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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A SOMA DOS DIAS / Isabel Alende
A SOMA DOS DIAS / Isabel Alende

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

NÃO falta drama À minha vida, tenho verdadeiras histórias de circo para contar, mas seja como for o dia 7 de Janeiro encontra-me ansiosa. Esta noite não consegui dormir. Fomos assolados pela tempestade. O vento rugia entre os carvalhos e golpeava as janelas da casa, no culminar do dilúvio bíblico das últimas semanas. Houve inundações nalguns bairros do condado. Os bombeiros não conseguiram dar resposta a tão colossal desastre e os vizinhos vieram para a rua, com água até à cintura, na tentativa de salvarem alguma coisa da investida da corrente. Nas avenidas principais navegavam móveis e sobre os tejadilhos de alguns carros parcialmente submersos viam-se cães transtornados à espera que aparecessem os donos, enquanto os repórteres captavam dos helicópteros as cenas deste Inverno da Califórnia, que mais parecia um furacão do Louisiana. Nalguns bairros os carros não puderam circular durante vários dias, e quando por fim parou de chover e se percebeu a magnitude dos estragos mandaram vir autênticos bandos de imigrantes da América Latina, que iniciaram a tarefa de extrair a água com bombas e de remover os escombros à mão. A nossa casa, alcandorada numa colina, é açoitada de frente pelo vento, que dobra as palmeiras e por vezes arranca pela raiz as árvores mais orgulhosas, aquelas que não dobram a cerviz, mas fica a salvo das inundações. Às vezes, no auge dos vendavais, levantam-se ondas caprichosas que cobrem o nosso único caminho de acesso. Nessas alturas, aprisionados, observamos de cima o espectáculo invulgar da baía enfurecida.

Gosto do recolhimento obrigatório que impõe o Inverno. Vivo no condado de Marin, a norte de São Francisco, a vinte minutos da ponte do Golden Gate, entre cerros dourados no Verão e esmeralda no Inverno, na costa norte da imensa baía. Num dia claro conseguimos ver ao longe as outras pontes, o perfil difuso dos portos de Oak-land e de São Francisco, os pesados cargueiros, centenas de veleiros e as gaivotas, como panos brancos. Em Maio aparecem alguns valentes, pendurados em cometas multicolores, que deslizam velozes sobre a água, perturbando a quietude dos avôs asiáticos que passam as tardes a pescar nas rochas. Do oceano Pacífico não se vê o estreito acesso à baía, que amanhece envolto em bruma, e por isso os marinheiros de outros tempos passavam ao largo, sem imaginar o esplendor oculto um pouco mais adentro. Actualmente essa entrada é coroada pela esbelta ponte do Golden Gate, com as suas soberbas torres vermelhas. Água, céus, montes e bosques: é esta a minha paisagem.

Não foi a ventania do fim do mundo nem a metralha do granizo nas telhas que me manteve acordada toda a noite, mas a ansiedade do amanhecer inevitável do dia 8 de Janeiro. Há vinte e cinco anos que é sempre nesta data que começo a escrever, mais por superstição que por disciplina. Receio que, se começar noutro dia, o livro venha a ser um fracasso, e que se passar um dia 8 de Janeiro sem escrever não venha a conseguir fazê-lo o resto do ano. Janeiro chega ao fim de alguns meses sem escrever e em que vivi voltada para fora, no bulício do mundo, em viagem, a promover livros, a dar conferências, rodeada de gente, a falar de mais. Ruído e mais ruído. Mais que tudo o resto, receio ter ensurdecido, não ser capaz de ouvir o silêncio. Sem silêncio estou perdida. Levantei-me várias vezes, andei às voltas pela casa, embrulhada no velho colete de caxemira do Willie, que tenho usado tanto que é como uma segunda pele, com uma chávena de chocolate quente atrás de outra nas mãos, a dar voltas e mais voltas na cabeça ao que escreveria dentro de algumas horas, até que o frio me obrigava a voltar para a cama, onde o Willie, abençoado seja, ressonava. Encostada ao seu ombro nu, escondia os pés gelados entre as suas pernas, compridas e firmes, aspirando o seu surpreendente cheiro a homem jovem, que não mudou com os anos que passaram. Nunca acorda quando me encosto a ele; só quando me afasto. Está acostumado ao meu corpo, às minhas insónias e aos meus pesadelos. Por muito que passeie de noite, também nunca acordo a Olívia, que dorme num banco aos pés da cama. Não há nada capaz de perturbar o sono desta cadela tonta, nem os roedores que de vez em quando saem dos seus esconderijos, nem o cheiro dos zorrillos quando fazem amor, nem as almas que sussurram na escuridão. Se um louco armado com uma machada nos assaltasse, seria a última a aperceber-se disso. Quando chegou era um pobre animal recolhido numa lixeira pela Sociedade Humanitária, com uma pata e várias costelas partidas. Passou um mês escondida num armário entre os meus sapatos, a tiritar, mas pouco a pouco restabeleceu-se dos maus tratos que sofrera e lá apareceu, de orelhas baixas e rabo entre as pernas. Foi nessa altura que percebemos que não servia de cão de guarda: tem o sono pesado de mais.

Por fim a fúria da tormenta amainou, e com a primeira luz da manhã a entrar pela janela tomei um duche e vesti-me, enquanto o Willie, envolto nas suas vestes de xeque tresnoitado, se encaminhava para a cozinha. O cheiro do café acabado de moer chegou-me como uma carícia: aromaterapia. Estas rotinas diárias unem mais que a desordem da paixão; quando estamos separados, esta dança discreta é o que mais falta nos faz. Precisamos de sentir a presença do outro neste espaço intangível que nos pertence apenas a nós. Um amanhecer frio, o café e as torradas, tempo para escrever, uma cadela que abana o rabo e o meu amante; a vida não podia ser melhor. Depois o Willie deu-me um abraço de despedida porque eu partia para uma longa viagem. «Boa sorte», sussurrou, como todos os anos neste dia, e eu saí, com casaco e chapéu-de-chuva, desci seis degraus, passei ao lado da piscina, percorri dezassete metros de jardim e cheguei à casita onde escrevo, o meu tugúrio. E aqui estou.

Mal tinha acabado de acender uma vela, a minha iluminação quando escrevo, ligou-me Cármen Balcells, a minha agente, de Santa re, a aldeola de cabras loucas, perto de Barcelona, onde nasceu. Ali pretende passar os seus anos da maturidade em paz, mas, como tem energia para dar e vender, está a comprar a aldeia casa a casa.

—        Lê-me a primeira frase — exigiu, mãe bondosa, de coração indulgente.

Expliquei-lhe uma vez mais a diferença de nove horas entre Espanha e a Califórnia. Por enquanto não havia primeira frase.

Escreve umas memórias, Isabel.

Já as escrevi. Não te lembras?

Isso já foi há treze anos.

A minha família não gosta de se ver exposta, Cármen.

Não te preocupes com isso. Manda-me uma carta de umas duzentas ou trezentas páginas, que eu encarrego-me do resto. Se for preciso escolher entre contar uma história e ofender os parentes, qualquer escritor profissional escolhe a história.

Tens a certeza?

Absoluta.

 

 

 

 

 

A segunda semana de Dezembro de 1992, mal passou a chuva, fomos em família espalhar as tuas cinzas, Paula, em cumprimento das instruções que deixaste numa carta, escrita muito antes de teres adoecido. Assim que os avisámos do que acontecera, o teu marido, Ernesto, veio de Nova Jérsia e o teu pai do Chile. Conseguiram chegar a tempo de se despedir de ti, que repousavas envolta num lençol branco, antes de te levarmos para seres cremada. Depois reunimo-nos numa igreja para ouvir missa e para chorarmos juntos. O teu pai tinha de regressar ao Chile, mas esperou que parasse de chover, e dois dias mais tarde, quando por fim o Sol assomou timidamente, dirigimo-nos, toda a família, em três carros, a um bosque. O teu pai foi à frente, a conduzir-nos. Não conhece esta região, mas percorrera-a nos dias anteriores em busca do sítio mais adequado, daquele que tu terias preferido. Há muitos lugares por onde escolher, aqui a natureza é pródiga, mas por uma daquelas coincidências que já são habituais em tudo o que se refere a ti, minha filha, levou-nos directamente ao bosque onde eu ia muitas vezes para fazer caminhadas e libertar a raiva e a dor quando estavas doente, o mesmo onde o Wil-lie me levou a fazer um piquenique pouco tempo depois de nos termos conhecido, o mesmo onde tu e o Ernesto costumavam passear de mãos dadas quando vinham visitar-nos à Califórnia. O teu pai entrou no parque, percorreu parte do caminho, estacionou e fez-nos sinal de que o seguíssemos. Levou-nos ao lugar exacto que eu própria teria escolhido, porque estive ali muitas vezes a rezar por ti: um regato rodeado por sequóias altas, cujas copas se unem numa cúpula de catedral verde. Havia uma ligeira névoa, que esfumava os contornos da realidade. A luz mal conseguia passar por entre as árvores, mas as folhas brilhavam, molhadas pelo Inverno. Da terra desprendia-se um aroma intenso a húmus e funcho. Detivemo-nos junto de uma pequena lagoa, formada por rochas e troncos caídos. Ernesto, sério, enfraquecido, mas já sem lágrimas, porque já as chorara todas, segurava a urna de porcelana com as tuas cinzas. Eu tinha guardado um pouco dessas cinzas numa caixa também de porcelana para as manter sempre no meu altar. O teu irmão, Nico, tinha o Alejandro ao colo, e a tua cunhada, Célia, levava a Andrea, que ainda era bebé, tapada com mantas e a mamar-lhe do peito. Eu levava um ramo de rosas, que lancei, uma a uma, à água. Depois cada um de nós, incluindo o Alejandro, tirámos um punhado de cinzas da urna e deixámo-las cair sobre a água. Parte ficou a flutuar brevemente entre as rosas, mas a maioria foi ao fundo, como areia branca.

Que é isto? — perguntou o Alejandro.

A tua tia Paula — respondeu-lhe a minha mãe, entre soluços.

Não parece — observou, confundido.

Começarei a contar-te o que nos aconteceu desde 1993, quando partiste, e vou limitar-me à família, que é o que te interessa. Terei de omitir dois filhos do Willie, o Lindsay, que quase não conheço, só o vi uma dúzia de vezes e nunca passámos da relação essencial de cortesia, e o Scott, porque não quer aparecer nestas páginas. Tinhas um grande carinho por esse ranhoso solitário, com óculos de lentes grossas e cabelo desgrenhado. Agora é um homem de vinte e oito anos, parecido com o Willie, que se chama Harleigh. Foi ele próprio que se baptizou com o nome de Scott, quando tinha cinco anos, mas na adolescência recuperou o original.

A primeira pessoa que me vem à mente e ao coração é a Jennifer, a única filha do Willie, que no início desse ano acabava de fugir pela terceira vez de um hospital, onde tinha ido parar por causa de mais uma infecção, entre as muitas que sofrera na sua curta vida. A polícia não deu sinal de a ter procurado, havia demasiados casos como o dela, e dessa vez os contactos do Willie com a lei não serviram de nada. O médico, um filipino alto e discreto que a salvara a golpes de perseverança quando chegou ao hospital a arder em febre, e que já a conhecia porque já a tinha atendido algumas vezes, explicou ao Willie que teria de encontrar a filha depressa ou ela acabaria por morrer. Com doses tremendas de antibióticos administradas durante várias semanas poderia salvar-se, disse-nos, mas teria de se evitar uma recaída, que seria mortal. Estávamos numa sala de paredes amarelas, com cadeiras de plástico, cartazes de mamografias e exames de sida, cheia de doentes à espera de serem atendidos de urgência. O médico tirou os óculos redondos de aros metálicos, limpou-os com um lenço de papel e respondeu às nossas perguntas com prudência. Não tinha simpatia pelo Willie nem por mim. Confundia-me talvez com a mãe da Jennifer. Aos seus olhos éramos culpados, tínhamo-la descurado, e por fim, tarde de mais, acorríamos, compungidos. Evitou contar-nos pormenores, mas o Willie conseguiu saber que, além de ter os ossos feitos em lascas e atacados de múltiplas infecções, a sua filha tinha o coração a ponto de rebentar. Há nove anos que a Jennifer se empenhava em tourear a morte.

Tínhamos visitado a filha do Willie no hospital nas semanas anteriores, com os pulsos atados para a impedir de arrancar as sondas no meio dos delírios da febre. Era dependente de quase todas as drogas conhecidas, do tabaco à heroína; não sei como o seu corpo ainda resistia a tanta violência. Como não conseguiram encontrar-lhe nenhuma veia onde pudessem injectar-lhe os medicamentos, optaram por pôr-lhe um cateter no peito. Ao fim de uma semana tiraram-na dos cuidados intensivos e levaram-na para uma enfermaria de três camas, que partilhava com outras doentes, onde deixou de estar amarrada e onde também deixou de ser vigiada como antes. Comecei a ir visitá-la todos os dias e levava-lhe o que me pedia: perfumes, camisas de noite, música, mas não havia nada que não desaparecesse. Suponho que os amigos deviam aparecer fora de horas para a abastecer de drogas, que ela pagava com as minhas prendas, à falta de dinheiro.

A administração de metadona, para a ajudar a suportar a abstinência, também fazia parte do tratamento, mas além disso ela injectava no cateter tudo o que os fornecedores lhe levavam às escondidas. Uma ou outra vez coube-me a tarefa de a lavar. Tinha os pés e os tornozelos inchados, o corpo cheio de hematomas, de marcas de agulhas infectadas, de cicatrizes e uma costura de pirata no ombro. «Foi uma facada», explicou-me, laconicamente.

A filha do Willie foi uma rapariga loura, de grandes olhos azuis, como o pai, mas não se salvaram muitas fotografias do passado e já ninguém se lembrava de como fora, a melhor aluna da turma, obediente e lindíssima. Parecia etérea. Conheci-a em 1988, pouco tempo depois de me ter instalado na Califórnia, para viver com o Willie, quando ainda era bela, embora já tivesse um olhar esquivo e aquela névoa enganosa já a envolvesse como um halo escuro. Exaltada pelo meu amor recente pelo Willie, não me surpreendeu que num certo domingo de Inverno me tivesse levado a uma prisão, a leste da baía de São Francisco. Aguardámos um bom bocado num pátio inóspito, em fila no meio de outros visitantes, a maioria negros e latinos, até que se abriram as grades e nos permitiram que entrássemos num edifício lúgubre. Separaram os poucos homens das muitas mulheres e crianças. Não sei qual foi a experiência do Willie, mas no meu caso uma matrona de uniforme confiscou-me a carteira e empurrou-me para trás de uma cortina, onde me meteu as mãos onde até então ninguém se atrevera a fazê-lo, com mais brusquidão que a necessária, talvez porque a minha pronúncia me tornava suspeita. Por sorte, uma camponesa de São Salvador, visitante como eu, advertira-me de que não levantasse dificuldades, porque seria pior. Por fim, eu e o Willie encontrámo-nos numa caravana preparada para as visitas das presas, um espaço comprido e estreito, dividido por uma rede de galinheiro, atrás da qual se encontrava a Jennifer. Estava na prisão há um ou dois meses. Tinha um aspecto asseado e estava bem alimentada; em contraste com o aspecto tosco das outras reclusas, parecia uma menina de escola com a roupa de domingo. Recebeu o pai com uma tristeza insuportável. Nos anos seguintes verifiquei que chorava sempre que se encontrava com ele, não sei se por vergonha se por rancor. O Willie apresentou-me brevemente como «uma amiga», embora já vivêssemos juntos há algum tempo, e ficou de pé, à frente da rede de galinheiro, com os braços cruzados e os olhos cravados no chão. Eu observava-os a certa distância, ouvindo pedaços do diálogo entre os murmúrios de outras vozes.

Que aconteceu desta vez?

Sabes muito bem o que aconteceu. Para que perguntas? Tira-me daqui, papá.

Não posso.

Não és advogado?

A última vez avisei-te que não voltava a ajudar-te. Se escolheste esta vida, tens de pagar as consequências.

Ela limpou uma lágrima à manga, mas outras foram escorrendo pelo rosto enquanto pedia notícias dos irmãos e da mãe. Pouco depois despediram-se e ela saiu escoltada pela mesma mulher que me requisitara a carteira. Nessa altura ainda eram visíveis alguns vestígios de inocência, mas seis anos mais tarde, quando escapou aos cuidados do médico filipino no hospital, já nada restava da rapariga que conheci na prisão. Aos vinte e seis anos parecia uma mulher de sessenta.

Quando saímos chovia e eu e o Willie percorremos a correr, ensopados, a distância que nos separava do estacionamento onde tínhamos deixado o carro. Perguntei-lhe porque tratava a filha com tanta frieza, porque não a punha num programa de reabilitação, em vez de a deixar ali, entre as grades.

Ali está mais segura — replicou.

Não podes fazer nada? Tem de haver algum tratamento!

E inútil. Nunca quis aceitar ajuda, e além disso é maior de idade.

Se fosse minha filha, moveria céus e terra para a salvar.

Não é tua filha — disse-me, com uma espécie de ressentimento surdo.

Nessa época, um jovem cristão, um desses alcoólicos redimidos pela mensagem de Jesus que põem na religião o fervor com que antes veneravam a garrafa, andava a rondar a Jennifer. Vimo-lo algumas vezes na prisão, nos dias de visita, sempre com a Bíblia na mão e o sorriso beatífico dos eleitos de Deus. Cumprimentava-nos com a compaixão reservada aos que vivem entre as trevas do erro, o que deixava o Willie frenético, mas conseguia em mim o efeito desejado, que era deixar-me envergonhada. Não é preciso muito para que eu me sinta culpada. As vezes chamava-me de parte para falar comigo e citava-me o Novo Testamento — «Jesus disse aos que iam lapidar a mulher adúltera: Quem de vós estiver sem pecado atire-lhe a primeira pedra!» —, enquanto eu observava fascinada os seus dentes estragados e tentava proteger-me dos perdigotos. Não faço ideia que idade teria. Quando estava calado parecia muito jovem, por causa do seu aspecto de grilo e da sua pele com acne, mas a impressão desfazia-se mal começava a pregar com voz estridente e gestos afectados. Ao princípio quis atrair a Jennifer para as fileiras dos justos mediante a lógica da sua fé, a que ela era imune. Em seguida optou por levar-lhe prendas modestas, que deram melhor resultado: por meia dúzia de cigarros já ela aguentava um bom bocado de leituras evangélicas. Quando a Jennifer saiu em liberdade, ele estava à espera dela, com uma camisa limpa e encharcado de perfume. Costumava telefonar-nos a horas tardias para nos dar notícias da sua protegida e para incitar o Willie a arrepender-se dos seus pecados e a aceitar o Senhor no seu coração, pois então poderia receber o baptismo dos eleitos e reunir-se à filha sob a protecção do amor divino. Não sabia com quem estava a meter-se... O Willie é filho de um pregador extravagante e foi criado numa tenda onde o pai, com uma cobra gorda e mansa enrolada à cintura, impunha aos crentes a sua religião inventada. Assim, qualquer coisa que cheirasse a sermão incitava-o a fugir o mais depressa possível. O evangelista estava obcecado pela Jennifer, cego por ela como uma borboleta por uma lâmpada. Debatia-se entre o fervor místico e a paixão carnal, entre salvar a alma da Madalena e gozar do seu corpo, um tanto deteriorado mas ainda excitante, como nos confessou com tal candura que não tivemos coragem de troçar dele. «Não cairei no delírio da luxúria. Casar-me-ei com ela»,


assegurou-nos, com o estranho vocabulário que empregava, e em seguida presenteou-nos com uma prédica sobre a castidade no matrimónio que nos deixou pasmados. «Este tipo ou é parvo ou maricas», foi o comentário do Willie, mas apegou-se à ideia do casamento, porque aquele infeliz com boas intenções podia resgatar a filha. Contudo, quando o galã pediu a Jennifer em casamento, de joelho por terra, ela respondeu-lhe com uma risada. Por fim o pregador acabou por ser morto com uma sova brutal num bar do porto, onde foi uma noite pregar a mensagem de Jesus a marinheiros e estivadores que não estavam com disposição para o cristianismo. Não voltou a acordar-nos à meia-noite com os seus discursos messiânicos.

A Jennifer passou a infância a esconder-se pelos cantos da casa, metida consigo, enquanto o irmão Lindsay, dois anos mais velho, açambarcava toda a atenção dos adultos, que não conseguiam ter mão nele. Era uma menina de bons modos, misteriosa, com um sentido de humor demasiado sofisticado para a idade. Ria-se de si mesma com gargalhadas claras e contagiantes. Ninguém desconfiava que de noite se escapava por uma janela, até que foi presa num dos bairros mais sórdidos de São Francisco, onde a própria polícia receia aventurar-se de noite, a muitos quilómetros de casa. Tinha quinze anos. Os pais estavam divorciados há muito tempo, cada um preocupado com os seus problemas, e possivelmente não avaliaram bem a gravidade do que se passou. O Willie teve dificuldade em reconhecer a jovem mal maquilhada, incapaz de manter-se de pé ou de dizer o que quer que fosse, que tiritava ao fundo de uma cela da esquadra. Horas mais tarde, a salvo na sua cama e com a mente já um pouco mais clara, a Jennifer prometeu ao pai que se emendaria e não voltaria a fazer uma tolice semelhante. Ele acreditou nela. Todos os jovens tem percalços deste tipo; ele próprio tivera problemas com a lei em miúdo. A coisa acontecera em Los Angeles, quando tinha treze anos, e os seus crimes eram roubar gelados e fumar marijuana com os miúdos mexicanos do seu bairro. Aos catorze apercebeu-se de que, se não se endireitasse por si mesmo, nunca mudaria, porque não havia ninguém que pudesse ajudá-lo. Foi então que decidiu afastar-se dos bandos e decidiu concluir a escola, trabalhar para pagar a faculdade e ser advogado.

Depois de ter fugido do hospital e dos cuidados do médico filipino, a Jennifer sobreviveu, porque era muito forte, apesar da sua aparente fragilidade, e durante uns tempos não soubemos dela. Um dia de Inverno ouvimos o vago rumor de que estava grávida, mas pusemos de parte a ideia, porque isso nos pareceu impossível. Fora ela mesma que nos dissera que não podia ter filhos, por ter abusado de mais do seu corpo. Três meses mais tarde apareceu no escritório do Willie para lhe pedir dinheiro. Foi uma das poucas vezes que o fez: preferia desenvencilhar-se sozinha, pois assim não tinha de dar explicações a ninguém. Os seus olhos moviam-se desesperados, em busca de alguma coisa que não encontrava, e as mãos tremiam-lhe, mas a sua voz era firme:

Estou grávida — anunciou ao pai.

Não pode ser! — exclamou o Willie.

Isso era o que eu pensava, mas olha... — Abriu a camisa de homem com que se cobria até aos joelhos e mostrou-lhe a protuberância do tamanho de uma toranja. — É uma menina e vai nascer no Verão. Vou chamar-lhe Sabrina. Sempre gostei desse nome.

 

Passei quase todo o ano de 1993 fechada a escrever-te, Paula, entre lágrimas e recordações, mas não pude evitar uma longa digressão por várias cidades dos Estados Unidos para promover O Plano Infinito, um romance inspirado na vida do Willie. O livro havia sido publicado em inglês pouco tempo antes, mas já o tinha escrito há dois anos e já estava traduzido em várias línguas europeias. O título foi roubado ao pai do Willie, cuja religião transumante se chamava «o plano infinito». O Willie ofereceu o meu livro a todos os seus amigos; desconfio que comprou todos os exemplares da primeira edição. Estava tão ufano que tive de lhe recordar que não era a sua biografia, mas uma obra de ficção. «A minha vida é um romance», respondeu-me. Todas as vidas podem contar-se como um romance. Cada um de nós é o protagonista da sua própria lenda. Neste momento, ao escrever estas páginas, tenho dúvidas. Será que os factos sucederam como os recordo e conto? Apesar da correspondência com a minha mãe, fundamental, em que preservamos dia a dia uma versão mais ou menos verídica tanto dos acontecimentos triviais como dos importantes, estas páginas são subjectivas. O Willie disse-me que o livro era um mapa da sua trajectória, e acrescentou que era uma pena que Paul Newman estivesse um pouco velho para o papel do protagonista caso adaptassem o livro ao cinema. «Talvez já tenhas reparado que o Paul Newman é parecido comigo», fez-me ver, com a sua modéstia habitual. Não me tinha apercebido da parecença, mas não conheci o Willie em jovem, altura em que certamente eram como duas gotas de água.

A publicação do livro em inglês aconteceu num momento mau para mim. Não tinha vontade de ver ninguém e a ideia de uma digressão para promover o livro deixava-me doente. Estava doente de sofrimento, obcecada com o que poderia ter feito para te salvar e não fiz. Como é possível que não me tenha apercebido da negligência dos médicos daquele hospital de Madrid? Porque não te tirei dali para te trazer logo para a Califórnia? Porquê, porquê... Fechava-me no quarto onde passaste os últimos dias, mas nem sequer nesse lugar sagrado encontrava um pouco de paz. Teriam de passar muitos anos até que te convertesses numa amiga suave e constante. Nessa altura sentia a tua ausência como uma dor aguda, uma lança no peito, que por vezes me deixava de rastos.

Também andava preocupada com o Nico, porque acabávamos de saber que o teu irmão também sofre de porfiria. «A Paula não morreu de porfiria, morreu de negligência médica», insistia o teu irmão, para me tranquilizar, mas estava preocupado, não tanto por ele como pelos seus dois filhos, e pelo terceiro, que vinha a caminho. Os miúdos podiam ter recebido a nefasta herança; só o saberíamos quando chegassem à idade de se submeter aos testes. Três meses depois da tua morte, a Célia anunciou-nos que esperava outro filho, coisa de que eu já desconfiava, por causa das suas olheiras de sonâmbula e porque o tinha sonhado, tal como sonhei com o Alejandro e a Andrea, antes de eles começarem a mexer-se no ventre da mãe. Três filhos em cinco anos eram uma imprudência. O Nico e a Célia não tinham emprego seguro e os seus vistos de estudantes estavam a expirar, mas mesmo assim festejámos a notícia. «Não se preocupem. Cada criança nasce com um pão debaixo do braço», foi o comentário da minha mãe quando soube. E assim foi. Nessa mesma semana começámos a tratar dos vistos de residência do Nico e da sua família. Eu tinha conseguido a cidadania dos Estados Unidos, ao fim de cinco anos de espera, e poderia patrociná-los.

Eu e o Willie conhecemo-nos em 1987, três meses antes de tu teres conhecido o Ernesto. Na altura alguém te disse que eu tinha deixado o teu pai por ele, mas asseguro-te que não foi o que aconteceu. Eu e o teu pai vivemos juntos vinte e nove anos, conhecemo-nos quando eu tinha quinze e ele ia fazer vinte. Quando decidimos divorciar-nos eu não fazia a menor ideia de que três meses mais tarde ia conhecer o Willie. Foi a literatura que nos reuniu. O Willie tinha lido o meu segundo romance e quis conhecer-me quando eu passava como um cometa pelo Norte da Califórnia. Teve uma decepção comigo, porque estou longe de ser o tipo de mulher que prefere, mas disfarçou muito bem e agora diz que sentiu imediatamente uma «afinidade espiritual». Não faço ideia do que seja tal coisa. Pela minha parte, tive de agir com rapidez, porque andava a saltar de cidade em cidade, numa jornada demente. Telefonei-te para te pedir conselho e disseste-me, a rir às gargalhadas, que não percebias porque perguntava, se na verdade já tinha decidido lançar-me de cabeça na aventura. Contei ao Nico, que exclamou, horrorizado: «Na tua idade, mamã!» Eu na altura tinha quarenta e cinco anos, o que a ele lhe deve ter parecido a antecâmara da sepultura. Foi esse o sinal de que não tinha tempo a perder, de que devia concentrar-me no que era realmente importante. A minha urgência esbarrou na prudência justificada do Willie. Não vou repetir aqui o que tantas vezes ouviste contar; segundo o Willie, tenho cinquenta versões diferentes de como começou o nosso amor, e todas são verdadeiras. Para resumir, recordo-te que poucos dias mais tarde deixei a minha vida anterior e aterrei sem convite na casa desse homem por quem me apaixonara. O Nico diz que «abandonei os meus filhos», mas tu estavas a estudar na Virgínia e ele já tinha vinte e um anos, era um jovem adulto que não precisava dos mimos da mamã. Depois de o Willie se ter recomposto da surpresa brutal de me ver à sua porta com uma mala de viagem, iniciamos com entusiasmo a nossa vida em comum, apesar das diferenças culturais que nos separavam e dos problemas dos seus filhos, que nem ele nem eu sabíamos como enfrentar. A vida e a família do Wil-iie pareciam-me uma comédia de má qualidade, em que nada funcionava. Quantas vezes te terei telefonado para te pedir conselho? Creio que todos os dias. E a tua resposta era sempre a mesma: «Qual é a atitude mais generosa que podes ter neste caso, mamã?» Casámo-nos oito meses mais tarde. A iniciativa não foi dele, foi minha. Quando percebi que a paixão do primeiro momento se ia transformando em amor e que provavelmente ia ficar pela Califórnia, decidi trazer os meus filhos. Para poder reunir-me contigo e com o teu irmão teria de tornar-me cidadã dos Estados Unidos, de maneira que não tive outro remédio senão engolir o orgulho e sugerir ao Willie a ideia do casamento. A sua reacção não foi de felicidade explosiva, como eu me atrevera a esperar, mas de pavor, já que vários amores fracassados tinham apagado os fulgores românticos no seu coração, mas acabei por vencê-lo. Na realidade não foi difícil: dei-lhe até ao meio-dia do dia seguinte e comecei a fazer as malas. Quinze minutos antes de o prazo vencer, o Willie aceitou a minha mão, embora nunca tenha percebido a minha insistência em viver perto de ti e do Nico, porque nos Estados Unidos os fdhos saem de casa dos pais quando terminam o liceu e desde então só voltam no Natal ou no dia de Acção de Graças. Os Americanos ficam chocados com o costume chileno de conviver em clã para sempre.

Não me obrigues a escolher entre ti e os meus filhos! — avisei-o na altura.

Isso nunca me passaria pela cabeça. Mas tens a certeza que eles querem viver perto de ti? — perguntou-me.

—        Uma mãe tem sempre o direito de reunir os seus filhos. Fomos casados por um senhor que tinha obtido a licença para o fazer por correio, mediante o pagamento de vinte e cinco dólares, porque o Willie, sendo advogado, não conseguiu que nenhum juiz seu amigo o fizesse. Isso deixou-me com um mau pressentimento. Foi o dia mais quente da história do condado de Marin. A cerimónia decorreu num restaurante italiano sem ar condicionado. O bolo derreteu, a senhora que tocava harpa desmaiou e os convidados, encharcados em suor, começaram a despir-se. Os homens acabaram sem camisa e sem sapatos e as mulheres sem meias nem roupa interior. Eu não conhecia ninguém, a não ser a ti e ao teu irmão, à minha mãe e ao meu editor americano, que tinham vindo de longe para me acompanhar nesse dia. Sempre desconfiei que o casamento não foi completamente legal, e espero que um dia tenhamos coragem para voltarmos a casar-nos como deve ser.

Não queria deixar-te com a impressão de que me casei apenas por interesse, até porque sentia por Willie a luxúria heróica que caracteriza as mulheres da nossa estirpe, como te aconteceu com Ernesto, mas com a idade que tínhamos quando nos conhecemos não havia necessidade de nos casarmos, a não ser por causa dos vistos. Noutras circunstâncias ter-nos-íamos limitado a viver juntos, como o Willie teria sem dúvida preferido, mas eu não tinha a menor intenção de renunciar à minha família, por muito parecido com Paul Newman que fosse o meu noivo recente. Saí do Chile contigo e com o Nico nos tempos da ditadura militar, na década de 70, refugiei-me convosco na Venezuela até finais dos anos 80 e convosco tencionava tornar-me imigrante nos Estados Unidos nos anos 90. Não tinha a menor dúvida de que tu e o teu irmão estariam melhor comigo na Califórnia que largados pelo mundo, mas não estava a contar com as demoras legais. Passaram cinco anos, que foram como cinco séculos, e entretanto vocês casaram-se os dois, o Nico com a Célia na Venezuela e tu com o Ernesto em Espanha, por isso não me pareceu que se tratasse de um inconveniente sério. Ao fim de algum tempo consegui instalar Nico e a família a dois quarteirões da nossa casa, e, se a morte não te tivesse atingido prematuramente, também viverias ao meu lado.

Parti em viagem pelos Estados Unidos, em várias direcções, para promover o meu romance e dar as conferências que adiara no ano anterior, quando não conseguia afastar-me de ti. Sentias a minha presença, filha? Tenho-o perguntado a mim mesma muitas vezes. sonhavas durante a longa noite de 92? Sonhavas, estou certa, porque os olhos se moviam sob as pálpebras e por vezes acordavas assustada. Estar em coma deve ser como estar preso na densa névoa de um pesadelo. Segundo os médicos, não te apercebias de nada, mas custa-me acreditar no que diziam.

Nessa viagem levei comigo um saco de comprimidos para dormir, curar dores imaginárias, secar as lágrimas e para o medo da solidão. O Willie não pôde acompanhar-me porque tinha de trabalhar; o escritório dele não fechava nem aos domingos. Havia sempre uma corte de milagres na sala de espera dele e uma centena de casos sobre a secretária. Nessa altura andava atarefado com a tragédia de um imigrante mexicano que morreu ao cair do quinto andar de um prédio em construção em São Francisco. Chamava-se Jovito Pacheco e tinha vinte e nove anos. Oficialmente não existia. A empresa construtora lavava as mãos da sua morte, porque o homem não figurava na sua lista de empregados. O subempreiteiro não tinha seguro e também não reconhecia Jovito; recrutara-o alguns dias antes num camião, juntamente com vinte imigrantes ilegais como ele, e conduzira-o ao local de trabalho. Jovito Pacheco era camponês e nunca subira a um andaime, mas tinha ombros largos e muita vontade de trabalhar. Ninguém lhe explicou que devia usar um arnês de segurança. «Se for preciso, levo meio mundo a tribunal, mas hei-de conseguir uma compensação qualquer para aquela pobre família!», ouvi o Willie dizer mil vezes. Pelos vistos não era um caso fácil. Tinha uma fotografia pouco nítida da família Pacheco no escritório: pai, mãe, avó, três filhos pequenos e um bebé nos braços, vestidos com a roupa do domingo, alinhados ao sol numa praça poeirenta do México. O único que usava sapatos era Jovito Pacheco, um índio negro com um sorriso orgulhoso e um velho chapéu de palha na mão.

Nessa digressão usei sempre preto dos pés à cabeça, com o pretexto de que é uma cor elegante, porque não queria admitir para mim mesma que estava de luto. «Pareces uma viúva chilena», disse--me o Willie, que me ofereceu um cachecol vermelho de bombeiro. Não me lembro das cidades onde estive nem das pessoas que conheci ou do que fiz, mas pouco importa; só me recordo de me ter encontrado com o Ernesto em Nova Iorque. O teu marido ficou muito emocionado quando lhe contei que estava a escrever um livro de memórias acerca de ti. Chorámos juntos, e a soma dos nossos desgostos desencadeou uma tempestade de granizo. «No Inverno chove muitas vezes granizo», disse-me o Nico quando lhe contei o que acontecera por telefone. Passei várias semanas longe dos meus em estado de hipnose. A noite deitava-me em camas desconhecidas, aturdida pelos comprimidos para dormir, e de manhã sacudia os pesadelos com café forte. Falava por telefone com os da Califórnia e à minha mãe mandava-lhe cartas por faxe, que o tempo foi apagando porque se imprimiam em papel sensível à luz. Muitos dos acontecimentos de então perderam-se; estou certa de que foi melhor assim. Contava as horas que faltavam para regressar a casa e esconder-me do mundo; queria dormir com o Willie, brincar com os meus netos e consolar-me fazendo colares no estúdio da minha amiga Tabra.

Soube que a Célia estava a perder peso com a gravidez, em vez de a ganhá-lo, que o meu neto Alejandro já ia ao jardim-infantil de mochila às costas e que a Andrea teria de fazer uma operação aos olhos. A minha neta era pequena, tinha uma penugem dourada na cabeça e era completamente estrábica. O seu olho esquerdo vagueava sozinho na órbita. Era sossegada e calada, parecia estar sempre a planear alguma coisa e chuchava no dedo agarrada a uma fralda de algodão — o tuto —, que nunca largava. Tu não gostavas de crianças, Paula. Uma vez vieste visitar-nos e tiveste de mudar a fralda ao Alejandro e confessaste-me que quanto mais tempo passavas com o teu sobrinho menos vontade tinhas de ser mãe. Nunca chegaste a conhecer a Andrea, mas na noite em que morreste ela estava a dormir, junto com o irmão, aos pés da tua cama.

 

Em Maio o Willie telefonou-me para Nova Iorque para me contar que, desafiando os prognósticos da ciência e a lei das probabilidades, a Jennifer dera à luz uma menina. O parto fora precipitado por uma forte dose de narcóticos e a Sabrina nasceu dois meses antes do que seria normal. Alguém chamou uma ambulância, que a levou ao serviço de urgências mais próximo, um hospital católico particular onde nunca entrara ninguém naquele estado de intoxicação. Foi graças a isso que a Sabrina se salvou, porque, se tivesse nascido no hospital público de Oakland, no bairro humilde onde a Jennifer vivia, teria sido mais um entre as centenas de bebés que nascem para morrer, condenados pelas drogas no ventre materno; ninguém teria reparado nela e a sua minúscula pessoa ter-se-ia sumido pelas frinchas do sobrecarregado sistema da medicina social. A Sabrina, pelo contrário, caiu nas mãos hábeis do médico de turno, que conseguiu interceptá-la quando foi atirada ao mundo e se tornou a primeira vítima da sedução dos olhos hipnóticos da pequena. «Esta menina tem poucas possibilidades de sobreviver», opinou depois de a examinar, mas ficou preso ao seu olhar escuro e nessa tarde não foi para casa quando acabou o seu turno. Nessa altura já tinha chegado uma pediatra, e os dois passaram parte da noite a vigiar a incubadora e a pensar na melhor maneira de desintoxicar a recém-nascida sem a prejudicar ainda mais e na maneira de a alimentar, já que recusava a comida. Com a mãe não tiveram de se preocupar, pois deixara o hospital assim que se sentira capaz de se levantar da cama.

A Jennifer tinha uma dor surda nas coxas e não se recordava bem do que acontecera, a não ser da angustiante sirene da ambulância, de um longo corredor com luzes brancas e de alguns rostos que lhe gritavam ordens. Parecia-lhe que tinha dado à luz uma menina, mas não podia ficar para o confirmar. Tinham-na deixado a descansar num quarto, mas ao fim de algum tempo começou a sentir-se dominada pela abstinência e a tremer com náuseas, coberta de suor, os nervos exaltados. Vestiu-se o melhor que conseguiu e fugiu por uma porta de serviço. Um ou dois dias mais tarde, um pouco mais recomposta do parto e tranquilizada pelas drogas, lembrou-se da criança que deixara para trás e voltou para a levar, mas já não lhe pertencia. Os Serviços de Menores tinham intervindo e haviam posto um dispositivo de segurança no braço da menina que activava um alarme se alguém tentasse levá-la da sala onde se encontrava.

Interrompi a minha digressão por Nova Iorque e voltei à Califórnia no primeiro voo. O Willie foi buscar-me ao aeroporto e levou-me directamente para a clínica. Pelo caminho foi-me explicando que a neta estava muito fraca. A Jennifer, perdida no seu próprio purgatório, não estava capaz de cuidar de si mesma, quanto mais da filha!... Vivia com um tipo que tinha o dobro da sua idade, que ganhava a vida com negócios duvidosos e que já estivera preso mais de uma vez. «Deve explorar a Jennifer em troca das drogas», foi a primeira coisa que me passou pela cabeça, mas o Willie, muito mais nobre que eu, estava-lhe agradecido por ao menos lhe proporcionar um tecto.

Percorremos a passo rápido os corredores da clínica até à sala dos bebés prematuros. A enfermeira já conhecia o Willie e levou-nos ao berço, que estava a um canto. Peguei na Sabrina ao colo pela primeira vez num dia ameno de Maio, envolta numa pequena manta de algodão, como um embrulho. Fui afastando a dobra e no fundo encontrei a menina, como um caracol enrolado, com uma fralda grande de mais a cobri-la dos tornozelos até ao pescoço e com um gorro de lã na cabeça. Da fralda saíam duas patitas enrugadas, uns braços que pareciam dois palitos e uma cabecinha perfeita, de feições finas e olhos grandes, amendoados e escuros, que me olharam com a determinação de um guerreiro. Parecia não ter peso, tinha a pele seca e cheirava a medicamentos. Era suave como espuma. «Nasceu com os olhos abertos», disse a enfermeira. Eu e a Sabrina olhámo-nos alguns minutos, a conhecer-nos. Diz-se que com aquela idade as crianças são quase cegas, mas ela já tinha a expressão intensa que ainda hoje tem. Estendi um dedo para lhe acariciar o rosto e o seu punho minúsculo agarrou-se a mim com força. Percebi que tremia, envolvi-a na manta e apertei-a contra o peito.

Qual é o seu parentesco com a menina? — perguntou uma mulher jovem que se tinha apresentado como a pediatra.

Ele é o avô — respondi, apontando para o meu marido, parado junto da porta, tímido ou emocionado de mais para falar.

Os exames revelaram várias substâncias tóxicas no sistema da menina. Além disso é prematura. Calculo que tenha nascido de uns sete meses, pesa um quilo e meio e o seu sistema digestivo ainda não está completamente formado.

Não devia estar na incubadora? — perguntou o Willie.

Hoje tirámo-la de lá porque a respiração dela é normal, mas não se iludam. Tenho muita pena, mas os prognósticos não são bons...

Há-de sobreviver! — interrompeu-a, enfática, a enfermeira, uma negra majestosa com uma torre de pequenas tranças na cabeça, arrebatando-me a criaturinha, que desapareceu entre os seus braços grossos.

Odilia, por favor! — exclamou a pediatra, incrédula com aquele impulso tão pouco profissional.

Está bem, doutora. Já percebemos qual é a situação — disse-lhe eu, com um suspiro de cansaço.

Não havia tido tempo de mudar de vestido, o mesmo que usara várias semanas durante a viagem. Percorrera quinze cidades em vinte e um dias, com uma mala pequena onde levava o indispensável, que, de acordo com a minha experiência, é muito pouco. Apanhava um avião logo de manhã, chegava à cidade onde falava nesse dia e onde me aguardava um acompanhante — quase sempre uma senhora tão cansada como eu —, que me conduzia ao lugar onde daria as conferências de imprensa. Comia uma sanduíche ao almoço, dava mais uma ou duas entrevistas e ia para o hotel, onde tomava um duche antes da apresentação da noite, em que aparecia perante o público com os pés inchados e um sorriso forçado, com que lia algumas páginas do meu romance em inglês. Levava uma fotografia tua numa moldura, para que me acompanhasses nos hotéis. Queria recordar-te assim, com o teu magnífico sorriso, o cabelo comprido e a tua blusa verde, mas quando pensava em ti eram outras as imagens que me assaltavam: o corpo rígido, os olhos vazios, o silêncio absoluto. Nessas maratonas de publicidade, capazes de moer os ossos dos mais fortes, desprendia-me do corpo, como numa viagem astral, e cumpria as etapas com o peso de um rochedo sobre o peito, confiante de que as acompanhantes me levariam pela mão durante o dia, estariam comigo durante a leitura da noite e me deixariam no aeroporto no outro dia pela manhã. Durante as longas horas da viagem entre Nova Iorque e São Francisco tive tempo para pensar em Sabrina, mas nunca imaginei a maneira como essa neta viria a mudar as vidas de várias pessoas.

É uma alma muito antiga — disse Odilia, a enfermeira, depois de a pediatra se ter ido embora. — Já vi muitos recém-nascidos durante os vinte e dois anos que aqui trabalhei, mas nenhum como a Sabrina. Apercebe-se de tudo. Chego a ficar com ela depois de acabar o meu turno, e até no domingo vim vê-la, porque não consigo tirá-la da cabeça.

Acha que pode vir a morrer? — interrompia-a, sufocada.

Isso é o que dizem os médicos. Já ouviram a opinião da pediatra. Mas eu tenho a certeza que vai sobreviver. Esta veio para ficar, tem um bom karma.

Karma] Outra vez o karma). Quantas vezes terei ouvido esta palavra na Califórnia? Estou farta desta ideia do karmal Acreditar que há um destino já é muito limitador, mas o karma é muito pior, porque recua mil vidas, e às vezes temos de levar aos ombros também as vidas dos nossos antepassados. O destino pode modificar-se, mas para limpar o karma é precisa uma vida inteira, e mesmo isso pode não bastar. No entanto, a altura não era das mais próprias para fdosofar com Odilia. Sentia uma ternura infinita pela menina e gratidão por aquela enfermeira que lhe ganhara afeição. Enfiei a cara no embrulhinho, feliz por Sabrina estar no mundo.

Eu e o Willie abandonámos a sala apoiando-nos mutuamente. Percorremos vários corredores, todos iguais, em busca de uma saída até que demos com um corredor. No interior, um espelho devolveu-nos as nossas imagens. Tive a impressão de que o Willie envelhecera cem anos. Os seus ombros, antigamente arrogantes, estavam agora curvos, derrotados; notei as rugas à volta dos seus olhos, a linha do queixo, menos atrevida que antes, e o pouco cabelo que lhe restava, completamente branco. Os dias passam depressa. Não me apercebera das mudanças no seu corpo, e não o via como era, mas como o recordava. Para mim continuava a ser o homem por quem me apaixonara à primeira vista seis anos antes, elegante, atlético, com um fato escuro que lhe ficava um pouco apertado, como se os ombros desafiassem as costuras. Agradara-me o seu riso espontâneo, a sua atitude segura, as suas mãos elegantes. Bebia o ar que o rodeava, ocupava todo o espaço. Notava-se que vivera e sofrera, mas parecia invulnerável. E eu? Que terá visto em mim quando me conheceu? A que ponto teria eu mudado nesses seis anos, especialmente nos últimos meses? Também eu me via pelo filtro compassivo do hábito, sem reparar na inevitável deterioração física: os seios mais descaídos, a cintura mais larga, os olhos mais tristes. O espelho do elevador revelou-me o cansaço dos dois, mais profundo que o justificado pela minha viagem ou pelo trabalho dele. Dizem os budistas que a vida é um rio, que navegamos numa balsa em direcção ao nosso destino final. O rio tem a sua corrente, a sua velocidade, os seus escolhos e remoinhos, e ainda outros obstáculos que não podemos controlar, mas temos um remo para dirigir a embarcação sobre as águas. É da nossa destreza que depende a qualidade da viagem, mas não podemos mudar o percurso, que termina sempre na morte. Às vezes não temos outro remédio senão abandonar-nos à corrente, mas não era esse o caso. Respirei fundo, estiquei a minha exígua estatura e dei uma palmada no ombro do meu marido.

— Endireita-te, Willie. Temos de remar.

Olhou-me com a expressão confundida com que costuma olhar-me quando pensa que me falha o inglês.

 

Não tive a menor dúvida de que o Willie e eu nos encarregaríamos de Sabrina: se os pais não podem fazê-lo, é aos avós que isso cabe, é uma lei natural. No entanto, em breve descobri que as coisas não eram assim tão simples, não era só pegar num porta-bebés e ir recolher a menina ao hospital quando lhe dessem alta, um ou dois meses mais tarde. Havia formalidades para isso. O juiz já tinha determinado que não seria entregue a Jennifer, mas pelo meio estava o seu companheiro. Não me pareceu que fosse ele o pai, porque a menina não tinha os seus traços africanos, mas asseguraram-me que era de raça mista e que ao longo das semanas a sua pele iria escurecendo. O Willie pediu um exame de sangue, e, embora o homem se tivesse negado a fazê-lo, a Jennifer confirmou que ele era o pai, e isso bastava perante a lei. Do Chile, a minha mãe opinou que era uma loucura adoptar a menina, que o Willie e eu estávamos desgastados para uma tarefa de tal envergadura: o Willie já tinha problemas que chegassem com os filhos e o trabalho e eu passava a vida a escrever e a viajar.

A menina precisa de cuidados dia e noite. Como pensas tu ocupar-te dela? — perguntou-me a minha mãe.

Tal como fiz com a Paula — anunciei.

O Nico e a Célia vieram falar connosco. O teu irmão, esbelto como uma bétula e ainda com cara de miúdos, trazia um filho em cada braço. Já se percebia que a Célia estava grávida de seis meses. Parecia cansada e tinha a pele esverdeada. Mais uma vez surpreendeu-me olhar para o meu filho, que de mim nada herdou: é mais alto que eu uma cabeça e meia, é equilibrado, com modos e sentimentos delicados, racional, com um sentido suave da ironia. Tem uma inteligência extraordinária, não só para as matemáticas e a ciência, que são a sua paixão, mas para qualquer actividade humana. Está constantemente a surpreender-me com o que sabe e com as suas opiniões. Descobre soluções para problemas de todos os tipos, desde um complexo programa de computação até um mecanismo não menos complexo para pendurar sem esforço uma estante no tecto. É capaz de reparar qualquer objecto com uso prático e com tal cuidado que fica melhor que antes da avaria. Nunca o vi perder o autodomínio. Aplica três regras básicas nas relações humanas: nem tudo é pessoal, cada um é responsável pelos seus sentimentos, a vida não é justa. Onde terá aprendido tudo isto? Com a máfia italiana, quase de certeza: D. Corleone. Tentei em vão seguir o seu caminho para a sabedoria: para mim tudo é pessoal, sinto-me responsável pelos sentimentos alheios, inclusivamente quando se trata de pessoas que mal conheço, e há mais de sessenta anos que vivo frustrada por não ser capaz de aceitar que a vida é injusta.

Tiveste pouco tempo para conhecer bem a tua cunhada e desconfio que não tinhas grande simpatia por ela, porque eras muito severa. Eu própria tinha um pouco de medo de ti, filha, agora já posso dizê-lo: os teus juízos costumavam ser lapidares e irrevogáveis. Além disso, a Célia é um pouco provocadora, como se fizesse de propósito para que toda a gente ficasse embaraçada. Deixa-me recordar-te uma conversa à mesa:

—        Acho que deviam mandar os maricas todos para uma ilha e deixá-los lá. Afinal a culpa da sida é deles — declarou a Célia.

Como podes dizer uma coisa dessas? — exclamaste, horrorizada. Porque havemos de ser nós a pagar os problemas dessa gente?

Que ilha? — perguntou o Willie, para nos irritar.

Não sei, as Farallon, por exemplo.

Uma qualquer! Uma ilha gay onde pudessem ir ao cu uns aos outros até morrerem!

Que comeriam eles?

Que plantem os seus próprios vegetais e criem as suas galinhas! Ou então usamos o dinheiro dos impostos para fazer uma ponte aérea.

O teu inglês melhorou muito, Célia. Agora já podes expressar a tua intolerância perfeitamente — observou o meu marido com um sorriso aberto.

Obrigada, Willie.

E assim continuou a sobremesa, até que te foste embora, indignada. E verdade que a Célia tinha o hábito de se expressar de uma forma um pouco atrevida, pelo menos para a Califórnia, mas temos de compreender que esteve vários anos na Opus Dei e que vinha da Venezuela, onde ninguém tem papas na língua. A Célia é inteligente e contraditória, tem uma energia tremenda e um humor irreverente, que, traduzido no seu limitado inglês da época, costumava causar problemas. Trabalhava como minha assistente e foram muitos os jornalistas e visitantes desprevenidos que saíram do meu escritório desconcertados com as piadas da minha nora. Queria contar-te aquilo que talvez não saibas: cuidou de ti meses a fio com a mesma ternura com que cuida dos filhos, acompanhou-te nas tuas últimas horas, ajudou-me a preparar o teu corpo nos ritos íntimos da morte e ficou junto de ti um dia e uma noite até que o Ernesto chegou com o resto da família, porque vinham de longe. Queríamos que os recebesses na tua cama, na nossa casa, para a despedida final.

Mas regressemos a Sabrina. O Nico e a Célia reuniram-nos na sala e por uma vez ela não abriu a boca, com os olhos cravados nos pés metidos nas meias de lã e nas sandálias de frade mexicano, enquanto ele tomava a palavra. Começou pelo mesmo que a minha mãe já tinha dito, que o Willie e eu não estávamos em idade de criar um bebé, que quando a Sabrina fizesse quinze anos eu já teria sessenta e seis e ele setenta e um.

—        O Willie não é nenhum génio a criar filhos e tu, mamã, estás a tentar substituir a Paula com uma menina doente. Serias capaz de resistir a outro duelo se a Sabrina não resistisse? Não me parece. Mas nós somos jovens e podemos fazê-lo. Já falámos do assunto e estamos dispostos a adoptar a Sabrina — concluiu o meu filho. Eu e o Willie ficámos calados um longo minuto.

Mas vocês daqui a pouco vão ter três filhos... — consegui por fim dizer.

E que diferença faz mais uma lista na pele do tigre? — resmungou a Célia.

Obrigada, muito obrigada, mas isso seria uma loucura. Vocês têm a vossa própria família e têm de abrir caminho neste país, o que não vai ser fácil. Não podem ocupar-se de Sabrina. É a nós que cabe fazê-lo.

Entretanto os dias iam passando e a pesada maquinaria da lei seguia o seu curso inexorável nas nossas costas. A assistente social encarregada do caso, Rebeca, era uma mulher de aspecto jovem mas com muita experiência. O seu trabalho não tinha nada de invejável. Estava encarregada de crianças que tinham sido vítimas de abusos e de negligência, que andavam de instituição em instituição, eram adoptadas e devolvidas, crianças aterrorizadas ou cheias de raiva, crianças delinquentes ou tão traumatizadas que nunca conseguiriam fazer uma vida mais ou menos normal. A Rebeca lutava com a burocracia, a inércia das instituições, a falta de recursos, a irremediável maldade alheia e, acima de tudo, lutava contra o tempo. Aquele de que dispunha não lhe chegava para estudar os casos, visitar as crianças, protegê-las dos perigos mais imediatos, instalá-las em refúgios temporários, protegê-las, seguir a sua pista. Ao longo dos anos, as mesmas crianças iam passando pelo seu gabinete com problemas cada vez maiores. Nada se resolvia, apenas era adiado. Depois de ler o relatório que tinha sobre a secretária, a Rebeca decidiu que quando a Sabrina saísse do hospital iria para uma instituição estatal especializada em crianças com problemas de saúde graves. Preencheu os documentos necessários, que foram de gabinete em gabinete até chegarem ao do juiz que teria de tomar a decisão, e este assinou-os. A sorte de Sabrina estava lançada. Quando soube, fui a correr ao escritório do Willie, arranquei-o a uma reunião e caí-lhe em cima com uma saraivada de espanhol que quase o esmagou para lhe exigir que fosse imediatamente falar com esse juiz, levasse o caso para os tribunais, se fosse necessário, porque se levassem a Sabrina para uma instituição pública ela acabaria por morrer de qualquer maneira. O Willie pôs-se em campo e eu fui para casa esperar pelos resultados, a tremer.

Nessa noite, já muito tarde, o meu marido regressou com mais dez anos sobre os ombros. Nunca o vira tão vencido, nem sequer quando teve de ir buscar a Jennifer a um motel onde estava a morrer, cobri-la com o seu casaco e levá-la ao hospital onde foi recebida pelo médico filipino. Contou-me que tinha falado com o juiz, com a assistente social, com os médicos, até com um psiquiatra, e todos eram de opinião que a saúde da menina era demasiado frágil. «Não podemos ficar com ela, Isabel. Não temos energia para tomar conta dela nem forças para suportar o desgosto se vier a morrer. Eu não me sinto capaz disto», concluiu, com a cabeça entre as mãos.

 

O Willie e eu tivemos uma daquelas discussões que fazem história na vida de um casal e que merecem receber um nome — como a «guerra de Arauco», o nome que demos em família a uma que manteve os meus pais em armas durante quatro meses —, mas agora, que já passaram muitos anos e consigo encarar as coisas com outra tranquilidade, tenho de dar razão ao Willie. Se as páginas chegarem para isso, falarei de outros torneios épicos em que nos enfrentámos, mas parece-me que nenhum foi tão violento como o de Sabrina, porque foi um choque de personalidades e culturas. Não quis dar ouvidos às suas razões, fechei-me numa raiva cega contra o sistema legal, o juiz, a assistente social, os americanos em geral e o Willie em particular. Fugíamos os dois de casa; ele ficava a trabalhar até tarde e eu mudei-me para casa de Tabra, que me recebeu sem alarde.

Já nos conhecíamos há vários anos. A Tabra foi a primeira amiga que fiz na Califórnia. Um dia foi ao cabeleireiro para pintar o cabelo cor de beringela, como na altura o usava, e a cabeleireira disse-lhe que uma semana antes tinha chegado uma nova cliente que queria a mesma cor, os dois únicos casos na sua carreira profissional. Acrescentou que se tratava de uma chilena que escrevia livros, e disse-lhe qual era o meu nome. A Tabra tinha lido A Casa dos Espíritos e pediu-lhe que a avisasse quando eu voltasse a aparecer no salão, porque queria conhecer-me. Isso aconteceu pouco tempo depois, porque me cansei da cor mais cedo do que contava; parecia um palhaço ensopado em água. A Tabra apareceu com o meu livro para que eu o assinasse e teve a surpresa de ver que eu usava uns brincos feitos por ela. Estávamos destinadas a entender-nos, disse a cabeleireira.

Foi essa mulher vestida com longas saias de cigana, os braços cobertos até aos cotovelos com pulseiras de prata e o cabelo de uma cor impossível que me serviu de modelo para a personagem de Tamar em O Plano Infinito. Formei Tamar a partir de Cármen, uma amiga de infância de Willie, e de Tabra, a quem roubei a personalidade e parte da biografia. Como a Tabra herdou do pai uma rectidão moral impecável, não perde uma oportunidade de esclarecer que nunca foi para a cama com o Willie, comentário que parece completamente desnecessário a quem quer que não tenha lido o meu romance. A sua casa, de um só andar, de madeira, com tectos altos e grandes janelas, é um museu de objectos extraordinários de vários cantos do mundo, cada um com a sua história: cabaças para servirem de estojo a pentes trazidas da Nova Guiné, máscaras peludas da Indonésia, esculturas ferozes de África, pinturas oníricas dos aborígenes australianos... A propriedade, que partilhava com veados, mapaches, raposas e uma variedade imensa de aves da Califórnia, eram trinta hectares de natureza selvagem. Silêncio, humidade, cheiro a madeira, um paraíso construído com o seu esforço e talento.

A Tabra cresceu no seio do cristianismo fanático do Sul do país. A Igreja de Cristo era a única verdadeira. Os metodistas faziam o que entendiam, os baptistas iriam para o Inferno porque tinham um piano na igreja, os católicos não contavam — só os Mexicanos eram católicos, e nem sequer era seguro que tivessem alma — e das outras confissões nem valia a pena falar, porque os seus rituais eram satânicos, como toda a gente sabia. O álcool, a dança e a música eram proibidos, bem como nadar com seres de outro sexo, e parece-me que também o tabaco e o café, embora não tenha a certeza. A Tabra completou a sua educação na Escola Cristã de Abilene, onde o pai era professor, um professor doce e de mente aberta, apaixonado pela literatura judaica e afro-americana, que navegava como podia contra a censura das autoridades da escola. Sabia a que ponto a filha era rebelde, mas não estava a contar que fugisse com um namorado secreto aos dezassete anos, um estudante de Samoa, o único de pele escura, cabelo e olhos negros numa instituição de brancos. Naqueles tempos, o jovem de Samoa ainda era magro e atraente, pelo menos aos olhos de Tabra, e não havia dúvidas em relação à sua inteligência, porque até essa data fora o único da sua ilha a ter seguido estudos.

O casal escapou-se durante a noite para outra cidade, onde o juiz se recusou a casá-los, porque os casamentos de brancos com negros eram proibidos, mas a Tabra convenceu-o de que os Polinésios não são negros e além disso estava grávida. Contrariado, o juiz acedeu. Nunca tinha ouvido falar de Samoa, e a infeliz criatura de sangue mestiço que a Tabra trazia no ventre pareceu-lhe uma razão de peso para legitimar a absurda ligação. «Lamento profundamente os teus pais», disse-lhes, em vez de lhes desejar felicidades. Nessa mesma noite o ardente marido tirou o cinto e açoitou a Tabra até a deixar em sangue por ter dormido com um homem antes do casamento. O facto incontestável de que esse homem fora ele próprio não atenuava de maneira alguma a sua condição de puta. Foi essa a primeira de um número incontável de tareias e violações, que, de acordo com os dirigentes da Igreja de Cristo, teria de suportar, porque Deus não aprova o divórcio e esse era o seu castigo por se ter casado com um homem de outra raça, uma perversão condenada pela Bíblia.

Tiveram um menino bonito e encantador chamado Tongi, que na língua de Samoa quer dizer «choro», e o marido levou a sua pequena e aterrorizada família para a sua aldeia natal. A ilha tropical, onde os Americanos tinham uma base militar e um destacamento de missionários, recebeu bem a Tabra. Era a única branca no clã do mando, e isso fazia que tivesse uma situação um tanto privilegiada, mas nao impedia as tareias diárias que ele lhe dava. A nova parentela de labra consistia numa vintena de gigantes roliços e morenos, que lamentavam em coro o seu aspecto pálido e desnutrido. A maioria deles, especialmente o sogro, tratava-a com um grande carinho e reservava-lhe os melhores pedaços de carne da refeição comunitária: cabeças de peixe com olhos, ovos fritos com embriões de galinha e um Vicioso pudim que preparavam mastigando um fruto e cuspindo a polpa para um recipiente de madeira, onde fermentava ao sol. Por vezes as mulheres pegavam no pequeno Tongi e levavam-no para o proteger da fúria do pai, mas pela mãe nada podiam fazer.

A Tabra nunca se habituou ao medo. Não havia regras para o seu tormento, nada que ela fizesse ou deixasse de fazer podia evitá-lo. Por fim, depois de uma sova homérica, o marido foi parar à prisão por vários dias, altura que os missionários aproveitaram para ajudar a Tabra a fugir com o filho de regresso ao Texas. A igreja repudiou-a e não conseguiu arranjar nenhum trabalho decente. A única pessoa que a ajudou foi o pai. O divórcio pôs fim aos problemas com o seu verdugo, que não voltou a ver durante quinze anos. Mas nessa altura, depois de muitos anos de terapia, já lhe tinha perdido o medo. O homem, que regressara aos Estado Unidos e se tornara pregador evangélico, um verdadeiro algoz de pecadores e descrentes, nunca mais se atreveu a molestá-la.

Na década de 60 a Tabra não conseguiu suportar a vergonha da Guerra do Vietname e partiu com o filho para diferentes países, onde ganhou a vida a ensinar inglês. Em Barcelona estudou joalharia, e pelas tardes passeava pelas Ramblas a observar os romã, que inspiraram o seu estilo aciganado. No México trabalhou numa oficina de joalharia e ao fim de pouco tempo começou a desenhar e a fazer as suas próprias jóias. Seria esse o seu ofício para o resto da vida. Depois da derrota dos Americanos no Vietname regressou ao seu país e a época dos hippies surpreendeu-a nas pitorescas ruas de Berkeley a vender brincos, colares e pulseiras de prata, juntamente com outros artistas paupérrimos. Nessa altura dormia num carro velho e usava as casas de banho da universidade, mas o seu talento distinguia-a dos outros artesãos e em breve pôde deixar as ruas, alugar um estúdio e contratar os seus primeiros ajudantes. Ao fim de uns anos, quando a conheci, tinha uma empresa-modelo instalada numa verdadeira caverna de Ali-Babá, repleta de pedras preciosas e de objectos de arte. Tem mais de cem pessoas a trabalhar para ela, quase todas refugiados asiáticos. Alguns tinham sofrido tormentos inimagináveis, como era evidente pelas suas cicatrizes horrendas e o seu olhar esquivo. Pareciam pessoas muito doces, que por dentro deviam ocultar um desespero vulcânico. Dois deles, por duas vezes, loucos de ciúmes, compraram metralhadoras, aproveitando a facilidade com que neste país é possível adquirir verdadeiros arsenais, e mataram toda a parentela das mulheres, antes de darem tiros na cabeça. A Tabra assistia àqueles funerais em massa dos seus empregados e depois tinha de «limpar» a oficina realizando as cerimónias necessárias para que os fantasmas ensanguentados não atormentassem a imaginação dos que continuavam vivos.

O rosto de Che Guevara, com a sua simpatia irresistível e a boina negra sobre a testa, sorria em cartazes nas paredes da oficina. Numa viagem que a Tabra fez a Cuba com o filho, foi com o chefe dos Panteras Negras ao monumento ao Che em Santa Clara; levava as cinzas de um amigo que amara vinte anos sem o confessar a ninguém e lançou-as ao vento. Assim cumpriu o sonho de ir a esse país mítico. A ideologia da minha amiga fica à esquerda da de Fidel Castro.

Estás presa às ideias dos anos sessenta — disse-lhe uma vez.

Com muita honra — respondeu-me.

Os amores da minha bela amiga são tão originais como a sua far-pela de pitonisa, o seu cabelo incendiário e a sua posição política. Vários anos de terapia ensinaram-na a evitar os homens que pudessem tornar-se violentos, como o seu marido de Samoa. Jurou que não deixaria que voltassem a bater-lhe, mas sentia-se excitada com as piruetas à beira do abismo. Só se sente atraída por machos vagamente perigosos, e nunca da sua própria raça. O seu filho, Tongi, que se tornou um homem muito atraente, não quer saber dos dissabores sentimentais da mãe. Houve anos em que a Tabra chegou a ter cento e cinquenta encontros com desconhecidos em resposta a pequenos anúncios de jornais, mas poucos passaram do primeiro café. Depois tnodernizou-se e agora está inscrita em várias agências da Internet com diferentes especialidades: «democratas solteiros», que pelo menos têm em comum o ódio ao presidente Bush; «amigos», só para latinos, que agradam a Tabra, embora a maior parte precise de autorização de residência e tente convertê-la ao catolicismo; e «verdes solteiros», que amam a terra-mãe e não dão importância aos bens materiais, razão por que não trabalham. Também recebe propostas de garanhões muito jovens, com a esperança de virem a ser sustentados por uma senhora madura. As fotos são eloquentes: pele morena cor de azeitona, tronco nu e os primeiros botões da braguilha abertos, de forma a deixar ver o velo do púbis. O tom dos diálogos por e-mail é mais ou menos o seguinte:

Tabra: Por norma, não saio com homens mais novos que o meu neto.

Jovem: Tenho idade de sobra para foder, Tabra: Tinhas coragem de falar dessa maneira com a tua própria avó?

Se aparece alguém com uma idade mais apropriada para ela, acaba por ser um democrata que vive com a mãe e guarda as poupanças em lingotes de prata debaixo do colchão. Não estou a exagerar: lingotes de prata, como os piratas das Caraíbas. É curioso que esse democrata se tenha mostrado disposto a divulgar no primeiro — e único — encontro uma informação tão privada como o sítio onde escondia o seu capital.

Não tens medo de sair com estranhos, Tabra? Pode calhar-te um criminoso ou um louco — disse-lhe eu, uma vez que me apresentou a um tipo de aspecto patibular cujo único atractivo era uma boina à Che.

Sou capaz de precisar de mais alguns anos de terapia — admitiu nessa ocasião.

Pouco tempo antes contratara um pintor para que lhe reparasse as paredes. Tinha cabelo preto, como ela gosta, de maneira que o convidou a tomar banho com ela no jacuzzi. Foi uma péssima ideia, porque o pintor começou a tratá-la como marido. Ela pedia-lhe que pintasse a porta, e ele respondia: «Sim, querida», profundamente enfastiado. Um dia acabou-se-lhe o diluente e anunciou que precisava de uma hora de meditação e de um charro para se pôr em contacto com o seu espaço interior. Só que nessa altura a Tabra já estava pelos cabelos com a cabeleira preta dele e respondeu-lhe que tinha uma hora para pintar o espaço interior da casa e para se pôr a andar. Já lá não estava quando cheguei com a minha mala.

Na primeira noite jantámos uma sopa de peixe, a única receita que a minha amiga conhece, para além das papas de aveia com leite e pedaços de banana, e metemo-nos no jacuzzi, uma banheira de madeira escorregadia, escondida debaixo das árvores, que tinha um cheiro nauseabundo, porque um infeliz raposo caíra lá dentro e ali ficara a cozinhar em fogo lento durante uma semana, até que alguém o descobriu. Foi ali que descarreguei a frustração como um saco de pedras.

Queres a minha opinião? — disse-me a Tabra. — A Sabrina não vai consolar-te. O luto exige tempo. Estás muito deprimida e não tens nada para dar a essa menina.

Posso dar-lhe mais do que encontrará numa instituição para crianças doentes.

Terias de fazer tudo sozinha, porque o Willie não vai acompanhar-te nisto. Não sei como pensas arranjar tempo para o teu filho e para os teus netos, continuar a escrever e ainda por cima criar uma menina que precisava de duas mães.

 

O sábado amanheceu radioso. No bosque de Tabra a Primavera já era Verão, mas não quis ir passear com ela, como fazíamos aos fins-de-semana. Em compensação, falei por telefone com as cinco mulheres que formam comigo o círculo das Irmãs da Perpétua Desordem. Antes de eu me ter juntado ao grupo já elas se reuniam há vários anos, para partilharem as suas vidas, meditarem e rezarem por pessoas doentes ou em dificuldades. Agora que sou uma delas também trocamos maquilhagem, bebemos champanhe, empanturramo-nos de bombons e às vezes vamos à ópera, porque a prática espiritual a seco deprime-me um pouco. Conhecera-as um ano antes, no dia em que os médicos da Califórnia me anunciaram o teu diagnóstico sem esperança, Paula, o mesmo que me tinham comunicado em Espanha. Não havia nada a fazer, disseram-me, nunca recuperarias. Fui uivando no carro e não sei como fui parar à Book Passage, a minha livraria preferida, onde efectuo muitos encontros com a imprensa e onde tenho mesmo uma caixa de correio. Lá, aproximou-se de mim uma senhora japonesa com um sorriso afectuoso e tão baixa como eu, que me convidou para um chá. Era Jean Shinoda Bolen, psiquiatra e autora de vários livros. Reconheci logo o nome dela porque acabara de ler o seu livro sobre as deusas que vivem em cada mulher e como esses arquétipos influenciam a nossa personalidade. Foi assim que descobri que em mim há um rebuliço de deidades que mais vale não explorar. Embora fosse a primeira vez que falava com ela, contei-lhe o que se passava contigo. «Vamos rezar pela tua filha e por ti», disse-me ela. Um mês mais tarde convidou-me para o seu «círculo de oração», e foi assim que essas novas amigas me acompanharam durante a tua agonia e a tua morte. Continuam a fazê-lo até hoje. Para mim, é uma irmandade fundada no Céu. Todas as mulheres do mundo deviam ter um círculo como este. Cada uma é testemunha das vidas das outras, guardamos os segredos de todas, ajudamo-nos em caso de dificuldade, partilhamos experiências e estamos em contacto quase diário por e-mail. Por longe que me encontre em viagem, tenho sempre uma ligação a terra firme: as minhas amigas da desordem. São alegres, sábias, curiosas. Às vezes a curiosidade é temerária, como no caso da própria Jean, que numa cerimónia espiritual sentiu um impulso incontrolável, descalçou-se e caminhou sobre brasas. Passou duas vezes sobre o fogo e não se queimou. Disse que foi como andar sobre bolas de plástico, ao mesmo tempo que sentia as brasas a crepitar e a textura áspera do carvão debaixo dos pés.

Durante a longa noite em casa de Tabra, com o sussurro das árvores e o grito do mocho, lembrei-me que as irmãs da desordem poderiam ajudar-me. Encontrámo-nos para tomar o pequeno-almoço num restaurante cheio de desportistas de fim-de-semana, uns de ténis, outros disfarçados de marcianos para andar de bicicleta. Sentámo-nos a uma mesa redonda, sempre respeitadoras da ideia do círculo. Éramos seis bruxas cinquentonas: duas cristãs, uma budista autêntica, duas judias de origem, mas meio budistas por escolha pessoal, e eu, que ainda não me decidira, unidas pela mesma filosofia, que pode resumir-se em duas frases: «Nunca fazer mal e fazer bem sempre que pudermos.» Entre golos de café, contei-lhes o que estava a acontecer com a minha família e acabei com a frase de Tabra, que me tinha ficado na cabeça: «A Sabrina precisava de duas mães.» «Duas mães?», repetiu a Pauline, uma das meio judias meio budistas e advogada de profissão. «Eu conheço duas mães!» Referia-se a Fu e a Grace, duas Mulheres que viviam em casal há oito anos. A Pauline levantou-se para ir telefonar de uma cabina; na altura ainda não havia telemóveis. Do outro lado da linha, a Grace ouviu a história de Sabrina. «Vou falar com a Fu e telefono-te daqui a dez minutos», disse ela.

«Dez minutos... É preciso não estar boa da cabeça ou ter um coração muito grande para decidir semelhante coisa em dez minutos», pensei eu, mas o telefone do restaurante tocou antes de terem passado dez minutos e a Fu anunciou-nos que queria conhecer a menina.

Fui buscá-las, percorrendo de carro as curvas no alto das colinas em direcção ao mar até uma quinta com aspecto muito poético. Dissimuladas entre pinheiros e eucaliptos havia várias construções de madeira ao estilo japonês: o Centro de Budismo Zen. A Fu era alta, com um rosto inesquecível de feições fortes e sobrancelhas espessas, que lhe davam uma expressão inquisidora, usava roupas informes de cor escura e o cabelo cortado como o de uma recruta. Era monja budista e directora do centro. Vivia numa casinha de bonecas com a companheira, Grace, uma médica com cara de miúda travessa e de uma simpatia irresistível. No carro, contei-lhes o calvário que fora a existência de Jennifer, o estado de saúde da menina e o péssimo prognóstico dos médicos. Não pareceram ficar impressionadas. Fomos então buscar a mãe de Jennifer, a primeira mulher de Willie, que conhecia a Fu e a Grace do Centro de Budismo, e dirigimo-nos para a clínica as quatro.

Na sala dos recém-nascidos encontrámos Odilia, a enfermeira das tranças, com Sabrina nos braços. Numa visita anterior já me sugerira que a queria adoptar. A Grace estendeu as mãos e a mulher passou-lhe o bebé, que nessa altura parecia ter perdido peso e tremia mais que antes, embora estivesse alerta. Os grandes olhos egípcios fitaram longamente Grace e em seguida cravaram-se em Fu. Não sei o que lhes disse esse primeiro olhar, mas foi definitivo. Sem perguntarem nada uma à outra, a uma só voz, as duas mulheres decidiram que Sabrina era a filha que haviam desejado toda a sua vida.

Há muitos anos que faço parte do círculo das Irmãs da Perpétua Desordem e durante todo este tempo tenho presenciado vários prodígios operados por elas, mas nenhum de tão grande alcance como o de Sabrina. Não só conseguiram duas mães, mas além disso desenredaram a confusão de obstáculos burocráticos para que a Fu e a Grace nudessem ficar com a menina. Nessa altura o juiz já tinha aposto a assinatura nos documentos pertinentes e Rebeca, a assistente social, dera o caso por concluído. Quando lhe fomos anunciar que havia outra solução, informou-nos de que a Fu e a Grace não possuíam licença, tinham de frequentar aulas e submeter-se a um treino especial para poderem ser mães adoptivas; além disso não eram um casal convencional, viviam noutro condado e o «caso» não podia ser transferido. Embora a Jennifer tivesse perdido a custódia da filha, a sua opinião também contava, afirmou. «Tenho muita pena, mas não posso perder mais tempo com um assunto que já está resolvido», acrescentou. A lista de obstáculos ainda não tinha acabado, mas já não me lembro dos pormenores. Só recordo que no fim da entrevista, quando já nos íamos embora, derrotadas, a Pauline pegou em Rebeca firmemente pelo braço.

— A Rebeca tem uma carga muito pesada, pagam-lhe pouco e sente que o seu trabalho é inútil, porque em todos os anos em que tem tido este emprego não conseguiu salvar as crianças que passam pelo seu departamento — disse-lhe, sondando-lhe o fundo da alma. — Mas acredite, Rebeca, que pode ajudar a Sabrina. Talvez seja esta a sua única oportunidade de fazer um milagre.

No dia seguinte Rebeca arranjou maneira de virar a burocracia de pernas para o ar, de recuperar os documentos, de modificar o que foi necessário e de convencer o juiz a assinar de novo, a mandar os processos para outro condado e a certificar a Fu e a Grace como mães adoptivas num abrir e fechar de olhos. A mesma mulher que no dia anterior parecia indignada com a nossa insistência converteu-se num torvelinho, que afastou os obstáculos e com um traço da sua caneta mágica decidiu o destino de Sabrina.

Foi o que eu disse. Esta menina é uma alma antiga e poderosa- Toca as pessoas e modifica-as. Tem muita força mental e sabe o que quer — observou Odilia uma ou duas semanas mais tarde, quando entregou a Sabrina às suas novas mães.

Assim, da maneira mais inesperada, a zanga entre mim e o Willie

foi resolvida. Perdoámo-nos mutuamente, tanto as minhas dramáticas acusações como o seu teimoso silêncio, voltámos a poder abraçar-nos

 

Célia deu à luz a Nicole em Setembro com a mesma calma com que recebeu a Andrea dezasseis meses antes. Suportou um parto de dez horas sem um queixume, apoiada por Nico, enquanto eu os observava, a pensar que o meu filho já não era o garoto que eu continuava a tratar como se fosse meu, mas um homem que assumia calmamente a responsabilidade de uma mulher e três filhos. Entre as contracções, a sofrer, a Célia, calada e pálida, passeava perante o nosso olhar impotente. Quando sentiu que estava a chegar a altura, estendeu-se na cama, coberta de suor, a tremer, e disse uma coisa que nunca esquecerei: «Não trocava este momento por nada deste mundo.» O Nico segurava-a quando apareceu a cabeça da menina, seguida dos ombros e do resto do corpo. A minha neta aterrou nas minhas mãos, molhada, escorregadia, ensanguentada, e voltei a sentir a epifania do dia em que nasceu a Andrea e da noite em que partiste para sempre. O nascimento e a morte são muito parecidos, minha filha. São momentos sagrados e misteriosos. A parteira entregou-me as tesouras para cortar o grosso cordão umbilical e o Nico aproximou a menina do peito da mãe. Era gorda e rija, e agarrou-se ao peito com avidez, enquanto a Célia lhe falava nesse idioma único em que as mães, aturdidas pelo esforço e pelo súbito amor, costumam falar com os recém-nascidos. Todos esperávamos aquela menina como uma dádiva; trazia-nos um sopro de redenção e de alegria, de pura luz.

A Nicole começou a gritar assim que se apercebeu de que já não estava dentro da mãe e não se calou durante seis meses. Os seus guinchos faziam saltar a tinta das paredes e davam cabo dos nervos dos vizinhos. A Avó Hilda, a tua falsa avó, que me acompanhara mais de trinta anos, e a Ligia, uma senhora nicaraguense, que tinha tomado conta de ti e que contratei para que nos ajudasse, embalavam-na noite e dia, a única maneira de a calarmos por alguns minutos. A Ligia deixara cinco filhos no seu país e viera trabalhar para os Estados Unidos para poder sustentá-los à distância. Há vários anos que não os via e tinha esperança de poder visitá-los em breve. Durante meses e meses, as boas mulheres instalaram-se com a pequena numa cadeira de braços no meu escritório enquanto eu e a Célia trabalhávamos. Eu receava que de tanto abanarem a minha neta se lhe desprendesse o cérebro e ficasse tonta. Mal começaram a dar-lhe leite em pó e sopa a Nicole acalmou-se; estou convencida de que a causa do desespero era pura fome. Entretanto, a Andrea arrumava compulsivamente os brinquedos e falava sozinha. Quando se aborrecia, pegava no seu asqueroso tuto, anunciava que ia para a Venezuela, aconchegava-se dentro de um armário e fechava a porta. Tivemos de abrir um buraco no móvel para entrar alguma luz e um pouco de ar, porque ela era capaz de passar meio dia fechada sem um pio num espaço do tamanho de um galinheiro. Depois de a terem operado por causa do estrabismo teve de usar lentes e um penso negro que de semana a semana se mudava para o outro olho. Para evitar que arrancasse as lentes, o Nico inventou uma armação de seis elásticos e outros tantos alfinetes que se cruzavam sobre a sua cabeça. Em geral suportava bem tudo aquilo, mas às vezes tinha ataques de raiva e esticava os elásticos até ficarem à altura da fralda. A propósito, durante algum tempo tivemos três crianças com fralda, e isso são muitas fraldas. Comprávamo-las por atacado e o sistema mais prático era muar as três ao mesmo tempo, quer precisassem quer não. A Célia ou o nico alinhavam as fraldas no chão, punham os miúdos lá em cima impavam-lhes os traseiros em série, como numa cadeia de montagem. Eram capazes de o fazer com uma das mãos enquanto com a outra falavam ao telefone, mas eu não tinha a habilidade deles e fica-a besuntada de porcaria até às orelhas. Também lhes davam de comer e banho com o mesmo método, em série: o Nico metia-se na banheira com eles, ensaboava-os, lavava-lhes o cabelo, limpava-os e ia-os largando um a um para que do lado de fora a Célia os recebesse com uma toalha.

És uma excelente mãe, Nico — disse-lhe eu um dia, admirada.

Não, mamã. Sou um bom pai — respondeu-me.

Mas eu nunca tinha visto um pai como ele e até hoje não me explicou como aprendeu o ofício.

Estava a fazer as últimas revisões do meu livro Paula, as últimas páginas, que me custaram muito. Acabava com a tua morte, não podia ter outro fim, mas eu não conseguia recordar bem essa longa noite, que estava envolta em bruma. Parecia-me que o teu quarto se tinha enchido de gente, pareceu-me ver o Ernesto com o seu fato branco de aiquidô, os meus pais, a Granny, a tua avó que tanto te amou, morta no Chile há muitos anos, e outros que não podiam ter estado ali.

Estavas muito cansada, mamã, não podes lembrar-te dos pormenores. Nem eu próprio os recordo... — desculpou-me o Nico.

E que importância têm esses pormenores? Escreve com o coração. Tu viste o que nós não pudemos ver. Talvez o quarto estivesse realmente cheio de espíritos — acrescentou o Willie.

Abria a urna de porcelana em que nos entregaram as tuas cinzas, que mantinha sempre sobre a secretária, a mesma onde a minha avó fazia as suas sessões de espiritismo. Às vezes tirava lá de dentro uma ou outra carta e algumas fotografias tuas anteriores à desgraça, mas não tocava noutras onde apareces agarrada à tua cadeira de rodas, inerte. Nessas não voltei a tocar, Paula. Ainda hoje, passados tantos anos, não posso ver-te naquele estado. Lia as tuas cartas, especialmente aquele testamento espiritual, com as tuas disposições em caso de morte, que escreveste na tua lua-de-mel. Na altura tinhas só vinte e sete anos. Porque pensarias já na morte? Escrevi essas memórias com muitas, muitas lágrimas.

—        Que aconteceu? — perguntava a Andrea, com a sua fala trapalhona, aflita, olhando-me com o seu olho de ciclope.

Nada, tenho só saudades da Paula.

E porque chora a Nicole? — insistia.

Porque é muito burra — era a melhor resposta que me ocorria. Tal como antes sucedera com Alejandro, meteu-se na cabeça de Andrea que era essa a única razão válida para chorar. Como só podia ver de um olho, o seu mundo não tinha profundidade, tudo era plano, de maneira que dava uns trambolhões quase mortais. Levantava-se do chão a deitar sangue pelo nariz, com as lentes torcidas, e explicava entre soluços que sentia falta da tia Paula.

Quando acabei o livro compreendi que percorrera um caminho tortuoso e chegava ao fim limpa e nua. Nessas páginas estava a tua vida luminosa e a trajectória da nossa família. A terrível confusão desse ano de tormentos dissipou-se: tornara-se claro que a minha perda não era excepcional, que era a perda de milhões de mães, o sofrimento mais antigo e comum da humanidade. Enviei o manuscrito às pessoas que são mencionadas, porque me pareceu que devia dar-lhes a oportunidade de reverem o que escrevera sobre elas. Não eram muitas, porque no livro omiti várias pessoas que estiveram perto de ti mas não eram essenciais na história. Depois de o lerem, todas responderam de imediato, comovidas e entusiasmadas, excepto o meu melhor amigo na Venezuela, Ildemaro, que gostava muito de ti e não queria ver-te exposta dessa maneira. Eu própria sentia essa dúvida, porque uma coisa é escrever pela catarse, para homenagear uma filha perdida, e outra partilhar o luto com o público. «Podem acusar-te de exibicionista, ou de utilizares esta tragédia para ganhar dinheiro. Já sabes como as pessoas são mal-intencionadas», advertiu-me a minha mãe, preocupada, embora convencida de que o livro devia ser publicado. Para evitar qualquer suspeita desse tipo, decidi que não receberia um tostão dos direitos, se os houvesse; encontraria um des-lno altruísta para lhes dar, um destino que tu aprovasses.

O Ernesto estava a viver em Nova Jérsia, onde trabalhava na Mestria empresa multinacional em que trabalhara em Espanha, quando te trouxemos para minha casa pediu transferência para estar mais perto de ti, mas não havia lugar para ele na Califórnia e teve de aceitar o que lhe ofereceram em Nova Jérsia. Fosse como fosse, a distância era menor do que de Madrid. Quando recebeu a primeira versão do livro telefonou-me a chorar. Era viúvo há um ano, mas ainda não conseguia pronunciar o teu nome sem que a sua voz se embargasse. Animou-me com o argumento de que tu gostarias que essas memórias fossem publicadas, porque poderiam consolar outras pessoas das suas perdas e sofrimentos, mas acrescentou que quase não te reconhecia naquelas páginas. A história estava contada do meu ponto de vista limitado. Como mãe, ignorava alguns aspectos da tua personalidade e da tua vida. Onde estava Paula, a amante impulsiva e brincalhona, a mulher insistente e autoritária, a amiga incondicional, a crítica mordaz? «Se a Paula soubesse o que vou fazer, matava-me», anunciou-me, e três dias mais tarde chegou-me pelo correio uma caixa grande com a correspondência de amor apaixonada que vocês trocaram antes de se casarem. Foi uma oferta extraordinária, que me permitiu conhecer-te melhor. Com autorização de Ernesto, incluí no livro frases tuas, reproduzidas textualmente.

Enquanto eu polia a versão final, a Célia encarregou-se por completo dos meus assuntos de escritório, com a blusa meio desabotoada para amamentar a Nicole a qualquer momento. Não sei como era capaz de trabalhar, porque tinha de tomar conta de três crianças, estava debilitada e sofrera um desgosto muito grande. A avó tinha morrido na Venezuela e ela não pôde ir despedir-se, porque o visto não lhe permitia sair do país e voltar a entrar. Essa avó, brusca com toda a gente menos com ela, é que a havia criado, porque quando tinha apenas alguns meses os pais partiram para os Estados Unidos para fazerem doutoramentos em Geologia. Quando regressaram, a Célia mal reconheceu aquelas pessoas a quem de um dia para o outro teve de começar a tratar por «mamã» e «papá»; o norte da sua infância fora a avó. Fora com ela que sempre dormira, era a ela que contava os seus segredos, só com ela se sentia segura. Depois nasceram mais um irmão e uma irmã. A Célia continuou muito unida à avó, que vivia num anexo à casa dos pais dela. A sua infância numa família e num colégio estritamente católicos não pode ter sido fácil, dado o seu carácter rebelde e desafiador, mas submeteu-se a tal ponto que na adolescência foi viver para uma residência da Opus Dei, onde a penitência incluía a autoflagelação e cilícios de pontas metálicas. A Célia assegura-nos que nunca chegou a esses extremos, mas deve ter aceitado outras regras para dominar a carne: obediência cega, evitar o contacto com o sexo oposto, jejuar, dormir sobre tábuas, passar várias horas seguidas de joelhos e outras mortificações, mais frequentes e severas para as mulheres, já que elas encarnam, desde os tempos de Eva, o pecado e a tentação.

Entre os milhares de jovens que conheceu na universidade, a Célia apaixonou-se pelo Nico, que era precisamente o contrário do que os pais dela haviam desejado para genro: chileno, emigrante e agnóstico. O Nico foi educado num colégio jesuíta, mas no dia a seguir ao da primeira comunhão anunciou que não voltaria a pôr os pés numa igreja. Falei com o reitor para lhe explicar que teria de tirar o miúdo do colégio, mas ele desatou a rir-se. «Não é preciso, minha senhora. Aqui não vamos obrigá-lo a ir à missa. Aquele gaiato ainda pode vir a mudar de opinião, não lhe parece?» Tive de admitir que não me parecia, porque conheço muito bem o meu filho: não é dos que tomam decisões precipitadas. O Nico concluiu a sua educação no Santo Inácio e cumpriu a sua promessa de não voltar à igreja, com poucas excepções: o seu casamento religioso com a Célia e algumas catedrais que visitou como turista.

A Célia não pôde acompanhar a avó nos seus últimos momentos, nem chorar a sua morte, porque a verdade é que não deixaste espaço para outros lutos, Paula. Nem eu nem o Nico nos apercebemos da imensidão da sua perda, em parte porque não conhecíamos os pormenores da sua infância, e em parte porque ela, fazendo alarde da sua rorça, a dissimulou. Enterrou a recordação para a chorar mais tarde, e ao mesmo tempo ia cumprindo as obrigações da maternidade> do casamento, do trabalho, de aprender inglês e de sobreviver na nova terra que escolhera. Nos poucos anos que partilhámos aprendi a gostar dela, apesar das diferenças entre as duas, e desde que partiste que me apeguei a ela como a outra filha. O seu aspecto preocupava-me. Tinha má cor e falta de interesse pelas coisas, e além disso continuava a ter náuseas, como nos piores meses da gravidez. A médica da família, a Cheri Forrester, que também foi tua médica, embora não tenhas podido sabê-lo, disse que a Célia estava esgotada por ter tido três filhos seguidos e que não havia causa física para os vómitos. Seguramente era uma resposta emocional, talvez por recear que a porfiria se repetisse com algum dos filhos. «Se isto continuar, terá de ser internada numa clínica», avisou-nos. A Célia continuou a vomitar, mas sem nos dizer nada, às escondidas.

 

Permite-me que retroceda cinco anos para te recordar como apareceu a tua cunhada nas nossas vidas. Em 1988 eu vivia com o Willie na Califórnia, tu encontravas-te a estudar na Virgínia e o Nico, sozinho em Caracas, no último ano da universidade. Por telefone, o teu irmão anunciara-me que estava apaixonado por uma colega de turma e que queria visitar-nos com ela, porque a relação era séria. Perguntei-lhe sem rodeios se devia preparar um ou dois quartos, e explicou-me, no tom um tanto irónico que tão bem conheces, que do ponto de vista da Opus Dei dormir com o namorado é uma infâmia imperdoável. Os pais dela estavam indignados com o pecado de viajarem juntos sem estarem casados, embora ela tivesse vinte e cinco anos, e pior ainda que ficassem em casa de uma chilena divorciada, ateia, comunista e autora de livros proibidos pela Igreja: eu. «Era só o que nos faltava...», pensei eu. Dois quartos, sendo assim. Dois dos filhos do Willie estavam a viver connosco e a minha mãe decidiu vir do Chile precisamente na mesma altura, de maneira que tive de improvisar um catre de recruta para o Nico na cozinha. Fui esperá-los ao aeroporto com a minha mãe, e vimos chegar o teu irmão na companhia de uma pessoa que avançava com passos firmes e largos e que ao ombro trazia um objecto que ao longe parecia uma arma e que de perto vimos que era um estojo de guitarra. Suponho que para irritar a mãe, que tinha sido miss num concurso de beleza nas Caraíbas, a Célia andava como o John Wayne, usava calças disformes cor de azeitona, botas de alpinista e um boné de basebol caído sobre um olho. Só à segunda vista percebíamos como era bonita: tinha feições finas, olhos expressivos, mãos elegantes, ancas largas e uma intensidade difícil de ignorar. A jovem por quem o meu filho estava apaixonado apareceu desafiadora, como se dissesse: «Se gostarem de mim, muito bem, se não gostarem vão para o inferno.» Pareceu-me tão diferente do Nico que desconfiei que estivesse grávida e que por isso pensassem casar-se à pressa, mas afinal não era nada disso. Talvez ela precisasse de fugir do seu meio, que sentia como uma camisa-de-forças, e se tivesse apegado ao Nico num desespero de náufraga.

Quando chegou a casa o teu irmão anunciou que o catre na cozinha não era preciso, porque as coisas entre eles tinham mudado, por isso acabei por pô-los no mesmo quarto. A minha mãe pegou-me por um braço e arrastou-me para a casa de banho.

Se o teu filho escolheu esta menina, por alguma coisa será. A ti cabe-te gostar dela e fechar a boca.

Mas ela fuma cachimbo, mamã!

Era bem pior se fumasse ópio!

Afinal foi fácil gostar da Célia, apesar de a sua franqueza atrevida e os seus modos bruscos me chocarem — todos os chilenos usam rodeios para dizer as coisas e andamos como se pisássemos ovos. Em apenas meia hora já nos tinha exposto as suas convicções sobre as raças inferiores, os esquerdistas, os ateus, os artistas e os homossexuais, todos uns depravados. Pediu-me que a avisasse se alguém que se enquadrasse em qualquer destas categorias aparecesse de visita, pois preferia não estar presente. No entanto, nessa mesma noite fez-nos rir com aquelas anedotas atrevidas que não ouvíamos desde os nossos tempos descontraídos na Venezuela, onde, pelo menos, não existe o conceito de «politicamente correcto» e onde podemos rir-nos do que nos apetecer. Depois tirou a guitarra do estojo e cantou para nós, com uma voz comovente, as melhores canções do seu reportório. E conquistou-nos.

Pouco depois, o Nico e a Célia casaram-se em Caracas, numa cerimónia muito solene, em que acabaste a vomitar na casa de banho, parece-me que de ciúmes de perderes a exclusividade no afecto do teu irmão, e a nossa família se retirou cedo, porque não enquadrava-mos ali. Não conhecíamos praticamente ninguém e o Nico tinha-nos avisado de que os familiares da noiva não nutriam grande simpatia por nós: éramos refugiados políticos, havíamos escapado à ditadura de Pinochet, e portanto devíamos ser comunistas, não tínhamos nem dinheiro nem posição social à altura, e não só não pertencíamos a Opus Dei como nem sequer éramos católicos praticantes. Os recém-casados instalaram-se na casa que eu comprara quando vivia em Caracas, grande de mais para eles, e o Alejandro, o teu primeiro sobrinho, nasceu um ano mais tarde. Saí disparada de São Francisco, viajei muitas horas, contando os minutos, sobressaltada com a expectativa, e pude finalmente abraçar o recém-nascido, a cheirar ao leite da mãe e a pó de talco, ao mesmo tempo que pelo canto do olho estudava o meu filho e a minha nora com uma admiração crescente. Eram dois miúdos a brincar às bonecas. O teu irmão, que ainda pouco tempo antes era um garoto inconsciente, que arriscava a vida a trepar a montanhas ou a nadar no mar alto no meio de tubarões, agora mudava fraldas, preparava biberões e cozinhava crepes para o pequeno-almoço, lado a lado com a mulher.

A única preocupação na vida do casal era que os meliantes tinham a casa deles debaixo de olho. Já a haviam assaltado várias vezes, tinham levado três carros da garagem, e já nem os alarmes, nem as barras nas janelas ou as descargas eléctricas nas grades, capazes de assar um gato distraído que ali roçasse com os bigodes, conseguiam mantê-los ao largo. Sempre que chegavam da rua, a Célia ficava no carro com o bebé nos braços e o motor do carro ligado, enquanto o Nico subia, de pistola em punho, como nos filmes, e percorria a casa de alto a baixo para verificar que não havia nenhum gatuno escondido nalgum canto. Viviam assustados, uma coisa que para mim veio mesmo a calhar, porque não tive a menor dificuldade em convencê-los

a mudarem-se para a Califórnia, onde estariam seguros e teriam quem os ajudasse. Eu e o Willie preparámos-lhes um apartamento encantador, umas águas-furtadas de boémios numa torre no alto de uma colina, com vista para a baía de São Francisco, um terceiro andar sem elevador, mas ambos eram fortes e voariam pelas escadas com os tarecos do miúdo, os sacos das compras e os do lixo. Esperei por eles com a ansiedade de uma noiva, disposta a aproveitar até ao limite a minha recente condição de avó. Mais de uma vez, acocorei-me no quarto reservado ao Alejandro, depois de dar corda aos móbiles pendurados no tecto e às caixas de música, para cantar em sussurro as canções de embalar que aprendera quando tu e o teu irmão eram pequenos. A espera pareceu-me uma eternidade, mas não há prazo que não chegue ao seu termo e por fim eles chegaram.

A minha amizade com a Célia começou aos tropeções, porque sogra e nora tinham ideologias opostas, mas, se pensávamos alimentar as divergências, a vida encarregou-se de eliminar a má vontade com meia dúzia de lambadas. Em breve esquecemos qualquer vestígio de desacordo e concentrámo-nos nas dificuldades de criar uma criança — e mais tarde outras duas — e de nos adaptarmos a outra língua e à nossa condição de imigrantes nos Estados Unidos. Embora ainda não o soubéssemos, um ano mais tarde teríamos de enfrentar a prova mais brutal, que foi cuidar de ti, Paula. Não havia tempo para disparates. A minha nora depressa se libertou dos laços que a prendiam ao fanatismo religioso e começou também a pôr em causa os outros preceitos que lhe haviam sido inculcados à força na juventude. Assim que percebeu que nos Estados Unidos não era branca pas-sou-lhe o racismo, além de que a sua amizade com a Tabra a libertou dos preconceitos contra os artistas e a gente de esquerda. Já dos homossexuais, no entanto, preferia não falar. Ainda não conhecera as mães de Sabrina.

O Nico e a Célia inscreveram-se num curso intensivo de Inglês e a mim coube-me a felicidade de cuidar do meu neto. Escrevia com o Alejandro a gatinhar pelo chão, preso atrás de uma grade para cães perigosos que instalámos na porta. Quando se cansava, punha a chupeta na boca, arrastava a almofada e deitava-se a dormir aos meus pés. Quando chegava a hora de comer puxava-me pela saia para me fazer sair do transe em que a escrita costuma deixar-me, eu dava-lhe distraidamente o biberão e ele bebia-o sem fazer barulho. Uma vez desligou-me o cabo de alimentação eléctrica do computador e perdi quarenta e oito páginas de um romance, mas em vez de o estrangular, como qualquer outro mortal teria feito, enchi-o de beijos. Eram páginas más.

A minha felicidade era quase completa. Só faltavas tu, que em 1991 estavas casada há pouco com o Ernesto e vivias em Espanha, mas vocês já tinham planos para se instalarem na Califórnia, onde ficaríamos todos juntos. No dia 6 de Dezembro desse mesmo ano entraste no hospital com uma constipação mal curada e com dores de estômago. Já não soubeste o que aconteceu depois, minha filha. Horas mais tarde estavas na unidade de cuidados intensivos, em coma, e passariam cinco meses, uma eternidade, até que me entregaram o teu corpo em estado vegetativo, com lesões cerebrais graves. Respiravas, mas essa era a única manifestação de vida no teu corpo. Estavas paralisada, os teus olhos eram poços negros que já não reflectiam luz, e nos meses seguintes mudaste tanto que ficaste quase irreconhecível. Com o Ernesto, que se negava a admitir que na realidade já era viúvo, trouxe-te para minha casa, na Califórnia, numa viagem terrível sobre o Atlântico e a América do Norte. Depois ele teve de te deixar comigo e de voltar ao trabalho. Nunca imaginei que o sonho de te ter a meu lado se concretizaria de maneira tão trágica. Por esses dias a Célia estava quase a dar à luz a Andrea. Recordo a reacção da minha nora quando te tiraram da ambulância numa maca: agarrou-se ao Alejandro, recuou, a tremer, com os olhos a quererem saltar das órbitas, enquanto o Nico dava um passo em frente, pálido, e se inclinava para te beijar, molhando-te com as suas lágrimas. Este mundo terminou para ti no dia 6 de Dezembro de 1992, exactamente um ano depois de teres entrado no hospital em Madrid. Dias mais tarde, quando lançámos as tuas cinzas naquele bosque de sequóias, a Célia e o Nico anunciaram-me que pensavam ter outro filho, e dez meses mais tarde nasceu a Nicole.

 

O Willie apercebeu-se, desesperado, de que a Jennifer se estava a matar aos poucos. Uma astróloga dissera-lhe que a filha estava «na casa da morte». De acordo com a Fu, há almas que tentam inconscientemente alcançar o êxtase divino através do caminho expedito das drogas; talvez a Jennifer sentisse necessidade de escapar da realidade grosseira deste mundo. O Willie está convencido de que transmitiu um mal genético aos descendentes. O seu tetravô chegou à Austrália com grilhetas nos pés, coberto de pústulas e de piolhos, um entre cento e sessenta mil infelizes que os Ingleses mandaram para essa terra para castigar os seus crimes. O mais jovem dos condenados, cuja pena se justificava por ter sido apanhado a roubar pão, tinha nove anos, e o mais velho era uma anciã de oitenta e dois, acusada de roubar um quilo e meio de queijo, e que se enforcou poucos dias depois do desembarque. O antepassado de Willie, acusado sabe Deus de que disparate, não foi enforcado porque era amolador de facas. Nessa época ter um ofício ou saber ler tinha algum valor, porque em vez de se ser enforcado era-se enviado para a Austrália. O homem estava entre os fortes, os que sobreviveram, graças à sua capacidade de aguentar o sofrimento e o álcool, aptidão herdada por quase todos os seus descendentes. Do avô pouco se sabe, mas o pai morreu de cirrose. O Willie passou várias décadas da sua vida quase sem tocar numa gota de álcool, porque tinha muitas alergias, mas quando começava a beber ia aumentando a quantidade pouco a pouco. Nunca o vi embriagado porque antes de chegar a esse ponto parecia ficar estrangulado, como se tivesse engolido uma bola de pêlo, e a dor de cabeça deixava-o de rastos, mas ambos sabemos que, se não fosse por essas abençoadas alergias, teria acabado como o pai. Só agora, depois dos sessenta anos, é capaz de se limitar a um copo de vinho branco e dar-se por satisfeito. Dizem que não podemos descartar a nossa herança genética, e os seus filhos — os três são dependentes de drogas — parecem confirmá-lo. Não são filhos da mesma mãe, mas nas famílias da sua primeira e da sua segunda mulher também há dependências, que vêm dos avós. O único que nunca deu problemas ao Willie foi o Jason, filho da segunda mulher do Willie com outro homem, mas de quem ele gosta como se fosse seu filho. «O Jason não é do meu sangue, e é por isso que é um tipo normal», costuma dizer no tom de quem constata um facto natural, como as marés ou a migração dos patos-selvagens.

Quando o conheci, o Jason era um rapaz de dezoito anos com muito talento para a escrita mas sem disciplina, embora eu tivesse a certeza de que mais cedo ou mais tarde acabaria por adquiri-la; disso se encarregam as dificuldades da vida. Planeava vir a ser escritor um dia, mas entretanto ia contemplando o próprio umbigo. Costumava escrever duas ou três linhas e depois vinha a correr perguntar-me se aquilo tinha potencial para um conto, mas não passava dali. Eu própria o corri de casa a pontapé para que fosse estudar para uma universidade no Sul da Califórnia, onde concluiu o curso com excelentes notas. Quando regressou veio viver connosco e trouxe a namorada, a Sally. O seu verdadeiro pai tinha um temperamento violento, que se revelava com consequências imprevisíveis. Quando o Jason ainda tinha apenas algumas semanas de vida sofreu um acidente que nunca chegou a ficar esclarecido: o pai disse que ele tinha caído do móvel onde lhe mudavam as fraldas, mas a mãe e os médicos desconfiaram "que lhe batera na cabeça e lhe rachara o crânio. Teve de ser operado e se salvou por milagre, depois de muito tempo passado no hospital enquanto os pais se divorciavam. Depois de sair do hospital ficou regulamentado à responsabilidade do Estado durante algum tempo. assim a mãe levou-o para junto de uns tios que, segundo o Jason.

e eram uns verdadeiros santos, e por fim trouxe-o para a Califórnia. Com três anos, o rapazinho foi parar à companhia do pai porque, ao que parece, no prédio onde a mãe vivia não aceitavam crianças. Que tipo de prédio seria aquele? Quando ela casou com o Willie recuperou o filho e depois, quando se divorciaram, o miúdo pegou na trouxa e, sem hesitar, foi viver com o Willie. Entretanto o pai biológico ia fazendo aparições esporádicas e uma ou outra vez voltou a maltratá-lo, até que o rapaz cresceu e desenvolveu a força física necessária para se defender. Numa noite de bebida e de recriminações na cabana que o pai tinha na montanha, e onde tinham ido passar alguns dias de férias, o pai deu-lhe um murro e o Jason, que prometera a si mesmo não voltar a deixar-se agredir, respondeu com o medo e a raiva acumulados durante anos e desfez-lhe a cara a murros. Desesperado, conduziu de regresso a casa durante várias horas numa noite de tempestade e chegou devastado pela culpa e com a camisa manchada de sangue. O Willie felicitou-o: estava na altura de esclarecer as coisas, disse-lhe. Esse episódio indigno estabeleceu uma relação de respeito entre pai e filho e o incidente não se repetiu.

Esse ano de luto, de muito trabalho, de dificuldades económicas e de problemas com os meus enteados foi minando a minha relação com o Willie. Havia demasiada desordem na nossa vida. Não conseguia adaptar-me aos Estados Unidos. Senti que me arrefecia o coração, que não valia a pena remar contra a maré, que manter-nos à tona nos exigia um esforço desproporcionado. Só pensava em partir, em fugir, em levar o Nico e a família para o Chile, onde por fim havia democracia, depois de dezasseis anos de ditadura militar, e onde viviam os meus pais. «Divorciar-me, é isso que tenho de fazer», resmungava comigo mesma, mas devo tê-lo dito algumas vezes em voz alta, porque o Willie arrebitou as orelhas quando ouviu a palavra «divórcio». Já tinha passado por dois e estava decidido a evitar um terceiro; foi então que me pressionou para que consultássemos um psicólogo. Eu tinha troçado impiedosamente do terapeuta da Tabra, um alcoólico descabelado que lhe aconselhava as mesmas banalidades que eu poderia aconselhar-lhe gratuitamente. Na minha opinião, a terapia era uma mania dos Americanos, uma gente muito mimada e sem resistência às dificuldades normais da existência. O meu avô inculcou em mim em criança a noção estóica de que a vida é dura e de que, perante as dificuldades, o que há a fazer é cerrar os dentes e seguir em frente. A felicidade é uma ideia de mau gosto; se viemos ao mundo foi para sofrer e para aprender. Felizmente, o hedonismo da Venezuela suavizou um pouco aqueles preceitos medievais do meu avô e permitiu que começasse a divertir-me sem me sentir culpada. No Chile, nos meus tempos de juventude, ninguém fazia terapia, excepto os doidos varridos e os turistas argentinos, de maneira que resisti bastante à proposta do Willie, mas ele insistiu tanto que acabei por ir com ele — ou, melhor dizendo, ele levou-me por um braço.

O psicólogo tinha aspecto de monge, usava o cabelo à escovinha, bebia chá verde e passava a maior parte da sessão com os olhos fechados. No condado de Marin vêem-se a qualquer hora do dia homens de bicicleta, a correr de calções curtos ou a saborear o seu cap-puccino em esplanadas. «Esta gente não trabalha?», perguntei uma vez ao Willie. «São todos terapeutas», respondeu-me. Talvez por essa razão tenha sentido um tão grande cepticismo em relação ao careca, mas na verdade ele depressa se revelou um sábio. O seu escritório era um quarto de paredes nuas pintadas cor de ervilha, decoradas com um único quadro — creio que é uma mandala —, pendurado na parede. Sentámo-nos no chão com as pernas cruzadas sobre umas almofadas enquanto o monge bebia o seu chá japonês como um passarinho. Começámos a falar e pouco depois foi como se se tivesse desencadeado uma avalancha. Tanto eu como o Willie procurávamos tomar a palavra para lhe contar o que se passara comigo, a existência horrível da Jennifer, a fragilidade de Sabrina, mil outros problemas, a minha vontade de mandar tudo para o diabo e desaparecer. O homem ouviu-nos sem interromper e quando faltavam poucos minutos Para terminar a sessão ergueu as pálpebras severas e olhou-nos com uma tristeza genuína. «Tanta mágoa nas vossas vidas!», murmurou.

Mágoa? Ora ali estava uma coisa que não tinha passado pela cabeça de nenhum de nós. A raiva desapareceu num instante e sentimos até aos ossos uma tristeza grande como o Pacífico, que não havíamos querido assumir por puro orgulho. O Willie pegou-me na mão, atraiu-me a si e abraçámo-nos. Pela primeira vez admitimos que tínhamos o coração muito magoado. Foi o começo da reconciliação.

Vou aconselhar-vos a não mencionarem a palavra «divórcio» durante uma semana. São capazes de o fazer? — perguntou o terapeuta.

Sim — respondemos em uníssono.

E seriam capazes de o fazer por duas semanas?

Por três, se quiser — respondi eu.

Foi o combinado. Passámos três semanas concentrados na resolução dos problemas do dia-a-dia, sem pronunciar a palavra proibida. Vivíamos em crise, mas o prazo venceu-se, passou um mês, passaram dois, e a verdade é que não falámos mais de divórcio. Voltámos à dança nocturna que desde o princípio sempre nos pareceu natural: dormir abraçados, tão estreitamente que se um se volta o outro se ajeita e se um se afasta o outro acorda. Entre chávenas e mais chávenas de chá verde, o psicólogo de cabeça rapada conduziu-nos através dos precipícios entre os quais decorreram esses anos. Aconselhou-me a «manter-me na minha trincheira» e a não interferir nos assuntos dos meus enteados, que na realidade eram a causa principal das nossas discussões. O Willie oferece um carro novo ao filho, que foi expulso da escola há pouco tempo e vive a flutuar numa nuvem de LSD e de marijuana? O problema não é meu. Espeta-se contra uma árvore uma semana mais tarde? Mantenho-me na minha trincheira. O Willie compra-lhe um segundo carro, que também espatifa? Mordo a língua. Nessa altura o pai oferece-lhe uma camioneta e explica-me que se trata de um veículo mais seguro e firme. «Claro. Assim quando atropelar alguma pessoa pelo menos não a deixará ferida, mata-a logo de um golpe», replico em tom glacial. Fecho-me na casa de banho, tomo um duche frio e recito o reportório de todos os palavrões que conheço. A seguir vou umas horas fazer colares para a oficina da Tabra.

A terapia foi muito útil. Graças a ela e à escrita superei várias provas, embora nem sempre me tenha saído de forma muito airosa, e o meu amor pelo Willie salvou-se. O melodrama familiar continuou, felizmente, porque senão de que diabo havia eu de escrever?

 

Jennifer tinha autorização para ver a filha em visitas controladas de duas em duas semanas. Em cada uma dessas visitas eu verificava como a deterioração da filha do Willie se ia acentuando. O aspecto dela era cada vez pior, como expliquei por carta à minha mãe e à minha amiga Pia. No Chile, ambas fizeram donativos ao orfanato do padre Hurtado, o único santo chileno que até os comunistas veneram, porque é muito milagroso, pedindo que a Jennifer mudasse de rumo e se salvasse. Na realidade, só a intervenção divina poderia ajudá-la. E aqui tenho de fazer uma pausa para te pôr a par do que aconteceu com a Pia, essa mulher que é como a minha irmã chilena, cuja lealdade nunca fraquejou, nem sequer quando o exílio nos separou. Ela vem de um meio muito católico e conservador, que celebrou com champanhe o golpe militar de 1973. Apesar disso, sei que pelo menos uma ou duas vezes escondeu em sua casa vítimas da ditadura. Raramente falamos de política. Quando parti para a Venezuela com a minha pequena família continuámos a escrever-nos, e agora en-contramo-nos no Chile e na Califórnia, onde costuma passar férias. Assim mantivemos uma amizade que tem a limpidez dos diamantes. Gostamos uma da outra incondicionalmente. Quando estamos juntas pintamos a quatro mãos e rimo-nos como crianças. Lembras-te de quando brincávamos e dizíamos que havíamos de ser duas viúvas alegres e viver juntas numas águas-furtadas a fazer intrigas e artesanato? Bem, Paula, já não falamos do assunto porque o Gerardo, o marido, o homem mais cândido e bondoso do mundo, morreu uma manha como qualquer outra, quando estava a supervisionar o trabalho de um homem num dos seus campos. Suspirou, inclinou a cabeça e partiu para o outro mundo sem ter tempo de se despedir. A Pia continua inconsolável, apesar de rodeada pelo seu clã: quatro filhos, cinco netos e meia centena de parentes e amigos com quem está continuamente em contacto, como é habitual no Chile. Dedica-se à caridade indiscriminada, a cuidar da família e aos óleos e pincéis, com que se entretém nos tempos livres. Nos momentos de tristeza, quando não consegue deixar de chorar por Gerardo, fecha-se a bordar e faz prodígios com pedaços de tecido, inclusivamente uns ícones cobertos de pedraria que parecem resgatados da antiga Constantinopla. Esta Pia, que tanto te queria, mandou erigir uma pequena capela no seu jardim e plantou um roseiral em tua memória. Ali, junto desse generoso arbusto, conversa com o Gerardo e contigo e reza muitas vezes pelos filhos e pela neta do Willie.

A Rebeca, a assistente social, organizava o plano de acção para os encontros da Sabrina com a mãe. Não era fácil, já que o juiz ordenara que se evitasse que a Jennifer e o companheiro se cruzassem com as mães adoptivas e percebessem onde elas viviam. A Fu e a Grace encontravam-se comigo no estacionamento de um centro comercial qualquer, entregavam-me a menina, com as fraldas, os brinquedos, os biberões e o resto da volumosa bagagem que acompanha as crianças da sua idade. Eu levava-a ao edifício da Câmara, numa das cadeiras que tinha para os meus netos no carro, e lá encontrava-me com a Rebeca e com uma mulher-polícia, uma diferente de cada vez, mas todas muito cheias de tédio profissional. Enquanto a mulher de uniforme observava a porta, eu e a Rebeca esperávamos numa sala, extasiadas perante a menina, que se tinha tornado bonita e muito alerta.

não lhe escapava nada. Tinha pele cor de caramelo, uns caracóis de cordeirinho recém-nascido e os olhos assombrosos de uma huri. Às vezes a Jennifer comparecia ao encontro, outras não. Quando apareceu feita num molho de nervos, com a atitude esquiva de uma raposa

perseguida, não ficava mais de cinco ou dez minutos. Erguia a filha nos braços e quando a sentia tão leve ou a ouvia chorar ficava confundida. «Preciso de um cigarro», dizia. Saía a correr e muitas vezes não voltava. A Rebeca e a agente da polícia acompanhavam-me ao carro e eu conduzia de regresso ao parque de estacionamento onde as duas mães nos esperavam ansiosas. Para a Jennifer aquelas visitas eram sem dúvida um tormento, porque perdera a sua bebé, e nem sequer saber que ela estava em boas mãos era um consolo.

Estes encontros estratégicos já duravam há uns cinco meses quando a Jennifer foi de novo parar ao hospital com uma infecção cardíaca e outra nas pernas. Não deu mostras de preocupação, disse que já lhe acontecera antes, que não era nada de grave, mas os médicos trataram o caso com menos ligeireza. A Fu e a Grace chegaram à conclusão de que estavam fartas de se esconder e de que a Jennifer tinha o direito de saber quem se encarregara da filha. Acompanhei-as ao hospital, ignorando o protocolo legal. «Se a assistente social souber, metem-se num sarilho», opinou o Willie, que pensa como advogado e nessa altura ainda não conhecia bem a Rebeca.

A filha do Willie tinha um aspecto desolador. Através da pele transparente do rosto podiam contar-se-lhe os dentes, o cabelo parecia uma cabeleira de boneca, tinha as mãos azuladas e as unhas pretas. A mãe também lá estava, transtornada por vê-la naquele estado. Creio que já aceitara que a Jennifer não viveria muito mais, mas queria encontrar-se com ela antes do fim. Pensou que no hospital poderiam falar e fazer as pazes, depois de tantos anos a ferir-se mutuamente, mas também nessa ocasião a filha ia escapar-se antes que os medicamentos tivessem tempo de fazer efeito. As dificuldades aproximaram-nos, a mim e à primeira mulher do Willie: ela sofrera muito com os dois filhos, ambos drogados, e eu perdera-te a ti, Paula. Havia mais de vinte anos que ela estava divorciada do Willie e ambos tinham voltado a casar. Não creio que tenham ficado rancores pendentes, mas, se os havia, a chegada de Sabrina à vida de ambos redimiu-os. A atracção que os uniu na juventude transformou-se em desencanto mútuo pouco depois do casamento e terminou dez anos mais tarde de maneira abrupta. Além dos filhos, nada tinham em comum. Durante o tempo que estiveram casados ele dedicou-se por inteiro à carreira, decidido a ter êxito e a fazer dinheiro, enquanto ela se sentia abandonada e caía em fundas depressões. Além disso atravessaram a turbulência dos anos 60, altura em que os costumes se soltaram bastante nesta parte do mundo: estava na moda o amor livre, a troca de casais era uma forma de diversão, nas festas os empregados tomavam banho nus nos jacuzzis familiares, toda a gente bebia martinis e fumava marijuana, enquanto as crianças corriam em liberdade por toda a parte. Estas experiências deixaram atrás de si um caudal de casais desfeitos, como era fácil de prever, mas o Willie assegura que não foi essa a causa da ruptura. «Éramos como azeite e água, não combinávamos. O casamento não podia resultar.» No princípio da minha relação com o Willie perguntei-lhe se íamos ter um «amor aberto» — eufemismo para infidelidade — ou monóga-mo. Precisava de o saber, porque não tenho tempo nem vocação para espiar um amante volúvel. «Monógamo. Já experimentei a outra fórmula e é um desastre», respondeu-me sem hesitar. «Está bem, mas se te apanho numa aventura mato-te, a ti, aos teus filhos e ao cão. Está percebido?», disse-lhe eu. «Perfeitamente.» Pela minha parte respeitei o trato com mais decência que a que seria de esperar de uma pessoa com o meu carácter. Suponho que ele tenha feito outro tanto, mas não ponho as mãos no fogo por ninguém.

A Jennifer pegou na filha e apertou-a ao peito esquálido, ao mesmo tempo que agradecia repetidamente a Fu e a Grace. Ambas têm o dom de incutir humor, calma e beleza em tudo o que tocam. Baixaram as defesas — uma coisa que até então ninguém fizera com a Jennifer — e dispuseram-se a aceitá-la com toda a sua compaixão, que e muita. A Grace acariciou a Jennifer, alisou os seus cabelos, bei-jou-a na testa e assegurou-lhe que poderia ver a Sabrina todos os dias, que se a Jennifer quisesse ela mesma a traria e que quando lhe dessem alta podia ir visitá-la à quinta budista. Contou-lhe como era esegente e viva, como já começava a beber leite sem dificuldade, e o ralou dos seus graves problemas de saúde.

- Não te parece que a Jennifer devia saber a verdade, Grace? — guntei-lhe quando saímos.


Que verdade?

Se a Sabrina continuar a enfraquecer a este ritmo, os seus glóbulos brancos...

Não vai morrer. Isso posso jurar-te — interrompeu-me com a mais tranquila convicção.

Foi essa a última vez que vimos a Jennifer.

A 25 de Maio de 1994 celebrámos o primeiro aniversário da Sabrina no Centro de Budismo num círculo de meia centena de pessoas descalças, com roupagens soltas de peregrinos medievais, algumas com a cabeça rapada, além daquela expressão suspeita de placidez que distingue os vegetarianos. A Célia, o Nico, os miúdos, o Jason e a namorada, a Sally, e o resto da família estiveram lá. A única mulher com maquilhagem era eu e o único homem com máquina fotográfica era o Willie. No centro da sala havia várias crianças a brincar com uma quantidade de balões à volta de um bolo de cenoura monumental. A Sabrina, vestida de gnomo, com uma fiada de estrelas metálicas coladas à testa, coroada rainha da Etiópia por Alejan-dro, e com um balão amarelo atado por um fio à cintura, para que a vissem ao longe e não a pisassem, passava de colo em colo, de beijo em beijo. Em comparação com a minha neta Nicole, robusta e compacta como um coala, a Sabrina parecia uma boneca de trapos, embora nesse ano tivesse superado quase todos os prognósticos fatalistas dos médicos: já se sentava, gatinhava e identificava todos os membros do Centro de Budismo Zen. Um a um, os convidados apresentaram-se: «Sou a Kate, cuido da Sabrina às terças e às quintas»; «Sou o Mark, e sou o fisioterapeuta dela»; «Sou o Michael, monge zen há trinta anos, e a Sabrina é minha mestre»...

 

O dia 6 de Dezembro cumpriu-se o primeiro aniversário da tua morte. Queria recordar-te bela, simples, contente, vestida de noiva ou a saltar à chuva em Toledo, com um guarda-chuva preto, mas de noite, nos meus pesadelos, assaltam-me as imagens mais trágicas: a tua cama de hospital, o ruído da máquina de respirar, a tua cadeira de rodas, o lenço com que depois cobríamos o buraco da traqueotomia, as tuas mãos crispadas. Pedi muitas vezes para morrer antes de ti, e mais tarde, quando isso deixou de ser possível, pedi tanto para morrer que devo ter adoecido seriamente. Mas morrer é muito difícil, como sabes, e como dizia o meu avô quando já pouco faltava para que cumprisse um século de existência. Um ano mais tarde eu continuava viva graças ao carinho da minha família e às agulhas mágicas e às ervas chinesas do sábio japonês Miki Shima, que esteve junto de ti e de mim nos meses em que te foste despedindo aos poucos. Não sei que efeito tiveram em ti os remédios dele, mas a sua presença tranquila e a sua mensagem espiritual sustiveram-me semana após semana naquela época. «Não digas que queres morrer, porque me matas de desgosto», repreendeu-me a minha mãe uma vez em que o insinuei numa carta. Não era ela a minha única razão para viver: tinha o une, o Nico, a Célia e aqueles três netos que costumavam acordar-e com as mãozitas sujas e os beijos pegajosos, os três de fraldas, a irarem a suor e a biberão. Na mesma cama, juntos e abraçados, amos vídeos aterrorizadores de dinossauros que devoravam os acto O Alejandro, com quatro anos, pegava-me na mão e dizia-me que não me assustasse, que era mentira, que depois os monstros vomitavam as pessoas inteiras porque não as mastigavam.

Na manhã desse aniversário fui com o Alejandro ao bosque, a que todos agora chamamos o «bosque da Paula». E uma grande presunção, filha, porque é um bosque estatal. Estava a chover e fazia muito frio. Enterrávamo-nos na lama, o ar cheirava a pinheiros e pelas copas das árvores filtrava-se uma luz triste de Inverno. O meu neto corria à frente com os pés para os lados e a mover os braços como um pato. Aproximámo-nos do regato, tumultuoso no Inverno, onde havíamos espalhado as tuas cinzas. Reconheci o lugar exacto.

Ontem a Paula estava doente — disse ele. Para o Alejandro o passado era todo ontem.

Sim. Já morreu.

Quem é que a matou?

As coisas não são como na televisão, Alejandro. Às vezes as pessoas adoecem e morrem, assim sem mais nem menos.

E para onde vão os mortos?

Não sei exactamente.

Ela foi por ali — disse ele, apontando para o regato.

As cinzas foram nas águas, mas o espírito dela vive neste bosque. Não te parece lindo?

—        Não. Era melhor que vivesse connosco — escolheu. Estivemos um bom bocado a recordar-te nesse templo verde, onde te sentíamos, tangível e presente, como a brisa fria e a chuva.

À tarde reunimos a família — incluindo o Ernesto, que veio de Nova Jérsia — e alguns amigos em nossa casa. Sentámo-nos na sala e celebrámos os dons que nos concedeste em vida e continuavas a conceder-nos: o nascimento das netas, Sabrina e Nicole, e a entrada das mães, Fu e Grace, na tribo, bem como a de Sally. Uma humilde vela branca, com um orifício no centro, presidia ao altar que havíamos improvisado com as tuas fotos e recordações.

No ano anterior, três dias depois da tua morte, juntei-me com as Irmãs da Perpétua Desordem na casa de uma delas, como fazíamos as terças-feiras, em torno de seis velas novas. A tua ausência fazia-me dobrar sobre mim mesma de dor. «Sinto um fogo que me queima no centro do corpo», disse-lhes. Demos as mãos, fechámos os olhos, e as minhas amigas concentraram em mim o seu carinho e as suas preces, para me ajudarem a suportar o sofrimento desses dias. Eu pedia um sinal, uma indicação de que tu não tinhas desaparecido no nada, para sempre, de que o teu espírito continuava vivo em alguma parte. Em breve ouvi a voz de Jean: «Olha para a tua vela, Isabel.» A minha vela ardia de maneira diferente. «Um fogo no ventre», acrescentou a Jean. Esperámos. A chama derreteu a cera e formou um vazio no meio da vela, que se partiu. Da mesma maneira que se acendera sem explicação, a chama apagou-se momentos mais tarde. A vela ficou com um buraco no meio, mas de pé, e eu tive a impressão de que era aquele o sinal que esperava, um aceno que me fazias de outra dimensão: a queimadura da tua morte não me quebraria. Depois o Nico observou a vela e não conseguiu encontrar a causa da estranha chama no meio; talvez tivesse um defeito, uma segunda mecha que se tenha acendido com uma faúlha que tenha saltado. «Para que queres uma explicação, mamã? Neste caso o que importa é a oportunidade. Recebeste o sinal que pedias, e isso é suficiente», disse o Nico, para me deixar contente, suponho eu, porque, dado o seu saudável cepticismo, não creio que acreditasse que se tratara de um milagre.

A Fu explicou que acendíamos incenso porque o fumo se eleva como os nossos pensamentos; a luz das velas representa sabedoria, claridade e vida; as flores simbolizam beleza e continuidade, porque morrem mas deixam sementes para outras flores, tal como as nossas dam nos nossos netos. Cada um partilhou com os demais algum sentimento ou recordação. A Célia, a última que falou, disse: «Paula, embra-te de que tens três sobrinhos e de que deves protegê-los. -embra-te de que também podem ter porfiria. Lembra-te de velar Para que a Sabrina tenha uma vida longa e feliz. E lembra-te de que Ernesto precisa de outra mulher, de maneira que o melhor é começar a procurar.»

Para acabar, misturámos terra com um pouco das tuas cinzas, que eu guardara, e plantámos uma árvore num vaso, com a intenção de a mudar para o nosso jardim ou para o bosque assim que criasse raízes.

Nessa noite também estiveram connosco a Cheri Forrester, a nossa bondosa médica, e o sábio Miki Shima, que alguns dias antes me tinha deitado os pauzinhos do I Ching, do que resultara: «A mulher tolerou pacientemente a terra desolada, cruza o rio descalça com determinação, conta com gente à distância, mas não tem companheiros, terá de caminhar só pela vereda do meio.» Isto pareceu-me claríssimo. E o Dr. Shima disse-me que tinha uma mensagem tua: «A Paula está bem, afasta-se no seu caminho espiritual, mas cuida de nós e está presente entre nós. Diz que não quer continuar a ver-nos chorar por ela, que quer ver-nos alegres.» O Nico e o Willie trocaram um olhar cúmplice, porque não acreditam muito neste senhor, dizem que não pode provar nada do que diz, mas eu não tive dúvidas de que se tratava da tua voz, porque a mensagem era semelhante à que deixaste no teu testamento: «Por favor, não fiquem tristes. Continuo com todos vós, mas mais perto que antes. Mais tarde acabaremos por nos reunir em espírito, mas entretanto continuaremos juntos, enquanto me recordarem. Lembrem-se de que nós, os espíritos, ajudamos, acompanhamos e protegemos melhor aqueles que estão felizes.» Foi isto que escreveste. A Cheri Forrester chorava como uma Madalena porque a mãe morreu com a mesma idade que tu, e, segundo ela, vocês as duas eram muito parecidas fisicamente.

O meu objectivo era escrever a palavra «fim» no manuscrito do livro e oferecer-to, como uma prenda. A Fu abençoou o molho de papéis atados com uma fita vermelha e depois brindámos com champanhe e partimos um bolo de chocolate. Houve uma emoção muito profunda, embora não um luto; foi antes uma festa sem agitação. Celebrávamos a liberdade que por fim alcançaste, depois de teres passado tanto tempo prisioneira.

Tristeza. Como dissera o terapeuta, havia tristeza na vida do Willie e na minha, embora não fosse um sentimento paralisante, mas antes a consciência das perdas e das dificuldades que dão cor à vida.

Tivemos muitas vezes de ajeitar a carga para seguirmos em frente sem cair. Havia muita desordem, tínhamos a sensação de estar sempre no meio de uma tormenta, reforçando portas e janelas para que o vento da desgraça não arrasasse tudo.

O gabinete de Willie estava a viver a crédito. O Willie aceitava casos perdidos, gastava mais do que ganhava, mantinha uma quantidade de empregados inúteis e estava embrulhado numa confusão de impostos. Era um péssimo administrador, e Tong, o seu leal contabilista chinês, não podia fazer nada para o ajudar. A minha presença na sua vida trouxe-lhe estabilidade, porque pude ajudá-lo com as despesas inesperadas, tomar conta da casa, pôr ordem nas contas bancárias e eliminar a maior parte dos cartões de crédito. Mudou o escritório de São Francisco para uma casa vitoriana que eu comprei em Sausa-lito, a aldeia mais pitoresca da baía. A propriedade fora construída em 1870 e tinha uma genealogia notável: foi o primeiro bordel da terra, depois converteu-se em igreja, a seguir em fábrica de bolachas de chocolate e depois, já em ruínas, passou para as nossas mãos. Como disse ao Willie, foi descendo na escala social. Perdia-se entre árvores centenárias e doentes, que ameaçavam cair sobre as casas dos vizinhos ao primeiro vendaval. Fomos obrigados a cortar algumas. Os assassinos chegaram, sacaram das serras e dos machados, penduraram-se nos ramos com a ajuda de cordas e começaram a desmembrar as suas vítimas, que sangravam sem ruído, da maneira como morrem as árvores. Fugi dali a correr, incapaz de assistir por mais tempo à carnificina. No dia seguinte não reconhecemos a casa: estava despida e vulnerável, com as madeiras devoradas pelo tempo e pelas

ermitas, as telhas fora do lugar, as persianas soltas. As árvores tinham ocultado a deterioração: sem elas parecia uma cortesã decrépita.

O Willie esfregou as mãos, entusiasmado, porque numa encarnação anterior foi construtor, um daqueles que erguem catedrais, vamos deixar a casa tão linda como era ao princípio», disse, e partiu em busca das plantas originais, para lhe devolver a graça vitoriana.

Conseguiu-o plenamente, e, apesar da profanação das ferramentas, as suas paredes ainda conservam o perfume francês das meretrizes, o incenso cristão e o aroma do chocolate das bolachas.

Nos mesmos quartos onde em tempos as damas da noite faziam os clientes esquecer as suas penas, o Willie joga hoje com as incertezas da lei. No que em tempos fora a cocheira, lidei anos a fio com os meus fantasmas literários, até que arranjei o meu próprio estúdio em casa, onde agora escrevo. Aproveitámos a mudança para o Willie se desfazer de metade dos empregados e para começar a seleccionar melhor os seus casos, mas o seu gabinete de advocacia continuava caótico e pouco rentável. «Por muito que entre, o que sai é sempre mais. Faz as contas, Willie. Estás a trabalhar a um dólar à hora», fiz-lhe ver. O cálculo não lhe agradou nada, mas o Tong, que trabalhara trinta anos para ele e mais de uma vez o salvara da bancarrota por uma unha negra, estava de acordo comigo. Fui criada com um avô basco muito cauteloso com o dinheiro e depois com o tio Ramón, que vivia com o mínimo. A filosofia do meu padrasto era «somos imensamente ricos», embora por necessidade tivesse de ser muito prudente com os gastos. Propunha-se gozar a vida em esplendor, e esticava cada centavo do seu ordenado de funcionário público para manter quatro filhos dele e três da minha mãe. O tio Ramón dividia o dinheiro do mês e punha as notas em envelopes, que contava a voltava a contar, para poder cobrir as necessidades da semana. Se conseguia poupar um bocadinho aqui e outro ali, levava-nos a comer gelados. A minha mãe, que sempre foi considerada uma mulher que vestia à moda, fazia a própria roupa em casa e ia transformando sempre os mesmos vestidos, repetidamente. A vida social dos dois era intensa, uma coisa a que os diplomatas não podem escapar, e ela tinha um vestido de baile clássico de seda cinzenta a que punha e tirava as mangas, os cintos e os laços, de maneira que nas fotografias da época aparece sempre com um vestido diferente. Nunca passou pela cabeça de nenhum dos dois endividarem-se. O tio Ramón deu-me os mais úteis dos instrumentos para a vida, como vim a descobrir com a terapia numa idade mais madura: memória selectiva para recordar o que é bom, prudência lógica para não arruinar o presente e um optimismo desafiador para enfrentar o futuro. Também me transmitiu o hábito de ser prestável aos outros e ensinou-me a não me queixar, porque isso faz mal à saúde. Foi o meu melhor amigo; nunca houve nada que não partilhasse com ele. Pela maneira como me criaram e pelos sobressaltos do exílio, tenho mentalidade de camponesa em matéria de dinheiro. Se fosse por mim, escondia as poupanças debaixo do colchão, como fazia o pretendente da Tabra com os lingotes de prata. A maneira de gastar do meu marido horrorizava-me, mas cada vez que metia o nariz nos seus assuntos provocava uma guerra. Assim que o manuscrito de Paula partiu para Espanha e chegou são e salvo às mãos de Cármen Balcells, a minha agente, desceu sobre mim um cansaço profundo. Estava muito ocupada com a minha família, com viagens, com conferências e com as questões administrativas do meu escritório, que tinham crescido até atingirem proporções aterradoras. O tempo não me rendia, andava às voltas sempre no mesmo sítio como um cão que perseguisse o rabo, sem produzir nada que valesse a pena. Tentei escrever muitas vezes, e inclusivamente tinha concluído a investigação para um romance sobre a febre do ouro na Califórnia, mas sentava-me à frente do computador com a mente cheia de ideias e não conseguia transferi-las para a página vazia. «Tens de deixar passar algum tempo. Por agora continuas de luto», recordava-me a minha mãe nas suas cartas, e a Avó Hilda repetia-me o mesmo. A Avó Hilda, por essa altura, vivia entre a casa da filha, no Chile, e a nossa e a do Nico, na Califórnia. Essa boa senhora, a mãe de Hildita, a primeira mulher do meu irmão Pancho, tornara-se avó por adopção sentimental de todos nós, em especial tua e do Nico, a quem mimou desde o dia em que nasceram. Foi minha cumphce em todas as loucuras que me ocorreu fazer desde a juventu-e e companheira de aventuras de vocês os dois.

 

Avó Hilda, incansável, baixinha e alegre, sempre se arranjara ao longo da vida para evitar as coisas que podiam causar-lhe angústia; talvez fosse esse o segredo do seu bom feitio. Tinha uma boca abençoada: não dizia mal de ninguém, fugia das discussões, tolerava sem maledicência a estupidez alheia e era uma mulher que sabia tornar a sua presença de uma discrição total. A certa altura manteve-se a pé duas semanas com uma pneumonia, até que começou a bater os dentes e a febre lhe embaciou os óculos; só então nos apercebemos de que estava a ponto de ir desta para melhor. Passou dez dias num hospital americano, onde ninguém falava espanhol, muda de terror, mas quando lhe perguntávamos como se sentia dizia que muito bem e acrescentava que a gelatina e os iogurtes eram melhores que os chilenos. Vivia numa névoa, porque não falava inglês, e nós esquecía-mos de traduzir a mistura de línguas que se falava em nossa casa. Como não entendia as palavras, observava os gestos. Um ano mais tarde, quando se desencadeou o drama da Célia, foi ela a primeira a desconfiar, porque detectava sinais invisíveis para as outras pessoas. O único medicamento que tomava eram umas misteriosas pílulas verdes, que metia na boca quando o ambiente à sua volta se tornava tenso. Não podia ignorar a tua ausência, Paula, mas fingia que andavas em viagem e falava de ti no futuro, como se fosse ver-te no dia seguinte. Tinha uma paciência ilimitada com os meus netos e, embora pesasse quarenta e cinco quilos e tivesse ossos de passarinho, andava com a Nicole sempre ao colo. Chegámos a recear que a minha neta mais pequena chegasse aos quinze anos sem saber andar...

Ânimo, sogra! O que te faz falta para te inspirar é um charrito de marijuana — foi o conselho da Célia, que nunca o tinha experimentado, mas morria de curiosidade de o fazer.

Isso embota a mente e não ajuda nada a inspiração — opinou a Tabra, que andava de volta daquelas experiências.

Porque não experimentamos? — perguntou a Avó Hilda para tirar as dúvidas.

Foi assim que todas as mulheres da família acabaram na casa de Tabra a fumar erva, depois de termos anunciado que partíamos para um retiro espiritual.

A tarde começou mal, porque a Avó quis que a Tabra lhe fizesse buracos nas orelhas e a máquina de metal avariou-se presa ao lóbulo da orelha. Quando viu o sangue, a Tabra ficou sem forças nas pernas, mas a Avó não perdeu a compostura. Segurou o aparelho, que pesava meio quilo, até que o Nico chegou, uma hora mais tarde, com a sua caixa de ferramentas, desarmou o mecanismo e a libertou. A orelha ensanguentada estava com o dobro do volume normal. «Agora fura-me a outra», pediu a Avó à Tabra. O Nico ficou para desarmar de novo a máquina e depois foi-se embora, por respeito ao nosso «retiro espiritual».

Enquanto lhe furava as orelhas, os seios de Tabra roçaram várias vezes na Avó Hilda, que lhe ia dando umas olhadelas de soslaio, até que não aguentou mais e lhe perguntou que tinha ela no peito.

A minha amiga fala espanhol, de maneira que pôde explicar-lhe que eram de silicone. Contou-lhe que quando era uma jovem professora na costa Rica teve de ir ao médico porque lhe apareceram umas borbulhas num braço. O médico pediu-lhe que despisse a blusa e, embora ela lhe tivesse explicado que o problema era local, ele insistiu e a tirou a blusa. «Mulher, és lisa como uma tábua!», exclamou quando a viu. A Tabra reconheceu que assim era, e então ele propôs-lhe uma solução de que ambos beneficiariam. «Eu queria especializar-me em cirurgia plástica, mas ainda não tenho clientes. Que tal se me deixasses experimentar contigo? Não te levo nada e ponho-te um par de mamas formidável!» A proposta era tão generosa e foi expressa de um modo tão delicado que a Tabra não pôde recusar. Também não se atreveu a negar-se quando ele manifestou um certo interesse em ir para a cama com ela, honra que só tinham algumas das suas pacientes, segundo lhe explicou o médico, mas opôs-se quando ele quis alargar o oferecimento à irmã dela, de quinze anos. Foi assim que a Tabra acabou com aquelas próteses de mármore.

—        Eu nunca tinha visto umas mamas tão duras — disse a Avó Hilda.

Eu e a Célia também lhes mexemos e depois quisemos vê-las. Não havia dúvida que eram estranhas. Pareciam bolas de futebol americano.

Há quanto tempo andas com isto atrás, Tabra? — perguntei-lhe eu.

Há uns vinte anos.

Alguém tem de te examinar. Isto não me parece normal.

Não gostas delas?

Todas nós tirámos as blusas para ela poder comparar. As nossas nunca apareceriam numa revista erótica, mas pelo menos eram agradáveis ao tacto, como a natureza as criou, e não como aquelas, que tinham a consistência de pneus de camião. A minha amiga aceitou que fôssemos com ela a um especialista, e pouco tempo depois, na clínica de um cirurgião plástico, iniciou-se o que na família chamamos a «odisseia das mamas», uma série de acidentes desafortunados, cuja única vantagem foi terem consolidado a minha amizade com a Tabra.

Ao cair da noite fizemos uma fogueira entre as árvores e assámos salsichas em espetadas. A seguir acendemos um dos charros, que bastante trabalho nos deu a arranjar. A Tabra aspirou um par de vezes, anunciou que a erva a deixava meditativa, fechou os olhos e caiu anestesiada. Levámo-la para casa com grande dificuldade, deitámo-la com um cobertor, e voltámos para debaixo das árvores perfumadas do jardim. Estava lua cheia e o regato, alimentado pela chuva, saltava entre as pedras do seu leito. A Célia cantou as suas canções mais nostálgicas acompanhada pela guitarra e a Avó pôs-se a fazer croché entre charros, que não tiveram o efeito de nos elevar ao sétimo céu, como esperávamos. Só nos fizeram rir e tiraram-nos o sono. Deixámo-nos ficar no bosque de Tabra a falar das nossas vidas até de madrugada, altura em que a Avó anunciou que estava na hora de tomar um uísque, uma vez que a marijuana parecia não ser capaz de lhe aquecer os ossos. Dez horas mais tarde, quando a Tabra acordou e olhou para o cinzeiro, calculou que tínhamos fumado uma dúzia de charros sem consequências aparentes e deduziu, assombrada, que éramos invulneráveis. Na opinião da Avó, os cigarros estavam cheios de palha.

 

No Outono desse ano, quando se respirava um clima de paz invulgar na nossa casa e começávamos a abandonar-nos a uma perigosa complacência, chegou de visita um anjo da morte. Era o companheiro de Jennifer, confuso, com o rosto inchado dos bêbedos inveterados. No seu calão arrastado, que o Willie tinha dificuldade em decifrar, anunciou que a Jennifer desaparecera. Havia três semanas, altura em que fora visitar uma tia de outra cidade, que não se sabia nada dela. Segundo a tia, a última vez que a vira fora na companhia de uns tipos com aspecto de meliantes que tinham passado por lá para a recolher numa camioneta. O Willie recordou àquele homem que muitas vezes se passavam meses sem ter notícias da Jennifer, mas ele repetiu que desaparecera, que estava muito doente e que no seu estado não podia ter ido longe. Nessa altura o Willie começou uma busca sistemática por prisões e hospitais, falou com a polícia, recorreu à polícia federal, para o caso de a filha ter ido parar a outro estado, e contratou um detective particular, sem resultados, enquanto a Fu e a Grace punham a rezar os membros do Centro de Budismo Zen e eu as minhas irmãs da desordem. A história que o homem nos contou não me cheirava nada bem, mas o Willie assegurou-me que, em casos daqueles, o primeiro suspeito aos olhos da lei é a pessoa que vive com o desaparecido, especialmente quando tem um passado como o do companheiro da Jennifer. Não havia dúvida de que o tinham observado a fundo.

Dizem que não há dor tão grande como a morte de um filho, mas parece-me que é pior quando o filho desaparece, porque a incógnita acerca do seu destino permanece para sempre. Terá morrido? Terá sofrido? Mantém-se o sonho de que continue vivo, mas perguntamos constantemente a nós mesmos que tipo de existência levará e porque não entra em contacto com a família. Cada vez que o telefone tocava à noite, o Willie tinha um sobressalto de esperança e de terror: podia ser a voz da Jennifer a pedir-lhe que a fosse buscar a algum sítio, mas também podia ser a de um polícia a dizer-lhe que passasse por uma morgue para identificar um corpo.

Meses mais tarde, a Jennifer continuava a não dar sinais de vida, mas o Willie agarrava-se à ideia de que estava viva. Não sei quem lhe sugeriu que consultasse uma médium que às vezes ajudava a polícia a resolver certos casos, porque tinha o dom de encontrar cadáveres e pessoas desaparecidas, e foi assim que fomos parar à cozinha de uma casa bastante degradada junto do porto. A mulher não tinha aspecto de adivinha; nada de saias com estrelas, nem de olhos carregados de maquilhagem ou de bola de cristal: era uma gorda de sapatilhas de ténis e de bata de trazer por casa, que nos fez esperar um bocado enquanto dava banho ao cão. Na cozinha, estreita, limpa e ordenada, havia um par de cadeiras de plástico amarelo, onde nos instalámos. Quando o animal secou, ofereceu-nos um café e sentou-se num banquinho à nossa frente. Bebemos em silêncio durante uns minutos e depois o Willie explicou-lhe a razão da nossa visita e mostrou-lhe uma série de fotografias da filha, algumas em que ainda estava mais ou menos saudável, e as últimas, tiradas no hospital, em que já se encontrava muito doente, com a Sabrina ao colo. A médium examinou-as uma a uma, depois colocou-as sobre a mesa, pôs-lhes as mãos por cima e fechou os olhos durante longos minutos. «Foi levada por homens de carro», disse por fim. «Mataram-na. Livraram-se do corpo num bosque, perto do rio Russian. Vejo água e uma torre de pé. Deve ser uma torre de vigilância de guardas florestais.» Willie, pálido, não reagiu. Depositei sobre a mesa o pagamento dos seus serviços, três vezes mais que a consulta de um médico, Segurei no braço do meu marido e arrastei-o até ao carro. Tirei-lhe a chave do bolso, empurrei-o para o assento e conduzi, com as mãos a tremer. Atravessámos a ponte em direcção a casa. «Não há razão para acreditares em nada disto, Willie. Não é científico, são charlatanices», supliquei-lhe. «Eu sei», respondeu-me, mas o mal estava feito. Mesmo assim, só muito mais tarde mostrou o seu desgosto, quando fomos ver um filme sobre a pena de morte, A Ultima Caminhada, em que há uma cena do assassinato de uma criança num bosque, semelhante à que foi descrita pela médium. No silêncio e na escuridão do cinema ouviu-se um grito desesperado, como o lamento de um animal ferido. Era o Willie, inclinado no assento, com a cabeça entre os joelhos. Saímos da sala aos apalpões e no estacionamento, fechado no carro, chorou longamente a filha desaparecida.

Um ano mais tarde, a Fu e a Grace ofereceram uma cerimónia no Centro de Budismo Zen em honra de Jennifer, para dar dignidade à sua vida trágica e um desfecho ao seu fim inexplicável, que deixou a família em suspenso para sempre. A nossa pequena tribo, incluindo a Tabra, o Jason e a Sally, bem como a mãe da Jennifer com algumas amigas, reuniu-se na mesma sala onde havíamos celebrado o primeiro aniversário da Sabrina, frente a um altar com retratos da Jennifer nos seus melhores tempos, flores, incenso e velas. Puseram um par de sapatos no centro do círculo, para indicar o novo caminho que empreendera. O Jason e o Willie estavam comovidos com as boas intenções de todos os presentes, mas não puderam evitar trocar alguns sorrisos, porque a Jennifer nunca usara uns sapatos como aqueles. Deviam ter escolhido umas sandálias roxas, mais ao seu estilo. Ambos, que a conheciam bem, imaginaram que, se estivesse a observar a nossa triste reunião, morreria a rir, porque achava ridículo tudo o que cheirasse a New Age, e além disso não era das que se lamentam. Carecia por completo de autocompaixão; era atrevida e valente. Sem as dependências, que a agrilhoaram a uma vida de miséria, talvez tivesse optado por um destino aventureiro, porque tinha a força do pai. Dos três filhos do Willie, só a Jennifer herdou o coração de leão do Willie, e transmitiu-o à filha. A menina, que praticamente não conheceu a mãe, mas ficou com a sua imagem gravada na alma antes de nascer, participou no rito aconchegada nos braços de Grace. Por fim, a Fu deu a Jennifer um nome budista: U Ka Dai Shin, «asas de fogo, grande coração». Era um nome adequado para ela.

Na cerimónia, durante o tempo que dedicámos à meditação, o Jason pensa ter ouvido a voz da irmã soprar-lhe ao ouvido: «Que raio estão vocês a fazer? Não têm a menor ideia do que me aconteceu! Até posso estar viva, não posso?! O que tem graça é que nunca hão-de saber!» Talvez por essa razão, o Jason nunca deixou de a procurar. Agora, passados anos, quando há testes de ADN, está empenhado em encontrá-la nos infinitos arquivos de desgraças da polícia. Quanto a mim, durante a meditação surgiu com grande clareza na minha mente uma cena em que a Jennifer estava sentada na margem de um rio, a molhar os pés e a atirar pedras à água. Usava um vestido de Verão e parecia jovem e saudável, sem vestígios de sofrimento. Os raios de Sol atravessavam a folhagem das árvores e iluminavam o seu cabelo louro e o seu corpo delgado. De repente deitava-se encolhida no chão, sobre o musgo, e fechava os olhos. Nessa noite falei dessa visão ao Willie e entre os dois decidimos que fora esse o seu verdadeiro fim, e não o que a médium descrevera: estava muito cansada, adormeceu e não voltou a acordar. Na manhã seguinte levantámo-nos cedo e fomos os dois ao bosque, escrevemos o nome da Jennifer num papel, queimámo-lo e lançámos as cinzas no mesmo regato onde antes havíamos lançado as tuas. Vocês as duas não se conheceram neste mundo, Paula, mas gostamos de pensar que talvez os vossos espíritos brinquem entre essas árvores como os de duas irmãs.

 

1994, o Ruanda aparecia com frequência na imprensa. As notícias do genocídio eram tão horrorosas que era difícil acreditar nelas: crianças assassinadas, mulheres grávidas abertas à facada para o feto lhes ser arrancado do ventre, famílias inteiras assassinadas, centenas de órfãos famintos a deambularem pelos caminhos, aldeias queimadas com todos os seus habitantes.

Que interesse tem o mundo pelo que se passa em África? Os que estão a morrer são uns pobres negros — dizia a Célia, indignada, com a paixão incendiária que punha em tudo.

É terrível, Célia, mas parece-me que não estás deprimida só por isso. Diz-me o que está realmente a passar-se... — sondava-a eu.

Imagina que matavam os meus filhinhos à machadada! — e punha-se a chorar.

Algo estava em gestação na alma da minha nora. Não tinha um momento de descanso, corria de uma para outra de mil tarefas, tenho a impressão que chorava às escondidas e estava cada dia mais fraca, embora mantivesse uma postura alegre de fachada. Desenvolvera uma verdadeira obsessão pelas más notícias da imprensa, que comentava com o Jason, o único da família que lia todos os jornais e era capaz de analisar os factos com instinto de jornalista. Foi a primeira pessoa a quem ouvi relacionar a religião com o terror, muito antes de «fundamentalismo» e «terrorismo» serem praticamente sinónimos. Explicou-nos que a violência na Bósnia, no Próximo Oriente e em África, os excessos dos talibãs no Afeganistão e outros factos desconexos eram causados tanto pelo ódio racial como pelo ódio religioso.

O Jason e a Sally andavam a falar de mudar de casa assim que arranjassem um andar, mas não haviam encontrado nada ao alcance do seu magro orçamento. Oferecemo-nos para os ajudar, mas sem insistir de mais, para não pensarem que queríamos corrê-los de casa. Gostávamos que vivessem connosco. Eram uma boa companhia e suavizavam o ambiente. Era comovente ver o Jason apaixonado pela primeira vez e a falar em casar-se, embora o Willie achasse que ele e a Sally não combinavam. Não sei porque se lhe meteu essa ideia na cabeça; pareciam dar-se muito bem.

A Avó Hilda passava longas temporadas na Califórnia e sob a influência dela a casa convertia-se num antro de jogo. Até os meus netos, uns inocentes que ainda andavam de chupeta, aprenderam a fazer batota com as cartas. Ensinou-os a jogar com tal habilidade que mais tarde o Alejandro, por volta dos dez anos, estava capaz de começar a ganhar a vida com um baralho. A certa altura, quando o rapaz era um lingrinhas com óculos redondos e dentes de castor, meteu-se num acampamento de uns tipos com aspecto particular, que estavam na praia com os seus atrelados e as suas motos. O aspecto daqueles homens, com camisolas sem mangas, tatuagens, botas da tropa e as inevitáveis barrigas de bons bebedores de cerveja, não espantou o Alejandro, porque viu que estavam a jogar às cartas. Aproximou-se, muito seguro de si mesmo, e pediu licença para entrar no jogo. Foi recebido por um coro de risadas, mas insistiu. «Aqui jogamos a dinheiro», avisaram-no. O Alejandro concordou; sentia-se seguro porque já conseguia ganhar à Avó Hilda e rico porque tinha cinco dólares em moedas pequenas. Convidaram-no para se sentar e ofereceram-lhe cerveja, que recusou amavelmente, mais interessado nas cartas. Ao fim de vinte minutos tinha extorquido todo o dinheiro aos sete matulões e afastava-se com os bolsos cheios de notas, sob a saraivada de maldições e de palavrões.

Vivíamos em tribo, ao estilo chileno. Estávamos sempre juntos.

divertia-se muito com a Célia, o Nico e os garotos; preferia mil vezes a sua companhia à nossa, de maneira que passava muito tempo em casa deles. Tínhamos-lhe explicado que as mães de Sabrina eram lésbicas, budistas e vegetarianas, três palavras que não conhecia. A parte de serem vegetarianas foi a única que lhe pareceu inaceitável, mas mesmo assim tornou-se amiga delas. Foi visitá-las várias vezes ao Centro de Budismo Zen, onde as incitava a comer hambúrgueres, a beber margaritas e a apostar ao póquer. A minha mãe e o tio Ramón, o meu inefável padrasto, vinham frequentemente do Chile; às vezes o meu irmão Juan também aparecia. Chegava de Atlanta com a cabeça baixa e a expressão grave de um bispo, pois estudava Teologia. Ao fim de quatro anos dedicados ao divino, terminou o curso com excelentes notas. Nessa altura chegou à conclusão de que não tinha estofo de predicador e voltou ao seu emprego, que mantém até hoje, de professor de Ciências Políticas numa universidade. O Willie comprava mantimentos por atacado e cozinhava para o nosso acampamento de refugiados. Ainda estou a vê-lo na cozinha, a atacar com as facas cheias de sangue uma boa peça de carne de vaca, a preparar sacadas de papas e a picar toneladas de alface. Nos momentos de inspiração fazia umas tapas mexicanas picantes e mortais ao som dos seus discos de rancheras. A cozinha ficava num estado tal que parecia o dia a seguir ao Carnaval e os comensais lambiam-se, deliciados, embora depois pagassem as consequências do excesso de gordura e de picante.

A casa era mágica: esticava e encolhia de acordo com as necessidades. Alcandorada a meio de uma colina, tinha uma vista panorâmica da baía, quatro quartos no andar principal e um apartamento por baixo. Foi ali que em 1992 instalámos o quarto de hospital onde passaste vários meses sem alterar o ritmo de vida da família. Houve noites em que acordei com o murmúrio das minhas próprias recordações e as personagens fugidas dos sonhos dos outros. Levantava-me em silêncio e percorria a casa, agradecida pela sua quietude e tibieza«Aqui não pode acontecer nada de mau», pensava eu. «O mal foi espulso para sempre. O espírito da Paula vela por nós.» Às vezes a qualquer rora surpreendia-me com as suas cores caprichosas de pêssego e melancia e saía a ver a paisagem estendida aos pés da colina, com a bruma a desprender-se da laguna e os gansos-selvagens a voarem em direcção ao sul.

A Célia começava a recompor-se do desgaste das gravidezes quando teve de ir à Venezuela ao casamento da irmã. Nessa altura já tinha um visto de residente que lhe permitia ir ao estrangeiro e regressar aos Estados Unidos. O Nico e os filhos mudaram-se temporariamente para nossa casa, uma solução que a Avó achou perfeita: «Porque não vivemos todos juntos, como deve ser?», perguntou ela. Entretanto, em Caracas, a Célia teve de enfrentar aquilo que quis deixar para trás ao casar com o Nico, e parece-me que não deve ter sido agradável, porque voltou muito em baixo, decidida a cortar o contacto com metade da parentela. Agarrou-se a mim e eu decidi defendê-la contra tudo, mesmo contra mim própria. Voltou a perder peso, e nessa altura reunimos um conselho familiar e obrigámo-la a consultar um especialista, que lhe recomendou terapia e antidepressi-vos. «Não acredito em nada disto», dizia-me ela, mas o tratamento ajudou-a e em breve estava outra vez a tocar guitarra, a fazer-nos rir e a irritar-nos com as suas tolices. Apesar dos inexplicáveis assomos de tristeza, a maternidade fê-la florescer.

Os miúdos eram um circo permanente e a Avó recordava-nos todos os dias que devíamos desfrutar deles, porque crescem e partem demasiado depressa. Mais que os medicamentos, foram os miúdos que ajudaram a Célia nessa altura. O Alejandro, que era tímido, mas muito perspicaz, entaramelava frases sábias com uma voz rouca igual a da mãe. Nesse ano, na Páscoa, antes de sair com a sua cesta para colher os ovos pintados entre os arbustos do jardim, sussurrou-me ouvido que os coelhos não põem ovos, porque são mamíferos. -nesse caso, quem deixará os ovos da Páscoa?», perguntei-lhe eu, com uma pergunta tola. «Tu», respondeu-me ele. A Nicole, a mais pequena, teve   de se defender dos irmãos assim que começou a ser capaz de se proteger. Num aniversário, tive a má ideia de oferecer ao Alejandro, pois havia pedido de joelhos com as suas pestanas de girafa, um conjunto de punhais ninja de plástico. Primeiro obtive o consentimento especial dos pais — que não autorizavam as armas, da mesma forma que se opunham à televisão, dois tabus New Age da Califórnia —, porque não é possível criar as crianças numa redoma; mais vale que se contaminem desde pequenas, para que fiquem imunizadas. A seguir avisei o meu neto de que não poderia atacar as irmãs, mas foi como dar-lhe um doce e proibi-lo de o chupar. Cinco minutos depois de os ter na sua posse deu uma punhalada a Andrea, que lhe devolveu imediatamente o golpe, e a seguir voltaram-se os dois contra a Nicole. Vimos passar o Alejandro e a Andrea a correrem espavoridos e atrás a Nicole, com um punhal em cada mão, a gritar como um apache de um filme. Ainda usava fraldas. A Andrea era mais pitoresca, vestia-se de cor-de-rosa da cabeça aos pés, exceptuando os chinelos verde-limão, viam-se umas madeixas douradas entre os adornos que lhe punham na cabeça — tiaras, fitas para laços de prendas, flores de papel — e vivia perdida no seu mundo imaginário. Além disso tinha o Poder Rosa, um anel mágico com uma pedra dessa cor, prenda de Tabra, que tinha o poder de transformar os brócolos em gelado de morango e de dar um estalo à distância ao miúdo que tinha troçado dela no recreio. Uma vez a professora levantou-lhe a voz e a Andrea pôs-se à frente dela e apontou-lhe o dedo do poderoso anel: «Tu não te atrevas a falar-me assim! Eu sou Andrea!» Outra vez voltou muito alterada do colégio e abraçou-se a mim.

Tive um dia horrível! — confessou-me, a chorar.

Não houve um único momento bom no teu dia, Andrea?

Sim, uma menina caiu e partiu os dentes.

Mas que tem isso de bom, Andrea, por amor de Deus?!

Não ter sido eu.

 

foi publicado em Espanha com uma fotografia tua na capa, que tinha sido tirada pelo Willie. Nela apareces a sorrir e cheia de vida, com a tua cabeleira escura a cobrir-te como um manto. Em breve começaram a chegar cartas às centenas, que arrumávamos em caixotes no escritório; a Célia não tinha tempo para as organizar e para responder a todas. Há anos que recebia cartas de leitores entusiastas, embora tenha de admitir que nem todas eram motivadas pela simpatia para com os meus livros: algumas eram pedidos, como a de um romancista que escrevera dezasseis obras inéditas, que se oferecia galantemente para se associar comigo e para dividirmos os direitos de autor a meias, ou a de um casal de chilenos que viviam na Suécia que me pediam passagens para regressar ao Chile, porque por culpa do meu tio Salvador Allende haviam sido obrigados a partir para o exílio. Contudo, nada de comparável com a avalancha de correspondência que nos inundou depois da publicação de Paula. Quis responder a todas as cartas, nem que fosse apenas com uma ou duas linhas garatujadas num cartão, porque cada uma delas fora escrita com o coração e enviada às cegas, algumas aos meus editores, outras à minha agente; muitas chegaram-me através de amigos ou de livrarias. passava parte das noites a fazer cartões com papéis japoneses que me foram oferecidos por Miki Shima e pequenas moedas de prata e pedras semipreciosas de Tabra. As cartas que recebia eram tão sentidas "que anos mais tarde, quando o livro já tinha sido traduzido em várias linguas, alguns editores europeus decidiram publicar uma selecção daquela correspondência. Às vezes eram cartas de pais que tinham perdido um filho, mas a maior parte eram de pessoas jovens que se identificavam contigo, incluindo raparigas que queriam conhecer o Ernesto, apaixonadas pelo viúvo sem o conhecerem. Alto, forte, moreno e trágico, atraía as mulheres. Não creio que lhe tenha faltado consolo: não é um santo e o celibato não é o seu forte, como ele mesmo me contou e como tu sempre soubeste. O Ernesto garante que se não se tivesse apaixonado por ti teria entrado no seminário para se tornar padre, mas eu duvido que o fizesse. Precisa de uma mulher a seu lado.

Ocupada com as cartas, não tinha tempo para a escrita, e até a comunicação com a minha mãe sofreu com isso. Em vez de trocarmos a mensagem diária que nos manteve unidas durante décadas, falávamos por telefone ou enviávamos faxes breves, evitando confidências que pudessem ficar expostas à curiosidade alheia. A nossa correspondência dessa época é muito aborrecida. Não há nada como o correio, com o seu passo de tartaruga e a sua privacidade, o prazer de esperar o carteiro, de abrir um envelope, de tirar as folhas, que tinham sido dobradas pela minha mãe, e de ler as suas notícias com duas semanas de atraso. Quando eram más já não tinham importância e se eram boas estávamos sempre a tempo de festejar.

Entre as cartas chegou a de uma jovem enfermeira que cuidara de ti na unidade de cuidados intensivos do hospital de Madrid. Foi a Célia que a abriu e a viu primeiro. Trouxe-ma, pálida, e lemo-la juntas. A enfermeira dizia que depois de ter lido o livro achara que tinha o dever de me contar o que acontecera. Foram a negligência médica e um corte de electricidade, que afectou a máquina de oxigénio, que te destruíram o cérebro. Muitas pessoas no hospital sabiam o que sucedera, mas esconderam-no, talvez na esperança de que morresses sem que houvesse uma investigação. Durante meses, as enfermeiras viram-me à espera todo o dia no corredor e por vezes tinham vontade de me contar o que acontecera, mas não se atreveram a enfrentar as consequências. A carta deixou-me transtornada durante vários dias. «Não penses nisso, Isabel. Agora já não há nada a fazer. Foi o destino da Paula. Agora o espírito dela está livre e já não vai ter de sofrer os dissabores que a vida reserva a toda a gente», escreveu-me a minha mãe quando lhe contei. «Por esse critério, devíamos estar todos mortos», pensei eu.

Estas memórias atraíram mais interesse do público e da imprensa que todos os meus livros anteriores juntos. Fiz muitas viagens, dei centenas de entrevistas, dezenas de conferências e milhares de autógrafos. Uma mulher pediu-me que escrevesse dedicatórias em nove livros, um para cada uma das suas amigas que haviam perdido um filho e outro para ela. A filha ficara paraplégica por causa de um acidente de automóvel e, assim que foi capaz de manobrar uma cadeira de rodas, atirou-se a uma piscina. Sofrimento e mais sofrimento. Em comparação, o meu era suportável, porque pelo menos pude cuidar de ti até ao fim.

 

O filme baseado no meu primeiro livro, A Casa dos Espíritos, foi anunciado com grande estrondo porque contava com um grande elenco, com as grandes estrelas da altura: Meryl Streep, Jeremy Irons, Glenn Close, Vanessa Redgrave, Winona Ryder, e o meu preferido, António Banderas. Agora, quando penso neles todos estes anos depois, estes actores parecem-me tão antigos como os do cinema mudo. O tempo é implacável.

Quando o meu primeiro romance foi publicado, vários membros da família da minha mãe zangaram-se comigo, um porque as nossas ideias políticas estão em extremos opostos e outros porque consideram que traí os seus segredos. «A roupa suja lava-se em casa», é um lema do Chile. Para escrever este livro tomei como modelos os meus avós, alguns tios e outras personagens extravagantes da minha numerosa tribo chilena, e utilizei ainda as anedotas que durante muitos anos ouvi ao meu avô e os acontecimentos políticos da época, mas nunca pensei que houvesse quem o levasse à letra. A minha versão dos factos é distorcida e exagerada. A minha avó nunca moveu uma mesa de bilhar com o pensamento, como Clara dei Valle, e o meu avô não era nem um violador nem um assassino, como Esteban Trueba no romance. Durante muitos anos esses familiares não me dirigiram a palavra e fizeram o possível por me evitar. Pensei que o filme seria como deitar sal na ferida, mas afinal foi o contrário que sucedeu. O poder do cinema é tal que o filme se transformou na  

história oficial da minha família, e soube que agora as fotografias de Meryl Streep e Jeremy Irons substituíram as dos meus avós.

Nos Estados Unidos dizia-se que o filme ia arrasar com os prémios da Academia em Hollywood, mas antes da estreia começaram a aparecer críticas negativas por não terem sido actores hispânicos a dar corpo a um tema latino-americano. Disseram que em tempos, quando era preciso um negro no ecrã, pintavam um branco com graxa para os sapatos e que agora, quando precisavam de um latino, punham um bigode a um branco. Foi filmado na Europa por um realizador dinamarquês, com dinheiro alemão, actores anglo-saxónicos e falado em inglês. De chileno pouco tinha, mas a mim pareceu-me bastante melhor que o livro e tive pena que tivesse sido recebido com certa má vontade antecipada. Meses antes, o realizador, Bille August, convidara-nos, a Willie e a mim, para as filmagens em Copenhaga. As cenas de exterior foram filmadas numa quinta em Portugal, que depois se converteu numa atracção turística, e as cenas de interior numa casa construída dentro de um estúdio na Dinamarca. Os móveis e os objectos decorativos foram alugados em antiquários de Londres. Quis trazer, como recordação, uma pequena caixa de esmalte, mas cada objecto tinha um código e havia uma pessoa encarregada de cuidar de tudo. Então pedi a cabeça de Vanessa Redgrave, mas não ma deram. Refiro-me a uma réplica de cera que devia aparecer numa cena dentro de uma chapeleira, mas acabaram por não a usar, por receio de desencadear o riso do público, em vez do horror que desejavam. Que terá acontecido a essa cabeça? Talvez a Vanessa a tenha na mesa-de-cabeceira, para recordar a fragilidade da existência. A mim ter-me-ia servido para romper o gelo em qualquer conversa e para assustar os meus netos. Na cave de casa tinha escondidas caveiras, mapas de piratas e baús de tesouros. Não há nada como uma intenda de terrores para despertar a imaginação.

Durante uma semana, o Willie e eu acotovelámo-nos com as celebridades e vivemos com as pessoas importantes deste mundo. Cada estrela tinha a sua corte de ajudantes, maquilhadores, cabeleireiros, massagistas e cozinheiros. Meryl Streep, bela e distante, estava acompanhada pelos filhos e pelas respectivas amas e professores. Uma das suas filhas pequenas, com o mesmo talento e aspecto etéreo da mãe, actuou no filme. Glenn Close, que andava com vários cães e com as suas tratadoras, lera o meu livro com grande atenção para se preparar para o papel de Férula, a solteirona, e passámos muitas horas agradáveis a conversar. Perguntou-me se por acaso a relação entre Férula e Clara era lésbica e eu não soube que responder, porque a ideia me surpreendeu. Creio que no começo do século xx no Chile, época em que está situada essa parte do romance, haveria relações amorosas entre mulheres que nunca chegavam ao plano sexual devido aos impedimentos sociais e religiosos. Jeremy Irons, na vida real, não era precisamente o frio aristocrata inglês que costumamos admirar no ecrã; poderia ter sido um simpático motorista de táxi dos subúrbios de Londres: fazia gala de uma ironia negra, os dedos manchados de nicotina sobressaíam na sua imagem e tinha um reportório inesgotável de histórias extravagantes, por exemplo uma em que perdeu o seu cão no metro e durante uma manhã inteira cão e dono se cruzaram em várias direcções, saltando dos comboios cada vez que se vislumbravam nalguma estação. Não sei porquê, mas para o filme puseram--lhe qualquer coisa na boca, como um aparelho, que lhe distorceu um pouco a cara e a voz. Vanessa Redgrave, alta, patrícia, luminosa e com olhos azul-cobalto, apresentava-se sem maquilhagem e com um lenço na cabeça, sem que isso diminuísse em nada o impacte da sua presença formidável. Só mais tarde conheci Winona Ryder; era uma espécie de rapazito bonito, com o cabelo cortado à tesourada pela mãe. A mim pareceu-me encantadora, mas entre a equipa técnica tinha fama de mimada e caprichosa. Dizem que isso prejudicou a sua carreira, que podia ter sido brilhante. Quanto a António Banderas, já o tinha visto uma ou duas vezes e estava apaixonada por ele com o amor tímido e ridículo das adolescentes pelas estrelas do ecrã, apesar de ter idade para ser meu filho, esticando um pouco as coisas. Junto à porta principal do hotel havia sempre uma fila de curiosos meio mortos de frio, com os pés enterrados na neve, à espera que passasse alguma celebridade para lhe pedirem um autógrafo, mas as celebridades entravam por uma porta de serviço e os fanáticos tinham de se contentar com a minha assinatura. «Quem é?», ouvi alguém perguntar em inglês, apontando para mim. «Não vês que é a Meryl Streep?», respondeu outra pessoa.

Precisamente quando estávamos a habituar-nos a viver como a realeza, acabaram-se as férias e regressámos a casa e também ao anonimato absoluto: quando ligávamos a qualquer daqueles famosos «amigos» tínhamos de soletrar os nossos nomes. A estreia mundial do filme não foi em Hollywood, uma vez que os produtores eram alemães, mas sim em Munique, onde enfrentámos uma multidão de gente alta e um bombardeamento assustador de câmaras e de projectores. Toda a gente ia vestida de preto e eu, da mesma cor, desaparecia abaixo da linha da cintura dos outros. Na única fotografia de imprensa em que fiquei pareço um ratinho assustado, negro sobre negro, com a mão amputada de Willie sobre um ombro.

Houve uma coisa que me aconteceu dez anos depois do filme de A Casa dos Espíritos e que só posso contar-te aqui ou calar para sempre, porque se refere à fama e esse assunto não te interessa, minha filha. Em 2006 coube-me levar a bandeira olímpica nos Jogos Olímpicos de Inverno, na Itália. Foram apenas quatro minutos, mas serviram-me para alcançar a fama: agora as pessoas conhecem-me na rua e por fim os meus netos gabam-se de me ter por avó.

As coisas aconteceram assim: um dia Nicoletta Pavarotti, a mulher do tenor, telefonou-me. É uma pessoa encantadora, trinta e quatro anos mais nova que o seu famoso marido. Anunciou-me que eu fora escolhida para fazer parte do grupo de oito mulheres que levar'am a bandeira na cerimónia inaugural dos Jogos Olímpicos. Respondi-lhe que devia tratar-se de um engano, porque eu sou o oposto a uma atleta; na realidade, nem sequer tinha a certeza de ser capaz e dar a volta ao estádio sem um andarilho. Explicou-me então que se tratava de uma grande honra, que as candidatas haviam sido rigorosamente escolhidas, que as suas vidas, as suas ideias e o seu trabalho haviam sido muito bem investigados. Além disso, era a primeira vez que a bandeira seria levada apenas por mulheres, três atletas com medalhas de ouro e cinco representantes dos continentes, e que a mim me coubera a América Latina. A minha primeira pergunta foi, naturalmente, como iria vestida. Explicou-me que iríamos de uniforme e pediu-me as minhas medidas. Aterrada, vi-me dentro de um fato acolchoado de uma repugnante cor pastel, gorda como o boneco da Michelin. «Posso ir de saltos altos?», perguntei eu, e do outro lado da linha ouvi um suspiro.

Em meados de Fevereiro cheguei a Turim, com o Willie e o resto da família. Seria uma cidade bonita em qualquer país, mas não para os Italianos, que não se deixam impressionar sequer por Veneza ou por Florença. A passagem da tocha olímpica pelas ruas era aplaudida por multidões entusiásticas, bem como a da bandeira de qualquer das oitenta equipas em competição, cada uma com as suas cores. Aqueles jovens eram os melhores atletas do mundo, treinavam desde os três ou quatro anos, e haviam sacrificado as suas vidas para chegar aos jogos. Todos mereciam ganhar, mas há imprevistos: um pedaço de neve, um centímetro de gelo ou a força do vento podem determinar os resultados de uma corrida. Contudo, o que mais pesa, mais ainda que o treino e a sorte, é o coração, já que apenas o coração mais valente e determinado chega à medalha de ouro. A paixão é o segredo do vencedor. As ruas de Turim estavam cobertas de cartazes com o lema dos jogos: «A paixão vive aqui.» E é esse o meu maior desejo: viver com paixão até ao fim dos meus dias.

No estádio conheci as outras mulheres que levavam a bandeira: três atletas e as actrizes Susan Sarandon e Sofia Loren, além de duas activistas, a Prémio Nobel da Paz Wangari Maathai, do Quénia, e Somaly Mam, que luta contra o tráfico sexual de crianças no Camboja. Também recebi o meu uniforme. Não era o tipo de roupa que uso normalmente, mas também não era tão horroroso como tinha imaginado: pulôver, saia e casaco de lã branca de Inverno, botas e luvas da mesma cor, tudo da autoria de um daqueles desenhadores de moda caros. Na verdade não estava nada mal. Eu parecia um frigorífico, mas as outras também, salvo a Sofia Loren, alta, imponente, peito impressionante, e sensual aos setenta e tal anos de idade. Não sei como se mantém magra, porque durante as muitas horas que estivemos à espera nos bastidores não parou de mordiscar hidratos de carbono: bolachas, nozes, bananas, chocolate. Além disso não sei como pode estar bronzeada pelo sol e não ter rugas. A Sofia é uma mulher de outra época, muito diferente das modelos e das actrizes de hoje, que parecem esqueletos com mamas postiças. A sua beleza é lendária, e pelos vistos indestrutível. Há vários anos disse na televisão que o seu segredo era manter uma boa postura e «não fazer ruídos de velha», isto é, nada de se queixar, de grunhir, de tossir, de bufar, de falar sozinha ou de soltar gases. Tu não precisas de te preocupar, Paula, porque terás sempre vinte e oito anos, mas eu, que sou irremediavelmente vaidosa, sempre procurei seguir este conselho à letra, já que não posso imitar a Sofia em nenhum outro aspecto.

Quem mais me impressionou foi Wangari Maathai. Trabalha com mulheres de aldeias africanas e já plantou mais de trinta milhões de árvores, com o que mudou o clima e a qualidade da terra nalgumas regiões. Esta mulher magnífica brilha como uma lanterna e ao vê-la tive o impulso irresistível de a abraçar, o que me acontece em geral na presença de certos homens jovens, mas nunca de uma dama como ela. Abracei-a com desespero, sem ser capaz de me soltar dela; era como uma árvore, forte, sólida, quieta, contente. Wangari, assustada com a minha veemência, afastou-me dissimuladamente.

Os Jogos Olímpicos foram inaugurados com um espectáculo extravagante em que participaram milhares de pessoas: actores, bailarinos, figurantes, músicos, técnicos, produtores e muitos outros. A certa altura, por volta das onze da noite, com a temperatura já abaixo de zero, levaram-nos para os bastidores e recebemos a enorme bandeira olímpica. Os altifalantes anunciaram o momento culminante da cerimónia e a marcha triunfal da Aida começou, entoada em coro por quarenta mil espectadores. A Sofia Loren ia à minha frente. Mede uma cabeça a mais que eu, sem contar com o seu magnífico cabelo ondulado, e caminhava com a elegância de uma girafa na savana, com a bandeira ao ombro. Eu ia atrás dela a trote, com o braço estendido, de maneira que a minha cabeça ficava debaixo da maldita bandeira. Como é evidente, todas as câmaras apontavam para aí Sofia Loren   o que foi muito conveniente para mim, porque sai em todas as fotografias, embora entre as pernas dela. Confesso que me sentia tão feliz que, segundo o Nico e o Willie, que me apoiavam da galena com lágrimas de orgulho, ia a levitar: essa volta ao estádio olímpico foram os meus magníficos quatro minutos de fama. Guardei os artigos e as fotografias que saíram na imprensa porque são a única coisa que não quero esquecer quando a demência senil apagar todas as minhas outras recordações.

 

voltemos um pouco atrás, para não nos perdermos, Paula. Afeiçoámo-nos à Sally, a namorada do Jason, uma rapariga discreta e de poucas palavras, que se mantinha em segundo plano, embora sempre atenta e presente. Tinha mãos de fada com os miúdos. Era baixa, de uma beleza sem estridência, com cabelo louro e sem uma gota de maquilhagem; parecia ter quinze anos. Trabalhava no centro de jovens delinquentes, onde era preciso ter coragem e firmeza. Levantava-se cedo, saía, e só voltávamos a vê-la à noite, quando chegava a arrastar-se de cansaço. Vários dos jovens que estavam a seu cargo haviam sido detidos por assalto à mão armada, e, embora fossem menores, tinham corpos de mastodontes. Não sei como é que ela, com o seu aspecto de pardal, conseguia fazer-se respeitar. Um dia em que um dos brutamontes a ameaçou com uma navalha, ofereci-lhe um emprego mais seguro no meu escritório, a ajudar a Célia, que não dava conta de tanto trabalho. Eram muito amigas; a Sally estava sempre disposta a ajudá-la com os miúdos e a fazer-lhe companhia, porque o Nico passava dez horas fora de casa, a estudar inglês e a trabalhar. Com o tempo, acabei por conhecê-la bem e por concordar com o Willie em relação a ter muito pouco em comum com o Jason. «Não te metas», ordenou-me o Willie. Mas como podia evitar meter-me se estavam a viver em nossa casa e o seu vestido de noiva, de renda creme, esperava, pendurado, no meu armário? Estavam a pensar casar-se quando ele terminasse os estudos, dizia o Jason, mas a Jally não dava mostras de impaciência. Pareciam um casal de cinquentões aborrecidos. Estes noivados modernos, longos e descontraídos, parecem-me suspeitos; a urgência é inseparável do amor. Segundo a Avó Hilda, que via o invisível, se a Sally se casasse com o Jason, não seria por loucura de amor, mas para ficar na nossa família.

O único emprego temporário que o Jason conseguiu depois de concluir o bacharelato foi num centro comercial, a suar num fato absurdo de Pai Natal. Isto serviu pelo menos para que percebesse que devia continuar a sua formação até obter um título profissional. Contou-nos que a maior parte dos Pais Natais eram uns pobres diabos que chegavam ao trabalho já bem bebidos e que alguns molestavam as crianças. Depois de ouvir isto, o Willie decidiu que as nossas teriam o seu próprio Pai Natal, e comprou um magnífico disfarce de veludo vermelho orlado de pele de coelho verdadeira, com uma barba inverosímil e botas de verniz. Eu queria que ele escolhesse qualquer coisa mais barata, mas ele afirmou que não vestia nada ordinário e que, além disso, o fato seria para amortizar em muitos anos. Nesse Natal convidámos uma dúzia de miúdos com os pais; à hora marcada baixámos as luzes, alguém tocou música de Natal num órgão electrónico e o Willie apareceu a uma janela com o saco das prendas. Entte os pequenos houve um estrépito de pavor, a que apenas escapou a Sabrina, que não tem medo de nada. «Vocês devem ser muito ricos, para conseguirem que o Pai Natal apareça numa noite em que tem tanto trabalho», disse ela. As crianças mais velhas estavam encantadas, até que uma disse que não acreditava no Pai Natal e o Willie respondeu, furioso: «Então ficas sem prenda, ranhoso de merda!» E acabou-se a festa. Os miúdos começaram logo a desconfiar que era o Willie que se escondia debaixo da barba, mas o Alejandro pôs fim às dúvidas com um raciocínio irrefutável: «Não nos convém saber. Isto é como o rato que traz a moeda quando nos cai um dente. É melhor que os nossos pais pensem que somos patetas.» A Nico-le ainda era muito pequenina para participar naquela farsa, mas uns anos mais tarde começou a ser consumida pelas dúvidas. Tinha um medo terrível do Pai Natal, de maneira que todos os Natais tínhamos de a acompanhar à casa de banho, onde se fechava a tremer até que lhe assegurávamos que o terrível velho já partira para outra casa no seu trenó. Dessa vez encolheu-se toda junto da retrete com cara de poucos amigos e negou-se a abrir as prendas.

Que se passa, Nicole? — quis eu saber.

Diz-me a verdade: o Willie é o Pai Natal?

Acho que o melhor é perguntares-lhe a ele — aconselhei-a. Receei que se lhe mentisse não voltasse a confiar em mim.

O Willie pegou-lhe pela mão, levou-a ao quarto onde estava o fato que acabava de usar e contou-lhe a verdade, depois de a ter avisado de que se tratava de um segredo que não poderia contar aos outros meninos. A minha neta voltou para a festa e encolheu-se a um canto com a mesma cara séria, sem tocar nas suas prendas.

Que se passa agora, Nicole? — perguntei-lhe.

Andaram este tempo todo a rir-se de mim! Arruinaram a minha vida! — foi a sua resposta. Ainda não tinha três anos.

Contei ao Jason como a experiência de jornalista me fora útil no ofício da escrita e sugeri-lhe que poderia ser o primeiro passo para uma carreira literária. O jornalismo ensina a investigar, a resumir, a trabalhar sob pressão e a utilizar a língua com eficácia; além disso obriga-nos a ter sempre o leitor em mente, uma coisa que os escritores costumam esquecer por estarem preocupados com a posteridade. Ao fim de muito o pressionar, porque estava cheio de dúvidas e nem sequer queria preencher os impressos de matrícula, candidatou-se a várias universidades e, para sua surpresa, aceitaram-no em todas e pôde dar-se ao luxo de estudar Jornalismo na mais prestigiada, a de Columbia, em Nova Iorque. A sua partida distanciou-o da Sally, e pareceu-me que aquela relação, tão frouxa, acabaria por arrefecer, embora continuassem a falar em casar-se. A Sally manteve-se apegada a nós, a trabalhar comigo e com a Célia, a ajudar com os miúdos: era uma tia perfeita. Ele foi-se embora em 1995, com a ideia de fazer o curso e de voltar à Califórnia. De todos os filhos do Willie, o Jason era aquele a quem a ideia de viver em tribo mais agradava. «Gosto de ter uma família grande. Esta mescla de americanos e latinos runciona muito bem», disse-me uma vez. Para se integrar, passou uns meses no México a estudar espanhol, que acabou por falar muito bem, com o mesmo sotaque bandido do Willie. Sempre fomos amigos. Partilhávamos o vício dos livros e costumávamos sentar-nos na varanda com um copo de vinho a falar de intrigas e temas possíveis para romances. Achava que tu, o Ernesto, a Célia e o Nico eram tão seus irmãos como os que lhe tinham calhado em sorte e queria que ficássemos todos juntos para sempre; no entanto, depois da tua morte e do desaparecimento da Jennifer, afundámo-nos na tristeza e os laços ou foram cortados ou se modificaram. Agora o Jason diz, anos mais tarde, que a família foi por água abaixo, mas eu recordo-lhe que as famílias, como quase tudo neste mundo, se transformam e evoluem.

 

Célia e o Willie discutiam aos gritos com igual paixão tanto por causa de patetices como de assuntos importantes.

Põe o cinto de segurança, Célia — dizia-lhe ele no carro.

Não é obrigatório usá-lo no banco de trás.

E, sim.

Não é.

Tanto se me dá que seja obrigatório como não! Estamos no meu carro e quem vai a conduzir sou eu! Ou pões o cinto de segurança ou sais! — bufava o Willie, vermelho de raiva.

Foda-se! Sendo assim, saio!

Desde criança que se rebelara contra a autoridade masculina, e o Willie, que responde à menor provocação, acusava-a de ser uma miúda malcriada. Irritava-se muitas vezes com ela, mas assim que a Célia pegava na guitarra ficava tudo perdoado. Eu e o Nico procurávamos mantê-los afastados, embora isso nem sempre resultasse. A Avó Hilda não se metia; o mais que me disse foi que a Célia não estava habituada a receber carinho, mas que com o tempo acabaria por baixar a grimpa.

A Tabra foi operada para lhe tirarem as «bolas de futebol» e porem uns seios normais, umas bolsas com uma solução menos letal que o silicone. A propósito, o médico que lhas tinha posto acabou Por se tornar um dos cirurgiões plásticos mais conhecidos da Costa Rica, de maneira que a experiência que adquiriu com a minha amiga o foi inútil. Suponho que agora já seja um homem idoso e nem sequer recorde a jovem dos Estados Unidos com quem fez a sua primeira experiência. A Tabra passou seis horas na sala de operações. Tiveram de lhe raspar o silicone fossilizado das costelas, e quando saiu da clínica estava tão debilitada que a instalámos em nossa casa até que foi capaz de se valer por si só. Teve inflamações dos gânglios, não era capaz de mexer os braços e teve uma reacção à anestesia que a deixou com náuseas durante uma semana. Só tolerava sopas aguadas e torradas. Isto aconteceu numa altura em que o Jason já tinha partido para Nova Iorque para estudar e a Sally se tinha mudado para um apartamento que partilhava com uma amiga em São Francisco, mas a Avó Hilda, o Nico, a Célia e os três miúdos estavam temporariamente a viver connosco. As águas-furtadas de Sausalito tinham-se tornado pequenas para eles e estávamos a tratar da compra de uma casa, que ficava um pouco longe, além de que precisava de obras, mas tinha piscina, era grande e à volta havia campo. Era perfeita para criar os garotos. A nossa estava cheia e de maneira geral reinava nela um ambiente de festa, apesar de a Tabra se sentir muito mal. A excepção era quando a Célia e o Willie implicavam um com o outro, altura em que a menor chispa provocava uma discussão. Nesse dia estalou um assunto grave de escritório, porque a Célia acusou o Willie de não ser claro com o dinheiro e ele ficou que parecia um energúmeno. Discutiram no meio de insultos horríveis e eu não consegui que baixassem a voz para raciocinarem e procurarem soluções. Em poucos minutos o tom subiu até tudo aquilo parecer um arraial, a que o Nico acabou por pôr fim com o único grito que alguma vez lhe ouvimos e nos paralisou com a surpresa. O Willie saiu de casa e bateu com a porta de uma maneira que por pouco não deitou as paredes abaixo. Num dos quartos, a Tabra, ainda atordoada pelos efeitos da operação e os calmantes para as dores, ouviu os gritos e julgou estar a sonhar. A Avó Hilda e a Sally desapareceram com os miúdos, penso que se esconderam com eles na cave, entre as caveiras de gesso e as tocas dos zorrillos.

A intenção da Célia foi proteger-me, e eu não reagi para defender o meu marido, de maneira que a suspeita que ela deixou no ar ficou a pairar, não resolvida. Nunca imaginei que aquela discussão viesse a ter consequências tão graves. O Willie sentiu-se ferido, não pela Célia, mas por mim. Quando por fim conseguimos falar, disse-me que eu formava um círculo impenetrável com a minha família e o deixava de fora, que nem sequer confiava nele. Tentei desfazer o mal, mas não consegui. Tínhamos descido muito baixo. Andámos cheios de ressentimentos durante semanas. Dessa vez não me podia escapar, porque tinha a Tabra a convalescer lá em casa e toda a minha família estava lá. O Willie ergueu um muro à sua volta, mudo, furioso, ausente. Saía muito cedo para o escritório e voltava tarde. Quando chegava punha-se a ver televisão e já não cozinhava para nós. Comíamos todos os dias arroz com ovos mexidos. Já nem os miúdos conseguiam comovê-lo! Andavam em bicos de pés e fartavam-se de procurar pretextos para se aproximarem dele; o avô transformara-se num velho resmungão. No entanto, mantivemos o pacto de não pronunciar a palavra «divórcio» e estou convencida de que, apesar das aparências, ambos sabíamos que ainda não tínhamos chegado ao fim, que ainda nos restava muita corda. A noite adormecíamos cada um para um canto da cama, mas de manhã acordávamos abraçados. Com o tempo, isso ajudou-nos a reconciliar-nos.

Talvez neste relato te tenha dado a impressão de que eu e o Willie passávamos a vida a discutir, mas é evidente que isso não é verdade. Só quando eu ia dormir a casa da Tabra, ou seja, nos momentos mais frios das nossas escaramuças, é que não andávamos de mãos dadas. No carro, na rua, em toda a parte, andamos sempre de mãos dadas. Foi sempre assim, desde o princípio, mas este costume tornou-se uma necessidade ao fim de duas semanas de conhecimento, por causa de uma questão de sapatos. Dada a minha estatura, sempre usei saltos altos, mas o Willie insistiu que eu devia andar comodamente, e o como as concubinas chinesas da Antiguidade, com os pés numa miséria. Ofereceu -me um par de sapatilhas desportivas que ainda hoje dezoito anos mais tarde, estão novas na caixa. Para lhe fazer a vonntade, comprei umas sandálias que vi na televisão. Mostravam umas modelos bem espigadas em vestido de noite a jogar basquetebol e de saltos altos — precisamente aquilo de que eu precisava. Desfiz-me do calçado que tinha trazido da Venezuela e substituí-o por aquelas sandálias prodigiosas. Não resultou: saíam-me tantas vezes dos pés que, por razões elementares de segurança, o Willie começou a andar sempre comigo pela mão. Além disso, existe uma grande amizade entre nós, o que é bom para qualquer relação. Eu gosto do Willie, e mostro-o de muitas maneiras. Pediu-me que não traduza em inglês as palavras de amor que lhe digo em espanhol porque lhe parecem suspeitas. Estou sempre a lembrar-lhe que nunca ninguém o amou mais que eu, nem a mãe, e que se eu morrer ele acabará num lar para idosos, de maneira que mais vale que me dê mimos e me trate bem. Não é daqueles homens que nos cobrem de frases românticas, mas, se viveu tantos anos comigo sem me estrangular, também deve gostar um pouco de mim. Qual é o segredo de um bom casamento? Não sei. Todos os casais são diferentes. A nós o que nos une são uma maneira semelhante de ver o mundo, a camaradagem, a lealdade e o humor. Cuidamos um do outro. Temos o mesmo horário, às vezes usamos a mesma escova de dentes e também gostamos dos mesmos filmes. O Willie diz que quando estamos juntos a nossa energia se multiplica, que temos aquela «ligação espiritual» que sentiu quando me conheceu. Talvez. Eu gosto de dormir com ele.

Por causa das nossas dificuldades, decidimos fazer terapia individual. O Willie conseguiu um psiquiatra com quem se entendeu bem desde o princípio, um «urso» grande e barbudo que me pareceu meu inimigo declarado desde o início, mas que com o tempo veio a ter um papel fundamental nas nossas vidas. Não sei o que resolveu o Willie na terapia dele, mas suponho que o mais urgente fosse a sua relação com os filhos. Na minha, comecei a escavar na memória e a perceber que trazia comigo uma carga muito pesada. Tive de enfrentar silêncios antigos, admitir que o abandono do meu pai aos três anos de idade me marcara e que essa cicatriz ainda era visível, que isso determinou a minha posição feminista e a minha relação com os homens, do meu avô ao meu tio Ramón, contra quem sempre me rebelei, e até com o Nico, que tratava como a uma criança, e isto sem falar dos amantes e maridos, a quem nunca me entreguei por completo. Numa das sessões, o terapeuta do chá verde tentou hipno-tizar-me. Não conseguiu, mas pelo menos descontraiu-me e pude ver dentro do meu coração um enorme rochedo de granito negro. Soube então que a minha tarefa seria libertar-me disso; teria de o partir em pequenos pedaços, pouco a pouco.

Para me desfazer do obscuro rochedo, para além da terapia e das caminhadas no bosque diáfano das tuas cinzas, tive aulas de ioga e aumentei o número de sessões de acupunctura com o Dr. Shima, tanto pelo benefício da sua ciência como da sua presença. Repousando na marquesa com agulhas espetadas por toda a parte, meditava e evadia-me para outras dimensões. Procurava-te a ti, minha filha. Pensava na tua alma, presa num corpo imóvel durante aquele longo ano de 1992. Às vezes sentia umas garras na garganta e mal conseguia respirar, ou sentia-me esmagada pelo peso de um saco de areia no peito e enterrada numa sepultura, mas depressa me recordava de que devia dirigir a respiração para o sítio da dor, com calma, como se diz que se deve fazer durante um parto, e logo a angústia diminuía. Nessa altura visualizava uma escada que me permitia sair da sepultura e subir até à luz do dia, a céu aberto. O medo é inevitável, tenho de o aceitar, mas não posso permitir que me paralise. Uma vez disse — ou escrevi em qualquer sítio — que depois da tua morte já não tenho medo de nada, mas isso não é verdade, Paula. Receio perder ou ver sofrer as pessoas que amo, receio a deterioração da velhice e a crescente pobreza, violência e corrupção no mundo. Nestes anos sem ti aprendi a lidar com a tristeza, a torná-la minha aliada. Pouco a pouco, a tua ausência e outras perdas na minha vida vão-se convertendo numa doce nostalgia. E isso que pretendo com a minha prática espiritual vacilante: desfazer-me dos sentimentos negativos que me impedem de caminhar livremente. Quero transformar a raiva em energia criativa e a culpa numa aceitação bem-humorada das minhas neuras; quero expulsar de mim a arrogância e a vaidade. Não tenho ilusões, nunca alcançarei o desprendimento absoluto, a autêntica compaixão ou o estado de êxtase dos iluminados. Parece-me que não fui talhada para santa, mas posso aspirar a algumas migalhas: menos dependências, um pouco de carinho com os demais, a alegria de uma consciência tranquila.

E uma pena que não tenhas podido apreciar o Miki Shima durante os meses em que te visitava com frequência para te fazer acu-punctura e dar-te ervas chinesas. Ter-te-ias apaixonado por ele, como aconteceu comigo e com a minha mãe. Usa fatos de duque, camisas engomadas, botões-de-punho de ouro, gravatas de seda. Conheci-o com o cabelo preto, mas uns anos mais tarde apareceram-lhe alguns cabelos brancos, embora continue a não ter uma única ruga. Tem a pele rosada de uma criança, graças aos seus unguentos prodigiosos. Contou-me que os pais viveram juntos durante setenta anos, detestando-se sem sequer o dissimularem. Em casa, o marido não falava e a mulher falava sem parar para o aborrecer, mas ao mesmo tempo servia-o como uma esposa japonesa de outros tempos: preparava-lhe o banho, lavava-lhe as costas, dava-lhe a comida à boca, refrescava-o com o leque no Verão, «para que ele nunca pudesse dizer que ela faltara às suas obrigações», da mesma maneira que ele pagava as contas e dormia todas as noites em casa, «para que ela não dissesse que ele era um desalmado». Um dia a senhora morreu, apesar de ele ser muito mais velho e de na verdade merecer um cancro do pulmão, já que fumava como uma locomotiva. Ela, que era forte e incansável no seu ódio, foi desta para melhor em dois minutos com um ataque de coração. O pai de Miki nunca tinha fervido água para fazer um chá, para não falar em lavar um par de cuecas ou em enrolar a esteira onde dormia. Os fdhos pensaram que ia morrer de inanição, mas o Miki receitou-lhe umas ervas e em breve começou a engordar, a andar mais direito, a rir-se e a conversar pela primeira vez em muitos anos. Agora levanta-se ao amanhecer, come um pouco de arroz com tofu e as famosas ervas, medita, entoa cânticos, faz exercícios de tai chi e vai à pesca de trutas com três maços de cigarros no bolso. A caminhada até ao rio leva uma ou duas horas. Volta a casa com um peixe que ele mesmo cozinha, condimentado com os pós mágicos do Miki, e acaba o dia com um banho muito quente e outra cerimónia para honrar os antepassados e, de caminho, insultar a memória da mulher. «Tem oitenta e nove anos e está como um garoto», contou-me o Miki. Achei que se esses misteriosos remédios chineses haviam devolvido a juventude ao avô chinês também podiam tirar-me do coração aquele rochedo de pesadelo.

 

os psicólogos — havia vários à nossa disposição — aconselhou-nos, a Willie e a mim, a partilhar actividades divertidas, e não apenas obrigações. Precisávamos de mais frivolidades e distracções nas nossas vidas. Propus ao meu marido que nos inscrevêssemos em aulas de dança de salão, porque tínhamos visto um filme australiano sobre o assunto, Strictly Ballroom, e eu imaginava os dois a dançar iluminados por lustres de cristal, ele de smoking, com sapatos de duas cores, e eu com um vestido de lantejoulas e plumas de avestruz, ambos aéreos, graciosos, a mover-nos ao mesmo ritmo, em perfeita harmonia, como sempre sonhamos com o nosso parceiro. Quando nos conhecemos, naquele dia inesquecível de Outubro de 1987, o Willie levou-me a dançar a um hotel de São Francisco, o que me deu oportunidade de aproximar o meu nariz do peito dele e de o cheirar, e foi por isso que me apaixonei. O Willie tem o cheiro de uma criança saudável. No entanto, a única coisa que recorda desse dia é que eu o empurrava. «Isto vai ser um problema entre nós?», parece que me perguntou. E assegura que lhe respondi com uma vozinha submissa: «Claro que não!» Mas já lá iam vários anos desde essa altura.

Decidimos começar com aulas particulares, para não fazermos figuras tristes à frente dos alunos mais avançados. Melhor dizendo, eu é que decidi isto, porque a verdade é que o Willie é um bom bailarino e na sua juventude era muito solicitado e ganhava concursos de danças da moda; já eu tenho a graça de um autocarro na pista de dança. O salão da escola tinha espelhos do chão até ao tecto nas  

quatro paredes e a professora era uma escandinava de dezanove anos com as pernas tão compridas como a minha estatura completa, enfiadas em meias pretas com costura e com sandálias de saltos de agulha. Anunciou que começaríamos por dançar salsa. Indicou-me uma cadeira, deixou-se envolver pelos braços do Willie e esperou o compasso exacto da música para se lançar à pista.

é o homem que conduz — foi a sua primeira lição.

Porquê? — perguntei-lhe eu.

Não sei, mas é assim — respondeu.

Ah, ah! — festejou o Willie triunfantemente.

Não me parece justo — insisti.

O que é que não é justo? — perguntou a escandinava.

Acho que devia ser à vez. Uma vez manda o Willie e outra vez mando eu.

E sempre o homem que guia! — retorquiu a malcriada.

Ela e o meu marido iam deslizando ao som da música latina, entre os enormes espelhos, que multiplicavam até ao infinito os seus corpos entrelaçados, as longas pernas com meias pretas e o sorriso idiota do Willie, enquanto eu ia resmungando na minha cadeira.

A saída das aulas, no carro, tivemos uma discussão que por pouco não acabou ao murro. Segundo o Willie, nem sequer reparara nas pernas nem nas mamas da professora, isso eram tudo ideias minhas. «Valha-me Deus! Como é possível que esta mulher seja tão tola!», exclamou. O facto de eu ter passado uma hora na cadeira enquanto ele dançava era lógico, uma vez que é o homem que conduz, e depois de aprender poderia conduzir-me pela pista com a perfeição das garças na dança nupcial. Não foi exactamente assim que o disse, mas a mim pareceu-me que estava a troçar. O psicólogo opinou que não

devíamos dar-nos por vencidos, que a dança de salão era uma disciplina eficaz do corpo e da alma. Mas que diabo podia ele saber do assunto, um budista bebedor de chá verde que se calhar nunca dansara na vida?! Mesmo assim, lá acabámos por ir a uma segunda e a terceira aulas antes que eu perdesse a paciência e desse um encontrão à professora. Nunca me tinha sentido tão humilhada! O resultado foi que perdemos o pouco que sabíamos de dança e que desde essa altura não voltámos a dançar juntos uma única vez. Conto-te este episódio porque é uma alegoria dos nossos feitios, que nos descreve da cabeça aos pés.

A Célia, o Nico e os miúdos mudaram-se para a nova casa e o irmão da Célia foi viver com eles. Era um jovem alto e agradável, embora bastante mimado, que andava em busca de um destino e pensava instalar-se nos Estados Unidos. Acho que também não tinha uma relação muito boa com a família.

Entretanto, a publicação de Paula trouxe-me muitos prémios imerecidos, doutoramentos, nomeações para algumas academias e até a entrega das chaves de uma cidade. As togas e os capelos acumulam-se num baú. A Andrea usava-as para se disfarçar. Entrara na «fase verde» e tinha um boneco que se chamava Salve-o-Atum. Por sorte, nunca perdi de vista uma coisa que me disse Cármen Balcells: «O prémio distingue mais quem o concede que quem o recebe, por isso é melhor não deixares que te suba à cabeça.» Isso era impossível. Os meus netos encarregavam-se de me manter humilde e o Willie recordava-me que dormir sobre os louros era a melhor forma de os amarfanhar.

Foi nessa época que o Willie, a Tabra e eu fomos ao Chile, à estreia de A Casa dos Espíritos. Ainda havia muitos simpatizantes de Pi-nochet sem vergonha de o admitir. Agora já são menos, porque o general perdeu prestígio entre os seus partidários quando veio a público a história dos roubos, da fuga aos impostos e da corrupção. Os mesmos que passaram por alto os casos de tortura e os assassinatos não lhe perdoaram os milhões surripiados. Já tinham passado quase seis anos desde que o ditador fora derrotado num plebiscito, mas os militares, a imprensa e o sistema judicial tratavam-no com imensa cautela. A direita dominava o Congresso e o país regia-se pela Constituição criada por Pinochet, que contava com imunidade como senador vitalício e com a protecção de uma amnistia. A democracia estava condicionada e havia um acordo social e político em relação a não provocar os militares. Poucos anos mais tarde, em 1998, prenderam Pinochet em Inglaterra, onde fora cobrar comissões pela venda de armas, fazer exames médicos e tomar chá às cinco da tarde com a sua amiga Margaret Thatcher, a ex-primeira-ministra. Saiu na imprensa de todo o mundo acusado de crimes contra a humanidade; nessa altura o edifício legal que construíra para se proteger ruiu e por fim os Chilenos atreveram-se a sair à rua para se manifestarem contra ele.

O filme caiu como uma chapada na extrema-direita, mas foi recebido com entusiasmo pela maioria, em particular pelos jovens, que haviam crescido sob a mais estrita censura e queriam saber mais sobre o que acontecera no Chile nos anos 70 e 80. Na estreia, recordo que um senador confesso de direita se levantou, furioso, e saiu ruidosamente da sala, dizendo para os presentes que o filme era um chorrilho de mentiras contra o benemérito da pátria que fora o nosso general Pinochet. A imprensa perguntou-me o que pensava eu do caso. «Toda a gente sabe que o homem é tonto», respondi de boa-fé, porque já o ouvira dizer muitas vezes. Lamento ter esquecido o nome do homem... Apesar dos incidentes iniciais, o filme teve um grande êxito e dez anos mais tarde continuava a ser um dos preferidos na televisão e em vídeo.

A Tabra, que nunca estivera em Santiago do Chile, embora tivesse percorrido os lugares mais recônditos do planeta, ficou com muito boa impressão da cidade. Não sei do que estava à espera, mas encontrou uma cidade de aspecto europeu vigiada por montanhas magníficas, gente hospitaleira e comida deliciosa. Ficámos alojados numa suite do hotel mais luxuoso, onde todas as noites nos deixavam uma escultura de chocolate com temas ligados à nossa cultura, como o cacique Caupolicán armado com uma lança e seguido por dois ou três dos seus guerreiros mapuche. A Tabra ia consumindo Caupolicán com grande esforço, na esperança de o acabar de uma vez por todas, mas poucas horas depois ele era substituído por mais um quilo de chocolate: uma carroça com dois bois ou seis dos nossos vaqueiros, os famosos guasos, a cavalo com a bandeira chilena. E ela, que em pequena aprendera a não deixar nada no prato, atacava-os com um suspiro, até que foi vencida por uma réplica do Aconcagua, o pico mais alto da cordilheira dos Andes, em chocolate maciço, tão contundente como o obscuro penhasco que, segundo o meu psicólogo, eu tinha plantado no meio do peito.

 

Willie e eu apercebemo-nos com assombro de que estávamos juntos há nove anos; agora caminhamos com passo muito mais firme. Segundo diz, sentiu desde o primeiro momento que era a minha alma gémea e aceitou-me completamente, mas não foi esse o meu caso. Ainda hoje, tantos anos mais tarde, me sinto maravilhada por nos termos encontrado na vastidão do mundo, por nos termos sentido atraídos e vencido os obstáculos, que às vezes pareciam intransponíveis, a que formássemos um casal.

Os miúdos, esses «loucos baixinhos», como os definiu o humorista Gila, eram o que havia de mais divertido nas nossas vidas. A Sabrina expulsara as sombras que haviam turvado o seu nascimento e o dom que lhe deram as fadas para compensar as suas limitações físicas tornara-se evidente: uma força de carácter capaz de vencer obstáculos que teriam atemorizado um samurai. O que as outras crianças faziam sem esforço, como andar ou levar uma colher à boca, a ela exigia-lhe uma tenacidade invencível, mas acabava sempre por consegui-lo. Coxeava, as pernas respondiam-lhe mal, mas ninguém duvidava de que no futuro haveria de vir a andar, tal como aprendeu a nadar. Alem disso era capaz de se pendurar nas árvores e de andar de bicicleta com uma só perna. Tal como a sua avó materna, a primeira mulher do Willie, é uma atleta extraordinária; a parte superior do corpo é tão forte e ágil que agora joga basquetebol numa cadeira de rodas. Na altura era uma menina delicada e muito bela, de uma cor de caramelo tostado, com o perfil da famosa rainha Nefertiti. Aprendeu a falar antes de qualquer outra criança e nunca mostrou o menor traço de timidez, talvez porque se tenha habituado a viver rodeada de gente.

O Alejandro saiu muito parecido com o Nico de feitio e com a mãe no aspecto físico. Tal como o pai, tinha uma mente curiosa, e começou a compreender os conceitos matemáticos antes de conseguir pronunciar todas as consoantes do alfabeto. Era um menino tão bonito que todos lhe atiravam piropos na rua quando passávamos. Num dia 2 de Abril, recordo bem a data, estávamos sozinhos em casa e ele apareceu assustado na cozinha, onde eu estava a fazer uma sopa, agarrou-se às minhas pernas e disse: «Está alguém nas escadas.» Fomos os dois ver o que se passava, percorremos a casa sem ver ninguém e quando regressámos ao segundo piso, onde estava a cozinha, plantou-se, pálido, junto das escadas.

Ali!

Que se passa, Alejandro? — perguntei-lhe. A única coisa que eu via eram os degraus de ladrilhos.

Tem o cabelo comprido — disse, e escondeu a cara na minha saia.

Deve ser a tua tia Paula. Não tenhas medo dela, só veio cumprimentar-nos.

Ela está morta!

É o espírito dela, Alejandro.

Tu disseste-me que ela estava no bosque! Como é que vei para aqui?

De táxi.

Suponho que nessa altura já te tivesses dissipado no ar, porque o miúdo subiu as escadas pela minha mão. Penso que a lenda do teu fantasma começou quando a minha mãe, que nos vinha visitar uma ou duas vezes por ano e ficava várias semanas, porque a viagem entre Santiago e São Francisco é uma viagem de Marco Polo, que não pode empreender-se com ligeireza, começou a dizer que ouvia ruídos durante a noite, como um arrastar de móveis. Todos os tínhamos ouvido e arranjámos várias explicações para eles: entraram veados em casa e andam no terraço, são as canalizações a contrair-se com o frio ou as madeiras secas da casa a estalar. A minha amiga Célia Correas Zapata, professora de Literatura, que estudara os meus romances nas suas aulas durante mais de dez anos na Universidade de San José e estava a escrever um livro sobre o meu trabalho Vida y espíritu, dormiu uma vez no teu antigo quarto e acordou à meia-noite com um intenso aroma a jasmins, apesar de estarmos em pleno Inverno. Também falou dos ruídos, mas ninguém lhes deu grande importância, até que um jornalista alemão, que ficou connosco para fazer uma longa entrevista, jurou que vira uma estante afastar-se quase meio metro da parede, deslizando sem ruído e sem alterar a posição dos livros. Não foi uma noite de terramoto e nessa altura não se tratava de percepções de mulheres latinas, mas do testemunho de um jovem alemão, cuja palavra tinha peso atómico. Aceitámos a ideia de que de vez em quando nos visitavas, embora essa possibilidade deixasse a senhora que limpava a casa muito nervosa. Quando soube o que acontecera com o Alejandro, o Nico disse que o garoto devia ter-nos ouvido falar de alguma coisa e que o resto fora produto da sua imaginação infantil. O meu filho tem sempre uma explicação racional para dar cabo das minhas melhores histórias.

A Andrea acabou por se habituar às suas lentes e decidimos tirar-lhe os elásticos e os ganchos, mas continuou tão desastrada como antes. Andava um pouco perdida no mundo, não era capaz de subir escadas rolantes nem de usar portas giratórias. No fim de uma representação escolar, em que apareceu vestida de havaiana com um uku-lele, fez uma reverência profunda no palco, mas com o traseiro voltado para o público. A irreverente saudação foi recebida com uma gargalhada unânime, perante a fúria da família e o horror da minha neta, que esteve uma semana sem sair de casa com vergonha. A Andrea tinha um rosto estranho de bichinho de pelúcia, acentuado pelo Seu cabelo eriçado. Andava sempre mascarada. Passou um ano inteiro vestida com uma das minhas camisas de noite — cor-de-rosa, como e evidente —, e há uma fotografia dela no jardim infantil com uma estola de pele, um laço de embruliivar prendas no peito, luvas de noiva e duas penas de avestruz na cabeça. Falava sozinha porque ouvia as vozes das personagens dos seus contos, que não a deixavam em paz, e assustava-se com a sua própria imaginação. Em casa havia um espelho de parede ao fundo de um corredor e pedia-me muitas vezes que a acompanhasse «ao caminho do espelho». Quando nos aproximávamos, os seus passos tornavam-se mais hesitantes porque havia um dragão à espreita, mas precisamente quando a fera se preparava para arremeter contra nós a Andrea voltava de outra dimensão para a realidade. «É só um espelho, não há nenhum monstro», dizia-me sem grande convicção. Um instante mais tarde já estava de novo no conto, caminhando agarrada a mim pela estrada da ilusão. «Esta menina ou dá em doida ou em escritora de romances», decidiu a mãe. Eu era assim com a idade dela.

A Nicole cresceu assim que começou a andar, e deixou de ser tesa e quadrada como um inuit para passar a flutuar com uma graça vaporosa. Tinha uma mente aguda, boa memória, um sentido de orientação que lhe permitia saber sempre onde se encontrava e era capaz de comover o conde Drácula com os seus olhos grandes e o seu sorriso de coelho. O Willie não escapava ao seu poder de sedução. A Nicole tinha a mania de se sentar ao lado dele quando via as notícias na televisão, mas ao fim de trinta segundos convencia-o de que era melhor pôr os desenhos animados. O Willie ia para outra divisão ver o seu programa, mas ela, que detestava ficar sozinha, ia atrás dele. Isto repetia-se várias vezes durante a tarde. Uma vez viu na televisão um elefante macho montado sobre uma fêmea.

Que estão a fazer, Willie?

Estão a acasalar, Nicole.

O quê?

Estão a fazer um bebé.

Não, Willie, não estás a perceber. Estão a andar à bulha.

Está bem, Nicole, estão a andar à bulha. Agora posso ver as notícias?

Nessa altura apareceu um elefante recém-nascido. A Nicole deu um grito, foi a correr olhar mais de perto, com o nariz colado ao ecrã, e por fim voltou-se para o Willie de mãos na anca:

— É o que acontece por andarem à bulha, Willie!

A pequena teve de ir para o jardim infantil quando ainda andava de fraldas, porque todos os adultos da família trabalhavam e nenhum podia cuidar dela. Ao contrário da irmã, que arrastava sempre atrás de si uma maleta com os seus tesouros mais preciosos — uma infinidade de pequenos objectos de valor inestimável, cujo inventário mantinha na memória com grande rigor —, a Nicole carecia por completo do sentido da propriedade. Era livre e desprendida como um passarinho.

 

Tabra, a aventureira da tribo, fazia várias viagens por ano a destinos longínquos, especialmente aos que o Departamento de Estado considerava desaconselháveis para os Americanos, ou porque fossem perigosos, como o Congo, ou por se encontrarem no outro extremo do leque político, como Cuba. Já percorrera o mundo em várias direcções, em condições primitivas, com modéstia de peregrina e sozinha, até que conheceu um homem disposto a acompanhá-la. Como perdi a conta aos pretendentes da minha amiga e algumas histórias começam a confundir-se na minha memória, por razões de prudência elementar sou obrigada a mudar-lhe o nome. Digamos que se chamava Alfredo López Lagarto Emplumado. Era muito esperto e tão atraente que não podia impedir-se de se contemplar em qualquer espelho ou vidro que houvesse ao seu alcance. De pele cor de azeitona, corpo atlético, era um prazer para os olhos, sobretudo para os da Tabra, que ficava a olhá-lo muda de admiração quando ele falava de si mesmo. O seu pai era um mexicano de Cholula e a mãe uma índia comanche do Texas, o que lhe assegurou uma firme cabeleira negra, que usava presa num rabo-de-cavalo, a menos que a Tabra lhe fizesse tranças para a adornar com contas e plumas. Sempre quisera viajar, mas nunca tinha podido fazê-lo porque os seus limitados rendimentos não o permitiam. O Lagarto Emplumado preparara-se toda a vida para uma missão secreta, de que, no entanto, falava a qualquer pessoa disposta a dar-lhe ouvidos: resgatar a coroa de Montezuma de um museu da Áustria e devolvê-la aos Astecas, seus donos legítimos.

Tinha uma camisola preta com o lema: coroa ou morte, viva montezuma. O Willie quis saber se os Astecas tinham dado mostras de apoiar a sua iniciativa, e respondeu-nos que não, porque ainda era muito secreta. A coroa, feita de quatrocentas plumas de quetzal, tinha mais de cinco séculos e possivelmente estaria um tanto roída das traças. Num jantar em família perguntámos-lhe como pensava trazê-la e não voltou a nossa casa; talvez tenha pensado que estávamos a troçar dele. A Tabra explicou-nos que os imperialistas se apoderam dos tesouros culturais das outras nações, como aconteceu com os Britânicos, que roubaram o conteúdo dos túmulos egípcios e o levaram para Londres. Por seu lado, o Lagarto admirava a tatuagem de Quetzalcóatl que ela tinha na barriga da perna direita. Não podia ser por acaso que a Tabra tinha tatuado o deus da América Central, a serpente emplumada, que inspirara o seu próprio nome.

Por exigência do Lagarto, que sentia o apelo do deserto, como bom comanche, fizeram uma excursão ao vale da Morte. Eu avisei a Tabra de que não era boa ideia, de que até o nome era de mau agoiro. Ela conduziu dias a fio, pôs a trouxa e a tenda às costas e caminhou muitas milhas atrás do seu herói, desidratada e com uma insolação, enquanto ele reunia pedras sagradas para os seus rituais. A minha amiga evitou queixar-se; não queria que ele lhe atirasse à cara a sua má condição física nem a idade (ela era doze anos mais velha que ele). Por fim o Lagarto Emplumado encontrou o lugar perfeito para acamparem. A Tabra, vermelha como uma beterraba e com a língua inchada, montou a tenda e deixou-se cair sobre um saco-cama, a tremer de febre. O campeão da causa indígena sacudiu-a para que se levantasse e lhe preparasse uns ovos. «Agua, água», balbuclou a Tabra. «A minha mãe, mesmo que estivesse a morrer, não deixava de preparar os feijões ao meu pai», respondeu, embezerrado, o seu Lagarto.

Apesar da experiência no vale da Morte, onde quase deixou os ossos calcinados, a Tabra convidou-o para ir com ela a Samatra e à nova Guiné, onde iria em busca de inspiração para as suas jóias étnicas e de uma cabeça jivarizada para a sua colecção de objectos raros.

O Lagarto Emplumado, que se preocupava muito com a sua integridade física, levava uma pesada mala com loções e unguentos, que não partilhava com ninguém, e um calhamaço sobre todas as doenças e acidentes de que pode sofrer um viajante no nosso planeta, do beribéri até ao ataque de uma píton. Numa aldeia da Nova Guiné a Tabra começou a ter tosse; estava pálida e cansada, talvez uma sequela da cruel operação aos seios.

Não me toques! Pode ser contagioso. Talvez tenhas uma doença que ataca as pessoas que comem os cérebros dos antepassados — disse o Lagarto Emplumado, alarmadíssimo, depois de consultar a sua enciclopédia de desgraças.

Quais antepassados?

Qualquer antepassado. Não têm de ser os nossos. Esta gente come os miolos dos mortos.

Não comem o cérebro inteiro, Lagarto, só um bocadinho, em sinal de respeito. Mas duvido que nós tenhamos comido isso.

Nunca se sabe o que vem num prato. Além disso, comemos carne de porco, e os porcos de Bukatingi alimentam-se de tudo o que apanham. Não os viste a esburacar o chão no cemitério?

A relação da Tabra com Alfredo López Lagarto Emplumado alterou-se temporariamente quando ele decidiu voltar para uma antiga amante que o convenceu de que apenas um coração puro poderia resgatar a coroa de Montezuma, e, enquanto estivesse com a Tabra, o seu estaria contaminado. «Porque é ela mais pura do que tu?», perguntei à minha amiga, que contribuíra com os fundos necessários para a epopeia da coroa. «Não te preocupes. Ele vai acabar por voltar para ti», consolou-a o Willie. «Deus não o permita», pensei, disposta a esquecer o maldito ingrato. Mas quando vi os olhos melancólicos da Tabra preferi não dizer nada. Mal se apercebeu de que a outra mulher, por pura que fosse, não estava na disposição de o financiar, o Lagarto voltou. Vinha com a ideia de que poderiam formar um triângulo amoroso, mas ela nunca teria aceitado uma solução tao mormónica.

Mais ou menos por essa altura, o ex-marido da Tabra, o pregador de Samoa, morreu. Chegara a pesar cento e cinquenta quilos e tinha tensão alta e diabetes galopante. Cortaram-lhe um pé e meses mais tarde tiveram de lhe amputar a perna por cima do joelho. A Tabra contou-me o que sofrera com o seu casamento. Sei que teve de fazer terapia durante vários anos para superar o trauma deixado pela violência daquele homem, que a seduziu quando ainda era uma criança, a convenceu a fugir com ele, lhe bateu brutalmente desde o primeiro dia, a manteve aterrorizada anos a fio e que depois do divórcio nunca mais quis saber do filho. A Tabra criou o Tongi sozinha, sem nenhum tipo de ajuda do pai do rapaz. Mesmo assim, quando lhe perguntei se estava satisfeita por ele ter morrido, olhou para mim surpreendida. «Porque havia de estar satisfeita? O Tongi está triste, e além disso deixou muitos outros filhos.»

 

Em comparação com o Lagarto Emplumado, o meu companheiro de estrada, o Willie, é uma verdadeira mãe: cuida de mim. E comparadas com as expedições aos confins do planeta da Tabra as minhas pequenas viagens de trabalho eram insignificantes, mas mesmo assim deixavam-me extenuada. Tinha de andar constantemente de avião, onde me defendia com grande dificuldade dos vírus e das bactérias dos outros passageiros, passava semanas fora de casa e dias inteiros a preparar discursos. Não sei como arranjava tempo para escrever. Aprendi a falar em público sem medo, a não me perder nos aeroportos, a sobreviver com uma pequena mala de viagem, a mandar parar um táxi com um assobio e a sorrir às pessoas que me cumprimentavam, mesmo que me doesse a barriga e os sapatos me estivessem apertados. Não me lembro dos sítios onde estive, mas pouco importa. Sei que percorri a Europa, a Austrália, a Nova Zelândia, a América Latina, partes de áfrica e da Ásia e os Estados Unidos, à excepção do Dakota do Norte. Nos aviões escrevia à mão à minha mãe para lhe contar as minhas aventuras, mas ao ler as cartas, dez anos mais tarde, tenho a impressão de que tudo aquilo aconteceu a outra pessoa.

A única recordação clara que me ficou foi a de um episódio em Nova Iorque, em pleno Inverno, que havia de fazer-me sofrer até que mais tarde consegui exorcizá-la, depois de uma viagem à índia. O Willie viera ter comigo para passar o fim-de-semana e tínhamos ido visitar o Jason e um grupo de colegas dele da universidade, jovens intelectuais com casacos de cabedal. Durante esses meses em que estivera separado da Sally não se voltou a falar de casamento; tínhamos a impressão de que o namoro havia acabado, porque ela própria o sugeriu uma ou duas vezes, apesar de o Jason o negar por completo. De acordo com ele, casariam assim que acabasse o curso. Numa visita que o Ernesto nos fez na Califórnia, soubemos que teve um breve mas intenso encontro amoroso com a Sally, por isso partimos do princípio de que ela estava livre de compromissos. O Jason só soube o que aconteceu muitos anos mais tarde. Mas nessa altura já se haviam desencadeado os acontecimentos que demoliram a sua fé na nossa família, que ele tanto idealizara.

O Willie e eu tínhamo-nos despedido, emocionados, daquele filho, pensando no muito que mudara. Quando vivia connosco, passava a noite a ler ou na borga com os amigos, levantava-se às quatro da tarde, envolto numa manta asquerosa, e instalava-se no terraço a fumar, a beber cerveja e a falar ao telefone até que eu o empurrava para as aulas à cacetada. Mas então estava a caminho de se tornar um escritor, como sempre soubemos que acabaria por acontecer, porque tem talento. Com o Willie, recordava aquela etapa do passado, enquanto passeávamos pela Quinta Avenida, no meio do barulho e das multidões, do trânsito, do cimento e da geada, quando em frente de uma montra que exibia uma colecção de jóias antigas da Rússia imperial vimos uma mulher encolhida no chão, a tremer de frio. Era afro-americana, estava imunda, envolta em trapos e tapada com um saco de plástico preto do lixo, a chorar. As pessoas passavam ao lado dela a correr, sem a verem. O seu choro era tão desesperado que para mim o mundo ficou imobilizado, como numa fotografia; até o ar se deteve por um instante na dor insondável daquela infeliz. Agachei-me ao lado dela, dei-lhe todo o dinheiro que trazia comigo, embora estivesse certa de que em breve um chulo viria tirar-lho, e procurei conversar com ela, mas não falava inglês, ou estava para lá das palavras. Quem seria? Como teria chegado àquele estado de abandono? talvez viesse de uma ilha das Caraíbas ou da costa africana e as ondas a tivessem deposto na Quinta Avenida por acaso, como os meteoritos que caem na Terra vindos de outra dimensão. Deixei-me ficar com o angustiante sentimento de culpa de que não pude ou não quis ajudá-la. Continuámos o nosso caminho, apressados, com frio. Uns quarteirões mais à frente metemo-nos no teatro e a mulher ficou para trás, perdida na noite. Na altura não imaginei que não conseguiria esquecê-la, que o seu choro seria um chamamento implacável, até que alguns anos mais tarde a vida me desse uma oportunidade de lhe responder.

Quando conseguia escapar ao trabalho, o Willie apanhava o avião e ia encontrar-se comigo em diferentes pontos do país para passarmos uma ou duas noites juntos. O trabalho no escritório prendia-o, e dava-lhe mais dissabores que satisfações. Os clientes eram gente pobre que havia sofrido acidentes de trabalho. A medida que o número de imigrantes do México e da América Central ia aumentando, ia aumentando também a xenofobia na Califórnia. O Willie cobrava uma percentagem pela compensação que negociava para os seus clientes ou que ganhava num julgamento, mas essas quantias eram cada vez menores e mais difíceis de obter. Por sorte, não pagava renda, porque éramos donos do antigo bordel de Sausalito, onde tinha o seu escritório. O Tong, o seu contabilista, fazia verdadeiros malabarismos para conseguir pagar os salários, as contas, os impostos, os seguros e os encargos bancários. O nobre chinês protegia o Willie como a um filho tonto e poupava a tal ponto que a sua sovi-nice alcançou níveis lendários. A Célia assegurava-nos que durante a noite, quando saíamos do escritório, o Tong tirava os copos de papel dos caixotes do lixo, os lavava e voltava a pô-los na cozinha. A verdade é que sem o olhar vigilante do Tong e sem o seu ábaco de contabilista o Willie teria acabado por falir. O Tong tinha quase cinquenta anos, mas parecia um jovem estudante, magro, baixo, com cabelo forte e sempre de calças de ganga e sapatilhas. Não falava com a mulher há doze anos, embora vivessem sob o mesmo tecto, e também não se divorciavam, para não terem de dividir as poupanças de ambos e por medo da mãe dele, uma velhinha minúscula e feroz que vivia há trinta anos na Califórnia convencida de que se encontrava no Sul da China. A senhora não falava uma palavra de inglês, fazia todas as compras nos mercados de Chinatown, ouvia a rádio em canto-nês e lia o jornal em mandarim de São Francisco. O Tong e eu tínhamos em comum o afecto pelo Willie, o que nos unia, embora nenhum dos dois percebesse o sotaque do outro. Ao princípio, quando comecei a viver com o Willie, o Tong tinha por mim uma desconfiança atávica, que manifestava sempre que a ocasião se lhe apresentava.

O que tem o teu contabilista contra mim? — perguntei um dia a Willie.

Nada de especial. Todas as mulheres que tive me saíram caras, e como é ele que toma conta das minhas finanças, preferia que eu vivesse em rigoroso celibato — informou-me.

Explica-lhe que me sustento a mim mesma desde os dezassete anos.

Deve ter-lho dito, porque o Tong começou a olhar-me com algum respeito. Um sábado encontrou-me no escritório a esfregar as casas de banho e a limpar o pó com o aspirador. Nessa altura o respeito transformou-se em admiração dissimulada.

—        Case-se com esta. Ela limpa — aconselhou ao Willie, no seu inglês limitado. Foi o primeiro a felicitar-nos quando anunciámos que íamos casar-nos.

Este longo amor com o Willie foi uma dádiva dos anos maduros da minha existência. Quando me divorciei do teu pai preparei-me para continuar a minha vida sozinha, porque pensei que seria quase impossível encontrar outro companheiro. Sou mandona, independente, tribal e tenho um trabalho pouco comum, que me obriga a Passar metade do meu tempo sozinha, calada e escondida. Poucos homens aguentam tanto! Não quero pecar por falsa modéstia; também tenho algumas virtudes. Recordas-te de alguma, minha filha? Deixa-me pensar... Por exemplo, não exijo muito, sou saudável e carinhosa. Tu dizias que sou divertida e que comigo ninguém se aborrece, mas isso era dantes. Desde que partiste acabou-se a vontade de ser a alma da festa. Tornei-me introvertida, não me reconhecerias.


O que foi um verdadeiro milagre foi ter encontrado — onde e quando menos o esperava — o único homem que poderia suportar-me. Foi sincronia. Sorte. O destino, diria a minha avó. O Willie pensa que nos amámos em vidas anteriores e que continuaremos a fazê-lo em vidas futuras, mas já sabes como me assustam o karma e a reencarnação. Prefiro limitar esta experiência amorosa a uma só vida, o que já me parece bastante. O Willie continua a parecer-me tão estrangeiro! De manhã, quando se está a arranjar e o vejo ao espelho, costumo perguntar a mim mesma quem diabo é aquele homem demasiado branco, forte e norte-americano e porque nos encontramos na mesma casa de banho. Quando nos conhecemos tínhamos muito pouco em comum, vínhamos de meios muito diferentes e tivemos de ir inventando uma língua — «espanglês» — para nos entendermos. Separavam-nos o passado, a cultura e os costumes, também os problemas inevitáveis dos filhos numa família artificialmente ligada, mas às cotoveladas lá fomos abrindo o espaço indispensável para o amor. É verdade que para me instalar com ele nos Estados Unidos deixei quase tudo o que tinha e me adaptei como pude à desordem de batalha da sua vida, mas ele também mudou muito e fez muitas concessões para ficarmos juntos. Adoptou a minha família desde o princípio, respeitou o meu trabalho, acompanhou-me no que pôde, apoiou-me e protegeu-me até de mim mesma, não me critica, troça carinhosamente das minhas manias, não se deixa atropelar, não compete comigo e até nas nossas zangas me tratou com nobreza. O Willie defende o seu território sem espavento; diz que traçou um pequeno círculo de giz dentro do qual está a salvo de mim e da tribo: há que ter cuidado para não o violar. Sob a sua aparência rude há uma imensa doçura escondida; é um sentimental incurável. Sem ele, eu não poderia escrever tanto nem com tanta tranquilidade, porque e ele que se ocupa de tudo o que a mim me assusta, dos meus contratos e da nossa vida social até ao funcionamento das mais misteriosas máquinas domésticas. Apesar de ainda me surpreender vê-lo ao meu lado, habituei-me à sua enorme presença e já não poderia viver sem ele. O Willie enche a casa, enche a minha vida.

 

o Verão de 1996, na cidade de Oklahoma, um racista desequilibrado utilizou um camião carregado com mil quilos de explosivos para fazer ir pelos ares um edifício federal. Houve quinhentos feridos e cento e sessenta e oito mortos, entre os quais várias crianças. Uma mulher ficou presa debaixo de uma massa de cimento e tiveram de lhe amputar uma perna sem anestesia para a salvar. Este acontecimento levou a Célia a lamentar-se três dias seguidos, a dizer que mais valia que a infeliz tivesse morrido, já que na tragédia também perdeu a mãe e os dois filhos pequenos. A sua reacção foi semelhante à que lhe provocavam outras más notícias da imprensa; não tinha defesas contra o mundo exterior. Não consegui adivinhar o que se passava com ela, apesar da nossa grande cumplicidade. Pensei que a conhecia melhor do que ela se conhecia a si mesma, mas havia muito na alma da minha nora que me escapava, como viria a perceber algumas semanas mais tarde.

Eu e o Willie decidimos que estava na altura de tirarmos umas renas. Andávamos cansados e eu não conseguia libertar-me do luto, embora já tivessem passado quase quatro anos desde a tua morte e três desde o desaparecimento da Jennifer. Ainda não sabia que a tristeza nunca desaparece completamente, que fica debaixo da nossa pele! sem ela, hoje não me reconheceria se me visse ao espelho. Desde que terminara Paula não tinha voltado a escrever. Há anos que acarinhava a ideia de escrever um romance sobre a febre do ouro na Califórnia, passado em meados do século xix, mas não tinha coragem para empreender um trabalho de tão grande fôlego. Pouca gente desconfiava que era esse o meu estado de espírito, porque mantinha a actividade de sempre, mas havia um gemido na minha alma. Ganhei gosto pela solidão; só queria estar com a família, as pessoas incomodavam-me, os amigos reduziram-se a três ou quatro. Estava gasta. Também não queria continuar a fazer viagens de promoção, em que explicava o que já estava dito nos livros. Precisava de silêncio, mas tinha cada vez mais dificuldade em consegui-lo. Chegavam jornalistas vindos de longe que enchiam a nossa casa de luzes e de câmaras. Um dia apareceram uns turistas japoneses que se puseram a observar a nossa casa como se fosse um monumento, precisamente quando chegava uma equipa da Europa que queria fotografar-me dentro de uma enorme jaula com uma majestosa catatua branca. O passaroco não parecia amigável e tinha umas garras de condor. Vinha com o tratador, que tinha a obrigação de o controlar, mas cagou-me os móveis todos e dentro da jaula por pouco não me arrancou um olho. No entanto, não podia queixar-me: tinha um público carinhoso e os meus livros circulavam por toda a parte. A tristeza manifestava-se nas noites sem dormir, na roupa escura, no desejo de viver numa gruta de anacoreta e na falta de inspiração. Invocava as musas em vão. Até a musa mais maltrapilha me abandonara. Para uma pessoa que vive para escrever e do que escreve, a secura interior é aterradora. Um dia estava na Book Passage a perder tempo a beber chávenas e mais chávenas de chá quando chegou Ann Lamott, uma escritora americana muito apreciada pelas suas histórias cheias de amor, de profundidade e de fé no divino e no humano. Contei-lhe que estava bloqueada e respondeu-me que isso do «bloqueio do escritor» são tretas, que o que acontece é que por vezes o poço está vazio e é preciso enchê-lo. A ideia de que o meu poço de histórias e o desejo de as contar estivesse a secar encheu-me de pânico, porque ninguém me daria um emprego onde quer que fosse e eu tinha de ajudar a sustentar a minha família. O Nico trabalhava como engenheiro informático noutra cidade, fazia mais de duas horas de auto-estrada por dia, a Célia trabalhava por três pessoas no meu escritório, mas não ganhavam o suficiente para cobrir todos os seus gastos; vivemos numa das zonas mais caras dos Estados Unidos. Foi então que pensei na minha formação de jornalista: se me derem um tema e tempo para me informar, posso escrever sobre praticamente qualquer assunto, menos política ou desporto. Atribuí a mim mesma uma «reportagem» o mais diferente possível do livro anterior, sem nada que ver com dor e perda, apenas com os pecados prazenteiros da vida: a gula e a luxúria. Como não ia ser uma obra de ficção, só teria de investigar assuntos relacionados com comida, erotismo e a ponte entre ambos: os afrodisíacos. Tranquilizada por este plano, aceitei a proposta da Tabra e do Willie de irmos à índia, embora não tivesse vontade nenhuma de viajar e ainda menos de ir à índia, que é o mais longe de nossa casa onde se pode ir antes de empreender a viagem de regresso pelo outro lado do planeta. Não me achava com forças para suportar a pobreza mítica desse país, as aldeias devastadas, as crianças famélicas, as meninas de nove anos forçadas a casamentos prematuros, a trabalhos forçados ou à prostituição, mas o Willie e a Tabra asseguraram-me que a índia era muito mais do que isso e mostraram-se dispostos a levar-me, nem que fosse amarrada. Além disso, Paula, eu tinha-te prometido que um dia iria a esse país, porque tu voltaste fascinada de uma viagem que lá fizeste e convenceste-me de que não havia fonte de inspiração mais rica para um escritor. Alfredo López Lagarto Emplumado não foi connosco, embora tivesse reaparecido no horizonte da Tabra, porque pensava passar um mês mergulhado na natureza com um par de comanches, irmãos de tribo. A Tabra teve de lhe comprar uns tambores sagrados, indispensáveis para os rituais.

O Willie comprou uma farpela caqui de explorador com trinta e Sete bolsos, uma mochila, um chapéu australiano e uma nova lente Para as suas máquinas fotográficas que pesava e media o mesmo que Um pequeno canhão, enquanto eu e a Tabra fazíamos as malas com as mesmas saias ciganas de sempre, perfeitas porque nunca parecem amarrotadas nem deixam ver as nódoas. Empreendemos uma travecia que nos pareceu terminar cem anos mais tarde, quando aterrámos em Nova Deli e nos fundimos no calor pegajoso da cidade e na sua algaraviada de vozes, trânsito e rádios dissonantes. Fomos rodeados por um milhão de mãos, mas por sorte a cabeça do Willie sobressaía como um periscópio por cima da massa humana e vislumbrou ao longe um letreiro com o seu nome nas mãos de um homem alto, com um bigode autoritário e de turbante. Era o Sirinder, o guia que havíamos contratado em São Francisco através de uma agência. Abriu caminho com a ajuda do seu bastão, escolheu uns cules para que levassem a bagagem e a nós levou-nos no seu velho carro.

Estivemos vários dias em Nova Deli, o Willie doente com uma infecção intestinal e eu e a Tabra a passear e a comprar tarecos. «Parece-me que o teu marido está muito mal», disse-me ela ao segundo dia, mas eu queria ir a um bairro de artesãos onde ela mandava cortar pedras para as suas jóias. Ao terceiro dia a Tabra fez-me ver que o meu marido estava tão debilitado que já não falava, mas como ainda não tínhamos visitado a rua dos alfaiates, onde eu tencionava adquirir um sari, não tomei uma decisão imediata. Pensei que devíamos dar tempo ao Willie; há dois tipos de doenças: as que se curam sozinhas e as mortais. A noite a Tabra disse-me que, se o Willie morresse, nos estragava a viagem. Perante a possibilidade de vir a ter de o cremar junto às margens do Ganges, liguei para a recepção do hotel e pouco depois mandaram-nos um médico baixinho, com o cabelo oleoso, metido num fato lustroso acastanhado, que quando viu o meu marido com um aspecto de cadáver não pareceu ficar nada atrapalhado. Extraiu da sua maleta a transbordar uma seringa de vidro, como a que o meu avô usava em 1945, e preparou-se para injectar no paciente um líquido viscoso com uma agulha que estava guardada num pedaço de algodão e visivelmente tão antiga como a seringa. A Tabra quis intervir, mas assegurei-lhe que não valia a pena armar sarilho para evitar uma possível hepatite quando, de qualquer maneira, o futuro do doente já era incerto. O médico conseguiu o milagre de devolver a saúde ao Willie em vinte horas e assim pudemos continuar a viagem.

A índia foi uma daquelas experiências que marcam uma vida, memorável por muitas razões, de que não é apropriado falar aqui, já que este livro não é uma crónica de viagem; basta dizer que ajudou a encher o poço e me devolveu a paixão pela escrita. Apenas anotarei os episódios relevantes. O primeiro deu-me uma ideia para honrar a tua memória e o outro mudou para sempre a nossa família.

 

O Sirinder, o nosso guia e motorista, tinha a perícia e a coragem necessárias para se deslocar entre o trânsito da cidade, evitando automóveis, autocarros, burros, bicicletas e muitas vacas famélicas. Ninguém tinha pressa — a vida é longa —, excepto as motorizadas, que ziguezagueavam à velocidade de torpedos com cinco passageiros em cima. O Sirinder revelou-se um homem de poucas palavras e a Tabra e eu aprendemos a não lhe fazer perguntas, uma vez que só respondia ao Willie. Os caminhos rurais eram estreitos e cheios de curvas, mas ele quase rebentava o motor com o esforço. Quando dois veículos se cruzavam de frente, os condutores olhavam-se nos olhos e decidiam numa fracção de segundo qual era o macho alfa e o outro dava-lhe passagem. Todos os acidentes que presenciámos envolveram camiões de tamanho semelhante que tinham batido de frente; não devem ter esclarecido a tempo qual era o camionista alfa. Não usávamos cintos de segurança por uma razão relacionada com o karma: ninguém morre antes do seu tempo. E não usávamos as luzes de noite pela mesma razão. A intuição indicava ao Sirinder que um carro podia vir em sentido contrário e nessa altura acendia os máximos e encandeava-o.

Quando nos afastámos da cidade a paisagem tornou-se seca e dourada, e depois poeirenta e avermelhada. As aldeias começaram a espacejar e as planícies pareciam eternizar-se, mas havia sempre alguma coisa que chamava a atenção. O Willie andava com a mala das máquinas fotográficas, com um tripé e com o canhão, bastante trabalhoso de instalar. Diz-se que a única coisa que um bom fotógrafo recorda é a fotografia que não tirou. O Willie é capaz de recordar umas mil, como um elefante pintalgado de riscas amarelas e vestido de trapezista que andava sozinho por aquele descampado. Em compensação, teve oportunidade de imortalizar um grupo de trabalhadores que andavam a mudar uma montanha de um lado do caminho para outro. Os homens, cobertos apenas por uma tanga, punham as pedras numa cesta e as mulheres transportavam-nas à cabeça. Eram graciosas, magras, usavam saris às riscas de cores brilhantes — magenta, amarelo-esverdeado, verde-esmeralda — e moviam-se como juncos vergados ao vento sob o peso das pedras. Consideravam-se «ajudantes» e ganhavam metade do salário dos homens. A hora do almoço, eles acocoraram-se em círculo com os seus recipientes de lata e elas esperaram a certa distância. Mais tarde comeram as sobras dos homens.

Ao fim de muitas horas de viagem estávamos cansados, o Sol começava a baixar e o céu era cruzado por pinceladas rápidas da cor do fogo. Ao longe, entre os campos secos, erguia-se uma árvore solitária, talvez uma acácia, e por baixo adivinhávamos umas figuras que pareciam grandes pássaros, que quando nos aproximámos verificámos serem um grupo de mulheres e crianças. Que faziam ali? Não havia qualquer aldeia nem poço nas proximidades. O Willie pediu ao Si-rinder que parássemos para esticarmos as pernas. A Tabra e eu caminhámos em direcção às mulheres, que quando nos viram pareceram querer retroceder, mas a sua curiosidade venceu a timidez e em breve estávamos juntas sob a acácia, rodeadas de crianças nuas. As mulheres usavam saris empoeirados e gastos. Eram jovens, com grandes melenas escuras, a pele seca, os olhos fundos e maquilhados. " Na índia, como em muitas partes do mundo, não existe o conceito de espaço pessoal, que tanto defendemos no Ocidente. A falta e uma língua comum, deram-nos as boas-vindas com gestos e em seguida observaram-nos com dedos atrevidos, tocando-nos a roupa, a Cara, o cabelo vermelho-escuro de Tabra, um tom que talvez nunca tivessem visto, os nossos adornos de prata... Tirámos as pulseiras para lhas oferecer. Elas puseram-nas com prazer de adolescentes. Tínhamos que chegasse para todas, duas ou três para cada uma.

Uma das mulheres, que podia ser da tua idade, Paula, tomou-me a cara entre as mãos e beijou-me ao de leve na fronte. Senti os seus lábios gretados, o seu mau hálito. Foi um gesto tão inesperado, tão íntimo, que não consegui reter as lágrimas, as primeiras que vertia em muito tempo. As outras mulheres acariciaram-me em silêncio, desorientadas com a minha reacção.

Ao longe, uma buzinadela do Sirinder deu-nos a entender que estava na hora de partir. Despedimo-nos das mulheres e começámos a afastar-nos, mas uma seguiu-nos. Tocou-me no ombro, voltei-me e ofereceu-me um embrulho. Pensei que queria dar-me qualquer coisa em troca das pulseiras e procurei explicar-lhe por gestos que não era necessário, mas obrigou-me a aceitá-lo. Era muito leve, parecia apenas uma trouxa cheia de trapos, mas quando o abri vi que continha um bebé recém-nascido, minúsculo e muito escuro. Tinha os olhos fechados e um cheiro como nunca encontrei noutra criança que tenha tido nos braços, um cheiro acre a cinza, a pó e a excrementos. Beijei-o na cara, murmurei uma bênção e quis devolvê-lo à mãe, mas em vez de o aceitar ela deu meia volta e foi a correr juntar-se às outras mulheres, enquanto eu fiquei ali, a embalar o bebé, sem compreender o que estava a acontecer. Um minuto depois o Sirinder chegou a gritar que o largasse, que não podia levá-lo, que estava sujo, e arrebatou-mo dos braços e foi entregá-lo às mulheres, que recuaram, aterradas com a cólera daquele homem. Nessa altura ele inclinou-se e deixou o bebé no chão, sobre a terra seca, debaixo da árvore.

O Willie também tinha vindo e levou-me quase pelo ar até ao carro, seguido por Tabra. O Sirinder pôs o motor a trabalhar e afastámo-nos, enquanto eu escondia a cabeça no peito do meu marido.

Porque é que aquela mulher queria dar-nos o bebé dela? —' perguntou o Willie num murmúrio.

Era uma menina. Ninguém quer uma menina — explicou o Sirinder.

Há histórias que têm o poder de curar. Aquilo que aconteceu naquela tarde sob a acácia desatou o nó que me impedia de respirar, sacudiu as teias de aranha da pena de mim mesma e obrigou-me a voltar ao mundo e a transformar a minha perda em acção. Não pude salvar aquela menina, nem a sua mãe desesperada, nem as «ajudantes» que transportavam a montanha pedra a pedra, nem milhões de mulheres como elas e como aquela, inesquecível, que chorava na Quinta Avenida num Inverno de Nova Iorque, mas prometi que pelo menos tentaria aliviar o seu sofrimento, como tu terias feito, tu, para quem nenhuma obra de compaixão era impossível. «Tens de ganhar muita massa com os teus livros, mamã, para eu poder fazer um refúgio para pobres e tu pagares as contas», dizia-me, falando completamente a sério. O dinheiro que havia ganho e continuava a ganhar com Paula estava congelado num banco, à espera que me ocorresse uma maneira de o empregar. Foi nesse momento que o soube. Calculei que, se aumentasse o capital com todos os livros que escrevesse de futuro, alguma coisa boa havia de poder fazer, apenas uma gota de água no deserto das necessidades humanas, mas pelo menos não me sentiria impotente. «Vou criar uma fundação para ajudar mulheres e crianças», anunciei ao Willie e a Tabra nessa noite. Não imaginava que com os anos essa semente se transformaria numa árvore, como aquela acácia.

 

O palácio do marajá, todo de mármore, erguia-se no jardim do Paraíso, onde não existia tempo, o clima era sempre suave e o ar tinha um aroma a gardénias. A água das fontes corria por canais sinuosos entre flores, gaiolas douradas de pássaros, guarda-sóis de seda branca, magníficos pavões-reais. O palácio pertencia a uma cadeia internacional de hotéis que teve o bom senso de preservar o seu encanto original. O marajá, arruinado, mas com a imponência intacta, ocupava uma das alas do edifício, protegido da curiosidade alheia por um biombo de juncos e de amores-perfeitos violetas. A meio da tarde, à hora mais tranquila, costumava sentar-se no jardim a tomar chá com uma menina impúbere que não era a sua bisneta, mas a sua quinta mulher, sob as atenções de dois guardas de uniforme imperial, cimitarras ao cinto e turbantes emplumados. Na nossa suite, digna de um rei, não havia uma polegada livre para descansar o olhar no meio da decoração profusa. Da varanda podia-se apreciar o jardim na sua totalidade, separado por um muro alto de um bairro miserável que se estendia até ao horizonte. Depois de nos termos deslocado durante várias semanas por caminhos poeirentos, pudemos enfim descansar naquele palácio, onde um exército de empregados silenciosos levou a nossa roupa para lavar, nos trouxe chá e bolos de mel em bandejas de prata e nos preparou banhos de espuma. Foi o paraíso!.-Jantámos comida indiana deliciosa, contra a qual o Willie já estava imunizado, e caímos na cama dispostos a dormir para sempre.

O telefone tocou às três da manhã — assim o indicavam os   números verdes do relógio de viagem, que brilhavam na escuridão —, despertando-me de um sonho quente e pesado. Estendi a mão procurando o aparelho às apalpadelas, sem dar com ele, até que encontrei um interruptor e acendi o candeeiro. De repente não percebi onde me encontrava, nem o que eram aquelas gazes transparentes a flutuar sobre a minha cabeça ou os demónios alados que me ameaçavam no tecto pintado. Senti os lençóis húmidos, colados à pele, e um aroma adocicado que não consegui identificar. O telefone continuava a tocar e a cada novo «trim» a minha apreensão aumentava, porque só uma desgraça imensa justificava um telefonema a uma hora daquelas. «Morreu alguém», disse eu em voz alta. «Calma, calma», repeti. Não podia tratar-se do Nico, porque eu já perdera a minha filha e, de acordo com a lei das probabilidades, isso não se repetiria na minha vida. Também não podia ser a minha mãe, porque é imortal. Talvez fossem notícias da Jennifer... Tê-la-iam encontrado? O som conduziu-me ao outro extremo do quarto, onde descobri um telefone antiquado entre dois elefantes de porcelana. Do outro lado do mundo chegou-me, com a clareza de um presságio, a voz inconfundível da Célia. Não tive coragem de lhe perguntar o que se passara.

Parece que sou bissexual — anunciou-me com voz trémula.

Que aconteceu?

Nada. É a Célia. Diz que é bissexual.

Ah! — resmungou o meu marido, e continuou a dormir. Suponho que me tenha ligado para me pedir socorro, mas não

me ocorreu nada de mágico que pudesse ajudá-la naquele momento. disse à minha nora que não se precipitasse a tomar medidas desesperadas, já que quase todos somos mais ou menos bissexuais, e se tinha esperado vinte e nove anos para o descobrir também podia esperar que voltássemos à Califórnia. Um assunto como aquele merecia ser discutido em família. Amaldiçoei a distância, que me impedia de ver a sua cara. Prometi-lhe que regressaríamos o mais brevemente possível embora às três da manhã não pudesse fazer grande coisa para mudar as reservas de avião, o que mesmo de dia era complicado. Tinha perdido o sono e não voltei para a cama de cortinas de gaze. Também não me atrevi a acordar a Tabra, que estava noutro quarto no mesmo piso.

Fui para a varanda esperar que amanhecesse sentada num baloiço de madeira policromada com almofadões de seda da cor do topázio. Uma trepadeira de jasmim e uma árvore de grandes flores brancas espalhavam a fragrância de cortesã que sentira no quarto. A notícia da Célia produziu em mim uma lucidez estranha, como se me fosse permitido ver a minha família do ar, desprendida de tudo. «Esta nora nunca há-de deixar de me surpreender», murmurei. No seu caso, a palavra «bissexual» podia significar várias coisas, mas nenhuma indiferente para os meus. Vejam só o que escrevi sem pensar: os meus. Era assim que os sentia a todos eles, meus, propriedade minha: o Willie, o meu filho, a minha nora, os meus netos, os meus pais e até os meus enteados, com quem vivia de escaramuça em escaramuça — todos eles eram meus. Fora muito difícil reuni-los e estava disposta a defender esta pequena comunidade contra as incertezas do destino e a má sorte. A Célia era uma força da natureza; ninguém teria influência sobre ela. Não perguntei a mim mesma duas vezes quem a teria cativado; a resposta pareceu-me óbvia. «Ajuda-nos, Paula, que isto não é brincadeira nenhuma», pedi-te, mas não sei se me ouviste.

 

desastre — NÃO me ocorre nenhuma outra palavra para o definir — foi desencadeado em finais de Novembro, no dia de Acção de Graças. E verdade, parece irónico, mas as datas para estas coisas não se escolhem. Eu e o Willie regressámos à Califórnia o mais cedo que pudemos, mas conseguir voos, mudar reservas e atravessar meio planeta levou-nos mais de três dias. Na noite em que a Célia me acordou consegui dizer ao Willie o que acontecera, mas estava a dormir, não me ouviu, e na manhã seguinte tive de o repetir. Deu-lhe para se rir. «Esta Célia é uma bala de canhão à solta», disse-me, sem avaliar as consequências que o anúncio da minha nora teria para a família. A Tabra tinha de partir para o Bali, de maneira que nos despedimos sem grandes explicações. Quando chegámos a São Francisco, a Célia estava à nossa espera no aeroporto, mas não falámos do assunto antes de nos encontrarmos a sós. Não era confidência que estivesse disposta a fazer à frente do Willie.

— Nunca imaginei que uma coisa destas pudesse acontecer comigo, Isabel. Lembras-te do que eu pensava dos homossexuais? — disse-me ela.

Lembro, Célia, como havia de esquecer-me? Já foste para a cama com ela?

"   Com quem?

   Com a Sally, com quem havia de ser?

"   Como sabes que é ela?

Ai, Célia, eu não nasci ontem. Já foram para a cama?


Não é isso que interessa! — exclamou com os olhos ardentes.

A mim parece-me muito importante, mas posso estar enganada... Essas coisas acontecem, Célia, e não vale a pena destruir um casamento por isso. Estás confundida pela novidade, é tudo.

Estou casada com um homem excelente e tenho três filhos que nunca deixarei. Deves imaginar o que hesitei antes de falar contigo. Uma decisão destas não se toma com ligeireza. Não quero ferir o Nico e os meus filhos.

É curioso que me confesses tudo isto a mim, que sou tua sogra. Será que inconscientemente não...?

Não me venhas com tretas psicológicas! Nós as duas contamos tudo uma à outra — interrompeu-me. E era verdade.

Suportei uma semana de uma ansiedade brutal, embora nada que se comparasse com a da Célia e da Sally, que tinham de decidir o seu futuro. Tinham vivido na mesma casa, trabalhavam juntas, partilhavam filhos, segredos, interesses e diversões, mas tinham feitios muitos diferentes, e talvez daí viesse a atracção entre as duas. A Avó Hilda já me tinha feito notar que «aquelas duas gostam muito uma da outra». Calada, discreta, quase invisível, a Avó não deixava escapar nada. Terá tentado avisar-me? É impossível sabê-lo, porque a velhota prudente nunca teria feito um comentário malicioso.

Debati-me com a confusão de carregar com o segredo ao mesmo tempo que preparava o peru do dia de Acção de Graças com uma receita nova que a minha mãe me mandara por carta. Punha-se uma quantidade de ervas na misturadora com azeite e limão, injectava-se essa mistura de cor esverdeada entre a pele e a carne da ave e deixava-se a marinar quarenta e oito horas.

A Sally despediu-se do emprego no meu escritório, mas víamo-nos quase todos os dias quando ia visitar os meus netos, porque passava muito tempo em nossa casa. Eu procurava não olhar para ela e para a Célia quando estavam juntas, mas se por acaso se tocavam ou tinha um sobressalto. O Willie, aturdido pela viagem à índia e pela ressaca da infecção intestinal, manteve-se à margem, na esperança das paixões se dissolverem no ar.

Por sorte, consegui encontrar-me com o meu psicólogo, que já não via há muito tempo, porque se mudara para o Sul da Califórnia, mas tinha vindo a São Francisco passar o dia de Acção de Graças com a família. Encontrámo-nos num café, uma vez que já não tinha escritório, e, enquanto ele saboreava o seu chá verde e eu o meu cap-puccino, pu-lo ao corrente da novela familiar. Perguntou-me se por acaso estava louca e como podia passar-me pela cabeça fazer de alcoviteira numa tal situação. Aquilo não era segredo que eu devesse guardar!

A Isabel é a figura da mãe, neste caso um arquétipo: mãe do Nico, madrasta do Jason, sogra da Célia, avó dos meninos. E futura sogra da Sally, se isto não tivesse acontecido — explicou-me.

Duvido; não me parece que a Sally se tivesse casado com o Jason.

O problema não é esse, Isabel. Tem de lhes fazer frente e exigir-lhes que contem a verdade ao Nico e ao Jason. Dê-lhes um prazo curto. Se não o fizerem, faça-o a Isabel!

Segui o seu conselho e o prazo terminou precisamente no fim-de-semana prolongado do dia de Acção de Graças, sagrado para os Americanos.

Com o pretexto das festividades, a família ia reunir-se pela primeira vez em vários meses, incluindo o Ernesto, que nos anunciou que se apaixonara por uma colega de trabalho, a Giulia, e a trazia à Califórnia para a apresentar à família. O momento era pouco apropriado. Ele viria primeiro de Nova Jérsia e a Giulia viria no dia seguinte, o que nos dava algum tempo para preparar os ânimos. Felizmente, a Fu, a Grace e a Sabrina iam fazer uma festa separada no cenntro de Budismo Zen, e portanto seriam três testemunhas a menos• Eu e o Willie estávamos tão perturbados que não conseguíamos dar nem com um conselho. Não faço ideia de como conseguimos reviver sem violência a esse fim-de-semana horrendo. A Célia confessou-se com o Nico e não sei como lhe contou, porque não havia maneira de o fazer com diplomacia ou de evitar o choque emocional de uma notícia daquelas. Era impossível não o ferir, a ele e aos filhos, como ela receava. Parece-me que ao princípio o Nico não percebeu o alcance do que acontecera e pensou que as coisas poderiam superar-se, com imaginação e tolerância. Foram precisas várias semanas, ou talvez meses, para que se apercebesse de que a sua vida mudara para sempre.

O Jason e a Sally estavam separados não só pela distância geográfica, mas também por terem pouco em comum. Era difícil imaginar a Sally a fazer vida nocturna e boémia entre intelectuais no caos de Nova Iorque, ou o Jason na Califórnia, a vegetar no meio da família e aborrecido de morte. Muitos anos mais tarde, quando falei do assunto com ambos, as versões pareceram contradizer-se. O Jason assegurou-me que estava apaixonado pela Sally e convencido de que se casariam, por isso perdeu a cabeça quando ela lhe telefonou para lhe contar o que acontecera. «Tenho uma coisa para te contar», anunciou-lhe. Ele pensou logo que ela lhe tinha sido infiel e sentiu uma onda de raiva, mas pensou que não fosse nada sério, uma vez que estava na disposição de o confessar. Ela conseguiu articular as frases para lhe explicar que se tratava de uma mulher e o Jason suspirou, aliviado, porque julgou que não se tratava de um verdadeiro rival, que eram patetices que as mulheres fazem por curiosidade, mas nessa altura ela acrescentou que estava apaixonada pela Célia. A dupla traição atingiu o Jason como uma paulada. Não só perdia a que ainda julgava ser a sua namorada, mas também uma cunhada de quem gostava como de uma irmã. Sentiu-se enganado pelas duas mulheres, e também pelo Nico, por não ter impedido o que acontecera. No fim-de-semana amaldiçoado o Jason apareceu lá em casa; estava fraco, perdera vários quilos, e parecia consumido por toda aquela história Trazia uma mochila ao ombro, não fizera a barba, tinha ar de poucos amigos e cheirava a álcool. Teve de enfrentar a situação sem ajuda de ninguém, porque cada um andava perdido nas suas própria preocupações.

A Sally foi buscar o Ernesto ao aeroporto, vindo de Nova Jérsi onde vivia desde 1992, quando te trouxemos doente para a Califórnia, e levou-o a tomar um café para o avisar do que acontecera. Não podia aterrar de repente no meio do melodrama, pensaria que estávamos todos loucos. Como poderia explicar o que sucedera a Giulia? A sua namorada era uma loura alta e tagarela, de olhos azul-celestes, com a frescura própria das pessoas que confiam na vida. Eu e as Irmãs da Perpétua Desordem tínhamos rezado durante vários anos para que o Ernesto encontrasse um novo amor e a Célia encarregara-te da mesma tarefa, que não só cumpriste, mas acompanhaste de uma piscadela de olho desde o Além: a Giulia nasceu no mesmo dia que tu, a 22 de Outubro, a mãe dela chama-se Paula e o pai nasceu no mesmo dia e ano que eu. São demasiadas coincidências. Não posso deixar de pensar que a escolheste para que fizesse o teu marido feliz. O Ernesto e a Giulia dissimularam o melhor que conseguiram o seu desconcerto perante o descalabro familiar. Apesar das dramáticas circunstâncias que vivíamos, demos a nossa aprovação imediata a Giulia; era perfeita para ele: forte, organizada, alegre, carinhosa. Segundo o Willie, não valia a pena estarmos a ralar-nos, uma vez que o casal não precisava da aprovação de uma família com a qual não tinha laços de sangue. «Se se casarem, temos de trazêlos para a Califórnia», respondi-lhe.

Entretanto, a carne do peru ficou verde com o tratamento intravenoso de condimentos, e quando saiu do forno parecia tão putrefacta como o ar que se respirava lá em casa. O Nico e o Jason, muito perturbados, não estavam em condições de participar no velório, porque aquele dia foi nem mais nem menos que um velório. O Ale-jandro e a Nicole estavam de cama com febre; a Andrea andava pela casa com o dedo na boca e vestida para a ocasião com o meu sari, em que se embrulhou como um salsichão. O Willie ficou indignado Porque nenhum dos seus dois outros filhos apareceu. Tinha fome,

mas ninguém havia feito o jantar, que em qualquer dia de Acção de graças normal é um banquete. Num impulso incontrolável, o meu marido pegou no peru verde por uma pata e atirou-o para o lixo.

 

o colapso da família não se deu de um dia para o outro. Durou vários meses, em que o Nico, a Célia e a Sally se debateram com a incerteza, embora nunca tenham perdido os miúdos de vista. Procuraram protegê-los o mais possível, apesar do caos. Esmeraram-se em dar-lhes afecto, embora nestes dramas o sofrimento seja inevitável. «Não faz mal. Mais tarde resolvem tudo na terapia», tranquilizou-me o Willie. A Célia e o Nico continuaram a viver na mesma casa durante algum tempo porque não tinham para onde ir, enquanto a Sally entrava e saía na sua qualidade de tia. «Isto parece um filme francês, e eu prefiro não ver mais», anunciou a Tabra, escandalizada. A minha tolerância também não chegava para tanto, de maneira que preferi deixar de ir a casa deles, embora cada dia que passava sem ver os meus netos fosse mais um dia de luto.

Ao mesmo tempo que procurava manter-me próxima do Nico, que não me dava grande saída, a minha relação com a Célia ia passando do choro aos abraços e às recriminações. Acusou-me de não entender o que acontecera, de ser uma pessoa de mente fechada e de me meter em tudo. Porque diabo não os deixava em paz? Ofendia-me com o seu temperamento explosivo e os seus modos bruscos, para duas horas mais tarde me telefonar a pedir desculpa e para se reconciliar comigo, até que o ciclo se repetia. Tinha uma pena horrive de a ver sofrer. O preço da decisão que tomara era muito alto e nem toda a paixão do mundo a livraria de o pagar. Perguntava a si mesmo se não teria algo de perverso que a incitava a destruir o melhor que tinha, o seu lar, os seus filhos, uma família em que estava a salvo, confortável, protegida, amada. O marido adorava-a e era um homem bom, mas sentia-se presa nessa relação, aborrecia-se, não se sentia bem na sua pele e o coração escapava-lhe para anseios que tinha dificuldade em explicar. Contou-me que o edifício aparentemente perfeito da sua vida viera abaixo com o primeiro beijo da Sally. Isso bas-tara-lhe para perceber que não podia continuar com o Nico; nesse instante o seu destino mudara de rumo. Sabia que a rejeição seria implacável, mesmo na Califórnia, que se vangloria de ser o sítio mais liberal do planeta.

Achas que sou normal, Isabel? — perguntou-me.

Não, Célia. Há uma percentagem das pessoas que são homossexuais. O pior é que deste conta tarde de mais.

Sei que vou perder todos os meus amigos e que a minha família não voltará a falar-me. Os meus pais nunca entenderão o que aconteceu. Conheces bem o meio de onde venho.

Se não souberem aceitar-te como és, de momento não precisas deles. Tens outras prioridades. Primeiro vêm os teus filhos.

Deixou de trabalhar no meu escritório porque não queria depender de mim, como me disse, mas, se não tivesse sido ela a tomar a decisão, teria sido obrigada a tomá-la eu. Não podíamos continuar a trabalhar juntas. Foi quase impossível substituí-la; tive de contratar três pessoas para fazerem o trabalho que ela fazia sozinha. Estava habituada à Célia, confiava cegamente nela e aprendera a imitar a minha assinatura ao meu estilo. Dizíamos a brincar que não faltava muito para passar a escrever ela os livros. A Célia, o Nico e a Sally começaram a fazer terapia, juntos e separados, para resolverem os pormenores das suas relações. A Célia teve de voltar a tomar antidepressivos e comprimidos para dormir; parecia atordoada pelas drogas. Quanto ao Jason, ninguém se preocupou com ele. Decidira ficar em Nova Iorque depois de acabar o curso. Já nada o prendia à Califórnia e não queria voltar a ver nem a Célia nem a Sally. Sentia-se horfam, pensou que tinha perdido toda a sua família. Continuou a enmagrecer, deixou de ser um rapaz indolente e tornou-se um homem revoltado, que passava boa parte da noite a vaguear pelas ruas de Manhattan por não conseguir dormir. Não faltavam raparigas noctívagas a quem contar a sua desgraça para que depois o consolassem na cama. «Foram precisos três ou quatro anos para voltar a confiar numa mulher», disse-me muito mais tarde, quando conseguimos falar de novo no assunto. Também perdeu a confiança em mim, porque eu não soube avaliar a parte do sofrimento que lhe coube. «Deixa-te de paneleirices», disse-lhe o Willie a primeira vez que lhe falou no assunto, com a sua expressão preferida para resolver os conflitos emocionais dos filhos.

E eu? Dediquei-me a cozinhar e a fazer tricô. Levantava-me todos os dias de madrugada, preparava tachadas de comida e ia levá-las a casa do Nico, ou então deixava-as no tejadilho da carrinha da Célia, para que pelo menos não lhes faltasse de comer. Tricotava e tricotava com lã grossa uma peça de vestuário informe que segundo o Willie era um casaco para envolver toda a casa.

No meio desta tragicomédia, os meus pais vieram visitar-nos, e aterraram precisamente no meio de uma daquelas tormentas descomunais que costumam alterar o abençoado clima do Norte da Califórnia, como se a natureza quisesse ilustrar o estado de espírito da nossa família. Os meus pais vivem num apartamento alegre num bairro residencial de Santiago, entre árvores nobres, onde ao entardecer as empregadas de uniforme, ainda hoje, em pleno século xxi, passeiam velhas senhoras alquebradas e cães com o pêlo tratado. São servidos pela Berta, que trabalha para eles há mais de trinta anos e e muito mais importante nas suas vidas que os sete filhos que têm entre os dois. Uma vez o Willie sugeriu que se instalassem na Califórnia para passarem o resto da sua velhice perto de nós, mas não ha dinheiro que possa pagar nos Estados Unidos o conforto e a companhia que têm no Chile. Consolo-me desta separação pensando na minha mãe com o seu professor de pintura de bigode, as suas amigas no chá das segundas-feiras, a dormir a sesta entre lençóis de linho engomados, presidindo à mesa dos banquetes preparados pela Berta na sua casa cheia de familiares e amigos. Aqui os velhos vivem sós. A minha mãe e o tio Ramón vêm visitar-nos pelo menos uma vez por ano e eu vou duas ou três ao Chile, além de que mantemos contacto praticamente diário por carta e por telefone. E quase impossível esconder o que quer que seja a esses dois velhotes perspicazes, mas não lhes disse nada do que acontecera com a Célia porque me agarrei à ilusão vã de que tudo se resolveria com algum tempo; talvez tudo não passasse de um capricho de juventude. É por esta razão que há um claro vazio na minha correspondência com a minha mãe durante esses meses; para reconstituir esta história tive de falar separadamente com as pessoas que nela estiveram envolvidas e com várias testemunhas. Cada uma recorda as coisas à sua maneira, mas pelo menos podemos falar sem dissimulação. Assim que os meus pais aterraram em São Francisco aperceberam-se de que algo muito grave nos sucedera e não tive outro remédio senão dizer-lhes a verdade.

A Célia apaixonou-se pela Sally, a namorada do Jason — contei-lhes à queima-roupa.

Espero que isso não venha a saber-se no Chile — murmurou a minha mãe quando se sentiu capaz de reagir.

Mas vai saber-se. Estas coisas não se podem esconder. Além disso acontecem em toda a parte.

Sim, mas no Chile não se espalham.

Que pensam fazer? — perguntou o tio Ramón.

Não sei. A família anda toda em terapia. Estamos a enriquecer um exército de psicólogos.

Se pudermos ajudar nalguma coisa... — murmurou a minha mãe, sempre incondicional, embora lhe tremesse a voz, e acrescentou que deveríamos deixar que resolvessem o problema por si mesmos e ser discretos, porque os comentários só servem para agravar as coisas.

—        Volta a escrever, Isabel. Assim estarás ocupada. É a única maneira de não te meteres no assunto mais do que deves — aconselhou-me o tio Ramón.

O Willie diz-me a mesma coisa.

 

As minhas irmãs da desordem acenderam mais uma vela nos seus altares, além das que já lá estavam pela Sabrina e pela Jennifer, para rezarem pelo resto da minha tresloucada família e para que eu conseguisse voltar a escrever, porque há muito que procurava pretextos para não o fazer. O dia 8 de Janeiro aproximava-se e eu não me sentia capaz de escrever ficção; podia impor a mim mesma a disciplina, mas faltava-me desenvoltura, embora a viagem à índia me tivesse enchido a cabeça de imagens e de cor. Já não me sentia paralisada, o poço da inspiração estava cheio e tinha mais actividade do que nunca, porque a ideia da fundação já estava em andamento, mas para escrever um romance é preciso uma paixão arrebatada, que já estava acesa, embora fosse necessário dar-lhe oxigénio e combustível para que ardesse com mais brio. Continuava às voltas com a ideia de «uma memória dos sentidos», de uma exploração do tema da comida e do amor carnal. Dado o clima de paixão que imperava na família, talvez a coisa parecesse sarcástica, mas era essa a minha intenção. Ocorrera-me antes dos amores da Célia e da Sally. Até já tinha um título, Afrodite, que por ser vago me dava uma liberdade plena. A minha mãe foi comigo às sex shops de São Francisco, em busca de inspiração, e ofereceu-se para me ajudar na parte da cozinha afrodisíaca. Perguntei-lhe onde poderia ir buscar as receitas eróticas e respondeu-me que qualquer prato apresentado com coquetterie é afrodisíaco, e que por isso não valia a pena perder tempo com ninhos de andorinha e cornos de rinoceronte, tão difíceis de arranjar na praça, Ela, criada num dos meios mais católicos e intolerantes do mundo, nunca entrara numa loja «para adultos», como lhes chamam, de maneira que tive de lhe traduzir do inglês as instruções de vários artigos auxiliares de borracha que quase a mataram de riso. A investigação para Afrodite fez-nos às duas ter sonhos eróticos. «Aos setenta e tal anos, ainda penso nisso», confessou-me a minha mãe. Recordei-lhe que o meu avô ainda pensava nisso aos noventa. O Willie e o tio Ra-món foram as nossas cobaias. Comprovámos neles o efeito das receitas afrodisíacas, que, tal como a magia negra, só surtem efeito se a vítima souber que lhe foram administradas. Um prato de ostras, sem a explicação de que estimula a libido, não dá resultados visíveis. Nem tudo foi drama nesses meses; também nos divertimos.

Quando podíamos escapávamos para o teu bosque com a Tabra e os meus pais para fazer longas caminhadas. As chuvas engrossavam o regato onde lançámos as tuas cinzas e o bosque cheirava a terra molhada e a folhagem. Caminhávamos a um bom passo, eu e a minha mãe à frente, caladas, e o tio Ramón com a Tabra mais atrás, a falar de Che Guevara. O meu padrasto acha a Tabra uma das mulheres mais bonitas e interessantes que alguma vez conheceu — e foram muitas — e ela admira-o por várias razões, especialmente porque uma vez se encontrou com o heróico guerrilheiro e até tem uma fotografia com ele. O tio Ramón já lhe contou a mesma história algumas duzentas vezes, mas nem ela se cansa de a ouvir nem ele de a contar. Tu saudavas-nos das ramagens das árvores, passeávamos contigo. Abstive-me de informar os meus pais de que o teu fantasma uma vez tinha ido de táxi visitar-nos a casa; não havia razão para os confundir ainda mais.

pergunto a mim mesma de onde me virá esta tendência para conviver com os espíritos; parece que há pessoas que não têm esta mania. Antes de mais devo esclarecer que poucas vezes dei de caras com algum, e nas raras ocasiões em que isso sucedeu não posso assegurar que não estivesse a sonhar, mas não tenho a menor dúvida de "que o teu me acompanha constantemente. Se assim não fosse, para "que estaria a escrever-te estas páginas? Manifestas-te das maneiras mais estranhas. Por exemplo, uma vez, quando o Nico estava a mudar de trabalho, passou-me pela cabeça inventar uma empresa para lhe arranjar emprego. Cheguei a consultar o meu contabilista e um ou dois advogados, que me confundiram com leis, decretos e números. «Se pudesse telefonar à Paula para lhe pedir conselho!», exclamei em voz alta. Nesse momento chegou o correio e entre as cartas havia uma para mim, escrita com uma letra tão parecida com a minha que a abri logo. A carta tinha poucas linhas, escritas a lápis numa folha de caderno: «De hoje em diante não procurarei resolver os problemas dos outros sem que me peçam ajuda. Não vou assumir responsabilidades que não me cabem. Não vou proteger exageradamente o Nico e os meus netos.» Estava assinada por mim e tinha uma data de sete meses atrás. Nessa altura lembrei-me que tinha ido à escola dos meus netos no «dia dos avós» e que a professora havia pedido a todos os presentes que escrevessem uma resolução ou um desejo e o metessem num envelope com a própria direcção, para que ela o enviasse alguns meses mais tarde. Não há nada de estranho nisto. O estranho foi que tivesse chegado justamente no momento em que eu dizia como precisava do teu conselho. Acontecem demasiadas coisas inexplicáveis. A ideia dos seres espirituais, reais, imaginários ou metafóricos, foi iniciada pela minha avó materna. Esse ramo da família sempre foi original e contribuiu com material para a minha obra. Nunca teria escrito A Casa dos Espíritos se a minha avó não me tivesse convencido de que o mundo é um sítio misterioso.

A situação familiar resolveu-se de uma maneira mais ou menos normal. Normal para a Califórnia; no Chile teria sido um escândalo digno da imprensa sensacionalista, sobretudo porque a Célia achou necessário anunciá-lo com um megafone e pregar as vantagens do amor gay. Dizia que toda a gente devia experimentá-lo, que era muito melhor que ser heterossexual, e ridicularizava os homens e as suas caprichosas pilinhas. Tive de lhe recordar que tinha um filho e não convinha que o desvalorizasse. Eu própria falava de mais no assunto andávamos de boca em boca, a coscuvilhice ia e vinha a grande velucidade.

. Havia gente que mal conhecíamos que se aproximava de nós para nos dar os pêsames, como se estivéssemos de luto. Acho que toda a Califórnia soube. Muito alvoroço. Ao princípio só tinha vontade de me esconder num buraco, mas o Willie convenceu-me de que não é a verdade exposta que nos torna vulneráveis, e sim os segredos. O divórcio do Nico e da Célia não resolveu nada, porque continuávamos presos numa teia de relações que se modificavam constantemente, mas não eram cortadas, já que os três miúdos nos mantinham unidos, quer quiséssemos quer não. Venderam a casa, que tínhamos comprado com tanto esforço, e dividiram o dinheiro. Decidiram que os garotos ficavam uma semana com a mãe e outra com o pai, ou seja, passariam a andar de mala às costas, mas isso sempre parecia preferível à solução salomónica de os cortar ao meio. A Célia e a Sally arranjaram uma casinha que precisava de reparações, mas estava muito bem situada, e instalaram-se o melhor que puderam. Ao princípio tiveram muitas dificuldades, porque mesmo os seus familiares e muitos dos amigos lhes voltaram as costas. Ficaram quase sozinhas, com poucos recursos e com a sensação de estarem a ser julgadas e condenadas. Eu mantive-me próxima e procurei ajudá-las, muitas vezes nas costas do Nico, que não era capaz de perceber o meu fraco por essa ex-nora que magoara a nossa família. A Célia confessou-me que chorava quase todos os dias, e a Sally teve de aguentar a acusação de que destruíra um lar, mas à medida que os meses iam passando o barulho também se ia acalmando, como acontece quase sempre.

O Nico encontrou uma velha casa a poucos quarteirões da nossa e reformulou-a. Mudou o soalho, as janelas e as casas de banho. tinha um jardim com duas enormes palmeiras e vista para uma pequena lagoa com gansos e patos-selvagens. Viveu ali com o irmão da sélia, a quem ofereceu abrigo durante um ano. Por alguma razão, este não fora viver com a própria irmã. Esse jovem continuava a procurar o seu destino sem grande êxito, talvez porque não tinha autorização de residência e o seu visto de turista, que já renovara uma ou duas vezes, estava a expirar. Andava muitas vezes deprimido ou mal humorado, e o Nico teve de suportar mais de uma vez os acessos de cólera daquele homem que já não era seu cunhado, mas continuava a ser seu hóspede.

Para a Célia e a Sally, que tinham empregos com horários flexíveis, não era tão complicado tomar conta dos miúdos na semana que lhes cabia como para o Nico, que tinha de o fazer sozinho e trabalhava longe de casa. A Ligia, a mesma senhora que embalara a Nicole nos meses do seu choro desconsolado, dava-lhe uma ajuda, e continuou a fazê-lo durante vários anos. Ia buscar os meus netos à escola, onde havia um jardim-de-infância em que até a Nicole tinha idade para andar, levava-os para casa e ficava com eles até que eu chegava, quando podia, ou então o Nico, que procurava sair mais cedo do escritório na semana em que ficava com os filhos e compensava as horas quando não estavam com ele. O Nico nunca deu mostras de irritação ou de impaciência; pelo contrário, era um pai alegre e tranquilo. Graças à sua organização, mantinha a casa a funcionar bem, mas levantava-se de madrugada e deitava-se tardíssimo, extenuado. «Não tens nem um minuto para ti, Nico», disse-lhe eu um dia. «Sim, mamã, tenho duas horas sozinho e em silêncio no carro quando vou para o escritório e quando volto. Quanto mais trânsito, melhor», respondeu-me.

A relação entre o Nico e a Célia deteriorou-se. O Nico defendia o seu território como podia, e a verdade é que não o ajudei nessa ingrata tarefa. Por fim, cansado de bisbilhotices e de pequenas traições, pediu-me que cortasse a minha amizade com a sua ex-mulher, porque, no estado em que estavam as coisas, tinha de combater em duas frentes. Sentia-se menosprezado e impotente como pai e desrespeitado pela própria mãe. A Célia vinha ter comigo quando precisava de alguma coisa, e eu não o consultava antes de agir, de maneira que, sem querer, estava a boicotar algumas decisões que ambos tinham tomado e que a Célia depois não respeitava. Além disso mentia-lhe para evitar ter de lhe dar explicações, e, como é evidente, ele acabava sempre por me apanhar — por exemplo, os miúdos encarregavam-se de lhe dizer que me tinham visto na véspera em casa da mãe.

A Avó Hilda, perplexa com o curso dos acontecimentos, regressou ao Chile, a casa da Hildita, a sua única filha. Não lhe ouvimos uma única palavra de crítica. Absteve-se de dar a sua opinião, fiel à sua fórmula para evitar conflitos, mas a Hildita contou-me que de três em três horas levava à boca uma das suas misteriosas pílulas verdes da felicidade. Tiveram um efeito mágico, porque quando, um ano mais tarde, voltou à Califórnia, foi visitar a Célia e a Sally com o mesmo carinho de sempre. «Estas meninas são muito amigas. Dá gosto ver como se dão bem», disse, repetindo o comentário que fizera muito tempo antes, quando ainda ninguém desconfiava do que ia acontecer.

 

os primeiros tempos escondia-me na casa de banho para marcar encontros clandestinos com a Célia. O Willie ouvia-me falar em sussurro e começou a desconfiar que eu tinha um amante — nada mais lisonjeiro, porque quem quer que me visse nua compreenderia que nunca mostraria as minhas carnes a ninguém a não ser a ele. Mas a verdade é que não lhe chegavam as forças para ataques de ciúmes. Nessa altura tinha mais casos legais do que nunca e ainda não se dera por vencido no de Jovito Pacheco, o mexicano que caíra de um andaime num prédio em construção em São Francisco. Quando a companhia de seguros negou a indemnização, o Willie intentou um processo no tribunal. A escolha do júri era fundamental, como me explicou, porque havia uma hostilidade cada vez maior contra os imigrantes latinos e era quase impossível conseguir um júri benevolente. Com a sua longa experiência de tribunal aprendera a não aceitar no júri pessoas obesas, que por uma razão qualquer votavam sempre contra ele, nem racistas e xenófobos, que apareciam sempre, e eram cada vez mais. A hostilidade entre anglo-saxónicos e mexicanos na Califórnia é muito antiga, mas em 1994 foi aprovada uma lei, a Proposition 187, que acentuou esse sentimento. Os Estados Unidos adoram a ideia da imigração, que é o fundamento do sonho americano — um pobre diabo que chega a estas paragens com uma mala de cartão pode tornar-se milionário —, mas detestam os imigrantes. Esse ódio, de que foram vítimas escandinavos, irlandeses, italianos, judeus, árabes e outros imigrantes, é pior contra as pessoas de cor, e em especial contra os hispânicos, porque são muitos e não há maneira de os deter. O Willie foi ao México, alugou um carro e, seguindo as complicadas indicações que lhe haviam dado por carta, andou três dias às voltas por estradas poeirentas até que chegou a uma aldeia recôndita com casinhas de barro. Levava uma fotografia amarelada da família Pacheco, que lhe serviu para identificar os clientes: uma avó de ferro, uma viúva tímida e quatro crianças sem pai, entre elas uma cega. Nunca haviam usado sapatos, não tinham água nem electricidade em casa e dormiam em enxergas no chão.

O Willie convenceu a avó, que dirigia a família com mão firme, de que deviam acompanhá-lo à Califórnia para comparecerem em tribunal e assegurou-lhe que lhe enviaria o dinheiro necessário para o fazerem. Quando quis regressar à Cidade do México, apercebeu-se de que a auto-estrada passava a quinhentos metros da terreola, mas nunca nenhum dos seus clientes a havia usado, de maneira que as suas instruções só indicavam caminhos de cabras. Fez a viagem de regresso em quatro horas. Arranjou maneira de conseguir vistos para uma breve visita dos Pacheco aos Estados Unidos, meteu-os num avião e trouxe-os, mudos de espanto perante a perspectiva de se elevarem nos ares dentro de um passaroco metálico. Em São Francisco percebeu que não se sentiriam à vontade em nenhum hotel, por modesto que fosse. Não sabiam usar pratos nem talheres — estavam habituados a comer tortilhas — e nunca tinham visto uma casa de banho. O Willie teve de lhes fazer uma demonstração, que provocou ataques de riso nas crianças e perplexidade nas mulheres. Sentiam-se intimidados pela imensa cidade de cimento, pela torrente de trânsito e aquela gente com um linguajar incompreensível. Por fim foram recebidos por outra família mexicana. As crianças instalaram-se em frente da televisão, incrédulas perante o prodígio, enquanto o Willie procurava explicar à avó e à viúva em que consistia um tribunal nos Estados Unidos.

No dia marcado apresentou-se com os Pacheco no tribunal: a avó à frente, envolvida no seu manto e com umas chinelas que mal conseguia segurar nos pés grandes de camponesa, sem perceber nada de inglês, e atrás a viúva com os filhos. Na alegação final, o Willie usou uma frase de que troçámos anos a fio: «Senhores membros do júri, vão permitir que o advogado de defesa atire esta pobre família para a lixeira da história?» Mas nem com ela conseguiu comovê-los. Não deram nada aos Pacheco. «Isto nunca teria acontecido com um branco», disse o Willie, que se preparou para apelar a um tribunal de instância superior. Estava indignado com a sentença do julgamento, mas a família aceitou-o com a indiferença das pessoas acostumadas à desgraça. Esperavam muito pouco da vida e não percebiam por que razão aquele advogado de olhos azuis se dera ao trabalho de ir buscálos à sua aldeia para lhes mostrar como funcionava um autoclismo. Para compensar a frustração de não lhes ter conseguido nenhuma indemnização, o Willie decidiu levá-los à Disneylândia, em Los Angeles, para ficarem pelo menos com uma boa recordação da viagem.

Para que vais criar nessas crianças expectativas a que a vida delas nunca há-de corresponder? — perguntei-lhe.

Para poderem conseguir alguma coisa na vida têm de saber o que o mundo oferece. Eu saí do gueto miserável onde cresci porque me apercebi de que podia aspirar a mais — foi a sua resposta.

Tu és um homem branco, Willie, e como tu mesmo dizes os brancos estão em vantagem.

Os meus netos habituaram-se à rotina de mudar de casa todas as semanas e de ver a mãe formar um casal com a tia Sally. Não era um arranjo invulgar na Califórnia, onde em matéria de relações domésticas há muito por onde escolher. A Célia e o Nico foram à escola dos filhos explicar o que acontecera e as professoras disseram-lhes que não se preocupassem, porque quando os miúdos chegassem à quarta classe oitenta por cento dos colegas teriam padrastos ou madrastas, muitas vezes três do mesmo sexo, teriam irmãos adoptivos de outras raças ou estariam a viver com os avós. A família dos livros de histórias já não existia.

A Sally vira nascer os miúdos e gostava tanto deles que, anos mais tarde, quando lhe perguntei se não pensava ter filhos, respondeu que não via razão para isso, que já tinha três. Assumiu o papel de mãe de coração aberto, uma coisa que nunca consegui fazer com os meus enteados, e nem que fosse só por isso nunca poderia ter deixado de gostar dela. No entanto, uma vez tive a maldade de a acusar de ter seduzido metade da minha família. Como pude dizer semelhante disparate? Ela não era a sereia que atraía as suas vítimas para que se desfizessem de encontro aos rochedos; cada um foi responsável pelos seus actos e sentimentos. Além disso, não tenho autoridade moral para julgar ninguém; na minha vida fiz muitas loucuras por amor, e quem sabe se não virei a fazer mais antes de morrer... O amor é um raio que nos atinge sem o esperarmos e que nos modifica. Foi o que me aconteceu com o Willie. Como poderia deixar de entender o que aconteceu com a Célia e a Sally?

Por essa altura recebi uma carta da mãe da Célia em que me acusava de haver pervertido a filha com as minhas ideias satânicas e de «ter manchado a sua bela família, em que sempre se chamou erro ao erro e pecado ao pecado», o contrário do que eu transmitia com os meus livros e o meu comportamento. Ao que parece, o facto de a Célia ser homossexual não era sequer chamado ao caso; o problema foi que não o sabia e se casou e teve três filhos antes de ser capaz de o admitir. Que razão teria eu para incitar a minha nora a magoar a minha família? Pareceu-me extraordinário que alguém me atribuísse tanto poder.

—        Que sorte, não precisamos de voltar a falar com esta senhora - foi a primeira coisa que o Willie disse quando leu a carta.

Vistos de fora, damos a impressão de ser muito decadentes, Willie.

Tu não sabes o que se passa noutras famílias à porta fechada. A diferença é que na nossa tudo se sabe.

Senti-me um pouco mais tranquila a respeito dos meus netos Porque podiam contar com a dedicação dos pais, em ambas as casas as regras de convivência eram mais ou menos as mesmas e a escola dava estabilidade. Não ficariam traumatizados, mas demasiado mimados. Havia tanta franqueza na maneira como as coisas lhes eram explicadas que às vezes os miúdos preferiam não perguntar, não fosse a resposta mais longe do que queriam. Desde o princípio que estabeleci a regra de os ver quase todos os dias quando estavam com o Nico e uma vez por semana quando estavam em casa da Célia e da Sally. O Nico era firme e coerente, as suas regras eram claras, mas também tinha uma grande paciência e muita ternura com os filhos. Surpreendi-o muitos domingos a dormir com todos os miúdos na cama e nada me comovia tanto como vê-lo chegar com uma menina em cada braço e o Alejandro agarrado às pernas. Em casa da Célia havia um ambiente descontraído, desordem, música e dois gatos ariscos que largavam o pêlo em cima dos móveis. Costumavam improvisar uma tenda com cobertores no meio da sala, onde acampavam toda a semana. Creio que era a Sally que mantinha a família coesa, que sem ela a Célia teria naufragado nessa época de tão grande perturbação. A Sally tinha um instinto certeiro com os miúdos, adivinhava os problemas antes de eles acontecerem e vigiava-os com discrição, sem os oprimir.

Reservei «dias especiais» para cada neto em separado, em que eram eles que escolhiam o que queriam fazer. Foi assim que tive de ver treze vezes o Tarzan, o filme animado, e outro que se chamava Mulan dezassete; já conhecia os diálogos de trás para a frente. No dia especial queriam sempre o mesmo: piza, gelados e ir ao cinema, excepto uma vez em que o Alejandro mostrou interesse pelos homens vestidos de freiras que tinham anunciado na televisão. Alguns homossexuais, gente do teatro, disfarçavam-se de freiras com as caras pintadas e pavoneavam-se a pedir dinheiro para obras de caridade. A maluquice estava em que o faziam na Semana Santa. Saiu nas notícias porque a igreja católica ordenou aos seus fiéis que não visitassem São Francisco, para sabotar o turismo da cidade, que, como So-doma e Gomorra, vivia em pecado mortal. Levei o Alejandro a ver outra vez o Tarzan.

O Nico tinha-se tornado muito calado e havia uma dureza nova no seu olhar. A raiva fizera-o fechar-se como uma ostra. Não partilhava os seus sentimentos com ninguém. Não foi o único que sofreu» cada um teve a sua parte, mas ele e o Jason ficaram sozinhos. Conso-lei-me com a ideia de que ninguém agiu com maldade, de que foi uma daquelas tempestades em que se perdeu o domínio do leme. Que se terá passado à porta fechada entre ele e a Célia? Que papel teve a Sally? Foi inútil sondá-lo. Responde-me sempre com um beijo na testa e uma frase neutra para me distrair, mas não perco a esperança de vir a saber à hora da morte, quando não se atrever a negar o último desejo à mãe moribunda. A existência do Nico reduziu-se ao trabalho e aos filhos. Nunca foi muito sociável; as suas amizades haviam sido trazidas pela Célia e ele não tentou mantê-las. Isolou-se.

Por essa época, um psiquiatra com pinta de actor de cinema e aspirações a escritor começou a lavar-nos as janelas, uma vez que ganhava mais a limpar os vidros alheios que a ouvir as queixas fastidiosas dos pacientes. Na realidade, não era ele que fazia o trabalho, mas sim uma ou duas holandesas magníficas, que não me explicou onde arranjava, sempre diferentes, bronzeadas pelo sol da Califórnia, com cabeleiras louras e de calções. As beldades trepavam pelos escadotes com os trapos e os baldes na mão, enquanto ele se sentava na cozinha a contar-me a intriga do seu próximo romance. Sentia-me irritada, não só por causa das louras tontas que faziam o trabalho pesado, que depois ele facturava, mas também porque aquele homem não era sequer uma sombra do Nico e tinha as mulheres que queria. Pergun-tei-lhe como o conseguia e respondeu-me: «Dando-lhes ouvidos. Gostam que as ouçam.» Decidi contar o truque ao Nico. Apesar da sua arrogância, o psiquiatra era melhor que o hippie velho que o precedera na limpeza das janelas, que antes de aceitar uma chávena de chá observava minuciosamente o bule para se assegurar de que não tinha chumbo, falava em sussurro e uma vez perdeu quase um quarto de hora a tirar um insecto da janela sem o magoar. Quando lhe ofereci um mata-moscas ia caindo do escadote.

Eu andava sempre em cima do Nico. Víamo-nos quase todos os

Dias mas, ele tornara-se um desconhecido para mim, cada dia mais atraído e distante, embora sempre com uma cortesia impecável. Essa

delicadeza chegou a incomodar-me; antes queria que nos insultassemos mutuamente. Ao fim de dois ou três meses não aguentei mais e decidi que não podíamos continuar a adiar uma conversa franca. É muito raro discutirmos os dois, em parte porque nos damos muito bem sem exuberâncias sentimentais e em parte porque somos assim, por temperamento e por hábito. Durante os vinte e cinco anos que durou o meu primeiro casamento nunca ninguém levantou a voz e os meus filhos habituaram-se a uma absurda cortesia britânica. Além disso, começamos com boas intenções e quando há ofensa supomos que se tratou de um erro ou de uma omissão, e não de vontade de magoar. Pela primeira vez fiz chantagem com o meu filho e, com a voz emocionada, recordei-lhe o meu amor incondicional por ele e pelos filhos desde que nasceram, critiquei o seu distanciamento e a sua rejeição... enfim, um discurso patético. Tive foi de admitir que sempre se portara comigo como um príncipe, excepto quando me fez a brincadeira de mau gosto de se enforcar, aos doze anos. Lembras-te que o teu irmão se pendurou de uma coleira na ombreira de uma porta e quando o vi, com a língua de fora e uma corda grossa ao pescoço, quase fui desta para melhor? Nunca lho perdoarei! «Porque não vamos ao que interessa, velhota?», perguntou-me com amabilidade depois de me ouvir um bom bocado, quando já não conseguia evitar o ar aborrecido. Foi então que lançámos o ataque frontal. Chegámos a um acordo civilizado: ele faria o esforço de estar mais presente na minha vida e eu o de estar mais ausente da sua. Ou seja, «nem careca nem com duas perucas», como dizem na Venezuela. Não tinha intenção de cumprir a minha parte do acordo, como se viu logo a seguir, quando lhe sugeri que devia conhecer mulheres, porque o celibato não convinha a um homem da sua idade: um órgão que não é usado atrofia.

Soube que numa festa do trabalho estiveste a conversar com uma rapariga muito simpática. Quem era ela? — perguntei-lhe.

Como é que soubeste? — inquiriu, alarmado.

Tenho as minhas fontes de informação... Estás a pensar telefonar-lhe?

Já me chegam três filhos, mamã. Não tenho tempo para aventuras. — E riu-se.

Tinha a certeza que o Nico podia atrair a mulher que quisesse: tinha o rosto de um nobre do Renascimento italiano, bom feitio, no que saiu ao pai, e nada de tolo, no que me saiu a mim, mas se não fazia um esforço ainda ia acabar num mosteiro de trapistas. Falei-lhe do psiquiatra com a corte de holandesas que lavavam as janelas da nossa casa, mas não mostrou o menor interesse pela história. «Não te metas», voltou a dizer-me o Willie, como sempre. Como é evidente, ia meter-me, mas tinha de dar algum tempo ao Nico para lamber as feridas.

 

segundo o dicionário, o Outono é não só a estação dourada do ano, mas também a idade em que deixamos de ser jovens. O Willie estava quase com sessenta anos e eu percorria com passo ainda firme a década dos cinquenta, mas a minha juventude terminou junto de ti, Paula, no corredor daquele hospital de Madrid. Senti a idade madura como uma viagem para dentro de mim e o começo de uma nova forma de liberdade: podia usar sapatos confortáveis e já não tinha de fazer dieta nem de agradar a meio mundo, só àqueles que realmente importam. Antes tinha as antenas sempre sintonizadas para captar a energia masculina no ar; depois dos cinquenta as antenas murcharam e agora só me sinto atraída pelo Willie. Bom, pelo António Banderas também, mas isso é puramente teórico. A nós, a mim e ao Willie, mudou-nos o corpo e a mente. A memória prodigiosa dele começou a falhar, deixou de saber de cor os números de telefone de todos os seus amigos e conhecidos. Começou a ficar com as costas e os joelhos rígidos, as alergias pioraram e habituei-me a ouvi-lo pigarrear constantemente como uma velha locomotora. Ele, por sua vez, resignou-se às minhas peculiaridades: os problemas emocionais provocam-me cólicas intestinais e dores de cabeça, não consigo ver filmes com muito sangue, não gosto de reuniões sociais, como chocolae as escondidas, irrito-me com facilidade e desperdiço dinheiro como se ele crescesse nas árvores. Neste Outono da vida, por fim conhecemo-nos e aceitamo-nos inteiramente; a nossa relação tornou-se ais rica. Estar juntos é para nós tão natural como respirar e a paixão sexual deu lugar a encontros mais tranquilos e ternos. Nada de castidade. Estamos apegados um ao outro, já nos queremos separar-nos, mas isso não significa que não tenhamos zangas; nunca largo a espada, não vá o diabo tecê-las.

Numa das nossas viagens a Nova Iorque, paragem obrigatória de todas as digressões de promoção dos meus livros, visitámos o Ernesto e a Giulia no seu apartamento de Nova Jérsia. Abriram-nos a porta e a primeira coisa que vimos ao entrar foi um pequeno altar com uma cruz, as armas do aiquidô do Ernesto, uma vela, duas rosas numa jarra e uma fotografia tua. A casa tinha a mesma brancura e simplicidade que os ambientes que decoraste durante a tua curta vida, talvez porque o Ernesto tivesse um gosto semelhante ao teu. «Ela protege-nos», disse-nos a Giulia, apontando para o teu retrato ao passar, com a maior naturalidade. Compreendi que aquela jovem tivera a inteligência de te adoptar como amiga, em vez de competir com a tua recordação, e com isso conquistou a admiração da família do Ernesto, que te adorava, e, como é evidente, da nossa. Foi nessa altura que comecei a planear uma maneira de os instalar na Califórnia, onde poderiam fazer parte da tribo. Que tribo? Já pouco restava dela: o Jason em Nova Iorque, a Célia com outra pessoa, o Nico abespinhado e ausente, os meus três netos de um lado para o outro com as suas malitas de saltimbancos, os meus pais no Chile e a Tabra em viagem por cantos ignotos do mundo. Até a Sabrina tinha a sua própria vida e víamo-la pouco; já conseguia andar sozinha com um andarilho e para o Natal pediu-nos uma bicicleta maior que a que tinha.

Estamos a ficar sem tribo, Willie. Temos de nos despachar a fazer alguma coisa, ou ainda acabamos a jogar bingo num lar de idosos na Florida, como tantos velhos americanos, que estão mais sós do que se vivessem na Lua.

Qual é a alternativa? — perguntou o meu marido, pensando sem dúvida na morte.

Transformarmo-nos num peso para a família, mas antes temos de a aumentar — informei-o.

Na brincadeira, claro, porque o mais temível na velhice não é a solidão, mas a dependência. Não quero pesar ao meu filho nem aos meus netos com a minha decrepitude, embora gostasse de passar os meus últimos anos junto deles. Fiz uma lista de prioridades para os meus oitenta anos: saúde, recursos económicos, família, cadela, histórias. As duas primeiras permitir-me-iam decidir onde e como viver; a terceira e a quarta acompanhar-me-iam; e as histórias manter-me-iam calada e entretida, sem incomodar ninguém. Tanto eu como o Willie vivemos aterrados com a ideia de perder a lucidez e de ter de ser o Nico ou, pior, de terem de ser pessoas estranhas a decidir por nós. Lembro-me de ti, minha filha, que estiveste vários meses à mercê de pessoas desconhecidas antes que tivéssemos podido trazer-te para a Califórnia. Quantas vezes terás sido maltratada por um médico, uma enfermeira ou uma empregada sem que eu o tenha sabido? Quantas vezes terás desejado no silêncio desse ano que te deixassem morrer depressa e em paz?

Os anos vão passando em segredo, em pontas de pés, a troçar em sussurro, e de repente assustam-nos no espelho, dão-nos impunemente uma pancada nos joelhos ou cravam-nos um punhal nas costas. A velhice ataca-nos dia a dia, mas parece mostrar-se ao passar de cada década. Tenho uma fotografia tirada aos quarenta e nove anos, na apresentação de O Plano Infinito em Espanha; é a fotografia de uma mulher jovem, de mãos nas ancas, desafiadora, com um xaile vermelho sobre os ombros, as unhas pintadas e umas argolas grandes da Tabra nas orelhas. Foi nesse momento, com António Banderas ao meu lado e um copo de champanhe na mão, que me anunciaram que acabavas de entrar no hospital. Saí a correr, sem imaginar que a tua vida e a minha juventude estavam a acabar. Outra fotografia minha, tirada uns anos mais tarde, mostra uma mulher madura, de cabelo curto, os olhos tristes, a roupa escura, sem adornos. O corpo Pesava-me, via-me ao espelho e não me reconhecia. Não foi só o sofrimento que me envelheceu subitamente, porque quando vejo as fotografias no álbum de família noto que quando fiz trinta anos e também Quarenta houve uma mudança drástica no meu aspecto. No futuro também há-de ser assim, só que em vez de o notar a cada dez anos será a cada ano bissexto, diz a minha mãe. Ela vai vinte anos à minha frente, a abrir caminho, a mostrar-me como serei em cada etapa da minha vida. «Toma cálcio e hormonas, para não te falharem os ossos, como a mim», aconselha-me. Repete-me que cuide de mim, que goste de mim, que saboreie cada dia, porque passam muito depressa, que não deixe de escrever, para manter a mente activa, e que faça ioga, para poder baixar-me e calçar-me sozinha. Acrescenta que não me esforce por manter uma aparência jovem, porque os anos notam-se seja como for, por muito que tente dissimulá-los, e não há nada tão ridículo como uma velha com pose de Lolita. Não há truques mágicos que evitem a deterioração, que apenas se pode adiar um pouco. «Depois dos cinquenta, a vaidade só serve para sofrer», assegura-me essa mulher com fama de bela. Mas a fealdade da velhice assusta-me, e tenciono combatê-la enquanto me restar saúde. Foi por isso que estiquei a cara com cirurgia plástica, uma vez que ainda não descobriram maneira de rejuvenescer as células com um xarope. Não nasci com a esplêndida matéria-prima da Sofia Loren, por isso preciso de toda a ajuda possível. A operação consiste em desprender músculos e pele, cortar o que sobra e coser de novo a carne à caveira, esticada como uns collants. Durante algumas semanas tive a sensação de andar com uma máscara de madeira, mas acabou por valer a pena. Um bom cirurgião pode enganar o tempo. Não posso falar deste assunto à frente das minhas irmãs da desordem nem do Nico, porque defendem que a idade tem a sua própria beleza, mesmo com verrugas peludas e com varizes. Tu eras da mesma opinião. Sempre gostaste mais dos velhos que das crianças.

 

A propósito de cirurgia plástica, uma quarta-feira de madrugada a Tabra ligou-me, um pouco perturbada, com a notícia de que uma das suas mamas tinha desaparecido.

Estás a brincar comigo?

Esvaziou-se. Um lado está liso, mas o outro peito continua como novo. Não me dói nada. Achas que devia ir ao médico?

Fui logo buscá-la e levei-a ao cirurgião que a operara, que nos assegurou que a culpa não era dele, mas sim da fábrica de implantes: às vezes vêm defeituosos, rompem-se e o líquido espalha-se pelo corpo. Não havia razão para preocupações, acrescentou. Tratava-se de uma solução salina que com o tempo era absorvida sem perigo para a saúde. «Mas ela não pode ficar só com um peito!», meti-me eu. O médico achou que a ideia era razoável e uns dias mais tarde substituiu o globo esvaziado, embora não lhe tenha ocorrido fazer um desconto no preço dos seus serviços. Três semanas mais tarde aconteceu o mesmo com o outro. A Tabra chegou a nossa casa coberta com uma capa.

—        Se o desgraçado não se responsabiliza pelas tuas mamas, levamo-lo a tribunal! Tem de te operar gratuitamente! — gritou o Willie.

Antes quero não voltar lá, Willie. Ainda se aborrece. Fui a outro médico — confessou ela.

E esse percebe de peitos? — perguntei-lhe eu.

É um homem muito decente. Vê lá tu que todos os anos vai à Nicarágua operar gratuitamente crianças com lábio leporino!

Na realidade, fez um excelente trabalho. A Tabra vai ter seios de donzela até à morte, aos cem anos. As mulheres da família dela vivem até muito tarde. Meses depois o primeiro cirurgião, o dos implantes falhados, apareceu nos jornais. Tinham-lhe tirado a licença e corria o risco de ser preso, porque operou uma doente e deixou-a toda a noite no consultório sem uma enfermeira e a mulher teve um ataque e morreu. O meu neto Alejandro calculou o preço de cada peito da tia Tabra e sugeriu-lhe que cobrasse dez dólares para os mostrar e quinze a quem quisesse mexer-lhes, para recuperar o investimento num prazo aproximado de três anos e cento e cinquenta dias, mas o negócio das jóias ia bem e ela não precisou de recorrer a medidas tão drásticas.

Tendo em conta a prosperidade da sua empresa, a Tabra contratou um gestor de ideias faraónicas. O seu negócio havia sido construído a partir do nada. Começou a vender na rua e pouco a pouco, com muito trabalho, perseverança e talento, conseguiu montar uma empresa-modelo. Nunca percebi para que precisava de um tipo arrogante que nunca tinha feito uma pulseira na vida, e nem sequer tinha usado nenhuma. Não podia sequer gabar-se de uma bela cabeleira negra. Ela sabia muito mais que ele. O doutor começou por comprar uma bateria de computadores como os da NASA, vendidos por um amigo dele e que nenhum dos refugiados asiáticos da Tabra aprendeu a usar, apesar de alguns deles falarem várias línguas e terem uma sólida educação, e em seguida decidiu que precisava de um grupo de consultores para formar uma administração. Escolheu-os entre os amigos e atribuiu-lhes bons ordenados. Em menos de um ano a empresa da Tabra ficou tão periclitante como o gabinete de advocacia do Willie, porque saía mais dinheiro do que entrava e era preciso sustentar um exército de empregados cujas funções ninguém entendia. Isto coincidiu com uma crise na economia do país, nesse ano chegou a moda das jóias minimalistas, em vez das grandes peças étnicas da Tabra, houve roubos internos na empresa e má administração. Foi essa a altura escolhida pelo gestor para se ir embora e deixar a Tabra enterrada em dívidas. Foi trabalhar como consultor para outra empresa, recomendado pelos mesmos que tinha na sua administração. Durante quase um ano, a Tabra lutou com os credores e a pressão dos bancos, mas teve de se resignar a abrir falência. Vendeu a sua poética propriedade no bosque por muito menos do que dera por ela. Os bancos apropriaram-se dos seus bens, da camioneta à maquinaria da fábrica e à maior parte da matéria-prima adquirida durante uma vida inteira. Meses antes, a Tabra oferecera-me alguns frascos de contas e de pedras semipreciosas, que guardei na cave à espera que arranjasse tempo para me ensinar a usá-las; não fazia ideia que ainda viria a utilizá-las para o seu trabalho. Eu e o Willie esvaziámos e pintámos o quarto do primeiro andar que era teu e oferecemos-lho, para que pelo menos tivesse um tecto e uma família. Mudou-se para nossa casa com os poucos móveis e objectos de arte que conseguiu salvar. Arranjámos-lhe uma mesa grande e ali começou de novo, como trinta anos antes, a fazer as suas jóias uma a uma. Quase todos os dias saíamos as duas para um passeio e para falar da vida. Nunca a ouvi queixar-se ou amaldiçoar o gestor que a arruinou. «A culpa de o ter contratado foi minha. Nunca voltarei a fazer uma coisa assim», foi tudo o que me disse. Durante os anos em que me dei com ela, que foram muitos, vi a minha amiga desiludida, doente, pobre e com mil problemas, mas só a vi desesperada quando lhe morreu o pai. Chorou esse homem durante muito tempo sem que eu a pudesse ajudar. Na época das suas dificuldades económicas não pareceu modificar-se. Com humor e coragem, dispôs-se a percorrer a partir do princípio o caminho que fizera desde a juventude, convencida de que, se o fizera aos vinte anos, poderia voltar a fazê-lo aos cinquenta. tinha a vantagem de o seu nome ser conhecido em vários países. Não há ninguém que trabalhe com jóias étnicas que não a conheça; donos de galerias no Japão, em Inglaterra, nas Caraíbas e em muitos outros lugares procuram as suas jóias e tem clientes que as compram de forma obsessiva; chegam a juntar mais de quinhentas e continuam a comprá-las.

A Tabra revelou-se a hóspede ideal. Por cortesia, comia tudo o que lhe púnhamos no prato; se não fossem as nossas caminhadas diárias, teria acabado redonda. Era discreta, silenciosa e divertida, além de que nos entretinha com as suas ideias.

As baleias são machistas. Quando a fêmea está com o cio, os machos cercam-na e violam-na — contou-nos.

Não se pode brincar aos cetáceos com um critério cristão — contrapôs o Willie.

A moral é apenas uma, Willie.

Os índios yanomami, da floresta amazónica, raptam mulheres de outras tribos e são polígamos.

Então a Tabra, que tem um grande respeito pelos povos primitivos, concluía que nesse caso se aplicava a mesma moral que no das baleias. E isto para não falar das discussões de política! O Willie é muito progressista, mas em comparação com a Tabra parece um tali-bã. Para se entreter durante outro dos desaparecimentos de Alfredo López Lagarto Emplumado, que coincidiu com a sua bancarrota, a nossa amiga voltou ao velho vício dos encontros às cegas através de anúncios de jornal. Um dos candidatos apresentou-se com a camisa aberta até ao umbigo e com meia dúzia de cruzes de ouro sobre o peito peludo. Isso, além do facto de ser de raça branca e estar a começar a ficar careca, parecia suficiente para que ela perdesse o interesse, mas ele parecia inteligente e a Tabra decidiu dar-lhe uma oportunidade. Encontraram-se num café, conversaram um bom bocado e descobriram que tinham muitas coisas em comum, como Che Gue-vara e outros guerrilheiros heróicos. Para o segundo encontro, o homem abotoou a camisa e levou-lhe uma prenda embrulhada com grande requinte. Quando a abriu, a Tabra verificou que se tratava de um pénis de dimensões generosas talhado em madeira. Chegou a casa furiosa e atirou-o para a lareira, mas o Willie convenceu-a de que se tratava de um objecto artístico e de que, se coleccionava cabaças da Nova Guiné destinadas a cobrir vergonhas masculinas, não havia razão para se ofender com aquela prenda. Apesar das suas dúvidas, voltou a sair com o galã. No terceiro encontro esgotaram os assuntos relacionados com a guerrilha latino-americana e ficaram calados um bom bocado, até que ela, para quebrar o silêncio, lhe disse que gostava de melões. «Pois eu gosto é dos teus melões», respondeu ele, pondo uma pata sobre a mama que tanto dinheiro lhe custara. E como ela ficou paralisada de estupor perante a tropelia, sentiu-se autorizado a dar o passo seguinte e convidou-a para uma orgia em que os convivas se despiam e lançavam de cabeça para uma pilha humana, aos pinotes, como os romanos no tempo de Nero. Costumes da Califórnia, ao que parece... A Tabra acusou o Willie, disse-lhe que o pénis não fora uma prenda artística, mas sim uma proposta desonesta e um atentado à decência, como ela desconfiava. Houve outros pretendentes, muito divertidos para nós, mas não tanto para ela.

A Tabra não era a única a surpreender-nos. Soubemos por essa altura que a Sally se casara com o irmão da Célia para que ele conseguisse um visto que lhe permitisse permanecer no país. Para convencer o Serviço de Imigração de que se tratava de um casamento legítimo, fizeram uma festa com bolo de noiva e tiraram uma fotografia em que a Sally usava o famoso vestido creme que tantos anos elan-guescera no meu guarda-fatos. Supliquei à Célia que escondesse a fotografia, porque nunca conseguiria explicar aos filhos que a companheira da mãe se casara com o tio, mas ela não gosta de segredos. Diz que com o tempo tudo acaba por se saber e que não há nada mais perigoso que as mentiras.

 

Nico fez-se um homem muito atraente. Usava o cabelo comprido como um apóstolo e os traços do seu avô acentuaram-se; tinha olhos grandes e lânguidos, um nariz aristocrático, queixo quadrado e mãos muito elegantes. Era inexplicável que não houvesse uma dúzia de mulheres a acotovelarem-se à porta da casa dele. Nas costas do Willie, que não percebe nada destas coisas, eu e a Tabra decidimos arranjar-lhe uma namorada, ou seja, precisamente o que tu terias feito nas mesmas circunstâncias, minha filha, por isso escusas de me ralhar.

Na índia e em muitos outros lugares do globo os casamentos são arranjados e há menos divórcios que no mundo ocidental — ex-plicou-me a Tabra.

Isso não prova que sejam felizes, só que têm mais paciência —     argumentei.

O sistema funciona. Casar por amor traz muitos problemas. É mais seguro juntar duas pessoas compatíveis, que com o tempo aprendam a gostar uma da outra.

E um pouco arriscado, mas não me lembro de nada melhor —       confessei.

Não é fácil fazer arranjos destes na Califórnia, como ela própria verificara ao longo de muitos anos, já que nenhuma agência matrimonial lhe arranjou um homem que valesse a pena. O melhor ainda tinha sido o Lagarto Emplumado, mas continuava desaparecido. Líamos os jornais regularmente para ver se a coroa de Montezuma fora devolvida ao México, mas nada. Tendo em conta os resultados nulos obtidos pela Tabra, não quis recorrer a anúncios em jornais nem a agências; além disso teria sido indiscreto, uma vez que não falara do assunto com o Nico. As minhas amigas não serviam, porque já não eram jovens e nenhuma mulher na menopausa estaria disposta a criar os meus três netos, por muito simpático que fosse o Nico.

Dediquei-me a procurar-lhe uma namorada por toda a parte, e com a prática fui apurando a vista. Procurava entre amigos e conhecidos, esquadrinhava as jovens que me pediam dedicatórias nas livrarias, cheguei a abordar com descaramento duas jovens na rua, mas esse método revelou-se muito lento e pouco eficaz. Por aquele andar, o teu irmão chegava aos setenta anos solteiro. Eu ia estudando as mulheres e punha-as de parte por vários motivos: ou eram chatas, ou tagarelas ou tímidas, fumadoras ou macrobióticas, ou se vestiam como as mães ou tinham tatuagens de Nossa Senhora de Guadalupe nas costas. Tratava-se do meu filho, de maneira que a escolha não podia ser feita de qualquer maneira. Começava a desesperar quando a Tabra me apresentou a Amanda, fotógrafa e escritora, que queria fazer uma reportagem comigo no Amazonas para uma revista de viagens. A Amanda era muito interessante e bonita, mas era casada e queria ter filhos em breve, de maneira que não servia para os meus desígnios sentimentais. No entanto, no meio da conversa que tivemos com ela, o meu filho veio à baila e eu contei-lhe o drama completo, porque o que acontecera com a Célia já não era segredo nenhum; ela própria se encarregara de o espalhar aos quatro ventos. A Amanda anunciou-me que conhecia a rapariga ideal: Lori Barra, kra a sua maior amiga, possuía um coração generoso, não tinha filhos, era bonita, requintada, designer gráfica de Nova Iorque e vivia em São Francisco. Tinha um pretendente detestável, de acordo com a Amanda, mas arranjaríamos maneira de nos livrarmos dele para a Lori ficar disponível para a apresentarmos ao Nico. Nada de pressas, disse-lhe eu. Primeiro teria de a conhecer a fundo. A Amanda organizou um almoço e eu levei a Andrea, porque me pareceu que a jo-Vem designer teria de fazer uma ideia do que lhe cairia em cima. Dos três, a Andrea era sem dúvida a mais peculiar. Apareceu vestida de mendiga, com trapos cor-de-rosa amarrados em diferentes partes do corpo, um chapéu de palha com flores murchas e o seu boneco Sal-ve-o-Atum. Estive vai não vai para a levar às compras de rastos para lhe vestir uma fatiota mais apresentável, mas depois achei que era melhor a Lori conhecê-la no seu estado natural.

A Amanda não falou dos nossos planos à amiga, nem eu ao Nico, para não os alarmar. O almoço no restaurante japonês foi uma boa artimanha, que não despertou a desconfiança da Lori, que apenas queria conhecer-nos porque gostava das jóias da Tabra e tinha lido um ou dois livros meus — dois pontos a seu favor. Tanto eu como a Tabra ficámos impressionadas com ela: era um exemplo de simplicidade e encanto. A Andrea observou-a em silêncio, ao mesmo tempo que tentava em vão enfiar na boca pedaços de peixe cru com dois palitos.

Numa hora não se conhece uma pessoa — advertiu-me a Tabra depois.

É perfeita! Até é parecida com o Nico... São os dois altos, magros, bonitos, com ossos fortes, e vestem-se de preto: parecem gémeos.

Isso não é uma boa base para um casamento.

Na índia são os horóscopos, o que também não se pode considerar muito científico. Tudo é uma questão de sorte, Tabra — repliquei.

Devíamos conhecê-la melhor. Precisamos de ver como se comporta em circunstâncias difíceis.

Como uma guerra, por exemplo?

Isso seria o ideal, mas não temos nenhuma a jeito. Que te parece a ideia de a convidarmos para o Amazonas? — sugeriu a Tabra.

E foi assim que a Lori, que tínhamos visto uma única vez debruçada sobre um prato de sushi, acabou por partir connosco para o Brasil na qualidade de ajudante da Amanda, a fotógrafa.

Quando planeávamos a odisseia ao Amazonas imaginei que iríamos a um sítio muito primitivo, onde o carácter da Lori e das restantes expedicionárias seria posto em evidência, mas infelizmente a viagem foi muito menos perigosa do que contávamos. A Amanda e a Lori tinham previsto tudo até ao mais pequeno pormenor, de maneira que chegámos sem inconvenientes a Manaus, depois de alguns dias na Baía, onde fizemos uma paragem para conhecer Jorge Amado. Tanto eu como a Tabra tínhamos lido todos os seus livros e queríamos saber se o homem era tão extraordinário como o escritor. Jorge Amado recebeu-nos com a mulher, Zélia Gattai, em sua casa, sentado numa poltrona, amável e hospitaleiro. Aos oitenta e quatro anos, meio cego e bastante doente, continuava com o sentido de humor e a inteligência que caracterizam os seus romances. Era o pai espiritual da Baía e havia citações dos seus livros em toda a parte: gravadas em pedra, nas fachadas dos edifícios municipais, em grafitos e pinturas primitivas nas choupanas dos pobres. Muitas ruas e praças ostentavam orgulhosamente os títulos dos seus livros e os nomes das suas personagens. Jorge Amado convidou-nos para provar as delícias culinárias da sua terra no restaurante de Dada, uma negra bonita, que não inspirou o seu famoso romance Dona Flor e os Seus Dois Maridos porque era uma criança quando ele o escreveu, mas que casava com a descrição da personagem: bonita, baixinha e agradavelmente roliça, sem ser gorda. A réplica de Dona Flor regalou-nos com mais de vinte pratos suculentos e uma amostra dos seus doces, que culminou nos seus pastéis de punhetinha. E inútil dizer que tudo isto me serviu para o meu livro Afrodite!

O velho escritor também nos levou a um terreiro, de que era pai protector, para assistirmos a uma cerimónia de candomblé, a religião levada pelos escravos africanos para o Brasil há vários séculos e que actualmente conta com mais de dois milhões de adeptos, incluindo brancos de classe média. Os ofícios divinos tinham começado cedo com o sacrifício de alguns animais aos orixás, mas essa parte não a Vimos. A cerimónia decorreu num edifício que parecia uma escola Modesta, enfeitada com papel crepe e retratos de mães de santos já decidas. Sentámo-nos em bancos duros de madeira e pouco depois chegaram os músicos e começaram a tocar os seus tambores a um ritmo irresistível. Entraram várias mulheres vestidas de branco, em fila, a girar com os braços levantados em torno de um poste sagrado, invocando os orixás. Uma a uma, foram caindo em transe. Nada de espumar pela boca ou de convulsões violentas, nada de velas negras nem de serpentes, nada de máscaras aterradoras nem de cabeças ensanguentadas de galos. As mulheres mais velhas levavam para outra sala as que caíam «montadas» pelos deuses e logo a seguir traziam--nas de volta, ataviadas com os coloridos atributos dos seus orixás, para continuarem a dançar até ao nascer do Sol, quando a liturgia terminava com uma abundante refeição cozinhada com a carne assada dos animais sacrificados, mandioca e doces.

Explicaram-me que cada pessoa pertence a um orixá — às vezes a mais de um — e em qualquer momento da sua vida pode ser chamada e tem de se pôr ao serviço da sua divindade. Quis saber qual era a minha. Alguns anos atrás, quando li o livro de Jean Shinoda Bolen, a minha irmã da desordem, sobre as deusas que supostamente há em cada mulher, fiquei um pouco confundida. Talvez o candomblé fosse mais preciso. Uma mãe-de-santo, uma mulher enorme, debaixo de uma tenda de véus e encaixes, com um turbante feito de vários lenços e uma cascata de colares e pulseiras, jogou-nos os búzios. Incitei a Lori a que tirasse a sorte em primeiro lugar e os búzios anunciaram de forma críptica um novo amor, «alguém que conhecia, mas ainda nunca vira». Eu e a Tabra tínhamos falado muito do Nico, embora procurando que as nossas intenções não se tornassem evidentes, mas se por essa altura a Lori ainda não o conhecesse é porque tinha estado na lua. «Vou ter filhos?», perguntou a Lori. Três, responderam os búzios. «Ah, ah!», exclamei, encantada, mas um olhar da Tabra devolveu-me o bom senso. Depois coube-me a mim tirar as sortes. A mãe-de-santo esfregou longamente um punhado de búzios, pediu-me que os acariciasse e depois lançou-os sobre um pano negro-«Pertences a Iemanjá, a deusa dos oceanos, mãe de tudo. É com le' manja que começa a vida. E forte, protectora, cuida dos filhos, coforta-os e ajuda-os na dor. Pode curar a infertilidade nas mulheres, lemanjá é compassiva, mas quando se encoleriza é terrível, como uma tormenta no oceano.» Acrescentou que eu vivera um grande sofrimento, que me paralisara por algum tempo, mas que ele já começava a dissipar-se. A Tabra, que não acredita nestas coisas, teve de admitir que pelo menos a parte que dizia respeito à maternidade se ajustava a mim. «Acertou por acaso», foi a sua conclusão.

Vista do avião, a Amazónia é uma mancha verde interminável. Lá em baixo é a pátria da água: vapor, chuva, rios largos como mares, suor. O território amazónico ocupa sessenta por cento da superfície do Brasil, uma área maior que a índia, e pertence à Venezuela, à Colômbia, ao Peru e ao Equador. Nalgumas regiões continua a imperar a lei da selva entre bandidos e traficantes de ouro, de drogas, de madeira e de animais, que se matam entre si, e, quando não conseguem matar impunemente os índios, arranjam maneira de os expulsar das suas terras. E um continente em si mesmo, um mundo misterioso e fascinante. Pareceu-me tão incompreensível na sua imensidão que nunca pensei que pudesse vir a inspirar-me, mas vários anos mais tarde usei muito do que ali vi no meu primeiro romance juvenil.

Para resumir a viagem, já que os pormenores não cabem neste relato, posso dizer que foi muito mais segura do que desejávamos, porque íamos preparadas para uma dramática aventura à Tarzan. O mais próximo do Tarzan que se nos deparou foi uma macaca preta pulguenta que se afeiçoou a mim e que me esperava desde madrugada à porta do meu quarto para se instalar sobre os meus ombros, com o rabo enrolado ao meu pescoço, esforçando-se por encontrar piolhos no meu cabelo com os seus dedinhos de duende. Foi um romance delicado. O resto foi um passeio ecoturístico: os mosquitos eram suportáveis, as piranhas não nos arrancaram nenhum pedaço e não tivemos de nos esquivar a quaisquer flechas envenenadas; os contrabandistas, os soldados, os bandoleiros e os traficantes passaram ao


nosso lado sem nos ver; não apanhámos malária; não houve vermes a introduzirem-se sob a nossa pele nem peixes semelhantes a agulhas nas nossas vias urinárias. Voltámos sãs e salvas, as quatro expedicionárias. No entanto, a pequena aventura serviu amplamente o seu propósito, que foi ficar a conhecer a Lori.

 

A Lori passou com nota máxima. Era tal qual a Amanda a descrevera: tinha uma mente aberta e uma bondade natural. Com discrição e eficiência, aliviava a carga das companheiras, resolvia questões de pormenor aborrecidas e suavizava crispações inevitáveis. Tinha boas maneiras, o que é fundamental para uma boa convivência, pernas compridas, que também não fazem mal nenhum, e um riso franco, que não poderia deixar de seduzir o Nico. Tinha ainda a vantagem de ser um pouco mais velha que ele, já que a experiência é sempre útil, mas parecia muito jovem. Era bonita, com feições fortes, um magnífico cabelo preto e ondulado e olhos dourados, mas isso ainda era o menos, porque o meu filho não dá a menor importância à aparência física; ralha-me por usar maquilhagem e não quer acreditar que com a cara lavada pareço um carabineiro. Observei a Lori com a atenção de um abutre e até lhe preparei algumas ciladas, mas não consegui apanhá-la numa única falta, o que me preocupou um pouco.

Ao fim de duas semanas, exaustas, regressámos ao Rio de Janeiro, onde apanharíamos o avião para a Califórnia. Ficámos num hotel de Copacabana e, em vez de nos bronzearmos nas praias de areia branca» lembrámo-nos de ir a uma favela, para ficarmos com uma ideia e como vivem os pobres e arranjarmos outra pitonisa que lançasse búzios, porque a Tabra continuava céptica em relação à minha Ie-arijá. Fomos com uma jornalista brasileira e um motorista, que nos levou de camioneta por um morro de miséria absoluta, onde não entrava a polícia e muito menos os turistas. Num terreiro muito mais modesto que o da Baía, fomos recebidos por uma mulher de idade madura vestida com calças de ganga. A sacerdotisa repetiu o ritual dos búzios que havíamos visto na Baía e disse-me sem hesitar que eu pertencia à deusa Iemanjá. Era impossível que as duas adivinhas estivessem combinadas. Dessa vez a Tabra teve de engolir as suas observações irónicas.

Saímos da favela e no regresso vimos um sítio modesto onde vendiam comida típica a peso. Pareceu-me mais pitoresco que comer uma salada de camarão no terraço do hotel e pedi ao motorista que parasse. O homem ficou na camioneta para tomar conta do equipamento de fotografia, enquanto nós fazíamos fila à frente de um tasco para que nos servissem com uma colher de pau num prato de cartão. Não sei porque saí, seguida pela Lori e pela Amanda; talvez para perguntar ao motorista se queria comer. Quando cheguei à porta do local verifiquei que a rua, antes agitada e cheia de trânsito, se esvaziara. Não passavam carros, as lojas pareciam fechadas, as pessoas tinham desaparecido. Do outro lado da rua, a uns dez metros de distância, um jovem de calças azuis e uma camisa de manga curta esperava na paragem do autocarro. Atrás dele, um homem parecido, também jovem, com calças escuras e uma camisa igualmente semelhante, avançou com uma pistola grande na mão, sem se esconder. Levantou a arma, apontou-a à cabeça do outro e disparou. Por instantes não percebi o que acontecera, porque o tiro não foi explosivo como no cinema, mas surdo e seco. Antes que a vítima caísse no chão vi saltar um jorro de sangue. Quando já estava por terra, o assassino disparou mais quatro tiros. Em seguida, tranquilo e desafiador, afastou-se pela rua fora. Avancei como um autómato para o homem que se esvaia em sangue no chão. Estremeceu em convulsões violentas e depois fi-cou imóvel enquanto à sua volta alastrava um charco de sangue luminoso. Não consegui baixar-me para o socorrer porque as minhas amigas e o motorista, que se escondera na camioneta durante o crime me me arrastaram para o veículo. Num minuto, a rua voltou a encher-se de gente, ouvi gritos, buzinadelas, e vi os clientes saírem correr do restaurante.

A jornalista brasileira obrigou-nos a subir para a camioneta e deu indicações ao motorista de que nos levasse para o hotel por ruas secundárias. Pensei que queria evitar o trânsito, que sem dúvida se juntaria, mas explicou-nos que era um truque para evitar a polícia. Levámos uns quarenta minutos a chegar ao hotel, o que nos pareceu uma eternidade. Pelo caminho fui assaltada por imagens do golpe militar no Chile, dos mortos nas ruas, do sangue, da violência súbita, pela sensação de que a qualquer momento poderia acontecer algo fatal, de que ninguém estava seguro em sítio nenhum. No hotel esperava-nos a imprensa com várias câmaras de televisão. Inexplicavelmente, haviam tido conhecimento do que acontecera, mas o meu editor, que também lá estava, não nos deixou falar com ninguém. Levou-nos a toda a pressa para um dos quartos e ordenou-nos que nos mantivéssemos ali fechadas até que pudéssemos ser levadas directamente para o avião, porque o assassinato podia ter sido um ajuste de contas entre criminosos, mas a forma como sucedera, na rua e em plena luz do dia, mais parecia uma das famosas execuções da polícia, que nesses tempos tinha o costume de tomar a lei nas próprias mãos com total impunidade. A imprensa e o público falavam do assunto, mas nunca havia provas, e quando as havia depressa desapareciam. Quando se soube que um grupo de estrangeiras, entre as quais me encontrava eu — os meus livros são mais ou menos conhecidos no Brasil —, presenciara o crime, os jornalistas pensaram que poderíamos identificar o assassino. Se assim fosse, tentariam impedir que isso acontecesse. Poucas horas depois estávamos no avião de regresso à Califórnia. A jornalista e o motorista tiveram de se esconder durante várias semanas.

Este incidente foi a prova de fogo para a Lori. Quando nos escapulíamos na camioneta, tremia nos braços da Amanda. Compreendo que ver um homem a esvair-se em sangue depois de ter levado cinco tiros seja uma coisa terrível, mas a Lori já tinha sido assaltada duas ou três vezes em Nova Iorque e percorrera muito mundo, não era a Permeira vez que se encontrava no meio de uma situação violenta. a única que não aguentou; todas as outras aguentámos o que aconteceu sem uma palavra. A reacção dela foi tão dramática que quando chegámos ao hotel tiveram de chamar um médico que lhe desse um calmante. Aquela jovem serena, que durante as semanas anteriores se mantivera sorridente sob pressão e mostrara bom humor perante o desconforto, ousadia para tomar banho num rio entre piranhas e firmeza para pôr no seu lugar quatro russos embriagados que insistiam em impor-lhe as suas atenções, a ela e à Amanda, embora a mim e à Tabra nos tratassem com o respeito devido às avós na Ucrânia, foi-se abaixo com aquelas cinco balas. Talvez a Lori fosse capaz de assumir a responsabilidade que eram os meus três netos e lidar com a nossa estranha família sem que isso lhe fizesse mossa, mas quando a vi naquele estado percebi que era mais frágil do que parecia à primeira vista. Precisaria de um pouco de ajuda.

 

O Amazonas incendiou-me a imaginação. Acabei de escrever Afrodite em poucas semanas; juntei as receitas de Dada, na Baía» e outras inventadas pela minha mãe e depois pedi a Lori que fizesse o design do livro, um bom pretexto para lhe ir baixando as defesas

A Amanda era minha cúmplice. Uma vez fizemos um retiro budista, por iniciativa da Lori, e acabámos por dormir as três numa cela com papel-de-arroz nuns colchões no chão, depois de longas sessões de meditação. Tínhamos de nos sentar durante várias horas em safus, umas almofadas redondas e duras que são parte da prática espiritual. Quem aguenta a almofada já conquistou meio caminho para a iluminação! Este tormento era interrompido três vezes por dia para comermos cereais e darmos passeios lentos em círculo, nun> silêncio completo, no meio de um jardim japonês de pinheiros anões e pedras muito bem ordenadas. Na nossa austera cela sufocávamos com os safus, mas uma senhora de tranças grisalhas e olhos límpidos apareceu para nos recordar as regras. «Mas que tipo de religião é esta que nos proíbe de rir?», perguntou a Amanda. Eu estava um Pouco inquieta, porque a Lori parecia apreciar aquele refúgio de Paz sussurros, que podia estar de acordo com o temperamento errado do Nico, mas era incompatível com a tarefa de criar três filhos.  A Amanda explicou-me que a Lori vivera dois anos no Japão levava com uma telha zen, mas não valia a pena preocupar-nos porque não era incurável.

Convidei a Lori para jantar com a Amanda e a Tabra em nossa casa e apresentei-lhe o Nico e os dois filhos que ela ainda não conhecia e que, em comparação com a Andrea, pareciam quase crianças bem-comportadas. Tinha dito à Lori que o Nico ainda andava muito perturbado pelo divórcio e que não seria fácil arranjar namorada, já que nenhuma mulher no seu perfeito juízo aceitaria um homem com aqueles três miúdos. Ao Nico disse de passagem que conhecera a mulher ideal, mas como era mais velha que ele e já tinha uma espécie de namorado o melhor era continuarmos a procurar. «Parece-me que isso me cabe a mim», respondeu-me a sorrir, mas vi uma sombra de pânico atravessar o seu olhar. Ao Willie falei do nosso plano, porque de qualquer maneira já o tinha adivinhado, e em vez de me repetir a conversa de sempre, que não me metesse, esmerou-se a cozinhar uma saborosa refeição vegetariana para a Lori, porque gostou dela a primeira vez que a viu. Disse que tinha classe e que ficaria muito bem no nosso clã. Tu também terias gostado dela, minha filha. Parece-me que têm muito em comum. Durante o jantar a Lori e o Nico não trocaram uma única palavra, nem sequer olharam um para o outro. A Amanda e a Tabra concordaram comigo que havíamos falhado estrondosamente, mas um mês mais tarde o meu filho confessou-me que saíra várias vezes com ela. Não percebo como conseguiu esconder-mo durante tanto tempo.

Estão apaixonados? — perguntei-lhe.

Parece-me que isso é um tanto prematuro — respondeu o teu irmão, com a cautela habitual.

O amor nunca é prematuro, muito menos na tua idade, Nico.

Ainda só tenho trinta anos!

Trinta? Ainda há meia dúzia de dias andavas a partir os ossos no skate e a atirar ovos às pessoas com uma fisga! Os anos voam, filho, não há tempo a perder.

Alguns anos mais tarde a Amanda contou-me que no dia seguinte àquele em que conheceu a Lori o meu filho se plantou à porta do escritório dela com uma rosa amarela na mão, e quando por fim ela saiu para almoçar e o encontrou ali, como um poste, ao sol, o Nico lhe disse que ia a passar. Não sabe mentir, foi traído pelo rubor.

Em breve o homem por quem a Lori andava enrabichada, um conhecido fotógrafo de viagens, desapareceu do horizonte. Era quinze anos mais velho que ela, imaginava-se irresistível, e talvez o tivesse sido antes de a idade e a vaidade o terem tornado um pouco patético. Quando não andava em alguma das suas excursões ao fim do mundo, a Lori mudava-se para o apartamento dele em São Francisco, umas águas-furtadas sem móveis, mas com uma vista magnífica, onde partilhavam uma longa lua-de-mel que mais parecia uma peregrinação a um mosteiro. Ela suportava pacientemente a necessidade patológica de domínio daquele homem, as suas manias de solteirão e o facto lamentável de as paredes estarem cobertas de raparigas asiáticas com pouca roupa que ele fotografava quando não se encontrava nos gelos da Antárctida ou nas areias do Sara. A Lori tinha de aceitar as regras de convívio: silêncio, reverências, tirar os sapatos, não tocar em nada nas águas-furtadas, não cozinhar, porque ele se sentia incomodado com os cheiros, não telefonar e muito menos convidar alguém, o que seria uma falta de respeito mortal. Tinha de andar em bicos de pés. A única vantagem que oferecia o bom homem eram as suas ausências. Que admirava a Lori nele? As suas amigas não conseguiam compreendê-la. Por sorte estava a começar a fartar-se de competir com as meninas asiáticas, e deixou-o sem culpas quando a Amanda e as suas outras amigas começaram a ridicularizá-lo, ao mesmo tempo que exaltavam algumas virtudes reais e outras imaginárias do Nico. Quando lhe disse adeus, ele replicou-lhe que não aparecesse em nenhum dos lugares onde haviam estado juntos.

Ainda recordo o momento em que o Nico e a Lori tornaram público o seu amor. Um sábado deixou-nos os filhos, para quem o melhor programa era dormir com os avós e enfartarem-se de doces e de televisão, e voltou para os levar no domingo de manhã. Bastou-me ver as suas orelhas escarlates, como ficam sempre que me quer esconder alguma coisa, para adivinhar que passara a noite com a Lori e, conhecendo-o como conheço, perceber que a coisa era séria. Três meses mais tarde estavam a viver juntos.

No dia em que a Lori chegou a casa do Nico com a sua trouxa deixei-lhe uma carta sobre a almofada a dar-lhe as boas-vindas à nossa tribo e a dizer-lhe que a esperávamos, que sabíamos que existia nalgum lugar e que era apenas questão de a encontrarmos. Ao mesmo tempo dei-lhe um conselho que, se eu própria o tivesse seguido, me teria poupado uma fortuna em terapeutas: que aceitasse as crianças como se aceitam as árvores, com gratidão, porque são uma bênção, mas sem expectativas ou desejos; não esperamos que uma árvore seja diferente do que é: amamo-la tal como é. Porque não o terei feito com os meus enteados Lindsay e Harleigh? Se os tivesse aceitado como árvores, talvez tivesse discutido menos com o Willie. Não só procurei modificá-los, mas além disso assumi o ingrato papel de guardiã do resto da família e da nossa casa durante os anos em que estiveram entregues à heroína. Acrescentei nessa carta à Lori que é inútil tentar controlar as vidas das crianças ou protegê-las de mais. Se não pude proteger-te da morte, Paula, como poderia ter protegido Nico e os meus netos da vida? Outro conselho que não sigo.

Para viver com o Nico e integrar-se na tribo, a Lori teve de modificar por completo a sua vida. Passou de uma sofisticada jovem solteira num bairro requintado de São Francisco a mulher e mãe num subúrbio, com todas as obrigações aborrecidas que isso implica. Antes dominava todos os pormenores da sua vida e depois passou a ter de enfrentar a desordem inevitável em qualquer casa onde haja crianças. Levantava-se de madrugada e, depois de despachar as tarefas domésticas, partia para o seu estúdio de design em São Francisco, ou passava várias horas na auto-estrada para se encontrar com os seus clientes de outras cidades. Não lhe sobrava tempo para ler, para a sua paixão pela fotografia, para as viagens que sempre fizera, para os seus muitos amigos e o ioga, mas estava apaixonada e assumiu sem um queixume o papel de mulher e mãe. Em breve foi absorvida pela família. Na altura ainda não o sabia, mas teria de esperar quase anos — até os miúdos serem capazes de tomar conta de si próprios — para recuperar, mediante um esforço consciente, a sua antiga identidade.

A Lori transformou a vida e a casa do Nico. Os móveis toscos, as flores artificiais e os quadros de mau gosto desapareceram. Remodelou a casa e plantou o jardim. Pintou a sala de estar, que antes parecia um calabouço, de um vermelho-veneziano — quase desmaiei quando vi a amostra, mas ficou muito requintado —, comprou móveis leves e deixou algumas almofadas de seda aqui e ali, como nas revistas de decoração. Nas casas de banho pôs fotos de família, velas e toalhas fofas em tons de verde e roxo. No quarto deles havia orquídeas, colares pendurados nas paredes, uma cadeira de baloiço, lâmpadas antigas com abajur e um baú japonês. A sua mão estava presente em tudo, inclusivamente na cozinha, onde as pizas aquecidas e as garrafas de Coca-Cola foram substituídas por receitas italianas de uma bisavó da Sicília, tofu e iogurte. O Nico interessa-se pela cozinha; a especialidade dele é a paelha à valenciana que o ensinaste a fazer, mas enquanto estava sozinho não tinha tempo nem ânimo para os tachos. Junto da Lori recuperou-o. Ela trouxe-lhe uma noção de lar, que muita falta fazia, e o Nico ficou todo inchado. Nunca o tinha visto tão contente e divertido. Andavam de mãos dadas e beijavam-se atrás das portas, com os miúdos a espreitar, enquanto a Ta-bra, a Amanda e eu nos felicitávamos pela escolha. Por vezes aparecia em casa deles à hora do pequeno-almoço, porque o espectáculo daquela família feliz me reconfortava para o resto do dia. A luz da manhã inundava a cozinha, pela janela via-se o jardim e um pouco mais adiante a lagoa e os patos-selvagens. O Nico preparava um monte de crepes, a Lori fazia sumo de fruta e os miúdos, divertidos, despenteados e de pijama, devoravam tudo avidamente. Ainda eram muito pequenos e tinham o coração aberto. O ambiente era festivo e terno, Um alívio depois do drama de doenças, mortes, divórcio e brigas que avíamos suportado durante muito tempo.

 

contei-te que «Às vezes» aparecia, mas a verdade é que tinha a chave da casa do Nico e da Lori e estava mal habituada: chegava a qualquer hora sem avisar, interferia nas vidas dos meus netos, tratava o Nico como uma criança, em resumo, era uma sogra insuportável. Uma vez comprei uma carpete e, sem lhes pedir licença, pu-la na sala, depois de mudar todos os móveis de lugar. Nem me lembrei que, se alguém quisesse modificar toda a decoração da minha casa para me fazer uma surpresa, ainda levava uma paulada na cabeça. Tu eras capaz de me ter devolvido a carpete e de me ter pregado um sermão memorável, Paula, embora eu nunca me tivesse atrevido a impor-te uma carpete persa de três metros por cinco. A Lori agradeceu-me, pálida mas cortês. De outra vez comprei uns bonitos panos de cozinha, para substituir os trapos que eles usavam, e deitei fora os velhos, sem fazer a menor ideia de que haviam pertencido à avó da Lori, já falecida, e que ela os havia guardado durante vinte anos. Com o pretexto de acordar os meus netos com um beijo, introduzia-me na casa deles ao amanhecer. Aconteceu muitas vezes a Lori sair do banho quase nua e dar com a sogra no corredor. Além disso, encontrava-me com a Célia às escondidas, o que na realidade era uma forma de traição à Lori, embora eu fosse incapaz de o ver desse modo. Graças às brincadeiras do destino, o Nico acabava sempre por descobrir. Embora visse muito menos a Célia e a Sally, nunca pus fim ao contacto com elas, por estar certa de que com o tempo as coisas se suavizariam. Pela minha parte iam-se somando as mentiras e as omissões, e

pela parte do Nico os ressentimentos. A Lori sentia-se confundida, em seu redor tudo se movia, nada era claro e conciso. Não percebia que eu e o meu filho nos tratássemos com franqueza absoluta em tudo menos no que dizia respeito à Célia. Foi ela que insistiu na verdade, disse que não suportava aquele terreno resvaladiço e perguntou até quando tencionávamos evitar um confronto saudável. E claro que tivemos esse confronto mais de uma vez.

Tenho de manter uma certa relação com a Célia e espero que seja civilizada, mas mínima. E desagradável, provoca-me com o seu mau feitio e por mudar constantemente as regras. A única coisa que temos em comum são os miúdos, mas se tu te metes no meio tudo se complica — explicou-me o Nico.

Percebo o que queres dizer, mas estou na mesma posição que tu. Nico, tu és meu filho e eu adoro-te, mas a minha amizade com a Célia não tem nada que ver contigo nem com a Lori.

Tem sim, mamã. Tens pena de a ver passar dificuldades. E não pensas em mim? Não te esqueças que foi ela que provocou esta situação, que destruiu a nossa família, que fez o que lhe apeteceu, e isso tem consequências.

Não quero ser uma avó a meio tempo, Nico. Também preciso de ver os miúdos nas semanas em que estão com a Célia e a Sally.

Não posso impedi-lo, mas quero que saibas que isso me magoa e desagrada, mamã. Tratas a Célia como um filho pródigo. Nunca substituirá a Paula, se é isso que queres. Sentes-te em dívida com ela porque estava contigo quando a minha irmã morreu, mas eu também lá estava. Quanto mais te aproximas da Célia, mais nos afastas a mim e à Lori, o que é inevitável.

Ai, filho, não há regras fixas para as relações humanas. Podemos reinventá-las, podemos ser originais. Com o tempo a raiva passa e as feridas cicatrizam...

Sim, mas isso não me aproximará da Célia, podes ter a certeza Por acaso estás próxima do meu pai ou do Willi e das ex-mulheres? isto é um divórcio. Quero manter a Célia a uma distância prudente Para poder descontrair-me e viver.

Numa certa noite, memorável, o Nico e a Lori vieram dizer-me que eu me metia de mais nas vidas deles. Procuraram fazê-lo com delicadeza, mas por pouco o choque não me provocou um enfarte. Deu-me um treco pueril e convenci-me de que estava a ser vítima de uma injustiça terrível. O meu filho estava a expulsar-me da vida dele! Ordenava-me que não contrariasse as suas instruções quanto aos filhos; acabavam-se os gelados antes de jantar, o dinheiro e as prendas fora das alturas especiais e a televisão à meia-noite. Mas então para que serve uma avó? Queria condenar-me à solidão? O Willie mos-trou-se solidário, mas no fundo estava a troçar de mim. Fez-me ver que a Lori era tão independente como eu, que tinha vivido sozinha durante muitos anos e não estava habituada a ver outras pessoas em casa dela sem convite. Além disso, como podia ter-me passado pela cabeça comprar uma carpete a uma designer?

Assim que consegui dominar o desespero, telefonei para o Chile para falar com os meus pais, que ao princípio não perceberam muito bem a minha angústia, porque nas famílias chilenas as relações costuma ser como a que eu tinha imposto ao casal, mas depressa se lembraram de que nos Estados Unidos os costumes são diferentes. «Filha, se vimos a este mundo é para perder tudo. Das coisas materiais não custa desprendermo-nos, dos afectos é que é mais difícil», disse--me a minha mãe com tristeza, porque foi essa a sorte que lhe coube, já que nenhum dos seus filhos ou netos vive perto dela. As suas palavras desencadearam outra torrente de queixas, que o tio Ramón interrompeu com a voz da razão para me explicar que a Lori fora obrigada a fazer muitas concessões para ficar com o Nico: mudar de cidade e de casa, modificar o seu estilo de vida, adaptar-se a três enteados e a uma nova parentela, e, o pior de tudo, à presença opressiva da sogra. Os dois precisavam de ar e de espaço para cultivarem a sua relação sem que eu tivesse de ser testemunha de todos os seus movimentos. Recomendou que me tornasse «invisível» e acrescentou que os filhos que não se separam das mães ficam acriançados para sempre. Por muito boas intenções que eu tivesse, disse-me ele, seria sempre a matriarca, posição que não pode deixar de incomodar. E

tinha razão: o meu papel na tribo é descomunal e falta-me a contenção da Avó Hilda. O Willie diz que sou como um furacão dentro de uma garrafa.

Nessa altura lembrei-me de um filme do Woody Allen em que a mãe dele, uma velha avassaladora com uma enorme cabeleira loura oxigenada e olhos de mocho, o acompanha a um espectáculo de variedades. O ilusionista pede um voluntário entre o público para o fazer desaparecer e, sem pensar duas vezes, a senhora sobe ao palco e entra no baú. Depois do truque, a velha senhora desaparece para todo o sempre. Procuram-na dentro do baú mágico, nos bastidores, no resto do edifício, na rua, e nada. Em seguida vêm os polícias, os detectives e os bombeiros, mas todos os esforços para a encontrar são em vão. O filho, encantado, pensa que por fim se livrou dela para sempre, mas a maldita velha aparece-lhe no céu montada numa nuvem, omnipresente e infalível, como Jeová. E pelos vistos eu era igual, como as mães judias das anedotas. Com o pretexto de ajudar e proteger o meu filho e os meus netos, estava a sufocá-los. «Concentra-te no teu marido, nesse pobre homem que já deve estar farto da tua família», acrescentou a minha mãe. O Willie? Farto da minha família? Isso nunca me havia passado pela cabeça, mas o meu pai tinha razão. O Willie teve de viver a tua agonia e o meu longo luto, que mudaram a minha personalidade e me afastaram dele por mais de dois anos, os problemas com a Célia, o divórcio do Nico, as minhas ausências em viagens de trabalho, a minha dedicação obsessiva à escrita, que me mantinha sempre com um pé noutra dimensão, e sabe Deus quantas coisas mais!... Estava na altura de deixar ir o atrelado cheio de gente que sempre arrastei atrás de mim desde os dezanove anos e de me dedicar mais a ele. Atirei a angústia às urtigas, deitei a chave da casa do Nico para o lixo e preparei-me para me ausentar da Vida dele, embora sem desaparecer completamente. Nessa noite fiz Um dos pratos preferidos do Willie, talharim com marisco, abri a Melhor garrafa de vinho branco que tinha em casa e recebi-o vestida de vermelho. «Aconteceu alguma coisa?», perguntou-me, surpreendido ao chegar, atirando para o chão a sua pesada pasta.

 

uma época de grandes reajustamentos nas relações familiares. Parece-me que a minha necessidade de criar e manter uma família, ou, melhor dito, uma pequena tribo, apareceu quando me casei aos vinte anos, se tornou mais forte quando saí do Chile, até porque quando cheguei à Venezuela com o meu primeiro marido e os meus filhos não tínhamos aí amigos nem familiares, à excepção dos meus pais, e se consolidou quando me tornei imigrante nos Estados Unidos. Antes de eu ter cruzado o seu destino, o Willie não fazia ideia do que era uma família; perdeu o pai aos seis anos, a mãe retirou-se para um mundo espiritual privado a que ele nunca teve acesso, os dois primeiros casamentos fracassaram e os filhos optaram muito cedo pelas drogas. No princípio o Willie teve dificuldade em perceber a minha obsessão por me reunir aos meus filhos, por viver o mais perto possível deles e trazer outras pessoas para este pequeno grupo para formar a família grande e unida com que sempre sonhei. Achava que isso era uma fantasia romântica, impossível de pôr em prática, mas ao longo de todos os anos que passámos juntos não só se apercebeu de que é assim que se vive na maior parte do mundo, mas além disso ganhou gosto por viver em família. Há inconvenientes em viver em tribo, mas também há muitas vantagens. Eu prefiro mil vezes a nossa forma de vida ao sonho americano de liberdade individual absoluta; por muito que ajude a vencer no mundo, traz consigo a alianação e a solidão. Por todas estas razões, e por tudo o que tínhamos partilhado com a Célia, foi um golpe duro perdê-la. Feriu-nos a todos, é verdade, e deixou de pernas para o ar a família que com tanto esforço havíamos reunido, mas mesmo assim sentia falta dela.

O Nico esforçava-se por manter a Célia à distância, não só porque isso é o normal entre pessoas que se divorciam, mas também porque sentia que ela invadia o território dele. Eu não soube avaliar os sentimentos dele, não percebi que teria de escolher entre os dois, pensei que a minha amizade com a Célia não tinha nada que ver com ele. Não lhe dei o apoio incondicional que, como mãe, lhe devia. Sentiu-se traído por mim, e imagino o que isso lhe deve ter custado. Não podíamos falar com franqueza porque eu evitava a verdade, e ele ficava com os olhos molhados de lágrimas e as palavras ficavam-lhe presas na garganta. Gostávamos muito um do outro e não sabíamos lidar com uma situação que não podia deixar de nos ferir aos dois. O meu filho escreveu-me várias cartas. A sós com o papel conseguia expressar-se e eu conseguia ouvi-lo. A falta que nos fizeste nessa altura, Paula! Sempre tiveste o dom da lucidez. Por fim decidimos fazer terapia juntos. Aí pudemos falar e chorar, dar a mão um ao outro e perdoar.

Ao mesmo tempo que eu e o teu irmão íamos procurando aprofundar a nossa relação, perscrutando o passado e a verdade de cada um, a Lori encarregou-se de o curar das feridas que o divórcio deixou nele; fê-lo sentir-se amado e desejado, e isso modificou-o. Davam longos passeios, iam a museus, ao teatro, viam bons filmes, ela apresentou-o aos amigos, quase todos artistas, interessou-o por viajar, como ela própria fizera desde muito jovem. Aos filhos dele proporcionou um lar sereno, como a Sally fazia com eles na outra casa. Numa redacção da escola, a Andrea escreveu que «era melhor ter três mães do que ter só uma».

Em apenas um ou dois anos, o estúdio de design da Lori deixou de ser rentável. Os clientes convenceram-se de que a visão do artista Podia ser substituída por um programa de computador e milhares de designers ficaram desempregados. A Lori era uma das melhores. Fez um

trabalho de tal maneira notável com o meu livro Afrodite que as mhas editoras em mais de vinte países usaram a mesma capa e as ilustrações escolhidas por ela. Foi por essa razão, e não devido ao conteúdo, que o livro chamou a atenção. Não era tema que se levasse a sério, e além disso tinha acabado de ser lançado no mercado um medicamento novo que prometia acabar com a impotência masculina. Para quê estudar o meu ridículo manual e servir ostras de camisa de noite transparente se uma pequena pílula azul era suficiente? O tom da correspondência que recebi a propósito de Afrodite era claramente diferente do das cartas que recebi depois da publicação de Paula. Um cavalheiro de setenta e sete anos convidou-me para horas e horas de prazer intenso com ele e com a sua escrava sexual e um jovem libanês enviou-me trinta páginas sobre as vantagens dos haréns. Tudo isto ao mesmo tempo que nos Estados Unidos só se falava do escândalo do presidente Bill Clinton com uma empregada gorducha da Casa Branca, que conseguiu deixar na sombra os sucessos do seu governo e acabaria por custar as eleições aos democratas. Um vestido ou umas cuecas manchadas chegaram a ter mais importância que a notável política económica e internacional de um dos presidentes mais brilhantes que o país já teve. O caso deu origem a uma investigação digna da Inquisição, que custou uns insignificantes cinquenta e um milhões de dólares aos contribuintes. Na altura participei num programa de rádio em directo em que se recebiam chamadas dos ouvintes. Alguém me perguntou o que pensava do assunto e eu respondi que tinha sido o broche mais caro da história. A frase havia de perseguir-me por muitos anos. Não foi possível esconder dos miúdos o que se passara, porque os pormenores mais escabrosos eram publicados por toda a parte.

Que é sexo oral? — perguntou a Nicole, que ouvira a expressão repetida à saciedade na televisão.

Oral? É quando se fala disso — explicou a Andrea, que tem o vocabulário vasto de qualquer boa leitora.

Por essa altura uma revista decidiu dar destaque ao meu livro com uma reportagem em nossa casa. Coube à Lori acompanhar a situação, porque eu não percebi que diabo queriam com aquilo. Três dias antes apareceram dois artistas para avaliar a luz, fazer provas de cores, tirar medidas e polaróides. Para a reportagem propriamente dita vieram sete pessoas em duas camionetas com catorze caixotes de objectos variados, de facas a um passador de chá. Estas invasões dão-se com alguma frequência, mas nunca hei-de habituar-me a elas. Neste caso a equipa incluía uma estilista especializada na produção de fotografias de alimentos e dois chefes que se apoderaram da cozinha para prepararem um jantar inspirado no meu livro. Exploraram os pratos com uma lentidão assombrosa, porque colocavam cada folha de alface como a pluma de um chapéu, num ângulo estudado entre o tomate e o espargo. O Willie ficou tão nervoso que se foi embora de casa, mas a Lori parecia compreender a importância da maldita alface. Entretanto, a estilista substituiu as flores do jardim, que o Willie plantara com as próprias mãos, por outras mais coloridas. Nada disto apareceu na revista, porque as fotografias eram apenas pormenores em grande plano: meia amêijoa e um pedaço de limão. Perguntei-lhes porque tinham trazido as toalhas japonesas, as conchas de carapaça de tartaruga e os candelabros venezianos, mas a Lori lançou-me um olhar significativo para que me calasse. Isto durou um dia inteiro, e como não podíamos atacar a comida antes que fosse fotografada, emborcámos cinco garrafas de vinho branco e três de tinto com o estômago vazio. Para o fim até a estilista já andava aos tropeções. A Lori, que só bebeu chá de jasmim, teve de transportar sozinha os caixotes para as camionetas.

A Lori conseguiu manter-se à tona mais tempo que outros designeres, mas o dia em que foi impossível continuar a ignorar os números a vermelho nos seus livros contabilísticos também chegou. Nessa altura propus-lhe que se encarregasse a tempo inteiro da fundação que eu criara depois do meu regresso da índia, inspirada pela menina que vira debaixo da acácia, uma coisa que já antes fazia a meio tempo Todos os anos destino uma parte substancial dos meus rendimentos à fundação, de acordo com o plano que te ocorreu a ti de fa-er o bem com o financiamento da venda dos meus livros. Nesse ano que passaste adormecida ensinaste-me muitas coisas, minha filha; paralisada e muda, continuaste a ser a minha mestre, como foras durante os vinte e oito anos da tua vida. Muito poucas pessoas me deram a oportunidade que tu deste de estar quieta e em silêncio, a recordar. Pude rever o meu passado, aperceber-me de quem sou realmente quando me liberto da vaidade, e decidir o que desejo ser durante os anos que me restam neste mundo. Apropriei-me do teu lema: «só temos o que damos», e descobri, com surpresa, que é a pedra angular do meu contentamento. A Lori tem a tua integridade e o teu dom da compaixão; seria capaz de corresponder ao lema de «dar até que doa», como dizias. Instalámo-nos à mesa mágica da minha avó a conversar dias a fio, até que se foi delineando uma missão clara: apoiar as mulheres mais pobres por qualquer meio ao nosso alcance. As sociedades mais atrasadas e miseráveis são aquelas em que as mulheres são mais oprimidas. Quando ajudamos uma mulher, os filhos dela não morrem de fome, e se as famílias progridem a aldeia beneficia com isso, mas esta verdade tão evidente parece ser ignorada no mundo da filantropia, onde por cada dólar destinado a programas em favor das mulheres se entregam vinte aos dos homens.

Falei à Lori da mulher que vira a chorar, tapada com um saco do lixo na Quinta Avenida, e da experiência recente da Tabra, que regressara do Bangladesh, onde a minha fundação financiava escolas para raparigas em aldeias recônditas e uma pequena clínica para mulheres. A Tabra tinha ido com uma higienista dental sua amiga, que queria oferecer os seus serviços durante uma ou duas semanas na clínica. Levaram as malas cheias de medicamentos, seringas, escovas e tudo o mais que conseguiram reunir com a ajuda de dentistas amigos. Quando chegaram à aldeia já havia uma fila de doentes à porta do local, um recinto quente e invadido pelos mosquitos, onde pouco havia além das paredes. A primeira mulher tinha vários molares podres e há meses que se sentia enlouquecer com o suplício. A Tabra serviu de ajudante, enquanto a amiga, que nunca arrancara dentes, a anestesiava com mão trémula e em seguida lhe extraía os dentes estragados, procurando não desmaiar enquanto procedia à operação quando terminou, a infeliz beijou-lhe as mãos, agradecida e aliviada.

Nesse dia atenderam quinze pacientes e arrancaram muitos dentes, enquanto os homens da comunidade observavam e comentavam os acontecimentos. Na manhã seguinte, a Tabra e a higienista dental chegaram cedo à clínica improvisada e encontraram a primeira paciente do dia anterior com a cara inchada como uma melancia. Ia acompanhada pelo marido, que vociferava indignado que lhe tinham dado cabo da mulher e que os homens da aldeia já estavam a juntar-se para se vingarem. Aterrada, a higienista administrou antibióticos e analgésicos à mulher, rezando aos céus para que não houvesse consequências fatais. «Que terei feito? A mulher está disforme!», lamentou-se quando os dois saíram. «Não foi por causa da operação. Ontem à noite o marido tratou-a à bofetada por não ter chegado a horas de lhe preparar o jantar», explicou-lhe a pessoa que traduzia.

— E é assim a vida das mulheres, Lori. São sempre as mais pobres entre os pobres; são responsáveis por dois terços do trabalho que é feito em todo o mundo, mas possuem menos de um por cento dos bens — expliquei-lhe.

Até então a fundação distribuíra o dinheiro obedecendo a impulsos ou cedendo à pressão de alguma causa justa, mas graças à Lori estabelecemos prioridades: educação, o primeiro passo para a independência em todos os sentidos; protecção, porque há demasiadas mulheres escravizadas pelo medo; e saúde, sem a qual as coisas anteriores de pouco servem. Juntei a isto o controlo da natalidade, que para mim foi essencial, porque, se não tivesse podido decidir uma coisa tão básica como o número de filhos que queria, não teria podido fazer nada do que fiz. Felizmente a pílula anticonceptiva foi inventada; se assim não fosse, eu teria tido uma dúzia de miúdos.

A Lori apaixonou-se pelo trabalho da fundação e de caminho Mostrou que nasceu para ele. E idealista, organizada, apercebe-se dos mais pequenos pormenores e não mede esforços, que neste caso são Sempre grandes. Fez-me ver que não devia repartir o dinheiro às mãos-cheias, que era preciso avaliar os resultados e apoiar os programas anos a fio, e que só assim a ajuda pode produzir resultados, também tínhamos de concentrar os nossos esforços; de nada adiantava

tapar buracos em sítios remotos sem ninguém que os supervisionasse nem abarcar áreas geográficas muito grandes. Era preferível dar mais a menos organizações. Em apenas um ano, a Lori mudou completamente a fundação. Pude delegar tudo nela; a única coisa que faço é assinar os cheques. Correspondeu de forma tão notável que não só aumentou a ajuda que damos, mas além disso também multiplicou o nosso capital e actualmente movimenta mais dinheiro do que alguma vez imaginámos. Tudo isto se destina à missão que nos propusemos, cumprindo assim o teu plano, Paula.

 

AO MEIO DESSE ANO TIVE UM SONHO ESPECTACULAR, de que tomei nota para o contar à minha mãe, uma coisa que tanto eu como ela sempre fizemos. Não há nada tão aborrecido como ouvir sonhos alheios; é por isso que os psiquiatras se fazem pagar tão bem. No nosso caso os sonhos são fundamentais, porque nos ajudam a entender a realidade e a trazer à luz do dia o que está enterrado nas cavernas da alma. Eu encontrava-me de frente para uma escarpa erodida pelo vento, numa praia de areia branca com um mar escuro e um céu límpido anil. De repente, no alto da escarpa, apareceram dois enormes cavalos de guerra com os seus ginetes. Bestas e homens iam ataviados como guerreiros asiáticos da Antiguidade — da Mongólia, da China ou do Japão —, com estandartes de seda, borlas e colares, plumas e outros adornos heráldicos, uma esplêndida parafernália guerreira a brilhar ao sol. Ao fim de uns instantes de hesitação à beira do abismo, os corcéis ergueram as patas dianteiras, relincharam e Com um salto precipitaram-se no vazio, formando no céu um amplo arco de tecidos, plumagens e pendões, enquanto eu retinha a respiração perante a coragem dos bravos centauros. Era um acto ritual e algo

suicida, uma demonstração de bravura e destreza. Um momento antes de porem as patas em terra, os cavalos dobraram a cerviz e caíram sobre um morro, encolheram-se e rodaram sobre si mesmos en uma nuvem de pó dourado. E quando o pó e o estrépito assentou os alazões puseram-se de pé em câmara lenta, com os cavaleiros, e afastaram-se a galope pela praia rumo ao horizonte. Dias mais tarde, numa altura em que ainda andava com estas imagens frescas na memória, tentando dar-lhes sentido, deparei-me com uma autora de livros sobre sonhos, que me fez a sua interpretação, parecida com o que haviam dito os búzios no Brasil: uma queda enorme e dramática pusera a minha coragem à prova, mas eu reerguera-me e, como os corcéis, sacudira o pó e corria rumo ao futuro. No sonho, os cavalos sabiam rodar sobre si mesmos e os ginetes não caíam das montadas. Segundo ela, as provas que vencera no passado tinham-me ensinado a cair e já não havia razão para ter medo, porque poderia sempre voltar a pôr-me de pé. «Lembra-te desses cavalos quando te sentires fraquejar», disse-me.

Lembrei-me dois dias mais tarde, quando estreou uma obra de teatro baseada no meu livro Paula.

A caminho do teatro passámos pela feira de Folsom, em São Francisco. Não fazíamos ideia de que esse dia era o do carnaval dos sadomasoquistas de São Francisco: ruas e mais ruas a abarrotar de gente com indumentária absolutamente extraordinária. «Liberdade! Liberdade para fazer o que quero, foder!», gritava um bom homem com um hábito de frade aberto à frente para mostrar um cinto de castidade. Tatuagens, máscaras, boinas de revolucionários russos, cadeias, chicotes, cilícios de vários tipos. As mulheres tinham as bocas ou as unhas pintadas de negro ou de verde, botas com saltos de agulha, cintos de ligas de plástico preto, enfim, todos os símbolos desta curiosa cultura. Havia várias gordas monumentais a suar em calças e casacos de cabedal com tatuagens de suásticas e de caveiras. Senhoras e cavalheiros usavam argolas atravessadas no nariz, nos lábios, nas orelhas e nos mamilos. Mais abaixo não me atrevi a olhar. Sobre o capo de um carro dos anos 60, uma jovem com os seios descobertos e as mãos atadas era açoitada no peito e nos braços por outra mulher vestida de vampira. Não era a brincar; a mulher estava muito marcada e os gritos ouviam-se no bairro inteiro, tudo isto sob o olhar divertido de um ou dois polícias e de vários turistas, que tiravam fotografias. Ainda quis intervir, mas o Willie agarrou-me pelo casaco» levantou-me pelos ares e levou-me dali a espernear. Um quarteirão mais à frente vimos um gigante barrigudo que levava um anão preso por uma trela. O anão, tal como o dono, usava botas da tropa e ia nu, à excepção de uma tanga de couro negro com aplicações metálicas sobre o pénis, precariamente sustentada por pequenas tiras invisíveis metidas no rego do traseiro. O pequeno ladrou-nos, mas o gigante cumprimentou-nos com amabilidade e ofereceu-nos chupa-chupas em forma de pénis. O Willie largou-me e ficou a olhar, boquiaberto, para o estranho par. «Se algum dia escrever um romance, este anão vai ser o meu protagonista», disse, inesperadamente.

Paula, a obra teatral, começou com os actores em círculo, de mãos dadas, a invocarem o teu espírito. Foi tão emocionante que nem o Willie conseguiu conter os soluços quando no fim leram a carta que escreveste «para ser aberta quando morrer». Uma bailarina etérea e graciosa, vestida com uma camisa branca, tinha o papel de protagonista. Às vezes estava deitada na cama, em coma, outras o seu espírito dançava entre os actores. Só falou no fim, para pedir à mãe que a ajudasse a morrer. Quatro actrizes representaram diversos momentos da minha vida, de criança a avó, e passaram de mão em mão um xaile vermelho de seda, que simbolizava a narradora. O mesmo actor fez de Ernesto e de Willie; outro era o tio Ramón, e conseguiu o riso do público quando declarou o seu amor à minha mãe ou quando lhe explicou que era um descendente directo de Jesus Cristo. Saímos do teatro em silêncio, com a certeza de que continuas a pairar entre os vivos. Alguma vez imaginaste que um dia tocarias tantas pessoas?

No dia seguinte fomos ao bosque das tuas cinzas saudar-te, a ti e a Jennifer. O Verão terminara, o chão estava atapetado de folhas secas, algumas árvores tinham-se vestido com as cores da fortuna, do brilho escuro ao ouro refulgente, e no ar anunciavam-se já as primeiras chuvas. Sentámo-nos num tronco de sequóia, na capela formada Pelas cúpulas das árvores. Dois esquilos brincavam com uma bolota aos nossos pés, olhando-nos de soslaio, sem medo. Consegui ver-te ntacta, antes que a doença tivesse feito os seus estragos: aos três anos

a cantar e a dançar em Genebra, aos quinze a receber um diploma, aos vinte e seis vestida de noiva. Vieram-me à memória os cavalos do meu sonho, que caíam e voltavam a levantar-se, porque eu própria caí e me levantei muitas vezes na minha vida, embora nenhuma queda tenha sido tão dura como a da tua morte.

 

Janeiro de 1999, dois anos depois da primeira noite que passaram juntos, o Nico e a Lori casaram-se. Até então ela sempre resistira, porque não lhe parecia necessário, mas ele achou que os miúdos já tinham passado por muitos sobressaltos e que iam sentir-se mais seguros se eles se casassem. Sempre tinham visto a Célia e a Sally juntas e não punham em causa o seu amor, mas creio que temiam que a Lori se escapasse ao primeiro descuido. O Nico tinha razão, porque ninguém ficou mais contente com a decisão do que eles. «Agora a Lori vai estar mais connosco», confidenciou-me a Andrea. Dizem que são precisos oito anos para uma mulher se adaptar ao papel de madrasta e que o caso mais difícil é o da mulher sem filhos que entra na vida de um homem que já é pai. Para a Lori não foi fácil mudar a sua vida e aceitar as crianças; sentia-se invadida. No entanto, aceitava as tarefas ingratas, de lavar a roupa a comprar sapatos para a Andrea, que só usava sandálias de plástico verde, embora não umas quaisquer: tinham de ser de Taiwan. Matava-se a trabalhar para desempenhar as suas funções de mãe perfeita, sem falhar num único pormenor, mas não era preciso esforçar-se tanto, porque os miúdos gostavam dela pelas mesmas razões por que todos nós gostávamos: o riso, o carinho incondicional, as graças amistosas, o cabelo revolto, a imensa bondade, a maneira de estar muito presente nas coisas boas e nas más.

O casamento foi celebrado em São Francisco. Foi uma cerimónia alegre, que terminou com uma aula colectiva de swing, a única vez que eu e o Willie dançámos juntos desde a experiência humilhante com a professora escandinava. O Willie, de smoking, imaginava-se igualzinho ao Paul Newman num dos seus filmes, embora não me lembre de qual. O Ernesto e a Giulia vieram de Nova Jérsia e a Avó Hilda e os meus pais do Chile. O Jason não veio porque tinha de trabalhar. Continuava sozinho, embora não lhe faltassem mulheres de uma noite. Segundo ele, andava à procura de alguém que fosse tão de confiança como o Willie.

Conhecemos os amigos da Lori, que vieram dos quatro pontos cardeais. Com o tempo, alguns deles transformaram-se em grandes amigos meus e do Willie, apesar das diferenças de idades. Mais tarde, quando nos deram as fotografias do casamento, apercebi-me de que todos pareciam modelos de revistas; nunca vi um grupo de gente tão bonita. A maior parte eram artistas com talento e sem pretensões: designers, desenhadores, caricaturistas, fotógrafos, cineastas. Eu e o Willie tornámo-nos imediatamente amigos dos pais da Lori, que não viam em mim uma encarnação de Satanás, como acontecera com os da Célia, apesar de no meu brinde ter tido a falta de tacto de aludir ao amor carnal entre os nossos filhos. O Nico ainda não me perdoou. Os Barra, uma gente simples e carinhosa, são de origem italiana e vivem há mais de cinquenta anos na mesma casinha em Brook-lyn, onde criaram os seus quatro filhos, a um quarteirão das antigas mansões dos mafiosos, que se distinguem das outras casas do bairro pela decoração, que inclui fontes de mármore, colunas gregas e estátuas de anjos. A mãe, Lucille, está a cegar aos poucos, mas não dá grande importância ao assunto, não tanto por orgulho como para não incomodar ninguém. Dentro da sua casa, que conhece de cor, desloca-se com segurança, e na sua própria cozinha é imbatível; continua a preparar às apalpadelas as complicadas receitas transmitidas de geração em geração. O Tom, o marido, que lembra um avô dos contos tradicionais, abraçou-me com simpatia genuína.

Rezei muito para que a Lori e o Nico se casassem — confessou-me.

Para não continuarem a viver em pecado mortal? — perguntei-lhe, a brincar, por saber que era católico praticante.

—        Sim, mas principalmente por causa dos miúdos — respondeu-me com absoluta seriedade.

Antes de se reformar, o Tom tinha uma farmácia de bairro. Foi um bom treino para o esforço e o medo, porque foi assaltado várias vezes. Embora já não seja muito jovem, continua a tirar a neve da frente da casa às pazadas e a empoleirar-se num escadote para pintar tectos no Verão. Tem lidado sem vacilar com inquilinos bastante estranhos que ao longo dos anos têm ocupado sucessivamente um pequeno apartamento no primeiro andar da sua casa, como um hal-terofilista que o ameaçava com um martelo, um paranóico que acumulava jornais do chão até ao tecto e apenas deixou um carreiro de formigas que ia da porta à casa de banho e daí à cama, ou um terceiro que «estourou» — não me ocorre mais nenhuma palavra para descrever o que aconteceu — e deixou as paredes cobertas de excrementos, sangue e órgãos, que o Tom teve de limpar. Ninguém conseguiu explicar o sucedido, porque não foram encontrados rastos de explosivos, mas imagino que deva ter-se tratado de um fenómeno de auto-combustão. Apesar desta e de outras experiências macabras, o Tom e a Lucille mantêm incólume a sua confiança na humanidade.

A Sabrina, que já tinha cinco anos, dançou toda a noite pendurada em diferentes pessoas, enquanto as mães vegetarianas aproveitavam para mordiscar às escondidas umas costeletas de porco e de borrego. O Alejandro, com um fato e gravata de gato-pingado, levou os anéis, acompanhado pela Andrea e pela Nicole, com vestidos de princesas cor de âmbar, em contraste com o vestido comprido roxo da noiva, de aspecto radiante. O Nico ia todo vaidoso, de negro e de camisa sem colarinho, com o cabelo preso na nuca e mais parecido do que nunca com um nobre florentino do século xvi. Foi um final como nunca poderei pôr nos meus romances: casaram e foram muito relizes. Foi o que disse ao Willie enquanto ele dançava o swing e eu me esforçava por segui-lo. Quem guia é o homem, como dizia a escandinava.

—        Podia morrer agora mesmo, de um ataque de coração oportuno. que a minha função neste mundo está concluída: já arrumei o meu filho — anunciei-lhe.

—        Nem penses nisso. É agora que vais ser precisa — replicou.

Mais para o fim da noite, quando os convidados já tinham começado a despedir-se, arrastei-me de gatas por baixo de uma mesa com uma toalha até ao chão seguida por uma dúzia de miúdos, embriagados de açúcar, excitados com a música e com a roupa em frangalhos de tanto se rebolarem. Tinha corrido entre eles a história de que eu conhecia todos os contos que havia, que bastava perguntarem-me. A Sabrina quis que eu contasse um conto de uma sereia. Falei-lhes de uma sereia minúscula que caiu num copo de uísque e que o Willie bebeu sem dar conta. A descrição da viagem da infeliz criatura pelos órgãos do avô, navegando com infinitas peripécias pelo sistema digestivo, onde encontrou todo o tipo de obstáculos e perigos repugnantes até chegar à urina para ir dar a um esgoto e daí à baía de São Francisco, deixou-os mudos de assombro. No dia seguinte a Nicole veio dizer-me, com os olhos esbugalhados, que não tinha gostado nada da história da sereiazinha.

É uma história verdadeira? — perguntou-me.

Nem tudo é verdadeiro, mas também não é completamente falsa.

Que parte é que é falsa e que parte é verdadeira?

Não sei, Nicole. A essência da história é verdadeira, e no meu trabalho de contadora de histórias só isso é que conta.

As sereias não existem, por isso o teu conto é todo mentira.

E como é que tu sabes que essa sereia não era uma bactéria, por exemplo?

Uma sereia é uma sereia e uma bactéria é uma bactéria — replicou, indignada.

 

Pela primeira vez nos trinta anos que trabalhou para o Willie como contabilista, o Tong aceitou um convite nosso. Tínhamo-nos resignado a não o convidar, porque nunca aparecia, mas o casamento do Nico e da Lori era um acontecimento importante mesmo para um homem tão introvertido como ele. «é obrigatório ir?», perguntou. A Lori respondeu-lhe que sim, uma coisa que até então ninguém se atrevera a fazer. Apareceu sozinho, porque por fim a mulher, ao fim de anos e anos a dormirem na mesma cama sem se falarem, lhe pedira o divórcio. Pensei que depois do meu sucesso retumbante com o Nico e a Lori podia também arranjar uma namorada ao Tong, mas ele informou-me de que queria uma chinesa e nessa comunidade não tenho contactos. O Tong tinha a vantagem de que Chinatown, em São Francisco, é o maior e mais conhecido bairro chinês do mundo ocidental, mas quando lhe sugeri que procurasse lá explicou-me que queria uma mulher que ainda não estivesse influenciada pela América. Sonhava com uma esposa submissa, com os olhos pregados no chão, que fizesse os seus pratos preferidos, lhe cortasse as unhas, lhe desse um filho varão e ao mesmo tempo se deixasse escra-Vlzar pela sogra. Não sei quem lhe terá metido esta fantasia na cabeça, talvez a mãe, a minúscula anciã perante a qual todos tremíamos, arece-lhe que ainda há mulheres assim neste mundo, Tong?», perguntei-lhe, perplexa. A sua única resposta foi pôr-me à frente de um ecrã de computador e mostrar-me uma lista interminável de fotogra-'as e de descrições de mulheres dispostas a casar-se para fugirem do seu país ou da sua família. Estavam classificadas por raça, por nacionalidade, por religião e, para os mais exigentes, até pelo tamanho do soutien. Se eu soubesse há mais tempo da existência deste supermercado de oferta feminina, não teria sofrido tanto pelo Nico. Por outro lado, pensando melhor, mais valeu não ter sabido; nunca teria encontrado a Lori numa daquelas listas.

A futura noiva converteu-se num longo e complicado projecto administrativo. Nessa altura dividíamos com equanimidade o ex--bordel de Sausalito entre o escritório do Willie, o meu, no primeiro andar, e o da Lori, no segundo, onde funcionava a fundação. O toque elegante da Lori também modificara a velha casa, que estava agora cheia de cartazes dos meus livros, de carpetes do Tibete, de jar-rões de porcelana azul e branca para as plantas e tinha uma cozinha completa, onde nunca faltava tudo o que é necessário para preparar um chá tão bem como no Savoy. O Tong empreendeu a tarefa de seleccionar as candidatas, que nós criticávamos: aquela tem olhos de má, a outra é evangélica, esta maquilha-se como uma rameira, etc. Não permitimos que o contabilista se deixasse impressionar pelas aparências, já que as fotografias mentem, como ele sabia muito bem, uma vez que a Lori melhorara muito o seu retrato com o computador; tornara-o mais alto, mais jovem e mais branco, o que, ao que parece, é uma característica muito apreciada na China. A mãe do Tong instalou-se na cozinha a comparar sinais astrais e, quando por fim encontrámos uma jovem enfermeira de Cantão que nos pareceu perfeita a todos, a senhora foi consultar um astrólogo muito sábio em Chinatown, que também deu a sua aprovação. Na fotografia sor-ria-nos uma jovem de faces rosadas e olhos vivos, um rosto que apetecia beijar.

Depois de uma correspondência formal, que durou vários meses, entre o Tong e a hipotética noiva, o Willie anunciou que iriam juntos à China para a conhecerem. Não pude ir com eles porque tinha demasiado trabalho, mas estava morta de curiosidade. Pedi à Tabr que ficasse comigo, pois não gosto de dormir sozinha. A minha amiga conseguira pôr o seu negócio novamente de pé e já não vivia conosco. Encontrou uma casa pequena, com um pátio que dava para umas colinas douradas, onde podia criar a ilusão de isolamento que tanto desejava. O convívio com a nossa tribo deixou de ser um tormento para ela, que precisa de solidão, mas aceitou fazer-me companhia durante a ausência do meu marido. Por uns tempos, deixou os encontros às cegas, porque trabalhava noite e dia para pagar as dívidas, mas nunca deixou de ter esperança no regresso do Lagarto Emplumado, que de vez em quando voltava a aparecer no horizonte. De repente, a sua voz gravada no telefone ordenava-lhe: «São quatro e meia da tarde. Telefona-me antes das cinco, ou não voltarás a ver-me.» A Tabra chegava a casa à meia-noite, extenuada, e dava com esta simpática mensagem, que a deixava transtornada semanas a fio. Por sorte, o seu trabalho obrigava-a a viajar e a passar longas temporadas no Bali, na índia e noutros sítios longínquos, de onde me enviava cartas encantadoras, cheias de aventuras, escritas com a ironia fluida que a caracteriza.

Escreve um livro de viagens, Tabra — fartei-me de lhe pedir.

Eu sou artista, não sou escritora — defendia-se. — Por outro lado, se tu podes fazer colares, suponho que eu também posso escrever um livro.

O Willie partiu para a China com a sua pesada mala de máquinas fotográficas e voltou com algumas fotografias muito boas, especialmente retratos de pessoas, que são o que mais lhe interessa. Como sempre, a mais memorável foi a que não conseguiu tirar. Numa aldeia recôndita da Mongólia, onde foi parar sozinho porque quis dar 3o Tong a oportunidade de passar alguns dias com a noiva sem o ter a ele como testemunha, viu uma senhora de cem anos com os pés enfaixados, como dantes se fazia nessa parte do mundo. Aproximou-"se para lhe pedir por sinais que o deixasse fotografar os seus minúsculos «lírios dourados», e a anciã fugiu com toda a rapidez que os seus pezinhos disformes permitiam e com um grande alarido; nunca

tinha visto ninguém de olhos azuis e convenceu-se de que era a Morte que vinha buscá-la.

A viagem foi um êxito, segundo o meu marido, porque a futura noiva do Tong era perfeita, precisamente o que o seu contabilista procurava: tímida, dócil e ignorante dos direitos de que usufruem as mulheres nos Estados Unidos. Parecia forte e saudável, e certamente poderia dar-lhe o tão desejado filho varão. Chamava-se Lili e ganhava a vida como enfermeira cirúrgica. Trabalhava dezasseis horas por dia em troca de um salário equivalente a duzentos dólares por mês. «Não admira que queira sair dali», observou o Willie, como se viver com o Tong e a mãe fosse um destino menos árduo.

 

Dispus-me a desfrutar de algumas semanas de solidão, que pensava investir no livro que por fim estava a escrever sobre a Califórnia nos tempos da febre do ouro. Há quatro anos que o adiava. Já tinha um título, Filha da Fortuna, uma quantidade imensa de investigação histórica e até a imagem da capa. A protagonista é uma jovem chilena, Eliza Sommers, nascida por volta de 1833, que decide seguir o amante, que partiu atrás da loucura do ouro. Para uma jovem da época, era impensável uma aventura de tais dimensões, mas estou convencida de que as mulheres são capazes de fazer loucuras por amor. Nunca teria passado pela cabeça de Eliza percorrer meio mundo atrás de ouro, mas não hesitou em fazê-lo por um homem. Contudo, os meus planos de escrever em paz não resultaram, porque o Nico adoeceu. Foi preciso dar-lhe uma anestesia geral durante alguns minutos para lhe arrancar os dentes do siso, o que costuma ser perigoso para as pessoas que sofrem de porfiria. Levantou-se da cadeira do dentista, caminhou até à recepção, onde a Lori estava à espera dele, e sentiu que tudo em seu redor se tornara negro; os joelhos ficaram paralisados, caiu para trás teso como um tronco de árvore e bateu com a cabeça e o ombro contra a parede. Ficou desmaiado no chão. Foi o Princípio de muitos meses de sofrimento para ele e de angústia para 0s restantes membros da família, sobretudo para a Lori, que não saía o que se passava com ele, e para mim, que o sabia bem de mais. As minhas trágicas recordações levantaram-se numa verdadeira tempestade. Estava convencida de que depois de ter passado pela experiência de te perder já nada poderia afectar-me muito, mas a menor possibilidade de que uma coisa dessas acontecesse ao filho que me restava deixou-me perturbadíssima. Tinha um peso no peito, uma espécie de rocha que me esmagava, me cortava a respiração. Sentia-me vulnerável, em carne viva, a ponto de chorar a qualquer momento. A noite, quando todos estavam a descansar, ouvia um rumor vindo das paredes, queixumes insistentes das ombreiras, suspiros nos quartos desocupados. Era o meu próprio medo, suponho. A dor acumulada nesse longo ano que durou a tua agonia estava à espreita na casa. Há uma cena que está gravada para sempre na minha memória. Entrei um dia no teu quarto e vi o teu irmão, de costas para a porta, a mudar-te a fralda com a mesma naturalidade com que a mudava aos filhos. Falava contigo, como se conseguisses ouvi-lo, dos tempos da Venezuela, de quando eram adolescentes e arranjavas maneira de encobrir as travessuras dele e de o proteger quando se metia em sarilhos. O Nico não me viu. Saí e fechei a porta em silêncio. O meu filho esteve sempre comigo, partilhámos sofrimentos primordiais, fracassos tremendos, êxitos efémeros; deixámos tudo para trás e recomeçámos noutros lugares; zangámo-nos e ajudámo-nos um ao outro; por outras palavras: estou convencida de que somos inseparáveis.

Semanas antes do acidente no dentista o Nico tinha feito os seus exames anuais de porfiria e os resultados não foram bons, os níveis tinham duplicado desde o ano anterior. Depois do golpe sofrido subiram de forma alarmante e a Cheri Forrester, que não o perdia de vista, ficou preocupada. A dor constante no braço, que o impedia de levantar os braços ou de se inclinar, veio juntar-se a pressão do trabalho, a relação com a Célia, que estava a atravessar uma fase péssima, os altos e baixos da convivência comigo, que falhava muitas vezes nos meus propósitos de o deixar em paz, e um cansaço tão profundo que adormecia em pé. Até a voz lhe saía num murmúrio, como se esforço de expelir o ar fosse demasiado. Às vezes as crises de porfiria são acompanhadas de perturbações mentais que alteram a personalidade. O Nico, que em tempos normais parece ter a calma alegre do dalai-lama, fervia de cólera, embora a dissimulasse, graças ao domínio insólito que tem sobre si mesmo. Negava-se a mencionar a sua doença, não queria que tivessem com ele considerações especiais. Eu e a Lori limitávamo-nos a observá-lo, sem lhe fazer perguntas, para não o fazermos sofrer mais do que já sofria, mas sugerimos-lhe que ao menos deixasse o emprego, que ficava muito longe e não lhe dava satisfação nem constituía um desafio. Pensávamos que com o seu temperamento tranquilo, a sua intuição e os seus conhecimentos de matemática podia dedicar-se ao mercado de valores, mas ele achou que era muito arriscado. Falei-lhe do sonho dos cavalos, para ilustrar a ideia de que uma pessoa pode cair e voltar a levantar-se. Respondeu-me que era muito interessante, mas que não o tinha sonhado ele.

A Lori não podia ajudá-lo quanto à saúde, mas apoiou-o e acompanhou-o sem fraquejar um só instante, embora ela própria também sofresse, porque estava ansiosa por ser mãe e teve de se submeter à tortura de um tratamento de fertilidade. Quando foi viver com o Nico falaram de ter filhos, como é natural. Não queria renunciar à maternidade, já a adiara muito tempo enquanto esperava por um amor verdadeiro, mas ele disse-lhe desde o princípio que não queria ter filhos, não só porque podia transmitir-lhes a porfiria, mas também porque já tinha três. Foi pai muito jovem, não viveu a liberdade e as aventuras que preencheram os primeiros trinta e cinco anos da vida da Lori, e queria gozar o amor que entrara na sua vida, ser camarada, amante, amigo e marido. Durante as semanas que os miúdos viviam com a Célia e a Sally eram namorados, mas o resto do tempo só podiam ser pais.

Ela dizia que o Nico não conseguia perceber o seu vazio e achava, talvez com razão, que ninguém estava disposto a mover uma peça do puzzle familiar para abrir lugar para ela; sentia-se uma estranha.

Percebia qualquer coisa negativa no ar quando se falava de outra criança, e eu tive muita culpa nisso, porque ao princípio não a aPoiei: demorei mais de um ano a aperceber-me de como a maternidade era importante para ela. Procurei não interferir, para não a ferir, mas o meu silêncio era eloquente: achava que um bebé lhes ia tirar, a ela e ao Nico, a pouca liberdade que tinham; além disso também receava que os meus netos passassem para segundo plano. Para cúmulo, no dia da Mãe, uma das miúdas desenhou um cartão carinhoso, deu-o à Lori e mais tarde pediu-lho de volta, porque queria dá-lo à Célia. Para a Lori foi como uma facada no peito, apesar de o Nico lhe ter explicado repetidamente que a garota era pequena de mais para se aperceber do que fizera. O seu sentido do dever era quase um castigo; cuidava dos miúdos e ajudava-os com uma espécie de desespero, como se quisesse compensar o facto de não os sentir como seus. E não eram, porque tinham mãe, mas, se tinham adoptado a Sally, estariam dispostos a amá-la da mesma maneira.

Nessa altura várias amigas da Lori engravidaram; estava rodeada de meia dúzia de mulheres que se vangloriavam das suas barrigas, não se falava de outra coisa, o ar cheirava a bebés, e ao mesmo tempo aumentava a pressão para ela, porque as suas possibilidades de vir a ser mãe diminuíam a cada mês que passava, como lhe explicou o especialista que a tratava. Nunca lhe passou pela cabeça ter ciúmes das amigas; pelo contrário, dedicava-se a fotografá-las, e formou assim uma colecção de imagens extraordinárias, com o tema da gravidez, que espero um dia venha a converter-se num livro.

Os dois faziam terapia, onde devem ter discutido o assunto à sociedade. Num impulso, o Nico telefonou para o Chile, ao tio Ramón, em cujo juízo confia cegamente. «Como queres que a Lori seja mãe dos teus filhos se não queres ser pai dos dela?», foi a resposta dele. Era um argumento de uma justiça cristalina. O Nico não só cedeu, mas além disso entusiasmou-se com a ideia; no entanto, o peso da decisão recaiu inteiramente sobre a Lori. Submeteu-se, só e em silêncio, aos tratamentos de fertilidade, que faziam estragos no seu corpo e no seu estado de espírito. Ela, que tanto se preocupava em comer bem, fazer e exercício e levar uma vida saudável, sentia-se envenenada pelo bombardeamento de drogas e de hormonas. As suas tentativas falharam repetidamente. «Se a ciência nada consegue, temos de pôr a questão nas mãos do padre Hurtado», disse a Pia, a minha leal amiga, no Chile. Mas nem as suas orações, nem as cabalas das minhas irmãs da desordem, nem a tua invocação, Paula, deram resultado. E assim se passou um ano inteiro.

 

O alto da colina onde ficava a nossa casa puseram à venda um terreno de cerca de cem hectares com mais de uma centena de carvalhos velhos e uma vista soberba da baía. O Willie não me largou enquanto não concordei em comprá-lo, embora isso me parecesse um capricho supérfluo. Apropriou-se do projecto e decidiu construir a verdadeira casa dos espíritos. «Tens mentalidade de castelã, precisas de estilo. E eu preciso de um jardim», disse-me ele. Em minha opinião, era uma ideia descabelada estarmos a mudar-nos, porque a casa onde havíamos vivido mais de dez anos tinha a sua própria história e um fantasma querido, e eu não podia consentir que entre essas quatro paredes viessem morar pessoas estranhas, mas o Willie não deu ouvidos aos meus argumentos e seguiu por diante com os planos da casa. Todos os dias trepava o morro para fotografar a construção etapa a etapa; não deve ter sido espetado um só prego sem que fosse registado pela sua máquina fotográfica. Enquanto isso, eu, agarrada à minha velha casa, não queria saber da outra para nada. Fui com ele meia dúzia de vezes para lhe fazer a vontade, mas não percebi a planta; parecia-me um labirinto de vigas e pilares, lúgubre e grande de mais. Pedi mais janelas e clarabóias. O Willie dizia que eu estava apaixonada pelo velho irlandês que fazia as clarabóias, porque, entre as duas casas, lhe encomendei quase uma dúzia; mais uma e os tectos tinham-se esmigalhado como bolachas. Quem iria limpar um tal paquete? Precisávamos de um almirante que se entendesse com o emaranhado de tubos e cabos, com as caldeiras, os ventiladores e outras máquinas de mudar o clima. Os quartos sobravam, e os nossos móveis pareciam flutuar naqueles espaços imensos. O Willie ignorou as minhas objecções malévolas, mas ouviu-me no que dizia respeito ao tamanho das janelas e das clarabóias, e quando ficou pronta e já só faltava pintá-la levou-me a vê-la.

A surpresa foi imensa: era muito mais que uma casa, era uma prova de amor, o meu Talismá pessoal. O meu amante imaginou uma casa de campo chilena, de paredes grossas e telhado de telhas, com arcos coloniais, varandas de ferro forjado, uma fonte espanhola e uma cabana ao fundo do jardim onde eu poderia escrever. A casa dos meus avós em Santiago, que inspirou o meu primeiro livro, nunca foi assim, nem tão grande, tão bela e tão luminosa como a descrevi no romance. A que imaginei foi a que o Willie construiu. Erguia--se orgulhosamente no alto da colina, rodeada de carvalhos, com três palmeiras no pátio empedrado — eram três damas altíssimas com chapéus de plumas verdes —, que foram transportadas por uma grua e plantadas nos buracos previamente preparados. Pendurado na varanda, um letreiro de madeira dizia Casa dos Espíritos. A minha resistência prévia foi-se num suspiro, saltei ao pescoço do Willie, agradecida, e apoderei-me do lugar. Por fora, decidi pintá-la cor de pêssego e por dentro cor de gelado de baunilha. Ficou como uma torta, mas contratámos uma senhora grávida de sete meses, com um escadote, martelo, maçarico e ácido, que atacou as paredes, as portas e os ferros e numa semana lhes deu um século de antiguidade. Se não lhe tivéssemos posto um travão, teria reduzido a nossa casa a escombros antes de dar à luz no nosso pátio. O resultado foi uma incongruência histórica: uma casa de campo chilena de mil e novecentos numa colina da Califórnia em pleno século XXI.

Ao contrário de mim, que estou sempre de mala aviada para fugir, a única vez que o Willie esteve realmente tentado a divorciar-se foi durante a mudança. É verdade que me comportei como um coronel nazi, mas ao fim de poucos dias estávamos instalados como se viéssemos na nova casa há um ano. Toda a tribo participou, do Nico, com a sua caixa de ferramentas para pôr lâmpadas e pendurar quadros, aos amigos e aos netos, que puseram as chávenas e os pratos nos armários, desfizeram os caixotes e levaram o lixo em sacos de plástico. Por pouco não te perdias no meio daquele alvoroço todo, Paula. Duas noites mais tarde demos a tarefa por terminada e as catorze pessoas que tinham dado o litro na mudança jantaram na «mesa da castelã», como o Willie lhe chamou desde o princípio, com flores e à luz das velas: salada de camarão, estufado chileno e pudim flã. Nada de comida chinesa pedida por telefone. Assim começou para nós um estilo de vida que até então não conhecíamos.

Embora eu tivesse desfrutado da minha nova situação de castelã, o Willie foi o que mais apreciou a mudança. Tem necessidade de uma vista ampla, de espaço e de tectos altos para se expandir, de uma cozinha grande para as suas experiências culinárias, de um grelhador para as infelizes veses que costuma assar e de um jardim nobre para as suas plantas. Apesar do milhão de alergias que o atormentam desde criança, sai de casa várias vezes por dia para cheirar as flores, contar os rebentos de cada arbusto e aspirar em golfadas o aroma fresco do louro, o adocicado da hortelã, o penetrante dos pinheiros e do alecrim, enquanto nos ares os corvos, negros e sábios, troçam dele. Plantou dezassete roseiras virginais para substituir as que deixou na outra casa. Quando o conheci tinha dezassete roseiras em barris, que transportara consigo ao longo de vários anos, pelos caminhos dos divórcios e das mudanças de casa, mas quando se rendeu ao nosso amor plantou-as em terra firme. Desde o primeiro ano que colheu flores dessas roseiras para o meu tugúrio, o único sítio da casa onde podem ficar, porque a ele matam-no. A minha amiga Pia veio do Chile abençoar a casa, e trouxe, escondido na mala, um pé do «roseiral da Paula», que tem junto da ermida no seu jardim e que dois anos mais tarde nos deleitaria com uma profusão de rosas. Da sua aldeia de Santa Fe de la Segarra, onde actualmente vive, Cármen Bal-cells envia-me todas as semanas um ramo de flores hiperbólico, que também sou obrigada a esconder do Willie. A minha agente é generosa como os fidalgos da Espanha imperial. Uma vez ofereceu-me uma mala de chocolates mágicos: dois anos mais tarde continuam a aparecer dentro dos meus sapatos ou de alguma mala; reproduzem-se misteriosamente na escuridão.

De Março a Setembro aquecemos a piscina e a casa enche-se de miúdos, os nossos e os de outros, que parecem materializar-se do ar, e de visitas que chegam sem se fazer anunciar, como o carteiro. Montanhas de toalhas húmidas, de sapatilhas empapadas em água, de brinquedos de plástico; pilhas de fruta, de bolachas, de queijo e de saladas sobre a bancada da cozinha; fumo e gordura nos grelhadores onde o Willie faz bailar filetes, costeletas, hambúrgueres e salsichas. Abundância e bulício, que compensam o retiro dos meses de Inverno, de solidão e silêncio, o tempo sagrado da escrita. O Verão pertence às mulheres. Juntamo-nos no jardim, no carnaval de flores e abelhas, com as suas roupagens de riscas amarelas, a bronzear as pernas e a vigiar os miúdos, na cozinha a experimentar novas receitas, na sala a pintar as unhas dos pés e, em sessões especiais, a trocar roupas com as amigas. O meu vestuário é quase todo da Lea, uma estilista cheia de imaginação que me faz tudo enviesado e comprido: estica, encolhe, adapta-se e serve da mesma maneira um batalhão de mulheres de diferentes tamanhos, incluindo a Lori, com o seu corpo de modelo, que já abandonou o negro absoluto, uma espécie de uniforme de Nova Iorque, e adoptou as cores da Califórnia. Até a An-drea usa os meus vestidos, mas nunca a Nicole, que tem um olho implacável para a moda. Nestes meses estivais celebramos os aniversários de metade da família e de muitos amigos chegados, e costumamos fazê-lo em conjunto. E a época das pândegas, dos mexericos e do riso. Os miúdos recortam biscoitos que metem no forno e preparam merendas de tortilhas com queijo, batidos de fruta e gelados. Suponho que em todas as comunas há alguém que se dispõe a assumir a responsabilidade das tarefas mais ingratas; na nossa é a Lori. temos de lutar duramente para a impedir de assumir sozinha a tarefa de lavar pilhas e pilhas de louça. Se nos descuidamos, é capaz de lavar o chão da casa de joelhos.

O melhor foi que no mês em que nos mudámos começaram os Mesmos ruídos inexplicáveis que já nos despertavam na casa antiga, e quando a minha mãe veio de visita do Chile verificou que os móveis se moviam durante a noite. Era do que a casa estava a precisar para justificar o nome. Não te perdemos na mudança, filha.

Chegou o momento de chamar o Ernesto e a Giulia, que andavam há vários meses a pensar na possibilidade de se mudarem para a Califórnia para fazerem parte da tribo e viverem na casa que havíamos deixado e que estava à espera deles. Tinham casado há um ou dois anos, numa cerimónia em que estiveram presentes a família dos noivos e a nossa, incluindo o Jason, que ainda não sabia do breve in-terlúdio amoroso entre o Ernesto e a Sally. Seria o Ernesto a confessar-lho mais tarde, lamentando o sucedido. A Giulia, pelo contrário, conhecia a história, mas não é mulher para ter ciúmes do passado. A noiva, magnífica no seu vestido de cetim branco, fez de conta que não percebeu a reacção inoportuna de alguns dos convidados, que por pouco não estragaram o casamento. Apesar de estarem encantados com ela, iam-se fechando à vez na casa de banho a choramingar porque se lembravam de ti. Não foi o meu caso; na realidade, estava muito contente. Sempre soube que foste tu mesma que procuraste a Giulia para que o teu marido não ficasse só, como por vezes, na brincadeira, dizias que farias. Porque falavas da morte, minha filha? Que premonições eram as tuas? O Ernesto diz que vocês sentiam que o amor não seria longo, que teriam de o gozar apressadamente, antes que vos fosse tirado.

A vida do Ernesto e da Giulia em Nova Jérsia era cómoda. Ambos tinham bons trabalhos, mas sentiam-se sozinhos e acederam ao meu convite de ficar com a casa antiga. Para poder aceitar esta oferta, o Ernesto precisava de um emprego na Califórnia, e, como é protegido por um anjo, foi contratado por uma empresa a dez minutos de distância da sua nova morada. Levaram um ou dois meses a vender o seu apartamento e a cruzar o continente num camião carregado com as suas coisas. Entraram nessa casa no mesmo dia de Maio em que vários anos antes te trouxemos de Espanha, para que ali passasses o tempo que te restava de vida. Pareceu-me claramente um bom augúrio. Apercebemo-nos disso porque a Giulia me ofereceu um álbum onde estavam arquivadas por ordem cronológica as cartas que te escrevi em 1991, quando vivias em Madrid, recém-casada, e as que enviei ao Ernesto, em 1992, quando estavas doente na Califórnia e ele trabalhava em Nova Jérsia. «Aqui seremos muito felizes», disse a Giulia quando entrou em casa, e não tive a menor dúvida de que assim seria.

 

Ainda não nos tínhamos recuperado do breve roçar da fama do cinema quando estreou De Amor e de Sombra, o filme baseado no meu segundo romance. A actriz, Jennifer Connelly, é tão parecida contigo — magra, de pescoço longo, sobrancelhas espessas, cabelo liso e escuro — que não fui capaz de ver o filme até ao fim. Há um momento em que ela está numa cama de hospital e o companheiro, António Banderas, a levanta em braços. Recordo a mesma cena entre ti e o Ernesto pouco tempo antes de teres entrado em coma. A primeira vez que vi a Jennifer Connelly foi num restaurante de São Francisco, onde tínhamos marcado encontro. Quando a vi chegar com os seus jeans desbotados, a blusa branca engomada e rabo de cavalo, pensei que estava a sonhar, porque eras tu ressuscitada em toda a tua beleza. De Amor e de Sombra, filmado na Argentina porque não se atreveram a fazê-lo no Chile, onde a herança da ditadura continuava a ser muito pesada, pareceu-me um filme honesto e por isso tive pena que tenha passado despercebido, embora continue, após tantos anos, a circular em DVD e na televisão. É uma história política, baseada em factos reais, que fala de quinze camponeses desaparecidos depois de terem sido presos pelos militares, mas é essencialmente um romance de amor. Quando o Willie fez cinquenta anos, uma amiga ofereceu-lhe este livro, que ele leu durante as férias. Depois agradeceu-o à amiga com uma nota em que lhe dizia: «A autora entende o amor como eu.» E foi por isso, pelo amor que percebeu nessas páginas, que decidiu ir conhecer-me pessoalmente quando passei pelo Norte da Califórnia numa das digressões de promoção dos meus livros. No nosso primeiro encontro falou-me dos protagonistas, queria saber se tinham existido ou se haviam sido imaginados por mim, se o seu amor sobrevivera às vicissitudes do exílio e se alguma vez regressaram ao Chile. Fazem-me constantemente perguntas destas; não são só as crianças que querem saber o que há de verdade na ficção. Comecei a explicar-lhe, mas ele interrompeu-me ao fim de poucas frases: «Não, não me digas mais, não quero saber. O importante é que a escreveste, e por isso acreditas nesse tipo de amor.» Depois confessou-me que sempre tivera a certeza que um amor assim era possível e que um dia o viveria, embora até à altura não lhe tivesse acontecido nada que se parecesse, nem de longe. O meu segundo romance deu-me sorte. Foi graças a ele que conheci o Willie.

Por essa altura Filha da Fortuna já fora publicado na Europa. Segundo alguns críticos, tratava-se de uma alegoria do feminismo, porque Eliza escapa do espartilho vitoriano para mergulhar, sem qualquer preparação, num mundo masculino, onde tem de se vestir de homem para sobreviver. De caminho, adquire algo de muito importante: a liberdade. Não pensei no assunto quando escrevi o livro; estava convencida de que era simplesmente a febre do ouro, aquele revoluteio de aventureiros, bandidos, pregadores e prostitutas que deu origem a São Francisco, mas a explicação do feminismo parece-me válida, porque reflecte as minhas convicções e esse desejo de liberdade que determinou o rumo da minha vida. Para escrever o romance, percorri a Califórnia com o Willie, absorvendo a sua história e tentando imaginar o que foram esses anos do século xix em que o ouro brilhava no fundo dos rios e nas fissuras das rochas, enlouquecendo os homens de cobiça. Apesar das auto-estradas, as distâncias são imensas; a cavalo ou a pé por estreitos caminhos de montanha deviam ser infinitas. A magnífica geografia, com os seus bosques, os seus picos nevados, os seus rios de águas turbulentas, convida ao silêncio e recorda-me as regiões encantadas do Chile. A história e os Povos que vivem nas minhas duas pátrias, o Chile e a Califórnia, são muito diferentes, mas a paisagem e o clima são semelhantes. Muitas vezes, quando regresso a casa depois de uma viagem, tenho a impressão de ter andado trinta anos em círculo para acabar de novo no Chile; são os mesmos Invernos de chuva e vento, os Verões secos e quentes, as mesmas árvores, as costas abruptas, o mar frio e escuro, as colinas intermináveis, os céus amplos.

A Filha da Fortuna seguiu-se Retrato a Sépia, o romance que escrevia por essa altura e que também liga o Chile e a Califórnia. O tema é a memória. Sou uma eterna exilada, como dizia o poeta Pablo Neruda; as minhas raízes já teriam secado se não fossem alimentadas pelo rico magma do passado, que no meu caso tem uma componente inevitável de imaginação. Talvez não seja só no meu caso; diz-se que o processo de imaginar e de recordar são idênticos no cérebro. A história contada no romance foi inspirada num acontecimento que teve lugar num ramo afastado da minha família, em que o marido de uma das filhas se apaixonou pela cunhada. No Chile, as histórias familiares deste tipo não se dão a conhecer; embora todos conheçam a verdade, há uma conspiração de silêncio que procura manter as aparências. Talvez por isso ninguém goste de ter um escritor na família. O cenário da história que conto no livro era uma bonita propriedade rural no sopé da cordilheira dos Andes e os protagonistas, a melhor gente que se possa imaginar, não mereciam tamanho sofrimento. Creio que este teria sido mais suportável se tivessem falado dele sem dissimulação e, em vez de se encerrarem no segredo, tivessem aberto portas e janelas para que o ar levasse o mau cheiro. Foi um daqueles dramas de amor e traição ocultados sob muitas capas de convenções sociais e religiosas, como num romance russo. Como diz o Willie, há muitos mistérios familiares ocultos atrás de portas bem fechadas.

Não planeei esse livro como uma segunda parte de Filha da Fortuna, embora historicamente coincidam, ainda que várias personagens, como Eliza Sommers, o médico chinês Tao Chfen, a matriarca Paulina dei Valle e outras, se tenham introduzido nas suas páginas sem que eu tenha podido impedi-lo. Quando ia a meio do livro compreendi que podia relacionar esses dois romances com A CasA dos Espíritos e formar assim uma espécie de trilogia, que começava com Filha da Fortuna e usava Retrato a Sépia como ponte. Só foi pena que num dos livros Severo dei Valle tenha perdido uma perna na guerra e no livro seguinte apareça com duas, ou seja, há uma perna amputada a flutuar na densa atmosfera dos erros literários. A investigação relativa à Califórnia foi fácil, porque já a fizera para o romance anterior, mas o resto teve de ser feito no Chile, com a ajuda do tio Ramón, que viveu meses a fio entre livros de história, documentos e jornais antigos. Foi uma boa desculpa para ir visitar mais vezes os meus pais, que tinham chegado à casa dos oitenta e começavam a estar mais frágeis. Pela primeira vez ocorreu-me que num dia não muito distante podia ficar órfã. Que faria sem eles, sem a rotina de escrever à minha mãe? Nesse ano, contemplando a proximidade da morte, devolveu-me os pacotes com as minhas cartas, embrulhadas em papel de Natal. «Toma, guarda-as. Se for desta para melhor de um dia para o outro, não convém que caiam em mãos alheias», disse-me. Desde essa altura entrega-me sempre as do ano correspondente, com a promessa de que, quando eu morrer, o Nico e a Lori as hão-de queimar numa fogueira purificadora. As chamas levarão assim os nossos pecados de indiscrição: ali despejámos tudo o que nos passou pela cabeça e além disso arrastámos terceiros pela lama. Graças ao talento epistolar da minha mãe e à minha obrigação de lhe responder, disponho de uma volumosa correspondência onde os acontecimentos permanecem frescos; foi graças a ela que pude escrever estas memórias. A finalidade desta correspondência metódica é manter vivo o cordão que nos uniu desde o momento da minha gestação, mas também é um exercício para fortalecer a memória, essa bruma frágil onde as recordações se esfumam, misturam, modificam. No final dos nossos dias acabamos por ter vivido apenas aquilo que conseguimos evocar. Esqueço aquilo que não escrevo como se nunca tivesse acontecido, e é por isso que nessas cartas não falta nada de significativo. As vezes a minha mãe telefona-me para me contar qualquer coisa que a afectou de maneira particular e a primeira ideia que me vem à cabeça é pedir-lhe que me escreva acerca disso para eu não me esquecer. Se ela morrer antes de mim, como é provável que aconteça, poderia ler duas cartas por dia, uma dela e uma minha, até aos cento e cinco anos, e como nessa altura estarei submersa na confusão da senilidade, tudo me parecerá novo. Graças à nossa correspondência viverei duas vezes.

 

O Nico recompôs-se da lesão no ombro, os níveis de porfiria baixaram e começou a pensar a sério na possibilidade de mudar de trabalho. Além disso, começou a fazer ioga e desporto: levantar pesos sem necessidade, nadar até Alcatraz nas águas geladas da baía de São Francisco e voltar, também a nado, fazer cinquenta quilómetros a subir, correr entre duas aldeias como um fugitivo... Apareceram músculos onde antes não havia nada e começou a ser capaz de fazer crepes na posição de árvore do ioga: sobre um único pé, com o outro apoiado na parte de dentro da coxa, com um braço levantado e o outro a mexer a massa dos crepes, ao mesmo tempo que recitava a palavra sagrada oooom. Um dia veio tomar o pequeno-almoço a minha casa e não o reconheci. O príncipe do Renascimento tinha-se transformado num gladiador.

Todas as tentativas de engravidar da Lori falharam, de maneira que teve de despedir-se desse sonho, com grande tristeza. Sofreu muito fisicamente em consequência dos tratamentos de fertilidade e do muito que esgravataram dentro do seu corpo, mas nada disso se comparou com o sofrimento de alma que isso representou. A relação entre a Célia e o Nico era quase hostil, o que provocava tensão e afectava muito a Lori, porque se sentia atacada. Não conseguia ignorar a rudeza com que a Célia a tratava, por mais que o Nico lhe repetisse o seu mantra: «Não é pessoal, cada um é responsável pelos Seus sentimentos e a vida não é justa.» Não creio que esta ideia fosse de grande ajuda. No entanto, até onde isso era possível, ambos os casais mantinham as crianças à margem dos seus problemas.

O papel de madrasta é ingrato, e eu mesma contribuí para a lenda com a minha gota de fel. Não há uma única madrasta boa na tradição oral nem na literatura universal, a não ser a de Pablo Neruda, a quem o poeta chamava «mamadre». Em geral não há agradecimentos para as madrastas, mas a Lori esmerou-se de tal maneira na tarefa que os meus netos, com o instinto infalível das crianças, não só gostam tanto dela como da Sally, mas além disso é a primeira pessoa a quem recorrem quando precisam de alguma coisa, porque ela nunca lhes falha. Hoje em dia não conseguem imaginar a existência sem as suas três mães. Durante muitos anos sonharam que os quatro pais, o Nico, a Lori, a Célia e a Sally, vivessem juntos e, se possível, em casa dos avós, mas essa fantasia já se dissipou. A infância dos meus netos passou-se a caminho entre duas famílias, sempre de passagem, como três ciganos. Quando estavam com um dos casais, tinham saudades do outro. A minha mãe tinha medo que este sistema viesse a criar neles uma espécie de predisposição incurável para o nomadismo, mas os miúdos acabaram por se tornar mais estáveis que a maior parte das pessoas que conheço.

Esse ano de 2000 culminou num ritual muito simples de despedida do filho da Lori e do Nico que nunca existiu e com outros lutos. Numa tarde de neve e vento partimos para as montanhas guiados por uma amiga da Lori, uma jovem que é como uma encarnação de Gaia, a deusa-Terra. Partimos equipados com lanternas e ponchos, para o caso de sermos surpreendidos pela noite. Do alto de uma colina, Gaia apontou para uma quebrada e mais abaixo, num vale, para um amplo labirinto circular feito com pedras, perfeito na sua geometria. Descemos por um atalho estreito entre colinas cinzentas, sob um céu branco cruzado por pássaros negros. A nossa guia disse-nos que nos tínhamos reunido para nos desfazermos de certas tristezas, que estávamos ali para fazer companhia à Lori, mas que não havia ninguém que não tivesse uma mágoa para ali deixar. O Nico levava uma fotografia tua, o Willie uma da Jennifer, a Lori uma colxa e uma fotografia da sua sobrinha pequena. Começámos a andar através dos carreiros assinalados pelas pedras, devagar, cada um ao seu ritmo, enquanto os passarocos fúnebres revoluteavam e grasnavam no céu lívido. Por vezes cruzávamo-nos no dédalo e notei que todos tiritávamos de frio e estávamos emocionados.

No centro havia um monte de pedras, como um altar, onde outros viajantes tinham deixado recordações que a chuva molhara: mensagens, uma pena, flores já murchas, uma medalha. Sentámo-nos à volta desse altar e depositámos os nossos tesouros. A Lori pôs a fotografia da sobrinha, parecida com o filho que tanto desejara, com a cor e o cheiro da sua família. Contou-nos que desde muito jovem planeara com a irmã viverem no mesmo bairro e criarem juntas os filhos; ela teria uma menina, Uma, e um menino chamado Pablo. Acrescentou que pelo menos tinha a sorte de o Nico partilhar os filhos dele com ela e que procuraria ser uma amiga leal para eles. Tirou da caixa três bolbos de flores e plantou-os na terra. Ao lado de um pôs uma pedra, pelo Alejandro, que gosta de minerais, do outro um coração de vidro cor-de-rosa, pela Andrea, que ainda não superou a etapa dessa cor horrenda, e do último uma lagarta viva, por Nicole, que adora animais. O Willie, em silêncio, pôs uma fotografia da Jennifer sobre o altar, segura com pedrinhas, para não ser levada pelo vento. O Nico explicou que deixava o teu retrato para que fizesses companhia à criança que não nasceu e às outras mágoas que ali ficavam, mas que não desejava libertar-se da mágoa dele. «Sinto a falta da minha irmã, e continuarei a senti-la até ao fim da minha vida», disse. Tantos anos mais tarde, a tristeza da tua partida continua intacta, Paula. Basta raspar um pouco a superfície e ela brota de novo, fresca como no primeiro dia.

No entanto, não basta um ritual num labirinto nas montanhas Para superar o desejo de ser mãe, por muita terapia e força de vontade e que nisso se empregue. E uma ironia cruel que, enquanto outras Mulheres procuram evitar engravidar ou fazem abortos, à Lori o tenha negado os filhos. Teve de se resignar, porque nem o todo fantástico de lhe implantar no ventre um óvulo de outra mulher resultou. Mas restava a possibilidade de adoptar. Há uma infinidade de crianças sem família à espera que alguém lhes ofereça um lar generoso. O Nico estava certo de que isso iria agravar os problemas da Lori de falta de tempo, excesso de trabalho e falta de privacidade. «Se agora já se sente presa, com um bebé ficaria muito pior», dizia-me ele. Eu não podia dar-lhe nenhum conselho. Estavam no meio de um problema sem saída porque aquele que cedesse ficaria sempre com ressentimentos, ela porque o Nico a privara de algo essencial e ele porque ela lhe impusera um filho adoptado.

Eu e o Nico costumávamos tomar o pequeno-almoço num café, para falarmos de coisas do dia-a-dia e de segredos da alma. Durante um ano o tema predominante daquelas conversas íntimas foi a angústia da Lori e o assunto da adopção. Ele não compreendia que ser mãe fosse mais importante que o amor entre os dois, que estava em perigo por causa daquela obsessão. Dizia-me que os dois tinham nascido para se amarem, que se complementavam em tudo e que dispunham dos recursos necessários para viver a vida ideal, mas que em vez de apreciar o que tinha ela sofria por causa do que lhe faltava. Expliquei-lhe que sem essa necessidade que por vezes vence as mulheres a nossa espécie não existiria. Não há qualquer razão para submeter o corpo ao esforço prodigioso de gerar e dar à luz uma criança, para a defender como uma leoa mesmo à custa de nós próprias, para lhe dedicar todo o nosso tempo anos a fio, até que seja capaz de tomar conta de si mesma, e depois para a vigiar de longe com a nostalgia de a ter perdido, porque mais cedo ou mais tarde os filhos separam-se de nós. O Nico dizia que isto de ser mãe não é nem tão claro nem tão absoluto: há mulheres que carecem deste imperativo biológico.

«A Paula era uma delas. Nunca quis ter filhos», recordou-me.

«Talvez receasse as consequências da porfiria, não só pelo risco que isso representava para ela, mas também porque podia transmiti' -la aos filhos.»

«Muito antes de desconfiar que sofria de porfiria já a minha irmã dizia que as crianças só são adoráveis ao longe e que há outras maneiras de uma mulher se realizar para além da maternidade. Também há mulheres em quem o instinto maternal nunca desperta. Quando engravidam sentem-se invadidas por um ser estranho que as consome e depois não gostam do filho. Consegues imaginar a cicatriz que não pode deixar de ficar na alma de uma pessoa rejeitada à nascença?»

«Sim, Nico, há excepções, mas a imensa maioria das mulheres deseja ter filhos, e quando os têm sacrificam a vida por eles. Não há perigo de que a humanidade venha a sucumbir por falta de crianças.»

 

Lili chegou da China com um visto de noiva de três meses, ao fim dos quais teria de casar com o Tong ou de regressar ao seu país. Era uma mulher saudável e bonita, que parecia ter vinte anos, embora tivesse à volta de trinta, e estava tão pouco influenciada pela cultura ocidental como o seu noivo desejava. Além disso, não sabia uma única palavra de inglês. Tanto melhor, assim seria mais fácil mantê-la submissa, opinou a futura sogra, que aplicou desde o primeiro dia o método de fazer a vida impossível à nora. O seu rosto de lua e os seus olhos brilhantes pareceram-nos irresistíveis. Até os meus netos se apaixonaram por ela. «Pobre rapariga. Vai ter muita dificuldade em adaptar-se», observou o Willie quando soube que a Lili se levantava com o nascer do Sol para fazer a lida da casa e preparar os pratos complicados que lhe exigia a sogra despótica, que apesar de minúscula a tratava com insultos e encontrões. «Porque não manda a velha para o raio que a parta?», perguntei à Lili por gestos, mas não me entendeu. «Não te metas...», aconselhou o Willie, que acrescentou que eu não percebia nada da cultura chinesa, embora na verdade saiba um pouco mais que ele, porque pelo menos li a Amy Tan. A noiva por correspondência não era tão pusilânime como dissera o Wilhem depois de a conhecer, disso tinha eu a certeza. Possuía uma firmeza de camponesa, ombros largos, determinação nos gestos e no olhar. Se se lembrasse, com um piparote podia partir a cabeça da sogra, e na verdade também a do Tong. Não havia ali nada de uma doce pombinha.

Ao fim dos três meses, quando o visto da Lili estava quase a expirar, o Tong anunciou-nos que se iam casar. O Willie, como advogado e amigo, recordou-lhe que a única razão que a jovem tinha para casar era querer viver nos Estados Unidos, onde só precisava de marido por dois anos. Depois disso poderia divorciar-se e obter uma autorização de residência. O Tong já tinha pensado no assunto. Não era ingénuo ao ponto de imaginar que uma rapariga pudesse apaixonar-se pela sua fotografia à primeira vista, por muito bem que a Lori a tivesse retocado, mas parecia-lhe que ambos tinham a ganhar com o arranjo: ele a possibilidade de ter um filho e ela a autorização de residência. Depois se veria qual das duas coisas sucederia primeiro; valia a pena correr o risco. O Willie aconselhou-o a assinar um acordo antenupcial, ou arriscava-se a que ela ficasse com parte das economias acumuladas com tanta avareza, mas a Lili comunicou que não assinaria nenhum documento sem conhecer o seu conteúdo. Foram procurar um advogado em Chinatown que o traduziu. Quando percebeu o alcance do que lhe pediam, a Lili ficou muito vermelha e levantou a voz pela primeira vez. «Como podiam acusá-la de querer casar a troco de um visto?! Partira para formar uma família com o Tong!», alegou, submergindo o noivo e o advogado num profundo arrependimento. Casaram-se sem acordo antenupcial. Quando me contou a história, o Willie quase deitava chispas pelas orelhas. Custava-lhe a acreditar que o seu contabilista pudesse ser tolo àquele ponto, não sabia como podia ter feito semelhante estupidez, e agora estava tramado, e parecia impossível que ainda não tivesse percebido que não havia mulher que não o tosquiasse — uma verdadeira litania de prognósticos funestos. Por uma vez, ofereci a mim mesma o prazer de lhe devolver o conselho: «Não te metas...»

A Lili inscreveu-se num curso intensivo de Inglês e andava sempre com uns auscultadores enfiados nas orelhas para ouvir falar a língua, até quando dormia, mas a aprendizagem acabou por ser mais difícil e lenta do que esperava. Começou a procurar emprego e, apesar da sua educação esmerada e da sua experiência como enfermeira, não conseguiu nada, porque não falava inglês. Pedimos-lhe que fizesse a limpeza da nossa casa e que fosse buscar os meus netos à escola, porque a Ligia já deixara de trabalhar. Um a um, tinha mandado vir os netos da Nicarágua, dera-lhes uma educação superior e já todos tinham as suas carreiras, de maneira que por fim pôde descansar. Connosco, a Lili poderia ganhar um ordenado decente, enquanto procurava um trabalho mais adequado às suas capacidades. Aceitou a oferta, agradecida, como se lhe tivéssemos feito um favor, quando era ela que nos fazia um favor a nós.

Ao princípio era divertido comunicar com a Lili: eu deixava-lhe desenhos afixados no frigorífico, mas o Willie falava com ela em inglês aos gritos e ela limitava-se a responder-lhe «não» com um sorriso adorável. Um dia tivemos uma visita da Roberta, uma amiga transexual que antes de se ter tornado mulher foi oficial da Marinha e se chamou Robert. Combateu no Vietname, foi condecorado por bravura, mas ficou horrorizado com a morte de inocentes e deixou o serviço militar. Esteve trinta anos apaixonado pela mulher, que o acompanhou no processo de se transformar em mulher, e ficou com ela até que morreu de cancro da mama. A julgar pelas fotografias, a Roberta fora em tempos um homem peludo, com maxilares de corsário e nariz irregular. Submeteu-se a um tratamento hormonal, a cirurgias plásticas, a electrólise para tirar os pelos e por fim a uma operação genital, mas mesmo assim o seu aspecto não devia ser completamente convincente, porque a Lili ficou boquiaberta a olhar para ela e a seguir escondeu-se atrás de uma porta com o Willie para lhe perguntar qualquer coisa em chinês. O meu marido deduziu que o problema estivesse no sexo da nossa amiga e começou a explicar o assunto à Lili num sussurro, mas acabou por subir de volume e acabou a vociferar a plenos pulmões que era um homem com alma de mulher, ou coisa do estilo. Eu fiquei morta de vergonha, mas a Roberta continuou a bebericar o chá e a debicar bolos com as suas maneiras muito finas, sem parecer ter-se apercebido da barulheira infernal que vinha de detrás da porta.

Os meus netos e a Olívia, a cadela, adoptaram a Lili. A nossa casa nunca tinha estado tão limpa. Desinfectava-a como se pensasse fazer uma operação de coração aberto na sala de jantar. Foi assim que se integrou na nossa tribo. Quando casou perdeu a timidez; respirou fundo, encheu o peito de ar, tirou a carta de condução e comprou um carro. Alegrou a vida do Tong, que agora até parece mais atraente, porque a Lili veste-o à moda e corta-lhe o cabelo. Isso não quer dizer que não discutam, porque ele trata-a como um déspota. Tentei explicar por gestos à Lili que quando ele voltasse a levantar-lhe a voz ela devia dar-lhe com uma frigideira na cabeça, mas fiquei com a impressão que não me percebeu. Só lhes faltam os filhos, que não chegam porque ela tem problemas de fertilidade e ele já não é muito jovem. Aconselhei-os a adoptar na China, mas lá não dão rapazes e para que haviam eles de querer uma menina? A mesma coisa que ouvira na índia.

 

quando concluí Retrato a Sépia era perseguida por uma promessa cujo cumprimento não podia continuar a protelar: escrever três romances de aventuras para o Alejandro, a Andrea e a Nicole, um para cada um. Tal como fiz com os meus filhos, desde que os meus netos nasceram que lhes contava histórias de acordo com um sistema afinado até à perfeição: eles davam-me três palavras, ou três temas, e eu tinha dez segundos para inventar uma história que os incluísse a todos. Combinavam-se entre si para me proporem as coisas mais disparatadas e apostavam que eu não seria capaz de as juntar, mas o meu treino — que começara contigo, Paula, em 1963 — era tão formidável como a inocência deles, de maneira que nunca falhei. O problema surgia na semana seguinte, quando me pediam, por exemplo, que lhes repetisse palavra por palavra o conto da formiga irrequieta que se meteu num tinteiro e descobriu por acaso a escrita egípcia. Eu já não tinha a menor recordação do insecto letrado e via-me em grandes apertos quando me pediam que recorresse ao meu computador mental. «O destino das formigas é muito monótono, é só trabalhar e servir a rainha. Mais vale contar-lhes a história de um escorpião assassino», e lançava-me antes que tivessem tempo de reagir. Mas chegou o dia em que isso não deu resultado; foi então que lhes prometi que escreveria três livros com temas que eles me propusessem, como fazíamos com os contos improvisados em dez segundos antes de irem para a cama.

Os meus netos deram-me o tema do primeiro livro, que ja adivinhava em muitos contos que me tinham pedido: a ecolog13.

A Cidade dos Deuses Selvagens nasceu da minha viagem ao Amazonas. Agora já sei que quando o poço da minha imaginação voltar a secar, como aconteceu depois da tua morte, Paula, posso voltar a enchê-lo nas viagens. A minha imaginação desperta quando me afasto de um ambiente conhecido e me confronto com outras formas de vida, com gentes diferentes, línguas que não domino, vicissitudes imprevisíveis. Verifico que o poço se está a encher porque os meus sonhos ficam em alvoroço. As imagens e as histórias que acumulo na viagem transformam-se em sonhos vívidos, às vezes em pesadelos violentos, que me anunciam a chegada das musas. No Amazonas deixei-me submergir numa natureza voraz, verde sobre verde, água sobre água, vi cai-mões do tamanho de barcos, golfinhos rosados, raias a flutuarem como tapetes nas águas cor de chá do rio Negro, piranhas, macacos, pássaros inverosímeis e serpentes de muitos tipos, incluindo uma anaconda, morta, mas anaconda, seja como for. Pensei que não poderia usar nada disto, porque não liga com o tipo de livros que escrevo, mas tudo acabou por ser precioso quando decidi escrever um livro juvenil. O Alejandro serviu de modelo para o Alexander Cold, o protagonista; a sua amiga, Nadia Santos, é uma mistura de Andrea e Nicole. No romance, Alexander parte com a avó Kate, escritora de livros de viagens, para o Amazonas, onde conhece Nadia. Os miúdos perdem-se na selva, vivem com uma tribo de «índios invisíveis» e descobrem uns animais pré-históricos que habitam no interior de um tepuy, uma estranha formação geológica característica da região. A ideia dos animais surgiu de uma conversa que ouvi num restaurante de Manaus entre um grupo de cientistas que falavam do achado de um fóssil gigantesco de aspecto humano na selva. Discutiam de que tipo de animal se trataria, diziam que talvez fosse da família dos Macacos ou uma espécie de iéti tropical. Com aqueles dados era fácil imaginar os animais. Os índios invisíveis existem, são tribos que vivem na Idade da Pedra e que, para se confundirem com o ambiente, P,pintam o corpo imitando a vegetação que os rodeia e se movem tão Silenciosamente que chegam a estar a três metros de nós sem que nos tenhamos apercebido da sua presença. Muitas das histórias que ouvi no Amazonas sobre corrupção, cobiça, tráfico ilegal, violência e contrabando foram a matéria-prima da intriga, mas o essencial foi a selva, que se transformou no cenário e determinou o tom do livro.

Poucas semanas depois de ter começado o primeiro volume da trilogia percebi que não era capaz de deixar voar a imaginação com a audácia que o projecto exigia. Tinha muita dificuldade em meter-me na pele daquele par de adolescentes, que viveriam um aventura prodigiosa ajudados pelos seus «animais espirituais», como na tradição de algumas tribos indígenas. Recordo os terrores da minha própria infância, dos tempos em que não tinha qualquer poder sobre a minha vida ou o mundo que me rodeava. Temia coisas muito concretas, como que o meu pai, desaparecido há tantos anos que até o seu nome se perdera, viesse reclamar-me, ou que a minha mãe morresse e eu acabasse por ir parar a um orfanato lúgubre onde seria alimentada a sopa de couve, mas receava ainda mais as criaturas que povoavam a minha própria mente. Acreditava que o Diabo aparecia de noite nos espelhos, que os mortos saíam dos cemitérios durante os tremores de terra, que no Chile são muito comuns, que havia vampiros no sótão da casa, grandes sapos malévolos dentro dos armários e almas penadas entre as cortinas da sala, que a nossa vizinha era uma bruxa e a ferrugem das canalizações era sangue de sacrifícios humanos. Tinha a certeza que o fantasma da minha avó me enviava mensagens crípticas nas migalhas de pão ou nas formas das nuvens, mas isso não me metia medo; era uma das minhas poucas fantasias tranquilizadoras. A recordação dessa avó etérea e divertida sempre foi um consolo, ainda agora, que tenho mais vinte e cinco anos do que ela tinha quando morreu. Porque não me rodeava de fadas com asas de libelinha ou de sereias de caudas ataviadas com jóias? Porque era tudo terrível? Não faço ideia. Talvez a maior parte das crianças viva com um pé nesses universos de pesadelo. Não podia recorrer às minhas fantasias macabras dessa época para escrever os meus livros juvenis, já que não se tratava de as evocar, mas sim de as sentir na pele como as sentimos na infância, com toda a sua carga emotiva. Precisava de voltar a ser a criança que fui em tempos, uma criança silenciosa, torturada pela própria imaginação, que deambulava como uma sombra pela casa do avô. Tinha de demolir as minhas defesas racionais e abrir a mente e o coração. Para isso, decidi submeter-me à experiência xamânica da ayahuasca, uma beberagem preparada com uma planta trepadeira, a Banisteriopsis, usada pelos índios do Amazonas para produzir visões.

O Willie não quis que eu me arriscasse sozinha e, como tantas outras vezes na nossa vida em comum, acompanhou-me às cegas. Bebemos um chá escuro de sabor repugnante, apenas um terço de uma chávena, mas tão fétido e amargo que era quase intragável. Talvez eu tenha uma falha no córtex cerebral — volta e meia ando um pouco azamboada —, porque a ayahuasca, que para alguns é como um encontrão que os transporta ao mundo dos espíritos, a mim atirou-me com uma só patada para tão longe que só voltei dois dias mais tarde. Quinze minutos depois de a ter tomado senti que me faltava o equilíbrio e ajeitei-me no chão, de onde já não consegui mexer-me. Senti--me dominada pelo pânico e chamei o Willie, que conseguiu arrastar--se até junto de mim, e agarrei-me à mão dele como a um salva-vidas no meio do pior temporal. Não conseguia falar nem abrir os olhos. Perdi-me num turbilhão de figuras geométricas e de cores brilhantes, que ao princípio me pareceram fascinantes e depois angustiantes. Senti que me soltava do meu corpo, que o coração me rebentava e era dominada por uma angústia horrível. Foi então que voltei a ser criança, perdida entre os demónios dos espelhos e as almas das cortinas.

Ao fim de pouco tempo as cores esfumaram-se e apareceu a pedra negra que estava quase esquecida no meu peito, ameaçadora com algumas montanhas da Bolívia. Percebi que teria de a afastar do meu caminho ou acabaria por morrer. Tentei trepar por ela acima, mas era escorregadia, quis contorná-la, mas era enorme, comecei a arrancar-lhe pedaços, mas a tarefa parecia não ter fim, e em mim ia tendo a certeza de que a rocha continha toda a maldade do mundo, de que estava cheia de demónios. Não sei quanto tempo estive assim; nesse estado, o tempo real não tem nada a ver com o tempo dos relógios. De repente senti um golpe de energia, dei uma patada formidável no chão e elevei-me por cima da rocha. Voltei ao corpo por um momento; dobrada sobre mim mesma com náuseas, procurei aos apalpões o balde que tinha deixado à mão e vomitei bílis. Náusea, sede, areia na boca, paralisia. Percebi, ou compreendi, o que dizia a minha avó: o espaço está cheio de presenças e tudo acontece ao mesmo tempo. Eram imagens sobrepostas e transparentes, como as ilustrações impressas em folhas de acetato nos livros de ciências. Vagueei por jardins onde cresciam plantas ameaçadoras de folhas carnudas, grandes cogumelos que exsudavam veneno, flores malvadas. Vi uma menina de uns quatro anos, encolhida, aterrada; estendi a mão para a levantar e era eu. Diversas épocas e pessoas passavam de uma folha para outra. Encontrei-me comigo mesma em diferentes momentos e noutras vidas. Conheci uma velha de cabelo grisalho, minúscula, mas direita e de olhos refulgentes; podia ter sido eu daqui a alguns anos, mas não estou certa disso, porque a mulher estava no meio de uma multidão confusa.

Em breve esse povoado esfumou-se e entrei num espaço branco e silencioso. Flutuava no ar, era uma águia com as grandes asas abertas, sustida pela brisa, vendo o mundo de cima, livre, poderosa, solitária, forte, indiferente. Ali esteve a grande ave durante muito tempo e em seguida subiu a outro lugar, ainda mais glorioso, em que a forma desapareceu e passou a haver apenas espírito. Acabaram-se a águia, as recordações e os sentimentos; eu não existia, dissolvi-me no silêncio. Se tivesse tido a menor consciência ou desejo, ter-te-ia procurado a ti, Paula. Muito mais tarde vi um pequeno círculo, como uma moeda de prata, e dirigi-me a ele como uma flecha, atravessei o espaço livre e entrei sem esforço num vazio absoluto, de um cinzento translúcido e profundo. Não havia sensação, espírito, nem qualquer consciência individual; no entanto, sentia uma presença divina e absoluta-Estava no interior da Deusa. Era a morte ou a glória de que falam os profetas. Se morrer é assim, estás numa dimensão inalcançável e absurdo imaginar que me acompanhas na vida quotidiana ou me ajudas nas minhas tarefas, ambições, medos e vaidades.

Regressei mil anos mais tarde, como uma peregrina extenuada, à realidade conhecida pelo mesmo caminho que percorrera na ida, mas feito ao contrário: atravessei a pequena lua de prata, flutuei no espaço da águia, desci ao céu branco. Fundi-me nas imagens psicadélicas e por fim regressei ao meu pobre corpo, que há dois dias estava muito doente, cuidado pelo Willie, que começava a convencer-se de que perdera a mulher no mundo dos espíritos. Na sua experiência com a ayahuasca, o Willie não ascendeu à glória nem entrou na morte. Manteve-se trancado num inferno burocrático, a mexer em papéis, até que o efeito da droga passou, algumas horas mais tarde. Entretanto eu estive deitada no chão, onde depois ele me aconchegou com almofadas e cobertores, a tiritar, a balbuciar coisas incoerentes e a vomitar uma espuma cada vez mais branca. Ao princípio estava agitada, mas depois fiquei relaxada e imóvel. Não parecia estar a sofrer, disse o Willie.

O terceiro dia, já consciente, passei-o deitada na minha cama a reviver todos os instantes daquela viagem extraordinária. Sabia que já seria capaz de escrever a trilogia, porque perante os tropeções da minha imaginação teria o recurso de voltar a perceber o universo com a intensidade da ayahuasca, semelhante à da minha infância. A aventura com a droga submergiu-me em qualquer coisa que só posso definir como amor, uma impressão de unidade: dissolvi-me no divino, senti que não havia separação entre mim e o resto do que existe, que tudo era luz e silêncio. Tive a certeza de que somos espíritos e de que a matéria é ilusória, uma coisa que não se pode provar racionalmente, mas que por vezes tenho experimentado em momentos de exaltação perante a natureza, de intimidade com uma pessoa amada ou de meditação. Aceitei que nesta vida humana o meu animal toté-nuco é a águia, essa ave que nas minhas visões flutuava olhando tudo a uma grande distância. É essa distância que me permite contar histórias, porque me deixa ver os ângulos e os horizontes. Parece que nasci para contar histórias e mais histórias. Doía-me o corpo, mas nunca me senti mais lúcida. De todas as aventuras que vivi na minha existência agitada, a única que pode comparar-se com esta visita à dimensão dos xamanes foi a tua morte, minha filha. Em ambas as ocasiões sucedeu algo de inexplicável e profundo que me transformou. Não voltei a ser a mesma depois da tua última noite nem de beber aquela poderosa poção: perdi o medo da morte e vivi a eternidade do espírito.

 

A terça-feira de Setembro de 2001 estava eu no duche quando o telefone tocou, ainda cedo, de manhã. Era a minha mãe, do Chile, horrorizada com a notícia que nós ainda desconhecíamos, porque na Califórnia eram três horas mais cedo que na outra costa do país e tínhamos acabado de nos levantar. Quando ouvi a voz dela pensei que se tratava do aniversário do golpe militar no Chile, também um atentado terrorista contra uma democracia, que todos os anos recordamos como um dia de luto: terça-feira, 11 de Setembro de 1973. Ligámos a televisão e vimos mil e uma vezes as mesmas imagens dos aviões a embaterem nas torres do World Trade Center, que me recordaram as do bombardeamento dos militares ao Palácio de La Moneda, no Chile, no dia em que morreu o presidente Salvador Allende. Fomos a correr ao banco levantar dinheiro e abastecemo-nos de água, de gasolina e de alimentos. Os voos foram cancelados, milhares de passageiros foram afectados pela decisão, os hotéis encheram-se e tiveram de pôr camas nos corredores. Nessa altura eu devia partir numa digressão de promoção dos meus livros na Europa, mas tive de cancelar a viagem. As linhas telefónicas estavam tão sobrecarregadas que a Lori não conseguiu falar com os pais durante vários dias nem eu com os meus no Chile. O Nico e a Lori vieram para nossa casa com os miúdos, que nessa semana estavam com eles e não iam à escola porisso as aulas tinham sido suspensas. Juntos sentíamo-nos mais seguros. Durante vários dias ninguém pôde voltar ao trabalho em Maohattan. No céu flutuava uma nuvem de pó e dos canos rotos escapavam gases tóxicos. Quando ainda reinava a confusão recebemos notícias do Jason. Contou-nos que em Nova Iorque a situação começava pouco a pouco a melhorar. De noite foi para a área do desastre com uma pá e um capacete para ajudar as equipas de resgate, que estavam extenuadas. Passou junto de dezenas de voluntários que regressavam a casa depois de muitas horas de trabalho nas ruínas com trapos brancos amarrados ao pescoço, em homenagem às vítimas presas nas torres, que haviam agitado lenços das janelas para se despedirem. O fumo que se erguia das ruínas era visível ao longe. Os Nova-Iorquinos sentiam-se como se tivessem levado uma sova. As sirenes tocavam e as ambulâncias passavam vazias, porque já não havia sobreviventes, ao mesmo tempo que junto da área delimitada pelos bombeiros se aglomeravam dezenas de câmaras de televisão. Previa-se outro ataque, mas ninguém falava seriamente em sair da cidade; Nova Iorque não perdera o seu carácter ambicioso, forte e visionário. Quando chegou ao lugar do desastre, o Jason encontrou muitos voluntários como ele; por cada pessoa desaparecida nas ruínas havia dezenas dispostas a procurá-la. Cada vez que passava um camião com trabalhadores, a multidão saudava-o com gritos de ânimo. Outros voluntários levavam água e comida. No lugar onde antes se erguiam as soberbas torres havia um buraco negro e fumegante. «Isto parece um sonho mau», disse o Jason.

Pouco depois começou o bombardeamento do Afeganistão. Os mísseis choviam sobre as montanhas onde se escondia um punhado de terroristas que ninguém queria defrontar cara a cara, nivelando o mundo com o seu estrépito. Entretanto o Inverno caiu e nos campos de refugiados as mulheres e as crianças começaram a morrer de frio: meros danos colaterais... Nos Estados Unidos, a paranóia ia aumentando. As pessoas abriam o correio com luvas e máscaras com receio do vírus da varíola ou do antraz, supostamente armas de destruição em massa. Contagiada pelo terror dos outros, comprei Cipro um poderoso antibiótico que poderia salvar os meus netos em caso de guerra biológica, mas o Nico disse-me que, se lhes déssemos esse medicamento ao primeiro sinal de constipação, em caso de doença verdadeira não seria eficaz. «Calma, mamã, não podemos prevenir--nos contra tudo», disse-me ele. E nessa altura lembrei-me de ti, minha filha, do golpe militar no Chile e de muitos outros momentos de impotência na minha vida. Não tenho domínio sobre os acontecimentos mais importantes, aqueles que determinam o curso da existência, por isso mais vale que me descontraia. A histeria colectiva fez-me esquecer esta lição tremenda durante várias semanas, mas a observação do Nico devolveu-me à realidade.

 

quando fazia a investigação para a trilogia juvenil, conheci, na livraria Book Passage, a Juliette, uma jovem americana muito bela e muito grávida, que mal conseguia equilibrar a barriga mais descomunal que já vi. Estava grávida de gémeos, mas não dela, e sim de outro casal; segundo me disse, limitara-se a emprestar a barriga. Era uma iniciativa altruísta da sua parte, mas quando conheci a história pareceu-me tremenda.

Aos vinte anos, depois de ter concluído o curso na faculdade, a Juliette fez uma viagem à Grécia, o destino lógico de uma pessoa que estudara arte, e ali, na ilha de Rodes, conheceu o Manoli, um grego exuberante, com cabeleira e barba de profeta, olhos de veludo e uma personalidade avassaladora, que a seduziu de imediato. O homem usava calções tão curtos que quando se agachava ou sentava com as pernas cruzadas se lhe viam as partes pudibundas. Mas imagino que fossem excepcionais, uma vez que as mulheres o perseguiam a trote pelas ruelas de Lindos, a sua aldeia. O Manoli era bem-falante. Era capaz de passar doze horas seguidas na praça ou num café a contar anedotas sem parar, rodeado de ouvintes hipnotizados pela sua voz. Mesmo a história da sua família daria um romance: os Turcos tinham decapitado o seu avô e a sua avó à frente dos seus sete filhos, que obrigaram a percorrer a pé, juntamente com centenas de outros prisioneiros gregos, a distância que vai do mar Negro até ao Líbano-Ao longo desse caminho de sofrimento seis dos irmãos morreram» apenas o pai de Manoli, que na altura tinha seis anos, sobreviveu.

Entre as muitas turistas bronzeadas pelo sol e dispostas a pavonearem-se com ele nas areias quentes da Grécia, o Manoli escolheu a Juliette pelo seu ar inocente e a sua beleza. Perante a surpresa dos habitantes da ilha, que o consideravam um solteiro irredutível, pro-pôs-lhe casamento. Já fora casado, com uma chilena, curiosamente, que fugiu com o professor de ioga no dia do casamento. A história era pouco clara, mas, segundo as más-línguas, o rival pôs LSD na bebida do Manoli, que acordou no dia seguinte numa instituição psiquiátrica, numa altura em que a doidivanas da mulher já desaparecera. Nunca mais soube da chilena. Para poder voltar a casar teve de passar por todos os trâmites legais para provar que houvera abandono da parte dela, uma vez que não havia ninguém que assinasse os papéis do divórcio.

O Manoli vivia numa casa antiga no cimo de uma escarpa com vista sobre o mar Egeu, uma casa que pertencera centenas de anos a vigias que esquadrinhavam o horizonte em torno da ilha. Se avistassem barcos inimigos, montavam a cavalo, sempre um cavalo ensinado, e percorriam cinquenta quilómetros a galope até à mítica cidade de Rodes, fundada pelos deuses, para dar o alarme. O Manolo pôs umas mesas na parte de fora e transformou-a num restaurante. Todos os anos dava uma demão de tinta branca à casa e castanha às portas e às persianas, as cores que se viam em todas as casas da idílica aldeia, onde não havia carros e todas as pessoas se conheciam pelo nome. Lindos, coroada pela sua acrópole, a que se junta um castelo medieval já em ruínas, quase não muda há vários séculos. A Juliette não hesitou em casar-se, embora tivesse percebido desde o início que não era possível dominar aquele homem. Para evitar o sofrimento dos ciúmes e a humilhação de vir a saber de uma aventura dele por outra pessoa, disse ao Manoli que podia ter as aventuras amorosas que entendesse, mas não nas costas dela; preferia saber de tudo. O Manoli agradeceu-lhe, mas por sorte tinha experiência suficiente para não fazer a tolice de lhe confessar uma infidelidade. Graças a isso, a Juliette viveu tranquila e apaixonada. Estiveram juntos dezasseis anos em Lindos.

O restaurante mantinha-os muito ocupados durante a época alta, mas no Inverno fechavam-no e aproveitavam para viajar. O Manoli era um verdadeiro ilusionista na cozinha. Preparava tudo no próprio momento: carne e peixe grelhados e saladas frescas. Era ele mesmo que escolhia os peixes que os barcos traziam do mar ao amanhecer e cada alface que chegava das hortas às costas de uma mula; foi assim que a sua fama se espalhou para além da ilha. Da aldeia até ao sítio onde ficava o restaurante eram vinte minutos de caminho a passo de veraneio. Os clientes não tinham pressa, porque a paisagem magnífica convidava à contemplação. A maior parte acabava por ficar toda a noite, para seguir o percurso da Lua sobre a acrópole e o mar. AJu-liette, com os seus vaporosos vestidos de algodão, sandálias, cabelo de um castanho-intenso solto sobre os ombros e rosto clássico, era ainda mais atraente que a comida. Parecia a vestal de um antigo templo grego, e precisamente por isso o facto de falar com sotaque americano chamava ainda mais a atenção. Deslizava com as bandejas entre os clientes, sempre delicada e simpática, apesar da barafunda de gente apinhada no restaurante e à espera à porta. Só perdeu a paciência duas vezes, ambas com turistas americanos. A primeira vez, um gordalhaço, corado pelo sol em excesso e pelo ouzo, rejeitou o prato três vezes porque não era precisamente o que queria, e isto com muito maus modos. A Juliette, extenuada por uma longa noite de trabalho, levou-lhe o quarto prato e, sem comentários, atirou-lho pela cabeça abaixo. A segunda vez foi por culpa de uma cobra, que trepou pela perna de uma mesa e avançou a ondular até à salada, no meio da gritaria histérica de um grupo de texanos, que certamente já tinham visto outras maiores na terra deles. Não havia necessidade de espantarem a clientela com tanto escândalo! A Juliette escolheu uma faca grande na cozinha e com quatro golpes de caraté partiu a cobra em cinco pedaços. «A seguir já trago a lagosta», foi tudo o que disse.

A Juliette suportava de bom grado as manias do Manoli — um marido nada fácil —, porque ele era o homem mais divertido e apaixonado que alguma vez conhecera. Em comparação com ele, todos os outros pareciam insignificantes. Havia mulheres que, à frente dela, entregavam ao Manoli a chave do quarto do hotel, que ele recusava com uma graça irresistível, depois de tomar devidamente nota do número do quarto. Tiveram dois filhos tão bonitos como a mãe: o Aristóteles e, quatro anos mais tarde, o Aquiles. O mais pequeno ainda andava de fraldas quando o pai foi a Tessalonica consultar um médico porque tinha dores nos ossos. A Juliette ficou em Lindos com os filhos a tomar conta do restaurante o melhor que podia. Não deu grande importância ao mal-estar do marido, porque nunca o tinha ouvido queixar-se. O Manoli ligava-lhe todos os dias para lhe falar de coisas sem importância. Nunca lhe falava da saúde. Respondia a todas as perguntas dela com evasivas e com a promessa de que voltaria a casa menos de uma semana depois, quando conhecesse o resultado de todos os exames. No entanto, no próprio dia em que aguardava o regresso dele, viu uma longa fila de amigos que subiam a colina e chegaram à porta de sua casa ao pôr do Sol. Sentiu um aperto na garganta e lembrou-se que no dia anterior, ao telefone, o marido lhe dissera com a voz entrecortada, entre dois soluços: «És uma boa mãe.» Tinha ficado a pensar naquela frase, tão inesperada no Manoli, que não desperdiçava amabilidades com ela. Nesse momento apercebeu-se de que se tratara de uma despedida. As caras compungidas dos homens agrupados à sua porta e o abraço colectivo das mulheres confirmaram-no. O Manoli morrera de um cancro fulminante, de que ninguém desconfiara porque arranjara maneira de esconder o suplício dos ossos a desfazerem-se. Entrou no hospital sabendo que chegara a sua hora, mas, por orgulho, não quis que a mulher e os filhos presenciassem a sua agonia. Os vizinhos de Lindos reuniram esforços e compraram as passagens de avião para a Juliette e para os filhos. As mulheres fizeram-lhe a mala, fecharam a casa e o restaurante e uma delas foi com eles a Tessalonica.

A jovem viúva andou de hospital em hospital à procura do marido, porque nem sequer sabia onde ele se encontrava, até que por fim a levaram a uma cave, que não passava de um buraco escavado no chão, como os que são usados para guardar vinho, onde havia um corpo sobre uma mesa, coberto apenas por um lençol.


a impressão foi de alívio, porque se convenceu de que fora vítima de um equívoco terrível. O cadáver amarelo e esquelético, com uma expressão atroz de sofrimento, não se assemelhava em nada ao homem alegre e cheio de vida que era o seu marido, mas nessa altura o enfermeiro que a acompanhara levantou a lanterna e a Juliette reconheceu o Manoli. Nas horas que se seguiram teve de ir buscar forças ao mais fundo de si mesma para encontrar lugar num cemitério e enterrar o marido sem cerimónias. Depois levou os filhos para uma praça e entre as árvores e os pombos explicou-lhes que não voltariam a ver o pai, mas que o sentiriam muitas vezes ao seu lado, porque o Manoli nunca deixaria de cuidar deles. O Aquiles era pequeno de mais para perceber a enormidade da sua perda, mas o Aristóteles ficou aterrado. Nessa mesma noite a Juliette acordou sobressaltada, com a certeza de que estavam a beijá-la na boca. Sentiu os lábios suaves, o hálito quente e as cócegas provocadas pela barba do marido, que viera dar-lhe o beijo de despedida que não quisera dar-lhe antes, quando agonizava sozinho num hospital. O que dissera aos filhos para os consolar era uma verdade absoluta: o Manoli velaria pela sua família.

A aldeia de Lindos cerrou fileiras em torno da jovem viúva e dos filhos, mas esse abraço não podia sustentá-los indefinidamente. A Juliette não conseguia gerir sozinha o restaurante e, como não encontrou mais nenhum trabalho na ilha, decidiu que chegara o momento de se reencontrar com a família e de regressar à Califórnia, onde pelo menos contaria com a ajuda dos pais. A vida dos filhos mudou. Tinham sido criados livres e seguros, a brincar descalços nas ruas brancas da ilha, onde todos os conheciam. A Juliette arranjou um apartamento modesto, que fazia parte de um projecto de uma igreja, e conseguiu emprego na Book Passage. Ainda não tinha acabado de se instalar quando a mãe descobriu que tinha uma doença incurável, e ao fim de poucos meses acompanhou-a ao cemitério. Um ano depois morreu o pai. Havia tanta morte à sua volta que quando soube que um casal procurava uma barriga para lhe gerar um filho se ofereceu sem pensar muito, na esperança de que essa vida dentro de si a consolasse de tantas perdas e lhe transmitisse algum calor. Conheci-a deformada pela gravidez, com as pernas inchadas e manchas na cara, com olheiras e muito cansada, mas contente. Continuou a trabalhar na livraria até que teve de parar por ordem do médico, e passou as últimas semanas deitada num sofá, esmagada pelo peso da barriga. Em menos de quatro anos, o Aristóteles e o Aquiles tinham perdido o pai e os dois avós; as suas curtas vidas estavam marcadas pela morte. Agarravam-se à mãe, a única pessoa que lhes restava, com um medo inevitável de que também ela desaparecesse, e também por isso me pareceu estranho que a Juliette tivesse corrido o risco que aquela gravidez representava.

Quem são os pais destes gémeos? — perguntei-lhe.

Quase não os conheço. O contacto foi feito através de um grupo com quem me reúno todas as semanas. São adultos e crianças que estão a viver um luto. O grupo tem-nos ajudado muito. Agora o Aristóteles e o Aquiles percebem que não são as únicas crianças do mundo sem um pai.

O acordo que fizeste com o casal foi que terias um filho, e não dois. Para que lhes vais dar uma criança de brinde? Dá-lhes só um e o outro dá-mo a mim.

Começou-se a rir e explicou-me que nenhum deles lhe pertencia, que havia acordos e até contratos legais relativos a óvulos, espermatozóides, paternidade e outras coisas do mesmo tipo, de maneira que eu não poderia ficar com um dos gémeos. Uma pena, mas não era o mesmo que uma ninhada de cachorrinhos.

A Juliette é a deusa Afrodite, toda doçura e abundância: curvas, seios, lábios de beijos. Se a tivesse conhecido antes, a sua imagem teria servido de ilustração para a capa do meu livro sobre comida e amor. Ela e os dois meninos gregos, como chamamos aos seus filhos, entraram, como é natural, na nossa família, e agora, quando penso nos meus netos, conto com mais dois. E assim aumentou a nossa tribo, esta comunidade abençoada onde se multiplicam as alegrias e partilham as dores. O colégio particular mais prestigiado do condado ofereceu bolsas ao Aristóteles e ao Aquiles e, por um golpe de sorte, a Juliette conseguiu alugar uma casinha com jardim no nosso bairro. Agora todos, o Nico, a Lori, o Ernesto, a Giulia, a Juliette e nós, vivemos num raio de poucos quarteirões e os miúdos podem ir a casa uns dos outros a pé ou de bicicleta. A família ajudou-a nas mudanças, e enquanto o Nico reparava coisas avariadas, a Lori pendurava quadros e o Willie instalava um grelhador, eu invocava o Manoli para que cuidasse dos seus lá do outro lado, como prometera com o beijo póstumo com que se despedira da mulher.

Numa tarde de Verão, sentadas junto à piscina da nossa casa, a ver o Willie ensinar o Aquiles a nadar — o garoto tinha horror à água, mas morria de inveja quando via os outros miúdos a chapinharem —, perguntei à Juliette como tinha podido, ela que era tão maternal, gerar dois bebés durante nove meses, dar à luz e separar-se deles nesse mesmo dia.

Não eram meus. Só estiveram no meu corpo durante algum tempo. Enquanto os trazia dentro de mim sentia ternura por eles e cuidava deles, mas não era o mesmo amor possessivo que sinto pelo Aristóteles e pelo Aquiles. Sempre soube que me ia separar deles. Quando nasceram tive-os por um momento nos meus braços, beijei-os, desejei-lhes boa sorte e entreguei-os aos pais, que os levaram imediatamente. Depois fiquei com dores no peito, carregado de leite, mas não no coração. Senti-me feliz por aquele casal que não podia ter filhos.

Voltarias a fazê-lo?

Não, porque tenho quase quarenta anos e uma gravidez é muito desgastante. Só o faria por ti, Isabel — disse-me ela.

Por mim?! Nem pensar! Na minha idade o que menos queria era ter um filho — ri-me.

Então porque me pediste que roubasse um dos gémeos para ti.

Não era para mim. Era para a Lori.

 

Os olhos da minha mãe, a melhor qualidade do Willie é ser «bem mandado». A ela nunca lhe teria passado pela cabeça ligar ao tio Ramón para o escritório e pedir-lhe que de caminho para casa comprasse sardinhas ou que se descalçasse, subisse a uma cadeira e limpasse com o espanador a parte de cima de algum móvel, coisas que o Willie faz sem espavento. Para mim, o que há de mais admirável no meu marido é o seu optimismo. Não há maneira de o derrotar. Já o vi em baixo algumas vezes, mas levanta-se novamente, sacode o pó, põe o chapéu e segue em frente. Teve tantos problemas com os filhos que no lugar dele eu teria uma depressão incurável. Sofreu muito, não apenas com a Jennifer, mas também com os outros dois, que tiveram vidas dramáticas por causa da dependência das drogas. O Willie ajudou-os sempre, mas com a passagem dos anos foi perdendo a esperança. Talvez por isso se apegue tanto ao Jason.

Porque terás sido o único que aprendeu alguma coisa comigo? Os outros só pedem: dá-me, dá-me, dá-me... — disse-lhe uma vez.

Julgam-se nesse direito porque são teus filhos, mas a mim não me deves nada. Não és meu pai e sempre tomaste conta de mim. (como não havia de ligar ao que me dizes? — respondeu-lhe o Jason.

Estou orgulhoso de ti — afirmou o Willie, dissimulando um sorriso.

—        Isso não custa nada. A tua fasquia não está muito alta, Willie. O Jason adaptou-se a Nova Iorque, a cidade do mundo com mais ofertas de distracções, onde tem sucesso no seu trabalho, tem amigos, vive da escrita e encontrou a jovem que procurava, «tão digna de confiança como o Willie». A Judy licenciou-se em Harvard e escreve sobre sexo e relações para a Internet e para revistas femininas. É filha de mãe coreana e pai americano, muito bonita, inteligente e com um carácter tão ferozmente independente como eu. Não suporta a ideia de ser sustentada por quem quer que seja, em parte porque viu a mãe — que mal falava inglês — completamente submetida ao pai, que em devido tempo a deixou por uma mulher mais jovem. A Judy tirou ao Jason o vício de explorar o seu drama para seduzir raparigas. Com a história da namorada que o tinha trocado pela cunhada conseguia todas as mulheres que queria. Nunca lhe faltava um ombro — e outras partes — feminino onde encontrar consolo, mas com a Judy essa fórmula não resultou, porque ela aprendeu muito jovem desenvencilhar-se sozinha e não é das que se queixam. Teve pena pelo que ele tinha passado, mas não foi isso que a atraiu. Quando se conheceram vivia há quatro anos com outro homem, mas não era feliz.

Estás apaixonada por ele? — perguntou-lhe o Jason.

Não sei.

Se é assim tão difícil responder a essa pergunta, é porque provavelmente não estás.

Sabes lá tu! Não tens o direito de me dizer isso! — replicou ela, indignada.

Beijaram-se, mas o Jason disse-lhe que não voltariam sequer a tocar-se até ela deixar aquele homem; não estava disposto a que o insultassem de novo. Menos de uma semana depois ela saiu do magnífico apartamento onde vivia — e um bom apartamento parece ser a maior prova de amor possível em Nova Iorque — e foi viver para um tugúrio obscuro e muito distante do centro. Foi preciso bastante tempo até a relação assentar, porque ele continuava a desconfiar das mulheres em geral e do casamento em particular, já que os seus pais, madrastas e padrastos se tinham divorciado uma, duas e até três vezes. Um dia a Judy disse-lhe que não lhe fizesse pagar a ela a traição da Sally. Isso, mais o facto de que gostava dele apesar de ele resistir a comprometer-se, fê-lo reagir. Por fim conseguiu baixar as defesas e rir-se do passado. Agora até comunica de vez em quando com a Sally por e-mail. «Agrada-me saber que está com a Célia há tantos anos. Isso significa que não me deixou por um capricho. Houve muita gente a sofrer, mas pelo menos saiu alguma coisa boa de toda essa confusão», disse-me.

Segundo o Jason, a Judy é a pessoa mais decente que conhece, sem a menor afectação nem malícia. A crueldade do mundo nunca deixa de a surpreender, porque nunca lhe passaria pela cabeça fazer mal a quem quer que fosse. Adora animais. Quando se conheceram, ela costumava levar animais abandonados a passear, na esperança de que alguém se afeiçoasse a eles. Nessa altura andava com o Toby, um animal patético, que parecia uma ratazana sem pêlo, se urinava e tinha ataques de epilepsia. Ficava com as quatro patas tesas no ar, a espumar pelo focinho. Tinham de lhe administrar medicamentos de quatro em quatro horas, o que representava uma verdadeira escravidão. Era o quarto cão de que tomava conta, mas não havia a menor esperança de que alguém se apaixonasse por semelhante horror e o adoptasse, de maneira que foi o Jason que acabou por levá-lo para lhe fazer companhia enquanto escrevia. No fim acabaram por ficar os dois com o pobre Toby.

O Jason trabalhava há mais de um ano para uma revista masculina, daquelas que têm páginas a cores com fotografias de mulheres lascivas de lábios e pernas entreabertos, quando lhe encomendaram uma reportagem sobre o crime insólito de um jovem que matou o seu melhor amigo no deserto do Novo México, onde tinham ido acampar. Perderam-se e estavam a ponto de morrer quando um pediu ao outro que lhe desse uma morte misericordiosa, porque não queria morrer de sede, e o amigo esfaqueou-o. As circunstâncias eram um tanto obscuras, mas o juiz achou que o assassino agira enlouquecido pela desidratação e deixou-o em liberdade com uma pena mínima. O trabalho jornalístico não foi fácil, porque, apesar da notoriedade que o crime teve, não culminou num caso de tribunal cheio de intriga, e além disso nem o acusado nem os amigos e familiares aceitaram falar com o Jason, que teve de se contentar com o que conseguiu saber no local onde tudo aconteceu e com os comentários dos guardas-florestais e dos polícias. No entanto, mesmo com tão pouco material, conseguiu dar à sua reportagem o tom de urgência e o suspense de um romance policial. Uma semana depois de o artigo ter saído na revista, uma editora encomendou-lhe um livro sobre o assunto, pagou-lhe um adiantamento invulgar para um autor novato e publicou-o com o título Journal ofthe Dead, diário do morto. O texto foi parar às mãos de uns produtores de cinema e o Jason vendeu os direitos para um filme. De um dia para o outro parecia prestes a tornar-se o próximo Truman Capote. Do jornalismo passou com naturalidade para a literatura, como previ a primeira vez que me mostrou um dos seus contos, quando tinha dezoito anos e vegetava em casa do Willie envolto num cobertor, a fumar e a beber cerveja às quatro da tarde. Foi na época em que não queria separar-se da família e nos telefonava a meio da tarde para o escritório a perguntar a que horas pensávamos voltar para casa e que íamos preparar-lhe para jantar. Agora é o único dos nossos descendentes que não precisa de nós para nada. Com o que ganhou com o livro e com a venda dos direitos para o filme decidiu comprar um apartamento em Brooklyn. A Judy sugeriu que o comprassem a meias e, perante a surpresa do Jason e do resto da família, passou um cheque de seis algarismos. Trabalha desde a adolescência sem medir esforços, sabe investir o seu dinheiro e é uma pessoa frugal. O Jason teve muita sorte com esta rapariga, mas ela não quer casar antes de ele deixar de fumar.

 

Fu e a Grace não tinham adoptado a Sabrina, não lhes passara pela cabeça que isso fosse indispensável, mas nessa altura o antigo companheiro da Jennifer saiu da prisão, onde tinha ido parar devido a alguma malfeitoria, e mostrou intenção de ver a filha. Nunca aceitou fazer um exame de sangue para provar uma paternidade muito duvidosa, e fosse como fosse já tinha perdido os direitos sobre ela, mas a sua voz ao telefone pôs as mães de sobreaviso. O homem queria levar a menina aos fins-de-semana, o que não estavam dispostas a permitir, mesmo que ele fosse o pai, devido ao seu estilo de vida, que não lhes oferecia confiança. Foi então que decidiram legalizar a situação da Sabrina. Isto coincidiu com a morte do pai da Grace, de setenta e cinco anos, que toda a vida havia fumado, tinha os pulmões numa desgraça e acabara num hospital ligado a uma máquina para respirar. Vivia no Oregon, o único estado do país onde ninguém invoca a lei quando um doente sem esperança escolhe o momento de morrer. O pai da Grace achou que continuar a viver mal custava uma fortuna e não valia a pena. Chamou os filhos, que vieram de longe, e com a ajuda de um computador explicou-lhes que os chamara para se despedir deles.

Mas para onde vai, papá?

Para o céu, se me deixarem entrar — escreveu no ecrã.

E quando pensa morrer? — perguntaram-lhe, divertidos.

Que horas são? — quis saber o paciente.

Dez.

— Pode ser ao meio-dia. Que vos parece?

E ao meio-dia exacto, depois de se despedir dos seus surpreendidos descendentes e de os consolar com a ideia de que essa solução era a melhor para todos, em especial para ele mesmo, porque não tencionava passar anos a fio ligado a uma máquina de respirar e tinha uma grande curiosidade de saber o que havia do outro lado da morte, desligou-se e partiu, feliz.

Para a adopção da Sabrina veio de São Francisco uma juíza, perante a qual nos apresentámos em família. Da porta de uma sala da Câmara vimos um longo corredor por onde chegava aquela neta milagrosa, a andar pela primeira vez sem a ajuda do andarilho. A sua figura delgada avançava pelo caminho de ladrilhos que parecia infindável, seguida pelas mães, que a vigiavam sem lhe tocarem, prontas para intervir em caso de necessidade. «Não vos disse que ia ser capaz de andar?», desafiou-nos a Sabrina com o gesto de orgulho com que celebra cada nova conquista da sua tenacidade. Tinham-na vestido com uma roupa especial, de festa, com laços no cabelo e sapatilhas cor-de-rosa. Cumprimentou-nos sem mostrar que se apercebera da emoção do Willie, posou para as fotografias, agradeceu a presença da tribo e anunciou, solene, que a partir desse momento o seu nome era Sabrina e o apelido da Jennifer seguido pelos das duas mães adoptivas. Em seguida voltou-se para a juíza e acrescentou: «A próxima vez que nos virmos vou ser uma actriz famosa.» E ficámos todos com a certeza de que assim seria. A Sabrina, criada no refúgio macrobiótico e espiritual do Centro de Budismo Zen, aspira acima de tudo a ser uma estrela de cinema e o seu prato preferido são hambúrgueres mal passados. Não sei como arranja todos os anos um convite para a cerimónia da entrega dos prémios da Academia em Hollywood. Na noite dos Óscares vemo-la na televisão sentada na galeria com um caderno na mão para ir tomando nota da passagem das celebridades. Está a praticar para o dia em que lhe couber a ela percorrer a passadeira vermelha.

A Fu e a Grace deixaram de formar um casal, depois de terem estado juntas mais de dez anos, mas continuam unidas pela Sabrina e por uma amizade tão grande que não vale a pena separarem-se. Arranjaram a casinha de bonecas que têm ao fundo do centro budista, onde há uma grande procura de casas, porque há sempre postulantes para uma existência contemplativa naquele remanso de espiritualidade. Dividiram o espaço, deixaram um quarto no meio para a Sabrina, e elas próprias vivem nos dois extremos. Para atravessar a casa tem de se saltar por cima dos móveis e dos brinquedos espalhados pelas salas minúsculas, que além disso partilham com Mack, um daqueles can-zarrões treinados para cegos que conseguiram para a Sabrina, que gosta muito dele, mas na realidade não sente falta nenhuma da sua ajuda, porque se amanha muito bem sozinha. Foi preciso um ano inteiro de trâmites muito rigorosos para conseguirem o Mack. Tiveram de fazer um curso para comunicar com ele, entregaram-lhes um álbum com fotografias do cão e advertiram-nas de que receberiam visitas-surpresa de um inspector e de que se não cuidassem muito bem dele lhes seria tirado. Por fim receberam um labrador esbranquiçado com olhos como uvas e mais esperto que a maior parte das pessoas. Um dia a Grace levou-o ao hospital onde trabalha para que a acompanhasse nas suas rondas pelos quartos e viu que até os moribundos se animavam na presença dele. Havia um paciente psicótico, imerso no seu inferno pessoal há muito tempo, que tinha uma mão disforme, sempre escondida num bolso. O cão entrou no quarto dele a abanar o rabo, apoiou a cabeçorra de besta mansa nas pernas do infeliz, enfiou-lhe o focinho no bolso até que ele retirou a mão, que tanto o envergonhava, e começou a lambê-la. Talvez nunca ninguém lha tivesse tocado daquela maneira. Os olhos do doente cruzaram-se com os da Grace e por um instante ela teve a impressão que ele saía da cela onde estava preso e assomava à luz. Desde então o cão tem estado muito ocupado no hospital, onde lhe põem um letreiro que diz voluntário ao peito e o mandam fazer a ronda. Os doentes escondem as bolachas das refeições para lhas dar e o Mack ganhou uma grande barriga. Em comparação com este animal, a minha Olivia não passa de uma bola de pêlo com o cérebro de uma mosca.

Enquanto a Grace e o cão trabalham no hospital, a Fu continua encarregada do Centro de Budismo Zen, onde creio que um dia será directora, apesar de nunca ter mostrado qualquer interesse pelo cargo. Essa mulher imponente, com o cabelo rapado e as roupagens de um monge japonês, produz sempre em mim a mesma impressão forte que produziu a primeira vez que a vi. A Fu não é a única pessoa notável da sua família. Tem uma irmã cega, que se casou cinco vezes, trouxe onze filhos ao mundo e apareceu na televisão porque aos sessenta e três anos deu à luz o décimo segundo, um menino grande e gordo, que apareceu no ecrã agarrado ao peito um tanto flácido da mãe. O último marido é vinte e dois anos mais jovem que ela, de maneira que a atrevida senhora recorreu à ciência e engravidou numa idade em que algumas mulheres já têm bisnetos. Quando os jornalistas lhe perguntaram porque o tinha feito, respondeu: «Para que ele faça companhia ao meu marido quando eu morrer.» Pareceu-me uma atitude muito nobre, porque quando eu morrer prefiro que o Willie sofra horrores e sinta muito a minha falta.

 

Por essa altura convidaram-nos para um cocktail em São Francisco, a que fui de má vontade; apenas acedi porque o Willie me pediu. Um cocktail é uma prova terrível para qualquer pessoa, Paula, mas especialmente para as que têm a minha estatura, e ainda mais num país de gente alta. Se fosse na Tailândia, tudo seria diferente. E mais prudente evitar estes eventos, porque os convidados estão de pé, ensanduichados, com pouco ar para respirar, um copo na mão e alguns horsd'ceuvre impossíveis de identificar na outra. De saltos altos, chego ao esterno das mulheres e ao umbigo dos homens; os empregados passam com as bandejas por cima da minha cabeça. Não há qualquer vantagem em medir um metro e meio, a não ser a facilidade de apanhar as coisas que caem ao chão. Por outro lado, no tempo da minissaia fazia um vestido para mim com quatro gravatas do teu pai. Enquanto o Willie, rodeado de admiradoras, devorava os lagos-tins do bufete e contava histórias da sua juventude, de quando fez a volta ao mundo a dormir em cemitérios, eu entrincheirei-me a um canto para ver se não me pisavam. Nestas ocasiões não posso comer rigorosamente nada, porque fico com as minhas próprias nódoas e também com as dos outros, que parecem voar na minha direcção. Aproximou-se de mim um cavalheiro muito amável que quando olhou para baixo conseguiu distinguir-me do desenho da carpete, e do cume da sua estatura anglo-saxónica ofereceu-me um copo de vinho.


Olá, sou o David. Muito prazer.

Isabel, o prazer é meu — apresentei-me, olhando de relance para o copo com apreensão. As nódoas de vinho tinto não saem da seda branca.

O que é que faz? — perguntou-me, com vontade de começar uma conversa.

A pergunta presta-se a várias respostas. Podia ter-lhe respondido que estava ali, caladinha, a maldizer o meu marido por me ter imposto aquele frete, mas optei por algo menos filosófico.

Sou romancista.

Ena, que interessante! Quando me reformar vou escrever um romance — replicou.

Não me diga! E que faz agora?

Sou dentista — e deu-me o cartão dele.

Pois eu quando me reformar vou arrancar dentes — retorqui.

Até parece que escrever romances é como plantar gerânios. Passo dez horas por dia presa à cadeira às voltas com as frases para conseguir contar uma coisa da maneira mais eficaz possível, sofro com os temas, envolvo-me profundamente com as personagens, investigo, estudo, corrijo, edito, revejo traduções e ainda ando pelo mundo a promover os meus livros com a tenacidade de uma vendedora ambulante.

No carro, de regresso a casa, quando voltávamos pela magnífica Golden Gate, iluminada pelo luar, contei ao Willie, a rir-me como uma hiena, o que me tinha dito aquele dentista, mas o meu marido não percebeu a graça.

Pois eu não penso esperar pela reforma. Em breve começarei a escrever o meu próprio romance — anunciou-me.

Valha-me Deus! É preciso descaramento! E pode saber-se de que trata o teu romancezito? — perguntei-lhe.

De um anão obcecado com sexo.

Pensei que o meu marido tinha começado a captar o sentido de humor chileno, mas afinal estava a falar a sério. Uns meses mais tarde começou a escrever à mão num papel pautado amarelo. Andava com o bloco de notas debaixo do braço e mostrava o que escrevia a todos os que quisessem lê-lo, menos a mim. Escrevia nos aviões, na cozinha, na cama, enquanto eu troçava impiedosamente dele. Um anão pervertido! Que ideia brilhante! O optimismo irracional, que tão útil tem sido ao Willie ao longo da sua vida, manteve-o uma vez mais à tona e permitíu-lhe ignorar o sarcasmo chileno, que é como os maremotos, que arrasam tudo o que lhes passa pela frente. Pensei que o afã literário se esfumaria quando na sentisse na carne as dificuldades do ofício, mas nada o deteve. Acabou um romance abominável em que se misturavam um amor frustrado, um caso judicial e um anão, para confusão do leitor, que não conseguia perceber se estava perante um romance, umas memórias de advogado ou uma fiada de fantasias de origem hormonal de um adolescente reprimido. As amigas que o leram foram muito francas com o Willie: seria melhor que eliminasse o anão pervertido, e talvez assim conseguisse salvar o resto do livro, se o escrevesse de novo, com mais cuidado. Os amigos aconselharam-no a eliminar o romance e a aprofundar a depravação do anão. O Jason disse-lhe que tirasse o romance, os tribunais e o anão e escrevesse qualquer coisa passada no México. Comigo aconteceu uma coisa inesperada: o mau romance aumentou a minha admiração pelo Willie, porque ao longo de todo o processo tive oportunidade de apreciar mais do que nunca as suas virtudes essenciais: a força e a perseverança. Como aprendi qualquer coisa ao longo dos anos que passei a escrever — pelo menos a não repetir os mesmos erros, embora esteja sempre a inventar outros novos —, ofereci os meus serviços de editora ao meu marido. O Willie aceitou os meus comentários com uma humildade que não tem noutros aspectos da vida e refez o manuscrito, mas pareceu-me que a segunda versão também tinha problemas de base. A escrita é como o ilusionismo: não basta tirar coelhos de um chapéu; é preciso fazê-lo com elegância e de maneira convincente.

 

uma avó como a minha, que me iniciou muito cedo na ideia de que o mundo é mágico e o resto são manias de grandeza dos seres humanos, uma vez que não controlamos quase nada, sabemos muito pouco e basta uma vista de olhos pela história para compreender as limitações da razão, não é raro que tudo me pareça possível. Há milhares de anos, quando ela estava viva e eu era uma criatura assustadiça, essa boa senhora e as amigas incluíam-me nas suas sessões de espiritismo, sem dúvida às escondidas da minha mãe. Punham almofadas na cadeira para eu chegar à mesa — de carvalho com patas de leão, que continua em meu poder. Embora ainda fosse muito pequena e as minhas recordações sejam mais propriamente fantasias, vejo a mesa aos saltos sob a influência das almas invocadas pelas damas. Contudo, em minha casa nunca se mexeu; está no sítio dela, pesada e definitiva como um boi morto, desempenhando as funções modestas dos móveis comuns. O mistério não é um recurso literário, o sal e a pimenta dos meus livros, de que me acusam os meus inimigos, mas sim uma parte da própria vida. Há mistérios profundos, como aquele de que já falei, da minha irmã da desordem, a Jean, que se passeou descalça sobre brasas. «E uma experiência transformadora, porque não tem explicação racional ou científica. Nesse momento soube que temos capacidades incríveis; da mesma maneira que sabemos nascer, dar à luz e morrer, sabemos responder às brasas que costumamos encontrar no nosso caminho. Depois de ter passado por isso sinto-me tranquila perante o futuro. Sou capaz de enfrentar as piores crises, desde que me descontraia e me deixe guiar pelo espírito», disse-me ela. E foi o que fez a Jean quando o filho lhe morreu nos braços: caminhou sobre o fogo sem se queimar.

O Nico perguntou-me porque acredito em prodígios, em sonhos, em espíritos e noutros fenómenos duvidosos; a sua mente pragmática requer provas mais contundentes que as anedotas da avó enterrada há mais de meio século, mas a mim a imensidade do que não consigo explicar inclina-me para o pensamento mágico. Milagres? Parece--me que estão constantemente a acontecer, como por exemplo a nossa tribo continuar a navegar no mesmo barco, mas de acordo com o teu irmão são apenas uma mescla de percepção, oportunidade e desejo de acreditar. Tu, pelo contrário, tinhas a mesma ansiedade espiritual que a minha avó, e perante os milagres diários procuravas explicação na fé católica, porque foi nela que foste criada. Tinhas muitas dúvidas. A última coisa que me disseste, antes de entrares em coma, foi: «Ando em busca de Deus e não O encontro. Adoro-te, mamã.» Gostava de pensar que já O encontraste, minha filha, e que talvez tenhas tido uma surpresa, por Ele não ser como esperavas.

Aqui, neste mundo que deixaste para trás, Deus foi sequestrado pelos homens. Criaram umas religiões disparatadas, que não percebo como sobreviveram séculos a fio e continuam a crescer. São implacáveis, pregam o amor e a caridade e cometem atrocidades para as impor. Os senhores importantes que propagam estas religiões julgam, castigam, franzem o sobrolho perante a alegria, o prazer, a curiosidade e a imaginação. Muitas mulheres da minha geração tiveram de inventar uma espiritualidade que se adaptasse a elas, e se tivesses vívido mais talvez tivesses feito o mesmo, porque os deuses do patriarcado definitivamente não nos convêm: fazem-nos pagar pelas tentações e pelos pecados dos homens. Porque nos temem tanto? Agrada-me a 'deia de uma divindade abrangente e maternal, ligada à natureza, sinonimo de vida, um processo eterno de renovação e evolução. A minha deusa é um oceano e nós gotas de água, mas o oceano existe pe-'as gotas que o formam.

O meu amigo Miki Shima pratica o antigo xintoísmo do Japão, religião que proclama que somos criaturas perfeitas, criadas pela deusa-mãe para viver com alegria; nada de culpas, nem de penitências, de infernos, de pecados, de karmas ou de sacrifícios. A vida deve ser celebrada. Há alguns meses o Miki foi a Osaka fazer um curso de formação xintoísta de dez dias junto de uma centena de japoneses e de quinhentos brasileiros, que chegaram com um bulício carnavalesco. Os ritos tinham início às quatro da manhã com cânticos. Quando os professores e professoras diziam à multidão, reunida no imenso e simples templo de madeira, que todos eles eram perfeitos, os japoneses faziam uma reverência e davam graças, enquanto os brasileiros uivavam e dançavam de alegria, como se celebrassem um golo do Brasil no Campeonato do Mundo de Futebol. Todos os dias ao nascer do Sol, o Miki sai para o jardim, faz uma vénia e saúda o novo dia e os milhões de espíritos que o habitam com um cântico breve. A seguir volta a entrar em casa, toma um pequeno-almoço de sushi e sopa de ervas aromáticas e vai para o consultório a rir-se. Uma vez uma patrulha mandou-o parar porque os polícias pensaram que ia embriagado. «Não estou bêbado, estou a fazer a minha prática espiritual», explicou o Miki. Pensaram que estava a troçar deles. A alegria é suspeita.

Há pouco tempo fomos com a Lori ouvir um teólogo cristão irlandês. Apesar dos obstáculos, como o seu sotaque e a minha ignorância, houve qualquer coisa que tirei a limpo daquela conversa, que começou com uma breve meditação. O homem pediu aos presentes que fechassem os olhos, se descontraíssem, tomassem consciência da própria respiração, enfim, o mesmo de sempre nestes casos, e a seguir que pensássemos no nosso lugar preferido — eu escolhi um tronco do teu bosque — e numa figura que se aproximasse e se sentasse à nossa frente. Devíamos fundir-nos no olhar infinito daquele ser que nos amava tal como éramos, com defeitos e virtudes, sem nos julgar. Esse, disse o teólogo, era o rosto de Deus. A mim apresentou--se uma mulher de uns sessenta anos, uma africana roliça: carnes firmes e sorriso puro, olhos travessos, pele brilhante e lisa como acaju polido, a cheirar a fumo e a mel, uma presença tão poderosa que até as árvores se inclinavam para ela em sinal de respeito. Olhava-me como eu fazia contigo, com o Nico e os meus netos quando eram pequenos: com aceitação total. Eram perfeitos, das orelhas transparentes ao cheiro a fraldas, e desejava que permanecessem para sempre fiéis à sua essência, protegê-los de todo o mal, pegar-lhes pela mão e guiá-los até que aprendessem a andar sozinhos. Esse amor não era apenas felicidade e celebração, uma vez que dele fazia parte a angústia de saber que cada instante que passava os modificava um pouco e os afastava de mim.

Por fim foi possível fazer exames aos meus netos para averiguar se têm porfiria. As minhas irmãs da desordem na Califórnia, e a Pia e a minha mãe no Chile, rezavam pela minha família há anos, enquanto eu perguntava a mim mesma se isso serviria de alguma coisa. Fizeram-se os exames mais rigorosos e as conclusões foram ambíguas, não há certeza de que a oração surta efeito, o que deve constituir um golpe baixo para aqueles que dedicam as suas vidas a rezar pelo bem da humanidade, mas isso não foi o suficiente para me desanimar, nem a mim nem às minhas irmãs da desordem. Continuamos a rezar. Nunca se sabe. Precisamente quando eu andava em digressão pelas terras do extremismo cristão, no Sul profundo dos Estados Unidos, diagnosticaram um cancro da mama à mãe da Lori, Lucille. Na mesma altura, o Willie andava a viajar pela América Latina na avioneta de um amigo, que não passava de um mata-piolhos de latão, numa aventura de lunáticos, entre a Califórnia e o Chile.

Há quarenta milhões de americanos que se confessam cristãos renascidos — born again Christians — e a maioria vive no Centro e no Sul do país. Minutos antes da minha conferência, uma rapariga aproximou-se e ofereceu-se para rezar por mim. Pedi-lhe que em vez disso rezasse pela Lucille, que nesse dia estava no hospital, e pelo willie, o meu marido, que podia perder a vida nalgum rincão perigoso dos Andes. Tomou-me as mãos, fechou os olhos e começou uma litania em voz alta, que atraiu outras pessoas, que se uniram ao círculo invocando Jesus, cheias de fé, com os nomes da Lucille e do Willie em cada frase. Depois da conferência liguei à Lori para perguntar como estava a mãe e soube que não fora operada porque antes de entrar na sala de operações examinaram-na e não encontraram o tumor. Nessa manhã fizeram-lhe outra mamografia e outra ecografia. Nada. O cirurgião, que já tinha calçado as luvas, decidiu adiar a operação para o dia seguinte e mandou a Lucille para outro hospital para fazer uma TAC. Ali também não deram com o cancro. Não havia qualquer explicação, porque poucos dias antes a biopsia confirmara-o. Teria sido um milagre da oração se dias mais tarde o tumor não tivesse reaparecido. A Lucille acabou por ser mesmo operada. No entanto, nesse mesmo dia, quando o Willie voava sobre o Panamá, houve uma mudança de pressão atmosférica e a avioneta desceu em voo picado dois mil metros em poucos segundos. A habilidade do amigo do Willie, que pilotava o frágil insecto mecânico, salvou-os por uma unha negra de uma morte aparatosa. Ou terão sido as boas intenções daqueles cristãos?

Apesar das orações das minhas amigas e do muito que te pedi, Paula, os resultados dos exames da Andrea e da Nicole não foram bons. Como tu mesma comprovaste da maneira mais dolorosa, esta doença é muito mais grave nas mulheres do que nos homens, já que nelas as inevitáveis mudanças hormonais podem provocar crises. Teríamos de viver no terror de que houvesse outra tragédia na família. O Nico recordou-me que a doença não debilita nem impede ninguém de fazer uma vida normal; apenas aumenta o risco perante certos estímulos, que podem ser evitados. O teu caso deveu-se a uma combinação de circunstâncias e de erros, a uma má sorte terrível. «Vamos tomar precauções sem exagerar», disse o teu irmão. «Isto é um inconveniente, mas com um lado positivo: as meninas vão aprender a tratar delas e será um bom pretexto para as conservar sempre mais ou menos perto. Esta ameaça manter-nos-á ainda mais unidos.» Assegurou-me que com os avanços da medicina elas viveriam com saúde, teriam filhos e uma vida longa. A investigação em engenharia genética poderá evitar que a porfiria passe para a próxima geração. «É muito menos grave que a diabetes e outras doenças hereditárias», concluiu.


Por essa altura a minha relação com o Nico vencera os escolhos dos anos anteriores. Havíamos cortado o cordão umbilical sem perdermos o carinho. Tínhamos a intimidade de sempre, mas já aprendera a respeitá-lo e procurava honestamente não o incomodar. O meu amor pelos meus três netos era verdadeiramente obsessivo e demorei muitos anos a aceitar que esses miúdos não eram meus filhos, mas do Nico e da Célia. Não percebo como precisei de tanto tempo para entender uma coisa tão óbvia, uma coisa que todas as avós do mundo percebem sem que seja preciso um psiquiatra ensinar-lhas. Durante algum tempo eu e o teu irmão fizemos terapia juntos, e chegámos mesmo a redigir contratos para estabelecer certos limites e regras de convivência, embora não pudéssemos ser demasiado estritos. A vida não é uma fotografia, em que preparamos as coisas para que fiquem bem e em seguida fixamos uma imagem para a posteridade; é um processo sujo, desordenado, rápido, cheio de imprevistos. A única coisa certa é que tudo muda. Apesar dos contratos, surgiam problemas inevitáveis, de maneira que não valia a pena preocuparmo-nos, discutirmos demasiado ou controlarmos tudo até ao mínimo pormenor. Tínhamos de nos abandonar ao fluxo da existência quotidiana, confiar na sorte e no nosso coração, porque nenhum dos dois feria o outro de propósito. Quando eu falhava — e falhava muitas vezes —, ele recordava-mo com a sua delicadeza habitual, e desta maneira não voltámos a distanciar-nos. Há muitos anos que nos vemos quase todos os dias, mas fico sempre surpreendida por encontrar aquele homem alto, musculado, de cabelo grisalho e ar pacífico. Se não fosse inegavelmente parecido com o avô paterno, desconfiaria muito a sério que o tinham trocado no hospital à nascença e que noutro sítio qualquer há uma família com um filho pequenote e explosivo que tem os meus genes. A vida dele melhorou depois de ter deixado o emprego que teve durante muitos anos. A empresa onde trabalhava decidiu mandar fazer o trabalho na índia, onde os custos eram menores, e despediu todos os empregados menos o Nico, que podia ficar a coordenar os programas com o escritório de Nova Deli, mas ele preferiu sair também, por solidariedade com os colegas.

conseguiu um trabalho a meio tempo num banco de São Francisco e além disso começou a fazer transacções na Bolsa com bastante acerto. Tem instinto e sangue-frio, tal como eu e a Lori dizíamos há bastante tempo, mas não lhe chamámos a atenção para isso; pelo contrário, perguntámos-lhe como teve uma ideia tão boa. Fulminou-nos com um dos seus olhares capazes de despedaçar uma vidraça.

 

o auge do movimento evangélico sugeriu-me o tema do segundo volume da trilogia. A direita cristã, que os republicanos mobilizaram em 2000 com grande sucesso para ganhar as eleições presidenciais, sempre foi muito numerosa, mas nunca conseguira determinar a política deste país, com uma sólida vocação secular. Durante a presidência de George W. Bush, os evangélicos não conseguiram concretizar tudo o que fazia parte do seu programa político, mas mesmo assim as mudanças foram consideráveis. Em muitas instituições educacionais já não se fala da teoria da evolução, mas sim de «desígnio inteligente», eufemismo para a explicação bíblica da criação. Dizem que o mundo existe há dez mil anos e qualquer indicação em contrário é heresia. Os guias do canyon do Colorado têm de ser prudentes ao informar os turistas de que nas diferentes camadas geológicas é possível ler dois milhões de anos de história natural. Se forem descobertos na Noruega vinte fósseis de animais marinhos do tamanho de autocarros, os crentes atribuem-no a uma conspiração de ateus e liberais. Opõem-se ao aborto e a qualquer forma de controlo da natalidade, salvo à abstinência, mas não se mobilizam contra a pena de morte ou a guerra. Vários predicadores baptistas insistem na sujeição da mulher ao homem, apagando assim num só gesto um século de luta feminina. Milhares de famílias educam os filhos em casa para evitar que sejam contaminados pelas ideias seculares nas escolas públicas, e depois esses jovens são enviados para uniVersidades cristãs. Setenta por cento dos estagiários da Casa Branca durante a administração Bush saíram de universidades deste tipo. Espero que não venham a tornar-se os dirigentes políticos do futuro. Os meus netos vivem numa bolha, que é a Califórnia, onde tudo isto não passa de uma curiosidade, como a poligamia de alguns mór-mones do Utah, mas têm conhecimento do assunto porque ouvem falar dele aos adultos da família. Eduquei-os numa filosofia abrangente, uma forma de espiritualidade oposta ao fundamentalismo de qualquer tendência. Não tinha ideias claras, mas fui-as afinando nas conversas com eles e nas caminhadas com a Tabra, que por essa altura via quase todos os dias, porque ela estava a viver um longo luto pela perda do pai. Recordava poemas completos e nomes de plantas e flores que ele lhe ensinara em criança.

Porque não o vejo como tu vês a Paula? — perguntava.

Não a vejo, mas sinto-a dentro de mim, imagino que me acompanha.

Eu nem sequer sonho com ele...

Falávamos dos livros de que ele gostava e de outros de que não pôde falar aos alunos, por causa da censura no colégio onde trabalhava. Livros, sempre livros. A Tabra engolia as lágrimas e enchia-se de entusiasmo quando falávamos do meu próximo romance. Lembrou-se que o modelo do país mítico que eu procurava podia ser o Butão, ou o Reino do Dragão do Trovão, como lhe chamam os seus habitantes, que ela visitara numa das suas viagens de peregrina incansável. Agradou-me a ideia de que cada livro se situasse numa cultura e num continente diferentes, e para imaginar o lugar inspirei-me na viagem que fizemos à índia e noutra ao Nepal, cumprindo uma promessa que te fiz há muitos anos, Paula. Tu estavas convencida de que a índia é uma experiência psicadélica, e na verdade assim foi-Aconteceu-me o mesmo que no Amazonas e em África: pensei que o que vira era de tal maneira alheio à minha realidade que nunca poderia usá-lo num livro, mas as sementes germinaram dentro de mim e os frutos apareceram por fim na trilogia juvenil. Como diz o w»" lie, tudo acaba por ser usado, mais cedo ou mais tarde. Se não tivesse estado nessa parte do mundo, não poderia ter criado as cores, as  

cerimónias, a roupa, a paisagem, as gentes, a comida, a religião ou a forma de vida.

Mais uma vez, a ajuda dos meus netos foi preciosa. Inventámos uma religião a partir das ideias do budismo tibetano, do animismo e de alguns livros de fantasia que eles tinham lido. A Andrea e a Nico-le andam num colégio católico bastante liberal, em que a busca da verdade, a transformação espiritual e o serviço ao próximo são mais importantes que o dogma. As minhas netas aterraram ali sem qualquer instrução religiosa. Na primeira semana, a Nicole teve de explicar o pecado original num trabalho de casa.

Não faço ideia do que isso seja — disse-me.

Vou dar-te uma pista, Nicole: tem a ver com a história de Adão e Eva — ajudou a Lori.

Quem são esses?

Acho que o pecado tem a ver com uma maçã — interrompeu a Andrea, sem grande convicção.

Mas as maçãs não são boas para a saúde? — contestou a Nicole.

Esquecemos o pecado original e pusemo-nos a falar da alma, e foi assim que ganhou forma a espiritualidade do Reino do Dragão de Ouro. As raparigas sentiam-se atraídas pela ideia das cerimónias, dos rituais, da tradição, e o Alejandro pela possibilidade de desenvolver faculdades paranormais, como a telepatia e a radiestesia. A partir destes elementos, lancei-me na escrita e, sempre que me faltava a inspiração, recordava-me da ayahuasca e da minha própria infância, ou então voltava a recorrer à ajuda da Tabra e dos miúdos. A Andrea contribuiu para delinear a intriga e o Alejandro imaginou os obstáculos que protegiam a estátua do dragão: o labirinto, os venenos, as serpentes, as armadilhas, as facas e as lanças que caíam do tecto. Os ietis foram uma criação da Nicole, que sempre quis conhecer um dos fabulosos gigantes das neves eternas, e a Tabra contribuiu com os «homens azuis», uma seita criminosa de que ouviu falar numa viagem ao Norte da índia.


Com a minha notável equipa de colaboradores, acabei o segundo livro juvenil e decidi que com o tempo que me sobrara daria os últimos retoques a uma pequena obra sobre o Chile. O título, O Meu País Inventado, deixava claro que este livro não ambicionava a equanimidade científica, que representava a minha visão subjectiva. Com a distância proporcionada pelo tempo e pela geografia, as minhas recordações do Chile estão cobertas de uma patina dourada, como os retábulos antigos das igrejas coloniais. A minha mãe, que leu a primeira versão, receou que o tom irónico do livro caísse como uma bomba no Chile, onde, na melhor das hipóteses, os críticos me ignoram. «Estamos num país de tontos sisudos», advertiu-me, mas eu sabia que as coisas não se passariam assim. Uma coisa são os literatos e outra somos nós, os chilenos sem presunções intelectuais, que ao longo dos séculos temos desenvolvido um sentido de humor perverso para sobreviver numa terra de cataclismos. Nos meus tempos de jornalista aprendi que nada diverte tanto os Chilenos como troçarem de si mesmos, embora não suportássemos que fosse um estrangeiro a troçar de nós. Não me enganei, porque um ano mais tarde o meu livro foi publicado sem que ninguém me atirasse tomates em público. Além disso foi pirateado. Dois dias depois da sua publicação apareceram nas ruas do centro de Santiago pilhas de livros da edição pirata, a um quarto do preço oficial, junto a montões de discos, vídeos e óculos e malas de imitação de marcas caras. Do ponto de vista moral e económico, a pirataria é um desastre para as editoras e para os autores, mas de certa forma constitui uma honra, porque significa que há muitos leitores interessados e que os pobres podem comprar o livro. O Chile está a par do progresso. Na Ásia, os livros do Harry Potter são pirateados de forma tão descarada que já anda nas ruas um livro que a autora ainda não imaginou. Quer isto dizer que na uma chinesinha num vão de escada poeirento a escrever como J. K-Rowling, mas sem glória.

O Chile dos meus amores é o da minha juventude, quando tu e o teu irmão eram crianças, eu estava apaixonada pelo teu pai, trabalhava como jornalista e vivíamos apertados numa casinha prefabricada com tecto de palha. Nessa época o nosso destino parecia bem planeado e tínhamos a impressão de que nada de mau poderia vir a acontecer-nos. O país estava a mudar. Em 1970, Salvador Allende foi eleito presidente e houve uma explosão política e cultural. O povo saiu à rua com uma sensação de poder que nunca tivera, os jovens pintavam murais socialistas, o ar andava cheio de canções de protesto. O Chile dividiu-se e as famílias também, como a nossa. A tua avó marchava à cabeça das manifestações contra Allende, embora desviasse a coluna dos manifestantes para que não passassem à frente da nossa casa e nos atirassem pedras. Além disso, foi a época da revolução sexual e do feminismo, que afectaram quase tanto a sociedade como a política, e que para mim foram fundamentais. Nessa altura deu-se o golpe militar de 1973 e a violência foi desencadeada, destroçando o pequeno mundo em que nos sentíamos seguros. Como teria sido o nosso destino sem esse golpe militar e os anos de terror que se seguiram? Que teria acontecido se tivéssemos ficado no Chile da ditadura? Nunca teríamos vivido na Venezuela, tu não terias conhecido o Ernesto nem o Nico a Célia, talvez não tivesse escrito livros, nem tivesse tido oportunidade de me apaixonar pelo Willie e hoje não estaria na Califórnia. Estes devaneios são inúteis. A vida faz-se caminhando sem mapa e não é possível voltar atrás. O Meu País Inventado é uma homenagem ao território mágico do coração e das recordações, ao país pobretão e amigável onde tu e o Nico passaram os anos mais felizes da infância.

O segundo volume da trilogia para jovens já estava nas mãos de vários tradutores, mas eu não conseguia concentrar-me no livro sobre o Chile porque tinha um sonho recorrente que não me deixava em paz. Sonhava que havia um bebé numa cave labiríntica, cruzada por cabos e canalizações, como na casa do meu avô, onde passei muitas horas da minha infância entretida em jogos solitários. Eu não conseguia chegar à criança, mas também não era capaz de a trazer para a luz do dia. Falei do sonho ao Willie e ele recordou-me que só sonho com bebés quando estou a escrever, e que por isso aquele tinha sem dúvida a ver com o novo livro. Como receava que se referisse a O Reino do Dragão de Ouro, revi uma vez mais o manuscrito, mas não houve nada que me chamasse a atenção. Este sonho recorrente continuou a incomodar-me semanas a fio, até que recebi a tradução em inglês e pude lê-la com o distanciamento proporcionado por outra língua e apercebi-me de que havia um problema com o argumento: eu supusera que os protagonistas, o Alexander e a Nadia, possuíam uma certa informação que não poderiam ter obtido e que determinava o final. Tive de pedir de volta o manuscrito dos meus tradutores e modificar um capítulo. Sem aquela criança presa num emaranhado subterrâneo, que me deu cabo da paciência noite após noite, esse erro ter-me-ia escapado.

 

O tema do terceiro volume da minha trilogia juvenil surgiu espontaneamente numa marcha pela paz em que participou toda a minha família, depois de assistir ao serviço dominical numa igreja metodista muito conhecida em São Francisco: a Glide Memorial Church. Ali reúne-se uma mescla de raças, ideias e até religiões, porque é um lugar de encontro entre budistas, católicos, judeus e protestantes, e um ou outro muçulmano e agnóstico, desejosos de participar numa celebração de cânticos e abraços, mais que de rezas. O pastor é um afro-americano formidável, capaz de mexer com os corações graças ao seu entusiasmo pela paz, uma palavra que nesse momento tinha conotações antipatrióticas. Toda a congregação, de pé, aplaudiu até ficar com as mãos doridas e no fim do serviço muitos de nós saímos à rua para nos manifestarmos contra a guerra do Iraque.

No meio de uma multidão, a minha tribo marcou um encontro, incluindo a Célia, a Sally e a Tabra. Os miúdos tinham pintado cartazes, eu levava a Andrea pela mão, para não a perdermos no meio da confusão, e a Nicole ia às cavalitas do pai. O dia estava soalheiro e o ânimo das pessoas era festivo, talvez por termos percebido que éramos muitos dissidentes. No entanto, cinquenta mil pessoas no centro de São Francisco eram uma gota de água no oceano. Este país é um continente em parcelas, em que é impossível medir a magnitude ou a variedade das reacções, porque cada estrato e grupo social, étnico ou religioso é uma nação sob o vasto chapéu-de-chuva que são os Estados Unidos, «terra de homens livres e valentes». Isto dos «valentes» parecia uma brincadeira naquele momento, em que reinava o terror. O Ernesto teve de cortar a barba para não o obrigarem a sair do avião cada vez que tentava viajar, porque qualquer pessoa com aspecto de árabe, como ele, era alvo de suspeitas. Chego a pensar que os terroristas da Al-Qaeda tenham sido os mais surpreendidos com o alcance do atentado. Pensavam fazer um buraco nas torres e nunca imaginaram que elas viessem abaixo. Suponho que nesse caso a reacção teria sido menos histérica e o governo teria calculado o poder do inimigo de maneira mais realista. Tratava-se de grupos reduzidos de guerrilheiros escondidos em grutas distantes, de gente primitiva, fanática e desesperada, sem recursos para intimidar os Estados Unidos.

O cartaz da Andrea dizia: palavras sim, bombas não. Para uma menina que começou a escrever o primeiro romance aos dez anos, as palavras eram sem dúvida poderosas. Perguntei-lhe o que queria aquilo dizer e ela contou-me que a professora pedira à turma que propusesse maneiras de resolver o conflito sem violência. Ela pensou no pai e em si, que desde criança se deixava levar por cóleras fulminantes que a faziam arremeter às cegas. «Tenho um touro dentro de mim», dizia mais tarde, quando a fúria se dissipava. Nessas alturas, o Nico apertava-a suavemente nos braços, ajoelhava-se para a olhar nos olhos e falava com ela num tom pausado até ela se acalmar, sistema que com algumas variantes adopta sempre nas situações críticas. Fez um curso de comunicação não violenta, e não só aplica à letra o que aprendeu, mas de dois em dois anos refresca-o, para que a técnica não lhe falhe numa emergência. Quando chegou à puberdade, a Andrea conseguiu dominar o «touro» e com isso o seu carácter mudou. «Já não gosto de aborrecer a minha irmã», confessou o Alejandro quando percebeu que se dissipara o poder de a fazer perder a cabeça. A Andrea tinha razão: as palavras podiam ser mais eficazes que os punhos. O terceiro livro contaria como foi domado o touro da guerra. Eu e os meus netos abrimos um mapa sobre a mesa da minha avó para ver onde situaríamos a última aventura de

Alexander Cold e Nadia Santos. O Próximo Oriente parecia evidente, era o que víamos todos os dias no noticiário; no entanto, é em Africa que sucede a violência mais generalizada e brutal, onde os genocídios ficam impunes. Seria por isso uma aventura numa aldeia africana isolada, onde um militar enlouquecido impõe o terror e escraviza os pigmeus. Não precisei de dar muitas voltas à cabeça para arranjar um título: O Bosque dos Pigmeus. A Tabra, que nunca me falha na hora da inspiração, emprestou-me um livro de fotografias de reis de tribos africanas, cada um deles com uma indumentária fantástica. A maioria exercia um poder simbólico e religioso, mas não político. Nalguns casos, a sua saúde e fertilidade representavam a saúde e a fertilidade do povo e da terra, e por isso despachavam-no com uma paulada mal adoecia ou envelhecia, a não ser que tivesse a delicadeza de se suicidar. Numa certa tribo, o rei só ficava sete anos no trono; em seguida mandavam-no desta para melhor e o sucessor comia-lhe o fígado. Um dos monarcas vangloriava-se de ter gerado cento e setenta filhos, e outro aparecia com o seu harém de mulheres jovens, todas grávidas, ele ataviado com uma capa de pele de leão, plumas e colares de ouro maciço, elas nuas. No livro havia um par de rainhas poderosas, que contavam com o seu próprio harém de raparigas, mas o texto não explicava quem engravidava as concubinas neste caso.

Fiz muita investigação, mas quanto mais lia menos sabia e mais se afastavam os horizontes desse imenso continente de novecentos milhões de pessoas, distribuídas por cinquenta e três países e quinhentas etnias. Por último, encerrada no meu tugúrio, fundi-me na magia; foi assim que cheguei por via directa a uma selva da África equatorial, onde uns infelizes pigmeus tentavam livrar-se de um rei psicopata com a ajuda de gorilas, elefantes e espíritos. A escrita costuma ser profética. Meses depois da publicação de O Bosque dos Pigmeus, um coronel tão selvagem como o do meu livro apoderou-se de uma região ao norte do Congo, num bosque pantanoso, onde mantinha a população banto aterrorizada e exterminava os pigmeus, para defender o tráfico de diamantes, ouro e armas. Falava-se inclusivamente de canibalismo, algo que não me atrevi a incluir no livro, por consideração pelos meus jovens leitores.

 

a Primavera de 2003, a minha família foi dominada por um afã frenético de reprodução. A Lori e o Nico, o Ernesto e a Giulia, o Tong e a Lili, todos queriam ter filhos, mas por uma estranha coincidência nenhum podia satisfazer essa aspiração pelos meios habituais e tinham de recorrer à ciência e à tecnologia, métodos caríssimos que a mim me coube financiar. No Brasil tinham-me advertido de que eu pertencia à deusa Iemanjá, que inclui entre as suas virtudes a da fertilidade: é a ela que recorrem as mulheres que querem ser mães. Havia tantos medicamentos para a fertilidade, hormonas e esperma suspensos no ar que eu própria receei engravidar. No ano anterior consultara em segredo uma astróloga, porque os meus sonhos falharam. Sempre soube quantos filhos e netos teria, sonhei até com os nomes deles, mas dessa vez, por muito que me esforçasse, nenhuma visão nocturna veio dar-me uma pista quanto a estes três casais. Não conheço a astróloga, só tenho o telefone dela no Colorado, mas confio nela porque mesmo sem nunca nos termos visto conseguiu des-crever-me a minha família como se fosse a sua. O único cuja carta astral nunca fez foi o Nico, porque não me lembro a que horas nasceu e ele nega-se a mostrar-me a sua certidão de nascimento, mas a mulher disse-me que esse filho era o meu melhor amigo e que estivemos casados numa encarnação anterior. Como é lógico, ele nem quer ouvir falar dessa horrenda possibilidade, e é por essa razão que esconde a certidão. O teu irmão não acredita na reencarnação, porque matematicamente é impossível, e ainda menos na astrologia, claro, mas acha que não perdemos nada com precaver-nos. Eu também não posso jurar a pés juntos que acredito, mas não vejo razão para nos fecharmos a um mistério tão útil para a literatura.

Como explicas que essa senhora saiba tanto de mim? — perguntei ao Nico.

Procurou na Internet ou leu Paula.

Se investigasse todos os clientes para os enganar, precisava de uma equipa de assistentes e teria de levar muito mais caro. Não conhece o Willie de lado nenhum nem o encontrou na Internet, mas foi capaz de o descrever fisicamente. Disse que era alto, de pescoço forte, ombros largos e atraente.

Isso é muito subjectivo.

E agora subjectivo, Nico! Do meu irmão Juan ninguém diria que é alto, de pescoço forte, ombros largos e atraente.

Enfim, não ganho nada em discutir estes assuntos com o teu irmão. O que é certo é que a astróloga já me tinha dito que a Lori não poderia ter filhos, mas «seria mãe de várias crianças». Eu interpretei isto como significando que seria mãe dos meus netos, mas pelos vistos havia outras possibilidades. Em relação ao Ernesto e à Giulia disse que não tentassem até à Primavera do ano seguinte, quando as estrelas estavam na posição ideal, porque antes disso não resultaria. O Tong e a Lili, pelo contrário, teriam de aguardar um pouco mais, e também não era certo que o bebé fosse deles, poderia ser adoptado. O Ernesto e a Giulia decidiram obedecer às estrelas e quando chegou a Primavera de 2004 começaram o tratamento de fertilidade. Cinco meses depois, a Giulia engravidou, inchou como um dirigível, e em breve soubemos que esperava duas meninas.

Um dia estávamos num restaurante com a Juliette, a Giulia e a Lori a comentar que metade das mulheres jovens que conhecíamos, incluindo a cabeleireira e a professora de ioga, estavam grávidas ou acabavam de dar à luz.

Lembras-te que te perguntei se querias que tivesse um bebé para ti, Isabel? — indagou a Juliette.

Sim, e eu respondi-te que nem louca teria um filho com a minha idade.

— Dessa vez disse-te que só o faria por ti, mas agora penso que também o faria pela Lori.

Houve um momento de silêncio à mesa enquanto as palavras de Juliette abriam caminho até ao coração de Lori, que começou a chorar quando percebeu o que essa amiga estava a oferecer-lhe. Não sei o que pensou o empregado, mas trouxe-nos bolo de chocolate por iniciativa própria, oferta da casa.

Começou então um processo longo e complicado que a Lori, com a sua perseverança e capacidade de organização, levou a cabo ao longo de quase um ano. Primeiro era preciso decidir se o pai seria o Nico, por causa da questão da porfiria. Depois de falarem entre eles e em família decidiram que estavam dispostos a correr o risco, porque para a Lori era importante que o menino ou a menina fossem do marido. Depois tinham de conseguir um óvulo, que não podia ser da Juliette, porque se fosse ela a mãe mais tarde não conseguiria desligar-se do filho. Através da clínica escolheram uma dadora brasileira porque tinha parecenças contigo, Paula, um ar de família. Tanto ela como a Juliette tiveram de se submeter a altas doses de hormonas, a primeira para produzir vários óvulos que pudessem ser recolhidos e a segunda para preparar o seu ventre. Os óvulos foram fertilizados num laboratório e em seguida os embriões foram implantados na Juliette. Eu estava ansiosa pela Lori, que podia sofrer outra decepção, mas sobretudo pela Juliette, que já tinha mais de quarenta anos e era viúva com dois filhos. Se lhe acontecesse alguma coisa, que seria do Aristóteles e do Aquiles? Como se me lesse o pensamento, a Juliette pediu-nos, a mim e ao Willie, que tomássemos conta dos filhos dela se acontecesse alguma desgraça. Estávamos nos limites do realismo mágico.

 

A Lili, a jovem esposa do Tong, aguentou os abusos da sogra durante um ano, até que a submissão chegou ao fim. Se o marido não a tivesse impedido, tê-la-ia estrangulado com as próprias mãos, um crime fácil, porque a senhora tinha um pescoço de galinha. O escândalo deve ter sido dos grandes, porque o Departamento da Polícia de São Francisco mandou um agente que falava chinês para separar os membros da família. Por essa altura a Lili já tinha mostrado que estava a falar a sério quando disse que não viera para a América por causa do visto, mas sim para formar família. Não tinha qualquer intenção de se divorciar, apesar da sogra e do mau feitio do Tong, que continuava a desconfiar que ela pediria o divórcio assim que se cumprisse o prazo que a lei estipulava quanto ao visto.

Depois do estrangulamento falhado, o Tong percebeu que a mulher submissa que encomendara por correio era na realidade uma mulheraça de armas. A mãe, assustada pela primeira vez em setenta e tal anos, explicou que não podia continuar a viver com aquela nora que ao primeiro descuido a mandaria para junto dos seus antepassados. Obrigou o Tong a escolher entre a mulher, aquele ser irracional obtido por meios electrónicos duvidosos, como lhe disse, e ela, a sua legítima mãe. A Lili não deixou que o marido pensasse muito. Mos-trou-se firme e conseguiu que fosse a sogra e não ela a sair de casa. O Tong instalou a mãe num lar para idosos em plena Chinatown, onde agora se distrai a jogar majongue com outras senhoras da sua idade. Venderam a casa e compraram outra, pequena e moderna, perto da nossa. A Lili arregaçou as mangas e pôs mãos à obra de a transformar no lar com que sempre sonhara. Pintou-a, arrancou as ervas daninhas do jardim, decorou-a com cortinados brancos engomados, móveis claros de boa qualidade e plantas e flores frescas. Chegou ao ponto de colocar, com as próprias mãos, um novo chão de bambu e janelas francesas.

Soube destes pormenores pouco tempo depois através de gestos, desenhos e meia dúzia de palavras arranhadas no inglês que eu e a Lili temos em comum, até que no Verão a minha mãe veio do Chile e em menos de cinco minutos ela e a Lili estavam sentadas na sala a beber chá e a conversar como amigas de longa data. Não sei em que língua, porque nem a Lili fala espanhol nem a minha mãe mandarim e o inglês de ambas deixa muito a desejar.

Dois dias mais tarde a minha mãe anunciou-me que tínhamos sido convidados para jantar em casa da Lili e do Tong. Expliquei-lhe que isso era impossível, que tinha percebido mal. O Tong viveu metade da vida com o Willie, e mesmo assim o único acontecimento social que partilhou connosco foi o casamento do Nico, porque a Lori o obrigou. «Pois pode bem ser, mas esta noite vamos jantar com eles», replicou. Tanto insistiu que a levei para a tranquilizar. Pensei em tocar à campainha com uma desculpa e assim ela podia verificar que se tinha enganado, mas quando chegámos vimos a Lili sentada numa cadeira na rua, à nossa espera. A sua casa estava arranjada para uma festa, com ramos de flores, e na cozinha havia uma dúzia de pratos diferentes, que ela acabou de preparar com a ajuda de dois pauzinhos. Mexia-os no ar, passando ingredientes de uma taça para outra com precisão mágica, enquanto a minha mãe, instalada no cadeirão de honra, tagarelava com ela numa língua marciana. Ao fim de meia hora chegaram o Willie e o Tong, e então pude começar a comunicar com a Lili com a ajuda de um intérprete. Depois de devorar o banquete, perguntei-lhe porque abandonara o seu país, a sua família, a sua cultura e o seu trabalho de enfermeira cirúrgica para embarcar na estranha aventura de casar às cegas e de se mudar para a América, onde seria sempre uma estrangeira.

— Foi por causa das execuções — traduziu o Tong.

Imaginei que houvesse ali um erro linguístico, porque o inglês do Tong não é muito melhor que o meu, mas a Lili repetiu o que ele dissera e em seguida, com a ajuda do marido e uma mímica exagerada, explicou-nos porque se juntara aos milhares de mulheres que saem do seu país para casarem com um desconhecido. Contou-nos que cada três ou quatro meses, quando avisavam da prisão, tinha de acompanhar o cirurgião-chefe do hospital às execuções. Partiam de carro, com uma caixa cheia de gelo, e faziam quatro horas de caminho por estradas rurais. Na prisão conduziam-nos a uma cave, onde estavam alinhados meia dúzia de prisioneiros, com as mãos atadas atrás das costas e os olhos vendados, à espera. O comandante dava ordem e os guardas disparavam nas têmporas à queima-roupa. Mal os corpos caíam, o cirurgião, ajudado pela Lili, arrancava-lhes rapidamente os órgãos para transplantes: rins, fígado, olhos para extrair as córneas, enfim, tudo o que conseguissem usar. Voltavam desta carnificina cobertos de sangue e com as geleiras repletas de órgãos, que depois desapareciam no mercado negro. Era um negócio próspero entre alguns médicos e o chefe da prisão.

Contou-nos esta história macabra com a eloquência de uma actriz consumada do cinema mudo. Revirava os olhos, disparava na própria cabeça, caía ao chão, empunhava um bisturi, cortava, arrancava órgãos, tudo com tal pormenor que eu e a minha mãe tivemos um ataque de riso nervoso, perante o olhar horrorizado dos demais, que não percebiam que diabo achávamos nós assim tão cómico. O riso alcançou níveis de histeria quando a Lili acrescentou que uma vez o carro capotou quando voltavam da prisão, o cirurgião morreu imediatamente e ela ficou abandonada num descampado com um cadáver dilacerado ao volante e um carregamento de órgãos humanos conservados em gelo. Perguntei muitas vezes a mim mesma se teríamos percebido bem a história, se teria sido uma brincadeira da Lili ou se na realidade aquela mulher encantadora, que vai buscar os meus netos à escola e trata da minha cadela como se ela fosse uma filha, teria realmente passado por aquelas experiências horríveis.

Claro que é verdade — opinou a Tabra quando lhe contei. — Na China há um campo de concentração associado a um hospital onde desapareceram milhares de pessoas. Arrancam-lhes os órgãos em vida e os corpos são cremados. Os refugiados que trabalham na minha oficina contam histórias tão terríveis como essa. Nos países deles há pessoas tão pobres que vendem os rins para alimentar os filhos.

E quem é que os compra, Tabra?

Os ricos, mesmo aqui, na América. Se um dos teus netos precisasse de um órgão para continuar a viver e alguém te propusesse o negócio não o comprarias sem fazer perguntas?

Esta era uma das interrogações que discutíamos nas nossas caminhadas pelo bosque. Em vez de gozar o aroma das árvores e o canto dos passarinhos, voltava perturbada daqueles passeios. Mas nem sempre falávamos das atrocidades cometidas pela humanidade; também falávamos do Lagarto Emplumado, que fazia aparições esporádicas na vida da minha amiga e em seguida desaparecia meses a fio. O ideal da Tabra seria mantê-lo como ornamento, com as suas tranças e colares, numa tenda comanche no quintal.

—        Isso parece-me pouco prático, Tabra. Quem se encarregaria de o alimentar e de lhe lavar as cuecas? Teria de usar a tua casa de banho e depois terias de ser tu a limpá-la — disse-lhe eu, mas ela era indiferente a este tipo de raciocínios mesquinhos.

 

Por três vezes implantaram na Juliette os embriões de laboratório formados pelos óvulos da dadora brasileira e pelo esperma do Nico. Nas três ocasiões, a nossa tribo esteve duas semanas com a alma suspensa por um fio à espera dos resultados. Invocámos os recursos mágicos de sempre. No Chile, a minha amiga Pia e a minha mãe acudiram ao santo nacional, o padre Hurtado, mediante novas doações às suas obras de caridade. A imagem desse santo revolucionário, que todos os chilenos trazem no coração, é a de um homem jovem e enérgico, de sotaina negra e com uma pá na mão, a trabalhar. O seu sorriso não tem nada de beato, mas sim de desafiador. Foi ele o autor da tua frase preferida: «Dar até que doa.» A terceira tentativa de implantar os embriões, depois do fracasso das duas primeiras, foi no Verão. Um ano antes o Nico e a Lori tinham planeado uma viagem ao Japão e nessa altura decidiram fazê-la, porque se o seu sonho de ter um bebé se realizasse seriam as suas últimas férias em muito tempo. Seria lá que receberiam a notícia; se fosse positiva, poderiam festejá-la e, se fosse negativa, teriam uma ou duas semanas de intimidade e de silêncio para se resignarem, longe das condolências de amigos e familiares.

Numa dessas madrugadas acordei sobressaltada. O quarto estava Ruminado apenas pela luz subtil do amanhecer e por uma pequena lâmpada que deixamos sempre acesa no corredor. O ar estava imóvel e a casa parecia mergulhada num silêncio anormal; não se ouviam os roncos compassados do Willie e da Olívia nem o murmúrio habitual das três palmeiras na brisa do pátio. De pé junto da minha cama estavam duas crianças pálidas de mãos dadas, uma menina de uns dez anos e um menino um pouco mais pequeno. Usavam roupas do princípio do século passado, com golas de renda e botas de verniz. Pareceu-me que nos seus olhos havia uma expressão muito triste. Olhámo-nos um ou dois segundos e quando acendi a luz desapareceram. Fiquei um bocadinho à espera que voltassem a aparecer, mas sem resultado, e por fim, quando o meu coração começou a bater mais tranquilamente, levantei-me e fui em bicos de pés telefonar à Pia. No Chile eram cinco horas mais tarde e a minha amiga estava na cama, a bordar uma das suas bolsas de trapos.

Achas que aquelas crianças tinham alguma coisa a ver com a Lori e o Nico? — perguntei-lhe.

Claro que não! São os filhos das duas senhoras inglesas — respondeu com uma convicção tranquila.

Quais?

As senhoras que me visitam, as que atravessam as paredes. Nunca te falei delas?

Depois de nascer o dia, a Lori e o Nico deviam telefonar à enfermeira que coordenava o tratamento da clínica de fertilidade, uma mulher com vocação de madrinha que tratava todos os casos com delicadeza, porque percebia o que estava em causa para aqueles casais. Devido à diferença horária entre Tóquio e a Califórnia, puseram o despertador para as cinco da manhã. Como não podiam fazer chamadas internacionais do quarto, vestiram-se a correr e foram telefonar da recepção do hotel, onde nesse momento não estava ninguém que os pudesse ajudar. Contudo, sabiam que na rua havia uma cabina telefónica. Ligaram de uma rua próxima, que de dia era um formigueiro de actividade devido aos seus restaurantes populares e às lojas para turistas, mas que a essa hora estava deserta. A cabina, muito antiquada, parecia tirada de um filme dos anos 50 e só funcionava com moedas, mas a Lori já estava a contar e levou moedas que chegassem para ligar para a clínica. O sangue martelava-lhe nas têmporas e ela tremia de ansiedade ao marcar o número, com uma prece nos lábios. O seu futuro definia-se nesses instantes. Do outro lado do planeta chegou-lhe a voz da enfermeira. «Não resultou, Lori, tenho muita pena. Não percebo o que aconteceu, os embriões eram de primeira...», disse ela, mas a minha nora já não a ouvia. Desligou o telefone, desfeita, e caiu nos braços do marido. E aquele homem, que tanto resistira à ideia de trazer mais filhos ao mundo, teve um soluço, porque estava tão entusiasmado como ela com a ideia de terem um filho dos dois. Abraçaram-se sem uma palavra e minutos depois saíram a cambalear da cabina para a rua vazia, silenciosa, cinzenta na penumbra do amanhecer. Pelos tubos de ventilação dos passeios saíam colunas de vapor que davam um ar fantasmagórico ao cenário, apropriado para a emoção que os dominava. O resto dessa viagem ao Japão foi um período de convalescença. Nunca tinham estado tão unidos. Na tristeza partilhada encontraram-se a um nível muito profundo, nus, sem defesas.

Alguma coisa mudou na Lori depois disto, como se uma veia se tivesse rompido no seu peito e aquele desejo obsessivo, que fora a sua esperança e o seu tormento, se tivesse derramado como água. Apercebeu-se de que não podia continuar com o Nico vencida pela frustração. Não seria justo com ele. O Nico merecia o tipo de amor rendido e alegre que tanto tinham tentado cultivar entre os dois. Foi então que percebeu que chegara ao fim de um caminho tortuoso e devia arrancar dela pela raiz a ânsia de ser mãe para poder continuar a viver. Depois de ter tentado todos os recursos possíveis, tornara-se evidente que um filho dela mesma não estava no seu destino, mas os filhos do marido, que viviam a seu lado há vários anos e gostavam muito dela, podiam preencher esse vazio. Esta resignação não aconteceu de um dia para o outro. Até a alcançar, passou quase um ano doente de corpo e de alma. A Lori sempre foi magra, mas em pouco mais de duas semanas perdeu vários quilos e ficou pele e osso, com grandes olheiras. Teve uma lesão numa vértebra e durante vários meses esteve quase inválida, a resistir à base de analgésicos, de tal maneira a dor era forte. Houve momentos em que se sentiu desesperada, mas chegou o dia em que emergiu desse longo duelo curada da coluna, sã de alma e transformada noutra mulher. Todos notámos a mudança. Recuperou peso, rejuvenesceu, deixou crescer o cabelo, pintou os lábios, voltou a fazer ioga e longas caminhadas pelo campo, mas agora por desporto, e não para fugir ao que quer que fosse. Voltou a rir-se daquela maneira contagiosa que seduzira o Nico como não a havíamos visto rir-se há muito, muito tempo. Foi então que pôde por fim entregar-se às crianças de todo o coração, com alegria, como se a neblina se tivesse dissipado e ela conseguisse finalmente vê-los com nitidez. Eram dela. Eram os seus três filhos, os filhos que lhe haviam sido anunciados pelos búzios da Baía e pela astróloga do Colorado.

 

O Willie E a Lori trabalham juntos há vários anos no antigo bordel de Sausalito, partilhando inclusivamente a casa de banho. E divertido observar a relação entre aquelas duas pessoas que não podiam ser mais diferentes. A desordem, ao temperamento conflituoso e às imprecações do Willie, a Lori opõe a calma, a ordem, a precisão e a subtileza. Ao meio-dia ele come umas salsichas picantes capazes de perfurarem os intestinos de um rinoceronte e que deixam o ar a cheirar a alho, enquanto a Lori come uma salada macrobiótica com tofu. Ele entra no escritório com umas botas de operário metalúrgico enlameadas, do passeio com a cadela, e a Lori, amavelmente, limpa a escada, para evitar que algum cliente escorregue e parta a cabeça. O Willie acumula montanhas de papel, entre as quais tanto se encontram documentos legais como lenços de papel usados, e de vez em quando a Lori faz uma passagem rápida e põe-nos no lixo; ele nem se apercebe, ou talvez sim, mas não se revolta. Os dois partilham o vício da fotografia e das viagens. Consultam-se um ao outro a propósito de tudo e elogiam-se mutuamente sem sentimentalismos, ela sempre eficiente e tranquila, ele sempre apressado e refilão. Ela arranja-lhe o computador, mantém-lhe a página Web actualizada e faz-lhe almôndegas pela receita da avó; ele divide com ela tudo o que compra por atacado, desde o papel para a casa de banho até às papaias, e gosta mais dela que de qualquer outra pessoa da família, excepto de mim... talvez.


O Willie troça um pouco da Lori, como é evidente, mas também tem de aguentar as partidas dela. Uma vez a Lori fez um letreiro magnífico que pendurou no pára-choques traseiro do carro dele. Dizia o seguinte: pareço muito macho, mas uso lingerie de senhora. O Willie andou uma ou duas semanas com o letreiro, sem perceber por que razão havia tantos homens a fazer-lhe sinais dos outros carros. Tendo em conta que devemos viver no lugar do mundo onde há mais homossexuais per capita, não era de estranhar. Quando descobriu o letreiro quase teve uma apoplexia.

De vez em quando o alarme do antigo bordel dispara sozinho, sem que nada o justifique, o que tem alguns inconvenientes. Por exemplo, uma vez o Willie ouviu o alarme quando ia a chegar e entrou a correr na cozinha — no piso de baixo — para o desligar. Foi no Inverno, à tarde, e estava mais ou menos escuro. Nesse momento um polícia desceu as escadas. Tinha entrado à patada pela porta principal, com óculos escuros e uma pistola na mão, e aos gritos ordenou--lhe que pusesse as mãos no ar. «Calma, homem, sou o dono», explicou-lhe o meu marido, mas o outro mandou-o calar-se. Era jovem e inexperiente, ficou nervoso e continuou aos gritos a pedir reforços pelo telefone, enquanto o senhor de cabelo branco, com a cara esmagada contra a parede, fervia de raiva. O incidente terminou sem consequências quando chegaram outros agentes armados como para um combate e depois de revistarem o Willie ouviram o que tinha a dizer. Isto levou-o a proferir um chorrilho interminável de obscenidades e provocou um verdadeiro ataque de riso a Lori, que não se teria rido tanto se a vítima tivesse sido ela. Uma semana mais tarde estávamos todos a trabalhar quando começaram a chegar alguns amigos da Lori que também são nossos amigos. Pareceu-me um pouco estranho, mas estava ao telefone com um jornalista da Grécia e limitei-me a saudá-los de longe com um gesto. Acabei de falar precisamente quando entrava um agente da polícia alto, jovem, louro e muito atraente, com óculos escuros e uma pistola à cintura, que pediu para falar com o Sr. Gordon. A Lori chamou o Willie e ele desceu do segundo andar na disposição de explicar àquele homem de uniforme que se queriam continuar a incomodá-lo processaria todo o Departamento da Polícia. Os amigos da Lori instalaram-se numa escada a observar o espectáculo.

O belo agente da polícia pegou num monte de papéis que entregou ao Willie, a quem pediu que se sentasse, porque teria de os preencher. De má vontade, o meu marido obedeceu. Nessa altura ouvimos uma música árabe e o homem começou a dançar como uma enorme odalisca e a despir-se. Começou pelo boné, seguiram-se as botas, a pistola, o casaco e as calças, tudo isto perante o horror absoluto do Willie, que retrocedeu, vermelho como um caranguejo cozido, seguro de que estava perante um doente mental fugido de um sanatório. As gargalhadas do público, que observava das escadas, é que o fizeram perceber que se tratava de um actor contratado pela Lori, mas nessa altura já ele tinha apenas os óculos e uma tanga que estava longe de cobrir muito bem as suas partes íntimas.

Tendo em conta que trabalhamos no mesmo sítio, tratamos do escritório do Willie, da fundação e do meu escritório entre todos, ve-mo-nos quase todos os dias, fazemos férias juntos nos confins do planeta e vivemos num raio de seis quarteirões, é surpreendente que nos demos todos tão bem. Um milagre, diria eu. Terapia, diria o Nico.

 

Contrariamente ao QUE SERIA DE ESPERAR, OS meus JUÍZOS lapidares sobre o romance do Willie e o seu anão pervertido não deram início a nenhuma guerra entre nós dois, como teria acontecido se o Willie se tivesse lembrado de fazer uma crítica negativa aos meus livros, mas era evidente que eu não era a pessoa adequada para o ajudar, que precisava de um editor profissional. Nessa altura apareceu uma jovem agente literária que ao princípio se interessou muito pelo livro e que se dedicou a lisonjear o ego do meu marido; no entanto, o entusiasmo foi desaparecendo pouco a pouco. Ao fim de seis meses felicitou-o pelo esforço, assegurou-lhe que tinha talento e recordou--lhe que muitos autores, incluindo Shakespeare, haviam escrito páginas cujo destino final foi um baú. Em nossa casa existiam vários onde o anão poderia dormir o sono dos justos por tempo indefinido enquanto ele ia pensando noutro tema. O Willie não fez caso das opiniões alheias e mandou o livro a outros agentes e a algumas editoras, que o devolveram com uma negativa cortês, mas categórica. Longe de o deixarem desanimado, aquelas cartas de condenação reforçaram o seu espírito de lutador; o meu marido não é dos que se deixam intimidar pela realidade. Dessa vez não trocei dele, porque achei que a literatura podia dar sentido à última etapa da sua existência. Se o que a agente dissera fosse verdade, e o Willie tinha talento, e se levasse a coisa a sério e fosse capaz de se tornar escritor depois dos sessenta, eu não teria de cuidar de um velho gaga no futuro. Seria muito conveniente para os dois: a criatividade poderia mantê-lo alegre e saudável até uma idade avançada.

Uma noite, abraçados na cama, expliquei-lhe as vantagens de escrevermos sobre o que conhecemos. Que sabia ele de anões sodomitas? Nada, a não ser que tivesse projectado nessa personagem lamentável algum aspecto da sua personalidade que eu ignorava. Em compensação, tinha uma experiência de mais de trinta anos como advogado e uma memória formidável para os pormenores. Porque não explorava o género policial? Qualquer dos muitos casos em que trabalhara poderia servir-lhe de ponto de partida. Não há nada tão inspirador como um assassinato sangrento. Pôs-se a pensar e não disse uma só palavra. No dia seguinte andávamos a passear pelo bairro chinês de São Francisco quando vimos um chinês albino à espera a uma esquina. «Já sei qual vai ser o meu próximo romance. Vai ser um caso criminal com um chinês albino como aquele», anunciou-me no mesmo tom em que me falara pela primeira vez das suas aspirações literárias na feira sadomasoquista de São Francisco, onde viu o anão com uma trela de cão. Dois anos mais tarde o seu romance foi publicado em Espanha com o título Duelo en Chinatown e acabou por ser comprado por outros editores para ser traduzido em várias línguas. Fomos juntos ao lançamento do livro em Madrid e em Barcelona, acompanhados pelos filhos dele e por um ou dois amigos fiéis dispostos a aplaudi-lo. Foi sempre recebido com curiosidade pelos jornalistas, que depois de falarem com ele publicaram artigos cheios de simpatia, especialmente as mulheres, porque as conquistava a todas com a sua simplicidade. Não tem quaisquer pretensões, apenas o olhar azul e o sorriso atrevido sob a pala do seu eterno chapéu. No dia do lançamento do seu livro em Madrid, um dos assistentes perguntou-lhe se queria ser famoso, e ele respondeu, emocionado, que já tinha mais do que sonhara: o facto de a imprensa estar ali e de algumas pessoas quererem ler o seu livro já era uma dádiva. Desarmou-os, enquanto o seu editor se retorcia na cadeira, porque nunca vira autor tão honesto. Por uma vez, coube-me a mim o papel de acompanhante, de maneira que pude retribuir-lhe os fretes que teve de fazer nos muitos anos em que me acompanhou por todo o mundo.

—        Goza este momento, Willie, porque não se repetirá. A alegria de veres o primeiro exemplar do teu primeiro livro é única. Mesmo que haja outras publicações no futuro, não se vão comparar a esta — adverti-o, recordando o que sentira com a primeira edição de A Casa dos Espíritos, que guardo embrulhada em papel de seda, assinada pelos actores que fizeram o filme e pelos da peça de teatro em Londres.

O seu espanhol arrevesado e salpicado de palavras de origem mexicana e de outras em inglês jogou a favor do Willie; o resto foi conseguido pelo seu chapéu à Borsalino, que lhe dá um ar de detective dos anos 40. Apareceu em muitos jornais e revistas, foi entrevistado para várias rádios e temos uma fotografia numa livraria de Espanha e noutra do Chile onde Duelo en Chinatown está na montra entre os livros mais vendidos. Num programa de rádio falou do anão patético do livro frustrado, e mais tarde, no hotel, um homem aproximou-se dele para lhe dizer que o tinha ouvido.

Como sabe que era eu? — perguntou o Willie, surpreendido.

A entrevistadora falou do seu chapéu. Queria dizer-lhe que tenho um amigo que é anão e tão pervertido como o do seu romance. Não ligue à sua mulher e publique-o sem pensar duas vezes. Vai vender--se como pãezinhos quentes. Toda a gente gosta de anões depravados.

Um mês mais tarde, no México, alguém lhe contou que no princípio do século xx havia um bordel em Juárez com duzentas prostitutas anãs. Duzentas! Essa pessoa chegou mesmo a oferecer ao Willie um livro sobre essa casa de lenocínio ao estilo de Fellini, o que me fez recear que isso possa despertar no meu marido o desejo de resgatar o seu abominável homenzito do baú.

Nunca tinha visto o Willie tão feliz. Definitivamente, não terei de cuidar de um velho babado, porque no avião sacou do seu bloco amarelo e começou a escrever outro romance policial. A astróloga do Colorado prognosticou que os últimos vinte e sete anos da sua vida seriam muito criativos, de maneira que posso estar tranquila em relação a ele chegar aos noventa e seis.

)ém é possível acredit,

Tu acreditas nestas coisas? — perguntei à Cármen Balcells, a minha agente, quando lhe contei.

Se é possível acreditar em Deus, tambí na astrologia — respondeu-me ela.

 

Fevereiro de 2004, o mayor de São Francisco cometeu um erro político ao legalizar as uniões de homossexuais, porque galvanizou a direita cristã na defesa dos «valores da família». Impedir o casamento gay tornou-se um estandarte político dos republicanos para a reeleição de Bush nesse mesmo ano; o que é assombroso é que isso tenha pesado mais para os eleitores que a guerra do Iraque. O país não estava maduro para uma iniciativa como a do mayor. Levou-a a cabo durante um fim-de-semana, quando os tribunais estavam fechados, para que nenhum juiz conseguisse impedi-lo. Mal anunciaram a notícia, centenas de casais apareceram no Registo Civil, num fila interminável, debaixo de chuva. Nas horas seguintes foram chegando de muitos sítios mensagens de felicitações e ramos de flores, que atape-tavam a rua. As primeiras a casar-se foram duas idosas de oitenta e tal anos, feministas de cabelo branco, que viviam juntas há mais de cinquenta. Seguiram-se dois homens que se apresentaram cada um com um bebé num canguru, gémeos adoptados. Toda a gente naquela longa fila desejava fazer uma vida normal, criar filhos, comprar casa a meias, herdar, ser acompanhada à hora da morte; ao que parece, isto não tinha nada a ver com os valores da família. A Célia e a Sally não estavam entre essa multidão, porque acharam que a iniciativa do mayor seria declarada ilegal muito em breve, como de facto aconteceu. Já há muito que a Sally e o irmão da Célia se tinham divorciado. Com o artifício do casamento, ele conseguiu o seu visto americano, mas não o usou por muito tempo, uma vez que decidiu regressar à Venezuela, onde por fim se casou com uma linda jovem, mandona e divertida, teve um filho encantador e encontrou o destino que nos Estados Unidos lhe fugia. Isso permitiu à Sally e à Célia unirem-se legalmente numa «sociedade doméstica». Imagino que tenha sido um tanto complicado explicar perante as autoridades que a Sally se «casara» com duas pessoas com o mesmo apelido mas de sexo diferente. Aos miúdos, que tinham visto a fotografia do casamento dela com o tio, não foi preciso dar muitas explicações: entenderam desde o princípio que foi um favor que a Sally lhe fez a ele; estou convencida de que não há nenhum enredo familiar que possa assustar os meus netos.

A Célia e a Sally tornaram-se um velho casal, tão acomodadas e burguesas que já é difícil recordá-las como as jovens atrevidas que há alguns anos atrás desafiaram a sociedade para se amarem. Frequentam restaurantes, gostam de ficar na cama a ver os seus programas de televisão preferidos e costumam organizar festas na sua casa minúscula, onde se amanham para receber cem pessoas com comida, música e dança. Uma é noctívaga e a outra adormece às oito da noite, de maneira que os seus horários não batem certo.

—        Temos de marcar encontro ao meio-dia, com as agendas na mão, ou então viveríamos como amigas em vez de como amantes. Conseguir momentos de intimidade quando há tanto trabalho e três crianças é uma aventura — confessou-me a Célia entre risos.

—        Isso já é mais do que eu preciso de saber, Célia. Acabaram de remodelar a casa, transformaram a garagem numa sala para a televisão e num quarto para o Alejandro, que já está em idade de ter alguma privacidade. Têm um cão chamado Poncho, negro, manso e enorme, como o Barrabás do meu primeiro romance, que dorme uma noite na cama de cada miúdo. A chegada dele surpreendeu os dois gatos vadios, que fugiram pelos telhados e não voltaram a aparecer. Quando os meus netos vão passar a semana a casa do pai, o infeliz Poncho deita-se aos pés da escada com os olhos murchos à espera da segunda-feira seguinte.

A Célia descobriu a paixão da sua vida: a bicicleta de montanha. Embora já tenha mais de quarenta anos, ganha prémios em corridas longas, em competição com jovens de vinte, e montou uma pequena empresa de excursões de bicicleta: a Mountain Biking Marin. Há fanáticos que vêm de lugares distantes para a seguirem em trilho aberto até às alturas.

Parece-me que estas duas mulheres estão satisfeitas. Trabalham para se sustentar, mas não se matam para juntar dinheiro, e estão de acordo em relação à prioridade de ambas, que são as crianças, pelo menos até que cresçam e se tornem independentes. Ainda recordo os tempos em que a Célia vomitava às escondidas porque estava presa a uma vida que não lhe convinha. Têm a sorte de viver na Califórnia, no início do século xxi; noutros tempos e noutros lugares teriam enfrentado preconceitos implacáveis. Aqui nem sequer no colégio católico das miúdas é um problema serem gay; não é isso que as define. A maior parte dos amigos delas são casais, pais de outras crianças, famílias comuns. A Sally assumiu o papel de dona de casa, enquanto a Célia se comporta habitualmente como um marido latino-americano.

Como consegues aguentá-la, Sally? — perguntei-lhe uma vez, quando a vi a cozinhar e a ajudar a Nicole com os trabalhos de Matemática, enquanto a Célia, com uns calções indecentes e um capacete de louca, andava a pedalar por trilhos de montanha com uns turistas.

Porque nos divertimos muito juntas — respondeu-me, a mexer um tacho.

Na aventura de formar um casal há muito de fortuito, mas também há muito de propositado. Por vezes nas entrevistas os jornalistas perguntam-me qual é «o segredo» da minha notável relação com o Willie. Não sei que responder, porque não conheço a fórmula, se é que existe, mas lembro-me sempre de uma coisa que aprendi com um compositor que uma vez nos visitou com a mulher. Tinham a volta de sessenta anos, mas pareciam jovens, fortes e cheios de entusiasmo. O músico explicou-nos que se tinham casado — ou, melhor dizendo, renovado o seu compromisso — sete vezes ao longo do seu grande amor. Conheceram-se quando ainda eram estudantes na universidade, apaixonaram-se à primeira vista e estão juntos há mais de quatro décadas. Passaram por várias etapas e em todas elas mudaram e estiveram quase a separar-se, mas optaram por rever a relação. Depois de cada crise decidiram continuar casados mais algum tempo, porque descobriram que continuavam a gostar um do outro, embora já não fossem os mesmos de antes. «No total, já vamos em sete casamentos, e sem dúvida ainda nos faltam mais alguns. Não é o mesmo formar um casal quando estamos a criar os filhos, sem dinheiro e sem tempo livre, e quando chegamos à maturidade, já realizados na nossa profissão e à espera do primeiro neto», disse-me. Contou-nos, por exemplo, que nos anos 60, em plena loucura hippie, tinham vivido numa comuna com vinte jovens ociosos, onde o único que trabalhava era ele; todos os outros passavam o dia numa nuvem de marijuana, a tocar guitarra e a recitar versos em sânscrito. Um dia fartou-se de os sustentar e correu-os de casa a pontapé. Foi nesse momento crucial que teve de ajustar as regras do jogo com a mulher. A seguir veio a etapa materialista dos anos 80, que quase destruiu o seu amor, porque tinham andado os dois em perseguição do êxito. Também dessa vez optaram por fazer mudanças fundamentais e por recomeçar. E o mesmo aconteceu das outras vezes. Parece-me uma fórmula muito acertada, que eu e o Willie pusemos em prática mais de uma vez.

 

AS gémeas do Ernesto e da Giulia nasceram numa manhã soalheira de Junho de 2005. Consegui chegar ao hospital no momento em que o Ernesto acabava de receber as suas duas filhas e estava sentado a chorar com os dois pacotes rosados nos braços. Também eu chorei de alegria, porque aquelas crianças representavam o fim definitivo da viuvez e o começo de uma nova etapa na vida daquele homem. Por fim era pai. Quando viu as duas meninas recém-nascidas, o Willie opinou que uma parecia Mussolini e a outra Frida Kahlo, mas uma ou duas semanas mais tarde, quando as feições começaram a compor-se, verificámos que eram duas meninas muito bonitas: a Cristina, loura e alegre como a mãe, e a Elisa, morena e intensa como o pai. São tão diferentes em aspecto e personalidade que parecem adoptadas, uma no Kansas e a outra em Tenerife. A Giulia dedicou-se inteiramente às filhas, a ponto de durante mais de um ano não ter sido possível falar com ela de mais nada. Conseguiu habituá-las a dormir e a comer ao mesmo tempo, o que lhe deixa uns minutos de liberdade entre duas sestas, que usa para pôr ordem no caos. Está a criá-las com música latina, língua espanhola e sem medo de micróbios nem de acidentes. As chupetas andam pelo chão, e daí passam para a boca, sem que ninguém faça disso grande espavento. Mais tarde as gémeas descobriram, antes de aprenderem a andar, a maneira de subir e descer pelas escadas de ladrilhos com arestas arrastando-se sobre a barriga. A Cristina é um furão, incapaz de estar quieta, que se assoma ao abismo das varandas com uma indiferença de suicida, enquanto a Elisa se perde em pensamentos obscuros, que costumam provocar-lhe ataques de pranto inconsolável. Não sei como a Giuiia arranja forças para as vestir de bonecas, com botinhas bordadas e chapéus de marinheiro.

No ano anterior, precisamente a 6 de Dezembro, o aniversário da tua morte, o Ernesto foi aceite na universidade num curso nocturno de mestrado e conseguiu um lugar de professor de Matemática no melhor colégio público do condado, a quinze minutos de casa. Esteve desempregado durante alguns meses, em que parecia trazer uma nuvem de tempestade sobre a cabeça e que aproveitou para meditar sobre o seu futuro. A Giuiia, sempre enérgica e optimista, foi a única que nunca duvidou que o marido encontraria o seu caminho, enquanto todos os outros na família estavam um tanto nervosos. O tio Ramón recordou-me numa carta que os homens sofrem uma crise de identidade por volta dos quarenta anos, que faz parte do processo de amadurecimento. A dele aconteceu em 1945, quando se apaixonou pela minha mãe no Peru, há sessenta anos. Partiu para um hotel nas montanhas, fechou-se num quarto em silêncio durante vários dias e quando saiu era outra pessoa: tinha-se livrado para sempre da religião católica, das pressões familiares e da mulher com quem então estava casado. Fora educado, crescera e até essa altura vivera preso na camisa-de-forças das convenções sociais. Arrancou-a de uma vez só e perdeu o medo do futuro. Nesse momento descobriu uma coisa que me ensinou durante a adolescência e que nunca esqueci: «Os outros têm mais medo que tu.» Repito sempre estas palavras quando tenho de enfrentar qualquer coisa que me pareça terrível, desde um auditório cheio de público até à solidão. Não tenho qualquer dúvida de que o tio Ramón conseguiu decidir o seu destino desta maneira drástica porque o vi agir dessa forma em várias ocasiões, como uma em que apanhou o meu irmão Pancho, na altura com dez anos, a fumar. Nessa noite o tio Ramón apagou a beata do seu cigarro à nossa frente e anunciou: «Este é o último cigarro da minha vida, e se apanho algum de vocês a fumar antes de serem maiores de idade terão de se haver comigo.» Nunca mais voltou a fumar. Por sorte esperou a crise dos quarenta anos e quando nasceram as suas filhas estava pronto para as receber, já assente na sua nova profissão de professor de Matemática do ensino secundário e a estudar para ser professor universitário.

Alfredo López Lagarto Emplumado apareceu num canal hispânico de televisão, mais atraente do que nunca, vestido de escuro, com uma fita na cabeça e vários colares de prata e turquesa. A Tabra telefonou-me às dez da noite para eu o ver na televisão por cabo, e tive de admitir que o homem era muito atraente; se não o conhecesse tão bem, a imagem dele no ecrã tinha-me impressionado de certeza. Falava inglês — com legendas —, com a calma de um académico e a convicção moral de um apóstolo, explicando as razões de justiça que o impulsionavam na missão de resgatar a coroa de Montezuma, símbolo da dignidade e da tradição do povo asteca, sequestrada pelo imperialismo europeu. Depois de andar a pregar no deserto anos a fio, a sua mensagem chegara aos ouvidos dos Astecas e incendiara os seus corações como pólvora. O presidente do México enviaria uma comissão de juristas a Viena para negociar com o congresso desse país a devolução do troféu histórico. Concluiu com um apelo aos emigrantes mexicanos nos Estados Unidos para que se unissem à luta dos seus irmãos de raça para conseguirem que o governo norte-americano pressionasse os Austríacos. Felicitei a Tabra pelo salto do seu amigo para a fama, mas respondeu-me, com um profundo suspiro, que se antes o Lagarto já era escorregadio, agora seria impossível apanhá-lo. «Talvez vá comigo à Costa Rica depois de recuperar a coroa. Bom, isto no caso de eu conseguir poupar que chegue para la ir», sugeriu, sem convicção. «Cuidado com o que pedes, não va o Céu conceder-to», pensei, mas não lhe disse nada. Já há algum tempo que a Tabra andava a comprar moedas de ouro, que escondia pelos cantos da casa, sujeita a que lhas roubassem.

 

enquanto a Tabra se preparava para emigrar, eu andava submersa na investigação de um tema que preparava há quatro anos: a epopeia de cento e dez heróis aventureiros que conquistaram o Chiie em 1540. Entre eles encontrava-se uma mulher espanhola, Inês Suárez, costureira na cidade estremenha de Plasença, que seguiu o marido até às índias Ocidentais e que assim chegou ao Peru, onde descobriu que era viúva. Em vez de regressar a Espanha, ficou no Novo Mundo e apaixonou-se por D. Pedro de Vaidivia, um fidalgo cujo sonho era «deixar fama e glória de mim», como assegurava nas cartas ao rei de Espanha. Por amor, e não por cobiça de ouro ou de glória, Inês partiu com ele. A imagem dessa mulher que cruzou o deserto de Atacama, o mais árido do mundo, perseguiu-me anos a fio. Inês combateu como um soldado valente contra os Mapuche, os guerreiros mais bravos da América, fundou cidades, e morreu, já idosa, apaixonada por outro conquistador. Viveu em tempos cruéis e foi responsável por algumas barbaridades, mas, em comparação com qualquer dos seus companheiros de aventuras, parece uma mulher íntegra.

Perguntaram-me muitas vezes onde vou buscar inspiração para os meus livros. Não sei como responder a essa pergunta. Na viagem da vida vou acumulando experiências que vão ficando gravadas nos estratos mais profundos da memória e ali fermentam, se transformam e as vezes brotam à superfície como estranhas plantas de outros mundos. O que compõe esse fértil húmus do inconsciente? Por que razão certas imagens se convertem em temas recorrentes dos pesadelos ou da escrita? Tenho explorado muitos géneros e temas muito variados e tenho a impressão de que em cada novo livro invento tudo de raiz, inclusivamente o estilo, mas já há mais de vinte anos que o faço e apercebo-me das repetições. Em quase todos os meus livros há mulheres desafiadoras, que nascem pobres ou vulneráveis, destinadas a ser submetidas, mas que se revoltam, dispostas a pagar o preço da liberdade a qualquer custo. Inês Suárez é uma delas. São sempre apaixonadas nos seus amores e solidárias com as outras mulheres. Não são movidas pela ambição, mas pelo amor; lançam-se na aventura sem medir os riscos e sem olhar para trás, porque ficarem paralisadas no lugar que a sociedade lhes destina é muito pior. Talvez por isso não me interessem as rainhas ou as herdeiras, que vêm ao mundo em berço de ouro, nem as mulheres demasiado belas, que têm o caminho aberto pelo desejo dos homens. Tu rias-te de mim, Paula, porque as mulheres bonitas dos meus livros morrem antes da página sessenta. Dizias que era pura inveja da minha parte, e sem dúvida tinhas uma certa razão, porque gostaria de ter sido uma dessas beldades que obtêm tudo o que desejam sem esforço, mas para os meus romances prefiro heroínas de têmpera, a quem ninguém dá nada e que conseguem tudo por si sós. Não é estranho, por isso, que sempre que lia uma referência a Inês Suárez num livro de história — é raro que apareçam mais de uma ou duas linhas quando se trata de mulheres — me sentisse espicaçada pela curiosidade. Era o tipo de personagem que em geral tenho de inventar. Quando fazia o trabalho de investigação, percebi que nada do que eu imaginasse poderia superar a realidade da sua vida. O pouco que se sabe dela é espectacular, quase mágico. Em breve teria de contar a sua história, mas os meus planos foram modificados por três viajantes insólitos.

Um sábado ao meio-dia chegaram a nossa casa três pessoas, que a princípio confundimos com missionários mórmones. Por sorte não o eram. Explicaram-me que geriam os direitos mundiais do Zorro, o herói californiano que todos conhecemos. Fui criada com o Zorro, porque o tio Ramón era um dos seus admiradores fanáticos. Lembra-te, Paula, de que em 1970 Salvador Allende nomeou o teu tio embaixador na Argentina, uma das missões diplomáticas mais difíceis desses tempos e que ele desempenhou com mérito até ao dia do golpe militar, em que renunciou ao seu posto porque não estava na disposição de representar uma tirania. Tu visitaste-o muitas vezes. Tinhas sete anos e ias sozinha de avião. Nesse enorme edifício, com inúmeros salões, vinte e três casas de banho, três pianos de cauda e um exército de empregados, sentias-te como uma princesa, porque o teu avô te convencera de que era o seu próprio palácio e ele pertencia à família real. Durante esses três anos de trabalho intenso em Buenos Aires, o senhor embaixador escapava a qualquer compromisso às quatro da tarde para desfrutar em segredo da série do Zorro na televisão. Com estes antecedentes, não pude deixar de receber aqueles três visitantes de braços abertos.

O Zorro foi criado em 1919 por Johnston McCulley, um escritor californiano de romances de cordel, e desde então permaneceu sempre na imaginação popular. La maldición de Capisírano narrava as aventuras de um jovem fidalgo espanhol na Los Angeles do século xix. De dia, D. Diego de la Vega era um senhorito frívolo e hipocondríaco; de noite vestia-se de negro, punha uma máscara e transformava-se no Zorro, vingador de índios e pobres.

Já fizemos tudo e mais alguma coisa com o Zorro: filmes, séries de televisão, historietas, máscaras e disfarces, tudo menos uma obra literária. Gostaria de a escrever? — propuseram-me.

Eu sou uma escritora séria, não escrevo por encomenda. Ou o que é que vocês pensam? — foi a minha primeira reacção.

Mas lembrei-me do tio Ramón e do meu neto adoptivo, o Aquiles, disfarçado de Zorro para o Halloween, e a ideia começou a apoderar-se de mim de uma maneira tal que Inês Suárez e a conquista do Chile tiveram de esperar pela sua vez. Segundo os donos dos direitos do Zorro, o projecto assentava-me que nem uma luva: sou hispânica, escrevo em espanhol, conheço a Califórnia e tenho alguma experiência de romances históricos e de aventuras. Era siclo de personagem em busca de autor. Para mim, no entanto, o assunto não era assim tão claro, porque o Zorro não se assemelhava a nenhum dos meus protagonistas, não era um tema que eu tivesse escolhido. Com o último livro da trilogia dera por encerrada a experiência com os livros juvenis e descobri que prefiro escrever para adultos: há menos limitações. Um livro juvenil exige tanto trabalho como um livro para adultos, mas é preciso ter mil cuidados no que se refere ao sexo, à violência, à maldade, à política e a outros assuntos que dão muito sabor a uma história, mas que os editores não consideram adequados para essas idades. Irrita-me a ideia de escrever «com uma mensagem positiva». Não vejo razão para proteger os miúdos, que de qualquer maneira já têm muita porcaria dentro da cabeça; já podem ver na Internet mulheres obesas a fornicarem com burros ou com traficantes de droga e polícias a torturarem-se uns aos outros com a maior ferocidade. É ingénuo estar a meter à força mensagens positivas nas páginas de um livro; a única coisa que se consegue com isso é que não o leiam. O Zorro é uma personagem positiva, o herói por excelência, uma mescla de Che Guevara, obcecado com a justiça, de Robin dos Bosques, sempre pronto a tirar aos ricos para dar aos pobres, e de Peter Pan, eternamente jovem. Seria preciso esmerarmo-nos muito para conseguir transformá-lo num vilão, e, tal como me explicaram os donos dos direitos, não era disso que se tratava. Ademais, advertiram-me de que o romance não deveria conter sexo explícito. Em poucas palavras: era um grande desafio. Reflecti conscienciosamente e pòr fim resolvi as minhas dúvidas da maneira habitual: atirei uma moeda ao ar. Foi assim que acabei por me fechar no meu tugúrio com Diego de la Vega durante vários meses. O Zorro já fora demasiado explorado; não ficara muito por contar, a não ser a sua juventude e a sua velhice. Optei pela primeira possibilidade, porque ninguém gosta de ver o seu herói numa cadeira de rodas. Como teria sido Diego de la Vega em criança? Porque se tornou no Zorro? Investiguei o período histórico, o princípio do século xix, uma época extraordinária no mundo ocidental. As ideias democráticas da Revolução Francesa estavam a transformar a Europa e foi nelas que se inspiraram as guerras libertadoras das colónias americanas. Os exércitos vitoriosos de Napoleão invadiram vários países, incluindo a Espanha, onde a população iniciou uma guerrilha sem quartel que acabou por expulsar os Franceses do seu solo. Foram tempos de piratas, de sociedades secretas, de tráfico de escravos, de ciganos e de peregrinos. Na Califórnia, pelo contrário, não acontecia nada de romanesco; era uma vasta extensão rural com vacas, índios, ursos e alguns colonos espanhóis. Teria de levar Diego de la Vega para a Europa.

Como a investigação me proporcionou material de sobra e o protagonista já existia, a minha tarefa foi criar a aventura. Entre outras coisas, fomos com o Willie a Nova Orleães na peugada do famoso corsário Jean Laffitte, e conseguimos conhecer a exuberante cidade antes de o furacão Katrina a ter reduzido a vergonha nacional. No Bairro Francês ouviam-se noite e dia as charangas e o banjo, as vozes de ouro dos blues, o chamamento irresistível do jazz. As pessoas bebiam e dançavam ao ritmo cálido dos tambores no meio da rua; cor, música, aroma dos guisados e magia. Dava para um romance inteiro, mas tive de me limitar a uma breve visita do Zorro. Agora procuro recordar Nova Orleães como era então, com o seu Carnaval pagão, em que pessoas de diferentes cores se misturavam a dançar, com as suas antigas ruas residenciais de árvores centenárias — ciprestes, ulmeiros, magnólias em flor — e varandas de ferro forjado, onde há duzentos anos as mulheres mais belas do mundo vinham apanhar ar, netas de rainhas senegalesas e dos senhores de então, barões do açúcar e do algodão. Mas as imagens mais persistentes de Nova Orleães são as do furacão recente: torrentes de água imunda e os habitantes, sempre os mais pobres, em luta contra a devastação da natureza e a incúria das autoridades. Transformaram-se em refugiados no seu próprio país, abandonados à sua sorte, enquanto o resto da nação, estupefacta perante cenas que pareciam tão remotas como uma monção no Bangladesh, perguntava a si mesma se a indiferença do governo teria sido igual se a maior parte dos lesados fosse branca.

Apaixonei-me pelo Zorro. Embora no livro não tenha podido contar as suas façanhas eróticas com os pormenores com que teria gostado de o fazer, posso sempre imaginá-las. A minha fantasia sexual preferida é que o simpático herói trepa em segredo à minha varanda, faz amor comigo na obscuridade com a sabedoria e a paciência de D. Juan, sem se importar com a minha celulite nem com a minha idade avançada, e desaparece ao amanhecer. Fico a dormitar entre os lençóis amachucados, sem fazer ideia de quem fora o gala que me fizera semelhante obséquio, porque nunca chegou a tirar a máscara. Não há culpas.

 

Chegou o Verão, com o seu escândalo habitual de abelhas e esquilos; o jardim estava no seu apogeu, e também as alergias do Willie, que nunca renunciará a contar as pétalas de cada rosa uma a uma. As alergias não o impedem de fazer uns assados monumentais, em que a Lori também participa, porque abandonou os seus hábitos vegetarianos quando o Dr. Miki Shima, tão vegetariano como ela, a convenceu de que precisava de mais proteínas. A piscina morna atraía hordas de crianças e outros visitantes; os dias desenrolavam-se ao sol, longos, lentos, sem relógio, como nas Caraíbas. A Tabra era a única ausente, porque estava no Bali, onde fabricam algumas das peças que usa nas, suas jóias. O Lagarto Emplumado acompanhou-a por uma semana, mas teve de regressar à Califórnia porque não suportou o terror às víboras e as matilhas de cães sarnosos e esfomeados. Ao que parece, estava a abrir a porta do quarto quando uma co-brazinha verde passou e lhe roçou a mão. Era das mais letais que existem. Nessa mesma noite caiu do tecto uma coisa peluda, quente e húmida, que aterrou em cima deles e fugiu a correr. Não conseguiram acender a luz a tempo de ver o que era. A Tabra disse-lhe que era certamente uma sarigueia, ajeitou-se na almofada e continuou a dormir; ele ficou o resto da noite de vigia, com as luzes acesas e a faca de magarefe em riste, sem fazer a menor ideia do que fosse uma sarigueia.

Juliette e os filhos passavam semanas a fio connosco. O Aristóteles é a pessoa mais gentil e reflectida da família.

O Verão de 2005 acabei de escrever Inês da Minha Alma, e enviei o manuscrito a Cármen Balcells com um suspiro de alívio, porque foi um projecto pesado, e em seguida parti com o Nico, a Lori e os miúdos para o Quénia para fazer um safari. Durante várias semanas acompanhámos os Samburu e os Masai para observarmos a migração dos gnus, milhões de bestas que pareciam vacas negras a correrem espavoridas entre o Serengueti e Masai Mara, numa época de orgia para os outros animais, que acorrem para devorar os que se deixam ficar para trás. Numa semana nascem num ápice cerca de um milhão de crias. Das frágeis avionetas víamos a migração como uma gigantesca sombra que se estendia pelas planícies africanas. A Lori concebeu o plano de levarmos os miúdos todos os anos a um sítio inesquecível, que lhes estimule a curiosidade e lhes demonstre que, apesar das distâncias, as pessoas são parecidas em toda a parte. As semelhanças que nos unem são muito mais que as diferenças que nos separam. No ano anterior tínhamos estado nas ilhas Galápagos, onde os miúdos puderam brincar com lobos-marinhos, tartarugas e raias, e onde o Nico nadava horas a fio mar adentro atrás de tubarões e orcas, enquanto eu e a Lori procurávamos um barco por entre os ilhéus para o irmos salvar de uma morte certa. Quando o conseguimos já o Nico vinha de regresso a grandes braçadas. Para o Quénia tivemos de levar, como sempre, a maleta com o equipamento fotográfico do Willie, os tripés e a lente gigante, que nunca serviu para surpreender nenhuma fera africana, porque dava demasiado trabalho montá-la.

A melhor fotografia da viagem foi tirada pela Nicole com uma máquina descartável: o beijo que uma girafa me deu no rosto com a sua língua azul de quarenta e cinco centímetros de comprimento. A pesada lente do Willie acabou por ficar abandonada na tenda, enquanto ele usava outras mais modestas para imortalizar o riso sempre pronto dos africanos, os mercados poeirentos, as crianças de cinco anos a tomarem conta do gado da família no meio do nada, a três horas a pé da aldeia mais próxima, as crias de leão e as esbeltas girafas. Num jipe aberto, passeámos entre manadas de elefantes e de búfalos, aproximámo-nos de rios de lodo onde se espojavam famílias inteiras de hipopótamos e seguimos os gnus na sua corrida inexplicável.

Um dos nossos guias, um samburu simpático com dentes brancos e três plumas compridas a coroarem o adorno de contas que usava na cabeça, tornou-se amigo do Alejandro. Propôs-lhe que ficasse com ele para ser circuncidado por um feiticeiro da tribo, o que seria um primeiro passo na sua iniciação. Depois teria de passar um mês sozinho no meio da natureza, a caçar com uma lança. Se conseguisse matar um leão, poderia escolher a rapariga mais apetecível da aldeia e o seu nome seria recordado juntamente com o dos grandes guerreiros. O meu neto, aterrado, andava a contar os dias para voltar à Califórnia. Quando um guerreiro com alguns anos quis comprar a An-drea para mulher foi o Lidilia que traduziu. Ofereceu-nos várias vacas por ela e, como recusámos, juntou outras tantas ovelhas. A Nicole entendia-se telepaticamente com os guias e os animais, e tinha uma memória notável para os pormenores, de maneira que nos ia mantendo informados: que os elefantes mudam completamente de dentadura em cada dez anos, até aos sessenta, quando deixam de lhes nascer dentes novos e estão condenados a morrer de fome; que o macho da girafa mede seis metros de altura, o seu coração pesa seis quilos e come sessenta quilos de folhas por dia; que entre os antílopes o macho dominante tem de defender o harém dos seus rivais e acasalar com as fêmeas. Isso deixa-lhe pouco tempo para comer, o que o debilita, altura em que outro macho o vence em combate e o expulsa. O posto de macho dominante dura mais ou menos dez dias.

Nessa altura a Nicole já sabia o que era acasalar. Apesar de eu não ter nascido para esta vida agreste e de nada me fazer sentir tão insegura como a falta de um espelho, não pude queixar-me das comodidades da viagem. As tendas eram de luxo, e graças à Lori, que prevê tudo até ao ínfimo pormenor, tínhamos botijas de água quente na cama, lâmpadas de mineiro para ler nas noites mais escuras, loção contra os mosquitos, antídotos para as mordeduras das serpentes e, à tarde, chá inglês servido em bules de porcelana para tomarmos enquanto observávamos um par de crocodilos a devorarem uma gazela desamparada.

De regresso à Califórnia, antes do fim do Verão, o Alejandro passou pelo seu rito de iniciação, embora um pouco diferente do que lhe propunha o samburu Lidilia. Inscreveu-se num programa que o Nico e a Lori descobriram na Internet e, convencidos os quatro pais de que não era uma armadilha de pedófilos e sodomitas, deixaram-no ir. Tal como explicara Lidilia, a passagem dos rapazes da infância à idade adulta deve ser assinalada por uma cerimónia. Na falta de uma tradição, vários instrutores organizaram um retiro de três dias num bosque com um grupo de rapazes para reforçar neles a noção de respeito, honra, coragem, responsabilidade, a obrigação de proteger os fracos e outras normas elementares que na nossa cultura costumam ser relegadas para os romances de cavalaria medievais. O Alejandro era o mais jovem do grupo. Nessa noite tive um sonho aterrador: o meu neto estava junto da fogueira com um monte de órfãos esfomeados e a tremer de frio, como nos contos de Dickens. Implorei ao Nico que fosse buscar o filho antes que acontecesse uma desgraça naquela sinistra floresta onde o menino fora parar com uns desconhecidos, mas não me ligou nenhuma. Quando chegou a altura foi buscá-lo e voltaram a tempo do jantar de domingo em família. Tínhamos feito uma receita chilena de feijão e a casa cheirava a milho e a alfavaca.

A família em peso estava à espera do iniciado, que voltou imundo e esfomeado. O Alejandro, que andara anos a fio a dizer que não queria crescer, parecia mais velho. Abracei-o com um amor frenético de avó, contei-lhe o meu sonho, e acontece que a sua experiência fora exactamente como eu sonhara, porque havia uma fogueira e alguns órfãos entre os miúdos. Também havia uns quantos delinquentes, que, segundo o meu neto, «eram bons miúdos, mas tinham feito alguns disparates porque não tinham família». Contou que se haviam sentado em círculo à volta do lume e que cada um tinha falado das coisas que o faziam sofrer. Propus que fizéssemos o mesmo, já que estávamos no círculo tribal, e um a um fomos respondendo às perguntas do Alejandro. O Willie disse que se sentia angustiado com a situação dos filhos, a Jennifer desaparecida e os outros dois dependentes das drogas; eu referi a tua ausência; a Lori mencionou a sua infertilidade, e cada um falou de alguma coisa que lhe dizia respeito.

E a ti, o que te faz sofrer, Alejandro? — perguntei-lhe.

As minhas brigas com a Andrea. Mas prometi a mim mesmo melhorar a minha relação com ela e vou fazê-lo, porque aprendi que todos somos responsáveis pelo nosso sofrimento.

Isso nem sempre é verdade. Eu não sou responsável pela morte da Paula nem a Lori por não poder ter filhos — repliquei.

Por vezes não podemos evitar o sofrimento, mas podemos dominar a nossa reacção. O Willie tem o Jason. A ti, a morte da Paula levou-te a criar uma fundação e conseguiste manter a memória dela viva entre nós. A Lori não pode ter os seus próprios filhos, mas tem-nos a nós — disse.

 

Juliette não trabalhou durante os meses em que se ofereceu para gerar o bebé da Lori e do Nico, porque teve de se submeter à penitência das drogas de fertilidade. A família encarregou-se de a amparar, como era lógico, mas quando essa ilusão foi posta de parte começou a procurar emprego. Foi contratada por um investidor que planeava comprar arte asiática em São Francisco para as suas galerias em Chicago. O Ben tinha cinquenta e sete anos bem conservados e devia ter muito dinheiro, porque era esplêndido como um duque. Tinha intenção de vir com frequência de Chicago e queria que na sua ausência alguém tratasse da importação de objectos preciosos na Califórnia. Na primeira entrevista convidou a Juliette para jantar no melhor restaurante do condado, uma casa vitoriana amarela entre pinheiros e matas de rosas-trepadeiras, e ao fim de alguns copos de vinho branco não só decidiu que Juliette era a assistente ideal, mas além disso ficou embeiçado por ela. Por uma coincidência romanesca, em conversa com ele soube que o Ben conhecera a primeira mulher do Manoli, a chilena que fugira com o professor de ioga no dia do casamento. Contou-lhe que ela vivia na Itália, casada em quartas núpcias com um produtor de azeite.

Havia uma eternidade que a Juliette não se sentia desejada. Um ano antes de morrer, o Manoli deixara de ser o amante apaixonado que a seduzira vinte anos antes, porque a doença já lhe minava os ossos e o ânimo. O Ben propôs-se preencher esse vazio, e nós vimos a Juliette renascer, resplandecente, com um novo brilho nos olhos e


um sorriso travesso nos lábios. A vida dela deu uma volta. Começou a ir a sítios caros, a restaurantes, a passear, a ir ao teatro e à ópera. O Ben cobria o Aristóteles e o Aquiles de prendas e de atenções. Era um amante tão consumado que conseguia fazê-la feliz por telefone; assim, as ausências dele eram suportáveis e quando regressava à Califórnia ela esperava-o ansiosamente. Eu e a Lori aproveitámos uma das nossas tranquilas tertúlias, com chá de jasmim e tâmaras, para fazer uma espera à Juliette, que nos pareceu ter uma atitude furtiva. Mas não foi preciso pressioná-la muito para que nos falasse dos amores com o seu chefe. A campainha do meu alarme criado pela experiência tocou e adverti-a de que não é boa ideia misturar trabalho e amantes, porque se acaba por perder os dois. «Ele está a usar-te, Juliette. E muito prático. Tem assistente e amante pelo mesmo preço», disse-lhe eu. Mas ela já tinha sido apanhada. Havíamos notado que a Juliette atraía homens que tinham muito pouco a oferecer-lhe, casados, muito mais velhos que ela, que viviam longe ou eram incapazes de assumir um compromisso. O Ben podia muito bem ser um deles, porque nos pareceu esquivo. Segundo o Willie, na hedonista Califórnia moderna nenhum homem estaria disposto a assumir a responsabilidade de uma jovem viúva com dois filhos pequenos, mas segundo a astróloga, que decidi consultar em segredo para que não se rissem de mim, era questão de esperar alguns anos e os astros enviariam o companheiro ideal para a Juliette. O Ben adiantara-se aos planetas. Quando regressámos de África a aventura amorosa da Juliette tinha-se complicado. Acontece que a sua fortuna não fora ganha por ele com um bom golpe de vista para a arte, que afinal lhe viera com a mulher. As galerias de arte eram uma diversão para se manter ocupado e na crista da onda social. As viagens frequentes do Ben a São Francisco e as conversas em sussurros ao telefone começavam a despertar suspeitas na mulher.

Não é nada bom metermo-nos com homens casados, Juliette — disse-lhe eu, recordando os disparates que eu própria fizera em jovem e como os pagara caro.

Não é o que estás a pensar, Isabel. Foi inevitável, apaxonámo-nos à primeira vista. Não me seduziu nem me enganou. Isto aconteceu por consentimento mútuo.

Que vão fazer agora?

O Ben está casado há trinta anos, respeita muito a mulher e adora os filhos. Esta foi a primeira infidelidade dele.

Pois eu desconfio que é um adúltero crónico, Juliette, mas esse problema não te diz respeito a ti, e sim à mulher. Tu tens de tomar conta de ti e dos teus filhos.

Para me provar que o seu galã tinha sentimentos honestos, a Juliette mostrou-me as cartas dele, que me pareceram de uma prudência suspeita. Não eram cartas de amor, mas sim documentos notariais.

Está a proteger-se. Talvez tenha medo que o processes por assédio sexual no trabalho, que aqui é ilegal. Qualquer pessoa que lesse estas cartas, incluindo a mulher, julgaria que foste tu que tomaste a iniciativa, que o apanhaste e agora o persegues.

Como podes dizer uma coisa dessas?! — exclamou, alarmada. — O Ben só está à espera do momento mais oportuno para contar à mulher.

Não acredito que venha a fazê-lo, Juliette. Têm filhos e estão juntos há muito tempo. Tenho muita pena por ti, mas ainda tenho mais por ela. Põe-te no lugar dela: é uma mulher já madura com um marido infiel.

Se o Ben não é feliz com ela...

Não se pode ter tudo, Juliette. Ele terá de escolher entre ti e a boa vida que ela lhe proporciona.

Não quero ser a causa de um divórcio. Pedi-lhe que se reconciliasse com a mulher, que façam terapia ou que a convide para uma lua-de-mel na Europa — disse ela, e começou a chorar.

Pensei que o jogo continuaria nestes termos até que a corda rompesse pelo elo mais fraco (a Juliette), mas não insisti, porque ela acabaria por se afastar de nós. Além disso não sou infalível, como me recordou o Willie, e era muito possível que o Ben estivesse apaixonado e se divorciasse para ficar com ela, caso em que eu, por me comportar como uma ave de mau agoiro, perderia aquela amiga de quem gosto como de uma filha.

Tal como receávamos, a mulher do Ben veio de Chicago ver como estavam os ares em São Francisco. Instalou-se no escritório do marido, que teve a prudência de desaparecer com vários pretextos, e em poucas horas a sua experiência e o conhecimento que tinha dele confirmaram as suas piores suspeitas. Decidiu que a rival não podia ser senão a sua bela assistente e enfrentou-a com o peso da sua autoridade de mulher legítima, a confiança que dá o dinheiro e o seu sofrimento, que a Juliette não podia pôr de lado. Despediu-a sem hesitação e advertiu-a de que se tentasse voltar a comunicar com o Ben ela mesma se encarregaria de se vingar. Durante todos esses dias o homem nem apareceu. Limitou-se a oferecer à Juliette, por telefone, uma pequena indemnização, e a pedir-lhe, nem mais nem menos, que ensinasse a sua sucessora antes de partir. A mulher supervisionou esse telefonema e a carta lamentosa, a última da série, com que ele encerrou o episódio.

Dois dias mais tarde o Willie chegou a casa e encontrou-nos, a mim e à Lori, na casa de banho, a apoiar a Juliette, que estava encolhida no chão como uma criança que tivesse levado uma sova. Pusemo-lo ao corrente do que acontecera. A sua opinião foi que aquilo já era de esperar, que não era um drama original, mas que toda a gente recupera de um coração destroçado e que dentro de um ano nos fartaríamos de rir, com um copo de vinho na mão, a recordar o infeliz episódio. No entanto, quando a Juliette lhe falou das ameaças da mulher a coisa deixou de lhe parecer divertida e ofereceu-se para a representar legalmente, porque tinha o direito de a processar. O caso não podia ser mais atractivo para um advogado: uma jovem viúva, mãe de dois meninos, vítima de um milionário que a assedia sexualmente no emprego e depois a despede. Qualquer júri condenaria o Ben. O Willie já tinha uma faca em riste, mas a Juliette nem quis ouvir falar do assunto, porque não era verdade: tinham-se apaixonado e ela não fora nenhuma vítima. Só aceitou que o Willie enviasse uma carta a anunciar que se voltasse a ser ameaçada a justiça interviria. O Willie acrescentou, por conta própria, que se a senhora quisesse resolver o assunto tivesse mão no marido. A carta não a faria desistir se ela fosse o tipo de pessoa capaz de contratar um mafioso para agredir uma rival, mas mostrava que a Juliette não estava desamparada. Menos de uma semana depois, um advogado de Chicago telefonou ao Willie para lhe assegurar que se tratara de um mal-entendido e que as ameaças não se repetiriam.

A Juliette sofreu com tudo isto meses a fio, protegida pelo abraço solidário da família, mas eu não estaria a contar este episódio se ela não me tivesse autorizado e se o prognóstico do Willie não se tivesse concretizado. Contratei-a como minha assistente, começou a estudar espanhol e passou a fazer parte do bordel literário de Sausalito, onde pode trabalhar em paz com a Lori, o Willie e o Tong, que se encarregam de a proteger e de manter à distância qualquer marido infiel que toque a campainha com intenções lúbricas. Menos de um ano mais tarde, uma noite em que toda a família estava reunida à mesa da castelã, a Juliette ergueu o copo para brindar aos amores do passado. «Ao Ben!», dissemos a uma só voz, e ela desatou a rir-se com vontade. Agora estou à espera do alinhamento dos planetas para que apareça o homem de boa índole que fará esta jovem feliz. Ao que parece, isso está para breve.

 

há algum tempo que a Avó Hilda vivia com a filha em Madrid, onde ela e o marido estavam em missão diplomática. No último ano já não veio passar uma temporada connosco, como dantes, porque envelhecera de repente e tinha medo de viajar sozinha. Nos anos 60, no Chile, eu era uma jovem jornalista que fazia malabarismos com três empregos simultâneos para sobreviver, mas o nascimento dos meus filhos não me complicou a vida porque tinha quem me ajudasse. De manhã, antes de ir para o trabalho, deixava-te em casa da minha sogra, a adorável Granny, ou da Avó Hilda, que te recebiam embrulhada num xaile, a dormir, e tomavam conta de ti durante o dia até que eu chegava, à tarde. Depois começaste a ir à escola e a seguir foi a vez do teu irmão, criado por essas avós que o mimaram como ao primogénito de um emir. Após o golpe militar fomos viver para a Venezuela e aquilo de que vocês sentiram mais falta foi dessas duas avós de contos de fadas. A Granny, cuja vida eram os netos, morreu de tristeza um ou dois anos mais tarde. A Avó Hilda enviuvou e foi para a Venezuela, onde vivia a sua filha única, a Hildita, e andava entre a casa dela e a nossa. A minha relação com a Avó Hilda começou quando eu tinha uns dezassete anos. A Hildita foi a primeira namorada do meu irmão Pancho; conheceram-se na escola aos catorze anos, fugiram juntos, casaram-se, tiveram um filho, divorciaram-se, voltaram a casar-se, tiveram uma filha e divor-ciaram-se pela segunda vez. No total passaram mais de uma década a amar-se e a odiar-se, enquanto a Avó Hilda presenciava o lamentável espectáculo sem se meter. Nunca lhe ouvi uma palavra contra o meu irmão, que talvez a merecesse.

A certa altura, a Avó Hilda decidiu que o seu papel na vida era acompanhar a sua pequena família, em que generosamente me incluiu com os meus filhos, e fê-lo na perfeição, graças à sua discrição proverbial e ao seu bom humor. Além disso tinha uma saúde de ferro. Era capaz de ir contigo, com o Nico e com mais meia dúzia de adolescentes em excursão a uma ilha das Caraíbas sem água, onde chegavam de barco cruzando um mar traiçoeiro, perseguidos por meia dúzia de tubarões. O barqueiro deixava-os lá com uma montanha de equipamento de campismo e com sorte lembrava-se de os ir buscar uma ou duas semanas mais tarde. A Avó resistia como um soldado aos mosquitos, às noites de Coca-Cola morna com rum, aos feijões, às agressivas ratazanas que se aninhavam entre os sacos-cama e a outros inconvenientes que eu, vinte anos mais nova, nunca teria suportado. Com a mesma força magnífica, instalava-se à frente da televisão a ver filmes pornográficos. No princípio dos anos 80 tu estudavas Psicologia e passou-te pela cabeça a ideia de te especializares em Sexualidade. Levavas para toda a parte uma maleta de brinquedos eróticos que me pareciam de muito mau gosto, mas nunca me atrevi a dar a minha opinião, porque terias troçado sem compaixão dos meus pruridos. A Avó Hilda sentava-se ao teu lado, a fazer tricô sem sequer olhar para as agulhas e a ver uns vídeos pavorosos em que entravam cães amestrados. Foi um membro activo da nossa ambiciosa companhia de teatro doméstico, cosia disfarces, pintava cenários e fazia os papéis que lhe atribuíssemos, da Madame Butterfly até S. José nas representações de Natal. Com o tempo foi ficando mais pequena e a sua voz tornou-se mais fraca, como a de um passarinho, mas não perdeu o entusiasmo pelas loucuras familiares.

A morte da Avó Hilda tocou-nos a todos, especialmente à filha, que cuidou dela quando piorou rapidamente. Começou a ter pneumonia atrás de pneumonia, uma sequela dos tempos em que foi fumadora, diziam os médicos, e depois foi-se esquecendo da vida. A Hildita entendeu a etapa final da mãe como um regresso à infância e decidiu que, se todos arranjamos paciência para dedicar a uma criança de dois anos, não há razão para que não a tenhamos com uma senhora de oitenta. Tinha o cuidado de lhe lembrar que devia tomar banho, que comesse, que tomasse as suas vitaminas, que fosse para a cama; era obrigada a responder dez vezes seguidas à mesma pergunta e a fingir que estava a ouvi-la quando a velhinha contava uma historieta insignificante e, como uma gravação, repetia as mesmas palavras vezes sem fim. Por fim, a Avó cansou-se de esbracejar numa nebulosa de recordações confusas, do medo de ficar sozinha ou de cair, dos ossos a rangerem e da insistência de rostos e vozes que não conseguia identificar. Um dia deixou de comer. A Hildita telefonou-me de Espanha para me contar a verdadeira batalha que era preciso travar para que comesse um simples iogurte e a única coisa que me passou pela cabeça foi dizer-lhe que não a obrigasse. Fora assim que morrera o meu avô, de falta de apetite, quando lhe pareceu que cem anos já eram vida de mais.

No dia seguinte o Nico apanhou um avião para Madrid. A Avó reconheceu-o imediatamente e, apesar de já não se reconhecer a si mesma no espelho, pediu o batom e propôs-lhe que jogassem às cartas, o que fizeram com a batotice do costume. O Nico conseguiu que bebesse Coca-Cola morna com rum, em homenagem aos tempos passados nas Caraíbas, e daí a dar-lhe uma sopa foi uma meia hora. A visita do neto adoptivo e a promessa de que se engordasse a levaria à Califórnia para fumar marijuana com a Tabra conseguiram o prodígio de que a Avó recomeçasse a comer, embora o apetite não tenha durado mais de um ou dois meses. Quando voltou a declarar guerra de fome, a filha decidiu com grande pena que a mãe tinha todo o direito de partir quando entendesse e da maneira que entendesse. A Avó Hilda, que sempre foi uma mulher baixa e magra, transfor-mou-se nas semanas seguintes num duende minúsculo e orelhudo, tão leve que a brisa da janela quase a fazia levitar. As suas últimas palavras foram: «Passem-me a mala, que a Paula veio visitar-me e não quero deixá-la à espera.»


Cheguei a Madrid poucas horas depois, mas já era tarde de mais para acompanhar a filha nos trâmites da morte. Alguns dias depois regressei à Califórnia com um punhado de cinzas da Avó Hilda numa pequena caixa, para as espalhar no teu bosque, porque ela queria ficar na tua companhia.

 

Comecei estas páginas no ano de 2006. Com o tempo, o meu ritual de 8 de Janeiro complicou-se, porque já não tenho a arrogante certeza da juventude. Lançar-me noutro livro é um assunto tão grave como apaixonar-me, um impulso tresloucado que exige uma dedicação fanática. A cada ano que passa, como perante um novo amor, pergunto a mim mesma se terei forças para o escrever e se isso valerá a pena: há demasiadas páginas inúteis, demasiados amores frustrados. Antigamente embrenhava-me na escrita — e no amor — com a temeridade de quem ignora os riscos, mas agora são precisas várias semanas até perder o receio do ecrã em branco do computador. Que tipo de livro será? Conseguirei chegar ao fim? Não faço estas perguntas em relação ao amor, porque estou há mais de dezoito anos com o mesmo amante e já ultrapassei as dúvidas; agora amo o Willie dia a dia, sem perguntar a mim mesma que tipo de amor é este nem como terminará. Quero pensar que é um amor elegante e que não terá um final vulgar. Talvez o que ele diz seja verdade: que continuaremos de mãos dadas para o outro lado da morte. Só espero que nenhum dos dois se extravie na senilidade e que o outro tenha de cuidar do seu corpo decrépito. O ideal seria vivermos juntos e lúcidos até ao último dia.

Como sempre ao começar um livro, fiz uma limpeza a fundo ao meu tugúrio, arejei-o, mudei as velas do altar, a que os meus netos chamam «dos antepassados», e desfiz-me de caixotes repletos de textos e documentos usados na investigação do projecto do ano passado. Nas estantes que cobrem as paredes só ficaram as minhas primeiras edições em filas apertadas e os retratos dos vivos e dos mortos que me acompanham para toda a parte. Retirei o que pudesse perturbar a inspiração ou distrair-me dessa memória, que exige um espaço claro para se definir. Começava para mim o tempo da solidão e do silêncio. Demoro sempre bastante a começar. Ao princípio a escrita avança entre estertores, é uma máquina enferrujada, e são precisas várias semanas até a história começar a delinear-se. Qualquer distracção espanta a musa da imaginação. De que se alimenta a minha imaginação? Da minha experiência, das recordações, do vasto mundo, das pessoas que conheço e também dos seres e das vozes que trago dentro de mim e me ajudam na viagem de viver e escrever. A minha avó dizia que o espaço está cheio de presenças, do que foi, é e será. É nesse meio transparente que vivem as minhas personagens, mas só sou capaz de as ouvir se eu própria estiver em silêncio. A partir de metade do livro, quando já não sou eu, mas sim outra, a narradora, também consigo vê-las. Surgem das sombras e aparecem-me de corpo inteiro, com as suas vozes e o seu cheiro, assaltam-me no meu tugúrio, invadem os meus sonhos, preenchem os meus dias e chegam a perseguir-me na rua. Não é o que acontece quando escrevo memórias, em que os protagonistas são pessoas da minha família, vivas, cheias de opiniões e de conflitos. Neste caso a intriga não é um exercício de imaginação, mas uma tentativa de me aproximar da verdade.

Havia um sentimento de frustração, que já se arrastava há muito tempo, na maior parte do país: o futuro do mundo parecia denso e escuro como breu. A escalada da violência no Próximo Oriente era pavorosa e a condenação internacional dos Americanos era unânime, mas o presidente Bush não dava ouvidos a ninguém, divagava como um louco, desligado da realidade e rodeado de sicofantas. Já não era possível ocultar o descalabro da guerra no Iraque, apesar de até então a imprensa apenas mostrar imagens assépticas do que estava a acontecer: tanques, luzes verdes no horizonte, soldados a correrem em aldeias desocupadas e de vez em quando uma explosão num mercado, onde se supunha que as vítimas eram iraquianas, porque não as víamos de perto. Nada de sangue nem de crianças desmembradas. Os correspondentes seguiam as tropas e filtravam a informação através do aparelho militar, mas na Internet qualquer pessoa que quisesse informar-se podia ler a imprensa do resto do mundo, e até ver a televisão árabe. Alguns jornalistas mais destemidos — e todos os cartunistas — denunciavam a incompetência do governo. As imagens da prisão de Abu Ghraib deram a volta ao mundo e em Guantánamo os prisioneiros, detidos indefinidamente sem acusação, morriam misteriosamente, suicidavam-se ou agonizavam em greve de fome, alimentados à força por um tubo até ao estômago. Aconteceu aquilo que há pouco tempo ninguém imaginaria dos Estados Unidos, que se consideram a vanguarda da democracia e da justiça: o direito de habeas corpus dos detidos foi suspenso e a tortura legalizada. Imaginei que a população reagiria em massa, mas quase ninguém deu ao assunto a importância que ele merecia. Eu nasci no Chile, onde durante dezasseis anos a tortura esteve institucionalizada; conheço os danos irreparáveis que isso deixa na alma das vítimas, dos algozes e do resto da população, convertida em cúmplice. Segundo o Willie, os Estados Unidos nunca tinham estado tão divididos desde a Guerra do Vietname. Os republicanos controlavam tudo, e, se os democratas não ganhassem as eleições parlamentares de Novembro, estávamos fritos. «Como é possível que não ganhem, perguntava eu a mim mesma, se a popularidade de Bush está abaixo dos valores de Nixon nos seus piores tempos?»

A mais angustiada era a Tabra. Em jovem saíra dos Estados Unidos porque não suportara a Guerra do Vietname; agora estava disposta a fazer o mesmo, e inclusivamente a renunciar à cidadania nor-te-americana. O seu sonho era acabar os seus dias na Costa Rica, mas muitos estrangeiros tinham tido a mesma ideia e os preços das casas haviam subido acima das suas possibilidades. Foi assim que decidiu ir viver para o Bali, onde poderia continuar com o seu negócio com os ourives e os artesãos locais. Deixaria um ou dois representantes de vendas nos Estados Unidos e o resto poderia fazer-se pela Internet. Não falávamos de mais nada nas nossas caminhadas. Ela via sinais fatalistas em toda a parte, dos noticiários na televisão até ao mercúrio nos salmões.

E achas que no Bali vai ser diferente? — perguntei-lhe eu. — Para onde quer que vás os salmões terão mercúrio, Tabra. Não se pode escapar.

Pelo menos lá não serei cúmplice dos crimes deste país. Tu fugiste do Chile porque não querias viver sob uma ditadura. Como é possível que não percebas que eu não queira viver aqui?

Isto não é uma ditadura.

Mas pode vir a sê-lo mais cedo do que imaginas. O que me disse o teu tio Ramón é verdade: os povos têm os governos que merecem. E esse o inconveniente da democracia. Tu também devias partir, antes que seja tarde de mais.

A minha família vive aqui, e custou-me muito reuni-la, Tabra, e agora quero gozá-la, porque sei que não vai durar muito. A vida tende a separar-nos e temos de fazer um grande esforço para permanecermos juntos. Seja como for, não me parece que tenhamos chegado a um ponto em que seja necessário partir deste país. Ainda é possível mudar a situação. O Bush não é eterno.

Nesse caso, boa sorte. Por mim, vou instalar-me num lugar pacífico, para onde possas ir com a tua família quando precisares.

Comecei a despedir-me enquanto ela ia desmantelando a oficina que tantos anos levara a pôr de pé. Teve a ajuda do filho, o Tongi, que deixou o trabalho dele para a ajudar nos últimos meses. Despediu um a um os refugiados, com quem nalguns casos já trabalhava há muito tempo, preocupada com eles, porque sabia que alguns teriam muita dificuldade em encontrar outro emprego. Desfez-se da maior parte das suas colecções de arte, excepto de alguns quadros valiosos que guardou em minha casa. Não podia cortar os laços com os Estados Unidos, teria de regressar pelo menos uma ou duas vezes por ano para ver o filho e para supervisionar os negócios, porque as suas jóias exigem um mercado maior que as praias de turistas num qualquer paraíso da Ásia. Assegurei-lhe que teria sempre um lugar em nossa casa, de maneira que esvaziou a dela e preparou-se para a vender.

Estes preparativos e as tristes caminhadas com a Tabra contagiaram-me num delírio de incerteza. Chegava a casa e abraçava o Wil-lie, perturbada. Talvez a ideia de investirmos as nossas poupanças em moedas de ouro, de as cosermos nas bainhas das saias e de nos prepararmos para fugir não fosse assim tão má. «De que moedas de ouro estás tu a falar?», perguntava-me o Willie.

 

Andrea entrou na adolescência de um dia para o outro. Certa noite de Novembro apareceu na cozinha, onde a família estava reunida, com lentes de contacto, os lábios pintados, um vestido branco comprido, umas sandálias prateadas e uns brincos que a Ta-bra escolhera para cantar no coro do colégio na festa de Natal. Não reconhecemos a bronzeada beleza de Ipanema, sensual e com ar distante e misterioso. Estávamos habituados a vê-la de calças de ganga coçadas, botas de explorador e um livro nas mãos. Nunca tínhamos visto a jovem que nos sorria da porta. Quando o Nico, habitualmente adepto de uma serenidade zen de que muito troçávamos, se apercebeu de quem se tratava tivemos de o consolar pela perda da menina desastrada que criara. A Lori, que fora com a Andrea comprar o vestido e a maquilhagem, era a única que conhecia o segredo da transformação. Enquanto procurávamos pôr de lado a impressão, a Lori tirou uma série de fotografias à Andrea, umas com a sua cabeleira cor de mel-escuro solta sobre os ombros, outras com o cabelo apanhado, em poses de manequim que na realidade eram de afectação e troça.

A miúda estava vermelha como se tivesse apanhado bastante sol e com os olhos muito brilhantes. Todos os outros tinham a palidez própria de Novembro. Além disso há vários dias que andava com uma tosse de tísica. O Nico quis tirar uma fotografia com ela ao colo, como quando tinha cinco anos e era um pato sem penas com óculos de alquimista e a minha camisa de noite cor-de-rosa, que usava por cima da roupa normal. Quando lhe tocou sentiu que estava muito quente. A Lori pôs-lhe o termómetro e a pequena festa familiar acabou da pior maneira, porque a Andrea estava a arder em febre. Nas horas seguintes começou a delirar. Procuraram fazer baixar a temperatura com banhos de água fria, mas por fim tiveram de a levar a correr para as urgências do hospital, onde desconfiaram que tinha uma pneumonia. Ninguém sabe há quanto tempo andava a incubá-la, mas não tinha dito uma palavra, fiel ao seu carácter estóico e introvertido. «Doía-me o peito, mas pensei que era por me estar a desenvolver», foi a sua explicação.

A Célia e a Sally vieram a correr, e a seguir todos os outros. A Andrea ficou internada no hospital do condado, rodeada pela família. Todos vigiávamos como falcões para impedir que lhe dessem algum dos medicamentos da lista negra da porfiria. Quando a vi naquela cama de ferro, com os olhos fechados, as pálpebras transparentes, cada vez mais pálida, a respirar com dificuldade e ligada a sondas e a cabos, voltaram-me as recordações mais cruéis da tua doença em Madrid. Tal como a Andrea, entraste no hospital com uma constipação mal curada, mas quando saíste, meses mais tarde, já não eras tu, mas uma boneca inerte cuja maior esperança era uma morte doce. O Nico, tranquilo, fez-me ver que as circunstâncias eram diferentes. Tu andavas há vários dias com dores de estômago terríveis, sintomas de uma crise de porfiria, coisa que a Andrea não tinha. Decidimos que para prevenir alguma negligência ou erro médico a minha neta nunca ficaria sozinha. Em Madrid, onde a burocracia do hospital se apoderou de ti sem explicações, não pudemos fazer isso. Eu e o teu marido aguardámos no corredor meses a fio sem saber o que se passava do outro lado das pesadas portas da unidade de cuidados intensivos.

O quarto da Andrea no hospital estava cheio. O Nico e a Lori, a Célia e a Sally, eu própria, instalámo-nos ao lado dela. Depois chegaram a Juliette, as mães da Sabrina, os outros familiares e alguns amigos. Mantínhamo-nos ligados através de quinze telemóveis, e além disso eu todos os dias telefonava aos meus pais e à Pia, para o Chile, para que nos fizessem companhia ao longe. O Nico dividiu a lista de medicamentos proibidos e as instruções para cada eventualidade. A tua dádiva, Paula, foi que estávamos preparados, não fomos apanhados de surpresa. A nossa médica, a Cheri Forrester, advertiu o pessoal do piso de que se armasse de paciência, porque aquela menina vinha com a tribo dela. Enquanto a enfermeira picava a Andrea em busca de uma veia para lhe pôr o soro tinha onze pessoas à volta da cama dela a observarem-na. «Por favor, não entoem cânticos», disse a mulher. Desatámos a rir em coro. «Vocês parecem o tipo de gente que é capaz disso», acrescentou, preocupada.

Começou a vigília, dia e noite. Nunca havia menos de dois ou três de nós no quarto. Poucos foram trabalhar durante esse tempo. Os que não faziam turnos no hospital cuidavam das outras crianças e dos cães — o Poncho, o Mack e sobretudo a Olivia, que estava com os nervos em franja por se ver relegada para segundo plano —, mantinham as casas a funcionar e levavam comida ao hospital para alimentar o exército. Durante duas semanas, a Lori assumiu com naturalidade o papel de capitão, que ninguém tentou roubar-lhe, porque fosse como fosse é a gerente da família e não sei o que faríamos sem ela. Ninguém tem mais influência nem mais dedicação que a Lori. Criada em Nova Iorque, é a única com um carácter suficientemente intrépido para não se deixar intimidar pelos médicos e pelas enfermeiras, para preencher impressos de dez páginas e exigir explicações. Nos últimos anos temos superado os obstáculos dos primeiros tempos; a Lori é uma verdadeira filha para mim, minha confidente, o meu braço direito na fundação, e tenho visto como se está a transformar aos poucos na matriarca. Em breve será ela a presidir à mesa da castelã.

Ao princípio a Andrea ia-se desgastando com o passar dos dias, porque não lhe podiam administrar alguns dos antibióticos que costumam usar-se nestes casos, o que prolongou a pneumonia mais do que o razoável, mas a Dr.a Cheri, que se manteve vigilante, assegurou-nos que não havia qualquer indicação de porfiria nas fezes nem na urina. A Andrea tinha momentos de animação, quando recebia a visita dos irmãos, dos meninos gregos ou de alguma colega do colégio, mas passava o resto do tempo a dormir e a tossir de mãos dadas com um dos seus pais ou com a avó. Por fim, na segunda sexta-feira, conseguiu vencer a febre e acordou com os olhos vivos e com vontade de comer. Foi então que respirámos aliviados.

A família andava há mais de dez anos nessa dança de escaramuças em que costumam acabar os divórcios, numa tensão esgotante. A relação entre os casais de pais tinha altos e baixos, com dificuldades em chegarem a acordo em relação aos pormenores da educação dos filhos que tinham em comum, mas à medida que eles se forem distanciando de casa para fazerem a sua própria vida terão menos razões para se enfrentarem e chegará o dia em que deixarão de ter razões para se encontrarem. Não falta muito para que isso aconteça. Apesar dos inconvenientes que tiveram de suportar, podem felicitar-se mutuamente: criaram três crianças felizes e simpáticas, bem--comportadas e com boas notas na escola, que até ao momento não deram qualquer problema sério. Durante as duas semanas que durou a pneumonia da Andrea vivi a ilusão de uma família unida porque me pareceu que as tensões desapareciam junto da cama da menina. Mas nestas histórias não há finais perfeitos. Cada um faz o melhor que pode, e é tudo.

A Andrea saiu do hospital com menos cinco quilos, branca como cera, mas mais ou menos curada da infecção. Passou outras duas semanas em convalescença em casa e recuperou a tempo de participar no espectáculo do coro. Sentados na plateia, vimo-la entrar a cantar como um anjo numa longa fila de meninas que foram ocupando o palco. O vestido branco estava-lhe largo como um farrapo e as sandálias pareciam querer cair-lhe dos pés, mas todos concordámos que nunca a tínhamos visto mais bonita. Toda a tribo ali esteve para a aplaudir e verifiquei, mais uma vez, que nas emergências o que não é essencial, isto é, quase tudo, vai borda fora para que se possa continuar a navegar. No fim, depois de alijarmos a carga e de fazermos as contas, a única coisa que ficou foi o carinho.

 

chegou Dezembro e o panorama mudou, tanto para a nossa tribo como para o país. A Tabra foi para o Bali; no Chile, os meus pais estão um com oitenta e cinco e o outro com noventa anos; o Nico chegou aos quarenta, finalmente, como diz a Lori, e é um homem maduro; os meus netos estão a entrar em pleno na adolescência e em breve começarão a afastar-se da avó obsessiva que continua a chamar-lhes «meus meninos». A Olívia ficou grisalha e já pensa duas vezes antes de subir a colina quando a levamos a passear. O Willie está a acabar o segundo livro e eu continuo a lavrar o chão duro das minhas recordações para escrever estas memórias. Os democratas ganharam as eleições parlamentares e agora dominam a Câmara dos Representantes e o Senado; todos esperamos que ponham um freio aos excessos de Bush, consigam retirar as tropas americanas do Iraque, nem que seja aos poucos e com o rabo entre as pernas, e evitem novas guerras. Quanto ao Chile, também há novidades: em Março, Michelle Bachelet assumiu a presidência; foi a primeira mulher a ocupar esse cargo no nosso país e está a fazê-lo muito bem. E cirurgiã, pediatra, socialista, mãe solteira, agnóstica e filha de um general que morreu torturado porque não se vergou ao golpe militar de 1973. Além disso, o general Augusto Pinochet morreu tranquilamente, na sua cama, encerrando assim um dos capítulos mais trágicos da história do nosso país. Com grande sentido de oportunidade, morreu justamente no Dia dos Direitos Humanos.

   

A escrita deste livro constituiu uma experiência estranha. Não confiei apenas nas minhas recordações e na correspondência com a minha mãe, mas também falei com a minha família. Como escrevo em espanhol, metade da família não pôde lê-lo antes de ter sido traduzido por Margaret Sayers Peden, Petch, uma senhora adorável de oitenta anos que vive no Missouri e que traduziu todos os meus livros, menos o primeiro. Com paciência de arqueólogo, a Petch estudou as diferentes camadas do manuscrito, revendo cada linha mil vezes e fazendo todas as emendas que lhe pedi. Com o texto em inglês, a família pôde comparar as diferentes versões, que nem sempre coincidiam com a minha. O Harleigh, o filho mais novo do Willie, decidiu que preferia não entrar no livro, de maneira que tive de o reescrever. É uma pena, porque é bastante pitoresco e faz parte da tribo; excluí-lo parece-me um pouco como fazer batota, mas não tenho o direito de me apoderar da vida de outra pessoa sem autorização. Tivemos longas conversas em que vencemos o medo de expressar o que sentimos, tanto o mau como o bom; às vezes é mais difícil mostrar afecto que rancor. O que é a verdade? Como diz o Willie, chega uma altura em que temos de esquecer a verdade e de nos concentrar nos factos. Como narradora, digo que temos de esquecer os factos e de nos concentrar na verdade. Agora, que estou a chegar ao fim, espero que este exercício de ordenar as recordações seja benéfico para todos. Depois, suavemente, as águas voltarão a aquietar-se, o lodo assentará no fundo e o que ficará será a transparência.

A minha vida e a do Willie melhorou desde os tempos das maratonas de terapia, dos conjuros mágicos para pagar as contas e da missão de resgatar de si mesmos os que não queriam ser resgatados. De momento o horizonte parece claro. A menos que haja um cataclismo, possibilidade que não deve ser descartada, temos liberdade para desfrutar dos anos que nos restam de barriga para o ar.

Parece-me que estamos em idade de nos reformarmos — disse certa noite ao Willie.

De maneira nenhuma. Eu comecei agora a escrever, e não sei que faríamos contigo se não escrevesses. Não havia quem te aguentasse.


Estou a falar a sério. Já há um século que trabalho. Preciso de um ano sabático.

O que vamos fazer é levar as coisas com mais tranquilidade — decidiu.

Espantado com a ameaça do hipotético ano de ócio, o Willie optou por me convidar para umas férias no deserto. Achou que uma semana sem nada que fazer e um ambiente isolado bastariam para me fazer mudar de opinião. O hotel, que segundo proclamava a agência de viagens era de luxo, parecia mais um prostíbulo fora de moda, onde Toulouse-Lautrec se teria sentido à vontade. Chegámos ao local por uma auto-estrada interminável, uma risca a direito numa paisagem nua, salpicada de campos de golfe com pasto verde sob um sol branco, incandescente, que às oito da noite ainda queimava. Não soprava sequer uma aragem, nem se via um único pássaro a voar. Cada gota de água era transportada de longe e cada planta crescia graças ao esforço desmedido dos humildes jardineiros latinos, que mantinham em funcionamento a complexa maquinaria daquele paraíso ilusório e que durante a noite desapareciam como espectros.

Por sorte, o Willie teve um ataque de alergia quase mortal por causa dos cortinados poeirentos, de maneira que tivemos de ir para outro lugar. Chegámos assim a umas estranhas termas, de que nunca tínhamos ouvido falar, onde, entre outros serviços, ofereciam banhos de lama. Numas tinas de ferro fundas havia uma substância espessa e fétida que fazia bolhas ao ferver. Uma índia mexicana, baixinha e com o cabelo queimado por uma permanente ordinária, mostrou-nos as instalações. Não tinha mais de vinte anos, mas surpreendeu-nos pelo seu atrevimento.

Para que serve isto? — perguntei-lhe em espanhol apontando para a lama.

Não sei, são coisas de que os americanos gostam.

Parecem fezes.

São fezes, mas não de pessoas. São de animais — respondeu-me com naturalidade.


A rapariga não tirava os olhos do Willie, e quando já íamos embora perguntou-lhe se era o advogado Gordon, de São Francisco.

Não se lembra de mim, doutor? Sou Magdalena Pacheco.

Magdalena?! Como mudaste, rapariga!

É por causa da permanente — disse ela, corando. Abraçaram-se, eufóricos. Era filha de Jovito Pacheco, o cliente de

Willie que morrera no acidente de construção anos antes. Nessa noite fomos jantar com ela a um restaurante mexicano, onde o seu irmão mais velho, Socorro, era o rei da cozinha. Era casado e já tinha um primeiro filho, um bebé de três meses a quem haviam dado o nome de Jovito, como o do avô. O outro irmão trabalhava no Norte, nas vinhas do vale de Napa. A Magdalena tinha um namorado salvadorenho, mecânico de automóveis, e disse-nos que marcaria o dia do casamento assim que a família pudesse reunir-se na sua aldeia no México, porque prometera à mãe que casaria de branco à frente de toda a parentela. O Willie assegurou-lhe que se fôssemos convidados também iríamos.

Os Pacheco contaram-nos que uma manhã, um ou dois anos antes, tinham dado com a avó morta e lhe haviam feito um funeral épico, com um caixão de acaju que os netos haviam levado numa camioneta desde San Diego. Pelos vistos não tinham dificuldade em cruzar a fronteira em nenhum dos sentidos, nem sequer com um pesado caixão de morto. A mãe tinha uma mercearia e vivia com o irmão mais novo, o cego, que já tinha catorze anos. A caminho do restaurante, o Willie lembrou-me o caso dos Pacheco, que se arrastara por dois anos nos tribunais de São Francisco. Eu nunca o esquecera, porque troçávamos muitas vezes da sua frase altissonante no tribunal: «Vão permitir que o advogado de defesa atire esta pobre família para a lixeira da história?» O Willie foi apelando de juiz em juiz até que por fim conseguiu uma modesta indemnização para a família. Ao longo da sua carreira vira dilapidar pequenas fortunas porque os clientes beneficiados, que nunca tinham tido um tostão no bolso, perdiam a cabeça quando se sentiam ricos, começavam a ostentar e atraíam como moscas parentes afastados, amigos esquecidos e burlões, dispostos a roubar-lhes até ao último cêntimo. A indemnização dos Pacheco estava longe de ser uma fortuna, mas traduzida em pesos mexicanos ajudou-os a sair da miséria. Por indicação do Willie, a avó decidiu investir metade numa pequena loja e o resto foi depositado numa conta em nome dos filhos de Jovito nos Estados Unidos, longe de oportunistas e parentes pedinchões. Já passara mais de uma década desde a morte do pai e durante esse tempo todos os fdhos, menos o mais jovem, se foram despedindo, um a um, da avó e da mãe e abandonando a aldeola para irem trabalhar para a Califórnia. Cada um trazia num papelito o nome e o número de telefone do Willie para receber a parte do dinheiro que lhe cabia, e que lhes serviu para começarem uma vida em melhores condições que a maior parte dos imigrantes ilegais, que em geral chegavam apenas com a fome e os sonhos. Assim se cumpriu o objectivo do Willie quando os levou à Disneylândia em crianças.

Graças a Socorro e a Magdalena conseguimos a melhor cabana das termas, uma casinha impecável de adobe e telhas, no mais puro estilo mexicano, com uma pequena cozinha, um pátio e um jacuzzi ao ar livre. Ali nos encerrámos depois de comprarmos provisões para três dias. Há muito que eu e o Willie não passávamos uns dias sozinhos e sem nada que fazer, de maneira que gastámos as primeiras horas em tarefas inventadas. Com os utensílios mínimos de cozinha que ali havia, e que serviam apenas para improvisar pequenos--almoços, o Willie decidiu fazer rabo de boi, uma daquelas receitas demoradas do Velho Mundo que exigem vários recipientes. O guisado encheu o ar de um aroma poderoso, que espantou os pássaros e atraiu os coiotes. Como tinha de ficar no frigorífico até ao dia seguinte para se tirar a gordura, que fica coalhada ao de cima, quando caiu a noite jantámos pão, vinho e queijo, muito juntos na rede do pátio, enquanto a matilha de coiotes lambia os focinhos do outro lado do muro de pedra que protegia a nossa pequena casa.

 

A noite no deserto tem a profundidade insondável do fundo do mar. As estrelas, infinitas, bordam um céu negro sem Lua, e a terra, ao arrefecer, solta um bafo quente, como um hálito de fera. Acendemos três velas grossas, que reflectiam a sua luz cerimonial sobre a água do jacuzzi. Pouco a pouco o silêncio foi-nos libertando da tensão acumulada em tanta lida e labuta. Ao meu lado há sempre um capataz de chicote na mão a criticar-me e a dar-me ordens: «Levanta-te, mulher! São seis da manhã e tens de lavar o cabelo e de ir passear a cadela. Não comas pão, ou achas que vais perder peso por magia? Não te esqueças que o teu pai era obeso! Tens de reescrever o teu discurso, que está cheio de estereótipos, e o teu romancezito é um desastre. Há vinte e cinco anos que escreves e ainda não aprendeste nada!» E eu a dar-lhe, sempre com a mesma cantilena. Tu dizias-me que aprendesse a gostar um pouco de mim mesma, que não tratava o meu pior inimigo como me tratava a mim própria. «Que fazias tu se alguém entrasse em tua casa e te insultasse dessa maneira?», perguntavas-me. Dizia-lhe que fosse para o diabo e corria com ele à paulada, é claro, mas essa táctica nem sempre resulta com o capataz, porque ele é dissimulado e astuto. Felizmente, por uma vez ficou no hotelzito de Toulouse-Lautrec e não veio incomodar-me na cabana.

Passámos uma hora, talvez duas, em silêncio. Não sei o que ia pela cabeça e pelo coração do Willie, mas imaginei que naquela rede me desprendia, pedaço a pedaço, do meu elmo enferrujado, da minha cota de malha, da minha couraça, das minhas botas gastas e das armas patéticas com que me tenho defendido, a mim e à minha família, nem sempre com êxito, dos caprichos do destino. Desde a tua morte, Paula, perco-me muitas vezes no teu bosque, em tranquilas excursões em que me acompanhas e convidas a perscrutar a minha alma. Ao longo de todos estes anos tenho a impressão de que mais cavernas seladas se foram abrindo e com a tua ajuda a luz foi entrando. Às vezes deixo-me vencer pela nostalgia e sinto-me invadir por uma dor surda, mas isso não dura muito. Em breve te pressinto a caminhar ao meu lado e sinto o consolo do rumorejar das sequóias e a fragrância do alecrim e do louro. Imagino que seria bom morrer com o Willie naquele lugar encantado, velhos, mas com pleno domínio da nossa vida e da nossa morte. Lado a lado, de mãos dadas, sobre a terra macia, abandonaríamos o corpo para nos reunirmos aos espíritos. Talvez tu e a Jennifer estejam à nossa espera; se vieste buscar a Avó Hilda, espero que não te esqueças de fazer o mesmo comigo. Estes passeios fazem-me muito bem. Quando terminam sinto-me invencível e grata pela tremenda abundância que existe na minha vida: amor, família, trabalho, saúde, uma grande alegria. A experiência dessa noite no deserto foi diferente: não senti a força que tu me dás no bosque, mas sim abandono. As minhas antigas capas de escamas duras foram-se desprendendo e senti o coração vulnerável e os ossos amolecerem.

Por volta da meia-noite, quando faltava pouco para as velas acabarem, despimo-nos e metemo-nos na água quente do jacuzzi. O Willie já não é o mesmo que me atraiu à primeira vista quando nos conhecemos, há vinte anos. Continua a irradiar força e o seu sorriso não mudou, mas é um homem sofrido, com a pele demasiado branca, penteado de maneira a disfarçar a calvície, o azul dos olhos mais pálido. E eu tenho marcados no rosto os lutos e as perdas do passado, estou alguns centímetros mais baixa e o corpo que repousava na água era o de uma mulher madura que nunca foi uma beldade. Mas nenhum dos dois julgava ou comparava, nem sequer recordávamos como éramos na juventude: alcançámos o estado de perfeita visibilidade que se consegue com a convivência. Dormimos juntos tanto tempo que já não temos capacidade para nos vermos. Como dois cegos, tocamo-nos, cheiramo-nos, percebemos a presença do outro como percebemos o ar.

O Willie disse-me que eu sou a sua alma, que me esperara e procurara os primeiros cinquenta anos da sua existência, certo de que não morreria sem me encontrar. Não é homem que desperdice frases bonitas, é brusco e não gosta de sentimentalismos, por isso cada palavra sua, medida, pensada, me cai em cima como uma gota de chuva. Compreendi que também ele entrara nessa zona misteriosa da mais secreta entrega, que também ele se libertara da armadura e, como eu, se abria. Disse-lhe, num fio de voz, porque se me fechara o peito, que também eu, sem o saber, o procurara às cegas. Descrevi nos meus livros o amor romântico, esse em que tudo se dá, sem guardar nada, que sempre soube que existia, embora talvez não estivesse ao meu alcance. O único vislumbre dessa entrega sem reservas foi a que tive contigo e com o teu irmão quando ainda eram muito pequenos; só convosco senti que éramos um único espírito em corpos separados. Agora também o sinto com o Willie. Amei outros homens, como sabes, mas mesmo nas paixões mais irracionais sempre me protegi. Desde pequena que decidi que seria eu a olhar por mim mesma. Naquelas brincadeiras na cave da casa dos meus avós, onde fui criada, nunca fui a donzela protegida pelo príncipe, mas sim a amazona que se batia com o dragão para salvar uma aldeia. Mas agora, disse eu ao Willie, só queria apoiar a cabeça no seu ombro e pedir-lhe que me protegesse, como supostamente fazem os homens com as mulheres quando as amam.

Parece-te que não tomo conta de ti? — perguntou-me, surpreendido.

Sim, Willie, tu tomas conta de tudo o que é prático, mas eu estava a falar de alguma coisa mais romântica, não sei exactamente de quê. Suponho que quero ser a donzela do conto e que tu sejas o príncipe que me salva. Já estou farta de matar dragões.

Sou o príncipe há quase vinte anos e tu nem te apercebeste disso, donzela.

Quando nos conhecemos combinámos que eu me arranjaria sozinha.

Combinámos?

Não por estas palavras, mas isso ficou subentendido: seríamos companheiros. Mas essa história dos companheiros agora parece-me coisa de guerrilha. Para variar, gostava de saber o que é ser uma esposa frágil.

Ah! A escandinava da escola de dança tinha razão: é sempre o homem que guia — riu-se ele.

Respondi-lhe com uma palmada no peito, empurrou-me e acabámos debaixo de água. O Willie conhece-me melhor que eu a mim própria, mas mesmo assim ama-me. Temo-nos um ao outro, e isso é uma boa razão para celebrar.

Há cada uma! — exclamou quando voltou à superfície. — Eu à tua espera no meu canto, impaciente porque não te aproximavas, e tu à espera que eu te convidasse para dançar. Tanta terapia para isto?

Sem terapia nunca teria admitido este anseio de que me ampares e protejas. Que mau gosto! Já reparaste que isto contradiz uma vida inteira de feminismo?

Não tem nada a ver com isso. Precisamos de mais intimidade, calma, tempo para nós. Temos uma vida demasiado agitada. Vem comigo para um lugar sossegado — sussurrou o Willie, atraindo-me a ele.

Um lugar sossegado... Isso agrada-me.

Com o nariz enfiado no pescoço dele, agradeci a sorte de ter tropeçado por puro acaso no amor e por tantos anos mais tarde ele preservar o seu brilho. Abraçados, leves na água quente, iluminados pela luz ambarina das velas, senti que me fundia nesse homem com quem percorrera um caminho longo e abrupto, em que havíamos tropeçado, caído, nos tínhamos levantado de novo, entre zangas e reconciliações, mas sem nunca nos traírmos., as dores e as alegrias partilhadas já eram o nosso destino.

 

 

                                                                  Isabel Allende

 

 

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