilão e a ví­tima dessa tragédia, o terrível homem de cartola, viera do mar. Toda a atmosfera estava carregada com a morbidez da chan­tagem, que é a mais mórbida das coisas humanas, pois é um crime que esconde outro crime; um emplastro preto sobre uma ferida mais negra ainda.

A fisionomia do padrezinho católico, geralmente compla­cente e até cômica, tinha-se tornado subitamente fechada com um curioso franzimento do cenho. Não era a simples curiosi­dade criadora que surge quando um homem tem os primórdios de uma idéia.

Repita, por favor — disse, num tom simples, mas de preocupação. — Quer dizer que Todhunter pode amarrar-se e desamarrar-se sozinho?

Exatamente — respondeu o médico.

Meu Deus! — exclamou subitamente o padre. — Eu me pergunto se isto é possível!

Atravessou o quarto correndo como um coelho e espiou com uma nova impulsividade o rosto parcialmente coberto do homem amarrado. Em seguida, voltou seu rosto gorducho para o grupo.

Sim, é verdade! — exclamou com certa excitação. — Não podem ver isso na cara do sujeito? Olhem para seus olhos.

Tanto o criminologista como a jovem olharam na direção indicada. Embora o largo cachecol cobrisse completamente a metade inferior da face de Todhunter, tiveram certeza de que ocorria uma luta intensa na sua parte superior.

Seus olhos parecem estranhos — exclamou a jovem, muito comovida. — Estúpidos, estas cordas o estão ferindo!

Nada disso — disse Hood. — Os olhos certamente têm uma expressão singular. Mas eu interpretaria aquelas rugas atravessadas como expressão de uma ligeira anormali­dade psicológica...

Tolice! — exclamou o padre Brown. — Não vêem que o sujeito está é rindo?

Rindo! — repetiu o médico com descrença. — Mas de que diabo estaria rindo?

Bem — respondeu o padre, desculpando-se —, sem querer ofendê-lo acho que está rindo do senhor. E, realmente, estou um pouco inclinado a rir de mim mesmo, agora que compreendo tudo.

Compreende o quê? — perguntou Orion Hood, com certa exasperação.

Agora já sei qual é a profissão de Mr. Todhunter.

E começou a andar de um lado para outro do quarto, olhando ora um objeto ora outro com o que parecia ser um olhar vago e, em seguida, irrompia, invariavelmente num riso indefinido, um processo altamente irritante para aqueles que tinham de segui-lo. Riu muito do chapéu, muito mais do copo quebrado, mas o sangue na ponta da espada o levou a um verdadeiro acesso de riso. Depois se voltou para o especialista furioso.

Dr. Hood — exclamou entusiasticamente. — O senhor é um grande poeta! Criou um ser do nada. Muito mais difí­cil do que se tivesse apenas esquadrinhado os simples fatos! Realmente, os simples fatos são em comparação comuns e cômicos.

Não tenho idéia do que está falando — disse Hood um tanto desdenhoso. — Meus fatos são todos irrefutáveis, embora necessariamente incompletos. Uma parte pode ser atribuída à intuição, talvez, ou à poesia se prefere o termo, mas só porque os detalhes correspondentes não podem ser ainda apurados. Na ausência de Mr. Glass...

Exatamente, exatamente — disse o padrezinho, concordando avidamente. — É exatamente a primeira idéia a ser fixada, a falta de Mr. Glass. Ele está absolutamente ausente. Suponho — acrescentou pensativamente — que ninguém ja­mais esteve tão ausente como Mr. Glass.

O senhor quer dizer que está ausente da cidade? — perguntou o médico.

Quero dizer que está ausente de toda parte — res­pondeu o padre. — Está ausente da natureza das coisas por assim dizer.

Acha, seriamente — perguntou o especialista com um sorriso — que não existe essa pessoa?

O padre fez um sinal positivo com a cabeça, acrescentan­do:

É pena.

Orion Hood irrompeu numa estrondosa gargalhada:

Então, antes de chegarmos às cento e uma outras pro­vas, comecemos pela primeira prova que encontramos, o pri­meiro fato que verificamos quando entramos neste quarto. Se não existe um Mr. Glass, de quem é esse chapéu?

Ê de Mr. Todhunter — respondeu padre Brown.

Mas não lhe serve — exclamou Hood impaciente. — Não o poderia usar.

Nunca disse que poderia usá-lo. Disse que o chapéu é dele. Ou, se insiste num outro tipo de linguagem eu diria que aquele chapéu lhe pertence.

Que outro tipo de linguagem? — perguntou o criminalista com um ligeiro escárnio.

Meu caro senhor — exclamou o calmo padrezinho, com seu primeiro sinal de ligeira impaciência. — Se o senhor descer à rua até a chapelaria mais próxima, verá que existe, na linguagem comum, uma diferença entre o chapéu de uma pessoa e chapéus que pertencem a uma pessoa.

Mas o chapeleiro — protestou Hood — pode fazer dinheiro de seu estoque de chapéus novos. O que poderia tirar Todhunter desse chapéu velho?

Coelhos — respondeu imediatamente padre Brown.

O quê? — exclamou Hood.

Coelhos, fitas, docinhos, peixinhos dourados, tiras de papel colorido. Não viu tudo isso quando descobriu os nós falsos? O mesmo acontece com a espada. Mr. Todhunter não tem o menor arranhão, como o senhor disse. Mas tem um fe­rimento dentro dele, se me acompanhar.

Refere-se às roupas internas de Mr. Todhunter? — perguntou Hood rispidamente.

Não me refiro a roupas internas de Mr. Todhunter. Digo dentro de Mr. Todhunter.

Com mil diabos, o que quer dizer com isto?

Mr. Todhunter — explicou o padre placidamente — está treinando para ser prestidigitador, malabarista, ventríloquo e perito em nós de corda. A prestidigitação explica o chapéu. O chapéu não tem sinal de cabelo, não porque seja usado por um Mr. Glass prematuramente calvo, mas porque nunca foi usado por ninguém. O malabarismo explica os três copos, com que Todhunter se exercitava jogando-os e apanhando-os em rotação. Mas, estando ainda na fase de aprendiza­gem, quebrou um copo contra o forro. E o malabarismo ex­plica também a espada que, como uma tarefa profissional, Todhunter tinha de engolir. Mas, estando ainda no estágio de aprendizagem, arranhou ligeiramente o interior de sua garganta com a arma. Daí porque eu disse que eu ferira internamente, ferimento que, estou certo, pela expressão de seu rosto, não foi grave. Estava praticando o truque de se desfazer de cor­das, como os irmãos Davenport, e já se ia libertar quando nós irrompemos no quarto. As cartas, é claro, são para truques de baralho. Estão espalhadas no chão por que ele tinha acabado de praticar uma daquelas artimanhas de mandá-las voando pelo ar. Mantinha simplesmente seu negócio em segredo, porque tinha de guardar o segredo de seus truques, como qualquer outro prestidigitador. Mas o simples fato de um vadio de car­tola ter parado uma vez para olhar para sua janela e ter-se afastado dela, com grande indignação, foi suficiente para nos jogar na trilha falsa do romance e nos levar a imaginar toda sua vida ofuscada pelo espectro de chapéu de seda de Mr. Glass.

E que me diz das duas vozes? — perguntou Maggie, com os olhos arregalados.

Já ouviu falar de ventríloquos? — perguntou o padre Brown. — Não sabe que eles falam primeiro em sua voz natural, depois respondem eles mesmos naquela voz estridente e esganiçada que você ouviu?

Houve um longo silêncio. Dr. Hood olhava para o peque­no padre que falara, com um sorriso sombrio e atento.

O senhor é certamente uma pessoa muito engenhosa. Não encontraria coisa melhor num livro. Mas há apenas uma parte de Mr. Glass que o senhor não conseguiu explicar e esta é seu nome. Miss MacNab ouviu-o distintamente ser tratado assim por Mr. Todhunter.

O reverendo Brown irrompeu em risadinhas infantis.

Bem, esta é a parte mais ridícula de toda esta estória. Quando nosso amigo malabarista treinava com os três copos, um depois do outro, ele os contava em voz alta quando os apanhava e comentava também em voz alta quando não conseguia apanhá-los. O que ele dizia realmente era: "Um, dois e três — missed a glass[1], um, dois — missed a glass. E assim por diante.

Houve um segundo silêncio no quarto e, em seguida, todos irromperam numa gostosa gargalhada. Quando assim fizeram, a figura no canto desvencilhou-se complacentemente de todas as cordas e as deixou cair com um floreio. Em seguida, dirigiu-se para o centro do quarto com uma inclinação, tirou de seu bolso um grande anúncio impresso em azul e vermelho, onde se lia "ZALADIN — o Maior Prestidigitador, Malabarista, Ventríloquo e Saltador do Mundo — apresentará uma série inteiramente nova de truques no Empire Pavilion, em Scarborough, às oito horas, em ponto, na próxima segunda feira".

 

                    O PARAÍSO DOS LADRÕES

 

O grande Muscari, o mais original dos jovens poetas toscanos, entrou apressadamente em seu restaurante favorito, que dava para o Mediterrâneo e era coberto por um toldo, cerca­do de limoeiros e laranjeiras. Garçons de avental branco já arrumavam as mesas também brancas com os apetrechos de um lanche matinal e elegante. Isso parecia aumentar-lhe a satisfação que já raiava à gabolice. Muscari tinha um nariz aquilino como o de Dante; seus cabelos lisos e o lenço de pescoço eram pretos; vestia uma capa preta e quase que poderia usar uma máscara preta, tão grande era a espécie de melodrama veneziano que trazia consigo. Agia como se um trovador ti­vesse ainda uma definida posição social, como um bispo. An­dava pelo mundo, tanto quanto lhe permitia seu século, lite­ralmente como um Don Juan, com um espadim e uma gui­tarra.

Nunca viajava sem seu estojo de espadas, com as quais tinha travado muitos e brilhantes duelos, ou sem uma caixa correspondente para seu bandolim, com o qual tinha realmen­te feito serestas para Miss Harrogate, a filha altamente con­vencional de um banqueiro de Yorkshire em viagem de férias. Entretanto não era nem charlatão nem criança, mas um latino vivo e lógico que gostava de uma determinada coisa e pronto. Sua poesia era tão direta como a prosa de qualquer outra pes­soa. Ambicionava a fama, o vinho ou a beleza das mulheres com uma ardente objetividade, inconcebível entre os ideais ou acomodações melancólicas do Norte; para raças mais obs­curas, sua intensidade cheirava a perigo ou mesmo crime. Como o fogo ou o mar, era simples demais para se confiar nele.

O banqueiro e sua bela filha inglesa estavam hospedados no hotel junto ao restaurante de Muscari; por isso é que era seu restaurante favorito. Um olhar de relance em torno da sala lhe mostrou, imediatamente, que a família inglesa ainda não tinha descido. O restaurante estava brilhando, mas relativamente vazio. Dois padres conversavam a uma mesa num can­to, mas Muscari, embora católico fervoroso, não tomou mais conhecimento deles do que de um par de gralhas. Foi quando, de um lugar pouco mais distante, em parte escondido atrás de uma laranjeira carregada, se levantou e tomou a direção do poeta uma pessoa cuja indumentária era a mais agressivamente oposta à sua.

Vestia tecido xadrez multicor, com uma gravata cor-de-rosa, colarinho pontudo e sapatos de bico amarelo. Conseguia, na verdadeira tradição de Arry em Margate, parecer ao mes­mo tempo surpreendente e comum. Mas quando a aparição londrina se aproximou mais, Muscari ficou estupidificado ao observar que a cabeça era inteiramente diferente do corpo. A cabeça era italiana; encrespada, morena e muito vivaz, saía bruscamente do colarinho duro como papelão e da cômica gravata cor-de-rosa. Era realmente uma cabeça que ele conhecia. E a reconheceu, sobretudo a horrenda montagem da pompa inglesa de feriado, como o rosto de um velho, mas esquecido amigo chamado Ezza. Esse jovem fora um prodígio na faculdade e a fama européia lhe acenara quando mal completava quinze anos; mas quando apareceu no mundo, fracassou, primeiro, publicamente, como dramaturgo e demagogo, de­pois, privadamente, durante anos sem fim, como ator, viajante, agente comissionado ou jornalista. Muscari lembrava-se de tê-lo encontrado por último nos bastidores; estava por demais sintonizado com as excitações daquela profissão e era de acre­ditar que alguma calamidade moral o houvesse engolido.

— Ezza! — exclamou o poeta levantando e agitando as mãos com agradável surpresa. — Já o vi com muitas e dife­rentes roupas teatrais, mas nunca esperei vê-lo vestido como inglês.

Isto não é costume de inglês, mas do italiano do fu­turo.

Nesse caso — observou Muscari —, confesso que prefiro o italiano do passado.

Aí é que está seu velho erro, Muscari — disse o ho­mem de xadrez, meneando a cabeça. — E o erro de toda a Itália. No século XVI, nós, toscanos, estávamos na dianteira. Tínhamos o aço mais novo, a escultura mais nova e a química mais moderna. Por que não temos agora as fábricas mais mo­dernas, os motores mais modernos, a finança mais moderna e os tecidos mais modernos?

Porque não vale a pena — respondeu Muscari. — Você não pode tornar os italianos realmente progressistas. São inteligentes demais. Homens, que vêem o atalho para viver bem, nunca seguirão estradas mais difíceis.

Bem, para mim Marconi, ou D'Annunzio, é a estrela da Itália — disse o outro. — É por isso que me tornei futu­rista... e guia turístico.

Guia turístico! — repetiu Muscari, rindo. — É a úl­tima de suas profissões? E a quem está guiando?

Oh, um homem chamado Harrogate e sua família.

Não vá dizer que é o banqueiro deste hotel? — per­guntou o poeta, com certa avidez.

Ele mesmo.

Vale a pena? — perguntou o trovador inocentemente.

Valerá — disse Ezza, com um sorriso muito enigmá­tico. — Mas sou uma espécie curiosa de guia. — Em seguida, como para mudar de assunto: — Ele tem uma filha e um filho.

A filha é divina — afirmou Muscari — o pai e o filho, a meu ver, são humanos. Mas concedidas suas quali­dades inofensivas, esse banqueiro não lhe parece um esplên­dido exemplo de meu argumento? Harrogate tem milhões em seus cofres e eu tenho o bolso furado. Mas não ousa dizer, e não pode dizer, que ele seja mais inteligente do que eu, ou mais corajoso do que eu, ou mesmo mais viril. Ele não é inteligente, tem olhos que parecem botões azuis; não é viril, move- se de cadeira a cadeira como um paralítico. É um velho bronco consciencioso e benigno; mas ele tem dinheiro simplesmente porque junta dinheiro, como um rapaz junta selos. Você é de caráter forte demais para negócios, Ezza. Não vai conse­guir. Para ser tão inteligente para ganhar todo esse dinheiro, é preciso ser estúpido demais para o querer.

— E sou estúpido demais para isso — disse Ezza car- rancudo. — Mas sugiro a suspensão de sua crítica ao ban­queiro... ele vem aí.

Mr. Harrogate, o grande financista, entrou de fato na sala, mas ninguém olhou para ele. Era um senhor idoso e volumoso, com olhos azuis, salientes, e bigodes de um cinza-desbotado; mas por seu andar encurvado poderia ter sido um co­ronel. Trazia várias cartas ainda fechadas na mão. Seu filho Frank era um rapaz realmente fino, cabelo crespo, tez queimada de sol, e vigoroso. Mas ninguém olhou para ele tam­pouco. Todos os olhares, como de costume, se voltaram, pelo menos no momento, para Ethel Harrogate, cuja cabeça grega dourada e as cores da manhã pareciam compor-se intencio­nalmente com o mar de safira, como a cabeça de uma deusa. O poeta Muscari deu um suspiro profundo como se estivesse bebendo alguma coisa, como de fato estava. Bebia o clássico, o clássico que seus antepassados fizeram. Ezza a examinava com um olhar igualmente intenso e muito mais desconcertante.

Miss Harrogate estava extraordinariamente radiante e disposta para uma conversação; sua família adotara o hábito europeu mais cômodo, permitindo ao estranho Muscari e até ao guia Ezza participar de sua mesa e de sua conversa. Em Ethel, a convenção era coroada por uma perfeição e esplendor pró­prios. Orgulhosa da prosperidade de seu pai, satisfeita com seus prazeres mundanos, filha afetuosa, mas namoradeira, Ethel era todas essas coisas com uma espécie de bom humor dourado que tornara agradável seu próprio orgulho e sua respeitabilidade mundana refrescante e alegre.

Estavam num turbilhão de excitação sobre algum suposto perigo no caminho da montanha que iriam enfrentar naquela semana. O perigo não era de rochas nem de avalanchas, mas de algo ainda mais romântico. Ethel tinha sido informada de que bandidos, os autênticos degoladores da lenda moderna, ainda infestavam aquelas montanhas e dominavam o desfiladeiro dos Apeninos.

Dizem — exclamava, com a horrível satisfação de uma escolar — que toda a região não é governada pelo rei da Itália, mas pelo rei dos ladrões. Quem é o rei dos ladrões?

Um grande homem — respondeu Muscari —, digno de ombrear com o seu próprio Robin Hood, signorina. Montano, o rei dos ladrões, é conhecido nas montanhas há dez anos, quando se ouviu falar dele pela primeira vez, na época em que o povo dizia que os bandidos estavam extintos. Mas sua terrível autoridade espalhou-se com a rapidez de uma revolução silenciosa. Encontravam-se suas ousadas proclamações pregadas em todas as aldeias das montanhas; seus guardas, de espingarda na mão, em todas as ravinas. O governo italiano tentou desalojá-lo seis vezes e foi derrotado em seis batalhas como se pelo próprio Napoleão.

Esta espécie de rei — observou o banqueiro, jamais poderia existir na Inglaterra. — Talvez, no final das contas, tivesse sido melhor escolher outro caminho. Mas nosso guia achou que era perfeitamente seguro.

Perfeitamente seguro — disse o guia com desdém. — Estive lá vinte vezes. Pode ter havido algum delinqüente chama­do rei no tempo de nossas bisavós; mas pertence à história se não à fábula. O banditismo está, definitivamente, eliminado.

Nunca será definitivamente eliminado — refutou Muscari —, porque a revolta armada é uma reação natural dos sulinos. Nossos camponeses se parecem com as montanhas, ricas de beleza e verdes de alegria, mas com fogo nas entra­nhas. Há uma nota de desespero humano quando o pobre do Norte dá para beber; o nosso pobre dá para matar.

O poeta é um ser privilegiado — replicou Ezza com escárnio. — Se o senhor Muscari fosse inglês estaria ainda procurando salteadores de estradas em Wandsworth. Creia-me, há tanto perigo de ser capturado na Itália quanto de ser esfolado em Boston.

Então o senhor propõe que tentemos? — perguntou Mr. Harrogate, franzindo o cenho.

Oh, parece terrível — exclamou a moça, virando seus olhos maravilhosos para Muscari. — Acha realmente, que o desfiladeiro seja perigoso?

Muscari atirou para trás sua cabeleira preta:

Sei que é perigoso. Vou atravessá-lo amanhã.

O jovem Harrogate ficou para trás por um momento esvaziando um copo de vinho e acendendo um cigarro, enquan­to a beldade se retirava com o banqueiro, o guia e o poeta, dis­tribuindo encantos. Quase no mesmo instante, os dois padres se levantaram; o mais alto, um italiano de cabelos brancos, já se estava despedindo. O padre mais baixo virou-se e se diri­giu ao filho do banqueiro, que ficou admirado ao verificar, que embora se tratasse de um padre católico, o homem era inglês. Lembrava-se vagamente de tê-lo visto em alguma festa social de seus amigos católicos. Mas o homem falou antes que ele pudesse reunir suas lembranças.

Mr. Frank Harregote, se não me engano — disse o padre —, já fomos apresentados, mas não pretendo tirar par­tido disso. A coisa estranha que tenho a lhe dizer produzirá melhor efeito se vier de uma pessoa desconhecida. Mr. Har­rogate, quero apenas lhe dizer uma palavrinha e me retirar: cuidado com sua irmã em sua grande aflição.

Até para a indiferença verdadeiramente fraterna de Frank a vivacidade e o bom humor de sua irmã pareciam cintilar e irradiar; podia ainda ouvir suas risadas lá no jardim do hotel. Frank encarou seu conselheiro sombrio com olhar enigmático.

O senhor se refere aos bandidos? — perguntou. E em seguida, lembrando-se de um vago medo que o havia tocado também, acrescentou: — Ou o senhor estaria pensando em Muscari?

Nunca se pensa em verdadeira aflição — disse o estra­nho padre. — Só se pode saber quando ele chega.

E saiu imediatamente da sala, deixando o jovem boquia­berto.

Um dia ou dois depois, um carruagem, levando o grupo, arrastava-se em ziguezague pelos espigões da ameaçadora cordilheira. Entre a negativa alegre de Ezza de que não havia perigo e o desafio impetuoso de Muscari, a família do banqueiro estava firme em sua meta original. Muscari, por seu turno, fez sua viagem pela montanha coincidir com a deles. Um aspecto mais surpreendente foi o aparecimento, na estação da cidade litorânea, do pequeno padre do restaurante; alegou simplesmente que compromissos o levavam também a subir a montanha. Mas o jovem Harrogate não pôde deixar de rela­cionar sua presença com os temores e advertências misteriosas do dia anterior.

A carruagem era uma espécie de vagoneta espaçosa, descoberta pelo talento modernista do guia, que dominava a ex­pedição com sua atividade científica e seu espírito buliçoso. A idéia de perigo dos ladrões foi banida dos pensamentos e das conversas, embora até ali se admitisse formalmente que de­vessem ser tomados algumas precauções. O guia e o jovem banqueiro levavam revólveres carregados. Muscari (com satisfação juvenil) trazia enfiado debaixo do paletó preto uma espécie de punhal de lâmina curta e larga.

Tinha-se plantado perto da linda inglesinha; do outro lado estava o padre, cujo nome era Brown e que, felizmente, era um sujeito calado; o guia, o pai e o filho se encontravam no banco traseiro. Muscari estava muito preocupado, pois acreditava seriamente no perigo, e sua conversa com Ethel poderia levá-la a pensar que fosse um maníaco. Mas havia algo naquela subida louca e sensacional, entre penhascos semelhantes a picos cobertos de bosques como se fossem pomares, que arre­batava espírito como o dele a absurdos céus purpúreos com sóis a rodar. A estrada branca ora subia lenta como um gato manso, ora atravessava abismos como acrobatas no arame; era atirada como um laço, de pontos distantes.

No entanto, quanto mais subiam, mais o deserto se abria como uma rosa. Os campos brilhavam ao sol e ao vento com as cores de martins-pescadores, de papagaios e beija-flores, enfim com os matizes de uma centena de flores que desabrochavam. Não havia prados e bosques mais delicados do que os dos ingleses; nenhuma crista nem abismos mais nobres do que os de Snowdon e de Glencoe. Mas Ethel Harrogate ja­mais vira os parques do Sul nos picos estilhaçados do Norte; nem o desfiladeiro de Glencoe carregado dos frutos de Kent. Nada havia ali do medo e da desolação que na Inglaterra se associam aos cenários altos e selvagens. Parecia mais um pa­lácio de mosaico, rachado por terremotos; ou um jardim de tulipas holandesas que tivesse sido lançado no ar por uma ex­plosão qualquer.

É como Kew Gardens no Cabo Beach — disse Ethel.

É nosso segredo — respondeu Muscari. — O segre­do do vulcão; é também o segredo da revolução. Afinal, uma coisa pode ser violenta e, ao mesmo tempo, fecunda.

O senhor também é violento — disse Ethel, sorrindo para ele.

E, apesar disso, infrutífero — admitiu. — Se morrer esta noite, morro solteiro e como um idiota.

Não tenho culpa de o senhor ter vindo — disse ela depois de um silêncio difícil.

A senhora não tem culpa alguma — respondeu Mus­cari. — Não foi por culpa sua que Tróia caiu.

Enquanto falavam, a carruagem passava sob rochedos esmagadores que se estendiam como asas sobre uma curva de grande perigo. Espantados, pela imensa sombra projetada sobre a estreita borda, os cavalos agitaram-se inquietos. O con­dutor saltou para segurar as bridas, mas eles se tornaram in­dóceis. Um cavalo empinou-se com toda sua altura — a altura titânica e aterradora de um cavalo quando se torna bípede. Foi o suficiente para alterar o equilíbrio; a carruagem adernou como um navio e se despedaçou na borda do rochedo cheio de arbustos. Muscari passou o braço em torno de Ethel, que se agarrou a ele, com um grito estridente. Era para esses momentos que ele vivia.

No instante em que as paredes da imensa montanha gran­diosa rodaram em torno da cabeça do poeta, como um purpúreo moinho de vento, aconteceu algo ainda mais surpreen­dente. O idoso e letárgico banqueiro de um impulso, pôs-se de pé no carro e saltou sobre o precipício antes que o veículo quebrado ali caísse. À primeira vista, pareceu um gesto tão imprudente como um suicídio; depois, porém, revelou-se tão sensato como um investimento seguro. O homem de Yorkshire tinha evidentemente mais presença de espírito, como também mais sagacidade, do que Muscari lhe teria creditado; pois foi parar numa volta de terreno que parecia ter sido especialmen­te coberta de terra e de trevo para recebê-lo. Na realidade, todo o grupo estava com sorte, pelo menos dignificados em sua forma de ejeção. Imediatamente abaixo dessa volta abrupta da estrada havia uma ravina tão verdejante e florida como um prado fundo; uma espécie de bolso de veludo nas vestes verdes compridas e rastejantes das colinas. Para dentro dele fo­ram todos despejados ou rolados sem qualquer dano, a não ser pequenas avarias em suas bagagens menores. Até o conteúdo de seus bolsos foi espalhado pela grama em torno deles. O carro quebrado ainda estava pendente, enleado na cerca viva e tosca, e os cavalos penosamente pendurados declive abaixo. Dos passageiros, o primeiro a se levantar foi o pequeno padre, que coçou a cabeça com uma expressão de simplória estupe­fação. Frank Harrogate o ouviu dizer para si mesmo:

Mas por que diabo viemos cair exatamente aqui?

Piscou para a confusão em torno e recuperou seu velho guarda-chuva. Ao lado dele, estava o sombreiro que caíra da cabeça de Muscari e, logo adiante, uma carta comercial selada que, depois de um olhar de relance no endereço, devolveu ao senhor Harrogate. Do outro lado, a relva encobria em parte a sombra de Miss Ethel e mais à frente dela via-se um curioso e pequeno vidro de pouco mais de duas polegadas de comprimento. O padre o apanhou; num gesto rápido e descontraído tirou a tampa de cortiça e o cheirou. Seu rosto tornou-se branco como a cal:

Santo Deus! — murmurou. — Isso não pode ser dela! Teria sua tristeza chegado a tanto?

E dizendo isso o enfiou no bolso de seu colete.

"Acho que não estou pecando", pensou, "até que tudo se esclareça."

Olhou penalizado para a moça, que naquele momento era levantada por Muscari, da relva florida.

"Caímos no céu, bom sinal. Os mortais sobem e caem; mas só deusas e deuses podem cair para cima."

Na verdade ela se levantou do mar de cores, tão bela e feliz, que o padre sentiu sua suspeita abalada e mudada.

"Afinal de contas", pensou, "talvez o veneno não seja dela; talvez seja um truque melodramático de Muscari."

Muscari levantou a jovem delicadamente, fez-lhe uma mesura absurdamente teatral e, em seguida, puxando seu pu­nhal, golpeou as rédeas esticadas dos cavalos, de modo que estes caíram sobre as quatro patas e ficaram na grama tremen­do. Quando fazia isso, ocorreu algo mais importante. Um ho­mem muito calmo, pobremente vestido e extremamente quei­mado de sol, saiu do matagal e segurou as rédeas dos cavalos. Trazia uma faca de formato estranho, muito larga e torta, enfiada no cinto; nada havia de notável nele, a não ser seu aparecimento inesperado e silencioso. O poeta perguntou-lhe quem era ele, mas não recebeu resposta.

Olhando o grupo confuso e perplexo em torno da ravina, Muscari percebeu, então, que outro homem bronzeado e maltrapilho, com uma pequena espingarda debaixo do braço, os vigiava da proeminência do terreno logo embaixo, com os co­tovelos apoiados na orla da terra. Em seguida, levantou a vista para a estrada da qual tinham caído e viu, olhando para eles, as bocas de outras quatro carabinas e outras quatro faces bron­zeadas de olhos vivos, mas imóveis.

Os bandidos! — exclamou Muscari, com uma espé­cie de alegria monstruosa. — Foi uma armadilha. Ezza, se me permitir fuzilar o cocheiro primeiro, ainda poderemos sair daqui. Só há seis bandidos.

Acontece — disse Ezza, que estava em pé, sombria­mente, com as mãos nos bolsos — que o cocheiro é criado de Mr. Harrogate.

Então mate-o de qualquer maneira — gritou o poeta impaciente. — Ele foi subornado para entregar seu patrão. Em seguida, ponha a senhorita no meio e abriremos caminho até ali, numa arremetida.

E, avançando com dificuldade pela relva e flores silves­tres, tomou sem temor a direção das quatro carabinas; mas, verificando que ninguém mais o seguia, com exceção do jovem Harrogate, voltou, brandindo sua espada para chamar os ou­tros. Avistou o guia em pé com as pernas ligeiramente abertas no centro do círculo de relva, as mãos ainda nos bolsos. Seu irônico rosto italiano parecia tornar-se mais comprido na luz da tarde.

Você pensava, Muscari, que eu era o fracasso de nos­sos colegas de escola, e você o sucesso. Mas consegui mais do que você e ocupo um lugar maior na história. Tenho sido ator de epopéias, enquanto você as escreve.

Vamos, rapaz — vociferou Muscari lá de cima. — Vai ficar aí falando tolices sobre você mesmo, com uma mu­lher para salvar e três homens fortes para ajudá-lo? O que é que você pensa que é?

Chamo-me Montano — gritou o estranho guia numa voz igualmente alta e cheia. — Sou o Rei dos Ladrões e lhes desejo boas-vindas a meu palácio de verão.

E, enquanto falava, mais cinco homens calados com armas apontadas saíram do mato e olharam para ele à espera de ordens. Um deles trazia um grande pedaço de papel na mão.

Este lindo e pequenino ninho onde estamos todos fa­zendo um piquenique — continuou o bandido-guia, com o mesmo sorriso tranqüilo, mas sinistro — é, justamente com algumas cavernas embaixo dele, conhecido pelo nome de Pa­raíso dos Ladrões. É a minha principal fortaleza nestas mon­tanhas, pois, como certamente devem ter notado, o ninho é invisível tanto da estrada acima, como do vale abaixo. É algo mais do que inexpugnável, simplesmente não é notado. Aqui vivo a maior parte de meu tempo e aqui certamente morrerei, se os policiais me apanharem aqui. Não sou a espécie de cri­minoso que "reserva sua defesa", mas de outra a melhor es­pécie, a que reserva sua última bala.

Todos olhavam para ele estupefatos e calados, com ex­ceção do padre Brown, que deu um longo suspiro de alívio e tocou com os dedos o pequeno frasco no bolso.

Graças a Deus — murmurou —, isso é muito mais provável. O veneno pertence a esse bandido, naturalmente. Ele o leva consigo de modo que nunca possa ser capturado, como Catão.

O Rei dos Ladrões, entretanto, continuava seu discurso com a mesma espécie de polidez perigosa!

Só me resta explicar a meus hóspedes as condições sociais em que terei o prazer de recebê-los. Não preciso expor o singular e velho ritual de resgate, que é da minha alçada, e mesmo este só se aplica a uma parte do grupo. O reverendo padre Brown e o célebre signor Muscari serão libertados amanhã pela madrugada e escoltados até meus postos avançados. Poetas e padres, se me perdoam a simplicidade de expressão, nunca têm dinheiro. E assim, uma vez que é impossível lhes arrancar alguma coisa, permitam-nos a oportunidade de de­monstrar nossa admiração pela literatura clássica e nossa re­verência para com a nossa Santa Madre Igreja.

Fez uma pausa com um sorriso antipático. O padre pis­cava constantemente para ele e pareceu subitamente estar a ouvi-lo com muita atenção. O chefe dos bandidos recebeu o papel grande do bandido-assistente e, olhando-o de alto a bai­xo, continuou:

Minhas outras intenções estão apresentadas aqui claramente neste documento público, que passarei entre os senhores dentro de poucos momentos e que, depois disto, será afixado numa árvore em todas as aldeias do vale, e em todas as encruzilhadas das montanhas. Não os entediarei com verbalismo, uma vez que os senhores mesmos poderão lê-lo. A essência de minha proclamação é a seguinte: anuncio primeiro que capturei o milionário inglês, o colosso das finanças, Mr. Samuel Harrogate. Em seguida, anuncio que encontrei em seu poder duas mil libras em cédulas e ações, que me foram en­tregues. Ora, uma vez que seria realmente imoral anunciar tal coisa para um público crédulo, se não tivesse ocorrido, sugiro que isso ocorra sem mais delonga. Ordeno ao senhor Har­rogate que me entregue as duas mil libras que traz no bolso.

O banqueiro olhou para ele de cenho fechado, face ver­melha e aborrecida, mas evidentemente acovardado. Aquele salto da carruagem, ao cair, parecia ter esgotado os restos de sua virilidade. Recuara num estilo envergonhado quando seu filho e Muscari haviam tentado o ousado movimento de romper o cerco dos bandidos. E agora metia relutante suas mãos vermelhas e trêmulas no bolso do colete, e entregava ao ban­dido um feixe de papéis e de envelopes.

— Excelente! — exclamou alegremente o fora-da-lei. — Até aqui estamos indo bem. Resumo os pontos de minha proclamação que serão rapidamente publicados em toda a Itália. O terceiro item é o resgate. Estou pedindo dos amigos da fa­mília Harrogate um resgate de três mil libras, que estou certo é quase insultuoso para essa família numa estimativa modesta de sua importância. Quem não pagaria o triplo desta soma pela convivência de um dia nesse ambiente doméstico? Não escondo aos senhores que o documento termina com frases legais sobre coisas desagradáveis que poderão acontecer, se o dinheiro não for entregue; mas, entrementes, senhoras e se­nhores, permitam-me lhes assegurar que estarão bem acomo­dados em minha casa, com vinho e charutos, e lhes ofereço como presente as generosas boas-vindas ao luxuoso Paraíso dos Ladrões.

Durante todo o tempo em que estivera falando, os ho­mens de olhar duvidoso, com carabinas e chapéus caídos e sujos, tinham-se reunido silenciosamente em número cada vez maior de modo que o próprio Muscari foi obrigado a reconhecer que sua investida à espada não teria tido menor êxito. Olhou em torno, mas a jovem tinha ido para o lado do pai, para acalmá-lo e confortá-lo, pois sua afeição natural por sua pessoa era tão forte ou mais forte do que seu orgulho um tanto esnobe por seu sucesso. Muscari, com o ilogismo de um amante, admirou sua devoção filial ao mesmo tempo que ficou irritado com isso. Meteu de novo sua adaga na bainha, e foi-se atirar mal-humorado sobre uma das rampas verdes. O padre assentou-se a um ou dois metros de distância e Muscari voltou para ele seu nariz e seus olhos aquilinos numa irritação instantânea.

Então ainda acham que sou excessivamente românti­co? — perguntou num tom mordaz. — Há ou não há ban­didos nas montanhas?

Talvez — respondeu o padre sem convicção.

Que quer dizer? — perguntou o outro rispidamente.

Quero dizer que estou perplexo. Estou intrigado com Ezza ou Montano, qualquer que seja seu nome. Parece-me mais inexplicável como bandido do que como guia.

Sob que aspecto? — insistiu seu companheiro. — Santa Maria! Acha que o bandido foi bastante claro.

Vejo três dificuldades curiosas — continuou o padre em voz baixa. — Gostaria de ouvir sua opinião a respeito delas; devo-lhe dizer que eu estava almoçando naquele res­taurante à beira-mar, quando vocês quatro saíram da sala, você e Miss Harrogate na frente, conversando e rindo; o banqueiro e o guia ficaram para trás, falando de vez em quando e em voz baixa. Mas não pude deixar de ouvir Ezza dizer as pala­vras "bem, deixe que ela se divirta um pouco; o golpe pode abatê-la a qualquer momento". Mr. Harrogate nada acrescen­tou, logo as palavras devem ter tido algum sentido. No im­pulso do momento adverti seu irmão de que ela poderia estar em perigo; nada esclareci sobre a natureza do perigo, porque não sabia. Mas, se isso significava sua captura nas montanhas, a coisa não tem sentido. Por que deveria o bandido-guia avi­sar seu patrão, mesmo que vagamente, quando era todo seu propósito atraí-lo para uma armadilha na montanha? Não podia significar isso. Mas se não, qual seria o outro golpe, conhecido tanto do guia como do banqueiro, que pende sobre a cabeça de Miss Harrogate?

Desastre com Miss Harrogate? — exclamou o poeta, pondo-se de pé com certa ferocidade. — Explique-se, vamos.

Todos as minhas dúvidas, entretanto, giram em tor­no do chefe dos bandidos. E aqui está o segundo enigma. Por que fez questão de assinalar, em sua exigência de resgate, que havia tomado duas mil libras esterlinas de sua vítima no local? Não teria a mínima chance de apressar o resgate. Pelo con­trário. Os amigos de Harrogate teriam muito mais probabili­dade de temer por sua sorte se achassem que os ladrões esti­vessem pobres e desesperados. Não obstante, a espoliação no local foi enfatizada e mesmo colocada em primeiro lugar. Por que Ezza Montano queria com tanta ênfase dizer a toda a Europa que tinha apanhado o dinheiro antes de impor chan­tagem?

Não posso imaginar — disse Muscari, coçando seus cabelos pretos agora sem afetação. — O senhor pode estar pensando que me esclarece, mas na realidade me mergulha nas trevas mais profundas. Qual seria a terceira objeção con­tra o Rei dos Ladrões?

A terceira objeção — respondeu padre Brown, ainda pensativo — é este lugar onde estamos. Por que nosso bandido-guia chama a isto de sua principal fortaleza e Paraíso dos Ladrões? É sem dúvida uma terra macia para se cair e agra­dável de se apreciar. É verdade, também, que, como ele diz, é invisível do vale e do alto, sendo, por conseguinte, um exce­lente esconderijo. Mas não é uma fortaleza. Nunca poderia ser uma fortaleza. Acho que seria a pior fortaleza do mundo, pois é, na realidade, dominada de cima por uma rodovia pública que atravessa as montanhas, o próprio lugar por onde a po­lícia provavelmente passaria. Ora essa, cinco espingardas or­dinárias nos mantiveram aqui imóveis há meia hora atrás. O quarto de uma companhia de qualquer espécie de soldados po­deria ter-nos atirado no precipício. Qualquer que seja a na­tureza deste pequeno e estranho recanto de relva e de flores, não é uma trincheira. É qualquer outra coisa; deve ter algu­ma outra espécie de importância; algum valor que não com­preendo. É mais provável que seja um teatro natural ou uma sala de visita, verdejante; é especial para um cenário de algu­ma comédia romântica; assemelha-se...

Quando as palavras do padre se prolongavam e se per­diam numa sinceridade obtusa e sonhadora, Muscari, cujos sen­tidos animais estavam atentos e impacientes, ouviu um novo ruído nas montanhas. Mesmo para ele o som era ainda muito fraco e distante; mas seria capaz de jurar que a brisa da noite trazia consigo algo semelhante à trepidação de cascos de ca­valos e um grito de incitação bem longínquo.

Naquele mesmo instante, e muito antes que a vibração to­casse ouvidos ingleses menos experimentados, Montano, o bandido, passou correndo pelo barranco acima e parou junto à barreira quebrada, encostando-se a uma árvore e espiando pela estrada. Era uma figura estranha que ali estava, pois tinha posto em fantástico chapéu de abas largas, talabarte e punhal, na sua qualidade de bandido-rei, mas o xadrez pro­saico e brilhante do guia lá estava contrastando com os trajes do delinqüente das montanhas.

No momento seguinte, voltou seu rosto azeitonado e zombeteiro e fez um sinal com a mão. Os bandidos dispersaram-se ao sinal, não em confusão, mas no que era evidentemente uma espécie de disciplina de guerrilha. Em vez de ocupar a estrada ao longo do barranco, espalharam-se ao longo da mesma, atrás de árvores e do barranco, como que vigiando o inimigo, sem serem vistos. O barulho distante tornou-se mais forte, come­çando a fazer trepidar a estrada da montanha. Ouviu-se, en­tão, uma voz a dar ordens. Os bandidos se moveram e se jun­taram, xingando e assobiando, e o ar da noite encheu-se de pequenos ruídos metálicos como se estivessem engatilhando suas armas, ou afrouxando suas facas, ou arrastando suas bai­nhas sobre as pedras. Em seguida, os barulhos de ambas as partes pareceram encontrar-se na estrada acima; galhos que­brados, cavalos a relinchar, homens a gritar.

O socorro! — gritou Muscari, pondo-se em pé e ace­nando com seu chapéu. — A polícia chegou! Liberdade! Lu­temos por ela! Rebelemo-nos contra os ladrões! Vamos, não deixemos tudo com a polícia; isso é tão tristemente moderno. Caíamos atrás desse rufião. A polícia veio salvar-nos, vamos, amigos, ajudemos os policiais!

E atirando seu chapéu por sobre as árvores, mais uma vez puxou seu punhal e começou a escalar a encosta até a estrada. Frank Harrogate saiu correndo atrás dele para aju­dá-lo, de revólver na mão, mas ficou estarrecido ao ouvir a voz rouca de seu pai, que parecia estar em grande agitação, chamando-o, imperativamente.

Deixe isso comigo — disse o banqueiro numa voz estrangulada. — Ordeno-lhe que não se meta nisso.

Mas, meu pai — disse Frank encolerizado —, um cavalheiro italiano abriu o caminho. O senhor não vai querer que um inglês fique para trás.

Não adianta — respondeu o velho senhor, que tremia violentamente. — Não adianta. Temos de nos submeter à nossa sorte.

Padre Brown olhou para o banqueiro; em seguida pôs instintivamente a mão como se fosse sobre o coração, mas realmente era sobre o pequeno frasco de veneno. Seu rosto ilumi­nou-se subitamente com a luz da revelação da morte.

Entrementes, Muscari, sem esperar por esforço, subiu a encosta até a estrada e golpeou pesadamente o rei dos bandidos no ombro, fazendo-o cambalear e rodopiar. Montano ti­nha também seu punhal desembainhado. Muscari, sem dizer palavra, deu-lhe uma cutilada na cabeça que ele foi obrigado a aparar e desviar. Mas, mesmo enquanto as duas lâminas curtas se terçavam e se batiam, o Rei dos Ladrões abaixou deliberadamente a sua e deu uma gargalhada.

Para que isto, meu "chapa" — disse numa viva gíria italiana. — Está para acabar a porcaria desta farsa.

Que quer dizer com isso, seu vigarista? — exclamou ofegante o poeta enfurecido. — Sua coragem é tão falsa como sua honestidade?

Tudo comigo é falso — respondeu o ex-guia em per­feito bom humor. — Sou um ator; e, se algum dia tive uma personalidade particular, já a esqueci. Não sou mais um autêntico bandido do que um autêntico guia. Sou apenas um conjunto de máscaras e você não vai bater-se em duelo com elas.

E deu uma risada com um prazer infantil e voltou à sua atitude escarranchada, de costas para a escaramuça na es­trada.

A escuridão começava a descer sobre as paredes da mon­tanha e não era fácil discernir muito do progresso da luta, a não ser que homens altos enfiavam os focinhos de seus cava­los entre o bando unido dos bandidos, que pareciam mais in­clinados a dificultar o avanço dos invasores que mesmo a matá-los. Davam mais a impressão de um grupo citadino ten­tando impedir a passagem da polícia do que qualquer coisa que o poeta tivesse imaginado como a última resistência de bandidos condenados e sanguinários. Exatamente quando movia seus olhos num estado de perplexidade, sentiu um toque no cotovelo e, virando-se, viu o pequeno padre ali em pé, como um pequeno Noé, com um chapéu grande, a lhe pedir o favor de umas duas palavrinhas.

Signor Muscari — disse o clérigo —, nessa estranha crise personalidades podem ser perdoadas. Posso-lhe dizer sem nenhuma ofensa a maneira como deverá proceder em vez de ajudar os policiais, que estão obrigados a atacar de qualquer maneira. Perdoe-me a intimidade impertinente, mas está preo­cupado com a moça? Pensa em casar-se com ela e tornar-se um bom marido para ela?

Sim — respondeu o poeta muito simplesmente.

Ela manifestou algum interesse a seu respeito?

Acho que sim — foi a resposta igualmente simples.

Então vá para lá e se ofereça — disse o padre. — Ofereça tudo que puder, ofereça o céu e a terra se os possuir. O tempo é curto.

Por quê? — perguntou espantado o homem das le­tras.

Porque — disse padre Brown — seu Destino está chegando pela estrada.

Nada está chegando pela estrada a não ser a polícia — argüiu Muscari.

Então corra para lá — disse o conselheiro — e este­ja pronto para defendê-la contra seus salvadores.

Mal acabavam de conversar quando as cercas vivas fo­ram rompidas ao longo da orla por uma arremetida de ban­didos em fuga, que mergulharam no mato e na relva espessa como homens derrotados e perseguidos; os chapéus grandes de aba, da polícia montada, passavam ao longo das cercas des­feitas. Soou outra ordem. Em seguida a um ruído de desmon­tada, um oficial alto de chapéu de aba, cavanhaque e um pa­pel na mão, apareceu na fenda que era o portão do Paraíso dos Ladrões. Fez-se um silêncio momentâneo, rompido de modo fora do comum pelo banqueiro, que gritou numa voz estrangulada e rouca.

Roubado! Fui roubado!

Ora essa, já faz quase duas horas — exclamou seu filho espantado — que lhe foram roubadas duas mil libras esterlinas.

Nada de duas mil libras — disse o financista, com uma determinação brusca e terrível —, mas de um pequeno frasco.

O policial de cavanhaque vinha caminhando na direção da ravina verde. Passando pelo Rei dos Ladrões, deu-lhe uma tapinha no ombro, num gesto entre acariciador e punitivo, afastando-o para um lado. Ezza cambaleou.

Você terá dificuldades — disse o policial — se se meteu neste negócio.

Mas aos olhos artísticos de Muscari isso não parecia de modo algum a captura de um bandido acuado. Adiantando-se, o policial parou diante do grupo de Harrogate e disse:

Samuel Harrogate, o senhor está preso em nome da lei por desvio de fundos do Banco Hull and Huddersfield.

O grande banqueiro assentiu com o ar estranho de um formal assentimento comercial, pareceu refletir por um instan­te e, antes que pudessem interferir, deu uma meia volta e um passo que o levaram à beira da parede externa da montanha. Em seguida, levantando as mãos pulou exatamente como sal­tara do carro. Mas desta vez não caiu num pequeno prado logo abaixo, mas a centenas de metros, para se tornar um montão de ossos no vale.

A raiva do policial italiano, expressada loquazmente a padre Brown, misturava-se com a admiração.

Seu fim poderia ter sido outro — disse. — Era um grande bando. Este seu último truque, ao que me parece, nunca teve precedente. Fugiu com o dinheiro da com­panhia e veio para a Itália, fazendo-se capturar por falsos bandidos pagos por ele mesmo, de modo a que pudesse expli­car o desaparecimento do dinheiro e dele próprio. A exigência do resgate foi realmente levada a sério pela maior parte da polícia. Mas há anos que ele vem fazendo coisas desse tipo, tão boas como esta. Será uma grande perda para a sua fa­mília.

Muscari conduzia à parte a filha infeliz, que se abraçava a ele fortemente, como o faria por muitos anos depois. Mes­mo naquele trágico momento ele não deixou de sorrir e de acenar de modo meio amistoso e meio irônico para o inde­fensável Ezza Montano.

E para onde vai depois? — perguntou-lhe por sobre o ombro.

Birmingham — respondeu o ator, tirando uma bafo­rada de um cigarro. — Eu não lhe disse que sou futurista? Realmente creio nessas coisas, se é que creio em alguma coisa. Mudança, azáfama e coisas novas todas as manhãs. Irei a Manchester, Liverpool, Leeds, Hull, Huddersfiel, Glasgow, Chica­go, em suma, à sociedade ilustrada, vigorosa e civilizada!

- Em suma — concluiu Muscari —, ao verdadeiro Pa­raíso dos Ladrões.

 

                   O DUELO DO DR. HIRSCH

 

Monsieur Maurice Bruti e Monsieur Armando Armagnac atravessaram os ensolarados Campos Elísios com uma espécie de respeitável jovialidade. Eram ambos baixos de estatura, vivazes e animados. Ambos tinham barba preta que não parecia pertencer a seus rostos, segundo a estranha moda francesa que faz com que o cabelo verdadeiro pareça artificial. M. Brun tinha uma cunha preta de barba aparentemente colada sob seu lábio inferior. M. Armagnac, para variar, tinha duas barbas: uma de cada lado de seu enfático queixo. Ambos eram jovens e ateus, com uma deprimente fixidez de perspectiva, mas de grande mobilidade de exposição. Ambos eram alunos do gran­de Dr. Hirsch, cientista, publicista e moralista.

  1. Brun tornara-se famoso por sua proposição de que a expressão comum adieu devia ser eliminada em todos os clássicos franceses e uma pequena multa deveria ser imposta pelo seu uso na vida privada. "Então", dizia ele, "o próprio nome do vosso Deus imaginário terá ecoado pela última vez no ouvido do homem". M. Armagnac tinha-se especializado, por sua vez, na resistência ao militarismo e queria que o estribilho da Marseillaise fosse alterado de Aux armes, citoyens para Aux greves, citoyens. Mas seu antimilitarismo era de uma pe­culiar espécie gálica. Um eminente e rico quacre inglês que foi procurá-lo para pedir seu apoio ao desarmamento de todo o planeta, ficou um tanto desapontado pela opinião de Armagnac de que (para início de conversa) os soldados deviam fuzilar seus oficiais.

Na realidade, era nesse sentido que os dois homens di­vergiam na maior parte de seu líder e mestre em filosofia. O Dr. Hirsch, embora nascido na França e coberto com os mais triunfantes favores da educação francesa, era temperamentalmente de outro tipo — manso, sonhador e humano. E, apesar de ser cético, não era destituído de transcendentalismo. Era, em suma, mais alemão do que francês e, por mais que o admiras­sem, algo no subconsciente desses gauleses se irritava com sua luta pela paz de uma maneira tão pacífica. Para seu grupo em toda a Europa, Paul Hirsch, entretanto, era um santo da ciência. Suas grandes e ousadas teorias cósmicas proclamavam sua vida austera e sua moralidade inocente, embora fria; de­fendia a posição de Darwin em combinação com a posição de Tolstoy. Mas não era nem anarquista nem antipatriota; seus pontos de vista sobre o desarmamento eram moderados e evolucionários — o governo republicano punha tanta confiança nele como em suas várias descobertas químicas. Tinha mesmo recentemente descoberto um explosivo silencioso, cujo segre­do o governo guardava carinhosamente.

Sua casa ficava numa simpática rua perto dos Campos Elísios uma rua que naquele intenso verão parecia quase tão cheia de folhagens como o próprio parque; uma fileira de castanheiras fragmentava a luz do sol, só interrompidas num lugar onde um grande café se estendia até a rua. Quase em frente, viam-se as persianas brancas e verdes da casa do grande cien­tista, com uma sacada de ferro, também pintada de verde, correndo ao longo das janelas da frente do primeiro andar. Embaixo delas ficava a alegre entrada para uma espécie de pátio, com arbustos e azulejos, no qual os dois franceses en­traram conversando animadamente.

A porta lhes foi aberta pelo velho criado do médico, Simon, que poderia ele próprio passar por doutor. Vestia um ter­no preto bem passado, usava óculos, tinha cabelos grisalhos e uma expressão que despertava confiança. Na realidade, era um homem de ciência muito mais apresentável do que seu patrão, Dr. Hirsch, que parecia um rabanete torto e cuja cabeça era bastante grande para tornar seu corpo insignificante. Com toda a gravidade de um grande médico que receita, Simon entregou uma carta a M. Armagnac, que a abriu com impaciência lendo rapidamente o que segue:

 

Não posso descer para falar com você. Há um se­nhor nesta casa com quem não quero encontrar-me. É um oficial chauvinista chamado Dubosc. Está sentado na escada. Andou chutando os móveis de quase todas as outras salas. Encerrei-me no meu ga­binete, do outro lado do café. Se gosta de mim, vá ao café e espere numa das mesas externas. Procura­rei fazer com que o procure. Quero que o receba e converse com ele. Não posso encontrar-me pessoal­mente com ele. Não posso. Não quero.

Vai haver outro caso Dreyfus.

  1. Hirsch.

 

  1. Armagnac olhou para M. Brun. Este pediu a carta, leu-a e olhou para Armagnac. Em seguida, ambos se dirigiram rapidamente para uma das mesinhas sob as castanheiras do outro lado, onde pediram dois copos compridos de um horrível absinto verde, que podiam beber evidentemente em qual­quer tempo e a qualquer hora. Além deles, o café permanecia quase vazio, com exceção de um soldado que bebia café a uma mesa, de um outro senhor corpulento que tomava refresco em companhia de um padre que não bebia nada.

Maurice Brun pigarreou e disse:

É claro que devemos ajudar o mestre em qualquer situação, mas...

Interrompeu-se repentinamente e foi a vez de Armagnac:

Pode ter excelentes razões para não se encontrar pessoalmente com o moço, mas...

Antes que um ou outro pudesse completar a sentença, o invasor era violentamente expulso da casa do outro lado. Os arbustos da entrada balançaram-se e se afastaram quando o hóspede inconveniente foi atirado para fora deles como uma bala de canhão.

Era um tipo forte, com um chapéu de feltro tirolês, pe­queno e inclinado, um tipo que tinha na realidade um quê de tirolês. Seus ombros eram grandes e largos e suas pernas esta­vam metidas em bermudas e meias de malha. Seu rosto era moreno como uma castanha; tinha olhos castanhos-vivos e irrequietos; seu cabelo preto, penteado para trás, era ralo na frente e cortado bem rente atrás, delineando um crânio quadrado e forte; tinha imensos bigodes que pareciam chifres de bisão. Essa cabeça substancial apoiava-se num pescoço de tou­ro; mas o próprio pescoço estava escondido por um grande cachecol colorido, que encobria as orelhas de seu portador e era enfiado para dentro do paletó como uma espécie de falso colete. Era um cachecol de cores fortes, vermelho-escuro, roxo e dourado, provavelmente de fabricação oriental. Havia algo de bárbaro naquele tipo; parecia mais um nobre húngaro do que um oficial francês comum. Seu francês, entretanto, era evidentemente de um nativo e seu patriotismo francês, tão im­pulsivo que chegava a ser absurdo. Seu primeiro ato ao ser expulso da arcada da entrada foi gritar numa voz de clarim para a rua:

Há franceses aqui? — como se estivesse convocando cristãos em Meca.

Armagnac e Brun puseram-se de pé imediatamente, mas já estavam atrasados. Gente acorria das esquinas da rua. Era uma multidão pequena, mas que aos poucos ia crescendo. Com a presteza do instinto francês para a política de rua, o homem de bigode preto já tinha corrido para um canto do café, trepado em cima de uma mesa e, segurando um galho de castanheira para se firmar, gritava como Camille Desmoulins gritou uma vez, quando espalhou folhas de carvalho entre a populaça.

Franceses! — exclamou. — Não posso falar! Que Deus me ajude, é por isso que estou falando! Os sujeitos em seus imundos parlamentos que aprendem a falar, aprendem também a calar-se, como se cala aquele espião escondido ali naquela casa do outro lado! Calam-se como ele quando bato na porta de seu quarto! Silenciam como ele silencia agora, em­bora ouça minha voz através desta rua e esteja tremendo em sua cadeira! Oh, eles podem calar-se eloqüentemente, eles, os políticos! Mas chegou o momento em que nós, que não pode­mos falar, devemos falar. Vocês estão sendo entregues aos prussianos. Traídos neste momento. Traídos por aquele ho­mem. Sou Jules Dubosc, coronel da artilharia, Belfort. Pega­mos ontem nos Vosgesum espião alemão e com ele foi apa­nhado um documento... um documento que tenho na mão. Oh, eles tentaram encobri-lo; mas eu o trouxe diretamente ao homem que o escreveu... o homem daquela casa! Está aqui na minha mão. Está assinado por suas iniciais. É um endereço para descobrir o segredo da nova pólvora silenciosa. Hirsch a inventou, Hirsch escreveu esta nota sobre ela. Esta nota está escrita em alemão e foi encontrada no bolso de um ale­mão. "Diga ao homem que a fórmula da pólvora está num envelope cinza na primeira gaveta da escrivaninha do secre­tário, Departamento de Guerra, em tinta vermelha. Que tenha cuidado". P.H."

Matraqueou umas frases curtas como uma metralhadora. Era simplesmente a espécie de homem que não é nem louco nem certo. A multidão era de nacionalistas e já se levantavam murmúrios ameaçadores; uma minoria de intelectuais igualmente excitados, conduzidos por Armagnac e Bruns, só torna­va a maioria mais militante.

Se isso é um segredo militar — gritou Brun —, por que o proclama publicamente na rua?

Vou dizer-lhe porquê — vociferou Dubosc sobre a multidão vociferante. — Procurei aquele homem em termos civis e corretos. Se tivesse qualquer explicação poderia tê-la dado em absoluta confidência. Recusa-se a explicar. Manda- me a dois estranhos num café como a dois criados. Expulsou- me da casa, mas vou voltar lá, com o povo de Paris comigo!

Um grito pareceu sacudir a própria fachada da mansão e duas pedras foram atiradas, tendo uma delas atingido a ja­nela acima da sacada. O indignado coronel meteu-se mais uma vez pela arcada e sua voz era ouvida a gritar e atroar lá dentro. A onda humana aumentava a cada instante; engrossava dian­te das grades e dos degraus da casa do traidor; não havia mais dúvida de que a casa seria invadida como a Bastilha. Foi quando a porta envidraçada e quebrada se abriu e o Dr. Hirsch apareceu na sacada. Por um instante a fúria quase que se transformou numa risada, pois era uma figura absurda na­quela cena. Seu pescoço comprido e ombros caídos tinham a forma perfeita de uma garrafa de champanha, mas essa era a única coisa engraçada em torno dele. O paletó pendia de seu corpo como de um cabide; tinha cabelos tintos cor de cenoura, compridos e finos; suas bochechas e seu queixo estavam con­tornados por aqueles irritantes fios de barba que começam longe da boca. Era muito pálido e usava óculos azuis.

Lívido como estava, falou com uma espécie de decisão formalista, de modo que a multidão se calou no meio de sua terceira sentença.

... só posso lhes dizer, agora, duas coisas. A pri­meira é para meus inimigos, a segunda para meus amigos. A meus inimigos eu digo: É verdade que não quero receber M. Dubosc, embora esteja fazendo um barulho infernal aí fora. É verdade que pedi a dois senhores para o receberem em meu nome. E lhes digo por quê! Porque não quero e não devo re­cebê-lo... porque recebê-lo seria contra todas as normas da dignidade e da honra. Antes que eu seja triunfalmente absol­vido adiante de um tribunal, há outro julgamento que esse ca­valheiro me deve como cavalheiro e, mandando-o a meus pa­drinhos estou estritamente...

Armagnac e Brun agitaram seus chapéus entusiasticamente e até os inimigos do médico o aplaudiram diante desse inesperado desafio. Outras sentenças não puderam de novo ser ouvidas, mas puderam ouvi-lo dizendo:

A meus amigos... pessoalmente preferiria armas pu­ramente intelectuais e a estas a humanidade evoluída certa­mente se limitará. Mas a nossa própria e mais preciosa ver­dade é a força fundamental da matéria e da hereditariedade. Meus livros são um sucesso; minhas teorias irrefutadas, mas sofro na política um preconceito quase físico dos franceses e não posso falar como Clemenceau e Dérouléde, pois suas pa­lavras são como o eco de suas pistolas. O francês clama por duelo, enquanto o inglês se diz esportista. Está bem, apresen­tarei minhas provas, pagarei este bárbaro suborno e depois voltarei à razão pelo resto da minha vida.

Dois homens no meio da multidão apresentaram imediatamente seus serviços ao coronel Dubosc, que acabava de apa­recer, satisfeito. Um era o soldado que estava no Café, que disse simplesmente.

Serei seu padrinho, sir. Sou o duque de Valognes.

O outro era o homem alto, a quem seu companheiro, o padre, procurou dissuadir inicialmente sem o conseguir.

Ao cair da noite foi servida no fundo do Café Charlemagne uma refeição ligeira. Embora o local não fosse coberto, quase todos os fregueses estavam sob um delicado e irregular teto de folhas; pois as árvores ornamentais tão juntas estavam uma das outras e entre as mesas, que davam a impressão de um pequeno pomar sombrio e deslumbrante. A uma das mesas centrais estava sentado um padre baixo e reconchudo em com­pleta solidão, devorando uma pilha de arenques com a mais grave das satisfações. Sendo sua vida diária muito monótona, tinha um gosto peculiar por luxos súbitos e isolados; era um epicurista abstêmio. Não levantava os olhos do prato, em tor­no do qual se alinhavam rigidamente pimenta vermelha, li­mões, pão preto, manteiga, etc., até que uma sombra alta atra­vessou a mesa e seu amigo Flambeau sentou-se do outro lado. Flambeau estava taciturno.

Acho que vou ter de sair desse negócio — disse gravemente. — Estou sempre do lado de soldados franceses como Dubosc e contra ateus franceses como Hirsch; mas nesse caso parece que cometemos um erro. O duque e eu achamos por bem investigar a acusação e devo dizer que estou contente por o termos feito.

O documento é, então, forjado? — perguntou o padre.

Aí é que está o mistério — respondeu Flambeau. A letra é exatamente a de Hirsch e ninguém poderá por isso em dúvida. Mas não foi escrito por Hirsch. Se ele fosse um patriota francês não o escreveria, porque estaria dando informação à Alemanha. E, se fosse um espião alemão, não o teria também escrito, pois não fornece nenhuma informação.

Quer dizer que a informação é falsa? — perguntou o padre Brown.

Falsa, e falsa exatamente onde o Dr. Hirsch não po­deria errar, sobre o esconderijo de sua própria fórmula se­creta em seu próprio departamento oficial. Com a permissão de Hirsch e das autoridades, o duque e eu pudemos examinar a gaveta secreta do Departamento de Guerra onde está guar­dada a fórmula de Hirsch. Somos as únicas pessoas que sa­bem, além do próprio inventor e do Ministro da Guerra; mas o Ministro o permitiu para salvar Hirsch do duelo. Depois disso, não podemos, realmente, ser padrinhos de Dubosc se sua revelação é uma mistificação.

E é? — indagou padre Brown.

Sim — respondeu seu amigo sombriamente. — É uma grosseira falsificação de alguém que não sabe nada do verdadeiro esconderijo. Diz que o documento está no armário à direita da mesa do secretário. Na realidade, o armário com a gaveta secreta está um pouco à esquerda da mesa. Diz que o envelope cinza contém um longo documento escrito em tin­ta vermelha. Não está escrito em tinta vermelha, mas em tinta azul comum. É manifestamente absurdo dizer que Hirsch pudesse ter cometido um erro sobre um documento que ninguém conhecia a não ser ele próprio; ou pudesse ter procurado aju­dar um ladrão estrangeiro mandando-o remexer na gaveta er­rada. Acho que devemos sair disso e apresentar nossas des­culpas ao velho ruivo.

Padre Brown parecia refletir; levantou um pequeno arenque no garfo.

Tem certeza de que o envelope cinza estava no armá­rio à esquerda? — perguntou.

Absoluta — respondeu Flambeau. — O envelope cinza... na realidade um envelope branco... estava...

Padre Brown abaixou o garfo com o arenque e encarou seu companheiro.

O quê? — perguntou com uma voz alterada.

O que o quê? — repetiu Flambeau, comendo com apetite.

Não era cinza — disse o padre. — Flambeau, você me mete medo.

De que diabo está com medo?

De um envelope branco — respondeu o outro gravememente. — Se ao menos fosse cinza! Ora essa, bem que po­deria ter sido cinza. Mas se era branco, todo o negócio está preto. O médico, afinal de contas, andou metendo o nariz nisso.

Mas eu lhe garanto que ele não poderia ter escrito essa nota! — exclamou Flambeau. — O bilhete está em com­pleta contradição com os fatos. E inocente ou culpado, Dr. Hirsch conhecia todos os fatos.

O homem que escreveu este bilhete conhecia todos os fatos — disse seu companheiro eclesiástico, impassível. — Não poderia tê-los confundido sem conhecê-los. É preciso conhecer muitas coisas para se errar em tudo... como o demônio.

Acha então...

Acho que um homem está dizendo mentiras na espe­rança de ter dito um pouco da verdade. Suponhamos que alguém o mandasse procurar uma casa com uma porta verde e persiana azul, com um jardim na frente, mas sem quintal, com um cão, mas sem gato, e onde se toma café e não chá. Você diria, se não encontrasse esta casa, que tudo era inven­ção. Mas digo que não. Se encontrasse uma casa onde a porta fosse azul e a persiana verde, onde houvesse um quintal, mas não houvesse jardim, onde os gatos fossem comuns e não hou­vesse qualquer cão, onde se servisse chá e o café fosse proibido, então você saberia que tinha encontrado a casa. O homem devia ter conhecido aquela determinada casa para ser tão pre­cisamente impreciso.

Mas o que poderia significar? — perguntou o fran­cês intrigado.

Não posso imaginar. Nada entendo desse caso Hi­rsch. Enquanto era apenas a questão de gaveta esquerda em vez da direita e de tinta vermelha em vez de preta, achei que pudessem ser erros casuais do forjador, como se diz: mas três é um número místico. Ele dá sentido às coisas. A direção da gaveta, a cor da tinta, a cor do envelope, nada disso estaria certo por acaso, nem por coincidência. E não estava.

Que foi então? Traição? — perguntou Flambeau, terminando seu jantar.

Não sei se uma coisa ou outra — respondeu o padre, com o rosto perplexo. — A única coisa que posso imaginar... Bem, nunca compreendi o caso Dreyfus, Só posso compreen­der a prova moral, mais facilmente do que outras espécies de provas. Oriento-me pelo olhar e pela voz da pessoa, sabe, e se sua família parece feliz, e pelos temas que prefere... e evita. Bem, fiquei intrigado com o caso Dreyfus. Não pelas coisas horríveis imputadas a ambos os lados; sei que a natu­reza humana, embora não seja moderno falar assim, nos lu­gares de preeminência é ainda capaz de ser Cenci ou Borgia. Não, o que me intrigava era a sinceridade de ambas as partes. Não me refiro a partidos políticos; o povo é sempre terrivel­mente honesto e muitas vezes enganado. Refiro-me às pessoas da peça. Aos conspiradores, se eram realmente conspiradores. Refiro-me ao traidor se realmente era traidor. Refiro-me aos homens que deviam ter sabido a verdade. Ora, Dreyfus continua como um homem que soube que era um homem injustiçado. E, não obstante, os estadistas, os soldados franceses continuaram como se soubessem que ele não era um homem injustiçado, mas simplesmente um errado. Não quero dizer que se comportaram bem; digo que se comportaram como se ti­vessem certeza. E não posso descrever estas coisas; sei o que quero dizer.

Pois eu gostaria de saber — disse seu amigo. — E que tudo isso tem a ver com o velho Hirsch?

Suponhamos que uma pessoa num cargo de confian­ça — prosseguiu o padre — começasse a dar ao inimigo informações porque eram falsas informações. Suponhamos que tivesse chegado mesmo a pensar que estaria salvando seu país desorientando o estrangeiro. Suponhamos que isso o levasse aos círculos da espionagem e pequenos créditos lhes fossem abertos e pequenas ligações o envolvessem. Suponhamos que tivesse mantido essa situação contraditória de modo confuso, jamais dizendo a verdade aos espiões estrangeiros, mas dei­xando-os sempre em meras conjeturas. A melhor parte dessa pessoa, o que restou dele, diria ainda "não ajudei o inimigo; disse que estava na gaveta esquerda." Seu lado vil, por sua vez, estaria dizendo "mas eles podem ter o bom senso para ver que isso significa direita". Acho psicologicamente possível, numa idade esclarecida.

Pode ser psicologicamente possível — disse Flam­beau — e isso certamente explicaria a certeza de Dreyfus de ser um homem injustiçado e de seus juízes, de que era culpa­do. Mas não será historicamente válido, pois o documento de Dreyfus, se realmente era dele, era literalmente correto.

Eu não estava pensando em Dreyfus — disse padre Brown.

O silêncio tinha-se tornado profundo entre eles com o esvaziamento das mesas. Já era noite, embora a luz do sol ainda se apegasse a tudo, emaranhando-se nas árvores. Flambeau mudou sua cadeira de posição num movimento brusco, fazendo um ruído isolado e ecoante, e apoiou seu cotovelo no espaldar.

Bem — disse mais asperamente —, se Hirsch não passa de um tímido traidor...

Não deve ser duro demais com eles — disse o padre Brown calmamente. — Não é inteiramente por culpa deles, pois não têm instintos. Refiro-me àquelas coisas que levam uma mulher a recusar o convite de um homem para dançar ou a um homem não fazer um investimento. Sabemos que tudo é uma questão de grau.

De qualquer maneira — exclamou Flambeau impa­ciente — ele não é meu tipo e levarei a questão até o fim. O velho Dubosc pode ser um bocado maluco, mas afinal de con­tas, é uma espécie de patriota.

Padre Brown continuava a comer arenques.

Algo na sua atitude fleumática fez com que Flambeau fuzilasse seu companheiro com seus olhos pretos e vivos.

O que é que há com você? Dubosc de qualquer ma­neira tem razão. Duvida dele?

Meu amigo — respondeu o pequeno padre, depondo sua faca e seu garfo com uma espécie de frio desespero. — Duvido de tudo, quero dizer, de tudo o que aconteceu hoje. Duvido de toda a estória, embora se tenha desenrolado diante de meus olhos. Duvido de tudo que meus olhos viram desde hoje pela manhã. Há algo neste negócio muito diferente do mistério policial comum, onde uma pessoa diz mais ou menos uma mentira e a outra diz mais ou menos a verdade. Neste caso, ambos... Bem! Já lhe disse a única teoria que posso imaginar capaz de satisfazer a todos, menos a mim.

Nem a mim tampouco — afirmou Flambeau franzin­do o cenho, enquanto o padre continuava comendo peixe com uma expressão de inteira resignação. — Se tudo o que pode sugerir é aquela idéia de uma mensagem transmitida ao contrário, acho-a extraordinariamente engenhosa, mas... como a chamaria?

Eu diria que a idéia é pobre, extraordinariamente po­bre. Mas aí é que está a coisa estranha de todo o negócio. A mentira se parece com a mentira de um escolar. Só há três versões, a de Dubosc, a de Hirsch e a de minha fantasia. Ou aquela nota foi escrita por um oficial francês para arruinar um funcionário francês, ou foi escrita por um funcionário francês para ajudar oficiais alemães, ou foi escrita pelo funcionário francês para desorientar oficiais alemães. Muito bem. Seria de esperar que um documento secreto passando entre pessoas des­se tipo, funcionários ou oficiais, fosse muito diferente desse. Haveria de ser, provavelmente, uma mensagem cifrada, com abreviações, em termos os mais científicos e profissionais. Mas este negócio é primorosamente simples, como uma estória sensacionalista... "Na gruta purpúrea encontrará o cofrezinho de ouro." É como... como se quisesse dizer que seria visto ime­diatamente.

Antes que pudessem discutir, um tipo baixo metido num uniforme francês chegou à mesa como uma flecha e sentou-se com uma espécie de baque.

Tenho notícias extraordinárias — disse o duque de Valognes. — Acabo de estar com nosso coronel. Está-se preparando para deixar o país e nos pede para apresentar suas desculpas sur le terrain.

Como? — exclamou Flambeau, com indescritível in­credulidade. — Desculpá-lo?

Isso mesmo, — respondeu o duque asperamente. — Lá no local, diante de todos, quando as espadas foram puxa­das. E você e eu teremos de fazê-lo enquanto ele deixa o país.

Mas qual o significado disso? — exclamou Flambeau. — Não é possível que tenha medo daquele minúsculo Hirsch! Com a breca! — gritou, tomado de raiva. — Ninguém pode­ria temer o velho Hirsch!

Deve ser alguma maquinação! — disse Valognes. — Maquinação de judeus e maçons. Querem, naturalmente, aumentar a glória de Hirsch!

A fisionomia do padre Brown era comum, mas curiosa­mente satisfeita: tanto poderia irradiar ignorância como sa­bedoria. Mas havia sempre um brilho diferente quando a más­cara da ignorância caía, e a máscara da sabedoria tomava seu lugar. Flambeau que conhecia seu amigo, compreendeu que ele havia subitamente compreendido. Brown não disse nada, mas terminou seu prato de peixe.

Onde viu nosso precioso coronel pela última vez? — perguntou Flambeau irritado.

Perto do Hotel Saint Louis, junto aos Elísios, para onde o levamos. Ele está arrumando as malas, garanto-lhe.

Acha que ainda esteja lá? — perguntou Flambeau, com o cenho franzido e a vista baixa.

Não sei se já se foi — respondeu o duque. — Está-se preparando para uma longa viagem...

Nada disso — falou padre Brown, muito calmamen­te, mas pondo-se subitamente de pé. — Ele se prepara para uma viagem muito curta. De fato, para uma das mais curtas.

Mas chegaremos ainda a tempo de apanhá-lo, se tomarmos um táxi.

Nada mais se pôde arrancar dele até que o táxi contor­nou a esquina do Hotel Saint Louis, onde desceram, e ele con­duziu o grupo a uma rua lateral já ensombreada pela noite que chegava. Quando o duque perguntou impacientemente se Hirsch seria culpado de traição ou não, respondeu um tanto alheio:

Não, só de ambição, como César.

Em seguida e um tanto inconseqüentemente acrescentou:

Vive uma vida muito solitária; tem tido de fazer tudo por si mesmo.

Bem, se é ambicioso, deve estar satisfeito agora — disse Flambeau, irritado. — Toda Paris o exaltará, agora que nosso maldito coronel meteu o rabo entre as pernas.

Não fale tão alto — observou-lhe o padre, abaixando a voz. — Seu maldito coronel está ali mesmo na frente.

Os outros dois se espantaram e se encolheram à sombra da parede, pois a figura robusta do principal fujão podia de fato ser vista bem na frente, carregando uma mala em cada mão, à luz do crepúsculo. Parecia exatamente o mesmo de quando o haviam visto pela primeira vez, só que tinha troca­do seus pitorescos calções de montanhês por um convencional par de calças. Era evidente que já estava fugindo do hotel.

A rua por onde o seguiam se parecia com as ruas que aparecem ao fundo de um cenário de palco. De um lado havia um muro contínuo e sem pintura, interrompido aqui e ali por portas descoradas e empoeiradas, todas fechadas e inexpressivas, com exceção de alguns garranchos ali deixados a giz por algum gamin de passagem pelo local. Os topos das árvores, na sua maioria sempre-vivas, mostravam-se de vez em quando sobre o alto do muro, e adiante deles no crepúsculo cinza-arroxeado podia-se ver o fundo de alguns terraços compridos de altas casas parisienses, na realidade relativamente perto, mas que pareciam de certo modo tão inacessíveis como uma cadeia de montanhas de mármore. Do outro lado da rua de­lineavam-se os contornos escuros de um parque sombrio.

Flambeau olhava ao seu redor com certa curiosidade.

Sabem — disse — há algo de estranho neste lugar que...

Nossa! — exclamou o duque repentinamente. — O sujeito desapareceu! Desapareceu como num conto de fadas.

Ele tem a chave — explicou padre Brown. — Ele apenas entrou numa daquelas portas de jardim. — E enquanto falava, ouviram uma das pesadas portas de madeira fechar-se com um clique, bem diante deles.

Flambeau se precipitou com uma passada até a porta que quase lhe foi fechada na cara. Postou-se diante dela por um momento, mordendo seu bigode preto com fúria. Em seguida, levantou seus braços compridos e se alçou como um macaco até o alto do muro. Sua figura enorme cortava-se contra o céu purpúreo, como os topos escuros das árvores.

O duque olhou para o padre.

A fuga de Dubosc é mais complicada do que pensá­vamos — disse. — Mas acho que está fugindo da França.

Ele foge de toda parte — respondeu padre Brown.

Os olhos de Valognes brilharam, mas sua voz baixou:

Acha que seja suicídio?

Não encontrará seu corpo — respondeu o outro.

Uma espécie de grito escapou de Flambeau lá de cima do muro.

Meu Deus! — exclamou em francês. — Agora sei onde estamos. No fundo da rua onde mora Hirsch. Pensava que pudesse reconhecer o fundo de uma casa tão bem como as costas de uma pessoa.

E Dubosc entrou aí! — exclamou o duque, batendo na coxa. — Com a breca, encontraram-se finalmente!

E com uma súbita vivacidade gálica, trepou no muro ao lado de Flambeau e assentou-se balançando as pernas com excitação. Só o padre ficou embaixo, junto à parede, de costas para o teatro dos acontecimentos, a contemplar a paliçada do parque e as árvores tremulantes iluminadas fracamente pelo crepúsculo.

O duque, embora estimulado, tinha instintos de aristocra­ta e desejava mais olhar a casa do que espioná-la; mas Flam­beau, que tinha instintos de ladrão (e de detetive), já se ti­nha passado do muro para o galho de uma árvore isolada de onde podia ver de perto a única janela iluminada no fundo da casa escura e alta. Uma persiana vermelha tinha sido abai­xada contra a luz, mas descida irregularmente deixara uma


brecha ao lado. Flambeau, arriscando o próprio pescoço pôde ver exatamente o coronel Dubosc entrando num dormitório luxuoso e bem-iluminado. Embora bem perto da casa, ouviu as palavras de seu colega junto ao muro e as repetiu em voz baixa.

Sim, finalmente vão se encontrar!

Nunca se encontrarão — disse padre Brown. — Hi­rsch tinha razão quando disse que nesse negócio as partes principais não se devem encontrar. O senhor já leu um interes­sante caso psicológico de Henry James, de duas pessoas que tão repetidamente não conseguiam encontrar-se por acidente, que começaram a ter medo uma da outra e a pensar que fosse o destino? O caso agora é semelhante, só que mais curioso.

Há gente em Paris que os curarão dessas fantasias mórbidas — disse Valognes vingativamente. — Terão de se encontrar, se os prendermos e os obrigarmos a lutar.

Eles não se encontrarão nem no Dia do Juízo — dis­se o padre. — Se Deus todo-poderoso comparecesse se São Miguel tocasse a trombeta para terçar as espadas, mesmo assim, se um deles estivesse pronto, o outro não viria.

Ora essa, que significa todo esse misticismo? — ex­clamou o duque de Valognes impaciente. — Por que diabos não se devem encontrar como todo mundo?

São o oposto um do outro — disse padre Brown, com um estranho sorriso. — Eles se contradizem. Eles se anu­lam, por assim dizer.

E continuou a olhar atentamente para as árvores que escureciam do outro lado, mas Valognes voltou a cabeça subitamente a uma exclamação reprimida de Flambeau. Este, es­piando o quarto iluminado, acabara de ver o coronel, que, depois de dar uns dois passos, começou a tirar o sobretudo. O primeiro pensamento de Flambeau foi de que isso signifi­cava, certamente, que a luta ia começar, mas logo mudou de idéia. A solidez e a rigidez do peito e dos ombros de Dubosc era toda uma poderosa peça de enchimento que saiu com o paletó. Por dentro de sua camisa e de suas calças era um senhor relativamente magro, que atravessou o quarto na direção do banheiro com o único objetivo de se lavar e não de lutar. Curvou-se sobre uma pia, enxugou as mãos molhadas e o rosto numa toalha, voltando-se para um lado, de modo que a luz forte caiu sobre seu rosto. Sua tez morena tinha desaparecido, seu grande bigode sumira; em seu lugar estava um tipo pálido e bem barbeado. Nada restava do coronel a não ser seus olhos castanhos, vivos, de ave de rapina. Lá embaixo do muro padre Brown continuava a refletir, falando consigo mesmo:

— É exatamente o que eu estava dizendo a Flambeau. Os contrários não se encontram. Não podem. Não lutam. Se é branco em vez de preto e sólido em vez de líquido, e assim por diante, então há algo de errado, Monsieur, há algo de errado. Um desses homens é louro e o outro moreno, um gordo e o outro magro, um forte e o outro fraco. Um tem bigode, mas não tem barba, de modo que não se pode ver boca; o outro tem barba e não tem bigode, de modo que não se pode ver seu queixo. Um tem cabelo cortado no pescoço, mas um cachecol para o esconder; o outro tem colarinho na camisa, mas cabelos longos para esconder sua cabeça. Tudo é dema­siadamente claro e correto, Monsieur, e há algo errado. Coi­sas assim tão contrárias não podem encontrar-se. Onde quer que uma esteja a outra desaparece. Com o rosto e a máscara, como a chave e a fechadura...

Flambeau continuava espiando para dentro da casa tão branco como uma folha de papel. O ocupante do quarto es­tava em pé de costas para ele, mas diante de um espelho e já tinha ajeitado em torno de seu rosto redondo uma espécie de moldura de cabelos ruivos que pendiam desordenadamente da cabeça e cobriam os maxilares e queixo. O boca zombeteira ficava descoberta. Visto assim do espelho o rosto branco pa­recia com o rosto de Judas sorrindo horrivelmente e cercado das chamas crepitantes do inferno. Flambeau, num esforço momentâneo viu os olhos impetuosos e castanhos dançando, em seguida cobertos com um par de óculos azuis. Vestindo um paletó preto e largo, a figura desapareceu na direção da frente da casa. Minutos depois, um estrondoso aplauso popu­lar ecoou da rua anunciando que o Dr. Hirsch mais uma vez aparecera na sacada.

 

                     O HOMEM DO CORREDOR

 

Dois homens apareceram simultaneamente nas duas extremidades de uma espécie de corredor ao lado do Teatro Apoio nos Adelphi. A claridade da tarde nas ruas era bastante in­tensa e opalescente. O corredor era relativamente comprido e escuro, de modo que cada homem podia ver o outro apenas como uma simples silhueta preta na outra ponta. Não obstante, cada um reconheceu o outro, mesmo naquele esboço es­curo, pois eram ambos de aspecto magnífico e se odiavam mutuamente.

O corredor coberto abria-se numa extremidade para uma das ruas íngremes dos Adelphi, e na outra para um terraço que dava para o rio colorido pelo poente. Um lado do corre­dor era um muro vazio, pois o edifício que sustentava era um antigo e fracassado restaurante do teatro, agora fechado. O outro lado do corredor tinha duas portas, uma em cada extre­midade. Nenhuma delas era o que se costuma chamar de por­ta dos artistas; eram uma espécie de portas de artistas espe­ciais e particulares, usadas só por artistas especiais e, nesse caso, pelo ator ou atriz principais na peça shakespeariana do dia. Pessoas dessa importância gostam muitas vezes de ter essas entradas e saídas particulares, para se encontrar com amigos ou evitá-los.

Os dois homens em questão eram certamente dois desses amigos, homens que evidentemente conheciam as portas e sabiam que estavam abertas, pois cada um se aproximava da porta da extremidade superior com igual determinação e confiança, mas não com igual rapidez. Como o homem que an­dava mais depressa era o que vinha do outro lado do túnel, ambos chegaram quase ao mesmo tempo diante da porta secreta dos artistas. Saudaram-se um ao outro com urbanidade e esperaram até que um deles, o visitante de andar mais apressado que parecia ter menos paciência, bateu na porta.

Nisso e em tudo o mais, cada homem era o oposto do outro e nenhum poderia ser chamado de inferior. Particular­mente, eram ambos simpáticos, capazes e populares Como pessoas públicas, pertenciam ambos às primeiras categorias sociais. Mas tudo em torno deles, desde sua glória até a boa aparência, era de uma espécie diversa e incompatível. Sir Wil­son Seymour era o tipo de homem cuja importância é conheci­da por toda pessoa bem-informada. Quanto mais nos aprofundarmos nos círculos de organização ou profissionais, mais freqüentemente encontraremos Sir Wilson Seymour. Era o único homem inteligente de vinte comissões de ignorantes — sobre toda sorte de assuntos, desde a reforma da Real Acade­mia até o projeto de bimetalismo para a Grã-Bretanha. So­bretudo nas artes, era onipotente. Era tão singular, que não se sabia ao certo se era um grande aristocrata que esposara a arte, ou um grande artista que os aristocratas haviam esposa­do. Ninguém poderia conversar com Sir Wilson Seymour por cinco minutos, sem verificar que tinha sido dominado por ele pelo resto da vida.

Sua aparência era "distinta", precisamente no mesmo sen­tido; era ao mesmo tempo convencional e singular. A moda não poderia encontrar nenhuma falha em sua cartola de seda; não obstante, era diferente do chapéu de qualquer outra pes­soa — um pouco mais alta, talvez, e acrescentava algo à sua altura natural. Sua figura alta e elegante tinha uma ligeira inclinação, mas parecia o contrário de um fraco. Seu cabelo era grisalho, mas não parecia velho; usava-o mais comprido do que o comum e, no entanto, não parecia efeminado; era on­dulado, mas não parecia crespo. Sua barba, cuidadosamente aparada, conferia-lhe uma aparência mais viril e militante do que o contrário, como acontece com os velhos almirantes de Velasquez, cujos retratos pretos pendiam em sua casa. Suas luvas cinza eram de um matiz mais azulado, sua bengala de punho prateado mais comprida, enfim, distinguiam-se das dezenas de luvas e bengalas agitadas e exibidas nos teatros e restaurantes.

O outro homem não era tão alto, mas, por outro lado, não impressionava ninguém por ser baixo, mas simplesmente por seu vigor e simpatia. Seu cabelo era ondulado também, mas abundante e cortado rente numa cabeça vigorosa e ma­ciça — a espécie de cabeça com que se quebra uma porta, como dizia Chaucer da cabeça de Miller. Seu bigode militar e sua postura refletiam o soldado, mas tinha um par daqueles olhos azuis peculiarmente francos e penetrantes mais comuns em marinheiros. Seu rosto era ligeiramente quadrado, seu queixo era quadrado, seus ombros eram quadrados e até seu paletó era quadrado. Na verdade, na rude escola da caricatura então corrente, Mr. Max Beerbohm tinha-o representado como uma proposição no quarto livro de Euclides.

Pois era também um homem público, embora com uma espécie de sucesso completamente diferente. Não seria preciso viver na melhor sociedade para ouvir falar do capitão Cutler, do cerco de Hong-Kong e da grande marcha através da Chi­na. Não se podia deixar de ouvir falar dele, onde quer que se estivesse. Seu retrato estava em todo cartaz; seus mapas e batalhas em todo papel ilustrado; canções em sua honra eram ouvidos em salas de música populares ou em todo o realejo. Sua fama, embora provavelmente mais temporária, era dez vezes mais ampla, popular e espontânea do que a do outro cavalheiro. Em milhares de lares ingleses era um herói da Inglaterra, um Nélson. Não obstante, na Inglaterra, tinha poder infinitamente menor do que Sir Wilson.

A porta lhes foi aberta por um criado ou "camareiro" idoso, cuja face e figura decadentes, paletó e calças pretas já desbotados contrastavam estranhamente com o interior resplandecente do camarim da grande atriz. Era revestido de es­pelhos em cada ângulo de refração, de modo que pareciam centenas de facetas de um imenso diamante, como se fosse possível penetrar num diamante. Os demais aspectos do luxo, flores, almofadas coloridas, sobras de roupa de palco, eram multiplicados pelos espelhos até a loucura das Mil e Uma Noites, e dançavam e mudavam de lugar constantemente quando o criado vacilante virava um espelho para fora ou contra a parede.

Ambos trataram o esquálido camareiro pelo nome, chamando-o de Parkinson, e perguntaram pela senhora como Miss Aurora Rome. Parkinson respondeu que estava no quarto, mas que iria chamá-la. Uma sombra passou pelos olhos de ambos os visitantes; é que o outro quarto era o quarto particular do grande ator com quem Miss Aurora estava representando, e ela era a espécie de pessoa que não desperta admiração sem despertar o ciúme. Mas, meio minuto depois, a porta interna se abriu e ela entrou, como sempre fazia, mesmo na vida pri­vada, de um modo que o próprio silêncio parecia ser uma explosão de aplausos, e de aplausos bem merecidos. Usava um estranho vestido, de cetim verde e azul-pavão, de brilho metálico, desses que fazem o deleite de crianças e de estetas, e seus cabelos castanho-escuros emolduravam um daqueles rostos mágicos, perigosos para todo homem, especialmente para adolescentes e homens que começam a envelhecer. Com seu colega, o grande ator americano. Isidoro Bruno, estava apre­sentando uma interpretação particularmente poética e fantás­tica de Sonho de Uma Noite de Verão, em que os papéis principais eram de Oberon e Titânia, ou em outras palavras, de Bruno e dela própria. Em meio a um cenário exótico e sonha­dor e entre danças místicas, a veste verde, como asas brilhan­tes de besouro, expressava toda a ilusória individualidade de uma rainha de fadas. Mas quando pessoalmente confrontada com o que ainda restava da luz do dia, via-se apenas o rosto da mulher.

Cumprimentou a ambos os visitantes com o sorriso bri­lhante e desconcertante, que mantinha tantos homens à mesma distância perigosa dela. Recebeu algumas flores de Cutler, que eram tão tropicais e difíceis como suas vitórias e outra espécie de presente de Sir Wilson Seymour, por ele oferecido mais tar­de e com certa negligência. Pois era contra sua educação de­monstrar impetuosidade e contra sua convencional falta de convenção oferecer coisas tão óbvias como flores. Escolhera uma bagatela, como disse, mas uma bagatela original: era um antigo punhal grego da Época Miceneana, que poderia bem ter sido usado no tempo de Teseu e de Hipólita. Era de bron­ze como todas as armas heróicas, mas, fato curioso, suficientemente afiado para furar alguém. Chamara-lhe a atenção sua forma de folha; era tão perfeita como um vaso grego. Se fosse de algum interesse de Miss Rome ou pudesse ser útil em al­gum lugar da peça, esperava que ela...

A porta interna abriu-se violentamente e um vulto enor­me assomou no batente; contrastava mais com Seymour do que o próprio capitão Cutler. Com quase dois metros de al­tura e com músculos e força mais do que teatrais, Isidore Bruno, vestido de suntuosa pele de leopardo e com as roupas marrom-douradas de Oberon, parecia um deus bárbaro. Firmava-se numa espécie de lança de caçador, que no palco dava a impressão de um bastão leve e prateado, mas que naquele pequeno quarto relativamente cheio parecia uma lança antiga e ameaçadora. Seus olhos vivos e pretos agitavam-se como um vulcão; seu rosto bronzeado, simpático como era, exibia naquele momento uma combinação de malares salientes com uma série de dentes brancos, que lembravam certas conjeturas americanas sobre sua origem nas plantações do Sul.

Aurora — começou, com aquela voz profunda como um tambor de paixão que comovera tantos públicos — você... Parou, indeciso, porque uma sexta figura surgira subita­mente à entrada da porta — uma figura tão incongruente no cenário, que chegava a ser cômica. Era um homem baixo, usando um uniforme preto do clero secular romano, que se assemelhava (sobretudo na presença de pessoas como Bruno e Aurora) a um Noé de madeira saído de uma arca. Não parecia, entretanto, ter consciência de qualquer contraste, e disse com pachorrenta urbanidade:

Acho que Miss Rome me mandou chamar.

Um arguto observador teria notado que a temperatura emocional havia subido com uma interrupção tão pouco emocional. O despreendimento de um celibatário profissional pa­recia revelar aos outros que estavam em torno da mulher como um anel de rivais amorosos; do mesmo modo um estranho que chega molhado pela geada achará que um quarto é como uma fornalha. A presença do homem que não se incomodava com a atriz aumentou a sensação de Miss Rome de que todos es­tavam apaixonados por ela, e cada um de um modo mais ou menos perigoso: o ator com todo o apetite de uma criança selvagem e corrompida; o soldado com todo o egoísmo sim­ples de um homem mais voluntarioso do que inteligente; Sir Wilson com aquela concentração empedernida com que velhos hedonistas se apegam a um hobby; e até o abjeto Parkinson, que a tinha conhecido antes de seus triunfos, e que a seguia pelo quarto com os olhos ou com os pés, com o fascínio si­lencioso de um cão.

Uma pessoa perspicaz poderia, também, ter notado uma coisa ainda mais estranha. O homem que parecia um Noé de madeira preta (não era totalmente destituído de espírito) o notou com muito divertimento, mas contido. Era evidente que a grande Aurora, embora não fosse indiferente à admiração do outro sexo, queria ver-se livre de todos os homens que a cor­tejavam e ficar a sós com o homem que não a cortejava, pelo menos não naquele sentido; pois o pequeno padre a admirava e apreciava mesmo a firme diplomacia feminina com que se desincumbia de sua tarefa. O padrezinho acompanhava, como uma campanha napoleônica, a rápida precisão de sua política de banir todos sem expulsar nenhum. Bruno, o grande ator, era tão infantil que foi fácil mandá-lo embora, amuado, baten­do a porta. Cutler, o oficial inglês, era um paquiderme para idéias, mas meticuloso quanto a comportamentos. Ignoraria qualquer insinuação, mas preferia morrer a ignorar uma ordem definida de uma senhora. Quanto ao velho Seymour, tinha de ser tratado diferentemente; teria de ser o último a sair. A única maneira de afastá-lo era apelar para a confiança de um velho amigo, fazê-lo participar do segredo do jogo. O padre admi­rou, realmente, Miss Rome quando ela realizou todos esses três objetivos numa ação precisa.

Dirigiu-se ao Capitão Cutler e disse com sua maneira encantadora:

— Aceito com toda gratidão estas flores, porque devem ser suas flores favoritas. Mas não estarão completas, sabe, sem a minha flor favorita. Se for àquela loja de flores na esquina e me trouxer alguns lírios-do-vale, então ficarão maravilhosas!

O primeiro objeto de sua diplomacia, a saída do irado Bruno, foi imediatamente alcançado. Ele já havia entregue sua lança, num estilo senhoril, como um cetro, ao lamentável Parkinson, e já ia ocupar uma das poltronas como um trono. Mas diante desse pedido aberto a seu rival, brilhou em seus olhos cor de opala toda a insolência sensível do escravo; agitou seus enormes punhos morenos por um instante e, em seguida, precipitando-se pela porta aberta, desapareceu em seus aposentos. Enquanto isso, o experimento de Miss Rome de mobilizar o Exército Britânico não tinha resultado tão simples como lhe parecera provável. Cutler realmente se tinha levantado e se encaminhava para a porta, sem chapéu, como se tivesse rece­bido uma ordem de comando. Mas talvez algo ostentosamente elegante na lânguida figura de Seymour encostada junto a um dos espelhos o levou a parar um pouco à entrada, olhando de um lado para outro como um bulldog aturdido.

— Preciso mostrar o caminho àquele tolo — disse Au­rora num sussurro a Seymour, e correu para o limiar da porta para apressar a saída do visitante.

Seymour parecia estar ouvindo, tão elegante e inconscien­te era sua postura, e pareceu aliviado quando ouviu Aurora dar algumas instruções em voz alta ao capitão e, em seguida, voltar-se bruscamente e sair correndo pelo corredor na direção da outra extremidade, que dava para o terraço sobre o Tâmisa. Um segundo ou dois depois a fisionomia de Seymour tomou novamente uma expressão sombria. Um homem na sua posição tem muitos rivais e lembrou-se de que na outra extremidade do corredor estava a entrada para o camarim particular de Bruno. Não perdeu sua dignidade; disse algumas palavras gentis ao padre Brown sobre o renascimento da arquitetura bizantina na Catedral de Westminster e, em seguida, muito na­turalmente, dirigiu-se à extremidade superior do corredor. Padre Brown e Parkinson ficaram sozinhos e nenhum dos dois era pessoa que gostasse de perder tempo com palavras supér­fluas. O camareiro caminhava pelo quarto, arrumando de novo os espelhos. Seu casaco e calças pretas descoradas pa­reciam ainda mais ridículas, uma vez que ainda segurava a festiva e delicada lança do rei Oberon. Toda vez que puxava um novo espelho, uma nova figura preta do padre Brown apa­recia; o absurdo camarim de espelhos estava cheio de padres Browns, de cabeça para baixo, no ar como anjos, dando saltos como acrobatas, dando as costas para os outros como pessoas mal-educadas.

O padre parecia insensível a esse bando de testemunhas, mas seguia Parkinson com uma atenção displicente até que este entrou com sua lança absurda no quarto de Bruno. Entre­gou-se então a meditações abstratas, o que de seu feitio — calculando os ângulos dos espelhos, os ângulos de cada retra­ção, o ângulo em que cada um se ajustava na parede... quan­do ouviu um grito alto mas estrangulado.

Levantou-se de um salto e prestou ouvidos. No mesmo instante, Sir Wilson Seymour irrompeu no camarim, branco como fera.

Quem é aquele homem no corredor? — perguntou. Onde está aquele punhal?

Antes que o padre Brown pudesse virar-se em suas botas pesadas, Seymour começou a remexer o quarto à procura da arma. E antes que a pudesse achar ou a outra qualquer, ou­viu-se do lado de fora o trepidar de passos rápidos e o rosto quadrado de Cutler apareceu no vão da porta, segurando, ainda, grotescamente um ramo de lírios-de-vale.

Que é que há? — exclamou. — Quem é aquele su­jeito no corredor? Algumas de suas trapaças?

Minhas trapaças! — sibilou seu rival pálido, e dando um passo na sua direção.

No mesmo instante em que tudo isso acontecia, o padre dirigiu-se ao alto do corredor, olhou para baixo e tomou imediatamente a direção do que viu.

Os dois outros homens deixaram de lado sua briga e se precipitaram atrás dele, com Cutler a gritar:

Que vai fazer? Quem é o senhor?

Chamo-me Brown — disse o padre, tristemente, ao se curvar sobre algo e se aprumar de novo. — Miss Rome me mandou chamar e vim logo que pude. Cheguei tarde de­mais.

Os três homens olharam para baixo e num deles pelo menos a vida morreu naquela última luz da tarde, que entrava ao longo do corredor como um caminho de ouro, no meio do qual jazia Aurora Rome brilhando com suas roupas cintilantes, com seu rosto sem vida virado para cima. Suas vestes ti­nham sido rasgadas como numa luta, deixando o ombro di­reito desnudado, mas era do outro lado a ferida de onde es­corria sangue. A faca de bronze jazia cintilante, a mais ou menos um metro de distância.

Houve um silêncio profundo durante algum tempo, que lhes permitiu ouvir ao longe, na Charing Cross, a risada de uma florista e alguém assobiando, furiosamente, para um táxi numa daquelas ruas transversais à Stand. O capitão, então, com um movimento tão súbito que poderia ter sido paixão ou fingimento, agarrou Sir Wilson Seymour pela garganta.

Seymour o encarou firmemente sem resistência ou medo.

Não precisa matar-me — disse numa voz quase in­sensível. — Eu o farei por minhas próprias mãos.

As mãos do capitão hesitaram e caíram; e o outro acres­centou com a mesma gélida frieza:

Se achar que não terei coragem dc o fazer com aquela faca, posso fazê-lo num mês, com bebidas.

A bebida não me serve, disse Cutler, mas derramarei sangue por isso antes de morrer. Não o seu, mas acho que sei de quem.

E antes que os outros pudessem pensar no que queria dizer, ele apanhou o punhal do chão, correu para a outra porta na extremidade do corredor, abriu-a impetuosamente, deparando com Bruno em seu camarim. Nesse ínterim, o velho Par­kinson saiu à porta, em seu passo vacilante e viu de relance o cadáver no corredor. Veio tremendo na sua direção e o con­templou ternamente com o rosto convulsionado; em seguida, afastou-se ainda tremendo c entrou de novo no camarim sentando-se subitamente numa das poltronas ricamente recobertas de almofadas. Padre Brown correu imediatamente para o seu lado, sem pensar em Cutler e no ator colossal, embora no quarto já ressoassem os golpes que trocavam, agora em luta pela faca. Seymour, que tinha um pouco de senso prático, estava chamando a polícia no fim do corredor.

Quando a polícia chegou foi para separar os dois homens de uma luta brutal. E, após o interrogatório de praxe, prendeu Isidore Bruno sob a acusação de assassinato, levantada contra ele por seu furioso rival. A idéia de que o grande herói nacional do dia havia prendido um malfeitor com suas próprias mãos tinha sem dúvida seu valor para a polícia, que não é desprovida de espírito jornalístico. Trataram Cutler com certa atenção e solenidade e lhe mostraram que tinha um pequeno talho na mão. Quando Cutler o havia acuado contra a cadeira e a mesa inclinada, Bruno voltara o punhal para fora de sua mão ferindo-o exatamente abaixo do punho. A ferida era, realmente, pequena, mas até ser retirado do quarto, o preso semi-selvagem olhava o sangue a escorrer com um sorriso firme.

Parece um canibal, não parece? — disse o delegado confidencialmente a Cutler.

Cutler não deu qualquer resposta, mas disse bruscamente um instante depois:

Precisamos cuidar... da morta...

E perdeu a voz.

Dos dois mortos! — Era a voz do padre do outro lado do quarto. — Esse pobre coitado morreu quando cheguei perto dele.

E ficou olhando para o velho Parkinson, sentado em desordem na poltrona suntuosa. Pagara também seu tributo, não sem eloqüência, à mulher que tinha morrido.

O silêncio foi rompido primeiro por Cutler, tocado por uma rude ternura.

Eu gostaria de ser ele — disse roucamente. — Lem­bro-me de que gostava mais do que ninguém de segui-la para onde quer que ela... Ela era seu ar, ele morreu asfixiado. Está realmente morto.

Nós todos estamos mortos — disse Seymour numa voz estranha, olhando pela rua abaixo.

Despediram-se do padre Brown na esquina da rua, com algumas desculpas ao acaso por qualquer indelicadeza que pudessem ter demonstrado. Ambas as faces, além de pálidas e trágicas, eram também misteriosas.

A mente do pequeno padre se agitava como um viveiro de coelhos de pensamentos absurdos que saltavam rápidos demais para se poder captá-los. Teve a idéia passageira de que estava certo da dor que exprimiam, mas não tão certo da inocência deles.

É melhor irmos andando — disse Seymour pesada­mente. — Fizemos tudo ao nosso alcance para ajudar.

Os senhores compreenderão meus motivos — per­guntou o padre calmamente — se disser que fizeram tudo que puderam para prejudicar?

Ambos se espantaram como se tivessem culpa e Cutler disse asperamente:

Prejudicar a quem?

Aos senhores mesmos — respondeu o padre. — Não aumentaria suas dificuldades se não fosse justiça comum adver­ti-los. Os senhores fizeram tudo que puderam para se enfor­carem, se este ator for absolvido. Certamente me citarão; serei obrigado a dizer que depois que o grito foi ouvido, cada um dos senhores entrou correndo no camarim em estado de agita­ção e começaram a brigar por causa de um punhal. Tanto quanto possam valer minhas palavras sob juramento, ambos poderiam tê-lo feito. Vocês se prejudicaram com isso. Além do mais o capitão acabou se ferindo com a faca.

Eu? — exclamou o capitão com desprezo. — Um arranhão insignificante.

Que sangrou — disse o padre, assentindo com a ca­beça. — Sabemos que há sangue no bronze agora. E, assim, nunca saberemos se havia sangue nele antes.

Fêz-se silêncio. Em seguida Seymour falou, com uma ênfase inteiramente alheia ao seu tom diário.

Mas eu vi um homem no corredor.

Eu sei que o senhor viu — respondeu o clérigo com um rosto de pedra — como também o capitão Cutler. É isto que parece tão improvável.

Antes que um ou outro pudesse compreender o suficiente para responder, o padre Brown desculpou-se polidamente e saiu saltitando pela rua com seu guarda-chuva surrado e velho.

Da maneira como são dirigidos os jornais modernos, as notícias mais honestas e mais importantes são as notícias policiais. Se é verdade que no século XX se tem dedicado mais espaço ao crime do que à política, é pela simples razão de que o assassinato é um assunto mais sério. Mas ainda assim, isso não explicaria facilmente a esmagadora onipresença e o detalhe amplamente divulgado do "Casa Bruno" ou do "Mistério do Corredor" na imprensa de Londres e das províncias. Tão generalizada era a excitação, que durante algumas sema­nas a imprensa realmente disse a verdade; e as reportagens sobre os inquéritos e acareações, embora intermináveis, e até intoleráveis, eram pelo menos dignas de crédito. A verdadeira razão, naturalmente, era a coincidência das pessoas. A vítima era uma atriz popular; o acusado era um ator popular e tinha sido apanhado em flagrante, por assim dizer, pelo soldado mais popular da estação patriótica. Naquelas circunstâncias extraordinárias a imprensa se fixava na probidade e na preci­são; e o resto dessa questão singular pode ser praticamente re­tirado das atas do julgamento de Bruno.

O julgamento foi presidido pelo juiz Monkhouse, um daqueles que são escarnecidos como juízes chistosos, mas que, geralmente, são muito mais sérios do que os juízes sérios, pois sua leviandade vem de uma viva impaciência com a solenidade profissional enquanto o juiz sério é realmente cheio de frivolidade, porque cheio de vaidade. Sendo todos os prota­gonistas de importância mundana, os advogados estavam bem equilibrados. O promotor da Coroa era Sir Walter Cowdray, advogado violento, mas sério, daquela espécie que sabe como se mostrar inglês e digno de confiança, e como ser retórico sem relutância. O réu foi defendido por Mr. Patrick Butler, que era erroneamente tomado por simples flâneur por aqueles que interpretavam mal seu caráter irlandês ou que não tinham sido interrogados por ele. A prova médico-legal não envolvia contradições; o médico que Seymour tinha chamado ao local, concordara com o eminente cirurgião que mais tarde exami­nara o corpo. Aurora Rome tinha sido apunhalada com algum instrumento cortante, como uma faca ou punhal; um instru­mento pelo menos, de lâmina curta. O ferimento tinha sido exatamente sobre o coração e ela morrera instantaneamente. No momento em que o primeiro médico a examinou, ela não teria morrido há mais de vinte minutos. Por conseguinte, quando o padre Brown a encontrou deveria estar morta há pouco mais de três minutos.

Certas provas policiais colhidas posteriormente diziam respeito principalmente à presença ou ausência de qualquer sinal de luta; a única sugestão disso era o vestido rasgado no ombro, o que não parecia ajustar-se muito bem com a direção e a fi­nalidade do golpe. Quando esses detalhes foram oferecidos, embora não explicados, foi convocada a primeira das impor­tantes testemunhas.

Sir Wilson Seymour provou, como o fazia em tudo mais, que não só tinha agido bem, mas também com perfeição. Em­bora fosse mais homem público do que o juiz, procurou inteligentemente eclipsar-se diante da justiça do Rei; e embora todos olhassem para ele como olhariam para o Primeiro-Ministro ou para o Arcebispo de Canterbury, não poderia dizer nada a respeito de sua participação no caso a não ser como cidadão particular, com o destaque de um nome. Era também agradavelmente lúcido, como o era nas comissões. Tinha sido chamado por Miss Rome ao teatro; ali encontrara o capitão Cutler, tendo o réu estado com eles por alguns minutos vol­tando a seguir para seu próprio camarim; chegara em seguida um padre católico, que perguntara por miss Rome e dissera chamar-se Brown. Miss Rome tinha acabado de sair do teatro pela porta do corredor, para mandar o capitão Cutler a uma floricultura, onde deveria! comprar mais algumas flores. A testemunha tinha ficado na sala, trocando algumas palavras com o padre. Ouvira, então, distintamente, a voz da falecida, depois de mandar Cutler à floricultura, dar uma risada e sair correndo pelo corredor na direção da outra extremidade, onde ficava o camarim do réu. Levado por ociosa curiosidade pelos rápidos movimentos de seus amigos, tinha ele próprio saído para a ponta do corredor e olhado na direção da porta do réu. Vira algo no corredor? Sim, tinha visto algo no corredor.

Sir Walter Cowdry deixou passar um intervalo impressionante, durante o qual a testemunha abaixou a vista e, apesar de toda sua serenidade, parecia estar mais pálida do que habi­tualmente. Em seguida, o advogado perguntou em voz baixa, que ao mesmo tempo parecia compassiva e insinuante:

O senhor o viu distintamente?

Sir Wilson Seymour, embora excitado, tinha a cabeça no lugar.

Distintamente quanto ao contorno, mas muito vaga­mente quanto a seus detalhes. O corredor é tão comprido, que qualquer pessoa no meio dele parece muito escura contra a luz da outra extremidade. — A testemunha mais uma vez abaixou os olhos serenos e acrescentou: — Já havia notado o fato antes, quando o capitão Cutler entrou primeiro no corredor.

Fez-se silêncio e o juiz inclinou-se para frente fazendo uma observação.

Então -— disse Sir Walter pacientemente —, com que se parecia o contorno? Parecia-se, por exemplo, com a figura da mulher assassinada?

De modo algum — respondeu Seymour calmamente.

O que lhe parecia então?

Tive a impressão — respondeu a testemunha — de ver um homem alto.

Todo o tribunal mantinha os olhos fixos na sua pena, ou no cabo de seu guarda-chuva, ou no seu livro, ou em suas botas ou em qualquer coisa que por acaso estivesse olhando.

Pareciam estar desviando- o olhar do réu por uma força principal; mas percebiam sua figura no banco dos réus e a perce­biam como gigantesca. Alto como era, Bruno estava à vista, parecia tornar-se cada vez mais alto quando todos os olhares se tinham desviado dele.

Cowdray voltava ao seu lugar com seu rosto solene, alisando sua toga de seda preta e seus bigodes brancos e sedosos. Sir Wilson deixava a tribuna de testemunhas, depois de alguns detalhes finais com referência aos quais havia muitas outras testemunhas, quando o advogado de defesa levantou-se de um salto e o deteve.

Um momento, apenas — disse Mr. Butler, que era uma pessoa de olhar rude, sobrancelhas ruivas e uma expressão de semi-sonolência.

Poderia dizer à Sua Excelência como viu que era um homem?

Um leve e delicado sorriso pareceu passar pelo rosto de Seymour.

Acho que foi o teste vulgar das calças — disse. — Quando vi a luz do dia entre as pernas compridas tive certeza de que se tratava, afinal de contas, de um homem.

Os olhos sonolentos de Butler abriram-se tão repentina­mente como uma explosão silenciosa.

Afinal de contas! — repetiu calmamente. — Então o senhor pensou inicialmente que fosse uma mulher?

Seymour mostrou-se perturbado pela primeira vez.

Não é uma questão de importância — disse, mas se Sua Excelência quer a minha opinião, eu a darei, naturalmen­te. Havia algo na coisa que não era exatamente de mulher e, não obstante, não era também de homem; as curvas eram de certo modo diferentes. E tinha algo que se parecia com cabelos compridos.

Obrigado, disse Mr. Butler, e sentou-se imediatamen­te, como se tivesse conseguido o que queria.

O capitão Cutler foi uma testemunha muito menos plau­sível e serena do que Sir Wilson, mas seu relato dos acidentes iniciais foi praticamente o mesmo. Descreveu a volta de Bruno à seu camarim, sua missão de ir comprar lírios-do-vale, sua volta à extremidade superior do corredor, o que viu no corre­dor, sua suspeita de Seymour e sua luta com Bruno. Mas podia oferecer muito pouca luz a respeito da silhueta escura que ele e Seymour haviam visto. Perguntado sobre a silhueta, disse que não era crítico de arte, como óbvia alusão de escár­nio a Seymour. Perguntado se era homem ou mulher, disse que lhe pareceu mais uma fera, com um olhar feroz para o réu. Mas o homem estava sinceramente tomado de tristeza, de modo que Cowdray dispensou-o rapidamente de confirmar fatos que já estavam por demais esclarecidos.

O advogado de defesa foi também breve em seu interrogatório, embora (como fosse de seu costume), mesmo sendo breve levasse muito tempo com siso.

O senhor usou uma expressão um tanto curiosa — disse, olhando para Cutler sonolentamente. — O que entende ao dizer que parecia mais uma fera do que um homem ou uma mulher?

Cutler pareceu seriamente agitado.

Talvez eu não devesse ter dito isso, mas como o ani­mal tinha ombros enormes e encurvados como um chimpanzé, e cerdas saiam de sua cabeça como de um porco...

Mr. Butler cortou sua curiosa impaciência no meio.

Não importa se seu cabelo se parecia com o cabelo de um porco. Seria o cabelo de uma mulher?

De mulher? — exclamou o soldado. — Pelo amor de Deus, nunca!

A última testemunha disse que era, comentou o advo­gado, propositalmente. E a figura teria aquelas curvas serpenteantes e semi-femininas às quais se fez eloqüente alusão? Não? Nenhuma forma feminina? A figura, se bem o entendi, tinha antes uma forma pesada e quadrada.

Sim, como se caminhasse inclinada para a frente, disse Cutler, com voz rouca e um tanto fraca.

Obrigado — disse Mr. Butler e sentou-se de repente pela segunda vez.

A terceira testemunha convocada por Sir Walter Cowdray era um padre católico, tão pequenino, comparado com os outros, que sua cabeça mal se via acima da tribuna, de modo que parecia o interrogatório de uma criança. Mas, infelizmen­te, Sir Walter tinha de certo modo metido em sua cabeça (em grande parte por algumas ramificações da religião de sua família) que o padre Brown estava do lado do réu, porque o réu era mau e estrangeiro, e quase preto. Por conseguinte, interrompia o padre Brown, rispidamente, toda vez que ele que­ria explicar alguma coisa; disse-lhe que respondesse apenas sim ou não e se limitasse a contar os fatos sem elocubrações jesuíticas. Quando padre Brown começou, com sua simplicidade, a dizer quem ele pensava fosse o homem do corredor, o advo­gado de acusação protestou dizendo que não lhe interessavam suas teorias.

Uma sombra escura foi vista no corredor. E o senhor diz que viu a sombra escura. Então, que forma tinha?

Padre Brown piscava os olhos como se estivesse sendo repreendido. Mas desde muito conhecera a natureza literal da obediência.

A forma — respondeu — era baixa e grossa, mas tinha duas projeções altas, afiadas e curvas de cada lado da cabeça, semelhantes a chifres, e...

Oh! o demônio de chifres, sem dúvida — exclamou Cowdray, assentando-se com alegria triunfante. — Foi o demônio que veio comer os protestantes.

Não — disse o padre impassível. — Eu sei quem era.

Todos no tribunal tinham sido levados a pensar em certa monstruosidade irracional, mas real. Tinham esquecido a figura no banco dos réus e pensavam apenas na figura do corre­dor. E a figura do corredor, descrita por três homens capazes e respeitáveis que a tinham visto, era um variado pesadelo: um a chamou de mulher, o outro de fera, e o outro de demô­nio...

O juiz olhava para o padre com os olhos firmes e pene­trantes.

O senhor é uma testemunha sui generis — disse ele. — Percebo, porém, em suas palavras que está tentando dizer a verdade. Então, quem era o homem que o senhor viu no corredor?

Era eu mesmo — respondeu padre Brown.

Butler levantou-se calmamente e disse com serenidade:

O senhor me permite interrogá-lo?

E, em seguida, sem parar, fez a Brown a pergunta aparentemente desconexa:

O senhor ouviu falar da faca; sabe que os peritos di­zem que o crime foi cometido com uma lâmina curta?

Uma lâmina curta — repetiu o padre Brown, assentindo solenemente como um mocho — mas de cabo muito comprido.

Antes que o auditório pudesse livrar-se da idéia de que o padre se tinha realmente visto cometendo o crime com uma faca curta de cabo comprido (o que parecia de certo modo tornar a coisa mais horrível), ele se apressou a explicar.

Quero dizer que os punhais não são as únicas armas com lâminas curtas. As lanças têm lâminas curtas. E lanças são presas na ponta do aço do mesmo modo que os punhais, se são daquela espécie de lança de fantasia que se usa nos teatros; como a lança com que o pobre e velho Parkinson ma­tou sua esposa, exatamente quando ela mandou chamar-me para resolver seus problemas familiares... só que cheguei tarde demais. Que Deus me perdoe! Mas ele morreu peni­tente... morreu precisamente de arrependimento. Não pôde suportar o que fizera.

A impressão geral no tribunal era de que o pequeno padre, que continuava tagarelando, teria ficado louco na tribuna. Mas o juiz o encarava ainda com os olhos vivos e cheios de inte­resse; e o advogado de defesa continuou seu interrogatório im­perturbável.

Se Parkinson fez isso com aquela lança de fantasia — disse Butler — deve tê-la atirado de, digamos, quatro metros. Como o senhor explica sinais de luta, como o vestido rasgado no ombro?

Ele passara a tratar a testemunha como um simples peri­to, mas ninguém notara a diferença.

O vestido da pobre senhora estava rasgado — disse a testemunha — porque se prendeu num painel que escorregou exatamente atrás dela. Debatia-se para se livrar do painel quando Parkinson saiu do quarto do réu e investiu com a lança.

Painel? — perguntou o advogado num tom de curio­sidade.

Era um espelho do outro lado, explicou padre Brown. Quando eu estava no camarim notei que alguns desses espelhos refletiam para dentro do corredor.

O silêncio abateu-se novamente sobre a sala e, desta vez, foi quebrado pelo juiz.

Então o senhor quer dizer que quando olhou para o corredor, o homem que viu era o senhor mesmo refletido no espelho?

Sim, Excelência, era isso que estava tentando dizer — respondeu Brown, mas me perguntaram sobre a forma... Nossos chapéus se parecem com chifres e assim, eu.. .

O juiz inclinou-se para frente, com seus olhos ainda mais brilhantes e disse num tom especialmente distinto:

O senhor quer dizer realmente que quando Sir Wilson Seymour viu as mencionadas curvas femininas, o cabelo de mulher e as calças de homem, o que ele viu era o próprio? Sir Wilson Seymour?

Sim, Excelência — respondeu padre Brown.

E quer dizer que quando o capitão Cutler viu aquele chimpanzé de ombros largos e encurvados e de cabelos como cerdas de porco, o que estava vendo era a sua própria imagem?

Sim, Excelência.

O juiz recostou-se em sua cadeira com uma expressão em que era difícil distinguir o cinismo e a admiração.

E o senhor nos pode dizer como pôde reconhecer sua própria figura num espelho, quando duas pessoas distintas não o puderam?

Padre Brown pestanejou mais penosamente do que antes e, em seguida, gaguejou:

Realmente, Excelência, não sei... a menos que... tal­vez, seja porque não olho para ela muitas vezes.

 

                       O ERRO DA MÁQUINA

 

Flambeau e seu amigo padre Brown estavam sentados no Temple Gardens ao pôr do sol; a conversa entre os dois voltara-se para assuntos de processo legal. Do problema do abuso no interrogatório, a conversação passou à tortura romana e medieval, até os inquisidores da França e o interrogatório intensivo nos Estados Unidos.

Estive lendo — disse Flambeau — sobre o novo mé­todo psicométrico do qual tanto falam, especialmente nos Es­tados Unidos. Sabe a que me refiro colocam um pulsômetro no pulso de uma pessoa e por meio dele podem saber como seu coração se comporta ao pronunciar certas palavras. Que acha disso?

Acho muito interessante — respondeu o padre Brown. — Lembra-me aquela idéia também interessante, em certa época da História, segundo a qual o sangue de um cadáver escorreria se o assassino o tocasse.

Quer dizer, então — perguntou seu amigo —, que acha, realmente, que os dois métodos são igualmente válidos?

Acho-os igualmente sem valor — respondeu padre Brown. — O sangue corre, rápido ou vagaroso, em gente viva ou morta, por milhares de razões que não podemos saber.

O método — observou Flambeau — tem o aval de alguns dos mais eminentes cientistas americanos.

Como são sentimentalistas estes homens de ciência! — exclamou padre Brown — e quanto mais sentimentais ain­da devem ser esses cientistas americanos! Quem se não um ianque poderia pensar em provar algo pelas batidas do coração? Ora essa, devem ser tão sentimentalistas como o sujeito que acredita que uma mulher esteja apaixonada por ele, só por que enrubece. Isso é um teste da circulação do sangue, des­coberto pelo imortal Harvey, e péssimo teste por sinal.

Mas, na verdade — insistiu Flambeau —, poderia dar certo em alguns casos.

Há uma desvantagem numa vareta que aponta direta­mente — respondeu padre Brown. — Qual é? Ora essa, a outra extremidade da vareta sempre aponta em sentido con­trário. Depende de como se segura a vareta pela ponta certa. Vi isto uma vez e nunca mais acreditei na máquina.

E passou a contar a estória de sua desilusão!

Aconteceu há cerca de vinte anos atrás, quando ele era capelão numa prisão de Chicago, onde a população irlandesa apresentava uma capacidade especial tanto para o crime como para a penitência, fato que o mantinha toleravelmente ocupado. O oficial, que fazia às vezes de vice-diretor, era um ex-detetive chamado Greywood Usher, um macilento filósofo ianque, de fala mansa, cuja fisionomia ia de um rosto muito rígido até uma estranha careta de humildade. Gostava do padre Brown de um modo um tanto patronal e o padre Brown gostava dele, embora no fundo detestasse suas teorias. Estas eram extremamente complicadas e defendidas com extrema simplicidade.

Uma noite mandou chamar o padre, que, de acordo com seu costume, se assentou calado a uma mesa cheia de papéis empilhados ou espalhados, e ficou esperando. O oficial tirou dos papéis um recorte de jornal. Estendeu-o ao clérigo, que o leu atentamente. Parecia ser um extrato de um dos jornais americanos mais sociais. Dizia o seguinte:

"O viúvo mais vivo da sociedade volta mais uma vez às suas proezas com o Jantar da Extravagância. Todos os nossos leitores se recordarão do Jantar da Parada do Vagabundo, em que Todd, o Esperto, em sua mansão palaciana na Lagoa do Peregrino, levou tantas de nossas preeminentes debutantes pa­recerem muito mais jovens do que realmente eram. Igualmente elegante, mais heterogêneo e mais magnânimo, foi o show de Todd do ano passado, o popular Almoço dos Canibais, em que os doces oferecidos eram sarcasticamente modelados em formas de braços e pernas humanas e durante o qual mais de um de nossos alegres ginastas mentais foram ouvidos oferecendo-se para comer seu companheiro. A graça que inspirará esta noite, está ainda na reticente inteligência de Mr. Tood, ou no bolso do colete de nossos mais alegres líderes da cidade; mas se fala de uma linda paródia dos costumes e maneiras simples da outra extremidade da escala social. Isso teria tanto mais efeito, neste momento em que o hospitaleiro Mr. Todd é anfi­trião de Lorde Falconroy, o famoso viajante e aristocrata de puro-sangue recém-chegado da Inglaterra. As viagens de Lorde Falconroy começaram antes que seu antigo título feudal fosse ressuscitado; foi republicano na sua juventude, e um malicioso boato explica a razão de sua volta: Miss Etta Todd é uma de nossas nova-iorquinas mais autênticas e tem uma renda de quase doze milhões de dólares."

Então — perguntou Usher —, lhe interessa?

Ora essa, não entendo bem suas palavras — respon­deu o padre. — Não posso imaginar agora nada deste mundo que me interessasse menos. E, a menos que a justa ira da República acabe por eletrocutar jornalistas por escreverem essas coisas, não vejo por que me poderia interessar.

Está bem — disse Mr. Usher, secamente, entregando- lhe outro recorte de jornal. — E isto, lhe interessa?

O parágrafo era intitulado: "Assassinato Selvagem de um Guarda. Presidiário Escapa", e prosseguia: "Pouco antes de amanhecer o dia de hoje um grito de socorro foi ouvido na Colônia Penal de Sequah, neste Estado. As autoridades, tendo corrido na direção do grito, encontraram o cadáver da sentinela que patrulhava o alto do muro norte da prisão, o mais íngreme e de saída mais difícil, razão por que um só guarda foi sempre julgado suficiente. O infeliz policial, entretanto, foi atirado de cima do muro, com a cabeça partida por uma cace­tada, tendo sua arma desaparecido. Investigações posteriores demonstraram que uma das celas estava vazia, ocupada antes por um sombrio valentão que dizia chamar-se Oscar Rian. Era o único detido temporariamente por uma agressão relativa­mente trivial; mas dava a todos a impressão de um homem de passado negro e de futuro perigoso. Finalmente, quando o dia clareou e revelou plenamente o cenário do crime, foi que se descobriu que ele escrevera na parede acima do corpo uma sentença fragmentária, aparentemente com um dedo molhado de sangue: "Foi legítima defesa e ele tinha uma arma. Não lhe quis fazer mal, como a nenhum homem, com exceção de um. Estou guardando a bala para a Lagoa do Peregrino. — O.R." Uma pessoa teria de usar da máxima e diabólica traição ou da mais selvagem ou admirável ousadia física para assaltar um muro desses guardado por um homem armado."

Bem, o estilo literário melhorou um bocado — admi­tiu o padre, jovialmente —, mas não vejo ainda em que lhe poderei ser útil. Que poderei fazer eu, com minhas pernas curtas, para atalhar um assassino desta espécie em sua corrida através deste Estado. Duvido que alguém possa encontrá-lo. A colônia de presos em Sequah está a quarenta e cinco quilômetro daqui; o local é selvagem e bastante complicado, e a região além, para onde certamente ele deve ter tido o bom- senso de ir, é uma perfeita terra de ninguém, cheia de prados sem fim. Poderá estar em qualquer buraco ou em cima de qualquer árvore.

Não está em nenhum buraco — disse o diretor — nem em cima de árvore alguma.

Como pode saber? — perguntou o padre Brown, pestanejando.

Gostaria de falar com ele? — perguntou Usher.

Padre Brown arregalou seus olhos inocentes!

Ele está aqui? Mas como seus homens conseguiram pegá-lo?

Eu o peguei, pessoalmente — respondeu o americano de fala arrastada, levantando-se e se espreguiçando com suas pernas magras diante da lareira. — Eu o peguei com o cabo de minha bengala. Não fique espantado. É a verdade. Sabe que às vezes saio passeando pelas estradas fora deste lugar horrível. Pois bem, passeava hoje ao cair da noite por uma estrada íngreme com cercas escuras e campos arados de cor cinza, de ambos os lados; uma lua nova levantava-se prateada sobre o caminho. À luz dela, vi um homem correndo pelo campo na direção da estrada, correndo com o corpo encurvado e a trote, no estilo de um corredor profissional. Parecia estar exausto, mas quando chegou à cerca espessa e escura passou por ela como se fosse feita de teia de aranha, ou melhor, pois ouvi ramos fortes se partindo e batendo-se como baionetas, como se ele próprio fosse feito de pedra. No instante em que ele apareceu contra a lua, atravessando a estrada, atirei minha bengala nas suas pernas, prendendo-o e arrastando-o. Em seguida, dei um apito longo e forte e nossos companheiros correram para segurá-lo.

Teria sido embaraçoso — observou Brown — se tivesse descoberto que se tratava de um atleta popular prati­cando uma corrida.

Não era — disse Usher, sombriamente. — Vimos logo que não era. Mas cheguei a supor isso ao primeiro clarão da lua.

Pensou logo que fosse o presidiário fugitivo — obser­vou o padre — por ter lido no jornal desta manhã que um deles escapara.

Tinha melhores fundamentos — respondeu friamente o diretor. — Abandonei a primeira hipótese por ser simples demais para ser levada a sério. Atletas profissionais não correm através de campos arados nem arranham os olhos em cercas de espinheiros. Também não correm agachados como um cão. Havia outros detalhes decisivos para os olhos mais bem treinados. O homem vestia roupas grosseiras e esfarrapadas, mas eram algo mais do que simplesmente ordinárias e es­farrapadas. Eram tão mal-ajustadas que chegavam a ser gro­tescas; já no momento em que surgiu de perfil preto contra a lua que se levantava, a gola do paletó, em que sua cabeça estava metida, tornava-o semelhante a um corcunda e as man­gas compridas e frouxas davam a impressão de que não tinha mãos. Ocorreu-me, imediatamente, que ele teria conseguido trocar sua roupa de presidiário por roupas de algum cúmplice, que não se ajustavam nele. Segundo, corria contra um vento bastante forte, de modo que deveria ter o cabelo assanhado, se não tivesse sido cortado curto. Depois me lembrei de que para além daqueles campos arados que ele estava atravessando, fi­cava a Lagoa do Peregrino, para a qual, lembra-se?, o presi­diário tinha guardado a bala; e atirei minha bengala.

Uma brilhante peça de rápida dedução — disse padre Brown. — Mas trazia uma arma?

Como Usher interrompesse abruptamente sua narrativa, o padre acrescentou apologético:

Já me disseram que uma bala não tem utilidade sem uma arma.

Ele não tinha arma — disse o outro gravemente —, mas isso era, sem dúvida, devido a um erro ou mudança de planos, coisa, aliás, muito natural. Provavelmente, a mesma política que o fez mudar de roupas o fez depor a arma; come­çou a lamentar o casaco que deixara atrás dele no sangue de sua vítima.

Bem, isso é bastante provável — comentou o padre.

E vale apena especular sobre o assunto — acrescen­tou Usher, voltando-se para outros jornais —, pois sabemos que ele é o homem.

Seu amigo eclesiástico perguntou-lhe com voz débil:

Mas como?

Greywood Usher depôs os jornais e, apanhando novamen­te os dois recortes, respondeu:

Está bem, já que é tão obstinado, comecemos do princípio. O senhor observará que esses dois recortes têm apenas uma coisa em comum, ou seja, a menção da Lagoa do Peregrino, a propriedade, como sabe, do milionário Ireton Todd. Sabe, também, que ele é de uma extraordinária perso­nalidade; um daqueles que vieram. ..

De nossa insignificância para coisas superiores — assentiu seu companheiro. — Sei, sei disso. Petróleo, ou coisa que valha.

Seja como for, Todd explica grande parte desse ne­gócio estranho.

Espreguiçou-se novamente diante da lareira e continuou falando naquele seu estilo expansivo e brilhantemente explica­tivo.

Para início de conversa, não há qualquer mistério, nisso. Não é misterioso, nem mesmo estranho, que um fora­gido levasse sua arma para a Lagoa do Peregrino. Nosso povo não é como o inglês, que perdoará um sujeito por ser rico, se ele der dinheiro para hospitais e para cavalos. Todd tornou-se grande por suas próprias e relevantes qualidades; e não há dúvida de que muitos daqueles que, de algum modo, se julga­ram prejudicados por suas habilidades comerciais gostariam de lhe mostrar as suas com uma arma. Todd poderia facilmente ser abatido por um homem de quem nunca tivesse ouvido falar; por algum trabalhador a quem tivesse recusado trabalho, ou por algum empregado de uma firma que tenha levado à falência. Todd é um homem mentalmente bem dotado e tem alto espírito público, mas neste país as relações entre emprega­dores e empregados são bastante tensas.

Após uma pequena pausa, prosseguiu:

— É isto que me leva a crer que esse Rian tenha ido à Lagoa do Peregrino para matar Todd. Assim me parecia, até que outra descoberta despertou o que há de policial em mim. Quando tinha o preso seguro em minhas mãos, apanhei novamente minha bengala e dei umas duas ou três voltas pela es­trada da região que me levou a uma das entradas laterais das terras de Todd, a mais próxima da lagoa ou lago de onde o lugar tira o nome. Isso foi há cerca de duas horas, por volta das sete horas. A luz da lua estava mais clara e pude ver seus raios longos e brancos estendendo-se sobre o misterioso lago com suas praias cinzentas, sujas e lamacentas, onde, se diz, nossos pais costumavam fazer feiticeiras caminharem até afun­dar. Esqueci da estória verdadeira, mas sabe a que lugar me refiro. Fica ao norte da casa de Todd na direção do interior, e tem duas árvores estranhamente encarquilhadas, tão tristes que mais parecem imensos fungóides do que folhagens decen­tes. Enquanto apreciava aquele lago triste, imaginei ter divi­sado a figura frágil de uma pessoa que vinha da casa em dire­ção ao lago; mas estava escuro e distante demais para se ter a certeza do fato, e muito menos dos detalhes. Além disso, minha atenção foi despertada para algo bem mais próximo. Agachei-me atrás da cerca que corria a não mais de duzentos metros de uma ala da grande mansão e que, felizmente, era partida em alguns lugares, como se especialmente para a apli­cação de um olho indiscreto. Uma porta se tinha aberto no bloco escuro da ala esquerda e uma figura apareceu contra o interior iluminado, uma figura inclinada para frente, eviden­temente, espiando para a escuridão. Fechou a porta atrás de si e vi que trazia uma lanterna, que lançava uma mancha de luz imperfeita na roupa e no rosto do portador. Parecia uma mulher, envolta num manto velho e evidentemente disfarçada para evitar ser notada. Havia algo de estranho nos molambos e na atitude furtiva da pessoa que saiu daqueles quartos de paredes douradas. Seguiu cuidadosamente o caminho tortuoso do jardim que a trouxe a cerca de cinqüenta metros de mim; em seguida, ficou em pé, por um instante, sobre uma pequena elevação de terra que dá para o lago lodoso e, segurando a lanterna acesa acima de sua cabeça, balançou-a, deliberadamente, três vezes de um lado para outro, como se desse um sinal. Quando a balançou pela segunda vez, um lampejo de sua luz incidiu por um momento sobre seu próprio rosto, um rosto que eu conhecia. Estava extraordinariamente pálida e sua cabeça envolta num chalé plebeu emprestado, mas tenho certeza de que era Etta Todd, filha do milionário.

Novamente, interrompeu por um momento sua narrativa. O padre continuava a ouvi-lo em silêncio.

Voltou com igual segredo e .a porta se fechou atrás dela. Eu já ia subir na cerca e continuar, quando verifiquei que a febre de detetive que me levava à aventura era indigna, pois, no âmbito oficial já tinha todos os naipes na mão. Já ia voltando, quando ouvi outro ruído na noite. Uma janela abriu- se num dos andares superiores, exatamente no canto da casa, de modo que não pude vê-la; e uma voz de terrível clareza fez-se ouvir através do jardim escuro perguntando onde estava Lord Falconroy, pois não se encontrava em parte alguma da casa. Não havia qualquer engano naquela voz. Já a ouvi em muitos palanques eleitorais ou em reuniões de diretores. Era o próprio Ireton Todd. Outros acorreram às janelas inferiores ou às escadarias e lhe responderam que Falconroy tinha saído para um passeio pela Lagoa do Peregrino há uma hora e, desde então, não se sabia onde estava. Então o primeiro gritou "horrível assassinato!" e fechou a janela violentamente; pude ouvi-lo descendo as escadas para o interior da casa. Voltando a meu propósito anterior, mais prudente, afastei-me da busca geral que devia seguir e voltei para aqui pouco depois das oito horas.

E agora — prosseguiu — peço-lhe para se lembrar do pequeno parágrafo da crônica social que lhe pareceu tão desprovido de interesse. Se o condenado não estava guardando a bala para Todd, como era evidente que não estava, é muito mais provável que a estivesse guardando para Lorde

Falconroy. A impressão é de que cumpriu sua missão. Nenhum lugar mais prático para disparar contra uma pessoa do que naquele curioso ambiente geológico da lagoa, onde um corpo caído afundaria na lama espessa a uma profundidade praticamente desconhecida. Suponhamos, então, que nosso amigo de cabelo tosado tenha vindo matar Falconroy e não Todd. Mas, como observei, há muitas razões para que uma pessoa nos Estados Unidos queira matar Todd. Nenhuma razão, porém, por que alguém nos Estados Unidos quisesse ma­tar um nobre inglês recém-desembarcado, a não ser pelo mo­tivo mencionado na coluna social do jornal, de que o nobre está cortejando a filha do milionário. Nosso amigo de cabelo tosado, apesar de suas roupas mal-ajustadas, deve ser um aspirante a pretendente.

Sei — continuou — que a idéia lhe parecerá chocan­te, cômica mesmo, mas é porque o senhor é inglês. Para o senhor é como se dissesse que a filha do arcebispo de Canterbury irá casar-se na igreja de São Jorge, em Hanover Square, com um varredor de rua com alvará de livramento condicional. O senhor não faz justiça ao poder de aspirar e de subir de nossos cidadãos mais notáveis. Vê um senhor de boa aparên­cia, de cabelos grisalhos, num terno a rigor com uma espécie de autoridade em torno dele, sabe que é um pilar do Estado e pensa que ele tem um passado. Engana-se. Não imagina que há, relativamente, poucos anos, poderia ter vivido numa favela ou, quem sabe, numa prisão. Os senhores não toleram nossa mobilidade e ascensão nacional. Muitos de nossos mais influentes cidadãos não só subiram recentemente na escala so­cial, mas relativamente tarde na vida. A filha de Todd tinha dezoito anos completos quando seu pai fez sua primeira fortuna, portanto não é de admirar que tenha algum pretendente na classe inferior; ou mesmo que saia com ele, como acho que deve estar fazendo, a julgar pela estória da lanterna. Se assim for, a mão que segurava a arma. Este caso, padre, dará muito que falar.

Bem — disse o padre pacientemente —, o que fez em seguida?

Aposto que vai ficar surpreso — respondeu Greywood —, pois sei que não concorda com a marcha da ciência nesses assuntos. Gozo aqui de bastante liberdade e talvez a use um pouco além do que me é dado. Achei que era uma excelente oportunidade para testar a Máquina Psicométrica de que já lhe falei. Ora, na minha opinião, aquela máquina não pode mentir.

Nenhuma máquina pode mentir — disse padre Brown

nem dizer a verdade.

— Espere para ver — continuou Usher categoricamente.

Mandei o moço assentar-se com suas roupas mal-ajambradas uma cadeira confortável e simplesmente comecei a escre­ver palavras num quadro negro. A máquina apenas registrava as variações de seu pulso e eu observava suas atitudes. O ne­gócio é introduzir alguma palavra com outra bastante diferen­te, embora numa lista em que ocorra com muita naturalidade. Assim escrevi "garça", "águia" e "coruja", mas quando escrevi "falcon" ele se agitou tremendamente; e quando comecei a fazer um "r" no fim da palavra, a máquina só faltou saltar. Quem mais, nesta república, tem qualquer razão para excitar-se ao nome de um inglês recém-chegado como Falconroy, a não ser o homem que o matou? Não é isso prova melhor do que a tagarelice de testemunhas — a prova de uma máquina digna de confiança?

O senhor sempre se esquece — observou seu compa­nheiro — de que a máquina de confiança tem sempre de ser operada por uma máquina que não é digna de confiança.

Como? Que quer dizer com isso? — perguntou o detetive.

Refiro-me ao homem — respondeu padre Brown —, a máquina menos digna de confiança que conheço. Não quero ser rude e espero que não considerará o homem em geral, a que me refiro, como sendo uma descrição ofensiva ou imprecisa do senhor mesmo. O senhor diz que observou suas ati­tudes; mas como sabe que observou bem? Diz que as palavras vieram de maneira natural; como sabe que vieram de maneira natural? Como sabe, se chegou a tanto, que não observou sua própria atitude? Quem pode provar que o senhor mesmo não estivesse tremendamente agitado? Não havia uma máqui­na ligada ao seu pulso.

Afirmo-lhe — exclamou o americano na mais extrema excitação — que eu estava frio como gelo.

Os criminosos também podem ser tão frios como gelo — disse Brown com um sorriso. — E quase tão frios como o senhor.

Bem, este não era — replicou Usher. E jogando os recortes para um lado desabafou: — Como o senhor me cansa!

Desculpe. Estava apenas observando o que parece uma possibilidade razoável. Se pôde ver pela atitude dele que a palavra que poderia enforcá-lo tinha chegado, porque ele não poderia ver por sua atitude que a palavra que poderia levá-lo à forca estava chegando? Eu pediria mais do que pa­lavras antes de enforcar quem quer que seja.

Usher deu um soco na mesa e, levantando-se numa espé­cie de triunfo irado, exclamou:

E isto — exclamou — é exatamente o que lhe vou dar. Experimentei primeiro a máquina só para testar e a má­quina, meu padre, tinha razão.

Fez uma pausa e retomou a palavra com menos excitação:

Eu gostaria antes de insistir, se chegar a tanto, que até aqui tinha muito pouco a fazer a não ser experimento cien­tífico. Realmente, nada havia contra o homem. Suas roupas estavam mal-ajustadas, como disse, mas eram melhores, de qualquer modo, do que as roupas da classe inferior à qual ele evidentemente pertencia. Além disso, fora as marcas de seus mergulhos através de campos arados ou de passagens através de cercas empoeiradas, o homem estava relativamente limpo. Isso poderia significar, naturalmente, que teria acabado de sair da prisão, embora me tenha lembrado mais a decência deses­perada de pobre relativamente respeitável. Seu comportamen­to, sou obrigado a confessar, se ajustava muito ao comporta­mento de pobres respeitáveis. Era calado e digno como eles; parecia ter uma grande dor, mas oculta, como eles. Professou total ignorância do crime e de toda a questão; nada demons­trou a não ser uma irritada impaciência por algo sensato que viesse tirá-lo de sua dificuldade sem sentido. Perguntou-me mais de uma vez se podia telefonar a um advogado que o ajudara, tempos atrás, numa questão comercial e em todo sen­tido agia do modo que se poderia esperar de uma pessoa ino­cente. Nada havia contra ele, a não ser aquele pequeno pon­teiro no mostrador que indicava a mudança de suas pulsações.

Então, padre — prosseguiu —, a máquina estava sen­do testada, a máquina estava certa. No momento em que saí com ele da sala para o saguão onde esperava toda sorte de pessoas para serem interrogadas, acho que ele já tinha mais ou menos ordenado sua mente para esclarecer as coisas por algo semelhante a uma confissão. Voltou-se para mim e co­meçou a dizer, em voz baixa, "não posso agüentar mais isso. O senhor precisa saber tudo a meu respeito"... Naquele mes­mo instante, uma dentre as pobres mulheres, que estavam assentadas no banco comprido, pondo-se de pé, gritou, com o dedo apontado para ele. Nunca ouvi na minha vida nada mais diabolicamente distinto. Seu dedo descarnado parecia visá-lo como uma zarabatana. Embora a palavra fosse um mero uivo, cada sílaba era tão clara como uma pancada nítida de um re­lógio. "Drugger Davis!", gritou ela, "apanharam Drugger Davis!" Entre aquelas mulheres infelizes, na sua maioria ladras e vadias, vinte rostos se voltaram, espiando com ódio e satisfação. Mesmo se eu não tivesse ouvido as palavras, teria sabido pelo espanto estampado em suas faces que o até então chamado Oscar Rian tinha ouvido seu verdadeiro nome. Mas não sou tão ignorante, o senhor pode ficar surpreso em ouvir. Drugger Davis era um dos criminosos mais terríveis e depravados que já desafiaram nossa polícia. É certo que havia cometido assas­sinato mais de uma vez muito antes de sua última façanha com a sentinela. Mas nunca foi dado a isso; bastante curioso, por­que o fez usando método idêntico aos que sempre empregou em crimes mais brandos, ou mais medíocres, aos quais se en­tregara tantas vezes. Era um bruto simpático, de boa aparên­cia, como ainda o é, até certo ponto. Costumava sair com garçonetes ou balconistas, para lhes tomar o dinheiro. Muitas vezes, entretanto, ia bem mais longe e eram encontradas dro­gadas com cigarros ou chocolates e sem seus pertences. De­pois, veio o caso em que a moça foi encontrada morta; mas a premeditação do crime não foi suficientemente comprovada e, o que era mais prático ainda, o criminoso não pode ser encontrado. Correu o boato de seu reaparecimento em alguma parte, desta vez com uma personalidade oposta, emprestando dinheiro em vez de tomá-lo emprestado; mas, ainda para essas pobres viúvas que caíam facilmente sob seu fascínio, e com o mesmo mau resultado de sempre. Bem, aí está seu homem inocente e aí sua inocente vida pregressa. Depois disso, quatro criminosos e três sentinelas o identificaram, confirman­do a estória.

E agora que tem a dizer da minha pobre máquina? Ela não o pegou?

Ou prefere dizer que fui eu e a mulher que o pegamos?

O que eu digo, — falou o padre Brown, levantando-se e se sacudindo pesadamente —, é que o senhor o salvou da cadeira elétrica. Não acho que possam matar Drugger Davis por aquela antiga e vaga estória de envenenamento. Quanto ao preso que matou o guarda, pareceu-me evidente que o se­nhor não o apanhou. De qualquer maneira, Davis é inocente desse crime.

Por que diz isso? Por que seria inocente daquele crime?

Valha-nos Deus! — exclamou o pequeno padre num de seus raros momentos de vivacidade. — Porque ele é cul­pado dos outros crimes! Eu não sei de que vocês ame­ricanos são feitos. Parecem acreditar que todos os pecados vêm juntos numa sacola. Falam sempre como se um avarento na segunda-feira fosse sempre perdulário na terça. O senhor me diz que este homem passou aqui semanas e meses enga­nando mulheres necessitadas de pequenas somas de dinheiro; que na melhor das hipóteses usava drogas e, na pior, veneno; que voltou depois a aparecer como a mais baixa espécie de emprestador de dinheiro e que enganava a maioria das pessoas com o mesmo estilo paciente e pacífico. Concedamos, a título de argumento, que tenha feito tudo isso. Se assim for, eu lhe direi o que ele não fez. Não escalou um muro guarnecido de pontas para atacar um guarda armado. Não escreveu na pare­de com sua própria mão, para dizer que o fizera. Não parou para declarar que sua justificativa foi a autodefesa. Não ex­plicou que não teve qualquer briga com o pobre guarda. Não citou a casa do homem rico para onde estaria indo com a arma. Não escreveu suas próprias iniciais com o sangue de um homem. Meu Deus! Não vê que o caráter é sob todos os aspectos diferente? Com a breca, o senhor parece completa­mente diferente de mim. Seria de pensar que nunca teve um vício próprio.

O atônito americano já ia abrindo a boca para protestar quando bateram na porta de seu gabinete de uma maneira inu­sitada e com uma sem-cerimônia a que não estava habituado.

A porta escancarou-se. Um momento antes, Greywood estava chegando à conclusão de que padre Brown pudesse talvez ser louco. Um momento depois começava a pensar que ele próprio estaria enlouquecendo. Irrompeu no seu gabinete um homem com roupas completamente sujas, um chapéu amarrotado manchado de óleo, ainda enfiado na cabeça, um sombreado esverdeado acima de um dos olhos, que faiscavam como os olhos de um tigre. O resto do rosto estava quase encoberto, mascarado com uma barba fechada e costeletas através das quais o nariz quase não aparecia, e ainda mais escondido por um cachecol ou lenço vermelho-claro. Mr. Usher se gabava de ter visto a maioria dos espécimes mais feios do Estado, mas achou que nunca vira um bugio tão mal-vestido como aquele. Mas, sobretudo, jamais em toda sua plácida e científica existência, um homem como aquele se atrevera a falar-lhe primeiro.

Olha aqui, meu velho Usher — gritou o indivíduo de lenço vermelho —, começo a me cansar. Acabe com este jogo de esconder. Não sou nenhum tolo. Solte meu hóspede e acabarei com minha festa de fantasia. Mantenha-o aqui por mais um instante e passará por um vexame. Asseguro-lhe que não sou um sujeito sem prestígio.

O eminente Usher olhava o monstro a berrar com um espanto que calara todos os outros sentimentos. O simples choque de seus olhos tornara seus ouvidos quase insensíveis. Finalmente tocou uma campainha com um gesto de violência. Enquanto a campainha soava ainda forte, a voz do padre Brown fez-se ouvir baixa, mas distinta:

Tenho uma sugestão a fazer, mas parece um tanto confusa. Não conheço este cavalheiro, mas... mas acho que o conheço. Ora, o senhor o conhece... o senhor o conhece muito bem, mas não sabe quem é ele, e... é claro. Parece paradoxal, sei bem.

Garanto que o mundo se está acabando — disse Usher e deixou-se cair na sua cadeira.

Agora, escute aqui — vociferou o estranho, batendo na mesa, mas falando com uma voz que era tanto mais miste­riosa porque relativamente suave e racional; razoável embora ainda retumbante. — Não quero enganá-lo. Quero...

Que diabo é você? — gritou Usher, levantando-se subitamente.

Acho que o cavalheiro se chama Todd — disse o padre.

Em seguida, apanhou o pequeno recorte de jornal.

Acho que não lê bem as colunas sociais — continuou, passando a lê-la em voz monótona: "fala-se de uma lin­da paródia dos costumes e maneiras da outra extremidade da escala social". — Está-se realizando esta noite na Lagoa do Peregrino um grande jantar de favelados; um homem, um dos hóspedes, desapareceu. Mr. Ireton Todd como bom anfitrião o seguiu até aqui, sem tirar sua fantasia.

A que homem o senhor se refere?

Refiro-me ao homem que vestia roupas comicamente mal-ajustadas, que o senhor viu correndo pelo campo arado. Não seria melhor ir interrogá-lo? Ele estará impaciente para voltar à sua champanha, de onde saiu com tanta pressa, quan­do o preso apareceu com arma.

Acha seriamente que... — murmurou o diretor.

Olhe, Mr. Usher — disse padre Brown calmamente —, o senhor disse que a máquina não podia errar e de certo modo não errou. Mas a outra máquina errou, a máquina que a pôs em movimento. O senhor achou que o homem maltra­pilho estremeceu ao ouvir o nome de Lorde Falconroy, por­que era o assassino de Lorde Falconroy. Estremeceu, sim, mas porque é o próprio Lorde Falconroy.

Então por que diabo não disse que era? — pergun­tou Usher com os olhos arregalados.

Achou que seu estado e seu recente pânico eram coi­sas pouco nobres — respondeu o padre — de modo que pre­feriu esconder sua identidade. Mas já lhe ia dizer tudo, quan­do... — Padre Brown abaixou a vista olhando para seus sapatos. — ...quando uma mulher descobriu outro nome para ele.

Mas o senhor não é louco de dizer — disse Greywood Usher, muito pálido — que Lorde Falconroy era Drugger Davis.

O padre olhou para ele seriamente, mas com um rosto desconcertante e indecifrável.

Não estou dizendo nada disso. Deixo o resto com o senhor. Seu recorte social diz que o título lhe foi recentemen­te restaurado; mas esses jornais não merecem muita confian­ça. Diz que viveu nos Estados Unidos na sua juventude; mas a estória parece bastante estranha. Davis e Falconroy são dois covardes, mas de tipos completamente diferentes. Não arriscaria um centavo sobre minha própria opinião a respeito. Mas acho — e continuou em voz baixa e refletidamente —, acho que vocês americanos são excessivamente modestos. Idealizam a aristocracia inglesa... a ponto de supor que ela seja aristo­crática. Vêem um inglês de boa aparência, vestido de traje a rigor; sabem que pertence à Câmara dos Lordes e imagina que tem um nobre passado. Vocês não admitem nossa mobi­lidade e ascensão sociais. Muitos dos nossos nobres mais im­portantes são de passado recente, mas...

Oh, pare com isto! — exclamou Greywood Usher, impaciente diante da expressão irônica do padre Brown.

Pare de falar com esse lunático — gritou Todd brutalmente. — Leve-me a meu amigo.

Na manhã seguinte, padre Brown apareceu com a mes­ma expressão reservada, levando outro recorte de crônica social.

Tenho a impressão que se descuidou de sua impren­sa social, — disse —, mas este recorte talvez lhe interesse.

Usher leu o título: "Foliões de Todd Perdidos: Alegre Incidente perto da Lagoa do Peregrino". E o parágrafo continuava: "Uma cômica ocorrência teve lugar na noite passada do lado de fora da Garagem de Wilkinson. Um policial de serviço teve sua atenção despertada para um homem vestido com roupas de presidiário que se dirigia com considerável frieza para o volante de um lindo e moderno Panhard; estava acom­panhado de uma jovem envolta num manto rasgado. À inter­venção do policial, a jovem deixou cair o manto tendo sido reconhecida como a filha do milionário Todd, que acabava de sair do extravagante Jantar dos Favelados na Lagoa, onde todos os hóspedes de escol vestiam semelhante desabillé. Ela e o cavalheiro que exibia o uniforme de presidiário estavam indo para o costumeiro passeio de automóvel".

Sob o recorte social, Mr. Usher encontrou uma tira de outro jornal em última edição, com a manchete: "Surpreen­dente Fuga da Filha de um Milionário com um Presidiário. Aproveitaram-se de um jantar de Fantasia. Agora Presos em...

Mr. Greenwood Usher levantou a vista, mas padre Brown já se tinha retirado.

 

                       A CABEÇA DE CÉSAR

 

Existe em alguma parte de Brompton ou Kensington uma interminável avenida de casas altas, ricas, mas em grande parte vazias, que mais parece uma rua de túmulos. Os próprios degraus que conduzem às sombrias portas de entrada das casas parecem tão íngremes como os lados de uma pirâmide; fazia medo bater nessas portas, que bem poderiam ser abertas por uma múmia. Mas o aspecto ainda mais deprimente da fachada sombria é sua extensão telescópica e sua monótona continui­dade. O estranho que passa por ela começa a ter a impressão de que nunca chegará a um fim ou a uma esquina. Mas há uma única exceção, muito pequena, que é quase saudada com um grito pelo forasteiro. É uma espécie de cocheira entre duas das grandes mansões, uma simples fenda como uma greta de porta em comparação com a rua, mas bastante larga para abrigar um pequenino bar ou restaurante. Há algo de festivo na sua própria sujeira e algo de livre e estranho na sua pró­pria insignificância. Aos pés daqueles gigantes de pedra cinza parecia uma casinha de anões iluminada.

Quem passasse por ali numa linda tarde de outono, pode­ria ter visto uma mão afastar a meia-veneziana vermelha que (juntamente com grandes letreiros brancos) escondia o interior da casa, e um rosto espiando para fora, não muito dife­rente do rosto inocente de um duende. Era, na realidade, o ros­to de um duende com o nome humano e inofensivo de Brown ex-pároco de Cobhole em Essex, que, agora trabalhava em Londres. Seu amigo Flambeau, detetive semi-oficial, estava sentado do outro lado da mesa, de frente para ele, fazendo suas últimas anotações de um caso que acabara de resolver no bairro. Estavam sentados a uma pequena mesa, perto da janela, quando o padre puxou a cortina e olhou para fora. Esperou até que um estranho, que caminhava pela rua, tives­se passado pela janela, para deixar a cortina voltar a seu lu­gar. Em seguida, seus olhos redondos voltaram-se para o gran­de letreiro branco da janela abaixo de sua cabeça e depois para a mesa seguinte, à qual estavam sentados apenas um operário, que comia queijo e bebia cerveja, e uma jovem de cabelos ruivos, a tomar um copo de leite. Tendo seu amigo fechado a caderneta de anotações, disse-lhe em voz baixa:

Se dispuser de dez minutos, gostaria que seguisse aquele sujeito de nariz postiço.

Flambeau levantou a vista, surpreso. A moça de cabelos ruivos também levantou a vista, com uma expressão mais forte que de simples espanto. Vestia com simplicidade e até com certo desmazelo um vestido de aniagem marrom; mas tinha um ar distinto e a um olhar mais atento podia-se dizer que era altaneira e arrogante.

Sujeito de nariz postiço? — repetiu Flambeau. — Quem é ele?

Não tenho a menor idéia — respondeu o padre Brown. — Gostaria que descobrisse. É um favor que lhe peço. Seguiu por ali...

E, apontando seu polegar por cima do ombro, num de seus gestos característicos, acrescentou:

E não pode ter andado mais que uns cem metros. Só quero saber o endereço.

Flambeau encarou seu amigo por algum tempo, com uma expressão entre perplexa e divertida. A seguir, levantou-se da mesa, espremeu seu imenso corpo pela pequena porta da estalagem de anos e saiu ao crepúsculo.

O padre tirou um livrinho do bolso e começou a lê-lo atentamente; não tomou conhecimento do fato de a jovem de cabelos ruivos deixar sua própria mesa e se assentar à sua frente, até que ela finalmente, inclinando-se, perguntou-lhe numa voz firme e baixa:

Por que disse aquilo? Como sabe que é postiço?

O padre Brown levantou as sobrancelhas cerradas, que tremiam de embaraço. Então seus olhos reticentes dirigiram-se novamente para o letreiro branco no vidro da janela de frente da estalagem. Os olhos da jovem seguiram os dele e fixaram- se ali também, mas em pura perplexidade.

Não — disse o padre Brown respondendo aos pensa­mentos dela. — Não se lê "Sela", como nos Salmos; lê-se "Ales"[2].

E daí? — perguntou a moça com os olhos arregala­dos. Que importância tem isso?

Seus olhos correram pelo vestido de estopa da moça, cujos punhos eram de um tecido leve de padrão artístico, o suficiente para distingui-lo de uma roupa de trabalho de uma mulher comum e torná-lo mais semelhante à roupa de trabalho de uma jovem estudante de arte. O padre parecia ter en­contrado bastante matéria para seus devaneios. Sua resposta, porém, foi muito lenta e hesitante:

Veja, minha senhora, do lado de fora o lugar pare­ce... sabe, um lugar perfeitamente decente... mas pessoas como a senhora... geralmente não pensam assim. Nunca en­tram nesses lugares por escolha, a não ser...

Continue — pediu ela.

A não ser algumas infelizes que não entram para beber leite.

O senhor é a pessoa mais singular que já vi. Que pretende com tudo isso?

Não perturbá-la — respondeu com delicadeza. — Só me armar com bastante conhecimento para ajudá-la, se voluntariamente pedir minha ajuda.

Mas por que precisaria de sua ajuda?

O padre continuou seu monólogo sonhador!

A senhora não pode ter vindo aqui para ver protegées, amigas humildes, ou coisa semelhante, pois se assim fosse teria ficado na sala de recepção; não pode ter entrado aqui porque estivesse doente, porque teria falado com a mulher da casa, que é evidentemente respeitável... além disso, a senhora não parece de modo algum doente mas só infeliz.. . Esta rua é uma rua original, sem curvas; e as casas de ambos os lados estão fechadas... Só posso imaginar que a senhora teria avistado alguém, com quem não queria encontrar-se, e achou que este bar fosse o único abrigo neste deserto de pedra... Acho que não abusei da liberdade de um estranho de espiar o único homem que passou imediatamente depois... Como achei que ele parecia o vilão... e a senhora a heroína... prontifiquei-me a ajudar se ele a aborrecesse. Isso é tudo. Quanto ao meu amigo, ele voltará logo. E, certamente, não poderá descobrir nada caminhando por uma rua como esta... Não achei que pudesse.

Mas, então, por que o mandou? — exclamou, inclinando-se para o padre, com a mais viva curiosidade.

A jovem tinha uma expressão orgulhosa e impetuosa, que se compunha com sua tez corada e seu nariz romano, como o de Maria Antonieta.

O padre a encarou pela primeira vez e disse:

Porque esperava que viesse falar comigo.

Ela tornou a fixar nele seu olhar durante algum tempo, com o rosto inflamado, em que se refletia uma sombra ver­melha de raiva; em seguida, sua fisionomia se tornou mais amena o humor irrompeu de seus olhos e dos cantos de sua boca e ela disse:

Bem, se está tão interessado em minha conversação, talvez responda a minha pergunta. — Depois de uma pausa, acrescentou: — Tive a honra de lhe perguntar por que achou que o nariz do homem era postiço.

A cera sempre se suja um pouco nesta época — res­pondeu o padre Brown com toda simplicidade.

Mas é um nariz tão torto — objetou a moça de ca­belo ruivo.

O padre sorriu desta vez.

Não é a espécie de nariz que se usa por mera vaidade — admitiu. — Acho que aquele homem o usa por que seu verdadeiro nariz é muito mais bonito.

Mas por quê? — insistiu a moça.

Como é mesmo aquele versinho infantil? — pergun­tou o padre Brown distraidamente. — Era uma vez um ho­mem torto, que tinha um sorriso torto... que seguiu um ca­minho muito torto... no rumo de seu nariz.

Por quê? o que foi que ele fez? — insistiu a moça um tanto vacilante.

Não quero forçar sua confidência — disse o padre calmamente. — Mas acho que a senhora poderia contar-me mais sobre isso do que eu.

A moça levantou-se de um salto e ficou parada, mas com os punhos cerrados, como se fosse retirar-se precipitadamente; em seguida, suas mãos se afrouxaram lentamente e ela se assentou de novo.

O senhor é o homem mais misterioso que já vi — disse desesperadamente. — Mas acho que deve haver um co­ração em seu mistério.

Em geral, o que mais tememos — disse-lhe o padre em voz baixa — é um labirinto sem nenhum centro. É por isso que o ateísmo é apenas um pesadelo.

Eu lhe contarei tudo — murmurou-lhe a moça ruiva obstinadamente — menos a razão por que lhe vou contar. Isso eu não sei.

Alisou a toalha cerzida da mesa e continuou:

O senhor dá a impressão de saber tanto o que é como o que não é esnobismo; quando digo que sou de boa família, o senhor compreenderá que isso faz parte necessária da estó­ria; meu perigo principal está nas idéias retrógradas de meu irmão, na noblesse oblige e tudo mais. Bem, chamo-me Christabel Carstairs e meu pai era o Coronel Carstairs de quem provavelmente já ouviu falar, que fez a famosa Coleção Cars­tairs de moedas romanas. Jamais poderei descrever meu pai para o senhor. O mínimo que posso dizer é que ele mesmo já se parecia com uma moeda romana. Era simpático, autêntico, valioso, metálico e antiquado. Orgulhava-se mais de sua coleção do que mesmo de seu brasão. Isso diz tudo. Sua ex­traordinária personalidade revelou-se ao máximo em seu tes­tamento. Tinha dois filhos e uma filha. Desentendeu-se com um filho, meu irmão Giles, e o mandou para a Austrália com uma pequena mesada. Em seguida, fez um testamento deixan­do a Coleção Carstairs, mas com uma dotação menor, para meu irmão Arthur. Considerou isto como uma recompensa, como a mais alta honra que podia oferecer, em reconhecimen­to pela lealdade e retidão de Arthur e pelas distinções que já conquistara na Matemática e na Economia em Cambridge. Deixou-me praticamente toda sua grande fortuna e estou certa de que o fez com um certo desprezo.

Após uma pequena pausa, ele continuou:

Arthur, diria o senhor, deve queixar-se disso; mas Arthur é uma duplicata de meu pai. Embora tivesse algumas divergências com meu pai na primeira juventude, assim que tomou posse da coleção tornou-se semelhante a um sacerdote pagão dedicado a um templo. Misturava essas moedas romanas com a honra da família Carstairs do mesmo modo idolátrico e obstinado de seu pai. Agia como se o dinheiro romano devesse ser guardado por todas as virtudes romanas. Não ti­nha divertimentos; não gastava nada consigo mesmo; vivia para a Coleção. Muitas vezes não se preocupava nem mesmo em se vestir para suas refeições simples; mas se metia entre pacotes de papel marrom amarrados, nos quais ninguém tinha o direito de tocar, enfiado num velho chambre marrom. Com sua borla e seu cordão e seu rosto pálido, fino e refinado, pa­recia um monge asceta. De vez em quando, porém, vestia-se como um autentico cavalheiro, mas só quando ia a Londres vender ou comprar, para ampliar a Coleção Carstairs.

Ora — continuou a moça —, se o senhor entende os jovens, não se surpreenderá se eu lhe disser que comecei a ficar num estado de depressão mental com tudo isso, estado em que se começa por dizer que todos os antigos romanos eram os tais em seu sistema de vida. Não sou como meu irmão Arthur; não posso deixar de apreciar o prazer. Tenho um bocado de romance e tolices em mim pelo lado de meu cabelo ruivo, do outro lado da família. O pobre Giles era a mesma coisa e acho que a atmosfera de moedas poderia explicar e desculpar seu caso embora ele, realmente, cometesse um erro e quase tivesse ido parar na prisão. Mas não se comportou pior do que eu, como o senhor verá. Chego agora à parte tola da estória. Acho que um homem tão inteligente como o senhor pode imaginar a espécie de coisa que começaria por ali­viar a monotonia de uma jovem sem governo na idade de de­zessete anos e nessa condição. Mas estou tão assustada com coisas mais sombrias, que quase não posso ler meu próprio sentimento e não sei se o desprezo agora como um flerte ou o suporto com o coração partido. Morávamos então numa pequena casa à beira-mar em South Wales. Um capitão da ma­rinha aposentado, que morava a poucos metros de nossa casa, tinha um filho cerca de cinco anos mais velho do que eu, que fora amigo de Giles antes de ele ir para a Austrália. Seu nome não afeta minha narração, mas digo-lhe que se chamava Phillip Hawker, pois pretendo contar-lhe tudo. Costumávamos ir juntos apanhar camarões e pensávamos e dizíamos que nos amávamos; achava que estava apaixonada por ele. Se lhe dis­ser que tinha um cabelo anelado, castanho-bronzeado, e uma espécie de cara de falcão, bronzeada também pelo sol, não é por causa dele, asseguro-lhe, mas por causa da estória; pois foi a causa de uma coincidência muito curiosa.

— Uma tarde de verão — prosseguiu Christahel — em que prometera ir pescar camarões com Phillip, esperava impacientemente na sala de estar, olhando Arthur a arrumar al­guns dos pacotes de moedas que acabara de comprar e que ia levando lentamente, um ou dois de cada vez, para o seu próprio gabinete, ou museu sombrio, que ficava no fundo da casa. Assim que ouvi a pesada porta fechar-se atrás dele, fui apa­nhar minha rede de pescar camarões e meu gorro de borla e já ia sair, quando verifiquei que meu irmão deixara na sala uma moeda reluzente sobre o banco comprido junto à janela. Era uma moeda de bronze, e a cor, combinada com a exata curva do nariz romano, e um quê na própria base do pescoço comprido e vigoroso, tornavam a cabeça de César, nela gravada, quase o retrato exato de Phillip Hawker. Então, me lem­brei de Giles falando a Phillip de uma moeda que se parecia com ele, e Phillip desejoso de possuí-la. Talvez o senhor possa imaginar os pensamentos absurdos, loucos que passaram por minha cabeça. Senti-me como se tivesse recebido um presente do reino das fadas. Pareceu-me que se pudesse apanhá-la e levá-la correndo para Phillip, como uma espécie exótica de anel de noivado, ela nos ligaria para sempre um ao outro; pensei em milhões de coisas como esta de uma vez. Mas senti dentro de mim, como se dentro de um poço profundo, a tre­menda e terrível idéia do que estava fazendo; sobretudo, o pensamento insuportável, como se estivesse tocando em ferro em brasa, do que Arthur pensaria disso. Uma Carstairs ladra e uma ladra do tesouro Carstairs! Acredito que meu irmão seria capaz de me ver queimada como uma bruxa por tal coi­sa. Mas, então, o próprio pensamento dessa crueldade fanática inflamou meu velho ódio de seu exagerado gosto por coisas antigas e minha ânsia de juventude e liberdade que acenava para mim do mar. Lá fora estavam o sol forte e o vento; a cabeça loura de uma giesta roçava contra o vidro da janela do jardim. Pensei naquele ouro vivo e crescente que me chamava de todos os cantos do mundo.. . e, depois, no ouro morto e sem vida e no bronze e no latão cada vez mais empoeirados de meu irmão com o passar da vida. A Natureza e a Coleção Carstairs, finalmente, se confrontaram. Mas a Natureza é mais velha do que a Coleção Carstairs. Quando saí para a rua na direção do mar levando a moeda apertada na mão, senti nas minhas costas todo o Império Romano assim como o "pedigree" dos Carstairs. Não era apenas o velho leão de prata que rugia em meus ouvidos, mas todas as águias dos Césares pareciam bater asas e gritarem em minha perseguição. E, apesar disso, meu coração subia como a pipa de um garoto, até que atra­vessei as colinas cheias de areia seca para as areias planas e úmidas onde Phillip já estava enfiado no baixio de águas lu­minosas, a uns cem metros da praia. Era um ocaso vermelho e grandioso e a longa extensão de águas rasas, que ia a pouco acima do tornozelo por quase um quilômetro de extensão, pa­recia um lago de chama vermelha. Só quando tirei meus sapatos e minhas meias e corri para onde ele estava, que era bem distante da terra seca, foi que me virei e olhei em volta. Estávamos quase sozinhos num círculo de água do mar e de terra úmida. E lhe dei a cabeça de César.

Parou por um momento antes de continuar:

— No mesmo instante, tive um acesso de fantasia: cis­mei que um homem distante lá nos montes de areia olhava atentamente para mim. Pensei que poderia ser um simples sobressalto de nervos descontrolados, pois o homem era apenas um ponto escuro a distância e eu mal podia ver que estava em pé, imóvel e atento, com a cabeça virada um pouco para um lado. Não havia no mundo qualquer evidência lógica de que estivesse olhando para mim. Poderia estar olhando para um navio, ou para o pôr-do-sol, ou para as gaivotas, ou para qual­quer pessoa que estivesse por ali na praia entre nós. Não obstante, de onde quer que viesse meu sobressalto, era profé­tico pois, como observei, começou a caminhar rapidamente na nossa direção, e em linha reta, através da faixa de areia úmida. Quando se aproximou mais, vi que era moreno e barbudo e que seus olhos estavam escondidos por óculos escuros. Ves­tia-se modestamente. Usava um terno preto respeitável, uma antiga cartola preta na cabeça e sapatos também pretos. Ape­sar de inteiramente vestido avançava direto na direção do mar sem a mínima hesitação e se aproximava de mim com a fir­meza de uma bala projetada.

Padre Brown não a interrompeu quando ela fez uma ligeira pausa, antes de continuar:

— Não lhe posso descrever a sensação de monstruosida­de e de estupefação que experimentei quando ele rompeu silenciosamente a barreira entre a terra e a água. Era como se se tivesse lançado diretamente de um penhasco e caminhasse ainda tranqüilamente no ar. Era como se uma casa tivesse voado para o ar ou a cabeça de uma pessoa tivesse caído. Mal molhava seus sapatos; parecia um demônio desrespeitando as leis da Natureza. Se tivesse hesitado um instante à beira da água não teria sido nada. Como estava, parecia olhar tanto só para mim, que não via o oceano. Phillip estava apenas a alguns metros, de costas para mim, curvado sobre sua rede. O estranho aproximou-se de modo que ficou apenas a dois metros de mim, com a água nas canelas. Em seguida, disse, com uma articulação claramente modulada e um tanto afetada: "Ser-lhe-ia incômodo contribuir com uma moeda com al­guma inscrição diferente?". Com uma exceção, nada havia nele definitivamente de anormal. Seus óculos escuros não eram realmente opacos, mas de um azul bastante comum. Por trás deles, seus olhos me encaravam firmemente. Sua barba escura não era realmente muito comprida ou cheia, mas dava essa impressão, porque começava muito alta no seu rosto, logo abaixo dos malares. Sua tez não era nem amarela nem pálida, pelo contrário, extraordinariamente clara e jovial; não obstan­te, dava uma impressão de cera branca e rosa que, de certo modo, não sei por que, aumentava o horror. A única coisa estranha que pude fixar foi seu nariz, virado ligeiramente na ponta para um lado, como, se quando ainda em formação tivesse recebido uma pancada de lado com um martelo de brinquedo. A coisa não chegava a ser uma deformidade, no entanto não lhe posso dizer o terrível pesadelo que passei.

Parado ali na água ensombreada pelo sol do poente, abalou- me como se fosse um diabólico monstro marinho que acabasse de emergir rosnando de um mar de sangue. Não sei por que um toque no nariz afetaria tanto minha imaginação. Tive a impressão de que ele seria capaz de mover seu nariz como um dedo. Era como se naquele momento o tivesse feito. "Uma pequena ajuda", continuou ele, com o mesmo tom estranho e pedante, "que possa satisfazer à necessidade de me comuni­car com a família".

Então ocorreu-me a idéia — continuou Christahel, estudando as reações de Padre Brown — de que estava sendo chantageada pelo furto da moeda de bronze; e todos os meus temores e dúvidas supersticiosas desapareceram diante de uma questão prática e poderosa. Como ele poderia ter descoberto? Eu furtara o objeto subitamente e movida por um impulso; estava sozinha, pois sempre me asseguro de estar livre de vi­gilância quando fujo para encontrar-me com Phillip. Não ti­nha sido, ao que me parecia, seguida na rua; e se o tivesse, nem os raios-X poderiam ter localizado a moeda fechada na minha mão fechada. O homem que estava em pé no monte de areia não poderia ter visto o que dei a Phillip.

"Phillip", gritei desesperada, "pergunte a este homem o que é que ele quer".

Quando Phillip levantou, finalmente, a cabeça da rede que estava remendando, pareceu enrubescido como se estivesse mal-humorado ou envergonhado; mas pode ter sido apenas conseqüência de sua posição encurvada ou da luz avermelhada da tarde; talvez tivesse sido apenas outra das fantasias mór­bidas que pareciam girar em torno de mim. Ele simplesmente disse em tom ríspido para o homem: "Cai fora daqui". E, fazendo-me sinal para o seguir, saiu andando na direção da praia sem lhe prestar mais atenção. Subiu num quebra-mar de pedra que saía da base dos montes de areia e tomou a direção de casa, talvez pensando que nosso seguidor achasse menos cômodo caminhar por aquelas pedras rústicas, verdes e escor­regadias com as algas marinhas, do que nós, que éramos jo­vens e habituados a isso. Mas meu perseguidor caminhava tão requintadamente como conversava; e ainda me seguia, esco­lhendo seu caminho e escolhendo suas frases. Ouvia sua voz delicada e odiosa por cima de meus ombros, até que, quando subimos os montes de areia, a paciência de Phillip, que não era tão grande na maioria das vezes, pareceu esgotar-se. Vol­tou-se subitamente e disse: "Vai-te embora. Não posso con­versar contigo agora". E, quando o homem vacilou e abriu a boca, Phillip deu-lhe uma bofetada que o fez rolar pelo monte de areia. Eu o vi arrastando-se lá embaixo, coberto de areia.

Aquele golpe de certo modo me confortou, embora pudesse aumentar meu perigo — continuou a moça —, mas Phillip não demonstrou nada de seu costumeiro orgulho por sua proeza. Embora afetuoso como sempre, parecia, contudo, abatido. E antes que eu pudesse conversar com ele detalhadamente, separou-se de mim à entrada de sua casa, com duas observações que me pareceram bastante estranhas. Disse que, consideradas todas as coisas, eu devia repor a moeda na Co­leção; mas que ele próprio a conservaria "no momento". Em seguida, acrescentou, de modo tão repentino quanto irrelevan­te: "Sabe que Giles voltou da Austrália?"

A porta da taverna se abriu e a sombra gigantesca de Flambeau caiu sobre a mesa. Brown o apresentou à jovem com seu estilo negligente e persuasivo de falar, mencionando seu conhecimento e solidariedade nesses casos. Quase sem saber, a moça estava reiteirando sua estória para os dois ouvin­tes. Mas Flambeau, ao se inclinar e assentar-se, passou ao padre um pequeno pedaço de papel. Brown o recebeu com surpresa e leu: "Táxi para Wagga Wagga, 379, Mafeking Avenue, Putney". A moça continuou com sua narrativa:

Subi a rua até minha casa com a cabeça pegando fogo; as luzes não tinham ainda sido acesas, quando cheguei aos degraus da porta, onde encontrei uma garrafa de leite... e o homem de nariz torto. Pela garrafa de leite vi que os criados todos estavam fora; pois, Arthur, naturalmente, comprazendo-se em seu chambre marrom num gabinete pardo, não ouviria nem atenderia ao toque da campainha. Assim, não havia ninguém para ajudar-me em minha casa, a não ser meu irmão, cujo auxílio seria minha ruína. Desesperada, atirei dois "shillings" nas mãos daquela coisa horrível e lhe disse que vol­tasse dentro de poucos dias, quando teria pensado no assunto. Ele saiu emburrado, todavia mais timidamente do que espe­rava, talvez ainda abalado com a queda. Observei com re­pugnante prazer de vingança, a mancha de areia nas suas cos­tas quando se afastava. Ele virou a esquina seis casas adiante.

Entrei na minha casa, tomei um pouco de chá e procurei pensar no assunto. Assentei-me à janela da sala de estar olhando para o jardim, que ainda brilhava à última claridade do dia. Estava tão distraída, contemplando os canteiros, que tomei um susto imenso quando o vi aparecer lentamente. O homem ou monstro que eu tinha mandado embora estava em pé, imóvel, no meio do jardim. Oh, todos nós já lemos muito sobre fantas­mas de rostos pálidos na escuridão; mas aquilo era mais ter­rível do que qualquer coisa dessa espécie. Seu rosto não era pálido, mas tinha aquela fluorescência da cera própria de um boneco. Estava ali imóvel, com o rosto voltado para mim; e não lhe posso dizer como estava horrível entre as tulipas e todas aquelas flores altas, vistosas, que pareciam flores de estufa. Era como se tivéssemos levantado uma figura de cera, em vez de uma estátua, no meio de nosso jardim.

— Não obstante — continuou Christabel quase no mes­mo instante em que me viu à janela, voltou-se e saiu correndo para fora do jardim pelo portão dos fundos, que ficou aberto e pelo qual certamente tinha entrado. Aquela renovada timi­dez de sua parte era tão diferente da impudência com que se dirigira a mim no mar, que me senti um tanto aliviada. Imaginei, talvez que temesse enfrentar a Arthur mais do que eu pensava. De qualquer maneira, acalmei-me e jantei tranqüila­mente sozinha, pois era contra o regulamento perturbar Ar­thur quando estivesse arrumando o museu. Meus pensamen­tos, um pouco serenados, voaram para Phillip e se perderam, suponho. Sentada confortavelmente numa poltrona estava olhando vagamente para outra janela, sem cortina, mas na­quele momento escura como uma lousa na escuridão da noite. Parecia-me que havia algo semelhante a uma lesma do lado de fora da vidraça. Mas quando olhei mais atentamente, obser­vei que mais parecia o polegar de um homem comprimido contra a vidraça; tinha o aspecto arredondado de um polegar. O medo e a coragem tornaram a despertar juntos; corri para a janela e, em seguida, recuei com um grito estrangulado que qualquer homem teria ouvido, com exceção de Arthur. Pois não era um polegar, nem tampouco uma lesma. Era a ponta de um nariz torto, esmagada contra o vidro. Parecia branco com a pressão. O rosto e os olhos esbugalhados atrás dele, de início invisíveis, tornaram-se cinzentos como um fantasma.

Tranquei os ferrolhos instintivamente e corri para o meu quar­to fechando-me lá dentro. Mas, mesmo a caminho, quase podia jurar ter visto uma segunda janela escura com algo que se parecia com uma lesma. Talvez fosse melhor chamar Arthur, pensei. Se a coisa se estava arrastando em torno da casa como um gato, poderia ter propósitos piores, além da chantagem. Meu irmão poderia expulsar-me de casa e amaldiçoar-me para sempre, mas era um cavalheiro e me defenderia naquele mo­mento. Depois de pensar uns dez minutos, desci, bati na porta e entrei: para ter a última e a pior das visões.

A jovem, dessa vez, fez uma longa pausa não interrom­pida por Flambeau ou pelo padre Brown.

— A cadeira de meu irmão estava vazia; evidentemente estava fora. Mas o homem do nariz torto estava assentado esperando sua volta, com seu chapéu insolentemente ainda na cabeça e lendo um dos livros de meu irmão à luz do abajur de meu irmão. Sua fisionomia estava séria e preocupada, mas a ponta de seu nariz parecia ser ainda a parte mais móvel de seu rosto, como se tivesse sido virada da esquerda para a direita como a tromba de um elefante. Eu o havia considerado bastante peçonhento quando me perseguia e me observava; mas acho que sua inconsciência da minha presença era ainda mais horripilante. Acho que gritei alto e longamente; mas isso não vem ao caso. O que fiz em seguida não importa. Dei-lhe todo dinheiro que tinha, inclusive um bocado de apólices em que, embora minhas, eu não tinha o direito de tocar. Ele saiu, finalmente, com detestáveis e insinuantes expressões de pesar. Deixei-me cair sentada, sentindo-me arruinada em todos os sen­tidos. No entanto, fui salva naquela mesma noite por mero acidente. Arthur tinha saído subitamente para Londres, como sempre o fazia, para barganhas; voltou tarde, mas feliz, tendo quase conquistado um tesouro que seria um esplendor a mais mesmo para a Coleção da família. Estava tão radiante, que quase me animei a confessar o furto da peça menos importante; mas ele afastava todos os demais tópicos com seus projetos supermirabolantes. Como a barganha poderia ainda falhar a qualquer momento, insistia para que eu fizesse as malas ime­diatamente e subisse com ele para o apartamento que já tinha alugado em Fulham, para estar perto da loja de curiosidades em questão. Foi assim que fugi de meu inimigo quase na ca­lada daquela mesma noite... e de Phillip também.. Meu irmão passava a maior parte do tempo no Museu de South Kensington, de modo que para ocupar o meu tempo, contra­tei algumas aulas na Escola de Arte. Estava voltando dali esta noite, quando vi meu monstruoso perseguidor caminhando ao longo desta rua estreita e comprida e o resto é como disse esse cavalheiro. Só tenho uma coisa a acrescentar. Não mereço ser ajudada e não discuto minha punição, nem me queixo dela. É justa, tinha de acontecer. Mas me pergunto ainda, com a cabeça estourando, como pode ter acontecido. Fui punida por milagre? Como pôde alguém, a não ser Phillip e eu mesma, saber que lhe dei uma moedinha no meio do mar?

É um caso extraordinário. — admitiu Flambeau.

Nem tanto assim — observou o padre Brown, sombriamente. — Miss Carstairs, a senhora estará em casa se a procurarmos em Fulham daqui a uma hora e meia?

A moça olhou para ele e, em seguida, levantou-se cal­çando as luvas.

Sim — respondeu. — Estarei lá.

E, quase instantaneamente, deixou o bar.

Naquela noite o detetive e o padre ainda falavam sobre o assunto quando se aproximaram da casa em Fulham, um prédio de apartamentos estranhamente medíocre até mesmo para uma residência temporária da família Carstairs.

Naturalmente, o primeiro pensamento — disse Flam­beau. — Seria para o irmão australiano que esteve em difi­culdades, que voltou subitamente e deve ter amigos pouco recomendáveis. Mas não posso ver como pode entrar nisso, a menos...

A menos o quê? — perguntou seu amigo paciente­mente.

Flambeau abaixou a voz!

A menos que o namorado da moça esteja também metido no caso, sendo assim o vilão mais vil. Seu amigo aus­traliano sabia que Hawker queria a moeda. Mas não vejo como poderia saber que Hawker a tenha conseguido, a menos que Hawker lhe desse um sinal ou ao seu representante do ou­tro lado da praia.

Isso é verdade — assentiu o padre, com respeito.

Notou outra coisa? — continuou Flambeau com entusiasmo. — Esse Hawker vê sua namorada ser insultada, mas só reage quando chega à areia fofa dos montes de areia, onde pôde sair vitorioso numa simples luta simulada. Se ele o tives­se esbofeteado entre as pedras e o mar, poderia ter ferido seu comparsa.

Isso é verdade também — disse padre Brown, assentindo com um gesto de cabeça.

E agora, partamos do começo. O caso está entre pou­cas pessoas, mas no mínimo três. Uma única pessoa basta para um suicídio; duas para um assassinato; mas para uma chantagem, são necessárias, no mínimo, três.

Por quê? — perguntou o padre calmamente.

É claro — exclamou seu amigo. — É preciso alguém que seja a vítima, alguém que faça a ameaça a uma terceira pessoa a quem a ameaça cause pânico.

Depois de uma longa pausa o padre observou:

Você perdeu um elo lógico. Três pessoas são neces­sárias como idéias. Só duas são necessárias como agentes.

Que quer dizer com isto? — perguntou Flambeou.

Por que razão um chantagista — perguntou o padre em voz baixa — não pode ele mesmo ameaçar sua vítima? Suponhamos que uma esposa se tornasse uma intransigente abstêmia para levar seu marido assustado a ocultar sua freqüência às tavernas e depois lhe escrevesse cartas de chanta­gem, com outra letra, ameaçando contar tudo à sua esposa! Por que não funcionaria? Suponhamos que um pai proíba seu filho de jogar para em seguida segui-lo disfarçado, ameaçan­do-o com seu próprio rigor paterno! Suponhamos... mas aqui estamos, meu amigo.

Meu Deus! — exclamou Flambeau. — O senhor não quer dizer...

Uma figura ágil desceu correndo os degraus da casa e revelou sob a luz dourada de uma lâmpada, a cabeça inequí­voca parecida com a moeda romana.

Miss Carstairs — disse Hawker sem-cerimônia — não queria entrar antes que os senhores chegassem.

Então — observou Brown confidencialmente — não acha que parar do lado de fora seria a melhor coisa que po­deria fazer... com o senhor tomando conta dela? Veja, eu pensei que o senhor mesmo tivesse concluído por si mesmo.

Sim, disse o jovem a meia voz, eu suspeitei na praia e agora tenho certeza; foi por isso que o derrubei na areia fofa.

Tomando a chave da moça e a moeda de Hawker, Flam­beau introduziu-se com seu amigo na casa vazia pelo salão anterior. Estava vazio com exceção de uma pessoa. O homem que o padre Brown vira passar pela taverna estava em pé jun­to à janela como se acuado; o mesmo, com a diferença de que tinha tirado seu sobretudo preto e usava agora um cham­bre marrom...

Viemos — disse padre Brown polidamente — de­volver esta moeda ao seu dono.

E a entregou ao homem do nariz.

Flambeau revirou os olhos.

Este homem é colecionador de moedas? — per­guntou.

Este homem é Mr. Arthur Carstairs — disse o padre categórico —, colecionador de moedas de uma espécie um tanto singular.

O homem mudou de cor de uma maneira tão horrível, que o nariz torto se destacou de seu rosto como algo cômico e distinto. Apesar disso, falou com uma espécie de desespe­rada dignidade:

O senhor verá, então, que não perdi todas as quali­dades da família.

Voltando-se subitamente, entrou no quarto contíguo, ba­tendo a porta.

Detenha-o! — gritou o padre, inclinando-se e quase cain­do sobre uma cadeira. Depois de um ou dois empurrões for­tes, Flambeau conseguiu arrombar a porta. Mas já era tarde. No silêncio mortal, Flambeau atravessou a sala e telefonou para o médico e para a polícia.

Um vidro de remédio jazia vazio no chão. Do outro lado da mesa estava o corpo do homem de chambre marrom entre seus pacotes de papel marrom desfeito e abertos; para fora deles derramavam-se moedas, mas não antigas moedas romanas, e sim modernas moedas inglesas.

O padre levantou a cabeça de bronze de César.

Isto — disse ele — era tudo o que restava da Cole­ção Carstairs.

Após um silêncio, continuou, com uma brandura fora do comum.

Foi um testamento cruel o que seu pai fez e ele se ressentia um pouco disso. Odiava o dinheiro romano que tinha tornando-se cada vez mais apegado ao dinheiro real que lhe foi negado. Não só vendeu pouco a pouco a Coleção, como foi se afundando aos poucos nas maneiras mais baixas de ga­nhar dinheiro... até a chantagem, disfarçada, dentro de sua própria família. Chantageava seu irmão da Austrália por seu pequeno crime esquecido; foi por isso que tomou o táxi para Wagga Wagga em Putney. Chantageava sua irmã pelo roubo que só ele poderia ter notado. E, a propósito, foi por isso que ela teve aquela intuição sobrenatural quando ele estava distan­te nas dunas. Uma mera figura e porte, embora distante, têm mais probabilidades de nos lembrar alguém do que um rosto bem delineado muito perto.

Fez-se outro silêncio.

Então — rosnou o detetive — esse grande numismata e colecionador de moedas não passava de um avarento vulgar.

E há tão grande diferença entre as duas coisas? — perguntou o padre Brown, no mesmo tom estranho e indulgente. — Ouais são os defeitos de um avarento que não se encontram freqüentemente num colecionador? Pouca coisa a não ser... "não farás para ti qualquer imagem; não te curva- rás diante delas nem lhes servirás, pois Eu..." bem, precisa­mos ir ver como estão passando os jovens.

Acho — disse Flambeau — que, apesar de tudo, devem ir muito bem.

 

                            A PERUCA ROXA

 

Mr. Edward Nutt, o industrioso editor do Daily Reformer, assentou-se à sua mesa, abriu cartas e provas tipográficas ao som alegre de uma máquina de escrever, operada por uma senhora jovem e ativa.

Mr. Edward era um homem forte e simpático, em man­gas de camisa; seus movimentos eram resolutos, tinha uma palavra firme e uma autoritária inflexão de voz; mas, em con­tradição com tudo isso, seus olhos azuis e redondos, um tanto infantis, tinham uma expressão de perplexidade, até mesmo de melancolia. Na verdade, tal expressão não era totalmente enganadora. Dele, poder-se-ia dizer, sem medo de errar, pelo menos era a opinião abalizada de muitos jornalistas, que sua emoção mais comum era um medo contínuo... medo de processos por difamação, medo de perda de anúncios, medo de erros tipográficos, medo de roubo.

Sua vida era uma série de compromissos divididos entre o proprietário do jornal (de quem ele próprio se julgava também propriedade), que era um velho fabricante de sabão, com três erros irradicáveis em sua mente, e a própria equipe capaz que reunira para dirigir o jornal; alguns deles eram homens inteligentes, experientes e (o que era ainda pior) sinceros en­tusiastas da política do jornal.

Uma carta de um deles estava ali à sua frente e, apesar de rápido e resoluto como era, pareceu quase hesitar antes de abri-la. Apanhou, em vez dela, uma tira de prova, correu por ela seus olhos azuis e, com um lápis azul, substituiu a palavra "adultério" pela palavra "incorreção", e "judeu" por "estrangeiro". Tocou a campainha e mandou a prova para o andar superior.

Em seguida, com uma expressão mais séria, abriu a car­ta de seu mais brilhante colaborador, que trazia o carimbo postal de Devonshire, e leu o seguinte:

"Caro Nutt: Como sei que está interessado em estórias de mistério e assombração, que tal um artigo sobre aquele negócio estranho dos condes de Exmoor, ou, como as mulheres velhas o chamam aqui, a Orelha do Diabo do Conde? O chefe da família, você sabe, é o Duque de Exmoor, um dos poucos que ainda restam dos antigos e inflexíveis aristocratas Tory; como tirano velho e encarquilhado, enquadra-se perfeitamen­te em nossa linha de sensacionalismo. Acho que estou na pis­ta de uma estória que fará muita sensação.

"É claro que não creio na velha lenda sobre James I; e quanto a você, não crê em nada, nem mesmo no jornalismo. A lenda, provavelmente você deve estar lembrado, era sobre o negócio mais obscuro da história da Inglaterra — o envene­namento de Overbury pela rancorosa feiticeira Francês Howard, e o terror misterioso que obrigou o rei a perdoar os assassinos. Havia muita feitiçaria envolvida nisso; e, continua a estória, um criado, com o ouvido colado à fechadura, ouviu a verdade numa conversa entre o rei e Carr. Por magia, porém, a orelha com que a ouviu cresceu, tornando-se monstruosa, tão terrível era o segredo. Embora o criado tivesse sido cumu­lado de terras e de ouro, vindo a se tornar um ancestre de du­ques, a orelha moldada pelo demônio continuou, através as gerações, na família. Bem, você não crê em magia negra e, mesmo se acreditasse não poderia usá-la como matéria de publicação. Se acontecesse algum milagre no seu escritório, você seria o primeiro a abafá-lo, quando sabemos, hoje, que tantos dentre os próprios bispos são agnósticos. Mas isso não vem ao caso. O fato é que existe realmente algo de estranho a respeito de Exmoor e sua família; algo muito natural, ouso dizer, mas ao mesmo tempo muito anormal. Creio que a orelha está nisso; ou um símbolo, ou uma desilusão, ou uma doença ou coisa que os valha. Outra tradição diz que os cavalheiros logo depois de James I começaram a usar cabelos com­pridos só para esconder a orelha do primeiro Lorde Exmoor. Isto, também, não passa de mera fantasia.

"A razão que lhe dou é a seguinte: Parece-me que co­metemos um erro ao atacar toda a aristocracia por causa de suas festas e suas riquezas. A maioria das pessoas inveja os aristocratas por terem muito tempo de lazer, mas acho que concedemos demais quando admitimos que a aristocracia tem feito até felizes os aristocratas. Sugiro uma série de artigos mostrando como são tristes, desumanos e diabólicos a própria atmosfera e o ambiente de algumas dessas grandes casas. Há uma infinidade de exemplos, mas não poderíamos começar com um melhor do que a da Orelha dos Condes. Lá para o fim da semana acho que já lhe posso contar a verdade sobre isto. Com um abraço do Francis Finn."

Mr. Nutt refletiu por alguns instantes, olhando para seu sapato do pé esquerdo; em seguida, chamou, com voz alta e forte, mas inteiramente sem vida, em que cada sílaba soava da mesma forma:

— Miss Barlow, escreva para Mr. Finn, por favor: "Caro Finn, acho que vai dar certo; mande uma cópia no segundo correio de sábado. Abraços, E. Nutt".

Esta "meticulosa missiva" ele a ditou como se fosse uma só palavra e Miss Barlow, como se fosse uma só palavra, a datilografou. Apanhando, então, outra prova e um lápis azul, trocou a palavra "sobrenatural" por "maravilhoso" e a expressão "abateu" por "reprimiu".

Nessas atividades alegres e saudáveis, Mr. Nutt se diver­tia, até que o sábado seguinte o encontrasse na mesma cadeira, ditando para a mesma secretária e usando o mesmo lápis azul sobre... o primeiro fascículo das revelações de Mr. Finn. A introdução era uma peça vigorosa de enérgica inventiva contra os segredos malignos de príncipes e sobre o desespero que impera na alta sociedade. Embora escrito em estilo violento, o inglês era excelente. Mas mesmo assim o editor, como de praxe, tinha dado a alguém mais a tarefa de dividi-lo em sub­títulos mais moderados, como "Nobrezas e Venenos", e "A Orelha Misteriosa", "Os Condes em seus Castelos", e assim por diante, em centenas de mudanças que julgou necessários.

Em seguida, vinha a "Lenda da Orelha", ampliada da primei­ra carta de Finn, e depois o resumo de suas recentes descober­tas, como segue:

"Sei que é praxe jornalística pôr o fim da estória no co­meço e chamá-la de manchete. Sei que o jornalismo em grande parte consiste em dizer "Morto Lorde Jones" a pessoas que nunca souberam que Lorde Jones estava vivo. Acho", conti­nua nosso atual correspondente, "que esta, como muitas ou­tras praxes jornalísticas, é mau jornalismo; e que o Daily Reformer tem que dar o melhor exemplo nesses assuntos. Pro­ponho-me a contar minha estória como ocorreu, passo a pas­so. Usarei os nomes reais das partes, que, na maioria dos casos, estão prontas a confirmar com seu testemunho. Quanto às manchetes, às tiradas sensacionais, virão no fim.

"Caminhava ao longo de um passeio público que atraves­sa um pomar particular em Devonshire e que parecia conduzir a uma estalagem de Devonshire, quando cheguei subitamente a esse último lugar, que, aliás, o caminho sugeria. Era uma cons­trução baixa e comprida que compreendia realmente uma cabana e dois celeiros, tudo coberto de colmos que, semelhantes a cabelos castanhos e cinza, lembravam de relance a pré-his­tória. De lado de fora da porta, havia uma placa onde se lia o nome Dragão Azul. Sob a placa, uma daquelas mesas com­pridas e rústicas que costumavam ficar do lado de fora da maioria das estalagens populares inglesas, onde se vendia a cidra, antes que os abstêmios e fabricantes de cervejas acabas­sem com elas. E ao redor dessa mesa estavam assentados três senhores que bem poderiam ter vivido há cem anos.

"Agora, que já os conheço melhor, não há dificuldade em mudar as minhas impressões iniciais, mas, à primeira vista, me pareceram três fantasmas muito sólidos. A figura que parecia, ou porque fosse maior em todas as três dimensões, ou porque se assentasse no meio da mesa comprida na minha frente, dominante era um homem alto, gordo, todo de preto, com um rosto rubicundo e até apoplético, mas um pouco calvo e de cenho carregado. Reparando novamente nele, com mais atenção, não podia dizer exatamente o que era que me dava a sensação de antigüidade, se o nó antigo de sua gravata branca de estilo clerical, se as rugas carregadas de sua testa.

"Mais difícil, ainda, era fixar a impressão no caso do homem à direita da mesa. Para dizer a verdade, tratava-se de um tipo muito comum, desses que se encontram em qualquer lugar, com uma cabeça redonda, cabelos castanhos, nariz re­dondo e arrebitado, também vestido em roupa clerical, embora de corte mais esmerado. Foi só quando vi seu chapéu curvo de abas largas em cima da mesa, ao lado dele, que descobri o motivo por que o ligara a algo antigo. Era um padre da Igre­ja Católica.

"Talvez o terceiro homem, na outra extremidade da mesa, tivesse realmente mais a ver com a aparência de anti­güidade do que os restantes, embora fosse o de presença física mais insignificante e menos notável em suas vestes. Cobriam seus membros magros, eu diria, mesmo, colavam-se a seus membros descarnados mangas e calças cinza bem justas; ti­nha um rosto comprido, chupado e aquilino, que expressava melancolia, ainda mais porque seu queixo saliente se achava preso em seu colarinho e por um lenço de pescoço em estilo antigo. Seu cabelo (que devia ter sido castanho-escuro) apresentava uma estranha coloração castanho-avermelhado, que, em contraste com seu rosto amarelo, parecia mais roxo que mesmo vermelho. A cor discreta, mas incomum, era o que mais chamava a atenção, porque a beleza e ondulação de seus ca­belos não eram naturais. Mas, depois de toda a análise, sou levado a pensar que a primeira impressão de antigüidade foi devida simplesmente a uma série de copos de vinho altos e antiquados, a um ou dois limões e dois cachimbos de barro. E, talvez, também me achasse influenciado pela missão, a respeito de coisas antigas, de que me incumbira.

"Como repórter experimentado e por se tratar de um lu­gar aparentemente público, não tive dificuldade de apelar para minha sem-cerimônia e, assentando-me à mesa comprida, pedi uma cidra. O homem alto, de preto, parecia muito erudito, es­pecialmente sobre antigüidades locais; o homenzinho de preto, embora falasse muito menos, surpreendeu-me com uma cul­tura ainda mais ampla. Assim nos entendíamos muito bem, mas o terceiro homem, o cavalheiro de roupas justas, se mos­trava um pouco distante e desdenhoso, até que fiz a conversa desviar para o caso do Duque de Exmoor e seus antepassados.

"Tive a impressão de que o assunto pareceu causar certo embaraço para os outros dois, mas rompeu de modo surpreendente o encanto do silêncio do terceiro homem. Circunspecto, com o sotaque de um cavalheiro altamente educado e, vez por outra, tirando uma baforada de seu cachimbo de barro, passou a me contar algumas das estórias mais horríveis que já ouvi na minha vida: como um dos condes em tempos idos en­forcara seu próprio pai; outro que mandou açoitar a própria esposa amarrada numa carroça, através da aldeia; outro que pôs fogo numa igreja cheia de crianças, e assim por diante.

"Na realidade, algumas das estórias não se adaptam à publicação na imprensa diária, como a estória das Monjas Escarlates, o episódio abominável do Cão Marcado, ou de um certo negócio que foi feito numa pedreira. Toda essa lista sangrenta de crueldades saía dos lábios finos e nobres do cavalheiro, um tanto afetado, que, assentado à mesa sorvia o vinho de seu copo alto e fino.

"Pude perceber que o homem alto, na minha frente, procurava contê-lo, mas, evidentemente, pelo grande respeito que demonstrava por ele, não podia aventurar-se a contê-lo brus­camente. E o pequeno padre na outra extremidade da mesa, embora sem qualquer expressão de constrangimento, fitava firmemente a mesa e parecia ouvir a narrativa com toda a atenção, mas deixando à mostra um sentimento de dor profunda.

— Parece — disse o narrador, — que o senhor não gosta muito da família Exmoor.

Olhou-me por um instante, com seus lábios ainda afe­tados, mas que embranqueceram e se contraíram; em seguida, quebrou, deliberadamente, seu cachimbo comprido e seu copo em cima da mesa e se levantou. Era a figura perfeita de um "gentleman" com a ira faiscante de um fanático.

— Esses cavalheiros — respondeu — lhe dirão se tenho motivo para gostar dela. A maldição dos condes antigos se tem mantido sobre este país e muitos têm sofrido por causa dela. Eles sabem que ninguém tem sofrido mais do que eu por sua causa.

E assim dizendo esmagou com o pé um pedaço do copo caído sob seu calcanhar e se afastou, no verde lusco-fusco, por entre as macieiras cintilantes.

— É um extraordinário cavalheiro — disse aos outros dois; — os senhores, por acaso, sabem o que lhe fez a família Exmoor? Quem é ele?

O homem alto vestido de preto olhava-me com a ex­pressão selvagem de um touro desafiado. De início, não pare­cia escutar-me. Em seguida, perguntou-me: "— Não sabe quem é ele?

Reafirmei minha ignorância e houve outro silêncio; o padrezinho, olhando ainda para a mesa, falou: "— É o duque de Exmoor.

"Então, antes que pudesse dominar meus sentidos exci­tados, acrescentou com a mesma calma, mas com um ar de quem compõe as coisas:

"— Meu amigo aqui é o Dr. Mull, bibliotecário do duque. Chamo-me Brown.

"— Mas — balbuciei — se é o Duque, por que maldiz assim os velhos duques?

"— Ele parece realmente acreditar — respondeu o pa­dre chamado Brown — que lhe deixaram uma maldição. "Em seguida acrescentou com certa gravidade: "— É por isso que ele usa peruca. "Passaram-se alguns minutos para que tudo isso fizesse sentido para mim.

"— O senhor se refere àquela fábula da orelha? — per­guntei. — É claro que ouvi falar disso, mas evidentemente deve ser alguma invencionice criada de algo muito mais sim­ples. Achei muitas vezes que fosse uma versão grosseira da­quelas estórias de mutilação. Costumavam cortar orelhas de criminosos no século XVI.

"— Eu quase cheguei a pensar assim — respondeu o homem pequeno, pensativo —, mas não está fora da ciência comum ou da lei natural o fato da repetição de uma defor­midade física numa família, como ter uma orelha maior do que a outra.

"O bibliotecário, de grande estatura, que tinha enterrado sua testa calva em suas grandes mãos vermelhas, como um homem procurando pensar em seu dever, resmungou:

"— Não. O senhor o magoou. Compreenda, não tenho razões para defendê-lo, nem mesmo para continuar a ser-lhe fiel. Tem sido um tirano para mim como para todos os demais. Não pensem, porque o vêem assentado aqui com simplicidade, que não seja um senhor no sentido pior da palavra. Ele man­daria uma pessoa andar dois quilômetros para tocar um sino, mesmo se houvesse um outro a um metro de distância, como mandaria outra a cinco quilômetros de distância apanhar uma caixa de fósforos com uma a três metros dele. Precisa de um lacaio para levar sua bengala; de um criado particular para segurar seu binóculo de ópera...

"— Mas não de um camareiro para escovar suas roupas -— atalhou o padre com curiosidade —, pois o camareiro quereria escovar também sua peruca.

"O bibliotecário voltou-se para o padre e pareceu esque­cer minha presença; estava estranhamente comovido e, penso, um pouco excitado pelo vinho.

"— Não sei se o senhor sabe disso, padre Brown, mas tem razão. Manda todo mundo fazer tudo para ele, menos vesti-lo. Nesse ponto, insiste em se vestir numa solidão total, como num deserto. Põe todo mundo para fora da casa, sem dó nem piedade, se notar alguém por perto da porta de seu quarto de vestir.

"— Parece um sujeito bastante antiquado — observei.

"— Não — respondeu o Dr. Mull com muita simplici­dade. — Foi isso que quis dizer quando achei que o senhor foi injusto com ele. Senhores, o duque sofre, realmente, a amargura da maldição a que acabou de se referir há poucos instantes. Ele esconde, com vergonha e horror sinceros, sob aquela cabeleira roxa, algo que, acredita, chocaria quem o visse. Sei que é assim e sei que não é uma simples deformida­de como uma mutilação criminosa, ou uma visível despropor­ção hereditária. Sei que é coisa muito pior do que isso, pois uma pessoa me disse, uma pessoa que esteve presente a uma cena que ninguém poderia inventar, onde um homem mais forte do que qualquer um de nós tentou desafiar o segredo, e saiu aterrorizado.

"Quis falar, mas Mull continuou, esquecido de mim:

— "Não me importo de lhe contar, padre, porque é real­mente mais em defesa do pobre duque do que na sua acusa­ção. Já ouviu falar que uma vez quase perdeu suas proprie­dades?

"O padre meneou a cabeça e o bibliotecário continuou a contar a estória como a tinha ouvido de seu antecessor no cargo, que fora seu chefe e instrutor, e em quem parecia confiar. Até certo ponto, era uma estória muito comum da deca­dência das fortunas de uma grande família... a estória de um advogado da família. Esse advogado, entretanto, achava que enganava honestamente, se é possível tal expressão. Em vez de usar os fundos que tinha em custódia, aproveitou-se dos descuidos do duque para pôr a família num buraco financeiro, para forçar ao duque deixá-lo administrar realmente todos seus bens.

"O nome do advogado era Issac Green, mas o duque sem­pre o chamava de Elisha. Era bastante calvo, embora na rea­lidade não tivesse mais de trinta anos. Tinha progredido rapidamente, mas de começos bastante excusos; primeiro, "delator" ou informante e, depois, agiota. Mas como advogado dos condes teve a sensatez, por assim dizer, de se manter tecnica­mente correto até que estivesse pronto para o golpe final. O golpe foi dado num jantar; dizia o velho bibliotecário que jamais esqueceria o próprio aspecto dos abajures e das gar­rafas de vinho, quando o pequeno advogado, com um sorriso firme, propôs ao grande senhor a partilha entre eles das pro­priedades. O resultado certamente não poderia ter passado despercebido, pois o duque, num silêncio mortal, arrebentou uma garrafa na cabeça calva do homem num gesto repentino como o vira quebrar o copo ali no pomar. O golpe deixou um corte triangular vermelho no couro cabeludo do advogado, cujo olhar se alterou, mas não o sorriso.

"Levantou-se, trêmulo, e devolveu o golpe como homens como ele sabem revidar.

"— Folgo com isto — disse —, pois agora posso ficar com toda a propriedade. A lei me dará direito a isso.

"— Exmoor, parece, estava branco como cera, mas seus olhos ainda faiscavam quando respondeu:

"— A lei lhe dará, mas você não a tomará... Por que não? Por quê? porque significaria o dia do juízo final para mim, e se você a tomar eu tirarei minha peruca. .. Sabe, ave depenada, qualquer pessoa pode ver sua cabeça calva, mas ninguém pode ver a minha e viver.

"Bem, digam o que quiser e lhe dêem o sentido que lhes agradar, Mull, porém, jura solenemente que o advogado, depois de agitar seus punhos no ar por alguns instantes, saiu sim­plesmente correndo da sala e nunca mais foi visto na região. .. Desde então Exmoor tem sido temido mais como um feiticei­ro do que mesmo como nobre e magistrado.


"Ora, o Dr. Mull contou essa estória com gestos um tan­to dramáticos e rudes e com uma paixão que me pareceu no mínimo parcial. Eu estava plenamente convicto da possibilidade de que tudo não passaria da extravagância de um velho fanfarrão e de boatos. Mas antes de concluir esta metade de minhas descobertas, acho que devo ao Dr. Mull o registro de que minhas duas primeiras investigações confirmavam sua es­tória. Soube de um velho farmacêutico na aldeia que havia um senhor calvo que se vestia a rigor, que se dizia chamar Green, que o procurou uma noite para fazer um curativo de uma ferida na testa, de três cortes. E soube pelos registros legais e antigos jornais que houve uma ameaça de processo, que chegou mesmo a ser iniciado, por um tal de Green contra o Duque de Exmoor."

Mr. Nutt, do Daily Reformer, escreveu algumas palavras incongruentes no alto do artigo, fez algumas anotações misteriosas ao lado e chamou Miss Barlow com a mesma voz mo­nótona e alta:

— Escreva uma carta para Mr. Finn.

"Caro Finn: seu artigo está bom, mas tive de corrigi-lo; nosso público não aceitaria jamais um padre papista na estó­ria. É preciso ter em mente os burgueses. Alterei-o para Mr. Brown, um espiritualista.

Saudações, E. Nutt"

Um dia ou dois depois, encontramos o editor ativo e judicioso examinando, com seus olhos azuis que pareciam cada vez mais redondos, o segundo fascículo de Mr. Finn, da estó­ria de mistérios da nobreza. Começava com as palavras:

"Fiz uma impressionante descoberta. Confesso espontaneamente que é diferente de tudo que esperava descobrir e causará um profundo impacto no público. Ouso dizer, sem qualquer vaidade, que as palavras que escrevo agora serão lidas em toda a Europa, e com certeza nos Estados Unidos e nas colônias. E, não obstante, ouvi tudo que tenho a contar antes de deixar esta mesma pequena mesa neste mesmo pequeno mar de macieiras.

"Devo tudo ao pequeno padre Brown; é um sujeito extraordinário. O grande bibliotecário saiu da mesa, talvez enver­gonhado de sua incontinência verbal, talvez ansioso e preocupado com a impetuosidade com que seu misterioso patrão tinha desaparecido. De qualquer maneira, saiu apressadamente atrás do duque, por entre as árvores. Padre Brown apanhara um dos limões e o apreciava com um estranho prazer.

— "Que linda cor tem este limão. Há um só coisa de que não gosto com referência à peruca do Duque... a cor.

"— Acho que não o compreendo — disse eu.

"— Chego a pensar que teve boa razão para cobrir suas orelhas, como o rei Midas — continuou o padre, com uma alegre simplicidade que nas circunstâncias parecia um tanto frívola. — Posso compreender perfeitamente que é melhor co­bri-las com cabelo do que com placas de bronze ou abas de couro. Mas se quer usar cabelo, por que não a faz parecer cabelo? Nunca existiu um cabelo daquela cor no mundo. Parece mais uma nuvem do ocaso vindo através do bosque. Por que não esconde melhor a maldição da família, se realmente se envergonha dela? Sabe por quê? Porque não se envergo­nha dela. Tem orgulho disso.

"— É uma cabeleira feia demais para se orgulhar dela... e uma estória feia demais — retruquei.

"— Pense — respondeu o curioso homenzinho — como você realmente se sente a respeito dessas coisas. Não sugiro que seja mais esnobe ou mais mórbido do que nós. Não acha, vagamente, que uma autêntica maldição de uma antiga família seja algo digno de se possuir? Você teria vergonha ou não se sentiria um pouco orgulhoso se o herdeiro do horror do Glamis o chamasse de irmão? ou se a família de Byron tivesse con­fiado exclusivamente a você as horríveis aventuras de sua gen­te? Não sejamos rigorosos demais com os próprios aristocra­tas, se suas cabeças são tão fracas como as nossas, e esnobem suas próprias dores.

"— Pelo amor de Deus! — exclamei. — É verdade. Na família de minha própria mãe houve um banshee[3]; agora, quando chego a pensar nele, em muitas horas difíceis, sinto-me mais confortado.

"— E pense — continuou — naquela corrente de sangue e de veneno que brotou de seus lábios finos no momento em que mencionou seus ancestrais. Por que revelaria a todo es­tranho essa Câmara de Horrores, a menos que tivesse orgulho dela? Não esconde sua cabeleira, não esconde seu sangue, não esconde a maldição de sua família, não esconde os crimes da família, mas...

"A voz do homenzinho mudou tão rapidamente, fechou a mão num gesto tão firmemente e seus olhos se tornaram de repente tão mais redondos e brilhantes como os olhos de uma coruja ao despertar, que tudo tinha a rudeza de uma pequena explosão sobre a mesa.

"— Mas — concluiu — não admite que ninguém o veja vestir-se.

"Para completar de certo modo a excitação de meu nervosismo fantasioso, o duque surgiu de novo naquele instante, em silêncio, entre as árvores brilhantes. Com passos leves e cabelo da cor do poente, contornou o canto da casa, na com­panhia de seu bibliotecário. Antes que chegassem mais perto o padre acrescentara calmamente:

"— Por que, realmente, esconde o segredo do que escon­de com a cabeleira roxa? Porque não é a espécie de segredo que supomos.

"O Duque voltou ao seu lugar, na ponta da mesa, com sua dignidade inata. Dirigiu-se ao padre com muita gravidade:

"— Padre Brown, o Dr. Mull informou-me que o senhor veio aqui para me fazer um pedido. Não sigo nada da religião de meus pais; mas por causa deles e por causa dos dias em que nos conhecemos antes, estou disposto a ouvi-lo. Suponho, porém, que quererá conversar comigo em particular.

"O que quer que possua de cavalheiro me fez levantar-me. Mas o que há de jornalista em mim me fez parar. Antes que essa paralisia passasse, o padre acenou-me para que fi­casse.

"— Se Vossa Alteza permite, ou se tenho qualquer auto­ridade para aconselhá-lo, gostaria que meu pedido fosse ouvi­do por tantas pessoas quanto possível. Tenho encontrado em todo este país centenas de pessoas, algumas até mesmo de mi­nha própria fé e de minha terra, cuja imaginação está envene­nada pelo sortilégio que lhe imploro que destrua. Gostaria de ter aqui todo Devonshire para ver Vossa Alteza o fazer.

"— Para ver-me fazer o quê? — perguntou o duque, arqueando os sobrolhos.

"— Para ver Vossa Alteza tirar a peruca — respondeu o padre Brown.

"O rosto do Duque ficou imóvel, mas olhava para o seu interlocutor com um olhar vidrado, a expressão mais terrível que já vi num rosto humano. Pude ver as pernas compridas do bibliotecário balançando debaixo dele como se fossem sombras de caules numa lagoa; e não pude afastar de minha mente a idéia de que as árvores em torno de nós se estivessem en­chendo, pouco a pouco e em silêncio, de demônios, em vez de pássaros.

"— Eu o pouparei — disse o Duque com uma voz de piedade inumana. — Recuso-me. Se lhe mostrar o mais leve indício do horror que carrego sozinho, o senhor cairia tremen­do à meus pés e me pediria para não lhe mostrar mais. Eu lhe pouparei o indício. O senhor não soletrará a primeira letra do que está escrito no altar do Deus Desconhecido.

"— Eu conheço o Deus Desconhecido — retrucou-lhe o padrezinho, com a grandeza inconsciente de uma certeza que se elevava como uma torre de granito. — Conheço seu nome, chama-se Satanás. O verdadeiro Deus se fez carne e habitou entre nós. E lhe assegurou, onde quer que encontre homens dominados inteiramente pelo mistério, o mistério é da iniqüidade. Se o demônio lhe diz que uma coisa é horrorosa demais de se ver, olhe para ela. Se diz que alguma coisa é horrível de se ouvir, ouça-a. Se acha alguma verdade insuportável, suporte-a. Suplico a Vossa Alteza que ponha um fim a esse pesadelo, agora mesmo, a esta mesa.

"— Se o fizesse — disse o duque em voz baixa — o senhor e tudo em que o senhor crê e tudo por que vive, seriam os primeiros a murchar e perecer. Teria um instante para conhecer o grande Nada antes de morrer.

"— A Cruz de Cristo esteja entre mim e o mal. Tire sua peruca.

"Eu estava inclinado sobre a mesa numa excitação sem controle. Ao ouvir esse extraordinário duelo, ocorreu-me uma idéia repentina.

"— Alteza — gritei. — Isto é blefe. Tire sua peruca ou eu a arrancarei.

"Acho que posso ser processado por agressão, mas folgo de o ter feito. Quando ele respondeu, com a mesma voz pé­trea "recuso-me", eu simplesmente pulei em cima dele. Du­rante uns três longos minutos, ele se debateu contra mim como se tivesse todo o inferno a seu favor; mas forcei para trás sua cabeça até que a cabeleira caiu. Admito que, durante a luta, fechei meus olhos e assim estava quando ela caiu.

"Fui despertado por um grito de Mull, que se pusera, também, naquele momento ao lado do duque. Sua cabeça e a minha estavam ambas inclinadas sobre a cabeça calva do du­que sem peruca. Então o silêncio foi interrompido pelo bi­bliotecário que exclamou:

"— Que pode Significar isso? Com a breca, o homem nada tinha para esconder. Suas orelhas são tão normais como as de qualquer pessoa.

"— Sim — disse padre Brown. — Era exatamente isso que tinha de esconder.

"O padre levantou-se e foi direto ao duque. Mas, bastan­te curioso, nem mesmo olhou para suas orelhas. Olhou com uma gravidade quase cômica para sua testa calva e apontou para a marca de três cortes, há muito cicatrizada, mas ainda visível.

"— Acho que é Mr. Green — disse polidamente — que, afinal de contas, ficou com todas as propriedades.

"E agora, deixe-me contar a todos os leitores do Daily Reformer o que acho de mais notável em tudo isso. Essa cena de transformação, que lhes parecerá tão fantástica e colorida como num conto oriental, foi (com exceção de minha agressão técnica) estritamente legal e constitucional desde o início. Este homem com essa estranha cicatriz não é nenhum impostor. Embora (em certo sentido) tenha usado a cabeleira de outra pessoa e reivindicado a orelha de outra, não roubou a coroa de ninguém. Ele é realmente e, apenas, o Duque de Exmoor. O que aconteceu foi isto: O velho duque tinha, realmente, uma pequena deformidade na orelha, o que, na reali­dade, era mais ou menos hereditário. Ele se deprimia com isso; e é provável que a tivesse invocado como uma espécie de praga numa cena violenta (o que indubitavelmente aconteceu), em que feriu Green com a garrafa. Mas a briga terminou de modo muito diferente. Green acionou suas pretensões e ga­nhou a propriedade; o nobre despojado suicidou-se. Morreu sem deixar descendentes. Depois de um decente intervalo o gracioso governo inglês reviveu o pariato "extinto" de Exmoor e o concedeu, como de costume, à pessoa mais importante, à pessoa que ficara com a propriedade.

"Este homem usava as velhas fábulas feudais, provavel­mente em seu sentimento esnobe as desejava e as admirava. De modo que milhares de pobres ingleses tremiam diante de um senhor misterioso com um antigo destino e um diadema de estrelas más — quando na verdade, estavam tremendo di­ante de um gaiato que há menos de vinte anos atrás era rábula e agiota. Acho-o um caso muito típico de nossa aristocracia atual, que assim continuará até que Deus nos mande homens mais admiráveis."

Mr. Nutt depôs o manuscrito em cima da mesa e gritou com uma altura fora do comum:

— Miss Barlow, escreva uma carta para Mr. Finn: "Caro Finn: Você deve estar louco; não podemos tocar nisto. Eu queria estórias de vampiros e de dias horríveis dos tempos antigos, da aristocracia de mãos dadas com a supers­tição. O povo gosta disso. Mas deve saber que os Exmoor nunca perdoarão isto. E o que nosso povo iria dizer? gostaria de saber! Ora, Sir Simon é um dos maiores amigos dos Ex­moor... E arruinaria aquele primo dos Condes que nos re­presenta em Bradford. Além disso, aquele Água-de-Sabão ficou doente porque não conseguiu tornar-se nobre no ano passado; ele me poria no olho da rua se o colocasse em perigo de perdê-lo com uma loucura desta. E que dizer de Duffey? Irá nos fazer alguns artigos tremendos sobre "O Calcanhar de Norman". E como pode escrever sobre Norman se é apenas um advogado do homem? Seja razoável.

Saudações, E. Nutt"

Enquanto Miss Barlow batia animadamente a carta, ele amassou o manuscrito e o jogou na cesta de papel; mas não antes de ter, automaticamente e por força do hábito, substituído a palavra "Deus" pela palavra "circunstâncias".

 

                           O FIM DOS PENDRAGON

 

Padre Brown não estava disposto a aventuras. Estivera ultimamente doente pela estafa e, quando começou a se recuperar, seu amigo Flambeau o tinha levado a um passeio num pequeno iate com Sir Cecil Fanshaw, jovem cavalheiro córnico e um entusiasta pela paisagem do litoral córnico. Mas Brown estava ainda fraco; não era um grande navegante e embora não fosse do tipo que se queixa ou se abate, sua disposição não ia além da paciência e da civilidade. Quando os dois com­panheiros elogiavam o caso majestoso e violeta ou os penhas­cos vulcânicos irregulares, concordava com eles. Quando Flambeau apontou para um rochedo que se assemelhava a um dragão, olhou e achou que de fato parecia um dragão. Quan­do Fanshaw mais excitado mostrou um rochedo que se asse­melhava a Merlin, olhou e manifestou seu assentimento. Quan­do Flambeau lhe perguntou se esse portão rochoso do rio sinuoso não seria o portão de um reino de fadas, respondeu que "sim". Ouviu que a costa estava vazia com exceção de alguns marujos ativos; ouviu também que o gato do barco es­tava dormindo. Ouviu que Fanshaw não sabia onde tinha posto sua cigarreira; ouviu o piloto recitando o oráculo "olhos brilhantes, rumo certo; olho piscando, naufrágio". Ouviu Flambeau dizer a Fanshaw que certamente isso significava que o piloto deve manter ambos os olhos abertos e manter-se aten­to. E ouviu Fanshaw responder a Flambeau que não era essa a significação; significava que quando as duas luzes da costa, uma perto e outra distante, estavam exatamente lado a lado, estavam no canal certo do rio; mas se uma luz estivesse escon­dida atrás da outra, estariam na direção dos abrolhos. Ouviu Fanshaw acrescentar que seu país estava cheio de fábulas e expressões esquisitas; era o verdadeiro lar do romance; chegou mesmo a fazer essa parte da Cornualha competir com Devonshire, como pretendente dos lauréis elizabetanos de náutica. Segundo ele, houvera capitães entre essas angras e ilhotas di­ante dos quais Drake não passaria de um marinheiro princi­piante. Ouviu Flambeau rindo e a perguntar se, talvez, o aventuroso título de "Rumo ao Oeste!" só significaria que todos os habitantes de Devonshire desejavam viver na Cornualha. Ou­viu Fanshaw dizer que não havia necessidade de ser ridículo; que não só capitães córnicos tinham sido heróis, mas que ainda o eram; que em quase toda parte havia um velho almirante, agora aposentado, curtindo viagens emocionantes e cheias de aventuras; e que haviam descoberto em sua juventude o último grupo das oito ilhas do Pacífico que foram acrescentadas à carta do mundo. Cecil Fanshaw era, pessoalmente, da espé­cie que geralmente exibe esses entusiasmos exagerados, mas agradáveis; muito jovem, de cabelos claros e reluzentes e de perfil impetuoso; com uma bravata infantil, mas de uma deli­cadeza quase feminina. Os ombros largos, as sombrancelhas escuras e a sombria arrogância de mosqueteiro de Flambeau era um perfeito contraste.

Todas essas trivialidades Brown ouvia e via; mas as ouvia como um homem cansado ouve a melodia das rodas de um trem, ou as via como um homem doente vê um padrão de papel de parede. Ninguém pode calcular as vicissitudes de um temperamento em convalescência; mas a depressão do padre Brown devia ter muita ligação com sua simples falta de familiaridade com o mar. Pois quando a boca do rio se estreitava, como o gargalo, de uma garrafa, e as águas se tornavam mais calmas e o ar mais quente e mais terrestre, ele parecia desper­tar e se tornar consciente como uma criança. Tinham chegado àquela fase logo depois do pôr-do-sol, quando o ar e a água parecem brilhar, mas a terra e todas as coisas que nela crescem pareciam em compensação quase pretas. Naquela tarde, en­tretanto, havia algo excepcional. Era uma daquelas raras atmosferas em que uma chapa de vidro embaciado parece ter- se interposto entre nós e a Natureza; de modo que até as cores escuras daquele dia pareciam mais brilhantes do que as cores brilhantes nos dias nublados. A terra pisada das margens do rio e a mancha turfosa nas lagoas não pareciam pardacentas, mas de sombreado cintilante, e os bosques escuros agitados pela brisa não pareciam, como de costume, azul-escuros pela simples profundidade ou distância, mas se assemelhavam mais a massas de flores roxas levadas pelo vento. Essa clareza e intensidade mágicas das cores foram impostas aos sentidos de Brown, que aos poucos foi sendo despertado por algo român­tico e até secreto, na própria forma da paisagem.

O rio estava ainda bastante largo e profundo para um barco de recreio tão pequeno como o deles; mas as curvas da costa sugeriam que se estavam aproximando de um lado e de outro; os bosques pareciam fazer tentativas intermitentes e temporárias para lançar uma ponte — como se o barco estivesse passando de um romance de um vale para o romance de um baixio e daí para o supremo romance de um túnel. Além dessa simples visão, havia pouca coisa para alimentar a fan­tasia do padre Brown: alguns ciganos arrastando-se ao longo das margens do rio, com feixes e vimeiros cortados na floresta; e uma visão menos convencional, mas nessas partes remotas ainda comuns: uma jovem de cabelos pretos, cabeça desco­berta, conduzindo sua própria canoa. Se o padre deu alguma importância a uma outra coisa, certamente se esqueceu delas na curva seguinte do rio que se abriu para um objeto singular.

As águas se alargavam e se dividiam, fendidas pelo corte de uma ilha arborizada, em forma de peixe. Na velocidade em que iam, a ilha parecia flutuar na direção deles como um navio; um navio com uma proa muito alta ou, para ser mais exato, com uma chaminé muito alta. Pois na extremidade anterior levantava-se um edifício de aspecto estranho, diferen­te de tudo quanto pudessem lembrar-se ou ter visto. Não era especialmente alto, mas de qualquer forma alto demais para sua largura, de modo que não podia ser chamado de outro modo que não uma torre. Parecia construído inteiramente de madeira, e da maneira mais irregular e excêntrica. Alguns esteios e vigas eram de carvalho bom, sazonado; parte dessa madeira era tosca e nova; outra parte era de pinho branco, e uma grande quantidade da mesma espécie de madeira pintada de preto com alcatrão. Essas vigas pretas assentavam-se recurvadas ou entrecruzadas em todos os sentidos dando ao todo uma aparência intrincada. Tinha uma ou duas janelas, que pareciam coloridas e providas de caixilhos de chumbo num estilo já fora de moda, mas refinado. Os viajantes olhavam para aquilo com aquela sensação paradoxal que experimenta­mos quando uma coisa lembra outra e, não obstante, sabemos que é algo muito diferente.

Padre Brown, mesmo quando mistificado, era inteligente ao analisar sua própria mistificação. Viu-se refletindo em que aquela singularidade parecia consistir de uma forma particular moldada de material incongruente: como se fosse um chapéu-cartola de estanho, ou uma sobrecasaca de lã xadrez. Tinha certeza de ter visto madeiras de diferentes matizes dispostas daquele modo em alguma parte, mas nunca naquelas propor­ções arquitetônicas. No momento seguinte, um rápido olhar através das árvores escuras lhe mostrou tudo que queria saber e sorriu. Através de uma fenda na folhagem apareceu por um momento uma daquelas velhas casas de madeira, com fa­chada de vigas pretas, que podem ser ainda encontradas na Inglaterra, mas que a maioria de nós vê imitada em algumas mostras chamadas de "Velha Londres" ou "Inglaterra de Shakespeare". Foi uma visão suficiente para o padre ver que, embora antiquada, a casa era confortável e bem cuidada, com jardim na frente. Nada tinha daquele aspecto axadrezado e defeituoso da torre que parecia feita de seu refugo.

Que diabo é isso? — perguntou Flambeau, olhando ainda para a torre?

Fanshaw, com o olhar vivo, falou triunfante:

Ah! Acho que vocês nunca viram um lugar como este; foi por isso que os trouxe aqui, meus amigos. Agora vão ver se exagero quanto aos marinheiros de Cornualha. Este lugar pertence ao Velho Pendragon, que chamamos de Almi­rante, embora se tenha aposentado antes de concluir a carreira. O espírito de Raleigh e Hawkins é uma lembrança para o povo de Devon; para os Pendragon, uma realidade. Se a rainha Elizabeth pudesse levantar-se de seu túmulo e viesse a este rio numa barcaça dourada, seria recebida pelo Almirante numa casa exatamente como a que ela estava acostumada, com os mesmos cantos e detalhes, com todo painel de parede ou pratos de mesa. E encontraria um capitão inglês falando ainda, orgulhosamente, de novas terras a serem descobertas em peque­nos navios, tanto quanto se ela tivesse jantado com Drake.

Ela encontraria uma construção esquisita no jardim — disse padre Brown — que não agradaria aos seus olhos renascentistas. A arquitetura doméstica elizabetana é encantadora à sua maneira, mas é contra a sua própria natureza irromper-se em torrezinhas.

E, não obstante — redargüiu Fanshaw — esta é a parte mais romântica e elizabetana do negócio. Foi construída pelos Pendragon no tempo das guerras espanholas e embora tenha sido necessário reformá-la ou mesmo reconstruí-la por outras razões, tem sido sempre restaurada no estilo antigo. Diz a história que a senhora de Sir Peter Pendragon a construiu neste luar e até nessa altura, porque do alto se pode ver o ângulo que os navios contornam para entrar na foz do rio; e ela queria ser a primeira a ver o navio de seu marido, quando de volta das Caraíbas.

Por que outras razões — perguntou padre Brown — o senhor disse que tem sido reconstruída?

Oh, há uma estória esquisita sobre isso também — respondeu o jovem nobre com satisfação. — O senhor está realmente numa terra de estórias estranhas. O rei Arthur esteve aqui, e Merlin e as fadas antes dele. Diz a estória que Sir Peter Pendragon, que, tenho a impressão, tinha alguns dos defeitos dos piratas assim como as virtudes dos marinheiros, trazia para a Inglaterra três nobres espanhóis como prisioneiros especiais, pretendendo escoltá-los até a corte de Elizabeth. Mas sendo um homem temperamental e irascível, tendo en­trado em violenta discussão com um deles, pegou-o pela gar­ganta e o jogou, acidentalmente ou de propósito, dentro do mar. Um segundo espanhol, que era irmão do primeiro, puxou instintivamente sua espada e se lançou contra Pendragon. De­pois de um combate curto, mas furioso, em que ambos rece­beram três ferimentos em poucos minutos, Pendragon enfiou a espada no corpo do adversário e o segundo espanhol tombou morto. Quando isso aconteceu o navio já tinha entrado na foz do rio e estava relativamente perto das águas rasas. O ter­ceiro espanhol saltou da amurada do navio, tomou impetuosa­mente a direção da praia e dela se aproximou tanto, que pôde ficar em com seus punhos levantados. E pondo-se de frente para o navio e levantando ambos os braços para o céu, como um profeta invocando pragas sobre uma cidade má, gritou para Pendragon com uma voz terrível e cortante, que ele, pelo menos, ainda estava vivo, que continuaria vivendo e viveria para sempre; e que gerações após gerações da casa de Pendra­gon nunca o veriam, mas saberiam, por sinais certos, que ele e sua vingança permaneciam vivos. Com isso mergulhou sob as ondas e ou se afogou ou nadou para longe debaixo da água, pois nem um fio de cabelo de sua cabeça foi visto depois disso.

Olhem ali aquela moça na canoa novamente — disse Flambeau cortando o assunto, pois mulheres jovens e bonitas eram capazes de afastá-lo de qualquer tópico. Parece tão intrigada com a torre estranha como nós.

Na realidade, a jovem de cabelos pretos soltara os remos e deixara sua canoa passar lentamente pela estranha ilhota, olhando atentamente para a estranha torre, com visível expressão de curiosidade em seu rosto moreno e oval.

Deixe a moça para lá — disse Fanshaw impaciente. — Há milhares delas no mundo, mas não muitas coisas como a torre de Pendragon. Como podem facilmente supor, muitas superstições e escândalos se seguiram na trilha da praga do espanhol. Como bem podem avaliar, qualquer acidente que acontecesse a essa família córnica seria sempre relacionado com a praga pela credulidade rural. Mas o fato é que esta torre foi destruída duas ou três vezes por incêndio e a família não pode ser chamada de família feliz, pois mais de dois dos paren­tes mais próximos do Almirante, segundo me consta, pereceram em naufrágio, e um, pelo menos, segundo dizem, praticamen­te no mesmo lugar onde Sir Peter jogou o espanhol no mar.

Que pena! — exclamou Flambeau. — Ela está indo embora.

Quando foi que seu amigo o Almirante, lhe contou a história de sua família? — perguntou padre Brown, enquanto a jovem se afastava remando, sem mostrar a mínima intenção de estender seu interesse da torre ao iate, que Fanshaw já tinha ancorado ao longo da ilha.

Há muitos anos — respondeu Fanshaw. — De certo tempo para cá não navega mais, embora continue tão apaixo­nado pelo mar como sempre. Segundo me consta, trata-se de um pacto de família ou coisa que o valha. Bem, aí está o cais; vamos descer à terra e ver o velho almirante.

Eles o acompanharam à ilha, exatamente sob a torre, e o padre Brown, quer pelo simples toque na terra firme, ou pelo interesse por algo do outro lado do barranco do rio (que apreciou atentamente durante alguns segundos), parecia singular­mente mais bem disposto. Entraram numa alameda entre duas cercas de madeira fina e cinza, semelhante às cercas de par­ques ou jardins, em cujo topo árvores escuras se agitavam de um lado para o outro como plumas pretas e roxas sobre o caixão de um gigante. A torre, quando a deixaram para trás, parecia ainda mais esquisita, pois essas entradas são geral­mente flanqueadas por duas torres; e esta, sozinha, parecia torta. Mas, fora disso, a alameda tinha a aparência normal da entrada para terras de um nobre e, sendo tão curva, deixava a casa momentaneamente fora de vista. Padre Brown estava, talvez, um pouco fantasioso em sua fadiga, mas quase teve a impressão de que todo o lugar parecia crescer como as coisas num pesadelo. De qualquer maneira, a monotonia mística era o único aspecto de sua caminhada, até que Fanshaw parou subitamente e apontou para algo saliente da cerca cinza — algo que à primeira vista parecia o chifre preso de alguma fera. Uma observação mais atenta revelou tratar-se de uma lâmina de metal ligeiramente recurvada, que brilhava debilmente aos últimos raios do crepúsculo.

Flambeau, que, como todos os franceses tinha sido solda­do, se curvou sobre ela e disse num tom de surpresa:

— Vejam, é um sabre! Acho que conheço este tipo. Pesado e curvo, porém mais curto do que o de cavalaria; cos­tumavam levá-los na artilharia e o...

Enquanto falava, a lâmina saltou da fenda que ela pró­pria tinha feito e caiu de novo com um estalo mais pesado, rompendo a cerca até a base, com barulho de rachadura. Em seguida, foi puxada de novo, brilhou sobre a cerca alguns centímetros mais adiante, e novamente caiu com o mesmo golpe anterior; e depois sacudindo-se um pouco para soltar-se (acompanhada de pragas na escuridão) rachou a madeira até o chão num segundo. Um chute de energia diabólica jogou na estrada todo o quadrado de madeira fina e solta, e um grande bosque escuro abriu-se na cerca.

Fanshaw espiou pelo buraco escuro e teve uma exclama­ção de surpresa.

Meu caro Almirante! — exclamou. — O senhor cos­tuma abrir uma nova porta da frente toda vez que sai para passear?

A voz na escuridão blasfemou novamente e, em seguida, se abriu numa gargalhada:

Não. Tenho realmente o costume de cortar esta cerca em certos lugares; está estragando as plantas e não há aqui ninguém que possa fazê-lo. Vou fazer mais um corte na porta da frente e irei recebê-lo.

Assim dizendo, levantou sua arma mais uma vez e, gol­peando duas vezes, derrubou outra parte semelhante da cerca, abrindo-a num espaço de quase cinco metros. Em seguida, através desse portão mais amplo do bosque, saiu para a luz da tarde, com uma lasca de madeira cinza agarrada à sua es­pada.

Preencheu momentaneamente toda a estória de Fanshaw sobre um velho almirante pirata, embora os detalhes parecessem depois se decompor em acidentes. Por exemplo, usava um chapéu de abas largas como proteção contra o sol; mas a aba frontal era voltada para cima, e os dois cantos puxados para trás das orelhas, de modo que atravessava sua testa como o velho chapéu tricorne usado por Nélson. Usava um casaco azul ordinário, com nada de especial nos botões, mas a com­binação dele com as calças de linho branco lhe dava de certo modo uma aparência de marinheiro. Era alto e desajeitado, e caminhava gingando um pouco, o que não era próprio de um marinheiro, mas de certo modo lembrava um homem do mar; e trazia na mão uma espécie de sabre que se parecia com uma espada de abordagem de marinheiro, mas duas vezes maior. Sob o chapéu seu rosto de águia parecia mais vivo, não só porque estava bem barbeado, mas porque não tinha sobrancelhas. Era como se todo o cabelo tivesse sido arran­cado de seu rosto. Seus olhos eram salientes e penetrantes. Sua cor tinha uma tonalidade curiosa e atraente, isto é, embora fosse corado e sangüíneo, havia um amarelo que nele não significava doença, mas parecia antes brilhar como as maçãs douradas das Hespéridas. Padre Brown achou que nunca tinha visto uma figura tão expressiva em todos os romances sobre países tropicais.

Quando Fanshaw apresentou seus dois amigos ao anfi­trião, voltou ao tom de troça sobre sua devastação da cerca e à sua aparente violência ao fazê-lo. O almirante a ridicula­rizou primeiro como uma peça de jardinagem necessária, mas aborrecida; mas no fim riu gostosamente e exclamou com um misto de paciência e bom humor:

Bem, é possível que eu faça isso com certa violência e sinta uma espécie de prazer ao quebrar qualquer coisa. Vocês também fariam o mesmo se seu único prazer fosse correr os mares em busca de novas ilhas de canibais, e tivessem de ficar aqui grudados nesta ilhota rochosa numa espécie de lagoa rústica. Quando me lembro como derrubava mais de dois quilômetros de selva verde e cerrada com um velho sabre menos cortante do que este e me vejo na contingência de ter de ficar aqui a cortar gravetos, por causa de um maldito e velho pacto de família rabiscado numa Bíblia de família, ora essa, eu...

Agitou, novamente, o pesado aço e dessa vez dividiu o tronco de um arbusto até o chão, com um só golpe.

Eu me sinto assim — disse sorrindo, e jogou, furiosa­mente, a espada a alguns metros da estrada. — Mas vamos para casa; vocês precisam jantar.

O semicírculo do jardim na frente da casa era composto de três canteiros circulares, um de tulipas vermelhas, outro de tulipas amarelas e o terceiro com flores brancas que pareciam de cera, que os visitantes não conheciam e supunham ser exóticas. Um jardineiro forte, peludo e mal-encarado estava pen­durando um pesado rolo de mangueira de jardim. Os raios do pôr-do-sol que expirava pareciam grupar-se nos cantos da casa e davam aqui e ali lampejos avermelhados nos canteiros mais distantes. Num espaço sem árvores de um lado da casa, que dava para o rio, via-se um tripé de bronze, alto, sobre o qual se assentava um grande telescópio também de bronze. Do lado de fora dos degraus do pórtico havia uma pequena mesa de jardim pintada de verde, como se alguém tivesse acabado de tomar chá ali. A entrada era flanqueada por dois daqueles blocos de pedra meio modelados com buracos no lugar dos olhos, que dizem ser ídolos dos Mares do Sul; e


sobre a viga escura de carvalho, do outro lado do vão da porta, viam-se esculturas tão confusas, que chegavam a pare­cer bárbaras.

Quando entravam na casa, o pequeno padre subiu de re­pente para cima da mesinha e, pondo-se em pé em cima dela, pôs-se a examinar com simplicidade, através de seus óculos, as molduras de carvalho. O almirante Pendragon ficou espantado, mas não se mostrou aborrecido, enquanto Fanshaw achou tão divertida aquela cena — parecia um pigmeu representan­do uma pequena plataforma — que não pode conter o riso. Mas o padre, provavelmente, não notara nem o riso de um nem o espanto do outro.

Apreciava os três símbolos esculpidos, que, embora muito gastos e obscuros, pareciam ter algum sentido para ele. O primeiro parecia o esboço de uma torre ou outro edifício, coroado com o que se assemelhava a fitas de pontas encaracoladas. O segundo era mais claro: uma antiga galera elizabetana com ondas decorativas embaixo, mas interrompidas no meio por um curioso rochedo dentado, que era ou um defeito na madeira ou alguma representação convencional da água que estava entrando. O terceiro representava a metade superior de uma figura humana, terminando numa linha ondulada como as ondas; o rosto estava raspado e sem feição e ambos os bra­ços erguidos para o ar.

Ah — murmurou o padre Brown, piscando os olhos —, eis a lenda do espanhol bem clara. Ali está ele com os braços levantados e praguejando no mar, e aqui estão as duas pragas: o navio naufragado e o incêndio da Torre de Pendra­gon.

Pendragon sacudiu a cabeça numa espécie de respeitoso divertimento.

E quantas outras coisas mais poderiam estar aí? — perguntou. — Não sabe que a espécie de meio-homem, de meio-leão ou meio-veado é muito comum na heráldica? Não

poderia a linha através do navio ser uma daquelas linhas parti-per-pale, denteadas, como parece a chamam? E embora a terceira coisa não seja tão heráldica, seria mais heráldico supô-la como uma torre encimada mais por um loureiro do que pelo fogo, e parece exatamente isto.

Mas parece um tanto estranho — disse Flambeau — que confirmasse exatamente a antiga lenda.

Ah — respondeu o viajante cético —, mas o senhor não sabe quanto da antiga lenda pode ter sido tirado de anti­gas figuras. Além disso, não é a única lenda antiga. Fanshaw, que gosta dessas coisas, poderá dizer-lhe que há outras ver­sões da estória e versões muito mais horríveis. Uma estória diz que meu infeliz antepassado cortou o espanhol em dois, o que se ajusta também perfeitamente com a escultura. Outra versão atribui graciosamente à nossa família a posse de uma torre cheia de serpentes e explica desse modo as coisas cole­antes da escultura. E a terceira teoria supõe que a linha torta no navio deva ser um raio convencionalizado; mas só isto, se seriamente examinado, demonstraria como realmente são infe­lizes essas pequenas coincidências.

Como assim? — perguntou Fanshaw.

Acontece — respondeu o anfitrião, friamente — que não havia nem trovão nem relâmpago nos dois ou três naufrá­gios que conheço na minha família.

Oh! — disse padre Brown pulando da pequena mesa.

Houve outro silêncio em que ouviram o murmúrio con­tínuo do rio; em seguida, Fanshaw disse num tom de dúvida e, talvez, de desapontamento.

Então não acha que haja algo verdadeiro nas estórias da torre em chamas?

Estórias existem, é claro — disse o Almirante, enco­lhendo os ombros. — E algumas delas, não posso negar, ba­seadas em provas bastante decentes. Uns viram um clarão nessas imediações, quando voltavam para casa pelo bosque; outros, guardando ovelhas nas trevas altas do interior, julga­vam ter visto uma chama ondulando sobre a torre de Pendra­gon. Ora, uma esponja úmida de terra como esta ilha maldita parece o último lugar onde se pudesse pensar em incêndio.

Que fogo é aquele ali? — perguntou padre Brown com uma ligeira precipitação, apontando o dedo para os bosques na margem esquerda do rio.

Ficaram todos um pouco desapontados. Fanshaw, mais imaginativo, teve mesmo certa dificuldade em recuperar seu equilíbrio, quando viram um fluxo de fumaça azul subindo silenciosamente à luz do crepúsculo.

Pendragon retomou sua risada de escárnio.

Ciganos! — disse. — Estão acampados aqui há uma semana. Mas vamos, os senhores precisam jantar — e se vol­tou como se fosse entrar em casa.

Mas a superstição arqueológica de Fanshaw estava ainda estremecida.

Mas, Almirante, que ruído sibilante é este tão perto da ilha? Parece incêndio.

Se parece mais do que realmente — disse o Almi­rante, rindo, caminhando na frente. — É uma simples canoa que passa.

Ele ainda falava quando o mordomo, um senhor magro, de preto, de cabelos negros e rosto comprido e pálido, apare­ceu no vão da porta e avisou que o jantar estava servido.

A sala de jantar era tão náutica como a cabina de um navio; mas seu aspecto era mais moderno do que o de uma capitânea elizabetana. Havia, na verdade, três antigas espadas de abordagem como troféu sobre a lareira, e um mapa marrom do século XVI com tritões e alguns pequenos navios pontilhados num mar ondulado. Mas essas coisas destacam-se menos, no lambril branco, do que algumas gaiolas de exóticos pássa­ros sul-americanos de cor esquisita, cientificamente empalhados, conchas fantásticas do Pacífico e vários instrumentos de forma tão rude e estranha que os selvagens poderiam tê-los usado ou para matar seus inimigos ou para comê-los. Além do mordomo, os dois únicos empregados do Almirante eram dois negros, vestidos de modo curioso em uniformes amarelos bem justos. O instinto impulsivo do padre de analisar suas próprias impressões disse-lhe que a cor e fraques curtos e limpos daqueles bípedes sugeriam a palavra "canário" e assim por uma simples associação de idéias ligou-os a alguma viagem ao sul. No final do jantar, tiraram suas roupas amarelas e rostos pretos da sala, deixando apenas as roupas pretas e o rosto amarelo do mordomo.

Lamento muito que você tenha tomado a coisa tão superficialmente — disse Fanshaw a seu anfitrião. — A verdade é que trouxe esses meus amigos aqui com a intenção de ajudá-lo, pois sabem muita coisa desse gênero. Você não acredita realmente na estória da família?

Não acredito em nada — respondeu Pendragon, brus­camente, com um olhar fixo num pássaro vermelho tropical. Sou um homem de ciência.

Para surpresa de Flambeau, seu amigo eclesiástico, que parecia inteiramente despertado, aproveitou a digressão e passou a falar sobre história natural com seu anfitrião com fluência de palavras e muitos dados inesperados, até que a sobremesa e as garrafas fossem retiradas e o último dos criados tivesse desaparecido. Disse, então, sem alterar seu tom de voz:

Não leve a mal minha impertinência, Almirante Pendragon. Não pergunto por mera curiosidade, mas realmente para minha orientação e sua conveniência. Daria um palpite errado se supusesse que o senhor não gosta de falar dessas coisas antigas diante de seu mordomo?

O Almirante levantou os sobrolhos sem pêlo e exclamou:

Bem, não sei aonde o senhor quer chegar, mas a ver­dade é que não posso suportar aquele sujeito, embora não tenha desculpa para dispensar um criado da família. Fanshaw, com suas estórias de fadas, diria que meu sangue se agita diante de homens como aquele de cabelos pretos com ar de espanhol.

Flambeau deu um murro na mesa com seus punhos pe­sados.

Por Deus — exclamou. — Aquela moça era assim!

Espero que tudo termine esta noite — continuou o Almirante — quando meu sobrinho chegar são e salvo de seu navio. Os senhores parecem surpresos. Não vão compreender, suponho, a menos que lhes conte a estória. Sabem, meu pai teve dois filhos; eu fiquei solteiro, mas meu irmão mais velho se casou e teve um filho que se fez marinheiro como todos nós, e herdará a propriedade. Ora, meu pai era um sujeito estranho; combinava de certo modo a superstição de Fanshaw com uma boa dose de meu ceticismo. Superstição e ceticismo estavam sempre em conflito dentro dele. Depois de minhas primeiras viagens, lhe nasceu a idéia: descobriria se a praga era verdadeira ou não. Se todos os Pendragon viajassem por aí a esmo, haveria muita chance de catástrofes naturais para provar tudo. Mas se viajássemos um de cada vez, numa ordem estrita de sucessão da propriedade, isso poderia mostrar se qualquer destino relacionado com a praga acompanharia ou não a família como família. Era uma solução tola, penso, e discuti com meu pai acaloradamente, pois eu era um homem ambicioso e fiquei para o último na ordem de sucessão, depois de meu próprio sobrinho.

E seu pai e seu irmão, ao que parece, morreram no mar — disse o padre, delicadamente.

Sim — murmurou o Almirante. — Por um daqueles acidentes brutais, em que são construídas todas as mentirosas mitologias da humanidade, morreram ambos num naufrágio. Meu pai, vindo pela costa do Atlântico, veio afundar nesses rochedos córnicos. O navio de meu irmão naufragou, ninguém sabe onde, de volta da Tasmânia. Seu corpo nunca foi encontrado. Tenho certeza de que tudo não passou de um acidente perfeitamente natural; muitas outras pessoas pereceram, além dos Pendragon, e ambos os desastres foram encarados de maneira normal pelos navegadores. Mas, naturalmente, lançou um incêndio de superstição nesta floresta; e muita gente viu a torre flamejante em toda parte. É por isso que digo que tudo estará terminado quando Walter voltar. A moça com quem se vai casar deveria chegar hoje; mas temi que algum atraso casual a preocupasse, de modo que lhe passei um tele­grama para não vir enquanto eu não a chamasse. Quanto a ele, está praticamente certo de chegar hoje à noite, e tudo então se dissipará como fumaça, como a fumaça de cachimbo. Acabaremos com aquela velha mentira quando abrirmos uma garrafa deste vinho.

Excelente vinho — comentou o padre Brown, levan­tando solenemente seu copo —, mas, como o senhor vê, sou um péssimo bebedor. Peço-lhe sinceramente que me desculpe, pois deixei uma pequena mancha de vinho na toalha da mesa.

Bebeu e abaixou o copo com uma expressão serena; mas sua mão tremera no momento exato em que havia percebido um rosto olhando pela janela do jardim, logo atrás do Almi­rante — o rosto de uma mulher, morena, de cabelos e olhos negros, jovem, mas com uma expressão trágica.

Após uma pausa, o padre falou novamente com seu tom suave:

Almirante, quer fazer-me um favor? Permita-me a mim e a meus amigos, se eles quiserem, passar esta noite na­quela sua torre, só esta noite? O senhor sabe que no meu negócio, antes de mais nada, sou um exorcista?

Pendragon levantou-se e começou a caminhar de um lado para outro junto à janela, de onde o rosto desaparecera instantaneamente.

Afirmo-lhe que não há nada nela — exclamou, com indisfarçável violência. — Há uma coisa que sei sobre esse assunto. Pode-me chamar de ateu. Sou ateu.

Nesse momento deu uma volta e encarou o padre com um rosto em terrível concentração.

Tudo isso é perfeitamente natural. Não existe maldi­ção alguma.

Padre Brown sorriu e disse:

Nesse caso, não pode haver qualquer objeção sua em me deixar dormir naquela deliciosa casa de veraneio.

A idéia é mais do que ridícula — desencorajou-o o Almirante, tamborilando no encosto de sua cadeira.

Queira desculpar-me por tudo — Brown usou seu tom de voz mais simpático — inclusive por ter derramado o vinho. Mas me parece que o senhor não se sente muito à vontade com a torre flamejante, como procura parecer.

O Almirante Pendragon sentou-se novamente do mesmo modo brusco como se levantara; mas procurou acalmar-se e quando voltou a falar foi em voz mais baixa:

O senhor o fará por seu próprio risco, mas o senhor não seria ateu para se manter seguro em toda essa diabrura?

Cerca de três ou quatro horas mais tarde, Fanshaw, Flambeau e o padre estavam ainda perambulando pelo jardim, no escuro; e o dia já começaria a raiar duas horas depois e padre Brown não tinha intenção de ir dormir nem na torre nem na casa.

Acho que o jardim precisa ser melhorado — comen­tou vagamente. — Se eu pudesse encontrar uma pá eu mesmo o faria.

Eles o acompanharam, rindo e reclamando; mas o padre Brown respondeu com toda solenidade, explicando-lhes, num sermão breve e irritante, que a gente sempre pode encontrar uma pequena ocupação que seja útil aos outros. Não achou uma pá, mas descobriu uma velha vassoura feita de ramos, com a qual começou a varrer vigorosamente as folhas caídas sobre a grama.

Há sempre pequenas coisas que podem ser feitas — explicou com uma jovialidade tola. — Como diz George Herbert, "quem varre um jardim de Almirante na Cornualha por causa de Tuas leis torna o jardim e a ação digna". E agora — acrescentou, atirando subitamente a vassoura para um lado — vamos molhar as flores.

Com as mesmas emoções confusas viram-no desenrolar considerável extensão da grande mangueira do jardim, dizendo com ar de atenta discriminação.

As tulipas vermelhas antes das amarelas. Parecem um pouco ressequidas, não acham?

Torceu um pouco a torneira da mangueira e a água irrom­peu direta e firme como uma corda de aço.

Atenção, Sansão — gritou Flambeau —, você cortou a cabeça da tulipa.

Padre Brown ficou a olhar pesaroso para a planta deca­pitada.

Meu regadio parece ser mais para matar do que para curar — admitiu, coçando a cabeça. — Foi pena não ter en­contrado uma pá. Se vocês me vissem com uma pá! Por falar em pá, você trouxe, Flambeau, a bengala de estoque com que sempre anda? Está bem; e Sir Cecil podia apanhar aquela espada que o almirante jogou na estrada junto da cerca. Como tudo parece cinzento!

O nevoeiro está subindo do rio — disse Flambeau admirado.

Estava ainda falando quando a figura imensa do jardineiro cabeludo surgiu num barranco mais alto do jardim cer­cado de valetas, e gritou para eles brandindo um ancinho e com uma voz horrivelmente berrada:

Larguem esta mangueira aí. Larguem esta mangueira aí e vão para...

Sou um bocado mal-educado — disse timidamente o reverendo. — Sabe, entornei vinho na mesa do jantar.

Deu uma meia volta irresoluto na direção do jardineiro, com a mangueira ainda jorrando em suas mãos. O jardineiro recebeu o jato frio de água em pleno rosto como o impacto de uma bala de canhão; cambaleou, escorregou e caiu de pernas para o ar.

Que pena! — disse o padre, olhando em torno numa espécie de admiração. — Ora vejam, feri um homem!

Ficou com a cabeça inclinada por um instante como se olhasse ou ouvisse; em seguida saiu correndo na direção da torre, arrastando ainda a mangueira. A torre estava muito perto, mas tinha a silhueta curiosamente obscurecida.

Seu nevoeiro — comentou o padre Brown — tem cheiro esquisito.

É verdade — gritou Fanshaw, branco como cera. — Mas não quer dizer...

Quero dizer — cortou padre Brown — que uma das previsões científicas do Almirante se está tornando verdadeira nesta noite. A estória vai acabar em fumaça.

Ainda falava quando uma linda luz vermelha irrompeu numa florescência de rosa gigantesca, mas acompanhada de um ruído crepitante e chocalhante que se parecia com a risada de demônios.

Meu Deus! o que é isto? — exclamou Sir Cecil Fan­shaw.

O sinal da torre flamejante — respondeu padre Brown e dirigiu o jato de água de sua mangueira para o centro da mancha vermelha.

Ainda bem que não fomos dormir! — exclamou Fan­shaw. — Acho que não pode alastrar-se até a casa.

Lembre-se — disse o padre calmamente — que a cerca de madeira que poderia conduzi-lo foi cortada.

Flambeau voltou os olhos faiscantes para seu amigo, mas Fanshaw limitou-se a dizer distraidamente:

Ainda bem que não há perigo de vida.

É uma curiosa espécie de torre — observou padre Brown; — quando resolve matar gente, sempre mata quem está em alguma outra parte.

No mesmo instante a figura monstruosa do jardineiro com a barba pingando surgiu de novo no barranco verde, acenando para outros virem. Agora, porém, não fazia sinal com um ancinho, mas com uma espada de abordagem. Atrás dele vinham os dois negros, também com as espadas velhas e tortas do tro­féu. Mas no clarão vermelho cor de sangue, com seus rostos pretos e roupas amarelas, pareciam demônios carregando ins­trumentos de tortura. No jardim escuro atrás deles uma voz distante era ouvida dando breves ordens. Quando o padre ouviu a voz, uma mudança terrível tomou conta de seu semblante.

Mas continuou calmo e não tirou os olhos do centro das chamas que haviam começado a se espalhar, mas que agora pareciam restringir-se um pouco quando atingidas pelo compri­do jato de água. Padre Brown continuava segurando firme o esguincho da mangueira para atingir o alvo, e não cuidava de mais nada, tomando apenas consciência pelo ruído e pelo canto dos olhos dos incidentes excitantes que começaram a se preci­pitar no jardim da ilha. Deu algumas ordens breves a seus ami­gos. Uma delas:

Subjuguem esses sujeitos e os amarrem; há uma corda junto daqueles feixes. Querem me tomar a mangueira.

Outra:

Tão logo tenham uma oportunidade, gritem para a moça da canoa; está ali no barranco com os ciganos. Pergun­tem se eles podem arranjar uns baldes e apanhar água do rio.

Em seguida calou-se e continuou a aguar a nova flor ver­melha flamejante tão implacavelmente como tinha aguado a tulipa vermelha.

Nem uma vez virou a cabeça para olhar a luta estranha que se seguiu entre os inimigos e os amigos daquele fogo mis­terioso. Quase sentiu a ilha afundar-se quando Flambeau coli­diu com o imenso jardineiro; imaginava simplesmente o que se passava ao redor deles enquanto lutavam. Ouviu o ruído da queda e a arfada de triunfo de seu amigo quando caiu em cima do primeiro negro e os gritos de ambos quando Flambeau e Fanshaw os amarraram. A força enorme de Flambeau havia sido decisiva na luta contra os três inimigos, mas o quarto homem ainda rondava perto da casa, só como uma sombra e uma voz. Ouviu também a água cortada pelos remos de uma canoa; a voz da moça dando ordens, as vozes dos ciganos respondendo e se aproximando, o ruído de baldes que se enchiam mergulhados na corrente, e, finalmente, o som de muitos pés perto do fogo. Mas tudo isso era menos importante para ele que se preocupava unicamente com o fato de as chamas es­tarem diminuindo sensivelmente.

Em seguida, ouviu um grito que quase o levou a voltar a cabeça. Flambeau e Fanshaw, agora ajudados por alguns ciganos, tinham corrido atrás do misterioso homem junto da casa. Ouviu do outro lado do jardim o grito de espanto do francês. Ecoou como um grito que não podia ser chamado humano, como se tivesse rompido de seu ponto de apoio e corrido ao longo do jardim. Três vezes no mínimo ecoou por toda a ilha, de um modo tão horrível como se se desse caça a um lunático, tanto pelos gritos do perseguido como pelo barulho das cordas levadas pelos perseguidores; mas foi mais terrível ainda, porque de certo modo sugeria um dos brinquedos de pega-pega de cri­anças no jardim. Em seguida, acuada por todos os lados, a fi­gura atirou-se do barranco mais alto e desapareceu com um baque no rio escuro e impetuoso.

Não podem fazer mais nada — disse Brown numa voz fria e sentida. — A essa altura já foi arrastado até as pedras, para onde ele mandou tantos outros. Soube fazer uso de uma lenda de família.

Deixe de falar em parábolas — exclamou Flambeau impaciente. — Não pode dizer as coisas de um modo mais objetivo?

Sim — respondeu Brown com os olhos na mangueira. — "Olhos brilhantes, rumo certo; olho piscando, naufrágio."

O fogo crepitava e estalava como uma coisa estranguladora, enquanto ia se estreitando cada vez mais sob o jato da mangueira e dos baldes, mas o padre continuava ainda atento a ele enquanto continuava a falar:

Pensei em pedir a esta moça, se já fosse manhã, para olhar por aquele telescópio o rio e a foz do rio. Ela poderia ver algo de seu interesse: a silhueta do navio, ou Mr. Walter Pendragon voltando para casa e talvez mesmo a imagem de um meio-homem, pois embora esteja salvo agora, pode estar andan­do com dificuldade na lama. Esteve à beira de outro naufrágio e não teria escapado se a moça não tivesse o instinto de suspei­tar do telegrama do velho Almirante e não tivesse vindo vigiá-lo. Não falemos sobre o almirante. Não falemos de mais nada. Basta dizer que toda vez que essa torre, com sua madeira de piche e de resina, realmente pegava fogo, a chama no horizon­te formava uma luz geminada com o farol da costa.

E foi assim — disse Flambeau — que morreram o pai e o irmão. O tio mau das lendas gostava muito de sua propriedade, afinal de contas.

Padre Brown nada mais disse. Na realidade, não falou de novo, a não ser por urbanidade, até que estivessem todos salvos em torno de uma caixa de charuto na cabina do iate. Viu que o incêndio frustrado estava extinto; então não quis demorar-se por ali, embora ouvisse o jovem Pendragon, escoltado por uma turba entusiástica, subindo o barranco do rio; e pudesse (tivesse sido levado por curiosidades românticas) ter recebido os agradecimentos conjuntos do homem do navio e da moça da canoa. Mas a fadiga o tinha dominado de novo e só se espantou uma vez, quando Flambeau lhe disse brusca­mente que deixara cair cinza de charuto em suas calças.

Isso não é cinza de charuto — disse um tanto enfas­tiado. — Foi do fogo, mas você não pensa assim porque estão todos fumando charutos. Foi exatamente assim que tive a pri­meira suspeita sobre o mapa.

Refere-se ao mapa de Pendragon, de suas Ilhas do Pacífico? — perguntou Flambeau.

Vocês pensaram que fosse um mapa das Ilhas do Pa­cífico. Ponha uma pena num fóssil ou um pedaço de coral e todos pensarão que é um espécimen. Mas ponham a mesma pena numa fita e numa flor artificial e todos pensarão que é para o chapéu de uma senhora. Ponha a mesma pena num tinteiro, num livro ou numa pilha de papel de escrever e a maioria dos homens jurará que viu um cálamo. Assim você viu aquele mapa entre pássaros e conchas tropicais e pensou que fosse o mapa de Ilhas do Pacífico. Era o mapa deste rio.

Mas como sabe? — perguntou Fanshaw.

Vi o rochedo que você achou semelhante a um dra­gão e outro parecido com Merlin, e...

O senhor parece ter observado tudo quando chegamos — exclamou Fanshaw. — Nós pensávamos que estivesse distraído.

Estava enjoado —: disse Brown com simplicidade. — Sentia-me simplesmente mal. Mas sentir-se mal nada tem a ver com não ver as coisas.

E fechou os olhos.

Acha que a maioria dos homens teria visto isso? — perguntou Flambeau.

Não veio qualquer resposta: o padre Brown adormecera.

 

                       O DEUS DOS GONGOS

 

Era uma daquelas tardes frias do início do inverno, quan­do a luz do dia é mais prateada do que dourada, mais plúmbea do que mesmo prateada. Se era triste em centenas de escritó­rios gelados e de salas de estar bocejantes, era ainda mais ao longo da costa plana de Essex, onde a monotonia era por de­mais inumana para ser quebrada, em intervalos muito longos, por postes de iluminação que pareciam menos refinados do que uma árvore, ou por uma árvore mais feia do que um poste de iluminação. Uma ligeira precipitação de neve reduzira-se a umas poucas tiras, parecendo também mais com chumbo do que com prata, quando fora novamente fixada pelo selo da geada; não tinha caído mais neve, mas uma fita de neve velha corria ao longo de toda a margem da costa, em paralelo com a faixa pálida da espuma.

A linha do mar parecia gelada em toda vividez de seu azul-violeta, como a veia de um dedo congelado. Por milhas e milhas, para frente e para trás, não havia vivalma, a não ser dois pedestres, caminhando em passos apressados, embora um tivesse pernas muito mais compridas e desse passadas muito mais longas do que o outro.

Lugar e tempo não eram muito adequados para um dia de folga, mas padre Brown tinha poucas folgas e tinha de aproveitá-las quando pudesse, preferindo, se possível, passá-las na companhia de seu velho amigo Flambeau, ex-criminoso e ex-detetive. O padre tinha tido a idéia de visitar seu velho pároco em Coblole e se dirigiam na direção nordeste, ao longo da costa.

Depois de caminhar mais ou menos dois quilômetros, verificaram que a praia começava a ser formalmente cercada, tornando a aparência de algo semelhante a um passeio público; os horríveis postes de iluminação começavam a se distanciar menos um do outro e se tornavam mais ornamentais, embora fossem todos igualmente horríveis. Um quilômetro adiante pa­dre Brown ficou intrigado, primeiro com os pequenos labi­rintos de canteiros sem flores, cobertos com plantas baixas, lisas e de cores discretas que pareciam mais um passeio de mosaico do que mesmo um jardim, entre caminhos discretos e sinuosos, aqui e ali com assentos de encostos encurvados. Ele farejou a atmosfera de uma certa espécie de cidade marí­tima pela qual pouco se interessava e, olhando para frente ao longo do passeio junto ao mar, viu algo que pôs a questão fora de dúvida. À distância, destacava-se o grande coreto de um bal­neário como um cogumelo gigantesco de seis pernas.

Suponho — comentou o padre Bronw, levantando a gola de seu paletó e apertando o cachecol de lã mais rente em torno do pescoço — que estamos chegando a um lugar de divertimento.

Acho — respondeu Flambeau — que é um lugar de divertimento, ao qual poucas pessoas têm o prazer de recorrer. Tentam reviver esses lugares no inverno, mas nunca con­seguem a não ser com Brighton e os mais antigos. Isso deve ser Seawood, experimento de Lorde Pooley; mandou buscar os Cantores Sicilianos no Natal e dizem que mantém ali uma das grandes lutas de boxe. Mas terão de jogar a casa podre no mar; é tão triste como um vagão de estrada de ferro aban­donado.

Tinham chegado sob o grande coreto e o padre o apre­ciava com a curiosidade algo de estranho, com a cabeça de lado, como de uma ave. Era a espécie convencional de cons­trução, embora um tanto pretensiosa para sua finalidade: uma cúpula achatada, dourada em algumas partes e apoiada sobre seis pilastras finas, de madeira pintada, a cerca de metro e meio acima do passeio numa plataforma de madeira, redonda como um tambor. Mas havia um quê de fantástico na neve combinada com algo artificial de ouro que despertou em Flambeau e em seu amigo uma associação que não podiam apreender, mas que sabiam que era ao mesmo tempo artístico e exótico.

Descobri — disse Flambeau finalmente. — É japonês. Tem semelhança com aqueles fantasiosos impressos japoneses, onde a neve da montanha parece açúcar e o dourado dos pagodes parece o dourado de pão-doce. Parece exatamente com um pequeno templo pagão.

É — concordou o padre Brown. — Vamos dar uma olhadela no deus.

E com uma agilidade que não era de se esperar dele, pulou para cima da plataforma.

Muito bem! — exclamou Flambeau, rindo. E no mo­mento seguinte sua própria figura imensa se fazia ver naquela estranha elevação.

Pequena como era a diferença de altura, dava naquelas extensões planas a sensação de se ver cada vez mais distante na terra e no mar. Para o interior, pequenos jardins invernais desapareciam num bosque cinzento e confuso; para além, à distância, viam-se celeiros baixos de uma fazenda isolada e mais além, nada, a não ser as extensas planícies do leste. Na direção do mar não se via embarcação alguma ou qual­quer outro sinal de vida, a não ser algumas gaivotas; mesmo estas pareciam os últimos flocos de neve, dando mais a impres­são de flutuar do que de voar.

Flambeau voltou-se bruscamente para um chamado atrás dele. Parecia vir de mais baixo do que poderia esperar, e ser dirigida à seus calcanhares em vez de à sua cabeça. Estendeu a mão imediatamente, mas quase não pôde deixar de rir do que viu. Por qualquer motivo, a plataforma tinha cedido sob o padre Brown e o pobre homenzinho caíra no fundo. Ele era bastante alto, ou bastante baixo, para que só sua cabeça estivesse do lado de fora do buraco na tábua quebrada, parecendo a cabeça de São João Batista na bandeja. No rosto, uma expressão de embaraço, como talvez a de São João Batista.

No momento começou a rir baixinho.

Esta madeira deve estar podre — disse Flambeau. — Embora pareça estranho que possa agüentar-me e você tenha passado justamente pelo lugar mais fraco. Deixe-me ajudá-lo a sair.

O padrezinho, porém, estava olhando curiosamente para os cantos e extremidades da madeira que supunha podre e uma preocupação esboçou-se em seu cenho.

Vamos — exclamou Flambeau impaciente, ainda com sua grande mão morena estendida. — Não quer sair daí?

O padre segurava uma lasca da madeira quebrada entre o polegar e o indicador e não respondeu logo. Finalmente disse pensativo:

Sair daqui? Oh, não. Acho que vou é entrar. — E mergulhou na escuridão debaixo do assoalho de madeira tão abruptamente que bateu com o chapéu eclesiástico, que caiu em cima das tábuas, sem nenhuma cabeça eclesiástica dentro dele.

Flambeau olhou de novo para o interior e para o mar e mais uma vez nada pôde ver além de mares tão invernosos como a neve, e neves tão planas como o mar.

Ouviu um ruído de trote atrás dele: o pequeno padre vinha saindo precipitadamente pelo buraco mais depressa do que entrara. Sua expressão não era mais de embaraço, mas de resolução, e, talvez por causa dos reflexos da neve, um pouco mais pálido do que de costume.

Então? — perguntou Flambeau. — Encontrou o deus do templo?

Não. Encontrei o que às vezes era mais importante. O sacrifício.

Que diabo está dizendo? — perguntou Flambeau alarmado.

Padre Brown não respondeu. Estava olhando aturdido, com uma ruga na testa, para a paisagem. Subitamente apontou para ela.

Que casa é aquela ali? — perguntou.

Acompanhando seu dedo, Flambeau viu pela primeira vez

os cantos de uma construção mais perto do que a fazenda, mas oculta na sua maior parte por uma orla de árvores. Não era uma grande construção e estava bem distante da praia; mas um indício de ornamento sugeria que fazia parte do mesmo esquema de decoração do coreto, dos jardinzinhos e dos assen­tos de ferro do encosto recurvado.

Padre Brown pulou do coreto, seguido de seu amigo. Enquanto caminhavam na direção indicada, as árvores se afas­tavam para a direita e para esquerda, e viram um hotel pequeno, mas vistoso, como é comum nas estações de água — o hotel mais do salão de bar do que de salão de conversação. Quase toda a fachada era de reboco dourado e de vidro floreado, e entre a paisagem marítima e as árvores cinzentas, que pare­ciam feiticeiras, sua aparência vistosa tinha algo de espectral em sua melancolia. Ambos tiveram vagamente a impressão de que se qualquer alimento ou bebida fossem ali servidos, seria presunto de papel e caneco de pantomina, vazio.

Nisso, entretanto, estavam com toda a razão. Quando se aproximaram mais da casa viram em frente do restaurante, que estava aparentemente fechado, um dos assentos de ferro de encosto recurvado que tinham adornado os jardins, mas muito mais comprido, enchendo quase toda a extensão frontal da casa. Aparentemente, fora ali colocado para que os visitantes pudessem assentar-se e apreciar o mar, mas seria difícil encon­trar alguém fazendo isso num inverno daquele.

Não obstante, bem na frente da ponta do assento de ferro estava uma pequena mesa de restaurante e sobre ela uma pequena garrafa de Chablis e um prato de almôndegas e uvas. Assentado atrás da mesa estava um jovem de cabelos pretos, testa calva, contemplando o mar numa imobilidade quase assombrosa.

Mas embora pudesse parecer uma figura de cera quando estavam a quatro metros dele, saltou como um tungo quando se aproximaram a três metros e disse de uma maneira diferente, embora não sem dignidade:

Querem entrar, cavalheiros? Não temos o que servir no momento, mas posso arranjar-lhes alguma coisa simples.

Muito agradecido — disse Flambeau. — Então o se­nhor é o proprietário?

Sim — respondeu o homem moreno, voltando a seu maneirismo imóvel. — Meus garçons são todos italianos, sabe, e achei que fosse justo deixá-los ir ver seu concidadão bater no preto, se é que pode fazê-lo. Sabem que vai haver uma grande luta entre Malvoli e o negro Ned?

Lamento não podermos demorar para abusar de sua hospitalidade — disse o padre Brown. Mas tenho certeza de que meu amigo gostaria de tomar um copo de xerez, para defender-se do frio e brindar ao sucesso do campeão latino.

Flambeau não compreendeu o xerez, mas não fez qual­quer objeção. Limitou-se a dizer amavelmente:

Oh, muito, muito obrigado.

Xerez? Perfeitamente — disse o anfitrião, voltando-se para sua hospedaria. — Perdoem-me se os faço esperar um pouquinho. Como lhes disse, estou sem pessoal...

E saiu na direção das janelas escuras de sua estalagem de persianas fechadas e escuras.

Não tem importância — começou Flambeau, mas o homem voltou para reassegurá-lo.

Tenho as chaves — disse. — Posso encontrar o ca­minho no escuro.

Não pretendi... — iniciou o padre Brown.

Foi interrompido pelo berro de uma voz humana que vinha das entranhas da casa desabitada. Soou um certo nome estrangeiro, alto mas incompreensível, e o proprietário do hotel apres­sou-se mais na direção do grito do que para o xerez de Flam­beau. Era uma prova instantânea de que o proprietário não dissera, nesse mesmo instante, nada além da pura verdade. Mas tanto Flambeau como Padre Brown muitas vezes confes­saram que, em todas as suas aventuras (muitas vezes extrava­gantes), nada tinha feito gelar tanto seu sangue como aquela voz de ogro a ecoar subitamente de uma hospedaria vazia e silenciosa.

Meu cozinheiro! — gritou o proprietário apressado. — Tinha-me esquecido de meu cozinheiro. Está saindo agora. Xerez, senhor?

E, de fato, apareceu no vão da porta um grandalhão todo de branco com uma touca e avental branco, como convém a um cozinheiro, mas com a ênfase desnecessária de um rosto preto. Flambeau tinha ouvido muitas vezes que os negros dão bons cozinheiros. Mas algo no contraste da cor e da casta aumen­tava sua surpresa de que o proprietário do hotel atendesse ao chamado do cozinheiro, e não o cozinheiro ao chamado do pro­prietário. Mas refletiu que os cozinheiros-chefes são proverbialmente arrogantes e que, além disso, o anfitrião voltara com o xerez, e isso era uma grande coisa.

Eu me pergunto — comentou o padre por que há tão pouca gente na praia, uma vez que vai haver essa grande luta. Só encontramos uma pessoa em toda a extensão.

O proprietário do hotel encolheu os ombros.

Vêm do outro lado da cidade, do posto, a cinco quilô­metros daqui. Só se interessam por esportes e só ficam em hotéis por uma noite. Afinal de contas, está muito frio para se esquentar na praia.

Ou no banco — acrescentou Flambeau, apontando pa­ra a mesinha.

Preciso vigiar a casa — disse o homem com a fisio­nomia impassível.

Era um tipo calmo e de boa aparência, um tanto pálido; suas roupas escuras não tinham nada de especial, a não ser o nó da gravata muito alto, como uma coleira e segura com um broche de ouro com uma cabeça grotesca. Também nada de notável em sua face, a não ser talvez de um simples tique nervoso — o hábito de fechar um olho, dando a impressão de que o outro fosse maior ou, talvez, artificial.

O silêncio que se seguiu foi rompido pelo anfitrião que disse calmamente:

Onde foi que os senhores encontraram o homem em sua vinda?

É curioso — respondeu o padre —, bem perto daqui... exatamente naquele coreto.

Flambeau, que se tinha assentado no banco de ferro com­prido para terminar seu xerez, colocou-o em cima da mesa e levantou-se, encarando seu amigo, atônito. Abriu a boca para falar e em seguida calou-se novamente.

Curioso — disse o homem moreno, pensativo. — Com que se parecia?

Estava mais ou menos escuro quando o vi — respon­deu o padre. — Mas era...

Como se disse, o hoteleiro pôde provar que tinha dito a absoluta verdade. Sua palavra de que o cozinheiro estava de saída, foi cumprida ao pé da letra, pois o cozinheiro saiu, enfiando suas luvas, ainda quando falavam. Já agora, porém, uma figura muito diferente da massa confusa de branco e preto que surgira por instante no vão da porta. Vestia-se dos pés a cabeça na mais rigorosa moda. Um chapéu preto pendia de sua cabeça grande e também preta — um chapéu da espécie que o espírito francês comparou a oito espelhos. De certo modo, havia uma semelhança entre o homem preto e o chapéu preto. Ambos eram pretos, mas sua pele lustrosa refletia a luz em oito ou mais ângulos Não é preciso dizer que usava polainas brancas e um pulover branco por baixo do colete. A flor ver­melha sobressaia-se agressivamente em sua lapela, como se de repente tivesse brotado ali. E na maneira como levava a ben­gala em uma das mãos e o charuto na outra havia uma certa atitude estranha, a atitude de que sempre nos devemos lembrar quando falamos de preconceitos raciais: algo de inocente e de insolente — uma dança grotesca.

Às vezes — comentou Flambeau, olhando para o negro — não me surpreendo quando são linchados.

Nunca me surpreendo — disse o padre Brown — com qualquer obra do demônio. Mas como estava dizendo — retomou a conversa, quando o negro, ainda metendo ostentosamente suas luvas amarelas, tomou bruscamente a direção do balneário, uma estranha figura de opereta contra um cenário cinza e enregelado —, não posso descrever o homem com muitos detalhes, mas tinha suíças e bigodes fora de moda, es­curos ou pintados, como nos quadros de financistas estrangeiros, seu pescoço redondo estava envolto num cachecol comprido, de cor roxa, que se balançava ao vento quando andava. Estava preso ao pescoço da maneira como as babás prendem as fraldas de criançinhas com um alfinete de segurança.

Só que o que vi — acrescentou o padre, olhando placidamente para o mar — não era alfinete de segurança.

O homem assentado no banco de ferro olhava também placidamente para o mar. Estava novamente de repouso. Flam­beau estava certo de que um de seus olhos era maior do que o outro. Ambos estavam completamente abertos e quase teve a impressão de que o olho se tornava maior enquanto ele con­templava. Padre Brown continuou:

Era um broche de ouro bem comprido e tinha a cabeça modelada de um macaco ou coisa semelhante. E estava preso de uma maneira um tanto estranha.. . usava pince-nez e um...

O homem impassível continuava a olhar o mar e seus olhos poderiam ter pertencido a dois homens diferentes. Em seguida, fez um movimento com uma rapidez impressionante.

Padre Brown estava de costas para ele e naquele instante poderia ter tombado morto com o rosto no chão. Flambeau não tinha nenhuma arma, mas suas mãos grandes e morenas estavam apoiadas na ponta do comprido banco de ferro. Seus ombros mudaram repentinamente de forma e ele levantou toda aquela imensa coisa por sobre sua cabeça como o machado de um decapitador prestes a tombar. A simples altura da coisa, segura na posição vertical, parecia uma comprida escada de ferro com a qual estivesse convidando os presentes a subir às estrelas. Mas a sombra comprida, na luz regular da noite, pa­recia a de um gigante brandindo a Torre Eiffel. Foi o choque daquela sombra, antes do choque do estrépito do ferro, que levou o estranho a se intimidar e esquivar-se e, em seguida, a correr para dentro de sua estalagem, deixando ali mesmo o punhal liso e brilhante no lugar onde caíra.

Precisamos sair daqui imediatamente — disse Flam­beau, atirando o pesado banco com furiosa indiferença sobre a praia. Tomou o padrezinho pelo braço e o levou correndo para a parte sombria aparentemente de um quintal vazio no fim do qual havia uma porta de fundos fechada. Flambeau inclinou-se junto à porta por um instante num silêncio aflito.

A porta está fechada — disse em seguida.

Enquanto falava uma pena preta de um dos abetos ornamentais caiu, roçando a aba de seu chapéu. Isto o espantou mais do que o estampido leve e distante que tinham ouvido há pouco. Imediatamente ouviu-se outra detonação distante e a porta que tentava abrir tremeu com a bala cravada nela. Os ombros de Flambeau incharam-se de novo e ele se alterou subi­tamente. Três dobradiças e uma fechadura romperam-se no mesmo instante e ele entrou no caminho vazio, levando a grande porta com ele, como fez Sansão com os portões de Gaza.

Em seguida, jogou a porta pelo muro do jardim, exata­mente quando um terceiro tiro espalhou neve e poeira atrás de seu calcanhar. Sem cerimônia agarrou o padre, escanchou-o sobre seus ombros e saiu correndo na direção de Seawood, tão rápido quanto suas pernas o permitiam. Só três quilômetros adiante foi que depôs seu amigo no chão. Não tinha sido uma fuga muito digna, apesar do clássico modelo de Anquises, mas o rosto do padre Brown esboçou apenas um amplo sorriso.

Bem — começou Flambeau, depois de um silêncio impaciente, quando retomaram seus passos mais convencionais através das ruas das cercanias da cidade, onde não tinham a temer qualquer atentado. — Não sei o que significa tudo isso, mas quase chego a apostar como você nunca viu o homem que descreveu com tanta precisão.

Eu o vi, mais ou menos — afirmou Brown, mordendo o dedo com certo nervosismo. — Eu o vi realmente. Estava escuro demais para vê-lo bem, pois estava debaixo do coreto. Mas acho que não o descrevi tão bem, afinal de contas, pois seu pince-nez estava quebrado, a seus pés, e o comprido broche de ouro não estava enfiado em seu cachecol roxo, mas no seu coração.

E suponho — disse Flambeau em voz baixa — que o sujeito de olho de vidro tenha algo a ver com isso.

Tive a esperança de que tivesse apenas pouco envol­vido — padre Brown tinha a voz um tanto embargada. — É possível que eu tenho agido impulsivamente. Mas acho que esse negócio tem raízes profundas e negras.

Caminharam calados através de algumas ruas. As lâmpa­das amarelas estavam começando a se acender no frio crepús­culo azulado, e eles se aproximavam evidentemente do centro da cidade. Cartazes coloridos anunciando a luta de boxe entre o negro Ned e Malvoli estavam colados na parede.

Bem — confidenciou Flambeau. — Nunca matei nin­guém, nem mesmo nos meus dias de crime, mas chego quase a compreender quem o faz num lugar horrível como este. De todos os refugos da natureza, acho que os mais dolorosos são lugares como aquele coreto, feito para ser festivo e tão abando­nado. Posso imaginar o mórbido sentimento de uma pessoa que deve matar seu rival na solidão e a ironia dessa cena. Lembro- me de uma vez ter feito uma excursão por suas gloriosas mon­tanhas Surrey, pensando apenas em tojos e cotovias, quando dei com um grande círculo de terra, e sobre mim levantava-se uma vasta e muda estrutura, com filas após filas de assentos, tão amplos como um anfiteatro romano e tão vazio como um porta-cartas. Um pássaro voava por cima dele. Era a Grande Arquibancada de Epson. E achei que ninguém jamais seria feliz ali de novo.

Curioso você mencionar Epson. Lembra-se do que foi chamado de Mistério de Sutton, porque dois homens suspeitos, dois sorveteiros, acho, viviam por acaso em Sutton? Foram finalmente soltos. Um homem foi encontrado estrangu­lado, dizem, nos Baixios daquela parte. Na realidade, soube, por meio de um policial irlandês, meu amigo, que foi encon­trado muito perto da Grande Arquibancada de Epson, escon­dido apenas por uma das portas inferiores que tinha sido fecha­da novamente.

Isso é estranho — assentiu Flambeau. — Mas con­firma minha teoria de que esses lugares de prazer parecem terrivelmente solitários fora das estações, ou o homem não teria sido morto ali.

— Não estou tão certo de que ele...

Não está tão certo de que ele foi assassinado? — per­guntou o outro.

Não tão certo de que tenha sido assassinado fora da estação — respondeu o pequeno padre, com simplicidade. — Você não acha que há algo de insidioso nesta solidão, Flam­beau? Tem certeza de que um assassino inteligente preferiria sempre um lugar solitário? É muito, muito raro um homem ficar só. E, além disso, quanto mais sozinho se está, maior a certeza de ser visto. Não, acho que deve haver alguém mais... Ora essa, aqui estamos no Pavilhão ou Palácio, sei lá como o chamam.

Tinham saído numa pequena praça, brilhantemente iluminada, cujo edifício principal tinha um ar festivo com seus cartazes dourados e vistosos e flanqueado por gigantescas foto­grafias de Malvoli e do negro Ned.

Oba! — exclamou Flambeau com grande surpresa, quando seu amigo eclesiástico subia rapidamente os amplos degraus. — Não sabia que o pugilismo fosse um de seus últimos hobbies. Vai assistir à luta?

Não creio que vá haver qualquer luta — respondeu o padre.

Passaram rapidamente pela ante-sala e pelas salas inte­riores; atravessaram o próprio salão de luta, elevado, cercado de cordas e cheio de inúmeras cadeiras e boxes, e, não obstante, o padre não olhou para os lados nem parou até que chegaram à mesa de um funcionário do lado de fora da porta, com a tabuleta "Comissão". Ali se deteve e pediu para falar com Lorde Pooley.

O atendente observou que seu patrão estava muito ocupado, pois a luta iria começar dentro em pouco, mas padre Brown tinha um temperamento de cansativa insistência, para o qual a mente do funcionário não estava preparada. Pouco depois o frustrado Flambeau achava-se na presença de um senhor que ainda gritava ordens para outro homem que saía da sala.

Cuidado, sabe, com as cordas depois da quarta... Bem, o que é que os senhores desejam saber?

Lorde Pooley era um cavalheiro e, como a maioria dos poucos remanescentes de nossa raça, era muito preocupado, principalmente com dinheiro. Meio grisalho e meio duro, tinha olhar inquieto e nariz de ponta alta, no momento enregelada.

Só uma palavrinha — disse padre Brown. — Vim prevenir para que uma pessoa não seja assassinada.

Lorde Pooley saltou de sua cadeira como se impulsio­nado por uma mola.

Diabos me levem se suporto mais isto! — exclamou.

Vocês e suas comissões, párocos e petições! Não havia párocos nos tempos antigos, quando se lutava sem luvas? Agora, luta-se com luvas obrigatórias e não há a mínima possibilidade de um ou outro boxer ser morto.

Não me refiro a nenhum dos boxers — disse o pe­queno padre.

Bem, bem — disse o cavalheiro com um toque de sarcasmo. — Quem vai morrer? O árbitro?

Não sei quem vai morrer — respondeu o padre, com um olhar pensativo. — Se eu soubesse não prejudicaria seu prazer. Eu poderia simplesmente adverti-lo para escapar. Nunca pude ver nada de errado numa luta de boxe. Assim sendo, devo- lhe pedir para anunciar que a luta está suspensa no momento.

Mais alguma coisa? — zombou o cavalheiro com olhar faiscante. — E o que o senhor irá dizer a duas mil pessoas que compraram ingressos?

Afirmo que haverá mil novecentas e noventa e nove delas vivas depois de terminada — respondeu padre Brown.

Lorde Pooley olhou para Flambeau.

Seu amigo é louco? — perguntou.

De modo algum — foi a resposta.

Olhem aqui — voltou Pooley a falar no seu tom irre­quieto. — É pior do que os senhores pensam. Uma multidão de italianos veio torcer por Malvoni... gente morena, selva­gem de certa região. Os senhores sabem como é esta gente mediterrânea. Se mandar dizer que a luta está terminada, veremos Malvoni entrar aqui furioso à frente de todo o clã corso.

Mas, meu senhor, é uma questão de vida e de morte - disse o padre. — Toque seu sino. Mande seu recado. E veja se é Malvoni que reage.

O lorde tocou a campainha da mesa com um ar estranho de nova curiosidade e ao funcionário, que apareceu quase instantaneamente no vão da porta, ordenou:

Tenho um aviso muito grave a ser dado imediata­mente ao público. Enquanto isso, tenha a bondade de dizer aos dois campeões que a luta terá de ser suspensa.

O funcionário ficou de olhos esbugalhados por alguns segundos, como se tivesse visto um demônio, e desapareceu.

Que fundamento têm os senhores para dizer o que dizem? — perguntou Lorde Pooley abruptamente. — Quem lhe deu esta informação?

Um coreto — respondeu padre Brown, coçando a cabeça. — Mas, não, me engano; foi um livro, também. Eu o achei num sebo de Londres... muito barato, sabe.

Tinha tirado de seu bolso um pequeno e grosso volume encadernado em couro, e Flambeau, olhando por cima de seu ombro, pôde ver que se tratava de um antigo guia de viagens e tinha uma folha dobrada para referência.

"A única forma em que Vudu..." — começou o padre Brown, lendo em voz alta.

Em que o quê? — perguntou o lorde.

"Em que Vudu" — repetiu o leitor, quase com satis­fação — "é amplamente organizada fora da própria Jamaica, é na forma conhecida do Macaco, ou deus dos gongos, que é poderoso em muitas regiões do continente americano, sobre­tudo entre os mestiços, muitos dos quais se parecem exatamente com homens brancos. Difere da maioria de outras formas de adoração de Satanás e de sacrifício humano pelo fato de que o sangue não é formalmente espalhado no altar, mas por uma espécie de assassinato entre a multidão. Os gongos batem com um fragor de ensurdecer quando as portas do santuário se abrem e o deus-macaco é revelado; quase toda a congregação concentra olhos estáticos nele. Mas depois..."

A porta foi aberta, violentamente, e o negro elegante apareceu no seu vão, com os olhos vidrados e seu chapéu ainda insolentemente atravessado na cabeça.

Ah! — gritou, mostrando seus dentes siamescos. — Que significa isso? Ah! Ah! Quer roubar o prêmio de um homem preto... um prêmio que já era seu... pensa que vai salvar aquele traste italiano.. .

A luta foi apenas adiada — explicou o lorde calma­mente. — Estarei com vocês dentro de uns dois minutos para lhes explicar.

Quem é você para... — gritou o negro Ned, come­çando a se inflamar.

Chamo-me Pooley — respondeu o outro, com uma frieza admirável. — Sou o secretário organizador e o advirto a que deixe esta sala imediatamente.

Quem é este sujeito? — perguntou o campeão preto, apontando para o padre desdenhosamente.

Chamo-me Brown — foi a resposta. — E o acon­selho a deixar o país o mais depressa possível.

O lutador ficou de olhos esbugalhados por alguns segun­dos, e em seguida, para surpresa de Flambeau e dos demais, saiu apressadamente, batendo a porta com estrépito atrás dele.

Então — perguntou o padre Brown, coçando seu ca­belo empoeirado —, que acha de Leonardo da Vinci? Uma linda cabeça italiana.

Olhe aqui — disse Lorde Pooley. — Assumi uma pesada responsabilidade com base em sua palavra. Acho que o senhor deve falar-me mais sobre o assunto.

O senhor tem razão. Mas não é preciso alongar-me muito.

Recolocou no bolso do paletó o pequeno livro de couro, enquanto dizia:

Acho que sabemos todos, o que isso pode significar, mas o senhor verá isso para ver que tenho razão. Aquele negro que acaba de sair daqui é um dos homens mais perigosos da terra, pois tem o cérebro de europeus, com os instintos de canibal. Ele transformou em sociedade secreta, moderna e cien­tífica, o que era entre seus concidadãos a carnificina pura e simples. Ele não sabe que eu sei, nem, quanto ao assunto, que posso prová-lo.

Houve um silêncio e o padrezinho continuou:

Mas se quero assassinar alguém, seria realmente o me­lhor plano assegurar-me de que estou sozinho com a vítima?

Os olhos de Lorde Pooley recuperaram suas expressões gélidas ao encarar o pequeno eclesiástico. Limitou-se a dizer:

Se o senhor quer assassinar alguém, devo adverti-lo...

Padre Brown meneou a cabeça, como um assassino de experiência mais amadurecida.

Assim disse Flambeau — ponderou com um suspiro. — Mas pense. Quanto mais um homem se sente solitário, menos pode estar certo de estar solitário. Isso pode significar espaços vazios em torno dele e são esses espaços que o tornam evidente. O senhor já viu de uma elevação um homem arando um terreno, ou um pastor no vale? Já andou sobre um rochedo e viu lá de cima um homem caminhando ao longo de areias? Não via quando ele matava um caranguejo? Não! Não! Não! Para um assassino inteligente, tal como o senhor ou eu poderíamos ser, é um plano impossível assegurar-me de que ninguém nos esteja vendo.

Mas existe outro plano?

Só existe um. Assegurar-se de que todo mundo esteja olhando para qualquer outra coisa. Uma pessoa é estrangulada junto à grande arquibancada de Epsom. Qualquer pessoa pode­ria tê-lo visto quando a arquibancada estivesse vazia... qual­quer andarilho junto à encosta ou algum motorista entre as montanhas. Mas ninguém teria visto quando a arquibancada estivesse cheia de gente e todo o círculo estourasse em gritos, quando o favorito estivesse chegando primeiro ou não. A torção de um lenço de pescoço, o empurrão de um corpo para trás de uma porta poderia ser feito num instante... contando que fosse naquele instante. O mesmo aconteceu, naturalmente — continuou voltando-se para Flambeau — com aquele pobre sujeito do coreto. Foi jogado pelo buraco, não era um buraco acidental, exatamente em algum momento dramático da diver­são, quando o golpe de algum grande violinista ou a voz de algum grande cantor começou a tocar ou a cantar e chegou ao auge. E aqui, naturalmente, quando viesse o golpe mortal, não seria um só. Esse é o pequeno artifício que o negro Ned adotou de seu antigo deus dos gongos.

A propósito, Malvoli... — começou Pooley.

Malvoli não tem nada a ver com isso. Ouso dizer que o negro tem alguns italianos com ele, mas nossos amáveis amigos não são italianos. São oitavões e mestiços africanos de vá­rias matizes, mas acho que nós ingleses achamos que todos os estrangeiros são do mesmo sangue, desde que sejam escuros e sujos. Além disso — acrescentou com um sorriso —, acho que o inglês evita fazer uma precisa distinção entre o caráter moral gerado por minha religião e o que floresce do culto de Vudu.

O esplendor da primavera tinha irrompido sobre Seawood, misturando-se com sua praia cheia de gente e de cabinas de banho, com pregadores nômades e menestréis pretos, antes que os dois amigos voltassem a vê-la, muito depois que a tempes­tade de perseguição da estranha sociedade secreta tinha pas­sado. Quase que totalmente o segredo de sua finalidade pere­cera com eles. O homem do hotel foi encontrado morto boiando no mar como alga marinha; seu olho direito em paz e o es­querdo completamente aberto brilhava como vidro ao luar. O negro Ned tinha sido apanhado uns três quilômetros adiante e assassinado três policiais com sua mão esquerda fechada. O oficial remanescente ficou assombrado, ou melhor, angustiado e o negro escapou. Mas isso foi suficiente para inflamar todos os jornais ingleses e durante um ou dois meses a principal finalidade do Império Britânico era evitar que o bode preto esca­passe por algum porto inglês. Pessoas de aspecto mais ou menos parecido com o seu eram submetidas a toda a sorte de inqué­ritos, obrigadas a lavar o rosto antes de subir a bordo, como se cada rosto branco fosse composto de uma máscara pintada. Todo negro na Inglaterra foi posto sob regulamentos especiais e obrigado a comunicar sua presença; os navios que partiam não levavam mais um negro do que um basilisco. Pois se havia descoberto como era terrível, amplo e silencioso o sistema da selvagem sociedade secreta, e quando Flambeau e o padre Brown estavam debruçados em abril, no parapeito do passeio, o Homem Preto significava em toda a Inglaterra quase o que outrora significava na Escócia.

Ele deve estar ainda na Inglaterra — observou Flam­beau — e muito bem escondido. Já teria sido encontrado nos portos mesmo que tivesse pintado o rosto de branco. Que outro disfarce ele usaria?

Eu acho — disse padre Brown —• que pintaria seu rosto de preto.

Flambeau, inclinando-se sobre o parapeito, deu uma ri­sada e disse:

Meu caro amigo!

Padre Brown, inclinando-se também sobre o parapeito, apontou um dedo por um instante na direção de negros com máscaras de fuligem cantando na praia.

 

                         A SALADA DO CORONEL GRAY

 

Padre Brown estava indo para casa, de volta da missa, numa estranha manhã branca, quando o nevoeiro se levantava lentamente — umas daquelas manhãs em que o próprio elemento da luz surge como algo misterioso e novo. As árvores espalhadas se delineavam mais e mais no vapor, como se fos­sem primeiro traçadas com giz cinza e depois com carvão. Em intervalos ainda mais distantes apareciam as casas na orla inter­rompida do subúrbio; seus contornos pareciam cada vez mais claros, até que reconheceu muitas onde moravam conhecidos seus casuais e outras tantas cujos proprietários conhecia de nome. Mas todas as janelas e portas estavam fechadas; não era gente de estar acordada naquela hora, e muito menos cami­nhando pelas ruas. Mas quando passou pela sombra de uma simpática casa de vila com varandas e amplos e lindos jardins, ouviu um estampido que o fez parar quase involuntariamente. Foi o som inequívoco de um revólver ou carabina ou de alguma arma leve detonada. Não foi isto, porém, que mais o intrigou. O primeiro ruído foi imediatamente seguido de uma série de outros mais fracos que ele contou, cerca de seis. Supôs que devesse ser o eco, mas, curioso, o eco não era de modo algum igual ao som original. Não se assemelhava a nenhuma outra coisa que pudesse imaginar. As três coisas mais próximas que lhe ocorreram pareciam ser o ruído feito por garrafas de soda, um dos muitos ruídos feitos por um animal e o ruído feito por uma pessoa que procura conter um riso, mas nenhuma parecia ter sentido.

Padre Brown era feito de dois homens. Havia nele o homem de ação, tão modesto como uma primula e tão pontual como um relógio, que cumpria maquinalmente suas obrigações e nunca pensava em alterá-las. Havia, também, nele o homem de re­flexão, que era muito mais simples e muito mais forte, que não podia ser contido facilmente e cujo pensamento era sempre (no sentido inteligente da palavra) sempre livre. Não podia deixar, mesmo inconscientemente, de se fazer todas as per­guntas que deviam ser feitas, e de responder a tantas quantas pudesse; tudo isso ia com sua respiração ou articulação. Mas nunca executava conscientemente suas ações fora da esfera de seu próprio dever; e nesse caso as duas atitudes eram adequa­damente testadas. Acabou por retomar sua caminhada pelo lusco-fusco, dizendo a si mesmo que o negócio não era de sua conta, embora continuasse tecendo e retecendo instintivamente teorias sobre o que aquelas coisas estranhas poderiam signi­ficar. Foi quando o horizonte cinzento clareou prateado e na luz que se estendia constatou que estivera junto à casa que per­tencia a um major anglo-indiano chamado Putman, que tinha um cozinheiro nativo de Malta que era de sua religião. Co­meçou, também, a lembrar-se de que tiros de revólver eram às vezes coisas sérias acompanhadas de conseqüências pelas quais estava legitimamente interessado. Voltou e entrou pelo portão do jardim, dirigindo-se à porta da frente.

No meio de um dos lados da casa havia uma sacada com um abrigo muito baixo; tratava-se, como descobriu depois, de um grande barril de lixo. Dobrando o canto dessa sacada vinha uma figura, primeiramente uma simples sombra no nevoeiro, que dava a impressão de vir esquivando-se e espiando. Em seguida, à medida que se aproximava, ia se solidificando numa figura que era, na realidade, extraordinariamente sólida. O major Putman era um tipo calvo, corpulento, baixo e bastante largo, com um daqueles rostos apopléticos que são produzidos por uma prolongada tentativa de combinar um ambiente orien­tal com os luxos ocidentais. Mas o rosto tinha uma expressão de bom humor e, mesmo agora, embora evidentemente intri­gado e inquisitivo, exibia uma espécie de sorriso inocente. Tra­zia um grande chapéu de palha atrás da cabeça (sugerindo um halo que não era de modo algum apropriado à seu rosto), mas fora disso vestia apenas pijama listrado de vermelho e amarelo- vivos, que, embora bastante vistoso, devia ser demais para aque­la manhã. O major, evidentemente, tinha saído de casa às pres­sas e o padre Brown não ficou surpreso quando ele gritou sem mais cerimônia:

Ouviu aquele barulho?

Sim — respondeu o padre. — Achei que era melhor vir ver, no caso de ter acontecido alguma coisa.

O major olhou para ele com certa estranheza, com seus olhos redondos e bem humorados.

Que espécie de barulho que pareceu? — perguntou.

Um tiro de espingarda — respondeu o padre sem hesi­tação —, mas pareceu seguido de estranha espécie de eco.

O major ainda o encarava tranqüilamente, mas com olhos arregalados, quando a porta da frente se escancarou, deixando sair um jato de luz elétrica sobre o nevoeiro que se dissipava; outra figura de pijamas saltou para fora do jardim. Era um tipo mais alto, mais magro e mais atlético. O pijama, embora igualmente tropical, era relativamente de melhor gosto, suave com discretas listras amarelas. O homem estava desvairado, mas mesmo assim era simpático e mais queimado de sol do que o major; tinha perfil aquilino e olhos fundos, e um ar de singu­laridade vinha da combinação de um cabelo preto de azeviche com um bigode mais claro. Tudo isso o padre Brown assimilou em detalhes, depois, mais à vontade. No momento, viu apenas uma coisa a respeito do homem: o revólver em sua mão.

Cray! — exclamou o major, olhando-o espantado. — Foi você quem atirou?

Sim, fui eu. E você faria o mesmo no meu lugar. Se fosse perseguido por toda parte por demônios e quase...

O major pareceu intervir um tanto apressadamente.

Este é meu amigo padre Brown — disse. — Em se­guida dirigindo-se a Brown: — Não sei se o senhor conhece o coronel Cray da Artilharia Real.

Já ouvi falar dele, é claro — respondeu o padre ino­cente. — O senhor... o senhor atingiu alguma coisa?

O coronel Cray encarava seu anfitrião com um olhar es­tranho e fixo.

Eu lhe direi exatamente o que ele fez — disse. — Espirrou.

Padre Brown levantou a mão quase à altura da cabeça, num gesto de quem procura lembrar o nome de alguém. Es­tava diante de um enigma.

Hum — exclamou o major de olhos arregalados —, nunca ouvi dizer que um revólver fosse coisa de se desdenhar.

Nem eu — ajuntou o padre timidamente. — Por sorte o senhor não virou sua artilharia contra ele ou poderia lhe ter dado um bruto resfriado.

Em seguida, após uma pausa desconcertante, perguntou:

— Era ladrão?

Vamos entrar — disse o major Tutnam, com rispidez, e tomou a dianteira para dentro da casa.

O interior exibia um paradoxo muitas vezes observado naquelas horas da manhã: os quartos pareciam mais claros do que do lado de fora da casa, mesmo depois que o major desligou a lâmpada do hall da frente. Padre Brown ficou surpreso de ver a mesa de jantar posta como se fosse para um banquete festivo, com guardanapos nas argolas e copos de vinho, cerca de seis modelos desnecessários ao lado de cada prato. Era bastante normal, naquela hora da manhã, encontrar os restos de banquetes da noite anterior; mas encontrar uma mesa posta tão cedo era coisa fora do comum.

Enquanto perambulava pelo salão, o major Putnam passou apressado por ele e correu um olhar irado sobre toda a toalha da mesa. E, finalmente, falou, gaguejando:

Toda prata se foi! Facas e garfos de peixe desapa­receram. Galheteiros antigos. Até a cremeira desapareceu. Ago­ra, padre Brown, estou pronto a responder à sua pergunta se foi ladrão.

São simples cegos — disse Cray teimosamente. — Sei melhor do que você por que se persegue esta casa; sei melhor do que você por que.. .

O major deu-lhe uma pancadinha no ombro com um gesto quase peculiar a quem acalma uma criança rebelde e disse:

Foi um ladrão. É claro que foi um ladrão.

— Um ladrão com um resfriado — observou padre Brown — que poderia ajudar a localizá-lo no bairro.

O major maneou a cabeça desanimado.

Acho que deve estar muito longe para ser localizado.

Em seguida, quando o homem irrequieto com o revólver

se voltou de novo na direção da porta que dá para o jardim, acrescentou numa voz rouca e confidencial:

Não sei se devo chamar a polícia, pois temo que meu amigo tenha sido um pouco exagerado com suas balas e incor­rido em alguma infração. Ele tem vivido em lugares muito sel­vagens e, para ser franco, acho que muitas vezes enfrenta coisas fantasiosas.

Acho que já me disse uma vez — observou Brown — que ele acredita que uma certa sociedade secreta indiana o esteja perseguindo.

Major Putnam assentiu com a cabeça, mas ao mesmo tempo encolheu seus ombros:

Acho melhor acompanhá-lo até lá fora. Não quero mais espirros.

Saíram para a claridade da manhã, que agora estava mesmo tingida pela luz do sol, e viram a figura alta do coronel Cray quase dobrada em duas, examinando minuciosamente a situação do cascalho e da grama. Enquanto o major caminhava clara­mente na direção dele, o padre começou a andar com igual indolência, dirigindo-se ao canto da casa a cerca de uns dois metros do barril de lixo saliente.

Ficou olhando aquele lúgubre objeto por cerca de um minuto e meio; em seguida tomou sua direção, levantou a tampa e meteu a cabeça dentro. Pó e outras matérias de cores alte­radas se levantaram quando abriu a tampa; mas o padre nunca ligava para a sua própria aparência, observasse o que observasse. Permaneceu assim por um considerável espaço de tempo, como se engajado em algumas preces misteriosas. Em seguida saiu, com algumas cinzas no cabelo, e se afastou desinteressado.

No momento em que contornava para a porta do jardim, encontrou ali um grupo que parecia afastar toda morbidez como a luz do sol já dissipara o nevoeiro. Não era algo racional­mente tranqüilizante; simplesmente bastante cômico, como um grupo de personagens de Charles Dickens. O major Putnam tinha conseguido enfiar uma camisa e calças adequadas, com um cinto indiano carmesim e por cima deles um paletó leve e quadrado. Assim normalmente enfeitado, seu rosto alegre e corado parecia abrir-se numa cordialidade vulgar. Era realmente enfático, mas naquele momento conversava com seu cozinheiro — o moreno filho de Malta, cujo rosto magro, pálido e preo­cupado contrastava estranhamente com sua touca e costume branco como a neve. O cozinheiro poderia estar preocupado, pois a culinária era o hobby do major. Era um daqueles ama­dores que sabem sempre mais do que o profissional. A única pessoa que admitia como juiz de um omelete era seu amigo

Cray... e como Brown se lembrava disso, voltou-se para procurar o outro oficial. Na nova presença da luz do dia e de pessoas vestidas e normais, a visão do coronel era um tanto chocante. O homem mais alto e mais elegante estava ainda de pijamas, com os cabelos pretos desgrenhados e agora se arrastando pelo jardim, de quatro pés, atrás de vestígios do ladrão. De vez em quando, batia no chão com a mão, zangado, ao que parecia, por nada descobrir. Vendo-o assim, de quatro pés sobre a grama, o padre levantou os sobrolhos tristemente... Pela primeira vez, imaginou que "coisas fantasiosas" poderiam ser um mero eufemismo.

O terceiro personagem no grupo do cozinheiro e do epicurista era também conhecido de padre Brown; Audrey Watson, pupila e governanta do major. Nesse momento, a julgar por seu avental, de mangas dobradas e maneira resoluta, era mais governanta do que pupila.

Isto lhe serve de lição — estava dizendo. — Eu sem­pre lhe disse para não colocar aquela galheteira antiquada.

Gosto muito dela — desculpou-se Putnam, tentando acalmá-la. — Eu mesmo sou antiquado e as coisas se ajustam...

Se ajustavam, como o senhor vê — cortou Audrey. — Bem, se o senhor não se incomoda com o ladrão, não posso fazer o mesmo com o almoço. É domingo e não podemos man­dar buscar vinagre e tudo o mais na cidade e seus amigos indianos não podem gostar de uma refeição sem um bocado de coisas picantes. Antes não tivesse pedido ao Primo Oliver para me levar à igreja. O concerto não termina antes de meio dia e meio e o coronel precisa viajar nessa hora. Não creio que o senhor possa arrumar-se sozinho.

Oh, sim, posso, minha cara — tranqüilizou-a o major, olhando para ela amavelmente. — Marco tem todos os molhos e nós mesmos nos temos arranjado muitas vezes em lugares di­fíceis, como você mesma sabe. Além disso, já é tempo de se distrair, Audrey. Não é possível ser dona de casa durante o dia todo e sei que você quer ir ouvir música.

Quero ir à igreja — disse ela, com um olhar um tanto grave.

Audrey era uma daquelas mulheres simpáticas que sempre serão simpáticas, porque a beleza não está num ar ou num colorido, mas na própria estrutura da cabeça e no aspecto. Mas embora não tivesse ainda chegado à idade madura e seu cabelo castanho-avermelhado tivesse a forma e a cor de um Tiziano, havia um aspecto em sua boca e em torno de seus olhos que sugeria que a tristeza a consumia, como os ventos desgastam por fim as orlas de um templo grego. Pois, na realidade, a pequena dificuldade doméstica de que estava falando agora de modo tão decisivo era mais cômica do que trágica. Padre Brown con­cluiu, do curso da conversação, que Cray, o outro gourmet, deveria partir antes da hora habitual do almoço; mas que Putnam, seu anfitrião, para não se privar de uma festa final com um velho amigo, tinha arranjado um déjeuner especial a ser servido e consumido no curso da manhã, enquanto Audrey e outras pessoas mais graves estariam na igreja. Ela iria acom­panhada de um velho amigo e parente seu, Dr. Oliver Oman, que, embora fosse um cientista do tipo mais seco, era entu­siasta da música e iria até a uma igreja para ouvi-la. Nada havia em tudo isso que pudesse concebivelmente relacionar-se com a tragédia estampada no rosto de Miss Watson; e, por um instinto meio consciente, o padre voltou-se novamente para o pesquisador lunático que se arrastava pelo gramado.

Quando tomou sua direção, a cabeça preta e desgrenhada se levantou bruscamente, como se surpresa com sua conti­nuada presença. De fato, o padre Brown, por motivos mais conhecidos dele mesmo, permanecia por tempo muito mais lon­go do que exigia, ou mesmo permitia, a polidez em condições normais.

Bem — exclamou Cray, com os olhos selvagens. — O senhor como os demais também pensa que sou louco?

Tenho pensado nisso — respondeu o padrezinho sere­namente. — E me inclino a achar que não.

Que quer dizer com isso? — gritou Cray rudemente.

As pessoas realmente loucas — explicou padre Brown — sempre estimulam sua própria morbidez. Nunca lutam con­tra ela. Mas o senhor está procurando encontrar vestígios do ladrão, mesmo quando não há. Está lutando contra a loucura. O senhor quer o que nenhum louco quer.

E o que é que quero?

O senhor quer que lhe provem que está errado — disse Brown.

Durante as últimas palavras, Cray de um salto se levan­tou, encarando o clérigo com olhos inquietos.

— Pelos diabos, é a pura verdade! — exclamou. — Querem convencer-me de que o sujeito estava apenas atrás da prataria, como se eu não tivesse motivo de me alegrar tam­bém com isto! Até ela apontou com sua cabeça desgrenhada na direção de Audrey — me recriminou hoje por ter sido cruel em atirar contra um pobre e inofensivo ladrão, e por ter o demônio dentro de mim contra pobres e inofensivos nativos. Mas sou um homem de natureza boa, tão boa como a de Putnam.

E depois de uma pausa disse:

Olhe aqui, eu nunca vi o senhor antes; mas julgará toda a estória. O velho Putnam e eu fomos amigos do mesmo rancho, mas, devido a alguns acidentes na fronteira do Afgã, recebi o comando muito mais cedo do que a maioria dos oficiais; só que ambos fomos mandados de volta para casa como inválidos temporários. Estava noivo de Audrey e viajamos todos juntos de volta para a Inglaterra. No caminho, porém, aconte­ceram coisas. Coisas curiosas. O resultado disso é que Putnam quer acabar com o noivado e até Audrey está indecisa... e sei o que querem dizer. Sei o que pensam que sou. E o senhor também.

Bem, estes são os fatos — continuou. — O último dia que passamos numa cidade indiana, perguntei a Putnam onde poderia comprar alguns charutos Trichinopoli; ele me indi­cou uma casinha do outro lado de seu alojamento. Nunca du­videi de que estivesse certo: "do outro lado" é uma expressão perigosa quando uma casa decente está do lado oposto a cinco ou seis casas miseráveis... e devo ter errado a porta. Ela se abriu com dificuldade e então só vi escuridão. Mas, quando entrei, a porta se fechou atrás de mim e foi trancada com o barulho de inúmeros ferrolhos. Não havia nada a fazer senão andar para a frente; o que fiz de corredor a corredor, na completa escuridão. Cheguei em seguida a um lanço de degraus, depois a uma porta aferrolhada por um trinco de ferro oriental trabalhado, que só pude perceber pelo tato e que consegui, por fim, abrir. Saí novamente na escuridão, que se tinha transfor­mado mais ou menos num verde lusco-fusco por uma multidão de lâmpadas pequenas, mas regulares, que revelavam apenas os pés ou orlas de uma arquitetura imensa e vazia. Bem na minha frente havia algo que se parecia com uma montanha. Confesso que quase caí na grande plataforma de pedra para onde tinha subido, ao verificar que era um ídolo. E o pior de tudo, um ídolo de costas para mim. Era uma figura semi-humana, supus a julgar pela cabeça curta e achatada e ainda mais por algo semelhante a uma cauda ou membro extra virado para trás e apontando, como um dedo comprido e repugnante, para algum símbolo gravado no centro da imensa costa de pedra. Come­çara, na luz obscura, a fazer conjeturas sobre o hieróglifo, não sem horror, quando aconteceu algo ainda mais horrível. Uma porta se abriu silenciosamente na parede do templo atrás de mim e dela saiu um homem de rosto moreno e paletó preto. Tinha um sorriso esculpido na sua face, de carne bronzeada e dentes de marfim; mas acho que a coisa mais odiosa nele era que se vestia à moda européia. Eu estava preparado para ver sacerdotes amortalhados ou faquires despidos. Mas isso pa­recia indicar que a bruxaria estava no mundo inteiro. Como de fato verifiquei que estava.

"Se tivesse visto só os pés do Macaco", disse ele com um sorriso firme e sem qualquer prefácio, "teríamos sido muito gentis... você seria apenas torturado e morreria. Se tivesse visto a Face do Macaco, ainda assim seríamos moderados, mui­to tolerantes... seria apenas torturado e viveria. Mas como você viu o Rabo do Macaco, somos obrigados a pronunciar a pior sentença, que é: Está livre."

Quando ele disse estas palavras, — prosseguiu Cray — ouvi o ferrolho de ferro trabalhado, com o qual tinha lutado, abrir-se automaticamente e, em seguida, através dos corredores escuros por onde passava, ouvi a pesada porta da rua puxar seus próprios ferrolhos. "É inútil pedir perdão; vá-se embora livre — disse o homem sorrindo. — "Daqui por diante um fio de cabelo poderá matá-lo como uma espada, e um sopro poderá mordê-lo como uma víbora; armas se levantarão contra você de toda parte e morrerá muitas vezes". — E dizendo isso foi engolido novamente pela parede do fundo e eu saí para a rua.

Cray fez uma pausa. Padre Brown assentou-se impassível na relva e começou a colher margaridas.

E o soldado continuou:

Putnam, naturalmente, com seu conhecido senso de humor, zombou de todas as minhas apreensões e, a partir daquela data, duvida sempre de minha sanidade mental. Bem, eu lhe contarei simplesmente, com as mais breves palavras, as três coisas que desde então aconteceram e o senhor julgará quem de nós está com a razão. A primeira coisa aconteceu numa aldeia indiana na orla da floresta, mas a centenas de quilômetros distante do templo, ou cidade, ou tipo de tribos e costumes onde a praga me tinha sido jogada. Acordei altas horas da noite e não pensava em nada de particular, quando senti uma coisa estranha roçando na minha garganta, como se fosse um fio de cabelo ou uma linha. Eu me assustei com isso e não pude deixar de pensar nas palavras no templo. Mas quan­do me levantei, acendi a luz e me olhei no espelho, a linha em torno de meu pescoço era uma linha de sangue. A segunda coisa aconteceu mais tarde num alojamento em Port Said, em nossa viagem de volta. Era uma mistura de bar e loja de curio­sidade. Embora nada houvesse ali que pudesse, mesmo remo­tamente, sugerir o culto do Macaco, é possível, é claro, que algumas de suas imagens ou talismãs estivessem naquele lugar. Sua praga de qualquer maneira estava ali. Acordei de novo no escuro com a sensação que não poderia explicar melhor do que comparando-a a uma picada de uma víbora. A existência era uma agonia de extinção; bati com a cabeça na parede até que cheguei à janela e caí, em vez de saltar, no jardim abaixo. Putnam, coitado, que tinha chamado a outra coisa de simples arranhão ocasional, foi obrigado a levar o caso mais à sério ao me encontrar semi-inconsciente sobre a relva, pela manhã. Creio, porém, que foi meu estado mental que ele levou a sério e não minha estória. O terceiro fato aconteceu em Malta. Está­vamos ali numa fortaleza. Nossos dormitórios davam por acaso para o mar aberto, que vinha quase até as soleiras de nossas janelas, não fosse uma parede externa branca e lisa tão nua como o mar. Acordei novamente, mas não estava escuro. A lua era cheia, quando cheguei à janela; poderia ter visto uma ave sobre a muralha vazia ou uma vela no horizonte. Mas o que vi foi uma espécie de bengala ou ramo a circular, que se mantinha por si mesmo, no céu vazio. Entrou voando por minha janela e foi quebrar a lâmpada ao lado do travesseiro que tinha acabado de deixar. Era uma daquelas maças de guerra de forma estranha usadas por algumas tribos orientais. Mas não fora atirada por qualquer mão humana.

Padre Brown jogou para um lado o feixe de margaridas que estava fazendo e levantou-se com um olhar ansioso.

— O major Putnam — perguntou — tem algumas antigüidades orientais, ídolos, armas ou coisa que os valha, dos quais se pudesse ter alguma idéia?

Centenas, embora não de muita utilidade, ao que me parece, mas de qualquer maneira venha ao seu gabinete.

Quando entraram, passaram por Miss Watson que abotoava as luvas para ir à igreja, e ouviram a voz de Putnam no andar térreo dando ainda instruções de culinária ao cozinheiro. No gabinete do major e repositório de antigüidades deram subitamente com um terceiro personagem, de cartola de seda, pron­to para sair, que meditava diante de um livro aberto sobre a mesa de fumar — um livro que deixou cair quase de propósito e se voltou.

Cray apresentou-o gentilmente, como Dr. Oman, mas ele demonstrou tamanho desagrado em sua expressão, que padre Brown supôs que os dois homens, soubesse ou não Audrey, eram rivais. Talvez fosse mais um dos preconceitos aos quais o padre não era inteiramente infenso. Dr. Oman estava realmente muito bem vestido, tinha boa aparência, embora fosse quase tão moreno como um asiático. Mas padre Brown teve de repre­ender-se rudemente, que é preciso ter caridade, mesmo com aqueles que "enceram" suas barbas pontudas, que têm mãos pequenas enluvadas e que falam com vozes moduladas.

Cray pareceu encontrar algo de especialmente irritante no pequeno livro de orações nas mãos enluvadas de Oman.

Não sabia que estava na sua linha — disse rudemente.

Oman sorriu ligeiramente, mas sem ofensa.

Este é mais importante — disse, pondo sua mão sobre o grande livro que deixara cair. — É um dicionário de drogas e coisas semelhantes. Mas é grande demais para se levar para a igreja.

Em seguida, fechou o livro e esboçou novamente um li­geiro toque de inquietação e embaraço.

Suponho — disse o padre, que parecia ansioso para mudar de assunto — que todas essas lanças e demais objetos são da Índia.

De toda parte — respondeu o médico. — Putnam é um velho soldado. Esteve, que eu saiba, no México, na Austrá­lia e nas Ilhas Canibais.

Espero que não tenha aprendido nas Ilhas Canibais — disse Brown — a arte culinária.

E correu os olhos pelos vasos de barro cozido e outros estranhos utensílios na parede.

Nesse momento, o divertido objeto de sua conversação, com seu rosto sorridente de lagosta, entrou na sala.

Vamos, Cray — exclamou. — Seu pequeno almoço acaba de ser servido. E os sinos estão tocando para quem vai à igreja.

Cray subiu ao andar superior para trocar de roupa; Dr. Oman e Miss Watson saíram solenemente para a rua, com uma fila de outros fiéis que se dirigiam à igreja; mas o padre Brown observou que o médico olhou duas vezes para trás e examinou a casa e chegou a voltar à esquina da rua para olhá-la de novo.

O padre ficou intrigado.

Ele não pode ter estado na lixeira — murmurou. — Muito menos com aquelas roupas. Ou teria estado ali mais cedo?

Padre Brown, em contato com outras pessoas tinha a sensibilidade de um barômetro, mas hoje parecia quase tão sensível como um rinoceronte. Por nenhuma lei social, rígida ou implí­cita, poder-se-ia pensar que estivesse ali rondando o almoço de amigos anglo-indianos. Entretanto ali estava, cobrindo sua po­sição com torrentes de uma conversação divertida, mas desne­cessária. Tornava-se ainda mais enigmático, porque parecia não querer tomar nada. Quando, um depois do outro, os mais exó­ticos pratos indianos com caril, acompanhados de apropriado vinho de classe, eram colocados diante dos dois, ele apenas repetia que era um de seus dias de jejum e mastigava um pedaço de pão e bebericava um pouco de vinho e, em seguida, deixou intato um copo de água fria. Sua prosa, entretanto, era exu­berante.

Sabe o que vou fazer para vocês? — exclamou. — Uma salada! Não posso comê-la, mas sou "o tal" nisso. Onde estão as lentilhas?

Infelizmente é a única coisa que nos falta — respon­deu o major bem-humorado. — Deve estar lembrado de que a mostarda, o vinagre, o óleo e outras coisas desapareceram com o galheteiro e o ladrão.

Eu sei — disse Brown, vagamente. — Temia sempre que essas coisas acontecessem. Por isso é que carrego comigo um galheteiro. Adoro saladas.

E para admiração dos dois homens tirou do bolso de seu colete um vidro de pimenta e o pôs em cima da mesa.

Eu me pergunto por que o ladrão quereria mostarda também — continuou, tirando um vidro de mostarda do outro bolso. — Massa de mostarda, suponho. E vinagre. Não ouvi falar alguma coisa sobre vinagre? Quanto ao óleo, que acho que pus no meu bolso esquerdo...

Sua tagarelice foi interrompida instantaneamente, pois levantando a vista viu o que ninguém mais via — a figura sombria do Dr. Oman do lado de fora do jardim ensolarado, olhando para dentro da sala. Antes que pudesse voltar à composição de sua salada, Cray atalhou:

O senhor é um tipo curioso. Iria ouvir seus sermões se fossem tão divertidos como suas maneiras.

Sua voz mudou um pouco e inclinou-se para trás de sua cadeira.

Oh, há sermões também num galheteiro — disse o padre Brown, muito sério. — Já ouviu falar que a fé é seme­lhante a um grão de mostarda? Ou que a caridade unge com o óleo? E quanto ao vinagre, podem os soldados esquecer aquele soldado solitário, que, quando o sol escurecia...

O coronel Cray inclinou-se para a frente e se agarrou ao pano da mesa.

Padre Brown, que estava fazendo a salada, despejou duas colberes de mostarda no copo de água ao lado dele; levantou- se e disse numa voz nova, súbita e alta:

— Beba isto!

No mesmo instante, o médico imóvel no jardim veio cor­rendo e, abrindo a porta com violência, exclamou:

Precisam de mim? Está envenenado?

Quase — respondeu o padre Brown, com a sombra de um sorriso, pois o vomitório tinha imediatamente surtido efeito. E Cray jazia numa espreguiçadeira, lutando pela vida, mas vivo.

O major Putnam levantou-se de um salto, com seu rosto vermelho mosqueado.

Um crime! — gritou roucamente. — Vou chamar a polícia!

O padre pôde ouvi-lo apanhando seu chapéu de palha do cabide e sair precipitando pela porta da frente; ouviu o portão do jardim se fechar. Mas ele apenas olhava para Cray. De­pois de alguns instantes em silêncio, disse calmamente:

Não vou conversar muito com o senhor; mas lhe direi o que precisa saber. Não há nenhuma praga sobre você. O Templo do Macaco foi uma coincidência ou parte da artima­nha; a artimanha de um homem branco. Só existe uma arma que faz sangue com aquele simples toque de uma pena: uma navalha na mão de um homem. Só existe uma única maneira de tornar um quarto comum cheio de veneno invisível e pode­roso: abrir o gás. .. o crime de um homem branco. E só exis­te uma espécie de maça que pode ser atirada de uma janela, que gira no ar e volta na direção da janela... o bumerangue australiano. O senhor verá alguns deles no gabinete do major.

Tendo dito isto, saiu e foi conversar por alguns instantes com o médico. No momento seguinte, Andrey Watson voltou correndo para a casa e caiu de joelhos ao lado da cadeira de Cray. Ele não pôde ouvir o que diziam um ao outro; mas seus rostos se moviam com satisfação e não com infelicidade. O médico e o padre se afastaram lentamente na direção do portão do jardim.

Acho que o major a amava também — disse com um suspiro; e quando o outro assentiu, observou: — O senhor foi muito generoso, doutor. Teve uma atitude muito louvável. Mas o que o levou a suspeitar?

Uma coisinha de nada, mas que me manteve irrequie­to na igreja, até que voltei para ver se tudo ia bem. Aquele livro na mesa do major era uma obra sobre venenos; e estava aberto no lugar onde se dizia que um certo veneno indiano, embora mortal e difícil de ser constatado, era particularmente de fácil reversibilidade pelo uso de vomitórios mais comuns. Acho que li isto naquele último instante...

E lembrou-se de que havia vomitórios naquele galhe­teiro — acrescentou o padre. — Isto mesmo. Ele jogou o galheteiro na lixeira, onde eu o encontrei, juntamente com o resto da prataria, por causa de um roubo incompreensível. Mas se examinar aquele vidro de pimenta ali na mesa, verá um pequeno buraco. Foi ali que a bala de Cray atingiu, esvaziando a pimenta e provocando o espirro criminoso.

Fez-se silêncio. Em seguida comentou o médico sombriamente:

O major está demorando muito em encontrar a po­lícia.

Ou a polícia está custando a encontrar o major? — perguntou o padre. — Bem, até logo.

 

                         O ESTRANHO CRIME DE JOHN BOULNOIS

 

Mister Calhoun Kidd era um senhor muito jovem de rosto bastante envelhecido, ressecado por sua própria avidez, moldurado por cabelos preto-azulados e uma gravata borboleta preta. Era o correspondente na Inglaterra do colossal diário americano chamado Western Sun, também humoristicamente conhecido como o "Sol Nascente", em alusão a uma grande declaração jornalística (atribuída ao próprio Mr. Kidd) de que na sua opinião "o sol ainda nasceria no oeste, se os cidadãos americanos fizessem um pouco mais de força". Aqueles, entretanto, que zombam do jornalismo americano, partindo de tradições mais maduras, se esquecem de um certo paradoxo que, em parte, o redime. Pois, embora o jornalismo dos Estados Unidos permita uma vulgaridade pantomímica há muito tempo ultrapassada na Inglaterra, demonstra por outro lado, uma verdadeira excitação sobre os mais graves problemas mentais, que os jornais ingleses ignoram ou melhor, não sa­bem tratar. O Sun estava cheio dos mais solenes assuntos, tratados da maneira mais ridícula. William James figurava ali como "O Willie, o Chato" e pragmatistas se alternavam com pugilistas na longa processão de seus retratos.

Assim, quando um oxfordiano muito desembaraçado, chamado John Boulnois, escreveu numa intragável revista trimestral chamada Filosofia Natural, uma série de artigos sobre os alegados pontos fracos da evolução darwiniana, não pro­vocou qualquer interesse nos jornais ingleses, embora a teoria de Boulnois de um universo relativamente estacionário visitado ocasionalmente por convulsões de mudança tivesse sido uma coqueluche passageira em Oxford e chegasse a ser chamada de "Catastrofismo". Mas muitos jornais americanos aceitaram o desafio como um grande acontecimento; o Sun transformou Mr. Boulnois num herói, em suas páginas. Pelo paradoxo já observado, artigos inteligentes e entusiásticos eram publicados com manchetes evidentemente escritas por um maníaco anal­fabeto; manchetes como "Darwin Beija o Chão; Crítico Boul­nois Afirma Que Salta Obstáculos" ou "Cuidado com a Ca­tástrofe, diz Pensador Boulnois". E Mr. Calhoun Kidd, do Western Sun, recebeu recomendações de pôr sua gravata bor­boleta e seu rosto lúgubre e ir à casinha fora do Oxford, onde o pensador Boulnois vivia na feliz ignorância desse título.

O referido filósofo tinha consentido, e com certo deslumbramento, em receber o entrevistador, e marcara as nove horas daquela noite. O último raio de sol de verão iluminava ainda Cumnor e as baixas montanhas cheias de bosques; o român­tico americano estava tão incerto do caminho como curioso com os seus arredores; e vendo a porta de uma autêntica e antiquada estalagem, The Champion Arms, ainda aberta, en­trou para pedir informações.

Tocou a campainha do bar e teve de esperar um pouco para ser atendido. O único freguês presente era um homem magro de cabelo ruivo, cortado rente, e de roupas frouxas. Bebia uísque ordinário, mas fumava charuto de classe. O uís­que naturalmente era a bebida da escolha da estalagem, en­quanto o charuto, provavelmente, ele teria trazido de Londres. Não poderia haver maior contraste entre seu roupão confortá­vel e a aridez janota do jovem americano! Mas algo em seu lápis, uma caderneta de anotações aberta e talvez a expressão de seus olhos azuis e vivos levaram Kidd a conjeturar, com fundamento, de que se tratava de um colega jornalista.

Poderia me fazer o favor — disse Kidd, com a cor­tesia de seu país — de me dizer onde fica Grey Cottage, onde mora Mr. Boulnois?

Há poucos metros adiante — disse o homem ruivo, tirando o charuto. — Passarei por lá dentro de um minuto, mas estou indo ao Parque Pendragon para a representação.

Que é o Parque Pendragon? — perguntou Calhoun Kidd.

A casa de Sir Claude Champion. Não veio também para isso? — perguntou o jornalista, levantando a vista. — Você é jornalista, não é?

Vim ver Mr. Boulnois — respondeu Kidd.

E eu vim ver a senhora Boulnois — disse o outro. — Mas não vou apanhá-la em casa.

E deu uma risada desagradável.

Está interessado no catastrofismo? — perguntou o americano admirado.

Tenho interesse nas catástrofes e vai haver alguma — respondeu o colega sombrio. — Meu negócio é sujo e não pretendo escondê-lo.

Dizendo isto, pôs-se de pé. Não obstante, mesmo a pri­meira vista, notava-se logo que se tratava de uma pessoa bem- educada.

O jornalista americano o analisou com mais atenção. Seu rosto, embora pálido e desfeito, com a promessa de terrí­veis paixões a serem ainda liberadas, era mesmo assim um rosto inteligente e sensível; suas roupas eram grosseiras e descuidadas, mas trazia um bom anel em um de seus dedos finos e compridos. Seu nome, que veio no decorrer da conversa, era James Dalroy; filho de um proprietário irlandês falido, trabalhava como repórter e, às vezes, penosamente como es­pião, para o Smart Society — um jornal "marrom", que ele desprezava cordialmente.

O Smart Society, lamento dizer, não tinha o menor inte­resse por Boulnois com relação a Darwin, o que já era mereci­mento para o Western Sun. Dalroy tinha vindo, ao que pare­cia, para farejar o cheiro de escândalo que poderia terminar em divórcio, e que, no momento, pairava entre Grey Cottage e o Parque Pendragon.

Sir Claude Champion era conhecido também dos leitores do Western Sun como o eram Mr. Boulnois, o Papa e o ven­cedor do Derby; mas a idéia de seu conhecimento íntimo teria chocado Kidd como igualmente incompatível. Tinha ouvido falar de Cir Claude Champion (e escrito a seu respeito, ou melhor, pretendia falsamente conhecê-lo) como um "dos Dez mais Inteligentes e Ricos da Inglaterra"; como o grande esportista que competira em corridas de iate em torno do mundo; como o grande viajante que escreveu livros sobre o Himalaia, sendo o político que empolga eleitores com uma surpreendente espécie de democracia dos Tóris e como grande diletante na arte, na música, na literatura e, sobretudo, no teatro. Sir Claude era, também magnificente aos olhos de outras pessoas que não os americanos. Havia algo de um príncipe da Renascença em sua cultura onívora e constante publicidade; não era apenas um grande amador, um amador ardoroso. Não havia nele qualquer daquelas frivolidades antiquadas que definimos com a palavra "diletante".

Aquele perfil impecável de falcão com olhos pretos, ita­lianos, que tinha sido tantas vezes fotografado não só pelo Smart Society como pelo Western Sun, dava a todos a impres­são de um homem cuja ambição o consumia como fogo, ou mesmo como uma doença. Mas embora Kidd soubesse muito sobre Sir Claude, e muito mais do que havia para saber, nunca lhe teria passado pela cabeça ligar um tão conhecido aristo­crata com o fundador recém-descoberto do Catastrofismo, ou supor que Sir Claude Champion e John Boulnois pudessem ser amigos íntimos. Isto, porém, de acordo com a versão de Dalroy, era um fato. Os dois tinham cursado juntos o curso se­cundário e a faculdade e, embora seus destinos sociais tivessem sido muito diferentes (pois Champion era nobre e quase milio­nário, enquanto Boulnois era um pobre estudioso e, até pouco tempo, um desconhecido), ainda mantinham estreitas relações entre si. De fato, a casa de Boulnois estava exatamente do outro lado do portão de entrada do Parque Pendragon.

Mas se os dois homens poderiam continuar a ser amigos por mais tempo estava se tornando uma questão séria e som­bria. Um ano ou dois antes, Boulnois se tinha casado com uma atriz muito bonita e famosa, a quem adorava no seu estilo simples e tímido; e a proximidade da propriedade de Cham­pion tinha dado àquela celebridade caprichosa oportunidade de se comportar de uma maneira que só poderia provocar comentários desairosos ou mesmo torpes. Sir Claude tinha levado as artes da publicidade à perfeição e parecia tirar um prazer irracional em se exibir ostentosamente numa intriga que lhe pudesse trazer alguma espécie de honra. Mensageiros de Pendragon levavam, constantemente, buquês de flores para a senhora Boulnois; carruagens e automóveis buzinavam cons­tantemente à porta da senhora Boulnois; bailes e desfiles de máscaras agitavam, constantemente, os salões em que o baronte cortejava, num torneio, a senhora Boulnois como a rainha do Amor e da Beleza. Aquela mesma noite, marcada por Mr. Kidd para a exposição do Catrastrofismo, tinha sido marcado por Sir Claude Champion para uma exibição ao ar livre de Romeu e Julieta, em que ele deveria fazer o papel de Romeu com uma Julieta cujo nome dispensa menção.

Não creio que isso possa continuar sem um choque — disse o jovem de cabelo ruivo, levantando-se e se sacudin­do. — O velho Boulnois pode ser quadrado, mas nesse caso seria grosso demais, já seria cúbico. Mas não creio que seja possível.

É um homem de grande capacidade intelectual — disse Calhoun Kidd, com voz profunda.

Sim — concordou Dalroy. — Mas até um homem de grande capacidade intelectual não pode ser tão tolo e cego. Vai ficar? Estarei saindo dentro de dois minutos.

Mas Calhoun Kidd, tendo terminado de tomar leite e soda, dirigiu-se elegantemente para a estrada na direção de Gray Cottage, deixando seu cínico informante entregue ao seu uísque e ao seu charuto. O sol se tinha posto definitivamente; o céu estava escuro, com um tom verde-acinzentado como uma lousa, pintado aqui e ali de estrelas, porém, mais claro do seu lado esquerdo, com a promessa de uma lua que nascia.

A Grey Cottage estava, por assim dizer entrincheirada num quadrado de cerca compacta de espinhos, tão encoberta pelos pinheiros e pelo paredão do Pendragon, que Kidd a to­mou inicialmente como o escritório do Parque. Achando, entretanto, o nome no estreito portão de madeira e vendo, por seu relógio, que era exatamente a hora marcada pelo Pensa­dor, entrou e bateu na porta da frente. Já no jardim, pôde ver que a casa, embora bastante despretensiosa, era muito maior e mais luxuosa do que parecia à primeira vista, e era de espécie muito diferente de um alojamento de porteiro. Uma casinha para cão e uma colméia estavam do lado de fora, como símbolos da antiga vida rural inglesa; o cão que saiu do canil tinha um aspecto pachorrento e relutava em latir; e o empre­gado, simples e idoso, que abriu a porta, foi breve, mas digno.

Mr. Boulnois mandou-me apresentar suas desculpas, sir, mas foi obrigado a sair repentinamente.

Mas olhe aqui, eu tinha hora marcada — disse o entrevistador, elevando a voz. — Sabe aonde ele foi?

Ao Parque Pendragon, sir — respondeu o criado, um tanto sombriamente, começando a fechar a porta.

Kidd estremeceu um pouco.

Foi com a senhora... com o pessoal da festa? — perguntou vagamente.

Não, sir — respondeu o homem brevemente. — Ele ficou por aqui e depois saiu sozinho.

E fechou a porta, rudemente, com a expressão de um dever não cumprido.

O americano, essa curiosa combinação de impudência e sensibilidade, ficou aborrecido. Sentiu um forte desejo de esbarrar com eles e lhes ensinar hábitos comerciais; ao velho cão, ao mordomo grisalho e carrancudo com seu peitoril pré- histórico e à letárgica e velha lua e, sobretudo ao desmiolado filósofo que não sabia cumprir um trato.

Se é assim que procede, bem merece perder a mais pura devoção de sua esposa — murmurou Colhoun Kidd. — Mas talvez tenha ido fazer barulho. Nesse caso, aposto que um representante do Western Sun estará no local.

Virando a esquina, junto aos portões abertos de entrada, partiu, precipitando-se pela longa avenida de pinheiros pretos que apontavam numa perspectiva abrupta para os portões interiores do Parque Pendregon. As árvores eram tão escuras e simétricas como plumas de um carro fúnebre; havia, ainda, algumas poucas estrelas. Kidd era um homem com associações mais literárias do que naturais; a expressão "Parque de Corvos" voltava à sua mente constantemente, em parte devido à cor de corvo dos pinheiros, mas em parte também, devido a uma atmosfera indescritível quase descrita na grande tragédia de Scott; ao cheiro de algo que morreu no século XVIII; ao cheiro de jardins úmidos e de urnas quebradas, de erros que nunca mais serão corrigidos; de uma tristeza incurável porque estranhamente irreal.

Mais de uma vez, enquanto subia aquela estrada bem cuidada e escura de um trágico artífice, parou espantado acre­ditando ter ouvindo passos à sua frente. Nada podia ver adiante, a não ser as paredes duplas e sombrias de pinheiros e as for­mações do céu estrelado por sobre sua cabeça. De início pen­sou que os devia ter imaginado ou que teria sido enganado pelos simples eco de seus passos. Mas, enquanto prosseguia, era cada vez mais inclinado a concluir, com o que lhe sobrava razão, que havia realmente outra pessoa na estrada. Pensou confusamente em fantasmas e ficou surpreendido de como rapidamente pôde ver a figura de um fantasma adequado ao local, com o rosto tão branco como o de um palhaço, retocado de preto. O ápice do triângulo do céu azul-escuro tornava-se cada vez mais brilhante e azul, mas Kidd não se dava conta de que isso se devia à aproximação das luzes da casa grande e do jardim. Achava apenas que a atmosfera se estivesse tornando mais intensa; havia na tristeza mais violência e segredo... havia mais... hesitou em dizer a palavra e, em seguida, a disse com uma gargalhada: catastrofismo.

Mais pinheiros, mais alamedas ficaram para trás e, de repente, parou como por um passe de mágica. É inútil dizer que se sentia como se tivesse entrado num sonho, mas dessa vez estava certo de ter entrado num livro. Pois nós, seres humanos, nos acostumamos com coisas irregulares; acostumamo-nos com o estardalhaço do inconveniente; é uma melodia com que adormecemos. Se acontece uma coisa apropriada, ela nos desperta como o retinido agudo de um acorde perfeito. Algo aconteceu como teria acontecido num lugar semelhante àquele numa estória esquecida.

Por sobre os pinheiros vinha voando e brilhando ao luar uma espada nua — fina e rutilante como um espadim que tal­vez tivesse batido muitos duelos injustos naquele parque an­tigo. Caiu ao longo do caminho, na frente dele e estava ali brilhando como uma enorme agulha. Kidd correu como uma lebre e se inclinou para olhar a arma. Vista de perto tinha um aspecto espalhafatoso: as grandes jóias vermelhas no cabo e no copo eram um pouco duvidosas. Mas havia outras gotas vermelhas sobre a lâmina que não eram duvidosas.

Kidd olhou em torno, perplexo, na direção de onde tinha vindo o míssil deslumbrante e viu que, naquele ponto, a fachada preta de abeto e de pinho era interrompida por uma es­trada menor em ângulos retos. Ao dobrá-la, defrontou-se com a visão completa da casa comprida e iluminada, com lago e fontes na frente. Não obstante, sua atenção foi desviada para algo mais interessante.

Acima dele, no ângulo da encosta verde do jardim eleva­do, estava uma daquelas pequenas e pitorescas surpresas co­muns na antiga jardinagem paisagística: uma espécie de pe­quena colina redonda ou cúpula de relva, como um gigantesco montículo, cercado por três cercas de roseiras concêntricas, com um relógio de sol no ponto mais alto no centro. Kidd podia ver o ponteiro do relógio apontado contra o céu como a barbatana de um tubarão, e a luz vã do luar refletindo-se no relógio ocioso. Mas viu outra coisa agarrada ao ponteiro no lapso de um minuto: a figura de um homem.

Embora o tivesse visto ali só por um instante, vestido dos pés a cabeça numa roupa estranha e inacreditável, de cor carmesim, com frisos de ouro, pôde vislumbrar à luz do luar de quem se tratava. Aquele rosto branco levantado para o céu, bem barbeado e tão naturalmente jovem, como Byron com aquele nariz romano, cabelos pretos já grisalhos — tinha visto em milhares de retratos públicos de Sir Claude Champion. A estranha figura vermelha girou por um instante em volta do amostrador; em seguida, rolou pela encosta abaixo e caiu aos pés do americano, mal movendo um braço. Um enfeite aparatoso e fora do comum no braço fez lembrar subitamente a Kidd Romeu e Julieta; naturalmente a veste carmesim fazia parte da peça. Mas havia uma mancha comprida e vermelha sobre a encosta por onde o homem rolara, que não fazia parte da peça. Tinha sido feita pelo corpo.

Mr. Calhoun Kidd gritou e gritou novamente. Mais uma vez pareceu ouvir passos e estremeceu ao ver outra figura já perto dele, que conheceu e, não obstante, ficou aterrorizado. A juventude dissipada que se tinha chamado de Dalroy tinha um quê de horrivelmente estático; se um Boulnois falhou no seu trato, Dalroy tinha um ar sinistro de comparecer a encontros que não marcara. O luar descoloria tudo; contra o cabelo ruivo de Dalroy seu rosto lívido parecia mais verde pálido do que mesmo branco.

Todo esse impressionismo mórbido deve ter sido a des­culpa de Kidd de ter exclamado rudemente e sem qualquer motivo:

— Foi você que fez isto, demônio?

James Dalroy esboçou um sorriso desagradável; mas antes que pudesse falar, a figura caída fez outro movimento com o braço, acenando vagamente para o lugar onde a espada caíra; em seguida, veio um gemido e, por fim, conseguiu murmurar:

Boulnois... Boulnois... foi Boulnois... com ciúmes de mim... ciúme, estava, estava...

Kidd abaixou a cabeça para ouvir melhor e só conseguiu captar as palavras:

Boulnois... com minha própria espada... ati­rou-a...

Mais uma vez a mão desfalecida acenou na direção da arma e em seguida tombou com um baque. Da profundeza de seu ser levantou-se em Kidd todo aquele humor cáustico que é o estranho sal da seriedade de sua raça.

Olha aqui, — disse firmemente e em tom de coman­do —, vá chamar um médico. Este homem está morto.

E um padre, também, suponho — disse Dalroy numa atitude indecifrável. — Os Champions são todos papistas.

O americano ajoelhou-se junto ao corpo, auscultou o co­ração, levantou a cabeça e lançou mão dos últimos recursos de recuperação; mas antes que o outro jornalista reaparecesse, seguido de um médico e de um padre, já estava preparado para afirmar que chegaram tarde demais.

Vocês também chegaram tarde demais? — perguntou o médico, um homem de aparência sólida e próspera, com bigodes convencionais e costeletas, mas de olhos vivos que lan­çou sobre Kidd com um ar duvidoso.

Em certo sentido — respondeu o corresponde do Sun, com voz arrastada. — Cheguei tarde demais para salvar o homem, mas acho que cheguei a tempo para ouvir algo de importante. Ouvi o morto denunciar seu assassino.

E quem é o assassino? — perguntou o médico, levan­tando os sobrolhos.

Boulnois — respondeu Calhoun Kidd, e assobiou bai­xinho.

O médico olhou perplexo para ele com um cenho fran­zido, mas não o contradisse. Em seguida, o padre, uma figura de baixa estatura, disse com brandura:

Soube que Mr. Boulnois não viria a Pendragon esta noite.

Neste ponto, — disse o ianque carrancudo, — estou em condições de oferecer aos distintos senhores dois fatos; John Boulnois ia ficar em casa esta noite; tinha inclusive marcado uma entrevista comigo. Mas John Boulnois mudou de idéia; saiu de casa inesperadamente, e sozinho, dirigindo-se a este mal­dito parque há cerca de uma hora. Foi seu mordomo quem me disse. Temos a meu ver o que toda a polícia que se preza chama de pista... Os senhores mandaram chamá-la?

Sim — respondeu o médico —, mas não alarmamos mais ninguém.

A senhora Boulnois sabe? — perguntou James Dalroy e, mais uma vez, Kidd experimentou o desejo irracional de lhe desfechar um murro na cara.

Não lhe disse — respondeu o médico rispidamente. — Mas a polícia não deve demorar.

O padrezinho tinha ido à alameda principal e agora vol­tava com a espada caída, que parecia ridiculamente grande e teatral em comparação com sua figura atarracada, ao mesmo tempo eclesiástica e vulgar.

Antes que a polícia chegue — disse desculpando-se —, alguém tem uma lanterna?

O jornalista americano tirou do bolso uma lanterna elé­trica e o padre a encostou à metade da lâmina, que examinou piscando os olhos, atentamente. Depois, sem olhar para a ponta ou para o pomo, passou a arma comprida ao médico.

Acho que não sou de nenhuma utilidade aqui — disse com um breve suspiro. — Boa noite, cavalheiros.

E afastou-se pela alameda escura na direção da casa, com as mãos para trás e com a cabeça grande pendida, em medita­ção.

O resto do grupo dirigiu-se apressado para os portões de entrada, onde um inspetor e dois soldados já podiam ser visto conversando com o porteiro. O padrezinho, porém, caminhava cada vez mais lentamente pelo sombrio claustro de pinheiros e no fim parou, de repente, junto aos degraus da casa. Sua maneira silenciosa de reconhecimento correspondia a uma aproximação igualmente silenciosa: vinha na sua direção uma figura que poderia ter satisfeito até as exigências de Calhoun Kidd, de um fantasma amável e aristocrático. Era uma jovem senhora vestida em cetim prateado, modelo Renascença; tinha cabelos louros enrolados em duas tranças brilhantes, e um rosto tão surpreendentemente pálido, que parecia criselefantina, isto é, feito, como algumas antigas estátuas gregas, de ouro e marfim. Mas seus olhos brilhavam e sua voz, embora baixa, era confidente.

Padre Brown? — perguntou.

Senhora Boulnois? — respondeu gravemente.

Em seguida olhou para ela e disse imediatamente:

Pelo que vejo, a senhora já sabe do que aconteceu a Sir Claude.

Como sabe que eu sei? — perguntou calmamente.

Ele não respondeu, mas lhe fez outra pergunta:

Viu seu marido?

Meu marido ficou em casa. Ele não tem nada a ver com isto.

Mais uma vez o padre Brown nada disse. A mulher aproximou-se mais, com uma expressão de crescente curiosidade em sua face.

Devo-lhe dizer mais alguma coisa? — perguntou, com um sorriso tímido. — Não creio que ele o fizesse, nem o senhor tampouco o crê.

Padre Brown retribuiu seu olhar com um olhar grave e prolongado. Em seguida, assentiu com a cabeça, ainda mais gravemente.

Padre Brown, vou contar-lhe tudo o que sei, mas quero primeiro que me faça um favor. O senhor me dirá por que não chegou logo à conclusão de que o culpado era John, como todos os demais? Não me importa o que disser. Eu... eu sei que os boatos e as aparências são contra ele.

O padre pareceu honestamente embaraçado, passou a mão pela cabeça e disse:

Duas coisas insignificantes. Pelo menos, uma delas é muito trivial e a outra muito vaga. Mas como tais, não se ajustam à acusação de ter sido Mr. Boulnois o assassino.

Levantou seu rosto redondo e inexpressivo para as estre­las e continuou, distraído:

Tomemos primeiro o fato vago, indefinido. Dou muita importância a idéias vagas. As coisas que "não são evidentes" são as que me convencem: Julgo a impossibilidade moral como a maior de todas as impossibilidades. Conheço seu marido só superficialmente, mas julgo esse seu crime, como geralmente concebido, como algo semelhante a uma impossibilidade mo­ral. Não queira pensar que quero dizer que Boulnois não possa ser tão mau. Todo mundo pode ser mau... tão mau quanto quiser. Podemos dirigir nossos desejos morais; mas não pode­mos, geralmente, mudar nossos gostos e maneiras instintivas de fazer as coisas. Boulnois poderia cometer um assassinato, mas não este. Ele não se apoderaria da espada de Romeu em sua bainha romântica; ou mataria seu inimigo sobre um mostrador de relógio de sol como numa espécie de altar; nem dei­xaria seu corpo entre as rosas; nem jogaria a espada entre os pinheiros. Se Boulnois tivesse de matar alguém, ele o faria tranqüila e obtusamente, como faria qualquer outra coisa du­vidosa... tomar um décimo copo de vinho do Porto ou ler um licencioso poeta grego. Não, o cenário romântico não é de Boulnois. É mais de Champion.

Ah! — exclamou a senhora Boulnois encarando o padre com olhos que brilhavam como diamantes.

E a coisa trivial é esta — continuou Brown. — Ha­via impressões digitais na espada; impressões digitais que podem ser detectadas imediatamente depois, se impressas em alguma superfície polida como vidro ou aço. As impressões no caso estavam sobre uma superfície polida. Estavam na metade da lâmina da espada. De quem eram as impressões, não tenho a menor idéia, mas por que alguém pegaria uma espada da metade para baixo? Era uma espada comprida, mas o comprimento é uma vantagem para estocar o inimigo. A maioria dos inimigos, no mínimo. Em todos os inimigos, com exceção de um.

Exceto um? — perguntou a senhora Boulnois.

Só existe um inimigo, que é mais fácil de se abater com um punhal do que com uma espada.

Eu sei — disse a mulher. — A si mesmo.

Fez-se um longo silêncio e, em seguida, o padre disse calma, mas incisivamente:

Estou certo, então? Sir Claude suicidou-se?

Sim — respondeu a mulher. — Eu vi.

Ele se matou — perguntou padre Brown — por seu amor?

Uma expressão fora do comum estampou-se em sua face, muito diferente de piedade, modéstia, remorso ou qualquer coisa que seu interlocutor pudesse esperar; sua voz tornou-se subitamente forte e cheia.

Não creio. Ele pouco se importava comigo. Odiava meu marido.

Por quê? — perguntou o padre, e voltou seu rosto redondo do céu para a senhora.

Odiava meu marido porque... é tão estranho que acho difícil dizê-lo... porque...

Sim? — disse padre Brown pacientemente.

Porque meu marido não queria odiá-lo.

Padre Brown apenas assentiu com a cabeça e parecia ainda estar ouvindo. Era, num pequeno ponto, diferente da maioria dos detetives reais e da ficção — nunca pretendia não ter entendido quando entendia perfeitamente bem.

A senhora Boulnois aproximou-se ainda mais com o mesmo brilho da certeza:

Meu marido é um grande homem. Sir Claude Cham­pion não era um grande homem, somente um tipo conhecido e bem sucedido. Meu marido nunca foi célebre nem bem sucedido na vida e juro que nunca sonhou com isto. Não espera mais ser famoso como pensador do que como fumador de cha­rutos. Além de tudo isso, tem uma espécie de esplêndida es­tupidez. Nunca cresceu. Gostava ainda de Champion como gostava dele na escola; admirava-o como admiraria uma má­gica feita à mesa do jantar. Mas não podia conceber a idéia de invejar Champion. E Campion queria ser invejado. En­louqueceu-se e se matou por isso.

É, parece que começo a compreender.

Oh, o senhor não vê? Todo o cenário foi montado para isso... o lugar foi planejado para isto. Champion pôs John numa pequena casa perto da sua, como um dependen­te para que se sentisse um fracasso. Mas ele nunca pensou assim. Não pensa mais em coisas desse tipo do que... do que um leão distraído. Champion irrompia casa a dentro nas horas mais difíceis ou das refeições mais caseiras com algum presente ou proposta deslumbrante que dava a impressão de uma visita de Haroun Al Raschid; John aceitaria ou recusaria com olhar distante, por assim dizer, como um escolar indolente, concordando ou discordando do outro. Depois de cinco anos disso, John não se abalava e sir Claude era um monomaníaco.

E Haman começou a lhes falar — disse padre Brown — de todas as coisas com que o rei o havia cumulado e disse: "Todas estas coisas não têm nenhum valor para mim, enquan­to Mordecai, o judeu, estiver assentado ao portão".

Veio a crise — continuou a senhora Boulnois — quando persuadi John a deixar-me reunir algumas de suas especulações e mandá-las a uma revista. Começaram a chamar a atenção, especialmente nos Estados Unidos, e um jornal queria entrevistá-lo. Quando Champion, que era entrevistado quase todos os dias, ouviu falar dessa migalha de sucesso tardio de seu rival inconsciente, rompeu o último vínculo que sustinha seu ódio diabólico. Ele então começou a armar o cerco insano a meu próprio amor e honra, que têm sido objetos das conversas no bairro. O senhor me perguntará por que permiti essas atenções atrozes. Eu lhe respondo que não poderia tê-las declinado a não ser explicado à meu marido, e há certas coisas que a alma não pode fazer, do mesmo modo como o corpo não pode voar. Ninguém poderia ter explicado a meu marido. Ninguém poderia fazê-lo agora. Se o senhor lhe dis­sesse abertamente "Champion está-lhe roubando a mulher", ele acharia isso uma brincadeira muito vulgar: que tudo não passaria de brincadeira... esta idéia não encontraria qualquer brecha em seu grande cérebro. Bem, John devia vir assistir à representação esta noite, mas exatamente quando estávamos saindo ele disse que não viria mais; tinha comprado um livro interessante e um charuto. Disse isso a Claude e foi seu golpe mortal. O monomaníaco entrou imediatamente em desespero. Esfaqueou-se, gritando como um louco que Boulnois o estava matando; jaz ali no jardim, morto pelo seu próprio ciúme de provocar ciúme; e John está assentado na sala de jantar lendo seu livro.

Houve ainda outro silêncio e, em seguida, disse o padre Brown:

Há apenas um ponto fraco, senhora Boulnois, em toda sua narração. Seu marido não está assentado lendo um livro na sala de jantar. O repórter americano me disse que esteve em sua casa, sendo ali informado, por seu mordomo, que Mr. Boulnois tinha vindo depois para Pendragon.

Os olhos da senhora Boulnois se abriram com um clarão quase elétrico e, não obstante, parecia mais de perplexidade do que de confusão ou medo.

Como? que está dizendo! — exclamou. — Todos os criados estão fora de casa, assistindo ao drama. E não temos mordomo! Santo Deus!

Padre Brown estremeceu e deu uma meia volta como uma piorra.

Oh! — exclamou padre Brown como subitamente des­pertado para uma novidade. — Olhe aqui, seu marido me receberá se eu for à sua casa?

Oh, os criados vão voltar agora mesmo — disse ela, refletindo.

Está bem, está bem! — retarguiu o clérigo energica­mente, e saiu apressado pelo caminho, na direção do portão do parque.

E virou-se uma vez para dizer:

É melhor conter aquele americano ou "O Crime de John Boulnois" estará estampado em manchete em toda a América.

O senhor não compreende — disse a senhora Boul­nois. — Ele pouco se incomodaria com isto. Não creio que chegue mesmo a pensar que os Estados Unidos sejam real­mente um país.

Quando padre Brown chegou à casa de colméia e do cão sonolento, uma empregada pequena e asseada conduziu-o à sala de jantar, onde Boulnois, sentado, lia um livro, junto a uma lâmpada de abajur, exatamente como sua esposa o descrevera. Uma garrafa de vinho do Porto e um copo estavam junto ao seu cotovelo. No momento em que o padre entrou observou a quantidade de cinza do charuto fumado.

"Deve ter estado aqui no mínimo há meia hora", pensou Brown.

De fato, dava a impressão de estar ali assentado desde o fim do jantar.

Não se incomode, Mr. Boulnois — disse o padre com sua maneira agradável e prosaica. — Não quero interromper sua leitura. Lamento estar perturbando um pouco seus estudos científicos.

Oh, não — disse Boulnois. — Estava lendo "O Po- legar Ensangüentado".

Disse-o sem sorrir ou levantar o cenho, e seu visitante percebeu a indiferença profunda e viril naquele homem, cuja esposa era considerada uma celebridade. Pôs de lado a no­vela sensacional ensangüentada, sem mesmo sentir bastante sua incongruidade para comentá-la humoristicamente. John Boul­nois era um homem vigoroso, de movimentos lentos, com uma cabeça maciça, parte grisalha, parte calva, e feições obtusas e rudes. Vestia um traje a jigor já velho e fora de moda, com uma abertura estreita e triangular no peito da camisa: vestira-se assim, naquela noite, com a intenção original de ir ver sua esposa representar Julieta.

Não quero afastá-lo por muito tempo de sua leitura ou de qualquer outro negócio catastrófico — disse padre Brown sorrindo. — Só venho interrogá-lo sobre o crime que cometeu esta noite.

Boulnois olhou-o fixamente, mas uma listra vermelha começou a atravessar sua testa larga e parecia uma pessoa que pela primeira vez se via em dificuldade.

Sei que foi um crime estranho, — continuou o padre em voz baixa. — Mais estranho do que um assassinato talvez, para o senhor. Os pequenos pecados são mais difíceis de se confessar do que os grandes, mas é por isso que é importante confessá-los. Seu crime é cometido por toda senhora da sociedade seis vezes por semanas; e não obstante isso lhe atormenta a consciência como uma atrocidade inominável.

Isto faz a gente se sentir — disse o filósofo, calma­mente — um bocado tolo.

Eu sei — concordou o padre —, mas muitas vezes temos de escolher entre julgar-se tolo e ser realmente tolo.

Não me posso analisar bem — continuou Boulnois. — Mas assentando-me naquela cadeira com aquela estória, senti-me tão feliz como um escolar num meio feriado. Era a segurança, a eternidade... não posso explicar... os charu­tos estavam a meu alcance... O Polegar tinha mais quatro fenômenos... havia não só paz, mas uma plenitude. Toca­ram a campainha e refleti, durante um minuto longo e mortal, que não podia sair daquela cadeira... literalmente, fisica­mente. Então o fiz com toda a coragem, pois eu sabia que todos os criados estavam fora. Abri a porta da frente e ali estava um homenzinho com sua boca aberta para falar e seu caderninho de anotações para escrever. Lembrei-me do en­trevistador americano de que me tinha esquecido. Seu cabelo era partido ao meio, e lhe afirmo que aquele crime. ..

Compreendo — disse padre Brown. — Estive com ele.

Não cometi um crime — continuou o catastrofista humildemente —, mas apenas uma falsidade. Disse-lhe que tinha ido ao Pendragon, e fechei a porta na cara dele. Este foi o meu crime, padre Brown, e não sei que penitência o senhor me imporá por isso.

Não lhe darei penitência alguma, — disse o clérigo, juntando seu pesado chapéu e guarda-chuva com um ar de certo divertimento. — Pelo contrário, vim aqui precisamente para livrá-lo da pequena penitência que, caso contrário, teria seguido à sua pequena falta.

Qual é — perguntou Boulnois sorrindo — a pequena penitência de que tive a sorte de escapar?

A força — respondeu padre Brown.

 

                         A ESTÓRIA DE FADAS DE PADRE BROWN

 

A pitoresca cidade de Heiligwaldenstein era um daqueles reinos de brinquedo em que ainda consistem certas partes do Império Germânico. Caiu sob a hegemonia prussiana já muito recentemente, na história, mais ou menos há cinqüenta anos antes do lindo dia de verão em que Flambeau e o Padre Brown se encontravam assentados em seus jardins, bebendo cerveja. Desde tempos imemoriais, ali não se davam guerras nem injus­tiças, como se verá. Mas um simples olhar pela cidade não desfazia a impressão de infantilidade que é o aspecto mais en­cantador da Alemanha — aquelas pequenas monarquias paternais e pantomímicas em que o rei parece tão doméstico como um cozinheiro. Os soldados alemães em inumeráveis guaritas pareciam estranhamente brinquedos alemães, e as ameias distintas do castelo, douradas pela luz do sol, tinham a aparência de pão de gengibre dourado. O dia estava radian­te. O céu era de um azul tão prussiano como a própria Potsdam podia exigir, mas era ainda mais semelhante à cor exu­berante e brilhante dos lápis de cores de uma criança. Até as árvores de galhos cinzentos pareciam novas, pois os botões que deles despontavam eram ainda cor-de-rosa e contra o azul- escuro do céu pareciam figuras pueris.

Apesar de sua aparência prosaica e de seu sistema de vida geralmente prático, o padre Brown não era destituído de uma certa veia romântica em sua personalidade, embora guar­dasse geralmente para si seus devaneios, como fazem tantas crianças. Entre as cores vivas e brilhantes daquele dia e na estrutura heráldica daquela cidade, sentia-se como se estivesse num conto de fadas. Encontrava um prazer infantil, como um irmão mais jovem poderia encontrar, na formidável bengala-espada que Flambeau sempre balança quando caminhava, e que agora estava em pé ao lado de seu caneco cheio de cer­veja. Ou melhor, em sua irresponsabilidade sonhadora, via-se mesmo olhando para a cabeça protuberante e canhestra de eu próprio guarda-chuva puído, com algumas vagas lembran­ças do bastão do bicho-papão num livro colorido de estórias. Mas nunca compôs nada na forma de ficção, a menos que fosse a estória que se segue:

Eu me pergunto — dizia — se alguém poderia ter aventuras reais num lugar como este, se tivesse a oportunidade? é um esplêndido cenário, mas tenho sempre a impressão de que se lutaria mais como sabres de papelão do que com as terríveis espadas de verdade.

Você se engana — disse seu amigo. — Neste lugar não só se luta com espadas, como se mata sem espadas. E há ainda coisa pior.

Como? que quer dizer com isto?

Ora, como! Eu diria que este é o único lugar da Eu­ropa onde um homem já foi baleado sem arma de fogo.

Com arco e flecha? — perguntou o padre um tanto admirado.

Não, com um tiro na cabeça — respondeu Flambeau. — Não conhece a estória do último príncipe do lugar? Foi um dos grandes mistérios policiais destes últimos vinte anos. Lembre-se, naturalmente, de que este lugar foi forçado a se anexar na época dos prematuros planos de consolidação de Bismarck. Forçado, sim, mas não com facilidade. O império, ou seja o que for, mandou o príncipe Otto de Grossenmark governar o lugar nos interesses imperiais. Vimos seu retrato ali na galeria, um velho simpático se tivesse tido um pouco de cabelos ou de sobrancelhas, e não fosse enrugado como um abutre; mas teve muitas dificuldades pela frente, como explicarei agora mesmo. Era um soldado de conhecida habili­dade e sucesso, mas não teve dias fáceis neste lugarzinho. Foi derrotado em várias batalhas pelos célebres irmãos Arnhold, os três patriotas guerrilheiros, em cuja honra Swinburne escre­veu um poema, de que você certamente se lembra; mais ou menos assim:

"Lobos com a cabeleira de arminho,

Corvos coroados e reis, Sejam estas coisas tantas como pragas, Os Três as enfrentarão."

Na realidade, não é de modo algum certo que a ocupação teria sido bem sucedida, não tivesse um dos três irmãos, Paul, declinado, vil, mas decisivamente, de enfrentar aquelas coisas e, entregando ao inimigo todos os segredos da insurreição, assegurou-lhe a derrocada, garantindo sua própria e última promo­ção ao posto de camarista do Príncipe Otto. Depois disso, Ludwig, o único herói autêntico entre os heróis de Mr. Swin­burne, foi morto, com a espada na mão, na tomada da cidade; e o terceiro, Heinrich, que, embora não fosse traidor, fora sempre dócil e mesmo tímido em comparação com seus irmãos ativos, retirando-se a um eremitério, converteu-se a um quietismo cristão, muito semelhante ao quacrismo. Nunca se en­volvia com as outras pessoas a não ser para dar tudo que tinha aos pobres. Dizem que, não faz muito tempo, podia ainda ser visto de vez em quando pela vizinhança, um homem de capa preta, quase cego, com cabelos brancos e incultos, mas com uma expressão surpreendentemente serena.

Eu sei. Eu o vi uma vez.

Seu amigo olhou para ele com certa surpresa.

Não sabia que já tivesse estado aqui antes. Talvez saiba tanto sobre isto como eu. De qualquer maneira, esta é a estória dos Arnholds e ele é o único sobrevivente deles. Sim, e de todos os homens que tomaram parte naquele drama.

E o príncipe, morreu também há muito tempo?

Morreu — respondeu Flambeau — e vou resumir tudo que podemos dizer a seu respeito. Como você sabe, lá para o fim de sua vida começou a ter aqueles problemas de nervos muito comuns nos tiranos. Multiplicou a guarda nor­mal de seus castelos de dia e de noite, até que lhe parecesse haver mais guaritas de sentinelas do que casas na cidade. In­divíduos suspeitos eram fuzilados sem piedade. Vivia quase inteiramente num pequeno quarto bem no centro do enorme labirinto de todos os outros quartos, e até ali levantou outra espécie de cabina central ou armário, revestido de aço, como um cofre. Dizem alguns que sob o assoalho desse armário estava um buraco secreto na terra, não mais largo do que o su­ficiente para contê-lo, de modo que, em sua ansiedade para evitar o túmulo, estava disposto a ir para um lugar muito pare­cido com um túmulo. Mas foi ainda adiante. Acreditava-se que a população estivesse desarmada desde a supressão da revolta, mas Otto insistia agora, como os governos raramente insistem, num desarmamento absoluto e literal. Esse desarmamento foi executado, com extraordinária crueza e severidade, por oficiais muito bem organizados, numa pequena área fami­liar e, tanto quanto a força e a ciência humanas podem estar absolutamente certas de alguma coisa, o Príncipe Otto estava absolutamente certo de que ninguém poderia introduzir nem mesmo uma arma de brinquedo em Heiligwaldenstein.

A ciência humana nunca pode estar absolutamente certa de coisas como esta — disse padre Brown, olhando ain­da os botões vermelhos dos galhos sobre sua cabeça —, no mínimo em vista da dificuldade sobre sua definição e compre­ensão. O que é uma arma? Tem-se matado gente com os mais leves instrumentos domésticos; certamente com chaleiras e talvez com abafadores de chá. Do outro lado, se você mos­trasse um revólver a um antigo bretão, duvido se ele saberia que aquilo era uma arma, até que você disparasse nele, é claro. Talvez alguém introduzisse uma arma tão nova que nem mesmo parecesse com uma arma de fogo. Talvez se parecesse com um dedal ou qualquer coisa. Seria a bala tão peculiar?

Não que eu saiba — respondeu Flambeau —, mas toda minha informação é fragmentária, e só vem de meu velho amigo Grimm. Era um detetive muito capaz, do serviço alemão, que tentou prender-me; eu, ao contrário, o prendi, e batemos uns papos interessantes. Esteve encarregado aqui do inquérito sobre o Príncipe Otto, mas esqueci de lhe perguntar algo sobre a bala. De acordo com Grimm, o que aconteceu foi o seguinte.

Fez uma pausa para sorver a maior parte de sua cerveja preta de um gole e continuou:

Na noite em questão, parece que o Príncipe deveria comparecer a uma das salas externas, porque teria de receber certos visitantes que ele realmente queria conhecer. Eram geólogos encarregados de investigar a antiga questão das pretensas jazidas de ouro em rochas ali por perto, com as quais, como se dizia, a pequena cidade-Estado tinha durante tanto tempo mantido seu crédito e sido capaz de negociar com seus vizinhos, mesmo sob os incessantes bombardeios de exércitos superiores. Desde então, nunca tinham sido encontradas, ape­sar das mais minuciosas pesquisas...

Para descobrir uma pistola de brinquedo — disse padre Brown com um sorriso. — Mas que dizer a respeito do irmão traidor? Não teve nada para dizer ao Príncipe?

Sempre afirmou que não sabia de nada — respondeu Flambeau —, que se tratava de um segredo que seus irmãos não lhe tinham revelado. É, diga-se a bem da justiça, que sua afirmativa tinha o apoio de algumas palavras fragmentá­rias ditas pelo grande Ludwig na hora de sua morte, quando olhou para Heinrich, mas apontando para Paul: "Você não lhe disse..." e logo depois não pôde mais falar. De qualquer maneira os ilustres geólogos e mineralogistas de Paris e de Berlim estavam ali em suas roupas mais magnificentes e apropriadas, pois pouca gente gosta mais de usar suas decorações do que os homens de ciência, como bem sabe quem já foi a uma soirée da Sociedade Real. Foi uma brilhante reunião, mas muito demorada, e pouco a pouco o camarista, você viu o retrato dele também, de sobrancelhas pretas, olhar grave e de sorriso inexpressivo... o camarista, dizia, verificou que havia tudo ali, com exceção do próprio Príncipe. Mandou procurá-lo por todos os salões; em seguida, lembrando-se de seus loucos acessos de medo, correu para o quarto interior. Esse também estava vazio, mas a torrezinha ou cabina de aço levantada no meio dela levou certo tempo para se abrir. Quan­do aberta, estava também vazia. Espiou o buraco no chão, que parecia mais profundo e de certo modo em tudo o mais igual a um túmulo, conforme me contou, é claro. E ainda o fazia quando ouviu uma explosão de gritos e tumulto nos quar­tos e corredores externos. Primeiro, foi uma barulhada distan­te e frêmito de algo inconcebível no horizonte da multidão, para além do castelo. Em seguida, foi um clamor indistinto surpreendentemente próximo e bastante alto para se distinguir se cada palavra não tinha matado a outra. Depois vieram palavras de terrível clareza, vindas de mais próximo; uma pessoa entrou correndo no quarto e deu a notícia em palavras tão breves como lhe tinha sido transmitida: Otto, o Príncipe de Heiligwaldenstein e Grossenmark, jazia no orvalho da noite nos bosques além do castelo, com os braços estendidos e o rosto voltado para a lua. O sangue corria ainda de sua fronte e queixo partido, mas era a única parte dele que se movia como coisa viva. Estava vestido num uniforme branco e ama­relo, para receber seus convidados, só que a faixa tinha sido arrancada e posta, amarrotada, à seu lado. Antes que pudesse ser levantado, morrera. Mas, morto ou vivo, era um enigma. Ele que se tinha sempre escondido no quarto mais interior, estar ali fora, nos bosques úmidos, desarmado e sozinho.

Quem encontrou seu corpo? — perguntou padre Brown.

Uma jovem da corte que se chamava Hedwig von de tal, que fora ao bosque colher flores silvestres.

Apanhou alguma? — perguntou o padre, olhando distraidamente para o véu de ramos acima dele.

Sim. Lembro-me, particularmente, que o camarista, ou o velho Grimm ou alguém, me disse como foi horrível, quando vieram atender ao chamado da moça, ver uma jovem segurando flores de primavera e inclinando-se sobre aquela... aquela massa sangrenta. Todavia, o ponto principal é que, antes de chegar o socorro, ele tinha morrido, e as notícias, naturalmente, tinham de ser levadas de volta ao castelo. A consternação que criou era algo além mesmo do que é natural numa corte, na queda de um potentado. Os visitantes estrangeiros, sobretudo os peritos em mineralogia, ficaram na mais inquietante dúvida e excitação, como também muitos impor­tantes funcionários prussianos, e logo começou a esclarecer que o plano de descobrir o tesouro era muito mais avantajado do que se pensava. Peritos e funcionários tinham recebido a promessa de grandes prêmios ou vantagens internacionais, e alguns diziam mesmo que os apartamentos secretos do Prín­cipe e a forte proteção militar eram devidos menos ao medo do populacho do que à execução de alguma pesquisa particular de...

As flores tinham hastes compridas? — perguntou pa­dre Brown.

Flambeau arregalou os olhos.

Que sujeito curioso é você! Foi exatamente o que o velho Grimm disse, que o aspecto mais feio de tudo isso, pen­sava, mais feio do que o sangue e a bala, eram aquelas flores muito curtas, arrancadas quase sem talo.

É claro — disse o padre. — Quando uma moça adulta está realmente colhendo flores, ela as apanha com bas­tante haste. Se apenas puxa suas cabeças, como fazem as crianças, é como se...

E hesitou.

Como se o quê?

Como se as tivesse arrancado nervosamente, para jus­tificar sua presença ali depois... bem, depois que estava ali.

Eu sei aonde você quer chegar — disse Flambeau sombriamente. Mas esta e qualquer outra suspeita desaparece diante de um fato, a necessidade de uma arma. Ele poderia ter sido morto, como você diz, com muitas outras coisas, mes­mo com a sua própria faixa; mas temos de explicar não como foi morto, mas como foi baleado. E o fato é que não pode­mos. Eles submeteram a moça a um rude interrogatório, pois, para dizer a verdade, era um tanto suspeita, embora fosse so­brinha e protegida do velho camarista, Paul Arnhold. Mas era muito romântica e suspeita de simpatizar com o velho en­tusiasmo revolucionário de sua família. Seja como for, por mais romântico que seja, não se pode imaginar uma grande bala na cabeça ou no queixo de uma pessoa sem o uso de um revólver ou espingarda. E não havia revólver, embora hou­vesse dois disparos de revólver. O problema fica com você, meu amigo.

Como sabe que houve dois disparos?

Havia apenas uma bala na sua cabeça, mas havia outro buraco de bala na faixa.

Padre Brown franziu subitamente seu cenho liso.

A outra bala foi encontrada? — perguntou.

Flambeau estremeceu um pouco.

Não me lembro...

Pare! Pare! Pare! — gritou Brown, franzindo ainda mais o cenho, com uma concentração de curiosidade fora do comum. — Não me julgue mal-educado. Deixe-me pensar nisso por um momento.

Está bem — disse Flambeau rindo e acabou de tomar sua cerveja.

Uma leve brisa agitava as árvores cheias de botões e so­prava para o céu nuvenzinhas brancas e cor-de-rosa que pareciam tonar o céu mais azul e a cena colorida mais singular. Poderiam ter sido querubins voltando para casa, uma espécie de creche celestial. A torre mais antiga do castelo, a Torre do Dragão, levantava-se tão grotesca como um canecão de cerveja. Para além da torre estendia-se o bosque onde o Príncipe tinha sido morto.

O que foi feito, finalmente, da jovem Hedwig? — perguntou o padre, finalmente.

Casou-se com o general Schwartz. Certamente já ouviu falar de sua carreira um tanto romântica. Distinguiu-se mesmo antes de suas proezas em Sadowa e Gravelotte; de fato, veio de soldado raso, o que não é muito comum mesmo no menor exército da Alemanha...

Padre Brown levantou-se de repente.

Veio de soldado raso! — exclamou e fez um gesto como se fosse assobiar. — Ora, ora, que estória esquisita! que maneira estranha de matar um homem; mas suponho que era a única maneira possível. Mas imaginar um ódio tão pa­ciente...

Que está dizendo? — perguntou o outro. — Como o mataram?

Mataram-no com a faixa — respondeu Brown refletidamente. Mas ao protesto de Flambeau continuou: — Sim, sim, sei da bala. Talvez deva dizer que morreu por ter uma faixa. Sei que isso não equivale a dizer que teve uma doença.

Acho — disse Flambeau — que chegou a uma idéia na sua cabeça, mas não será fácil tirar a bala da cabeça dele. Como expliquei antes, poderia facilmente ter sido estrangula­do. Mas foi baleado. Por quem? Com quê?

Foi fuzilado por suas próprias ordens — disse o pa­dre.

Quer dizer que cometeu suicídio?

Não disse que foi por sua própria vontade. Disse por suas próprias ordens.

Bem, seja como for, qual é sua teoria?

Padre Brown deu uma risada!

Estou de férias hoje. Não tenho nenhuma teoria. Só que este lugar me faz lembrar contos de fadas, e se quiser, lhe contarei um.

As pequenas nuvens cor-de-rosa, que se pareciam mais com algodão doce tinham vindo flutuando até as torrinhas do castelo de pão dourado, e os dedos de bebê cor-de-rosa das árvores em botão pareciam abrir-se e se estenderem para pegá-las; o céu azul começou a tomar o colorido roxo-brilhante da noite, quando padre Brown subitamente recomeçou a falar:

Foi numa noite sombria, com a chuva pingando ain­da das árvores e o orvalho já se agrupando, que o Príncipe Otto de Grossenmark saiu apressadamente por uma porta la­teral do castelo e se dirigiu rapidamente ao bosque. Uma das inúmeras sentinelas o saudou, mas ele não percebeu. Não queria ser especialmente observado. Sentiu-se aliviado quan­do as grandes árvores, cinza e já molhadas da chuva, o engo­liram como um pântano. Ele escolhera deliberadamente o lugar menos freqüentado de seu palácio, mas mesmo este era mais freqüentado de que queria. Mas ali não havia nenhuma chance particular de perseguição oficiosa ou diplomática, pois sua saída tinha sido por um impulso súbito. Não tinham impor­tância todos os diplomatas bem vestidos que deixara para trás. Tinha constatado de repente que não precisava deles. Sua grande paixão não era o medo muito mais nobre da morte, mas a estranha avidez de ouro. Por essa lenda do ouro tinha deixado Grossenmark e invadido Heiligwaldenstein. Com o ouro e só com ouro tinha comprado o traidor e matado o herói, pelo ouro tinha há muito tempo interrogado e interro­gado o falso camarista, até que chegara a conclusão de que, no tocante à sua ignorância, o renegado tinha dito a verdade. Por ouro, tinha, um tanto relutantemente, pagado e prometido dinheiro na hipótese de ganhar a maior soma; e por ouro tinha saído furtivamente de seu palácio como um ladrão, na chuva, pois tinha concebido outra maneira de satisfazer o desejo de seus olhos e de o conseguir barato.

Após uma pequena pausa, o padre continuou:

Adiante, na extremidade superior de um caminho tor­tuoso da montanha por onde caminhava, entre rochas refor­çadas com pilares ao longo da crista que pendia sobre a ci­dade, estava o eremitério, que era pouco mais do que uma caverna cercada de espinhos, em que o terceiro dos grandes

irmãos há muito tempo se escondera do mundo. Ele, pensava o Príncipe Otto, não pode ter razão alguma para me recusar a dar o ouro. Sabia do lugar durante anos e não fez esforço algum para encontrá-lo, mesmo antes que seu novo credo ascético o tivesse afastado do mundo ou dos prazeres. É verdade que era um inimigo, mas agora ele professava o dever de não ter mais inimigos. Alguma concessão à sua causa, um apelo aos seus princípios arrancaria provavelmente o simples segredo do tesouro. Otto não era covarde, apesar de suas redes de precauções militares e, de qualquer maneira, sua avareza era mais forte do que seus temores. Nem havia ali muito a que temer. Uma vez que estava certo de que não havia armas particulares em todo o principado, estava centenas de vezes certo de que não havia mais ninguém no pequeno eremitério do quacre da colina, onde vivia de ervas, com dois velhos criados rústicos, e sem nenhuma outra voz humana durante anos e anos. O Príncipe Otto contemplou do alto, com um sorriso sombrio, os labirintos brilhantes e quadrados da cidade ilu­minada lá embaixo. Pois até quanto a vista pudesse alcançar, via a fila de rifles de seus amigos e nem uma pitada de pól­vora para seus inimigos. Os rifles se enfileiravam tão perto ali mesmo do caminho da montanha, que bastaria um grito dele para fazer os soldados subirem colina acima, para não falar do patrulhamento do bosque e da crista em intervalos regulares; rifles tão distantes, nos bosques escuros, ananicados pela distância, além do rio, que nenhum inimigo poderia introdu­zir-se na cidade por qualquer atalho. E ao redor do palácio rifles junto à porta ocidental, rifles junto à porta oriental, à porta norte e à porta sul e ao longo das quatro fachadas que as ligavam. Estava seguro. Tudo ficou ainda mais claro quando subiu a crista e verificou como estava vazio o ninho de seu velho inimigo. Viu-se numa pequena plataforma de pedra, in­terrompida abruptamente pelos três cantos de um precipício. Atrás estava a caverna escura, escondida pelos espinhos ver­des, tão baixa que era difícil acreditar como um homem podia entrar ali. Na frente estava o declive dos penhascos e a ampla mas nebulosa visão do vale. Sobre a pequena plataforma de rocha estava uma velha estante de bronze, estalando sob o peso de uma enorme Bíblia alemã. O bronze ou cobre se tinha tornado verde com a atmosfera corrosiva daquele lugar alto, e ocorreu a Otto instantaneamente um pensamento: "Mesmo se tivesse armas, estariam a esta altura todas enferrujadas". A lua que já se levantara tinha pintado uma aurora mortal atrás das cristas e penhascos, e a chuva tinha cessado. Atrás da es­tante e olhando pelo vale, estava um homem muito velho ves­tido num chambre preto que lhe caía tão retilíneo como os penhascos em torno dele, mas cujos cabelos e voz fraca pareciam ondular-se ao vento. Estava evidentemente lendo uma das lições diárias de seus exercícios religiosos: "Eles confia­vam em seus cavalos..."

"Sir", disse o Príncipe de Heiligwaldenstein, com uma cortesia fora do comum, "gostaria de lhe dizer uma palavrinha.

"... e em seus carros", continuou o ancião com sua voz débil, "mas nós confiaremos no nome do Senhor dos Exérci­tos"...

Suas últimas palavras foram inaudíveis, mas fechou o li­vro reverentemente e, já quase cego, fez um movimento de apalpadelas e segurou a estante. Imediatamente seus dois criados saíram da caverna escura e o sustentaram. Usavam, tam­bém, togas pretas e descoradas como a dele, mas não tinham cabelos grisalhos, nem a purificação do rosto encarquilhado pelo frio. Eram camponeses, croatas ou magiares, com rostos largos e brancos e olhos cintilantes. Pela primeira vez algo perturbou o Príncipe, mas sua coragem e senso diplomático o mantiveram.

"Lamento não nos termos encontrado", disse, "desde aquela terrível batalha em que morreu seu pobre irmão."

"Todos os meus irmãos morreram", disse o ancião, olhan­do ainda através do vale. Em seguida, voltando por um ins­tante para Otto seu rosto decadente e delicado, e com os ca­belos encanecidos que pareciam gotejar sobre suas sobrancelhas como sincelos, acrescentou: "Eu também morri".

"Espero que entenderá", disse o Príncipe, controlando-se quase até o ponto da conciliação, "que não vim aqui assustá- lo, como um simples fantasma daquelas lutas. Não falaremos sobre quem tem ou não tem razão, mas pelo menos havia um ponto em que nunca erramos, porque vocês estiveram sempre certos. O que quer que se diga da política de sua família, ninguém imagina por um só momento que fossem movidos pelo simples interesse de ouro; o senhor mesmo provou isto acima de qualquer suspeita"...

O velho de toga preta tinha até então olhado para ele com olhos lacrimosos e com uma expressão de ingenuidade. Mas, ao ouvir a palavra "ouro", estendeu a mão como se para deter alguma coisa e voltou o rosto para as montanhas.

"Ele falou de ouro", disse. "Falou de coisas que não são legais. Calem-no!"

Otto tinha o vício de seu tipo e tradição prussianos, que é olhar o sucesso não como um incidente, mas como uma qualidade. Ele se concebia a si e a seu sucesso como perpétuo conquistador de povos que deviam ser perpetuamente conquis­tados. Conseqüentemente, não estava familiarizado com a emo­ção da surpresa e mal preparado para o movimento seguinte, que o apanhou de improviso e o imobilizou. Tinha aberto a boca para responder ao ermitão, quando a boca foi contida e a voz estrangulada por uma mordaça macia e forte subita­mente amarrada em sua cabeça como um torniquete. Passa­ram-se uns quarenta segundos para que constatasse que os dois criados húngaros o haviam feito, e que o tinham feito com sua própria faixa militar. O ancião voltou novamente em passos débeis à sua grande Bíblia sustentada pelo bronze, passou as folhas, com a paciência que tinha algo de horrível, até que chegou à Epístola de São Tiago, e começou a ler: "A língua é um pequeno membro, mas..."

Algo na própria voz fez com que o Príncipe se voltas­se subitamente e se precipitasse pelo caminho da montanha por onde subira. Estava a meio caminho na direção dos jardins do palácio quando procurou desvencilhar-se da faixa estranguladora de seu pescoço e de seu queixo. Tentou e tentou, mas era impossível; os homens que tinham dado aquele nó sabiam a diferença entre o que um homem pode fazer com as mãos na frente e o que pode fazer com elas atrás da cabeça. Suas pernas estavam livres para saltar como um antílope nas mon­tanhas, seus braços estavam livres para fazer qualquer gesto ou sinal, mas não podia falar. Havia nele um demônio mudo. Já se aproximava dos bosques que cercavam o castelo quando se deu conta do que seu estado de mudez significava e preten­dia significar. Olhou mais uma vez sombriamente para os la­birintos brilhantes e quadrados da cidade iluminada lá embai­xo, e não sorriu mais. Sentiu-se repetindo as frases de seu primeiro estado de ânimo com uma ironia criminosa. Até longe onde a vista alcançava podia ver a fila de rifles de seus amigos, que atirariam nele se não pudesse responder à interpelação. Os rifles estavam tão perto que os bosques e a crista podiam ser patrulhados em intervalos irregulares; por conseguinte, se­ria inútil esconder-se até de manhã. Os rifles estavam de tal modo alinhados que um inimigo não poderia entrar furtiva­mente na cidade por qualquer atalho; seria, portanto, inútil voltar à cidade por qualquer caminho diferente. Um grito dele faria seus soldados subirem a montanha correndo. Mas dele não sairia grito algum.

A lua se tinha levantado — prosseguiu o padre — num prateado fulgurante e o céu se mostrava com raios de um azul noturno e brilhante entre as listras de pinheiros em torno do castelo. Flores de uma espécie larga e plumosa, pois nunca tinha notado essas coisas antes, tinham-se tornado ao mesmo tempo luminosas e descoloridas pelo luar, e pareciam indescritivelmente fantásticas quando se juntavam, como se raste­jassem pelas raízes das árvores. Talvez sua razão tivesse sido subitamente prejudicada pelo cativeiro inatural que trazia con­sigo, mas naquele bosque sentiu algo incomensuravelmente alemão... o conto de fadas. Sabia, com a metade de sua mente, que estava chegando perto do castelo de um bicho- papão... tinha-se esquecido de que era ele o bicho-papão. Lembrava-se de ter perguntado à sua mãe se havia ursos nos bosques da Alemanha. Inclinou-se para apanhar uma flor, como se fosse um fetiche contra o encantamento. A haste era mais dura do que pensara e quebrou-se com um pequeno estalido. Procurando cuidadosamente colocá-la em sua faixa, ouviu o grito "Quem vem lá?". Então se lembrou de que a faixa não estava em seu lugar de costume. Tentou gritar, mas era impossível. Veio a segunda chamada, seguida de um disparo de trajetória sibilante, silenciado, subitamente, por um impac­to. Otto de Grossenmark caiu estendido serenamente entre as árvores de fadas, e não faria mais nenhum mal nem com ouro nem com aço; só o lápis de prata da lua realçaria e traçaria aqui e ali o intrincado ornamento de seu uniforme, ou as ve­lhas rugas de sua testa. Que Deus tenha piedade de sua alma.

A sentinela que fez o disparo — continuou o padre — correu, naturalmente, de acordo com as ordens rigorosas da guarnição, para encontrar algum vestígio de sua presa. Foi um soldado chamado Schwartz, desde então conhecido na sua profissão, que encontrou um homem calvo, de uniforme, com rosto amordaçado com uma espécie de máscara feita com sua própria faixa militar, onde nada a não ser seus olhos mortos e abertos podiam ser vistos, brilhando como pedras ao luar. A bala entrara no queixo pela mordaça; foi por isso que havia um buraco de bala na faixa, mas só um disparo. Naturalmente, o jovem Schwartz rasgou a misteriosa máscara de seda e a atirou sobre a relva e, só então, viu a quem tinha matado. Não podemos saber ao certo o que aconteceu em seguida. Mas sou levado a crer que havia um conto de fada, afinal de con­tas, naquele pequeno bosque horrível como era naquela oca­sião. Se a jovem chamada Hedwig já conhecia o soldado que ela salvou e com quem finalmente se casou, ou se apareceu, acidentalmente no lugar e ali começaram seu romance, naque­la noite, talvez nunca saberemos. Mas podemos saber, imagino, que essa Hedwig foi uma heroína e mereceu casar-se com um homem que se tornou uma espécie de herói. Ela tomou uma atitude ousada e sábia. Persuadiu à sentinela a voltar para seu posto, em cujo lugar não havia nada para ligá-lo com o aci­dente; ele era apenas uma das mais leais e disciplinadas das cinqüenta sentinelas. Ela permaneceu junto ao corpo e deu o alarma; e nada havia que pudesse ligá-la tampouco ao de­sastre uma vez que não tinha e não poderia ter armas de fogo.

Bem — concluiu o padre Brown, levantando-se alegremente. — Espero que estejam felizes.

Aonde vai? — perguntou Flambeou.

Vou dar outra olhadela naquele retrato do camarista, O Arnhold que traiu seus irmãos. Eu me pergunto que parte... me pergunto se um homem é menos traidor quando trai duas vezes.

E ruminou durante muito tempo diante do retrato de um homem de cabelos brancos, sobrancelhas pretas e uma es­pécie de sorriso róseo, artificial, que parecia contradizer a ameaçadora advertência de seus olhos.

 

 

[1] Perdi um copo, expressão que em inglês, tnissead a glass, se prestava à confusão de Maggie que ouvira Todhunter dizer "mister Glass". (N. do T.)

[2] Sela (selah, exclamação bíblica) e seu anagrama ales (cer­veja). (N. do T.)

[3] Espírito feminino cujos lamentos, segundo uma crença irlan­desa, anunciam às famílias a morte iminente de um de seus membros. (N. do T.)

[4] Chefes supremos entre os gauleses ou bretões. (N. do T.)

 

                                                                                G.K.Chesterton  

 

                      

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