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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A SENTINELA / Richard Zimler
A SENTINELA / Richard Zimler

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A SENTINELA

Primeira Parte

 

 

Enquanto eu passava os olhos pelas notas que tinha sobre a mesa, o suspeito sentado à minha frente dizia-me que nem ele nem a mulher tinham tido filhos, mas que não havia noite de há um mês para cá em que ele não fosse ver o filho à cama.

Não percebo... Que filho? - perguntei.

O meu filho imaginário. Fazemos sempre alguma coisa juntos, os dois.

Os seus olhos atentos pareciam ansiar pela minha confiança. Enquanto sopesava as minhas opções, ia soprando o chá fumegante.

Muito bem, e então que idade tem esse seu filho imaginário? - perguntei, ao mesmo em o que anotava a data no meu bloco: «sexta-feira, 6 de julho de 2012, 10hI7.

Sete anos - responderam o suspeito. - Pelo menos, na maior parte das vezes. Pode depender das minhas fantasias do momento. - Mordeu o lábio e levantou o olhar para o teto, como se sentisse a necessidade de uns instantes para compor a sua história.

Vá lá, tanto eu como você merecemos mais do que me vir para aqui inventar essas histórias disparatadas - disse eu, e apontei para o monte de processos empilhados em cima da cadeira atrás da minha secretária. - Tenho ali pelo menos uns vinte casos a exigir a minha atenção, por isso se está só a fingir que...

Nunca lhe acontece pôr-se a imaginar como as coisas poderiam ter sido diferentes? - interrompeu ele num tom desesperado. Bebeu um gole rápido do copo de água. Compreendi que era a energia nervosa que o movia. Chamava-se Manuel Moura. Tinha trinta e dois anos, mas parecia mais novo, com um ar de estudante universitário. Era professor de Química do ensino secundário.

Então isso do filho inventado é mesmo a sério? - perguntei.

Nunca falei mais a sério em toda a minha vida.

E ele tem um nome? - perguntei, e senti a ligeira, a ténue, a hesitante perda de equilíbrio que por vezes nos invade quando damos um passo para dentro da história de outra pessoa.

Miguel.

E como é ele?

Tem o cabelo preto e fino com franja e uns olhos verdes enormes…Uma expressão viva, inteligente. Esboçou um largo sorriso pela beleza que criara. Um miúdo brilhante, sociável. E corajoso… realmente corajoso.

Moura tinha cabelo castanho-claro, penteado para o lado com cuidado, e os óculos de aros metálicos davam -lhe um ar tímido e reservado ­ a lembrar um pouco o Harry Potter. Como eu achava que envenenar a mulher era tudo menos corajoso, disse:

Dá a impressão de que está a querer dizer-me, mas sem o dizer de facto, que o Miguel sai à mãe.

Moura levantou as mãos como que rendendo-se - mau grado seu ­ à verdade que eu acabara de adivinhar, tirando depois os óculos e limpando os olhos. Parecia mais adulto sem eles - mais sincero, também.

Observou atentamente o meu gabinete, para a esquerda, para a direita, de novo para a esquerda, esticando o pescoço de um modo que noutras circunstâncias teria parecido cómico.

Nenhuma fotografia da sua família na secretária, nenhum quadro... Isto é um pouco frio aqui - disse ele. - Não quer nada de pessoal no seu gabinete?

Sem o saber, tinha tocado numa das minhas permanentes fontes de mal-estar no trabalho. Talvez a minha linguagem corporal me tivesse denunciado.

Regras da polícia - disse eu. - Nada que o distraia a si, nem a mim.

Os inspetores que se veem nos filmes dão sempre aos gabinetes um ar bastante pessoal - explicou ele.

Muito do que se passa nas séries de televisão não tem nada a ver com o que acontece aqui.

E quase sempre resolvem os casos em quarenta e oito horas.

Aposto que deve ver a CSI - disse eu num tom cansado; não era a primeira vez que faziam comparações desfavoráveis entre mim e os polícias de investigação das séries televisivas.

É verdade, sou um grande fã da série, da que se passa em Las Vegas.

Bem, a questão é que as séries policiais são feitas para o ter sentado na ponta do sofá, e isto... aqui, fiz um gesto circular com a mão a indicar o meu gabinete e, de um modo mais geral, a dimensão em que ele existia - ... isto, Sr. Moura, dá-se o caso de ser aquilo a que quase toda a gente chama a vida real. As pessoas por estes lados raramente são divertidas e, aqui entre nós, algumas poderiam ser consideradas bastante incompetentes. Como muito bem sabe, foi preciso uma semana inteira para o laboratório nos mandar os resultados das análises a substâncias tóxicas no corpo da sua esposa. E mesmo assim só com grande insistência minha.

Mas percebeu que o responsável era eu logo que recebeu o relatório? - perguntou ele num tom esperançado.

Parecia ansioso por ter uma melhor opinião sobre mim, o que me surpreendeu como sendo ao mesmo tempo ingénuo e cativante.

Professor de Química, envenenamento com cianeto... Não é preciso ser um génio para juntar as duas coisas - disse eu.

Baixou o olhar como se reconsiderasse se deveria abrir-se comigo. Para reconquistar a sua confiança, inclinei-me para ele e sussurrei num tom conspirativo:

Sou conhecido por desafiar as regras quando é preciso. - Rodei a caneca de café onde ponho as esferográficas de modo a que ele pudesse ler os dizeres em grandes letras azuis: I BLACK CANYON. - Foi a minha mulher que a mandou fazer para mim - disse eu. - Tem uma galeria de peças de cerâmica.

Sorriu com grata surpresa - provavelmente como o seu filho imaginário faria - e perguntou:

Onde é Black Canyon?

Na América... No Sudoeste do Colorado.

Bem me parecia que falava com um ligeiro sotaque! - anunciou orgulhoso.

Nasci lá perto.

Deve ser mesmo longe... Quer dizer, não só geograficamente.

É um mundo diferente.

Deve ser. - Baixou os olhos, considerando as suas opções. Quando os levantou de novo, voltou a parecer interessado em falar-me naquilo que mais contava para ele, mas à sua própria maneira particular. - O meu filho é realmente amoroso - disse. - Toda a gente gosta dele.

Bebi um gole rápido de chá e escrevi no meu bloco: «Vida de fantasia do suspeito»; fosse um sinal de discernimento ou de insanidade, era o tipo de coisas que eu gostava de pôr no papel. Tinha resmas de fotocópias de notas de interrogatórios em casa, embora continuasse a ser um mistério o que tencionava fazer com elas.

Toda a gente, quem? – perguntei.

Outros professores, vizinhos…Para onde quer que vamos, todos percebem que ele é especial.

Moura prosseguiu contando- me que pensar no filho imaginário era a única maneira de conseguir adormecer à noite. Enquanto falava, mantinha as mãos enclavinhadas. Dava a impressão de precisar de se controlar firmemente.

Ia acenando a cabeça, ansioso por nos convencer a ambos da veracidade daquilo que estava a dizer. Contou-me que a mulher deixara a vida deles num turbilhão rumo ao desastre quando se envolveu com o professor de Filosofia da sua escola.

Portou-se como uma verdadeira puta! - disse ele num tom enfurecido.

Murmurei para os meus botões: «Good authors, too, who once knew better words... »

O que é que disse? - perguntou.

Às vezes saem-me sem querer versos de canções em inglês ...

É um tique nervoso - expliquei.

Não há problema. Mas sabe o pior? - perguntou em tom de mofa. - O gajo com quem ela andava metida é um perfeito asno!

Mas é claro que ela não pensava o mesmo - disse eu, desafiador.

E parece-me que tinha todo o direito de pensar o que quisesse.

Talvez tivesse - admitiu ele.

Talvez tivesse ou tinha mesmo? - insisti; suspeitos que tratam mal as mulheres tendem a fazer me esquecer a minha tática de lhes ganhar a confiança.

Tem razão - concordou Moura, mas percebi que era apenas para me calar.

Oiça, vou dizer-lhe uma coisa que tive de aprender quando era muito novo - disse eu. - Os homens que consideram mulheres e namoradas propriedade sua são responsáveis por mais do que a quota que lhes cabe da infelicidade no nosso mundo.

Sim, acredito que sim - admitiu ele. - E há quanto tempo é polícia?

Há dezassete anos.

Deve ter visto algumas coisas nada bonitas durante esse tempo todo.

Pensei em dizer «a crueldade nunca sai de moda», mas soou-me muito a frase feita - fazia-me lembrar demasiado Philip Marlowe ou algum daqueles detetives das histórias que eu lia em miúdo, tentando desvendar a solução dos mistérios policiais.

Então o que é que o senhor e o Miguel fazem juntos enquanto tenta chegar à terra dos sonhos? - perguntei em vez disso.

A maior parte das vezes vamos até à praia, na Caparica. Agarro-lhe a mão e corremos até à beira-mar. Ele gosta de ficar parado a ver a areia a deslizar-lhe debaixo dos pés... Faz com que sinta que está a patinar. Põe-se a rir. E eu também!

Moura explicou que também levava o filho à Feira da Ladra, o enorme mercado de velharias por trás do Panteão, pois o rapazinho era doido por ferramentas agrícolas antigas e utensílios de cozinha - como o pai, naturalmente. Diante da jaula dos tigres no Jardim Zoológico de Lisboa, Miguel disse ao pai que gostava de ser feroz, de não ter medo e de ter uns dedos afiados como navalhas. Gostaria de correr pelas florestas dos Himalaias. «E queria que ninguém conseguisse apanhá-lo! acrescentei, como se isso fosse uma condição absoluta, Sublinhei duas vezes uma tal esperança, pois parecia-me a maneira de Moura dizer que passara muito tempo temendo que a mulher e os amigos pudessem apanhá-lo a ele e se apercebessem de que afinal não era o tipo tão ingénuo e tão bonzinho que pensavam.

Nesta altura da sua fantasia no zoo, Moura pegava em Miguel ao colo, abraçava-o com todo o alívio que lhe dava o ter finalmente encontrado uma companhia em quem podia confiar e dizia-lhe que, também ele, sempre desejara ser grande e poderoso, mas que até aí nunca ousara dizer isso a ninguém.

Sustentando o meu olhar, implorando a minha compreensão com a ensombrada profundidade dos seus olhos, Moura confessou que era um grande conforto poder dizer ao filho que nunca se tinha achado suficientemente forte. Desde os meus dez ou onze anos, era o que eu desejava dizer a alguém. Mas só fui capaz de o confessar ao Miguel. Não havia mais ninguém em quem pudesse confiar.

As lágrimas assomaram-lhe às pestanas e convenci-me de que era isto o que ele mais desejara contar-me desde o momento em que nos encontrámos. Uma semana antes, tinha ido a casa dele para lhe fazer algumas perguntas sobre a morte da mulher, e ele deve ter vislumbrado algo em mim que lhe deu a esperança de que eu o pudesse compreender. E neste momento deve também ter percebido que era a sua última oportunidade de explicar uma coisa importante sobre si próprio a outra pessoa.

Mas agora confessou-me também a mim o seu segredo - fiz-lhe notar.

Porque a minha vida acabou - disse ele, enxugando os olhos. - Por isso pouco importa. Provavelmente terei... não sei, uns cinquenta anos quando sair da prisão. Ou se calhar até mais.

Esperou que eu o contradissesse com um cálculo mais otimista.

Como não o fiz, desviou os olhos para aquilo que pensava ser o seu futuro. O queixo tremia-lhe; preparava-se para um longo combate.

Ouviu-se o telefone tocar na sala contígua. Através do vidro que separava o meu gabinete da sala onde dois dos meus inspetores tinham as secretárias, vi a nova agente da minha equipa, Lucinda Pires, atender o telefone.

Moura soltou um suspiro profundo, apaziguador, e disse:

Pensava realmente que o Miguel tinha mudado tudo. Mas se calhar foi estupidez minha acreditar que ele podia fazer com que as coisas fossem diferentes.

O tom desesperado na sua voz comoveu-me e, com um sobressalto, apercebi-me de que usara as suas fantasias sobre um filho não apenas para conseguir adormecer, mas também para tentar evitar cometer um crime. Tinha querido fazer o que estava certo. Tinha lutado e tinha fracassado.

Gostava de o ajudar - tornar a sua passagem pela prisão mais suportável.

Não foi estupidez - disse eu. - Mas talvez... talvez precisasse de esconder ainda mais profundamente as suas fantasias ... E manter-se firme até ter a certeza de conseguir falar com sua mulher sem lhe fazer mal.

Talvez possam ainda servir de ajuda de certa maneira... para aguentar tudo isto, quero eu dizer.

Sentindo compreensão na minha voz, voltou-se para a parede e começou a soluçar. A desolação dele apanhou-me desprevenido, e senti Gabriel erguendo-se por trás de mim, o que era estranho, pois nenhum perigo me ameaçava. Pelo menos, foi o que pensei nesse momento.

Oiça, senhor Moura - disse eu em voz baixa, na esperança de o trazer de volta a mim -, o senhor acha que o seu filho imaginário irá crescer consigo? Quer dizer, daqui a vinte anos, quando o senhor sair da prisão, será que o Miguel andará pelos trinta anos ou continuará com sete?

Ele esfregou os olhos e soltou novo suspiro.

Preferia que continuasse um miudito - respondeu. - Mas não sei bem se isso agora tem algum interesse.

Compreendendo que tanto ele quanto eu estávamos a precisar de um assunto mais leve por uns minutos, levei-o a falar sobre a escola.

À medida que começou a relatar os seus problemas com os miúdos que copiavam nos exames, senti que Gabriel se retirava. Invadia-me uma sensação de ligeireza. E pouco depois desapareceu completamente, deixando atrás de si um vazio com a forma exata da minha curiosidade acerca dele.

Assim que eu e Moura começámos a conversar, compreendi pela sua esforçada procura das palavras certas que não tinha há muito tempo ninguém com quem se abrir. Talvez fosse esta a primeira vez.

Quando entrei nos meandros do crime propriamente dito, Moura disse-me que tinha usado cianeto por atuar de forma rápida e segura.

Não queria que a minha mulher sofresse sem necessidade - explicou-me. - E não me importava que se revelasse nas análises. - Encolheu os ombros como que a mostrar que nunca fora intenção sua frustrar os nossos esforços.

Mesmo assim, podia ter tentado fugir depois - disse eu.

Ainda pensei em ir para o Brasil. Mas, ao ver a minha mulher morta, ao olhar para a cara dela... vi naquela imobilidade, naquele silêncio forçado ... qualquer coisa sobre nós os dois e sobre o nosso destino. Sobre como as coisas tinham começado e no que vieram a dar. E o que significava estar casado. Nesse momento percebi que fugir não tinha nenhum interesse.

Aquelas palavras deixaram-me pouco à vontade. Talvez por ele ter compreendido uma coisa importante acerca do seu casamento tarde de mais.

É difícil preparar o cianeto? - perguntei, um pouco desapontado comigo próprio por abandonar uma conversa que poderia revelar-se mais significativa.

É canja - disse ele, com um gesto desvalorizando a dificuldade.

Esforçou-se por não sorrir. Era evidente que achava que não seria grande coisa mostrar-se muito orgulhoso das suas habilidades. Era um sujeito estranho - tanto se mostrava desesperado como de um momento para o outro parecia pronto a assumir o papel de estrela do seu próprio espetáculo televisivo. Levado por um palpite, perguntei:

Anda a tomar algum medicamento?

Um antidepressivo – respondeu. – O meu médico achou que podia ajudar. Durante uns tempos não parava de pensar em suicidar-me. Embora neste momento esteja aqui na Judiciária e em vias de ir para a prisão. Não sei se hei-de considerar isto um progresso.

Riu-se sem vontade - o riso de um homem que acabara por não chegar nem de perto aonde sempre esperara. Bebi o meu chá. Estava cansado de falar com suspeitos que tinham arruinado toda e qualquer hipótese de felicidade que lhes fora dada. E que traíam as pessoas que amavam. Os seus impulsos destrutivos deixavam-me exausto.

Quando Moura voltou a pôr os óculos, percebi que gostava de parecer mais novo do que era; como uma camuflagem. Talvez fosse até um pouco mais perigoso do que eu imaginara. Era possível que tivesse até inventado a sua fantasia para me conquistar - que tivesse pressentido desde o primeiro momento que poderia levar-me com essa estratégia.

Entrei para a PJ em 1994 e desde então fora já completamente aldrabado por dois sociopatas nos interrogatórios. Tanto um quanto outro tinham estado sentados exatamente no mesmo sítio onde Moura agora se sentava. O Número Um era caixa num banco, tinha um sorriso irresistível e vivia com os pais em Almada. Revelara-se um contador de histórias apaixonante. Falámos sobretudo da sua coleção de moedas. Estava convencido da sua inocência até que um dos nossos cães-polícias nos levou aos corpos do pai e da mãe dele, enterrados debaixo do empedrado do pátio de sua casa. O Número Dois era uma bonita enfermeira do Hospital Santa Cruz no Estoril. Era capaz de rir, chorar ou explodir numa fúria indignada a seu bel-prazer: uma Meryl Streep dobrada em português. Estava convencido de que ela era vítima de uma odiosa conspiração, mas veio a descobrir-se que tinha matado pelo menos nove pacientes com injeções de morfina.

Se alguma coisa o trabalho na polícia me ensinou é que se pensamos que não podemos ser aldrabados estamos muito enganados.

Moura continuou a contar-me como tinha deitado o pó de cianeto no molho picante de tomate que certo dia fizera para o jantar.

A minha mulher gostava de comida muito picante - explicou.

Alguém bateu à porta do gabinete. Moura sobressaltou-se como se tivesse ouvido uma explosão.

Calma, não há problema - disse eu.

A inspetora Pires enfiou a cabeça dentro do gabinete. Tinha entrado para a Judiciária só há uma semana.

Desculpe, senhor inspetor - disse ela. - Houve um crime.

Onde?

Em São Bento. Na Rua do Vale.

Era a minha semana de serviço, o que significava que me eram entregues todos os crimes de maior importância comunicados pela PSP. Os agentes da Polícia de Segurança Pública eram quase sempre os primeiros a chegar ao local porque as chamadas de emergência para o 112 seguiam para eles.

OK, Lucinda, diga aos técnicos de investigação para irem para a Rua do Vale de imediato. Eu vou para lá logo que puder.

Muito bem, chefe - disse a inspetora Pires, acrescentando em tom de advertência: - A PSP diz que a vítima era uma pessoa rica e bem relacionada, com muitos amigos no Governo.

Saí para falar com ela, fechando a porta atrás de mim.

Eu sei que está só a proteger-me, inspetora, mas não é provável que um cadáver vá telefonar a algum dos seus amigalhaços manda-chuvas a queixar-se por eu ter demorado mais uns minutinhos a interrogar um suspeito. Não tenha medo da PSP.

Muito bem, chefe. Desculpe.

Falara em tom simpático, mas deu-me a impressão de ela ter ficado à beira das lágrimas; por isso, pus-lhe a mão no ombro e acrescentei:

Não queria ser bruto. É que este suspeito deixa-me baralhado.

Uma coisa que pode fazer por mim é ligar para o Dr. Zydowicz. Quero que ele fique com este caso.

Zydowicz era o médico-Iegista chefe. Tinha acabado de voltar para o trabalho depois de dois meses de baixa por doença. Não éramos obrigados a ter um médico-Iegista sempre à mão, mas eu preferia ter um por perto em casos mais importantes.

Voltei para o gabinete para terminar o interrogatório de Moura. Ele acabava de beber o resto da água quando entrei. Passados alguns minutos, tínhamos chegado a um acordo sobre o texto exato das suas declarações. Assim que acrescentou a sua assinatura numa letra miudinha e cuidada, devolveu-me a esferográfica e disse num tom esperançado:

Se calhar não sou assim tão má pessoa.

Hesitei na resposta a dar-lhe; queria ser sincero, mas parecia-me que não tinha sentido feri-lo inutilmente.

Às vezes as pessoas ficam tão perdidas que não conseguem encontrar o caminho de volta para si próprias. Acho que foi isso que se passou consigo. Mas também lhe digo que nunca ninguém entrou no meu gabinete para ser interrogado a considerar-se má pessoa.

Sentia-me tentado a dizer mais alguma coisa, mas ele tinha dado de tal maneira cabo da sua vida tranquila que os danos eram irreparáveis, e isso parecia dar-lhe o direito a ficar com uma ou duas ilusões. Mesmo assim, pressentiu que eu lhe ia dizer mais alguma coisa.

Força, eu aguento - disse ele.

Olhei-o atentamente para me assegurar de que falava a sério. Confirmou com um aceno de cabeça enérgico.

Desculpe ter de lhe dizer isto, mas acredita mesmo que o seu filho imaginário o considerará um bom pai quando descobrir que o senhor lhe envenenou a mãe?

Também pensei nisso - reconheceu, endireitando-se na cadeira.

Parecia contente por as nossas cabeças funcionarem da mesma maneira.

Foi por isso que fiz as coisas de modo a que nunca o venha a saber.

Nunca mais volta a pensar nele? - perguntei num tom cético.

Ignorando a minha pergunta, disse numa voz agradecida:

O senhor é bom tipo. E sabe ouvir as pessoas. Obrigado. Tive sorte em ter sido o senhor a última pessoa com quem falei. Não se preocupe, vai ter muita gente com quem falar na prisão. E há de haver lá muitos que vão ficar felicíssimos por terem um amigo especialista em Química. Pode ser até que...

Levando as mãos ao peito, respirou sofregamente e começou a tossir.

Que se passa? – perguntei.

Baixou os olhos, respirando como um peixe fora de água.

Não queria ter de contar ao meu filho - disse numa voz entrecortada. - Nem a mais ninguém. - Deixou-se tombar em cima da secretária, as mãos aferradas às bordas, os nós dos dedos brancos.

O que é que fez? - perguntei, sobressaltado.

Fechou os olhos. As mãos largaram a mesa.

Não vale a pena chamar a ambulância.

Merda! - berrei.

Precipitei-me para ele, enquanto a cabeça lhe descaía sobre o tampo da secretária com um som cavo. A mão direita endireitou-se com um esticão e mandou pelos ares a caneca I BLACK CANYON e todas as minhas esferográficas. Tinha os olhos abertos, mas já sem verem nada do nosso mundo. Um fio de sangue corria-lhe do nariz.

A inspetora Pires saiu a correr do gabinete do lado. Gritei-lhe que chamasse uma ambulância.

E diga aos médicos que tragam um antídoto para cianeto!

Tomei o pulso de Moura e senti uma pulsação ténue, mas regular.

Levantando-o da cadeira, estendi-o no chão, deitado de costas, de modo a que o coração não tivesse de se esforçar muito. Reparei num pequeníssimo quadrado de papel de alumínio junto a uma das pernas da mesa.

Não me faça uma coisa dessas! - disse eu, mas uns segundos depois o coração deixou de bater. Sentindo que isto era um teste em torno do qual girava o meu próprio direito a estar vivo, ajoelhei-me a seu lado e pressionei-lhe com força o esterno, depois inclinei-lhe a cabeça para trás e fiz duas tentativas de respiração artificial.

 

Quando os médicos confirmaram o que eu já sabia, acabei a vomitar o pequeno-almoço na sanita. Lavando a cara com água quente no lavatório, fixando no espelho a estonteada fragilidade que se lia nos meus olhos, reescrevi uma e outra vez a minha conversa com Moura, dando­lhe todas as garantias de que ele precisava para não pôr termo à vida.

A sensação do sopro de vida que tentei instilar-lhe ainda me cobria os lábios, como uma crosta salgada. Seria o sentimento de culpa que me puxava de volta à infância? Ou simplesmente qualquer homem que observasse durante tempo suficiente a sua própria cara confusa acabaria por descobrir o rapaz que morava dentro de si e que compreendera pela primeira vez que haveria de cometer muitos erros ao longo da vida?

Fechei-me à chave dentro de uma retrete porque queria estar a sós com o miúdo de dez anos que eu tinha sido. Aí, o crescente da lua brilhava ainda como uma lanterna sobre a nossa casa no Colorado. Rajadas de um vento gélido dobravam os ramos estéreis das macieiras, e eu ouvia o ruído como que de ossos estalando que os pés do meu pai faziam ao pisar o gelo a caminho de casa.

«Ei, Hank, olha o que eu apanhei aqui!»

O meu pai agarrou em Ernie e atirou-o para cima de um monte de neve perto das escadas que davam para a porta de entrada e chamou-me com um gesto.

«Anda cá, Hank!»

Quando me aproximei, pegou-me pelo braço e abraçou-me desesperadamente. Tremia. Pensei que estava a chorar, mas, no momento em que me afastou de si, mostrava um sorriso trocista. «Sabes uma coisa, meu filho? Vou fazer ao Ernie a mesma coisa que o inverno do Colorado está a fazer às nossas macieiras!»

Empurrou-me com força e eu caí ao lado do meu irmão. Ao levantar os olhos, vi-o tirar um saco de plástico transparente do bolso de trás das calças...

Do interior do gabinete, telefonei ao meu irmão. Sentiu de imediato o pânico na minha voz.

Que é que tens? - perguntou.

Problemas no trabalho.

Mas estás bem?

Estou - respondi. - E tu, tudo bem? De repente fiquei preocupado contigo.

Por aqui tudo bem. As roseiras estão uma maravilha. Ah, e havias de ver as...

Achas que o pai ainda nos consegue descobrir passados todos estes anos? - interrompi. Caraças, Hank, aonde foste buscar isso?

Responde só à pergunta que te fiz!

Bem sabes que é impossível. Mesmo que ainda esteja vivo, do que eu duvido, não sabe uma palavra de português. E nem eu nem tu constamos na lista telefónica. Se ele conseguisse encontrar-nos, já o teria feito. Há mais de vinte e cinco anos que cá estamos.

Era uma coisa que me deixava muitas vezes furioso, a maneira como Ernie podia mostrar-se tão seguro de estarmos a salvo do nosso pai e tão inseguro em relação ao resto, mas nesse momento era tudo o que eu precisava de ouvir.

Lembras-te de como ele dizia as coisas mais tremendas numa voz tão suave? - perguntei. - Era para nos mostrar como estava em paz consigo próprio e com Deus.

Ouvi a respiração alarmada de Ernie.

Não contaste a ninguém o que lhe aconteceu, pois não? - perguntou-me, pensando ter adivinhado que eu tinha outros problemas.

Ia ser muito pior para nós se fizesses uma coisa dessas. A polícia de lá pode ainda suspeitar de que ele não desapareceu simplesmente ... De que nós fizemos alguma coisa que não fizemos.

Não contei nada.

Não podes contar a ninguém, nunca. Nem mesmo à Ana! - insistiu ele num tom angustiado. Não conto. Não fiques assim.

Então o que aconteceu? - perguntou numa voz menos brusca.

Pensando no historial de Ernie com comprimidos, não ousei falar-lhe no suicídio de Moura, por isso disse apenas:

Houve um suspeito que morreu aqui na esquadra.

No demorado silêncio que se seguiu, apercebi-me de que temera que Ernie tivesse morrido naquele dia de dezembro em que o meu pai o tinha descoberto debaixo do alpendre. Às vezes, quando passo uns dias sem falar com o meu irmão, dá-me a impressão de que o meu pai o asfixiou mesmo, nessa altura ou noutra qualquer, e que toda a minha vida adulta foi um sonho.

Mantém-te longe do sangue - disse-me então o meu irmão. - E olha para os dois lados antes de atravessares a rua.

Este último conselho era o nosso código em pequenos para a necessidade de tomar sempre todas as precauções. Disse que sim, mas quando chegou o momento de desligar não conseguia fazê-lo; detinha-me tudo o que não ousava mas era necessário dizer. Acima de tudo, queria garantir a Ernie que mataria o pai se ele aparecesse - que entrara para a polícia para me certificar de que teria a calma necessária para lhe enfiar uma bala mesmo entre os olhos - e faria desaparecer o corpo de maneira a que ninguém fosse capaz de o descobrir.

Quando voltei para o meu gabinete, a inspetora Pires tinha apanhado todas as esferográficas que estavam espalhadas pelo chão. Depois de lhe agradecer, fui ao gabinete do diretor Crespo explicar o que se tinha passado com Moura. O olhar impaciente dele, como que a dizer «despache-se», desorientou-me de tal maneira que me esqueci de como se dizia «respiração artificial» em português e disse «CPR» em inglês. Odiava sentir que dava a impressão de estar alheado e desarmado - como se tivesse caído borda fora deste mundo.

Onde tinha ele o cianeto? - perguntou Crespo quando terminei.

Estendi-lhe o pedaço de papel de alumínio que encontrara.

Aqui. Estava caído no chão.

Tenha cuidado com isso! - disse ele, levantando a mão. - Pode ter ainda algum veneno.

Dobrando a folha em quatro, disse-lhe que ia pedir aos técnicos de laboratório para o eliminarem. E enfiei-a no bolso da camisa, para a guardar.

Crespo sacou de uma pastilha elástica de um pacote - andava a ver se conseguia largar o tabaco há mais de quatro anos, desde que entrara em vigor a lei que proibia fumar dentro dos edifícios.

Oiça, Monroe - disse ele no tom apaziguador que adotava quando fazia um esforço para não mostrar até que ponto estava chateado comigo -, o senhor não podia fazer nada. Escreva isso no seu relatório e continue com o que tem a fazer. - Contornou a secretária e deu-me uma palmadinha no ombro. - Aquele tipo era pirado, um falhado. Não pense mais nisso.

Uma raiva, súbita e imperativa, fez-me recuar, afastando-me dele.

Não vejo o que fez dele um falhado - disse eu.

Enquanto mascava gulosamente a pastilha, Crespo mediu-me com os olhos, avaliando até que ponto poderia ser sincero comigo.

Todos sabemos que a vida é quase sempre uma porcaria, Monroe, mas continuamos a lutar. Os falhados desistem. É tão simples como isso.

Eu sabia que desistir não era nada simples, mas receava ser capaz de lhe gritar algum impropério caso começasse a discutir com ele. Disse para mim próprio que Crespo não valia o esforço de o fazer entender quantos anos de desespero é preciso sofrer para conseguir a coragem de caminhar até ao extremo da vida e dar o salto.

Em tom conciliatório, Crespo disse:

Oiça, não vai ganhar nenhuma medalha por levar estas coisas a peito. Vá mas é à Açoriana beber um brandy quando se vir livre desta papelada toda. Você está branco como a cal.

Eu não bebo, Sr. diretor.

Porra, Monroe, um brandy não é beber, é sobreviver!

Fui lavar as mãos e escrevi o relatório. Nessa altura deviam ser umas onze horas. Ana devia estar na galeria. Foi Liliana, a assistente, quem respondeu. Quando a minha mulher atendeu, contei-lhe o sucedido com Moura.

Fiz mesmo merda - concluí. - Não precisava de ser tão espertinho.

Ouve, Hank, se ele tinha cianeto escondido, quer dizer que decidiu acabar com a vida muito antes de ter começado a falar contigo.

Falava naquela voz ponderada que normalmente me servia de caminho para escapar ao inferno, mas não desta vez.

Eu... eu identifiquei-me com ele - gaguejei, e expliquei-lhe como ele tinha inventado um filho para se forçar a seguir o bom caminho.

Ouve lá, ele disse que tinha tido sorte em seres tu a fazer o interrogatório - retorquiu ela. - Por isso, deixa de te culpabilizar.

Palavras de consolo, sem dúvida, mas a morte continuava alojada na minha nuca latejante e no fatal entorpecimento das minhas mãos; o sangue e a pele recordam o que o espírito esquece.

Um Valium podia ajudar, mas eu tentava não tomar medicamentos durante a parte da manhã. Não podia deixar de ir para a Rua do Vale, por isso prometi a Ana fazer o possível para chegar a casa cedo e depois peguei na arma. Só no parque de estacionamento me apercebi de que me tinha esquecido da gravata de cordão e voltei atrás para a ir buscar; contar com um pássaro de prata de uns sete centímetros para me proteger era uma coisa idiota, mas o meu irmão insistia sempre nisso.

Quando cheguei ao carro, a inspetora Pires estava ao volante a ver a lista de filmes no Público. Ouvindo-me aproximar, levantou os olhos; estavam vermelhos e lacrimejantes. Já me contara entre soluços - que até esse dia nunca tinha visto ninguém morrer.

Não falámos durante o caminho. Conduzindo pelo meio do trânsito barulhento, as mãos aferradas ao volante como quem tivesse acabado de tirar a carta. As inúmeras ideias que me ocorriam para tentar meter conversa - mas sem o fazer - acabaram por me deixar nervoso.

E, então, algum filme interessante? - perguntei, finalmente.

Falaram-me num novo filme com a Angelina Jolie, mas não consegui ver onde passa. - Num tom veemente, acrescentou: - Oiça, chefe, lamento imenso o que se passou.

Você não fez nada de errado - disse eu.

Se o chefe não tivesse saído para ir falar comigo, se calhar não...

Ele ia tomar o cianeto, de qualquer maneira - interrompi, repetindo o que a minha mulher me dissera.

É possível - disse ela, com a cara franzida.

Vamos para o local do crime. Nada do que dissermos agora pode mudar o que aconteceu.

Muito bem, chefe.

Parecia resignada com a sua insatisfação, mas eu devia ter tentado mostrar-me mais convincente; enquanto descíamos a Calçada do Combro, acrescentei:

Todos nós sentimos necessidade de contar a nossa história, e depois de o ter feito a vida deixou de ter sentido para ele.

A inspetora Pires respirou profundamente, contendo-se. Deu-me a sensação de que precisava de aguentar até um último e pouco simpático pensamento sobre si própria.

Parece que todas as pessoas da sua idade acham a Angelina Jolie o máximo - disse-lhe.

Estou a ver que o chefe não acha - respondeu ela, claramente tão contente como eu por deixar a conversa entrar por temas triviais.

Vi a Lara Croft uma vez com a minha mulher e os miúdos. Era como uma banda desenhada de má qualidade. A Jolie é capaz de ser uma pessoa muito interessante, mas como atriz...

Se calhar, representar não é o forte dela!

Ri-me. Nos lábios dela desenhou-se um sorriso reticente - o primeiro desde que tínhamos começado a trabalhar juntos. Compreendi que a morte de Moura possivelmente mudara a forma e o sentido de tudo o que agora acontecesse entre nós.

Quer que lhe diga o que o agente da PSP que está de serviço me contou sobre o crime? perguntou.

Boa ideia.

Em palavras rápidas e seguras pôs-me a par do caso sem ter de consultar as suas notas. Impressionante. Mas não fui capaz de apanhar a maior parte do que ela disse. Quando fechei os olhos para acalmar o latejar das têmperas, calou-se.

Acho que vai ter de começar do princípio - pedi -lhe. - Desculpe.

Disse-me que a vítima se chamava Pedro Coutinho. Tinha sido morto a tiro na sala de estar de sua casa. O corpo fora descoberto há cerca de uma hora e um quarto pela empregada. A mulher, Susana, e a filha, Sandra, estavam de férias no Algarve, com o cão da família, um caniche chamado Nero. Tinham fechado a casa e partido para Lisboa mal souberam do crime. Observei a inspetora Pires furtivamente enquanto falava. Tinha um perfil reservado. Com os seus cabelos pretos e a postura rígida e direita lembrava uma dançarina de flamenco. Se fosse mais novo, teria feito algumas perguntas insinuantes que me pudessem levar a um relance sobre os seus mistérios interiores, mas tinha quarenta e dois anos e estava farto de treinar novos inspetores.

A inspetora prosseguiu, contando-me que os agentes da PSP destaca­ dos para o local tinham encontrado o caderno de endereços de Coutinho na gaveta do fundo da sua secretária na biblioteca, e que nele constavam os números de telemóvel de uma data de ministros. Também tinham encontrado um exemplar da Olá! na mesinha de cabeceira com uma reportagem toda espampanante sobre as férias que a sua família passara em Goa no passado mês de fevereiro. Pelos vistos, gostava de ser fotografado sem camisa provavelmente para mostrar o seu físico de pugilista.

A concluir, disse-me que a esposa e a filha deviam estar de volta a Lisboa a meio da tarde.

Que idade tinha a vítima? – perguntei.

Ele franziu o nariz.

Esqueci-me de perguntar, chefe - disse-me. - Desculpe.

Não tem importância. E como se tem aguentado o Nero?

O caniche?

Sim.

Ela fitou-me como se eu fosse doido varrido.

Desculpe - disse eu. - A minha mulher e os meus filhos dizem que me armo em engraçado nos momentos menos adequados, mas é só para tentar não ir ao fundo.

Fiquei com a suspeita de que não iríamos fazer mais nenhuma tentativa de humor, mas passados alguns instantes ela disse:

Pergunto-me se o Nero também aparece em tronco nu nas revistas mundanas.

Esperemos que se sinta suficientemente confiante para fazer isso ­ retorqui.

Rimo-nos ambos - mas de modo um pouco exagerado, como pessoas conscientes de que o muito mau dia que estávamos a ter ia ficar ainda pior.

O meu telemóvel tocou. Era Mesquita, o subdiretor da Polícia Judiciária para todo o território português.

Muito bem, oiça, Sr. inspetor-chefe - disse ele. - Disseram-me que estava a caminho da Rua do Vale. É assim?

É sim, estamos a chegar.

Ótimo. Verifique que se faz tudo conforme as regras. E, se houver alguma fuga de informação para os jornais, mando-o pendurar pelos tomates. Entendido?

Perfeitamente.

Ótimo. E, se começarem a pressioná-lo, diga a quem quer que seja que se vá foder e ligue para mim. Pouco me importa que seja até o primeiro- ministro. Entendido?

Desligou sem esperar pela minha resposta. Quando disse à inspetora Pires quem tinha ligado e que não devia falar do caso com ninguém, ela fitou-me com um ar inquieto.

Diga lá - disse eu.

Acha que a vítima poderá ter informações comprometedoras sobre pessoas importantes do governo?

Acabaram de me avisar que pode acontecer que o primeiro-ministro telefone; por isso, diga-me lá o que acha, inspetora.

Estacionámos na Travessa do Alcaide, a uns cem metros do nosso objetivo; sempre gostei de ter uns minutos ao ar livre antes de ver sangue.

Enquanto nos dirigíamos para a casa da vítima, passou por nós aos estremeções um dos antigos elétricos de Lisboa, com um monte de miúdos pendurados comungando com o Deus do Perigo, que ainda tinham todo o direito de adorar naquela idade. O lixo voava sobre as pedras da calçada e um rádio vociferava notícias sobre a nossa infindável crise económica. O desemprego subira acima dos quinze por cento e mais de metade de quem não tinha emprego quinhentas mil pessoas - vivia dos subsídios do Estado. Um inquérito recente a nível nacional revelara que sessenta e nove por cento dos estudantes universitários tencionavam emigrar depois de se formarem. E os nossos míseros salários - os mais baixos da Europa - tinham há uns tempos sido considerados demasiado elevados por Paul Krugman, um economista que recebera o prémio Nobel, e um painel de especialistas mundiais.

Ao passarmos por uma casa degradada com um buraco enorme que alguém tinha feito a pontapé na parte de baixo da porta, senti cair na cabeça duas grossas gotas de um líquido qualquer. Rezei para que não tivesse sido nenhum dos gordos pombos de Lisboa a usar-me mais uma vez para treinar a pontaria. Ao erguer os olhos, descobri umas festivas sardinheiras vermelhas observando-me de dentro da sua floreira pintada de um amarelo-canário. Animador. Ainda havia quem se pudesse dar ao luxo de ter flores e pintura fresca. Enxuguei o cabelo com o lenço que trago sempre no bolso de trás.

O vento trazia o cheiro das pedras aquecidas da calçada, de azeite e fermento. Ao alargar o cordão da gravata, reparei que tinha o colarinho suado.

Passo o verão a pedir chuva e os meus filhos a pedirem mais sol - disse à inspetora. - Acha que ainda vamos chegar aos trinta e dois graus?

Passámos há pouco por uma farmácia e o letreiro marcava vinte e sete graus.

Só vinte e sete? Parece muito mais quente.

Porque não há brisa nenhuma.

Se eu fosse o Raymond Chandler - disse eu -, acho que era a altura de lhe dizer que há homens e mulheres que fazem coisas loucas e violentas no verão em dias assim quentes e sem brisa. Especialmente quando perdem os empregos e desprezam os seus governantes.

É capaz de ser verdade - retorquiu.

Costuma ler policiais, inspetora? – perguntei.

Leio, sim, chefe… sobretudo os clássicos americanos. Especialmente Dickson Carr.

Era pois uma mulher que gostava de romances policiais do género «mistérios de porta fechada» - o que provavelmente significava que o que mais apreciava era responder a desafios impossíveis.

O estreito passeio periclitante apenas permitia a passagem de uma pessoa e por isso deixei a inspetora Pires seguir à minha frente. Ela voltava-se de vez em quando para se certificar de que eu não me tinha perdido ou sido atingido por outro pingo dos vasos de sardinheiras. A sua preocupação fazia-me lembrar a minha permanente preocupação com Ernie quando éramos pequenos.

A inspetora seguia com as mãos atrás das costas, ligeiramente inclinada para diante, como que vergada por algum pesado pendente que trouxesse ao pescoço. Será que continuava a duvidar de que não tivera qualquer responsabilidade na morte de Moura?

Oiça, inspetora - disse eu, aproveitando um abrandamento no trânsito para caminhar ao lado dela -, alguns dos polícias mais antigos gostariam que você nunca tivesse entrado para a Judiciária. Chegam a fazer piadas sobre si. Faça por não lhes ligar. Os mais novos acabarão por a aceitar como colega se conseguir aguentar-se bem. Venha falar comigo se houver alguma chatice maior.

Está bem, obrigada, chefe - disse ela, mas sem entusiasmo.

A julgar pelo seu olhar, insistentemente fixado no chão, apercebi-me de que a deixara embaraçada. Típico de um homem a entrar na meia-idade e com tão pouca experiência com mulheres.

Diga-me uma coisa - perguntei -, costuma ir à praia da Caparica?

Voltou-se para me olhar de frente.

Como?

O Moura, o nosso professor de Química... costumava levar lá o filho imaginário.

Estive algumas vezes na Caparica, sim.

Oiça, inspetora, quando estamos só nós os dois, porque não me trata por Henrique?

Se... se é assim que prefere - replicou, embora a ansiedade que se lia na sua hesitação me dissesse que era pouco provável que seguisse a nossa combinação.

Fiz-lhe um gesto a dizer-lhe para avançar.

E que tal é a Caparica? - perguntei.

Muito bonita - disse ela, voltando-se por instantes -, embora nos fins de semana haja gente de mais. Nunca lá foi?

Não. Na minha terra não havia praias. O barulho das ondas ainda me deixa nervoso. E toda aquela areia... Mas a minha mulher vai com os miúdos ao Guincho às vezes. Gosta mais das praias bravias. Como dos homens.

O último comentário destinava-se a valer-me mais uma risada, mas a minha saída americanizada tinha sido demasiado subtil.

Onde fica a sua terra, chefe? - perguntou a inspetora.

Porque quer saber?

Porque vamos trabalhar juntos, chefe.

Oh, vão ser só uns dois anos, Lucinda - disse-lhe. - É Lucinda, não é?

Luci - respondeu ela.

Bem, Luci, não falta muito para que se veja livre de mim.

Ela desviou o olhar. Será que vi nela desapontamento?

Não tem nada a ver consigo - tranquilizei-a. - O diretor substitui sempre os meus inspetores de dois em dois anos. Não quer que ninguém trabalhe comigo durante muito tempo. De certeza que já ouviu falar nisso.

A inspetora Pires confirmou com um aceno da cabeça, claramente embaraçada pelo que tinha ouvido dizer sobre mim.

A Rua do Vale era uma velha rua magra e cansada - com uma largura que apenas permitia a passagem de um carro de cada vez - que dava para as imponentes colunas da Igreja de Jesus, com um aspeto demasiado grandioso para um bairro tão degradado, Quem construíra aquele santuário tinha querido lembrar aos moradores que Deus estava sempre ao virar da esquina - apesar de nada indicar que Ele pudesse estar.

A primeira casa à nossa esquerda - sem pintura e num triste estado de conservação - estava tapada por andaimes. Uns trinta metros mais adiante, encontrava-se um pequeno ajuntamento de vizinhos já de vigia ao lado da porta de entrada da casa da vítima: um homem de idade, com uma camisola interior enxovalhada, todo torcido e anguloso, e quatro mulheres, a mais nova com um bebé ao colo envolto numa mantinha azul.

A inspetora Pires insistiu:

Mesmo assim, gostava de saber onde cresceu.

Num rancho no Oeste do Colorado – respondi. Vá aos mapas do Google, procure Black Canyon do Gunnison National Park e desloque o cursor uns trinta e tal quilómetros para a esquerda. E depois saia de lá o mais depressa que puder porque não há absolutamente nada que fazer para os turistas a não ser servir de espetáculo a umas quantas cobras-cascavel esfomeadas e outros tantos lojistas bêbados.

Apesar do meu cinismo, a expressão dela iluminou-se.

Estive no Parque Nacional das Montanhas Rochosas há quatro anos.

O Filipe e eu fornos acampar ao Oeste americano na nossa lua de mel.

Ia dizer «Também lá estive», mas não queria conversas sobre a terra onde tinha nascido, os portugueses de um modo geral não gostam de desistir dos seus preconceitos sobre a América.

Quer dizer que é casada? - perguntei.

Sou. O Filipe acabou de se doutorar em Antropologia - disse ela, orgulhosa.

Filhos?

Ainda não. E o senhor, chefe?

Dois, o Nathaniel e o Jorge. Quando não nos podem ouvir, eu e a minha mulher chamamos lhes Godzilla e King Kong, Sabe Deus o que eles nos chamarão a nós.

Luci riu-se, o que me agradou - e permitiu-me por um instante fugaz imaginar que os acontecimentos dessa manhã não teriam um efeito permanente no meu trabalho.

O ajuntamento estava agora apenas a uns cinquenta passos de nós. As pessoas observavam nos de olhos esbugalhados, curiosos, deviam calcular que éramos da polícia, mesmo não usando farda. Ao chegarmos ao nosso destino, o velhote perguntou num tom brusco:

Você é polícia?

Sou, sim.

Mastigou a informação enquanto me inspecionava, desconfiado. Se a minha vida fosse o western dos anos 50 que às vezes desejava que fosse, haveria de o ver cuspir para o chão entre nós.

O n.º 24 da Rua do Vale era uma casa de três andares com a pintura cor-de-rosa a destacar-se do reboco. À porta, encontrava-se um agente da PSP ainda novo, lendo um daqueles jornais gratuitos que invariavelmente acabam arrastados e rolando pelas ruas ressequidas ­ uma versão lisboeta das ervas secas que esvoaçam pela aridez do Oeste americano. Enquanto eu o cumprimentava, a rapariga com o bebé perguntou-me se tinham matado Pedro Coutinho.

Desculpe, minha senhora, não estou autorizado a comentar o caso - disse eu.

Se não o tivessem matado, então que raio vinha o senhor cá fazer? - retorquiu o velhote com um esgar venenoso.

Mais logo vamos dar uma volta pelo bairro para interrogar as pessoas - disse-lhe, a ele e aos outros - e nessa altura logo lhe contamos alguma coisa do que soubermos.

A porta da frente era blindada; o rodar da chave fazia mover seis linguetas na parede. Depois de me reunir a Luci no átrio, ela perguntou-me:

Essa sua gravata é do Colorado, chefe?

Com um sobressalto, apercebi-me de que a deixara à porta.

Sim. É um thunderbird. Foi-me oferecida por um índio sioux meu amigo.

Tem amigos índios? - exclamou com o entusiasmo de uma rapariguinha.

Só um... O nome de homem branco dele era Nathan. Era um winkte.

Um winkte?

Um bobo que é também um homem sábio. São loucos por profissão. Vestem umas roupagens bizarras e fazem tudo ao contrário.

A parte de cima é a parte de baixo, dentro é fora. Para eles, o normal é o que há de mais estranho. - E, o que é mais importante no meu caso, são capazes de descobrir o que se perdeu, poderia ter acrescentado se conhecesse melhor Luci. Mas, em vez disso, disse: - Às vezes precisamos de virar tudo do avesso. Os winktes são as únicas pessoas com poderes suficientes para o fazer.

Não se riu nem fez nenhum sorrisinho irónico, o que era muito bom sinal - e o único que esperava dela, porque senão não teria levado para aí o assunto.

Avançámos pelo átrio. O chão de tacos escuros estava tão encerado que brilhava como um espelho. Dois jarrões chineses do tamanho de um homem, pintados com sinuosos dragões doirados, defendiam a porta da sala de estar. Ao lado de um deles via-se um exaurido ficus num grande vaso branco e um regador vermelho cheio até às bordas.

Enquanto vestíamos as batas lilases, e pantufas, a inspetora Pires disse.

Passámos uns belos dias nas Montanhas Rochosas. Tirando a altitude. O Filipe perdeu-se durante uma caminhada a três mil metros e por pouco não o encontrávamos a tempo.

É preciso mantermo-nos hidratados nas altitudes elevadas disse-lhe eu, mas falava num tom ausente; tinha já avistado o morto estendido no tapete branco de felpa no meio da sala de estar.

Entrei. Tinham enfiado uma meia cinzenta na boca da vítima, apertada com uma gravata enrolada na cabeça com duas voltas e atada com um nó. Era de um azul-cobalto com riscas escarlates e fora tão firmemente atada que os lábios tinham ficado retesados e o nariz sobressaía de modo grotesco, como a tromba de um inseto. Estava deitado sobre a barriga em frente a uma parede de um amarelo-pálido, coberta com quadros dignos de um museu, incluindo um pequeno de Paula Rego com uma rapariga muito aprumada enfiando comida na boca de um macaco. Havia uma toalha verde felpuda à volta da cintura da vítima, e a camisa azul estava desabotoada. Nas costas, como uma mancha, via-se o buraco da bala com uma borda de sangue. Era um homem baixo e encorpado, com umas mãos enormes e fortes. O cabelo grisalho era espesso e cortado rente. Parecia-se um pouco com Pablo Picasso.

Na parede por trás dele viam-se cinco carateres numa escrita asiática, cada letra do tamanho do meu polegar. Eram de um castanho de um tom familiar - a cor do sangue seco. Ao percorrer os carateres com o olhar, senti o começo de uma dor de cabeça latejante, que sugeria que em breve era capaz de perder o rasto de mim mesmo.

Para permanecer onde estava - e manter a minha identidade - concentrei-me no morto.

Uma substância semelhante a iogurte rosado fora espalhada na sua cara e orelha esquerda; e viam-se duas embalagens vazias de Adagio - com sabor a morango - atiradas para o tapete. Diria que a vítima tinha uns quarenta e cinco ou cinquenta anos, mas era difícil saber ao certo; a morte faz sempre com que os corpos me pareçam de cera - uma ilusão que a minha mente suscita como proteção, dissera-me o psicólogo da polícia.

Os pulsos da vítima estavam atados atrás das costas com uma grossa corda de nylon branca. Uma poça de sangue empapava o tapete.

Esforçando-me por manter o olhar afastado daquela mancha espessa, ajoelhei-me ao lado dele. Levantei-lhe o braço. A julgar pela rigidez recalcitrante, percebi que o rigor mortis atingira o seu máximo umas horas antes. Debaixo da toalha confirmei o que o nariz já tinha suspeitado quanto ao enorme pavor final do homem.

Pela etiqueta vi que a gravata era da Zara, uma marca de vestuário presente praticamente em todos os centros comerciais de Portugal. Tinha ainda o preço marcado: 19,95 euros. Dava a impressão de que o assassino, ao deixá-lo ficar, me mandava uma mensagem mostrando como a vida deste homem era ordinária.

Sondei a meia na sua boca com a ponta de um lápis; estava enfiada profundamente, o que significava que fora quase impossível para a vítima respirar ou engolir. A gravata contorcera-lhe os cantos da boca, onde se viam crostas de sangue. Não lhe deve ter sido possível gritar nem mesmo implorar que lhe poupassem a vida.

O cinzento-azulado dos lábios mostrava sem margem para dúvidas que tinha morrido asfixiado. Quando me imaginei no seu lugar, senti os tomates contraírem-se e a garganta secar, e quando Luci me tocou no ombro dei um salto inesperado. Surpreendentemente, a minha dor de cabeça tinha desaparecido, e tive a impressão de me ter afastado do corpo da vítima uns trinta centímetros ou mais. Baixei os olhos para as mãos. Gabriel não escrevera nenhuma mensagem para mim; em vez disso, tinha feito o desenho de um pau rodeado por doze pintas, o símbolo sioux de uma ameaça que nos deixa encurralados.

 

O assassino conduz-me através da casa até me levar ao ponto que pretendia, de olhos postos na conclusão da sua obra. Ajoelhado, busco na cara deformada do morto o porquê da sua morte, à escuta daquilo que não me pode dizer. E, apesar de ter consciência de que os seus lábios cinzento-azulados nunca mais pronunciarão uma palavra, a expectativa de ouvir um sussurro com os seus derradeiros pensamentos resiste pacientemente dentro de mim, de braços cruzados, sem vontade de se retirar.

Prova, suponho, de que nunca fui capaz de aceitar o frio trato unilateral que a morte faz connosco.

Uma confissão: quando atravesso em pontas dos pés as minhas insónias durante a noite, surpreendo-me por vezes a procurar formas nas pinturas de Ernie que se revelem como mensagens em código da minha mãe. Se ela fosse viva, seria capaz de a compreender melhor agora - e de lhe oferecer mais do que as minhas palhaçadas. Por isso, talvez seja o meu próprio desejo de uma segunda oportunidade aquilo que sempre ouço quando não consigo adormecer. Talvez as nossas segundas oportunidades sejam os únicos fantasmas que alguma vez nos aparecem.

O polícia que se tinha ocupado do caso até à minha chegada apresentou-se corno sendo Marcos Soutelo e perguntou-me se queria que fizesse um resumo do acontecido.

Com o passar dos anos, fui reparando que os agentes da PSP têm tendência para começar os seus relatórios com algum pormenor pouco habitual, e quanto mais perturbador melhor. A minha teoria era de que a atmosfera irreal dos locais do crime - o silêncio rígido, acusador dos mortos sob toda a emoção - fazia com que sentissem necessidade de se assegurar de que partilhamos as mesmas ideias sobre o que é incomum e inesperado. E tranquilizados, portanto, quanto ao que é normal. No entanto, sentia-me afortunado em comparação com eles; eu tivera a sorte de aprender ainda muito novo que o normal não existe.

A vítima não parece ter cinquenta e nove anos, pois não? - começou Soutelo e, como que esperando surpreender-me ainda mais, acrescentou que Coutinho se tinha casado com uma ex-hospedeira da TAP vinte e dois anos mais nova. - Chama-se Susana Soares - disse ele -, e a julgar pelas fotos que estão na biblioteca é uma brasa!

Se Luci não estivesse a meu lado, haveria de me sentir obrigado a responder com algum comentário afirmando as minhas credenciais de virilidade, estilo «há tipos que têm a sorte toda», mas sendo assim pude perguntar se o casal tinha filhos. Mudando o tom para um registo mais profissional, provavelmente por ter pressentido alguma leve censura, Soutelo respondeu que tinham uma filha, Sandra, de catorze anos e que andava no oitavo ano no Liceu Francês. Prosseguiu, dizendo-me que a vítima era dona de uma empresa de construção civil com escritórios em Paris e em Lisboa e que, além desta casa e de outra no Algarve, tinha um enorme apartamento perto da margem do Sena frente à Torre Eiffel. Tinha-se mudado de Paris para Lisboa quatro anos antes. O seu carro, um Alfa Romeo Spider, estava numa garagem privada próxima. Nenhum dos vizinhos até então interrogados tinha ouvido qualquer disparo no dia anterior. A empregada doméstica descobrira o corpo às dez horas nessa manhã. O nome dela era Maria Grimault.

Pensei que o senhor ia querer falar já com ela. Está à sua espera na cozinha. A porta é ali - disse Soutelo, apontando.

Enquanto me debatia com o impulso para ficar onde estava - e manter-me em segurança longe de um caso que não me sentia ainda preparado para investigar -, o mais experiente dos técnicos de investigação, Eduardo Fonseca, vinha a descer as escadas na sala de trás, abraçado à sua Nikon, a cara espreitando qual uma raposa sob o capuz do blusão. Disparou duas fotografias rápidas - o flash deixando-nos ofuscados - com a alegria de um puto a experimentar um presente de aniversário.

Henrique Monroe, apanhado em flagrante no local do crime! ­ exclamou.

Tal como a maior parte dos portugueses, Fonseca pronunciava «Monroy», em vez de Monroe. Eu desculpava-lhe isso e a maneira de falar aos berros porque ao mesmo tempo era o homem mais simpático que conhecia.

Apertou-me a mão entre as suas como sempre fazia. Depois de o apresentar a Luci, disse-lhe: Era capaz de apostar que já fotografou o corpo.

Claro. Agora ando a fotografar tudo o que me chama a atenção.

Afastou o capuz da cara. O suor tinha-se acumulado na testa formando pequenas franjas. Parecia-se cada vez mais com um chihuahua à medida que envelhecia - uns olhos minúsculos e fundos, e uns pulsos tão delgados e pálidos como um aipo. Era bom que comesse mais.

E que cortasse no tabaco. Apesar de ele afirmar que o alcatrão e a nicotina do cigarro eram as únicas coisas que o mantinham em pé.

Há quatro coisas que precisa de saber para já, Monroe - disse-me num tom rápido, profissional. - Uma: encontrámos beatas de cigarro nos cinzeiros daqui da sala de estar e no quarto de dormir da vítima.

Quatro Marlboro Lights e dois Gauloise Blondes aqui, e mais um Marlboro no quarto. Não havia marcas de bâton em nenhum deles. Dois: há uma pegada de sangue na camisa de Coutinho. Três...

Espere aí - interrompi. - Essa pegada está suficientemente completa para identificar o sapato?

Está, sim, e já a fotografei. Três: encontrámos fragmentos de plástico e umas coisas que parecem bocadinhos de esponja aqui no tapete. Colhi amostras.

Um silenciador? - perguntei.

Sim, uma garrafa de limonada com pedaços de esponja, diria eu.

Quatro: descobrimos...

Isso funciona mesmo? - interrompeu Luci.

Sim, mas só com armas de pequeno calibre. Que é o ponto número quatro: descobrimos a cápsula da bala, calibre 9, e o próprio projétil. Saiu pelas costas de Coutinho e ficou alojado na parede perto das escadas. É o Bruno que tem as duas coisas. - Leu os meus pensamentos e antecipou-se à pergunta seguinte: - Está no andar de cima, à procura de mais pegadas de dinossauro.

Pegadas de sangue - expliquei a Luci.

O Bruno é o Bruno Vaz - acrescentou Fonseca. - Uma verdadeira cassete, por isso vejam lá o que dizem.

Receio que esteja a ir depressa de mais para mim - disse Luci, como quem se desculpa.

É do PC - explicou Fonseca. - Se falarem em política ele liga logo a cassete. - Fez o gesto de girar o dedo em círculo, fingindo que ressonava.

O Sudoku já deu uma vista de olhos ao corpo? - perguntei.

Sudoku era o nosso perito biomédico e um mestre a resolver os puzzles numéricos japoneses. O verdadeiro nome dele era João Ferreira.

Está em casa com gripe, coitado, mas o Bruno e eu temos tudo sob controlo. - Fonseca aproximou-se de mim e acrescentou num sussurro: - A vítima teve uma convidada na cama a noite passada. E apostava cem euros em como é ela a autora desta merda toda. E outros cinquenta em como é de França e fuma Gauloises Blondes.

Desculpe, mas a Ana fez um corte no meu orçamento para apostas - disse eu. - Não gosta de ver o Godzilla e o King Kong a passarem fome. O Dr. Zydowicz já chegou?

Ai, ele também se vem juntar à festa hoje? Caramba, isto vai parecer o raio de uma reunião das Nações Unidas!

Exatamente. Tirou fotografias das letras asiáticas na parede?

Celtamente - respondeu Fonseca, imitando a vénia de um japonês respeitoso.

Resmunguei contra o mau gosto, o que só fez com que ele soltasse uma gargalhada.

Quando acabar esse divertimento todo - disse eu -, mande-me por e-mail as fotografias. As letras foram escritas com sangue?

Sim, e também colhemos uma amostra. Vai ver que é sangue da vitima, muito provavelmente.

Há quanto tempo está morto?

Umas dezoito a vinte e quatro horas, tendo em conta que isto aqui é uma sauna e que ele se decompõe a uma velocidade warp 9.

O Fonseca é um velho fã da série Star Trek - expliquei a Luci.

Quando lhe perguntei se tinha recolhido o telemóvel da vítima, Fonseca disse- me que procurara em todos os sítios mais óbvios e que não o encontrara.

Cem brasas em como o criminoso o levou - disse ele a Luci.

Dá-me a impressão de que era asneira apostar contra si - respondeu ela.

Tem aí uma menina esperta! - disse ele, para mim, e lançou-lhe uma piscadela insinuante.

Uma inspetora esperta! - exclamei eu em tom de advertência, contente por o picar e ao mesmo tempo por falar a sério.

Oh, caraças, Monroe, bem sabe que não era para ofender. ­ E, voltando-se para Luci, disse: - Desculpe. É só por ser nova na profissão e ter... o quê? Catorze anos?

Ela espetou o indicador.

Dezoito? Vinte?

O entusiasmo infantil de Fonseca fez Luci sorrir.

Vinte e sete - respondeu.

Bem, ao lado aqui deste burro velho e rabugento - disse ele, acenando o polegar na minha direção -, parece uma menina. - Oh, adivinhe o que eu fiz, Monroe! - acrescentou e, sem esperar pela minha resposta, exclamou: Fotografei as páginas todinhas do caderno de endereços da vítima!

Porque fez isso?

Lembra-se do caso do Mercedes Desaparecido?

Fora uma bronca famosa. Tinha-se passado em 1984. Um embaixador português tinha sido preso por ter atropelado um parceiro de negócios mesmo em frente da casa do homem, em Benfica. O Mercedes do suspeito foi apreendido, naturalmente, e por isso o fotógrafo de serviço não se deu ao trabalho de tirar fotos dos guarda-lamas amolgados e com marcas de sangue nem de mais coisa nenhuma. Pelo menos foi o que disse aos superiores, embora mais tarde toda a gente suspeitasse de que tinha sido subornado. Infelizmente, o carro desapareceu nessa mesma tarde.

Sem Mercedes e sem fotografias - e com uns quantos movimentos de liquidez no Ministério da Justiça -, o embaixador livrou-se de ir a julgamento. De vez em quando ainda dou com a sua cara anafada e satisfeita nas páginas do Público, o jornal que Ana lê. Com os anos, tornou-se um católico fervoroso e pontifica contra a adoção por casais homossexuais e a reprodução medicamente assistida. Presumo que entrará no céu subornando alguém.

Bom trabalho, Fonseca - disse eu. - E o caderno de endereços onde está?

À sua espera no primeiro andar, em cima da secretária da biblioteca. Sabe uma coisa, Monroe? Este Coutinho era um homem de quatro ministros!

Assobiei, só para o deixar feliz.

Tem os números de telemóvel de quatro ministros no caderninho - explicou a Luci, radiante. - Mais um record lisboeta! - Limpou uma grande gota de suor do queixo com um movimento teatral. - Palpita-me que vamos encontrar outras prendas no computador... Talvez os números das suas contas na Suíça! Alguém está numa de um passeio até Zurique?

Onde estava o computador? - perguntei.

Também em cima da secretária da biblioteca. Um MacAir. Lindo!

Mandámo-lo para o Joaquim.

Joaquim era o sénior dos especialistas em informática do nosso serviço tecnológico.

Então o que vai fazer a seguir? - perguntei.

Aqui a Nicki e eu temos um encontro marcado no quarto da vítima. - Encostou os lábios ao obturador da máquina fotográfica. Estava a dar espetáculo para Luci.

Para desviar dela as atenções, disse:

Inspetora Pires, veja se consegue encontrar um telemóvel numa casa de banho ou noutro sítio igualmente improvável. Eu vou para a biblioteca.

Embora Fonseca tivesse tirado fotografias de todas as páginas, queria ter o caderno de endereços nas mãos antes de fazer fosse o que fosse, por isso subi as escadas atrás dele, enquanto lhe dava as instruções recebidas de não falar no crime, nem sequer com a mulher ou com os filhos.

Felizmente ele já tinha ligado o ar condicionado na biblioteca. As paredes eram de painéis de madeira; as estantes estavam cheias de livros do chão até ao teto. Tudo perfeitamente arrumado, exceto um dicionário de Francês- Farsi que se via de través numa estante de baixo, junto da secretária, para onde fora atirado.

Na parte da frente da sala havia um armário com portas de vidro fechado à chave contendo edições antigas de autores franceses clássicos, como Zola e Stendhal. Também aí se viam os CD de Coutinho ­ sobretudo Piaff, Polnareff, Aznavour e outros cantores franceses populares nos anos de 1960 e 1970. A pequena secção de música clássica era constituída quase na totalidade por Eric Satie e Claude Debussy.

A secretária era daquelas antigas e pesadonas, escura, com pernas a imitar patas de leão. O caderno de endereços estava ao lado de um elegante telefone preto. Era de camurça, com a cor exata das folhas dos cedros que cresciam no nosso rancho. Coutinho tinha uma letra compacta e cuidada, embora os esses e gês maiúsculos apresentassem uns enfeites arrebicados. Ana diria que provavelmente ele espantaria as pessoas à sua volta com ocasionais floreados de exuberância.

Encontrei rapidamente os contactos dos quatro ministros; estavam todos na letra G, numa secção intitulada «Governo»: José Pedro Aguiar Branco, Defesa Nacional; Miguel Macedo, Administração Interna; Paula Teixeira da Cruz, Justiça; e Miguel Relvas, Assuntos Parlamentares. Folheando o caderno de A a Z, descobri também os números de telemóvel de António Amorim, o empresário da nossa maior exportadora de cortiça; Mariza, a conhecida fadista; e Fernando Gomes, um antigo presidente da Câmara do Porto. Havia ainda os telemóveis d vários contactos importantes em França, incluindo o de Ségolène Royal, que figurava como ex-dirigente do partido socialista francês.

Na parede, por cima da secretária, via-se a capa de uma revista emoldurada, a Exame, com Coutinho diante do seu Alfa Romeo desportivo vermelho, com um ar confiante e refinado mas também com um brilhozinho de malícia nos olhos, como que a mostrar ao leitor que não estava ainda tão velho que não fosse capaz de se escapar de casa às duas da manhã, pegar no carro e fazer a Avenida da Liberdade a mais de cento e sessenta à hora, um dos passatempos favoritos dos corredores falhados de Fórmula 1 da nossa cidade. Interpretei o carro faiscante na capa como sendo a sua maneira de nos mostrar que era alguém que em segredo gostava de correr riscos. E que não se envergonhava dos enormes lucros que fazia num país na bancarrota.

O cabeçalho da capa da revista dizia: AO VOLANTE PARA LONGE DA CRISE ECONÓMICA. Era difícil não antipatizar com ele e com os editores, especialmente ao pensar que o meu vencimento tinha sido cortado em cerca de vinte por cento nos últimos dois anos, e que eu e Ana tínhamos agora de recorrer às nossas poupanças para pagar a hipoteca da casa.

Por baixo do caixilho da capa havia seis aguarelas emolduradas com uma rapariguinha - nua e exuberante. Tinham sido executadas com os traços largos e amplos da caligrafia oriental. A que chamava mais a atenção era uma em que ela corria numa praia, os braços estendidos à sua frente, como se perseguisse a sua própria capacidade de ser alegre.

As calças azuis de linho da vítima estavam dobradas no assento de uma poltrona no quarto. No bolso direito da frente havia uma gorda carteira de couro - recheada com cerca de quatrocentos euros em notas. No bolso esquerdo havia um isqueiro de ouro e uma corrente de prata com a insígnia da Alfa Romeo. Na mesinha de cabeceira via-se um maço de Marlboro Lights com metade dos cigarros e um cinzeiro de cerâmica céladon cor de jade. Coutinho - ou alguém na família - tinha obviamente um interesse pela China ou pelo Japão. O assassino, muito possivelmente, forçara-o a escrever os carateres asiáticos com o seu próprio sangue; mas com que propósito?

Um dos cantos da mesa estava cheio de fotografias da mulher e da filha da vítima. Eram loiras e bonitas e, numa imagem particularmente evocativa, tirada na praia, mostravam ambas o mesmo olhar enfadado, de alguém sem paciência para o fotógrafo. Possivelmente, Coutinho levava demasiado tempo a focar, o que devia ser causa de muita irritação e de muitas piadas da família.

De volta ao andar de baixo, encontrei a inspetora Pires a examinar os quadros da sala de estar.

Paula Rego é demasiado famosa para ser ignorada, mesmo por um gatuno sem cultura nenhuma - disse ela. Apontou para um desenho de Fernando Pessoa a ler um jornal. - E aquele é do Júlio Almeida, um artista promissor de que ultimamente se fala muito nos jornais. Deve valer uns bons milhares de euros, no mínimo.

O que quer dizer que, se o nosso homem era um ladrão, devia andar obviamente à procura de alguma coisa que considerava mais valiosa.

O que poderia ser, na sua opinião? - perguntou ela.

Talvez projetos de negócios que ainda não fossem do conhecimento público. Ou propostas de empreitadas públicas. E, então, encontrou algum telemóvel?

Ainda nada.

Experimentei as chaves de Coutinho na porta da frente. A segunda delas funcionou. Pusemo-nos a imaginar que ele tinha ouvido algum ruído enquanto se vestia e que descera as escadas para ir ver o que era.

A julgar pela altura a que se encontrava o buraco na parede, a bala tinha-o atingido quando estava em pé. Três marcas no tapete branco mostravam que se arrastara de joelhos em direção à parede onde estão os quadros.

Ele arrastou-se em direção ao assassino para implorar que lhe poupasse a vida - arrisquei, pensando no que eu faria na mesma situação. - Ou talvez esperasse ter ainda forças suficientes para se atirar a ele e o enfrentar. - Enquanto expunha as minhas especulações, o cheiro pestilento a carne que emanava do corpo atingiu-me. Ou abríamos todas as janelas da casa ou Luci, veja se consegue ligar o ar condicionado. - Tinha reparado nele ao entrar na sala e apontei para o sítio por cima do antigo mapa da Europa na parede. - Senão, vamos ter de usar máscara.

Enquanto ela estava às voltas com os botões do aparelho, ajoelhei-me junto ao corpo, a mão a tapar a boca e o nariz. A pegada de sangue estampada na manga da camisa mostrava o desenho da sola do sapato: umas nervuras finas entrecruzando-se em forma de bumerangue. Levantando o tecido com a ponta da esferográfica, descobri uma nódoa negra acima das costelas. Nesse momento começou a ouvir-se o zumbido do ar condicionado e senti como que as pontas dos dedos do ar fresco passar-me pela nuca.

Você é uma verdadeira salva-vidas - disse eu a Luci, quando ela se colocou a meu lado. Apontei o corpo com um gesto. - Dois assaltantes, diria eu. Um atou a corda à volta dos pulsos e enfiou-lhe a mordaça na boca enquanto o outro empunhava a arma.

Ou então foi o assassino que o obrigou a atar a mordaça a si próprio - observou ela - e depois apertou-lha e passou aos pulsos. - Fixando a vítima, acrescentou em voz solene: - Sentindo que não iria conseguir safar-se, deixou cair a cabeça de qualquer maneira e esperou que a morte o levasse.

Pode ser que sim, mas eu diria que é mais provável que o assassino lhe tenha dado uns bons pontapés para lhe tirar a vontade de lutar.

Mostrei -lhe as nódoas negras no flanco da vítima. - Há pessoas que acordam todos os dias com uma vontade danada de fazer mal a alguém. Infelizmente para nós, não andam com nenhum sinal particular.

São o professor de Química com ar de Harry Potter e o carpinteiro que canta baladas country enquanto arranca as ervas daninhas na horta.

Não tinha pensado referir o meu pai, mas havia alturas em que coisas dessas me saíam sem aviso.

Quando eu examinava as cicatrizes cirúrgicas atrás das orelhas de Coutinho, David Zydowicz, o médico-legista, entrou arrastadamente na sala. Os olhos baixos, de pálpebras descaídas, abriram-se com satisfação quando me avistou, mas traíam cansaço também. Tinha envelhecido imenso nos dois meses a seguir ao enfarte. Visitara-o duas vezes no hospital. Os seus passos haviam-se tornado um frágil balancear.

Está a ver se ele se lavava como deve ser? - perguntou David no seu português cantado do Brasil. Era de São Paulo e judeu. O pai dele sobrevivera a Treblinka. Por solidariedade, David tinha mandado tatuar no braço o número com que o pai fora marcado no campo de concentração, o que era o mais comovente testemunho de amor filial que eu conhecia.

Era um amigo da Catherine Deneuve - disse eu, usando o nosso calão para designar as pessoas que faziam liftings para tirar as rugas da cara.

David arrastou-se para mais perto de mim.

Mas não um dos melhores amigos - fez notar, abanando as mãos ossudas. - Eu fazia melhor de olhos fechados. - Tirando as luvas de látex, continuou: - Quando saí do hospital decidi também apanhar umas quantas injeções de colagénio.

Mas as rugas ficam-lhe muito bem, dão-lhe uma expressão clássica! - protestei.

Ele fungou, trocista.

Estava falando de minha bunda, Henrique - e deu uma palmadinha no traseiro ao dizer isto. - Minha mulher me disse que se tornou um balão com todo o ar saindo. Já não tinha nada que agarrar.

Rimo-nos os dois, para desvalorizar a estranheza de se ver tão diminuído. Inclinou -se sobre o cadáver e cheirou.

Grau quatro – disse ele. Costuma dar uma graduação aos maus cheiros, de um, praticamente indetetável, a dez, uma nota que nunca dera, pois era o fedor de Hitler e dos seus capangas a apodrecer na Geena, o inferno judaico. - Depois de dar uma boa vista de olhos, eu o limpo um pouco.

Enquanto David fazia pressão sobre o ponto onde lhe doíam as costas, apresentei-o a Luci. Franzindo os olhos, fez incidir sobre a cara dela um foco de deleite masculino. Mesmo naquele estado debilitado, a sua libido dançava o samba.

Indo mais uma vez em socorro dela, tirei do bolso da camisa o papel de alumínio de Moura.

Isto talvez tenha vestígios de cianeto - disse eu, dirigindo-me a David. - Importa-se de me eliminar isto?

Pegou na folha de alumínio e enfiou-a no bolso da bata.

Onde foi arranjar cianeto, meu filho? - perguntou.

Era de um suspeito que se suicidou esta manhã. Tem sido um dia infernal.

Sinto muito - disse ele, dando-me uma palmadinha no braço.

Voltando-me para Luci, disse-lhe:

Está na hora de entrevistar a empregada.

A Sr.ª Grimault era uma mulher de idade, com qualquer coisa de pardal, o cabelo apanhado num rolo grisalho apertado e as mãos grandes e no dosas de uma camponesa. Usava uns brincos dourados em forma de coração e um agradável perfume a lavanda. Quando entrámos, estava a juntar leite fumegante ao seu café. Levantou os olhos para nós, com uma expressão atenta, curiosa e inteligente. Mereceu desde logo a minha confiança.

Depois de nos apresentarmos, perguntei-lhe se era francesa, e ela disse que era de Braga, mas que o marido nascera em Rouen. Com um olhar esperançado, perguntou-nos se queríamos provar o seu pão de ló, mas não me senti com estômago para o teste. Luci agradeceu, recusou também, dizendo que tinha de manter a linha, mas eu insisti com ela para comer meia fatia só para não desapontar a senhora.

A cozinha era toda em aço inoxidável e mármore branco, tirando a parede por baixo dos armários, que estava decorada com azulejos portugueses centenários formando figuras geométricas azuis e amarelas. Era evidente que alguma igreja de aldeia tinha sido saqueada.

A senhora Grimault pediu-me que tirasse um prato que estava numa prateleira alta para dar a Luci, e por uns segundos voltei a sentir­me com quinze anos, feliz por poder ajudar a tia Olívia em casa.

Depois de estarmos todos confortavelmente sentados, perguntei:

Então há quanto tempo trabalha a senhora para a família Coutinho?

Há quase quatro anos. Fui contratada logo depois de o Dr. Coutinho ter voltado para Portugal. Explicou que ele queria uma empregada que falasse francês e a seguir rompeu em lágrimas, dizendo espontaneamente que de certeza a Sr.ª Coutinho ia sentir imenso a morte do marido. E, quanto à filha, calculava que ia passar por um longo período de sofrimento silencioso. Quando lhe perguntei porque dizia isso, ela disse

que tanto Sandra quanto o pai tinham por hábito esconder as suas emoções. Acrescentou que eram ambos viciados no trabalho e, para reforçar a sua opinião, contou-me que Coutinho voltava a Lisboa uma ou duas vezes por semana durante o verão para vigiar as obras que a empresa estava a fazer. Nesse momento, preferi não dizer que a verdadeira razão por que ele vinha à cidade tantas vezes talvez fosse a infidelidade.

Infelizmente, ela não fazia a mínima ideia de quem seria o visitante que tinha fumado dois Gauloises Blondes.

Sr. inspetor - disse ela, com um olhar grave -, o senhor acha que o assassino esteve cá a noite passada e que falou uns instantes com o Dr. Coutinho, não acha?

É possível, minha senhora, mas aqui entre nós, duvido. Uma pessoa tão cuidadosa como o criminoso com que estamos a lidar de certeza que sabia que as beatas de cigarros podiam ser usadas como prova. O mais provável é terem sido deixadas por um amigo, que possivelmente foi a última pessoa a ver o seu patrão com vida.

A Sr.ª Grimault disse que tinha chegado precisamente às dez e quatro minutos da manhã e que abrira a porta com a sua chave. Não vira nem ouvira nada de estranho. Explicou que durante as férias de verão da família no Algarve ela vinha a casa duas vezes por semana para a arejar, limpar um pouco e regar as plantas de dentro. O jardim tinha um sistema de rega automático. Trouxera um pão de ló porque uns dias antes Susana lhe tinha dito, ao telefone, que o Dr. Coutinho vinha passar dois dias a Lisboa. Ele gostava de doces e ela orgulhava-se dos bolos que fazia.

Tinha-me ocorrido que a chave da entrada podia ter sido copiada pelo criminoso e, embora a Sr.ª Grimault me jurasse que nunca a emprestara a ninguém, não podia dizer o mesmo em relação à família.

A cozinha está impecável – disse eu. – Foi assim que a encontrou?

Sim. Quando cheguei não havia pratos para lavar, nem sequer do pequeno-almoço. O Dr. Coutinho deve ter jantado fora ontem à noite e não devia ainda ter comido os cereais do pequeno almoço.

Encontrei um iogurte Adagio no frigorífico, assim como um pouco de queijo e dois limões.

O Dr. Coutinho era capaz de viver só de queijo e doces - disse a Sr.ª Grimault.

Quando é que deu com ele esta manhã? - perguntei.

Mal entrei na sala de estar. - Fechou os olhos e estendeu uma mão, lentamente, fazendo-o com esforço, como se estivesse a chegá-la a uma chama. - Toquei-lhe no ombro - disse ela num sussurro. - Pensei que pudesse estar ainda vivo, mas... - Poisou o braço em cima da mesa com melancólico desamparo. - Depois liguei para o 112.

Depois de ter entrado, em algum momento saiu de casa?

Não. Fiquei sentada no átrio.

Mas não há nenhuma cadeira no átrio - fiz-lhe notar.

Sentei-me no chão. Sentia-me mal e a minha primeira ideia foi sair de casa para apanhar um pouco de ar, mas não consegui ir tão longe.

Estava novamente à beira das lágrimas, e insisti com ela para beber uns goles de café. Quando se acalmou, perguntei-lhe:

Quando é que decidiu regar a planta do átrio?

Ela mostrou um olhar atónito.

Deixou lá o regador – expliquei.

Meu Deus, esqueci-me completamente! – Numa voz lenta e segura, revendo a sua manhã tal como lhe tinha ficado na memória, disse: - Depois de ter chamado o 112, pensei que, se seguisse a minha rotina do costume, talvez ficasse mais calma. Quer dizer, se conseguisse fazer de conta durante alguns minutos que não tinha acontecido nada. Mas, mal peguei no regador, fui-me abaixo outra vez. - Soltou um suspiro de frustração. - Sr. inspetor, parece que isto é um sonho... uma coisa absolutamente impossível.

Tendo em conta o que aconteceu, até era bom - observei, mas ela abanou a cabeça, como que a lamentar não ter sido mais forte. Respondendo à pergunta seguinte, disse-me que Coutinho comprava quase todas as gravatas na loja da Hermès na Avenue George V, em Paris. Na sua opinião, ele nunca tinha comprado nada na Zara.

Agora vou fazer-lhe uma pergunta indelicada - adverti-a. - Tinha conhecimento de algum caso extraconjugal em que ele pudesse estar envolvido?

Ela recolheu a cabeça como uma galinha e disse numa voz crispada:

É coisa de que eu nunca saberia nada.

Há outras vidas que podem estar em risco - fiz-lhe notar. Na altura, não acreditava nisso, mas queria fazer um pouco de pressão.

Diante do meu insistente aceno de cabeça, a Sr. a Grimault confessou numa voz reticente que talvez tivesse reparado umas doze vezes que havia vincos no lado da cama de Susana em alturas em que pensava que só o Dr. Coutinho estava em casa.

Mas não, não faço ideia de quem era a mulher - apressou-se a acrescentar. Uma vez tinha dado com uma toalha com marcas de um bâton que ela não conhecia. Continuando a adivinhar o sentido que os meus pensamentos seguiam, disse ainda: - O Dr. Coutinho e a Dona Susana são boas pessoas, respeitadores um do outro. Não acredito que haja alguém que lhe quisesse mal. Era simpático e generoso. Bom em quase tudo o que fazia e tinha muito talento.

Muito talento? - perguntei.

Repare nas aguarelas que estão na biblioteca. E a que está no quarto da Sandi.

Aquelas da rapariguinha?

A alegria de me surpreender iluminou-lhe o olhar.

Fê-las quando a Sandi era pequenina - prosseguiu a Sr.ª Grimault -, mas ele ainda pegava nos pincéis uma vez ou outra. - Executou duas rápidas pinceladas no ar e deu uma risadinha. Parecia o Zorro a pintar!

Parece que tinha um interesse particular pelas culturas asiáticas.

Mais do que interesse, Sr. inspetor! Depois de se ter formado em Engenharia, trabalhou em Tóquio dois anos. Sabia falar japonês! - Os olhos da velhota abriam-se desmesuradamente como que para abrangerem a enorme dimensão de todas as aventuras que o patrão devia ter tido. Dominada pelo deleite, desfez-se em lágrimas. - Peço imensa desculpa - disse em voz baixa.

Luci abriu a boca pela primeira vez:

Está a portar-se muito bem - disse ela, apertando com força as mãos da senhora.

Depois e mais algumas palavras amáveis de Luci, a Sr.ª Grimault continuou, dizendo-nos que Coutinho tinha dois telemóveis. Tentei os dois números, mas respondia-me sempre a mesma mensagem: «Número não atribuído.» Pedi a Luci que verificasse se tinham sido feitas algumas chamadas para aqueles números nas últimas vinte e quatro horas.

E, quando estiver com as mãos na massa, arranje uma lista das chamadas que a vítima fez e recebeu nas últimas duas semanas - acrescentei. Deixei para o fim o pormenor mais importante: - Esta manhã, quando chegou, a senhora teve de dar várias voltas à chave ou a porta estava no trinco?

Ela refletiu um pouco.

Tive de dar várias voltas. Lembro-me porque, ao rodar a chave, me veio à ideia que não estaria ninguém em casa. Agora vejo que o Dr. Coutinho deve ter fechado a porta à chave por alguma razão.

Não. O assassino é que a fechou ao sair - disse eu. - E cometeu um erro.

Porque diz isso?

Porque agora temos a certeza de que tinha a chave.

Pode não ser assim, chefe - disse Luci rapidamente. - Podia tê-la tirado ao Dr. Coutinho.

Rebusquei os bolsos e saquei das chaves com o emblema da Alfa Romeo. Abanei-as no ar.

Podia, mas não o fez. Estas chaves estavam ainda nas calças do Coutinho.

 

Depois de acompanhar a Sr.ª Grimault à porta e de lhe dizer para não comentar o caso com ninguém, pus-me a examinar os quadros da sala de estar. Coutinho comprara apenas obras figurativas. A minha favorita era um Carlos Botelho mostrando uma cascata de casas, em tons esbatidos de cor-de-rosa, amarelo e azul, caindo para o Tejo.

Quando voltei para a cozinha, Luci estava a lavar o prato em que comera o bolo. Disse-me que tinham acabado de lhe dizer que não haviam sido feitas chamadas de nenhum dos telemóveis da vítima desde a hora do assassinato.

A esta hora, o criminoso provavelmente já destruiu os cartões

Sim dos dois telemóveis – disse eu.

Para nos impedir de seguir a pista?

Sim. Mas também tenho o palpite de que ligou para o Coutinho a certa altura e não queria que nós descobríssemos isso.

Acha que a vítima conhecia o assassino?

Luci, há aqui ódio de mais para ser apenas um assalto falhado ou uma agressão ocasional. E aquela mensagem em japonês que o assassino provavelmente obrigou Coutinho a escrever... É até possível que algum sarilho em que se tenha metido no Japão há muitos anos tenha vindo ter com ele.

Deparámos com David Zydowicz sentado numa poltrona que tinha trazido para junto do cadáver, fazendo incidir a sua lanterna nas unhas de Coutinho.

As marcas são só de uma luta muito curta - disse ele. - O nosso homem foi atingido por um tiro, depois deram-lhe pontapés acima das costelas com ele caído de joelhos e finalmente foi atado. - Desligando a lanterna, disse a Luci: - Pegue aí no seu bloco de notas, menina, e eu conto-lhe uma história de embalar.

David observava os gestos rápidos de Luci com um olhar afetuoso, como se ela fosse uma miudita a exibir um truque de cartas para o avô. E como se houvesse apenas dois reinos: a velhice e a juventude. Quando ela acabou os preparativos, ele tirou os óculos como que a chamar ao de cima uma parte mais profunda de si próprio e começou a falar na voz de autoridade que me tinha conquistado quando o conheci:

A vítima foi atingida com uma bala na barriga, mas não me parece que tenha perfurado o revestimento do estômago ou qualquer outro órgão vital, embora só o possa saber ao certo quando fizer a autópsia.

Seja como for, levaria pelo menos meia hora a esvair-se em sangue. Embora, como você sabe, Henrique, não tenha sido isso o que aconteceu.

Não, para o melhor ou para o pior, não teve essa sorte. - Diante do olhar perplexo de Luci, acrescentei: - Os lábios têm uma cor azulada... Falta de oxigénio.

David descalçou uma das luvas e tirou um rebuçado do bolso. Enquanto ele tirava o papel amarelo em que estava embrulhado, disse-lhe:

Quem fez isto teve prazer em ver a vítima sofrer.

Não posso dizer nada quanto às emoções, Henrique... Isso é mais o seu campo. Mas é verdade que Coutinho deve ter tido uma boa dose de sofrimento.

«Era como se o meu peito e a minha cabeça estivessem a ser esmagados», foi assim que o meu irmão, aos seis anos de idade, descreveu a sensação de asfixia.

E a morte deu-se há quanto tempo? Entre dezoito e vinte e quatro horas? - perguntei.

Mais perto das vinte e quatro. - David voltou a pôr os óculos.

Muito bem, eis como eu vejo as coisas - comecei. - Depois do duche, Coutinho desceu as escadas para investigar os ruídos que tinha ouvido. - Dei uns passos em direção à parede dos quadros e empunhei uma arma fictícia. - O assassino surpreendeu-o aqui. - Apontei para o fundo das escadas e puxei o gatilho imaginário. - A nossa vítima tombou de joelhos e começou a arrastar-se. O assassino deu-lhe um pontapé e pisou-o nas costas para o dominar e para o obrigar a pôr os braços atrás das costas e a juntar os pulsos. Atou-lhos, depois enfiou-lhe uma meia usada na boca e amordaçou-o.

Enquanto David acenava a cabeça em concordância, Fonseca descia as escadas com um sorriso malicioso estampado na cara.

Madame X era uma morena - anunciou folgazão. - E tinha cabelo comprido.

Muito?

Ele afastou as mãos uns sessenta centímetros.

É bom saber isso - disse eu -, mas aposto que ela vai cortá-lo um bom bocado mal saiba que Coutinho morreu. E se calhar pintá-lo também.

Porque diz isso? - perguntou Luci.

As mulheres que têm casos com homens casados em geral preferem guardar segredo quanto à sua identidade. E a última coisa que ela quer é ver o seu nome associado a um crime.

Mas se estava aqui escondida quando Coutinho foi morto - disse David - pode ser que se sinta obrigada a aparecer e contar o que viu e ouviu.

Só que se ela estava aqui deve estar mais do que aterrorizada neste momento.

Fonseca troçou:

Vocês são de uma ingenuidade arrepiante! Com um velho rico como este, muito provavelmente estava metida no golpe! E, se assim for, bem podem esquecer a hipótese de a encontrarem em Lisboa. Há muito que se pirou daqui!

Saquei do telemóvel e liguei para a Sr.ª Grimault, que confirmou que Susana Coutinho era loira natural, e Sandra também. Para tentar localizar o silenciador de fabrico caseiro e os telemóveis desaparecidos da vítima, encarreguei Luci de ir buscar um saco de plástico à cozinha para onde pudesse despejar todos os caixotes de lixo das vizinhanças. Segundos depois, já ela voltara para a sala acompanhada de Bruno Vaz, o tal técnico de laboratório que tinha na cabeça uma cassete comunista. Homem de sessenta anos, determinado e forte, cabeça rapada, uns olhos castanhos de peixe de aquário e os gestos assertivos de quem dirige uma orquestra, Vaz tinha um estilo único que nos fazia ficar à espera de surpresas maravilhosas e talvez mesmo de um pouco de feitiçaria uma vez ou outra. E fazia realmente um trabalho magnífico. Infelizmente, todos os meus esforços para conquistar a sua amizade tinham sido vãos; para além do seu visceral desprezo por tudo o que fosse americano, parecia considerar-me pessoalmente responsável por tudo e mais alguma coisa, desde o golpe de direita no Chile até ao uso do inglês como língua franca mundial. Não contribuía nada para a nossa amizade o facto de ter sido preso pela polícia política portuguesa em 1970 e torturado na prisão de Caxias devido à sua filiação no Partido Comunista. Antes de a vaga informe dos seus sentimentos em relação a mim se ter transformado num destilado de implacável antipatia, Vaz confessara-me - os olhos iluminando-se com revivido significado - que a sua prisão fizera com que o resto da vida lhe parecesse insignificante. Tinha sido claramente a sua Idade de Ouro. A vida em Portugal em 2012 - com bancos falidos, centros comerciais às moscas e telenovelas imbecis – devia parecer-lhe ridícula em comparação com estes tempos.

Vaz disse-me que tinha descoberto uma data de impressões digitais no frigorífico e nos armários.

Mais pegadas de dinossauro? - perguntei.

Não. Ou o nosso homem descalçou os ténis ou os limpou bem.

As marcas das solas pareceram-me ser da Converse.

Sim, ou então uma imitação. Digo-lhe logo que consiga identificar o modelo.

Quando me perguntou se podia levar a camisa e a gravata da vitima, virei-me para David e ele fez-me sinal com a cabeça a dar-me luz verde. Usando o tom galhofeiro que se tornara o meu escudo contra a hostilidade de Vaz, disse-lhe:

São todas suas. E as calças estão no quarto.

Oiça, Monroe - rosnou ele -, muito antes de você chegar a Portugal já eu trabalhava a recolher provas de crimes. Por isso, se não confia em mim, é melhor dizer-mo na cara!

Não estou a perceber - disse eu, espantado. - Que é que eu fiz agora?

Ele acha que não devia ter pedido minha aprovação, Henrique ­ disse David num tom cansado. Será que Vaz não gostava de David por ele ser brasileiro e judeu?

Talvez os seus ideais políticos se tenham transmudado em desconfiança em relação a estrangeiros. Talvez nunca tenham sido outra coisa.

Ah, estou a ver - disse eu, permitindo-me um ar zangado por ser em defesa de David. Tentei lembrar-me de uma advertência mordaz que pudesse alterar as coisas entre mim e Vaz, de uma vez por todas. De repente, senti-me incapaz de imaginar passar mais dez anos a esquivar-me aos seus insultos, mas não me ocorreu nada. - Sabe, Vaz, investigar crimes talvez seja a única coisa em que você eu somos realmente bons ­ optei por dizer, confiando na verdade. - Por isso, sugiro que continuemos o nosso trabalho antes que as provas percam a paciência connosco.

Vaz fitou-me com os olhos franzidos e percebi por experiência que estava a fazer pontaria, por isso apressei-me a acrescentar:

A sua tarefa neste momento é simplesmente dizer-me o tamanho dos ténis que ele usava.

Quarenta e três, muito provavelmente - respondeu num tom rancoroso. - Também pode ser quarenta e quatro, dependendo do modelo.

Dirigindo-me a David, disse:

Tanto um tamanho como outro são bastante grandes para um português.

Sim, só que os moços de hoje são maiores do que os pais deles ...

Melhor alimentação.

Oiça, Monroe - disse Vaz, como se a minha conversa com David estivesse a fazê-lo perder tempo -, o que acha se eu for ver o carro da vítima antes de levar as roupas? Alguma objeção? Parecia tão ansioso como eu por pôr alguma distância entre nós.

Faça o que lhe parecer melhor - respondi. Vou dar-lhe uma mão e tirar umas fotos - disse Fonseca. A sua piscadela de olho significava que achava que o colega era capaz de estar a precisar de que o acalmassem. Só quando Fonseca se afastou, compreendi que a riqueza ostensiva de Coutinho deixara Vaz fora de si.

Depois de os dois técnicos terem saído para a garagem privada onde Coutinho tinha o carro, disse a Luci que quando fosse à procura do silenciado r do criminoso devia também ver se encontrava uns ténis de homem ou um par de luvas. Ao ouvir a porta da entrada fechar-se atrás dela, tive um estremecimento de alívio.

As mulheres novas e bonitas deixam você nervoso? - perguntou David.

Deixam. E fãs de Che Guevara também. Pelo menos hoje...

O suicídio daquele suspeito esta manhã mexeu bastante comigo, acho eu. Mas oiça uma coisa, David, gostava de falar consigo sobre algo bastante diferente.

David sentou-se, com as mãos juntas nos joelhos, a impaciência de uma criança a brilhar-lhe nos olhos; estava contente por ter voltado ao trabalho... e por estar fora de casa, ao fim e ao cabo.

O assassino deve ter reparado na pegada na camisa - comecei -, mas não fez o mínimo esforço para a limpar ou disfarçar. Sabia que podia deitar fora os ténis num caixote do lixo qualquer e que provavelmente nós não os encontraríamos. Mas acha que podia também estar com medo de que Coutinho resistisse se tentasse despir-lhe a camisa?

Perante a morte, as pessoas podem descobrir em si extraordinárias reservas de energia. Mas, mesmo assim, o assassino só tinha de esperar uns minutos para tirar a camisa a ele sem esforço nenhum.

Só que provavelmente não queria arriscar demorar muito no local. E também pode ser que se tenha revelado mais difícil do que ele supunha ver um homem morrer asfixiado.

Certo.

E mais uma coisa. Se havia uma amante envolvida, ela deve ter ficado escondida no quarto durante todo o tempo em que Coutinho lutava pela vida. Nesse caso, depois de o assassino ter saído, ela deve ter-se escapulido pela porta da frente. E provavelmente fechou-a à chave.

O que significa que o assassino podia não ter a chave, como a princípio pensei.

Vai ter de a encontrar para ter a certeza - comentou David.

Até pode acontecer que ela tenha visto de relance quem matou o seu amante - sugeri.

Ou pelo menos ouvido a voz dele. - David baixou os olhos para o corpo, e eu tive o pressentimento de que estava a pensar em como ele próprio escapara por pouco à morte. Ao fim de algum tempo, disse:

O que também quereria dizer que ela podia ter salvado a: vida deste pobre desgraçado... se tivesse ligado para o 112.

Com o assassino aqui, devia estar completamente acagaçada.

Mas e depois? - A expressão perturbada de David mostrava-me que não estava disposto a deixá-la escapar assim tão facilmente.

Levantou-se e levou mais uma vez a mão às costas doridas.

Deve estar desesperada por manter em segredo a sua relação com Coutinho. - Pôs-me as mãos no peito e deu-me um pequeno empurrão, como que para me obrigar a manter o equilíbrio. O que significa, meu rapaz, que ela vai fazer tudo por tudo para impedir você de a descobrir.

A sala de jantar de Coutinho ficava no rés do chão, e no meio da divisão via-se uma mesa retangular de mogno suficientemente grande para vinte lugares. Em cada ponta havia pesados candelabros de prata com uns braços sinuosos e ornamentados na base com folhas de acanto enroladas. Teriam vindo da mesma igreja que os azulejos da cozinha? Começava a pensar que Coutinho tinha trazido para casa uma aldeia portuguesa inteira.

A porta das traseiras dava para o jardim, onde uma palmeira de uns nove metros de altura montava guarda sobre um estrado circular de madeira. Ao lado, no meio do relvado descuidado havia um pequeno lago com peixes, ornamentado com uma garça de bronze numa atitude orgulhosa segurando um peixinho no bico levantado. Depois do relvado, o verão transformara a buganvília antiga, que amarinhava a todo o comprimento do muro por trás da casa, numa cascata de pétalas rubras. À volta do seu tronco nodoso estendia-se uma massa de agapantos erguendo no ar as suas efusivas borlas azuis.

Senti a silenciosa e invisível necessidade de sol oculta sob todo aquele verde. Ao mesmo, tempo tive a noção do meu próprio desejo de me agarrar às coisas boas da vida que tinha conquistado.

Espreitando por cima do muro das traseiras, reparei que uma das casas vizinhas estava encimada por uma claraboia de vitrais a que faltavam dois dos vidros. A maior parte do telhado tinha também abatido.

Ao voltar à biblioteca, examinei atentamente o as fotografias da mulher e da filha da vítima. Ver Coutinho com o braço à volta da cintura da filha – dando-lhe marradinhas no pescoço e fazendo-lhe cócegas ­ amoleceu a opinião que tinha dele. Sandi devia ter oito ou nove anos na fotografia e esquivava-se com deliciada alegria.

Na fotografia maior, com uma moldura dourada, a cara da rapariga era mais adulta e expressiva. Empunhava um livro escolar como um escudo enfrentando a objetiva e, embora fixasse a lente com um ar que pretendia ameaçador, via-se que estava prestes a rebentar em gargalhadas. A mãe tinha a cabeça poisada no ombro da filha e fixava a objetiva com ar pensativo, e íntimo também - com o à-vontade de quem revela o seu verdadeiro eu, nascido de um amor profundo, parecia-me. O meu palpite era que Coutinho mandara ampliar a fotografia devido ao muito que a dedicação da mulher significava para ele - e talvez também porque mostrava que Sandi estava a crescer.

No quarto ao lado, o do dono da casa, via-se por cima da cama a enorme tela de um centauro musculoso - executado com os movimentos ágeis das pinceladas rápidas de Coutinho. O corpo delgado e vigoroso do animal era preto, e os olhos humanos - de um azul de fresco medieval - eram intensamente inteligentes e estranham entes vigilantes. «Estou a ver-te», parecia afirmar a criatura mítica. Era bem possível que Coutinho o tivesse concebido como um aviso à mulher. Subi ao último andar da casa, onde ficava o quarto de Sandra. No patamar estava um calor sufocante com um cheiro intenso a pó.

O chão de tacos do quarto era um campo minado de livros e CD espalhados à toa. No entanto, a cama estava feita com a perfeição de um colégio militar. Calculei que os pais tivessem estabelecido um acordo com ela: se fizesse a cama todos os dias, eles proibiam a Sr.ª Grimault de entrar no quarto. A minha mulher e eu acordámos algo semelhante com Nati, o nosso filho mais velho.

Mal levantei os estores, a luz oblíqua iluminou o pavimento e subiu para a coberta amarela da cama da miúda até às almofadas a condizer. As paredes e o teto tinham sido pintados de preto, o que me pareceu uma escolha estranha, mas também perfeitamente de acordo com o poster de um vampiro adolescente que assombrava a parede por cima da secretária. Sangue escorria-lhe da boca e fazia o melhor que podia para parecer sinistro, embora a pose de estrela de cinema e o penteado de uma perfeição digna de Hollywood tornassem os seus esforços inúteis. Um tapete persa bastante gasto com arabescos azuis e dourados levava da cama ao toucador, de estilo simples e utilitário. Por cima dele, havia um espelho mexicano, com figuras mascaradas dançando à volta da moldura.

Espalhados pela cama viam-se animais de peluche e bonecas: catorze ursos, quatro gatos, três Barbies, um Homem-Aranha e um grande panda barrigudo com uns olhos azuis enormes. Os olhos gigantescos - e a inclinação do pai para a cultura japonesa - fizeram-me pensar que aquele urso devia ter sido inspirado num desenho animado japonês.

Apostaria em como fora o pai que lho tinha comprado.

Ao lado da cama, sete pares de ténis coloridos, desde o azul-escuro ao rosa-elétrico, pendiam de pregos espetados na parede. Os meus favoritos eram uns de uma cor verde-limão com cordões dourados. Sandra devia gostar de dar nas vistas. Admirava a sua coragem.

Numa prateleira de madeira que ia da secretária até à parede preta do fundo havia centenas de CD, a maior parte de rock americano e inglês. Uma mesinha de vidro por baixo da janela estava reservada para as fotografias de Nero, um cão cinzento e que parecia cheio de energia. A língua rosada comprida parecia estar sempre de fora.

Sandra tinha em cima da mesa de cabeceira um livro de vampiros com o título Queimada e três CD: Day & Age, dos Killers; Lungs, de Florence + the Machine; e Let England Shake, de P. J. Harvey. Já tinha ouvido falar na P. J. Harvey, mas nos outros não. O despertador de Sandra servia também de leitor de CD. Marcava 11h47.

Com a sensação de que faltava alguma coisa, andava às voltas pelo quarto. Uma mancha escura na barriga do urso de peluche chamou-me a atenção. Toquei-lhe, a cabeça começou a latejar-me e senti alguém aproximando-se por trás de mim. Antes que pudesse voltar-me, senti uma pancada na nuca.

Dei por mim com os olhos postos nos pulsos, sem saber onde me encontrava. O coração batia descompassado e tinha os lábios secos.

Suava como se tivesse corrido em busca de segurança. A boca sabia-me a tabaco.

O meu bloco de notas encontrava-se caído a meus pés. Estava sentado na cama de Sandra. O despertador marcava 12h19. Tinha passado mais de meia hora.

Percebi que, poucos momentos antes, pegara no pulso do meu irmão para o impedir de cair; estávamos em pé em cima do telhado da nossa casa no Colorado.

Ao fechar os olhos, tive a certeza de que a casa no meu sonho não só estava na minha memória como era um desenho da minha memória. O telhado e todos os quartos por baixo dele - o quarto que partilhei com Ernie, sobretudo - encontravam-se no sítio onde guardara tudo o que eu vivera. Subindo para o telhado e levando comigo o meu irmão, estava a tentar situar acontecimentos que esquecera havia muito tempo ­ esperando, penso, encontrar momentos do passado que me ajudassem a resolver este caso.

Quando me levantei, uma pressão familiar na mão esquerda levou-me a esticar os dedos. Atravessando a palma da mão e estendendo-se pelo polegar lia-se: «H: memórias más debaixo da cama da rapariga.

Quadro de Almeida no sítio errado. Dá uma vista de olhos ao dicionário de Francês- Farsi. Porque não tem a Sandra nenhuma fotografia de si própria?»

Por baixo da última linha, Gabriel desenhara flechas cruzadas, um sinal de que queria estar novamente comigo - e rapidamente.

 

A primeira vez que recebi uma mensagem na palma da mão tinha oito anos. Estava escrita em tinta azul, com letras sinuosas do tamanho de formigas. Li-a sentado no sofá às flores do nosso alpendre de madeira. A letra não se parecia nem com a da minha mãe nem com a minha. A mensagem dizia: «H - o teu pai vai querer pôr-te à prova a ti e ao Ernie na sexta - feira. Por isso, a seguir à escola leva o Ernie para longe de casa e volta só depois de escurecer,»

Quem poderia tê-la escrito? E como tinha sido rabiscada na minha mão sem que desse por isso?

Imaginando que aquilo poderia criar-me problemas com o meu pai, corri para a torneira ferrugenta nas traseiras de nossa casa e limpei as letras.

Já conhecia histórias que os miúdos mais crescidos me tinham contado sobre casas assombradas e, nessa noite, enquanto examinava os restos de tinta azul na palma da mão - fazendo incidir nela a luz da lanterna, sentado debaixo dos lençóis -, cheguei à conclusão de que algum fantasma tinha entrado em contacto comigo. A ideia não me deixava assustado; a mensagem pretendia proteger-me, concluí, e ser observado por alguém vindo do além-túmulo provocava em mim um estremecimento semelhante ao dos miúdos prestes a embarcar numa grande aventura potencialmente perigosa. Comecei a chamá-lo «Espetro», por me lembrar o super-herói fantasma que aparecia em várias das revistas da coleção de banda desenhada que o meu pai me oferecera.

Não sei como formei as minhas ideias sobre o Espetro, mas acabei por acreditar que se tratava de um adulto que fora vencido na batalha contra uma doença fatal uns anos antes. Decidi que tinha quarenta e sete anos na altura da sua morte e que crescera a poucos quilómetros de nossa casa, num velho casinhoto abandonado por onde eu passara centenas de vezes, perto da Estrada Nacional 92.

Quando era vivo, o Espetro tinha cabelo castanho crespo e um olhar amável. Andava sempre de jeans e T-shirt exceto quando ia à igreja. Era esguio e musculoso. Tinha uma expressão compreensiva e cansada da vida, e um andar desconjuntado e cansado, por lhe terem acontecido coisas realmente más quando era novo. E também por estar muito doente. Nunca se casara nem tivera filhos.

Decidi que ele voltara dos mortos para me ajudar.

Pouco antes de receber a sua primeira mensagem, estivera a observar o meu pai a gritar com Ernie por ele ter feito xixi na sua poltrona favorita quando aí adormeceu. O meu irmão tinha quatro anos nessa altura, e os berros do meu pai fizeram com que rompesse num choro desatado. O meu coração começou a bater como um tambor pois sabia que o meu pai ia agarrar em Ernie e abaná-lo até ele se calar, e o corpo do meu irmão ia ficar lasso e os olhos mortiços, quase sem vida. Depois apareceu-me aquela mensagem na mão, já eu não estava na sala de estar e sim sentado fora de casa. Primeiro senti-me partido ao meio - como se estivesse em dois sítios ao mesmo tempo.

Depois de ter apagado a mensagem, encontrei Ernie no quarto que partilhávamos, debaixo dos cobertores, a dormir deitado de barriga para baixo.

A sugestão do Espetro fazia-me todo o sentido; por isso, na sexta-feira, mal cheguei a casa da escola, disse à minha mãe que ia com Ernie a uma festa de anos. Era mentira, naturalmente, a primeira das muitas que eu lhe diria nos dois anos que se seguiram. Ela poisou o livro que estava a ler aberto em cima dos joelhos e disse: «Faz como te parecer melhor, querido.»

Agora, passados trinta anos, parece-me estranho que a minha mãe me tenha confiado Ernie a tarde toda até ao anoitecer, tendo eu apenas oito anos. Mas ao mesmo tempo parecia-me normal; nessa altura, a bem dizer, a minha mãe não chegava sequer a vestir-se. Durante o dia, quando o meu pai estava na serração, ela dormia, bem aconchegada nos cobertores, ou lia um livro, embora uma vez ou outra, quando eu ia ao quarto e cantava para ela ou dançava à volta da cama para a fazer rir, ela encontrasse energia para enfiar uns jeans e uma blusa, descer até à cozinha e fazer uma tarte para mim e para Ernie ou dar um passeio lá fora connosco.

Às vezes íamos os três apanhar flores. A minha mãe disse- me uma vez que as flores silvestres eram a maneira que o sol tinha de conhecer a terra. Adorava ouvi-la dizer estas coisas engraçadas com o seu sotaque português. E sentia-me no centro do mundo quando a via enfeitar, mesmo que fosse com as mais modestas margaridas, a velha jarra esbeiçada que trouxera de Portugal e de que gostava tanto. Era amarela e tinha uns coelhos azuis pintados. Costumávamos chamar-lhe «a jarra dos coelhos da mãe».

As tartes que fazia eram geralmente de maçã, porque tínhamos um pomar com maçãs McIntosh plantadas pelo anterior dono.

Depois da sua morte descobri no roupeiro dela, por trás dos casacos usados, uma caixa de medicamentos e percebi que tomava doses enormes de Valium e que o meu pai comprava os comprimidos no Mortinsons em Gunnison, pois era esse o nome e o endereço da farmácia que se lia nos rótulos. Percebi também que ela devia saber que eu às vezes rebuscava a sua mesinha de cabeceira, senão seria aí que guardaria os comprimidos.

Por essa altura, a minha mãe tinha deixado de conduzir. O meu pai devia preferir tê-la enfiada em casa sem se mexer como uma inválida apática.

Era na primeira gaveta da mesinha de cabeceira que a minha mãe guardava o estojo de primeiros socorros. Tinha lá aspirina Bayer para crianças, compressas de aze, mercurocromo, pomada Polysporin e uma data de outras coisas úteis. Por baixo de tudo isso, havia umas brochuras vistosas de cruzeiros na Europa. Lembro-me sobretudo das imagens de Veneza porque imaginava milhares de miúdos italianos a irem para a escola a nado e acreditava que os professores tinham de ter toalhas nas salas de aula para eles se secarem. Na gaveta a seguir, estavam guardados os livros de poesia da minha mãe: Fernando Pessoa, Pablo Neruda, Camões... E também um baralho de cartas com imagens dos monumentos de Lisboa, como a Torre de Belém e o Mosteiro dos Jerónimos, nas costas. Nessa altura achava estranho que ela as guardasse, pois quase nunca queria jogar rummy ou póquer comigo e com Ernie.

Depois de eu e o meu irmão termos vindo viver para Portugal, descobri um velho exemplar quase a desfazer-se dos Vinte Poemas de Amor de Neruda que Ernie trouxera e onde ela sublinhara estas linhas:

Hei de trazer-te das montanhas flores alegres, campainhas,

avelãs escuras, e cestas de beijos.

Quero fazer contigo o que a primavera faz com as cerejeiras.

Ao ler estes versos no livro da minha mãe, fiquei gelado, por me lembrarem o meu pai a dizer-me: «Vou fazer ao Ernie o que o inverno do Colorado faz às nossas macieiras.» Compreendi então mais claramente do que nunca que ele possuía um dom para reconhecer o que havia de mais belo no mundo e para o destruir.

Na gaveta do fundo da mesinha da minha mãe havia um envelope castanho com fotografias dos pais dela e da irmã mais velha, Olívia, que vivia em Portugal. A de que eu mais gostava era uma com as duas irmãs na praia da Caparica, quando a minha mãe tinha doze anos e a minha tia Olívia dezanove. Nas costas, nos rabiscos difíceis de decifrar do meu avô, lia-se a data: agosto de 1954. Tinha também-escrito os nomes das duas, Maria Antónia e Maria Olívia.

Na fotografia, a minha mãe é esguia e tem um aspeto atlético e vivaz, e a tia Olívia, morena, pequena e sensual, como uma jovem Frida Kahlo. Empunham as duas uma raquete de pingue-pongue e sorriem. Trago essa fotografia na carteira. Gosto de levar as duas irmãs comigo para todo o lado.

Depois da morte da minha mãe, o meu pai costumava levar-me a mim e a Ernie a passear pelo Colorado e pelo Novo México. Vimos a águia-real no Parque Nacional das Montanhas Rochosas e passámos um fim de semana num motel em Santa Fé que tinha chifres de veado por cima do balcão da receção. Deixou-nos mesmo dormir com ele a maior parte das noites, Ernie de um lado e eu do outro, e mantinha a mão em cima da minha cabeça a noite toda, por eu ter decidido que não conseguia dormir se ele não estivesse exatamente no sítio onde devia estar.

Talvez tudo o que fiz na vida tenha tido como origem a complexidade do meu pai. E talvez cada um dos casos que investiguei tenha sido uma nova oportunidade de decifrar o mistério que eternamente me fixava do fundo dos seus desconfiados olhos castanhos - que, para o melhor e para o pior, são também os meus. Às vezes, quando não consigo dormir, penso em como me pareço cada vez mais com ele, e isso quase sempre me leva a perguntar a mim próprio se a necessidade de o compreender terá determinado a minha vida até à mais ínfima volta e reviravolta.

Se calhar até o ter querido ter filhos se deva a ele - para tentar perceber o que via quando olhava para mim e para Ernie.

Será que todos levamos a vida que levamos porque temos de saber por que razão as coisas aconteceram da maneira que aconteceram, e se elas poderiam ter-se combinado de um modo diferente para produzir algo mais terno e significativo e permanente?

Tenho duas fotografias da minha mãe de 1980. Sei que as tirei no verão, porque o meu pai me comprou uma Canon no fim do ano escolar. Nas duas fotografias, a minha mãe tem um ar gasto, como se tivesse passado tanto tempo a subir uma encosta que se sentisse demasiado exausta para prosseguir, apesar de ter só trinta e oito anos na altura - ainda nova, embora os olhos pareçam pisados e o cabelo lembre cordas velhas e esfiapadas.

Sei que se pode estar morto em vida por ter visto a minha mãe. E sei que provavelmente ela não compreendia muito bem o que estava a acontecer-lhe, porque agora tenho quarenta e dois anos - sou três anos mais velho do que ela nessa altura - e ainda há muitos dias em que não consigo compreender porque sou como sou. Hoje sei também que todo aquele Valium que ela tomava a devia impedir de pensar com clareza sobre si própria. Talvez tudo tenha a ver com isso, no fundo.

Não olho para as fotografias dela muitas vezes. Estão guardadas na minha mesinha de cabeceira, no fundo de tudo, onde mais ninguém possa ver até que ponto ela estava já morta.

Nunca disse a Ernie que tinha aquelas fotografias; prefiro que ele guarde imagens mais felizes da nossa mãe na sua lembrança. Esquecer como eram as coisas pode ser uma bênção.

Não faço ideia de onde possam estar os negativos. Não consegui encontrá-los quando chegou o momento de vir para Portugal. Espero que os novos donos do rancho no Colorado os tenham descoberto e deitado fora; não gosto de imaginar os negativos das fotografias da minha mãe retidos num sítio onde ela foi tão infeliz; a morte deve servir-nos de libertação, se não para mais nada.

Naquela sexta-feira a seguir à mensagem do Espetro, peguei em Ernie e conduzi-o ao longo do riacho, a cerca de meio quilómetro da nossa casa, até um prado onde o meu pai e eu costumávamos praticar tiro ao alvo. Levei também um cobertor, pois, embora estivéssemos em fins de maio, encontrávamo-nos a uns dois mil metros de altitude e à noite a temperatura descia abaixo de zero. Vivíamos bastante afastados dos nossos vizinhos mais próximos, um casal que andava pelos oitenta anos, chamados Johnson. Tanto o Sr. Johnson como a mulher eram surdos, achava eu nessa altura. Agora, apercebo-me de que deviam preferir não se imiscuir no que se passava no nosso rancho.

Ernie fazia birras tremendas e tinha imensa energia; era um miúdo capaz de nos deixar loucos: se não o vigiássemos de perto podia pôr-se a puxar o fio de um candeeiro para fora da tomada ou espalhar o caixote do lixo na cozinha. Hoje compreendo que era apenas levado pela curiosidade, mas naquela altura as suas ações pareciam ter por fim sermos os dois castigados pelo meu pai.

Em criança, Ernie vivia à superfície dos seus sentidos. Estava sintonizado de um modo especial para o chilrear dos pássaros pela manhã. E para as cores. O canto e os guinchos deles acordavam-no ao amanhecer e ele esgueirava-se da cama em pijama e punha-se a olhar pela janela como se estivesse a observar o Pai Natal e as suas renas a prepararem-se para as aventuras da véspera de Natal. Ernie tinha cabelo castanho-escuro curtíssimo e uns grandes olhos verdes líquidos que dardejavam em volta a todo o momento, com as mesmas pestanas compridas que se veem em muitos portugueses. E um cheiro muito próprio e que eu adorava - como papas de aveia quentes.

Ernie tinha a cara redonda e terna da minha mãe. Eu herdara o ar chupado, meio faminto do meu pai, e os mesmos olhos escuros e sérios, bem como os seus lábios finos, quase inexistentes.

Tenho quase a certeza de que os meus lábios me dão um ar de alguém em quem não se pode confiar. Mas gosto dos meus olhos. Acho que mostram que sou uma pessoa refletida. A maior parte das vezes, gosto que haja em mim esse traço do meu pai, embora nunca o diga. É só mais um dos muitos segredos que cultivo a sós quando mais ninguém me vê.

«Parecem-me folhinhas de fetos.» Era o que a minha mãe dizia das pestanas de Ernie. Só que dizia a frase meio em português por não confiar muito no seu inglês.

Não sei se Ernie era bonito como rapaz, mas tinha uma espécie de aura sobrenatural quando estava feliz. E uma timidez acrescida na presença de adultos que os levava a procurarem espicaçá-lo. Quando era bebé, as pessoas na rua estavam sempre a pedir para pegar nele ao colo ou a passar-lhe a mão pelo cabelo.

A minha mãe dizia que ele tinha os olhos mais vulneráveis e mais bonitos que ela vira e, se bem que fosse o amor a falar, era também um facto inegável. Às vezes penso que os olhos de Ernie sempre tiveram a silenciosa profundidade de alguém que viu e testemunhou coisas de mais.

Quando a minha mãe elogiava o aspeto de Ernie talvez estivesse também a dizer que havia ainda alguma coisa de bonito em si, embora se tivesse tornado quase impossível vê-lo. Espero que fosse isso em parte o que ela queria dizer. É o que desejo todos os dias da minha vida.

O meu pai deve também ter pressentido que Ernie não era como os demais. E provavelmente reparou que ele - mesmo em criança - se parecia imenso com a mãe e quase nada consigo.

Sei que desiludi a minha mãe. Essa é para mim a coisa que mais me custa admitir.

Mas, enfim, na tarde daquela sexta-feira, quando o Espetro me escreveu pela primeira vez uma mensagem, desci com Ernie até ao nosso riacho. Ele começou por fazer uma birra por eu me ter esquecido de levar comida. Para o distrair ia-lhe perguntando os nomes das flores silvestres que encontrávamos. Nessa época do ano, o prado fazia lembrar um jardim botânico, e todas aquelas corolas amarelas, roxas e escarlates pareciam tão ansiosas como nós por aquecer ao sol depois de um longo inverno. E por serem reconhecidas por aquilo que eram.

As preferidas de Ernie eram umas flores escarlates que cresciam em tufos, chamadas «pincéis de índio», que pareciam fazer cócegas nos dedos quando lhes tocávamos. A nossa mãe uma vez mostrou-nos como secar flores entre as páginas de um livro, e, por isso, de vez em quando, colhíamos «pincéis de índio» para os meter no meio do American College Dictionary que ela me dera de prenda de anos. Dizia que eu e Ernie precisávamos de ter um inglês perfeito se quiséssemos ser bem-sucedidos na América.

Dizia sempre que Ernie ia ser cientista, por ter aquele género de curiosidade inesgotável e ávida em relação às coisas mais simples. Era também o que eu achava.

A mim, dizia-me que haveria de certeza de ser uma estrela do basebol, mas só por ser esse o meu sonho. Secretamente, desejava que eu estudasse música e viesse a ser pianista ou talvez cantor.

Depois de andar uma hora às voltas com Ernie, só me apetecia sentar-me e descansar, mas ele desatava a choramingar de cada vez que o deixava só. Era como se tivesse pilhas e estivesse programado para uma erupção de lágrimas sempre que eu lhe largava a mão.

Depois de o sol ter desaparecido atrás da crista de uma montanha ao longe, avistámos uma perua. Estava num ninho por baixo de um carvalho enorme, e eu e Ernie aproximámo-nos em bicos de pés, de mãos dadas, naturalmente, aspirando a escuridão trazida pelo vento, tensos por termos de nos manter absolutamente em silêncio. Contámos doze filhotes na erva, soltando aqueles sons agudos como o arranhar de um violino que costumam fazer só para darem a saber à mãe onde estão.

Quando chegámos a casa, estava tão derreado que mal conseguia segurar-me em pé. Passava um pouco das nove. O meu pai jazia inconsciente no sofá da sala. Tresandava a tequila e charutos, e despira a camisa e as calças, mas tinha ainda a roupa interior e o boné de basebol dos Milwaukee Braves. Do gira-discos chegava-nos a voz arranhada de Bessie Smith. Era um velho disco de setenta e oito rotações com uma etiqueta púrpura.

Fui ao quarto dos meus pais e disse à minha mãe que Ernie estava morto de fome. Encaminhámo-nos em bicos de pés para a cozinha. Ela abriu uma lata de feijões cozidos Heinz e aqueceu-os no fogão com um pouco de molho de tomate e água. Pus Ernie em cima de uma cadeira e, enquanto os dois observávamos aquele líquido espesso borbulhar e fervilhar, contei baixinho à minha mãe que tínhamos visto uma família de perus.

Ernie e eu empanturrámo-nos no quarto. Ele enfiava a colher na tigela comum, mas esta só lhe chegava à boca meio cheia, depois de deixar cair uma boa parte dos feijões no pano da louça que lhe tinha atado à volta do pescoço. Quando terminámos, enfiámos os pratos e os talheres debaixo da cama à espera de uma ocasião para levarmos tudo para a cozinha. Trouxe também alguns livros. Lera ao meu irmão [ames e o Pêssego Gigante e A Portagem Fantasma antes de ele conseguir sequer pronunciar as primeiras palavras. A maior parte das vezes batia com as mãos nas ilustrações e fazia aqueles sons patetas dos miuditos pequenos.

Antes de nos deitarmos, a minha mãe disse que fora uma sorte estarmos fora durante a tarde porque o meu pai tinha chegado a casa extremamente furioso, e tão bêbado que mal conseguia manter-se direito até para fazer xixi. Foi nesse momento que tive a certeza de que o Espetro me dera um bom conselho.

O meu pai saía com os colegas do trabalho e bebia de mais todas as sextas-feiras; era o dia em que recebiam. Não percebia isso quando era pequeno. Mas o Espetro sabia-o. Por isso é que pôde avisar-me para não estar em casa naquela tarde. Sabia muito mais do que eu. Talvez por ser adulto.

A partir de então, o Espetro passou a escrever mensagens na minha mão mais ou menos uma vez por semana, na maior parte das situações para me avisar quando havia a certeza de que o meu pai iria ficar de tal modo bêbado que teria uma ressaca terrível. Quase em seguida, o Espetro começou a falar das provas que o meu pai me iria impor. Tornou­se muito mais rápido do que eu a encontrar Ernie. Salvou o meu irmão de ficar gravemente ferido em diversas ocasiões, quando eu nunca teria descoberto a tempo onde ele estava.

Foi desse modo que acabei por me aperceber de que o Espetro era muito mais eficiente do que qualquer pessoa a descobrir pistas. Era capaz de decidir rapidamente o que era importante e significativo numa sala - o que fora retirado ou acrescentado, por exemplo. Os testes do meu pai haviam-no treinado nisso. Tinham feito com que ele passasse a ser como aquelas pessoas cegas que ouvem sons ínfimos e distantes que os outros não conseguem distinguir.

Em miúdo imaginava que o Espetro não tinha as emoções das pessoas vivas. E que era por isso que conseguia concentrar-se na busca de Ernie excluindo tudo o resto. Mas hoje sei que ele entra em pânico. Na verdade, acho que conhece melhor o medo do que qualquer pessoa que eu alguma vez tenha conhecido, incluindo o meu irmão.

Os miúdos não têm experiencia que lhes permita reconhecer o que é excecional ou único, e eu partia do princípio de que todos eram iguais a mim e recebiam mensagens nas mãos ou noutra qualquer parte do corpo. Só quando falei nelas à minha mãe é que percebi que eu tinha mais sorte do que as outras pessoas. Ela disse-me que nunca recebera mensagens dessas e que não conhecia ninguém que as tivesse recebido. Disse- me para nunca falar nisso - especialmente ao meu pai - porque ninguém iria acreditar ou compreender. Seria o nosso segredo.

«O nosso segredo», disse ela em português, com a mão pousada na minha cabeça, como se me abençoasse, o que me dava a impressão de que queria continuar a tomar conta de mim na sua maneira muito própria e a maior parte das vezes silenciosa. Embora, se quisesse ser mauzinho, pudesse dizer à sua inútil maneira. Por não nos defender, a mim e a Ernie, com suficiente energia. Tento não pensar nisso, mas penso.

É obviamente possível que pouco antes de morrer ela tenha imaginado que isso seria a única coisa que faria com que o meu pai fosse bom para nós. Não que eu o tivesse compreendido então. Nessa altura, parecia-me apenas que ela nos abandonadara.

Quando eu tinha onze anos, em setembro de 1981, fomos ouvir um grande pregador de Denver - um professor de Teologia chamado Thurmond - que no seu sermão nos disse que os anjos na verdade não existem. São metáforas, disse ele, para mostrar que Deus olha por nós. As palavras daquele homem idoso deixaram-me aturdido como se tivesse apanhado um choque elétrico, porque me apercebi nesse mesmo instante de que ele não sabia o que estava a dizer.

Foi então que decidi deixar de chamar Espetro a quem quer que fosse que me mandava as mensagens. Em vez disso, passei a dar-lhe um nome de anjo, e escolhi Gabriel, muito embora nunca me tivesse passado pela cabeça que ele fosse um arcanjo bíblico; teria de ser bastante mais louco do que era para pensar que um poderoso anjo bíblico iria descer do Céu para nos visitar no nosso rancho no Colora do rural e me ajudar a aguentar as provas do meu pai. Porque então, se nos pudesse visitar com essa facilidade, não teria ele salvado a vida da minha mãe? Não, imaginei que o meu Gabriel não passaria de um anjo pouco importante, e que era possível que, tal como as pessoas, houvesse mais do que um anjo com o mesmo nome. E concluía que muitos deles apenas dispunham de uma parte ínfima do poder de Deus - insuficiente para nos salvar da morte.

Gabriel chamava-me sempre H nas suas mensagens, por isso passei a chamá-lo G. De cada vez que recebo uma mensagem dele, fico sem saber de mim. Habitualmente desapareço por um período entre dez minutos e uma hora. Nunca sei para onde vou.

As mensagens que recebo são sempre em letra de imprensa ­ nunca em letra manuscrita.

A certa altura - devia eu ter doze ou treze anos -, comecei a achar que G tomava posse do meu corpo. Embora durante muito tempo não tivesse a certeza disso, pois nunca retomei consciência sabendo o que me tinha acontecido. Nunca pedi a Ernie para me dizer o que tinha eu andado a fazer, porque não queria que ele soubesse que eu não estivera ali - no meu corpo, quero eu dizer.

Habitualmente, sinto as têmporas a latejar quando G pretende apossar-se de mim. Mas, se ele chegar realmente depressa, numa emergência, não me é dado qualquer alerta - a entrada dele provoca-me uma sensação semelhante à de uma palmada na nuca.

Passei a ter a certeza de que G toma posse de mim desde que certa vez pedi a um colega da polícia que me observasse enquanto eu examinava as roupas empapadas de sangue do dono de um restaurante que tinha sido esfaqueado até à morte. Passou-se há dezasseis anos.

Ver sangue de feridas abertas faz com que eu desapareça, embora às vezes consiga manter G à distância se me mostrar suficientemente determinado.

O meu colega contou-me que desatei às voltas pelo local do crime como se as paredes do restaurante estivessem prestes a abater-se sobre nós. As poucas palavras que lhe dirigira tinham sido em inglês. Também lhe pedira um cigarro, apesar de já não fumar.

Gabriel sabe português, estou certo disso, mas recusa-se a escrevê-lo. Anda de um lado para o outro no local de um crime como se a sua mente estivesse em chamas. Talvez porque no seu mundo haja uma contagem decrescente sempre prestes a chegar a zero.

Quando eu tinha catorze anos, desapareci durante uma semana por duas vezes. Nesse tempo andava a beber de mais. Na verdade, passei a maior parte do sétimo e do oitavo anos mergulhado numa névoa de cerveja. Depois de uma noite inteira nos copos em Gallup, certa sexta-feira, fui para a cama em março e acordei em abril. Perder dez dias foi uma coisa que me deixou tremendamente assustado.

Voltei a mim com uma tatuagem no braço. Costumo dizer às pessoas que é uma águia americana, e que a fiz levado por sentimentos patrióticos. Mas é um Thunderbird, o espírito dos raios e do trovão dos índios. Nathan, o meu amigo sioux, contou-me uma vez que essa ave poderosa e sábia me protegia a partir do mundo dos espíritos, e acho que G queria que eu me lembrasse disso.

Hoje, a única droga que tomo é Valium. Provavelmente não devia fazê-lo, mas é a única coisa que me acalma quando entro em pânico.

Um dia comi um botão de peiote com Nathan. Estávamos sentados no quintal da sua cabana nos arredores de Crawford. Mergulhei num sono pesado, sentado no estrado de madeira, e acordei com ele a dançar à minha volta, com um toucado de plumas na cabeça e guizos nas mãos. Dava a impressão de que dançava há horas.

Mais tarde disse-me que tinha estado o tempo todo sentado a meu lado.

Durante as semanas que se seguiram, sonhei repetidamente que era transportado para um lugar seguro por uma enorme ave cinzenta que me deixava sempre num cume protegido por cima do Black Canyon.

Gabriel foi à escola em meu lugar quando desapareci nesses dez dias. Os meus professores disseram-me depois que eu me tinha mostrado particularmente calado nas aulas - o que fora uma agradável surpresa.

Quando voltei a mim, tinha uma mensagem sua escrita na mão: «H - Tem cuidado com o teu corpo senão não deixarei que fiques com ele!»

Agora não bebo, nem mesmo vinho ou cerveja. É um risco demasiado grande. Não poderia olhar para Ana nem para os meus filhos da mesma maneira se eles soubessem da existência de Gabriel. Porque eles não olhariam para mim da mesma maneira. Haveriam de pensar que sou louco ou perigoso. E Ana poderia não querer voltar a falar comigo. Mas, ainda que ela conseguisse dominar a sua raiva - e o seu medo daquilo que se escondia em mim -, não gostaria de alguma vez dar a G a oportunidade de falar com ela e com os miúdos. Não gostaria que ele lhes contasse o que aconteceu a Ernie e a mim quando éramos crianças. Porque possivelmente não acreditariam nele. Bem vistas as coisas, poderiam até não acreditar em mim. E, se não acreditassem em nós, não poderia continuar casado. Ser-me-ia impossível voltar a confiar em Ana alguma vez.

Agora, compreendo que G venha ter comigo quando me sinto ameaçado ou quando alguém que amo está em perigo, embora às vezes não entre em ação quando eu esperaria. Creio que ele percebe quando não pode fazer nada por mim.

Talvez venha mais para me ajudar a mim do que a Ernie. Não sei.

Quando éramos pequenos, isso ia dar praticamente no mesmo; por isso, é possível que ele não veja grande diferença.

Gabriel nem sempre partilha comigo tudo o que pensa. É astuto. E, embora as suas suspeitas nem sempre se revelem justificadas, já me ajudou a descobrir provas de crimes que serviram para mandar para a prisão algumas pessoas bastante más.

Não me parece que G deixe que a afeição, ou considerações triviais, se interponha no seu caminho. Estou bastante convencido, na verdade, de que era capaz de matar os assassinos, violadores e pedófilos que interrogo se tivesse a certeza de poder escapar - ou seja, de não me meter em sarilhos. Talvez assim seja porque, estou certo, se lembra de muito mais coisas do que nos aconteceu no Colorado do que eu próprio. De facto, penso que o meu pai continua a estar vivo onde quer que G viva. Isso não pode ser muito bom para a sua paz de espírito. Embora também se possa dar o caso de ter ocasião de ver o meu pai dançar o tango com Ernie nos braços uma vez ou outra. Ou a ensinar­lhe a melodia de uma canção da Patsy Cline. Também eu gostaria de ver essas coisas - estar lá nos bons momentos. Gostaria muito.

Pouco antes de me casar, fui à Biblioteca da Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa consultar o Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. Aprendi aí que a identidade das pessoas que tenham sido aterrorizadas em crianças nem sempre se fixou. Podem desenvolver uma ou mais identidades separadas de modo a conseguirem lidar melhor com situações insuportáveis.

Há duas frases nesse livro que me valeram o meu primeiro ataque de pânico. Não sei reproduzi-las literalmente, pois não ousei voltar a lê-las, mas era qualquer coisa como isto: «As pessoas com transtorno dissociativo de identidade tendem a ter pelo menos uma personalidade que acredita que merece ser punida - mesmo espancada, brutalizada ou assassinada. Muitas vezes foi isso que os abusadores lhes disseram quando eram crianças.»

Depois de ter lido isto, não conseguia respirar e, quando uma dor aguda me fendeu o peito, pensei que era um ataque cardíaco. Mas não gritei por socorro. Poisei a cabeça na mesa onde estava a ler e fechei os olhos. Pensei que era bom que morresse, pois evitaria que Ana se casasse com alguém tão perturbado como eu.

Quando me senti com forças para me levantar, dirigi-me para o carro e fiquei sentado lá dentro umas duas horas. Compreendi que desde o dia em que Ernie nasceu eu tinha passado a vida a lutar para sobreviver, sem descanso. Continuava mesmo a lutar quando à noite ficava estendido na cama completamente imóvel.

O meu maior medo era poder alguma vez magoar os meus filhos ou Ana. Foi por essa razão que pedi à minha mulher que aprendesse a usar uma arma pouco depois de nos termos casado. Bem sei que para a maior parte das pessoas isto parece coisa de loucos. De certeza que foi isso mesmo que ela achou, e recusou-se a ir sequer a uma das lições que eu tinha marcado para ela.

Acho que é bom que a maior parte das pessoas não acredite que alguma vez venha a ter necessidade de usar uma arma para se defender.

Para onde vai G quando não está a controlar o meu corpo? Será que há um lugar onde ele exista de facto?

Se alguma vez me sentir realmente tentado a fazer mal a Ana ou aos meus filhos, pego no carro e dirijo-me a um sítio para lá de Évora, na estrada nacional n.º 256, um local isolado que já escolhi, enfio o cano da pistola na boca e puxo o gatilho.

A segunda coisa de que tenho mais medo é perder a razão e não voltar a mim - nunca mais. O que significaria que passaria a estar morto mesmo continuando vivo, porque teria desaparecido tudo o que faz de mim o que sou.

Nunca mais voltaria a ver Ana, os miúdos ou Ernie.

Por vezes acordo ensopado num suor gelado por saber ter desaparecido mesmo nos meus sonhos.

Depois de ter lido o que dizia sobre mim o Diagnostic and Statistical Manual af Mental Disorders, jurei nunca mais ler uma única palavra sobre os meus distúrbios. E jamais falar disso com ninguém. Odiava ficar a saber que as capacidades que me serviam de salvação ao mesmo tempo me contaminavam de maneiras que os médicos tinham classificado. Não queria que nenhum psiquiatra me tratasse com drogas destinadas a matar Gabriel. Ele merecia viver, mesmo que por breves minutos de cada vez e sempre a contrarrelógio.

Não há dia em que não me preocupe com a possibilidade de os meus filhos terem herdado de mim algum problema genético.

As pessoas não imaginam o que a violência faz às crianças. Gostam de viver num mundo de ilusão e precisam de acreditar em finais felizes. Mesmo os funcionários do hospital que intervêm nos casos não gostam de se dar ao trabalho de preencher os impressos e de se arriscar a receber ameaças de algum pai indignado. Sei que é assim porque nunca houve ninguém da escola ou das autoridades de Delta County que aparecesse a investigar o que o meu pai fazia a Ernie.

Quando fomos ao hospital depois da nossa primeira prova, o médico acreditou no que o meu pai lhe contou - que tinha sido eu quem ferira o Ernie. O meu pai disse que Ernie e eu estávamos a brincar com as tesouras de podar. «Naquela balbúrdia perderam as estribeiras», disse ele.

«Balbúrdia.» Foi essa a palavra que usou. Nunca mais consegui dizê-la em voz alta desde esse dia no hospital, nem nunca a direi.

Quando o médico olhou para a minha mãe a ver o que dizia, ela confirmou com um aceno de cabeça. Percebi pelo modo esquivo como baixou os olhos que tinha alguma esperança de que ele percebesse que estava a mentir, mas não percebeu. Lembro-me de que o médico era alto, tinha uns grandes óculos de aros pretos, como Buddy Holly, e um ar inteligente, um pouco como todas as pessoas que usam óculos o têm aos olhos das crianças. Baixou o olhar para mim como se eu não valesse nada. «Vê se te portas bem, meu menino!», rosnou, com um dedo de advertência apontado a mim. «Porque juro pelo Livro Santo que, se isto volta a acontecer, trato de arranjar maneira de te mandarem para uma casa de correção por uns bons anos!» «Estás a ouvir, Hank!», disse-me o meu pai, como quem tivesse procurado inúmeras vezes ensinar-me a ser bom para o meu irmão. «Para a próxima, não poderei fazer nada por ti.»

O que li na biblioteca da Faculdade de Psicologia em Lisboa fez-me também compreender que Gabriel possivelmente não era um anjo nem mesmo um fantasma. A não ser, evidentemente, que se defina «anjo» como uma parte de nós que olha pelas outras e que guarda todos os que amamos. E que viveu coisas tão terríveis que nunca pode sentir­se inteiramente à vontade, no seu mundo ou no nosso.

 

Todo o assassinato é um sinal de fracasso - fracasso em perdoar, em compreender, em conseguir justiça de outra maneira. Em encontrar uma porta de saída.

Por isso pergunto-me que fracasso se esconderá ensopado em sangue no tapete de Coutinho.

O mais provável é que um dos seus amigos ou conhecidos, com cuja mulher ou namorada Coutinho mantinha uma relação, não tenha conseguido convencê-lo a pôr termo ao caso, embora também me parecesse possível - dada a realidade do setor da construção civil em Portugal- que ele tivesse pago subornos para conseguir contratos lucrativos e acabado por se meter com algumas pessoas muito perigosas e pouco escrupulosas.

O que me dizia mais sobre o assassino era a mordaça, que implicava que ele e eu partilhávamos um medo muito especial: o da voz de outro homem. E do que ele seria capaz de nos mandar fazer.

Na sala de estar, apercebi-me de que Gabriel tinha retirado todos os quadros da parede. David estava ainda a examinar a vítima. Pedi-lhe que tomasse as medidas necessárias para que o corpo fosse levado dali; a mulher de Coutinho e a filha deviam estar a chegar, e eu não queria que elas o vissem estendido numa poça de sangue. Mais tarde, compreendi como isso mostrava até que ponto o suicídio de Moura me tinha perturbado, por não ter percebido que Susana poderia preferir ver o marido em casa e não na morgue.

«H: memórias más debaixo da cama da rapariga. Quadro de Almeida no sítio errado. Dá uma vista de olhos ao dicionário de Francês­Farsi. Porque não tem a Sandra nenhuma fotografia de si próprias»

Ler novamente a mensagem de Gabriel fez com que me apercebesse de que estava à espera de ver fotografias de Sandi no seu quarto porque os meus dois filhos têm dúzias de fotografias suas e dos amigos afixadas em painéis de cortiça. Seriam eles um caso raro ou seria antes esse o caso da filha do homem assassinado?

Depois de ter molhado o lenço na torneira da cozinha e apagado a tinta da palma da mão, fui dar com Fonseca a espalhar o pó para recolha de impressões digitais na maçaneta da porta que dava para o jardim.

Quer mais um cigarro? - perguntou ele animado, contente por ter um cúmplice no crime.

Não, obrigado. - Saí para o sol, porque o calor, ao envolver-me, haveria de me ajudar a reentrar no meu corpo. Quando me senti capaz de falar com alguém, pedi a Fonseca que acabasse a sua tarefa e voltasse para o laboratório, de maneira a poder testar as provas que tinha já recolhido. Disse-lhe também para selar a biblioteca; fora aí que Coutinho estivera nos momentos que antecederam a sua morte e eu não queria que ninguém lá entrasse, nem mesmo a Sr.ª Coutinho.

Mas o Vaz já voltou para o laboratório - respondeu perplexo. - Ele disse-lhe que ia para lá, não disse? Porque, se não disse, um de nós vai ter de falar a sério com ele.

Mentir pareceu-me a opção mais segura.

Ele disse qualquer coisa em voz baixa quando eu estava ao telefone com a sede, mas não lhe-prestei muita atenção. Parece que este crime me deixou um pouco distraído.

É por causa deste sangue todo. O Monroe sabe como fica quando vê sangue. - Puxando a tira transparente que tinha comprimido contra a maçaneta, levantou-a e mostrou um emaranhado de impressões digitais. - Adoro o meu trabalho! - exclamou, radiante.

Vendo que não lhe retribuía o sorriso, perguntou:

Foi só este caso que o deixou tão nervoso?

Contei-lhe o que se tinha passado com Moura. Numa voz desafinada de tenor e com acentuada pronúncia portuguesa, cantou «Mama said there'll be days like this.»

The Shirelles, 1961 - disse eu.

Como raio se lembra de tantas canções americanas antigas e esquece tantas conversas? perguntou.

Você é o campeão dos investigadores legais, descubra!

O riso reconhecido de Fonseca fez com que me sentisse mais seguro. Luci veio ter connosco. Nada de ténis nem de luvas e nada de silenciadores caseiros ­ disse ela com um encolher de ombros desalentado. Tinha a cara toda suja e suava as estopinhas.

Sugeri-lhe que fizesse uma pausa, mas insistiu em ajudar-me a recolocar os quadros na parede. Era bem verdade - tal como G dera a entender na sua mensagem - que a moldura do desenho de Almeida era demasiado pequena para ter dado origem ao quadrado de tinta descolorida na parede onde estava pendurado. Ali estivera um quadro ligeiramente maior. Teria o Almeida sido posto pelo assassino para substituir um quadro roubado? Procurámos em vão por toda a sala o prego onde poderia ter estado pendurado.

G deve ter consultado o dicionário de Francês- Farsi e encontrado alguma coisa que queria que eu visse; por isso, a seguir fomos para a biblioteca. Ao folhear o livro, descobri um pequeno encaixe cavado entre as páginas 302 e 457. O esconderijo continha uma pen informática do tamanho de um isqueiro pequeno. Mostrei-a a Luci.

O Coutinho devia estar a ver alguns destes ficheiros quando ouviu os barulhos em baixo - disse eu. - Tinha tirado a pen e voltou a pô-la no esconderijo, mas não quis dar-se ao trabalho de arrastar uma cadeira para junto da estante e voltar a guardar o dicionário no devido sítio na prateleira de cima.

Pus-me de pé numa cadeira de modo a poder chegar à prateleira onde o livro estivera, mas só me serviu para ficar com os dedos cheios de pó. Estendi a Luci as chaves de Coutinho.

Feche a porta por dentro e depois volte a abri-la. Vamos ver se os ruídos se ouvem bem daqui. Passados uns trinta segundos, ouviu-se o tilintar de vidros. Luci subiu as escadas a correr e reapareceu na biblioteca com um sorriso ameninado. O seu entusiasmo encantava-me; compreendi que provavelmente lhe tinha dado gozo andar a remexer nos caixotes do lixo.

E então? - perguntou ela com vivacidade.

O Coutinho deve ter ouvido a chave a rodar na fechadura - disse eu.

Então provavelmente pensou que era a amante que voltava para trás... que se tinha esquecido de alguma coisa. Ou talvez já tivessem combinado que ela voltaria.

Se não for isso, pode ser que tenha pensado que a mulher e a filha tinham voltado inesperadamente.

E, se estava a consultar os ficheiros - especulou ela -, quer dizer que o portátil ainda devia estar ligado quando foi lá abaixo ver quem tinha entrado.

Luci, para já preferia que não dissesse a ninguém que encontrámos esta pen - disse eu, ansioso por pesquisar os ficheiros antes de os passar aos técnicos. Enfiei-a num dos sacos onde se guardam as provas e meti-o no bolso do casaco.

Liguei para Joaquim, o nosso génio informático, e ele confirmou que a bateria do MacA ir estava totalmente descarregada quando lhe chegou às mãos. Aceitou dar-lhe uma vista de olhos no fim de semana.

Ao voltar para o andar de baixo, pedi a Fonseca que pesquisasse impressões digitais no quadro do Almeida e depois o voltasse a pôr na parede.

Não quer que o leve para o laboratório? - perguntou, surpreendido.

Ainda não. Posso precisar dele para ajudar a Sr.ª Coutinho alembrar-se.

Entreguei -lhe então o dicionário de Francês- Farsi de Coutinho e pedi-lhe que o reservasse como prova, explicando-lhe que guardara uma pen que encontrara num compartimento cortado nas páginas do livro.

Vou eu o que há na pen durante o fim de semana e dou-lha na segunda-feira – acrescentei. E, voltando-me para Luci, disse-lhe: - E agora eu e você vamos investigar o quarto da filha.

E depois? - perguntou ela.

Depois, vamos interrogar todos os vizinhos. Depois, almoço.

Almoço? Mas por essas horas já vai estar escuro! - disse ela, rindo-se.

Os seus olhos ganharam uma intensidade encantadora. Luci devia sonhar com o trabalho de inspetora desde criança; os sintomas eram-me familiares. E, palpitando sob esta descoberta, havia uma outra muito mais importante para mim: eu trabalhava com mais confiança com uma mulher como colega.

Ao chegarmos ao quarto de Sandi, peguei no panda que estava em cima da almofada e passei-o a Luci.

Há aí uma mancha que provavelmente é de sangue. Dê isto ao Fonseca quando o vir.

Mas a filha estava no Algarve quando o pai morreu. Não estou a ver como...

Faça-me essa vontade - interrompi. Deixei-me cair na cama. - Agora, diga-me o que ouviu dizer acerca dos meus métodos.

Só que o senhor às vezes fica numa espécie de transe, chefe.

Pode ser mais concreta?

Disseram-me que o senhor normalmente não diz uma palavra.

E que mais? - Sorri, para a pôr à vontade.

Os homens dizem que o senhor se põe a correr pelo local do crime. E que quando fala pode ser bastante ordinário.

Mais alguma coisa?

Luci mordeu os lábios.

Diga! - insisti. - Não me ofendo.

Que o senhor... que é como se ouvisse vozes a dizer-lhe o que deve fazer... o que deve procurar.

Não, Luci, isso não é verdade. E também não vejo mortos. - «Embora gostasse de ver», acrescentei para os meus botões. - Agora, se faz favor, pegue no bloco e tome nota do que eu faço.

Passando a cabeça por entre as pernas, espreitei para debaixo da cama. Havia um amontoado de roupas no chão. Ajoelhando-me, tirei-as para fora. Um volume dentro de uma das pernas de umas calças de ganga chamou-me a atenção - cuequinhas manchadas de sangue. Pu­las em cima da mesinha de cabeceira para não se perderem.

No bolso havia uma pequena lanterna.

O estrado de madeira sob o colchão ficava demasiado baixo, o que não me permitia deslizar por inteiro, mas estendendo- me no chão consegui enfiar um pouco a cabeça. A luz da lanterna revelou uma coisa metálica e brilhante colada à cama com fita adesiva. Nesse momento, a minha cabeça começou a latejar e uma mão familiar puxou-me para fora...

Luci estava sentada a meu lado no relvado do jardim, espreitando por cima do muro das traseiras para a casa vizinha, o perfil grave.

O meu coração batia apressado, se bem que o mundo girasse lentamente à minha volta, como se eu estivesse no meio do prato de um gira-discos. Era uma sensação desnorteante, que muitas vezes me assaltava no after-time, como lhe chamava. Limpei o suor comichoso da testa. Ao erguer os olhos, reparei que estava sentado à sombra da palmeira. Havia uma pequena felosa esverdeada empoleirada na ponta de um ramo, como se estivesse a espreitar por uma janela oculta. Pensei: «Há um mundo de pequenas coisas de que quase nunca nos apercebemos, mas que está sempre presente.»

Luci viu que me espreguiçava e começou a falar, mas pedi-lhe com um gesto que esperasse; a voz demoraria ainda um minuto ou dois a voltar-me. Agarrei a pistola, ansiando pela confiança que me transmitia - compacta, espessa, precisa. Estendi-me de costas e fechei os olhos, que se encheram de lágrimas sem motivo aparente. A exaustão tem as suas próprias razões.

Quando me sentei, foi para sentir o abraço da tristeza que por vezes me assalta depois de Gabriel me deixar, uma tristeza cheia de tudo o que nunca poderia vir a acontecer - sobretudo, que a minha mãe nunca viesse a conhecer-me já homem. Levados pelo hábito, os meus olhos procuraram o que havia de mais bonito à minha volta - a buganvília de um vermelho-rubi que trepava pela parede das traseiras. Fechando os olhos, imaginei -a a envelhecer como num filme a alta velocidade, começando como um broto a responder ao apelo do sol, rompendo do solo húmido do inverno, amarinhando pelos ares, empinando-se e contorcendo-se como uma corda mágica, saltando por cima da pedra escura e quente, desabrochando e volteando, cintilando com o desejo de mais vida.

Quando me pus de pé, engoli um dos tranquilizantes que sempre trago na carteira.

Vitaminas - expliquei a Luci. Repus a pistola no coldre. - Quanto tempo estive ausente? perguntei.

Ela consultou o relógio.

Trinta e um minutos.

Abri a mão esquerda e li: «H - Pergunta ao Ernie sobre a navalha.

E não deixes que os mortos te façam esquecer os vivos!»

Encontrei alguma faca? - perguntei a Luci.

Encontrou, sim. - E mostrou um saco de recolha de provas. A lâmina tinha mais de doze centímetros de comprimento. O cabo era preto.

Onde estava?

Presa com fita-cola ao estrado da cama da miúda.

Ela precisava de a ter à mão numa emergência. O que significava que quem quer que andasse a persegui-la podia entrar-lhe no quarto sempre que quisesse.

Será que o homem, ou mulher, que matou o pai dela era o mesmo que a atormentava?

Luci estendeu-me o saco com a faca. A lâmina parecia ser de aço inoxidável. Quando a inclinei, um reflexo cintilante devolveu-me o olhar inquisitivo do rapaz que eu fora. Mostrava-se espantado - mas muito agradado, também - ao ver como uma coisa tão perigosa podia caber tão perfeitamente na sua mão.

 

No segundo saco de provas que Luci me passou havia um pau fino com um pequeno ovo de madeira na ponta.

O que acha que é isto, chefe? - perguntou ela.

É um honeydripper - respondi em inglês, pois não sabia como se dizia em português, mas expliquei-lhe que era uma espécie de colher de madeira para tirar o mel de um boião. - Onde o encontrou?

Estava metido numa dobra dos lençóis da cama da miúda.

Mais alguma coisa? - perguntei.

Na última gaveta da secretária, encontrou também três pães secos, já pretos com bolor e a cheirar muito mal. – Apertou o nariz a reforçar o efeito cómico. – O senhor abriu a janela e atirou-os fora.

É tudo

Foi tudo o que o senhor me entregou, chefe – disse ela, dando ênfase à diferença de significado.

Fiquei com alguma coisa para mim? – perguntei, encolhendo-me interiormente, esperando que G não tivesse gamado mais do que um bocado de chocolate; aparentemente, não havia muito no sítio onde ele vivia.

O senhor tirou uma coisa qualquer de baixo do colchão da miúda – disse Luci. Guardou-a no bolso esquerdo.

Continuávamos sentados no jardim da vítima, à sombra da palmeira, e coloquei o conteúdo do bolso sobre a relva. Viu-se rolar um anel de mulher – uma pequena turquesa redonda engastada num aro de prata. Ali estava na palma da minha mão, como um mau augúrio; parecia-me que Sandra só o teria escondido porque alguém ameaçara tirar-lho - ou lhe tinha já tirado outros objetos de valor.

A meu pedido, Luci trouxe-me um copo de água. Felizmente, não se pôs a fazer perguntas enquanto eu bebia. Imaginei que lhe tinham ensinado a ser discreta desde muito nova, mas talvez isso não fosse mais do que o meu maior desejo nesse momento. Perguntei-lhe se lhe tinha dito alguma coisa quando guardara o anel.

Não, mas, quando o meteu no bolso, sorriu-me, como se fosse uma brincadeira.

G estivera a pô-la à prova, esperando que ela reagisse mal àquele roubo, ansioso por me provar que não devia confiar nela. Já antes tentara minar as minhas relações com outros colegas – e mesmo com Ana.

Para ele, todos os adultos eram potenciais inimigos.

Falei consigo ou não disse nada? - perguntei.

Quando andava a rebuscar freneticamente o quarto da miúda e lhe perguntei se precisava de ajuda, o chefe disse- me para eu calar o bico.

Disse-o em inglês, put a lid on it!

Desculpe ter sido mal-educado consigo. E quando é que escrevi umas palavras na palma da mão?

Isso foi depois, no jardim, enquanto fumava. - Ajoelhou-se a meu lado. - Posso falar à vontade, chefe? - perguntou, e, quando lhe fiz sinal que sim, disse: - Há quanto tempo tem estes... ataques?

Desde criança. Agora leia-me as suas notas sobre o que fiz ao certo.

Primeiro gostava de lhe dizer uma coisa - começou ela, interrompendo-se logo e abanando a cabeça como que a repreender-se. Tinha os olhos postos na distância e procurava as palavras certas, a mão levantada para me pedir que não a interrompesse, o que me parecia um gesto muito maduro para uma mulher tão nova.

Vagas de calor pairavam acima do estrado onde nos encontrávamos, como que tentando manter-me no centro de um mundo de segredos. Era frequente, no after-time, ocorrerem-me ideias estranhas, e percebi - com uma sensação de ter sido aldrabado - que nunca seria uma mulher jovem como Luci. Ou a minha mãe. O que teria ela sentido quando me deu à luz? Júbilo, terror, gratidão...?

Chefe... - disse Luci, para chamar de novo a minha atenção.

Sim, o que é?

Sabe uma coisa? O senhor não é nada como me tinham dito que era. - Sorriu para me mostrar que se sentia aliviada.

Como assim?

Davam a entender que era difícil e... uma ameaça. Mas o senhor acaba de me abrir os olhos para uma coisa em que eu nunca tinha pensado.

Que coisa, Luci?

Até onde serei capaz de ir para ajudar pessoas que precisam de mim. Pessoas que nem sequer conheço.

Alguns momentos de compreensão mútua parecem chegar de muito longe, como se tivessem demorado anos na viagem até nós. Foi o que senti possuir-me: Luci estava disposta a ver o que se escondia sob a superfície. Era como se o próprio desejo de ter um colega de trabalho em quem pudesse confiar a tivesse ido desencantar.

Comecei a esfregar a palma da mão tentando apagar o que G escrevera para que ela não visse que as suas palavras me tinham tocado profundamente.

E até onde seria capaz de ir? - perguntei.

Gostava de pensar que era capaz de arriscar tanto quanto o senhor acabou de arriscar.

Recorrendo ao decoro profissional para disfarçar a ambiguidade dos meus sentimentos por finalmente ter encontrado a compreensão de uma colega, disse:

Obrigado, Luci, mas agora gostava de ouvir as suas notas.

Só mais uma coisa, chefe. Sei alguma coisa sobre esse género de distúrbios. Sou formada em Psicologia e…

Luci, fiquemos por aqui! Disse-me uma coisa muito bonita. Seria uma pena dar cabo disso respondi, num tom brusco, na esperança de evitar uma discussão.

Mas, se me deixasse acabar, se calhar...

Não, por favor, não faça isso. Leia-me antes as suas notas - interrompi. - Faça o que quiser, mas nunca diga uma palavra sobre isto a ninguém. Senão... senão não podemos voltar a trabalhar juntos.

Ferida nos sentimentos, havia na sua voz, agora, uma concisão cortante enquanto me contava como eu tinha atirado para o chão os CD e livros da estante de Sandi, afastado num rompante cobertores e lençóis e tirado o colchão. No quarto do dono da casa, provoquei a mesma desordem.

Embora os meus colegas já devessem estar habituados ao meu comportamento frenético nos locais do crime, sabia que Vaz e alguns outros haveriam de me ridicularizar ao saberem que fizera as cenas do costume.

Tinha de arrumar um pouco a desordem antes de deixarmos a casa.

Chefe? - disse Luci.

Estou aqui.

Depois de ter acabado no quarto do dono da casa - disse ela, com a voz ganhando intensidade, o senhor precipitou-se para a cozinha e pôs-se a revistar os armários. Tirou de lá uma tablete de chocolate. Desculpe que o diga, chefe, mas o senhor parecia um cão esfaimado a devorá-la. A minha cara deve ter revelado um pouco da vergonha que me crispava por dentro, porque ela disse.

Não é isso. O senhor fazia aquilo por piada. Estava a representar para mim.- Riu-se suavemente, contente por ter conseguido reconhecer a brincadeira escondida do chefe... Se era disso que se tratava.

Depois do chocolate - prosseguiu -, o senhor encheu um copo de leite e bebeu um gole, mas não gostou. Cuspiu-o no lava-loiça. - Fez uma careta. - Aquilo era o género de leite que se pode guardar meses numa prateleira, com sabor a giz.

E depois?

Ela leu as suas notas: - «Rebuscou as casas de banho e a biblioteca, e a pequena arrecadação no andar de cima. A seguir pediu um cigarro ao Fonseca e foi fumar para o jardim.» - Levantou os olhos para mim e, no seu rosto, havia uma expressão de espanto. - Não creio que alguma vez tenha visto alguém fumar com tanto prazer, chefe. E também me fitou por instantes com uma expressão que é difícil de descrever...

Uma expressão de superioridade divertida... - sugeri; era um olhar em que G se especializara, como viera a descobrir pelas pessoas que tinham ficado ofendidas com o seu comportamento em ocasiões anteriores.

Um pouco isso. E depois perguntou-me se eu era nova na equipa.

Respondi que sim e o senhor disse: «Boa sorte, Luci.» O que foi estranho. Porque eu não lhe tinha dito o meu nome, e o senhor a princípio disse que não fazia ideia de quem eu era.

Estava a pô-la à prova - retorqui; pareceu-me dever-lhe pelo menos uma pequena explicação.

Por que razão?

Como você disse, para ver até onde era capaz de ir para dar uma ajuda.

Talvez seja assim, chefe - disse ela, depois de ponderar a possibilidade -, porque, depois de ter acabado de escrever na mão, o senhor disse: «Estamos-lhe muito agradecidos.» Eu perguntei «nós quem?», e o senhor respondeu: «o Hank e eu.» Depois tirou duas fumaças, apagou o cigarro e perguntou-me se gostava de Lisboa.

E que respondeu?

Que sim. E perguntei-lhe a mesma coisa. O senhor sorriu. Um lindo sorriso, chefe. E disse: «A princípio estar cá custou-me, Luci, custou-me muito. Mas acabei por me habituar, talvez até por gostar. Por o Hank gostar,» Depois revirou os olhos e tombou prostrado, como... como uma marioneta que ficasse de repente sem nenhum fio a segurar-lhe a cabeça e os braços. Ficou nessa posição durante uns instantes e depois foi-se levantando aos poucos. E aqui o temos de novo! - Inclinando a cabeça, acrescentou: - Sente-se mesmo bem, chefe?

Estou ótimo. Fez tudo muito bem, Luci, mas agora temos de voltar ao trabalho. E não se esqueça de guardar isto só para si. É muito importante.

Levei uns minutos a pôr em ordem o quarto do andar de cima, depois ajudei Luci a vasculhar a sala e a cozinha à procura de mais alguma pista que o assassino pudesse ter deixado. Enquanto nos dedicávamos a esta tarefa, ela ia-me lançando um olhar de quando em quando, ansiosa por receber um sinal de confirmação do entendimento que tínhamos estabelecido. Era uma coisa que me deixava pouco à vontade. No entanto, fazia-me um aceno de cabeça de cada vez que a apanhava a olhar para mim e esse pequeno sinal de reconhecimento parecia bastar-lhe. O outro inspetor da equipa, Manuel Quintela, chegou pouco depois e conduzi-o para o exterior para ele interrogar os vizinhos de Coutinho. Manuel era um homem desengonçado, trabalhador e brilhante, mas incapaz de evitar que a sua impetuosidade juvenil se comunicasse às mãos e à voz, o que frequentemente irritava os colegas, pois quase todos os polícias - pelo menos, a julgar pela minha experiência - gostavam de se considerar profissionais acima dessas coisas. Quintela ficou com a parte de cima da rua; Luci e eu com a de baixo. Não tardou que descobríssemos que o artista que desenhara o retrato de Fernando Pessoa que estava na parede da sala de Coutinho - Júlio Almeida - vivia com a mulher, Carlota, mais abaixo no mesmo quarteirão. Depois de lhe ter explicado o que acontecera, Almeida disse-me que Coutinho o tinha reconhecido num café próximo uns seis meses antes e que mais tarde viera tomar chá a sua casa e lhe pedira para ver alguns desenhos recentes. Acabou por comprar o pequeno retrato de Pessoa. Almeida não fazia ideia do sítio onde o quadro ficara exposto na casa da vítima. Coutinho dissera-lhe que se sentia mais ele próprio quando pintava com pincéis japoneses. Tinha convidado Almeida e a mulher para jantar, mas nunca ligara a marcar o dia. Antes de eu sair, Carlota referiu-se ao prédio em construção quase ao fundo da rua, coberto de andaimes, dizendo que estava abandonado há mais de dez anos. Nas vizinhanças corria o boato de que tinha sido recentemente comprado por Isabel dos Santos, a rica e poderosa filha do Presidente perpétuo e ditador angolano, José Eduardo dos Santos.

No decorrer das duas horas que se seguiram, ficámos a saber que na Rua do Vale nenhum dos vizinhos de Coutinho ouvira tiros nem vira alguém entrar ou sair da casa nos últimos dois dias. Estávamos então perto das quatro da tarde, e o Valium e o calor faziam com que tivesse a sensação de andar a arrastar-me por quilómetros de dunas de areia. Disse a Luci que lhe dava três quartos de hora para ir comer qualquer coisa e pedi a Quintela que voltasse para a sede para escrever o relatório preliminar sobre o crime e o comunicar ao Ministério Público. Pedi-lhe ainda que ligasse para o escritório de Coutinho e solicitasse uma lista dos nomes e telefones de todos os que trabalhavam para ele em Lisboa.

Assim que saíram, larguei dali sem nenhum destino na ideia, ansioso por uns minutos sem nada que fazer. Acabei por dar comigo sentado num banco em frente da Assembleia da República, debaixo de uma árvore gigantesca - seria uma faia? - que deve ter nascido ali há uma centena de anos, numa cidade de carruagens puxadas a cavalos e de navios veleiros que Fernando Pessoa terá conhecido nos anos de 1920.

Alguém poderia ter predito as interseções das nossas vidas? Poderia aquilo que hoje soube sobre o assassinato de Coutinho oferecer abrigo a alguém daqui a cinquenta anos ou criar-lhe mais sofrimento?

Reclinei - me no banco roído pelos bichos e descalcei os sapatos e as meias. O meu único vizinho - estendido num dos outros bancos - era um sem-abrigo, barbudo e sem camisa, com umas mãos sujas e inchadas, como batatas acabadas de ser arrancadas da terra. Dormitava com a cabeça em cima de um saco da Lufthansa a abarrotar.

Joguei o meu jogo instantâneo com o vagabundo, vivendo a sua vida, do nascimento à morte, em apenas alguns segundos.

Voltei a ligar o telemóvel, na esperança de ter alguma mensagem que me fizesse companhia. Havia dois SMS, o primeiro da minha mulher: «Bebe!», escrevia ela, pois eu desidratava quando me enervava e muitas vezes acabava por ficar com a garganta irritada. O outro era de Ernie: «Sonhei contigo na noite passada.»

Reconfortado pelos cuidados deles, fechei os olhos para melhor sentir a brisa que me acariciava o cabelo e os ombros. O Valium por essa altura tinha-me deixado quase sem peso, e eu ouvia os carros passando a grande velocidade. Ernie fixava-me do alto de um choupo, sorridente por ter chegado antes de mim ao topo da árvore. Felicitei-o com o gesto do polegar levantado até sentir um sobressalto de medo no peito. «Olha que podes cair!», gritei. «Não te mexas!»

Como se não me tivesse ouvido, fez um aceno com os braços e, graças à alquimia que transcende as leis da realidade desperta, o movimento da sua mão, de um lado para outro, transformou-se no toque do meu telemóvel. Era Fonseca. Disse-me que Susana e Sandra Coutinho tinham chegado a casa, e que ele já havia recolhido um conjunto das suas impressões digitais.

 

Susana Coutinho estava na cozinha, com as costas apoiadas ao frigorífico descalça, um copo de whisky com gelo encostado à testa. Na mesa via-se uma garrafa de Glenlivet quase cheia junto ao último quarto do pão de ló da Sr.ª Grimault. Apresentei-me, a mim e a Luci, mas quando lhe estendi a mão ela não fez nenhum movimento para a apertar.

Diga-me onde tem as aspirinas, que vou buscar-lhas - disse eu.

Obrigada, acabei de tomar três - replicou numa voz rouca. Sorriu amavelmente, um sinal muito generoso dadas as circunstâncias.

Depois dirigiu-se para a janela das traseiras e olhou para fora erguendo-se em pontas de pés. Era loira e bronzeada, cor de canela. - Estava a ver o nosso cão - disse ela. - Só fizemos uma paragem durante a viagem para cima. Coitado, estava desesperado.

Usava três argolas douradas no tornozelo esquerdo e uma quarta - com pedras preciosas vermelhas e amarelas engastadas - no direito; a Índia devia estar na moda entre o jet-set português. Uma nódoa de gordura no bolso de trás dos shorts fez-me pensar que ela se tinha limitado a vestir as roupas que usara na véspera, antes de partir para Lisboa.

Quando se voltou novamente para mim, foi com uma expressão sofredora:

Desculpe, mas, se esta dor de cabeça piorar, vou ter de me estender um bocado.

Os olhos eram esverdeados e tinham aquela expressão cansada, gasta, que estava habituado a ver quase sempre nas mulheres e nos maridos das vítimas de crimes. Ou ela nada tinha a ver com a morte de Coutinho ou era uma atriz notável.

Tirou um maço de Marlboro Lights de uma pequena bolsa de couro pendente das costas de uma das cadeiras da cozinha e acendeu um cigarro com gestos abruptos. De cada vez que tirava uma fumaça via-lhe as faces cavadas de modo alarmante. Depois de lhe apresentar as minhas condolências, perguntei-lhe onde estava a filha.

A última vez que a ouvi, estava lá em cima no quarto dela - respondeu, com uma indiferença cáustica, que parecia indicar que houvera uma discussão entre elas. Afastou do pescoço o cabelo despenteado com uma mão irritada. As unhas eram compridas e de um vermelho-vivo.

Ansioso por despachar a pergunta mais difícil, quis saber onde tinha passado o dia anterior. A irritação franziu-lhe os lábios, gretados e secos, com um aspeto despido, como que a precisar de bãton.

O senhor não faz ideia nenhuma de quem matou o meu marido, pois não? - perguntou, lançando-me um olhar ressentido com os olhos semicerrados.

E, nesse mesmo momento, toda a boa vontade que sentira da parte dela se desvaneceu.

Recolhemos um bom número de indícios - disse eu, escolhendo as palavras com cuidado, de modo a não a pôr fora de si -, mas até agora ainda não temos nenhuma pista segura.

Deu a impressão de tomar o meu tom conciso como um sinal de estar a omitir informações.

O meu marido e o ministro da Justiça eram amigos! - avisou- me. - Muito bons amigos!

Guardei para mim as respostas ácidas que me ocorreram, por não ver de que poderiam servir as questiúnculas. E também porque havia a ténue possibilidade de ela estar a querer dizer que podia conseguir um reforço das tropas se fosse caso disso, embora eu não tivesse a mínima possibilidade de confirmar esta hipótese pela sua expressão; ela olhava a delicada gola da sua blusa de um azul pálido enquanto mexia num botão desapertado.

Se falar com o ministro servir para a tranquilizar - disse eu -, então...

Arrancando o botão solto, atirou-o contra a parede. O botão fez ricochete e saltitou chão fora. Sei que estou a aborrecê-la - disse eu -, mas, se não tratarmos disto agora, vou ter de voltar cá amanhã.

Boa ideia, volte amanhã!

Nesse caso, a senhora não vai poder ficar aqui hoje nem passar cá a noite. Isto terá de ficar selado como local do crime.

O senhor pensa que pode pôr-me a andar da minha própria casa? - disse ela num assomo de indignação.

Senhora Coutinho, é precisamente o que estou a tentar evitar ­ assegurei -lhe.

O riso desdenhoso dela fendeu-me dolorosamente, e fiz um movimento interior de afastamento,

Se quiser – disse-lhe, evitando que os meus verdadeiros sentimentos transparecessem na voz -ligue para o ministro e diga-lhe que não me quer aqui.

Estendi-lhe o telemóvel, mas ela recusou-o e dirigiu-me um olhar fulminante.

Se quiser sentar-se e responder às minhas perguntas - prossegui-, prometo tentar despachar isto rapidamente.

Passando diante de nós num rompante, foi buscar um cinzeiro de vidro preto ao aparador, apagou nele o cigarro num gesto vindicativo e sentou-se à mesa da cozinha. Encarou-nos, a mim e a Luci, com um ar enfadado. Sentámo-nos os dois em frente dela.

«Regadores», era assim que eu e Fonseca nos referíamos às viúvas das vítimas que choramingavam durante o primeiro interrogatório para nos convencerem da sua inocência. A Sr.ª Coutinho era um «poço seco».

Depois de acender outro cigarro, bebeu um rápido gole de whisky e teve um ataque de tosse. Observando os seus esforços para respirar, compreendi que se iria embebedar hoje e ficar esparramada na cama, possivelmente acreditando que a sua perda lhe pareceria um pouco menos horrível na manhã seguinte. Quando repeti a pergunta, respondeu:

Estava na nossa casa de praia. A Sandi, a nossa filha, pode confirmar. E também tivemos um convidado, Jean MoreI, um velho amigo do Pedro, de Paris. Passámos o dia juntos.

Pedi-lhe o número de telefone dele e ela deu-mo sem consultar o telemóvel, acrescentando num tom aborrecido:

É verdade, inspetor, sei de cor o número do Jean!

E que quer isso dizer ao certo? - perguntei, embora tivesse já antecipado o panorama geral do jardim das delícias terrenas que ela me iria descrever.

O meu marido estava a par do que havia entre mim e Iean - disse ela, cortante. Por isso, agradecia-lhe que me poupasse ao espetáculo da sua indignação moral.

Raramente me sinto suficientemente seguro de mim próprio para me indignar moralmente com o que quer que seja - retorqui, na esperança de reconquistar as suas boas graças.

Como se não me tivesse ouvido, disse:

Há anos que não havia nenhuma intimidade entre mim e o Pedro. E ele gostava do Jean. São velhos amigos... eram velhos amigos.

Sentira obviamente a necessidade de deixar isso claro de imediato, o que me deu a ideia de que - apesar do seu aparente à-vontade - os ângulos daquele triângulo poderiam ter sido penosamente agudos uma vez ou outra.

E quando é que o Sr. Morel chegou a Portugal? - perguntei.

Há uma semana.

Esteve em Lisboa ontem?

Ela revirou os olhos perante a minha insinuação.

O Jean é um verdadeiro cordeirinho. Além disso, apanhou ontem o avião para Paris.

Desta vez leu corretamente o meu pensamento e acrescentou:

Partiu do aeroporto de Faro, inspetor, não de Lisboa.

Ele fuma? - perguntei.

Fuma, mas, tanto quanto sei, isso ainda não é considerado crime capital. - Aspirou longamente, desafiadora, o cigarro para reforçar o que acabava de dizer. Devia ter uns bons pulmões.

E fuma Gauloises Blond? - perguntei.

Ela estremeceu; tive a impressão de que a abalara na sua atitude de confortável condescendência. Contei-lhe o que sabia sobre as beatas de cigarros que tínhamos encontrado.

Mas o Jean... Tenho a certeza de que partiu de Faro - disse ela, desviando os olhos para as suas dúvidas como se elas começassem a acumular-se rapidamente. - Ele... ele não iria voltar para Lisboa.

Havia qualquer coisa de falso naquele gaguejar, e ocorreu-me que ela estava de facto a fazer teatro e a dar o seu melhor para incriminar o amante.

Há verdades acerca de nós próprios que apenas reconhecemos quando alguém procura enganar-nos; ao observar a Sr.ª Coutinho desviando o olhar, como se precisasse de conceber qual seria a melhor estratégia para me levar à certa, compreendi que por natureza eu não era muito dado a perdoar.

Ah, agora percebo - disse ela, como se tivesse sido parva por não o ter compreendido antes, e com fingido contentamento continuou:

Uma das amiguinhas de Pedro deve ter decidido fazer-lhe uma visita.

Antes que eu tivesse oportunidade de lhe perguntar se sabia o nome de alguma delas, uma rapariga esguia de menos de vinte anos entrou na cozinha.

Sandra tinha um olhar apagado e umas olheiras enormes e escuras. O cabelo loiro e espesso, bastante curto, erguia-se em tufos espetados. Usava um casaco de malha de homem azul-claro, debruado a branco, com cotovelos puídos e pendentes. Chegava-lhe aos joelhos.

Imagino que tivesse ainda o cheiro do pai. Trazia uns ténis Converse cor-de-rosa vivo com cordões de um amarelo-vivo e meias púrpura. Tinha o ar de uma boa atleta. E de rapaz.

Parecia impossível que fosse a rapariga reservada quase mulher que eu vira nas fotografias favoritas do pai. Comecei por me apresentar, mas ela interrompeu-me.

Alguém entrou no meu quarto! - disse à mãe num tom indignado. - Não sei quem foi, mas tiraram os lençóis e andaram a remexer nas minhas gavetas!

Fui eu - disse.

Os olhos dela cresceram de raiva. Olhei para a Sr.ª Coutinho a pedir ajuda, mas ela estava de novo à janela. Era extraordinariamente eficaz a recusar-se a dar ajuda.

Andávamos à procura de pistas - expliquei à rapariga. - Desculpe.

Luci clareou a garganta e disse:

Eu ajudo-a a mudar os lençóis.

Eu não quero mudar os lençóis! - guinchou a rapariga, tão alto que senti pele de galinha nos braços.

A Sr.ª Coutinho serviu-se do whisky com um à-vontade que lhe vinha da prática. Observando-a, senti abrir-se no peito um ferrolho de pânico que me fez compreender que o meu Valium estava a perder efeito.

Estou a investigar o que se passou com o seu pai - expliquei a Sandra. Tirei do bolso o anel de turquesa que Gabriel encontrara e estendi-lho. - Isto deve ser seu.

O senhor não tinha nenhum direito de ter tirado isso da minha cama - disse ela, a voz apagando-se num frágil sussurro. Olhou para mim com uma expressão desolada. - O meu pai... dizia sempre que não podemos pegar nas coisas das outras pessoas.

Peço imensa desculpa - disse eu.

Sandra cerrou o punho em torno do anel e voltou-se para a mãe. A sua necessidade de perdão e o medo de já não o merecer - dobrava-lhe os ombros, mas a mãe não olhava para ela.

«Há crueldade nesta casa», pensei. «E a Sr.ª Coutinho não se importa que eu veja isso. Talvez seja precisamente o que pretende que eu compreenda sem ter de mo dizer,»

Sandra, esse casaco é do seu pai? - perguntei amavelmente, não querendo aventurar-me em novas questões sérias para já.

Sim, era o preferido dele - respondeu timidamente. - E o meu também.

O brilho de uma borboleta no alfinete que trazia na gola - de esmalte vermelho e azul chamou-me a atenção.

E onde arranjou esse alfinete tão bonito?

Oh, isto... - Virou a gola e encolheu os ombros como que para minimizar o seu valor. - Foi um presente dos meus pais. Da última vez que fiz anos. Só que... só que às vezes já não me parece uma borboleta.

Então o que poderia ser?

Ela mostrou uma expressão perdida.

Não faço ideia.

Parecia precisar que eu percebesse que a morte do pai tinha mudado a forma de tudo na sua vida - retirara significado mesmo aos objetos mais insignificantes.

Talvez pudéssemos agora falar um pouco sobre o seu anel - disse eu. Queria perguntar-lhe porque o escondera, mas ela tapou a cara com as mãos e desatou a chorar.

Luci deu um passo na direção dela.

Vou ajudá-la a fazer a cama, se...

Deixe a minha filha! - berrou a Sr.ª Coutinho, contornando a mesa, precipitada. Quando encostou os lábios ao topo da cabeça de Sandi, a rapariguinha apertou os braços à sua volta e agarrou-a como se estivesse a ser arrastada para o mar.

Havia alguma coisa de surpreendente em ver uma adolescente chorar, cedendo a tudo como que estivera a debater-se, como se eu estivesse a observar o modo como o mundo nos submerge a todos caso alguma vez baixemos a guarda. Susana conseguiu fazer com que a filha parasse de chorar com palavras carinhosas que lhe ia sussurrando. Desviei os olhos daquele momento de intimidade. Luci lançou-me um olhar demorado que interpretei como querendo. dizer: «Não esperava que isto ficasse tão mal tão depressa.»

Anda, querida, precisas de descansar - disse a Sr.ª Coutinho a Sandi.

Enxugou os olhos da miúda com um lenço de papel, sorrindo encorajadoramente.

Sandi apertou as mãos à volta da barriga, como se tivesse sido abandonada.

Nunca mais volto a ver a papá, pois não? - perguntou à mãe.

Schh. Falamos lá em cima depois de te deitares. - A Sr.ª Coutinho tomou a filha pelo braço.

Mamã, onde é que a bala atingiu o pai? Foi... nas costas?

Oh, Sandi, para que queres saber uma coisa dessas?

Não sei, parece-me importante.

Falamos nisso mais tarde.

Nunca mais vou poder pedir-lhe desculpa. Foi tudo culpa minha, mamã!

A Sr.ª Coutinho agarrou as duas mãos da filha.

Ouve uma coisa! - disse ela numa voz zangada. - O que aconteceu não tem nada a ver contigo!

Se eu tivesse sido mais simpática com ele, se calhar...

O papá sabia que tu gastavas dele - interrompeu a Sr.ª Coutinho, a voz tremente. - É só isso. que conta.

Sandi voltou-se para mim enquanto a mãe a levava da cozinha. Tirou o alfinete e colocou-o em cima do aparador perta da parta. Dirigindo-se a mim e a Luci, disse:

Quem leva uma coisa, tem de deixar outra em seu lugar.

Porque diz isso? - perguntei.

Porque era o que o meu pai me dizia sempre.

E porque me diz isso neste momento!

Porque está a investigar a morte dele. Pode ser importante saber tudo.

A Sr.ª Coutinho passou o braço por cima do ombro da filha e conduziu-a para fora da divisão. Eu imaginava que muitas das coisas que o pai lhe dissera haveriam de pulsar com significados ocultos durante as semanas que se iriam seguir. Mas a questão agora era saber o que teria ela levado em lugar do alfinete que deixara?

Assim que elas saíram, os olhos de Luci cerraram-se firmemente.

Estava pálida e tremia-lhe o queixo.

Tem sido um dia difícil, e já são horas de ir para casa - disse-lhe eu.

Não estava apenas a mostrar-me compreensivo com uma nova recruta; eu próprio precisava urgentemente de ficar algum tempo sozinho.

Pus termo aos protestos de Luci, fazendo da minha sugestão uma ordem.

À porta, pedi-lhe que, a caminho de casa, ligasse para a sede e lhes pedisse para verificarem se MoreI tinha embarcado em algum dos voos de Lisboa para Paris no dia anterior.

De volta à cozinha, o silêncio da casa parecia-me excessivamente expectante - como que à espera de que eu compreendesse coisas que possivelmente não podia ainda conhecer. Por isso, cortei um Valium ao meio e tomei metade. Pouco depois, a Sr.ª Coutinho entrou como que deslizando, descalça, num caftã azul de mangas largas com uma gola bordada com um entrelaçado dourado. Usava um bâton de um rosa pálido e o cabelo cor de mel penteado em volutas delicadas. Trazia uns brincos de pérolas negras e cintilantes do tamanho de avelãs. Tinha todo o aspeto de se ter preparado para os paparazzi.

Enquanto se servia de outro whisky, o seu telemóvel tocou. Verificou de quem era a chamada, depois fechou-o e enfiou-o no fundo da carteira de mãe.

As más notícias espalham-se depressa – disse ela em tom crítico. Sentou-se no lado oposto ao meu com um suspiro teatral e bebeu um demorado gole do whisky.

A sua filha está bem? - perguntei.

Mordiscou um bocado de pão de ló.

O senhor desculpe - disse ela -, mas não sei o que nesta altura poderá querer dizer bem. Gostava de saber por que razão ela haveria de precisar de pedir desculpa ao seu marido.

A Sr.ª Coutinho levantou as sobrancelhas e fitou - me com um olhar altivo.

E isso será realmente da sua conta?

Tenho todo o empenho em descobrir quem matou o seu marido, e perguntas inconvenientes é uma coisa que normalmente faz parte do processo.

Do processo? - perguntou ela, como se eu tivesse dito uma enormidade.

Talvez fosse a palavra errada. O meu português não é perfeito, como certamente já reparou.

O senhor é americano ou inglês?

Americano.

Os olhos dela iluminaram-se.

Nova Iorque é a minha cidade favorita em todo o mundo! - proclamou.

Nunca lá estive - disse eu.

Não? É pena. Oiça, Sr. Monroe, as adolescentes metem ideias malucas na cabeça. E ultimamente ela não se tem portado muito bem comigo e com o Pedro. Além disso, todos nós temos coisas a lamentar quando morre alguém que amamos. - Abanou a cabeça com desalento.

Pensamos em tudo o que poderíamos ter feito melhor.

É muito verdade - respondi.

A Sr.ª Coutinho endireitou-se na cadeira e fitou-me com a cabeça um pouco de lado, como se eu fosse tão esquisito que ela só conseguisse medir-me de um ângulo enviesado.

E o senhor, o que é que lamenta, inspetor Monroe?

Censurando a minha resposta verdadeira, disse:

Muito pouco, hoje em dia. As lamentações nunca me levaram a lado nenhum.

Achei - me demasiado esperto mal o disse, mas era uma resposta que tinha preparado há muito, desde os meus primeiros tempos de namoro com Ana.

A Sr.ª Coutinho assentiu amargamente, como se o que eu dizia confirmasse as suas próprias dúvidas sobre a possibilidade de redenção. Sentindo que me oferecia uma oportunidade, disse-lhe:

Vou precisar de toda a sua cooperação para resolver este caso.

Porque será que tenho a impressão de que vai continuar a fazer-me perguntas difíceis? perguntou ela, e o seu esgar pareceu-me um pedido para a tratar com mais gentileza.

Imagino que tenha telefonado a Iean Morel depois de ir deitar a sua filha. Não é que me importe, mas preciso de saber o que ele disse.

Estendeu a mão para os cigarros e sacou um do maço.

Não telefonei - disse ela como se esperasse mais de mim.

Sr.ª Coutinho, a senhora não é tão boa atriz como pensa - disse eu, mas estava a fazer bluff. Na verdade, não conseguira interpretar a sua expressão.

Ela fitou-me com os olhos semicerrados, como que a tirar as medidas para a corda com que gostaria de me enforcar.

Se não ligou a Morel para saber se ele partiu de Faro ou de Lisboa ­ prossegui -, então devia ter ligado. Era o que eu teria feito.

Os seus esforços para se mostrar compreensivo só pioram as coisas, Sr. Monroe. É demasiado americano para o meu gosto. - Levantou-se, agastada.

Não pretendo entrar em discussão consigo - expliquei. - Não sou bom nisso. Ao primeiro sinal de discussão, fujo e escondo-me. - Quando me fitou com uma expressão cética, acrescentei: Sou muito bom a fugir, Sr.ª Coutinho.

Ela riu-se com um toque de admiração - como quem reconhece ter sido desarmada com habilidade - e replicou em tom de desculpa:

Talvez não queira acreditar depois da maneira como falei consigo, mas também não gosto de discussões. Possivelmente porque em geral as perco sempre. - Segurou um cigarro entre os lábios, ficando com ele ali pendurado. - Também aprendi a ser bastante rápida a fugir, inspetor. - Com um traço do humor amargo que eu agora reconhecia ser uma parte essencial da sua personalidade, acrescentou: - Se bem que o Pedro e a Sandi fossem ainda mais rápidos e normalmente conseguissem apanhar-me:

«Ela quer que eu saiba que eram dois contra um nesta família», pensei. E insisti na pergunta: Então o que é que Morei lhe disse?

Acendeu o cigarro. Exalando o fumo de forma um pouco espetacular, disse:

Veio de carro a Lisboa para falar com o Pedro na sexta-feira de manhã cedo e quando saiu desta casa o meu marido estava perfeitamente vivo.

A que horas saiu ele?

Por volta das dez e meia. Havia um voo da TAP para Paris às onze e quarenta, e seguiu nele.

E de que falaram, ele e o seu marido?

Após um momento de hesitação, puxou uma cadeira para si.

É muito simples - disse ela. - Há alguns meses disse ao Pedro que queria o divórcio, mas ele convenceu-me a esperar até a Sandi fazer dezoito anos. Mostrou-se inflexível em não querer magoá-la mais do que ela já estava.

O seu marido mostrava-se muitas vezes inflexível?

Não compreendo a pergunta.

Era frequente zangar-se?

Não nos zangamos todos uma vez ou outra?

Mas nem todos arranjam inimigos por causa disso. A julgar por aquilo que aconteceu, ele arranjou um dos piores.

Oiça, a minha vida não é o mar de rosas que lhe dei a entender há pouco. Havia vezes em que eu e o Pedro nos sentíamos encurralados no casamento. Houve uma ocasião em que depois de desatar aos berros comigo ele perdeu as estribeiras de tal modo que até a Sandi, a sós comigo, naturalmente, me disse que era capaz de ser boa ideia separarmo-nos. Mas, nessa altura, assim que concordei em esperar pelo divórcio, ele voltou a mostrar-se amável. Não era como eu, conseguia mudar de disposição de um momento para o outro. E mostrar-se tão seguro de si que era uma coisa de nos fazer perder o fôlego. - Encolheu os ombros, como que resignada a que o marido fosse uma criatura que ela nunca conseguiria entender. - Seja como for prosseguiu -, o Iean disse-me que tinha vindo de carro a Lisboa ontem de manhã para pedir ao Pedro que reconsiderasse. Que consentisse no divórcio, quero eu dizer. Foi um impulso do momento. - Numa voz atravessada pela mágoa, acrescentou: - O Iean está apaixonado por mim, inspetor Monroe. Diz ele que é a primeira vez que está realmente apaixonado. E, veja bem, tem sessenta e dois anos! - Revirou os olhos como se isso fosse uma loucura. - Mas não queria o divórcio já só por causa do que sentia por mim. Tinha a forte sensação de que a Sandi andava mal por nós estarmos juntos.

É padrinho dela e tem-lhe uma grande afeição.

E como reagiu Pedro à sugestão dele?

Mais uma vez, mostrou-se contra a separação.

Então ele e Morel discutiram.

A cólera insinuava-se novamente na sua expressão.

Sim, mas, como lhe disse, quando o Jean saiu daqui, o Pedro estava perfeitamente vivo.

A sua filha sabia da relação com Morel?

Pensava que o senhor tinha dito que preferia evitar discussões.

E prefiro, mas quero resolver este caso.

Pagam-lhe na mesma, ainda que não descubra quem matou o Pedro - disse ela num tom neutro.

Isso é verdade - respondi -, mas a senhora merece saber o que aconteceu ao seu marido.

Porquê?

Toda a gente merece saber o porquê das coisas más que lhes acontecem.

Lançou-me um olhar penetrante.

Embora o senhor nunca o tenha descoberto.

A observação manifestava uma tal consciência das pequenas pistas que eu negligenciara que isso mudou todos os meus sentimentos em relação a ela. E também me deixou embaraçado, pois tinha sido incapaz de ver claramente o que se passava entre nós até então.

Não, na realidade, nunca descobri - reconheci.

E nem sempre apanha os assassinos que persegue, pois não?

Pensando em Moura, respondi:

Para o melhor e para o pior, isto não é como nas séries de televisão.

Há muito tempo que tenho consciência disso - replicou, com um risinho de aversão. - Oiça, inspetor, não fazia ideia de que o Jean tencionava vir cá. Caso contrário, tinha-o impedido.

Ele disse-lhe se estava mais alguém aqui quando falou com o seu marido?

Não falou nisso.

Pedi à Sr.ª Coutinho que me pusesse em contacto com Morel por telefone. Depois de ela lhe explicar quem eu era, passou-me o telefone.

Falava num inglês aceitável. Confirmou que tinha estado em casa de Coutinho no dia anterior, um pouco depois das dez da manhã, tendo vindo do Algarve num carro alugado. Pedro não lhe parecera nervoso nem pouco à vontade. Disse que saíra sem ter conseguido qualquer concessão da parte de Pedro. Não fazia ideia se alguma amante de Coutinho estaria escondida em casa enquanto os dois conversavam.

Morel confirmou que tinha apanhado o voo da TAP para Paris às onze e quarenta. Acrescentou que antes de embarcar ligara do aeroporto para o seu velho amigo a pedir desculpa pela discussão que tinha provocado, mas que o telefone de Coutinho estava desligado. Voltou a telefonar quando chegou a Paris, mas continuava sem ligação.

Seria Morel insidioso a ponto de telefonar para um morto duas vezes, na ideia de lançar uma futura investigação policial numa pista falsa?

Disse a Morel que o queria ver em Lisboa assim que possível, e ele respondeu que já tinha feito uma reserva para o voo da TAP do dia seguinte. A chegada estava prevista para as 12h45. Depois de desligar, perguntei à Sr.ª Coutinho se sabia onde poderiam estar os telemóveis do marido. Ela abria um buraco no pão de ló com movimentos descuidados da mão.

Se não os tinha nos bolsos nem estavam na secretária da biblioteca, não faço ideia onde estarão – disse ela. – Não os encontrou?

Não, o assassino deve tê-los levado.

O assassino... - As lágrimas insinuaram-se por entre as pestanas. Depois de enxugar os olhos, sacudiu a cabeça como que para desvalorizar a sua mágoa e sorriu, um esforço que parecia discretamente heroico.

Acho que devia beber outra coisa em vez de whisky - disse-lhe.

E eu acho que a sua mulher lhe deve dizer bastantes vezes para guardar as suas opiniões para si! - declarou ela, mas com um toque de humor.

Admiti que tinha razão, e ela disse:

Neste ponto, inspetor Monroe, penso que lhe cabe dizer à viúva enlutada umas palavrinhas de consolo.

Talvez fosse melhor ligar para uma boa amiga depois de eu ir embora e pedir-lhe que fique aqui a fazer-lhe companhia.

Se tivesse uma boa amiga, era o que faria.

Tem de haver alguém em quem confie.

Caraças, Monroe! Ainda não percebeu que quando dizemos às pessoas aquilo de que mais precisamos elas fazem tudo o que podem para não nos darem isso? Oiça, e se eu e o Iean estivermos a dizer a verdade? - Uma nova possibilidade fê-la sobressaltar-se; levou então as mãos à cabeça. - Oh, meu Deus... e se a Sandi continuar a achar que a culpa é dela?

Dobrada sobre o seu medo pela filha, começou a chorar em silêncio. Fui para junto da janela. Pelo canto do olho, observei a cinza do seu cigarro quase a cair. De perfil, parecia mais velha - e dava a sensação de ter acabado de compreender que se afastara tanto de tudo o que sempre sonhara que nunca conseguiria voltar a onde queria estar.

Entretanto, enquanto observava Nero a dormitar debaixo da palmeira, compreendi, por contraste, que não desejaria estar em nenhum outro sítio. Deve parecer uma estranha conclusão, mas já antes reparara que me sentia bastante bem a falar com pessoas que viviam os piores momentos das suas vidas. Então, davam-me uma impressão de serem reais, o que quase nunca sentia. Talvez fosse essa até a razão por que me tornara polícia.

O silêncio da Sr.ª Coutinho, como que imersa em transe, fez com que eu voltasse para a mesa da cozinha. A expressão dela - perdida e vulnerável levou-me a dirigir-lhe a palavra:

A minha mãe morreu num acidente de carro quando eu tinha onze anos - disse-lhe.

Eu próprio fiquei surpreendido com esta confissão: na verdade, parecia não ter saído da minha boca.

Ela acenou a cabeça esperando que eu lhe contasse mais alguma coisa. Acrescentei:

Há dias, mesmo depois de tantos anos; em que ainda não consigo acreditar no que aconteceu. Vou por uma rua fora e o irremediável daquilo, e como isso determinou todo o resto da minha vida, faz-me parar ali mesmo. Por isso, já vê, a verdade é que sou a última pessoa no mundo a poder dar-lhe conselhos sobre como ultrapassar um trauma como este.

E o entanto conseguiu continuar a viver a sua vida.

Não tinha por onde escolher. Tinha um irmão mais novo.

E eu tenho a Sandi. É isso que está a querer dizer?

Não era a minha intenção, mas possivelmente era o que eu diria se tivesse de me arriscar a dar-lhe algum conselho.

A vida tem sido tantas vezes uma desilusão - observou ela.

E, quando não foi uma desilusão, Monroe, foi ainda pior. - Aguentando o meu olhar, como quem diz «olhe para isto», levou as costas da mão à boca e limpou o bãton dos lábios, que lhe marcou a cara com riscos rosados.

Enquanto tirava os brincos das orelhas, o tempo pareceu suspender-se, porque vi claramente que ela queria que eu compreendesse que nunca seria a pessoa que fora antes da morte do marido. Atirando-os na minha direção, disse:

Dê-os à sua mulher. - Com um sorriso irónico, acrescentou: - Ela merece uma prenda de vez em quando por conseguir aturá-lo.

Pus os brincos em cima da mesa. As pérolas negras eram ligeiramente ovaladas, como pequenos ovos escuros.

Vamos deixá-los aqui por agora - propus.

Seja um bom menino e ponha-os no bolso se quer evitar uma discussão.

Fiz o que me disse, embora tivesse decidido deixá-los no meu gabinete para o caso de ela os querer de volta daí a uma ou duas semanas.

Poça, o que eu odiava bâton quando era nova! - disse a Sr.ª Coutinho .- Levei anos a habituar-me. – Soltou uma risada inconsiderada e juntou as mãos em oração.- Que Susana Coutinho descanse em paz.

Viva Susana de Lencastre. - Brindou à sua transformação, ao voltar a ser a mulher que era antes do casamento, erguendo o copo. - O que me faz lembrar, Monroe, que se calhar contam comigo para identificar o meu marido.

A Sr.ª Grimault identificou -o. Mas posso tomar as disposições necessárias para ir ver o corpo quando se sentir preparada para isso.

Engoliu em seco.

O corpo... Caramba, dito assim, é horrível!

Receio que as outras possibilidades soem ainda pior.

Levantou a mão a evitar que eu dissesse quais eram, embora não fosse essa a minha intenção.

Acho que nunca acreditarei no que aconteceu se não vir o Pedro.

Olhou para os azulejos das paredes e voltou a ficar ausente. Ao fim de algum tempo, perguntou: - Havia muito sangue? - Falava como se de muito longe.

Receio bem que sim, no sítio por onde a bala entrou. - Indiquei-o batendo na barriga.

E aquelas letras japonesas na parede, foi o Pedro que as fez com o seu próprio…?

Pensamos que sim.

A Sr.ª Coutinho estremeceu.

Acha que o Pedro fez aquilo quando estava a morrer? Como uma derradeira mensagem?

Diga-me a senhora... Parece escrito por ele?

Não conheço a caligrafia dele em japonês a ponto de saber se a mensagem foi escrita por ele. Já sabe o que quer dizer?

Não, mas vou investigar isso hoje. O seu marido alguma vez falou em qualquer coisa má que lhe tenha acontecido no Japão... Inimigos que possa ter feito, problemas de negócios em que se tenha envolvido?

Não, nada. Falava sempre do tempo que lá passou como se tivesse sido a sua maior aventura. - Abanou a cabeça. - O Jean nunca o poderia ter matado, sabe - disse ela, em voz baixa, a indicar que era simplesmente um facto. - E eu também não. Não sou apenas boa a fugir de discussões, inspetor. Também sei esperar quando é preciso, e esperar mais quatro anos por um divórcio não ia tornar a minha vida mais difícil do que ela já era.

Acredito em si - disse eu, e era verdade, mas talvez Morel lhe tivesse mentido sobre o que fizera. Se ele não aparecesse em Lisboa no dia seguinte, ficaríamos a saber a verdade.

Diga-me mais coisas sobre o que o assassino fez ao Pedro - pediu ela. O temor que se lia nos seus ombros encurvados fazia-me lembrar a filha.

Talvez seja melhor esperar até amanhã - sugeri.

É assim tão terrível?

Disse que sim com a cabeça. Soltando um gemido, deixou cair o copo em que estava a beber, que se estilhaçou no chão. O gelo deslizou pelo pavimento. Quando levantou os olhos, estava à espera de ver desespero no seu olhar, mas era a raiva que faiscava

Veja se não se esquece de interrogar o raio dos que estão associados aos negócios do meu marido! - exclamou.

Alguém em particular?

Todos em particular! - gritou. Vibrava de fúria. - Inspetor, deixe-me dizer-lhe uma das coisas mais úteis que o Pedro me ensinou: parta do princípio de que qualquer transação em Portugal é suspeita até prova em contrário!

Então, o seu marido pagava luvas para conseguir empreitadas? ­ perguntei.

O senhor é parvo? Claro que pagava! Fale com Rui Sottomayor, o contabilista dele. Sabia tudo dos negócios do Pedro de trás para a frente, e eram amigos desde miúdos. - Num tom de cinismo divertido, acrescentou: - Mas, se quiser poupar algum tempo, basta fazer uma lista de todos os políticos que têm de assinar as autorizações de construção de um centro comercial na porcaria desta república das bananas! A lista dos responsáveis que o Pedro tinha de subornar devia ser a mesma, mais coisa menos coisa.

Procurou na lista de contactos do telemóvel o número de telefone de Sottomayor e ditou-mo. Em resposta às minhas perguntas seguintes, disse que nunca vira quaisquer notas que o marido tivesse escrito sobre as suas transações ilegais. E que nunca falara em nomes de pessoas que tivesse subornado.

Ele achava que era melhor para mim não saber nada de concreto ­ disse ela.

Esclareceu depois que nunca dera as chaves de casa a ninguém, nem mesmo a Jean Morel. E Sandi também não, tanto quanto sabia, mas ia perguntar-lhe. Fomos ver o armário onde a família guardava as cópias das chaves de casa, mas não faltava nenhuma.

Disse- me também que nunca vira o marido com outra mulher desde que se tinham mudado para Lisboa e não sabia os nomes de nenhuma das suas amantes.

Aprendi com ele a olhar para o lado - explicou.

Pedi-lhe que me seguisse até à sala de estar e mostrei-lhe o desenho de Fernando Pessoa feito por Almeida.

Sabe dizer-me se isto esteve sempre aqui? - perguntei.

Não tenho a certeza. Porquê?

Acho que o assassino o mudou de lugar.

Porque havia ele de fazer isso?

Não faço ideia.

Fez um gesto de desdém, abanando as mãos na minha direção.

Tudo o que está nas paredes pertencia ao Pedro. - Passeou um olhar hesitante pela sala. Os olhos exaustos abrindo-se e fechando-se. ­ Comprou todas estas coisas tão bonitas, e agora... Sabe uma coisa que levei anos a compreender? Em tempos eu era o seu mais estimado obje tdart. - Fez estalar os dedos. - Mas, um dia, assim sem mais nem menos, o Pedro trocou-me por algo mais contemporâneo. Quando percebi isso, deixei de ligar a todas as coisas belas que ele trazia para casa. Não me interprete mal… ele mostrava-se pesaroso. Caraças, e de que maneira! Chorou como uma criança da primeira vez que lhe fiz ver que me andava a enganar. «Oh, queridinha, desculpa, eu devo estar louco para te andar a magoar desta maneira!», dizia ele. Levei meses a perceber que me tinha trocado de vez. Fui muito estúpida, não fui? Porque era simples: estava a envelhecer. Os homens não gostam das mulheres que têm o mau gosto de envelhecer. Sou eu que lho digo, Monroe!

Lançou-me um olhar carregado como se eu fizesse parte de alguma conspiração masculina. Apontei para o desenho de Almeida e perguntei:

Será que a sua filha sabe o que estava aqui antes?

Provavelmente. Ela e o pai adoravam ir às galerias de arte. Eu pergunto-lhe quando ela se sentir melhor.

Desculpe mais uma pergunta indelicada, mas aqueles guinchos da sua filha... Ela alguma vez gritou daquela maneira?

Monroe, o pai dela acabou de ser assassinado. Que esperava que ela fizesse?

É verdade, mas...

Meu Deus, o que o Pedro adorava aquela miúda! - cortou ela.

Ele queria fazer tudo bem desta vez.

Desta vez?

Este era o segundo casamento dele. Tinha dois filhos... um rapaz e uma rapariga do primeiro. Depois do divórcio, a ex. - mulher virou -os contra ele. Há pelo menos quinze anos que não os via, desde a adolescência deles. A coisa que mais temia, acho... era que eu pudesse virar a Sandi contra ele se nos divorciássemos.

Gostava de saber por que razão a Sandi achava que tinha de esconder o anel - inquiri.

Oiça, ela tem passado por uma data de problemas ultimamente.

Entre outras coisas, os miúdos na escola metem-se com ela desde que cortou o cabelo. Talvez isso tenha alguma coisa a ver.

Foi ela própria que o cortou?

Foi. Pegou na tesoura e... - A Sr.ª Coutinho fez uns gestos no ar de quem corta à toa. - A Sandi disse que queria ter um ar mais edgy.

Tive de ir ver o que queria dizer a porcaria da palavra no raio de um dicionário de inglês! Edgy! Já ouviu coisa mais estúpida?

Quando é que ela fez isso?

Há uns três meses. - Revirou os olhos. - E queria também pôr um piercing na língua, mas eu disse-lhe que nem pensar!

Passou-se alguma coisa de especial com ela por essa altura?

Como por exemplo?

Qualquer discussão mais dura consigo ou com o seu marido?

Não. A Sandi nunca foi de discussões, para dizer a verdade. Pelo menos há muito tempo. A técnica dela era dar uma boa facada bem funda até fazer sangue e depois afastar-se enquanto estávamos ainda em estado de choque.

Por acaso passou algum tempo longe de si, há uns três meses, quando poderia ter-lhe acontecido alguma coisa de grave?

Não.

Nenhuma viagem?

Bolas, o senhor realmente não larga, pois não? - perguntou.

Durante a Páscoa foi passar uns dias com o pai a casa do Jean perto de Paris. Ele tem uma casa enorme na Normandia. Lindíssima. Foi com duas amigas.

E correu tudo bem?

Divertiu-se imenso. Adora França... Prefere França a Portugal.

E quem não prefere? Este país é um beco sem saída para os miúdos da idade dela. - A Sr.ª Coutinho passou a mão pela cabeça a desfazer um nó no cabelo. - Tem filhos, Monroe?

Dois rapazes.

De que idade?

Sete e treze anos.

Ela soltou um assobio, como que de advertência.

Os rapazes são mais imaturos do que as raparigas, mas espere até o mais velho chegar aos quinze anos ou coisa assim. Nessa altura é que começa a ser difícil, a fazer coisas realmente loucas e a esquecer-se de falar consigo como deve ser. Em parte são coisas desta geração, ao que me dizem. Gostam de vampiros e do YouTube e de descarregar tretas da internet estilo Lady Gaga.

Depois de anunciar que estava com sede, conduziu-me de volta para a cozinha. Enquanto se servia de um sumo de laranja, peguei nos meus dois sacos de recolha de provas. Quando voltámos a sentar-nos, mostrei -lhe o honeydripper.

Isto estava enfiado debaixo do lençol de cima da cama da sua filha - disse eu.

Gosta de doces. Herdou isso dos dois, de mim e do Pedro, por isso não posso negar a nossa culpa. - Levantou as duas mãos. - Estou pronta para as algemas, inspetor.

Onde é que ela arranjou isto? Nunca vi uma coisa destas em Portugal.

Em Nova Iorque, no verão passado. Passámos lá uns dias.

Tirei a faca do outro saco.

E isto estava debaixo da cama. Faz alguma ideia de porque a teria ali?

Ela examinou-a com indiferença e deixou-a tombar em cima da mesa.

Não vejo o que isto poderá ter a ver com o assassinato do Pedro.

Mesmo assim, gostava de saber.

Juntou num montinho as migalhas de bolo espalhadas em cima da mesa enquanto pensava no que iria dizer.

É uma questão delicada. Por favor, não ponha isto em nenhum relatório oficial.

Tudo bem.

Quando, há oito meses, a Sandi teve o período pela primeira vez, ficou assustada com o sangue. - Recostou-se na cadeira, cruzando os braços em cima do peito como que para se lembrar da necessidade de ser cautelosa. - A pobre da miúda tinha pesadelos... Monstros que se esgueiravam para dentro de casa para me perseguirem a mim, ao Pedro e a ela. O psicólogo disse-nos que todos estes programas de televisão e filmes com raparigas perseguidas, atormentadas por psicopatas, criaram uma espécie de síndroma. Hoje em dia, algumas raparigas vivem num constante estado de medo. É uma loucura. Enfim, quando os pesadelos começaram, a Sandi disse-me que queria ter uma faca junto dela na cama. Odiei a ideia, mas psi disse que não fazia mal… era uma espécie de escape provisório.

Ela alguma vez lhe disse que uma pessoa real a ameaçava?

Não.

Há quanto tempo anda ela na terapia?

A Sr.ª Coutinho afastou o olhar enquanto fazia o cálculo.

Há quase dois meses.

Tem a certeza de que ninguém lhe fez mal antes disso... Fisicamente, quero eu dizer? Talvez na escola. Algum miúdo que andasse a meter-se com ela. Ou algum professor.

Ela diria alguma coisa. Pelo menos ao pai. Ele teria tratado disso. Era muito bom a tratar desse género de coisas - acrescentou acintosamente.

Só para ter a certeza, importa-se de lhe perguntar?

Claro, mas não se esqueça de que, sempre que eu procuro ter uma conversa séria, ela me olha fixamente e faz de conta que escreve num teclado. É o que chama «fazer delete»,

Isso parece-me um pouco...

Desnecessário? - interrompeu. - E cruel? - Riu-se amargamente

O objetivo é esse, Monroe. Perguntou porque é que ela precisava de pedir desculpa ao Pedro. A razão é essa... Ela «deletou-o» bastante nos últimos tempos. E a mim também. - Levantou-se de um salto, abriu o frigorífico e tirou uma maçã. - Oiça - disse ela, acenando a maçã na minha direção -, sei que o senhor quer que eu esteja muito preocupada com o que a Sandi está a passar neste momento, e preocupo-me, mas também preciso de um ou dois dias para mim, só para ficar ligeiramente doida. - Bateu com a porta do frigorífico e deu-lhe um pontapé com força.

Imaginei a filha dela estendida na cama, às escuras, apertando a faca na mão.

É mau sinal a Sandi ter escondido o anel no quarto dela - disse-lhe.

Deu uma grande dentada na maçã, com determinação.

Porque diz isso, inspetor?

Porque isso significa que quem quer que seja que ela temia não respeita os limites normais nem fronteiras. Não havia nenhum lugar seguro. Pelo menos, a Sandi pensava que não.

Então por que raio não me disse nada, nem a mim nem ao Pedro?

Começo a ter a impressão de que isso tinha a ver com a outra vida do seu marido... com as amantes dele. E ela não podia conversar sobre isso com nenhum de vocês.

E isso é importante para este caso porque...?

E se a pessoa que ameaçava a Sandi for a mesma que matou o seu marido?

Ninguém podia ameaçar a Sandi aqui nesta casa. É impossível.

A senhora também disse que não era possível que Morel tivesse estado em Lisboa ontem.

Fixou-me como se eu a tivesse traído.

Os pais nunca sabem de tudo o que se passa com os filhos - disse eu. - E se a amante do Pedro fosse casada? Talvez o marido tenha ameaçado o Pedro quando a Sandi estava com ele. Ou talvez ela tivesse deixado claro que não queria a Sandi por perto.

Pode ser que sim, mas isso...

O anel era um presente do seu marido? - interrompi.

Era. O Pedro deu-lho quando ela fez doze anos.

A Sandi estava a guardar uma coisa que ele lhe dera num sítio ultrasseguro. Talvez estivesse a tentar garantir a segurança do pai. As crianças pensam assim... de forma mágica. Vou precisar de lhe fazer umas perguntas.

A dona da casa pegou-me na mão.

Por favor - sussurrou -, dê à Sandi uns dois dias para fazer o luto sem ter de responder a perguntas.

Cheguei à conclusão de que é sempre melhor interrogar logo os familiares da vítima.

Eu conheço a minha filha, inspetor. Se a interrogar agora, vai fazer com que ela se feche cada vez mais. Não lhe arranca nem uma palavra.

Senti o apelo à minha empatia, mas sabia também que estaria a estabelecer um mau precedente caso deixasse a Sr.ª Coutinho ditar o ritmo da minha investigação.

A que horas costuma ela levantar-se?

Por volta das oito.

Amanhã às nove e meia venho cá para falar com ela, mas prometo não a pressionar. Mais tarde, virá cá um técnico do laboratório para falar com Morel e recolher uma amostra de ADN. Mas ele liga-lhe antes de vir.

Muito bem. Obrigada.

Outra coisa, queria que a Sandi não dormisse no quarto dela. Descobri uma mancha que pode ser sangue num dos peluches e, até ter a certeza de quem é, preferia que ela dormisse consigo ou noutro quarto.

Está bem, eu digo-lhe.

E nenhuma de vocês deve tocar em nada na biblioteca nem na sala de estar. Se acha que não conseguirão respeitar isso, não poderei deixá-las cá ficar.

Não há problema.

Escrevi o meu número de telefone nas costas de um dos meus cartões de visita, para a Sr.ª Coutinho me poder ligar quando se sentisse preparada para ver o corpo do marido. Depois de lho entregar, estendi-lhe os brincos de volta, mas ela fechou o meu punho em redor deles e disse:

Se apanhar o assassino, ofereço-lhe também o desenho do Almeida.

Na sua letra laboriosa, de quem já bebeu bastante, escreveu então uma lista dos amigos e colegas de trabalho que tinham vindo a casa deles nos últimos meses, embora continuasse a negar que algum tivesse ameaçado Sandi. Ao todo, havia dezassete visitantes, incluindo MoreI. Susana consultou a agenda e descobriu que em maio tinha dormido fora em duas ocasiões durante viagens de negócios do marido.

Ao reler as minhas notas uma última vez, redescobri o críptico comentário que Sandi me fizera: «Quem leva uma coisa, tem de deixar outra em seu lugar.» Quando perguntei à Sr.ª Coutinho que significado poderia ter a frase, em especial para a filha, ela respondeu que não fazia ideia. Perguntei -lhe se a filha alguma vez tinha sido apanhada a roubar alguma coisa dos pais ou de alguém na escola, mas ela limitou-se a revirar os olhos como se eu não regulasse bem.

Não é o estilo dela, Monroe. Pode ser incrivelmente malcriada, mas não é ladra!

Disse-lhe que não tinha mais nenhuma pergunta por agora e que eram horas de ir embora, mas ela pediu:

Não, por favor, preciso que me diga como é que o assassino atingiu o Pedro... antes de o ir ver. Quero estar preparada. - A minha hesitação deve ter-se notado, pois acrescentou: - Eu aguento.

Sentei-me com ela à mesa da cozinha.

O seu marido foi manietado e amordaçado - comecei. - Infelizmente, a mordaça estava tão apertada que ele ficou sem conseguir respirar. E...

Enquanto lhe contava o que o assassino fizera ao marido, ela manteve-se virada para a parede, as mãos enclavinhadas no regaço, os olhos baços, absorta na imensa dimensão daquela morte. E convencida - pareceu-me - de que isso seria a pior coisa que poderia acontecer-lhe. No entanto, pensando agora nisso, pode até ser que já tivesse apreendido um relance de algo muito pior que estava para vir.

 

Parecia possível que Coutinho tivesse discutido as suas conquistas sexuais com Rui Sottomayor, seu amigo de infância e contabilista; por isso, quando seguia de táxi para casa, decidi ligar-lhe. Foi então que ele ouviu pela primeira vez a notícia da morte do velho amigo e, numa voz entrecortada, me disse que tinha de me ligar a seguir. Quando telefonou, explicou me que Coutinho nunca lhe dissera quem eram as suas amantes e que não lhe parecera que estivesse mal da última vez que tinham falado, dois dias antes, na quarta-feira. Sottomayor negou saber fosse o que fosse sobre subornos que a vítima pudesse ter pago. Quando o informei - exagerando um pouco - que Susana Coutinho me garantira que ele me daria nomes e números, disse-me friamente: «Receio bem que ela tenha sobrevalorizado a minha intimidade com os negócios do marido.»

Para o pressionar, pedi-lhe para estar no meu gabinete na segunda-feira às dez da manhã em ponto e se preparar para um interrogatório pormenorizado. Calculei que, se passasse o fim de semana preocupado, me daria o nome de pelo menos algum funcionário menos importante que Coutinho tivesse subornado, e eu pudesse a partir daí ir subindo os escalões.

A seguir telefonei para o inspetor Quintela e depois para Fonseca e Luci. Quintela disse-me que enviara havia duas horas a Bruno Cerveira do Ministério Público o nosso relatório sobre o assassinato. Fonseca concordou em passar pela casa da Sr.ª Coutinho no dia seguinte para colher uma amostra do ADN de MoreI. No entanto, já sabia que a mancha no panda de peluche de Sandra era realmente de sangue e que não era da vítima. Por insistência minha, prometeu ter todas as provas examinadas a meio da tarde de segunda-feira. Luci disse-me que Morel apanhara realmente o voo da TAP de Lisboa para Paris, tal como dissera. Tinha também confirmado que Morel ligara para o telemóvel da vítima duas vezes nesse dia, tal como também dissera. No dia seguinte eu tinha de ficar com os meus filhos durante a tarde, enquanto Ana estava na galeria. Por isso, Luci concordou em ir ela a casa da Sr.ª Coutinho ao princípio da tarde para interrogar Morel, coordenando a hora da sua visita com a de Fonseca. Estivemos a ver o que ela devia perguntar ao francês, repetindo tudo umas duas vezes, pois estava muito nervosa com o seu primeiro interrogatório a solo. A seguir falei com David Zydowicz, que confirmou que Coutinho morrera asfixiado. Precisou que o falecimento ocorrera entre as nove e as onze horas do dia anterior. A bala tinha entrado pela barriga e saído pelas costas sem atingir nenhum órgão vital. A ferida profunda no peito fora causada por um pontapé tão violento que lhe fraturara uma costela. A contusão nas costas indicava que o assassino o tinha pisado, comprimindo-o de cara para baixo contra o tapete da sala; havia uma fibra branca do tapete presa entre as pestanas do olho direito. David prometeu fazer uma autópsia completa logo no princípio da manhã seguinte, mas não esperava encontrar mais nada de interessante.

Tinha deixado para o fim a chamada que mais temia e fiz a ligação mal o táxi me deixou à porta de casa. Vaz disse-me que só me podia dar a marca dos ténis que deixaram a pegada na camisa da vítima na tarde de terça-feira. O seu tom gélido mostrava claramente que tinha recuperado toda a sua má vontade contra mim, maldosa e sem sentido.

Fui invadido por uma sensação aguda de tremenda tristeza, de vazio, ao entrar no prédio onde morava. Sentia a cabeça como que envolta numa espessa camada de vidro; tinha tomado Valium a mais.

Sentei-me nas escadas gastas, uma mão a tapar a boca, na esperança de que nenhum dos meus vizinhos me ouvisse a cair numa tristeza despropositada. Lembrando-me dos olhos baços, sem vida, de Moura, pensei: «Abriu-se em mim uma fenda no momento em que ele morreu.»

Quando me levantei, antecipei a gélida reação de Ana quando lhe dissesse que ia dedicar umas horas ao caso no dia seguinte; depois de ver o meu ordenado cortado pelo governo no outono de 2011, fizera-me prometer que deixaria de trabalhar aos fins de semana.

Quando finalmente consegui subir as escadas, a nossa porta de entrada pareceu-me um adereço cénico, tal como tudo o que me esperava do outro lado - para o marido e o pai que eu aprendera a ser - me parecia fingido.

Mal entrei, Jorge, o meu filho de sete anos, correu para mim, cantando em altos berros a canção da série American Dad: - «Gee, it's good to say, good morning U.S.A!»

Desde que uns meses antes percebera que eu tinha passado a infância no Colorado, ficava deliciado com qualquer referência à América, mesmo nos desenhos animados.

Jorge atirou-se contra a minha barriga; adora sentir o impacto. Eu provavelmente também adoraria se tivesse menos de um metro. Quase sem fôlego, envolvendo nos meus braços a sua agilidade de colibri, sentia-me como que salvo de um perigo. Por um breve momento de revelação, apercebi-me de como este seu pequeno corpo ia ganhando forma por uma imparável vontade de crescer.

Estava descalço, pois não permitimos sapatos dentro de casa, e tinha o dedo grande do pé pintado às riscas vermelhas, brancas e azuis.

Belo desenho! - disse eu, apontando o pé.

Foi a mamã que fez!

Ana estava debruçada sobre o computador à secretária, na sala de estar, num estilo sexy e descuidado, com a camisola interior cor-de-rosa vivo sem mangas e calças de treino cinzentas, muito concentrada, um lápis amarelo aferrado nos dentes. Atara o cabelo castanho num rabo de cavalo, exceto a madeixa púrpura que tinha tingido no dia do seu quadragésimo aniversário e que sempre deixava solta sobre a orelha esquerda.

Eu sabia que estava proibido de a interromper, e Jorge também, por isso ficámos os dois de mãos dadas à espera. Quando ele começou a contorcer-se, pedi-lhe para, por favor, não fazer xixi nas calças, e ele correu para a casa de banho. Ana chamou-me com um aceno.

O toque das suas mãos e dos lábios trazia-me sentimentos de gratidão de tal modo irresistíveis que não havia em mim defesa contra eles. E, de um momento para o outro, a minha vida parecia ser novamente minha.

Vou já tratar do esparguete - disse ela. - A sopa de castanhas já está pronta.

Sopa de castanhas?

É do Leonardo.

Tens a certeza de que é comestível? - perguntei, fazendo uma careta de gárgula para reforçar o efeito cómico; ultimamente, Ana andava a experimentar algumas receitas dos Cadernos de Cozinha de Leonardo da Vinci e a sua tentativa anterior - sopa de limão e laranja - tinha deixado toda a gente derreada, com exceção de Jorge, que lhe adicionara uma colher de mel bem cheia e a sorvera como uma verdadeira sobremesa líquida.

Não comeces! - advertiu-me com um dedo ameaçador; mostrar-se indignada era o papel que desempenhava no nosso número privado de teatro cómico. - Que horas são? - perguntou. Consultei o relógio.

Quase sete. Então, como vai a escrita? – perguntei; A Ana estava no terceiro ano da sua tese de doutoramento sobre violência contra os transsexuais.

Falei hoje ao telefone com a Gena - respondeu ela.

Gena tinha nascido homem em Pistoia, Itália, em 1972, embora tivesse crescido em Miami, e fora espancada quase até à morte em Brooklyn uns meses antes, por dois homens que a atacaram quando ia para a Biblioteca Pública.

Está melhor? - perguntei.

Está e acabou de ir à Florida fazer uma visita aos pais pela primeira vez desde a agressão. Não a convidaram para ficar em casa deles e por isso teve de ir dormir a um motel.

Não sei porque ainda tenta convencê-los a aceitá-la como é.

Nem ela sabe! - Ana virou a cabeça para trás e lançou-me um olhar cético. - Não me pareces muito mal - observou.

A maior parte das pessoas é boa a fingir-se de doente; eu sou bom a fingir que estou bem.

Desfiz-lhe o rabo de cavalo e aproximei o cabelo de modo a respirar a sua fragrância quente. Ela afastou-me gentilmente com a mão.

OK, deixe-me só rever mais um bocadinho e depois pode cheirar tudo que quiser, senhor inspetor-chefe.

Fui dar com Jorge a acabar a função na casa de banho. Impaciente por me falar da aula de desenho na escola, virou-se demasiado depressa e regou a parede e a bainha das minhas calças com um último arco caprichoso.

Aguente isso aí, senhor bombeiro! - exclamei. Fi-lo girar de volta para que o jato acertasse na sanita e depois entrelacei o meu próprio jato no dele, o que o deixou a rir-se. Instantes depois, enquanto eu limpava o xixi do chão com papel higiénico, ele voltou a correr à casa de banho para me mostrar o desenho que fizera nessa tarde: três casas, todas inclinadas para a esquerda, como sempre, como se fortes rajadas de vento lhe soprassem dentro da cabeça. E todas sem telhado. A minha preferida era uma com o que parecia uma raposa com um enorme chapéu de cowboy à porta. - Quem é a raposa? - perguntei.

A quê?

A raposa - repeti, usando a palavra portuguesa; o meu filho conhece melhor os nomes dos animais em português.

Não é uma raposa! É o Ernie! - disse-me, como se tal coisa fosse óbvia. Será que já tinha percebido que o meu irmão de mais de um metro e oitenta era no íntimo uma astuta criaturinha da floresta?

Lavei a cara com água fria e tirei a gravata de cordão e o relógio de pulso. Em cima da mesa de jantar, tinha à minha espera uma carta de recusa de uma das vinte e uma galerias de arte portuguesas a quem enviara fotografias das pinturas do meu irmão dois meses antes. Amachuquei-a numa bola e deitei-a ao lixo.

No andar de cima, vesti uns boxers. Dei com Nati estendido em cima da cama de barriga para baixo, lendo um velho livro, sem nada vestido tirando os boxers com as figuras do Coiote dos desenhos animados do Bip Bip que lhe tinha comprado quando ele fizera treze anos. A ventoinha em cima da cómoda levantava-lhe as mechas compridas como chicotes do sedoso cabelo castanho, que lhe caíam para a testa, mas parecia nem dar por isso. Dava a impressão de um rapaz numa solene viagem rumo a si próprio.

Assim que me ouviu, fechou o livro que estava a ler com um gesto brusco.

Pornografia? – perguntei.

Nati revirou os olhos.

Não tens piada nenhuma, pai.

Claro, mas não desarrumes nada.

Havia canetas de feltro de todas as cores do arco- íris espalhadas pelo tapete, o cobertor estava enrolado no chão e via-se um caroço de maçã em cima da almofada, mas o que ele dissera não era uma piada.

Um mau dia? - perguntou, quando me sentei, virando-se de lado para me olhar de frente e apoiando a cara na mão.

Um dia em cheio: um suicídio e um assassinato e, para completar a dose, uma miúda que andam a assediar. E tu, que tal? A avó Vera cometeu algum crime contra a humanidade hoje? Quase. Levou-nos ao Museu Gulbenkian e fingiu que estava a ter um desmaio por causa do calor para não termos de esperar na fila.

Nati imitou a avó, completando com uma mão tremente sobre o peito resfolegante. Falou usando o forte sotaque dela, que tornava quase indecifrável o seu português; ela e o marido tinham emigrado de Buenos Aires para Portugal em 1978. Ana tinha nessa altura oito anos. Tiveste direito à musse de abacate? - perguntei .

Duas doses. E nem te atrevas a contar á mãe!

Era outra das nossas piadas habituais: que Ana tentava limitar o nosso consumo de doces e que nós tínhamos de os sacar às escondidas.

A musse de abacate na cafetaria da Gulbenkian era o número um na nossa lista de sobremesas favoritas em Lisboa.

Deitei a cabeça ao lado da de Nati e resisti ao impulso de lhe dar um beijo, sabendo como ele ultimamente se mostrava melindroso com as manifestações de afeição física. Era tranquilizante sentir o seu hálito:

Nathaniel John Monroe, o rapaz que fizera de mim pai. Sempre nos entendemos bem, os dois, e, mesmo quando discutíamos - o que nos últimos tempos era bastante frequente -, nunca me pareceu que tivéssemos esquecido que pertencíamos à mesma equipa. Ilusão ou milagre?

Pôs-se a puxar-me os pelos das sobrancelhas. Gostava de ver como alguns brancos nasciam entre os outros castanhos. Eu imaginava-me um bichinho entregue aos seus cuidados, o que fez surgir a questão: seria uma coisa aborrecida ou maravilhosa reincarnar como hamster? Decidi fazer-lhe a pergunta.

Uma alta chatice - replicou com autoridade. - A Binky uma vez teve um porquinho-da-índia. A única coisa que ele fazia era comer e andar a cheirar tudo em volta e a largar cocós por todo o lado na gaiola. E só durou um ano. Com os hamsters deve ser a mesma coisa.

A Binky era a melhor amiga de Nati. Os pais dela eram de Goa.

Ouve, Nati, o nariz de um hamster é não sei quantas vezes mais sensível do que o nosso - fiz-lhe notar. - Cada segundo que passa oferece-lhe um universo de cheiros dignos de investigação.

Já percebeste que quando falas de animais pareces um manual escolar?

Um dia tenho de te levar ao Colorado... para veres os esquilos e os cães da pradaria e as águias. E os perus! Só os perus selvagens valem a viagem. - Comecei a imitar o grugulejar irritante que os filhotes dos perus fazem. Ser tocado por Nati pode deixar-me um bocado pateta.

Queres uma massagem nas costas, não é? - perguntou.

Não tinha sido essa a minha intenção, mas aceitei gratamente. Enquanto despia a camisa, ele pôs o livro em cima da mesinha de cabeceira com a capa para baixo, mas vi que era um romance que eu lhe recomendara cerca de um ano antes, Moby Dick. O ter de espreitar o título do livro fez- me sentir em casa; a minha mãe também era uma leitora discreta.

Nati colocou-se rapidamente atrás de mim e massajou-me os ombros. As aulas de ténis tinham-lhe dado umas mãos fortes. Cerrando os olhos com um suspiro de satisfação, lembrei-me dele quando recém-nascido, a dormitar de cara encostada à minha barriga. A confiança do meu filho em mim - muito embora a sua nua e perfeita fragilidade ­ significava que eu chegara à linha da meta de uma corrida em que participava há quase trinta anos. Podia finalmente parar de correr.

Achas que um dia te há de apetecer carregar na tecla delete de cada vez que me vires? - perguntei.

Que conversa é essa?

A filha do homem que foi assassinado carrega numa tecla de delete imaginária sempre que a mãe tenta falar com ela - expliquei.

Não prometo nada, pai, mas farei o possível por não te apagar diante de outras pessoas – disse ele laconicamente.

Muito simpático da tua parte - respondi em tom sarcástico, mas sabendo muito bem que só me podia censurar a mim próprio pelo seu sentido de humor. - Alguma vez viste um panda de peluche com uns grandes olhos azuis e um ar vagamente japonês? - perguntei. - Havia um assim no local do crime.

Não, mas posso ver no Google daqui a bocado, se quiseres.

E por que razão haveria uma miúda de catorze anos realmente bonita de cortar o cabelo para se parecer com um rapaz?

A filha da vítima outra vez? - perguntou.

Respondi com um «sim» gemido, enquanto ele carregava com força nos nós que eu tinha nos ombros.

Talvez seja fufa - disse ele prazenteiro.

Estávamos a falar em inglês, como sempre faço quando estou sozinho com os meus filhos, mas Nati usou o calão português. Voltei-me e lancei-lhe um olhar interrogativo.

Nos dias que correm, há uma data de lésbicas na televisão, e tu de vez em quando deixas-me ver - informou-me em tom de vítima. Ultimamente, nunca perdia uma oportunidade de se queixar por ele e o irmão mais novo não poderem ver televisão durante a semana. Era uma regra que tínhamos adotado no ano anterior, quando Jorge começou a repetir a todo o momento os slogans dos anúncios. E também porque todas as más notícias sobre a nossa economia tinham começado a deixar Ana em pânico ao ver os nossos rendimentos cada vez mais reduzidos.

As miúdas lésbicas nem sempre querem ter ar de rapaz - disse eu. - Isso é uma ideia feita.

Não, é um estereótipo - corrigiu ele.

Nati, por acaso já percebeste que há ocasiões em que podes estar a mostrar-te esperto de mais?

Revirou os olhos. Ouviu-se o aviso do relógio da cozinha e Jorge berrou «Pai!», como se eu tivesse ensurdecido nos últimos quinze minutos.

Estás capaz de acordar os mortos! - gritou-lhe Ana em resposta.

Voltei a vestir a camisa. Jorge subiu as escadas a correr e apareceu à porta, ofegante, com a camisa salpicada de molho de tomate. Estava nu da cintura para baixo. Infelizmente, Nati é completamente imune aos encantos de Peter Pan do irmão e disse:

Onde raio deixaste as calças, Dingo?

Chama-lhe Dingo, depois de ter concluído - acertadamente, receio bem - que o rapaz tinha tendência para comer como um cão selvagem.

Ficaram sujas - respondeu Jorge. Segurava firmemente a colher que a mãe pelos vistos lhe dera para provar o molho. - Jantar! - acrescentou quase sem fôlego.

Nati sentou-se.

Já tínhamos chegado a essa conclusão, meu cromo - disse ele.

Cala o bico! - gritou Jorge em resposta, e desataram os dois a chamar nomes um ao outro em português.

«Pelo menos os monstros que criei são bilingues», pensei.

Se vão brigar - disse, levantando-me de um salto -, então, é melhor irem buscar as luvas de boxe e venderem bilhetes, seus pataratas.

Pelo menos assim sempre posso ganhar uns patacos.

Desatei aos saltos como um canguru, desferindo murros imaginários contra Jorge, que correu de encontro à minha barriga. Nati fungou de desdém.

Papá, não te esforces tanto - disse ele, num tom de tal modo semelhante ao da mãe que me desatei a rir. Depois de eu ter posto Jorge às cavalitas nos ombros, Nati empurrou-nos para fora do quarto.

A seguir ao jantar, Jorge foi buscar o caderno de desenho, sentou-se nos meus joelhos e desenhou-me a mim e à mãe nas janelas dos seus fantásticos casarões sem telhado, inclinados para a esquerda. Às nove menos um quarto, despertei de uma breve soneca para dar com Nati a descer as escadas. Vestia uns jeans rasgados nos joelhos e a T-shirt azul com letras cor-de-rosa no peito dizendo «Las Rosas Flour Company» que encomendara pela internet e que vestia para as saídas importantes. Ia ao cinema com Binky e mais dois amigos. Quando Ana se recusou a autorizá-lo a chegar depois da meia-noite, Nati lançou-me um olhar franco, expectante, e foi nesse momento que compreendi que a massagem nas costas tinha por objetivo valer-lhe uma dispensa especial para essa noite.

Que ias fazer se fossem a algum lado a seguir ao cinema? - perguntei, ainda tão entorpecido por estar a dormitar que não pensei que isso pudesse acabar numa discussão.

Pensamos ir dar uma volta pelo Bairro Alto.

A imagem do meu filho a entrar num bar escuro, barulhento e rançoso deu-me volta ao estômago. Pressentindo a derrota, Nati acrescentou logo:

É perfeitamente seguro, e vamos todos em grupo. Ou, se quiseres, podemos ir até outro sítio mais perto de casa.

Prefiro manter o contrato que fizemos - disse-lhe. - Quando fizeres quinze anos podes sair até depois da meia-noite... mas só em grupo.

Isso já foi há mais de um ano!

Tentei levá-lo pela razão, mas ele dizia que os meus argumentos eram «tretas» e «irrelevantes». Antes de eu ter conseguido pensar numa solução de compromisso, saiu disparado de casa para esperar pela mãe da Binky lá fora.

Levei Jorge para a cama. Enquanto o despia, ele cantava: «Sabe bem pagar tão pouco!», a canção de um anúncio dos supermercados Pingo Doce.

Um só anúncio por noite era um grande progresso; por isso, disse-lhe que estava a portar-se muito bem e tapei-o com os cobertores. Depois de verificar que a porta de entrada estava bem fechada, deixei-me cair exausto na cama. Ana estava quase a chegar ao fim de Casei com um comunista, de Philip Roth.

Gostava de ir ver o Ernie no fim de semana - disse-lhe, aconchegando a almofada. Senti que era o melhor momento para acrescentar que ia trabalhar no caso. Na manhã seguinte, mas não disse nada.

Então vai amanhã – propôs Ana – porque no domingo tenho o ceramista brasileiro da exposição que estamos a organizar e preciso de ti para o jantar que vamos ter com ele. Só fala de si próprio. Sozinha não poderia sobreviver.

Enrolei os pés nos dela, para lhe aquecer os dedos sempre frios.

Não te zangues, mas se calhar também vou ter de trabalhar umas horas no novo caso durante a manhã.

Ela lançou-me um olhar fulminante.

Como está o tempo aí na terra dos chalados?

Eu sei que não devia fazer horas extraordinárias, mas se tu visses a mulher e a filha do tipo que foi assassinado... - Expliquei-lhe como Sandi Coutinho me tinha parecido perturbada. Ana começou a franzir o sobrolho quando lhe contei que a rapariga desatara em altos guinchos, mas compreendi, depois de tantos anos juntos, que aquilo significava que a minha mulher já tinha cedido.

Depois perguntei:

Será que a tua mãe, ou o teu pai, poderá ficar com os miúdos umas horas amanhã...

Não. Vão ver uns amigos a Cascais. Eu posso ficar por aqui até um pouco antes do meio-dia, mas tens de estar em casa depois disso. E o King Kong e o Godzilla vão ter de ir contigo a casa do teu irmão.

Mas eu posso querer passar lá a noite.

Tudo bem, isso deixa-me uma noite livre das obrigações de esposa e mãe. Mas trata de estar de volta durante a tarde de domingo.

Precisas de uma noite livre? - perguntei-lhe, ofendido.

Ela lançou-me um olhar cético, depois beijou-me na testa para suavizar o que diria a seguir. Estás a tentar dizer-me que não precisas de uma noite livre das obrigações de marido e de pai de vez em quando?

Exatamente, é isso mesmo que estou a dizer.

Ana revirou os olhos porque sabia que eu estava a mentir e voltou à sua leitura. Passei-lhe a mão pela curva da anca e ao longo da perna, pondo à prova a imagem que tinha dela na minha memória. Parecia-me sempre mais elegante do que me lembrava.

Ana...? - disse eu, para lhe chamar a atenção.

O que é?

Ficaste perturbada da primeira vez que tiveste a menstruação? - Ela poisou o livro e fitou-me com um olhar interrogativo; por isso, acrescentei: - Preciso de o saber por causa da filha da vítima do crime.

Acredite ou não, senhor inspetor-chefe, ver sangue correr por entre as pernas não é propriamente a coisa mais divertida que há. Se acontecesse aos homens, de certeza que já havia enciclopédias escritas sobre o mais ínfimo aspeto da coisa.

Pois - disse eu, momentaneamente desinteressado nas ramificações feministas da minha pista de investigação. - Falaste sobre isso com a tua mãe? - perguntei.

Ana deu uma fungadela sarcástica.

Estás maluco? A minha mãe nunca falou comigo sobre nada que tivesse a ver com sexo! Vai fazer sessenta e oito anos em outubro e tenho a certeza de que ela ainda não deu sequer uma boa olhadela à sua própria vagina. As mulheres judias argentinas da sua geração não faziam isso.

Bem, esperemos que o teu pai tenha tido alguma ocasião de ver isso de perto!

A piada valeu-me uma boa gargalhada de Ana, o que me fez sentir melhor quanto à sua necessidade de se ver livre de mim e dos miúdos de vez em quando.

Como chegaste à conclusão de que era uma coisa perfeitamente normal? - quis eu saber.

Perguntei a algumas amigas mais velhas. Elas explicaram-me o funcionamento dos ovários. Uma delas até me fez um desenho de uma vagina, para o caso de alguma vez surgir ocasião para eu usar a minha. O clítoris tinha o aspeto de um quiabo. Fiquei horrorizada!

Passei-lhe suavemente a mão pelo rabo. Ela não se importou. Era uma permanente surpresa - e fonte de gratidão - que me deixasse tocá-la onde me apetecesse.

Agarrou-me o pénis com uma mão e fixou-me intencionalmente, mas com todo o Valium que tinha tomado não ia conseguir ficar com pau.

Desculpa, estou que não me aguento - disse eu.

Às vezes há surpresas; por isso, vou continuar mais um bocadinho, se não te importas - disse ela.

Mi casa es su casa.

Enquanto ela me massajava com a mão, eu ia-lhe contando como Sandra Coutinho ficara assustada com o período e escondera as cuequinhas ensanguentadas numa das pernas das calças.

Talvez não quisesse que os pais soubessem que lhe tinha chegado o período – sugeriu Ana.

E isso podia levá-la a querer parecer-se com um rapaz? Quer dizer, ela cortou o cabelo a si própria e ficou curtíssimo. Mesmo com mau aspeto.

Talvez ande a pensar noutras raparigas.

Foi o que o Nati disse. Mas a questão é que a Sandra Coutinho tem só catorze anos.

Hoje em dia os miúdos pensam nesse tipo de coisas mais cedo.

Ou talvez estivesse simplesmente farta dos cabelos compridos. - Deu um apertão à minha pila. Às vezes um charuto é apenas um charuto,

Dr. Freud.

E um boneco de peluche é sempre apenas um boneco de peluche?

Não estou a perceber.

Havia sangue num panda de peluche que encontrei na cama dela.

A miúda pô-lo entre as pernas quando estava menstruada e apertou-o - disse Ana, num tom de quem sabe do que fala.

-Costumavas fazer isso?

Eu era uma miúda muito prática, usava uma toalha. Um boneco de peluche é muito mais difícil de lavar sem estragar.

Então talvez ela quisesse que os pais reparassem que o panda tinha ficado sujo.

É possível. - Largou-me e voltou a pegar no livro. Ao voltar uma página, caiu uma flor seca. Ana estendeu-ma, e eu juntei-a a um pequeno monte que já tinha em cima da minha mesinha de cabeceira. Era uma espora brava, com a sua cor púrpura descorada para um azul- pálido.

Ernie enfiava sempre flores entre as páginas dos livros que nos oferecia.

Nunca sabíamos quando um hibisco amarelo fino como papel se iria despegar de um livro de história ou uma flor de jasmim de algum romance do século XIX.

Abri Deaf People in Hitler's Europe; o meu último projeto de leitura era sobre a guerra dos nazis contra as pessoas com deficiência. Mas não li muito até Jorge me ocupar por inteiro o espírito. Ultimamente andava a pensar que ele poderia revelar-se gay. Como o tio. Se é que Ernie o era realmente, pois não tinha a certeza de que ele alguma vez tivesse tido relações sexuais. A conclusão a que antes tinha chegado e a que agora voltava a chegar era que não queria que o meu filho tivesse muita pressa de crescer.

Daí a pouco Ana apagou a luz do candeeiro de leitura. Não valia a pena esforçar-me por adormecer antes de Nati chegar a casa; por isso, desci as escadas em bicos de pés e fiquei a ver um jogo de basebol na ESPN. Será que rebater bolas nos Milwaukee Brewers alguma vez me tinha surgido como o futuro que desejava para mim?

O jogo não me conseguia prender a atenção. Levei o portátil para a mesa de jantar e liguei a pen que trouxera de casa de Coutinho. Tinha apenas uma pasta, «Férias de Natal». Lá dentro havia doze ficheiros:

Phu Ket 2011, Londres 2010, Nova Iorque 2009, Egito 2008, Cabo Verde 2007, Brasil 2006, Japão 2005, Vietname 2004, Califórnia 2003, Itália 2002, Praga 2001, St. Barth's 2000.

Comecei à cata de informações sobre os subornos de Coutinho no ficheiro de «Phu Ket», mas depois de hora e meia cheguei à conclusão de que só havia, neste e nos outros onze ficheiros, a habitual miscelânea de nos deixar a dormir em pé de retratos em pose e fotografias turísticas estilo postal ilustrado.

Só retive duas fotografias. A mais antiga tinha sido tirada no Japão em 2005 e mostrava a vítima inclinada sobre uma grande folha de papel azul, desferindo uma longa pincelada sobre a sua superfície. Devido à exposição lenta, o pincel de bambu tinha o aspeto de um leque desdo­ brando-se, e os olhos de Coutinho estavam tão intensamente focados no trabalho que, se a vida fosse uma banda desenhada, e não o que é, haveria dois raios laser a sair-lhe dos olhos.

A outra fotografia fora tirada em Trafalgar Square em 2010; Susana estava envolta num voluptuoso casaco de peles branco, com uma gola preta espetacularmente decotada. O seu sorriso ostensivo, de gatinha sensual, parecia demasiado ensaiado e falso. Pedro exibia um chapéu de feltro preto cingido por uma faixa verde-esmeralda e fumava um charuto gargantuesco. Teriam eles discutido antes de tirarem a fotografia?

Havia nos olhos dele uma cintilação de malícia efervescente. Tinham o ar de um AI Capone furioso e uma matrona armada em coelhinha da Playboy.

Se fora Sandi a tirar a fotografia, então, tinha um excelente olho para o macabro - uma Diane Arbus em botão. Muito provavelmente queria expor o que um casamento falhado fizera dos seus pais. Ou talvez tivesse descartado dezenas de outras oportunidades de documentar o declínio da sua família antes de se permitir tirar esta fotografia.

É possível que tivesse passado anos a fazer o melhor que podia para não quebrar o encanto.

Ouvi a chave do meu filho a rodar na fechadura enquanto eu observava uma versão de Coutinho e da mulher muito mais novos num refúgio à sombra de palmeiras em St. Barths, Era do Natal de 2000.

Sandra seria uma pequena Buda rechonchuda e Susana uma jovem mãe linda de morrer.

Nati entrou em casa aos tropeções, exatamente à meia-noite e vinte e um minutos e a cheirar ligeiramente a cerveja, mas não lhe disse nada por chegar tarde nem por possivelmente ter sido seduzido por uma Super Bock. Guiei-o até às escadas em espiral.

Louis Vuitton - disse ele quando começou a subir.

Como?

O designer de malas. O teu panda é dele. É um objeto de coleção.

Por isso, se puderes, fica com ele. Eu vendo-o por ti no eBay e dividimos o lucro a meias. Obrigado, fico com ele assim que os tipos do laboratório já não precisarem dele.

Seria possível que Sandra tivesse decidido dar cabo do seu peluche mais valioso como maneira de se certificar de que os pais iriam reparar até que ponto estava perturbada?

Quando disse a Nati que íamos visitar o meu irmão no dia seguinte e passar lá a noite, estava à espera de que ele refilasse, mas limitou-se a acenar com a mão a mostrar que tinha ouvido e continuou a subir em direção ao seu quarto. Adormeci pouco depois de voltar para a cama, mas acordei às quatro da manhã no quarto de Jorge. Estava sentado na espreguiçadeira para onde ele atirara as roupas sujas. Tinha em cima dos joelhos uma vela acesa no castiçal em forma de estrela que herdara da minha tia Olívia. O portátil estava no chão, a meu lado.

Na minha mão, G tinha desenhado um apertado círculo de estrelas protetoras à volta de duas penas e escrevera: «H - Nunca fez mal nenhum confirmar que estão sãos e salvos.»

 

Recordo a primeira prova do meu pai como se uma porta se tivesse fechado com força atrás de mim no momento em que ele me arrancou da cama. De facto, era capaz de apostar que foi então que comecei a separar-me de mim próprio, se bem que Gabriel só me tenha escrito a sua primeira mensagem seis meses mais tarde. Da maneira como vejo as coisas, deve levar algum tempo a que uma segunda pessoa ganhe vida dentro de nós.

Foi num sábado, dia 4 de junho de 1978. Acordei no escuro, sentindo que me aferravam a boca pesadamente. Sem poder respirar, esbracejei e debati-me contra o que me parecia uma parede acolchoada.

O riso profundo do meu pai fez- me estremecer e senti a sua mão enorme largar-me. Sentei-me, respirando com sofreguidão.

A cabeça do meu pai inclinou-se para mim.

Tens de estar pronto para tudo, meu filho!

O seu sussurro esponjoso, embebido em rum, parecia-me o início de uma doença séria.

Sim, pai - respondi, ainda respirando a custo.

Ele acendeu a luz com um gesto rápido. Vestia uma T-shirt branca e uns jeans deslavados. Esticou os braços atrás das costas e inclinou-se para diante - um ritual matinal. Tinha aprendido ioga no tempo em que estudava Engenharia na universidade de Wisconsin. Ainda então continuava a fazer o pino antes do pequeno-almoço. A inversão do fluxo sanguíneo mantinha-o vigilante, dizia.

Filho, nunca se sabe quem nos pode apanhar desprevenidos - explicava-me então como se isso fosse uma grande verdade protetora, mas o que dizia não fazia sentido; os nossos vizinhos mais próximos, os Johnsons, viviam a quase um quilómetro de distância e tinham oitenta e tal anos.

Eu fizera oito anos havia pouco, mas sabia já que faltava ao meu pai alguma coisa de importante, embora não fizesse ideia do que pudesse ser. Não era evidente - como o facto de Ernie não conseguir pronunciar o seu próprio nome, dizia «Eeenie», ou de a minha mãe passar o dia todo sem se vestir. A certa altura da minha infância, acabei por acreditar que, por mais tempo que vivesse, nunca viria a compreender tão pouco de qualquer pessoa ou de qualquer coisa como aquilo que compreendia do meu pai.

A cama do meu irmão estava vazia; o cobertor, no chão. Senti um aperto ao ver que ele tinha desaparecido e que a cama estava naquele estado - o género de pavor que nos dá volta às tripas, como quando percebemos que o professor nos vai chamar na aula e não sabemos a resposta ou nos esquecemos de fazer os trabalhos de casa.

Onde está o Ernie? - perguntei.

À nossa espera. Vá lá, levanta-te! - disse ele, batendo na minha almofada.

Estou com muito sono - respondi, fazendo a minha voz soar sonolenta; havia alturas em que o meu pai podia mostrar-se calmo e compreensivo. Porém, se as minhas teorias sobre ele são corretas, tratava-se apenas de uma imitação do comportamento generoso que observava nos outros.

Talvez fosse essa a razão por que se casara com a minha mãe, no fundo; para ter alguém que pudesse estudar de perto - de maneira a perceber como se comportavam as pessoas normais. Posso facilmente imaginá-lo, por exemplo, a ensaiar o modo como havia de me sorrirem frente a um espelho, horas a fio, até atingir uma imitação perfeita da cintilante afeição nos olhos dela.

Toca a levantar, seu mandrião! - ordenou.

Enquanto passava as pernas para fora da cama para me levantar, a minha confusão parecia-me uma coisa viva, perseguindo a própria cauda. Na verdade, nunca obtive resposta às minhas perguntas mais importantes sobre como era possível que tudo fosse tão difícil.

Hoje penso que faltava ao meu pai a imaginação para sentir o que os outros sentiam. A minha mãe, Ernie e eu éramos para ele meros adereços de palco - todos o eram -, e a única razão por que por vezes nos achava quase tão interessantes como a sua coleção de discos, ou o seu velho Plymouth, era porque podia fazer com que nós - e não essas coisas - chorássemos ou sorríssemos ou lhe implorássemos que parasse.

Hank, não podes estar assim com tanto sono - disse o meu pai.

Dormiste pelo menos oito horas. - Eu percebia pelos olhos dele, arregalados e dardejantes, como se estivesse lançado num plano secreto, que tinha tomado comprimidos para aguentar a ressaca.

Nessa altura, já compreendera que o meu pai vivia num mundo de «nós-contra-eles», embora então não o pudesse exprimir assim. E levei anos a compreender que eu fazia parte do «eles», apesar de me dizer que eu era um de «nós».

Soprava um vento gélido que atravessava a janela, e por isso o meu pai atirou-me o casaco de malha. A sorte dele era que Ernie ainda não tinha idade de ir para a escola; caso contrário, o professor muito provavelmente haveria de notar o que se estava a passar e não seria fácil convencê-lo de que eu tinha ferido o meu irmão a brincar aos polícias e ladrões. No meio da «balbúrdia», como disse o meu pai quando fomos ao hospital. Se bem que, agora que penso nisso, o momento escolhido pode não ter nada a ver com a sorte. Deve ter calculado que se queria roubar-nos, a mim e a Ernie, alguma coisa que nunca mais poderia ser-nos restituída tinha de ser antes de o filho mais novo começar a ir para a escola.

Quem pensa que não há pessoas capazes de planear com anos de antecedência como destruir uma vida, nunca teve de aprender o que eu tentei durante muito tempo esquecer. Teve sorte. Os movimentos do meu pai eram demasiado determinados para que estivesse ainda bêbado. Os copos de bar em bar em Gunnison tinham-se desvanecido com o que dormira no sofá da sala.

Estou convencido de que tomava anfetaminas para curar as ressacas. Pode até acontecer que tenha sido um pioneiro no uso das metanfetaminas; certa vez, contou-me que um dos músicos de Patsy Cline tomava isso durante as digressões, embora pudesse estar a inventar.

E pode muito bem ser que eu esteja a querer que os químicos expliquem algo muitíssimo mais complexo.

O meu relógio marcava seis e dez da manhã. Enquanto abotoava o casaco de malha, reparei que a meia-lua andava a jogar às escondidas com o lusco-fusco - emprestando à névoa do amanhecer um branco fantasmagórico e fazendo com que as montanhas de um púrpura quase negro parecessem macias e como que de algodão. Imaginei que, se conseguisse sobreviver à escuridão, o sol que surgisse de trás das colinas a leste haveria de fazer com que fosse impossível alguma coisa acabar mal.

Talvez todas as crianças nasçam com uma crença no deus-Sol. Pode ser até que tenham sido as crianças a criá-lo.

O meu pai conduziu-me escadas abaixo. Eu vinha em calças de pijama e pantufas, e tinha também posto o meu cachecol preferido, por isso, as minhas recordações dessa manhã parecem surgir-me através do filtro de um cheiro feito de lã e comichão. E através do castanho-escuro do cachecol, mesmo que isso não faça muito sentido.

Aonde vamos? - perguntei ao meu pai.

Aguenta os cavais! - respondeu, e, ao chegarmos ao fundo das escadas, segurou-me os ombros e fitou-me com um olhar amável.

É assim, Hank. Escondi o Ernie. E tu tens de o encontrar. É um novo jogo que vamos passar a jogar a partir de agora.

Entrou na cozinha, abriu o frigorífico e espreitou lá para dentro.

Os seus bíceps esticavam o tecido das mangas da T-shirt. A lanterna chinesa redonda, oscilando por cima da mesa da cozinha, derramava uma luz avermelhada, subaquática, à sua volta e dava-lhe às costas um halo, como se estivesse em chamas.

O meu pai usava muitas vezes frases feitas como «aguenta os cavais». Pode ser que o que quer que lhe faltava o tornasse também preguiçoso em relação ao modo como falava.

Ouvia-se a música riscada de um disco antigo na aparelhagem da sala. Uma pista, haveria eu de compreender depois. Ele deixava sempre pistas quando nos punha à prova, mas inicialmente eu não era muito bom a decifrá-las.

Quem está a cantar? - perguntou-me.

As Andrews Sisters - disparei em resposta com uma presteza exibicionista. - E a canção é a Elmer's Tune.

Lindo menino. E de que ano é a Elmer's Tune?

Não tenho a certeza da resposta que dei, mas estava errada, e o meu pai ficou muito desapontado, pois gostava que eu memorizasse todos os pormenores sobre os seus velhos discos.

Ouvindo o ritmo saltitante das Andrews Sisters e observando o meu pai a espreitar mais uma vez para dentro do frigorífico, senti-me tenso com a necessidade de fugir. Mas, mesmo que conseguisse chegar à estrada e apanhar uma boleia até Denver, não serviria de nada, pois Ernie ficaria então sozinho e entregue ao meu pai. E, onde estivesse Ernie, eu estava também.

Há quem diga que não podemos estar em dois lugares ao mesmo tempo, mas a minha experiência é diferente. Na verdade, talvez seja esse o principal sintoma do que quer que haja de errado em mim.

OK, basta de engonhar, são horas de ires procurar o teu irmão! ­ disse ele num tom brusco.

Aproximei-me, esforçando-me por parecer realmente pequeno e inofensivo.

Porque o escondeste, papá?

As costas da mão dele acertaram-me em cheio na cara.

Ai! – explodi. – Isso dói!

Cala o bico! Não estou a brincar. Se não o encontrares, vou fazer uma coisa que mais ninguém conseguirá fazer melhor, e tu, meu amigo, serás o responsável.

Os seus lábios eram uma fenda de fúria. Percebi que estava à espera de que eu lhe perguntasse o que faria a Ernie, e eu não queria perguntar, mas sabia que, se não o fizesse, ia ficar ainda mais furioso. Por isso, fiz-lhe a pergunta.

Vou cortar-lhe um dos polegares! - respondeu o meu pai com uma voz de satisfação.

Não me lembro do que lhe respondi. Acho que fiquei espantado de mais para dizer alguma coisa.

Disse ao Ernie que seria o polegar esquerdo - acrescentou -, mas pode ser que lhe faça uma surpresa e lhe corte o direito. Ou os dois!

O meu pai nunca nos fizera nada que exigisse raios X ou uma operação, se bem que a minha mãe tenha tido de dar entrada nas urgências do hospital de Grand Junction quando ele lhe partiu o nariz. Enquanto fiquei ali especado a perguntar-me se devia acreditar nele, vi-me a correr sem parar até Crawford. Iria ao Black Cat Café e comeria um daqueles bolos de canela peganhentos, escondido na casa de banho, que cheirava a alfazema e tinha um papel de parede com desenhos de botas de cowboy.

Sabia que se pudesse viver na casa de banho do Black Cat Café seria feliz para o resto da vida. O meu pai tirou do frigorífico uma embalagem de sumo de laranja Tropicana e sentou-se à mesa da cozinha com um longo suspiro. Bebeu um grande gole diretamente da embalagem e limpou a boca com a mão.

Olhando para o relógio, disse:

OK, Hank, tens exatamente dois minutos para encontrar o teu irmão. A começar... agora!

Os meus pensamentos dispersaram-se em centenas de diferentes direções, tentando identificar o propósito do que ele queria que eu fizesse.

Abrindo a faca de mato, pôs-se a tratar das unhas. Limpava aos jeans a sujidade que ia tirando.

A faca tinha um cabo de madrepérola que nos dava vontade de o levantar contra a luz para o ver cintilar. Comprara-a numa loja em Grand Junction com espingardas nas paredes.

Em junho de 1978, o meu pai tinha quarenta e três anos, era esguio e forte como uma vedeta de futebol americano, de cabelo castanho eriçado, curto, como os espinhos de um ouriço-cacheiro. Usava quase sempre um boné de basebol dos Milwaukee Braves, mesmo quando dormitava no sofá. Dizia que era uma peça de coleção, porque pouco depois de ele o ter comprado os Braves haviam -se mudado para Atlanta.

Tinha um grande sorriso cordial - e havia nele também algo de viril e assertivo, como num polícia ou num guarda-florestal. Era frequente ir para os copos com os amigos do trabalho e por vezes vinham para nossa casa, mas nunca gostei do cheiro a cerveja que emanava deles nem do modo como me tratavam por «puto» e por isso saía sempre que apareciam. Recebíamos também uma data de telefonemas de mulheres que queriam falar com ele, mas nunca vieram a nossa casa. Na altura, não achava esquisito que elas ligassem; pensava que eram colegas de trabalho do meu pai na serração.

O meu pai fumava todas as noites um charuto a seguir ao jantar.

Não me importava com o fumo asfixiante que espalhava por toda a casa, mas quando mais tarde ele nos punha na cama, com aqueles dedos a tresandar a tabaco, fechava os olhos o mais que podia e imaginava estar noutro sítio, bem longe dali.

Já perdeste trinta segundos, Hank - disse o meu pai. - Vá lá, meu filho, vai ver se descobres o teu irmão.

Desatou a cantar acompanhando as Andrew's Sisters. Tinha uma bela voz de tenor que me deixava orgulhoso. Sempre que me pedia que cantasse com ele, eu sentia que finalmente aterrara no planeta certo depois de uma data de falsas aterragens noutros errados. O meu pai dizia que teria entrado para o coro de Patsy Cline se ela não tivesse morrido num desastre de avião. Às vezes chegava a contar isso aos turistas que encontrávamos na cidade. Dizia-me que eu devia tentar ser cantor quando fosse crescido e formar um duo com Ernie, como os Everly Brothers.

O que quer que eu faça, afinal, pai? - perguntei.

Ele apontou a faca para mim.

Que cales o bico e encontres o teu irmão!

Fui ver nos armários da cozinha. E depois na arrecadação das vassouras.

Estás tão frio que os teus pés se estão a transformar em blocos de gelo! - disse ele, balançando nas duas pernas de trás da cadeira, com um, sorrisinho de satisfação como se estivesse a ganhar algum concurso.

Dirigi-me para a sala. Procurei por trás das duas poltronas, por baixo do sofá e no meio das dobras brilhantes das cortinas amarelas que a minha mãe comprara por terem, como ela dizia, «uma cor muito alegre».

Outra coisa que só compreendi demasiado tarde é que alguém comprar cortinas para se alegrar pode ser muito mau sinal. Pode até querer dizer que não irá viver muito mais tempo. Acabei por sair de casa, enfiando- me por baixo do alpendre. O solo era húmido e tinha um cheiro sigiloso, como se fosse possível alguém esconder-se ali durante muito tempo sem ser encontrado. «Ernie, estás aí?», sussurrei, porque o espaço entre o chão e as ripas de madeira se estendia até bastante longe e ficava tão escuro como o nosso armário quando lá nos fechávamos. Estremeci, não porque tivesse frio, mas porque uma vez eu e Ernie tínhamos visto nesse mesmo sítio uma enorme cobra castanha que bem podia ser uma cascavel.

Nenhuma resposta. Chamei por ele mais umas quantas vezes.

Disse até «Sou eu, o Hank», embora depois me parecesse estúpido tê-lo dito. Disse-lhe que descobrira uma maneira de nos livrarmos deste jogo sem que lhe acontecesse nada de mal, mas a verdade é que não tinha ideia nenhuma do que estava a fazer.

Não ouvi resposta e então, num súbito palpite, corri à volta da garagem. Quase nesse mesmo instante, avistei Roxanne, a gata de peluche de Ernie, presa na janela do Plymouth do meu pai. Era uma gata azul, com missangas pretas a servir de olhos, e Ernie tinha-lhe desenhado uns grandes lábios vermelhos com uma caneta de feltro.

O focinho redondo, cheio, espreitava para fora, como se estivesse a tentar captar a minha atenção.

Ao contrário do que pensara, Ernie não estava no carro. Nem por baixo dele. Talvez estivesse num dos caixotes castanhos de arrumação.

Calculei que o tempo se esgotava e por isso fui a correr ter com o meu pai.

Tem de estar na garagem! - anunciei, convencido de que a iminência de o encontrar me valeria mais um minuto ou dois.

Porque achas isso, meu filho? - perguntou o meu pai.

Mostrei-lhe Roxanne.

Estás a desiludir-me. Podes ser muito estúpido, sabias? E o teu tempo acabou há vinte segundos, de qualquer maneira.

Não é justo - protestei. - Devias dar-me mais um minuto por estar quase a encontrá-lo!

Pela maneira como seguiu, passando por mim sem me ligar, percebi que Ernie e eu estávamos metidos num grande sarilho. Avançava de peito inchado como quando se preparava para dar uma lição à minha mãe, que era o que ele dizia quando a espancava.

Corri até ele.

E se fôssemos tomar o pequeno-almoço? Estou cheio de fome.

Empurrou-me para o lado e abriu o armário com a parte da frente em cana entrançada onde guardava a coleção de discos de 78 rotações.

Ernie estava lá enfiado, acocorado. O pai tinha-o amordaçado e atara-lhe as mãos.

Ao ver o meu irmão todo manietado e assim agachado, senti que alguma coisa se desprendia no meu peito - uma coisa importante. Por vezes, quando hoje penso nisso, julgo que era um sinal de que o meu mundo estava prestes a mudar para pior e nunca mais seria o mesmo. Quantas vezes terei perguntado a mim próprio se o meu pai pretendia realmente ferir tão gravemente Ernie? Talvez as drogas que tomava para as ressacas o levassem a ver tudo o que nos fazia como um longo e interminável jogo de competição e forçar-me a procurar Ernie não passasse de uma pequena parte da sua estratégia para atingir uma vitória definitiva. É muito possível que nem ele conhecesse as suas próprias intenções.

Gostaria de pensar que o meu pai compreendeu mais tarde que fora longe de mais naquela ocasião e que lamentava o que tinha feito, mas tenho a certeza de que isso é só porque gostaria de que ele fosse como as outras pessoas - e alguém de que pudesse gostar sem me envergonhar.

O olhar de Ernie era aterrorizado. Mas não gemia nem tentava gritar. Era o que mais me assustava: o seu silêncio. Tinha apenas quatro anos e já aprendera que era melhor não soltar um pio, mesmo se estivessem para lhe cortar um polegar.

Esforço-me por não ver demasiadas vezes a imagem de Ernie agachado no armário do meu pai. Sobretudo, tento não me ver na posição dele. Apesar do que dizem os psicólogos nos programas de televisão, reviver certas memórias não nos faz bem absolutamente nenhum. Ernie apertava os dois polegares dentro dos punhos. Atraí a atenção dele com um aceno da mão e tentei dizer-lhe com o olhar que ia fazer com que o pai ficasse de tal modo zangado comigo que se esqueceria do resto.,

O Ernie está muito assustado, papá - disse eu, para ganhar tempo.

Pois, meu filho, claro que está! - retorquiu no tom de alguém feliz com o sucesso alcançado.

Será que admirava realmente a sua obra, ou assim soava a sua voz aos ouvidos de uma criança que aprendia a odiar?

E também deve estar cheio de fome sem o pequeno-almoço ­ disse eu.

Dei um passo para junto do meu irmão, depois outro e, como o meu pai não me deteve, avancei direito a Ernie para me ajoelhar junto a ele e o desatar. Rezei para que o meu pai me agarrasse a mim, se acaso ficasse tão furioso que não conseguisse conter-se de fazer mal a um de nós. Mas esperava que não me partisse o braço ou a perna, porque senão não poderia jogar basebol o verão inteiro.

Comecei a desfazer o nó da mordaça na boca de Ernie. Era feita da mesma corda de nylon que o meu pai usava para atar os feijões e os tomates da horta.

Estou aqui, Ernie - sussurrei, e dei-lhe um apertão no braço para ele saber que eu não me iria embora.

Mas tocar-lhe foi afinal a coisa que não devia ter feito; desatou a tremer e a gemer como se tivesse caído num rio glacial através do gelo.

Merda! - rosnou o meu pai, e agarrou-me pelos cabelos, puxando-me para trás com tal força que fui de encontro ao sofá. Senti um gosto a sangue nos lábios quando me pus de joelhos. Quando o meu pai ergueu a faca de mato, a sala pareceu tornar-se mais escura à minha volta. Deixa-o em paz! - gritei.

Terá a minha mãe ouvido o meu grito? Era impossível não o ter ouvido. Hoje suspeito de que ela estava à escuta à porta do quarto, demasiado atemorizada para soltar um pio e demasiado entorpecida pelo Valium para descer as escadas e nos ajudar, porque, minutos mais tarde, quando as subi a correr e lhe disse que tínhamos de ir imediatamente para o hospital, dei com ela sentada na cama já vestida e os olhos tão apagados que compreendi que devia ter ouvido tudo o que se tinha passado.

Cerca de um ano mais tarde, quando fiquei em casa com gripe e não fui à escola, confessou-me que também ela vivia aterrorizada com o meu pai. Não sei bem porque me terá contado isso. Creio que eu devia suspeitar de que ela tinha medo dele depois das lições que ele lhe dava, mas as suas palavras deixaram-me muito chocado e depois ficaram a pesar-me durante várias semanas como qualquer coisa estragada dentro de mim.

Hoje vejo que devia ter implorado ao meu pai que me levasse a mim em vez de Ernie. Pode ser que tudo tivesse sido muito diferente.

Mas talvez a verdade seja que eu estava demasiado aterrorizado para tomar o lugar do meu irmão. A não ser assim, que poderá explicar ter passado mais de trinta anos envergonhado com o modo como me portei nesse dia?

O meu pai agarrou Ernie pelo braço e forçou-o a pôr-se de pé. Cortou a mordaça e as cordas à volta dos pulsos. O meu irmão começou aos guinchos quando ele o agarrou pelo braço e o levantou no ar, e torcia-se e dava tais pontapés que o pai voltou a pô-lo no chão e lhe deu uma forte pancada na nuca.

Quando me levantei, um faiscar metálico relampejou aos meus olhos como um jato de ácido, e havia sangue - muito sangue - correndo pelo lado da cabeça de Ernie e pela sua cara.

O meu pai erguia na mão o que tinha cortado e disse:

Estás a ver o que fui obrigado a fazer por tua causa, Hank! Estás a ver a que ponto me obrigaste a chegar! Há qualquer coisa de mau em ti, meu filho!

 

Acordei no sábado às seis da manhã. Apesar de não ter dormido mais do que algumas horas, senti-me revigorado, enérgico e ansioso pelo silêncio solitário da sala de estar. Retirando o bloco de notas da gaveta de roupa interior, deslizei sem ruído escadas abaixo através da frágil escuridão. A mesa do pequeno-almoço acolheu-me para o interior de um universo muito para além do tiquetaque de qualquer relógio. Enquanto sorvia o café, agarrei-me com força à minha ilusão favorita de que todos os que amava estavam em segurança. E, no interior do apertado halo tépido formado pelo candeeiro por cima de mim, pus-me a trabalhar no meu projeto secreto: «Haiku de uma infância no Colorado.» Apenas Ernie conhecia a sua existência.

Primavera, colibri

Zumbindo entre dois irmãos

Pêndulo de rubi.

Um homem que sabe não estar a ser observado pode escrever o que quiser, mesmo arriscando parecer tolo. Pode viver nesta parte da sua memória, onde as coisas boas foram guardadas e protegidas, e escrever notas crípticas de vinte e uma sílabas exatas para o rapaz que já foi.

Quando ouvi os guinchos de Ana ao abrir a torneira do duche, subi os degraus dois a dois, louco por vê-la. Porém, ela esquivou-se, afastando-se de mim quando tentei beijá-la. Com a água a escaldar-lhe as costas, encolheu os ombros e disse num tom ofendido:

Ai, agora vais ser simpático? - Os seus olhos manifestavam uma tal tristeza que estendi a mão na sua direção, mas ela recusou-a com uma palmada.

Que é que eu fiz? - perguntei desesperado.

Estás a dizer que não te lembras? - retorquiu, incrédula.

Devia estar meio a dormir. Tive um dia difícil ontem e...

Não quero ouvir! - interrompeu ela. O queixo tremia-lhe.

O bater do coração fazia-me vacilar de um lado para outro. A água escorria-lhe pelos ombros e colava-lhe o cabelo ao pescoço. Decidi não fazer nenhum movimento; haveria de sobreviver a esta querela, como já acontecera tantas outras vezes durante os primeiros anos de casamento, quando G tentara sabotar a nossa relação. Ao fim de algum tempo, ela voltou a cara para mim e pegou-me na mão. Havia tristeza nos seus olhos, mas também perdão.

Bem sabes como sou quando estou meio a dormir - disse eu.

Digo e faço coisas de que não me lembro pela manhã. É uma forma de sonambulismo. A minha mãe tinha a mesma coisa. Agora diz-me o que fiz eu, por favor.

Estavas a ver fotografias no teu portátil. Quando te perguntei quem eram as pessoas das fotografias, disseste-me: «Mete-te na merda da tua vida!»

Depois de lhe ter pedido desculpa, ela deixou que a beijasse. Falei-lhe na pen da vítima do crime e em como aquele caso estava a lançar a confusão na minha cabeça. Ela assentiu com um ar tão entristecido que eu entrei no duche de boxers e T-shirt e a abracei.

Hank, que estás a fazer? - perguntou ela, chocada.

Não sei bem - respondi, rindo.

A água quente a envolver-me despiu-me de inibições. Comprimi o meu desejo contra a sua anca e sussurrei-lhe o que pretendia. Mal a penetrei, Jorge chamou por nós. Recorrendo a algumas hábeis contorções, Ana conseguiu passar a cabeça pela ponta da cortina do duche.

Espera um minuto, querido! - gritou ela.

Jorge entrou na casa de banho daí a momentos.

Tenho fome! - guinchou.

Vai comer um prato de cereais, querido - respondeu-lhe ela.

Queria dizer-lhe mais alguma coisa, mas a minha incessante e lenta persistência fê-la estremecer. Levantando-a o mais silenciosamente que podia, passei as pernas dela à minha volta e encostei-a à parede. Ela soltou um gemido, o que me pareceu um triunfo.

Que foi, mamã? - perguntou Jorge numa voz preocupada.

Ana estava já então de olhos semicerrados e não podia responder.

Está tudo bem - disse eu. - A mamã e eu estamos só a tomar um duche.

Ana puxou-me para dentro de si o mais profundamente que eu conseguia. O perfume da sua nuca lembrava-me lã natural. Mais ninguém tinha o cheiro maravilhoso de Ana.

Papá? - continuou Jorge.

Sim.

Tenho fome.

Logo que acabarmos, vou fazer-te o pequeno-almoço.

Quero panquecas!

Combinado! Agora, deixa-nos sozinhos alguns minutos, querido.

Refilando ruidosamente, saiu da casa de banho a bater os pés. Porém, a força determinada do seu mau humor apenas servia para me encher de admiração por ele - e também para mudar o rumo dos meus pensamentos enquanto fazia amor; sentia um desejo tão intenso de me vir dentro de Ana que seria capaz de fazer mais um filho - ali mesmo, naquele momento.

A seguir, fomos ocupar-nos de Jorge, mas ele já tinha voltado a adormecer. Com o queixo encostado ao ombro de Ana, olhei pela janela, admirando o chilrear exuberante das andorinhas e a névoa rosada que começava a pintar as velhas casas do Largo de Santa Marinha de cores delicadas. Lisboa era sagrada àquela hora, e o seu encanto degradado, emaciado, dava-me a sensação de ter entrado num conto de fadas.

Seria mesmo pena deixar que os nossos problemas económicos destruíssem tudo isto - disse eu, e, num momento de loucura passageira, pensei que, antes de as condições piorarem, e mais pessoas começarem a emigrar, devia convidar toda a gente que vivia ali no largo para um chá e um bolo.

Confessara-lhe que talvez quisesse ter outro filho, enquanto nos vestíamos. E, agora, ela reagia, dizendo:

Não seria justo trazer ao mundo outro filho em Portugal. Além do mais, a população mundial já é excessiva.

Só que o Ernie não vai ter filhos. Nós podemos ter três e a média da minha família será apenas de um e meio.

Ela deu-me um beijo na cara, a sua maneira de dizer que não.

Não nos podemos dar a esse luxo - disse ela.

Agarrei-lhe as duas mãos.

O Ernie agora está a tomar conta de mais dois jardins, por isso deixou de recorrer às nossas poupanças. A partir de agora vamos ficar bem.

De volta ao andar de baixo, sentei-me de pernas cruzadas no sofá, em silêncio e no quentinho, a sonhar com um novo bebé nos braços.

Impaciente por partilhar estas boas emoções, liguei a Ernie e disse-lhe que à tarde ia a casa dele com os miúdos - talvez até para o almoço se conseguisse acabar a tempo o que tinha para fazer.

A sério... hoje? - perguntou, entusiasmado.

Certa vez, Ernie e eu tínhamos visto um esquilo disparar como um raio por um plátano acima, cerca de vinte metros até ao topo, com uma amêndoa que lhe havíamos dado, eufórico com a sua boa sorte mas também temendo que algum rival lha pudesse roubar. Aquela pequena bola de pelo cinzento, balançando-se num ramo delgado, alerta contra possíveis ladrões, era tal qual Ernie quando recebia uma boa notícia.

Sim, mas a Ana não pode ir. Está com muito trabalho na galeria... imensos turistas de verão. Que pena. E quando é que vocês vêm? - Depois, para suavizar a sua curiosidade, disse: - Mas não quero obrigá-los a marcar nenhuma hora.

Espero que seja possível sairmos por volta do meio-dia, e, nesse caso-estaríamos aí por volta das-duas menos um quarto. Envio-te um SMS quando estivermos a sair.

Silêncio. O meu irmão estava a pensar em tudo o que teria de fazer antes de chegarmos: esconder das crianças os medicamentos que andava a tomar, verificar as fechaduras das portas, ir apanhar verduras...

Apressá-lo só iria deixá-lo nervoso, por isso atravessei a sala até à janela que dava para o largo. Lisa, a miudita de cabelo escuro que vivia no primeiro andar do nosso prédio, andava a passear o gato persa branco da família com uma trela.

Rico, achas que o Jorge e o Nati comiam beringela com arroz e talvez uma salada?

Comem qualquer coisa que decidas fazer. És um cozinheiro excelente.

Têm de ser um bocadinho flexíveis.

Ernie, não achas que os miúdos já sabem o género de comida que aí tens?

Desculpa. É dos nervos. Ontem deixaste-me assustado. Podemos voltar ao princípio?

Era o que eu e Ernie costumávamos perguntar sempre que o outro se irritava.

Tudo bem - concordei.

Fora a tia Olívia quem inventara a técnica de recomeçar do princípio as conversas. Não estava preparada para cuidar de um miúdo descontrolado de catorze anos e do seu irmão morbidamente calmo. Aprendera a dizer, de cada vez que a levávamos às lágrimas: «Podemos começar, do princípio?» O mais curioso é que daí a um ano ou dois Ernie e eu tínhamos desenvolvido a capacidade de reiniciar as nossas emoções sempre que ela nos pedia, como se por obra de alguma magia que tivesse pronunciado.

Talvez todos nós precisemos de pelo menos um mágico na nossa vida. Nós tivemos a tia Olívia. Que tremenda sorte a nossa por ela se ter mostrado tão pronta a receber-nos em sua casa!

Ah, preciso de uma coisa! - exclamou Ernie. - Depois de virares para a Quinta da Vidigueira, vais ver uma quinta abandonada com umas romãzeiras. Apanha-me algumas flores. Se não te importares, claro.

Claro que não me importo.

Sabes, Rico, as flores de romãzeira são exatamente da cor do pôr-do-sol no Colorado! - Num sussurro, acrescentou: - Espero que a Ana não fique zangada por te roubar por uma noite. Se ela se zangar, não precisas de dormir cá.

Ernie precisava de que eu soubesse que ele era ambivalente em relação a ficarmos lá ou não. E ao mesmo tempo estava a pôr-me à prova.

Uma parte dele desejava que eu o desapontasse - para lhe provar a inutilidade de querer fazer parte da nossa família.

A Ana fica mas é contentíssima por se ver livre de nós um dia por semana - disse-lhe eu.

Riu-se.

OK, então olha para os dois lados antes de atravessares a rua.

Depois de ter desligado, servi-me de mais café e voltei para a mesa do pequeno-almoço. Estava a pensar no belo par de patetas que eu e Ernie éramos.

Daí a alguns minutos telefonou um jornalista da TSF. Eram ainda oito e dez.

Quem é que lhe deu o meu número? - perguntei.

Um amigo.

Que amigo?

Ele ignorou a minha pergunta e disse-me que precisava apenas de cinco minutos do meu tempo para falar no assassinato de Coutinho.

Perturbado, respondi-lhe numa voz mais dura do que era minha intenção que o nosso Serviço de Relações Públicas lhe daria muito mais do que cinco minutos e desliguei.

Quando ouvi Ana a descer as escadas, escondi o bloco de haikus debaixo do rabo. Nestes momentos, sentia que tinha mais segredos do que provavelmente deveria ter.

Enquanto a minha mulher engolia à pressa os seus flocos de aveia com mirtilos, Mesquita, o subchefe da Polícia Judiciária, telefonou.

Bom dia, Sr. inspetor-chefe - começou. - Já viu os jornais de hoje? - O seu tom era falsamente animado.

Não, chefe, desculpe. Para dizer a verdade, acordei há pouco.

Ana fez uma careta ao perceber que estava ao telefone com um superior.

Diga-me uma coisa, alguma vez o penduraram pelos tomates? - perguntou Mesquita.

Não, mas calculo que era coisa para me dar cabo do dia.

Já me tinham dito que o senhor era capaz de tentar ter piadinha.

É um defeito que tenho, chefe. Além disso, a minha mulher está aqui ao meu lado e eu gosto de a ter divertida. – Acenei a Ana e ela acenou em resposta.

Com o movimento dos lábios, Ana perguntou:

Quem é?

Mesquita - respondi do mesmo modo.

Ana pegou na caixa dos cereais e precipitou-se para a sala. Detestava ouvir chamadas de trabalho porque achava que eu cedia mesmo aos pedidos mais extravagantes dos meus chefes.

Vá comprar o Correio da Manhã - disse Mesquita - e depois ligue-me.

Tinha dois jornalistas à minha espera à porta do prédio, um da Visão e outro da Antena 2. Assediaram-me com perguntas o caminho todo até ao Largo da Graça. Parecia que os meus quinze minutos de fama tinham finalmente chegado, mas, para meu espanto, descobri que já não os ambicionava.

Comprei o Correio da Manhã e fui tomar um café à Concha, o meu poiso habitual. O artigo sobre Coutinho vinha na segunda página e contava que fora morto a tiro, amordaçado e abandonado agonizante na sua sala de estar.

Podia apostar que a fuga de informação partira de Vazo Liguei para Mesquita para lhe dizer que ia ver o que se passava e que depois lhe voltava a ligar.

Como a resposta não o satisfizesse, disse:

Estou a ser pressionado para escolher outra pessoa para investigar o caso.

Aquela informação foi como uma estalada na cara. Recuando vacilante em imaginação, respondi.

Não me parece que faça muito sentido, chefe. Recolhemos uma data de provas ontem e estamos ainda a...

Não, não está a perceber, Monroe - interrompeu ele. - Estou a ser pressionado para arranjar alguém mais facilmente... digamos, influenciável. Não é que eles cheguem a dizer isso. Limitam-se a insinuar que você é um tipo demasiado solitário e que ouve vozes e que...

Realmente não me parece que...

Esteja calado e deixe-me falar! Oiça, quero que faça o que for preciso para resolver o caso rapidamente. O que for preciso! Compreende?

Estaria ele a sugerir que eu me metesse por vias ilegais apenas um dia depois de me ter dito para fazer tudo como mandam as regras? Ia perguntar-lhe o que queria ele dizer ao certo, mas desligou sem mais.

Talvez pela milésima vez desde que era polícia, desejei poder falar com os meus colegas em inglês, pois nessa língua era de longe melhor a perceber os subentendidos.

Em casa, encontrei Jorge ajoelhado no chão da sala, ainda de pijama, a meio metro da televisão, a cara iluminada pelo branco azulado intermitente do ecrã. Ana estava à secretária, concentrada nos seus e-mails.

Enquanto preparava as panquecas com morango para o meu filho - o seu prato favorito - pus-me a imaginar uma armadilha para a pessoa responsável pela fuga de informação para a imprensa. Comecei por telefonar a Vaz.

Hoje é sábado, Monroe - disse ele, num tom rabugento, como se eu não o soubesse.

Expliquei-lhe que o portátil de Coutinho continha pormenores sobre os subornos que tinha pago recentemente a um industrial de Madrid relacionado com o ministro do Interior espanhol. O pagamento fora feito para conseguir um contrato para a construção de um centro comercial perto de Salamanca. Eu tinha sido avisado de que havia membros do governo espanhol que poderiam tentar desviar o curso da nossa investigação.

E que raio tem tudo isso a ver comigo? - perguntou ele.

A nossa cozinha dá para a sala, e eu estava a ver o meu filho, de gatas, a imitar um leão de um desenho animado, e achei isso de tal modo mais fascinante do que Vaz que pensei: «Já perdi tempo de mais com esta besta estes anos todos.»

O senhor é bastante desagradável- disse-lhe, para que constasse.

Porque não vai mas é para a América, que é a sua terra? - replicou em resposta.

Até que enfim que o disse! - exclamei.

Você pensa que somos todos um bando de parolos incompetentes aqui em Portugal. Acha que o único sítio avançado no mundo é lá de onde você veio!

O senhor não deve estar mesmo a dizer que eu acho que o interior do Colorado era um sítio desenvolvido para um miúdo! - Irrompi numa risada sem esperar pela resposta.

Por essa altura, a panqueca estava feita e deitei-a num prato. Jorge e Ana fitavam-me com uma expressão interrogativa por eu me estar a rir.

O que raio tem tanta piada? – perguntou Vaz.

Respirei fundo algumas vezes, para me acalmar.

Apesar do que lhe disseram nas reuniões do Comité Central, não tive responsabilidade nenhuma no golpe de estado no Chile nem na eleição do George W Bush uma vez e meia.

De que está você a falar?

Quando pus o prato do pequeno-almoço no chão em frente do meu filho, ele roçou a cabeça na minha perna, como um filhote de leão agradecido. Respondi a Vaz:

Não lancei nenhuma bomba sobre o palácio presidencial de Allende. Nem sequer sei pilotar um avião. A sua informação interna sobre mim está toda errada. Embora possa reconhecer que não ligo muito ao que a sobrinha dele escreve.

A sobrinha dele?

Isabel Allende. A Casa dos Espíritos. O meu irmão achou-o maravilhoso, mas o realismo mágico tem em mim o efeito de um comprimido para dormir.

Estava à espera de um protesto indignado, ou talvez de uma pequena risada, hesitante, mas Vaz desligou sem mais uma palavra. Se ao menos me desprezasse pelo que eu era e não pelo que não era.

Jorge farejava os morangos à volta do prato com o seu focinho imaginário enquanto os ia mordiscando. Quando lhe acenei, soltou um rugido feroz, o que, dadas as circunstâncias, me pareceu reconfortante.

A seguir liguei para Fonseca e contei-lhe a mesma versão, atribuindo a nacionalidade francesa ao industrial corrupto. O projeto de construção passou a ser um prédio de escritórios em Toulouse. Em cada chamada que ia fazendo, ia dando uma nacionalidade diferente ao alvo de corrupção e situava o local de construção noutro país.

No andar de cima, enquanto me vestia, Nati veio ter comigo, sorvendo uma caneca de chá de hortelã. Sentia-me otimista em relação ao plano para apanhar o bufo da minha equipa e dei-lhe um beijo rápido na cara. Como o apanhei de surpresa, Nati não rezingou nem se esquivou.

Consegues tornar um ficheiro invisível? - perguntei-lhe enquanto enfiava os jeans.

Seja mais claro, inspetor-chefe.

Estou a pesquisar a pen do tipo que foi assassinado. Preciso de saber se é possível criar um ficheiro que ninguém veja a não ser que introduza uma password ou saiba exatamente o que procurar.

Deve ser, mas é melhor perguntares a um especialista em informática. - Nati bocejou. - Ouve, papá, a que horas vamos a casa do tio Ernesto?

Ultimamente, Nati achava muito divertido tratar Ernie pelo seu nome português, provavelmente porque o meu irmão se vestia como um cantor de música country americano e parecia muito mais um Ernie.

Por volta do meio-dia - respondi. - E leva uma muda de roupa.

Não escapo a ter de dormir lá, pois não?

Não, o teu tio está a contar contigo. - Fixei-o atentamente. - Acredites ou não, ele acha que tu ainda és um rapazinho bonzinho que seria incapaz de beber um gole de cerveja sem primeiro pedir autorização ao seu querido pai.

Nati fez a sua carinha de anjo a que nós chamávamos cara de tartaruga. Não é que eu fosse nessa.

Lembra-me de termos uma conversa sobre bebida a caminho de casa do teu tio - disse-lhe eu. Podes dispensar-me o sermão - retorquiu, franzindo o sobrolho.

Só bebi um gole.

Era por isso que cheiravas a uma strip joint em Durango?

O que é uma strip joint?

Um sítio onde as mulheres são pagas para se despirem e dançarem para os clientes.

Deve ser divertido - disse ele, fazendo o som de quem escarra.

Nati, há uma data de pessoas no mundo com uma vida chata.

Quer dizer que costumavas ir a strip joints em Durango?

Por mais estranho que te pareça, tive uma vida antes de tu nasceres.

Pois, só que nunca me contaste como era - contrapôs, num tom ressentido. Desviou o olhar. De perfil, tinha uma expressão demasiado adulta para o meu gosto. - Alguma vez lamentaste eu ter nascido? ­ perguntou.

Senti-me como se me tivessem atirado de um carro a alta velocidade.

A que propósito vem isso? - perguntei.

Nunca nos falas do Colorado. E... e eu disse uma coisa chata ontem.

O que disseste?

Disse que era de te «deletar».

Isso não foi chato! É o que todos os miúdos fazem, mais tarde ou mais cedo. Além disso - e pisquei o olho -, comigo não funciona. Eu sou in-deletável. - Peguei-lhe nas mãos e abanei-as entre nós como uma ponte. Era uma brincadeira que fazíamos muitas vezes quando ele era pequeno. - Ouve, Nati, nunca lamentei que tu nascesses. É uma coisa que nunca poderia lamentar. E não falo do Colorado porque nunca aconteceu lá nada de interessante.

Mas como eram os teus pais?

Como toda a gente.

Como toda a gente, mas como?

Pus- me a rebuscar a pilha de livros sobre o Holocausto em cima da minha mesinha de cabeceira para afastar a pressão do seu olhar.

A minha mãe ficava em casa e cozinhava - disse eu. - O meu pai trabalhava numa serração. O Ernie e eu acabávamos por passar a maior parte do tempo sozinhos.

Tens alguma fotografia dos teus pais?

Peguei no livro The War Against the Jews porque tinha estatísticas no fim e eu podia fingir que estava a analisá-las.

Parece-me que não - respondi.

Ele revirou os olhos.

Com quem és mais parecido, com a tua mãe ou com o teu pai?

Tenho o nariz e o cabelo da minha mãe; a boca e os olhos do meu pai. Uma combinação infeliz... A minha carreira de modelo podia ter sido um sucesso se fosse o contrário.

Então, o Ernie deve ter a boca e os olhos da tua mãe

O Ernie não é parecido com nenhum deles. - Não era verdade, mas a última coisa de que precisava era ter o meu filho mais velho a suspeitar precisamente daquilo que o meu pai suspeitara.

De certeza que não tens nenhuma fotografia dos teus pais? Quer dizer, procuraste bem?

Não trouxe nenhuma para Portugal. Além disso, os vampiros não se veem nas fotografias.

Não tens piada - disse ele.

Fui à janela e pus a cabeça de fora. A brisa era já tépida. Quando me voltei, descobri que Nati continuava à espera dos avós que eu lhe devia dar. Imaginava que este dia haveria de chegar, mas teria preferido adiá-lo mais uns anitos.

Deves ter fotografias da tua casa, pelo menos - insistiu, num tom esperançoso.

Eu não tenho. O Ernie talvez tenha uma ou duas. Perguntamos-lhe isso hoje.

E ambos os teus pais morreram?

Tenho a certeza absoluta de que já te contei tudo isto antes.

Conta outra vez. Eu devia ser muito pequeno e não me lembro.

Não eras nada muito pequeno.

Mas gostava de ouvir tudo outra vez - disse ele, num tom zangado. - Que é que te custa?!

A minha mãe morreu primeiro. Tinha eu onze anos. O Ernie sete.

Num acidente de carro, não foi?

Sim, embateu de frente contra uma árvore... um álamo. Era a maior árvore da estrada para a cidade mais próxima.

Nati franziu o nariz.

Deve ter sido horrível.

Foi. Especialmente para o Ernie - respondi.

E para ti?

Detestava a ideia de Nati sentir pena de mim.

Aguentei-me o melhor que podia.

E o teu pai?

Oh, a princípio ficou perturbado, mas depois pôs-se bem. Eu passei a encarregar-me de lavar a roupa, e acho que ele nem sequer reparou que ela já não existia.

Não é isso. Queria dizer quando é que o teu pai morreu?

Estive quase para lhe dizer a verdade, só para me ver livre daquilo de uma vez por todas, mas isso iria levar a perguntas sobre a polícia e como é que tinham localizado o carro do meu pai, mas nunca o haviam encontrado a ele, e como é que um homem de quarenta e nove anos desaparece sem deixar rasto.

O meu pai morreu três anos depois da minha mãe - respondi.

No mesmo mês, acho que disseste tu uma vez.

Então, afinal sempre te lembras.

Pai, diz lá!

Morreram no mesmo dia do mês de maio, no dia 2 - disse eu.

Mas com um intervalo de três anos.

Isso parece uma coisa impossível.

Ter-lhe-ia feito mais sentido se eu pudesse dizer: «Ele decidiu desaparecer no mesmo dia em que a minha mãe morreu», mas estava já demasiado envolvido na minha mentira.

Aconteceram-me uma data de coisas estranhas durante a vida ­ disse eu. - A mim e ao Ernie. Podes até dizer que eu e ele somos um íman para as coisas estranhas e improváveis. Mas, para te dizer a verdade, sempre pensei que o meu pai tivesse arranjado as coisas de maneira a poder morrer no mesmo dia da minha mãe.

Como podia ele ter feito isso?

Os médicos às vezes dão às pessoas uma overdose de morfina se elas estiverem a sofrer de mais. Às escondidas, naturalmente. Penso que o meu pai pode ter pedido isso.

De que é que ele morreu?

Cancro do pâncreas. - Ouvira dizer que era sempre fatal e insuportavelmente doloroso...

E foi então que tu e o Ernie vieram viver com a tia Olívia?

Exatamente.

Nati sorveu um gole de chá.

E onde é que andaste na escola em criança?

A uns oito quilómetros de nossa casa, numa casinha de tijolos.

Está tudo muito baralhado na minha cabeça, tirando a ginástica. Eu gostava de basebol. Era um lançador realmente bom. - Na verdade, nunca tinha sido lançador, mas estava a gostar de mentir tão bem. - Então, foi realmente só um gole de cerveja? - perguntei.

Foi meia garrafa. Mas fiquei enjoado. Não precisas de te preocupar.

Ainda bem, porque tivemos alguns bêbados violentos na nossa família

Quem?

O meu pai.

O meu avô era um bêbado? - perguntou ele num tom espantado.

Sim, só que ele não era teu avô.

Se era teu pai, quer dizer que era meu avô. Ipso facto.

Ipso facto?

A Sr.ª Laredo ensina-nos latim, para nos ajudar no português.

Podes dizer à Sr.ª Laredo que é preciso mais do que biologia para fazer de alguém teu avô. - Na linguagem codificada que eu e Ernie tínhamos inventado, acrescentei: - A certeza podes ter de que nos não merecia ele.

Eu não sou o tio Ernesto - disse ele, ressentido.

Traduzi:

Podes ter a certeza de que ele não nos merecia.

Porque era bêbado?

Entre outras coisas.

Mas acabaste de dizer que os teus pais eram como toda a gente!

Nati estava convencido de que me apanhara, mas eu tinha a resposta pronta.

Metade das pessoas que viviam por aqueles lados era alcoólica ­ disse-lhe, num tom ligeiro. Caraças, o Mayor Anderson não se segurava em pé de setembro a maio. Tinham de forrar o escritório dele com plásticos de bolha!

Nati lançou-me um olhar cético; talvez calculasse que eu tinha usado as mesmas frases antes - o que era verdade, pois experimentara-as a primeira vez com a mãe dele no nosso segundo encontro. Porém, o Mayor Anderson era bastante real. O meu pai costumava ir caçar alces com ele na San Juan National Forest. «Dois bêbados a disparar sobre tudo o que mexe.» Sempre pensei que podia dar um bom título para o guia de viagens deles para o estado do Colorado.

O teu pai era violento? - perguntou Nati.

Berrava imenso.

Contigo e com o Ernie?

E com a nossa mãe. Com ela ainda era pior.

O que é que ele lhe berrava?

Nati, para que serve isto tudo, podes dizer-me? - perguntei.

Diz lá!

Acusava-a de ser desmazelada. - Mais uma mentira, mas não lhe ia dizer o que ele chamava à nossa mãe; tinha jurado nunca repetir aquelas palavras em voz alta.

A tua mãe também berrava com ele?

Não.

E tu e o Ernie?

Não.

É esquisito.

Talvez. Naquela altura parecia-me normal. Aprendi desde muito novo que as coisas normais podem ser as mais estranhas de todas.

Papá, não tens de estar sempre a tentar ser engraçado - informou-me, como se estivesse a fazer-me um grande favor.

Há um dramaturgo chamado Oscar Wilde que uma vez escreveu: «Se quiseres dizer a verdade às pessoas, fá-las rir, senão elas matam-te» por mais surpreendente que possa parecer cheguei exatamente à mesma conclusão que o Sr. Wilde quando era apenas uma criança.

Era o teu pai que tinha uma coleção de discos?

Que coleção de discos? - perguntei, batendo-me à conquista de um Óscar.

A mamã uma vez disse que tu sabias todas aquelas canções antigas porque o teu pai tinha mil discos, mesmo alguns... já me esqueci de como ela lhes chamou. Quando tocam a uma velocidade diferente.

De setenta e oito rotações. É verdade, ele tinha discos de setenta e oito rotações de uma data de pessoas incríveis.

Como por exemplo?

As big bands, todos os grandes cantores de blues... Mas os de que eu mais gostava eram os do Eddie Cantor e do AI Jolson. Imitava bastante bem o AI Jolson. - Ajoelhei-me, abri os braços como que para dar um abraço ao meu filho e arranquei com uma parte de Swanee.

Acho horroroso - disse-me com um trejeito de desapontamento.

Tinha atuado para ele em vez de ter confiado nele. E também eu estava um pouco desapontado comigo, mas que podia fazer?

O horroroso era muito popular nos anos de 1930 - repliquei. Como concessão, acrescentei: - Costumávamos ouvir os discos do meu pai durante o inverno inteiro. Às vezes dançávamos.

Dançavam?

Sim, eu e o Ernie e o meu pai. Ele ensinou-nos o jitterbug, o fox trot e o tango. Divertíamo-nos imenso. O meu pai podia ser um bêbado, mas tinha estilo! A minha mãe às vezes dançava comigo e com o Ernie também, mas só quando o meu pai não estava em casa.

Mas tu nunca danças.

Eu era um miúdo, Nati! Fazia uma data de coisas que agora não faço.

Ficaste com alguns dos discos?

Não. Não sei o que lhes aconteceu. - «Regámo-los com gasolina e fizemos uma fogueira de vinil tão grande que o cheiro chegou aos cães da pradaria dos confins do Utah», era a resposta que tinha escondida debaixo da língua; se o dissesse, Nati haveria de perguntar porque não os tínhamos oferecido a alguma organização de caridade ou a uma escola, e eu não sabia bem se iria engolir a desculpa de que não passávamos de duas crianças. E talvez tivesse de explicar também que o meu irmão não quisera deitar-lhes fogo e que tinha chorado durante três dias a fio depois disso.

Nessa altura, calculei que acabara de esgotar a minha ração diária de mentiras e então soltei o longo suspiro que me tornara famoso na família e disse:

Já tomaste o pequeno-almoço?

Não.

Posso fazer-te uns ovos mexidos com piripiri como tu gostas.

Ná. Prefiro Weetabix. - Afastou-se, abatido, depois voltou-se e fitou-me com um ar compungido. - Desculpa ter sido chato para ti ontem.

Apetecia-me abraçá-lo por ser tão bom para mim, mas ele ia torcer-se todo.

Tudo bem - disse eu. - Ouve,-Nati, pode ser que não me lembre muito de como era a minha vida antes de tu apareceres, mas lembro-me de tudo sobre ti.

Ele fez que sim com a cabeça, tentando disfarçar o desapontamento por trás de um sorriso que me pareceu tão generoso que quase lamentei não lhe ter contado a verdade.

Ao ver os meus e-mails, descobri que Fonseca me tinha enviado uma fotografia dos carateres asiáticos escritos com sangue na sala da vítima, acompanhada de um link de onde poderia descarregar todas as páginas do caderno de endereços de Coutinho. Tendo em conta os antecedentes da vítima, parti do princípio de que os carateres eram japoneses e, no site da Universidade Nova de Lisboa, localizei o número de telefone do gabinete e o endereço eletrónico de um professor de Japonês, Yosoi Kimura. Como ninguém atendeu, deixei uma curta mensagem a pedir-lhe que me contactasse. Enviei-lhe também um e-mail e juntei-lhe a fotografia que Fonseca me mandara.

Eram quase nove horas, e eu tinha de sair para a conversa com Sandi.

Bati à porta, e Susana Coutinho surgiu-me envergando calças de caqui e T-shirt; não pusera bâton nem maquilhagem - ainda convencida, aparentemente, de que se sentiria melhor na personificação da mulher que fora antes de casar. No entanto, as olheiras denunciavam a noite mal dormida. Depois de me ter convidado a entrar com um movimento irritado das mãos, disse:

Tive uma trabalheira danada para convencer a Sandi a falar consigo, Monroe.

A expressão desagradável era uma tentativa para me fazer sentir culpado.

Vou tentar ser o mais rápido possível- assegurei-lhe.

Conduziu-me ao jardim. Sandi estava sentada à mesa em cima do estrado, sob a sombra oblíqua da palmeira, rígida e sombria, como alguém que tivesse sido injustamente punido. Desviou o olhar, mal deu por mim. Devia ter tomado duche pouco antes da minha chegada: o cabelo estava molhado e com a risca de lado, o que lhe dava o ar de um rapazinho aplicado. Suspeitei de que a mãe tinha insistido com ela para que se penteasse. Vestia ainda o casaco azul do pai, que lhe caía dos ombros até aos joelhos. Calçava uns ténis de um cor-de-rosa vivo com cordões amarelos. As meias eram verde-esmeralda. A sua necessidade de cor parecia significar que havia muito em comum entre ela e Ernie.

Aproximando-me da Sr.ª Coutinho, disse em voz baixa:

Gostaria de falar com a sua filha a sós, se não se importar.

Nem pensar! - retorquiu secamente.

Ela fala mais à vontade se a senhora não estiver a ouvir.

Talvez, mas eu não a deixo sozinha.

Pode observar-nos da janela da cozinha. Se vir alguma coisa que não lhe agrade, pode intervir imediatamente.

Soltou um suspiro.

Isto é um absurdo. A Sandi não sabe nada sobre o assassinato do seu pai. Está a perder o seu tempo.

As pessoas muitas vezes não têm consciência das coisas que sabem.

Fungou com desdém, como se eu tivesse dito uma banalidade embaraçosa.

Tudo o que sei - disse ela - é que, se o senhor a perturba, arranjo maneira de o ministro da Justiça o pôr a andar!

Tomei-a pelo braço, esperando reconquistar um pouco da confiança a que tínhamos chegado no dia anterior. Lançou-me um olhar demorado e duro com os seus olhos emaciados, tentando adaptar-se às indesejáveis surpresas que eu lhe provocava, pareceu-me.

Diga-me uma coisa, Monroe, o senhor é sempre assim com toda a gente que acaba de conhecer? - perguntou.

Assim, como?

Invasivo. E imprevisível.

Espero que sim, mas vou perguntar à minha mulher para ter a certeza.

Ela mostrou-me um sorriso relutante - divertido e irritado ao mesmo tempo. Sem que eu lho tivesse pedido novamente, voltou para a cozinha.

Bom dia - disse eu a Sandi, ao mesmo tempo que me sentava no estrado.

Ela fitou-me com uns olhos apagados, como que para me mostrar que não fazia a menor intenção de participar ativamente na conversa. Ao volante, a caminho do encontro, decidira começar por lhe fazer perguntas sobre as razões por que escondia o anel de turquesa e tinha uma faca debaixo da cama, pois tais medidas de proteção implicavam que se sentia ameaçada. Porém, em resposta às minhas perguntas, Sandi replicou:

Não tem nada com isso. - Usou o tom de uma adolescente tentando sem o conseguir, mostrar-se arrogante.

Se calhar podíamos começar do princípio - disse eu. - O seu pai pareceu-lhe nervoso ou preocupado nestes últimos dias?

Ela revirou os olhos. Podia facilmente imaginá-la a «deletar-me» mentalmente.

Deduzo que isso signifique que não notou nenhuma diferença no comportamento dele sugeri.

Não, nenhuma.

Alguma vez ouviu alguém a ameaçá-lo?

Não.

Alguma vez emprestou a sua chave de casa a algum amigo ou a alguém que andasse a trabalhar em vossa casa... um carpinteiro, um canalizador... ?

Não, nunca.

Ao passar os olhos pelas minhas notas, descobri uma coisa que esperava sacudi-la da sua atitude defensiva.

Porque perguntou ontem à sua mãe se a bala tinha atingido o seu pai pelas costas? perguntei.

Ela baixou os olhos como se eu a tivesse apanhado numa armadilha.

Não... não me lembro - gaguejou.

Uma bala pelas costas tem algum significado especial para si?

Não, porque haveria de ter?

Talvez porque isso significaria que o seu pai tinha sido traído por alguém que conhecia.

Mas a minha mãe disse-me que ele não foi morto pelas costas.

Por isso que importância tem isso agora?

Enquanto eu procurava uma boa maneira de sair deste impasse, Sandi disse numa voz frágil, apagada - dando um primeiro passo hesitante na minha direção:

Sempre pensei que o meu pai era tão forte que nada de mal lhe poderia acontecer.

Pensava que ele seria sempre capaz de se defender. Mas uma pessoa que é atingida pelas costas não tem essa possibilidade. Era isso que queria dizer?

Não sei bem... Talvez.

Tem alguma ideia de qualquer motivo que pudesse levar alguém a querer fazer mal ao seu pai? - perguntei.

Não.

Está a ver alguém que pudesse odiá-lo?

Ninguém odiava o meu pai - replicou como quem afirma um facto óbvio. - Não era esse género de pessoa.

Pelo canto do olho, reparei na Sr.ª Coutinho observando-nos da janela da cozinha. Fumava desalmadamente.

Então, não faz nenhuma ideia de quem possa ter-lhe feito mal? ­ perguntei.

Nenhuma. Desculpe. Gostava de o ajudar, se pudesse.

Ansiando por pôr um pouco mais à vontade antes de lhe fazer uma nova pergunta que a pudesse irritar, disse-lhe:

Pode voltar a dormir no seu quarto esta noite, se quiser.

Obrigada.

Há mais uma coisa que preciso que me diga - continuei. - Mas tenho medo de que fique outra vez zangada comigo, como ontem.

A minha mãe diz que eu fico demasiado zangada e nervosa com tudo. Mas vou tentar não ficar.

Preciso de saber se alguém a tem ameaçado - disse eu.

Sandi abanou a cabeça energicamente.

Não, ninguém.

Sandi, é importante para mim saber se alguém tem implicado consigo - insisti.

É isso mesmo! - explodiu ela, num lamento. - Ninguém! Quem me dera que tivesse havido, mas não houve! Foi só na minha cabeça...

O que é que foi só na sua cabeça?

Pesadelos... pesadelos terríveis! E não havia meio de-acabarem!

A sua mãe falou-me nisso. Alguém que se introduz em sua casa e lhe faz mal a si e aos seus pais.

É isso!

Alguma vez conseguiu ver quem era essa pessoa?

Não, é sempre à noite. Só consigo ver um vulto a entrar em casa.

Um homem?

Não sei bem.

Um fantasma... Alguma coisa sobrenatural?

Não sei.

A expressão dela cedeu novamente à amargura. De repente compreendi melhor o seu sentimento de culpa.

Falou à sua mãe sobre os pesadelos, mas não ao seu pai. Não é assim?

Ela assentiu entre lágrimas.

Nunca tive oportunidade de o avisar do que lhe poderia acontecer.

Tem a certeza de que a sua mãe nunca disse nada ao seu pai sobre esses pesadelos?

Tenho. Ela disse que não o queria alarmar. - Falava como se estivesse a fazer tudo para perdoar à mãe. Sem o conseguir.

Há mais alguma coisa que me possa dizer sobre os pesadelos?

Não. Faço tudo para não me lembrar deles. - Começou a passar um dedo pelos veios da madeira da mesa. Tive a sensação de que queria perguntar-me alguma coisa, mas sem o ousar.

Digo-lhe tudo o que quiser saber - disse eu.

Vai apanhar a pessoa que matou o meu pai?

Vou tentar.

Então, não tem a certeza de conseguir?

Não. Nunca posso ter a certeza.

Já tem alguma ideia de quem possa ser?

Suspeito de que seja alguém que o seu pai conhecia. E talvez também a Sandi e a sua mãe. É uma das razões por que precisava de falar consigo imediatamente.

Estava à espera de que ela sugerisse algum nome sem que eu lhe perguntasse, mas começou a passar o dedo pela mesa ainda com maior afinco. Passei os olhos pelos meus apontamentos para a aliviar um pouco da pressão a que a estava a sujeitar.

Há um quadro que talvez tenha sido mudado de lugar na sala de estar - recomecei, ao fim de algum tempo. - O que lá está agora é um do Júlio Almeida... um desenho de Fernando Pessoa. Sabe que obra estava naquele sítio antes?

Sandi levantou os olhos surpreendida.

O desenho do Almeida sempre ali esteve - respondeu de modo assertivo.

Tem a certeza?

Sim. O meu pai gostava dele naquele sítio - disse, como alguém que se levantasse em sua defesa.

É só porque o retângulo de tinta mais escura na parede por trás do Almeida podia ser uma indicação de que tinha havido ali um quadro maior. A sua mãe disse que a Sandi às vezes ia com o seu pai às galerias de arte. Por isso, pensei que poderia ser capaz de o identificar.

Não vejo que importância isso poderia ter - disse ela, tentando de novo parecer superior.

Tudo o que muda de sítio num local de crime é importante.

Mas nada mudou! - berrou ela.

Susana Coutinho saiu pela porta da cozinha e precipitou-se para nós.

Agora já chega! - rematou de imediato.

Virando-me para Sandi, decidi correr o risco de parecer ridículo.

Merece ser protegida da pessoa que a ameaçava. Voltarei para falar consigo. E prometo fazer tudo o que puder para a ajudar. - Estendi-lhe o meu cartão. Não há vultos vagos que me façam parar. Nem pesadelos. Nem pessoas que têm prazer em fazer mal a meninas pequenas.

Ao sair, pedi à Sr.ª Coutinho que voltasse a pensar em qual seria o quadro que tinha desaparecido e ela disse:

Tenho uma vaga ideia de que era um retrato, mas realmente não passa de uma suposição.

Um retrato de quem?

Uma mulher de idade...? - disse ela, como se fosse uma pergunta sem resposta.

Alguém que o seu marido conhecia? Alguém da família?

Não me parece. Oiça, Monroe, talvez não fosse sequer uma mulher idosa. Como já disse, isto sou eu a tentar adivinhar.

Tem alguma fotografia da sala onde se possa ver que quadro era?

Porque está a fazer um problema tão grande de uma coisa sem importância?

Acho que o assassino levou o quadro... por qualquer razão especial. Porque, se estivesse interessado em obras que pudesse vender por muito dinheiro, teria levado o da Paula Rego e o do Almeida. E também acho que a Sandi está a mentir quando diz que não sabia que quadro era.

Porque haveria ela de mentir?

Pensei que talvez a senhora me pudesse dizer.

Sou só mãe dela, não tenho dons de telepatia - disse numa voz irritada. Num tom mais conciliatório, acrescentou: - Mas prometo ver se há fotografias. E descobrir se a Sandi lhe mentiu.

Depois de lhe ter agradecido, o meu telemóvel tocou; era David Zydowicz. Disse-me que tinha acabado a autópsia e confirmado todas as suas descobertas do dia anterior. Também achou que o corpo de Coutinho podia ser entregue à família.

Depois de desligar, informei disso a Sr.ª Coutinho e lembrei-a de que Luci e Fonseca passariam lá à tarde. Disse-lhe também que voltaria a falar com ela na segunda-feira de manhã, ou até antes. Eram dez menos um quarto quando me vi novamente na Rua do Vale. Liguei para Luci e pedi-lhe que perguntasse a Morel e à Sr.ª Grimault se sabiam alguma coisa sobre o quadro que tinham mudado na sala. Ainda com algum tempo, decidi visitar as casas onde no dia anterior ninguém respondera, mas os moradores nunca tinham falado com Coutinho nem ouvido tiros na manhã de quinta-feira.

Cheguei a casa ao meio-dia menos vinte. Jorge correu a receber-me à porta, com a sua pequena mochila já às costas. Disse-me que a mãe tinha acabado de sair. Assim que apertámos os cintos, já instalados no Passat de Ana, mais fiável do que o meu velho Ford, enviei um SMS a Ernie avisando-o de que estávamos a sair. Nati sentou-se a meu lado como copiloto, com o mapa do Automóvel Club aberto em cima dos joelhos. Parecia ter ultrapassado o seu desapontamento em relação a mim e quase sem parar para respirar - como se largado monte abaixo ­ desatou a pôr-me a par dos últimos disparates cómicos e trágicos na escola. Quando entrámos na autoestrada, confessou-me que andava preocupado com um projeto sobre música brasileira que tinha de fazer. Se bem que, mesmo sob a apreensão e as dúvidas, me desse a impressão de que se sentia à vontade no meio da intrincada complexidade da sua vida.

Jorge ia no banco de trás com a sua girafa de madeira, a que dera o nome de Francisco. Ao passarmos a ponte sobre o Tejo, pôs-se a abanar o Francisco para cima e para baixo por trás da minha cabeça enquanto me perguntava na sua voz de girafa, agudíssima e esganiçada: «Há perigo de encontrarmos leões por estes sítios?»; «Quando é que paramos para comer umas folhinhas nos ramos das árvores?»

Havia uma brincadeira entre nós que era o Francisco ter sempre uma opinião oposta à minha sobre tudo. Era então que eu fazia uma voz furiosa e lhe repetia incessantemente para «calar o bico!» Esta expressão punha Jorge a rir-se às gargalhadas. Na viagem, eu não parava de ofegar, com a língua de fora, e de me queixar do calor; o Francisco respondia com uma voz gaguejante de frio que estava «ge-ge-gelaaado!».

Acabámos por ser apanhados pelo trânsito intenso quando seguíamos para Setúbal. Continuava no entanto a sentir-me deliciado com a maneira como Nati passava o dedo ao longo da linha que assinalava a auto estrada para me mostrar o caminho a seguir. Gostava do ar sério com que ficava perante quase tudo o que tinha de fazer. Mas só quando avistámos o castelo de Montemor-o-Novo no topo do monte me deixei invadir pela sensação de liberdade que o campo me dá. «Ninguém no Colorado ouviu falar neste lugar», pensava, estremecendo por me sentir livre. Daí a pouco, o horizonte abriu-se em panoramas tranquilizadores de cadeias de colinas salpicadas de manchas prateadas de oliveiras. Desci o vidro para sentir o cheiro a terra, intenso e sensual, das flores estivais e da erva ressequida. Quando parámos para meter gasolina, os miúdos compraram qualquer coisa para comer enquanto eu enchia o depósito, depois sentaram-se na borda do passeio junto do aparelho para medir a pressão dos pneus enquanto lavava o para-brisas. Nati petiscava umas batatas fritas e Jorge devorava uma barra de chocolate. Bebiam uma Coca-Cola a meias. Acenei-lhes. Eles acenaram em resposta. O absurdo de acenar aos meus filhos mesmo quando estavam a poucos metros de mim nunca deixou de me dar a sensação de ter penetrado num mundo de ternura onde só podem acontecer coisas boas.

O Alentejo não tinha nada de monumental- nem montanhas com cimos de neve nem morros altaneiros como no Oeste americano -, mas as casas caiadas e as ruas calcetadas exibiam uma tal ordem e limpeza, e a variedade de verdes das suas paisagens era tão docemente tranquilizadora - como um sonho de criança que tivesse tomado forma - que parecia ser o sítio perfeito para mim e para os miúdos.

No entanto, cerca de dez minutos depois de termos deixado a estação de serviço, reparei num Fiat branco todo amolgado que parecia estar a seguir-nos. Recusava-se a ultrapassar-me mesmo quando eu abrandava. Com o coração a saltar-me do peito, segui devagar para a berma de gravilha da estrada. Quando o Fiat chegou a uns cinquenta metros, a minha apreensão explodiu em raiva.

Não te mexas! - ordenei a Nati. - E tu fica quieto também! ­ disse, voltando-me para Jorge.

Que se passa, papá? - perguntou Nati, ansioso.

Dei-lhe uma palmadinha na perna.

Vai correr tudo bem. Fiquem aqui.

Há momentos em que somos pouco mais do que uma única emoção dominante. Fui buscar a arma ao porta-bagagens. De uma coisa estava certo: não sentiria o mínimo remorso por matar alguém que fosse uma ameaça para os meus filhos.

Ao volante do Fiat via-se um homem novo de cabelo escuro e curto.

Dirigi-me para ele empunhando a arma. Ele arrancou e começou a descrever um círculo apertado. Foi então que disparei para o ar.

Ele parou com um rangido. Tinha uma cara descarnada e por barbear. Berrou qualquer coisa pela janela, mas não entendi o que disse; sentia o sangue a latejar-me nos ouvidos.

Saia do carro! - gritei.

O homem empurrou a porta e saiu com as mãos em cima da cabeça. Era alto e desengonçado. Deveria ter trinta e poucos anos.

Não dispare! Sou jornalista. - Esforçou-se por disfarçar com uma risada o seu terror, mas o que lhe saiu mais parecia um gemido.

Que me quer você? - perguntei

Queria falar consigo sobre Pedro Coutinho. Estava à espera de que deixasse os seus filhos num sítio qualquer e fosse para a sede da polícia. Quando o vi seguir para a auto estrada fiquei sem saber o que fazer e, por isso, vim atrás de si. Desculpe.

Baixei a arma. Ele baixou os braços.

Queria entrevistá-lo - explicou-me. - Trabalho para o Record.

Que raio tem um jornal desportivo a ver com o Coutinho? - perguntei.

Ele era um grande adepto do Sporting.

Diga-me uma coisa, os jornalistas neste país pensam que podem fazer o que lhes apetece?

É uma reportagem importante. Se não a conseguir posso perder o emprego. Os tempos estão difíceis.

E o senhor acha que pode usar a crise económica para se justificar de me assustar a mim e aos meus filhos!

Oiça - disse ele, apelando à minha compreensão -, e se falássemos só uns minutos? Seria uma grande ajuda.

Exibiu o que devia considerar um sorriso sedutor. Pior: tomou o meu silêncio atónito por assentimento.

Parece-me que era melhor gravar a nossa conversa - disse ele.

Nem pense! - disse eu.

Então, tomo só algumas notas - propôs, num tom amistoso, e desta vez tive a certeza de que se fizera propositadamente desentendido quanto ao significado das minhas palavras. Por esta altura sentia já a cabeça a pulsar; G tinha-se colocado atrás de mim. Respirei profundamente para o manter ao largo.

Oiça, não volte a seguir-me ou enfio-lhe um balázio! - disse eu.

Agora entre no carro e ponha-se a andar daqui!

Depois de ele ter arrancado na direção de Lisboa, voltei a guardar a arma no porta-bagagens. Jorge abriu a porta do carro e correu para mim. Quando me alcançou, já G tinha desaparecido.

Era só um jornalista - disse eu ao miúdo, abraçando-o, mas ele deve ter pressentido a minha ansiedade e começou a choramingar.

A porta da frente abriu-se e voltou a fechar-se com estrondo. Nati olhava-me de cenho carregado na berma da estrada. Enxuguei os olhos de Jorge e levei-o de volta para o carro. Nati entrou também. Depois de me ter enfiado atrás do volante, pedi desculpa a ambos.

Porque nos seguia ele? - perguntou Nati.

Ando a investigar a morte de um tipo que conhecia uma data de pessoas importantes.

Pensando nas coisas más que me poderiam acontecer, recolhi-me num silêncio sombrio enquanto nos púnhamos a caminho. Nati fixava o mapa de modo convincente, mas percebia que ele continuava em pânico - e furioso comigo. Felizmente, Jorge tinha Francisco para lhe fazer companhia no banco de trás e entretinha-se em animada conversa com ele sobre os amigos da escola.

Ei, papá, as montanhas no Colorado são muito grandes? - perguntou Jorge na voz esganiçada de Francisco quando saíamos da N354 em direção à estrada para o fim do mundo que nos levaria a casa de Ernie.

Tenho de pensar um bocado - respondi; continuava nervoso.

Daí a pouco, avistei as romãzeiras abandonadas de que Ernie falara. Pensei que poderíamos apanhar uns minutos de sol. Nati ficou à espera dentro do carro, falando ao telemóvel com Binky. Enquanto Jorge e eu apanhávamos as flores de um tom alaranjado brilhante, disse-lhe: Às vezes, pequenino, as montanhas do Colorado são tão grandes como o céu inteiro.

Então não há sol?

Não, desaparece. E também não há lua nem estrelas. As montanhas são tudo. Mas o mais estranho é que aquele género de tudo tem dois lados.

O meu pai costumava dizer-nos isso, a mim, ao Ernie e à minha mãe. Nunca tinha percebido muito bem o que ele queria dizer até agora.

Jorge pôs as últimas flores no meu cestinho de vime.

Quais dois lados? - perguntou.

O lado que se vê e o lado que não se vê.

«Em qual desses lados vivias tu e o tio Ernie?» Jorge não me fez a pergunta. Mas, se o tivesse feito, teria respondido: «Isso mesmo... no lado que ninguém podia ver,»

 

A entrada para a compra da casa de Ernie levou-nos um terço do que ganháramos com a venda da nossa casa no Colorado. Saiu-me barata porque as paredes e o telhado estavam em ruínas. E também porque os mais de dois hectares de olival e de vinha, invadidos pelas ervas daninhas, estavam cobertos de lixo, garrafas partidas, bidões e até a armação enferrujada de uma cama de ferro. Na minha primeira visita, quando atravessei o que em tempos fora a porta de entrada, vi um gato bravo - branco, com uma cauda cinzenta - que assomou de sob umas telhas rachadas, bufou satanicamente e depois se eclipsou, tentando convencer-me o melhor que podia de que era um mau augúrio. No entanto, para mim, tornou-se desde logo evidente, com a mesma certeza fácil com que um leitor volta a página, que tinha já decidido comprá-la; do seu elevado pedaço de terra, Ernie poderia esquadrinhar o horizonte em todas as direções. Na primavera, teria a resguardá-lo um mar de flores silvestres - mantendo-o ao mesmo tempo fornecido de materiais floridos para o seu trabalho artístico.

A reconstrução começou no dia 9 de dezembro de 1996. Lembro-me da data precisa porque tinha conhecido Ana três dias antes e estava já loucamente apaixonado. Depois de terem erguido pilares de aço, os trabalhadores deitaram abaixo todas as paredes interiores. No dia 4 de abril de 1997, um sábado, apercebi-me de um pequeno saco esgarçado espreitando de entre um monte de entulho. Lá dentro havia algumas moedas castanhas com verdete, as bordas irregulares e um cheiro acre. Ernie e eu contámos cinquenta e quatro moedas, todas iguais, com o retrato de um monarca com uma coroa de louros num lado e um anjo no outro. Nessa semana, dias depois, um negociante em moedas de Lisboa identificou-as como sendo sestércios romanos do século IV. Eram de bronze e tinham sido cunhados em Constantinopla. A figura real na face da moeda representava o imperador Constantino. O que tínhamos pensado ser um anjo era na verdade a Vitória Alada, o equivalente romano da deusa grega Niké. Infelizmente, não valiam tanto quanto pensáramos - apenas uns quantos milhares de dólares. Por isso, acabámos por ficar com elas.

A nossa descoberta veio anunciada no Diário de Notícias do dia 19 de abril de 1997, um domingo. No fundo da página sete via-se uma fotografia da tia Olívia comigo. Ernie deu à imagem o nome de «Tia Olívia e a bomba-relógio romana», por ela segurar o saco esfiapado das moedas afastado do corpo como se estivesse prestes a explodir e reduzir-nos a cinzas.

A tia Olívia vestia uma saia de linho de um cor-de-rosa de urze e uma blusa branca bordada; tinha escolhido o seu melhor colar de pérolas e um lenço de seda violeta que lhe havíamos oferecido quando fizera sessenta anos. Tinha postos os óculos com os espessos aros de tartaruga que lhe davam um ar de pessoa erudita e inteligente - que era. Um esquilo com óculos. É o que ela parece nas fotografias que guardo na minha mesinha de cabeceira. Tinha sessenta e três anos em 1997, era alegre e continuava a ir a pé ao mercado de Évora todas as manhãs comprar fruta e verduras, sempre devotada a Ernie e a mim. Porém, a surdez estava já a tornar-se um incómodo, e lembro-me de que o fotógrafo teve praticamente de lhe gritar as indicações, pois ela não estava habituada a ler nos lábios.

As objetivas deixavam a tia Olívia nervosa e paralisada; por isso, tive de me manter junto dela, mostrando um sestércio na mão levantada. Seguro-o apertado entre o polegar e o indicador, sorrindo como um convidado num programa de televisão americano porque o fotógrafo insistia em que eu fizesse um sorriso realmente grande. Ernie poderia ter entrado também para os arquivos do Diário de Notícias, mas no último momento encolheu-se.

Será que a família romana que viveu na Villa Ernesto - nome que depois demos à casa - viera de Constantinopla? Ou os sestércios das variedades cunhadas no Império estariam dispersos por toda a Europa? Nunca consultei nenhum especialista; preferia o mistério.

Assinar os papéis de uma casa que fora habitada pelo menos durante mil e seiscentos anos significava muitas coisas para mim, mas, acima de tudo, que fazia agora parte de uma história que se estendia para além do meu tempo e espaço. No dia em que Ernie se mudou para lá, compreendi que eu quisera fazer parte de uma coisa maior do que eu próprio desde que nós os dois éramos pequenos.

Assim que os trabalhadores deram a obra por terminada, em março de 1998, contratei um homem que negociava em pedra e mandei descarregar uns duzentos e cinquenta quilos de uma espécie de seixos lisos, cinzentos e brancos, semelhantes às pedras do rio que noutros tempos colecionávamos no Colorado. Ernie e eu espalhámo-los às pazadas numa vala de cerca de um metro de largura a toda a volta da casa. Ninguém poderia chegar à porta de entrada sem que Ernie se apercebesse.

Como retoque final, plantámos vinte e quatro laranjeiras, que nos davam pelos ombros, a ladear a estrada escalavrada que levava à casa e a que o meu irmão insistia em dar o nome de Via Enrico. Tínhamos projetado uma fonte com Pan a tocar flauta junto à porta da frente, mas por essa altura só nos restavam dois mil dólares no bolso.

Continuava, porém, a lamentar nunca termos posto um Pan a receber os visitantes e comecei mentalmente a esculpi-lo de novo enquanto passávamos pelas minúsculas casinhas caiadas da Quinta da Vidigueira, a última aldeia antes da casa de Ernie. Um toque de telemóvel arrancou me aos meus devaneios. Encostei à berma ao ver que era Luci. Disse-me que estava já na casa da vítima, Morel também e Fonseca tinha ligado a dizer que ia a caminho. Para mim, a prontidão com que Morel se dispusera a regressar a Lisboa mostrava que era pouco provável que tivesse alguma coisa a ver com o crime, mas continuava a existir uma possibilidade de ter ameaçado Sandi de uma qualquer maneira. Por agora, esperava que Luci conseguisse refrescar-lhe a memória e que ele se lembrasse de ter visto um casaco ou qualquer outra peça de roupa que nos ajudasse a identificar a amante de Coutinho.

Depois de desligar, telefonei a Susana Coutinho. Estava de ressaca.

Numa voz áspera e enrouquecida, disse-me que se lembrara de que Pedro tinha tirado umas fotografias à sala onde deviam ver-se alguns dos quadros, mas que não conseguia encontrá-las.

Depois de eu desligar, Nati perguntou:

Com quem estavas a falar?

Com a mulher do homem que mataram. - Dei-lhe uma palmadinha na perna. - Daqui a poucos minutos estamos em casa do Ernie. Gostava de ter uma conversa contigo sobre copos antes de lá chegarmos.

Preferia que não me viesses com um grande sermão - disse ele, carregando o sobrolho.

Vou tentar ser rápido. Daqui a dois meses, quando fizeres catorze anos, podes começar a beber meio copo de vinho ao jantar. Ou de cerveja. Na minha opinião, parece-me bastante acertado. E prudente, dada a história da nossa família.

Prudente?

Devidamente cauteloso.

Eu conheço a palavra, papá. - Revirou os olhos.

Nati devia ter decidido que tornar a conversa difícil para mim também era acertado.

Por outras palavras - continuei -, estou a pedir-te que te abstenhas de beber por pouco mais de um ano. - Falei em «abster-se» para deixar claro que não estava disposto a limitar o meu vocabulário só para evitar que ele se risse de mim. - Fica combinado?

Ele baixou os olhos, considerando as suas opções.

O Francisco está com fome - chilreou Jorge, e enfiou a cabeça por entre os assentos à espera da minha resposta. - Quer uma sanduíche de atum.

Estou a ter uma conversa importante com o teu irmão. Volta a pôr o cinto de segurança, se fazes favor.

Quero uma sanduíche de atum - refilou em português, para o caso de o inglês não ter tido impacto suficiente em mim. Para reforçar a minha inaptidão, exclamou: - Como as que a mamã faz!

Deixa-o em paz, Dingo! - cortou Nati.

Cala o bico! - retrucou o miudito, à espera de me arrancar pelo menos um riso. Um clone meu de sete anos, Deus me perdoe. Antes de ter tido oportunidade de lhe mostrar o meu sorriso paternal, Nati virou-se para ele:

Tu é que calas o bico, meu cromo!

Jorge desatou a chorar; devia estar ainda nervoso por causa do meu confronto com o jornalista.

Muito obrigado! - disse eu a Nati.

Não tens de quê - respondeu, em tom hostil.

Jorge soluçava. Estávamos em queda livre para o inferno. E eu nem sequer me tinha apercebido de que estava a cair.

Disse ao pobre do miúdo para sair do carro, tomei-o nos braços e encostei-lhe a cabeça contra o meu peito. As lágrimas quentes corriam­lhe pela cara e respirava com dificuldade. Passaram dois carros a toda a velocidade. Palpei-lhe o pulso e vi que tinha o coração acelerado. Levei-o para a sombra de um sobreiro, sentei-o na erva e pedi-lhe para olhar para mim.

Olha para os meus olhos - disse-lhe com um sorriso animador.

Jorge arquejava com a ansiedade, mas fiz o melhor que podia para lhe mostrar que nunca deixaria que nada de mau lhe acontecesse. Depois de um ou dois minutos, a respiração acalmou e a expressão animou-se.

Mas o suor continuava a correr-lhe pela cara. – Muito bem – disse eu. Limpei-lhe a cara com um lenço de papel. O pulso dele voltara ao normal. Com alguma sorte, o meu também não tardaria a voltar.

Eram quase duas horas da tarde quando parámos no espaço coberto de gravilha frente à casa de Ernie, ao lado do seu Chevrolet lmpala enferrujado. Rosie, a cadelita com pelo de arame, precipitou-se para nós, vinda do meio do matagal depois das laranjeiras, e atirou-se aos pneus da frente do meu carro para os morder.

Quando Jorge abriu a porta do carro e esticou os braços para Rosie, ela desatou a cabriolar em círculos apertados, extáticos, e depois saltou para cima dele, a latir. Momentos depois, Ernie saiu de casa com as mãos enfiadas nos bolsos da frente dos jeans coçados. Vestia o casaco de cabedal e uma camisa branca. Na parte de trás do chapéu de cowboy tinha espetada uma pena verde. Era um toque de nativo americano que lhe ficava muito bem, talvez por dar impressão de querer lembrar-nos de que éramos de muito longe daqui - de um mundo completamente diferente, na verdade. O cabelo castanho e farto caía-lhe sobre os ombros. Estava descalço e trazia já postas as luvas cirúrgicas.

Observando-me com um sorriso disfarçado, fazia-me lembrar, como tantas outras vezes, o autorretrato de Albrecht Dürer - um que tínhamos visto com a tia Olívia, no Prado, em Madrid, e de que ele comprara um póster. Estou certo de que nesse dia Ernie compreendera uma coisa importante sobre a pessoa que queria ser, naquele momento de identificação com o artista alemão há muito desaparecido.

Mais tarde disse-me o que tinha sido: «Eu posso habitar o meu próprio mundo.»

Ainda antes de ter consciência sequer de ter aberto a porta do carro, já eu me dirigia ao encontro de Ernie. Ver o meu irmão mais novo deixava-me vazio de tudo o que não fosse a necessidade de o ter nos braços. Tirou o chapéu e sorriu-me naquele seu modo furtivo. Abraçámo-nos e aspirei o seu cheiro a papas de aveia. Esfreguei a minha cara na dele, para que a lixa da sua barba crescida pudesse lembrar-me de que era já um homem. Esfregou a cara na minha, o que sempre me transmitia a sensação de que éramos irmãos num mito ou num sonho, crianças da floresta aprendendo a reconhecer-se pela pele.

Ter ali Ernie, são e salvo, e adulto, com uma vida independente no meio das suas flores e árvores, era uma coisa tão grande e profunda, com emoções de tal forma complexas, que não havia sequer palavras para expressar como isso continha tudo o que jamais realizei na vida e tudo o que alguma vez poderia sonhar realizar. Abraçámo-nos durante mais tempo do que aquilo que a maior parte das pessoas acharia apropriado porque precisávamos disso para nos separarmos.

Quando finalmente nos largámos, Jorge correu de encontro à barriga do tio. Ernie soltou um arquejo, pois era isso que o miúdo esperava, e depois deu-lhe um beijo na cabeça.

O Francisco está esfomeado! - declarou Jorge, erguendo a girafa. E quer atum!

Desculpa, só tenho beringela estufada e uma grande salada. Mas é tudo fresco, fresco, fresco... apanhado esta manhã na horta!

Ernie esperava que o seu entusiasmo conseguisse compensar o erro na ementa. Mas nestes últimos meses Jorge tinha descoberto o prazer - e o poder - de ser inflexível.

O Francisco quer atum! - choramingou, e desatou a bater o pé como faz quando está cansado. Agarrei-o então com um rugido e atirei-o por cima dos ombros, o que lhe provocou umas valentes gargalhadas; continuava a ser uma esponja para a ternura, graças a Deus.

Rosie ladrou furiosa por estarmos a divertir-nos sem ela.

Olá, tio - disse Nati a Ernie, contornando o carro para ir ter com ele.

Olá, Nathaniel - respondeu o meu irmão.

Nati inclinou-se para um beijo, ao mesmo tempo que procurava manter uma certa distância. Com o meu irmão, dava muitas vezes a impressão de não saber o que fazer das mãos e dos pés.

Tens fotografias da Ponderosa? - perguntei a Ernie. - O Nati queria vê-las. E, se tiveres alguma fotografia dos velhotes, podias também mostrá-la. - Contava que Nati me desse alguns pontos por me lembrar do seu pedido logo à chegada, mas ele esquivou-se ao meu olhar, mostrando-me que não me perdoara ainda o que quer que fosse que eu fizera de errado.

Pode ser que consiga desencantar uma ou duas fotografias do sítio onde vivíamos - disse Ernie ao sobrinho, usando o sotaque do Colorado para o efeito cómico -, mas não tenho nenhuma dos teus avós.

Depois de o pôr no chão, Jorge começou a girar em círculos estonteantes, explorando ao máximo a vertigem e tentando captar a minha atenção. Agarrei-o e prendi-o entre as pernas, que era o que ele pretendia. Enquanto Rosie lhe lambia as mãos, ele levantou os olhos para mim murmurou:

Papá, as flores!

Vai buscá-las! - murmurei em resposta, empurrando-o para o carro.

O cesto com as flores de romãzeira estava no banco de trás. Jorge esgueirou-se lá para dentro e saiu com tal entusiasmo que metade se espalhou pelo chão. Rosie desatou a farejá-las, com as narinas escuras dilatadas e soprando. Jorge, Ernie e eu pusemo-nos de joelhos a apanhá-las.

Obrigado, ervilhinha-de-cheiro - disse Ernie, recebendo as flores que o sobrinho lhe entregava. Mereces o prémio do Jogador Mais Valioso do dia!

Os miúdos e eu levámos as bagagens para dentro, enquanto Ernie punha o cesto de flores em cima da mesa de trabalho, uma antiga porta de carvalho que ele recuperara de uma lixeira em Évora uns anos antes. Rosie tinha ficado lá fora, arranhando a porta de rede e fixando-nos com a sua expressão mais solitária, mas segundos depois - não sendo dotada para o melodrama - desistiu e desapareceu a correr.

A Villa Ernesto não tinha divisões - nada de quartos ou armários onde um intruso pudesse esconder-se. Nem espelhos.

O sol de julho dera às cortinas amarelas uma cor dourada, e o cheiro a terra dos campos entrava casa dentro pelas janelas abertas. Os rapazes e eu descalçámo-nos. Jorge deslizou pelo chão de madeira até às roseiras que rodeavam a cama de Ernie. Aspirou o perfume de um ramo de botões vermelhos. Voltando-se para nós, disse numa voz de anúncio:

Mais perto do que pode pensar! - Era o slogan de um cartaz do Corte Inglês que ele devia ter visto no caminho de Lisboa até ali.

Ernie disse:

Experimenta as rosas cor de fogo, Ervilhinha.

Jorge aspirou profundamente as flores mais vistosas e fez girar a cabeça como se estivesse prestes a desmaiar com o perfume, depois deixou-se cair de costas em cima da cama. Sempre que tinha o meu irmão por perto, transformava-se num artista de circo, constantemente ansioso por ser o centro da atenção do tio.

Ernie tinha colocado uma fotografia emoldurada de Patsy Cline por cima da cabeceira da cama. Li em silêncio a dedicatória: «To Bill's kids, Kisses, Patsy,» Vestia uma saia de tecido escocês e um chapéu de cowboy, seduzindo a câmara com aquele seu olhar descarado de rainha dos rodeos que ela levara à perfeição. Tocando com a ponta do dedo no coração que ela desenhara por cima do i de Kisses, lembrei-me de como o meu pai nos contara que a minha mãe ficara «caidinha por ele» no Joes Steaks em Washington D.C. Era caloira na Marymount College. Tinha recebido uma bolsa de estudos atribuída pela Igreja em Portugal.

Se o meu pai não a tivesse encantado com as suas lérias sobre a última tournée de Patsy, e não a tivesse beijado com uma paixão abrasadora à porta da residência universitária, Ernie e eu nunca teríamos nascido. E a minha mãe ainda estaria viva. O que prova, poderá dizer-se, uma coisa espantosa: que tudo o que aconteceu na nossa vida significou que milhentas outras coisas nunca viriam a acontecer.

A minha mãe disse-me que, antes de casar, o meu pai se mostrara «maravilhoso». Uma vez, fizemos os dois uma lista das palavras portuguesas que ela usaria para o descrever quando se conheceram: maluco, elegante, espirituoso, sedutor. Contou-me que o meu pai lhe cantou canções românticas de Cole Porter. E que fora também o primeiro homem com mãos suficientemente firmes para a conduzir através de uma pista de dança. Foi só depois de se casarem que ele começou a maltratá-la. A minha mãe nunca compreendeu a razão dessa mudança. A minha teoria é que ele nunca mudou; apenas fingiu maravilhosamente bem que era maravilhoso.

O meu irmão examinou a fotografia de Patsy Cline olhando-a por cima do meu ombro.

A Patsy desenhou um coração - disse-lhe, apontando. - Não me lembrava disso.

Foi a única vez que nos cruzámos com a fama - respondeu ele - e foi antes de nascermos.

Não estou a perceber - disse Nati.

Passei-lhe para as mãos a fotografia.

O meu pai era um dos roadies da Patsy - expliquei. - Ela deu-lhe esta fotografia autografada em 1962. Ele e a minha mãe só se casaram em 1966 e eu vim ao mundo quatro anos mais tarde. Ele pediu à Patsy que assinasse a fotografia para os futuros filhos, para mim e para o Ernie.

Wow, o avô devia ser muita fixe!

Tenho a certeza de que Nati disse «avô» para me desafiar; por isso, repliquei em tom de aviso:

Se te parece fixe, então é porque tens algum problema grave de entendimento.

Mas afinal quem é a Patsy Cline’ perguntou Nati, devolvendo a fotografia ao tio.

Uma cantora country - disse Ernie. - Era a maior!

Nunca ouvi falar nela.

O meu irmão cantou um pouco de Walking After Midnight - afinado e na sua bela voz de barítono -, mas Nati revirou os olhos e disse que lhe soava antiquado.

És capaz de ter razão - respondeu Ernie. - Seja como for, a Patsy morreu num acidente de avião em 1963.

E isso foi o fim da carreira do meu pai na música - anunciei numa voz de contentamento.

Como assim? - perguntou Nati.

Nessa altura ele já era conhecido. Ninguém lhe daria emprego depois de a Patsy morrer.

Conhecido como?

Fodia tudo em que se metia.

Nati olhou-me espantado, porque se contavam pelos dedos as vezes em que eu dissera um palavrão diante dele. Atirei o saco de viagem para cima do futon. Sentindo que as minhas emoções estavam prestes a descarrilar, comecei a considerar os prós e os contras de tomar um Valium.

Ernie arrancou-me às minhas cogitações batendo palmas.

Chega de conversa! Todos para a mesa!

A caminho, detive-me diante da mesa de trabalho de Ernie para examinar a sua última pintura. Uma figura esguia e amarela com braços emaciados escalava uma montanha negra, sinistra, em forma de pirâmide, feita de ramos e sementes queimados. O sol - um círculo delicado de flores da cor do fogo chamadas cordão de frade - fundia-se acima do pico em vagas de violeta e azul. No canto da paisagem, num vale fértil em forma de taça, que parecia simultaneamente uma proteção e uma prisão, viam-se dois homens minúsculos e uma mulher idosa. De cabeça levantada e as bocas abertas, tinham um ar atónito diante da vista - e constrangido pela perigosa muralha de trevas em frente. Estavam em pé, de mãos dadas, como figuras de papel recortado, querendo ajudar-se uns aos outros, mas intimidados.

Percebi que eu era o homem azul de cabeça cor de laranja; Ernie representava-me sempre com esporas silvestres e papoilas da Califórnia. Uma vez dissera-me que eram as flores que lhe ocorriam sempre que pensava em mim.

A compleição frágil da mulher e a sua forma angulosa e desajeitada davam a entender que nunca atingiria o cume.

É a primeira vez que pões a mãe numa pintura tua - disse a Ernie, que levava uma jarra de gladíolos cor-de-rosa para a mesa.

Percebeste logo que era ela? - perguntou, com um sorriso grato.

Claro - assegurei.

O meu irmão chamou os rapazes para a mesa. Na saladeira de cerâmica preta viam-se verduras cultivadas por ele, coroadas por flores de chagas amarelas e cor de laranja. Não faltava uma garrafa das grandes de Coca-Cola para Nati e Jorge, e um jarro de sumo de cenoura para Ernie e para mim.

Os toalhetes - da Tailândia - eram de seda cor-de-rosa cintilante, e os copos – mexicanos espessos e azuis, com umas bolhas esverdeadas que se tinham formado no vidro. Dava-me muitas vezes a impressão de que Ernie era um homem recentemente curado de cegueira - procurando sempre rodear-se de cor.

Jorge e eu ocupámos os lugares habituais, mas Nati preferiu esperar até a comida ser servida. Ficou à janela que dava para o roseiral do tio.

À vontade - disse Ernie. Enfiando as luvas de cozinha da tia Olívia em forma de árvore de Natal, abriu com estrondo a porta do fogão e retirou a caçarola de barro branco com a beringela estufada. Poisou-a na mesa em cima de uma base de azulejo e recuou para verificar se estava bem assente. Achando que não se encontrava no sítio certo, deslocou-a um pouco para junto da saladeira. Ainda não estava bem, e chegou-a mais para junto da borda da mesa.

A vida era para Ernie muitas vezes um jogo de xadrez consigo próprio. Apressá-lo faria apenas com que perdesse o jogo, por isso disse-lhe que não havia problema nenhum quando pediu desculpa por levar tanto tempo a ter tudo pronto. Nati olhava pela janela. Imaginei que estaria a ver-se a si próprio a caminho da estrada para Évora e a apanhar um autocarro para casa.

Depois de Ernie ter mudado as coisas pela sétima vez, Jorge perguntou-me o que estava o tio a fazer. Já lhe tinha explicado antes, mas esquecera-o. «Ele precisa de ter tudo no alinhamento certo.»

Finalmente, quando Ernie tinha tudo nos sítios que considerava certos, sentou-se ao lado de Jorge, e Nati deixou-se cair na cadeira junto a mim do outro lado da mesa. O meu irmão pediu me para dizer a oração de graças. Aproveitei a oportunidade Rara estabelecer uma trégua com Nati

Agradecemos o solo do Alentejo e as plantas pelas dádivas que hoje nos dão - comecei. Estamos gratos a Ernie pela sua horta e pelos seus cozinhados, e a Jorge e Nati por se terem privado de um sábado em frente da televisão e da internet. Solenemente pedimos desculpa por quaisquer erros que tenhamos cometido desde a última vez em que estivemos juntos. «Solenemente» era uma palavra da tia Olívia. Podia ainda ouvir a sonora redondeza com que ela a pronunciava. A minha tia incluíra-a em muitos dos encantamentos destinados a transformar dois rapazes perdidos em qualquer coisa semelhante a dois homens.

Ámen - disse Ernie, sorrindo-me ao reconhecer a linguagem cifrada com que eu agradecia à nossa tia.

Estava à espera de uma expressão de está-tudo-perdoado na cara do meu filho mais velho, mas ele desviou o olhar como se eu estivesse a interferir nos seus pensamentos. O silêncio tenso de Nati durante o resto do almoço era como um anúncio de néon a relampejar: «Estou chateado, e a culpa é do meu pai!» Na altura da sobremesa - os famosos biscoitos de chocolate e canela -, o rapaz amuado deu uma palmadinha na barriga, disse que estava cheio e, de Moby Dick na mão, foi procurar refúgio no alpendre protegido por uma porta de rede. Jorge ficou com sono a meio do terceiro biscoito, poisou a cabeça na mesa e fechou os olhos.

Está na hora da tua sestinha - disse Ernie, tirando-lhe o resto do biscoito dos dedos lassos e oferecendo-mo. Pegou em Jorge ao colo e levantou-o. Depois lançou-me um olhar apreensivo. - Posso? - murmurou.

Caramba, Ernie, já sabes que não precisas de perguntar - respondi num tom aborrecido.

Ernie levou Jorge para o futon e aconchegou-o com movimentos rápidos e precisos. Apercebi-me de como admirava o meu irmão mais do que qualquer outra pessoa, e reparar no encantamento que se lia nos seus olhos enquanto enfiava uma almofada debaixo da cabeça do meu filho valeu o dia. Era como se tivesse conseguido oferecer-lhes, a ele e a Jorge, a prenda de que mais precisavam. Tinha já levado Ana a prometer-me que se eu morresse antes de os miúdos serem adultos ela faria com que Ernie fosse uma presença constante na vida de Jorge. Com o meu irmão, o meu filho haveria de aprender a rodear-se de coisas simples e belas - e talvez até a deixar de temer o silêncio. E o meu irmão não ficaria tão destroçado com a minha morte se soubesse que havia um miúdo a contar com ele.

Ernie voltou para junto de mim em bicos de pés.

Magoa-me que ainda me peças autorização - disse-lhe.

Sai-me sem pensar.

O miúdo acha que tu és esquisito, mas perfeito.

Isso é um paradoxo - observou.

Para ele não é. Ter sete anos tem claras vantagens.

Depois de termos lavado a louça, Ernie foi buscar as fotografias do nosso rancho. Tirou as luvas de látex, deduzindo que o sobrinho se sentiria-mais à vontade com ele se tivesse um ar «um pouco menos pirado», como me disse com m sorriso cúmplice.

Fiquei atrás das cortinas a observá-los. Nati sentou-se no velho banco que tínhamos pintado de amarelo alguns anos antes e Ernie, numa das cadeiras de vime. Deixou que o meu filho fosse passando as fotografias em silêncio e depois contou-lhe como costumávamos andar à procura de escorpiões nas bordas do Black Canyon e como o interior do Colorado tinha sido a nossa verdadeira terra natal.

Tudo o que víamos na natureza aceitava-nos, ao teu pai e a mim, tal como nós éramos - disse ele.

E os teus pais não? - perguntou Nati.

O nosso pai não.

Ele dizia-te coisas horríveis aos berros, não era?

Ernie agarrou na gravata de cordão - com uma figura de prata de Kokopelli, o deus travesso do Sudoeste americano - e olhou para fora, para o horizonte.

Ele não queria, Nati, mas era o que fazia.

Inundou-me um sentimento de culpa por estar a invadir a privacidade deles, e então mudei-me para a mesa de Ernie e passei o dedo em volta das pétalas que formavam a silhueta da nossa mãe na sua última pintura. Quando voltou para casa, disse-me que a conversa entre os dois parecia ter corrido bem, depois lavou as mãos no Lava-loiças. Assim que acabou, peguei nos meus sacos de recolha de provas e pedi-lhe para irmos dar uma volta.

Quando seguíamos a caminho do grande maciço de alfarrobeiras, frondosas, de ramos grossos, atalhamos para o roseiral, e Ernie pegou num louva-a-deus de cima de uma folha. O inseto, que se confundia comum rebento de planta, tinha uma cor castanho-esverdeada, umas patas compridas espinhosas e uma cabeça serena, nobre, levantada - o bailarino do mundo invertebrado. Ernie disse-me que um mês antes espalhara dois mil louva-a-deus bebés na horta. Encomendara-os de Espanha. Iriam devorar os afídeos e outras pragas de insetos durante todo o verão. Às vezes conseguiam esgueirar-se para dentro de casa, e até para a sua cama, mas não se importava.

À sombra da mais velha e copada das suas alfarrobeiras, sentados na manta verde que Ernie trouxera, estendi-lhe o saco que continha a faca de Sandra e contei-lhe que a encontrara debaixo da cama dela. Ficou com os olhos esgazeados de apreensão.

Porque me mostras isso, Rico?

Tinha uma mentira preparada.

Lembras-te de como costumávamos esconder os nossos pratos do jantar debaixo da cama quando não nos apetecia lavá-los logo? Pensei que talvez tivesses alguma ideia da razão que a terá levado a esconder a faca.

Abanou a cabeça. Iria jurar que estava a esconder-me alguma coisa.

E ele percebeu que percebi, o que o deixou nervoso. Passados instantes, levantou-se e caminhou pelo declive suave da encosta em direção ao leito seco do riacho onde algumas vezes encontrámos cogumelos comestíveis. Segui -o até o apanhar enquanto ele procurava atrás de um carvalho tombado. Mostrei-lhe o honeydripper.

Também encontrei isto... Enfiado num canto da cama da miúda.

Porque estás tão preocupado em saber o que se passa com ela? - perguntou.

Porque ela se recusa a dizer a quem quer que seja quem a está a magoar ou a ameaçar. Acha que a sua única proteção é o silêncio. E tanto tu, Ernie, como eu sabemos muito bem que isso nunca será suficiente.

Quando ele se afastou, não o segui. Voltei para casa e sentei-me no futon com o nosso saco de moedas romanas nos joelhos. Nesse momento, aquele peso tilintante significava para mim que o passado por vezes nos envia mensagens e que algumas delas podem mudar as nossas vidas no presente. Contemplava Jorge a dormir, lamentando que ele em breve crescesse e se afastasse de mim como o irmão mais velho - e esperando ser capaz de o deixar seguir o seu caminho sem me opor.

Ernie voltou daí a meia hora. Os joelhos das calças estavam sujos de terra. Teria ele estado a rezar?

Apanhou a moeda romana que lhe atirei e fez um aceno cúmplice com a cabeça, como se soubesse que à minha maneira também eu estivera em comunhão com os deuses menores.

Dá-me só algum tempo e eu digo-te o que souber - disse ele.

 

Não tentes enganar-me - disse Ernie, em tom ressentido. Amachucava entre as mãos uma bola de basebol coçada.

Estávamos sentados no alpendre de pedra, sob uma espessa ramada de kiwis, que baloiçavam pendentes como brincos castanhos e felpudos. Jorge continuava na sua sesta. Nati lia Moby Dick à sombra de uma laranjeira na Via Enrico.

Não estou a tentar enganar-te! - protestei, embora estivesse.

Lembrei-me de repente de ti a esconderes uma faca no nosso quarto quando eras pequeno.

Ele atirou-me a bola e virou o braço esquerdo para me mostrar as marcas irregulares das cicatrizes.

Como achas que arranjei isto?

Pensava que tinha sido o pai a fazer isso quando eu não estava por perto.

Não. Não são suficientemente fundas para serem obra dele.

Voltou-se olhando a casa com uma expressão apreensiva - o mesmo rapaz silencioso, de olhos sempre atentos, que na escola titubeava as respostas e nunca confiava nas palavras, uma outra maneira de dizer que nunca lhe tinham sido de grande ajuda. Há momentos para que nunca se está preparado, e eu pressentia que este seria um deles.

Diz-me no que estás a pensar - pedi-lhe.

Comecei a cortar-me em criança - disse ele.

Senti um baque no coração.

Com uma faca?

Sim.

Porquê?

Às vezes sentia que o peito me ia explodir. Cortar-me aliviava-me.

E não te doía?

Claro que doía! - Atirou a cabeça para trás e soltou uma boa gargalhada. - Mas quando doía mesmo a sério eu ficava completamente entorpecido.

Abriu as mãos e abanou-as. Atirei-lhe a bola de volta.

Fazias isso muitas vezes? - perguntei.

Talvez uma vez por semana.

Atirou a bola ao ar e apanhou-a com uma mão.

Mesmo quando eras realmente pequeno?

Não. Só quando o pai desapareceu. Comecei a ter medo de que ele voltasse e me levasse e que tu nunca mais conseguisses encontrar-me.

Ainda te cortas? - perguntei. Sentia, suspensa em mim, a esperança de que ele não o fizesse. Receava respirar.

Não, nunca.

Não acreditei; tinha respondido com demasiada determinação. No entanto, havia entre nós um acordo tácito de não nos perseguirmos nos nossos refúgios; por isso, deixei-me ficar calado. Equilibrou a bola em cima do ombro e, inclinando-se ligeiramente para o lado, fê-la rolar pelo braço até à mão. Era uma habilidade que o nosso pai nos ensinara e que Ernie dominava. Tinha a certeza de que estava a dizer-me na língua do nosso passado que poda ser tão reservado como eu.

Ouve, Rico - disse ele -, arranja uma pediatra para ver os braços e as pernas da rapariga. E outras partes do corpo mais... íntimas, também.

Enquanto eu magicava no que poderia ter levado Sandra Coutinho a ferir-se a si própria, Jorge gritou «Papá!». Estava a acenar-me do alpendre, com o pijama vestido.

Não venhas cá para fora descalço! - berrei. - Vai vestir-te!

Jorge voltou para dentro. Ernie e eu fingimos estar a observar diferentes áreas do horizonte; às vezes, a nossa intimidade pesava-nos demasiado.

Jorge apareceu de calções e T-shirt, com os seus adorados Puma, uns ténis vermelhos de cano alto com emblemas azuis dos lados.

O meu irmão pediu-lhe, por favor, para não pisar os louva-a-deus. Depois sentou-o em cima do joelho a brincar aos rodeos. Ernie era um cavalo chamado Pillsbury empinando-se loucamente e Jorge, um veterano grisalho dos rodeos chamado Ferndale Hawkins, um nome que Ernie e eu tinha-mos inventado em pequenos.

Ferndale não parava de tombar ao chão, de sacudir a poeira e de voltar imediatamente para cima do Pillsbury, embora se queixasse de que Ernie se empinava de mais. O meu irmão relinchava e abanava a cabeça a exprimir o seu desacordo. Fazia um belo cavalo.

Vendo Jorge sacudido para cima e para baixo, esbracejando, rindo-se perdidamente, compreendi que era um rapazinho resistente.

Depois de dizer «Por favor, Pillsbury, já não aguento mais», Jorge deixou-se cair para trás no colo do tio, ofegante. Passado os braços em volta do pescoço do meu irmão, fechou os olhos e contou-nos numa voz sonhadora que queria ir a Langley Falls, na Virginia, antes de a escola recomeçar no outono. «É onde o Roger vive», disse ele ao meu irmão, e lá tive de explicar o que era o American Dad e o extraterrestre em forma de pera e com uma sexualidade ambígua que conquistara o coração de Jorge.

A propósito, entrámos então no tema das viagens de sonho. Disse-lhe que adorava visitar o Grand Canyon.

Talvez possamos ir na primavera - arrisquei.

Nunca mais saio de Portugal - declarou Ernie, como se perante um juiz.

Se fosses comigo e com a Ana, não te aconteceria nada de mal ­ disse eu.

Podias vir comigo a Langley Falls! - chilreou Jorge. - Ias gostar do Roger!

OK, Ferndale - assentiu o meu irmão, poisando as mãos na cabeça do meu filho -, quando tu e o Roger chegarem a acordo sobre a visita, informa-me da data.

Moonfish! - exclamou Jorge; era o nome de um jogo que jogavam, e que Jorge adorava usar para apanhar o tio desprevenido.

Ernie apertou as bochechas de Jorge de maneira que os lábios formassem uma espécie de bico e ele pudesse imitar um peixe tropical atravessando, aos beijos, as águas cálidas e cristalinas. Ernie fez o mesmo chupando as suas próprias bochechas.

Tu também, papá! - exclamou Jorge.

Enquanto sulcávamos as águas do nosso recife de coral privativo, um lagarto emergiu de entre as ervas. O meu filho soltou um guincho.

O bicho tinha uns vinte e cinco centímetros de comprimento e a cabeça de um azul vivo - um dinossauro em miniatura.

Jorge refugiou-se atrás de Ernie.

O que... o que é aquilo?

É inofensivo - tranquilizou-o o meu irmão.

Mas tem uma cabeça azul! - exclamou Jorge, como se isso fosse um sinal de perigo.

Porque é um lagarto de água - explicou Ernie.

Vive na água? O que faz ele aqui?

Anda à procura de comida, acho eu - disse o meu irmão.

Caramba, que belo animal! - exclamei. - «O mundo é belo!» - proclamou Jorge na sua voz de publicidade.

É de um anúncio aos perfumes Kenzo - expliquei a Ernie.

A cabeça do minúsculo dinossauro era azul com pintas pretas; o dorso, de um verde-esmeralda, e o ventre, de um laranja-amarelado.

A cauda, comprida e ondulante, tinha um tom rosa-pardo.

Pusemo-nos à sua roda, a observar aquele desajeitado arco-Íris de quatro patas avançando vagarosamente por entre as ervas delgadas semelhantes a trigo que havia entre nós.

Não acredito que haja em Portugal um lagarto mais bonito do que qualquer outro dos que vimos no Colorado - disse eu.

Parece tão sozinho - choramingou Jorge. - Podemos levá-lo para casa, papá?

Não, está melhor aqui, meu querido.

É aqui que ele precisa de estar - concordou Ernie, e na sua cara espalhou-se aquela expressão ufana com que costuma ficar quando compreende alguma coisa importante, o que me levou a aperceber-me de que descobrira um trunfo para derrotar quaisquer argumentos que eu usasse para o convencer a acompanhar-nos na viagem. Voltando-se para Jorge, mas falando comigo, disse: - Se tirasses este lagarto dos sítios que ele conhece, mesmo que fosse para o lugar mais maravilhoso do mundo, era capaz de perder toda a sua cor.

Quando Ernie e Jorge se afastaram para ir ver como as oliveiras gozavam o verão, regressei para casa para fazer algumas chamadas.

O meu telemóvel tocou maio liguei. Era Yosoi Kimura. Tinha um sota­ que japonês marcado, mas o seu português era muito bom.

Os carateres que me mandou são os do nome Diana - disse ele.

E o nome «Diana» tem algum significado especial na cultura japonesa?

Bem, pode significar «grande buraco». Só que nesse caso estaria escrito em carateres de estilo chinês. Da maneira que estão, são apenas um nome.

Depois de agradecer a Kimura e de desligar, liguei o portátil e consultei as fotografias que Fonseca tirara ao caderno de endereços de Coutinho. Havia duas Dianas na lista, uma com uma morada de Lisboa, a outra de Coimbra. Anotei os nomes completos e os números de telefone no meu bloco e depois telefonei ao inspetor Quintela.

Disse-me que tinha na sua posse uma lista das chamadas feitas e recebidas vela vítima durante as duas últimas semanas. Verificou os números que lhe li e não tardou a concluirmos que Coutinho não falara com nenhuma das duas Dianas. Tinha falado apenas com duas mulheres além da esposa e da filha durante a última semana: Fernanda Aleixo, a sua secretária, e uma arquiteta chamada Maria Teresa Sanderson. Ligara para a secretária uma vez na terça-feira e duas vezes para a arquiteta na quarta-feira, véspera da sua morte.

Foram demoradas as conversas com a Sr.ª Sanderson? - perguntei.

Cerca de seis minutos, a primeira, e um pouco mais a segunda.

O nome dela diz-me qualquer coisa - disse eu.

Está ligada por casamento a uma das famílias do vinho do Porto. Disseram-me que aparece de vez em quando naquelas revistas pirosas de celebridades, assim como o nosso morto.

Diga-me que mais descobriu sobre ela.

Até agora, tudo o que sei é que trabalhava no projeto de uma urbanização que o Coutinho estava a construir nas margens do estuário do Sado.

Mas isso não é uma zona protegida?

Parcialmente... Há uma parte que fica na reserva natural do estuário do Sado.

Sabe se a urbanização do Coutinho ficava dentro da área da reserva?

Não. Mas isso não seria ilegal?

Precisamente - disse eu. - Veja se arranja um mapa com a delimitação da reserva e outro que mostre exatamente a localização do projeto de urbanização. Por acaso tem o endereço do gabinete onde trabalha a Sr.ª Sanderson?

Sim, tenho-o aqui algures nas minhas notas...

Leu-mo. Ficava na Rua Alexandre Herculano. Dali, Teresa Sanderson poderia pôr-se na Rua do Vale em menos de meia hora a pé.

Telefonei à Sr.ª Sanderson do alpendre. Mal me apresentei, disse-me que estava à espera de que a polícia entrasse em contacto com ela.

Ouvindo o meu sotaque, mudou para inglês. Explicou-me que tinha feito todos os seus estudos em Londres.

Então leu as notícias sobre o crime? - perguntei.

Li, hoje de manhã. Imaginei que, mais cedo ou mais tarde, vocês se iriam voltar para os associados de negócios do Pedro.

As suas relações com ele eram só essas?

Que quer dizer com isso? - ripostou num tom afrontado.

Desculpe-me ser tão direto, mas andava a dormir com ele?

Sr. inspetor, eu não durmo com homens casados. Cometi esse erro uma vez quando era nova e estúpida, e jurei para nunca mais.

Então de que falaram, a senhora e o falecido, nas últimas conversas ao telefone?

De fontes.

Que tipo de fontes?

Fontes decorativas... para os terrenos do projeto de urbanização.

Ele disse-me que as pessoas endinheiradas as achavam chiques. O que é verdade, embora normalmente sejam demasiado forretas para pagar uma boa manutenção. Aqui entre nós, muitas vezes tenho a impressão de que os portugueses constroem coisas bonitas só para depois as deixarem cair aos bocados. Seja como for, o Pedro e eu tivemos uma discussão. Quem ganhou?

Vou dar-lhe uma pista... Quem paga as contas é ele. Mas convenci-o a reduzi-las de quatro para duas.

Então a urbanização fica dentro da área da reserva natural?

Ela respondeu com silêncio.

Vou descobrir isso mais cedo ou mais tarde; portanto, mais vale dizer-mo já.

Acrescentámos uma estrada de acesso que fica na área da reserva ­ reconheceu, recalcitrante. Só isso?

E um centro comercial pequeníssimo.

Ri-me por ela dizer «pequeníssimo» como se isso bastasse para o crime não ultrapassar os limites do bom gosto.

Oiça, Sr. inspetor - disse ela, num tom zangado, como se eu a tivesse ofendido -, ali, a ria já estava comprometida por causa de uma fábrica que fechou há anos e que estava a cair aos bocados!

Vai poder explicar isso no tribunal - contrapus.

Garanto-lhe que recebemos todas as autorizações necessárias.

Mas não recebeu a minha!

Estou perfeitamente convencida de que não precisávamos dela, Sr. inspetor.

O tom condescendente da sua réplica acendeu-me uma fogueira no peito.

Deixe-me explicar-lhe como funciona a democracia – disse eu num tom ácido. - Os meus impostos pagam a conservação das terras públicas. Cada centímetro de cada reserva e de cada parque nacional de Portugal pertence-me a mim, à minha mulher e a todos os cidadãos deste país.

Essas ideias talvez façam sentido na América, mas nada irá parar aquele projeto ali. O Pedro já abriu os alicerces.

Quem assinou isso?

Isso das assinaturas era com o Pedro.

Mudei de assunto para evitar pregar-lhe outro sermão agressivo.

Ela afirmava que não conhecia Coutinho muito bem e que nunca se tinha encontrado com ele fora do escritório. Nunca falara nem com a mulher dele nem com a filha. Concordou em enviar os planos da urbanização para o meu gabinete na segunda-feira de manhã cedo. O seu tom frustrado e aborrecido, destinado a convencer-me de que perdia o meu tempo, apenas serviu para me convencer do contrário.

A seguir, liguei para Luci. Disse-me que Jean Morel parecia genuinamente abalado com o assassinato de Coutinho. Afirmava nunca ter empunhado uma arma na vida, e ela acreditava que era verdade.

Que tamanho calça ele? - perguntei.

Quarenta e um. Pedi-lhe para descalçar os sapatos e mos mostrar, só para ter a certeza.

Luci acrescentou que Morel não fazia ideia de quem poderia andar a dormir com o seu velho amigo. Não reparara em roupas de mulher na última visita que fizera à vítima e não sabia nada de quaisquer inimigos que Pedro Coutinho pudesse ter feito no Japão. Coutinho nunca lhe falara em nenhuma Diana.

Lendo atentamente as notas que tirara, Luci disse-me que Morel tinha identificado o quadro que faltava na sala de estar como sendo um pequeno retrato não assinado do século XIX de uma jovem aristocrata, que Coutinho descobrira num antiquário em Nova Iorque há cerca de um ano. Disse que o amigo se apaixonara pelo retrato à primeira vista e que o tinha comprado de imediato. Não sabia ao certo se Sandi estava com o pai quando ele o adquirira. Quanto ao desenho do Almeida, antes estava na biblioteca de Coutinho, o que significava que eu agora poderia ter a certeza de que o assassino tivera tempo para subir ao piso superior.

Será que o assassino já sabia da existência do retrato do século XIX e tencionava roubá-lo desde o princípio? Se assim fosse, então quer dizer que já tinha estado em casa da vítima.

Depois de Luci ter acabado de me ler as suas notas, liguei para a Sr. Coutinho. Estava pior da gripe. Num murmúrio dificultoso, disse-me que Pedro nunca lhe falara em nenhuma Diana.

Não se lembrava de quaisquer pormenores relacionados com a mulher do retrato que Morel tinha identificado e não fazia ideia das razões que poderiam levar alguém a roubar um quadro anónimo.

E quanto a Maria Teresa Sanderson? - perguntei. - Alguma vez ouviu falar nela?

Não.

Então fale-me de Fernanda Aleixo - disse eu.

Bolas, o senhor está realmente perdido, não está? – perguntou, como se estivesse a abandonar todas as esperanças que depositara em mim. - A Fernanda é uma mulher nos seus cinquenta e tal anos, gorda como um tomate, e a fulana que o senhor procura é mais nova e mais bonita do que eu, Sr. Monroe. Ou será que ainda não percebeu o que põe os portugueses de meia-idade a cantar no chuveiro?

Nessa noite, Jorge serviu-se duas vezes do risoto de beterraba e basílico, mas Nati examinou a comida no prato como se eu a tivesse envenenado. Todas as minhas tentativas para falar com ele eram recebidas com um olhar fulminante. Mesmo assim, quando chegou a hora de dormir, deixou que lhe desse as boas-noites sem me virar as costas nem resmungar. E sem carregar na tecla dele te. Um pequeno triunfo.

Acordei uma vez durante a noite por precisar de ir à casa de banho e descobri um gosto a chocolate na boca. Tinha em cima da barriga um papel dobrado em dois. Fui até ao alpendre em bicos de pés e puxei a corda de uma lanterna chinesa que pendia do teto. Borboletas noturnas de um branco-azulado volteavam em torno da luz de um vermelho líquido.

Ao abrir o papel, verifiquei que se tratava de uma impressão de uma das fotografias das férias de Coutinho em Phu Ket no Natal de 2011: à esquerda, via-se uma praia em forma de crescente, bordejada de palmeiras delgadas; à direita, um mar cor de turquesa com um veleiro ao longe. Alguém desenhara um círculo a tinta verde em volta de um retalho de céu brilhante. Dentro dele, havia várias linhas numa letra tão minúscula que não a conseguia ler. As letras pareciam fazer parte da própria fotografia.

Virando a mão, li: «H - As ínfimas luzinhas vermelhas acabaram por denunciar o segredo.»

Dei com o meu portátil ainda aberto em cima da mesa de Ernie. Junto ao teclado via-se o papel de um chocolate Arcadia amachucado numa bola. Levando o computador para fora, abri o ficheiro de Phu Ket e descobri a fotografia que G tinha imprimido. Era a décima nona da série, e via-se um denso aglomerado de pontos brilhantes vermelhos na área que ele delimitara com um círculo na fotografia. Numa ampliação de mil por cento, as luzinhas transformaram-se numa fiada de números, assim como somas em euros e datas. Na primeira linha lia-se: 82 125 10 1461 1010 4 611 26: dez mil euros - 1 de junho.

Havia doze linhas semelhantes. Uma lista de subornos com nomes em código?

Abri o ficheiro das fotografias tiradas um ano antes, no Natal de 2010, quando Coutinho e a família tinham estado de férias em Londres. Na décima nona fotografia via-se Sandi em pé no exterior de uma loja de roupas, protegendo os olhos do sol. Por cima do seu ombro esquerdo pairava um aglomerado semelhante de luzinhas. Quando as ampliei, a lista indicava valores que iam de quatro mil a vinte e dois mil euros.

Ouvindo passos, voltei-me. Ernie abriu a porta de rede e avançou em passos arrastados para junto de mim.

Eh, que se passa? - perguntou sonolento.

Estou só a acabar os trabalhos de casa.

Pareces muito contente.

Acho que encontrei o que procurava.

Rosie empurrou a porta de rede com o focinho e esgueirou-se para fora. Deixou-se cair aos meus pés com um suspiro resfolegante.

Vê se deixas a porta bem fechada quando te fores deitar - disse o meu irmão, e deu-me um beijo no topo da cabeça antes de voltar para dentro. Rosie deixou-se ficar. Ouvia-a já ressonar suavemente.

A pasta de férias mais antiga era de 2000. Se a minha tese estivesse correta, iria encontrar o registo dos subornos que Coutinho pagara durante os últimos doze anos. Teria de contactar um especialista para trabalhar na descodificação dos nomes.

Minutos depois, quando verificava a lista de 2008, a porta de rede abriu-se de novo e Nati apareceu em passos de zombie de T-shirt e boxers.

Estás OK? - perguntou.

Estou ótimo. Ouve, tenho uma pergunta para ti... O que farias para colar letras microscópicas numa fotografia no computador?

Tens informações secretas que precises de esconder?

Eu não, a vítima.

Nati bocejou e coçou a axila. Rosie avançou para ele e fitou-o com uma expressão implorante. Pegando nela ao colo, disse-me:

Fazes copy do texto que queres colar, defines a superfície da fotografia onde o queres pôr e depois fazes paste. Como é que não sabes estas coisas?

Nasci há muito tempo. Ainda os dinossauros vagueavam pela Terra.

Nati despediu-se com um gesto de mão.

Espera aí - pedi-lhe num sussurro. - Porque estavas zangado comigo?

Pareceu-me não saber ao certo o que dizer.

Não ouviste nada do que te disse no carro quando vínhamos para cá.

Não é verdade. Lembro-me de que me falaste da tua batalha com comida na cantina e da rapariga que começou a ressonar na aula de Matemática, e...

Não - cortou ele -, tu ouves metade do que digo e depois dizes alguma coisa que achas que tem piada. Isso não é ouvir.

Tudo bem. Estou a ouvir, agora - respondi.

Nati sentou-se e disse-me que andava preocupado com o seu projeto sobre Bossa Nova. Ficara baralhado com acordes e harmonias que não conhecia. Só tinha até sexta-feira para acabar, e cada minuto que passava longe de casa deixava -o em risco de não conseguir. Começara a entrar em pânico a caminho de cá.

«Tudo tem sido um potencial desastre para este rapaz desde os seus cinco anos», pensei. Era algo que aprendera e esquecera pelo menos uma dúzia de vezes ao longo dos últimos oito anos.

Assegurei-lhe que conhecia - de cor - todos os álbuns gravados por João Gilberto desde 1959 até 1977.

Meu filho, tens diante de ti um especialista em Bossa Nova!

Não me pareceu convencido, e então cantei-lhe em voz baixa as primeiras notas de Corcovado.

Nada mal - disse ele, lutando contra a vontade de sorrir, ainda renitente em abandonar as suas ansiedades.

Disse-lhe que no dia seguinte lhe dava uma ajuda e, embora não se tenha atirado para os meus braços, como eu esperava, pelo menos deixou que o acompanhasse de volta à cama. Assim que ficou aconchegado na roupa, fiz-lhe uma festa no cabelo para que adormecesse com a ideia de que estava com ele nos meus pensamentos, apesar de não ser verdade. Cogitava, antes, no que poderia ter levado Sandra Coutinho a cortar-se a si própria com aquela faca - à noite, quando estava só. E se Ernie ainda o faria.

 

Acordei abraçado à almofada, que me tapava os olhos. Sentando-me, à luz suave e inclinada do amanhecer, o meu olhar poisou em Jorge dormindo na cama do meu irmão. Haviam afastado os lençóis com os pés.

Ernie, encostado ao meu filho, tinha o nariz afundado no cabelo castanho e macio do rapazinho, a mão enorme e áspera enrolada à volta da sua cintura. O braço de Jorge pendia ao lado da cama, estendido para Rosie, que ressonava no seu pequeno tapete vermelho, a cabeça enfiada nas patas dianteiras. O miúdo tinha vestido o seu adorado pijama com o Tweety canários graciosos em barquinhos, remando através de nuvens fofas. Ernie, completamente despido, tinha apenas na cabeça a fita sioux com missangas que usava para prender o cabelo quando os miúdos lá estavam.

«Se eu fosse um artista como o Ernie, era isto que pintaria», pensei.

E, então, tive a sensação de uma mão a bater-me na cabeça por trás. Momentos depois, vi-me ajoelhado diante de Jorge, que soluçava. Encontrávamo-nos no exterior da casa. O meu filho estava nu, com o pijama a seu lado na gravilha do chão. Nati implorava-me que deixasse de aterrorizar o irmão. Rosie rosnava-me e ladrava como se eu a tivesse espancado.

Tinha atravessado o tempo e o espaço.

Nati dava-me puxões no braço.

Para de o assustar, pai! Deixa-o em paz!

Levantando-me, tomei Jorge nos braços e encostei-lhe os lábios à cara, molhada de lágrimas. A cadelita corria à minha volta, rosnando, de dentes à mostra.

Segura a Rosie antes que ela me morda! - disse eu a Nati.

Ele agarrou-a. À medida que o choro de Jorge amainava, perguntei a Nati o que se passara.

Tu não sabes? - Tinha uma expressão tensa e desesperada. Rosie contorcia-se nos seus braços.

Não. Diz-me.

Agarraste o Dingo e começaste aos berros, para que te dissesse o que o teu irmão lhe tinha feito, e ele desatou a chorar. Correste para fora de casa com ele nos braços, despiste-lhe o pijama e estiveste a examiná-lo por todo o lado e… - Nati, ofegante, perdeu o fio do que dizia.

Ok, já percebi – respondi – Agora diz-me onde está o teu tio.

Em casa.

A porta estava encostada. Virei-me para Jorge e disse-lhe:

Venho já. O Nati toma conta de ti e volta a vestir-te.

Não! - gritou o miudito por entre lágrimas. Passei-o a Nati antes que o meu sentimento de culpa me envolvesse por completo.

Ernie estava sentado no chão entre a cama e a parede, os joelhos encostados ao peito, escondido atrás de um maciço de roseiras. Tinha tapado os olhos com as mãos. Estava nu. Fechei a porta atrás de mim para manter Rosie lá fora.

Hank, não te aproximes! - gritou, quando me encaminhei para ele.

Ajoelhei-me a seu lado.

Desculpa! - disse eu.

Não devia ter deixado o Jorge vir para a minha cama! - Sangue escorria-lhe das mãos e gotejava para o chão.

Tive um acesso de soluços. Acontecia-me às vezes - com o excesso de emoções.

Feriste-te na cabeça - disse eu, e comecei a levantá-lo, mas ele afastou - me com tal brusquidão que caí para trás.

Ernie tremia de raiva. Não ousei tocar-lhe novamente.

Dois homens sentados um ao lado do outro, sentindo que tudo o que tinham - e que alguma vez teriam - era um ao outro.

Deixa-me ver essa ferida - sussurrei.

Não. Podes apanhar alguma coisa! - avisou.

Que queres dizer com isso?

Posso ter alguma doença grave. Até posso ter sida.

Como é que podias ter sida?

Estive com mulheres.

Que mulheres? Onde?

Em Évora.

Prostitutas?

Ele disse que sim com um aceno da cabeça.

Tomaste precauções?

Claro que sim, mas isso não é nenhuma garantia.

Tive a sensação de que o tempo se detinha. O corpo pesava-me com a necessidade de ficar precisamente onde estava. Tínhamos de nos manter o mais quietos possível - sem fazer o mínimo ruído - para podermos sobreviver a tudo o que pudesse correr mal.

Lá fora, Jorge recomeçara a soluçar. A necessidade de o ter nos braços feria - me as mãos.

Nati, traz cá o teu irmão! - gritei.

Nati surgiu no limiar da porta.

O Dingo vai ficar OK - declarou. - Conheço a receita. - Falava com uma determinação adulta que nunca antes lhe vira. Devia ter observado como eu fazia para acalmar o irmão, sem que eu desse por ela.

Se precisares de ajuda, chama-me - disse-lhe, num tom grato. - Eu vou logo.

Ernie tinha começado a baloiçar-se para trás e para diante. Afastei-lhe as mãos dos olhos, que se encheram de lágrimas quando me viram, assim como os meus.

Vai-te embora! - disse ele, zangado.

A ferida não é funda. Não demora a estancar.

Com Ernie, era importante que eu tomasse conta da situação no momento certo, por isso despi a T-shirt, enrolei-a à volta da mão e apertei-a com força contra o ferimento. Os meus movimentos eram rápidos e seguros. Devia ter percebido que não esquecemos como tratar uma ferida.

Vai-te embora! - gritou Ernie irritado, e empurrou-me mais uma vez com força.

Estou-me nas tintas se apanhar o que tu tens! - gritei em resposta, e espalmei a mão contra a ferida. Ernie recuou encolhendo-se e recusou-se a falar, dando a impressão de se refugiar naquele espaço fechado dentro de si onde ninguém o poderia encontrar. Portanto, recolhi o seu sangue com a ponta dos dedos e passei-os pela cara, o pescoço e o peito. - Olha para mim! - ordenei. - Estamos nisto juntos. Sempre estivemos e sempre estaremos.

Os olhos pestanejaram, cerrando-se, e Ernie caiu desamparado nos meus braços. Era como se voltasse a ter seis anos.

Não há nada na minha vida que valha a pena se tu não estiveres bem - disse-lhe. - Gostava que fosse diferente, mas não pode ser. Tenho a certeza de que contigo se passa o mesmo.

Chamado de volta a mim por aquela dura verdade que fazíamos o possível por calar, procurou a minha mão. Entrelaçarmos os dedos significava que tínhamos superado mais uma prova. Ao fim de algum tempo, disse-lhe:

És capaz de precisar de levar alguns pontos.

Não quero ir ao hospital. Se for preciso, dou -os eu.

Não sabes fazer isso.

Sei, sim. Já o fiz antes. E tu também.

Não me lembro.

Seja como for, sabes fazê-lo.

Fui eu que te fiz o ferimento? - perguntei.

Não. Bati com a cabeça na parede.

Porquê?

Vi como estavas a examinar o Jorge - disse Ernie, com um olhar cortante, ressentido.

Fiquei desvairado. Acontece. Foi o suicídio de ontem e depois o assassinato. Quando fico muito transtornado, perco-me... - Era nesse momento que eu devia ter falado de G ao meu irmão; tive a intuição de que chegara a altura, mas sentia que uma mão me apertava o pescoço. Desviei a sua atenção, dizendo: - Odeio que te magoes a ti próprio!

Ele abanou a cabeça com desapontamento.

Não estás a perceber? Isto não é nada... Só que me controlo o melhor que posso quando os miúdos estão cá. Mal tu te vais embora... Por isso é que não posso ir contigo ao Grand Canyon. Ou a qualquer outro lado. Queres correr o risco de o Nati e o Jorge verem o que posso fazer a mim próprio quando estou realmente mal?

Quer dizer que continuas a cortar-te! - exclamei num sussurro que era um grito.

Há outras coisas muito piores que uma pessoa pode fazer a si própria! - replicou Ernie. Levantei a mão para o impedir de entrar em mais pormenores naquele momento.

Diz-me onde está o estojo de primeiros socorros. O resto logo se vê.

Ernie apontou para uma caixa debaixo da mesa. Antes de a ir buscar, lavei as mãos na cozinha e dei uma olhadela lá para fora. Jorge voltara a vestir as calças do pijama e Nati estava a atar-lhe o cordão da cintura. Compreendi - como quem simplesmente faz a soma de uma coluna de algarismos - que nunca mais deixaria Portugal. Ernie e eu morreríamos aqui. Nunca voltaríamos para casa.

Renunciar para sempre à América obrigar-me-ia a repensar uma data de coisas. Mas estava contente por finalmente ter compreendido a verdade: que a vida que eu e Ernie agora tínhamos era a única que alguma vez teríamos, ainda que não fosse aquela que devíamos ter herdado.

Os rios subterrâneos podem conduzir-nos a regiões insuspeitadas do coração e, observando os meus filhos a brincar ao berço do gato com um cordel comprido que Nati deve ter encontrado em casa, imaginei -os a meu lado à procura de fósseis na borda do Black Canyon.

Fiz-lhes um aceno por sentir necessidade de lhes mostrar, só com um olhar, que Portugal me bastaria desde que os tivesse por perto.

Olha, papá! - exclamou Jorge, entusiasmado, mostrando-me o paraquedas que Nati o ajudara a fazer com a corda.

Está lindo! Vou já aí ver.

Nati virou-se para me observar. OS seus olhos tinham uma expressão tão preocupada que compreendi que Ernie estava certo; não podia permitir que visse o tio - ou a mim - nos seus piores momentos.

Voltando para dentro de casa, descobri Roxanne, a velha gata de peluche de Ernie, dentro do estojo de primeiros socorros. Quando a levei ao nariz, estava à espera do cheiro a papas de aveia do meu irmão, mas o seu pelo curto e eriçado estava impregnado do odor a cânfora da caixa. Pondo-a de novo no sítio, reparei numa pilha de velhos discos de 78 rotações do meu pai embrulhados num plástico transparente.

Embebi uma bola de algodão em álcool e apliquei-a sobre o ferimento de Ernie.

Merda! - murmurou ele.

Eu só digo palavrões em inglês.

Só tinha dez anos quando vim para cá. O português penetrou mais fundo na minha cabeça do que na tua. Tu ainda falas com alguns erros.

Achas? - perguntei, fazendo-me de parvo.

De vez em quando falhas o conjuntivo. Às vezes nem sei como os teus colegas de trabalho percebem o que dizes.

Quando é que te transformaste no Noam Chomsky?

Riu-se, e a tensão nos ombros atenuou-se; metermo-nos um com o outro era uma maneira de evitarmos que a nossa dependência mútua nos sufocasse.

Vi a Roxanne - disse-lhe, com um sorriso, de maneira a mostrar-lhe que não me importava. Pois... Salvei-a das chamas quando tu foste a casa buscar mais petróleo. – Sob aquela resposta displicente, detetava-lhe a curiosidade nervosa em saber se eu também teria visto os discos. Melhor para ti - respondi, no nosso código, acrescentando: - Fico contente por teres salvado o que desejavas.

Acenou a cabeça para mostrar que me tinha entendido, apertando a mão com força.

Ouve - disse eu -, ponho-te uma ligadura quando isso estancar. - A verdade é que ele continuava a recear que tivéssemos de ir ao hospital.

O silêncio que deixámos instalar-se entre nós - enquanto prestávamos atenção aos carros que passavam zunindo na estrada principal era também um modo de mostrarmos a nossa gratidão. Como pudeste pensar que eu era capaz de fazer mal ao Jorge daquela maneira? - perguntou finalmente, e abanou a cabeça de forma a fazer-me compreender que a pergunta era também uma reprimenda.

Só uma maneira de responder me parecia suficientemente séria.

O pai alguma vez... te obrigou a fazer alguma coisa de que tu nunca me tenhas falado?

Não. E a ti? - Fez uma careta para me mostrar que há muito suspeitava do pior.

Não. Houve algumas coisas em que tivemos sorte. - Uma revelação levou a outra, e acrescentei: - Ouve, Ernie, não sei nada sobre o que tu fazes na cama. Embora não tenhas de me dizer, naturalmente.

Ele pôs os olhos no chão - um ângulo que parecia constituir outra pequena parte da nossa herança.

Foi sempre com prostitutas? - perguntei.

Sempre não, mas a maior parte das vezes.

Alguma vez tiveste uma namorada? - Perante o seu silêncio, abri o ferrolho de um enorme portão que estivera à nossa espera durante anos. - Ou um namorado. Para mim é indiferente.

Ernie começou a torcer uma madeixa de cabelo por trás da meia orelha.

Ernie, se há coisa que aprendi na vida é que temos de aproveitar o amor, venha ele de onde vier, e na forma que escolher assumir.

Compreendendo a ambivalência dos altos e baixos das esperanças do meu irmão, fui levado a confessar-lhe uma coisa que nunca pensei poder dizer:

Tive algumas experiências com rapazes na adolescência. Durante muito tempo isso deixava-me embaraçado. Talvez ainda me deixe.

Mas isso é problema meu... Não é porque o que fiz estivesse errado. No fundo, sei que era certo. Porque cada uma das confusões mais loucas em que me meti, cada um dos beijos, me levou até à Ana, e isso foi uma coisa boa.

Nem namorado, nem namorada - murmurou ele.

Lançou-me um sorriso dissimulado, inibido - como que sacudindo a derrota -, e olhou-me nos olhos.

Apesar de tudo, tive os meus momentos de amor verdadeiro.

Afastei-me porque «momentos de amor verdadeiro» era o que há muito desejava para ele, mas sem fé de alguma vez ouvir essas palavras a não ser nos meus sonhos. De modo a encontrar um lugar dentro de mim para tão grande gratidão antes que ela se desvanecesse, pedi-lhe que segurasse a minha camisa contra o ferimento e se aproximasse da janela. Lá fora, Nati levantava Jorge pela cintura para ele poder chegar a um limão do limoeiro que tínhamos plantado junto à chaminé. De volta ao chão, Jorge agarrou o fruto entre as mãos, a rebentar de alegria, como se tivesse roubado o ovo de ouro do ganso. Encantava-me a tremenda diferença de temperamentos dos meus filhos. E compreendi que podia ter-me poupado a milhares de noites insones, dominadas pela angústia, se tivesse tido mais confiança no meu irmão e nas suas capacidades de adaptação. Quanto à conversa que estávamos a ter - e a cautelosa atenção que mostrávamos um pelo outro - era uma parte da vida que eu não quereria perder por nada deste mundo.

E deu-se então o verdadeiro milagre: pareceu-me que a tia Olívia entrava em casa trazida pela brisa rescendente a terra e passava por mim para ir ter com o meu irmão. «Ela haveria de gostar de estar aqui connosco», pensei, como se espíritos e fantasmas se guiassem pelos padrões dos vivos, e só estremeci no momento em que a sua presença deixou de parecer perfeitamente razoável. Disse a Ernie o que ela nos teria dito se ali estivesse:

Tu mereces mais amor do que qualquer pessoa que conheço. - «Merecer» não conta grande coisa neste mundo - respondeu.

Sabes isso tão bem como eu.

Considera as minhas palavras um feitiço - disse eu, surpreendido por ter acertado numa resposta que se ajustava tão perfeitamente à minha intenção.

Ernie aceitou a minha mudança de interpretação com um sorriso irónico; muda-se o embrulho e a prenda muda também.

Quando voltei a minha atenção novamente para ele, um louva-a-deus verde - do tamanho de um palito - estava pousado na sua coxa. Tinha-lhe agarrado a ponta de um dedo com as patas ásperas em forma de L. O olhar de Ernie era atento e sério - o olhar estudioso do biólogo amador que era desde os três anos, atraído pela gravidade vermelha e amarela das flores silvestres do Colorado.

O meu medo de ser tocado é grande de mais para que o sexo possa ser bom para mim ou para qualquer outra pessoa - confessou.

Os primeiros esforços são uma coisa terrível para toda a gente ­ assegurei -lhe.

Rico, eu quase sempre peço desculpa logo a seguir. E, a bem dizer, todas as pessoas com quem dormi aceitam as minhas desculpas. Sabes o que isso quer dizer? - Revirou os olhos. - Sou um desastre.

Estávamos agachados entre a cama e a parede, atrás de uma roseira vermelha resplandecente, e Ernie movia o dedo para trás e para diante a testar a aparente e imperturbável boa vontade de uma criatura que parecia habitar a Terra há centenas de milhões de anos, antes mesmo de os seres humanos terem surgido. Eu estava pintado com riscas de sangue como um cherokee e ele nu e a sangrar. No olhar irónico que trocámos podia ler-se o já familiar «lá voltámos nós a Cascos de Rolha», como sempre que dávamos por nós a chegar a um ponto que nunca poderíamos ter previsto.

Pousei a ponta do indicador numa mancha de sangue na camisa que ele continuava a segurar contra a testa e desenhei-lhe na cara algumas riscas.

Agora todos podem ver que pertencemos à mesma família.

Membros da tribo de Rivermouth - disse ele, já que o significado original de Monroe era «rivermouth», foz, em gaélico.

E orgulhosos membros do clã dos Coelho - acrescentei, pois o apelido da nossa mãe era Coelho.

Passados alguns instantes, Ernie murmurou:

Ouve, Rico, sei que tu às vezes ficas dominado por alguém.

Será que, tal como eu, também ele teria sentido que chegara o momento de falar de Gabriel? A maneira como desviou o olhar dava-me a entender que não devia sentir-me obrigado a responder.

Não sei ao certo se é isso que realmente acontece - disse eu.

Franziu os lábios, desagradado.

Pelo menos um dia por ano, devíamos ser capazes de dizer um ao outro as coisas como elas são realmente.

Então, há quanto tempo é que sabes? - perguntei, esforçando-me em vão por evitar que a vergonha continuasse à espreita na nossa conversa.

Desde que éramos crianças. Tu desapareces e há alguém que toma o teu lugar, embora não saiba quem é.

Observei os músculos que se desenhavam sinuosos pelos seus ombros e braços, e como as mãos pareciam grandes de mais para o corpo. Ernie era forte e saudável - o modesto herói do western português de segunda categoria em que a sua vida se transformara.

Por que razão a nossa mãe nunca nos dissera quem era na realidade o pai de Ernie? Talvez pensasse que soubéssemos. E talvez fosse esse o caso.

Retirei a camisa da testa de Ernie para dar uma olhadela ao ferimento, que praticamente deixara de sangrar. Tirei com os dedos um bocado de cabelo que tinha ficado colado.

Ata lá essa juba e vem para a tua cama falar comigo.

Sentado no colchão de Ernie, recostei-me a uma almofada junto à parede. Ernie tirou da mesa de cabeceira uma fita para o cabelo, fez um rabo de cavalo apertado e deitou-se a meu lado. Devagar, cautelosamente, pausando e recomeçando, hesitante - com uma voz que parecia pertencer a outra pessoa -, contei ao meu irmão a primeira mensagem que G me escrevera na palma da mão. Continuei, falando-lhe das vezes em que ele se submetera às provas que o nosso pai tinha planeado para mim, sempre atento ao olhar de Ernie, em busca de qualquer sinal de ceticismo, mas não vi nada. Compreendi que, contando-lhe tudo o que sabia, estava a cumprir uma promessa feita há muito tempo sem mesmo ter consciência disso. Finalmente podia dar-lhe testemunho de todas as vezes em que G lhe salvara a vida.

Expliquei a Ernie que achava que tudo o que ele sofrera tinha tornado G mais atento.

É excelente a identificar os aspetos essenciais de uma paisagem, uma sala, uma fotografia, ou, mais precisamente, o local de um crime.

Viu-se obrigado a tornar-se assim. E tem-me ajudado a resolver uma data de casos.

Alguma vez se engana? - perguntou Ernie

Uma vez ou outra deu - me falsas pistas mas mesmo quando isso acontece, não me importo. Porque a verdade, Ernie, é que ele vê coisas que eu não vejo... conexões subtis. Distingue rapidamente o que tem importância daquilo que é insignificante. Viu-se obrigado a desenvolver essa capacidade porque sempre que aparecia era já pouco o tempo com que contávamos. Acho que deve ter também uma memória fotográfica. E uma assombrosa facilidade em encontrar o que estava perdido, o que durante muito tempo me deixou espantado.

Agora já não?

Não. Quando convivemos com uma coisa extraordinária durante trinta anos, se calhar acabamos por nos habituar.

Talvez ele consiga esse grau de concentração porque não se deixa distrair pelo género de sentimentos complexos que as pessoas normais têm. Talvez esteja demasiado empenhado em fazer frente à infelicidade para pensar noutras coisas.

Pode ser - concordei. - Nem sequer sei ao certo se ele dorme. Parece que está sempre a pensar nos meus casos. Tenho a impressão de que mesmo quando eu estou a dormir ele está a tentar resolvê-los.

Às vezes, quando me encontravas, Rico, eu percebia que não eras tu - admitiu Ernie. - Via-te demasiado controlado, demasiado decidido. E houve uma vez em que me disseste que o pai não era o meu pai.

E tu o que respondeste?

Perguntei-te como sabias e tu respondeste: «Não são parecidos em nada, miúdo.»

Teria Gabriel compreendido muito antes de mim que Ernie podia não ser filho do meu pai? Embora ele pudesse estar apenas a querer dizer que a personalidade do meu irmão era completamente diferente da do nosso pai.

Eu tratava-te por «miúdo» muitas vezes? - perguntei.

Sim, como se fosses um adulto. E a tua voz tinha um tom profundo que não era o teu.

Que mais te disse eu?

Que nunca confiasse nas pessoas crescidas... Que confiasse apenas no Hank.

Isso não te deixou assustado?

Não. Nessa altura, eu já tinha amplas provas de que G estava ali para nos ajudar aos dois.

Ernie prosseguiu dizendo-me que tinha pensado que G desaparecera da minha vida, pois há anos que não o via e porque ele, Ernie, deixara de precisar de ser salvo. Quando lhe disse que nem Ana nem os miúdos sabiam que G partilhava o meu corpo, o meu irmão passou a língua pelos lábios, como fazia sempre que se via forçado a decidir entre várias más opções.

Não podia falar de G a Ana sem lhe contar também umas quantas coisas sobre o pai expliquei. Obriguei-o a prometer que nunca revelaria nada aos meus filhos sem o meu acordo. Depois falei-lhe no assassinato de Coutinho e na conversa que tivera com a mulher e a filha dele e em como o caso parecia estar a provocar estragos nas minhas emoções. E nas de G. - Estou a ficar com a ideia de que Sandi foi ameaçada ou até maltratada por alguém que conhecia - disse eu. E que o pai dela pode ter sido assassinado por a defender.

O meu irmão lançou-me um olhar onde transparecia a dúvida de que a sua opinião fosse bem recebida. Levantou-se e foi buscar os jeans.

Diz lá, estou a ouvir - disse eu.

Depois de enfiar as calças, voltou a sentar-se diante de mim.

Ouve, Rico, se a filha da vítima se autoflagela, isso quer dizer que há alguém ou alguma coisa a atormentá-la, e a única maneira de.

Ernie deteve-se a meio da frase quando Nati e Jorge surgiram à porta, de mãos dadas, ansiosos, crianças a precisarem de adultos. Assim que abri os braços, Jorge correu para mim. Enchi-o de beijinhos, a que ele chamava pipocas, e aconchegou a cabeça entre os meus joelhos.

Nati ficou à porta. Tinha um ar prostrado e exausto, como se tivesse sido atingido por um raio.

Foste um herói, meu filho - disse eu. Vendo que ele não avançava, propus: - Que dizes a umas panquecas à moda do Colorado feitas pelo tio? - E dirigindo-me ao meu irmão: - Pronto para entrar em ação, chefe?

Deixa-me só ver se arranjo aí uns ovos! - exclamou no seu mais esmerado sotaque arrastado do Oeste.

Merda! - disse Ernie num sussurro gritado e, pela maneira como arrancou a fita com que atava o rabo de cavalo, sacudindo depois o cabelo, concluí que Nati tinha reparado na marca que o nosso pai lhe deixara depois de eu ter falhado a primeira prova. Quando me voltei para o meu filho para o tranquilizar, já ele tinha fugido a correr.

 

Fui dar com Nati sentado no assento de trás do carro. Pelo modo ambíguo como se esquivou ao meu olhar interrogativo, tive a certeza de que queria que fosse ter com ele, mas que não mo pediria. Como se tivesse finalmente desvendado o sentido de um poema obscuro, apercebi­me de que andava há semanas a tentar mostrar-me que já não era um rapazinho e que a nossa relação tinha de mudar. Com treze anos apenas e tão impaciente por entrar no alvorecer da idade adulta.

Quando cheguei junto dele, resisti ao impulso de o puxar para mim. Recusar-me esse reconforto físico fez-me lembrar os tempos em que tinha aquela idade e sentimento desolado e desesperançado de ver todas as minhas mais ávidas perguntas sobre mim ficarem sem resposta.

Sei que estás a crescer - murmurei. - Desculpa se isso às vezes é difícil para mim.

Como resposta poisou a cabeça no meu ombro.

Sonho muitas vezes com os tempos em que tinha a tua idade ­ disse eu. - Trinta anos evaporam-se, e eu vejo-me a perguntar-me se alguma vez começarei a fazer a barba ou serei capaz de fazer amor.

Com que é que sonhas quando sonhas que és da minha idade? ­ perguntou ele.

Imagino quase sempre paisagens As montanhas cobertas de neve, a glicínia a trepar pelo nosso pátio Muitas vezes estou na rua principal da cidade próxima do sítio onde vivíamos. Parece-me perfeita de mais para ser real.

Nati endireitou-se no assento.

Crawford, não era?

Era. Sabes, há algumas semanas, escrevi um dos sonhos que tive.

Estava num armazém a comprar um postal para mandar para Portugal.

Só que não conhecia ninguém aqui quando vivia lá.

A quem querias mandar o postal?

A tia Olívia, acho eu. Ou talvez a ti e ao Jorge.

Mas nós ainda não tínhamos nascido... Disseste que eras um miúdo.

Tu viste a fotografia da Patsy Cline... aquela que ela autografou para mim e para o Ernie. Nati, o coração não está tão preso ao tempo como pensamos.

Nati acenou a cabeça a mostrar que tinha compreendido, e eu apercebi-me com um sobressalto de que teria preferido que não tivesse; talvez fosse melhor que ele não sentisse ainda o comprimento e a largura da sua vida. Se pudesse ter sido completamente franco com o meu filho naquele momento, teria dito: «Ser pai é para mim uma constante surpresa. Provavelmente porque tudo parece passar demasiado depressa.»

Pai, o que aconteceu à orelha do tio Ernie? - perguntou ele.

A vantagem de uma grande mentira sobre o nosso passado é que, uma vez construí da uma fachada realmente sólida, ficamos perfeitamente à vontade para descrever tudo o resto como na realidade era.

Tínhamos toneladas de máquinas agrícolas - respondi num tom despreocupado -, e a orelha do Ernie ficou presa numa moto cultivadora.

O que é uma motocultivadora?

Uma máquina para revolver o solo e o preparar para a sementeira.

Baixei a janela do carro do meu lado. Senti na cara um sopro de ar quente.

Daqui a pouco temos de começar a regar a horta do Ernie - disse eu. - As plantas estão todas com a língua de fora.

Os teus pais levaram o Ernie ao hospital? - perguntou Nati.

Sim, fomos para o serviço de urgências em Grand Junction.

O ferimento deve ter sangrado imenso.

Podes crer! - Encolhi os ombros, como se isso fosse o menor dos males. - O meu pai disse-nos para nos sentarmos em cima de um cobertor velho para proteger os estofos do carro.

Disse o quê? - perguntou Nati numa voz chocada.

O Plymouth dele tinha uns bancos brancos todos chiques, em cabedal verdadeiro. Ele adorava-os. Picaria furioso se o Ernie os tivesse sujado com sangue.

O teu pai era maluco ou quê?

O carro dele era um '56 Belvedere. Vermelho e branco e com uma espécie de asas na parte de trás. Era lindo! Uau! O teu tio e eu tínhamos a sensação de que éramos celebridades quando andávamos no carro, como astronautas numa parada! Eu era o Neil Armstrong e o Ernie, o Buzz Aldrin. - Acenei à multidão imaginária que nos rodeava como se estivesse numa daquelas cenas do noticiário a passar em câmara lenta.

E no hospital como foi? - perguntou Nati.

O tio Ernie estava em estado de choque quando lá chegámos.

Quase sem pinga de sangue. Os médicos disseram que ele era tão novo que a parte da orelha que se tinha perdido iria voltar a crescer quase toda.

Mas não cresceu.

A princípio sim, mas depois teve uma infeção e isso deitou tudo a perder.

Que idade tinha Ernie?

Quatro anos.

Deve ter apanhado um susto de morte.

Ah, pois. Todos nós. - Nati parecia estar à espera de mais drama e emoção da minha parte, mas eu já tinha esgotado a minha dose anos antes. - O teu tio e eu chorámos anos a fio por causa daquilo - disse eu.

Mas depois compreendemos que as coisas eram assim mesmo e não iriam mudar. A tinta secou e nunca mais poderia ser apagada. - Dei uma palmadinha na perna do meu filho. - Apesar de tudo, não me é difícil imaginar um universo paralelo, e implacável, no qual Ernie teria morrido nesse dia. Vou contar-te um segredo, Nati... Não há um dia da minha vida em que esse universo não me deixe gelado.

Devias ficar aqui no mundo real, pai - retrucou Nati, como se isso fosse tão simples como estar à conversa comigo no carro da mãe.

E fico... a maior parte do tempo. Mas só de pensar no que poderia ter acontecido ao Ernie... É por isso que me sinto tão feliz por tu teres tido a oportunidade de o conhecer. Eu sei que ele é esquisito, e que tu...

Não faz mal, pai, eu gosto dele... gosto muito dele. Só que às vezes me faz perder a paciência.

Sim, tem esse efeito sobre as pessoas - assenti, secamente.

E então como é que a cabeça dele ficou presa na motocultivadora?

Ele era uma criança curiosa... e andava sempre a sair de junto de mim.

Felizmente, Nati não perguntou como é que um miúdo de pouco mais de quatro anos tinha conseguido ligar uma motocultivadora.

Pai, o tio Ernie pode usar o rabo de cavalo se quiser. Por mim, não me importo.

Diz-lhe isso. Ele ficara contente. Mas claro que também temos de ver se o Dingo está preparado.

Ficámos sentados no confortável silêncio que criáramos entre nós.

Nati digeria a nova informação sobre o pai e o tio. E talvez, tal como eu, estivesse a pensar na velocidade com que este momento voava em direção ao passado. Parar o tempo - ainda que só por um dia - seria o passe de magia que mais desejaria poder realizar.

Desculpa o susto que te preguei há bocado - disse eu.

Ficaste completamente passado.

Vi o Jorge na cama do Ernie e, por um segundo, pensei que o Ernie era o meu pai. Devia estar ainda meio a dormir.

O teu pai era assim tão mau?

Era, Nati, era. Embora uma vez ou outra também fosse realmente fantástico.

Não entendo.

Nem eu. E acho que também nunca hei de entender.

O pequeno-almoço foi panquecas à moda do Colora do, o que pedia puré de maçã com o ovo. Enquanto os miúdos lavavam os pratos e Ernie trabalhava na sua última pintura, fui arrastando a mangueira pelo jardim de azáleas - vinte e sete pés, e todas elas à sombra dos toldos vermelhos e amarelos que Ernie e eu compráramos no mercado de Évora e que tinha atado a estacas, já que as flores tendiam a ficar queimadas nos dias mais quentes do verão. Dei às plantas toda a água que podiam aguentar, criando o lamaçal que as raízes pareciam apreciar.

Daí a uma hora, andava eu a arrancar as flores murchas dos hibiscos, Luci ligou-me.

Boas notícias! - exclamou, num tom animado. - Lembra-se do prédio que estava em obras na Rua do Vale, com os andaimes? Um dos trabalhadores que por lá andava viu uma mulher a sair de casa do Coutinho na manhã em que ele foi morto... Por volta das dez horas. Tentou meter conversa, mas ela mandou-o à merda. Só hoje de manhã é que ele viu a notícia sobre o crime nos jornais e foi à esquadra dos Restauradores. Tenho aqui à minha frente um retrato dela feito a partir da descrição da testemunha.

Estou em casa do meu irmão. Ele tem fax. Mande-me o retrato.

Claro, chefe, mas atenção, não está grande coisa. Ela trazia um chapéu que lhe encobria parte da cara, e o homem só a viu bem por uns segundos, quando ela lhe lançou um olhar furioso. Mas reparou que tinha uma tatuagem esquisita nas costas da mão.

Que tatuagem?

O número trinta. Vou mandar-lhe um fax com o desenho.

 

Enquanto durou o jantar com o ceramista egocêntrico de Ana, eu ia observando furtivamente os olhos furiosos da mulher que fora talvez a amante de Coutinho. Ao escolher as costas da mão para a tatuagem, pretendia manifestamente que o número 30 fosse visível não só para si como para os outros. Será que lhe acontecera uma daquelas coisas que mudam a vida das pessoas quando tinha trinta anos?

«Tudo mudou nesse ano porque eu...»

Escusei-me logo a seguir à sobremesa e escapei-me para a rua com a ideia de ligar à única pessoa que conhecia capaz de me ajudar a reduzir a lista dos vários desfechos possíveis para aquela frase. David Zydowicz dissera-me que tatuara no braço o número do pai no campo de concentração antes de ele se submeter a uma operação ao coração em 1982.

O meu pai fugia de mim sempre que eu tentava falar com ele sobre o que passara na Polónia - contou-me David -, por isso esse foi o único modo que encontrei de lhe dizer o que precisava de dizer sem necessidade de palavras.

Que género de coisas precisava de dizer?

Que nunca mais o deixaria sozinho no sofrimento. E ainda outras coisas, mas não sei como as dizer em voz alta. Talvez por serem importantes de mais.

Quanto ao número trinta, David disse-me:

É um numeral; por isso, talvez o que ela precisava de dizer estivesse também para além das palavras.

De volta à mesa do jantar, dei-me conta das várias deixas da minha mulher para que dissesse alguma coisa de bem-humorado ou de memorável ao seu artista, mas não conseguia pensar em mais nada que não na minha investigação. Mais tarde, já em casa, Ana disse-me que eu poderia pelo menos ter parecido interessado no artista. Felizmente, não ficou aborrecida durante muito tempo.

Contrariamente ao habitual, adormeci mal poisei a cabeça na almofada. Acordei com o retinir do telefone de casa. Saltei da cama, com a certeza de que tinha acontecido alguma coisa a Ernie.

Desculpe tê-lo acordado, Henrique.

Para meu alívio, era a voz do inspetor-chefe Romão, de serviço naquela semana. Dei uma vista de olhos ao relógio; eram sete e catorze.

Não faz mal- retorqui. - Que se passa?

Más notícias - respondeu, e explicou que Susana Coutinho tinha chamado o 112 duas horas antes, por ter encontrado Sandi inconsciente na cama. - A miúda tomou uma mancheia dos comprimidos de dormir da mãe.

Oh, caraças! Onde está ela agora? - perguntei. Tinha a sensação de estar em pé no cimo de um frágil pináculo muito acima daquela conversa.

No hospital Por favor não fique à rasca, mas os médicos não conseguiram estabilizar-lhe a tensão arterial Foi dada como morta às quarenta, e sete.

Não disse nada. Tinha caído num oceano gélido - milhas de mar a perder de vista até ao horizonte - de tudo o que deveria ter sido capaz de prever.

Ana espreguiçou-se atrás de mim.

Algum problema? - perguntou sonolenta.

Levantei a mão a pedir-lhe que esperasse. O peso fatal que sentia no braço fez com que me apercebesse de que haveria de carregar comigo aquele momento por muitos anos.

Odeio cada vez mais este caso - disse eu, mais de mim para comigo do que a Romão.

Tem de aguentar, Henrique.

A miúda deixou alguma carta? - perguntei.

Nada. Oiça, ainda tentei falar com a mãe, mas ela só quer falar consigo.

«Susana quer dizer-me que nunca há de recuperar», pensei. «Quer que eu saiba a verdade mesmo que minta à família.»

Monroe, agora não me deixe pendurado! - pediu Romão, impaciente.

Vou falar com a Sr.ª Coutinho - disse eu, percebendo que tudo o que ele queria era que eu o livrasse da situação.

Que aconteceu? - perguntou Ana, mal desliguei.

Sentei-me na borda da cama sem sequer dar por isso. Os braços dela enlaçaram-me. Contei-lhe da overdose de Sandi num murmúrio tenso. Esforçava-me por conter um grito; se o soltasse, calculei que não pararia durante muito tempo.

Se me tocassem quando estava agitado, sentia-me preso numa armadilha; por isso, estendi-me de costas e pus uma almofada em cima dos olhos. Nunca mais me levantar parecia-me a melhor opção.

Um homem imagina que não dirá outra palavra - nem aos colegas, nem à mulher, nem aos filhos nem ao irmão. Diz de si para consigo que entrará em greve contra a iniquidade que se esconde sob todas as coisas, mas sabe que será na realidade contra a sua própria perda de controlo.

Ana disse-me baixinho que ia telefonar para o emprego a avisar que chegaria mais tarde, para poder estar comigo, mas a sua generosidade era a segunda coisa que sentia não merecer naquele momento, e por isso calei-me.

O telefone desatou a emitir uns ruídos insistentes; devia ter colocado mal o auscultador.

Podes desfazê-lo à martelada! - rosnei.

Depois de Ana ter reposto o auscultador no descanso, escancarou a janela. Uma brisa seca entrou pelo quarto trazendo consigo o chilrear das andorinhas. Era tranquilizador tomar consciência de que havia um mundo para além de todas as nossas inquietações, mas eu não queria ser reconfortado; caso não conseguíssemos ir mais longe, devíamos pelo menos ser capazes de sentir o tormento que tinha forçado uma miudita a pôr termo à própria vida. Vieram-me as lágrimas aos olhos, mas apenas pela razão muito egoísta de não poder suportar a ideia de voltar a assumir as minhas funções profissionais e enfrentar Susana Coutinho. Ana poisou a mão nas minhas costas como que a querer saber em que estava eu a pensar, mas não lhe disse, porque haveria de parecer uma loucura: «Se uma andorinha entrar pela janela e poisar em cima de mim ou da cama, acreditarei em Deus e em que temos todos uma vida eterna à nossa espera, e voltarei a aprender a rezar. E talvez, se me sentir generoso, me perdoe por tudo o que poderia ter feito e não fiz.»

Nenhuma das andorinhas aceitou o desafio, naturalmente. Era apenas um dos jogos impossíveis-de-ganhar que eu inventava quando queria ter a certeza de ser incapaz de impedir que coisas más acontecessem. E para me lembrar de que não havia Deus nenhum, ainda que a tia Olívia tivesse vivido na certeza de que Ele olhava por cada um de nós.

Depois de a informar das notícias chocantes sobre Sandi, Ana começou a falar comigo numa voz sussurrada, mas deixei de a ouvir mal ela pronunciou as palavras «Tens de aprender...». Em vez disso, levantei-me disposto a vestir as roupas de trabalho. Assegurei-a de que me sentia melhor. Fiz até uns passos de dança idiotas para lho provar ­ coisa que me levou a odiar-me mesmo enquanto o fazia, como se fosse possível transformar o que tinha acontecido numa farsa.

Ana lançou-me um olhar irritado.

Para com isso! Detesto que te ponhas a fazer figuras tristes. - Arrastou-me de volta para a cama e fez-me sentar a seu lado. Afastando-me o cabelo dos olhos, disse: - Tens um perfil lindo. – Semicerrando os olhos para reforçar o efeito cómico, acrescentou: - Digno de uma estátua romana.

Não me agrada a ideia de não me poder mexer.

Chiu! Sabias que às vezes me ponho a imaginar que eras um nobre romano numa vida passada. É por causa daquelas moedas antigas que tu e o Ernie encontraram. Inventei toda uma história sobre ti.

Não era a primeira vez que era levado a interrogar-me sobre se a vida secreta de Ana não seria tão vasta como a minha.

Que história? - perguntei.

Tu vivias com o Ernie e o resto da tua família na Villa Ernesto no século IV. Tinham um jardim enorme. E uma quinta com oliveiras e vinhas e figueiras. Faziam azeite que mandavam para Roma. Tu e o Ernie eram famosos por causa do azeite. Azeite Lusitano de Enrico e Ernesto! - Ana fixou-me com um olhar incisivo. - Uma das razões por que foram atraídos para aquelas velhas ruínas é porque uma parte de vocês se lembrava de que os dois patetas que hoje são já ali tinham vivido.

E eu também era polícia nesse tempo?

Não, já te disse - resmungou ela. - Eras um nobre. Vigiavas a produção do teu famoso azeite. Seja como for, aquele saco de moedas que vocês encontraram... foste tu quem o escondeu ali há mil e seiscentos anos e por isso é que conseguiste encontrá-lo!

Naquele momento, a improbabilidade de ter vivido há mil e seiscentos anos não me parecia muito diferente da de ser quem agora era.

Ana tomou as minhas mãos nas suas.

Agora diz-me lá porque é que a Sandi é tão importante para ti.

Não se pode devolver as prendas que recebemos na infância... – murmurei em jeito de resposta, mesmo não sendo essa a minha intenção.

Ana olhou-me confusa. Levantei-me para ir buscar as calças.

Tenho de ir trabalhar - rematei.

Primeiro diz-me de que prendas estavas a falar - disse ela.

Ana franziu os lábios e fitou-me com um interesse tão confiante que decidi revelar-lhe um pouco mais sobre o que era viver no lado da montanha que ninguém podia ver, mas, ao pegar nas calças, as chaves do carro caíram do bolso. Ela agarrou-as e não mas quis devolver. Disse que eu não estava em condições de guiar e insistiu em levar-me a casa de Coutinho.

Opus-me à ideia num tom quezilento, mas ela recusou os meus argumentos com um gesto da mão e saiu para pedir a Nati que olhasse por Jorge. Secretamente sentia-me grato por ela tomar decisões por mim. Nessas alturas, Ana lembrava-me um mestre de xadrez que quase sempre sabia contrariar as minhas jogadas mais astutas.

Do lado de fora do quarto do meu filho, ouvia-os, ela e Nati, a falar em voz baixa, mas sem distinguir as palavras, e pensei: «Tenho ali as pessoas de quem mais gosto, mas este caso tornou-se de tal maneira obsessivo para mim que nem sequer me importa ouvir o que estão a dizer um ao outro.»

Enquanto atravessávamos a cidade, ia ensaiando a melhor maneira de expressar as minhas condolências a Susana Coutinho, mas tudo o que me ocorreu me soava a forçado e completamente descabido. Ana ainda estava de pijama azul às riscas e com uma das minhas velhas T-shirts brancas. Adorava sair com o que tinha usado para dormir. Dizia sempre que isso lhe dava a sensação de viver numa pequena aldeia e não numa grande cidade. Disse-lhe que tinha a certeza de que ia dar erros de gramática ao falar - acontecia-me sempre que estava nervoso. Ela não proferiu palavra até estacionarmos. Depois, fez-me uma festa na cara e declarou:

Tu és muito boa pessoa. E a senhora Coutinho vai perceber isso.

Se tivesse de responder, diria que as boas pessoas eram precisamente as que acabavam numa estrada de montanha no Colorado tão desfeitas que nada nem ninguém as poderia consertar. Achando que a sua primeira tentativa não a tinha levado a lado nenhum, disse:

Ouvir o que as pessoas sentem que precisam de te dizer é mais importante do que falar sem dar erros de gramática.

Só que não ouvi o que a Sandi estava a tentar dizer-me.

Provavelmente porque ela não sabia ainda o que queria dizer!

Mas eu devia ter sido capaz de perceber o que se estava a passar pela maneira como ela olhava para mim.

Os olhos de Ana fuzilavam.

Desde quando és adivinho?

Estou a falar em ser sensível ao que as pessoas em dificuldades não se permitem dizer.

Ouve, há uma coisa que tens de saber: nunca conseguirias demover aquela miúda mesmo que lhe lesses os pensamentos. Tu eras um estranho para ela!

Não podes ter a certeza! – disse eu, desesperado. – Não sabes o efeito positivo que podemos ter nas pessoas com quem nos encontramos, mesmo que só por uns minutos. É uma das melhores coisas da vida: haver pessoas desconhecidas capazes de nos ajudar. - Fechei os olhos, comprimindo com força a escuridão por ter falado de modo rude.

Há lugares no Colorado onde podemos vislumbrar a paisagem à nossa volta até uma distância de mais de trinta quilómetros em qualquer direção e só vemos rochas antigas e o reflexo da luz do sol - disse eu. - E esses lugares estão ainda dentro de mim.

Não sei bem porque lhe disse tal coisa. Mas talvez Ana soubesse.

Black Canyon deve ser um lugar perigoso para uma estrangeira como eu - disse ela.

Nunca deixaria que alguma coisa de mal te acontecesse.

Pois não, eu sei que não. - Tirou a minha gravata de cordão com uma kachina - uma deusa nativo-americana - de dentro da sua mochila. Era de prata com incrustações de coral vermelho, o talismã mais poderoso que possuía. Tinha-me sido dado por Nathan pouco antes de eu deixar o Colorado. Dissera-me que a kachina fora feita pelo pai dele, que tinha aprendido com Alce Negro.

Nathan disse-me também que o talismã impediria que mesmo o mais maléfico dos demónios «maléfico» era uma das suas palavras favoritas - descobrisse o nome secreto que ele me dera. E lembra-te, Hank - acrescentou, a mão crestada pelo sol sobre a minha cabeça -, um demónio que não saiba o teu nome não te pode fazer mal.

Estendi a mão para pegar na gravata de cordão, mas ela disse:

Deixa-me ser eu a pôr-te a Debbie.

Debbie era o nome que Ernie tinha dado à kachina por lhe parecer o mais improvável para uma deusa nativo-americana - e portanto inútil para quem quer que pudesse querer fazer-lhe mal a ela, ou a nós.

Inclinei a cabeça diante de Ana, e enquanto ela passava o cordão de couro em volta do meu pescoço senti o seu poder - tenso, decidido, criativo - e a sua autoconfiança, o que antes de mais nada me atraíra nela por a ter achado um grande mistério.

Por instantes, parecia que tínhamos crescido juntos - e que estávamos a participar num ritual muito para além do nosso tempo e espaço.

Pensava que não acreditavas em magia - disse-lhe ao endireitar a cabeça.

Mas acreditas tu - retorquiu.

Enfiei a coroa de Debbie por dentro do colarinho. As suas bordas agudas de prata, comprimidas na palma da minha mão, pareciam ser pontos de contacto entre mim e tudo o que nunca compreendera sobre o mundo, mas pelo que estaria eternamente grato.

A minha mulher sorriu como sempre fazia quando me via como um desafio.

Tu vês coisas horríveis, Hank - disse ela -, mas não desistes. Fazes tudo para que as coisas de em certo. Era o que eu queria dizer quando te disse que eras um bom homem.

Mas talvez isso não tenha nada a ver com coragem ou com qualquer coisa que se possa considerar... louvável.

Não? Então com o que é que tem a ver?

Pela primeira vez respondi com a verdade, embora não compreenda porque o fiz.

Porque só as pessoas em sofrimento me parecem absolutamente reais. E tenho necessidade de estar com elas para ter a certeza de ser também real.

Olhando-me com uma expressão cética nos olhos franzidos, Ana perguntou:

E é essa a única razão por que tentas resolver estes crimes horríveis?

Talvez não seja a única razão. Penso que as outras explicam porque vivo à custa de Valium.

Ela sorriu, como eu esperava, e estreitou os lábios contra os meus.

Pensei o que sempre penso quando Ana me beija: «Nunca imaginei que não teria de passar a vida sozinho.»

Era a simplicidade e o calor com que os nossos corpos se uniam - como animais que no frio do inverno procuram confortar-se mutuamente - que me permitia separar-me dela. Ana agarrou-me no ombro quando eu ia a sair do carro.

Dê-me uma ligadinha se precisar de mais magia, Sr. inspetor-chefe.

Enquanto o carro se afastava, peguei novamente na kachina. Quando me voltei para a casa de Coutinho, vi-me como que numa ponte que levava diretamente do Colorado a Lisboa. Perguntava a mim próprio se Nathan se sentiria orgulhoso do homem em que eu me tinha tornado; talvez fosse essa a razão por que o ouvia dizendo-me: «Hank, tens de descobrir que demónio conseguiu desvendar o verdadeiro nome da Sandi.»

 

Um homem de idade e cara descarnada atendeu quando bati à porta da casa dos Coutinho. O cabelo prateado e espesso estava penteado com cuidado. Os olhos azuis tinham uma expressão de cansaço.

Jean Morel? - perguntei.

Oui. Et qui êtes-vous?

Quando me apresentei, disse num inglês com um forte sotaque e carregado de ressentimento:

Chegou tarde de mais!

Depois de uma breve reflexão, tentando reduzir tudo o que sentia a uma simples frase, respondi:

Cometi o erro de subestimar até que ponto as coisas estavam mal. Lamento muito. Como se está a aguentar a Sr.ª Coutinho?

Não se está a aguentar nada - respondeu. Não me convidou a entrar.

Preciso de falar com ela - pedi.

Não, não, não - replicou ele, agitando o dedo como se eu fosse um miúdo da escola.

Estou em funções oficiais da polícia - disse eu. O tom de autoridade na minha voz fez-me compreender que a animosidade dele trouxera de novo ao de cima o meu papel de agente da Judiciária.

Morel barrava-me o caminho com os braços cruzados no peito um gesto que mereceu o meu respeito ainda que limitando as minhas opções. Poderia tê-lo afastado com a maior das facilidades, mas em vez disso desviei os olhos para a rua, para a Igreja de Jesus, procurando na sua arcaria mergulhada em sombra as palavras certas, capazes de impedir que dois desconhecidos se pusessem a discutir num mau momento.

Não as vislumbrei, mas uma mulher idosa, esguia, com cabelo acobreado e brilhante, num corte simples em franja, e um vestido branco, comprido e solto, ao gosto hippy, veio à porta e rompeu o impasse. Tinha uns óculos de sol de aros escuros colados com fita gomada, um fio de contas de âmbar que lhe chegava aos joelhos e uma blusa camponesa bordada. Num francês preciso e cuidado fez notar a Morel que Susana me tinha chamado.

Segui-a para o interior da casa; ela tirou os óculos e apresentou-se como sendo a irmã mais velha de Pedro Coutinho, Sylvie Freitas. Tinha uns olhos grandes, líquidos, raiados de vermelho e com olheiras. Inclinando-se para uma mesinha baixa, pegou num leque fechado. A tensão dos tendões da mão quando o levou ao peito mostrou-me que não voltaria a largá-lo tão cedo. Disse-me que chegara na noite anterior para ajudar a olhar por Sandi e Susana. Vivia em Cascais.

Na sala de estar, o tapete branco onde Pedro Coutinho ficara estendido a esvair-se em sangue tinha sido removido, deixando à mostra o soalho de madeira escura.

Sentando-se junto da mesa da cozinha, Sylvie explicou-me - com hesitações e pausas desesperantes - o que se tinha passado na noite anterior. Sempre que lhe faltava a voz, abanava junto à cara o leque com figuras de gansos pretos e dourados a voar num céu azul. Parecia ser japonês – um presente do irmão, supus.

A Sandi estava surpreendidamente bem – disse Sylvie. – Até deixou o seu caniche Nero andar a correr atrás dela pelo jardim durante algum tempo e conseguiu comer um pouco de esparguete ao jantar. Foi deitar-se cedo. Susana ficou sentada a seu lado até ela adormecer. Sylvie falava num tom que o sofrimento tornara áspero. Optara pelo inglês porque Morel não conseguia acompanhar a conversa em português. Havia qualquer coisa de uma cadência escocesa nas suas vogais e, quando lhe perguntei a razão, disse-me que tinha estudado História da Arte na Universidade de Edimburgo nos anos de 1960. Não deixou de me dizer que nos seus anos de estudante vivera numa comunidade, para grande embaraço dos pais. Tive a sensação de que queria dar-me a entender que fora a ovelha negra da família. Talvez estivesse a procurar distanciar-se do irmão e dos seus sarilhos.

Perguntei-lhe, a ela e a Morel, se Sandi tinha posto o anel de turquesa. Queria saber se achara que deveria escondê-lo mesmo estando para morrer em breve. Nenhum deles, porém, tinha reparado nisso.

Não vimos nela nada fora do habitual - disse Sylvie, como que concluindo.

Não é bem assim - corrigiu o francês com um movimento da cabeça, escusando-se. Levantou-se, tirou um maço de Gauloises Blondes do bolso da camisa e sacou um cigarro. Rebuscou o bolso das calças de onde tirou o isqueiro, elegante e de ouro, o que me lembrou que tinha entrado num mundo que normalmente apenas entrevejo nas capas das revistas.

A Sandi dá-me um presente a seguir ao jantar – explicou Morel. E mais tarde, antes de se ir deitar, dá-me um beijo de boas-noites.

Não era costume? - perguntei.

Com lágrimas nos olhos, respondeu:

Não. Ela não é... - Bateu com o punho na testa e olhou para Sylvie a pedir ajuda.

Afetuosa - sugeriu ela.

Ela não é afetuosa comigo há alguns meses.

Qual foi o presente?

Morel acendeu o cigarro.

Um livro de cozinha. Vou buscar.

Dirigiu-se para a sala de estar e voltou com um enorme volume intitulado Cozinha Tradicional Portuguesa.

A Sandi diz que a mãe não cozinha... nem sequer ovos ... e que por isso eu tenho de cozinhar. Diz ela que os avós deram o livro, mas ela quer que eu fique com ele. Eu recuso, mas ela insiste. Compreende, inspetor?

É a maneira de ela dizer que me aceita. - Morel fez com os lábios um som, um sopro bem gaulês. - Nem imagina o alívio que isso representa para mim. E apesar disso a história acaba da pior maneira possível.

Decidi não fazer notar que frequentemente as pessoas que tencionam matar-se oferecem aos outros as coisas que mais estimam, mas Sylvie devia já ter as suas suspeitas e soltou um som curto, estrangulado, ao mesmo tempo que passava a mão pelo pescoço. Quando Morel a fitou preocupado, disse-lhe que estava a precisar de mais um café. Talvez receasse que ele se fosse abaixo se soubesse a verdade. Pedi também um café para mim; participar naquele pequeno ritual talvez...

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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