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A SOMBRA DAS MOÇAS EM FLÔR / Marcel Proust
A SOMBRA DAS MOÇAS EM FLÔR / Marcel Proust

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Em Busca do Tempo Perdido

A SOMBRA DAS MOÇAS EM FLÔR

 

            Quando se cuidou de receber ao jantar, pela primeira vez, o Sr. de Norpois, tendo minha mãe lamentado que o professor Cottard estivesse viajando e que ela própria tivesse deixado completamente de freqüentar Swann, pois ambos teriam sem dúvida interessado o antigo embaixador, meu pai respondeu que um conviva eminente, um sábio ilustre, como Cottard, jamais poderia fazer má figura num jantar, ao passo que Swann, com sua ostentação, sua mania de alardear aos quatro ventos as suas relações, era um vulgar fanfarrão que o marquês de Norpois sem dúvida teria achado, conforme sua própria expressão, "nauseante". Ora, a resposta de meu pai necessita de algumas palavras de explicação, já que algumas pessoas talvez se lembrem de um Cottard bastante medíocre e de um Swann de extrema delicadeza, em matéria mundana, primor de modéstia e discrição. Mas, pelo que diz respeito a este, ocorrera que o "filho de Swann", e também o Swann do Jockey, adquirira uma personalidade nova (e que não deveria ser a última), a de marido de Odette. Afeiçoando às humildes ambições dessa mulher o instinto, o desejo e a habilidade de que sempre fora dotado, empenhara-se em construir, bem por baixo da antiga, uma posição nova e apropriada à companheira que a ocuparia com ele. Ora, mostrava-se aí um novo homem. Visto que (sempre continuando a freqüentar sozinho os amigos pessoais, aos quais não queria impor Odette quando não lhe pedissem espontaneamente para conhecê-la) era uma segunda vida que ele começava em comum com sua mulher, em meio a criaturas novas, ainda se compreenderia que, para avaliar o nível destas e, conseqüentemente, o prazer de amor-próprio que poderia sentir em recebê-las, ele se servisse, como ponto de comparação, não das pessoas mais brilhantes que formavam sua sociedade antes do casamento, mas das relações anteriores de Odette. Porém, mesmo quando se sabia que era com funcionários deselegantes, com mulheres de má fama, adorno dos bailes de ministérios, que ele desejava ligar-se, ficava-se espantado por ouvi-lo proclamar em alto e bom som (ele que outrora e, mesmo ainda hoje, dissimulava tão graciosamente um convite de Twickenham ou do Palácio de Buckingham) que a mulher de um subchefe de gabinete viera fazer uma visita à Sra. Swann.

            Dir-se-á talvez que aquilo se devia a simplicidade do Swann elegante não passara nele de uma forma mais requintada de vaidade e que, como certos judeus, o antigo amigo de meus pais pudera freqüentar, de cada vez, os estágios sucessivos por onde haviam passado os membros de sua raça, desde o mais ingênuo esnobismo e a patifaria mais grosseira, até a mais fina polidez. Mas o motivo principal, aplicável à humanidade como o era que nossas próprias virtudes não são algo livre, flutuante, de que consegue a disponibilidade permanente; elas acabam por se associar tão estreitamente à nosso espírito, às ações perante as quais nos impusemos o dever de executar que, se nos aparece uma atividade de outra ordem, esta nos pega totalmente prevenidos e sem que tenhamos sequer a idéia de que poderia nos valer praticar essas mesmas virtudes. Swann, solícito para com essas novas relações, citando-as com orgulho, era como aqueles grandes artistas modestos, ou sozinhos que, se, no fim da vida, se dedicam à culinária ou à jardinagem, exigência de ingênua satisfação com os elogios conferidos a seus pratos ou platibandas; quais não admitem a crítica que aceitam facilmente quanto a suas obras então que, ofertando de graça uma de suas telas, não podem perder quarenta sons no dominó sem mau humor.

            Quanto ao professor Cottard, voltaremos a vê-lo com a patroa, longe, bem mais distante, no castelo de Ia Raspeliere. No momento, será bastante à ele, observar primeiro o seguinte: quanto a Swann, a rigor, a mudar e surpreender, pois que já estava efetivada, sem que dela eu desconfiasse, o pai de Gilberte nos Champs-Élysées, onde, aliás, ele não me dirigia a palato podia exibir, diante de mim, suas relações políticas (é verdade que, senão feito, eu talvez não percebesse logo a sua vaidade, pois a idéia que nós faz uma pessoa conhecida há tanto tempo como que nos tapa os olhos e os da minha mãe, durante três anos, não distinguiu a pintura que uma das sob punha nos lábios, como se tivesse sido dissolvida inteira e invisivelmente líqüido; até o dia em que uma porção suplementar, ou alguma outra causa fabricou o fenômeno chamado supersaturação; toda a pintura não percebida se cristalizou e minha mãe, diante daquele súbito deboche de cores, de claridade, teriam feito em Combray, que aquilo era uma vergonha e rompeu quase total as relações com a sobrinha). Mas ao contrário, no caso de Cottard, a época - o vimos assistir aos começos de Swann em casa dos Verdurin já estava bem doente; ora, as honrarias, os títulos oficiais, chegam com os anos. Em segundos uma pessoa pode ser iletrada, fazer trocadilhos idiotas e possuir um dom que nenhuma cultura geral substitui, como o do grande estrategista ou do clínico. De fato, não era apenas como um prático obscuro, que com o tempo tornara-se uma celebridade na Europa, que seus confrades consideravam Cottard mais inteligentes dentre os jovens médicos declararam-ao menos durante anos, pois as modas mudam, tendo nascido elas próprias da necessidade conforme as danças-que, se alguma vez caíssem doentes, Cottard era o único mestre à confiarem a carcaça. É claro que preferiam a troca de idéias com certas pessoas mais cultas, mais artistas, com quem podiam falar de Nietzsche e Wagner se tocava música no salão da Sra. Cottard, nos saraus em que ela recebia os alunos do marido, com esperança de vê-lo um dia decano da faculdade, este em ouvir, preferia jogar cartas no salão vizinho. Porém gabavam-lhe a prontidão, a profundeza, a segurança de seu olho clínico, de seu diagnóstico. Em terceiro jogar, no que diz respeito ao conjunto de maneiras que o professor Cottard mostrava a um homem como meu pai, notemos que a natureza que fazemos surgir na segunda parte da nossa vida não é sempre, se o é muitas vezes, nossa natureza primária desenvolvida ou murcha, exagerada ou atenuada; trata-se às vezes de uma natureza oposta, uma verdadeira roupa às avessas. Salvo no caso dos Verdurin, que tinham se fartado dele, o aspecto hesitante de Cottard, sua timidez e amabilidade excessivas lhe tinham valido, na juventude, constantes ditos mordazes. Qual o amigo caridoso que lhe aconselhara adotasse um ar glacial? A importância da sua posição tornou-lhe mais fácil assumi-lo. Em toda parte, se não nos Verdurin aonde voltava instintivamente, ele se fez frio e, sem custo, silencioso, peremptório quando fosse necessário falar, não se esquecia de dizer coisas desagradáveis. Pôde ensaiar essa nova atitude diante de clientes que, não o tendo visto ainda, não tinham sequer como fazer comparações e ficariam bastante espantados se soubessem que ele não era homem de natureza rude. Esforçava-se sobretudo em ser impassível e, até no seu serviço do hospital, quando dizia alguns daqueles trocadilhos que faziam rir a todos, desde o chefe da clínica até o mais recente externo, fazia-o sempre sem que um só músculo se movesse no rosto, rosto aliás irreconhecível desde que rapara a barba e o bigode.

            Para terminar, digamos quem era o marquês de Norpois. Tinha sido ministro plenipotenciário antes da guerra e embaixador no 16 de Maio, e, apesar disso, para assombro de muitos, encarregado diversas vezes, desde então, de representar a França em missões extraordinárias e até mesmo como fiscal da Dívida, no Egito, onde, graças às suas grandes aptidões financeiras, prestara serviços importantes. Por gabinetes radicais que um simples burguês reacionário recusaria servir, e aos quais o passado do Sr. de Norpois, suas ligações e opiniões teriam tornado suspeito. Mas esses ministros avançados pareciam dar-se conta de que mostrariam com semelhante nomeação a sua largueza de espírito, desde que se tratasse dos interesses superiores da França; punham-se acima da política e mereciam até que mesmo o Journal des Débats os qualificasse de estadistas e se beneficiassem, por fim, do prestígio que se ajunta a um nome aristocrático e do interesse que desperta, como um lance teatral, uma escolha inesperada. E sabiam também que, tais vantagens, apenas as podiam recolher apelando ao Sr. de Norpois, sem temer da parte deste uma quebra de lealdade política, contra a qual o nascimento do marquês devia não tê-los de sobreaviso, e sim garanti-los. E nisso o governo da República não se enganava. Primeiro, porque uma certa aristocracia, educada desde a infância no sentido de considerar o próprio nome como uma vantagem interior que nada lhe tira (e cujo valor os seus pares, ou aqueles que de nascença pertencem a um nível ainda superior, conhecem perfeitamente bem), sabe que pode evitar, lhe acrescentariam nada, os esforços que fazem tantos burgueses, sem resultado ulterior, para professar unicamente opiniões da moda e só pessoas de bons sentimentos. Em compensação, preocupada em engrandecer aos olhos das famílias principescas ou ducais, abaixo das quais está imediatamente situada, essa aristocracia sabe que não pode fazê-lo a não ser aumentando o nome com aquilo que ele não contém, com aquilo que faz que, diante de igual, ele prevaleça: uma influência política, uma reputação literária ou uma grande fortuna. E os cuidados de que abre mão quanto a um inútil provinciano seqüestrado pelos burgueses e a cuja amizade sem proveito não daria o menor valor, a aristocracia há de tê-los para com os poluídos, que sejam franco-maçons, que podem lhe abrir as portas das embaixadas patrociná-la nas eleições, com os artistas ou com os sábios, cujo apoio vão "furar", no setor em que se distinguem, para todos aqueles, enfim, que condições de conferir uma nova distinção ou favorecer um casamento.

            Porém, no que dizia respeito ao Sr. de Norpois, ocorria sobremaneira numa longa prática da diplomacia, ele se havia imbuído desse espírito rotineiro, conservador, dito "espírito de governo" e que, de fato, é o dos governos e, em especial, está sob todos os governos, o espírito da chamada carreira diplomática, adquirira a aversão, o temor e o desprezo desses pensamentos, cada vez menos incorretos, que são o modo de agir das oposições e no caso de alguns iletrados do povo e da alta sociedade, para quem além de gêneros é letra morta, o que reaproxima não é a identidade de opinião; consangüinidade dos espíritos. Um acadêmico do tipo de Legouvé e adepto dos clássicos aplaudiria com a melhor boa vontade o elogio de Ti por Maxime Du Camp ou Mézieres, do que o de Boileau por Claudel. Um nacionalismo bastou para aproximar Barres de seus eleitores, que não diminuíra a diferença entre ele e o Sr. Georges Berry, porém não de seus amigos da Academia que, tendo suas mesmas opiniões políticas mas um outro tipo; preferirão até adversários como os senhores Ribot e Deschanef' por sua vez, monarquistas fiéis se sentem muito mais próximos do que de e Léon Daudet, que, no entanto, sonham também com o regresso do rei. Suas palavras não só por hábito profissional de prudência e reserva, ruas porque elas têm mais valor, oferecem mais matizes aos olhos de homens de esforços de dez anos para reaproximar dois países se resumem num discurso, num protocolo por um simples adjetivo, de aparência no qual vêem um mundo inteiro, o Sr. de Norpois passava por ser muito da Comissão, onde ocupava um cargo ao lado de meu pai, a quem todos aumentavam pela amizade que lhe dedicava o antigo embaixador. Meu primeiro espantar-se daquilo. Pois, sendo em geral pouco amável, tinha o hábito de não ser procurado fora do círculo da intimidade e o confessava com simplicidade. Era cônscio de que havia, nas aproximações do diplomata, um efeito sob este ponto de vista inteiramente individual, onde cada um se põe para decidir acerca das simpatias, e dentro do qual todas as qualidades intelectuais ou a sensibilidade de uma pessoa serão para alguém, a quem ela aborrece e irrita, uma recomendação tão boa, como a franqueza e a alegria de outra, que passaria aos olhos de muitos como vazia, frívola e nula.

            "De Norpois me convidou de novo para jantar; é extraordinário; todos ficaram estupefatos na Comissão, onde ele não tem relações íntimas com ninguém. Tenho certeza de que ele ainda vai me contar coisas palpitantes sobre a guerra de 70."

            Meu pai sabia que só talvez o Sr. de Norpois avisara o imperador do poder crescente e das intenções belicosas da Prússia, e que Bismarck estimava particularmente a sua inteligência. Ainda recentemente, na ópera, durante o baile de gala oferecido ao rei Teodósio, os jornais haviam assinalado a longa entrevista que o soberano tivera com o Sr. de Norpois.

            "Preciso saber se essa visita do rei teve real importância", disse-nos meu pai, que se interessava muito pela política estrangeira.

            "Sei muito bem que o velho Norpois é fechado como uma ostra, mas comigo ele se abre todinho."

            Quanto à minha mãe, talvez o embaixador não lhe apresentasse o tipo de inteligência que mais a atraísse. E devo dizer que a conversação do Sr. de Norpois era um repertório tão completo das formas antiquadas de linguagem particulares a uma carreira, a uma classe e a uma época, que para aquela carreira e para aquela classe, poderia muito bem não estar inteiramente abolidas - que lamento às vezes não ter guardado pura e simplesmente as frases que lhe ouvi. Teria, desse modo, obtido um efeito démodé tão bem e da mesma maneira que aquele aturdo Palais-Royal a quem indagavam onde podia encontrar seus surpreendentes chapéus e que respondia:    "Não encontro os meus chapéus. Eu os conservo."

            Numa palavra, creio que minha mãe julgava o Sr. de Norpois um tanto antiquado, o que estava longe de lhe parecer desagradável do ponto de vista de seus modos, mas a encantava menos no terreno senão das idéias, pois as do Sr. de Norpois eram bem modernas, mas das expressões. Apenas, ela sentia que seria lisonjear o marido de maneira delicada se lhe falasse com admiração do diplomata, que o tratava com tanta predileção. Fortalecendo no espírito de meu

pai a boa opinião que ele professara sobre o Sr. de Norpois, e levando-o assim a formar uma tão boa opinião sobre si mesmo, ela tinha consciência de cumprir um de seus deveres, que consistia em tornar agradável a vida do marido, como fazia quando vigiava para que a cozinha fosse bem cuidada e o serviço silencioso. E, como fosse incapaz de mentir a meu pai, ela mesma procurava admirar o embaixador para poder elogiá-lo com sinceridade, aliás, apreciava naturalmente seu ar de bondade, sua polidez um tanto desusada; tão cerimoniosa que, caminhando empertigado, ao perceber minha mãe que de carro, antes de lhe tirar o chapéu, jogava longe o charuto mal começado; sua conversa tão comedida, na qual falava de si mesmo, ao menos sempre levava em consideração o que poderia ser agradável ao interlocutor; pontualidade de tal modo surpreendente em responder a uma carta que quando acabara de lhe enviar uma, reconhecendo a escrita do Sr. Norpois de envelope, tinha a primeira impressão de que a correspondência de ambos era: poderia se dizer que, para ele, existiam no correio luxo e coletas suplementares.        Minha mãe se maravilhava de que ele fosse tão exato, embora tão ocupado era amável, conquanto tão relacionado, sem pensar que os "emboras" e os convivas são sempre "porquês" mal conhecidos, e que (assim como os velhos pela idade, os reis cheios de simplicidade e os provincianos) sabendo detalhes os próprios hábitos do Sr. de Norpois, que lhe permitiam satisfazer tantos e ser tão regular em suas respostas, agradar à sociedade e ser amável. Ademais, o erro de minha mãe, como o de todas as pessoas que são excessivamente modestas, provinha de que ela colocava as coisas que lhe diziam respeito e, conseqüentemente, fora dos outros. A resposta que a fazia atribuir tantas ao amigo de meu pai em dirigi-la a nós com rapidez, porque ele escrevia cartas por dia, ela a excetuava do grande número de cartas que, no entanto, passavam de uma; da mesma forma, ela não considerava que um jantar - e caso fosse para o Sr. de Norpois - um dos atos inumeráveis de sua vida; imaginava que o embaixador antigamente se acostumara, na diplomacia; dera os jantares citadinos como fazendo parte de suas funções e a empatia uma graça inveterada, da qual seria demais pedir-lhe que se desfizesse exclusivamente quando vinha à nossa casa.

            O primeiro jantar a que o Sr. de Norpois compareceu em nossa casa, ano em que eu ainda jogava nos Champs-Élysées, ficou na minha lembrança, que a tarde desse mesmo dia foi aquela em que eu ia enfim, ouvir a Berma na "matinê", representando a Fedra, e também porque, palestrando com o Sr. Norpois, percebi de súbito, e de uma forma nova, de que modo os sentimentos despertados em mim por tudo o que se relacionasse com Gilberte Swann os pais divergiam daqueles que essa mesma família inspirava a qualquer outra.

            Sem dúvida, foi reparando no abatimento em que me afundava na aproximação das férias de Ano-Novo, durante as quais, como ela própria me anuiu, não deveria ver Gilberte, que um dia, para me distrair, mamãe me disse:

            "Tens o mesmo desejo tão grande de ouvir a Berma, acho que teu pai permitiria que fosses e tua avó poderia te acompanhar."

            Mas porque o Sr. de Norpois lhe dissera que deveria deixar-me ver Berma, que aquilo seria, para um rapazinho, uma boa recordação a convite de meu pai, até então hostil à idéia que eu fosse perder tempo e me deixar contrair uma grave doença devido ao que chamava, para grande escola, minha avó, uma inutilidade, não estava longe de considerar aquele programa peneirado pelo embaixador, como fazendo vagamente parte de um conjunto de receitas preciosas para o bom êxito de uma brilhante carreira. Minha avó que, renunciara por mim ao benefício que, segundo ela, me daria a audição da Berma, fizera um enorme sacrifício no interesse da minha saúde, espantava-se de que tudo aquilo se tornasse desprezível a uma só palavra do Sr. de Norpois. Pondo suas esperanças invencíveis de racionalista no regime de ar livre e de deitar cedo que me haviam prescrito, deplorava como uma calamidade a infração que eu ia fazer e, num tom enervado, dizia:

            "Como você é leviano" a meu pai, ao que este, furioso, respondia:

            "Como! Agora é a senhora que não quer que ele vá? É demais, logo a senhora que repetia o tempo todo que isso lhe poderia ser útil."

            Mas o Sr. de Norpois mudara as intenções de meu pai num ponto bem mais importante para mim. Desejara sempre que eu fosse diplomata e eu não podia suportar a idéia de que, mesmo se devesse permanecer por algum tempo adido ao ministério, me arriscaria um dia a ser enviado como embaixador às capitais onde não moraria Gilberte.

            Teria preferido voltar aos projetos literários que fizera outrora, os quais abandonara no decurso de meus passeios pelos caminhos de Guermantes. Porém meu pai mantivera uma oposição constante a que eu me destinasse à carreira das letras, que julgava bastante inferior à diplomacia, rejeitando-lhe mesmo o nome de carreira, até o dia em que o Sr. de Norpois, que não gostava muito dos agentes diplomáticos das novas fornadas, lhe assegurara que era possível a alguém, enquanto escritor, atrair tanta consideração, exercer tanta ação e conservar mais independência do que nas embaixadas.

            - Quem diria! Eu não teria acreditado, o velho Norpois não é de todo contrário à idéia que te fazes da literatura - me dissera meu pai. E, como ele próprio fosse bastante influente, julgava não haver nada que não se arranjasse, que não encontrasse uma solução favorável na conversação de pessoas importantes:

            -Vou trazê-lo para jantar uma noite destas, saindo da Comissão. Vais falar um pouquinho com ele, a fim de que ele possa te avaliar. Escreve alguma coisa que possas lhe mostrar; é muito relacionado com o diretor da Revista dos Dois Mundos, conseguirá que faças parte dela, arranjará isso, é um velho esperto; e, por Deus, dá a impressão do que é a diplomacia hoje...

            A felicidade que sentia em não me ver separado de Gilberte me tornava desejoso, porém não capaz, de escrever algo bem bonito para ser mostrado ao Sr. De Norpois. Depois de algumas páginas preliminares, com o tédio me fazendo cair a pena das mãos, eu chorava de raiva pensando que jamais teria talento, que não era dotado e nem poderia sequer aproveitar a oportunidade que a próxima visita do Sr. Norpois me ofereceria de permanecer sempre em Paris.            Somente a idéia de que me deixar ouvir a Berma me aliviava o desgosto. Mas assim como só desejava contemplar tempestades nos litorais onde eram mais violentas, da mesma forma iria ouvir a grande atriz num daqueles papéis clássicos em que Swann me afirmara que ela atingia a sublimidade. Pois, quando estamos na espera de preciosa descoberta e desejamos receber certas impressões da natureza, sentimos algum escrúpulo em deixar nossa alma acolher, em vez de impressões menores, que poderiam nos enganar quanto ao exato valor de Berma em Andrômaca, nos Caprichos de Marianne, em Fedra, era uma das coisas famosas que minha imaginação tanto desejara. Teria o mesmo divertimento que no dia em que uma gôndola me conduzisse para junto do Ti Frari ou dos Carpaccio de San Giorgio del Schiavoni, se alguma vez ouvidos pela Berma os versos: ''Diz-se que uma súbita partida vos afasta de nós, Senhor,'' etc.

            Eu os reconhecia pela simples reprodução em preto-e-branco das edições impressas; mas meu coração batia quando pensava, como na real uma viagem, que por fim os veria banharem-se de fato na atmosfera o ensolaramento da voz dourada. Um Carpaccio em Veneza, a Berma obras-primas da arte pictórica ou dramática cujo prestígio que se lhes faziam, eram tão vivas em mim, isto é, tão indivisíveis, que, se eu tivesse ido ver os quadros numa sala do Louvre ou a Berma em alguma peça da qual jamais ouvira; teria experimentado o mesmo espanto delicioso de ter enfim os olhos, diante do objeto inconcebível e único de tantos milhares de sonhos meus; esperando do desempenho da Berma revelações sobre certos aspectos da dor, parecia-me que o que houvesse de grande e verdadeiro nesse, deveria sê-lo ainda mais se a atriz o super pusesse à uma obra de valor legítimo em vez de ornar; em suma, verdade e beleza sobre uma trama medíocre e valiosa.

            Por fim, se fosse ouvir a Berma numa peça nova, não me seria sua arte, sua dicção, visto que não poderia fazer distinção entre um conhecido previamente, e aquele que lhe acrescentariam entonações e me pareciam formar um só corpo com ele; ao passo que as obras antigas, sabia de cor, surgiam-se como vastos espaços reservados e prontos, onde apreciar em plena liberdade as invenções de que a Berma as cobriria, com os permanentes achados de sua inspiração. Infelizmente, há anos que ela deixara os grandes palcos e fazia a fortuna de um teatro do qual era a estrela, e já não representava os clássicos, e por mais que eu conhecesse os cartazes, eles nunca anunciavam senão peças recentes, escritas expressamente para ela pelos autores em voga; quando, certa manhã, procurando na coluna de teatros as matinês da semana do Ano-Novo, vi pela primeira vez no fim do espetáculo, depois de um erguer de pano provavelmente insignificante, pareceu opaco, pois continha todo o pormenor de uma ação que eu ignorava nos atos da Fedra com a Sra. Berma, e nas matinês seguintes: Le Demi-Monde; Os caprichos de Marianne, nomes que, como o de Fedra, eram transparentes a mim, preenchidos unicamente de claridade, de tanto que a obra me era combinada até o fundo por um sorriso de arte. Eles me pareceram acrescentar natureza à própria Sra. Berma quando li nos jornais, após o programa desses espetáculos, que fora ela quem resolvera mostrar-se novamente ao público em algumas de suas antigas criações. Portanto, a artista sabia que determinados papéis têm um interesse que sobrevive à novidade de seu aparecimento, ou ao sucesso da reprise; considerava-os, interpretados por ela, como obras-primas de museu que podia ser instrutivo repor aos olhos da geração que a havia admirado, ou daquela que não a vira. Colocando assim em cartazes, no meio de peças que só eram destinadas a fazer passar o tempo de um sarau, Fedra, cujo título não era maior que o das outras; onde se imprimia em caracteres diferentes, ela o acrescentava ali como o subentendido de uma dona de casa que, ao apresentá-lo aos convivas no momento de ir para a mesa, lhes diz, em meio aos nomes dos convidados que são apenas convidados, e no mesmo tom com que citou os outros: Sr. Anatole France.

            O médico que me tratava o que me proibira qualquer viagem desaconselhou a meus pais que me deixassem ir ao teatro; voltaria para casa doente, talvez por muito tempo, e afinal sentiria mais sofrimento do que prazer. Esse temor poderia me fazer desistir, se aquilo que esperava de uma tal representação fosse unicamente um prazer que, em suma, um sofrimento posterior pode anular. Porém-assim como no caso da viagem a Balbec e a Veneza, que desejara tanto o que eu pedia àquela manhã, era algo bem diverso de um prazer: eram verdades pertencentes a um mundo mais real que aquele em que eu vivia, e as quais, uma vez processada a aquisição, não poderiam mais ser subtraídas por incidentes insignificantes da minha vida ociosa, mesmo que fossem dolorosos ao meu corpo. Quando muito, o prazer que sentiria durante o espetáculo se me afigurava como a forma talvez necessária da percepção dessas verdades; e era o bastante para que eu desejasse que as moléstias previstas só começassem depois de finda a representação, para que esta não fosse comprometida e falseada por elas. Implorava a meus pais que, desde a visita do médico, já não queriam permitir que fosse à Fedra. Recitava pra mim mesmo, sem parar, atirada:

            Diz-se que uma súbita partida vos afasta de nós... procurando todas as nações possíveis, a fim de melhor avaliar o inesperado da que a Berma acharia. Oculta como o Santo dos Santos sob o pano, de boca que a disfarçava e por trás do coral eu lhe atribuía a cada instante um novo aspecto, segundo estas palavras decoradas na plaqueta encontrada por Gilberte que me voltavam ao espírito: 

            ''-Nobreza plástica, cilício cristão, palidez jansenista, princesa de Trézene e de Cleves, miceniano, símbolo délfico, mito solar", a divina beleza que devia me revelar o empenho da noite e do dia sobre um altar perpétuo à Berma, a mensagem ficava no fundo da minha alma, a cujo respeito meus pais severos e levianos decidiram se ela encerraria ou não, e para sempre, as perfeições da Deusa revelada no mesmo lugar onde se erguia sua forma invisível. E, com os olhos fixos na imagem inconcebível, eu lutava da manhã à noite, contra os obstáculos que a família me opunha. Porém, quando todos foram vencidos, quando ainda que aquela matinê tivesse lugar precisamente no dia da sessão, após a qual meu pai devia trazer o Sr. de Norpois para jantar ele me disse:

            "Mas não queremos te aborrecer; se achas que terás tanto prazer, então deves ir''; aquele dia de teatro, até então proibido, só dependeu de mim, então, pela primeira vez, já não tendo que me preocupar que deixasse de ser impossível, per se seria desejável, se outros motivos além da proibição de meus pais levariam a renunciar a ele. Em primeiro lugar, após ter detestado sua crueldade, o consentimento deles os tornava tão caros para mim, que a idéia de desgosto me aborrecia, e, através desse aborrecimento, a vida já não parecia como tendo por objetivo a verdade, e sim o carinho, e não me parecia melhor ou pior, senão conforme os meus pais fossem felizes ou infelizes.

            "Preferia que não fosse se isso vai afligi-lo", disse a minha mãe, a qual, ao contrário, se esforçava por me fazer ter essa idéia preconcebida de que ela pudesse se entristecer com aquilo; agora acabaria por estragar o prazer que eu teria em ouvir a Fedra, cuja concessão, ela e meu pai tinham voltado atrás em sua proibição. Aí então, aquela obrigação de sentir prazer me parecia bem pesada. Depois, se eu voltasse estaria curado suficientemente rápido para poder ir aos Champs-Élysées; durante as férias, logo que Gilberte voltasse?

            Para decidir do que devia ultrapassar todas essas razões; eu confrontava a idéia, invisível por trás de seu véu, a perfeição de Berma. Punha num dos pratos da balança "sentir mamãe triste, arrependido por não poder ir aos Champs-Élysées", no outro, "palidez jansenista, mito solar'', porém essas mesmas palavras acabavam se obscurecendo em meu espírito; não diziam mais nada, perdiam todo seu peso; pouco a pouco minhas hesitações tornavam-se tão dolorosas que, se agora optasse pelo teatro, seria apenas para cessar as dúvidas e livrar-me delas de uma vez por todas. Seria para abreviar meu sofrimento, não mais na esperança de um benefício intelectual e cedendo à atração da perfeição, que me deixaria levar não para a Sábia Deusa e, sim, para a implacável Divindade sem rosto e sem nome que a substituíra sub-repticiamente debaixo do véu. Porém bruscamente tudo se mudou, meu desejo de ir ouvir a Berma recebeu um novo impulso, que me permitiu esperar com impaciência e alegria aquela matinê; ocorreu-me quando fui fazer diante da coluna dos teatros a minha parada diária de elitista; ultimamente, vira, úmido ainda, o cartaz detalhado da Fedra que tinham acabado de colar pela primeira vez (e onde, na verdade, o resto da distribuição não tinha nenhum atrativo novo que pudesse me fazer tomar uma decisão). Mas, um dos objetivos, entre os quais oscilava a minha indecisão, uma forma mais concreta e - já que o cartaz estava datado, não do dia em que o lia; mas daquele em que ocorreria a representação, e com a própria hora em que se ergue - quase iminente, já em vias de realização, de modo que pulei de alegria, ao pensar que, naquele dia, exatamente naquela hora, estaria presente para ouvir Berma; sentado no meu lugar; e, com medo que meus pais já não tivessem reservado dois lugares para mim e minha avó; dei um pulo até em casa, como estava entusiasmado por estas palavras mágicas que haviam substituído, em meu pensamento, as expressões "palidez jansenista" e "mito solar": "As damas devem permanecer sem chapéu durante a representação, e as portas serão fechadas às duas horas em ponto.''

            Infelizmente, essa primeira representação foi grandemente um desgosto. Meu pai propôs nos levar, a minha avó e a mim, ao teatro, quando saísse da sessão da Comissão. Antes de sair de casa, disse à minha mãe:

            "Trata de fazer um bom jantar, estás lembrada que vou trazer o Sr. de Norpois?"

            Minha mãe não se lembrava. E desde a véspera, Françoise, feliz por entregar-se à arte culinária, com certeza possuía um dom, e aliás estimulada pelo anúncio de um convidado novo, no sabendo que teria de preparar, segundo os métodos só dela conhecidos: vaca na geléia, vivia na efervescência da criação; como desse extrema importância à qualidade intrínseca dos materiais que deveriam entrar no preparo, foi ela mesma ao Mercado Central Halles para obter os mais belos pedaços de alcatra, de pé e de mocotó de vitela, tal como Michelangelo quando passava oito meses nas montanhas de Carrara para escolher os blocos de mármore mais perfeitos destinados ao monumento de Júlio II. Françoise empregava tal ardor, nessas idas e vindas, que mamãe vendo o seu rosto inflamado, temia que a nossa velha criada ficasse doente de exaustão como o autor do túmulo dos Médicis nas pedras de Pietrasanta. E, desde a véspera, Françoise mandara cozer, no forno de padeiro, protegido por uma camada de miolo de pão, como um mármore cor-de-rosa; que ela denomina presunto de New York. Julgando o idioma menos rico e seus próprios ouvidos não muito confiáveis, sem dúvida na primeira vez que ouviu falar do presunto de New York pensara - achando um desperdício inacreditável o vocabulário que pudesse existir, ao mesmo tempo, York e New York – que não tinha ouvido direito e que lhe tinham querido dizer o nome que ela já conhecia. Desde então a palavra York se fazia preceder, nos seus ouvidos, ou diante de seus olhos que lesse num anúncio, de um "New", que ela pronunciava Neu. E era com a melhor boa-fé do mundo que ela dizia à criada de cozinha:

            "Vá buscar presunto a senhora me recomendou que seja de ''Neu York."

            Naquele dia, Françoise na ardente certeza dos grandes criadores, seu quinhão era a cruel pesquisadora. Sem dúvida, enquanto não ouvi a Berma senti prazer. Desfrutava do largo que precedia o teatro e cujos castanheiros desfolhados iam depois, luzir com reflexos metálicos assim que os bicos de gás acesos passassem em detalhe os seus ramos; diante dos encarregados da fiscalização dos bilhetes de entrada - cuja promoção e o destino dependiam da grande artista- pois só ela mandava nessa administração, a cuja testa diretores efêmeros e puramente na obscuridade e que pegavam nossas entradas sem nos olhar, porque tinham a preocupação de saber se todas as prescrições da Sra. Berma tinham sido transmitidas ao pessoal novo; se ficara bem claro que nunca teriam de aplaudi-la; que as janelas deviam estar abertas, enquanto ela não estivesse e a menor porta fechada depois; com um pote de água quente dissimulando dela para fazer cair a poeira do palco; de fato, dali a um instante a sua tirada por dois cavalos de longa crina ia parar diante do teatro, e ela desceria em peles, respondendo com um gesto entediado aos cumprimentos; e uma de suas acompanhantes para se informar sobre o proscénio reservado para seus amigos; sobre a temperatura da sala, o arranjo dos camarotes, a arrumadeiras, teatro e público; sendo que para ela o teatro era apenas um segundo traje, mais externo; um condutor, melhor ou pior que seu talento teria de atravessar. Senti-me feliz na própria sala; desde que soubera que - ao contrário do que me fora por um tempo representado pela minha imaginação infantil; só haveria um cenário para todo o mundo, pensava que os outros espectadores deviam impedir de ver direito, como quando estamos no meio de uma multidão - ora, percebi, ao contrário, graças a uma disposição que é como o símbolo de toda percepção que cada um se sente no centro do teatro; o que me explicou por que uma vez mandado Françoise ver um melodrama na terceira galeria, ela houvesse, ao voltar, que o seu posto era o melhor que podia haver, em vez de ser muito longe sentira-se intimidada pela viva e misteriosa proximidade das cortinas. Meu prazer aumentou ainda mais quando comecei a distinguir, atrás, abaixado, rumores confusos como os que a gente ouve sob a casca do ovo de um pinto que vai nascer, rumores que logo aumentaram e, de repente, daquele impenetrável ao nosso olhar, mas que nos via do seu, dirigiram-se indubitáveis a nós sob a forma imperiosa de três pancadas, tão emocionantes, vindos do planeta Marte. E tão logo se ergueu o pano quando, no palco apareceu uma escrivaninha e uma lareira, aliás bem ordinárias, indicaram que as personagens iam entrar seriam, não atores que tivessem vindo para recitar, como vira numa recepção, porém homens dispostos a viver um dia de suas vidas; penetrava por arrombamento sem que pudessem me ver, meu prazer duradouro; foi interrompido por uma breve inquietação; justo quando eu tinha os ouvidos em alerta, antes que a peça começasse, dois homens entraram no palco, visto que falavam com força bastante para que naquela sala, onde havia mais de mil pessoas, se entendessem todas as suas palavras, ao passo que num café a gente é obrigado a perguntar ao garçom o que dizem dois indivíduos engalfinhados; mas, no mesmo instante, espantado por ver que o público sem protestar, mergulhado como estava num silêncio unânime; breve veio sussurrar um riso aqui, um outro ali, compreendi que esses, eram atores e que a peça, chamada anteato, acabava de começar. Foi por um entreato tão longo que os espectadores, de volta a seus lugares impacientavam e batiam com os pés. Aquilo me assustou; pois, assim como no sumário de um processo, quando eu lia que um homem de coração generoso, vinha, a despeito de seus interesses, testemunhar em favor de um inocente, eu temia sempre que não fossem suficientemente amáveis com ele, que não se mostrassem bastante reconhecidos, que não o recompensassem largamente, e que, desgostoso, ele se pusesse ao lado da injustiça - da mesma forma, assimilando naquilo o gênio à virtude, temia eu que a Berma, aborrecida com os maus modos de um público tão mal-educado no qual, pelo contrário, gostaria que ela pudesse reconhecer com satisfação algumas celebridades a cuja crítica ela atribuía importância-, exprimisse o seu descontentamento e seu desdém atuando mal. E olhava com ar de súplica aqueles brutamontes turbulentos que, no seu furor, iam quebrar a preciosa e frágil impressão que eu viera buscar. Por fim, os últimos momentos de meu prazer ocorreram durante as primeiras cenas de Fedra. A personagem Fedra não aparece nesse começo do segundo ato; e, no entanto, desde que se ergueu o pano e um segundo pano, este de veludo vermelho, se afastou, aumentando o tamanho do palco em todas as peças em que atuasse a estrela, uma atriz entrou pelos fundos, com o rosto e a voz que me haviam dito serem os da Berma. Provavelmente haviam mudado a distribuição dos papéis, tornava-se inútil o cuidado que eu tivera em estudar o papel da mulher de Teseu. Mas uma outra atriz replicou à primeira. Enganara-me tomando esta pela Berma, pois a segunda se parecia ainda mais com ela e, mais que a outra, possuía a sua dicção. Além disso, ambas acrescentavam nobres gestos a seu papel-gestos que eu percebia claramente, compreendendo sua relação com o texto, enquanto elas erguiam seus belos peplos (túnica sem mangas) -, e também engenhosas entonações, ora passionais, ora irônicas, que me faziam entender o significado de um verso que havia lido em casa sem prestar muita atenção ao que dizia. Mas de súbito, na separação do pano vermelho do santuário, como num quadro, surgiu uma mulher e, a seguir, pelo medo que senti, muito mais do que o podia ser o da Berma, de que a incomodassem abrindo uma janela, de que alterassem o som de uma de suas palavras amarrotando um programa, de que a indispusessem aplaudindo suas companheiras e não a aplaudissem de forma suficiente; à minha maneira, mais absoluta ainda que a da Berma, de não considerar, desde aquele instante, sala, público, atores, peça, e meu próprio corpo, senão como um meio acústico que só tivesse importância na medida em que fosse favorável às inflexões daquela voz, compreendi que as duas atrizes que admirava há poucos minutos não tinham qualquer semelhança com a que acabava de ouvir.

            Porém, ao mesmo tempo, todo meu prazer cessara; por mais que estendesse para Berma os meus olhos, meus ouvidos, meu espírito, para não deixar escapar uma migalha dos motivos que ela me daria para admirá-la, não logrei recolher um sequer. Nem podia, como no caso de suas companheiras, distinguirem, no jogo das inflexões inteligentes, os belos gestos. Escutava-a como se, lendo a Fedra, ou como se a própria Fedra dissesse naquele momento eu a ouvia, sem que o talento da Berma parecesse lhe ter acrescentado coisa alguma. Gostaria para poder aprofundá-la, para tentar descobrir o que havia nela de belo; de parar, imobilizar cada inflexão da artista, cada expressão sua; pelo menos, à força de agilidade mental, tendo, antes de um verso, toda a atenção instalada e alerta. Tentava não me distrair em preparativos uma parte da atenção de cada palavra, de cada gesto; graças à intensidade da minha procura chegara descer tão profundamente nelas como o teria feito se tivesse longo tempo à minha disposição. Mas como era breve essa duração! Mal meus ouvidos ouviam um som, este já era substituído por outro. Numa cena em que permanece imóvel por um instante, o braço erguido à altura do rosto; numa luz esverdeada graças a um artifício de iluminação, diante da decoração que representava o mar, a sala rompeu em aplausos, mas a atriz já havia mudado; o quadro que eu desejaria estudar não mais existia.

            Disse à minha avó que não via bem, e ela me passou o binóculo. Apenas, quando se crê na realidade de usar um meio artificial para fazer com que se mostrem; não equivale inteiramente sentir-se próximo delas. Achava que já não era a Berma a quem via na imagem na lente de aumento. Deixei o binóculo; mas talvez a imagem que o olho recebia, diminuída pela distância, não fosse mais exata; qual das duas era a verdadeira? Quanto à declaração a Hipólito, eu confiara muito nesse que, a julgar pelos sentidos engenhosos que suas companheiras descobriram a todo momento nas partes menos belas, elas certamente teriam entonações muito mais surpreendentes que, em casa, lendo-o, tentara imaginar; mas ela nem sequer chegou aos acentos que Oenone ou Aricie teriam encontrado, passou pela plataforma de melopéia uniforme em todo parágrafo, onde se acham confundidos todos em uma só massa de oposição claríssima; todavia tão ressaltados, cujos efeitos uma atriz trágica mediana teria dado; ou até alunos do colégio, não deixariam de acentuar; além disso, ela o declamou tão depressa que somente quando chegou ao último verso é que minha mente se conscientizou da monotonia intencional que havia imposto aos primeiros.

            Por fim, rompeu meu primeiro sentimento de admiração: foi pelos aplausos frenéticos dos espectadores. Misturei os meus aos deles tentando prolongá-los muito para que, por reconhecimento, a Berma ela superasse a si mesma, a certeza de tê-la ouvido num de seus melhores dias. O que, de resto, é curioso que no momento em que se desencadeou esse entusiasmo do público soube depois, aquele em que a Berma teve um de seus melhores dias. Parece que certas realidades transcendentes emitem, a seu redor, radiações as quais a massa é sensível. É assim, por exemplo, quando ocorre um incidente, quando na fronteira um exército está em perigo, batido ou vitorioso, as notícias bastante obscuras que recebemos e de onde o homem culto não sabe extrair grande coisa, excitam na turbulência, uma emoção que o surpreende e na qual, uma vez que os especialistas o tenham posto ao corrente da verdadeira situação militar, reconhece a percepção, pelo povo, daquela "aura" que envolve os grandes acontecimentos e que pode ser visível a centenas de quilômetros. Tem-se notícia da vitória, ou muito mais quando a guerra acaba, ou imediatamente, pela alegria do porteiro. Descobre-se um traço genial do desempenho da Berma oito dias depois de a ter ouvido, pela crítica, ou de imediato, devido às aclamações da platéia. Porém, estando essa consciência imediata da multidão mesclada a outras cem completamente erradas, os aplausos muitas vezes soavam falso, sem contar que eram levados mecanicamente pela força dos aplausos anteriores, como numa tempestade, uma vez que o mar esteja tão revolto que continua a engrossar, mesmo que o vento não aumente. Não importa; à medida que eu aplaudia, parecia-me que a Berma representava melhor.

            - Pelo menos - dizia a meu lado uma mulher bem vulgar-, ela se consome, se bate de dar pena, corre; isto sim é que é representar!

            E feliz por encontrar estas razões da superioridade da Berma, embora duvidando que elas fossem bastante para explicá-la, como não bastava para explicar a da Gioconda ou do Perseu de Benvenuto a exclamação de um camponês:

            -É tudo muito bem-feito! Tudo em ouro, e bonito! Que trabalho! -compartilhei, ébrio, o vinho grosseiro daquele entusiasmo popular. Ao baixar o pano, fiquei meio desapontado porque o prazer que tanto desejara não fora maior, mas ao mesmo tempo sentia necessidade de prolongá-lo, de não deixar mais, ao sair da sala, essa vida do teatro que por algumas horas fora a minha, e da qual teria me arrancado como se partisse para o exílio, ao voltar diretamente para casa, se ali não alimentasse esperanças de aprender muito sobre a Berma com seu admirador, a quem devia a permissão de ter ido ver a Fedra, o Sr. de Norpois. Fui-lhe apresentado, antes do jantar, por meu pai, que me chamou para tanto ao seu gabinete. Quando entrei, o embaixador se ergueu, estendeu-me a mão, inclinou sua grande estatura, fixando em mim, atentamente, seus olhos azuis. Como os estrangeiros de passagem, que lhe eram apresentados, no tempo em que representava a França, eram mais ou menos de bom grado - até mesmo os cantores da moda- pessoas de importância e de quem sabia então que poderia dizer mais tarde, quando falassem nos seus nomes em Paris ou S. Petersburgo, lembrava-se perfeitamente da noite que passara com eles em Munique ou em Sofia; assumira o hábito de fazê-los notar pela afabilidade a satisfação que sentia ao encontrá-los; mas, além disso, persuadido de que na vida das grandes capitais, se ganha ao contacto por um tempo das individualidades interessantes que as percorrem e dos costume do povo que ali habita; adquire-se um conhecimento aprofundado, que não dão os livros de história, da geografia, dos costumes das diferentes nações, do movimento intelectual da Europa, ele exercia sobre cada recém-chegado, das faculdades de observador a fim de saber de imediato com que tipo estava tratando. Há muito tempo, o governo já não lhe confiava qualquer estrangeiro, mas logo que lhe apresentavam alguém, e que seus olhos tivessem recebido notificação de sua disponibilidade, principiavam ao aproveito, enquanto em todas suas atitudes ele procurava mostrar ao estranho não lhe era desconhecido. Assim, falando-me sempre com com o ar de importância de um homem que conhece, sua vasta esperteza cessava de me examinar com uma curiosidade sagaz e para seu próprio prazer como se eu fosse algum hábito exótico, algum monumento instrutivo, ou estrela em tournée. Desse modo dava provas, para comigo, ao mesmo tempo majestosa amabilidade do sábio Mentor e da curiosidade estudiosa de Anacársis.

            Não me ofereceu absolutamente nada para a Revista dos Dois; mas fez-me um certo número de perguntas sobre minha vida e meras especulações sobre meus gostos, dos quais ouvi falar pela primeira vez como poderia segui-los; ao passo que acreditara até então que seria um dever contando que meus gostos se inclinavam para a literatura, ele não se desviou dele ao contrário com deferência, como de uma pessoa venerável e encantada do círculo seleto, em Roma ou em Dresde, se conserva a melhor lembrança e lastima encontrar tão poucas vezes depois. Devido às circunstâncias dava aparência de invejar-me, sorrindo com um ar quase licencioso, os bons momentos de felicidade que ele, e mais livre, a literatura me faria passar. Mas os próprios textos que o Sr. De Norpois me mostrava da literatura parecia-me como bem diversa da imagem que eu formara em Combray; e, compreendi que tinha tido duplamente razão em renunciar à ela. Até aqui eu percebera apenas que não possuía o dom da escrita; agora o Sr. De Norpois me matava até o desejo de praticá-la. Quis lhe explicar o que havia sido minhas ilusões; trêmulo de emoção, tinha o maior escrúpulo em que todas as minhas palavras fossem o mais sincero equivalente possível; do que havia sentido e tentara formular; o que significava minhas palavras que careciam de claridade. Talvez por hábito profissional, talvez em virtude da tranqüilidade de homem importante; a quem se pede conselho e que, sabendo que terá direção da conversa, deixa o interlocutor se agitar, se esforçar, sofrendo; talvez também, para fazer valer os aspectos de sua cabeça (grega segundo ele, apesar das grandezas suíças), o Sr. de Norpois, enquanto eu lhe expunha, observava uma imobilidade fisionômica tão absoluta como se a gente estivesse diante de um busto antigo e surdo em uma biblioteca. De resto, como o martelo do leiloeiro, ou como um oráculo de Delfos, a voz do que nos respondia impressionava, tanto mais que nada em seu rosto suspeitara qualquer espécie de impressão que havíamos deixado nele, nem sua opinião.

            -Exatamente - disse de súbito, como se a causa estivesse julgada e após haver deixado de gaguejar diante dos olhos imóveis que não me largavam nem um só instante-, conheço o filho de um de meus amigos que, mutatis mutandis, é como você - (e, para falar de nossas inclinações comuns, assumiu o mesmo tom tranqüilizador como se se tratasse não de tendências para a literatura e sim para o reumatismo, e quisesse mostrar que a gente não morria disso). - Ele também preferiu largar o Quai d'Orsay, onde no entanto, o caminho já lhe fora aberto pelo pai e, sem se preocupar com o que diriam, pôs-se a escrever. E certamente não teve ocasião de se arrepender. Publicou há dois anos; além disso, naturalmente, ele é muito mais velho que você; uma obra relativa ao sentimento do Infinito na margem ocidental do lago Vitória-Nianza e, este ano, um opúsculo menos importante, mas traçado com pena hábil, às vezes até acertada, sobre o fuzil de repetição no exército búlgaro, que o puseram numa situação verdadeiramente única. Já percorreu um belo caminho, não é homem de parar no meio, e sei que, sem que tenha sido considerada a idéia de uma candidatura, aventaram seu nome duas ou três vezes na conversação, e de um modo que nada era desfavorável, à Academia de Ciências Morais. Em suma, sem poder dizer ainda que ele esteja no auge, o fato é que conquistou com muita luta uma posição bastante boa e o sucesso, que nem sempre acorre aos agitados e espertalhões, aos bisbilhoteiros que quase sempre são uns farsantes, o sucesso recompensou os seus esforços.

            Meu pai, já me vendo acadêmico dentro de alguns anos, respirava uma satisfação que o Sr. de Norpois levou ao máximo quando, após um momento de hesitação, durante o qual parecia calcular as conseqüências de seu ato, me disse estendendo-me seu cartão de visitas:

            -Portanto, vá vê-lo de minha parte, ele poderá lhe dar conselhos úteis. - causando-me com tais palavras uma agitação tão penosa como se tivesse anunciado que no dia seguinte eu seria embarcado como grumete a bordo de um veleiro.

            Minha tia Léonie me fizera herdeiro, ao mesmo tempo que de muitos objetos e móveis bastante incômodos, de quase toda a sua fortuna líqüida; revelando assim, após a morte, um afeto por mim que eu estava longe de suspeitar enquanto ela vivera. Meu pai, que devia gerir essa fortuna até a minha maioridade, consultou o Sr. de Norpois sobre um certo número de investimentos. Este o aconselhou a empregar o dinheiro em títulos de escasso rendimento, que julgava especificamente sólidos; notadamente os Consolidados ingleses de 4% por 100% russo.

            - Com investidores de primeiríssima qualidade - disse o Sr. de Norpois-, se o rendimento é muito elevado, pelo menos você tem segurança de nunca ver em perigo o capital.

            Quanto ao resto, meu pai lhe contou por alto o que havia comprado. O Sr. Norpois demonstrou um imperceptível sorriso de felicitações; como todos os capitalistas considerava a fortuna uma coisa invejável; porém achava mais delicado só cumprimentar por um sinal de inteligência mal-confesso à pessoa que a possuía; por outro lado, como ele próprio era fabulosamente rico, julgava de bom grado a impressão de considerar enormes os rendimentos menores de outrem; o reconhecimento alegre e confortável quanto à superioridade dos seus.,E não hesitou em cumprimentar meu pai pela "composição" de seus papéis, "de um gosto seguro, delicado e fino". Poderia se dizer que atribuía às relações dos valores aplicados na bolsa entre si; e até aos valores da Bolsa em si mesmos, tal um mérito estético. De um deles, bem novo e desconhecido, de que lhe falou meu pai, o Sr. de Norpois, semelhante a essas pessoas que leram livros os quais apenas achava conhecer, lhe disse:

            -Sim, e me diverti durante algum tempo ao seguir as cotações; era interessante - com o sorriso retrospectivamente de um assinante que leu o último romance de uma revista, aos pedaços. - Eu não o desaconselharia a subscrever a emissão que vai ser lançada novamente. É atraente, pois os títulos são oferecidos a preços tentadores. Ao contrário, para certos valores antigos, meu pai, não se recordando os nomes, fáceis de confundir com os de ações similares, abriu uma mostrou os próprios títulos ao embaixador. A vista deles me encantou; eram todos de flechas de catedrais e de figuras alegóricas, como certas publicações românticas antigas, que eu outrora folheara. Tudo aquilo que pertence a um tempo se assemelha; os artistas que ilustram os poemas de uma época; mesmos que têm trabalhos encomendados pelas Sociedades Financeiras lembrava tão bem certas brochuras da Notre Dame de Paris e das obras de Gerardo de Nerval, tais como eram penduradas na fachada do armazém de Combray, em seu enquadramento retangular, florido, que divindades fluviais suspendiam uma ação nominativa da Companhia das Águas.

            Meu pai sentia pelo meu tipo de inteligência um desprezo suficientemente temperado pela ternura para que, no total, seu sentimento sobre tudo o que fosse de uma indulgência cega. Assim, não hesitou em me mandar buscar um pequeno poema em prosa, que eu fizera antigamente em Combray, durante um passeio. Escrevera-o com uma exaltação que me parecia dever continuar aos que o lessem. Porém, a peça não conseguiu seduzir o Sr. de Norpois porque sem me dizer uma só palavra ele me restituiu.

            Minha mãe, cheia de respeito pelas ocupações de meu pai, veio perguntar timidamente se poderia mandar servir. Tinha medo de interromper uma conversa na qual não teria de tomar parte. E, de fato, a todo o instante meu pai lera ao marquês alguma medida útil que tivessem decidido sustentar na próxima sessão da Comissão, e o fazia no tom particular de dois colegas que se encontram num meio diferente - e nisso se assemelhavam a dois colegiais - cujos profissionais criam lembranças comuns onde não têm acesso os outros os quais se desculpam por se reportar em sua presença.

            Mas a perfeita independência dos músculos da face, a que atinou o Sr. De Norpois, permitia-lhe escutar sem dar impressão de ouvir. Meu pai acabava de se empalhar:

            - Tinha pensado em pedir a opinião da Comissão... - dizia ao Sr. de Norpois depois de longos preliminares. Então, do rosto do aristocrata virtuose que guardara a inércia de um instrumentista ao qual ainda não chegou o momento de executar a sua parte, saía com fluência monótona, num tom agudo e como que só para encerrar, mas desta vez confiada a um outro timbre, a frase começada: - Que, fica entendido, você não hesitará em reunir, tanto mais que conhece individualmente os membros, que podem ser facilmente substituídos. - Em si mesma não era, evidentemente, um remate muito extraordinário. Mas a imobilidade que a precedera fazia-a destacar-se com a nitidez cristalina, o imprevisto quase malicioso dessas frases pelas quais o piano, silencioso até então, replica, no momento desejado, ao violoncelo que a gente acaba de ouvir, em um concerto de Mozart.

            - Muito bem, ficaste contente com tua matinê? - perguntou meu pai enquanto íamos para a mesa, para me fazer brilhar e pensando que meu entusiasmo me faria ser bem avaliado pelo Sr. de Norpois. -Ele foi ouvir a Berma hoje cedo; lembra que tínhamos falado nisto juntos - disse, voltando-se para o diplomata com o mesmo tom de alusão retrospectiva, técnica e misteriosa como se se tratasse de uma sessão da Comissão.

            - Deve ter ficado encantado, sobretudo se era a primeira vez que a ouvia. O senhor seu pai se alarmava com as conseqüências que essa pequena saída podia ter sobre seu estado de saúde, pois você é um tanto delicado, um tanto frágil, creio. Porém, tranqüilizei-o. Os teatros já não são hoje o que eram há apenas vinte anos. Temos lugares mais ou menos confortáveis, uma atmosfera renovada, embora ainda tenhamos muito que fazer para atingir a Alemanha ou a Inglaterra, que, a esse respeito, como a muitos outros, estão bastante avançadas quanto a nós. Não vi a Sra. Berma em Fedra, mas ouvi dizer que estava admirável. E você naturalmente ficou deslumbrado?

            O Sr. de Norpois, mil vezes mais inteligente que eu, devia ter aquela verdade que eu não soubera extrair do desempenho da Berma, e ia revelá-la para mim; respondendo à sua pergunta, ia rogar-lhe que me dissesse em que consistia essa verdade; e ele justificaria assim o desejo que eu tivera de ver a atriz. Só desfrutava de um momento, era preciso aproveitá-lo e fazer encaminhar meu interrogatório sobre os pontos essenciais. Mas quais eram? Fixando toda minha atenção sobre as impressões tão confusas que tivera, e de modo algum pensando em me fazer admirar pelo Sr. de Norpois, e sim em obter dele a verdade ansiada, não buscava substituir as palavras que me faltavam por expressões feitas; balbuciei e finalmente, para tentar provocá-lo a declarar o que a Berma possuía de admirável, confessei que ficara decepcionado.

            -Mas como - exclamou meu pai, preocupado com a impressão lastimável, alegando minha incompreensão, poderia produzir sobre o Sr. de Norpois-, como dizer que não sentiste prazer? Tua avó nos contou que não perdias uma só palavra do que a Berma dizia, que teus olhos estavam fora das órbitas, não havia ninguém na sala como tu.

            - Mas sim, eu escutava com todas as forças para saber o que fazia de tão notável. É claro que ela está muito bem...

            - Se ela está muito bem, que mais te falta?

            - Uma das coisas que certamente contribuem para o sucesso Berma disse o Sr. de Norpois voltando-se com deferência para minha mãe, a fim não deixá-la fora da conversa e de cumprir conscienciosamente com sua cortesia para com uma dona-de-casa- é o gosto perfeito que ela aplica na interpretação de seus papéis e que lhe vale sempre êxito legítimo e de boa qualidade. Não faz o papel de mediocridades. Veja, ela se atirou ao papel de Fedra. Aliás, esse bom gosto ela o aplica em suas toaletes, no seu desempenho. Ainda que tenha feito proveitosas turnês na Inglaterra e na América, a vulgaridade, não diria, John Bull, o que seria injusto pelo menos para a Inglaterra da era vitoriana, Tio Sam não se abateu sobre ela. Jamais cores muito berrantes, jamais grito exagerados. E depois, aquela voz admirável que a serve tão bem e que ela emprega de maneira fascinante, seria quase tentado a dizer musical!

            Meu interesse pelo desempenho da Berma, não cessara de aumentar desde o fim da representação, porque não mais sofria a compressão dos limites da realidade; porém, eu experimentava a necessidade de lhe achar explicação disso; o interesse agira com igual intensidade, enquanto a Berma atuo tudo aquilo que ela oferecia, na indivisibilidade da vida, a meus olhos, ouvidos; não distinguira, nem havia separado nada; assim meu interesse ao descobrir um motivo racional naqueles elogios à simplicidade, ao bom artista, os atraía para si pelo seu poder de absorção, apoderava-se como o otimismo de um bêbado se apodera das ações do próximo, nas quais encontra motivo de enternecimento. "É verdade", dizia comigo, "que voz bonita, que gritos, que vestidos simples, que inteligência em ter escolhido a Fedra; fiquei decepcionado."

            Apareceu o rosbife com cenouras, deitado pelo Michelangelo de nossa cozinha, sobre enormes cristais de geléia semelhantes a blocos de quartzo transparente.

            - A senhora tem um mestre-cuca de primeira ordem, madame disse o Sr. de Norpois. - E isso não é pouco. Eu que tive de sustentar no estrangeiro padrão de vida doméstica, sei o quanto é freqüentemente difícil encontrar um perfeito mestre-cuca. A senhora nos convidou para um verdadeiro banquete.

            E, de fato, Françoise, sobre excitada pela ambição de realizar, à um convidado importante, um jantar semeado de dificuldades dignas dela, pelo esforço a que não se entregava mais quando estávamos a sós, reencontrara na forma incomparável de Combray.

            -Eis o que não se pode encontrar nos restaurantes, e digo nos melhores: um prato de carne estufada e onde a geléia não cheire a cola; em que a carne se impregne do odor das cenouras, é admirável! Permita-me repetir - acrescentou ele, fazendo sinal de que desejava mais geléia. -Teria curiosidade de julgar o seu Vatel, agora numa iguaria inteiramente diversa; gostaria, por exemplo, de encontrá-lo às voltas com a carne à Strogonoff.

            O Sr. de Norpois, para contribuir também seu lado à satisfação do repasto, contou-nos várias histórias com as quais muitas vezes brindava os colegas de carreira; ora citando um discurso ridículo pronunciado por um político useiro e vezeiro nessas coisas; que os fazia longos e cheios de imagens incoerentes; ora determinada frase lapidar de um diplomata cheio de concisão. Mas, para falar a verdade, o critério que, para ele, distinguia essas duas espécies de frase em nada se parecia com o que eu aplicava à literatura. Muitas das nuanças me escapavam; as palavras que ele recitava às gargalhadas não me pareciam muito diferentes das que eu julgava notáveis. O Sr. de Norpois pertencia ao gênero de homens que, para as obras que eu amava, teria dito:

            "Então, compreende? Quanto a mim, confesso que não compreendo, não sou um iniciado", mas eu podia retrucar na mesma moeda, pois não alcançava o espírito, ou a asneira, a eloqüência, ou o excesso, que ele encontrava numa réplica ou num discurso; a ausência de toda a razão perceptível, para que isto fosse mau, e aquilo fosse bom, fazia com que essa espécie de literatura me parecesse mais misteriosa, mais obscura que qualquer outra. Percebi apenas que repetir o que todos pensavam não era em política, um sinal de inferioridade mas de superioridade. Quando o Sr. de Norpois se utilizava de certas expressões que se encontram nos jornais, pronunciando-as com força, sentia-se que elas se transformavam em ação, pelo simples fato de que as empregara, e uma ação que suscitaria comentários.

            Minha mãe contava muito com a salada de ananás e trufas. Mas o embaixador, depois de exercer sobre as iguarias, por alguns instantes, a penetração de seu olhar de observador, comeu-as, permanecendo envolto em discrição diplomática sem nos externar seu pensamento. Minha mãe insistiu que ele repetisse, e o Sr. de Norpois concordou, dizendo apenas em vez do cumprimento que esperavam:

            -Obedeço, madame, pois vejo que se trata de um verdadeiro ucasse de sua parte.

            -Lemos nas "folhas" que o senhor conversou longamente com o rei Teodósio III. - disse meu pai.

            - De fato, o rei, que tem uma memória fisionômica rara, lembrou, ao me avistar no proscênio, que eu tivera a honra de vê-lo durante alguns dias na corte da Baviera, quando ainda nem pensava no trono oriental ( foi chamado por um congresso europeu; até hesitou muito em aceitá-lo, que essa soberania não estava à altura da sua linhagem, a mais nobre do ponto de vista da heráldica, de toda a Europa). Um ajudante de campo veio dizer-me para que fosse saudar Sua Majestade, cujas ordens, naturalmente, apressei-me em obedecer.

            - Ficou satisfeito com os resultados de sua visita?

            - Encantado! Era justo conceber algumas apreensões sobre como um monarca, tão jovem ainda, se sairia naquele passo tão difícil; em conjunturas tão delicadas. De minha parte, eu tinha plena confiança na política do soberano. Mas confesso que foram além de minhas esperanças. O brinde que ele pronunciou no Élysée. De acordo com as informações que me deram de fontes de inteira confiança, fora redigido por ele mesmo, da primeira  até a última palavra, era perfeitamente digno do interesse que despertou por todas as partes. É simplesmente um golpe de mestre; parece-me um tanto ousado; reconheço sua audácia que, afinal, os acontecimentos justificaram plenamente. As tradições diplomáticas têm de fato o seu lado bom, mas, especificamente, acabaram, tanto do seu lado quanto do nosso país, por viverem numa atmosfera abafada que já não era respirável. Muito bem, uma das formas de renovar o ar, evidentemente uma daquelas que não se pode recomendar, mas que o rei Teodósio podia se permitir, era romper os vidros. E ele o fez com um bom humor que encantou a todos; também a precisão de termos onde se reconheceu de imediato a estirpe dos príncipes, à qual ele pertence pelo lado materno. É certo que, quando falou das afinidades que unem seu país à França, a expressão, por mais desusada no vocabulário das chancelarias, era singularmente feliz. Vejam que a literatura vai mal, mesmo na diplomacia, mesmo sobre um trono - acrescentou, dirigindo-se à mim. - A situação era constatada há muito tempo, admito-o, e as relações das duas potências eram excelentes. Ainda assim, era necessário que a expressão fosse dita. A palavra era esperada, foi escolhida às maravilhas, vocês viram o resultado. De minha parte, aplaudi com entusiasmo.

            -Seu amigo, o Sr. de Vaugoubert, que preparava a aproximação há tantos anos, deve ter ficado contente.

            -Tanto mais que Sua Majestade, que tem o hábito de tais gestos fez questão de lhe preparar esta surpresa. De resto, a surpresa foi completa no mundo, a começar pelo ministro das Relações Exteriores, que, ao que diziam, não achou a seu gosto. A alguém que lhe falava, teria respondido com nitidez, em voz bastante alta para ser ouvido pelas pessoas próximas sem ser consultado nem prevenido; indicando claramente assim, que declina responsabilidade pelo ocorrido. É preciso confessar que o acontecimento causou barulho e não ousaria afirmar-acrescentou com um sorriso – que certos colegas, para quem a lei suprema parece ser a do menor valor tinham sido perturbados no seu sossego. Quanto a Vaugoubert, vocês sabem muito tem atacado por sua política de aproximação com a França; deve ter sofrido muito com isso porque é uma pessoa sensível, uma alma requintada. Tenho motivos para confirmá-lo, pois, embora seja bem mais moço que eu de carreira, somos amigos de longa data e conheço-o muito. Aliás, quem o atacaria? É uma alma de cristal. É até o único defeito que se lhe pode alegar: não é preciso que o coração de um diplomata seja tão transparente como o seu - e que se fale em enviá-lo a Roma, o que seria uma bela promoção; porém é um problema sério. Entre nós, creio que Vaugoubert, por mais que seja de ambição, ficaria bem contente e não pediria que o afastassem dele. Quiçá operasse prodígios por lá; é o candidato da Consulta e, de minha parte, imagino-o muito bem; ele que é tão artista, no ambiente do palácio Farnese e na galeria de Carraggios. Parece que pelo menos ninguém poderia odiá-lo. Porém existe em torno do rei Teodósio toda uma camarilha, mais ou menos submetida na Wilhelmstrasse, as inspirações segue docilmente e que tem procurado de todas as maneiras obstáculos. Vaugoubert não tem apenas que enfrentar as intrigas de bastidores; também as injúrias de foliculários pagos, que, mais tarde, covarde jornalista venal, são os primeiros a pedir perdão; mas, enquanto isso são os que lançam, contra o nosso representante, ineptas acusações irresponsáveis. Durante mais de um mês, os inimigos de Vaugobert dançam ao seu redor a dança do escalpo - disse o Sr. de Norpois, sublinhando a última palavra. - Mas um homem prevenido vale por dois; essas injúrias, ele rechaça com a ponta dos pés - acrescentou de forma ainda mais enérgica e com um olhar tão firme que paramos um instante de comer. - Como diz um belo provérbio árabe ''Os cães ladram e a caravana passa."

            Após ter lançado esta citação, o Sr. de Norpois parou para nos olhar e avaliar o efeito que produzira em nós. Foi grande o efeito, porque já era conhecido: substituíra naquele ano, entre os homens de grande valor, "Quem semeia ventos, colhe tempestades", o qual necessitava de repouso, pois não era tão vivaz e infatigável como: "Trabalhar para o Rei da Prússia". Pois a cultura dessas pessoas eminentes, era uma cultura alternativa e geralmente trienal. Criações desse tipo e com as quais o Sr. de Norpois se esmerava em abrir os artigos da Revista, não eram necessárias de modo algum para homens sólidos e bem informados. Mesmo desprovidos de ornamentos as emoções lhe aportavam; bastava que o Sr. de Norpois escrevesse em seu devido tempo – o que ele nunca deixava de fazer: "O gabinete de Saint-Jarnes não foi um dos últimos a sentir o perigo"; ou então "A emoção foi grande no Pont-aux-Chantres, esguia-se com inquietação a política egoísta, porém hábil, da monarquia bicéfala" - ou "Um grito de alarme partiu de Montecitório"; ou ainda "O jogo duplo que é bem próprio do Ballplatz". A tais expressões, o leitor profano reconheceria logo, e saudaria, o diplomata de carreira. Mas, o que fazia com que dissessem que ele era mais do que isso, que possuía uma cultura de emprego racional; de citações, cujo modelo perfeito ficava sendo o seguinte: ''Dê-me uma boa política e eu lhe darei boas finanças, como costumava dizer Louis." (Ainda não se havia importado do Oriente: "Entre dois adversários, a vitória será daquele, que sabe sofrer um quarto de hora a mais do que o outro.'' como dizem os japoneses.) Essa reputação de grande letrado, unida a um verdadeiro gênio de intriga, sob a máscara da indiferença, fizera com que o Sr. de Norpois entrasse para a Academia de Ciências Morais. Algumas pessoas chegaram a pensar que ficaria mal colocado na Academia Francesa, no dia em que, querendo dar a entender que só estreitando a aliança com a Rússia é que poderíamos chegar à Inglaterra, não hesitou em escrever: "Que o saibam bem na Quaid d'Orsay; que ensinem de agora em diante, em todos os livros de geografia, que são incompletos a tal respeito, que recusem implacavelmente o diploma de todo candidato que não souber dizer: Se todos os caminhos levam à Roma, em compensação o caminho que vai de Paris a Londres passa necessariamente por Petersburgo."

            - Em resumo - continuou o Sr. de Norpois dirigindo-se à meu pai - Vaugoubert aí obteve um sucesso que ultrapassa até o que ele próprio, com efeito, contava com um brinde correto (o que, depois das nuvens dos últimos anos, já era muito bom). Diversas pessoas que estavam no banquete me asseguraram que não se pode, lendo este brinde, dar-se cordas que produziu, pronunciado e detalhado às mil maravilhas pelo rei, que tem a arte de falar e que sublinhava de passagem todas as intenções, todas as expressões. A esse propósito, contaram-me um fato bem picante e que realça uma gentileza juvenil do rei Teodósio, que tantos corações cativa. Afirmaram que ao chegar nesse termo "afinidades" que, em suma, era a grande inovação do discurso, e que permanecerá por muito tempo nos comentários das chancelarias, Sua Majestade, prevendo a alegria do nosso embaixador, que ali faria o justo coroamento de seus esforços, pode-se dizer de seus sonhos, pois ia ganhar seu bastão de general; meio que se virou para Vaugoubert fixando aquele olhar tão sedutor dos Oettingen, destacou esta palavra tão bem "afinidades"; expressão que era um verdadeiro achado, num tom que todos sabiam ser empregado com conhecimento de causa. Parece que Vaugoubert, mal pôde dominar sua emoção, em certa medida, confesso que o com uma pessoa digna de todo o crédito, confiou-me até que o rei se apresentou à Vaugoubert depois do jantar, quando Sua Majestade formou círculo, e lhe disse à meia-voz: "Está contente com seu aluno, meu caro marquês?" É certo – analisou o Sr. de Norpois - que semelhante brinde fez mais do que vinte anos de espera para estreitar, entre os dois países, suas "afinidades", conforme a expressão pitoresca de  Teodósio II. Não passa de uma palavra, se quiser, mas veja que destino findou, como toda a imprensa européia a repete, o interesse que ela desperta, o quanto rendeu sua novidade. Aliás, é bem do jeito do soberano. Não chegarei a dizer que todos os dias ele acha diamantes lapidados como esse. Mas, é muito raro alguém em seus discursos estudados, melhor ainda, no primeiro impulso da conversa, deixar sua marca - quase diria a sua assinatura, por uma palavra sem rodeios. Tanto mais que sou menos suspeito de parcialidade na matéria por ser inimigo de toda inovação desse tipo. Dezenove vezes em vinte elas são perigosas.

            - Sim. - disse meu pai - pensei que o telegrama recente do imperador da Alemanha não teria sido do seu gosto.

            O Sr. de Norpois levantou os olhos para o céu como quem diz: "Ah, aquilo!" E respondeu:

            - Primeiro, é um ato de ingratidão. É mais que um crime, é um erro; de uma estupidez que eu qualificaria de colossal! Aliás, se ninguém dá o alarme, o homem que destituiu Bismarck é bem capaz de repudiar aos poucos toda a política bismarckiana, e daí seria o salto no abismo.

            - E meu marido me disse, senhor, que o senhor o levaria talvez num desses verões à Espanha. Fico encantada por ele.

            -Ah, sim, é um projeto muito atraente, do qual me alegro. Gostaria muito de fazer essa viagem com o senhor, meu caro. E a senhora, madame, já pensou em empregar suas férias?

            -Talvez vá com meu filho à Balbec, não sei.

            -Ah! Balbec é agradável. Estive lá faz alguns anos. Estão começando a construir ali umas vilas bem atraentes; acho que o local lhes agradará. Mas posso perguntar o que os fez escolher Balbec?

            - Meu filho deseja muito ver certas igrejas da região, sobretudo a de Balbec. Eu temia um pouco as canseiras da viagem e principalmente da estrada, devido a sua saúde. Mas soube que terminaram de construir um excelente hotel, que lhe permitirá viver nas condições de conforto exigidas pelo seu estado.

            - Ah, será preciso dar esta informação a uma certa pessoa minha amiga, que não é mulher de desdenhá-la.

            -A igreja de Balbec é admirável, não é mesmo, senhor?- Perguntei, superando a tristeza de ter sabido que uma das atrações de Balbec eram suas vilas mortas.

            - Não, ela não é de todo má, mas enfim não pode se comparar às verdadeiras catedrais entalhadas que são as catedrais de Reims, de Chartres e, na minha opinião, a pérola de todas, a Santa Capela de Paris.

            - Mas a igreja de Balbec é em parte romana?

            -De fato, ela é do estilo românico, que, por si mesmo, já é bastante frio e de maneira alguma deixa pressagiar a elegância, a fantasia dos arquitetos góticos que escavam a pedra como se fizessem renda. A igreja de Balbec merece uma visita quando lá nos encontramos, pois é bem curiosa; se num dia de chuva você não tiver o que fazer, poderia entrar nela, e lá veria o túmulo de Tourville.

            - Estava ontem no banquete das Relações Exteriores? Eu não pude ir - disse meu pai.

            - Não. - respondeu o Sr. de Norpois com um sorriso - renunciei à ele em favor de um sarau bem diverso. Jantei na casa de uma senhora a quem talvez já tenham ouvido falar, a bela senhora Swann.

            Minha mãe reprimiu um frêmito, pois, de uma sensibilidade a mais que a de meu pai, alarmava-se por ele com aquilo que só devia continuar um instante após. Os dessabores que a ele ocorreriam eram percebidos como as más notícias da França que são antes conhecidas no estrangeiro antes de chegar em nossa terra. Porém, curiosa de saber que tipo de pessoas os Swann receberam, ela indagou do Sr. de Norpois sobre as quais havia encontrado lá:

            - Meu Deus...é uma casa aonde me parece que vão cavalheiros sós. Havia alguns homens casados, mas suas esposas nessa noite não tinham vindo - respondeu o embaixador com uma risada de bonacheirice e lançando ao redor olhares cuja doçura e discrição vem, exagerando habilmente sua malícia.

            - Devo dizer - acrescentou - para ser perfeitamente justo, que havia mulheres, mas... pertencentes antes... como direi? ao mundo republicano que à sociedade dos Swann (ele pronunciava Svann). Quem sabe? Um dia ali pode ser um salão político ou literário. De resto, parece que estão contentes. Eu diria até que Swann o demonstra um pouquinho demais. Nomeava as pessoas da casa que ele e a mulher eram convidados para a semana seguinte, e de cuja presença, entretanto, não há motivos para se orgulhar, com uma falta de reservas, quase que de tato, que me deixou assombrado em um homem tão fino. Não fazia mais que repetir: "Não temos uma só noite livre",- como se se tratasse de uma coisa gloriosa, de um verdadeiro arrivista, o que ele todavia não é. Pois Swann tinha amigos e até amigas, e sem arriscar demais, nem querer ser indiscreto, creio que não todas, nem sequer o maior número delas, mas pelo menos uma grande dama, não seria talvez totalmente refratária à idéia de tratar com a Sra. Swann, caso em que, verossimilmente, mais de um Carneiro de Panurgo, a teria seguido. [Carneiro de Panúrgio. Alusão ao personagem Panúrgio, do romance Pantagruel, de Rabelais com Pantagruel e amigos de navio, Panúrgio lança ao mar um carneiro para provar a estupidez, em ato contínuo, o rebanho se atira ao mar atrás do primeiro. (N. do T)]. Mas parece que não houve, da parte de Swann, nenhuma insinuação nesse sentido. Como? Mais um pudim à Messelrode? A cura em Carlsbad talvez seja suficiente para me refazer de um festim de Lúculo como este. Talvez Swann se deu conta que havia resistências demais para vencer. O casamento não agradou, isto é não caiu muito bem. Falou-se da fortuna da mulher, o que é uma grande balela. Mas enfim, tudo não pareceu nada agradável. E depois Swann tem uma tia excessivamente rica e de admirável posição social, mulher de um homem que, financeiramente falando, é uma potência. E não só ela se recusou a receber a Sra. Swann, mas iniciou uma campanha em regra para que suas amigas e conhecidas fizessem outro tanto. Não quero dizer com isso que algum parisiense da boa sociedade haja faltado com o respeito à Sra. Swann. Não, cem vezes não! Aliás, o marido é pessoa de erguer a luva. Em todo caso, há uma coisa curiosa: é ver como Swann, que conhece tanta gente e da mais escolhida sociedade, mostra uma solicitude para com uma sociedade da qual o menos que se pode dizer é que é bastante mista. Eu, que o conheci outrora, confesso que senti tanta surpresa, como divertimento, ao ver um homem tão bem-educado, tão na moda nos grupos mais seletos, agradecer com efusão ao chefe de gabinete do Ministro dos Correios por ter vindo à casa deles e perguntar-lhe se a Sra. Swann poderia tomar a liberdade de ir visitar sua esposa. E contudo deve sentir-se deslocado; evidentemente, já não se trata da mesma sociedade. Entretanto, não creio que se sinta infeliz. É verdade que ocorreram, nos anos que precederam o casamento, infames manobras de chantagem por parte da mulher; ela privava Swann de ver sua filha, toda vez que ele lhe recusava algo. O pobre Swann, tão ingênuo quanto refinado, julgava sempre que o rapto da filha era uma coincidência e não queria enxergar a verdade. Além disso, ela lhe fazia cenas tão constantes que a gente pensava que, no dia em que alcançasse seus objetivos e se tornasse esposa de Swann, nada a deteria mais; e a vida de ambos seria um inferno. Pois bem, foi o contrário o que aconteceu. Graceja-se muito sobre a forma como Swann fala da mulher, chega-se a troçar abertamente dele. Certamente não pediriam que, mais ou menos consciente de o ser (vocês sabem a frase de Moliere), ele o fosse proclamar urbi et orbi; nada impede que o achem exagerado quando diz que sua mulher é uma excelente esposa. Ora, isto não é tão falso como julgam. À sua maneira, que não é aquele de todos os maridos prefeririam, mas enfim, cá entre nós, parece-me difícil que Swann, que a conhecia há muito tempo e está longe de ser um tolo, não soubesse com quem estava lidando; é inegável que ela parece sentir afeição por ele. Não digo que ela não seja volúvel e o próprio Swann não se importa em sê-lo, avaliado por boas e más línguas que seguem seu caminho, como bem podem imaginar. Mas é pelo que Swann fez por ela e, contrariamente aos temores que todos sentiam, transformou-se numa doçura de anjo. Essa mudança talvez não fosse tão extraordinária como o achava o Sr. Swann de Odette; não acreditara que Swann terminasse por desposá-la; todas as vezes que lhe anunciava, tendenciosamente, que um homem distinto acabava de se casar com sua amante, vira-o manter um silêncio glacial e, quando muito, se ela falava diretamente, perguntando:

            "Então, não achas que é muito bom, que é ótimo o que ele fez por uma mulher que lhe dedicou sua juventude?" ele contestava secamente:

            "Mas eu não digo que seja mau, cada qual age como quiser." Ela não estava longe de crer que, como lhe dizia Swann nesses momentos ele a abandonaria de uma vez por todas, pois ouvira há pouco de uma escultora:

            "Pode-se esperar tudo dos homens, eles são tão patifes!", e, assustada diante dessa máxima pessimista, que apropriara-se dela, repetia-a a qualquer um com ar desanimado que parecia dizer:

            "Afinal, não seria nada impossível, é esta minha oportunidade." E, conseqüentemente, perdera toda validade a máxima, que até então havia guiado Odette na vida:

            "Pode-se fazer tudo com os homens que amam, eles são tão imbecis", e que se expressava em seu rosto pelo movimento dos olhos que acompanhara frases tais como:

            "Não tenham receio, que ele não há de quebrar nada." Esperando, Odette sofria ao pensar o que uma de suas amigas; casada com um homem com quem estivera menos tempo do que Swann com ela mesma; que não tinha filhos, e era relativamente bem considerada agora; para os bailes do Élysée, o que poderia pensar da conduta de Swann. Um consultor mais profundo do que o era o Sr. de Norpois, sem dúvida teria podido diagnosticar, fora o sentimento de humilhação e vergonha que havia amargurado Odette; que o caráter infernal que ela exibia não lhe era inerente, não era um mal incurável; sem dúvida teria facilmente previsto o que aconteceria, a saber: que um novo regime matrimonial, faria cessar com uma rapidez quase mágica, tais incidentes cotidianos; porém, de modo algum orgânico. Quase todos se espantavam de semelhante casamento, e isto é também espantoso. Claro que poucos compreendem o caráter puramente subjetivo do fenômeno que é o amor; uma espécie de criação, que faz uma pessoa suplementar distinta da que leva o mesmo nome no mundo e que formamos com elementos tirados do próprio interior. Há também poucas pessoas que possam considerar naturais, as proporções que acaba por adquirir para nós, uma criatura que não é a mesma que elas vêem. No entanto, parece que, no que diz respeito à Odette; embora jamais tivessem compreendido inteiramente sua inteligência; pelo menos sabia os títulos e os pormenores de seu trabalho, a ponto de Vermeer lhe ser tão familiar como o nome de sua costureira. Para Swann, eram profundos aqueles traços de caráter, os quais o resto da sociedade ignora, ou ridiculariza; dos quais somente uma amante, ou uma irmã, possuem a imagem se é amada; nos afeiçoamos de tal modo à essas características, mesmo àquelas que desejaríamos corrigir, se as velhas ligações possuem algo da doçura, das afeições de família, é porque uma mulher acaba por se acostumar de forma indulgente e amigavelmente trocista, semelhante ao hábito que bem nos vêem nossos pais. Os laços que nos unem a um ser se santificam quando ele se põe no mesmo ponto de vista nosso, para julgar nossos defeitos. E entre esses traços particulares, havia também os que tocavam tanto à inteligência, como ao caráter de Swann; que todavia, em virtude das raízes que, apesar de tudo, tinham criado nele, Odette discernia com mais facilidade. Ela se queixava que, quando Swann estava escrevendo, quando publicava seus ensaios, tais traços não se reconheciam em seus escritos, tanto como nas cartas ou na conversação, onde eram abundantes. Aconselhava-o a lhes dar mais espaço em seus trabalhos. Odette os desejava, pois era o que preferia nele, mas como os preferia por serem os mais legitimamente dele, talvez não estivesse errada em desejar que os encontrassem no que ele escrevia. Talvez pensasse igualmente que mais vivas obras, trazendo-lhe por fim o sucesso, lhe permitiriam organizar o que, na casa dos Verdurin, aprendera a colocar acima de tudo: um salão.

            Dentre as pessoas que achavam ridículo aquele casamento, pessoas que perguntariam, no próprio caso: "Que pensará o Sr. de Guermantes, que dirá Bréauté, quando me casar com a Srta. de Montmorency?"; dentre as pessoas que cultivavam essa espécie de ideal social, teria figurado, vinte anos antes, o próprio Swann; aquele Swann que fizera tantos esforços para ser admitido no Jockey e contara, naquele tempo, fazer um casamento deslumbrante; que consolidando sua situação, teria feito dele um dos homens mais requisitados de Paris. Apenas, as imagens que um tal casamento por interesse representa ao interessado, como todas as imagens, precisam, para não desaparecer e se apagar de todo, ser alimentadas de fora. Digamos que o seu sonho mais ardente seja humilhar o homem que o ofendeu. Porém, se você nunca mais ouve falar nele, caso ele tenha se mudado para outras terras, seu inimigo acabará por não ter mais nenhuma importância para você. Se perdermos de vista, durante vinte anos, todas as pessoas por causa que gostaríamos de entrar para o Jockey, ou para o Instituto; a perspectiva de sermos membros de uma dessas associações já não nos tentará de modo algum. Ora, tanto como um retiro, uma doença, uma conversão religiosa, uma ligação prolongada substituem as imagens antigas por outras novas.

            Não houve, da parte de Swann, quando desposou Odette, renúncia às ambições mundanas, pois de há muito Odette o desprendera dessas ambições, no sentido espiritual da palavra. Aliás, se não fosse desse modo, maior seria o mérito. Geralmente os casamentos entre amantes são os mais estimáveis de todos (e não se pode, com efeito, chamar de infame um casamento por dinheiro, não havendo por exemplo de um casal em que a mulher, ou o marido se tenham vendido, ao qual não acabem por recepcionar, nem que seja devido à tradição e com fundamento em tantos casos semelhantes, para usar de dois pesos e duas medidas), porque implicam o sacrifício de uma ação mais ou menos elogiosa a uma doçura puramente íntima. Por outro lado, senão como artista, como corrompido. Swann teria, de qualquer modo, experimentado uma certa volúpia em ligar a si próprio, um desses cruzamentos de diferentes espécies como os praticam os seguidores de Mendel; ou como relata a mitologia, um raça diferente, arquiduquesa ou cocote, em contrair uma aliança régia; ou em fazer um mau casamento. Só havia uma pessoa na sociedade com quem preocupava cada vez que pensava no casamento possível com Odette, e era, por puro esnobismo, a duquesa de Guermantes. Odette, ao contrário, não se preocupava em ficar pensando nessas pessoas, mas naquelas situadas imediatamente em escala superior à sua, em vez de se incomodar com um tão vago empíreo. Swann, quase em todas as suas horas de devaneio, via Odette como sua esposa; imaginava invariavelmente, o momento em que a levaria, e sobretudo sua filha, à casa da princesa de Laumes, que há pouco se tornara duquesa de Guermantes pela morte de sua sogra. Não tinha desejo de apresentá-la em nenhum outro lugar, mas, se emocionava inventando; pronunciando até as palavras, tudo aquilo que a duquesa diria à Odette e esta à Sra. de Guermantes; a ternura que esta testemunharia mimando-a, fazendo-o orgulhoso da filha. Representava para si mesmo a cena de apresentação, com a mesma precisão no detalhe imaginário das pessoas calculando, caso ganhassem, um prêmio cuja cifra fixam arbitrariamente. Na medida em que uma imagem ilusória acompanha uma de nossas resoluções motivando-nos; pode-se dizer que, Swann se casou com Odette, para apresentá-la e à sua filha Gilberte, sem que houvesse obstáculos; e que ninguém jamais o soubesse, à duquesa de Guermantes. Iremos ver como esta única ambição, que havia desejado para sua esposa e para sua filha, foi justamente aquela cuja realização seria proibida; por uma negativa tão absoluta que Swann morreu sem que a duquesa alguma vez as conhecesse. Veremos também que, pelo contrário a duquesa de Guermantes se ligou a Odette e Gilberte depois da morte de Swann. Talvez teria sido mais sábio à Swann, se não tivesse atribuído tanta importância a tal fato, que valia tão pouco; não fazendo a mínima idéia que tão sombria no futuro - admitindo que a reunião sonhada poderia ocorrer quando ele já não estive presente para desfrutá-la. O trabalho de causalidade que acaba por produzir quase sempre os efeitos possíveis, e, por conseguinte, também aqueles que a gente julga viáveis; esse trabalho é às vezes moroso, e se torna ainda mais lento nosso desejo - que, buscando apressá-lo, o entrava -, devido à nossa insistência e não chega a seu termo senão quando deixamos de desejar, e às vezes; viver. Por acaso Swann não o sabia por experiência própria? Acaso não houve em sua vida - como uma prefiguração do que devia acontecer após a sua morte – uma felicidade póstuma esse casamento com aquela Odette, que ele amara tanto - embora ela não tivesse lhe agradado à primeira vista - e que ele quando já não a amava, quando já era morta a imagem daquele ser; que ele tinha daquele ser que Swann, tanto desejara e se desesperara de viver a vida toda com Odette?

            Fiquei falando no conde de Paris, perguntando se não seria amigo de Swann, pois temia que a conversa se desviasse dele.

            - Sim, de fato é – contestou o Sr. de Norpois voltando-se para mim e fixando em minha modesta pessoa, onde flutuavam, como seu elemento vital, suas grandes faculdades de trabalho, seu espírito de assimilação.- E, meu Deus - acrescentou, dirigindo-se de novo a meu pai _ não creio passar dos limites do respeito de que faço profissão pelo príncipe (sem, no entanto, manter com ele relações pessoais que fariam difícil a minha situação, por menos oficial que seja) se lhe contar um fato bem picante em que, há não mais de quatro anos, numa estaçãozinha de estrada de ferro de um dos países da Europa central, o príncipe teve oportunidade de ver a Sra. Swann. Certamente, nenhum dos íntimos de Sua Alteza se permitiu lhe indagar como a havia encontrado. Não seria oportuno. Mas quando, por acaso, a conversação tocava no nome dela, por alguns sinais, imperceptíveis se quiserem, mas que não enganam ninguém, o príncipe parecia dar a entender de bom grado que sua impressão, em suma, fora longe de ser desfavorável.

            - Mas não haveria possibilidade de apresentá-la ao conde de Paris? - perguntou meu pai.

            - Ora, não sei; com os príncipes nunca se sabe. - respondeu o Sr. de Norpois-; os mais gloriosos, os que sabem render ao máximo o que se lhes deve, são também, às vezes, os que menos se atrapalham com os decretos da opinião pública, mesmo os mais justificados, por pouco que se cuide de recompensar determinadas afeições. Ora, é certo que o conde de Paris aceitou sempre com muita benevolência o devotamento de Swann, que é, aliás, um rapaz de espírito como poucos.

            - E qual foi sua impressão pessoal, senhor embaixador? - Indagou minha mãe por polidez e curiosidade.

            Com a energia de um velho conhecedor que contrastava com a moderação habitual de suas frases:

            - Excelente! - respondeu o Sr. de Norpois.

            E, sabendo que a confissão de uma forte impressão causada por alguma mulher, desde que feita com humor, toma parte de uma certa forma bastante apreciada do espírito da conversa, ele desatou num pequeno riso que se prolongou durante alguns instantes, umedecendo os olhos azuis do velho diplomata e fazendo vibrar suas narinas, nervuradas de fibrilas rubras.

            - Ela é absolutamente encantadora!

            - Por acaso, senhor, um escritor de nome Bergotte estava presente? - argui timidamente, para tentar manter a conversa sobre o assunto dos Swann.

            -Sim, Bergotte estava lá - respondeu o Sr. de Norpois, inclinando a cabeça para o meu lado com polidez, como se, no seu desejo de ser amável com meu pai, atribuísse verdadeira importância a tudo que lhe dissesse respeito, mesmo às perguntas de um menino da minha idade e que não estava habituado a ser tratado com tanta delicadeza pelas pessoas da idade do embaixador.

            -Conhece-o? - acrescentou, fixando em mim o olhar claro cuja agudeza Bismarck admirava.

            - Meu filho não o conhece, mas o admira muito. - disse minha mãe.

            - Meu Deus! - exclamou o Sr. de Norpois (que me inspirou, à própria inteligência, dúvidas mais sérias do que as que me atormentavam, quando vi que aquele que punha milhares e milhares de vezes acima, aquele que eu julgava ser o máximo em todo o mundo, achava-se, para ele num ponto bem inferior em sua escala de admirações) - não partilho dessa opinião. Bergotte é o que chamo um tocador de flauta; de resto, deve-se reconhecer que toca de modo agradável, embora com bastante maneirismo e afetação. Não passa disto e isto, não é lá grande coisa. Em suas obras sem músculos se encontra o que se poderia denominar um plano. Nada de ação; ou til e principalmente nenhuma dimensão. Seus livros pecam pela base, ou não têm base nenhuma. Numa época feito a nossa, onde a complexidade da vida, mal deixa tempo para ler; onde o mapa da Europa sofre remanejamentos profundos e está às vésperas de sofrer talvez ainda maiores; onde tantos ameaçadores novos, se colocam em toda parte; hão de concordar que temos o direito de pedir a um escritor, para ser algo mais do que um belo espírito faça esquecer; nas discussões ociosas e bizantinas acerca dos méritos de pura forma; que podemos ser invadidos a qualquer instante por uma dupla tropa de bárbaros, os de fora e os de dentro. Sei que isto é blasfemar contra a sacro - daquilo que esses senhores denominam a Arte pela Arte, mas não existem tarefas mais urgentes do que agenciar palavras de maneira harmoniosa e a maneira de Bergotte é às vezes, bem sedutora, não nego; mas, em suma, tudo isso aí, está afetado, é muito frágil e bem pouco viril. Agora compreendo melhor, repor à sua admiração totalmente exagerada por Bergotte, as breves linhas que trouxe há pouco e sobre as quais passei os olhos por alto, já que você me disse com toda a simplicidade, que eram apenas rabiscos de criança (eu o disse, mas absolutamente não pensava assim). Misericórdia a todo pecado, aos pecados da juventude. Afinal, outros na mocidade também têm pecados na consciência, e você não é o único a se julgar poeta na sua idade. Mas, nota-se a má influência de Bergotte. Evidentemente, não lhe causarei surpresa dizendo que não havia no seu escrito, nenhuma de suas qualidades, pois é consumado na arte, aliás bastante superficial, de um certo estilo cujos valores você não poderia possuir na sua idade. Porém, os defeitos são os mesmos, já apresenta o mesmo contra-senso de alinhar umas atrás das outras palavras muito sonoras e só depois se preocupar com o sentido. É colocar o carro adiante dos bois. Até nos livros de Bergotte, chinesices de forma, essas sutilezas de mandarim decadente me parece vãs. Diante de alguns fogos de artifício, agradavelmente lançados por alguém - já gritam todos que se trata de uma obra-prima. As obras-primas não são freqüentes assim! Bergotte não tem no seu ativo, em sua bagagem, poderia se dizer, um romance de impulso um tanto mais alto, um desses livros que se destaque numa biblioteca. Não vejo um só em sua obra. O que não impede que, em seu caso, a obra seja infinitamente superior ao autor. Ah! Eis alguém que dá desafio ao homem de espírito, que achava que só se devem conhecer os escritores pelos seus livros. Impossível ter um indivíduo que corresponda menos aos seus, reais pretensiosos, mais solene, menos um sujeito de boa companhia. Vulgar em certos momentos, falando em outros como um livro, e até nem mesmo como um livro seu, mas como um livro tedioso, o que ao menos não são os de sua autoria: assim é Bergotte. É um espírito dos mais confusos, alambicado, aquilo que os nossos pais chamavam um empolado, e que torna ainda mais desagradáveis as coisas que diz, pela forma de enunciá-las. Não sei se é Loménie ou Saint-Beuve quem conta que Vigny padecia do mesmo defeito. Porém Bergotte nunca escreveu o Cinq-Mars, nem Le Cachet Rouge, onde algumas páginas são verdadeiros trechos antológicos.

            Apavorado pelo que o Sr. de Norpois acabara de dizer acerca do fragmento que lhe submetera, imaginando, por outro lado, as dificuldades que teria quando quisesse escrever um ensaio, ou simplesmente me entregar à reflexões sérias, senti mais uma vez a minha nulidade intelectual e percebi que não nascera para a literatura. Antigamente, em Combray, sem dúvida certas impressões muito humildes, ou uma leitura de Bergotte, me haviam posto num estado de devaneio que me parecera ser muito valioso. Mas, esse estado, meu poema-em-prosa o refletia; e, sem dúvida alguma, se o Sr. de Norpois não descobrira e percebera de imediato aquilo que eu julgava belo apenas devido a uma miragem totalmente enganosa, era porque não se deixava iludir. Ao contrário, acabava de me ensinar quão ínfima era minha posição (quando eu era julgado do exterior, objetivamente, pelo conhecedor mais aparelhado e esclarecido). Sentia-me consternado, diminuído; e meu espírito, como um fluido que só possui as dimensões do vaso que o contém, assim como se dilatara antigamente para preencher as imensas capacidades do gênio, agora, contraído, cabia todo na estreita mediocridade em que o Sr. de Norpois o trancara e restringira.

            -As relações entre mim e Bergotte - acrescentou, voltando-se para meu pai - não deixaram de ser espinhosas (o que, afinal de contas, é uma forma de serem também divertidas). Há alguns anos, Bergotte fez uma viagem à Viena, quando eu era embaixador ali; foi-me apresentado pela princesa de Metternich, foi inscrever-se na embaixada e mostrou vontade de ser recebido em suas festas. Ora, eu representante da França no estrangeiro, à qual em certa medida ele honra seus escritos, digamos, para sermos exatos, numa medida bastante fraca, teria que passar por alto a triste opinião que tenho sobre sua vida privada. Mas ele viajava sozinho e, além do mais, tinha a pretensão de ser convidado com sua companheira. Não creio ser mais pudico do que outro qualquer e, sendo celibatário, talvez abrir um pouco mais amplamente as portas da Embaixada do que se fosse casado e pai de família. Não obstante, confesso que há um grau ao qual não saberia me acomodar, e que se torna ainda mais repulsivo mais que moral, falemos claro, moralizador, que assume Bergotte em si, onde só se vêem análises perpétuas e, cá entre nós, um tanto frágeis; dolorosos remorsos doentios e, como simples pecados, verdadeiras gafes (sabemos por experiência própria), enquanto mostra tamanha inconseqüência de cinismo em sua vida privada. Em suma, evitei a resposta, a princesa voltou porém sem maior êxito. De modo que julgo não estar muito em valor junto a este personagem, e não sei até que ponto ele apreciou a atenção de Swann em convidá-lo ao mesmo tempo que a mim. A não ser que ele mesmo o tenha pedido, quem pode saber, pois no fundo é uma pessoa doente. Esta é mesmo sua única desculpa.

            -E a filha da Sra. Swann estava nesse jantar? - perguntei ao Sr. de Norpois, aproveitando para fazer essa pergunta num momento em que íamos para o salão, assim, podia mais facilmente dissimular minha emoção, o que não podia fazer à mesa, imóvel e em plena luz.

            O Sr. de Norpois pareceu por um momento procurar lembrar-se. 

            - Sim, uma jovenzinha de catorze ou quinze anos? De fato, lembo-me que me foi apresentada antes do jantar como a filha do nosso anfitrião. A vi pouco, pois foi se deitar cedo. Ou ia à casa de uma amiga, não me recordo exatamente. Mas vejo que está bem a par dos Swann.  -Jogo com a Srta. Swann nos Champs-Élysées; é delicioso!

            -Aí está! Aí está! Mas a mim, de fato, me pareceu encantadora. Entretanto, confesso que ela nunca chegará aos pés da sua mãe, se é que posso dizer isso sem lhe ferir um sentimento bastante vivo.

            - Prefiro a fisionomia da Srta. Swann, mas também admiro sua mãe; vou passear no Bois somente na esperança de vê-la passar.      

            -Ah, mas eu vou lhes dizer isto; vão ficar muito lisonjeadas.

            Enquanto falava assim, o Sr. de Norpois estava, por alguns momentos ainda, na situação das pessoas que, ouvindo-me falar de Swann como homem inteligente; seus pais como honrados corretores de câmbio; tal como uma bela residência, acreditavam que falaria também de outro homem tão inteligente, de outros corretores de câmbio tão honrados e outra casa tão bonita; é o momento em que um homem de espírito são; e não como um louco, ainda que não se dê conta de que está falando com um. Norpois sabia que não há nada tão natural como o prazer de observar as bonitas coisas e que é bem-educado, quando alguém nos fala com calor de uma impressão de crer que ele está apaixonado, de brincar com ele e proteger seus propósitos. Porém, dizendo que falaria de mim à Gilberte que me permitiria, como uma divindade do Olimpo que assumiu a fluidez de um sopro, ou melhor, o aspecto de um velho de quem Minerva tomou a fisionomia; penetrar eu mesmo, invisível, no salão da Sra. Swann, atrair sua atenção, ocupar seus pensamentos, excitar sua gratidão pela minha admiração; aparecer-lhe como o amigo de um homem importante, parecer-lhe no futuro digno de ser convidado por ela e de entrar na intimidade de sua família), este homem importante que ia usar em meu benefício o grande prestígio que devia ter aos olhos da Sra. Swann, inspirou-me de súbito uma ternura tão grande que mal pude me conter em não beijar suas doces mãos brancas e engelhadas, que pareciam ter ficado muito tempo dentro d'água. Quase esbocei o gesto, que imaginei ter sido o único a notar. Com efeito, é difícil a cada um de nós calcular exatamente em que escala as palavras e os movimentos aparecem aos outros; de medo de exagerarmos nossa importância e aumentando em enormes proporções o campo em que são obrigadas a se estender as lembranças dos outros no decurso de sua vida, imaginamos que as partes acessórias de nosso discurso, de nossas atitudes, mal penetram na consciência das pessoas com quem conversamos, pela mais forte razão de que não permanecem em sua memória. Aliás, é a uma suposição desse tipo que se submetem os criminosos quando retocam mais tarde uma frase que disseram, variante que, pensam, ninguém poderá confrontar com qualquer outra versão.

            Mas é bem possível que, mesmo no que concerne à vida milenária da humanidade, a filosofia do folhetinista, segundo a qual tudo está fadado ao esquecimento, seja menos verdadeira que uma filosofia contrária, que preveja a conservação de todas as coisas. No mesmo jornal em que o moralista dos editoriais nos fala de um acontecimento, de uma obra-prima, e, com maior razão, de uma cantora que teve "seu instante de celebridade": "Quem se lembrará de tudo isto dentro de dez anos?"; na terceira página, a recessão da Academia das Inscrições não fala muitas vezes de um fato por si mesmo menos importante, de um poema de pouco valor, que data da época dos faraós e que agora é conhecido integralmente? Talvez não ocorra exatamente o mesmo na curta vida humana. Entretanto, alguns anos mais tarde, numa casa em que o Sr. de Norpois, que ali se achava em visita, e onde me parecia o mais sólido apoio que poderia encontrar, porque era amigo de meu pai, indulgente, inclinado a nos querer bem a todos, e, além disso, habituado pela profissão e suas origens a ser discreto, quando, logo que o embaixador havia ido embora, contaram-me que ele fizera alusão a um sarau de antigamente, no qual tinha "visto o momento em que eu ia lhe beijar as mãos", não só enrubesci até as orelhas, como fiquei estupefato ao saber que era tão diferente do que julgara, não apenas a maneira como o Sr. de Norpois falava de mim, mas ainda a composição de suas exclamações. Tal mexerico me esclareceu quanto às proporções inesperadas de razão e de presença de espírito, de memória e de esquecimento de que é feito o rito humano; fiquei maravilhosamente surpreendido como no dia em que, na primeira vez, num livro de Maspero, que se sabia exatamente a lista dos casadores que Asurbanipal convidava para suas batidas, dez séculos antes de Jesus Cristo.

            - Oh, senhor! - disse eu ao Sr. de Norpois - quando me anunciou que transmitiria à Gilberte e à sua mãe a admiração que lhes devotava. Se falar de mim à Sra. Swann, toda minha vida não será bastante para lhe testemunhar meu reconhecimento e essa vida lhe pertenceria. Mas devo torná-lo ciente de que não conheço a Sra. Swann e nunca lhe fui apresentado.

            Acrescentara estas últimas palavras por escrúpulo e para não dar a entender estar me gabando de uma relação que não existia. Todavia, ao mesmo tempo que pronuncie tais palavras, sentia que já eram inúteis, pois desde o princípio de meu agradecimento observei um ardor refrescante, que vira passar pelo rosto do embaixador numa expressão de dúvida e descontentamento; em seus olhos um olhar vertical, estreito (como, no desenho em perspectiva de um sólido, a linha fugitiva de uma faces), olhar que se dirige a esse interlocutor invisível que temos dentro de nossa própria pessoa no momento em que nos dizem algo que o outro interlocutor, a pessoa com quem então se fala no caso, eu não deve ouvir. Logo percebi que as frases que pronunciara e que, ainda fracas diante da efusão de reconhecimento de que fui invadido, me pareceram ir tocar o Sr. de Norpois e acabar de decidi-lo a intervenção que lhe teria custado tão pouco, e a mim daria tanta alegria, (dentre todas que me quisessem fazer mal teriam ido buscar as pessoas diabolicamente) as únicas que pudessem ter como resultado fazê-lo renunciar à seu primeiro intento. De fato, ouvindo-as, assim como no momento em que um desconhecido, com quem acabamos agradavelmente de trocar impressões, achávamos semelhantes a respeito de transeuntes que concordávamos considerar vulgares, mostra-nos de repente o abismo patológico que nos separa, sempre tateando os bolsos e indiferente acrescenta: "É pena que eu não traga o meu revólver, não ficaria um só".

            O Sr. de Norpois, sabia que nada era menos precioso e mais fácil do que ser recomendado à Sra. Swann e ser introduzido em sua casa; que viu que para mim, ao contrário, aquilo representava um enorme prêmio, em conseqüência, sem dúvida uma grande dificuldade, pensou bem que o meu desejo na aparência, que eu havia expressado, devia dissimular um pensamento, um desígnio suspeito, alguma falta anterior em virtude da qual, na certeza desagradaria à Sra. Swann, ninguém até então quisera se encarregar de lhe trazer um recado de minha parte. E compreendi que esse recado ele não o daria. Jamais poderia ver a Sra. Swann cotidianamente durante anos e anos, sem por isso falar alguma vez de mim. Entretanto, dias depois, pediu-lhe uma informação que eu queria saber e encarregou meu pai de transmitir a resposta. Porém, não julgara dever dizer à ela de quem era a pergunta. Portanto, ela não sabia que eu conhecia o Sr. de Norpois e que tinha tanto desejo de ir à sua casa; e isso foi talvez uma infelicidade menor do que eu imaginava. Pois a segunda dessas novidades não teria provavelmente acrescentado eficiência da primeira, aliás incerta. Como para Odette, a idéia de sua própria vida e de sua residência não despertava nenhuma inquietação misteriosa, à uma pessoa que a conhecesse, que fosse à sua casa, não lhe parecia um ente fabuloso como o parecia a mim, que teria jogado uma pedra nas janelas dos Swann, caso pudesse escrever à ela que conhecia o Sr. de Norpois; estava convencido de que uma tal mensagem, mesmo transmitida de modo tão brutal, me teria dado muito mais prestígio aos olhos da dona da casa do que a má-vontade que pudesse ter contra mim. Mas, mesmo que eu pudesse perceber que a missão da qual não se encarregou o Sr. de Norpois fosse inútil, ou pior, que ela pudesse me trazer prejuízos aos olhos dos Swann, eu não teria coragem, se o Sr. de Norpois se mostrasse disposto a levá-la a termo, de encarregá-lo tal e renunciar à volúpia, por mais funestas que fossem as conseqüências, de que meu nome e minha pessoa se encontrassem desse modo junto de Gilberte por um momento, em sua casa e em sua vida desconhecidas.

            Quando o Sr. de Norpois partiu, meu pai deu uma olhada no jornal vespertino; eu pensava de novo na Berma. O prazer que sentira ao ouvi-la, exigia tanto mais, ser completado como estava longe de igualar àquele que eu me prometera; assim, assimilava imediatamente tudo o que fosse suscetível de nutri-la; por exemplo, os méritos que o Sr. de Norpois reconhecera na Berma e que meu espírito bebera de um só trago como um prado muito seco sobre o qual se lança água. Ora, meu pai me passou o jornal, mostrando-me uma nota concebida nestes termos:

            "A representação da Fedra, dada numa sala entusiasta onde se assinalaram as principais personalidades do mundo das artes e da crítica, foi para a Sra. Berma, que desempenhava o papel de Fedra, a ocasião de um triunfo como ela raramente conheceu de tão deslumbrante no decurso de sua prestigiosa carreira. Voltaremos mais longamente a essa representação, que constitui um verdadeiro acontecimento teatral; digamos somente que os mais abalizados juízes concordaram em declarar que uma tal representação renovava inteiramente o papel de Fedra, que é um dos mais belos e profundos de Racine, constituindo-se na mais pura e alta manifestação de arte à qual nos tenha sido dada a oportunidade de assistir em nosso tempo."

            Desde que meu espírito concebeu essa idéia nova da "mais pura e alta manifestação de arte", esta se aproximou do prazer imperfeito que eu sentira no teatro, acrescentou-lhe um pouco do que lhe faltava, e a união de ambos formou algo tão grandioso que exclamei:

            "Que grande artista!"

            Sem dúvida, pode-se achar que eu não fosse totalmente sincero. Mas imaginem o caso de tantos escritores que, descontentes com um trecho que acabam de escrever, lêem o elogio do gênio de Chateaubriand, ou comparam à um grande artista a quem desejariam igualar, cantarolando, por exemplo, "trecho de Beethoven cuja tristeza comparam à que quiseram pôr em sua prosa, absorvem de tal modo dessa idéia de gênio que a acrescentam às próprias produções ao pensar de novo nelas, não as vendo mais como lhes tinham aparecido, e dizem, arriscando-se

a uma profissão de fé quanto ao valor de sua obra: ''Que demônio, depois de tudo!", sem perceber que, no total que determina sua satisfação final, incluem a lembrança de magníficas páginas de Chateaubriand, que assimilam às quais enfim não escreveram; imaginem tantos homens que acreditam numa amante da qual só conhecem as traições; imaginem, também, todos que esperam alternativamente, seja uma vida futura incompreensível pensam, maridos inconsoláveis, numa mulher que perderam e que ainda são artistas, na glória futura da qual poderão gozar, seja num nada apaziguador e sua inteligência se reporta, ao contrário, às faltas que, sem ele, teriam após a morte; imaginem ainda os turistas que exaltam a beleza de um desfrutar em conjunto, cujo cotidiano contudo os aborrece; e veja-se na vida em comum que levam as idéias no seio do nosso espírito, existirem - dessas que nos fazem felizes, que não tenha sido antes, verdadeira para si uma idéia próxima e estranha o melhor da força que lhe faltava.

            Minha mãe não pareceu ficar satisfeita pelo fato de meu pai não pensar mais na minha "carreira". Creio que, preocupada acima de tudo em que as regras de existência disciplinassem os caprichos de meus nervos, o que ela menos queria era me ver renunciar à diplomacia do que aplicar-me à literatura. -Porém deseja-o - exclamava meu pai. -É preciso, antes de tudo, fazer as coisas que o agradam, já não é uma criança. Sabe perfeitamente bem, agora, do que gosta. É provável que mude, e é capaz de perceber o que o fará feliz na vida.

            Esperando que à liberdade que me concediam, eu fosse ou não feliz na vida, as palavras me magoaram muito naquela noite. Em todas as épocas, suas gentilezas, ao se produzirem, tinham me dado uma tal vontade de beijar acima de suas faces coradas que, se não o fazia, era só por medo de lhe desagradar, como um autor se assusta ao ver suas próprias fantasias, que lhe tem pouco valor por não conseguir separá-las de si mesmo, obrigarem a escolher um tipo de papel, empregar caracteres talvez lindos demais. Perguntava-me se meu desejo de escrever era algo suficientemente importante, que meu pai mostrasse tanta bondade por sua causa. Porém, sobretudo meus gostos que não mudariam mais, daquilo que estava destinado a minha existência, insinuava em mim duas terríveis suspeitas. A primeira, (enquanto me considerava todos os dias no limiar da minha vida ainda que só começaria na manhã do dia seguinte) minha existência já começava ainda, que o que se seguiria não seria diferente do que havia ocorrido; segunda suspeita, que, para falar a verdade, não passava de uma outra forma da primeira, era que eu não estava situado fora do Tempo; porém, achava-me submetido às suas leis, exatamente como aquelas personagens de romance que, isso, me faziam mergulharem grande tristeza quando lia as suas vidas, em minha cadeira de vime.

            Teoricamente, sabe-se que a Terra gira, mas não nos apercebemos disso, o chão sobre o qual caminhamos parece não se mover e vivemos tranqüilos. O mesmo ocorre com o Tempo na vida. E, para fazer ver a sua fuga, os romancistas são obrigados, acelerando doidamente a marcha dos ponteiros, a fazer com que o leitor ultrapasse dez, vinte, trinta anos, em dois minutos. No alto da página deixamos um amante cheio de esperanças; ao pé da página seguinte, encontramo-lo octogenário, fazendo penosamente no pátio de um asilo o seu passeio cotidiano, mal respondendo às palavras que lhe dirigem, tendo esquecido o passado. Dizendo de mim: "Não é mais uma criança, seus gostos não mudarão mais, etc.", meu pai acabava de súbito de me fazer pensar em mim mesmo no Tempo, causando-me o mesmo tipo de tristeza de como se eu fosse, não o asilado decrépito, mas aquele herói sobre quem o autor, num tom indiferente que é particularmente cruel, nos diz no final de um livro: "Cada vez menos deixa o campo. Acabou por fixar-se ali definitivamente, etc."

            Entretanto, meu pai, para antecipar-se às críticas que poderíamos fazer sobre nosso convidado, disse à mamãe:

            - Confesso que o velho Norpois foi um tanto "medalhão", como vocês dizem. Quando ele diz que teria sido "pouco oportuno" fazer uma pergunta ao conde de Paris, tive receio de que vocês desatassem a rir.

            - Mas de modo nenhum. - contestou minha mãe -, gosto muito que um homem desse valor e dessa idade tenha conservado esta espécie de inocência que só dá provas de um fundo de honestidade e de boa educação.

            - Creio que sim. Isto não impede que seja fino e inteligente; sei disso muito bem porque o vejo na Comissão bem diferente do que se mostrou aqui. - exclamou meu pai, feliz por ver que mamãe apreciava o Sr. de Norpois, querendo convencê-la de que era ainda superior ao que ela julgava, pois a cordialidade sente o mesmo prazer em exagerar os méritos que a maledicência tem em diminuí-los. - E como ele disse aquilo de que "com os príncipes nunca se sabe..."

            -É verdade, sim, exatamente como dizes. Já tinha reparado, é muito esperto. Vê-se que possui uma profunda experiência da vida.

            - É extraordinário que tenha ido jantar em casa dos Swann e que ali haja encontrado boas pessoas, afinal de contas, funcionários. Onde será que a Sra. Swann vai pescar todo esse povo?

            -Notaste com que malícia ele se referiu a: "É uma casa onde vão principalmente cavalheiros"?

            E ambos procuravam reproduzir a maneira com que Norpois dissera aquelas frases; como o teriam feito quanto à alguma entonação de Bressant, ou de Thiron em ''A Aventureira'', ou em ''O Genro do Sr. Poirier''. Porém de todos, quem mais apreciara as palavras de Norpois foi Françoise, que, muitos anos depois, não podia ficar ''em si'' quando lhe recordavam que fora tratada pelo embaixador como "mestre-cuca de primeira ordem", frase que minha mãe comunicou como um ministro da Guerra transmite às forças armadas, as felicitações de um soberano em visita. Aliás, eu havia precedido mamãe quando entrou na cozinha. Pois conseguira que Françoise, pacifista porém cruel, prometesse que não faria sofrer demais o coelho que teria que matar, e não tivera notícias dessa morte; Françoise me assegurou que passara no melhor dos mundos e bem depressa: - Nunca vi um bicho que morreu sem soltar um guincho, poderia jurar que era mudo.-Sem estar da linguagem dos animais, aleguei que o coelho talvez não gritasse como frangos.-Conte com isso - retrucou Françoise, indignada com a minha ignorância que coelhos não gritam tanto como os frangos; têm até voz mais forte e aceitou os cumprimentos do Sr. de Norpois com a soberba simplicidade alegre e - ainda que momentaneamente - inteligente de um artista quando falam de sua arte. Minha mãe a enviara antigamente a certos restaurantes famosos, para aprender como se cozinhava ali. E naquela noite, ao ouvi-la chamar de bodegas, renomados restaurantes, senti o mesmo prazer de outrora ao saber, pelos dramáticos, que a hierarquia de seus méritos não era a mesma de suas reputações.

            -O embaixador - disse-lhe minha mãe - assegura que em parte alguma se come rosbifes e suflês como os seus. Françoise, com ar modesto e como que em homenagem à verdade, concordou, aliás sem ficar impressionada com o título do embaixador; dizia do Sr. de Norpois, com a amabilidade devida à alguém que se considerava um "mestre-cuca":

            - É um bom velho, como eu. - Gostaria de ter visto o Sr. de Norpois quando este chegara; mas, sabendo que minha mãe não gostava que ficassem atrás das portas ou nas janelas a espiar, e pensando que mamãe pelos outros criados, ou pelos porteiros que estivera espreitando (pois Françoise via por toda a parte "ciúmes" e "mexericos" que, na sua imaginação, desenhavam o mesmo papel permanente e funesto das intrigas de jesuítas e de outras pessoas), contentara-se em olhar da janela da cozinha "para não haver conflito com madame", e, na visão sumária que tivera do Sr. de Norpois: "parecido com o Sr. Legrandin" por causa de sua agilidade, e embora não existisse qualquer traço em comum entre eles.

            -Mas, enfim - perguntou minha mãe – explica-me como que ninguém faz geléia tão bem como você quando quer?

            - Eu não sei como decorre isso. - respondeu Françoise, que não estabelecia uma diferença nítida entre o verbo ocorrer, ao menos em certas acepções, e o verbo decorrer; em parte dizia a verdade e não se mostrava muito mais capaz de desvelar o mistério que formava a superioridade de suas geléias, ou de seu rosbife, do que uma elegante com relação à seus vestidos, ou uma grande cantora relativamente a seu canto. Suas explicações não nos dizem grande coisas: quanto

às receitas da nossa cozinheira.

            -Eles mandam cozinhar depressa - respondeu ela falando dos grandes cozinheiros de restaurantes - e não tudo junto. É necessário que a carne de vitela fique como uma esponja, bebe o suco até o fim. Entretanto, havia um desses cafés onde conheciam bastante sobre cozinha. Não digo que fosse inteiramente conhecedores de geléia, mas era preparado devagar e os suflês tinham muito creme.

            -É? - indagou meu pai, que se juntara a nós e apreciava muito o restaurante da praça Saillon, onde fazia em datas fixas refeições comemorativas.

            - Oh, não. - respondeu Françoise com uma suavidade que ocultava um profundo desdém -, eu falava de um pequeno restaurante. Na casa desse Henry, a comida certamente é muito boa, mas não se trata de um restaurante, é mais uma... casa de pasto!

            - Weber?

            - Ah, não, senhor, eu queria dizer um bom restaurante. Weber fica na rua Royale, não é um restaurante, é uma cervejaria. Não sei nem se tem serviço. Parece que até nem tem toalha, botam as coisas de qualquer jeito na mesa, com toda a força.

            -Então é Cirro?

            Françoise sorriu:

            -Oh, lá, creio que em matéria de cozinha há principalmente damas da sociedade. ("Sociedade", para Françoise, significava "sociedade de reputação duvidosa".) Diabos, a juventude precisa disso.

            Percebíamos que, com seu ar de simplicidade, Françoise era, quanto aos cozinheiros célebres, uma "colega" mais terrível do que o pode ser a atriz mais invejosa e mais enfatuada. No entanto, verificamos que ela possuía um sentimento justo de sua arte e o respeito das tradições, pois acrescentou:

            -Não, quero dizer um restaurante onde parecia haver uma boa cozinha burguesa. É uma casa ainda considerável. Lá se trabalhava bastante. Ah, reuniam sous lá dentro! (Françoise, econômica, contava por sous e não por luíses, como os gastadores.) Madame sabe: lá embaixo, à direita, nos grandes bulevares, um pouco recuado...

            O restaurante de que falava com imparcialidade mista de orgulho e bonomia era... o Café Anglais.

            Quando chegou o dia 1° de janeiro, a princípio fiz visitas de família com minha mãe, que, para não me cansar, classificara-as antecipadamente (com a ajuda de um itinerário elaborado por meu pai) por bairro, em vez de fazê-lo por graus de parentesco. Porém, mal entramos no salão de uma prima bem afastada, aonde íamos primeiro porque sua casa ficava bem próxima da nossa, ao contrário do seu parentesco, minha mãe ficou assombrada ao ver, trazendo seus marrons-glacês ou deguisês, o melhor amigo do mais suscetível de meus tios, ao qual contaria que não tínhamos iniciado nosso giro por ele. Esse tio ficaria seriamente ofendido; acharia natural que começássemos indo da Madeleine ao Jardim das Plantas, onde morava, antes de parar em Saint-Augustin, para ter de voltar logo à rua da Faculdade de Medicina.

            Acabadas as visitas (minha avó nos dispensava que lá fôssemos, pois naquele dia jantaríamos com ela), corri aos Champs-Élysées a fim de levar à nossa vendedora, que por sua vez a entregaria à pessoa que vinha várias vezes na semana, da casa dos Swann, comprar pão de mel, a carta que, desde o dia em que minha amiga me causara tanta mágoa, decidira lhe enviar no dia de Ano-Novo, e na qual dizia que nossa amizade antiga desaparecia com o ano findo, que esquecia minhas censuras e decepções e que, a partir de 1° de janeiro, era uma nova amizade iríamos construir, tão sólida que nada a arruinaria, tão maravilhosa que esperava que Gilberte tivesse alguma faceirice em conservar toda a sua beleza se de vez em quando, como eu prometia fazer também, logo que ocorre um perigo capaz de destruí-la.

            Voltando para casa, Françoise me fez parar na rua Royale, diante de uma venda de mercadorias ao ar livre, onde escolheu de presente, fotos de Pio IX e de Raspail e onde, de minha parte, com Berma. As numerosas admirações que a artista suscitava conferiam certa beleza àquele rosto único que ela possuía para lhes retribuir, imutável e precário as roupas dessas pessoas que não têm outra para trocar, rosto em que tinha deixado sempre a mesma ruga pequena sobre o lábio superior, o soerguimento das sombrancelhas, outras peculiaridades físicas, sempre as mesmas que, em suma, mercê de queimadura ou de um choque. Além disso, esse rosto não parecido belo em si mesmo, porém dava-me a idéia e, por conseguinte, desejo de beijá-lo por causa de todos os beijos que já recebera e que, do fundo do álbum, parecia solicitar ainda com aquele olhar de terna faceirice e o sorriso mansamente ingênuo. Pois a Berma devia efetivamente sentir para como muitos, os desejos que confessava, sob a capa da personagem Fedra, e que lhe é fácil satisfazer por tudo, até pelo prestígio de seu nome que se acrescentava beleza e prorrogava-lhe a juventude. A noite caía, e parei diante de uma teatro onde estava afixado o cartaz sobre a representação que a Berma faria dia 1° de janeiro. Soprava um vento úmido e suave. Era um tempo bem conhecido, que eu tinha a sensação e o pressentimento de que o dia de Ano-Novo não era diferente dos outros, que não era o primeiro de um mundo novo em que teria podido a oportunidade ainda intacta, refazer minhas relações com Gilberte como a da Criação, como se ainda não existisse passado, como se tivessem sido criadas, juntamente com os indícios que delas se pudessem tirar para o decepções que ela me causara às vezes; um novo mundo onde não sairia nada do antigo... a não ser uma coisa: meu desejo de que Gilberte me quisesse. Compreendi que meu coração desejava tal renovação, a seu redor, de um, que não o satisfizera, porque ele, meu coração, não havia mudado, e disse mesmo que não havia motivo algum para que o de Gilberte tampouco houvesse mudado; senti que aquela nova amizade era a mesma, como não são 38 dos outros por um fosso, os anos novos que o nosso desejo, sem poder modificá-los, reveste, sem que o saibam, de um nome diferente.

            Por mais que dedicasse a Gilberte aquele ano, e da mesma forma como se superpõe uma religião às leis cegas da natureza, e tentasse imprimir ao dia do Ano-Novo a idéia que fazia dele, era tudo em vão; sentia que ele não sabia que o chamava de Ano-Novo, que terminava no crepúsculo de um modo que para mim não era novo; e vento suave que soprava ao redor da coluna de cartazes, eu reconheceria ao reaparecer a matéria eterna e comum, a umidade familiar, a ignorante dias antigos.

            Voltei para casa. Acabava de viver o 1° de janeiro dos homens velhos que diferem este dia dos jovens, não porque não lhes dêem presentes, mas porque não acreditam mais no Ano-Novo. Ganhara presentes, mas não o único que teria me alegrado, um bilhete de Gilberte. No entanto, eu ainda era jovem, pois que lhe escrevera uma carta com a qual esperava, falando-lhe dos sonhos solitários, da minha ternura, a fim de despertar-lhe sonhos idênticos. A tristeza dos homens que envelheceram é a de nem sequer pensar em escrever tais cartas, de que já conhecem a inutilidade.

            Quando me deitei, os rumores da rua, que se prolongaram até mais tarde naquele dia de festa, mantiveram-me acordado e eu pensava em todas as pessoas que acabariam a noite no meio dos prazeres, pensava no amante; no grupo de devassos, talvez, que tinham ido procurar a Berma ao fim daquela representação que eu vira anunciada para a noite. Nem sequer podia, para acalmar a agitação que essa idéia fazia nascer em mim naquela noite de insônia, dizer comigo que a Berma não pensava talvez no amor, visto que os versos que recitava, que longamente estudara, lembravam-lhe o ato do instante como era delicioso o amor, o que aliás ela bem sabia, tanto que mostrava muito em suas falas, conhecidas emoções; porém, dotadas de uma violência nova e de uma doçura insuspeitada à espectadores maravilhados, os quais, entretanto, já as haviam conhecido por si mesmos. Acendi a vela apagada para olhar ainda uma vez o seu rosto. À idéia de que ele era, naquele instante, sem dúvida, acariciado por esses homens a quem não podia impedir de dar à Berma, e dela receber, alegrias sobre-humanas e vagas, experimentei uma perturbação mais cruel, por não ser voluptuosa, uma nostalgia a que veio agravar o som da trompa, como o que se ouve na noite da Mi-Carême, e muitas vezes em outras festas e que, como então é destituído de poesia, é mais triste, saindo de uma taberna, do que "a noite no fundo das florestas". Nesse momento, talvez, um bilhete de Gilberte não seria o que mais me faltasse. Nossas aspirações vão se entrecruzando na confusão da existência, e raro que uma felicidade venha se colocar exatamente sobre o desejo que a reclamava.

            Continuei a ir aos Champs-Élysées nos dias em que fazia bom tempo. Nas ruas cujas mansões elegantes e róseas se banhavam, já que era a época da moda em voga de exposições de aquarelistas, em um céu móvel e tênue. Mentiria se dissesse que nesse tempo os palácios de Gabriel me pareceriam de maior beleza do que os palácios vizinhos; ou até mesmo de outra época. Eu julgava que com mais estilo a teria achado mais antigo, senão o palácio da Indústria, ao menos o do Trocadéro. Numa agulhada em sono agitado, minha adolescência envolvia num mesmo sonho todo o bairro por onde o levava, e eu jamais sonhara que pudesse haver um edifício do século XVIII na rua Royale; assim como teria ficado espantado se soubesse que a porta de Saint-Martin e a Porta Saint-Denis, obras-primas do tempo de Luís XIV, não eram contemporâneas dos imóveis mais recentes daqueles distritos sórdidos. Uma única vez um dos palácios de Gabriel me fez parar longamente; é que havia caído a noite e suas colunas desmaterializadas pelo luar, pareciam recortadas e lembrando-me um cenário da opereta Orfeu nos Infernos, davam-me pelo menos uma vez a impressão de beleza.

            Entretanto, Gilberte não voltava aos Champs-Élysées. E, contudo tinha necessidade de vê-la, pois nem sequer me lembrava de seu rosto. A maneira indagadora, ansiosa, exigente com que encaramos a pessoa amada, nossa espectativa da palavra que nos dará, ou matará a esperança de um encontro no dia seguinte, até que tal palavra seja dita, nossa imaginação alternativa, senão simultânea de alegria e desespero; tudo isso torna a nossa atenção, em face do ser amado trêmula demais para que possa obter dele uma imagem bem nítida. Também, essa atividade de todos os sentidos ao mesmo tempo; que tenta, somente com os olhares, aquilo que se encontra além deles; seja porque a gente se entrega com demasiada indulgência para mil formas, sabores e movimentos da pessoa viva; a todas essas coisas que de costume tornamos inerte quando não estamos enamorados. O modelo,que ao contrário, se movimenta; dele só possuímos fotografias defeituosas. Eu, na verdade, não sabia de fato como eram os traços de Gilberte, salvo nos momentos divinos em que eles se desdobravam para mim: só me recordava do seu sorriso. E, não rever aquele rosto bem-amado, a todo esforço que fizesse para me lembrar, por encontrar, desenhados em minha memória com precisão definitiva, inúteis e impressionantes do homem dos cavalos de madeira e da vendora de pirulitos; assim, aqueles que perderam um ente querido que jamais torna a rever, se desesperam de encontrar sem cessar em seus sonhos tantas pessoas insuportáveis e que já é demais terem conhecido no estado de vigília. Em sua impotência de imaginarem o objeto de sua dor, quase se acusam de não sentir bastante dor. Quanto a mim, não estava longe de crer que, não podendo me lembrar de Gilberte, esquecera ela própria, não a amava mais. Por fim, ela que eu via quase todos os dias, pondo diante de mim novas coisas a desejar, a lhe pedir para o dia seguinte e fazendo cada dia, em tal sentido, de minha ternura uma nova. Mas uma coisa veio mudar, e de modo brusco, a maneira encontrar todas as tardes, cerca das duas horas, se colocava o problema do meu amor. Será que o Sr. Swann havia surpreendido a carta que escrevera à sua filha; ou Gilberte me avisava muito depois sobre um estado de coisas já antigo, a fim de que eu fosse mais prudente? Como lhe dissesse o quanto admirava seu pai e sua mãe, assumiu este ar vago, cheio de reticências e segredo, que apresentava somente quando lhe falarem do que tinha de fazer, de seus passeios e visitas, e, de repente, acabam de falar:      "Sabe, eles acham você intragável!" e escorregadia como uma ondina, assim desatou a rir. Muitas vezes o seu riso, estava em desacordo com suas palavras e parecia, como o faz a música,

descrever em outro plano uma superfície invisível. O Sr. e a Sra. Swann não pediam a Gilberte que deixasse de jogar comigo; porém, parecia que seus pais preferiam que aquilo não tivesse começado. Não viam favoravelmente minhas relações com ela, porque não me atribuíam grande moralidade e imaginavam que eu só poderia exercer uma influência malsã sobre a filha. Esse tipo de pessoas jovens e pouco escrupulosas, às quais Swann parecia comparar-me, eu as imaginava como detestando os pais da moça a quem amava, elogiando-os em sua presença mas troçando deles com ela, impelindo-a a desobedecê-los e, quando a conquistam, impedem-na até de vê-los. A esses traços (que nunca são aqueles sob os quais se enxerga o maior miserável), com que violência meu coração opunha os sentimentos de que estava animado em relação a Swann, ao contrário, tão apaixonados que já não duvidava de que, se ele os tivesse suspeitado, se arrependesse do julgamento a meu respeito como de um erro judiciário! Tudo o que sentia por ele, ousei escrever numa longa carta que confiei à Gilberte, pedindo que a fizesse lhe chegar às mãos. Ela consentiu. Ai de mim! Ele via então na minha pessoa um impostor maior ainda do que eu imaginara; dos sentimentos que eu acreditara pintar-lhe em dezesseis páginas, com tanta verdade, ele duvidava então: a carta que lhe escrevi, tão ardente e tão sincera como as palavras que havia dito ao Sr. de Norpois, não alcançara maior êxito. Gilberte me contou no dia seguinte, depois de me levar à parte para trás de um bosquete de loureiros, numa pequena alameda, onde cada um se sentou numa cadeira, que, ao ler a carta, que ela me devolvia, seu pai dera de ombros dizendo:

            "Tudo isso não quer dizer nada, apenas mostra o quanto eu tenho razão."

            Eu que conhecia a pureza de meus sentimentos, a bondade da minha alma, estava indignado que minhas palavras nem sequer tivessem abalado o absurdo erro de Swann. Pois que se tratava de um erro, já não tinha mais dúvidas. Sentia que descrevera com tanta exatidão certas características irrecusáveis de meus sentimentos generosos que, para que Swann, por meio delas, não as tivesse logo reconstituído, não me viesse pedir perdão e confessar que se enganara, era preciso que ele jamais tivesse sentido esses nobres sentimentos, o que deveria torna-lo incapaz de compreendê-los nos outros.

            Ora, talvez Swann soubesse que a generosidade não passa, muitas vezes, do aspecto interior assumido pelos nossos sentimentos egoístas quando ainda não os denominamos e classificamos. Talvez reconhecesse, na simpatia que lhe apressava, um simples efeito - e uma confirmação entusiasta - do meu amor por Gilberte, pelo qual - e não pela minha veneração secundária por ele - seriam fatalmente dirigidos por meus atos a seguir. Não podia partilhar de suas previsões, pois não conseguira abstrair de mim mesmo o meu amor, fazê-lo pertencer à generalidade dos outros amores, calcular-lhe experimentalmente as conseqüências; estava desesperado. - Tive de deixar Gilberte por um instante; Françoise me chamava. Foi preciso acompanhá-la a um pequeno pavilhão com treliças verdes, bem parecido com os escritórios da alfândega municipal da velha Paris, e onde há pouco instalaram; o que na Inglaterra se chama lavabo e, na França, por uma anglomania mal informada, water-closet. As paredes úmidas e velhas da entrada, onde fiquei esperando Françoise, desprendiam um odor frio de coisa fechada que, dista logo das preocupações que acabavam de fazer nascerem mim as palavras contadas por Gilberte, invadiu-me de um prazer que não era o mesmo dos outros, os quais nos deixam mais instáveis, incapazes de retê-los ou possuí-los; pelo contrário, de um prazer consistente, ao qual podia me apoiar, delicioso, rico de uma verdade duradoura, certa e inexplicável. Teria querido, como antigamente em meus passeios pelos caminhos de Guermantes, tentar decifrar dessa impressão que me empolgara e ficar imóvel a interrogar aquela envelhecida que me propunha, não desfrutar o prazer que ela só me dava por acréscimo, mas a descida na realidade que ela não me revelava. Mas a encarregada pelo estabelecimento, velha senhora de faces excessivamente pintadas e de peruca castanha, pôs-se a falar comigo. Françoise achava-a "gente muito boa". Sua filha havia casado com o que Françoise denominava "rapaz de família", portanto, algum ser que ela julgava bem, mais diferente de um operário vindo de Saint-Simon o qual considerava de um homem "saído da lama do povo". Sem dúvida a zeladora, sofrera reveses da fortuna. Mas Françoise assegurava que ela era marquesa e pertencia à uma família de Saint-Ferréol. Essa marquesa me aconselhou que não ficasse ali ao ar fresco e me abriu um gabinete dizendo: "Não quer entrar? Este aqui é bem limpo e pra você será grátis." Talvez o fizesse apenas como as senhoritas do Gouache que quando íamos fazer uma encomenda, ofereciam-me um dos bombons que tinham em cima do balcão, sob uma tampa de vidro e que mamãe infelizmente me proibia, que eu aceitara também com menos inocência; como aquela velha florista que mamãe levava para nos encher as "jardineiras" e que me dava uma rosa revirando os olhos muito ternos. Em todo caso, se a "marquesa" gostava de rapazes, abrindo-lhes a porta daqueles cubos de pedra onde os homens estão acocorados como as Esfinges, e devia procurar em sua generosidade menos a esperança de corrompê-los; prazer que se experimenta em se mostrar inutilmente pródigo à pessoa querida; pois, nunca vi junto dela, outro visitante que não um velho guarda-florestal.

            Um momento depois, despedia-me da "marquesa", acompanhando Françoise, e deixava esta para voltar para junto de Gilberte. Divisei-a imponente numa cadeira, por detrás do bosquezinho de loureiros. Era para não ser vista pelas amigas: brincavam de esconde-esconde. Fui me sentar a seu lado. Usava um gorro achatado que caía sobre os olhos, dando-lhe aquele mesmo olhar sonhador e maroto que lhe vira da primeira vez em Combray. Perguntei se havia meios de que eu tivesse uma explicação verbal com seu pai. Gilberte dissera que ela mesma a propusera, mas que ele a julgara inútil.

            - Olhe - acrescentou - esqueça sua carta; preciso me reunir às outras, pois elas não me encontraram.

            Se Swann tivesse chegado então, antes mesmo que eu tivesse pegado essa carta sobre cuja sinceridade eu considerava que ele fora tão insensato, deixara persuadir, talvez tivesse visto que era ele quem estava com a razão. Pois, aproximando-me de Gilberte, que, inclinada para trás na cadeira, me dizia que pegasse a carta sem estendê-la a mim, senti-me tão atraído pelo seu corpo que lhe disse:

            -Vamos, impeça-me de pegá-la; vamos ver quem é mais forte.

            Ela escondeu a carta nas costas, passei minhas mãos pela sua nuca erguendo as tranças dos cabelos que ela usava sobre os ombros, fosse porque ainda era dessa idade, fosse porque sua mãe desejava fazê-la parecer criança por mais tempo, a fim de se rejuvenescer ela própria; lutamos, retesados. Tentava atraí-la, ela resistia; suas bochechas, inflamadas pelo esforço, estavam rubras e redondas como cerejas; ela ria como se eu lhe estivesse fazendo cócegas; mantinha-a presa entre minhas pernas como um arbusto ao qual quisesse trepar; e, no meio da ginástica que fazia, sem que ao menos aumentasse a sufocação que me dava o exercício muscular e o ardor do jogo, espalhei o meu prazer com algumas gotas de suor arrancadas pelo esforço, prazer no qual nem pude me deter o bastante para lhe sentir o gosto; e logo peguei a carta. Então, Gilberte me disse bondosamente:

            -Sabe, se quiser podemos lutar um pouco mais.

            Talvez ela tivesse obscuramente sentido que meu jogo tinha outro objetivo que não o que havia confessado, mas não soubera perceber que eu já o alcançara. Quanto a mim, que temia que ela o percebesse (um certo movimento retraído e tenso de pudor ofendido, que ela teve um momento depois, me fez pensar que não estava errado ao temê-lo), aceitei continuar lutando, com medo que ela pensasse que não me propusera outro objetivo senão aquele cuja realização não me deu mais vontade de ficar quieto a seu lado.

            Voltando para casa, percebi que recordei bruscamente a imagem, escondida até então, de que me aproximara sem me deixar vê-la, nem reconhecê-la, o frescor, quase cheirando a fuligem, do pavilhão gradeado. Essa imagem era a do pequeno aposento do tio Adolphe, em Combray, o qual de fato exalava o mesmo aroma de umidade. Mas não pude compreender, e deixei para mais tarde o indagar por que a recordação de uma imagem tão insignificante me dera tanta felicidade. À espera, me pareceu que merecia na verdade o desdém do Sr. de Norpois; até então, havia preferido a todos os escritores, logo aquele a quem de Norpois chamara de simples ''tocador de flauta", e uma verdadeira exaltação me fora comunicada não por uma idéia importante, e, sim, por um cheiro de mofo.

            Desde algum tempo, em certas famílias, o nome de Champs-Élysées, se um visitante o pronunciava, era acolhido pelas mães com o ar maldoso que reservam para um médico renomado a quem teriam visto fazer diagnósticos errados em demasia para ainda terem confiança; asseguravam que esse parque não convinha às crianças, que podiam citar mais de uma dor de garganta, mais de um caso de sarampo e numerosas febres pelas quais era responsável. Sem pôr abertamente em dúvida a ternura de mamãe, que continuava a me mandar para lá, certas amigas suas pelo menos deploravam sua cegueira.

            Os nevropatas são talvez, malgrado a expressão consagrada, os que menos "se escutam"; ouvem dentro de si tantas coisas que depois compreendem não ser motivo de alarme, que acabam por não prestar mais atenção em nenhuma. Tão insignificante que o seu sistema nervoso gritou tantas vezes: "Socorro!" como se se tratasse de uma doença grave, quando simplesmente ia nevar; ou que iriam mudar de casa, que eles assumem o hábito de já não levar em conta esses avisos, como um soldado que, no ardor da batalha, percebe-os tão pouco que, já fica moribundo de levar por alguns dias uma vida de homem saudável.

            Certas manhãs, ordenados dentro de mim os meus males de costume, de cuja circulação interna eu mantinha sempre o meu espírito desviado, bem como da circulação do sangue; eu corria alegremente para a sala de jantar onde meus pais já estavam sentados à mesa, e dizendo a mim mesmo, como de hábito, que se sentir frio pode ser que não seja necessário aquecer-se, mas, por exemplo, a gente não ter fome, pode ser que vai chover e não que não se deva comer sentando à mesa quando, no momento de engolir o primeiro bocado de costeleta apetitosa, uma náusea, uma tonteira me interromperam, em resposta do início de uma doença cujos sintomas o gelo da minha indiferença havia mascarado, retardado, mas que recusava obstinadamente o alimento que eu não estava em condições de absorver. Então, no mesmo minuto, a idéia de que não me deixariam sair se percebessem que estava doente me deu, como o instinto de conservação a um ferido, forças para me arrastar até meu quarto, onde vi que estava com febre de quarenta graus, para em seguida me preparar para ir aos Champs-Élysées. Meu corpo lânguido e permeável que o envolvia, meu pensamento sorridente, desejava o prazer tão doce de uma partida de barras com Gilberte; que mais tarde, mal me sustentando, porém feliz a seu lado, eu tinha ainda forças para desfrutá-lo.

            Na volta, Françoise declarou que eu me "achara indisposto", que eu deveria ter tido uma "constipação", e o médico, chamado em seguida, declarou que preferia "severidade" do que a "virulência" da subida da febre, que acompanhava minha constipação pulmonar não passaria de "fogo de palha", há formas mais "insidiosas e latentes''. Há muito tempo eu estava sujeito a sufocações, e o nosso médico, apesar da desaprovação de minha avó, que já me via agonizando de coma a aconselhara, além da cafeína que me era prescrita para me ajudar a respirar, cerveja, champanha ou conhaque quando sentisse se aproximar uma sufocação que assim a abortariam, dizia ele, na "euforia" causada pelo álcool. Muitas vezes eu só dissimulava meu estado, para que minha avó consentisse em que me dessem bebida, chegava quase fazer exibição de meu estado de sufocação. Além disso, ao aproximar-se uma crise, sempre incerto quanto às proporções que teria, preocupava por causa da tristeza de minha avó, que eu temia muito mais que minha doença. Mas ao mesmo tempo o meu corpo, ou por ser muito fraco para guardar sozinho o segredo da dor, ou por recear que na ignorância do mal iminente exigissem de mim um esforço que lhe fosse impossível ou perigoso, dava-me a necessidade de advertir minha avó de minhas indisposições com uma exatidão em que eu acabava colocando uma espécie de escrúpulo fisiológico. Logo, ao perceber em mim um sintoma incômodo que antes não discernira, meu corpo sentia-se aflito enquanto não o comunicava à minha avó. Se ela fingia não prestar atenção alguma, meu corpo me pedia que insistisse.

            Às vezes, eu ia longe demais; e o rosto amado, que já não era sempre senhor de suas emoções como antigamente, deixava transparecer uma expressão de piedade, uma contração dolorosa. Então meu coração se torturava à vista da mágoa que ela sentia: como se meus beijos devessem apagar essa mágoa, como se meu carinho pudesse dar à minha avó tanta alegria quanto o meu bem-estar, eu me lançava nos seus braços. E sendo os escrúpulos, por outro lado, serenados pela certeza de que ela conhecia o mal sentido, meu corpo já não fazia oposição a que a tranqüilizasse. Eu protestava que a indisposição nada tinha de penosa, que de modo algum precisava que tivessem pena de mim, que ela podia estar certa de que eu era feliz; meu corpo quisera obter exatamente aquilo que merecia de piedade e, desde que soubessem que sentia dores do lado direito, não via inconveniente em que eu declarasse que semelhante dor não era um mal e não oferecia obstáculo à felicidade, pois meu corpo não ligava para filosofia; não era sua especialidade. Quase todos os dias fui assaltado por aquelas crises de sufocação durante minha convalescença. Uma tarde em que minha avó me deixara em boas condições, voltou para o meu quarto já noite alta e, percebendo que me faltava a respiração:

            - Oh, meu Deus! Como estás sofrendo! - gritou, com as feições transtornadas. Em seguida me deixou, ouvi bater a porta da frente, e ela voltou logo depois com conhaque: fora comprá-lo, pois não havia nenhum em casa. Em breve comecei a me sentir bem. Minha avó, um tanto vermelha, mostrava-se constrangida sem seus olhos notava-se uma expressão de cansaço e desânimo.

            - Acho melhor te deixar para que possas gozar isto um pouco melhor. - disse ela saindo bruscamente. Todavia, beijei-a e senti em suas frescas faces algo molhado, que não soube se era a umidade do ar noturno que ela acabara de receber. No dia seguinte, ela só veio à tardinha ao meu quarto, pois, segundo me disseram, teve que sair. Achei que era mostrar muita indiferença por mim e contive-me para não censurá-la.

            Tendo persistido minhas sufocações, não sendo possível atribuí-las à congestão pulmonar que já acabara há muito tempo, meus pais mandaram o doutor Cottard vir para dar uma consulta. A um médico chamado em casos deste gênero, não basta que seja instruído; posto que a presença de tais sintomas podem ser de três ou quatro doenças.  Afinal é o seu faro e seu olhar clínico que decidem com que doença terá de defrontar-se, malgrado as aparências mais ou menos semelhantes. Esse é um dom misterioso que não implica superioridade em outros aspectos da inteligência, poder ser de grande vulgaridade, gostando da pior pintura, da pior música, não ter sequer curiosidade de espírito, pode perfeitamente possuí-lo. Em meu caso materialmente observável podia também ser causado por espasmos num começo de tuberculose, pela asma, por uma dispnéia tóxico-alimentar; ou insuficiência renal, pela bronquite crônica, por um estado complexo teriam vários desses fatores. Ora, os espasmos nervosos precisavam com desprezo, a tuberculose com grandes cuidados e um gênero de alimentação que teria sido ruim para um estado artrítico como a asma e pode ser perigoso em caso de dispnéia tóxico-alimentar, a qual exige um regime de compensação, seria nefasto para um tuberculoso. Mas as hesitações foram breves e suas prescrições imperiosas: ''Purgativos drásticos e leite durante vários dias, nada a não ser leite. Nada de carne, nada de álcool.'' Minha mãe, no entanto, murmurou que eu precisava me fortalecer, que já era sofrimento o meu nervoso, que aquele purgativo de cavalo e aquele regime certamente me deixaria abatido. Percebi nos olhos de Cottard, tão inquietos como se tivesse a perder o trem, que ele se indagava se não se deixara levar por sua bondade. Tratava de se lembrar se pensara em assumir a máscara de homem, procuramos um espelho para ver se não esquecemos de dar o nó na gravata. E na dúvida, e à guisa de compensação, respondeu grosseiramente: ''Não tenho o hábito de repetir duas vezes as minhas prescrições. Dêem-me uma caneta. Sobretudo não esqueçam o leite. Mais tarde, quando houvermos cortado a insônia, gostaria que lhe dessem um pouco de sopa, depois purê, mas leite, leite, o que o deleitará, visto que a Espanha está na moda. (Os alunos conheciam muito bem esse trocadilho que ele fazia no hospital, as vezes que submetia um cardíaco, ou um hepático a esse regime de leite). Façam-no voltar progressivamente à vida comum. Mas, sempre que tiver a tosse e as sufocações: purgantes, lavagens intestinais, leite, leite.'' Escutou com ar glacial, sem dar resposta, as últimas objeções de minha mãe e, sem se dignar explicar os motivos desse regime, meus pais o consideravam, em relação com o meu caso, inutilmente enfraquecedor, e não me mandaram seguir tal regime. Evidentemente, procuraram ocultar do professor a sua desobediência consegui-lo com maior êxito, evitaram todas as residências onde podiam encontrar com ele. Depois, tendo-se agravado o meu estado, decidira seguir ao pé da letra as prescrições de Cottard; ao cabo de três dias mais arquejos, nem tosse, e respirava bem. Então compreendemos, sem deixar de achar-me, como disse depois, bastante asmático e "maníaco", tinha percebido que o que, naquele

momento, predominava era a intoxicação, e que, lavando-me o fígado e os rins, desconfiava que os brônquios voltariam a funcionar normalmente, devolvendo-me a respiração, o sono e as forças. Aí compreendemos que aquele imbecil era um grande clínico. Enfim, pude me levantar. Mas falavam de não me enviar mais aos Champs-Élysées. Diziam que era devido ao ar insalubre; eu achava que aproveitavam o pretexto para que não pudesse mais ver a Srta. Swann. Obriguei-me a repetir todo o tempo o nome de Gilberte, como o idioma natal que habitantes de um país vencido se esforçam por manter para não esquecer a pátria que jamais voltarão a ver. Às vezes minha mãe passava a mão pelo meu rosto, dizendo:

            -Então, os filhinhos não contam mais para a mamãe os seus desgostos?

            Françoise se aproximava de mim todos os dias, observando:

            - O senhor está com uma cara! Não se olhou no espelho? Parece um defunto!

            É verdade que se eu tivesse uma simples gripe, Françoise teria assumido o mesmo aspecto fúnebre. Tais lamentações se originavam mais da sua "classe" do que de meu estado de saúde. Eu não distinguia, então, se esse pessimismo era, em Françoise, doloroso ou satisfeito. Provisoriamente, concluí que era social e profissional.

            Um dia, à hora do correio, minha mãe deixou uma carta na minha cama. Abri-a distraído, pois que ela não podia levar a única assinatura que me faria feliz, a de Gilberte, com quem não me relacionava fora dos Champs-Élysées. Ora, na parte de baixo do papel, timbrado com um selo de prata representando um cavaleiro armado de capacete, sob o qual se retorcia esta divisa: Per viam rectam, no fim de uma carta, escrita com letra bem grande e onde quase todas as frases pareciam sublinhadas, simplesmente porque o traço dos 'tt' eram feitos não cortando as letras, mas por cima delas, fazendo um traço debaixo da palavra correspondente da linha superior, foi justamente a assinatura de Gilberte o que vi. Mas porque sabia ser impossível numa carta endereçada a mim, o fato de vê-la sem que fosse acompanhada de fé não me causou alegria. Por um momento, ela não fez mais que ferir de irrealidade tudo o que me cercava. Com vertiginosa velocidade, tal assinatura sem verossimilhança brincava de quatro-cantos com minha cama, a lareira e a parede. Via tudo vacilar como alguém que cai do cavalo, e me perguntava se não havia uma existência totalmente diferente da que eu conhecia, em contradição com ela, é que era verdadeira e que, sendo-me mostrada de súbito, enchia-me dessa hesitação. Como os escultores, ao modelar o Juízo Final, atribuíram aos mortos ressuscitarem; que se encontram no limiar do outro mundo. "Meu caro amigo''- dizia a carta-, Soube que você tem estado muito doente e que não vem mais aos Champs-Élysées. Também já não vou muito lá porque é extremamente doentio. Mas minhas amigas vêm lanchar todas as segundas e sextas aqui em casa. Mamãe me encarregou de lhe dizer que nos daria muito prazer se viesse também logo que estiver restabelecido, e poderíamos retomar em casa as nossas boas conversas dos Champs-Élysées. Adeus, meu caro amigo, espero que seus pais lhe permitam vir muitas vezes lanchar aqui; envio-lhe toda a minha amizade. Gilberte."

            Enquanto lia estas palavras, meu sistema nervoso recebia com admirável diligência a notícia que me trazia grande felicidade. Porém minha alma, isto é, eu mesmo, e em suma o principal interessado, ainda a ignorava. A felicidade vinda de fato por meio de Gilberte, era uma coisa com que sonhara constantemente; coisa toda em pensamentos, era, como dizia Leonardo a respeito da pintura cosa mentale. Uma folha de papel coberta de caracteres, o pensamento não de imediato; porém, logo que terminei a carta, pensei nela, ela tornou-se uma fantasia, tornou-se, ela também, cosa mentale e eu já a amava tanto- que cinco minutos precisava relê-la, beijá-la. Só então conheci minha felicidade.

            A vida é semeada desses milagres que as pessoas que amam sempre esperam. É possível que este tenha sido causado artificialmente; e minha mãe vendo que desde algum tempo eu perdera todo o ânimo teria mandado pedir a Gilberte que me escrevesse, como, à época dos primeiros banhos de mar, para me dar prazer em mergulhar, coisa que detestara por me cortar a respiração, ela entregava às escondidas ao meu instrutor as maravilhosas caixas de conchinhas e ramos de coral que eu próprio julgara descobrir no fundo das águas. Aliás, com relação a todos os acontecimentos da vida e suas situações contrastantes se referem ao amor, o melhor é não tentar compreender, visto que, no que têm tanto de inexorável como de inesperado, regidos por leis antes mágicas do que racionais. Quando um multimilionário encantador, apesar de seus milhões é mandado embora pela mulher pobre e sem atrativos com a qual vivia, volta-se no seu desespero, para todas as forças do ouro e põe em jogo todas as influências da terra, sem conseguir que ela regresse, mais vale, invencível teimosia da amante, supor que o Destino deseja abatê-lo trazendo-lhe uma doença do coração, ao invés de procurar uma explicação lógica. Esses obstáculos, contra os quais os amantes têm de lutar e que sua imaginação excitada pelo sofrimento busca em vão adivinhar, residem às vezes singularidade do caráter da mulher que não conseguem trazer de volta; e sua estupidez, na influência que adquiriram sobre ela; os temores inspirados por pessoas que o amante não conhece; no gênero de prazeres, que momentaneamente pede à vida, prazeres que nem seu amante, nem a fortuna dele podem lhe oferecer. Em todo caso, o amante não está em condições de natureza dos obstáculos que a astúcia da mulher lhe oculta e que julgamento falseado pelo amor o impede de apreciar com exatidão esses tumores que o médico acaba por reduzir, mas sem lhes ter origem. Como eles, esses obstáculos permanecem misteriosos, mas não são  eternos. Unicamente, em geral duram mais que o amor. E, como este amor não é paixão desinteressada, o indivíduo amoroso que já não ama não procura motivo na mulher pobre e leviana a quem amava se recusara obstinadamente durante anos, a que ele continuasse a mantê-la.

            Ora, o mesmo mistério que disfarça muita vez aos olhos as catástrofes, quando se trata do amor, envolve freqüentemente repentinas soluções felizes (como a que me fora trazida pela carta de Gilberte). Soluções felizes ou que pelo menos parecem sê-lo, pois quase nenhuma o é de verdade quando se trata de um sentimento tal que toda satisfação que se lhe dê só serve para mudar de local o sofrimento. No entanto, às vezes propõe-se uma trégua e tem se a ilusão de que se está curado.

            No que diz respeito à essa carta, onde no final Françoise se recusou a reconhecer o nome de Gilberte, porque o G, muito enfeitado e apoiado num 'i' sem ponto, parecia um A, ao passo que a última sílaba era indefinidamente prolongada com o auxílio de um rabisco, serrilhando-se a gente procura uma explicação racional para a reviravolta que ela indicava e que me fazia tão contente, talvez possamos concluir que devia em parte a um incidente que, ao contrário, eu pensava ser de molde ameaçador perder para sempre no julgamento dos Swann. Pouco antes, Bloch tinha vindo me visitar, enquanto o professor Cottard consultava-me, o qual, desde que eu seguia seu regime, fora mandado buscar novamente, se encontrava no meu quarto. A consulta havia acabado e Cottard, ficando apenas como visita porque meus pais o haviam retido para jantar, deixou entrar Bloch. Como estávamos todos conversando, tendo Bloch contado que ouvira dizer que a Sra. Swann gostava muito de mim, por uma pessoa com quem jantara na véspera, a qual era muito ligada à Sra. Swann, tive a intenção de responder que ele certamente se enganava, e de estabelecer, com o mesmo escrúpulo que me fizera declarar ao Sr. de Norpois e de medo que a Sra. Swann me tomasse por mentiroso, que não a conhecia e nunca lhe falara. Mas não tive coragem de retificar o erro de Bloch, pois compreendi muito bem que era voluntário, e que, se ele inventava algo que a Sra. Swann não poderia de fato ter dito, era para fazer saber, o que ele achava elogioso e não seria verdadeiro, que ele havia jantado com uma das amigas dessa senhora. Ora, aconteceu que, ao passo que o Sr. de Norpois, sabendo que eu não conhecia e gostaria de conhecer a Sra. Swann, esquivou-se a lhe falar a meu respeito; Cottard, que era médico dela, tendo deduzido que ouvira de Bloch, que ela me conhecia e me apreciava muito, pensou que, quando a visse, dizer que eu era um bom menino com quem se relacionava, não poderia me ser útil em nada e seria elogioso para ele, dois motivos que o decidiram a falar de mim à Odette tão logo encontrou uma oportunidade.

            Foi então que conheci aquele apartamento, de onde se evolava até a escada o perfume de que se servia a Sra. Swann, mas que embalsamava bem mais ainda encanto particular e doloroso que emanava da vida de Gilberte. O implacável porteiro, mudado numa benevolente Eumênide, habituou-se, quando lhe perguntava se podia subir, a me indicar, erguendo o gorro com mão propícia, que fora ouvida minha prece. As janelas que, de fora, interpunham entre mim e os tesouros que não estavam destinados à um olhar brilhante, distante e superficial que me parecia o frio olhar dos Swann; aconteceu-me, quando no verão eu havia passado uma tarde toda conversando com Gilberte em seu quarto, abri-las eu mesmo para deixar entrar um pouco de ar e até a me debruçar a seu lado, se era dia de recepção de sua mãe ao ver chegar as visitas que muitas vezes, erguendo a cabeça ao descer me faziam um aceno com a mão, tomando-me por um sobrinho da Sra. Swann. Nesses momentos, as tranças de Gilberte roçavam meu rosto. Parecia a finura de sua grama a um tempo natural e sobrenatural; pela força de folhagens  artísticas, uma obra única, para a qual teriam utilizado a própria relva. A um fragmento mesmo ínfimo delas, que celeste herbário eu não teria em moldura? Porém, não esperando obter um pedaço de verdade daquelas ao menos conseguisse uma fotografia delas, quanto mais preciosa que as florzinhas desenhadas pelo Da Vinci! Para obter uma, pratiquei, junto dos Swann e até fotógrafos, baixezas que não me alcançaram o que desejava; porém, me ligaram para sempre à pessoas muito desagradáveis.

            Os pais de Gilberte, que por tanto tempo me haviam impedido agora - quando eu entrava na sombria antecâmara onde pairava permanente mais formidável e desejada que outrora, em Versalhes, o aparecimento do rei; a possibilidade de encontrá-la onde habitualmente, depois de dar um tropeção num enorme cabide de sete braços como o Candelabro da Escritura, em cumprimentos diante de um lacaio sentado, com seu longo casaco sobre a arca de madeira e que, na escuridão, eu tomara pela Sra. Swann. Gilberte, se acaso um deles passasse no momento da minha chegada, mostrarem irritados, estendiam a mão sorrindo, e me diziam:

            - Como vai você? - (Comment allez-vous, que pronunciavam 'comment' sem fazer a ligação do 't' à vogal seguinte, ligação que logo: que eu, uma vez entrado na casa, fazia um incessante e voluptuoso suprimir.) Gilberte sabe que já chegou? Então deixo-o à vontade.

            Muito mais, os próprios lanches que Gilberte oferecia à suas amigas que por tanto tempo, me haviam parecido a mais intransponível das barreiras acumuladas entre ela e mim, tornavam-se agora uma ocasião para nos reunir e me avisava por um bilhete, escrito; pois eu era uma relação ainda muito de papel de carta sempre diferente. Uma vez era enfeitado com o desenho de um cãozinho azul, em relevo, sobre uma legenda humorística escrita em inglês seguida de um ponto de exclamação; outra vez, timbrado com uma âncora; iniciais G. S., desmedidamente alongadas em um retângulo que ocupava o alto da folha, ou ainda do nome "Gilberte", ora escrito transversalmente; em caracteres dourados que imitavam a assinatura da minha amiga e um rabisco, debaixo de um guarda-chuva aberto impresso em negro, ou em um monograma em forma de chapéu chinês que continha todo nome em maiúsculas, sem que fosse possível distinguir uma só. A série de papéis para cartas que Gilberte possuía, por mais numerosa que fosse não era ilimitada, ao fim de um certo número de semanas, eu via retornar, como da primeira vez que me escrevera, a divisa: Per viam rectam, acima do cavaleiro de capacete, num distintivo de prata brunida. E cada um era escolhido num dia e não em outro, em virtude de determinados ritos, pensava eu então, porém antes, creio-o atualmente, porque ela procurava se lembrar daqueles de que se servira em outras ocasiões, de modo a nunca enviar o mesmo a um de seus correspondentes, pelo menos àqueles por quem se dignava a dar-se a esse trabalho, senão em intervalos o mais possível afastados. Como, devido à diferença das horas de suas aulas, algumas das amigas que Gilberte convidava para esses lanches eram obrigadas a ir embora quando outras acabavam de chegar, desde a escada eu ouvia escapar-se da antecâmara um murmúrio de vozes que, na emoção que me causava a cerimônia imponente à qual iria assistir, rompia bruscamente, muito antes que eu alcançasse o patamar, os laços que ainda me ligavam à vida anterior e me tirava até a lembrança de ter de despir meu cachecol, uma vez que estaria bem aquecido, e de olhar a hora para não voltar atrasado. Essa escada, aliás, toda em madeira, como se fazia então em certas casas para alugar no estilo Henrique II, que fora durante tanto tempo o ideal de Odette e do qual em breve se desligaria, e provida de um cartaz sem equivalente em nossa casa, no qual se liam estas palavras: "Proibido usar o elevador para descer", parecia-me algo de tanto prestígio que disse a meus pais que era uma escada antiga trazida de muito longe pelo Sr. Swann. Meu amor pela verdade era tão grande que não teria hesitado em lhes dar essa informação mesmo se soubesse que era falsa, pois só ela poderia lhes permitir que tivessem pela dignidade da escada dos Swann o mesmo respeito que eu tinha. É assim que, diante de um ignorante que não pode compreender em que consiste o gênio de um grande médico, acreditar-se-ia ser bom não confessar que ele não sabe curar uma gripe. Mas, como eu não tinha nenhum espírito de observação, como em geral não sabia o nome nem a espécie das coisas que se achavam sob meus olhos, e só compreendia que elas, quando estavam próximas dos Swann, deveriam ser extraordinárias, não me pareceu adequado que, advertindo meus pais acerca do valor artístico e da longínqua proveniência daquela escada, dissesse uma mentira. Aquilo não me pareceu certo; porém, deve me ter parecido provável, pois me senti ficar muito vermelho quando meu pai me interrompeu dizendo:

            -Conhece essas casas; já vi uma delas, são todas iguais; Swann simplesmente ocupa vários andares, foi Berlier quem as construiu. - Acrescentou que quisera alugar uma delas, mas desistira daquilo, não as julgando cômodas e na entrada não suficientemente claras, disse-o; mas senti instintivamente que meu espírito devia fazer "prestígio'' dos Swann e à minha felicidade os sacrifícios necessários e, num rasgo de autoridade paterna, apesar do que acabara de ouvir, afastei de mim para sempre como o olho de um devoto à Vida de Jesus de Renan, a idéia dissolvente de que o apartamento deles era um apartamento qualquer que poderíamos habitar.

            Entretanto, naquelas tardes de lanche, subindo na escada degrau a degrau já sem idéia e sem memória, não sendo mais que um brinquedo dos reflexos mais vis, chegava à região em que o perfume da Sra. Swann se fazia presente estava já vendo a majestade do bolo de chocolate, rodeado por um círculo de sequilhos e de pequenos guardanapos adamascados cinzentos, como exigidos pela etiqueta e próprios dos Swann. Mas esse conjunto imutável parecia, como o universo necessário de Kant, depender de um ato liberdade. Pois quando estávamos todos no pequeno salão de Gilberte olhando as horas, ela dizia:

            - Olhem, já faz tempo que almocei, só janto às oito horas, estou com vontade de comer alguma coisa. Que dizem?

            Ela nos fazia entrar na sala de jantar, sombria como o interior de templo asiático pintado por Rembrandt, e onde um bolo arquitetônico; tão familiar quanto imponente, parecia reinar ao acaso como num dia qualquer para o caso que desse na cabeça de Gilberte despojá-lo de suas ameias de chocolate e de abater suas muralhas de rampas fulvas e rígidas, cozidas ao forno dos bastiões do palácio de Dario. Melhor ainda: para proceder à destruição de ninívea obra de pastelaria, Gilberte não consultava apenas a sua fome; informava-se também sobre a minha, enquanto extraía para mim, do monumento desmoronado, um pedaço polido e engastado de frutos escarlates, ao gosto oriental. Perguntou a hora em que meus pais jantavam, como se eu ainda o soubesse da perturbação que me dominava se deixasse persistir a sensação de inapetência de fome, a noção do jantar ou a imagem da família, na minha memória faria o estômago paralisado. Infelizmente essa paralisia era apenas momentânea. Vendo o momento em que seria necessário digerir os doces que eu comia sem ver o que estava fazendo. Mas esse momento ainda estava longe. Enquanto isso Gilberte preparava o "meu chá". Bebia indefinidamente, ainda que uma única xícara para que me impedisse de dormir durante vinte e quatro horas. Era por isso que minha mãe começava a dizer:

            "É desagradável; este menino não pode ir à casa dos Swann doente."

            Mas, quando me achava na casa dos Swann, sabia eu pelo menos que era chá o que estava bebendo? Ainda que soubesse, o tomaria assim mesmo, admitindo que estivesse por um instante recobrado o discernimento, aquilo não teria me devolvido a lembrança do passado e a previsão do que estaria por vir. Minha imaginação não era capaz de ir até o tempo distante em que eu tivesse a idéia de me deitar e sentir sono.

            As amigas de Gilberte não estavam todas mergulhadas nessa embriaguez onde é impossível tomar uma decisão. Algumas chegavam a não tomar o chá! Então Gilberte dizia, frase muito em voga naquela época: ''- Decidiram que faço sucesso com o meu chá!'' - E, para apagar ainda mais a idéia de cerimônia, desarrumava a ordem das cadeiras ao redor da mesa:''-Parece uma festa meu Deus, como são idiotas os criados...''

            Mordiscava, sentada de lado num assento em forma de cruz e ela ficava transversalmente à mesa. E como se fosse possível ter tantos doces à sua disposição embora tendo pedido licença à mãe, até quando a Sra. Swann - cujos dias de recepção em geral coincidiam com os lanches de Gilberte -, depois de ter levado uma visita à porta, um instante após, entrava correndo na sala, às vezes, trajada de veludo azul, quase sempre com um vestido de cetim preto ornado de rendilhas brancas, dizia com ar assombrado:

            - Olha, parece bom isto que estão comendo; me dá até fome ver vocês comendo.

            - Muito bem, mamãe, está convidada. - respondia Gilberte.

            -Não, não, meu tesouro; o que diriam as minhas visitas? Ainda estou com a Sra.Trombert, a Sra. Cottard e a Sra. Bontemps; sabes que a prezada Sra. Bontemps não faz visitas muito rápidas e ela apenas acaba de chegar. Que diria toda essa boa gente se não me visse voltar? Se não vier mais ninguém, voltarei para conversar com vocês (e isso me dará muito mais prazer) logo que elas forem embora. Creio que mereço ter um pouco de sossego, tive quarenta e cinco visitas e, destas, quarenta e duas falaram do quadro de Gérôme! Mas venha qualquer dia destes - dizia-me ela - tomar o seu chá com Gilberte; ela o fará como você gosta, como está acostumado a tomar no seu pequeno studio - acrescentava, deixando-nos pelas suas visitas e como se eu tivesse vindo procurar naquele mundo misterioso algo tão conhecido como meus próprios costumes (como o hábito de tomar chá, que nunca tivera). Quanto a um studio, eu não tinha certeza de que o possuía ou não.

            - Quando voltará? Amanhã? Faremos toasts tão bons como os de Colombin. Não? Você é um malandro - dizia, pois desde que começara a ter igualmente um salão, assumia as maneiras da Sra. Verdurin, e seu tom de despotismo afetado. Os toasts, aliás, como me eram tão desconhecidos quanto Colombin, faziam com que esta última promessa não acrescentasse nada à minha tentação. Parecerá mais estranho, visto que o mundo todo fala assim e talvez hoje até em Combray, que eu não tivesse compreendido a que desejava se referir a Sra. Swann quando a ouvi fazer-me o elogio da nossa velha nurse. Eu não sabia inglês, mas compreendi logo que aquele termo designava Françoise. Eu que nos Champs-Élysées temera tanto a penosa impressão que ela deveria produzir, soube pela Sra. Swann que aquilo era tudo o que Gilberte contara a respeito de minha nurse, o que despertara em seus pais a simpatia por mim.

            - Sente-se que ela lhe é tão dedicada e tão boa! - Logo aceitei inteiramente da opinião acerca de Françoise. Por outro lado, já não me parecia tão necessário ter uma governanta dotada de impermeável e de pluma.

            Por fim, compreendi, por algumas palavras que a Sra. Swann deixou escapar acerca da Sra. Blatin, cuja benevolência reconhecia, mas de quem temia as visitas, que as relações com essa senhora não me seriam tão úteis quanto havia pensado e não haviam melhorado em nada a minha situação com os Swann.

            Se já principiara a explorar com esses sobressaltos de respeito e de alegria que, contra toda expectativa, me abrira suas avenidas até então proibidas, era apenas, no entanto, como amigo de Gilberte. O reino escolhido era ele próprio contido em um outro ainda mais misterioso, onde Swann e sua mulher levavam sua vida sobrenatural, e para o qual se dirigiam depois de apertado a mão, quando atravessavam a antecâmara ao mesmo tempo, porém em sentido inverso. Em breve, porém, penetrei igualmente no Santuário. Por exemplo, Gilberte não estava em casa, onde só se achavam o Sr. e a Sra. Swann. Tinham perguntado quem tocara e, sabendo que era eu, mandaram-me que ficasse um momento com eles, desejando que usasse em tal ou qual numa coisa ou outra, minha influência sobre a filha. Lembrei-me daquela completa, tão persuasiva, que escrevera fazia algum tempo ao Swann, àquela que sequer se dignara a responder. Admirava a incapacidade do espírito, do coração para realizar a menor conversão, resolver uma só dessas dificuldades que a seguir a vida, sem que ao menos se saiba como o conseguiu, escolhe facilmente. Minha nova situação de amigo de Gilberte, dotado de excelente influência sobre ela, fazia-me agora beneficiário do mesmo favor que, se tivesse pertencido a um colégio, onde estava sempre em primeiro lugar, o filho de um rei, e esse acaso obtivesse entradas no Palácio e audiências na sala do trono; com infinita benevolência e como se não fosse sobrecarregado de ocupar as misteriosas, me fazia entrar em sua biblioteca e aí me deixava, durante uma hora a responder com balbucios, silêncios de timidez cortados de breves impulsos de coragem, perguntas às quais a minha emoção me impedia de compreender uma só palavra; mostrava-me objetos de arte e livros que achava de me interessar e que eu previamente não duvidava ultrapassassem infinita beleza todos os do Louvre e da Biblioteca Nacional, mas que me era impossível contemplar. Nessas ocasiões, o seu mordomo me teria dado grande prazer que lhe desse meu relógio de pulso, o alfinete de gravata, minhas botinas; ou assinasse um documento em que o reconhecesse como meu herdeiro: bela expressão popular da qual, como no caso das mais célebres epopéias, conhece o autor; mas que, como elas e contrariamente à teoria de Wolf,  (um desses espíritos inventivos e modestos que se encontram anos, os quais fazem achados tais como "pôr um nome numa cara", mas dão a conhecer o seu próprio), eu não sabia mais o que estava fazendo. Muito, me espantava, ao se prolongar a visita, da nulidade de realização, de conclusão feliz, a que levavam aquelas horas vividas na residência. Porém minha decepção não decorria nem da incapacidade das obras-primas tratadas, nem da impossibilidade de deter sobre elas um olhar distraído. Pois a beleza intrínseca das coisas que fazia, para mim, ser milagroso estar no lar de Swann, era a adesão a essas coisas que podiam ter sido as mais belas do mundo do sentimento particular, triste e voluptuoso que eu localizava a tantos anos e as impregnava ainda; da mesma forma, a multidão de escovas de prata, de oratórios de Santo Antônio de Pádua pintados ou esculpidos pelos maiores artistas, seus amigos, não participavam em nada do sentimento de minha indignidade e de sua benevolência real que me eram inspirados quando a Sra. Swann me recebia por um momento em seu quarto, onde três belas e imponentes criaturas, sua primeira, segunda e terceira camareiras, preparavam sorrindo toaletes maravilhosas, e para o qual, de acordo com a ordem proferida pelo lacaio de calções curtos, de que a senhora desejava me dizer uma palavra, eu me dirigia pelo caminho sinuoso de um corredor todo embalsamado à distância pelas essências preciosas cujos eflúvios odoríferos se exalavam sem cessar do quarto de vestir.

            Depois que a Sra. Swann voltava para junto de suas visitas, nós ainda a ouvíamos falar e rir, pois, mesmo diante de duas pessoas e como se estivesse com todos os "camaradas", ela erguia a voz e dizia frases, conforme ouvira fazer tantas vezes, no pequeno clã, a "patroa", nos momentos em que esta "dirigia a conversa". As expressões que recentemente tomamos emprestadas aos outros são, ao menos por algum tempo, aquelas que mais gostamos de empregar; a Sra. Swann escolhia ora as que aprendera com pessoas distintas que seu marido não pudera evitar de lhe apresentar (foi delas que adquiriu o maneirismo que consiste em suprimir o artigo ou o pronome demonstrativo diante de um adjetivo para qualificar uma pessoa), ora as mais vulgares (por exemplo: "E um nada!", expressão favorita de uma das amigas) e procurava pô-las em todas as histórias que, segundo um hábito adquirido no "pequeno clã", gostava de contar. A seguir, agradava-lhe dizer: "Gosto muito desta história", "ah, confessem que é uma história muito bonita!"; o que vinha, pelo marido, dos Guermantes que ela não conhecia.

            A Sra. Swann deixara a sala de jantar, mas seu marido, que acabara de chegar, fazia por sua vez uma aparição junto a nós.

            -Sabes se tua mãe está sozinha, Gilberte?

            - Não, ela ainda tem visitas, papai.

            - Como, ainda? Às sete horas! É espantoso. A pobre mulher deve estar exausta. É odioso. (Em minha casa eu sempre ouvira "odioso" pronunciado com 'o' longo, mas o casal Swann o pronunciava com 'o' breve.) Imaginem, desde as duas da tarde! - continuou, voltando-se para Mim.

            -E Camille me dizia que entre quatro e cinco horas tinham vindo bem umas doze pessoas.    -Doze? Creio que me disse quatorze. Não, doze; enfim, já nem sei mais. Quando entrei, nem pensava que era o seu dia de recepção e, vendo todos esses carros diante da porta, julguei que houvesse um casamento na casa. E, desde que entrei na biblioteca, os toques de campainha não cessaram; palavra de honra, fiquei com dor de cabeça. E ainda há muita gente com ela?

            - Não, duas visitas apenas.

            - E sabes quem são?

            - A Sra. Cottard e a Sra. Bontemps.

            - Ah, a esposa do Chefe-de-gabinete do ministro das Obras Públicas.

            -Sei que o marido dela é empregado num ministério, mas não sei exatamente o que seja - respondeu Gilberte, ficando a criança.

            - Mas como, bobinha, falas como se tivesses dois anos. Que é que dizes empregado em um ministério? Ele é simplesmente chefe-de-gabinete, chefe de toda aquela coisa e muito mais... Onde estou com a cabeça? Para alguém distraído como tu, ele não é chefe-de-gabinete, é simplesmente diretor.

            - Não sei nada disso; então é muita coisa ser diretor do gabinete? replicou Gilberte, que não perdia uma ocasião para manifestar sua indiferença àquilo que envaidecia os pais (e talvez pensasse que não fazia mais que uma relação tão brilhante dando a impressão de não lhe atribuir muita importância

            - Quê! Se é muita coisa! - exclamou Swann que preferia a modéstia, que poderia me deixar em dúvida, uma linguagem mais explícita - é simplesmente o primeiro abaixo do ministro! É até mais que o ministro é quem faz tudo. Aliás, parece que se trata de um sujeito capaz, um primeira linha, um indivíduo muito distinto. É oficial da Legião de Honra - homem delicioso, e até um belo rapaz. Aliás, a mulher se casara com ele contra tudo e contra todos por "um encanto". Ele possuía, o que podia bastar para formar um conjunto delicado, uma barba loura e sedosa, belas feições, uma voz nasal e um olho de vidro. - Eu lhe direi. - acrescentou Swann dirigindo-se a mim- que bastante ao ver essa gente no governo atual, porque são os Bontemps, Bontemps-Chenut, o tipo da burguesia reacionária, clerical, de idéias estreitas que seu pobre avô conheceu muito bem, ao menos de reputação e de vista; o velho que só dava um sou de gorjeta aos cocheiros, embora fosse rico para lá do barão Bréau-Chenut. Toda a fortuna deles se desfez no crack da Union você é muito jovem para ter conhecido isso, mas que diabo! Refizeram e puderam.

            - Ele é tio de uma menina que freqüentava o meu curso, numa classe inferior à minha, a famosa "Albertine". Ela será com certeza era muito fast, mas agora é muito divertida.

            - Minha filha é assombrosa, conhece todo mundo.

            - Não a conheço; apenas a via passar, e gritavam Albertine aqui ou dali. Mas conheço a Sra. Bontemps e ela também não me agrada.

            - Enganas-te redondamente, pois ela é encantadora, bonita. Chega a ser espirituosa. Vou cumprimentá-la, perguntar se seu marido teremos guerra, e se podemos contar com o rei Teodásio. Ele deve saber é mesmo, logo ele que partilha do segredo dos deuses?

            Não era assim que Swann falava outrora; mas quem não viu princesas reais muito simples que dez anos depois se deixam raptar por uma ajuda de câmara, buscando o convívio social, percebem que os outros não as visitam e assumem espontaneamente a linguagem de velhas aborrecidas e que falam numa duquesa da moda, não as ouviu dizer: -"Ela estava ontem em casa"? e: "Vivo muito retirada"? Portanto, é inútil observar os costumes; impossível deduzi-los das leis psicológicas.

            Os Swann compartilhavam desse defeito das pessoas a cuja casa pouca gente acorre: a visita, o convite, uma simples palavra amável provinda de pessoas tanto marcantes eram para eles um acontecimento ao qual desejavam dar publicidade. Se a má sorte fazia com que os Verdurin fossem a Londres quando Odette tinha tido um jantar de algum brilho, arrumava-se um jeito para que um amigo comum enviasse um cabograma para além da Mancha com a notícia. E nem as cartas nem os telegramas elogiosos recebidos por Odette os Swann eram capazes de guardar só para si. Falavam deles aos amigos, faziam-nos passar de mão em mão. Assim, o salão dos Swann se assemelhava a esses hotéis de balneários onde se expõem ao público os despachos telegráficos.

            Além disso, as pessoas que não só haviam conhecido o antigo Swann fora da sociedade, como eu, mas na própria sociedade, naquele ambiente dos Guermantes onde, excetuando as altezas e as duquesas, todos eram de uma exigência infinita quanto ao espírito e ao encanto pessoal, de onde eram excluídos os homens eminentes considerados tediosos ou vulgares, tais pessoas se espantariam ao verificar que o antigo Swann deixara de ser não apenas discreto quando falava de suas relações, mas difícil quando se tratava de escolhê-las. Como é que a Sra. Bontemps, tão vulgar e tão maldosa, não o exasperava? Como podia declarar que ela era agradável? Parece que a recordação do ambiente dos Guermantes deveria impedi-lo de tal; na realidade, ajudava-o. Certamente, existia entre os Guermantes, ao contrário do que sucede em três quartos dos meios mundanos, um gosto até mesmo requintado, porém igualmente o esnobismo, de onde a possibilidade de uma interrupção momentânea no exercício do gosto.

            Se se tratasse de alguém que não fosse indispensável àquele grupo, de um ministro das Relações Exteriores, republicano um tanto solene, de um acadêmico tagarela, o gosto se exercia a fundo contra ele, Swann lamentava que a Sra. de Guermantes o tivesse feito jantar na companhia de semelhantes convivas numa embaixada, e mil vezes lhes preferiam um homem elegante, ou seja, um meio do ambiente dos Guermantes, inútil, mas que possuísse o espírito de Guermantes, alguém que pertencesse à mesma capelinha. Apenas, se uma grã-duquesa, uma princesa de sangue real jantava com freqüência na casa da Sra. de Guermantes, passava então a também fazer parte dessa capelinha; sem ter nenhum direito a isso, sem possuir em nada o seu espírito. Mas, com a ingenuidade das pessoas mundanas, no momento em que a recebiam, forcejavam para achá-la agradável, por não poderem afirmar que era porque a achavam agradável que a recebiam. Swann vinha em auxílio da Sra. de Guermantes e lhe dizia após uma partida da alteza:

            - No fundo é uma boa mulher, chega mesmo a ter um certo senso do cômico. Meu Deus, não creio que tenha se aprofundado em “Crítica da Razão Pura”, mas não é desagradável.

            - Sou absolutamente da sua opinião respondia a duquesa. - Ela ainda está intimidada, mas verá como pode ser encantadora. - É bem menos tediosa que a Sra. 'X' (a esposa do acadêmico tagarela, e que era uma mulher de citar vinte volumes. Mas nem há termo de comparação possível. -A dizer estas coisas, de dizê-las sinceramente, Swann a adquirira na casa e a conservara. Utilizava-se dela, agora, em relação às pessoas que conhecia. Esforçava-se por discernir e amar, nessa gente, as qualidades que todo revela se é examinado com predisposição favorável e não como de exigentes; valorizava os méritos da Sra. Bontemps como antigamente os da esposa de Parma, a qual devia ter sido excluída do meio dos Guermantes senão houvesse entrado de favor para certas altezas e se, mesmo quando se tratava dela se considerasse, na verdade, apenas o espírito e um certo encanto. Aliás, via que Swann possuía o gosto (do qual fazia agora um emprego duradouro) de trocar sua posição mundana por uma outra que, em certas circunstâncias, era-lhe mais conveniente. Só as pessoas incapazes de percepção, o que à primeira vista parece indivisível é que crêem que forma um só corpo com a pessoa. Uma mesma criatura, vista em momentos sucessivos de sua vida, banha-se em diferentes graus da escala social que não são forçosamente cada vez mais elevados; e cada vez que, no período da existência, estabelecemos ou reatamos laços com um deste meio, que aí nos sentimos cercados de atenções, começamos naturalmente ligar à ele, e a lhe criarmos raízes humanas.

            No que diz respeito à Sra. Bontemps, creio também que Swann com toda essa insistência, não se aborrecia ao pensar que meus pais iam saber que ela ia visitar sua mulher. A falar a verdade, em casa, o nome de que Sra. Swann ia aos poucos conhecendo excitava mais curiosidade do que admiração. Ao nome da Sra. Trombert, minha mãe dizia:

            -Ah, eis uma nova recruta, a qual arrastará outras.

            E, como se comparasse a maneira um tanto sumária, rápida e da vida a qual a Sra. Swann conquistava suas relações a uma guerra colonial, acrescentava:

             - Agora que os Trombert estão submetidos, às tribos vizinhas começarão a se render.

            Quando cruzava na rua com a Sra. Swann, dizia-nos ao voltar:

            - Vi a Sra. Swann em pé de guerra, devia estar indo para uma proveitosa, na casa dos massechutos, dos cingaleses ou dos Trombert. E, de todas as novas personalidades que lhe dizia ter visto naquele tempo um tanto misturado e artificial, aonde muitas vezes tinham sido levada com muita dificuldade e de mundos bastante diversos, adivinhava de imediato a origem e falava delas como o teria feito de troféus penosamente comprados. -Trazido de uma expedição à casa do Sr. Fulano.

            Quanto à Sra. Cottard, meu pai se admirava de que a Sra. Swann achar alguma vantagem em atrair essa burguesa pouco elegante, e dizia da posição social do professor, ''confesso que não entendo". Minha mãe percebia muito bem; sabia que uma boa parte dos prazeres que uma mulher acha em penetrar num ambiente diverso daquele em que vivia antes, lhe faltaria se ela pudesse informar suas antigas relações sobre aquelas, relativamente mais brilhantes, pelas quais as substituíra. Para tanto, era preciso uma testemunha que se deixasse entrar naquele mundo novo e delicioso, como em uma flor um inseto zumbidor e inconstante que, a seguir, ao sabor de suas visitas, haverá de espalhar, ao menos assim se espera, o germe secreto da inveja e da admiração. A Sra. Cottard, perfeitamente adequada para preencher este papel, entrava naquela categoria especial dos convidados que mamãe, que possuía alguns traços da feição de espírito do pai, chamava: "Estrangeiro, vá a Esparta e diga...". Aliás - além de outra razão que só vim a conhecer anos depois -, a Sra. Swann, ao convidar essa amiga benévola, discreta e modesta, não tinha a temer o fato de introduzir em sua casa, nas brilhantes recepções, uma traidora ou concorrente. Sabia do número enorme de cálices burgueses que podia visitar numa só tarde, quando estava armada de plumas e cartões de visita, essa ativa operária. Conhecia-lhe o poder de disseminação e, baseando-se no cálculo das probabilidades, era levada a pensar que, muito provavelmente, certo comensal dos Verdurin ficava sabendo, no máximo dois dias depois, que o governador de Paris deixara cartões na casa dela, ou que o próprio Sr. Verdurin ouvira dizer que o Sr. Le Hault de Pressagny, presidente do Concurso hípico, os levara, a ela e a Swann, ao baile de gala do rei Teodósio; e se supunha que os Verdurin fossem informados apenas desses dois acontecimentos elogiosos para ela, era porque as materializações particulares, sob as quais representamos e perseguimos a glória, são pouco numerosas por culpa do nosso espírito que é incapaz de imaginar, ao mesmo tempo, todas as formas que esperamos em conjunto-que a glória, simultaneamente, não deixará de revestir para nós.

            Ademais, a Sra. Swann só obtivera bons resultados naquilo que se denominava "mundo oficial". As mulheres elegantes não a visitavam. Não era a presença de celebridades republicanas que as fizera fugir. Na minha primeira infância, tudo o que pertencia à sociedade conservadora era mundano, e num salão bem situado não seria possível receber um republicano. As pessoas que viviam num meio assim imaginavam que a impossibilidade de alguma vez convidar um "oportunista", e com muito maior razão um "radical" medonho, era uma coisa que duraria para sempre, como as lâmpadas de azeite e os ônibus puxados por cavalos. Mas, da mesma forma que os caleidoscópios que giram de vez em quando, a sociedade dispõe sucessivamente de modo diverso os elementos que se julgara imutáveis e dispõe de uma outra figura. Ainda não fizera a minha primeira comunhão, quando as senhoras bem pensantes tinham o espanto de encontrar, de visita à nossa casa, uma judia elegante. Essas novas disposições do caleidoscópio são produzidas pelo que um filósofo chamaria de mudança de critério. O Caso Dreyfus provocou nova mudança, numa época um tanto posterior àquela em que principiei a freqüentar a casa da. Sra. Swann, e o caleidoscópio iria alterar mais uma vez seus pequenos losangos coloridos. Tudo o que era judeu passou para baixo, até os elegantes nacionalistas obscuros assumiram o seu lugar. O salão mais brilhante o de um príncipe austríaco e ultra-católico. Se, em vez do Caso Dreyfus tivesse ocorrido uma guerra com a Alemanha, o giro do caleidoscópio tomaria outra figura. Tendo os judeus mostrado, para espanto geral, que eram patriotas e conservado sua posição e ninguém jamais gostaria de ir, nem mesmo um dia ter ido, à casa do príncipe austríaco. Isto não impede que cada sociedade está momentaneamente imóvel, algumas pessoas que nela sem que nunca mais haverá qualquer mudança, de modo que, tenha o começo do telefone, não queiram acreditar no aeroplano.

            Entretanto, do jornalismo caluniam o período precedente, não apenas o gênero dessa época e que lhes parece a última palavra em matéria de corrupção que mesmo as obras de artistas e filósofos que, a seus olhos, não têm mais valor, se fossem ligadas indissoluvelmente às modalidades sucessivas do clã ou mundana. A única coisa que não muda é que, a cada vez, parece que a coisa foi mudada na França. À época em que eu ia à casa da Sra. Swann o Caso Dreyfus ainda não havia estourado e certos judeus importantes eram bem quistos. Nenhum o era mais que sir Rufus Israels, cuja esposa, Lady Israels e Swann. Pessoalmente, ela não tinha as amizades íntimas tão elegantes como o sobrinho, o qual, por outro lado, por não amá-la, jamais a cultivara muito devesse ser provavelmente ao seu herdeiro. Mas era o único dos parente, que teve consciência da posição social deste, tendo os demais permanecido com respeito, na mesma ignorância que fora a nossa durante muito tempo, numa família um dos membros emigra para a alta sociedade -o que lhe põe como fenômeno único, mas que, a dez anos de distância, constata ter sido rejeitado de outra forma, e por motivos diversos, por mais de um rapaz com quem se descreve a seu redor uma zona de sombra, uma terra incógnita, basta em suas menores nuanças por todos os que a habitam, mas que não sai e nada para aqueles que nela não penetram, e cuja existência bordejam conta, bem perto deles. Não tendo nenhuma Agência Havas o informador de Swann acerca das pessoas que ele freqüentava, era (bem entendido todos de seu horrível casamento) com sorrisos de condescendência que com jantares em família, que tinham "virtuosamente" empregado o domingo no "primo Charles", pois, julgando-o um pouco invejoso e parente pobre, chamando-o espirituosamente, fazendo um trocadilho com o título do romance de ''O Primo Besta''; Lady Rufus Israels sabia perfeitamente quem eram [Trocadilho de Proust, utilizando o título do romance de Balzac em francês, La Cousine bette aproveitando a semelhança fônica com a palavra bête (animal, ou imbecil). (N. do T)] e o que prodigalizavam a Swann uma amizade da qual sentia ciúmes. A família de seu marido, mais ou menos equivalente aos Rothschild, há várias gerações cuidava dos negócios dos príncipes de Orléans. Lady Israels, excessivamente rica, dispunha de grande influência e não utilizara com o objetivo de que pessoa alguma de suas relações recebesse Odette. Uma única a desobedecer, às escondidas. Era a condessa de Marsantes. Ora, quisera o azar que Odette, tendo ido fazer uma visita à Sra. de Marsantes, chegou quase ao mesmo tempo que Lady Israels. A Sra. de Marsantes estava em brasas. Com a covardia das pessoas que, no entanto, poderiam permitir-se tudo, não dirigiu uma só vez a palavra a Odette, que não se sentiu estimulada a desde então levar adiante a incursão em um mundo que, aliás, não era de modo algum aquele em que gostaria de ser recebida. No completo desinteresse pelo acesso ao bairro de Saint-Germain. Odette continuava a ser a cocote ignorante, bem diversa dos burgueses aferrados aos menores aspectos de genealogia e que iludem na leitura dos antigos memoriais a sede de relações aristocráticas que a vida real não lhes fornece. Swann, por outro lado, continuava sem dúvida a ser o amante a quem todas essas particularidades de uma antiga companheira parecem agradáveis, ou inofensivas, pois muitas vezes ouvi sua mulher proferir verdadeiras heresias mundanas sem que ele (por um resto de ternura, uma falta de estima ou pela preguiça de aperfeiçoá-la) procurasse corrigi-la. Talvez fosse também uma forma daquela simplicidade que nos enganara por tanto tempo em Combray, e que fazia com que, agora, embora continuasse a tratar, ao menos sozinho, com pessoas muito brilhantes, não se interessava em que, em conversa no salão de sua mulher, lhes atribuíssem qualquer importância. Aliás, para Swann tinham menos importância do que nunca, já que o centro de gravidade de sua vida se deslocara. Em todo caso, a ignorância de Odette em matéria mundana era tal que, se o nome da princesa de Guermantes surgisse na conversa depois do da duquesa, sua prima dizia:

            - Ora, príncipes... Então subiram de posto - dizia ela. Se alguém dizia: "o príncipe", ao falar do duque de Chartres, ela retificava: - O duque, ele é duque de Chartres e não príncipe. Quanto ao duque de Orléans, filho do conde de Paris: - É engraçado, o filho é mais que o pai - acrescentando, visto ser anglômana: - A gente se embrulha com essas provocações a uma pessoa que lhe perguntava de que província eram os Guermantes, respondeu: do Aisne.

            Ademais, Swann era cego no que dizia respeito a Odette, não só diante dessas lacunas de sua educação, mas também diante da mediocridade de sua inteligência. Ainda mais, cada vez que Odette contava uma história imbecil, Swann a escutava com uma complacência, uma alegria, quase com admiração, onde deve entrar um restinho de volúpia; ao passo que, na mesma conversa, aquilo que ele próprio poderia dizer de fino, e até de profundo, era habitualmente ouvido por Odette sem interesse, às pressas, com impaciência e às vezes desmentido com vaidade. E poder-se-á concluir que semelhante sujeição da elite à vulgaridade é de norma em muitos casais, se, por outro lado, pensamos, inversa as mulheres superiores que se deixam fascinar por um grosseirão, censor de suas mais delicadas palavras, enquanto elas se extasiam inteligência sem fim da ternura, diante das graças mais estúpidas. Parece que os motivos que, nessa época, impediram Odette de penetrar no faubourg sai é preciso dizer que o mais recente giro do caleidoscópio mundano fora por uma série de escândalos. Senhoras a cuja casa ia-se em toda semana tinham se revelado como prostitutas, espiãs inglesas. E durante algum tempo exigia das pessoas, ou pelo menos assim se julgava, serem acima desta posição social, de fortuna sólida... Odette representava exatamente outra com que se acabava de romper relações, para reatá-las a seguir; pois não mudando de um dia para o outro, buscam sob um regime novo aquele do antigo, mas buscando-o sob uma forma diferente que se permita serem enganadas e acreditarem que já não é a mesma sociedade de antes. Ora, às senhoras "queimadas" dessa sociedade Odette muito se parecia da alta-roda são muito míopes; no momento em que cortam todas as relações das damas judias que conheciam, enquanto se indagam como preencher isto, percebem, levada até ali como graças a uma noite de tempestade, uma que também é judia; porém, devido à sua novidade, ela não é associada em seu ambiente como as precedentes, ao que julgam dever detestar. Ela não pede que respeitem seu Deus. Adotam-na. Não se tratava de anti-semitismo na época em que impediam ir à casa de Odette. Mas a Sra. Swann se assemelhava àquilo de que se quer se livrar por algum tempo.

            Quanto a Swann, ia muitas vezes visitar pessoas de suas relações, como antigamente e, conseqüentemente, pertencendo todas à mais alta sociedade. Quando nos falava das pessoas que acabava de ir visitar, notava que conhecera outrora, ele fazia uma escolha guiada por aquele mesmo gosto, semi-artístico, semi-histórico, que inspirava nele o colecionador. O que lhe interessava com freqüência tal ou qual grande dama descrita, porque havia sido amante de Liszt, ou porque teve dedicado um romance de Balzac à sua avó (da mesma forma que compraria um desenho caso Chateaubriand houvesse descrito), tive a suspeita de que, em Combray, tínhamos o erro de julgarmos Swann um burguês que não freqüentava a sociedade por outro, o de considerá-lo um dos homens mais elegantes de Paris. Ser conde de Paris não significava nada. Quantos desses "amigos de príncipes" - de ser recebidos num salão um pouco fechado? Os príncipes se sabem não são esnobes e, aliás, julgam-se de tal modo acima de tudo quanto não tem o sangue que os grão-senhores e burgueses, abaixo deles, lhes parecem; do mesmo nível.

            Além disso, Swann não se contentava em buscar na sociedade que ela existia, ao ligar-se a nomes que o passado nela inscreveu, e que ainda que fosse um simples prazer de letrado e de artista, e gozava de um divertimento bastante popular, o de formar como que ramalhetes sociais, agrupando elementos heterogêneos; reunindo pessoas tomadas aqui e ali. Tais experiências de sociologia divertida (ou que pelo menos Swann assim considerava) não tinham sobre todas as amigas de sua mulher pelo menos de maneira constante uma repercussão idêntica.-Tive a intenção de convidar juntos os Cottard e a duquesa de Vendôme -dizia rindo à Sra. Bontemps, com o ar guloso de apreciador que pretendeu e quis fazer a experiência de substituir, num molho, os cravos-da-índia por pimenta-de-caiena. Ora, esse projeto que, no velho sentido da palavra, ia parecer de fato divertido aos Cottard, tinha o dom de exasperar a Sra. Bontemps. Recentemente, fora apresentada pelos Swann à duquesa de Vendôme e achara-a tão natural como agradável. E gabar-se disso diante dos Cottard, contando o fato, não fora a parte menos saborosa de seu prazer. Mas, como os novos condecorados que, desde que o foram, gostariam de ver fechar-se em seguida a torneira das cruzes, a Sra. Bontemps desejava que depois dela ninguém da sua sociedade fosse apresentado à princesa. Mal dizia interiormente o gosto depravado de Swann que, para realizar uma esquisitice estética miserável, dissipava de um golpe toda a poeira que ela havia lançado nos olhos dos Cottard ao lhes falar da duquesa de Vendôme. Como ia se atrever ela própria a anunciar ao marido que o professor Cottard e sua esposa iam por sua vez ter uma parte desse prazer que ela havia lhe gabado como único? Pelo menos se os Cottard soubessem que não eram convidados a sério e sim para diversão! É verdade que os Bontemps também o tinham sido; porém, como Swann adquirira na aristocracia o eterno dom-juanismo de fazer crer, a duas mulheres que para nada importam, que só a uma delas se ama com seriedade, falara à Sra. Bontemps da duquesa de Vendôme como de uma pessoa com quem era perfeitamente indicado que ela jantasse. -Sim, pretendemos convidar a princesa com os Cottard -disse a Sra. Swann algumas semanas depois meu marido acha que essa conjunção poderá resultar em algo divertido -, pois, se ela conservara do "pequeno núcleo" alguns costumes caros à Sra. Verdurin, como o de gritar com força para ser ouvida por todos os fiéis, em compensação, empregava certas expressões, como "conjunção", caras ao ambiente dos Guermantes, cuja influência sofria à distância e a seu pesar, como o mar sofre a influência da lua sem no entanto se aproximar sensivelmente desta.-Sim, os Cottard e a duquesa de Vendôme, não acha que será engraçado?-perguntou Swann.

            -Acho que será muito ruim e só lhe causará aborrecimento; é bom não brincar com fogo. -respondeu a Sra. Bontemps, furiosa. Ela e o marido, aliás, bem como o príncipe de Agrigento, foram convidados a esse jantar, junto a Sra. Bontemps e Cottard narraram de duas maneiras diversas, conforme as respostas a quem se dirigiam. Para uns, a Sra. Bontemps de um lado, Cottard de sua parte, diziam negligentemente ao lhes perguntarem se havia outras pessoas no jantar: ''- Só o príncipe de Agrigento, era muito íntimo". Outros, porém, arriscavam-se a ser mais bem informados (até, certa vez, alguém dissera a Cottard que Bontemps também não se achavam presentes? - Esqueci-me deles Cottard, ruborizando-se, ao desastrado, a quem classificou daí em diante como das más-línguas). Quanto a estes, os Bontemps e os Cottard adotaram consultados, uma versão cuja moldura era idêntica e onde seus respectivos eram reciprocamente mudados. Cottard dizia:

            - Muito bem, estavam os donos da casa, o duque e a duquesa de Vendôme – sorrindo- com presença do professor e a Sra. Cottard e, para o diabo se eu souber por que, pois como Pilatos no credo, os Bontemps. - A Sra. Bontemps recitava exatamente a mesma frase, e apenas os Bontemps eram nomeados com ênfase na casa entre a duquesa de Vendôme e o príncipe de Agrigento, e os Cottard, a acusava de se terem convidado a si próprios no final, eram os gatos-pingados que destoavam do conjunto.

            De suas visitas, Swann voltava muitas vezes pouco antes do jantar. Até as seis horas da tarde, em que outrora se sentia tão angustiado, indagava a si mesmo o que poderia Odette estar maquinando e pouco lhe importava que estivesse com visitas ou que tivesse saído. Às vezes lembrava muitos anos antes, tentara um dia ler através do envelope uma carta escrita por Odette à Forcheville. Porém, tal recordação não lhe era agradável; e aprofundar a vergonha que sentia, preferia fazer uma pequena careta - da boca completada com um sacudir de cabeça que significava: "Que pode me causar?" Certo, calculava agora que a hipótese, a que se entrega muitas vezes outrora e segundo a qual eram as imaginações do seu ciúme à enegrecerem a vida, na verdade inocente, de Odette, que essa hipótese (benéfica, visto que, enquanto durou sua enfermidade amorosa, amenizou seus sofrimentos fazendo-os parecerem imaginários) não era verdadeira, à quem visse seu ciúme que a considerara certa, e que, se Odette o tivesse amado mais, acreditara, também o teria traído mais. Antigamente, enquanto sofria havia jurado que, logo que não amasse mais a Odette e não temesse mais deixá-la, ou fazê-la crer que a amava bastante, ele se daria ao trabalho de elucidar por mero amor à verdade e como um ponto de história, se Forcheville estava ou não com ela no dia em que tocara a campainha e batera à porta sem que abrissem, e em que ela escrevera a Forcheville que era um tio dela que estivera lá. Mas o problema tão interessante, que ele apenas esperava o fim de seu sofrimento para tirar a limpo, quando perdera precisamente todo interesse aos olhos de Swann deixara de estar ciumento. Mas não imediatamente. Já não sentia ciúmes de Odette, como no dia em que batera em vão à porta do pequeno apartamento de La Pérouse, ciúme que a lembrança daquele dia continuava a despertar como se o ciúme, um tanto semelhante nisso a essas doenças que fixam sua sede, a sua fonte de contágio, menos em certas pessoas que em certas casas, não tinham por objeto propriamente Odette e sim aquele dia, aquela hora do passado perdido em que Swann batera em todas as entradas do apartamento de Odette. Dir-se-ia que aquele dia e aquela hora tinham, sozinhos, fixado algumas últimas parcelas da personalidade amorosa que Swann tivera outrora e que ele só as reencontrava ali. Há muito já não se preocupava que Odette o tivesse enganado e o enganasse ainda. E, no entanto, continuara durante alguns anos a procurar antigos criados de Odette, de tanto que nele persistira a dolorosa curiosidade de saber se, naquele dia, de tal modo antigo, às seis horas, Odette estava deitada com Forcheville. Depois, essa mesma curiosidade desaparecera, sem que, no entanto, suas investigações terminassem. Continuava a tentar saber o que já não lhe interessava, porque o seu ego antigo, tendo chegado à extrema decrepitude, ainda agia de modo maquinal, segundo preocupações abolidas, a tal ponto que Swann já não conseguia sequer imaginar essa angústia, tão forte noutro tempo que supunha que jamais se livraria dela, e que somente a morte da mulher a quem amava (a morte que, como o mostrará mais adiante nesta obra uma cruel contra-prova, não diminui em nada os sofrimentos do ciúme) lhe parecia capaz de liberar o caminho de sua vida, inteiramente obstruído.

            Porém, esclarecer um dia os fatos relativos à vida de Odette, aos quais devera tais sofrimentos, não fora o único anseio de Swann; reservara-se também o de se vingar deles, quando, não amando mais a Odette, não a temesse mais; ora, quanto a este segundo desejo, a ocasião favorável apresentava-se justamente agora, pois Swann amava a outra mulher, uma mulher que não lhe dava motivos de ciúme porque ele já não era capaz de renovar seu modo de amar e aquele que usara com Odette é que lhe servia ainda para outra. Para que o ciúme de Swann renascesse, não era necessário que essa mulher fosse infiel, bastava, por uma razão qualquer, que ela estivesse longe dele, num sarau, por exemplo, e parecesse divertir-se ali. Era o bastante para redespertar nele a velha angústia, lamentável e contraditória excrescência de seu amor, e que afastava Swann do que ela era, como uma necessidade de atingir o sentimento real que aquela moça lhe dedicava, o desejo escondido de seus dias, o segredo de seu coração, pois, entre Swann e aquela que o amava, essa angústia interpunha um montão refratário de suspeitas anteriores, tendo sua causa em Odette, ou em alguma outra que talvez a houvesse precedido; que só permitiam ao amante envelhecido conhecer sua amada de hoje através do fantasma antigo e coletivo da "mulher que excitava o seu ciúme", na qual encarnara, arbitrariamente, o seu novo amor. Entretanto, diversas vezes Swann acusava esse ciúme de fazê-lo crerem traições imaginárias; mas então lembrava-se que beneficiara Odette com o mesmo raciocínio erroneamente. Assim, tudo o que a moça fazia; as horas em que ele não se achava presente, deixava de lhe parecer inocente. Ao passo que, antigamente, jurara que, se alguma vez deixasse de amar aquela não adivinhava se seria um dia a sua mulher, que lhe patentearia implacavelmente toda a sua indiferença, enfim sincera, para vingar seu orgulho que fora ferido por tanto tempo, tais represálias que podia agora exercer sem qualquer risco (que lhe importava ser chamado às falas e que Odette o privasse daquela intimidade; que outrora lhe eram tão necessárias?), tais represálias não lhe interessava mais; com o desaparecimento do amor, desaparecera igualmente o desejo de demonstrar que já não sentia amor. Ele, que, quando sofria por Odette, tanto a ponto de deixar ver um dia que estava apaixonado por outra, agora, que o podia, tomava precauções para que a mulher não suspeitasse desse novo amor.

            Não só tomava agora parte naqueles lanches, devido aos quais tivesse antigamente a tristeza de ver Gilberte me deixar e voltar mais cedo para também nas saídas que ela dava com a mãe, seja para ir passear ou a um matinal, e que, impedindo-a de ir aos Chames-Élysées, me haviam privado os dias em que eu ficava sozinho ao longo do relvado ou diante dos cavalos de madeira. O Sr. e a Sra. Swann me admitiam agora nessas saídas, eu tinha lugar no seu landô e até era a mim que perguntavam se gostava mais de ir ao teatro; à uma aula de dança na casa de uma colega de Gilberte; à uma reunião mundana na casa de amigos de Swann (o que Odette denominava um "pequeno méeting) ou visitar os túmulos de Saint-Denis!

            Nesses dias em que devia sair com os Swann, ia à casa dela para o almoço, que a Sra. Swann apelidava lunch; como só era convidado para meio dia e meia e meus pais almoçavam às onze e quinze, era depois que eles saíam a hora em que eu me encaminhava para aquele bairro luxuoso, muito sozinho; mas, particularmente naquela hora, em que todo mundo se achava em casa comendo. Embora inverno e com o frio intenso, se fazia bom tempo eu passeava ao longo das avenidas esperando que fosse meio-dia e vinte e sete, ajeitando de vez em quando uma magnífica gravata da casa Charvet e examinando se minhas botas estavam envernizadas se não estavam se sujando. Via de longe, no jardinzinho dos Swann, o sol fazendo cintilar, como de geada, as árvores desnudas. É verdade que só tinha duas. A hora inusitada tornava novo o espetáculo. A esses prazeres da natureza (avivados pela supressão do hábito e até pela fome), misturava-se, a expectativa emocionante do almoço em casa da Sra. Swann, o que não diminuíra os prazeres, porém dominava-os, escravizava-os, transformava-os em acessórios mundanos; de modo que se, naquela hora em que de ordinário eu não os observasse sua existência, parecia-me descobrir o bom tempo, o frio, a luz invernal, era como um prefácio aos ovos com creme, como uma pátina, uma camada transparente e rósea aplicada ao revestimento daquela capela misteriosa que era a residência da Sra. Swann, em cujo seio se conservavam, ao contrário, tanto calor, tanto perfumes e flores.

            Ao meio-dia e meia, eu me decidia, enfim, a entrar naquela casa, como um grande sapato de Natal, parecia-me dever trazer prazeres sobrenaturais. Este nome de Natal era desconhecido da Sra. Swann e de Gilberte, que o haviam substituído pelo de Christmas, e só falavam do pudim de Christmas, e do que lhes haviam dado pelo seu Christmas, de ausentarem-se o que me deixava louco de dor pelo Christmas. Mesmo em casa, eu me julgaria desonrado se falasse do Natal e só dizia Christmas, o que meu pai achava extremamente ridículo.

            Primeiro, eu apenas encontrava um lacaio que, depois de me fazer atravessar diversos salões grandes, introduzia-me numa sala bem pequena, vazia, que já começava a sonhar com a tarde azul de suas janelas; ficava sozinho em companhia das orquídeas, das rosas e das violetas, que-semelhantes à pessoas que esperam ao nosso lado, mas não nos conhecem -mantinham um silêncio que sua individualidade de coisas vivas tornava ainda mais impressionante e recebiam, friorentamente, o calor de um fogo incandescente de carvão, sabiamente colocado detrás de uma vitrine de cristal, em uma cuba de mármore branco, onde fazia cair, de vez em quando, seus perigosos rubis.

            Estava sentado, mas erguia-me com precipitação ao escutar a porta se abrir; era apenas um segundo lacaio, depois um terceiro; o escasso resultado de suas idas e vindas inutilmente emocionantes era colocar um pouco de carvão no fogo ou de água nos jarros. Iam-se, e eu me encontrava de novo sozinho, uma vez fechada a porta que a Sra. Swann acabaria por abrir. E com certeza ficaria menos perturbado em uma caverna mágica do que naquela salinha de espera, onde o fogo me parecia proceder à transmutações, como no laboratório de Klingsor. Um novo rumor de passos ressoou; não me ergui, devia ser outro lacaio, era o Sr. Swann.

            - Como? Você está sozinho? Desculpe, minha pobre mulher nunca sabe as horas. Dez para uma. Cada dia é mais tarde. Vai ver que ela chegará sem pressa, julgando estar adiantada.-           E como sofria de neurartritismo e tornara-se um tanto ridículo, ter uma mulher tão impontual, que voltava do Bois muito tarde, que se esquecia na casa da costureira e nunca estava em casa na hora do almoço, tudo isso inquietava Swann por causa de seu estômago, mas lisonjeava-o em seu amor-próprio.

            Mostrava-me as novas aquisições que fizera, explicando o interesse que possuíam; porém, a emoção, aliada à falta de hábito de ainda estar em jejum àquela hora, sempre agitando meu espírito, causava-lhe um vazio, de modo que, sendo capaz de falar não conseguia compreender. Aliás, bastava para mim que as obras que Swann possuía estivessem localizadas em sua casa, fizessem parte da hora deliciosa que precedia o almoço. A Gioconda, mesmo que ali se encontrasse, não me teria dado maior satisfação que um chambre da Sra. Swann ou os seus frascos de sais.

            Continuava a esperar, sozinho ou com Swann e muitas vezes com Gilberte, que vinha nos fazer companhia. A chegada da Sra. Swann, preparada por tantas majestosas parecia-me ser algo de imenso. Prestava atenção em ruído. Mas a gente jamais acha tão altos quanto esperava uma catedral, uma onda na tempestade, o salto de um bailarino; depois daqueles instantes - parecidos com os figurantes cujo desfile prepara e, por isso mesmo, aparecimento final da rainha-a Sra. Swann, entrando furtivamente de casaquinho de lontra, o véu descido sobre um nariz avermelhado; e aquela entrada não sustentava as promessas prodigalizadas durante a espera à minha imaginação.

            Mas, se tivesse ficado a manhã inteira em casa, ao entrar no salão vestida com um peignoir de crepe da China, de cor clara, que me parecia mais elegante que todos os vestidos.

            Às vezes, os Swann optavam por ficar em casa a tarde toda. Tínhamos almoçado muito tarde, eu via bem depressa, no muro do jardim declinar o sol daquele dia que me parecera ser diferente dos outros; por mais que os criados trouxessem lampiões de todas as formas e tamanhos quase ardendo no altar consagrado de um consolo; de uma mesa-de-pé; uma "cantoneira", ou de uma mesinha, como para a celebração de um desconhecido culto e nada de extraordinário surgia na conversa e eu ia embora desiludido como ficamos muitas vezes na infância após a Missa do Galo.

            Mas aquele desapontamento era apenas espiritual. Eu ficava saltando de alegria naquela casa em que Gilberte, quando ainda não estava conosco, ia entrar num instante, durante horas, a sua palavra, seu olhar atento e risonho como visto pela primeira vez em Combray. Quando muito, ficava um pouco triste ao vê-la desaparecer com freqüência em grandes quartos aos quais se via uma escada interna. Obrigado a ficar no salão, como o apaixonado por uma atriz, que só tem a sua poltrona na platéia e imagina inquieto o que se passa nos bastidores, no foyer dos artistas; fiz à Swann, a respeito dessa outra parte da casa perguntas sabiamente veladas, mas com um tom no qual não pude deixar que transparecesse uma certa ansiedade. Ele me explicou que a peça para a qual Gilberte ia era a rouparia; ofereceu-se para mostrá-la e me prometeu que as vezes que Gilberte tivesse de ir para lá, a obrigaria me levar junto. Por estas palavras e a tranqüilidade que me deram, Swann suprimiu de chofre uma dessas distâncias interiores horríveis em cujo termo uma mulher a qual amamos nos parece tão longínqua. Naquele momento, senti por Swann um carinho que julguei mais profundo do que o que dedicava à Gilberte. Pois ele, dava-me o amor de sua filha, ao passo que ela se recusava às vezes, e eu não tinha diretamente sobre ela o mesmo domínio que, indiretamente, tinha através de Swann. Ademais amava-a, e não podia em conseqüência vê-la sem essa perturbação, sem esse desejo de algo superior, que retira, junto à criatura que se ama, a sensação de amar.

            Mas em geral, na maioria das vezes, não ficávamos em casa, saíamos pra passear. Às vezes, antes de ir se vestir, a Sra. Swann sentava-se ao piano. As mãos, saindo das mangas róseas ou brancas, muitas vezes de cores vivas do seu chambre de crepe da China, alongavam as falanges sobre o teclado com a mesma melancolia que estava em seus olhos, mas não no coração. Foi num desses dias que lhe ocorreu tocar para mim o trecho da Sonata de Vinteuil onde se acha a pequena frase que Swann amara tanto. Mas, as mais das vezes não se entendia nada, pois é uma música meio complicada para quem ouve pela primeira vez. Entretanto, quando mais tarde me foi tocada duas ou três vezes esta sonata, achei que a conhecia perfeitamente. Assim, não é errado dizer "ouvir pela primeira vez". Se a gente, de fato, como julga, não entendeu nada na primeira audição, a segunda e a terceira seriam outras tantas primeiras e não haveria razão para que se compreenda algo a mais na décima. Provavelmente, o que falta na primeira vez não é a compreensão, e sim a memória. Pois a nossa, relativamente à complexidade das impressões com que se defronta enquanto ouvimos, é ínfima, tão breve quanto a memória de um homem que, ao dormir, pensa mil coisas que logo esquece, ou de um homem meio reduzido à infância, que não se recorda no minuto seguinte daquilo que acabamos de lhe dizer. A memória não é capaz de nos fornecer imediatamente a lembrança dessas impressões múltiplas. Mas esta lembrança se forma pouco a pouco na memória e, no tocante às obras que ouvimos duas ou três vezes, estamos como o colegial que releu diversas vezes antes de dormir um ponto que achava não saber e o recita de cor na manhã seguinte. Apenas, eu ainda não ouvira aquela sonata até esse dia, e onde Swann e sua mulher viam uma frase distinta, esta se achava tão longe de minha percepção nítida quanto um nome que a gente procura recordar e em cujo lugar só se encontra o vazio absoluto, vazio do qual, uma hora mais tarde, sem que se pense nelas, brotam por si mesmas, de um só golpe, as sílabas antes solicitadas em vão. E não apenas a gente não retem de imediato as obras verdadeiramente raras, porém até no íntimo de cada uma delas; isto me aconteceu no caso da Sonata de Vinteuil - são as partes menos preciosas que percebemos em primeiro lugar. De modo que eu não me enganava apenas ao pensar que a obra não me reservava mais nada (o que fez com que eu ficasse muito tempo sem procurar ouvi-la) tão logo a Sra. Swann executou a frase mais famosa (eu era tão estúpido a esse respeito como aqueles que já não esperam ter surpresas diante da igreja de São Marcos, em Veneza, porque a fotografia lhes fez saber a fama de seus domos). Muito mais, porém; mesmo quando ouvi a sonata do princípio ao fim, ela me permaneceu quase totalmente invisível, como um monumento do qual a bruma ou a distância não deixam perceber senão partes diminutas. Daí a melancolia que se liga ao conhecimento de tais obras, como a tudo que se realiza no tempo. Quando o que era o mais oculto na Sonata de Vinteuil se desvelou pra mim, então, arrastado pelo hábito para fora da minha sensibilidade, começava a escapar-me, a fugir-me, o que eu distinguira e preferira da primeira vez. Por só ter podido amar em tempos sucessivos tudo aquilo que a sonata me trazia, nunca, fui à ela completamente: ela assemelhava-se à vida. Porém, menos enganosas que a estas grandes obras-primas não começam por doar o que possuem de melhor. Na Sonata de Vinteuil, as belezas que se descobrem mais rapidamente também, as que cansam mais cedo e sem dúvida pela mesma razão, elas diferem menos daquilo que já se conhece. Mas, quando estas são arejadas, resta-nos amar a tal frase, cuja ordenação, por mais nova que seja para oferecer a nosso espírito nada além de confusão, a mantivera indiscernível e conservara intacta; então, ela, diante da qual passávamos todos os dias sem o saber e sequer pelo poder de sua exclusiva beleza se tornara invisível e permanece desconhecida, ela nos chega por último. Mas também a deixaremos por último. Iremos amá-la durante muito mais tempo que às outras, pois teremos levado tempo até amar. Ademais, esse tempo de que precisa um indivíduo - como foi preciso a respeito dessa Sonata - para penetrar numa obra um pouco profunda e súmula; é como que o símbolo dos anos, por vezes dos séculos, que antes que o público possa amar uma obra-prima verdadeiramente nova. Talvez seja por isso que o homem de gênio, para evitar as incompreensões da turba; como visto faltar aos contemporâneos a necessária distância, as obras escritas para a posteridade só deveriam ser lidas por ela na posteridade, tal como certas pinturas que incorretamente são vistas muito de perto. Mas na realidade, toda precaução de evitar os falsos julgamentos é inútil, eles não podem ser evitados. O motivo de uma obra de gênio ser admirada de imediato é que aquele que escreveu é extraordinário; poucas pessoas se lhe assemelham. Sua própria obra que, fecundando os raros espíritos capazes de compreendê-la, os fará multiplicar. Foram os próprios quartetos de Beethoven (os de número XII a XV) que levaram cinqüenta anos para fazer nascer e crescer o público dito de Beethoven, realizando assim, como todas as obras-primas, um progresso senão do valor dos artistas, pelo menos na sociedade dos espíritos, hoje composta daquilo que era impensável quando a obra-prima apareceu à criaturas capazes de amá-la. O que denominamos posteridade, é a posteridade da obra. É necessário que a obra (não levando em conta, para simplificar, que na mesma época podem, paralelamente, preparar para o futuro o público do qual os outros gênios se beneficiarão) crie ela mesma a sua posteridade. Se, no entanto, a obra era mantida em segredo, e se fosse apenas conhecida na posteridade, esta, quanto a tal obra, não seria a posteridade e sim uma de contemporâneos que simplesmente tivessem vivido cinqüenta anos. Assim, é preciso que o artista - e era o que havia feito Vinteuil -, se quer que sua obra possa seguir seu caminho, lance-a, onde houver bastante profundidade, à pleno e longínquo futuro. No entanto, se não tem em conta esse tempo a vir, verdadeira perspectiva das obras-primas, se não levá-lo em conta é o erro dos maus juízes, levá-lo é por vezes o perigoso escrúpulo dos bons. Sem dúvida, é fácil imaginar-se por uma ilusão análoga à que uniformiza todas as coisas no horizonte, que todas as revoluções ocorridas até agora na pintura ou na música respeitavam todavia algumas regras; e o que está imediatamente diante de nós, impressionismo, procurada dissonância, emprego exclusivo da gama chinesa, cubismo, futurismo, difere de modo ultrajante daquilo que o precedeu. É que aquilo que o precedeu é considerado sem levar em conta que uma longa assimilação o converteu para nós numa matéria variada, sem dúvida, mas afinal de contas homogênea, onde Victor Hugo se avizinha de Moliére. Imaginemos apenas os disparates chocantes que nos apresentariam, se não levássemos em conta o tempo vindouro e as mudanças que ele acarreta, determinado horóscopo de nossa própria idade madura feito diante de nós durante a nossa adolescência. Apenas, nenhum horóscopo é verdadeiro e somos obrigados, no caso de uma obra de arte, a computar em sua beleza o fator tempo mesclado ao nosso julgamento algo tão casual e, por isso, tão desprovido de interesse verdadeiro como toda profecia cuja não-realização não implicará de forma alguma a mediocridade de espírito do profeta, pois o que chama à existência as possibilidades, ou dela as exclui, não é forçosamente da competência do gênio; pode-se ter tido gênio e não haver acreditado nas estradas de ferro; nem nos aviões, ou, sendo grande psicólogo, na falsidade de uma amante ou de um amigo, cujas traições os mais medíocres conseguiram prever.

            Se não compreendi a sonata, fiquei encantado por ouvir a Sra. Swann tocar. Seu toque me parecia, como seu peignoir, como o perfume de sua escada, como seus mantôs, como os crisântemos, fazer parte de um todo individual e misterioso, num mundo infinitamente superior àquele em que a razão pode analisar o talento. - Não é bela mesmo esta Sonata de Vinteuil?-observou Swann. - É o momento em que anoitece sobre as árvores, em que os arpejos do violino espalham o frescor. Confesse que é bem bonito; aí vemos todo o lado estático do luar, que é o lado essencial. Não é nada extraordinário que um cuidado de luz como o que segue minha mulher reaja sobre os músculos, visto que o luar impede as folhas de se mexerem. É isto que está tão bem pintado nessa pequena frase, é o Bois de Boulogne em estado de catalepsia. À beira-mar é ainda mais surpreendente, porque há fracas respostas das vagas que a gente ouve naturalmente muito bem, visto que o resto já não pode se mover. Em Paris é o contrário; quando muito, notam-se esses clarões insólitos sobre os monumentos, o céu iluminado como por um incêndio sem cores e sem perigo, esse tipo de imenso fait-divers adivinhado. Mas na pequena frase de Vinteuil e, aliás, em toda a Sonata, não se cuida disso. Tudo se passa no Sois; no grupo ouve-se distintamente a voz de alguém que diz:-"Quase se poderia ler um jornal."

            Estas palavras de Swann teriam podido falsear, para mais tarde, a minha compreensão da sonata, pois a música é bem pouco exclusiva para afastar de modo absoluto aquilo que se sugira que vejamos nela. Mas, por outras palavras de Swann, compreendi que essas folhagens noturnas eram pura e simplesmente como as árvores que combinaram sob cuja espessura, em muitas noites e em vários restaurantes das proximidade de Paris, ele ouvira a pequena frase. Em vez do sentido profundo que ele tantas vezes lhe pedira, o que ela trazia a Swann eram essas folhagens enroladas e pintadas ao redor dela (e que a frase lhe dava o desejo de reviver; parecia o seu ser interior, como uma alma), era toda uma primavera que pudera desfrutar outrora, não sendo nervoso e magoado como era naquele bem-estar suficiente para tal, e que ela lhe guardara (como se guarda do enfermo, bons pratos que ele não pôde comer). Os encantos que certas Bois lhe haviam dado e sobre os quais a Sonata de Vinteuil podia lhe informar; não poderia, a tal respeito, interrogar Odette, que no entanto o acompanhava na pequena frase. Mas Odette estava apenas a seu lado na ocasião (e não como o motivo de Vinteuil) e, portanto, nada teria visto – embora mil vezes mais compreensiva -, o que para nenhum de nós (pelo menos julguei por muito tempo; regra que não tinha exceções) se pode exteriorizar.

            - No fundo é muito bonito mesmo - disse Swann - que o som possa refletir, como a água, ou como um espelho reflete, não é verdade?

            Repare que a frase de Vinteuil só me mostrava aquilo a que eu não prestava atenção naquele tempo. De minhas preocupações, de meus amores dessa época não me recorda mais nada; fez uma troca.

            -Charles, parece-me que não é nada para mim tudo o que estás dizendo. - Nada amável! - Como não? As mulheres são tremendas! Queria dizer simplesmente a este rapaz que o que se vê na música mostra - pelo menos pra mim -, o que não significa de maneira alguma a "Vontade em si" e a "Síntese do infinito"; senão, por exemplo, o velho Verdurin de redingote no Palmariumd da Aclimação. Mil vezes sem sair deste salão, a pequena frase me levou para jantar em Armenonville. Meu Deus, sempre é menos aborrecido comparecer com a Sra. de Cambremer.

            A Sra. Swann se pôs a rir:

            -É uma senhora que passa por ter sido muito apaixonada por Charles - explicou-me, com o mesmo tom em que, pouco antes, falando de Vermeer de Delft me contestou espantando-se por não o conhecer. Respondera:

            - E lhe digo que o Sr. Swann se ocupava muito do pintor à época em que me cortejava. Não é, meu querido Charles?

            - Não fale a torto e a direito da Sra. de Cambremer - disse Swann, que no fundo se sentia lisonjeado.

            - Mas não faço mais que repetir o que me disseram. Aliás, ela é muito inteligente, não a conheço. Considero-a muito pushing, o que me espanta numa mulher inteligente. Mas todos dizem que ela foi louca por ti e não tem nada de ofensivo.

            Swann conservou um mutismo de surdo, uma espécie de confirmação e uma prova de fatuidade.

            - Já que o quer recorda o Jardim da Aclimação - continuou a Sra. Swann, fingindo-se zangada com o gracejo. - poderíamos torná-lo como objetivo do nosso passeio, se gosta disto o menino. O tempo está magnífico e você poderia reencontrar suas mais preciosas lembranças. A propósito do Jardim da Aclimação, você sabe que este rapaz, pensava que gostávamos muito de uma pessoa que, pelo contrário, evitamos cumprimentá-la sempre, é a Sra. Blatin! Acho muito humilhante para nós que ela passe por ser amiga. Imagine que o próprio Dr. Cottard, que nunca fala mal de pessoa alguma, diz que ela é infecta!

            -Que horror! Ela só tem a seu favor o fato de se parecer extraordinariamente a Savonarola. É exatamente o retrato de Savonarola por Fra Bartolomeo.

            A mania de Swann de descobrir semelhanças no terreno da pintura era defensável, pois mesmo aquilo a que chamamos expressão individual é-como percebemos com tanta tristeza quando amamos e gostaríamos de acreditar na realidade única do indivíduo-algo bem geral e que pôde encontrar-se em épocas diversas. Mas a julgar por Swann, os cortejos dos Reis Magos, já tão anacrônicos quando Benozzo Gozzoli aí introduziu os Médicis, muito mais o seriam ainda, visto conterem o retrato de uma multidão de homens contemporâneos, não de Gozzoli mas de Swann, ou seja, posteriores não mais somente de quinze séculos à Natividade, mas de quatro séculos ao próprio pintor. Nesses cortejos não havia, segundo Swann, um só parisiense importante que estivesse faltando, como naquele ato de uma peça de Sardou, no qual, por amizade ao autor e à principal intérprete, e também por moda, todas as notabilidades parisienses, médicos célebres, homens políticos, advogados, vieram, para divertir-se, cada qual numa noite, apresentar-se em cena.

            -Mas que relação tem ela com o Jardim da Aclimação?

            -Todas! - O que imagina, Odette? Acha que ela tem um traseiro azul-celeste como os macacos?

            -Charles, você é de uma inconveniência! Não, eu pensava no termo que lhe disse o cingalês. Conte-lhe, é na verdade uma palavra espirituosa.

            -É uma idiotice. Você sabe que a Sra. Blatin gosta de interpelar todo mundo com um ar que julga ser amável e sobretudo protetor.

            - O que os nossos bons vizinhos do Tâmisa denominam patronizing - interrompeu Odette. - Ela foi ultimamente ao Jardim da Aclimação onde há negros, cingaleses, creio, disse minha mulher que é muito mais forte em etnografia do que eu.

            -Ora, Charles, não caçoe.

            - Mas não estou caçoando de jeito nenhum. Afinal, ela se dirigiu a um desses negros: "Bom dia, negro!"

            - Não era nada!

            - Em todo caso, o qualificativo não agradou ao negro: "Eu negro?",- disse ele furioso à Sra. Blatin, "mas tu camelo!"

            -Acho muito engraçado! Adoro essa anedota. Não é "linda"? Parece que a gente vê a Sra. Blatin: "Eu negro, mas tu camelo!"

            Manifestei muita vontade de ir ver os cingaleses, um dos quais chamara a Sra. Blatin de camelo. Eles absolutamente não me interessavam. Mas eu pensava que, para ir ao Jardim da Aclimação e depois voltar, atravessaríamos aquela alameda das Acácias onde admirara tanto a Sra. Swann, e que talvez o mulato amigo de Coquelin, a quem jamais pudera me mostrar saudando a Sra. Swann, me visse sentado ao lado dela no fundo de uma vitória.

            Durante esses minutos em que Gilberte, tendo saído para se preparar, não estava conosco no salão, o Sr. e a Sra. Swann se agradavam em me revelar as raras virtudes da filha. E tudo o que observava parecia provar que falavam a verdade. Notei que, como sua mãe me dissera, ela tinha não só com suas amigas, mas para os criados, para os pobres, atenções delicadas, demoradamente refletidas, um desejo de agradar e um medo de descontentar, que se traduziam por pequenas coisas que muitas vezes lhe faziam muito mal. Fizera um trabalho para a nossa vendedora dos Champs-Élysées e saiu pela neve para entregá-lo sem um dia de atraso.

            -Você nem imagina o que é o seu coração, pois ela o oculta.- dizia o pai.

            Tão jovem, parecia muito mais ajuizada que os pais. Quando o Sr. Swann falava das grandes amizades da esposa, Gilberte desviava a cabeça para outro lado, sem ar de censura, pois o pai não lhe parecia poder ser objeto da mais leve crítica. Um dia em que lhe falei da Srta. Vinteuil, ela me disse:

            -Jamais a conhecerei, por um motivo: é que ela não era amável com seu pai; pelo que se diz, causava-lhe desgosto. Não poderá você compreender isto como eu, não é mesmo? Você que não poderia, sem dúvida, sobreviver, como eu ao meu, o que aliás é muito natural. Como esquecer algum dia alguém a quem se amou sempre?

            E certa vez em que se mostrou mais especialmente carinhosa e como lhe observei quando ele estava longe:

            - Sim, pobre papai, foi por estes dias o aniversário da morte do seu pai. Você pode entender o que deve estar sentindo, compreende isto, sentimos sobre essas coisas. Então procuro ser menos má que de costume.

            - Seu pai não a considera má, acha-a perfeita.

            -Pobre papai, é porque ele é muito bom.

            Seus pais não me fizeram apenas o elogio da filha esse mês; mesmo antes que a tivesse conhecido, me aparecia diante de uma igreja, numa paisagem da Ìle-de-France, e que a seguir, evocando-me não mais sonhos e sim minhas recordações, estava sempre diante da sebe de espinheiros na ladeira por onde eu ia para os lados de Méséglise. Como pergunta Swann, esforçando-me para assumir o tom indiferente de um amigo curioso das preferências de uma criança, quais eram, dentre os companheiros de Gilberte, aqueles de quem ela mais gostava, a Sra. Swann respondeu:

            -Mas você deve estar mais adiantado que eu sobre tais confidências que é o predileto, o grande crack, como dizem os ingleses.

            Sem dúvida, nessas coincidências tão perfeitas, quando a realidade a dobrar-se incide sobre o que sonhamos por muito tempo, ela nos oculta inteiramente, se confunde com ele, como duas figuras iguais e superpostas quase formando somente uma, enquanto, pelo contrário, para dar todo o seu significado de alegria, gostaríamos de manter em todos os nossos desejos, no momento em que os tocamos - e para estarmos bem certos de que são eles o prestígio de serem intangíveis. E o pensamento não pode sequer voltar ao antigo estado para confrontá-lo com o novo, pois já não dispõe de campo livre; o conhecimento que adquirimos, a lembrança dos primeiros minutos inesperados, as frases que ouvimos, são o que obstruem a entrada da nossa consciência, comandam muito mais as aberturas da nossa memória do que as da nossa imaginação, e retroagem mais sobre o nosso passado que já não somos senhores de levá-los em conta, do que sobre a forma, ainda livre, do nosso futuro. Durante muito tempo eu acreditara que ir à casa da Sra. Swann era uma vaga quimera que jamais alcançaria; depois de haver passado um quarto de hora em sua casa, foi o tempo em que não a conhecia que se tornou quimérico e vago como uma possibilidade que a realização de outra possibilidade aniquilou. Como poderia sonhar ainda com a sala de jantar como se fosse um lugar inacessível, quando não podia fazer um movimento de espírito sem dar com os raios infrangíveis que dele emitia ao infinito, até o meu passado mais distante, a lagosta americana que acabava de comer? Swann devia ter visto ocorrer algo semelhante, no que lhe dizia respeito: pois o apartamento em que me recebia podia ser considerado o lugar em que tinham ido confundir-se e coincidir, não só o apartamento ideal que minha imaginação havia engendrado, mas um outro ainda, o que o amor ciumento de Swann, tão inventivo como os meus sonhos, lhe descrevera tantas vezes; aquele apartamento comum a ele e a Odette que lhe parecera tão inacessível naquela noite em que Odette o levara com Forcheville para tomar laranjada em sua casa; e o que, para ele, viera absorver-se no plano da sala de jantar onde comíamos, era aquele paraíso inesperado onde outrora ele não podia imaginar, sem perturbar-se, que diria ao mordomo deles estas mesmas palavras:

            -"Madame está pronta?", que eu lhe ouvia pronunciar agora com leve impaciência mesclada a uma certa satisfação de amor-próprio. E, sem dúvida, não mais do que o podia Swann, eu não chegava a conhecer a minha própria felicidade, e quando Gilberte exclamou:

            - Quem diria que a menininha que você olhava sem lhe falar, que jogava barras, seria a grande amiga em cuja casa você iria todos os dias que quisesse?! - Estava falando de uma mudança que eu era obrigado a considerar de fora, mas que não possuía internamente, pois se compunha de dois estados em que não conseguia pensar ao mesmo tempo, sob pena de que cessassem de ser distintos um do outro.

            No entanto, esse apartamento, visto que fora desejado tão ardentemente por sua vontade, devia conservar para Swann uma certa doçura, se o julgasse por mim, para quem não perdera todo seu mistério. O encanto singular, no qual eu durante tanto tempo imaginara banhar-se a vida dos Swann, não o expulsara inteiramente da sua residência ao penetrar nela; fizera-o recuar, dominado que fora por esse estranho, esse pária que eu tinha sido e para o qual a Srta. Swann empurrava graciosamente, para que se sentasse, uma poltrona deliciosa, hostil e escandalizada; porém esse encanto, percebo-o ainda na minha recordação. Seria porque, nesses dias em que o Sr. e a Sra. Swann me convidavam para almoçar, e logo depois para sair com eles e Gilberte, eu imprimia com meu olhar - enquanto esperava sozinho sobre o tapete, as poltronas, os consolos, os biombos, os quadros, com a idéia, em mim gravada, de que a Sra. Swann ou o marido, ou Gilberte iam entrar? Seria porque tais coisas viveram desde então na minha memória, ao lado dos Swann acabaram por assumir alguma coisa deles? Seria porque, sabendo que eles passavam sua existência no meio delas, fazia de todas elas como que os emblemas de sua vida particular, de seus hábitos dos quais fora por tão longo tempo que me continuaram a parecer estranhos mesmo quando me fizeram misturar-me à eles? E sempre que penso nesse salão que Swann (semelhante crítica implicasse de sua parte a intenção de não contrariar em nada os de sua mulher) achava tão disparatado, pois sendo todo ele concebido ainda que do gosto meio estufa, meio ateliê, do apartamento em que conhecera entretanto começara a substituir naquela embrulhada um certo número chineses; que agora julgava um tanto "artificiais", "fora de moda", por um de pequenos móveis forrados de velhas sedas Luís XVI (sem contar as o trazidas por Swann do apartamento do cais de Orléans) -, na minha memória existe, ao contrário, naquele salão composto, uma coesão, uma unidade, um encanto individual; que nunca sequer tiveram os mais intactos conjuntos que nos legou no passado; nem ainda, os mais vivos onde se assinala a marca que somente nós podemos, pela crença de que têm uma existência própria, certas coisas que vemos uma alma, que a seguir conservam-se dentro de nós. Todas as idéias que eu formava das horas diversas que existem para os outros homens, que os Swann passavam naquele apartamento; que significava, para o tempo cotidiano de suas vidas, o que o corpo é para a alma e que devia exprimir sua singularidade, todas essas idéias estavam repartidas amalgamadas por toda a parte igualmente perturbadoras e indefiníveis nos móveis, na espessura dos tapetes, na orientação das janelas, no serviço doméstico. Quando, após o almoço, íamos tomar café ao sol, na grande janeta enquanto a Sra. Swann me perguntava qual a quantidade de açúcar que colocava no café, não era apenas o tamborete forrado de seda, que ela chegava que desprendia com o encanto doloroso que eu percebera outrora espinheiro-rosa e depois ao lado do bosque de loureiros no nome de Gilberte, a hostilidade que me haviam testemunhado seus pais e que este pequeno móvel - parecia ter sabido e partilhado tão bem, que eu não me sentia digno e um tanto desprezível de impor meus pés no seu estofamento sem defesa: uma alma pessoal ligava-o secretamente à luz das duas horas da tarde, diferente do que era por toda a parte, além, no golfo, onde fazia brincar à nossos pés suas ondas de ouro em meio às quais os canapés azulados e as vaporosas tapeçarias como ilhas encantadas; e até o quadro de Rubens, pendurado sobre a  lareira; também do mesmo gênero e quase a mesma força de encanto que as laçadas do Sr. Swann e o mantô de pelerine, que eu tanto desejara ter um igual. Agora a Sra. Swann pedia ao marido que substituísse por outro, parecia mais elegante, quando lhes dava a honra de sair com eles. Ela também ia se vestir, embora eu protestasse que nenhuma roupa de passeio nem de longe era maravilhoso como o chambre de crepe da China ou de seda, rosa murcho, Tiepolo, branco, malva, verde, vermelho, amarelo liso ou com desenho, que a Sra. Swann havia almoçado e que ia tirar. Ao dizer que ela deveria sair assim, a Sra. Swann ria, troçando da minha ignorância ou de prazer pelo meu cumprimento, desculpava-se de possuir tantos peignoirs, por achar que somente com eles é que se sentia à vontade, e nos deixou, para ir pôr um desses vestidos majestosos que se impõem a todos e entre os quais, no entanto, eu era por vezes chamado a escolher aquele que preferia que ela vestisse.

            No Jardim da Aclimação, como eu me mostrava orgulhoso ao descer do carro e poder andar ao lado da Sra. Swann! Enquanto, em seu andar despreocupado, a Sra. Swann deixava flutuar a capa, lançava-lhe olhares de admiração aos quais ela correspondia, de maneira coquete, com um largo sorriso. Agora, se encontrávamos um ou outro dos companheiros, menino ou menina, de Gilberte, que de longe nos saudava, eu era por minha vez olhado por eles como uma dessas criaturas que tanto invejara, um dos amigos de Gilberte que conheciam sua família e estavam associados à outra parte de sua vida, a que não se passava nos Champs-Élysées.

            Freqüentemente, nas alamedas do Bois ou do Jardim da Aclimação, cruzávamos e éramos saudados por esta ou aquela grande amiga de Swann, que ele não chegava a ver e que sua mulher lhe apontava:

            -"Charles, não está vendo a Sra. de Montmorency?" E Swann, com o sorriso amistoso devido a uma longa familiaridade, no entanto se descobria largamente com uma elegância própria dele. Às vezes a dama parava, feliz por fazer uma gentileza à Sra. Swann, gentileza sem maiores conseqüências e da qual sabia que a Sra. Swann não se aproveitaria a seguir, pois Swann a acostumara a tomar uma atitude de reserva. Mas Odette assumira todas as maneiras da sociedade e, por mais elegante e nobre que fosse o porte da dama, ela a igualava sempre; parada por um instante junto da amiga que o marido acabava de encontrar, apresentava-nos, a mim e a Gilberte, com tanta desenvoltura, conservava tanta liberdade e tanta calma em sua gentileza, que teria sido difícil dizer qual das duas era a dama, a esposa de Swann ou a aristocrata a passeio. No dia em que fomos ver os cingaleses, percebemos, na volta, vindo em nossa direção e seguida de duas outras que pareciam escoltá-la, uma dama idosa mas bonita ainda, envolta num mantô escuro e com uma pequena touca presa ao pescoço por duas fitas.

            - Ah, eis alguém que vai lhe interessar! - Disse-me Swann. - A velha senhora, já a poucos passos de nós, sorria com terna doçura. - Swann se descobriu, Odette se inclinou numa reverência e quis beijar a mão da dama semelhante a um quadro de Winterhalter, que a ergueu e beijou.

            -Ora, ponha o seu chapéu - disse ela a Swann; com voz grossa e um tanto zangada da amiga da família. -Vou lhe apresentar a Sua Alteza Imperial - disse-me a Sra. Swann. Swann me tomou à parte por um instante, quanto a Odette conversava com a alteza sobre o bom tempo e os novos animais chegados ao Jardim da Aclimação.

            - É a princesa Mathilde - disse-me ele – Você sabe, é a amiga de Flaubert, de Sainte-Beuve, de Dumas. Imagine, é a sobrinha de Napoleão II. Foi pedida em casamento por Napoleão III e pelo imperador da Rússia. Não é interessante? Fale um pouco com ela. Mas preferia não ficar parado aqui durante uma hora. E, dirigindo-se à velha disse:

            -Encontrei-me com Taine. Disse-me que a princesa está zangada com ele.

            -Comportou-se como um porco [em francês, cochon] - disse ela em voz áspera chiando a palavra como se se tratasse do nome do bispo contemporâneo de Joanna d'Arc [Cauchon]. - Depois do artigo que escreveu sobre o Imperador, dei-lhe cartão de despedida.

            Experimentei a mesma surpresa que se sente quando se abre a correspondência da duquesa de Orléans, nascida princesa paladina. E a princesa Mathilde, animada de sentimentos tão franceses, sentia-os expressar com rudeza honesta, como a da Alemanha de antigamente e que herdara sem dúvida de sua mãe wurtemburguesa. Sua franqueza um tanto grosseira e quase masculina, adoçada quando ela sorria, por um lango italiano. E o conjunto desta numa toalete de tal modo à maneira do Segundo Império que, embora certamente a usasse apenas para ser fiel às modas de que gostara, parecia que a intenção de não cometer um histórico erro de cor e de corresponder à expectativa dos que dela esperavam a evocação de uma outra época. Em segredo, pediu que lhe perguntasse se havia conhecido Musset.

            - Muito pouco, senhor - deu ela, fingindo-se aborrecida, e de fato era por gracejo que tratava senhor, sendo tão íntima dele.-Tive-o certa vez para jantar. Convidara-o para às sete horas. Às sete e meia, como ainda não tivesse chegado, fomos para mesa. Ele chegou às oito, cumprimentou-me, sentou-se, não abriu a boca, e foi ao jantar sem que eu tivesse ouvido o som de sua voz. Estava caindo de vergonha. Aquilo não me animou a continuar.

            Eu e Swann estávamos um tanto à parte.

            -Espero que esta pequena assembléia não se prolongue - disse-me ele -, porque as plantas dos pés vão doer. Também não sei por que minha mulher alimenta a conversa. Depois, ela é que vai se queixar de estar cansada e eu não posso mais fazer essas paradas em pé.

            Com efeito, a Sra. Swann, que obtivera a informação dos Bontemps, dizia à princesa que o governo, enfim compreendendo sua grosseria, decidira enviar-lhe um convite para que assistisse na tribuna à visita, que Nicolau devia fazer aos Inválidos, dois dias depois. Mas a princesa que, às aparências, apesar do seu séquito, composto principalmente de artistas de letras, continuara a ser no fundo, e de cada vez que precisava agir, a Napoleão:

            - Sim, madame, recebi o convite esta manhã e o mandei ao ministro, que deve tê-lo consigo agora. Disse-lhe que não precisava de convite para ir aos Inválidos. Se o governo deseja que eu vá, não estarei numa tribuna e sim, no nosso subterrâneo, onde fica o túmulo do Imperador. Não preciso de convites para tanto. Tenho minhas chaves. Entro como quiser. O governo não precisa me dizer se deseja que eu vá ou não. Mas, se eu for, será para ficar lá embaixo ou em parte alguma.

            Naquele instante fomos saudados, eu e a Sra. Swann por um rapaz que lhe deu bom-dia sem parar e que eu não sabia se ela conhecia. Contestando uma pergunta que lhe fiz, a Sra. Swann me disse que ele lhe fora apresentado pela Sra. Bontemps, e que era agregado ao gabinete do ministro, coisa que eu ignorava. De resto, não devia vê-lo com freqüência-ou então não quisera tocar no seu nome, Bloch, que devia julgar pouco chique pois disse que se chamava Sr. Moreul. Assegurei-lhe que estava confundindo, que ele se chamava Bloch. A princesa recolheu a cauda do vestido, que se desenrolava para trás e que a Sra. Swann contemplava com admiração.

            -É justamente uma pele que me enviou o imperador da Rússia - disse a princesa- e, como fui visitá-lo há pouco, coloquei-a para lhe mostrar que podia servir de mantô.

            -Parece que o príncipe Luís Napoleão se engajou no exército russo; a princesa vai ficar desolada por não tê-lo mais junto a si - disse a Sra. Swann, que não reparava nos sinais de impaciência do marido.

            - Para que precisava ele disso? É como lhe disse: "Não é motivo para fazeres semelhante coisa o fato de teres um militar na família" - respondeu a princesa, fazendo com essa brusca simplicidade uma alusão a Napoleão I.

            Swann já não se agüentava.

            - Madame, eu é quem vou bancar a Alteza e pedir permissão para nos despedirmos, porém minha esposa esteve muito doente e não quero que ela fique muito tempo imóvel.

            A Sra. Swann repetiu a reverência e a princesa teve para todos nós um sorriso divino que pareceu ter trazido do passado, dos encantos de sua juventude, dos saraus de Compiegne e que correu, intacto e doce, pelo rosto há pouco rabugento, e depois se afastou seguida das duas damas de companhia que só tinham feito, como intérpretes, como amas-secas ou enfermeiras, pontuar nossa conversação de frases insignificantes e de explicações inúteis.

            -Você deveria ir inscrever seu nome na casa dela, um dia destes -disse-me a Sra. Swann.-Não se dobra a ponta do cartão para tais royautés, como dizem os ingleses, mas ela o convidará se você se inscrever.

            Às vezes, nesses últimos dias de inverno, nós entrávamos, antes de ir passear, numa das pequenas exposições que se abriam na época e onde Swann, colecionador de marca, era saudado com especial deferência pelos negociantes de quadros em cujo estabelecimento elas ocorriam. E, nesses dias ainda frios, meus velhos anseios de partir para o Sul e para Veneza eram despertados por essas salas onde uma primavera já adiantada e um sol ardente punham reflexos violáceos nos Al Pilles rosados e davam a transparência carregada da esmeralda ao Grande Canal. Se o tempo estava feio, íamos ao concerto ou ao teatro e, a seguir, lanchar numa Casa de chá. Quando a Sra. Swann queria me dizer algo que não desejava fosse compreendido pelas pessoas das mesas vizinhas, ou até pelos garçons que nos serviam, falava-me em inglês como se se tratasse de uma língua conhecida apenas por nós dois. Ora, todo mundo sabia inglês, só eu é que ainda não o aprendera e era obrigado a dizê-lo à Sra. Swann para que ela parasse de fazer, a propósito das pessoas as que bebiam chá ou sobre as que o traziam, reflexões que eu adivinhava bem descorteses sem compreendê-las e sem que a pessoa visada perdesse a frase.

            Uma vez, a propósito de uma sessão matinal de teatro, Gilberte estava com profundo espanto. Era exatamente no dia em que me falara antes do aniversário da morte de seu avô. Eu e ela devíamos, com sua governanta, ir ouvir uma ópera e Gilberte se vestira com a intenção de ir a essa execução conservando o ar de indiferença que costumava mostrar para as coisas que íamos fazer, dizendo que podia ser qualquer coisa com tanto que me agradasse e fosse agradável a seus pais. Antes do almoço, sua mãe nos chamou à parte para falar que seu pai ficara aborrecido por nos ver ir ao concerto naquele dia. Acho muito natural. Gilberte ficou impassível, mas fez-se pálida de uma cólera que não pôde ocultar e não disse mais uma palavra. Quando o Sr. Swann voltou, levou-o para a outra extremidade do salão e segredou-lhe ao ouvido. Gilberte o levou para a peça ao lado. Ouviram-se vozes exaltadas. Por todo o barulho podia-se acreditar que Gilberte, tão submissa, tão terna, tão sensata, resistia ao pedido do pai num dia daqueles e por um motivo tão insignificante. Por fim saiu dizendo-lhe:

            - Sabes o que te disse. Agora, podes fazer o que quiseres.

            O rosto de Gilberte permaneceu contraído durante todo o almoço depois do qual fomos para o seu quarto. Depois, de repente, sem hesitação e como se tivesse tido por um só momento, gritou:

            - Duas horas! Mas você sabe que o concerto começa às duas e meia.- E disse à governanta que se apressasse.

            - Mas - disse eu - isso não aborrece o seu pai?

            - De jeito nenhum.

            - Entretanto, ele temia que isso parecesse estranho, por causa do aniversário.

            - E que me importa o que os outros pensem? Acho ridículo que se preocupe com os outros em matéria de sentimento. A gente sente para si e não para o público. Para Mademoiselle, que tem tão poucas distrações, é uma festa o concerto; não vou privá-la dele para dar satisfações ao público. E pegou o chapéu.

            - Mas Gilberte - observei, agarrando-a pelo braço - não se trata de dar satisfações ao público, é para atender a seu pai.

            - Você não vai me fazer advertências, espero - retrucou ela como que libertando-se vivamente.

            Favor ainda mais precioso que me levarem ao Jardim da Aclimação era ir ao concerto, os Swann não me excluíam sequer de sua amizade por Bergotte; estivera na origem do encanto que eu lhes achara quando, antes mesmo de conhecer Gilberte, pensava que sua intimidade com o velho divino faria dela, mais apaixonante das amigas caso o desdém que lhe inspirava não fosse barrado a esperança de que alguma vez ela me levasse a visitar as cidades que ele amava. Ora, um dia a Sra. Swann me convidou para um grande almoço. Eu não sabia quais deveriam ser os convidados. Ao chegar, fiquei desconcertado no vestíbulo por um incidente que me intimidou. Raramente a Sra. Swann deixava de adotar os costumes tidos por elegantes durante uma temporada e que, não chegando a manter-se, são logo abandonados (como, muitos anos antes, tivera o seu hansom cab, ou mandara imprimir, num convite para almoço, que era para um personagem mais ou menos importante). Muitas vezes tais costumes nada tinham de misterioso e não exigiam iniciação. Foi assim que, medíocre inovação daqueles anos, importada da Inglaterra, Odette encomendara para o marido cartões de visita em que o nome de Charles Swann era precedido de um Mr. Depois da primeira visita que lhe fizera, a Sra. Swann deixara em minha casa um desses cartões, como dizia. Jamais ninguém me mandara cartões de visita; senti tanto orgulho, tanta emoção e tanto reconhecimento que, reunindo todo o dinheiro que possuía, encomendei uma corbelha magnífica de camélias e mandei à Sra. Swann. Roguei a meu pai que mandasse um cartão à casa dela, mas antes mandando imprimir às pressas alguns em que seu nome fosse precedido de um Mr. Ele não acedeu a nenhum de meus rogos; fiquei desesperado durante alguns dias e depois me perguntei se ele não tinha tido razão. Mas o uso do Mr., apesar de inútil, era evidente. O mesmo não ocorria com outro que me foi revelado no dia daquele almoço, mas sem o seu significado. No momento em que ia passar da antecâmara para o salão, o mordomo me entregou um envelope delgado e comprido no qual estava escrito meu nome. Surpreso, agradeci, enquanto olhava o envelope. Não sabia o que fazer com ele, como um estrangeiro com um desses pequenos instrumentos que se dão aos convivas nos jantares chineses. Vi que estava fechado, receei ser indiscreto abrindo-o em seguida e o coloquei no bolso com ar entendido. A Sra. Swann me escrevera uns dias antes para que fosse almoçar "em família". No entanto estavam presentes 16 pessoas, entre as quais ignorava absolutamente que se encontrasse Bergotte. A Sra. Swann, que acabava de me "nomear", como dizia, à várias delas, de repente, logo após meu nome, da mesma forma como o acabara de falar (e como se fôssemos somente dois convidados do almoço que deviam estar mutuamente satisfeitos em se conhecer), pronunciou o nome do suave Cantor de cabelos brancos. Este nome de Bergotte me fez estremecer como o estampim de um revólver que houvessem descarregado em mim; mas instintivamente, para mostrar presença de espírito, cumprimentei-o; à minha frente, como esses Westi-digitadores que a gente percebe estarem intactos e de sobre-casaca no meio da fumaça de um tiro, de onde sai voando uma pomba, meu cumprimento era atribuído por um homem jovem, rude, pequenino, robusto e míope, de nariz vermelho em forma de concha de caramujo e de barbicha preta. Sentia-me mortalmente, pois o que acabava de ser reduzido a pó não era apenas o langoroso velho, qual nada mais restava, era igualmente a beleza de uma obra imensa que eu pudera acolher no organismo desfalecente e sagrado que, como um templo construído expressamente para ela; mas à qual nenhum espaço se via nesse corpo atarracado, cheio de vasos, de ossos, de gânglios, do homem achatado e de barbicha preta que estava diante de mim. Todo o Bergotte mesmo havia lenta e delicadamente elaborado, gota a gota, como a transparente beleza de seus livros, esse Bergotte, de um só golpe mais que qualquer utilidade, já que era preciso conservar o nariz em cara acima da barbicha preta; assim como de nada serve a solução que tínhamos encomendado um problema cujo enunciado lêramos de forma incompleta, e sem levar que o total devia dar uma certa cifra. O nariz e a barbicha eram elemento e tanto mais incômodos que, obrigando-me a reedificar inteiramente a imagem de Bergotte, pareciam ainda implicar, produzir, secretar incessantemente um tipo de espírito ativo e satisfeito consigo mesmo, o que não era corretamente o espírito de nada que tinha a ver com a espécie de inteligência espalhada naquele que eu tão bem conhecia; penetrados de uma suave e divina sabedoria deles, eu jamais teria chegado àquele nariz de caracol; mas, partindo de que não dava a impressão de se inquietar, mostrava-se altivo e caprichoso numa direção totalmente diversa da obra de Bergotte, e parece-me que uma mentalidade de engenheiro, apressado, do tipo daqueles que se bem um cumprimento, julgam ser correto dizer:

            -"Obrigado, e o senhor?" caso lhe peçam notícias e, se lhes declaram terem ficado contentes em corresponder de modo abreviado que acham elegante, inteligente e que evita perda de tempo precioso em fórmulas vãs:

            -"Igualmente".

            Indubitavelmente, são nomes de desenhistas fantasiosos que nos dão, de pessoas e países, e pouco parecidos que muitas vezes sentimos uma espécie de assombro porque temos ante nós, em vez do mundo imaginado, o mundo visível (que, a mundo verdadeiro, pois nossos sentidos já não têm muito mais que a imagem, o dom da semelhança, tanto que os desenhos por fim aproximativos; que obter da realidade são pelo menos tão diversos do mundo visto como esse mundo imaginado). Mas, para Bergotte, o incômodo do nome previamente diante do que me causava a obra conhecida, à qual via-me forçado como um balão, o homem de barbicha, sem saber se conservaria a força. Parecia, no entanto, que fora ele mesmo quem escrevera os livros que amara, pois, quando a Sra. Swann julgou falar-lhe de meu gosto por eles, não mostrou nenhum espanto que o dissessem a ele e não ao outro; não me pareceu indicar que se tratava de um equívoco; porém, estufando a que pusera em honra a todos os convidados, com um corpo ávido pelo que se aproximava, tendo sua atenção ocupada por outras realidades impossíveis apenas como a um episódio encerrado de sua vida anterior e como se aludido a uma roupa de duque de Guise que tivesse usado em certo baile a fantasia, que ele sorriu, reportando-se à idéia de seus livros, os quais logo diminuíram de valor para mim (arrastando em sua queda todo o valor do belo, do universo, da vida) até não passarem de mero divertimento do homem de barbicha. Dizia comigo que ele devia ter se aplicado a escrevê-los, mas que, se tivesse vivido em uma ilha cercada de bancos de ostras perlíferas, teria se dedicado com o mesmo sucesso ao comércio de pérolas. Sua obra já não me parecia tão inevitável. E então indaguei-me se a originalidade verdadeiramente prova que os grandes escritores sejam deuses a reinar cada qual em um reino que só a eles pertence, ou então senão existe em tudo isso um pouco de fingimento, se as diferenças entre as obras não seriam o resultado do trabalho, ao invés de uma diferença radical de essência entre as diversas personalidades.

            Nesse meio tempo passara-se à mesa. Ao lado de meu prato encontrei um cravo cujo talo estava envolto em papel prateado. Fiquei menos embaraçado que diante do envelope entregue no vestíbulo e que já esquecera de todo. O costume, entretanto tão novo para mim, me pareceu mais inteligível quando vi todos os convidados masculinos pegarem um cravo idêntico, que acompanhava os talheres, e o colocarem na botoeira da sobre-casaca. Procedi como eles com aquele ar natural de um livre-pensador na igreja, que não conhece a missa mas se ergue quando todos se levantam e põe-se de joelhos um pouco depois de todos fazerem o mesmo. Um outro costume desconhecido e menos efêmero desagradou-me um tanto mais. Ao lado do meu prato havia outro menor, cheio de uma substância escura que eu não sabia ser caviar. Ignorava o que fazer com aquilo, mas estava resolvido a não comê-lo.

            Bergotte não se sentava longe de mim; ouvia perfeitamente o que ele dizia. Compreendi então a impressão do Sr. de Norpois. Tinha, na verdade, uma voz estranha; nada altera tanto as qualidades materiais da voz como ter um conteúdo de pensamento; a sonoridade dos ditongos, a energia das labiais, tudo isto é influenciado por ele. E também a dicção. A sua parecia-me inteiramente diversa de sua forma de escrever, e até as coisas que dizia eram diferentes das que se achavam em suas obras. Porém, a voz saida de uma máscara sob a qual não é suficiente para nos fazer reconhecer um rosto que vimos primeiro a descoberto no estilo. Em certos momentos da conversa, quando Bergotte costumava falar de um modo que só parecia afetado e desagradável ao Sr. de Norpois, custou-me descobrir uma correspondência exata com as partes de seus livros em que a forma se tornava tão poética e musical. Então ele via, naquilo que falava, uma beleza plástica independente do significado das frases, e, como a palavra humana está relacionada com a alma, porém sem expressá-la como faz o estilo, Bergotte dava a impressão de falar quase a atender ao sentido, salmodiando certos termos e como se perseguisse através uma única imagem, tecendo-os sem intervalos como um mesmo som, com a mesma harmonia cansativa. De modo que um recitativo pretensioso, enfático e monótono era o sinal da qualidade estética de suas frases e o efeito, na sua conveniente mesma força que produzia em seus livros a seqüência das imagens, assim, tanto mais me custava perceber que o que ele dizia, nesses instantes parecia ser de Bergotte precisamente por ser o verdadeiro Bergotte. Era o desenvolvimento de idéias exatas, não incluídas naquele "gênero Bergotte" que todos os cronistas se haviam apropriado; e aquela dessemelhança - percebida e confusa através da conversação, como uma imagem por trás de enfumaçado - era provavelmente um outro aspecto do fato de que, lendo a página de Bergotte, ela nunca era semelhante ao que teria escrito quaisquer vulgares imitadores que, entretanto, no jornal e no livro, ornavam tantas imagens à Ia Bergotte. Tal diferença de estilo decorria de que "o Bergotte'' acima de tudo um elemento precioso e genuíno, oculto no âmago de cada um depois, extraído dele por aquele grande escritor devido a seu gênio, extravagante era o objetivo do suave Cantor e não o de "fazer Bergotte".

            Para falar a verdade o fazia malgrado seu, porque era Bergotte, e, nesse sentido, toda beleza da nova obra era a pequena quantidade de Bergotte oculta numa coisa. Mas se, devido a isso, cada uma dessas belezas era aparentada à outra reconhecível, permanecia no entanto particular, como a descoberta quando exposto à luz do dia; nova, por conseguinte diversa do que se denominou ''gênero Bergotte", que era uma vaga síntese dos Bergottes já encontrados por ele, os quais não permitiam de forma alguma que nenhum homem adivinhasse o que Bergotte descobriria em outro local. O mesmo se dá aos grandes escritores: a beleza de suas frases é imprevisível, como é mulher que ainda não se conhece; ela é criação, visto aplicar-se a um objeto no qual estão pensando e não a si mesma e que ainda não exprimi o autor de suas memórias de hoje, querendo, sem dar muito a entender, faz Saint-Simon, a rigor poderá escrever a primeira linha do retrato de Villar um homem corpulento e moreno... com uma fisionomia viva, franca, que impressionava, mas que o determinismo poderá lhe fazer encontrar a segunda linha que é verdadeiramente um tanto amalucada. A verdadeira variedade dá plenitude de elementos reais e inesperados, no ramo carregado de flores surge, contra toda expectativa, da sebe primaveril que parecia já super compasso que a imitação puramente formal da variedade (e pode-se fazer o raciocínio quanto a todas as demais qualidades do estilo) apenas fazia-me, isto é, o extremo oposto da variedade, e os imitadores só podem dar a lembrança da legítima variedade àqueles que não a souberam cometer nas obras dos mestres.

            E assim - da mesma maneira como a dicção de Bergotte teria encantado se ele próprio não passasse de um amador que recitasse - Bergotte, em vez de estar ligada ao pensamento de Bergotte em trabalhado por relações vitais que o ouvido não identificava de imediato -, assim também, porque Bergotte aplicava tal pensamento com precisão à realidade que lhe agradava, sua linguagem tinha algo de positivo, de muito substancioso, que decepcionava os que esperavam ouvi-lo falar somente da "torrente eterna das aparências" e dos "misteriosos frêmitos da beleza". Enfim, a qualidade sempre rara e nova daquilo que escrevia traduzia-se em sua conversa por uma forma tão sutil de abordar um assunto, negligenciando todos os seus aspectos já conhecidos, que dava a impressão de pegá-lo por um lado menor, estar enganado, fazer paradoxos, e assim suas idéias pareciam quase sempre confusas pois cada um considera claras as idéias que estão no mesmo grau de confusão que as próprias. Aliás, se toda novidade tem como condição a prévia eliminação do lugar-comum a que estávamos habituados e que nos parecia a realidade mesma, toda nova conversação, bem como toda pintura e toda música originais, parecerá sempre alambicada e cansativa. Baseia-se em figuras a que não estamos acostumados, o interlocutor só nos parece falar por metáforas, o que cansa e dá impressão de falta de verdade. (No fundo, as próprias formas antigas de linguagem foram outrora imagens difíceis de acompanhar quando o ouvinte não conhecia ainda o universo que pintavam. Mas há muito tempo imaginamos que era o universo real, e nos baseamos nele.) Assim, quando Bergotte, o que hoje entretanto me parece bem simples, dizia de Cottard que era um mergulhador em busca de equilíbrio, ou de Brichot, que à ele lhe dá mais trabalho fazer o penteado do que à Sra. Swann, pois, duplamente preocupado com seu perfil e sua reputação, era necessário que a todo instante o arranjo de sua cabeleira lhe desse ao mesmo tempo o aspecto de um leão e de um filósofo, as pessoas logo sentiam-se fatigadas e gostariam de assentar o pé em algo mais concreto, dizia-se, para significar mais habitual. As palavras irreconhecíveis saídas da máscara que estava à minha frente, eram mesmo do escritor que eu admirava, mas não teriam sabido inserir-se em seus livros à maneira de um puzzle que se encaixa em outros; estavam em um plano diverso e necessitavam de uma transposição mediante a qual, num dia em que repetia comigo frases que ouvira Bergotte dizer, encontrei nelas toda a estrutura de seu estilo escrito, cujas diversas peças pude reconhecer e nomear naquele discurso falado que me parecera tão diferente.

            Sob um ponto de vista mais acessório, a maneira especial, um pouco intensa e minuciosa demais, que possuía de pronunciar determinadas palavras, certos adjetivos que voltavam com freqüência em sua conversação e que não dizia sem uma certa ênfase, ressaltando todas as sílabas e fazendo cantar a última (como no caso da palavra visage, que usava sempre no lugar de figure, e à qual acrescentava um grande número de w, de ss, de gg, todos parecendo explodir de sua mão nesses momentos), correspondia exatamente ao belo local em que, na sua fala, ele punha em evidência essas palavras prediletas, precedidas de uma espéde de margem e compostas de tal ordem, no número total da frase, que era-se obrigado a conta-la em toda a sua "quantidade", sob pena de incidir na mesma medida. Entretanto, não se achava na linguagem de Bergotte certas formas que nos seus livros, como nos de outros autores, modifica muitas vezes a aparência das palavras. É que, sem dúvida, provém de grandes profundidades; conduz seus raios até nossas palavras nas horas em que, abertos à conversação, estamos até certo ponto fechados para nós mesmos. Em certo aspecto, havia mais entonações, mais acento, em seus livros que em acento independente da beleza do estilo, que o próprio autor sem dúvida percebeu, pois não é separável de sua mais íntima personalidade. Era esse nos momentos em que nos seus livros Bergotte era totalmente natural; dava ritmo às palavras muitas vezes bem insignificativas que escrevia. Fala percebida no texto, nada aí o indica e, no entanto, ele se ajunta por si frases, não é possível dizê-las de outra forma; era o que havia de mais comum, todavia, de mais profundo no escritor, e aquilo é que daria o testemunho, natureza eu diria se, apesar de todas as durezas que exprimira, ele era sua forma de todas as sensualidades, sentimental. 

            Certas particularidades de elocução, que existiam no estado vestígios na conversação de Bergotte, não lhe pertenciam como coisa pois, quando mais tarde conheci seus irmãos e irmãs, encontrei-as nele acentuadas. Era algo brusco e rouco nas últimas palavras de uma frase  enfraquecido e agonizante no final de uma sentença triste. Swann, que Mestre quando era criança, disse-me que, naquele tempo, ouvia-se e bem como na de seus irmãos e irmãs, tais inflexões de algum modo alternadamente gritos de alegria violenta, murmúrios de lenta melancolia na sala em que brincavam todos juntos, ele fazia o seu papel melhor que ninguém em seus concertos, sucessivamente ensurdecedores e desfalecentes. Por pior que seja, todo esse rumor que se evola dos seres é fugidio. Porém não ocorreu assim com a pronúncia da família Bergotte. Por ser difícil entender, mesmo nos Mestres Cantores, como pode um artista, uma música ouvindo o gorjeio dos pássaros, Bergotte, no entanto, transpunha em sua prosa esse modo de prolongar-se nas palavras que se repetem e ações de alegria ou se esgotam em suspiros indolentes. Há em seus livros noções de frases onde a acumulação de sonoridades se prolonga, como verdadeiros acordes da abertura de uma ópera que não pode acabar e repete sua cadência suprema antes que o maestro deponha a batuta, e nas quais mais tarde um equivalente musical dos metais fonéticos da família Bergotte à ele, a partir do momento em que os transportou para seus livros inconscientemente de utiliza-los em seu discurso. No dia em que havia de escrever e, com muito maior razão mais tarde, quando o conheci, desse orquestrar para sempre.

            Esses jovens Bergottes o futuro escritor e seus irmãos e irmãs sem dúvida não eram superiores, pelo contrário, aos jovens mais finos, mais espirituosos, que achavam os Bergottes muito ruidosos e até mesmo um tanto vulgares, trepidantes nos seus gracejos que caracterizavam o "gênero" meio pretensioso, meio cúpido, da casa. Mas o gênio e até o grande talento decorrem menos de elementos intelectuais e de refinamento social superiores aos de outrem, que da faculdade de transformá-los, de transpô-los. Para aquecer um líqüido com uma lâmpada elétrica, não é o caso de se ter a mais forte lâmpada possível, porém uma cuja corrente possa deixar de iluminar, ser desviada e fornecer calor em vez de luz. Para passear nos ares, não é preciso dispor do mais possante automóvel, e sim de um automóvel que, sem continuar a correr no solo e cortando com uma vertical a linha que seguia, seja capaz de converter em força ascensional a sua velocidade horizontal. Da mesma forma, aqueles que produzem obras geniais não são os que vivem no ambiente mais delicado, que têm a mais brilhante conversação, a mais extensa cultura, mas aqueles que tiveram a força de, cessando de viver bruscamente para si mesmos, tornar sua personalidade semelhante a um espelho, de tal forma que sua vida, aliás por mais medíocre que possa ser do ponto de vista mundano e até, num certo sentido, intelectualmente falando, nele se reflita, consistindo o gênio no poder refletor e não na qualidade intrínseca do espetáculo refletido.           No dia em que o jovem Bergotte pôde mostrar ao mundo de seus leitores o salão de mau gosto em que passara a infância e as conversas não muito engraçadas que mantinha com os irmãos, nesse dia ele subiu mais alto que os amigos da família, mais espirituosos e distintos: estes, em seus belos Rolls-Royce, poderiam entrar em sua casa demonstrando um certo desprezo pela vulgaridade dos Bergottes; porém, ele, no seu modesto aparelho que por fim acabava de "decolar", ele os ultrapassava.

            Não mais com os membros de sua família, mas com certos escritores de seu tempo é que ele apresentava determinados traços comuns de elocução. Os mais jovens, que principiavam a renega-lo e pretendiam não ter qualquer parente intelectual com ele, manifestavam-no sem querer empregando os mesmos advérbios, as mesmas proposições que ele repetia sem cessar, construindo as frases da mesma maneira, falando com o mesmo tom amortecido, frouxo, em reação a entrar na linguagem eloqüente e fácil da geração anterior. Talvez esses jovens - e vimos quem estava nesse caso - não tivessem conhecido Bergotte. Mas o seu modo de pensar, inoculado neles, desenvolvera essas alterações da sintaxe e do acento que estão em relação necessária com a originalidade intelectual. Relação que pede para ser interpretada. Assim Bergotte, se não devia nada a ninguém seu modo de escrever, derivava o seu modo de falar de um dos antigos companheiros conversador magnífico de quem sofrera a influência e a quem imitava sem parar na conversação, mas que, sendo menos dotado que ele, nunca escrevera verdadeiramente superior. De modo que, se a gente se restringir à originalidade do enunciado, Bergotte tem de ser rotulado de discípulo, escritor de segunda mão, ao passo que, influenciado pelo amigo no terreno da conversação, fora original e criativo como escritor. Sem dúvida, ainda para se separar da geração precedente, muito amiga de abstrações, dos grandes lugares-comuns, quando Bergotte queria falar bem de um livro, o que valorizava e citava era sempre alguma cena que formasse uma imagem, algum quadro sem significado racional.

            "Ah, sim" – dizia - "está bem! Há uma menina de xale cor de laranja, ah, está muito bem"-ou ainda: "Oh, sim, há uma passagem em que há um regimento que atravessa uma cidade, ah, sim; está muito bom!" Quanto ao estilo, não era inteiramente de sua época (aliás, era muito exclusivamente de seu país, detestava Tolstoi, George Eliot, Ibsen e Dostoievski), pois o vocábulo que empregava sempre, quando queria fazer o elogio de um estilo, era "suave": "Sim, todavia gosto mais do Chateaubriand de fala do que de René, pois este me parece mais suave." Dizia essa palavra como um médico a quem um doente assegura que o leite lhe dá dor de estômago e que responde: "No entanto é bem suave." E é certo que havia no estilo de Bergotte uma espécie de harmonia semelhante àquela pela qual os antigos davam, a alguns de seus oradores, louvores cuja natureza dificilmente podemos conceber, acostumados que estamos às nossas línguas modernas onde não se busca esse tipo de efeito. Ele dizia também, com um sorriso tímido, de páginas suas pelas quais lhe manifestavam admiração:

            -Creio que são bem verdadeiras, bem exatas, podem ser úteis mas simplesmente por modéstia, como uma mulher a quem se diz que seu vestido, ou sua filha, é deslumbrante, e que responde, quanto ao primeiro: - É cômodo - e quanto à segunda: -Tem um bom caráter.

            Mas o instinto do construtor era profundo demais em Bergotte para que ele ignorasse que a única prova que edificara de forma útil e de acordo com a verdade residia na satisfação que a obra lhe dera, a ele em primeiro lugar, e depois aos outros. Apenas muitos anos depois, quando já não tinha mais talento, todas as vezes que escrevia alguma coisa que não o satisfazia, para não a eliminar como deveria ter feito, para publicá-la, repetia consigo, desta vez para si próprio:

            "Apesar de tudo, é bem exato, não é inútil ao meu país." De forma que a frase murmurada outrora diante de seus admiradores por uma astúcia de sua modéstia, o foi, por fim, no segredo de seu coração, pelas inquietudes de seu orgulho. E as mesmas palavras que haviam servido a Bergotte como desculpa supérflua quanto ao valor de suas primeiras obras, se lhe tornaram uma espécie de consolo ineficaz pela mediocridade das últimas. Uma espécie de severidade de gosto que ele possuía, de vontade de nunca escrever senão coisas das quais pudesse dizer:

            "É suave", e que o fizera ser tido, durante tantos anos, como um artista estéril, afetado, cinzelador de nadas, era, pelo contrário, o segredo de sua força, pois o hábito modela igualmente o estilo do escritor como o caráter do homem, e o autor que muitas vezes se contentou em atingir, na expressão do pensamento, um certo grau de satisfação, restringe, assim, para sempre os limites de seu talento, bem como, cedendo muitas vezes ao prazer, à preguiça, ao medo de sofrer, a gente desenha em si mesmo, num caráter onde os retoques acabam por não ser mais possíveis, o retrato dos próprios vícios e os limites da própria virtude.

            Se, entretanto, malgrado tantas correspondências que percebi a seguir entre o escritor e o homem, não acreditara no primeiro momento, na casa da Sra. Swann, que se tratasse de Bergotte, que era o autor de tantos livros divinos que se achava à minha frente, talvez eu não estivesse de todo errado, pois ele mesmo (no verdadeiro sentido da palavra) tampouco o acreditava. Não o acreditava visto demonstrar muita solicitude quanto às pessoas da sociedade (aliás, sem ser esnobe), às pessoas do mundo das letras, aos jornalistas, que lhe eram bem inferiores. Certo, agora sabia, devido ao sufrágio dos outros, que possuía gênio, diante do que não são nada a posição social e os cargos oficiais. Soubera que possuía gênio, porém não o acreditava, já que permanecia simulando deferência para com os escritores medíocres a fim de poder entrar para a Academia, enquanto esta ou o baubourg Saint-Germain não tem a ver com a parte do Espírito eterno que é o autor dos livros de Bergotte mais do que com o princípio de causalidade ou a idéia de Deus. Isto ele também sabia, como um cleptômano sabe inutilmente que é um crime roubar. E o homem de barbicha e nariz de caracol tinha astúcias de cavalheiro ladrão de garfos, para se aproximar da poltrona acadêmica esperada, de uma tal duquesa que dispunha de vários votos nas eleições; mas aproximar-se cuidando para que nenhuma pessoa que considerasse um vício pretender semelhante objetivo pudesse ver sua manobra. Só o conseguia pela metade, ouviam-se alternar as frases do verdadeiro Bergotte com as do Bergotte egoísta, ambicioso e que só pensava em falar dessas pessoas poderosas, nobres ou ricas para se valorizar, logo ele que em seus livros, quando era verdadeiramente ele mesmo, mostrara tão bem, puro como o de uma fonte, o encanto dos pobres.

            Quanto aos outros vícios a que aludira o Sr. de Norpois, ao amor meio incestuoso que, diziam, era até complicado de indelicadeza em matéria de dinheiro, se contradiziam de forma chocante a tendência de seus últimos romances, cheios de uma preocupação tão escrupulosa, tão dolorosa, com o bem, que as menores alegrias de seus heróis eram por ela envenenadas e que, para o próprio leitor, se desprendia um sentimento de angústia através do qual a mais doce existência parecia difícil de suportar, tais vícios, entretanto, não provavam, mesmo que se os imputassem de modo justo a Bergotte, que sua literatura fosse mentirosa, e tanta sensibilidade, uma comédia.

            Do mesmo modo que, na patologia, certos estados de aparência semelhante são devidos, uns a um excesso, outros a uma insuficiência de tensão, de secreção, etc., assim pode haver vício por hipersensibilidade como há vício por falta de sensibilidade. Talvez seja apenas entre os vícios realmente viciosos que o problema moral pode se situar com toda sua força de ansiedade. E problema que o artista dá uma solução não no plano de sua vida individual, mas daquela que é para ele sua vida verdadeira, uma solução geral, literária. Como grandes doutores da Igreja começaram muitas vezes, mesmo sendo bons, e querendo livrar os pecados de todos os homens, daí tirando sua santidade pessoal, por vezes os grandes artistas, mesmo sendo malvados, servem-se de seus vício para chegar a conceber a regra moral de todos. São os vícios (ou apenas as frases dos ridículos) do ambiente em que vivem, as frases inconseqüentes, a vida chocante de sua filha, as traições de sua mulher ou suas próprias faltas, escritores vergastam com freqüência em suas diatribes sem por isso mudar sua vida doméstica ou a linguagem grosseira que reina em seu lar. Mas este chocava menos antigamente do que no tempo de Bergotte, porque, por uma medida que a sociedade se corrompia, as noções de moralidade iam se depurando e, por outro lado, o público se punha mais ao corrente da vida privada dos escritores, do que o fizera até então; e em certas noites, no teatro, mostravam o autor que tanto admirara em Combray, sentado ao fundo de um camarote cuja conversa parecia um comentário singularmente risível ou pungente, um desmentido vergonhoso da tese que ele acabara de sustentar em sua última obra. O que outros puderam me dizer não me informou muita coisa sobre a bondade ou maldade de Bergotte. Alguns de seus íntimos forneciam provas de sua bondade, certo desconhecido citava um rasgo (tocante, pois fora evidentemente destinado a permanecer oculto) de sua profunda sensibilidade. Agira cruelmente com fulano. Mas numa estalagem de aldeia, aonde fora passar a noite, ficara acordado para uma mulher pobre que tentara se afogar, e, quando tinha sido obrigado a deixar muito dinheiro com o estalajadeiro para que não expulsasse aquela infeliz, para que cuidasse dela.

            Talvez, quanto mais o grande escritor se desenvolvia em Bergotte, em detrimento do homem da barbicha, mais a sua vida individualizava nas ondas de todas as vidas que ele imaginava e não parecia obrigá-lo a deveres efetivos, que eram substituídos pelo dever de imaginar vidas. Porém, ao mesmo tempo, pois que imaginava os sentimentos dos tão bem como se fossem seus, quando era necessário dirigir-se a um pelo menos de modo passageiro, fazia-o colocando-se não no seu ponto de vista pessoal, mas no da criatura que sofria, ponto de vista de onde teria horror à linguagem dos que continuam a pensar em seus interesses mesmo que diante da dor alheia. De forma que excitou à sua volta rancores justificados e inextinguíveis. Era principalmente um homem que, no fundo, só amava de verdade imagens e (como uma miniatura no fundo de um estojo) gostava de pintá-las sob as palavras. Por um nada que lhe houvessem mandado, se este desse a ocasião de aí entrelaçar algumas, ele se mostrava pródigo na palavra e seu reconhecimento, ao passo que não testemunhava gratidão alguma por um presente rico. E, se tivesse que se defender diante de um tribunal, teria, apesar de tudo, escolhido as palavras não de acordo com o efeito que pudessem produzir sobre o juiz, mas tendo em vista as imagens que o juiz certamente não perceberia.

            Naquele primeiro dia em que o vi na casa dos pais de Gilberte, contei a Bergotte que ouvira recentemente a Berma em Fedra; disse-me que, na cena em que ela permanece com o braço erguido à altura dos ombros exatamente uma das cenas que tanto haviam aplaudido -, soubera evocar, com uma arte muito nobre, obras-primas que aliás ela talvez nunca tivesse visto, uma Hespéride que faz esse gesto sobre uma metrópole Olímpica, e também as belas virgens do antigo Erectêion.

            -Pode se tratar de uma adivinhação; entretanto, creio que ela freqüenta os museus. Seria interessante "averiguar" isto ("averiguar" era uma das expressões habituais de Bergotte e que aqueles jovens que nunca o haviam encontrado lhe assimilaram, falando como ele por uma espécie de sugestão a distância).

            - Está pensando nas cariátides? indagou Swann.

            - Não, não. - respondeu Bergotte-, a não ser na cena em que ela confessa sua paixão a Oenone e onde faz com a mão o movimento de Hegeso na estrela do Cerâmico; é uma arte bem mais antiga que ela ressuscita. Eu falava das Corés do antigo Erectêion, e reconheço que não existe nada talvez tão distanciado da arte de Racine, porém há tantas coisas na Fedra... uma a mais... Oh! E depois, sim, é tão bonita essa pequena Fedra do séc. VI, a verticalidade do braço, os cachos do cabelo "imitando mármore", sim, todavia já é demais ter achado tudo isso. Ali existe muito mais antigüidade que em muitos livros que este ano são chamados "antigos".

            Como Bergotte, num de seus livros, fizera uma célebre invocação a essas estátuas arcaicas, as palavras que dizia naquele instante eram bem claras para mim, dando-me uma nova razão para me interessar pelo desempenho da Berma. Tentava revê-la nas minhas recordações, exatamente como ela estivera naquela cena em que me lembrava que erguera o braço à altura do ombro. E dizia para comigo:

            "Eis a Hespéride de Olímpia; eis a irmã de uma dessas admiráveis orantes da Acrópole; eis o que se chama uma arte nobre." Mas, para que esses pensamentos me embelezassem o gesto da Berma, teria sido necessário que Bergotte os fornecesse a mim antes da representação. Assim, enquanto aquela atitude da atriz se desenrolava de fato à minha frente, naquele momento em que a coisa ocorrida ainda possui a plenitude da realidade, eu poderia tentar extrair dela a idéia de uma escultura arcaica. Da Berma, porém, naquela cena, o que guardei era uma lembrança que já não podia modificar, tênue como uma imagem desprovida das camadas profundas do presente que se deixam escavar e de onde se pode extrair, com veracidade, algo de uma imagem à qual não se pode impor, retroativamente, uma interpretação já mais suscetível de verificação, de sanção objetiva. Para meter-se na conversa, Swann me perguntou se Gilberte pensara em me dar o que Bergotte havia escrito acerca de Fedra.

            -Tenho uma filha tão estouvada. - acrescentou. Bergotte teve um sorriso modesto e protestou que eram páginas sem importância.

            - Oh, não, é extraordinário o opúsculo, esse pequeno tracf! - disse a Sra. Swann para se mostrar boa dona-de-casa, para fazê-lo crer que havia lido a brochura, e também porque não lhe agradava simplesmente cumprimentar Bergotte, mas fazer uma escolha entre as coisas que ele escrevia, e dirigi-lo. E, na verdade, ela o inspirou, aliás de um modo que nem pensava. Mas enfim, existem, entre o que foi a elegância do salão da Sra. Swann e toda uma parte da obra de Bergotte, relações tais que ambos podem ser, alternativamente, para os velhos de hoje, um comentário de um ao outro.

            Eu continuava contando minhas impressões. Muitas vezes Bergotte não as considerava justas, porém deixava-me falar. Disse-lhe que havia adorado aquela iluminação verde que se dá no momento em que Fedra ergue o braço.

            -Ah, daria muito prazer ao decorador, que é um grande artista; vou lhe contar isto, porque ele tem muito orgulho daquela luz. Quanto a mim, devo dizer que não gosto muito, pois banha tudo numa espécie de atmosfera glauca; a pequena Fedra lá dentro fica por demais parecida com um coral no fundo de um aquário. Você dirá que aquilo faz ressaltar o lado cósmico do drama. É verdade. Ainda assim, estaria melhor numa peça que se passasse no reino de Netuno. Sei bem que ali existe a vingança de Netuno. Meu Deus, não peço que só pensem em Port-Royal, mas, enfim, todavia, o que Racine contou não foi os amores dos ouriços-do-mar. Afinal, foi o que o meu amigo desejou e está muito bem assim, e no fundo é bem bonito. Sim, afinal você gostou, você compreendeu, não é? No fundo, pensamos da mesma maneira sobre isso; é um pouco insensato o que ele fez, não é, mas afinal é muito inteligente.

            E, quando a opinião de Bergotte era desse modo contrária à minha, ele não me reduzia de forma alguma ao silêncio, à impossibilidade de responder algo, como o teria feito a opinião do Sr. de Norpois. Isto não prova que as opiniões de Bergotte fossem menos válidas que as do embaixador; ao contrário. Uma idéia vigorosa comunica um pouco da sua força ao adversário. Participando do valor universal dos espíritos, ela se insere, se implanta no espírito daquele a quem refuta, em meio às idéias adjacentes, com ajuda das quais, retomando alguma vantagem, ele a completa e retifica; de modo que a sentença final é de alguma forma a obra de duas pessoas que discutiam. É às idéias que não são propriamente idéias, às idéias que, não levando a nada, não encontram nenhum ponto de apoio, nenhum ramo fraterno no espírito do adversário, que este, às voltas com o puro vazio, não acha nada para responder. Os argumentos do Sr. de Norpois (em matéria de arte) não admitiam réplica porque estavam fora da realidade. Visto que Bergotte não afastava as minhas objeções, confessei-lhe que tinham sido desprezadas pelo Sr. de Norpois.

            - Mas trata-se de um velho canário. - respondeu. Deu-lhe bicadas, pois julga sempre ter pela frente um pastel ou uma sílaba.

            - Como! Você conhece Norpois? perguntou-me Swann.

            - Oh, ele é tedioso como a chuva - interrompeu sua mulher, que depositava muita confiança no julgamento de Bergotte e temia, sem dúvida, que o Sr. de Norpois nos tivesse falado mal dela. -Quis conversar com ele depois do jantar; não sei se, por causa da idade ou da digestão, o fato é que o achei muito enjoado! Parece que é preciso dopá-lo.

            - Sim, de fato - disse Bergotte. - Muitas vezes é obrigado a calar-se para não esgotar, antes do fim da festa, a quantidade de asneiras que engomam o peitilho da camisa e sustentam o colete branco.

            -Acho Bergotte e minha mulher muito severos - comentou Swann, que assumira em sua casa o "papel" de homem de bom senso. - Reconheço que Norpois não pode interessá-los muito, mas sob um outro ponto de vista- (pois Swann gostava de recolher as belezas da "vida") -, trata-se de alguém bem curioso, bastante curioso mesmo, como "amante". Quando era secretário em Roma - acrescentou, depois de se certificar que Gilberte não podia ouvi-lo-, tinha em Paris uma amante pela qual estava apaixonado, e achava um meio de fazer a viagem duas vezes por semana para vê-la durante duas horas. Aliás, era uma mulher muito inteligente e deslumbrante naquela época; agora é uma senhora idosa. E ele teve muitas outras amantes nesse período. Quanto a mim, ficaria louco se fosse necessário que a mulher que eu amava morasse em Paris enquanto eu permanecesse retido em Roma. Para as pessoas nervosas, seria sempre necessário que amassem, como diz o povo, "gente de classe inferior", para que uma questão de interesse pusesse a mulher a quem amam à sua disposição.

            Nesse momento, Swann se apercebeu da aplicação que eu podia fazer dessa máxima ao caso dele e de Odette. E, como até entre as criaturas superiores, no momento em que parecem planar conosco acima das contingências da vida, o amor-próprio permanece mesquinho, Swann foi tomado de um grande mau humor contra mim. Porém, isto só se manifestou na inquietação do seu olhar. No momento, ele não me disse nada. Não devemos nos espantar muito de semelhante coisa. Quando Racine, segundo uma narrativa aliás controvertida, mas cujo assunto se repete todos os dias na vida parisiense, acusou Scarron diante de Luís XIV, o mais poderoso rei do mundo não disse nada ao poeta na mesma noite. E foi no dia seguinte que Racine caiu em desgraça. Mas, como uma teoria deseja ser expressa por inteiro, Swann, após aquele minuto de irritação e tendo enxugado a lente do monóculo, completou seu pensamento com essas palavras que, mais tarde, deviam assumir, na minha lembrança, o valor de uma advertência profética e da qual não soube me dar conta.

            - Entretanto, o perigo desse gênero de amor é que a sujeição da mulher tranqüiliza por um

instante o ciúme do homem, mas também a faz mais exigente. O homem chega a fazer a mulher viver como os prisioneiros que são iluminados dia e noite para serem mais bem vigiados. E isto, em geral, acaba em drama.

            Voltei ao Sr. de Norpois.

            - Não confie nele; ao contrário, tem muito má língua - disse a Sra. Swann com um acento que me pareceu tanto mais indicar que o Sr. de Norpois falara mal dela, porque Swann olhou a esposa com ar de repreensão e como que para impedi-la de falar mais.

            Entretanto, Gilberte, a quem já tinham dito duas vezes que fosse se preparar para sair, ficava a nos ouvir, entre a mãe e o pai, a cujo ombro se apoiava carinhosamente. A primeira vista, nada era mais contrastante com a Sra. Swann, que era morena, do que aquela mocinha de cabelo ruivo e pele dourada. Mas, ao cabo de um instante, reconheciam-se em Gilberte diversos traços. Por exemplo, o nariz talhado em brusca e infalível decisão pelo escultor invisível que trabalha com seu cinzel para várias gerações, a expressão e os movimentos da mãe. Para fazer uma comparação em outra arte, Gilberte dava a impressão de um retrato pouco parecido ainda com a Sra. Swann, a quem o pintor, por um capricho de colorista, tivesse feito posar meio disfarçada, pronta para ir, vestida de veneziana, a um jantar à fantasia. E, como não só tivesse uma peruca loura, mas também como todo átomo sombrio fora expulso de sua pele, a qual, despida de seus véus escuros, parecia mais nua, recoberta apenas dos raios expelidos por um sol interior, a caracterização não era superficial, e sim personificada; Gilberte dava a impressão de retratar algum animal fabuloso, ou de vestir uma fantasia mitológica. Aquela pele ruiva era a de seu pai, a ponto que a Natureza parecia ter precisado, quando Gilberte fora gerada, resolver o problema de refazer aos poucos a Sra. Swann, sem ter à sua disposição como matéria-prima senão a pele do Sr. Swann. E a Natureza a utilizara com perfeição, como um mestre em marcenaria que faz questão de deixar visíveis as aparas e os nós da madeira. No rosto de Gilberte, no canto do nariz de Odette perfeitamente reproduzido, a pele se erguia para conservar intactos os dois grãos de beleza do Sr. Swann. Era uma variedade nova da Sra. Swann que se obtinha ali, ao lado dela, como um lilás branco ao lado de um lilás roxo. No entanto, era desnecessário representar a linha demarcatória entre as duas semelhanças, por ser absolutamente nítida. Em certos momentos, quando Gilberte ria, percebia-se o oval da face de seu pai no rosto da mãe, como se os pusessem juntos para ver no que daria a mistura; esse oval tornava-se preciso da mesma maneira como se forma um embrião, alongava-se obliquamente, inchava-se, e desaparecia após um instante. Nos olhos de Gilberte havia o bom olhar franco do pai; era este o olhar que mostrava quando me dera a bolinha de ágata, dizendo:

            "Guarde-a como lembrança da nossa amizade."

            Mas, quando lhe faziam uma pergunta sobre o que havia feito, então viam-se nos mesmos olhos o embaraço, a incerteza, a dissimulação, a tristeza que mostrava antigamente Odette, quando Swann lhe perguntava aonde tinha ido e ela lhe dava uma daquelas respostas mentirosas que desesperavam o amante e o faziam agora mudar bruscamente de assunto, como marido prudente e sem curiosidade. Muitas vezes, nos Champs-Élysées, sentira-me inquieto ao ver esse olhar de Gilberte. Porém, na maioria das vezes sem motivo. Pois nela, a sobrevivência puramente física de sua mãe, aquele olhar pelo menos o dos Champs-Élysées; já não correspondia a coisa alguma. Quando ela ia para o curso, quando devia voltar para uma aula, é que as pupilas de Gilberte faziam esse movimento que outrora, nos olhos de Odette, era provocado pelo medo de revelar que recebera, durante o dia, um de seus amantes ou que tinha pressa em comparecer a um encontro. Assim, viam-se as duas naturezas, do Sr. e Sra. Swann, ondular, refluir, invadir sucessivamente, uma sobre a outra, o corpo daquela Melusina. É claro que se conhece bem que uma criança se parece com o pai e a mãe. Mesmo a distribuição das qualidades e dos defeitos que ela herda se faz de modo tão estranho que, de duas qualidades que parecem inseparáveis em um dos pais, só uma se encontra no filho, e esta mesma aliada a defeitos do outro pai, que parecia irreconciliável com ela. E até a encarnação de uma qualidade moral em um defeito físico incompatível é muitas vezes uma das leis da parecença filial. De duas irmãs, uma terá, com a soberba estatura do pai, o espírito mesquinho da mãe; a outra, toda repleta da inteligência paterna, haverá de apresentá-la ao mundo sob o aspecto que possui a mãe; de sua mãe, o nariz grande, o ventre nodoso, e até a voz, são o revestimento de dons que se conheciam sob uma aparência magnífica. De modo que, de cada uma das irmãs, pode-se dizer com tanto mais razão que ela é quem herdou mais dos pais. É verdade que Gilberte era filha única, mas havia no mínimo duas Gilbertes. As duas naturezas, a de seu pai e de sua mãe, não faziam mais que misturar-se nela; disputavam-na, e isto ainda seria falar de modo inexato e levaria a supor que uma terceira Gilberte sofria, naquele tempo, o ser uma presa das outras duas. Ora, Gilberte era alternadamente uma e outra, e em cada instante nada mais que uma, isto é, incapaz, quando não era tão bondosa, de suportar aquilo, não podendo então a melhor Gilberte, devido à sua momentânea ausência, constatar aquela perda. Também a menos boa das duas era livre para desfrutar prazeres pouco nobres. Quando a outra falava carinhosamente do pai, tinha vistas largas, gostaríamos de dirigir com ela um belo e benéfico empreendimento, falávamos nisso, mas, quando íamos chegar a um acordo o coração de sua mãe já retomara seu posto; e era ele quem respondia; ficávamos decepcionados e irritados - quase intrigados como diante da substituição de uma pessoa - por uma reflexão mesquinha, uma troça manhosa, em que Gilberte se comprazia, pois saíam do que ela própria era naquele instante. A separação entre as duas Gilbertes era mesmo tão grande, às vezes, que a gente se perguntava, aliás em vão, o que lhe poderiam ter feito para que ficasse tão diferente. Não só não comparecia ao encontro que nos havia proposto, sem desculpar-se depois, mas, fosse qual fosse a influência que a tivesse feito mudar de idéia, ela se mostrava tão diferente a seguir que acreditaríamos que, vítima de uma semelhança como a que está no centro dos Menecmos, não estávamos diante da pessoa que nos pedira tão gentilmente o encontro, caso não nos testemunhasse um mau humor que revelava sentir-se em falta e desejar evitar explicações.

            -Vamos, vais nos fazer esperar - disse-lhe a mãe.

            - Estou muito bem junto do papaizinho, quero ficar ainda mais um pouco respondeu Gilberte escondendo a cabeça nos braços do pai, que passou carinhosamente os dedos pela cabeleira ruiva.

            Swann era um desses homens que, tendo vivido muito tempo nas ilusões do amor, viram o bem-estar que deram a muitas mulheres aumentar a felicidade delas sem criar, de sua parte, nenhum reconhecimento, nenhuma ternura quanto a eles; mas, no filho, julgam sentir uma afeição que, encarnada em seu próprio nome, fará com que permaneçam após a morte. Quando não houvesse mais Charles Swann, haveria ainda uma Srta. Swann, ou uma Sra. X, nascida Swann, que continuaria a amar o pai desaparecido. Talvez até a amá-lo ainda mais, pensava Swann sem dúvida, pois respondeu a Gilberte:

            -És uma boa filha - com esse tom enternecido pela inquietude que nos inspira para o futuro a ternura por demais apaixonada de uma criatura destinada a nos sobreviver. Para dissimular sua emoção, ele se meteu em nossa conversa sobre a Berma. Fez-me notar, mas num tom desligado, entediado, como se quisesse permanecer de algum modo de fora daquilo que dizia, com que inteligência, com que justiça imprevista a atriz falava a Oenone:

            "Tu o sabias!" Ele tinha razão: aquela entonação, pelo menos, era de um valor verdadeiramente inteligente e, portanto, deveria satisfazer meu desejo de encontrar motivos irrefutáveis de admirar a Berma. Mas era justamente devido à própria clareza que ela não o contentava. A entonação era tão engenhosa, de uma intenção e um sentido tão específicos, que parecia existir nela mesma e que toda artista dotada de inteligência poderia adquiri-la. Era uma bela idéia; mas qualquer um que a concebesse de forma tão plena a possuiria do mesmo modo. Restava à Berma o mérito de havê-la encontrado; mas pode-se empregar o vocábulo "encontrar", quando se trata de achar alguma coisa que não seria diferente se fosse recebida, alguma coisa que não se refere essencialmente ao nosso ser visto que um outro pode reproduzi-la a seguir?

            - Meu Deus, mas como a sua presença eleva o nível da conversa! - disse-me, como para se desculpar junto a Bergotte, Swann, que adquirira no ambiente dos Guermantes o hábito de receber os grandes artistas como bons amigos, aos quais se busca apenas fazer com que comam os pratos que adoram, jogar jogos ou, no campo, entregarem-se aos esportes que lhes agradam.-Parece-me que falamos bem de arte - acrescentou.

            - Tudo bem, gosto muito disso - disse a Sra. Swann, lançando-me um olhar reconhecido, por bondade e também porque guardara suas velhas aspirações quanto a uma conversa mais intelectual. A seguir, foi com outras pessoas, particularmente com Gilberte, que Bergotte falou. Eu lhe dissera tudo o que sentia com uma liberdade que me espantara e que provinha de que tomara com ele, desde muitos anos (no decurso de tantas horas de solidão e de leitura, onde ele era para mim apenas a melhor parte de mim mesmo), o hábito da sinceridade, da franqueza, da confiança; ele me intimidava menos que uma pessoa com quem tivesse conversado pela primeira vez. E, no entanto, pela mesma razão, sentia-me bastante inquieto quanto à impressão que deveria ter produzido nele, visto não datar de hoje o desprezo que supusera que teria pelas minhas idéias, e sim de um tempo já antigo em que começara a ler seus livros em nosso jardim de Combray. No entanto, deveria ter me ocorrido que, se fui sincero, se apenas me abandonei ao meu pensamento

ao simpatizar tanto, por um lado, com a obra de Bergotte e ao sentir, por outro lado, no teatro, um desapontamento cujos motivos ignorava, esses dois movimentos instintivos que me haviam empolgado não deviam ser tão diversos um do outro, e sim obedecer às mesmas leis; e que esse espírito de Bergotte, que eu amara em seus livros, não devia ser algo inteiramente estranho e hostil à minha decepção e à incapacidade de expressá-la. Pois minha inteligência devia ser una, e talvez mesmo só exista uma única da qual todos são colocatários, uma inteligência sobre a qual cada um de nós, do fundo de seu corpo particular, lança os seus olhares, como no teatro, onde cada um tem seu lugar; em compensação, só existe um único cenário. Sem dúvida, as idéias que eu tivera o gosto de procurar desenredar não eram as que, em geral, Bergotte aprofundava em seus livros. Mas, se se trata da mesma inteligência que tanto eu como ele possuímos à nossa disposição, ele devia, ao ouvi-las expressas por mim, recorda-las, amá-las, sorrir-lhes, provavelmente conservando, apesar de minhas suposições, diante de seu olho interior, uma parte da inteligência bem diversa da outra parte que se projetara em seus livros, e segundo a qual eu havia imaginado todo o seu universo mental. Do mesmo modo que os padres, tendo a experiência mais profunda do coração, podem melhor perdoar os pecados que não cometem, assim também o gênio, tendo a maior experiência da inteligência, pode compreender melhor as idéias mais contrárias às que formam o fundo de sua própria obra. Eu deveria me ter dito tudo isso (que aliás nada tem de agradável, pois a benevolência dos grandes espíritos tem por corolário a incompreensão e a hostilidade dos medíocres; ora, somos muito menos felizes com a amabilidade de um grande escritor, que a rigor se pode encontrar em seus livros, do que sofremos com a hostilidade de uma mulher que não elegemos por sua inteligência, mas que não podemos evitar amar). Eu deveria ter dito tudo isso, mas não o dizia; estava convencido de que parecera um estúpido a Bergotte, quando Gilberte me sussurrou ao ouvido:

            - Estou louca de alegria, porque você conquistou meu grande amigo Bergotte. Ele disse a mamãe que o achou muito inteligente.

            -Aonde vamos?- perguntei a Gilberte.

            -Ora, aonde quiserem; quanto a mim, você sabe, ir para cá ou para lá...

            Porém, desde o incidente ocorrido no dia do aniversário da morte de seu avô, eu me perguntava se o caráter de Gilberte não era diferente do que havia pensado, se essa indiferença pelo que fizessem, se aquele juízo, aquela tranqüilidade, aquela doce e constante submissão, não esconderiam, ao contrário, desejos muito passionais que, por amor-próprio, ela não queria dar a perceber e que só revelava em sua súbita resistência quando por acaso eram contrariados. Como Bergotte morasse no mesmo bairro dos meus pais, saímos juntos; no carro, falou-me de minha saúde:

            - Nossos amigos me disseram que você é doente. Lamento-o bastante. E, apesar disso, não tanto assim, pois vejo que deve possuir os prazeres da inteligência e isso, provavelmente, é o que conta para você, como para todos aqueles que conhecem tais prazeres.

            Ai de mim! O que ele falava, quão pouco verdadeiro eu sentia que era para mim, a quem todo raciocínio, por elevado que fosse, deixava frio, que não era feliz senão em momentos de simples lazer, quando sentia bem-estar; percebia quanto o que desejava na vida era puramente material e com que facilidade me absteria da inteligência. Como não distinguia, entre os prazeres, aqueles que me vinham de fontes diferentes, mais ou menos profundas e duráveis, pensei, no momento de lhe responder, que teria gostado de uma existência em que estivesse ligado à duquesa de Guermantes e na qual muitas vezes teria sentido, como no antigo escritório do imposto de trânsito dos Champs-Élysées, um frescor que me recordaria Combray. Ora, nesse ideal de vida que não ousava confiar-lhe, os prazeres da inteligência não ocupariam lugar algum.

            - Não senhor, os prazeres da inteligência são muito pouco para mim; não são eles o que procuro. Nem sei mesmo se alguma vez os senti.

            - Acha isso mesmo? replicou ele. - Muito bem, escute; isto deve ser o que você prefere apesar de tudo, me parece. É o que acho.

            Certo, ele não me convencia; no entanto, eu me sentia mais feliz, menos acanhado. Devido ao que me havia dito o Sr. de Norpois, considerara meus momentos de devaneio, de entusiasmo, de confiança em mim mesmo, como puramente subjetivos e sem verdade. Ora, segundo Bergotte, que dava impressão de conhecer o meu caso, parecia que o sintoma a desprezar eram ao contrário as minhas dúvidas, o desgosto que sentia por mim mesmo. Principalmente o que dissera acerca do Sr. de Norpois tirava muito da força de uma condenação que eu julgara irremediável.

            -Você é bem cuidado? - indagou Bergotte. - Quem é que se ocupa de sua saúde?

            - Disse-lhe que era e voltaria a ser Cottard, sem dúvida.

            - Mas não é disso que você precisa! respondeu. - Não o conheço como médico. Porém, vi-o na casa da Sra. Swann. É um imbecil. Supondo que isso não o impeça de ser um bom médico, o que me custa a acreditar, isso o impede de ser um bom médico para artistas, para pessoas inteligentes. Pessoas como você têm necessidade de médicos apropriados, direi quase de regimes, de medicamentos especiais. Cottard vai aborrecê-lo e o tédio por si só impedirá que seu tratamento seja eficaz. E depois, esse tratamento não pode ser o mesmo para você e para um indivíduo qualquer. Três quartas partes dos males das pessoas inteligentes provêm de sua inteligência. Falta-lhes, pelo menos, um médico que os conheça. Como quer que Cottard possa tratá-lo? Ele previu a dificuldade de digerir molhos, a perturbação gástrica, mas não a leitura de Shakespeare... Assim, seus cálculos não são mais acertados com você, o equilíbrio está rompido, é sempre o pequeno ludião que sobe. Ele descobrirá em você uma dilatação do estômago, não tem necessidade de examiná-lo visto que já o fez previamente com o olho. Você pode vê-la, pois se reflete no seu pincenêz.

            Esta maneira de falar me cansava bastante, eu dizia comigo com a estupidez do

bom senso:

            "Não existe mais dilatação do estômago refletida no pincenêz do professor Cottard do que as tolices ocultas no colete branco do Sr. de Norpois."

            - Eu lhe aconselharia, de preferência, o doutor Boulbon - prosseguiu Bergotte. - É muito inteligente.

            - É um grande admirador de suas obras – disse-lhe. - Vi que Bergotte o sabia e concluí que os espíritos fraternais depressa se ajuntam, que a gente possui poucos "amigos desconhecidos". O que Bergotte me disse a respeito de Cottard me chocou por ser bem o oposto de tudo quanto eu acreditava. De modo algum me inquietava achar o meu médico um sujeito aborrecido; esperava dele que, graças a uma arte cujas leis me fugiam, proferisse a respeito de minha saúde um oráculo indiscutível ao consultar minhas entranhas. E pouco me importava que, com o auxílio de uma inteligência, auxílio que eu mesmo poderia lhe prestar, ele procurasse compreender a minha, que eu apenas imaginava como um meio, indiferente em si mesmo, de tentar alcançar verdades exteriores. Duvidava muito de que as pessoas inteligentes tivessem necessidade de uma higiene diversa da dos imbecis, e estava pronto a me submeter à desses últimos.

            - Se alguém precisa de um bom médico, é o nosso amigo Swann - disse Bergotte. E, como eu perguntasse se ele estava doente: - Pois bem, um homem que desposou uma mulher de vida fácil, que tem de aturar, por dia, cinqüenta desfeitas de senhoras que não querem ter relações com a sua, ou de homens que dormiram com ela. Vê-se isto, elas lhe retorcem a boca. Repare as sobrancelhas circunflexas que ele apresenta quando entra em casa, para ver quem está de visita. -A má vontade com que Bergotte falava a um estranho, sobre os amigos em cuja casa era recebido há tanto tempo, era tão nova para mim como o tom quase carinhoso com que, na casa dos Swann, ele assumia a todo instante com eles. Certamente, uma pessoa como a minha tia-avó, por exemplo, teria sido incapaz, como nenhum de nós, dessas gentilezas que ouvira Bergotte

prodigalizar a Swann. Mesmo às pessoas a quem amava, ela gostava de dizer coisas desagradáveis. Mas, na ausência delas, não teria pronunciado uma só palavra que elas não pudessem ouvir. Nada era menos parecido com a alta sociedade do que a nossa de Combray. A dos Swann já era uma tendência para a alta-roda, para suas ondas versáteis. Ainda não era o mar alto, já era a laguna.

            -Tudo isto fica entre nós - disse-me Bergotte, ao me deixar diante de minha porta. Alguns anos depois, eu lhe teria respondido:

            "Nunca repito nada".

            É a frase ritual das pessoas da alta sociedade, pela qual o maldizente é falsamente assegurado. Ela é que eu já teria dirigido a Bergotte naquele dia, pois a gente não inventa tudo o que diz, sobretudo nos momentos em que age como pessoa social. Mas não a conhecia ainda. Por outro lado, a frase de minha tia-avó numa ocasião semelhante teria sido:

            "Se não quer que isto seja repetido, por que então está me dizendo?"

            É a resposta das pessoas insaciáveis, das "cabeças-duras". Eu não o era. Inclinei-me em silêncio. Os literatos que, para mim, eram personagens notáveis intrigavam durante anos antes de travar com Bergotte relações que permaneciam sempre obscuramente literárias e não saíam de seu gabinete de trabalho, ao passo que eu acabava de me instalar entre os amigos do grande escritor logo à primeira vista e tranqüilamente, como alguém que, em vez de fazer fila como todos para arranjar um mau lugar, ganha os melhores, tendo passado por um corredor fechado aos outros. Se Swann o abrira para mim daquele modo, era sem dúvida porque, feito um rei que acha natural convidar os amigos do filho para o camarote real, para o iate real, assim também os pais de Gilberte recebiam os amigos da filha no meio das coisas preciosas que possuíam e das intimidades, mais preciosas ainda, que ali estavam guardadas. Mas àquela época imaginei, e talvez com razão, que essa amabilidade de Swann era dirigida indiretamente a meus pais. Julgara ouvir outrora, em Combray, que ele se oferecera, vendo minha admiração por Bergotte, para me levar para jantar em sua casa, e que meus pais haviam recusado, alegando que eu era muito jovem e muito nervoso para "sair". Sem dúvida, meus pais representavam para certas pessoas, exatamente aquelas que me pareciam as mais maravilhosas, algo bem diverso que para mim mesmo, de modo que, como no tempo em que a dama cor-de-rosa dirigira a meu pai elogios de que ele se mostrara tão pouco digno, eu teria desejado que eles compreendessem que inestimável presente acabara de receber e testemunhassem o seu reconhecimento a esse Swann generoso e cortês que me havia, ou lhes havia, oferecido, sem parecer dar maior importância ao seu ato do que aquele delicioso rei mago do afresco de Luini, de nariz curvo e cabelos louros, e com quem, parece, lhe haviam achado grande semelhança antigamente. Infelizmente, o favor que Swann me fizera e que, ao chegar em casa, antes mesmo de tirar o sobretudo, anunciei a meus pais na esperança de que lhes despertaria no coração um sentimento tão emocionado quanto o meu e os levasse a uma "cortesia" enorme e decisiva para com os Swann, tal favor não pareceu muito apreciado por eles.

            -Swann te apresentou a Bergotte? Belo conhecimento, encantadora relação! - exclamou ironicamente meu pai.- Não faltava mais nada!

            Ai de mim, quando acrescentei que ele não gostava de modo algum do Sr. de Norpois: -        -Naturalmente! -Tornou ele. - Isto bem prova que se trata de um espírito falso e malévolo. Meu pobre filho, já não tinhas muito senso comum; estou triste porte ver cair num ambiente que vai acabar de te desequilibrar.

            A simples freqüência à casa dos Swann já estava longe de encantar meus pais. A apresentação a Bergotte lhes pareceu uma conseqüência nefasta, mas natural, de um primeiro erro, da fraqueza que haviam tido e que meu pai chamou de "falta de circunspecção". Senti que, para completar o mau humor dos pais, bastaria dizer-lhes que aquele homem perverso me achara extremamente inteligente. De fato, quando meu pai considerava que uma pessoa, um de meus companheiros, por exemplo, estava no mau caminho - como eu naquele momento - e tinha então a aprovação de alguém de quem meu pai não gostava, este via no fato a confirmação do seu diagnóstico irritado. O mal só lhe parecia ainda maior. Já ouvia o que ele exclamaria:

            "Necessariamente, é tudo uma cambada!", termo que me espantava pela imprecisão e a imensidão das reformas cuja iminente introdução em minha doce vida parecia anunciar.

            Mesmo que não dissesse o que Bergotte falara sobre mim, já nada poderia apagar a impressão ruim de meus pais; e que fosse um pouquinho pior, isto não me importava. Aliás, pareciam-me tão injustos, de tal maneira apegados ao erro, que não só não tinha esperança mas nem sequer o desejo de conduzi-los a uma visão mais eqüitativa. Entretanto, sentindo, no momento em que minhas palavras saíam da boca, como iriam meus pais se assustar em pensar que eu havia agradado a alguém que julgava idiotas os homens inteligentes, era objeto de desprezo da parte das pessoas honestas, e cujos louvores, parecendo-me invejáveis, me impeliriam ao mal -foi com voz baixa e com um ar meio envergonhado, que, ao terminar a narração, aduzi o arremate:

            - Ele disse aos Swann que me achara muitíssimo inteligente.

            Como um cão envenenado que, no campo, se arremessa, sem o saber, precisamente sobre a erva que é o antídoto da toxina que absorveu, acabara eu de dizer a meus pais, sem ter noção de tal, a única palavra no mundo capaz de vencer, na opinião deles, o preconceito que alimentavam quanto a Bergotte, preconceito contra o qual todos os mais belos raciocínios que eu poderia ter feito, todos os louvores que fizesse, seriam em vão. No mesmo instante, a situação mudou de aspecto:

            -Ah... ele disse que te achava inteligente? - exclamou minha mãe. - Isto me agrada, pois trata-se de um homem de talento.

            -Como! Ele disse isso? - repetiu meu pai. - Não nego em nada o seu valor literário diante do qual todos se inclinam; apenas, é aborrecido que leve essa vida pouco honrosa da qual falou o velho Norpois com palavras encobertas - acrescentou, sem se aperceber de que, face à virtude soberana das palavras mágicas que eu acabara de pronunciar, já não podia lutar por muito tempo com a depravação dos costumes de Bergotte, nem a falsidade do seu julgamento.

            -Oh, meu caro - interrompeu mamãe -, nada prova que isto seja verdade. Dizem tantas coisas. Além disso, o Sr. de Norpois é o que existe de mais gentil, mas nem sempre é muito benevolente, sobretudo para com as pessoas que não são de sua opinião.

            - É verdade, eu também já havia reparado - respondeu meu pai.

            -E, além disso, pode-se perdoar muito a Bergotte, visto que achou amável o meu filhinho- replicou mamãe, acariciando meus cabelos com os dedos e depondo em mim um longo olhar sonhador.

            Aliás, minha mãe não havia esperado pelo veredito de Bergotte para dizer que eu podia convidar Gilberte para merendar quando recebesse meus amigos. Mas eu não ousava fazê-lo por dois motivos. Primeiro, porque na casa de Gilberte nunca serviam senão chá. Em minha casa, ao contrário, mamãe cuidava para que, junto com o chá, houvesse chocolate. Temia eu que Gilberte achasse aquilo vulgar e nos desprezasse. O outro motivo foi uma dificuldade de protocolo que jamais consegui revogar. Quando chegava à casa da Sra. Swann, ela me perguntava:

            - Como vai a senhora sua mãe?

            Sondara mamãe para saber se ela faria o mesmo à chegada de Gilberte, questão que me parecia mais grave que o título de "Monsenhor" na corte de Luís XIV. Porém mamãe não quis saber de nada.

            - De jeito nenhum, pois não conheço a Sra. Swann.

            - Mas ela também não te conhece.

            - Não digo que não, mas nós não somos obrigados a proceder da mesma maneira em tudo. Quanto a mim, vou fazer outras gentilezas a Gilberte, gentilezas que a Sra. Swann não tem para contigo.

            Mas não me convenci e preferi não convidar Gilberte.

            Tendo deixado meus pais, fui trocar de roupa e, esvaziando os bolsos, encontrei de repente o envelope que o mordomo da casa dos Swann me entregara antes de me introduzir no salão. Agora, estava sozinho. Abri-o; dentro havia um cartão no qual indicavam-me a dama a quem deveria oferecer o braço para ir à mesa. Foi por essa época que Bloch transtornou minha concepção do mundo, abrindo-me novas possibilidades de felicidade (que, de resto, deviam mudar-se mais tarde em possibilidades de sofrimento), ao me assegurar que, contrariamente ao que julgara no tempo de meus passeios para os lados de Méséglise, as mulheres não desejavam outra coisa senão fazer amor. Completou o serviço prestando-me um segundo que só mais tarde devia apreciar: foi ele quem me levou pela primeira vez a um bordel. Bem que me havia dito que ali havia muitas mulheres lindas que a gente podia possuir. Mas eu atribuía-lhes uma fisionomia vaga, que os bordéis me permitiriam substituir por rostos particulares. De modo que se devia a Bloch por sua "boa nova" de que a felicidade e a posse da beleza não são coisas inacessíveis e que seria inútil renunciar a elas para sempre; um obséquio do mesmo tipo do que devemos a um médico ou a um filósofo otimista que nos fazem esperar pela longevidade neste mundo, e que não estaremos totalmente separados deste quando tivermos passado a um outro, os bordéis que freqüentei alguns anos depois; ao me fornecerem amostras de felicidade, e ao me permitirem acrescentar à beleza das mulheres o elemento que não podemos inventar, que não passa do resumo das belezas antigas, o presente verdadeiramente divino, o único que não poderíamos receber de nós mesmos, diante do qual expiram todas as criações lógicas de nossa inteligência e que só podemos pedir à realidade: um encanto individual mereceram ser por mim classificados ao lado daqueles outros benfeitores de mais recente origem porém de utilidade análoga (antes dos quais imaginávamos sem calor a sedução de Mantegna, de Wagner, de Siena, através de outros pintores, outros músicos, outras cidades): as edições ilustradas de história da pintura, os concertos sinfônicos e os ensaios sobre as "Cidades de arte". Mas a casa aonde Bloch me levou e à qual não ia, aliás, há muito tempo, era de um nível bastante inferior, o pessoal era muito medíocre e bem pouco renovado para que eu pudesse satisfazer antigas curiosidades ou adquirir novas. A dona dessa casa não conhecia nenhuma das mulheres que lhe solicitavam e oferecia sempre uma que não lhe haviam pedido. Elogiou-me sobretudo uma, da qual, com um sorriso cheio de promessas (como se isso fosse uma raridade e um regalo), dizia:

            -É uma judia! Isto não lhe diz nada? - (Sem dúvida, era por isso que a chamava de Rachel.) E, com uma exaltação simplória e artificial, que esperava ser comunicativa e que acabava com um arquejo quase de gozo:

            - Pois pense, meu garoto, uma judia, parece-me que deve ser de enlouquecer!

            Ah! Essa Rachel, que examinei sem que me visse, era morena, nada bonita, mas tinha aspecto inteligente; e, não sem passar a língua pelos lábios, sorria com jeito bem impertinente para os fregueses que lhe apresentavam e que eu ouvia entabularem conversa com ela. Seu rosto comprido e magro era cercado de cabelos negros e crespos, irregulares como se traçados a nanquim numa aquarela. De cada vez eu prometia à patroa, que me propunha a moça com insistência particular, enaltecendo sua grande inteligência e instrução, que não deixaria de vir um dia expressamente para conhecer Rachel, a quem apelidei "Rachel-quando-do-Senhor". Mas, na primeira noite, ouvi-a no momento em que ia embora, dizendo à patroa:

            - Então, fica entendido; amanhã estou livre e, se tiver alguém, não se esqueça de me mandar chamar.

            E essas palavras impediram-me de ver nela uma pessoa, pois fizeram com que a classificasse logo numa categoria geral de mulheres cujo costume, comum a todas, era vir à noite para ver se não havia um ou dois luíses de ganho. Variava apenas a forma da frase, dizendo: "se tiver necessidade de mim" ou "se precisar de alguém". A patroa, que não conhecia a ópera de Halévy, ignorava por que me acostumara a chamá-la de "Rachel-quando-do-Senhor". Mas não compreender não a impedia de achar engraçada a expressão e, todas as vezes, rindo às gargalhadas, ela dizia:

            - Então, ainda não será esta noite que se juntará à "Rachel-quando-do-Senhor"? Como é que o senhor diz: "Rachel-quando-do-Senhor!" Ah, é muito bem achado. Vou fazê-lo noivo. Verá que não vai se lamentar.

            Uma vez quase me decidi, mas ela estava "em apertos"; de outra vez, entre as mãos do "cabeleireiro", um velho senhor que só tratava as mulheres fazendo derramar óleo em seus cabelos soltos para penteá-los depois. E cansei-me de esperar, embora algumas freqüentadoras muito humildes, dizendo-se operárias mas sempre sem trabalho, viessem me fazer sala, mantendo comigo uma longa conversa à qual -apesar da seriedade dos assuntos abordados -a nudez parcial ou total de minhas interlocutoras dava uma saborosa simplicidade. Aliás, deixei de ir a esse bordel porque, desejoso de testemunhar meus bons sentimentos à dona da casa, a qual necessitava de móveis, dei-lhe alguns, notadamente um grande canapé que herdara de minha tia Léonie. Não os via nunca, pois a falta de espaço impedira meus pais de acomodá-los em casa e eles achavam-se amontoados num depósito. Mas, desde que os encontrei na casa onde aquelas mulheres deles se serviam, todas as virtudes que se respiravam no quarto de minha tia em Combray, pareceram-me como que supliciadas pelo contato cruel a que os entregara sem defesa! Tivesse eu violado uma morta, não teria sofrido mais. Não voltei à casa da alcoviteira, pois eles pareciam-me viver e suplicar, como os objetos aparentemente inanimados de um conto persa, nos quais estão fechadas as almas que sofrem um martírio e imploram sua libertação. Além disso, como nossa memória em geral não nos apresenta as lembranças em ordem cronológica, e sim como um reflexo em que a ordem das partes está subvertida, só muito mais tarde é que me lembrei de que fora naquele mesmo canapé que, muitos anos antes, conhecera pela primeira vez os prazeres do amor com uma de minhas priminhas, com quem não sabia onde me meter e que me dera o conselho, bastante perigoso, de aproveitar uma hora em que a tia Leónie já se levantara. Apesar da opinião contrária de meus pais, vendi uma outra parte inteira dos móveis, e principalmente uma antiga e magnífica baixela de prata da tia Leónie, a fim de poder dispor de mais dinheiro e enviar mais flores à Sra. Swann, que me dizia, ao receber imensos buquês de orquídeas:

            "Se eu fosse o senhor seu pai, abriria um inquérito judicial".

            Como podia adivinhar que um dia ainda haveria de lamentar muito particularmente aquela prataria e colocar certos prazeres bem acima deste, que se tornaria praticamente nulo, de fazer gentilezas aos pais de Gilberte? E fora mesmo por causa de Gilberte, e, para não deixá-la, que decidira não seguir carreira diplomática. É sempre devido a um estado de espírito, que não está destinado a durar muito, que tomamos resoluções definitivas. Mal imaginava que aquela substância estranha que se encontrava em Gilberte e se irradiava em seus pais, na casa, fazendo-me indiferente a todo o resto, que tal substância pudesse ser liberada, emigrar para outra criatura. Era, na verdade, a mesma substância, mas devendo ter sobre mim efeitos bem diversos. Pois a mesma doença evolui; e, do mesmo modo, um veneno delicioso já não é tolerado, quando, com o passar dos anos, a resistência do coração diminuiu. Entretanto, meus pais teriam desejado que a inteligência que Bergotte reconhecera em mim se manifestasse por um trabalho notável. Quando não conhecia os Swann, acreditava que era impedido de trabalhar devido ao estado de agitação que provocava a impossibilidade de ver livremente Gilberte. Porém, quando sua casa me foi aberta, mal me sentava à escrivaninha e já me erguia e corria para a casa deles. E tão logo os deixava e voltava para casa, meu isolamento era só aparente, o pensamento já não podia remontar a corrente do fluxo das palavras pela qual me deixara levar maquinalmente durante horas. Sozinho, continuava a produzir as frases que poderiam ter agradado aos Swann e, para dar mais interesse ao jogo, ocupava o lugar dos comparsas ausentes, fazia a mim mesmo perguntas fictícias escolhidas de tal modo que meus brilhantes aspectos só lhes servissem de réplicas felizes. Silencioso, esse exercício era, no entanto, uma conversa e não uma meditação, e minha solidão uma vida mundana mental onde não era minha própria pessoa e sim alguns interlocutores imaginários que governavam minhas palavras e onde eu experimentava formar, em vez de pensamentos que julgava genuínos, os que me vinham sem esforço, sem regressão de fora para dentro, esse tipo de prazer todo passivo que alguém, empanzinado por má digestão, encontra em permanecer sossegado. Se estivesse menos decidido a me pôr definitivamente a trabalhar, talvez tivesse feito um esforço para começar logo. Porém, visto que minha resolução era formal e que antes de 24 horas, nos limites vazios do dia seguinte, onde tudo se colocava tão bem porque ainda não me encontrava lá, minhas boas disposições se realizariam facilmente, valia mais não escolher uma noite em que estivesse indisposto para um começo a que os dias seguintes infelizmente não deviam se mostrar mais propícios. Mas eu era razoável. Da parte de quem esperara anos e anos, seria pueril não suportar um atraso de três dias. Certo de que dois dias depois já teria escrito algumas páginas, não dizia mais uma só palavra a meus pais acerca de minha decisão; preferia pacientar algumas horas e levar à minha avó, consolada e convencida, a obra em andamento. Infelizmente, o dia seguinte não foi aquela jornada exterior e ampla que havia febrilmente aguardado. Quando acabou, minha preguiça e a luta penosa contra certos obstáculos internos tinham simplesmente durado vinte e quatro horas a mais. E, ao cabo de alguns dias, não tendo realizado meus planos, já não tinha a mesma esperança de que o fossem de imediato; portanto, até me faltava coragem para subordinar tudo o mais a essa realização. Recomeçava a passar a noite em claro, já não tendo, para me obrigar a deitar cedo uma noite, a ilusão certa de ver a obra ser iniciada na manhã seguinte. Antes de retomar o meu impulso, necessitava de alguns dias de trégua, e a única vez em que minha avó ousou, num tom suave e desencantado, formular esta censura:

            "Muito bem, já não se fala mais nesse trabalho?"

            Aborreci-me com ela, persuadido de que, não tendo sabido ver que minha decisão estava irrevogavelmente tomada, ela talvez adiasse ainda, e por muito tempo, a execução do trabalho, por causa do nervosismo que sua negação de justiça me causava e sob cujo domínio eu não desejava começar minha obra. Ela sentiu que seu ceticismo acabava de ferir às cegas uma vontade. Desculpou-se, dizendo ao me beijar:

            -Perdão, não vou dizer mais nada.

            E, para que não desanimasse, assegurou-me que, no dia em que me sentisse bem de saúde, o trabalho viria sozinho por acréscimo. Além disso, dizia comigo, passando a minha vida na casa dos Swann eu não fazia o mesmo que Bergotte? A meus pais, quase parecia que, sempre sendo preguiçoso, eu levava a vida mais favorável ao meu talento, visto que me encontrava no mesmo salão de um grande escritor. Mas que alguém se dispense de formar esse talento internamente, por si próprio, e o receba de outra pessoa, é tão impossível quanto constituir uma boa saúde (apesar de não cumprir as regras da higiene e cometer os piores excessos) apenas jantando várias vezes seguidas na cidade na companhia de um médico. Aliás, a pessoa mais inteiramente enganada com a ilusão que dominava meus pais e a mim era a Sra. Swann. Quando lhe dizia que não podia ir, que era preciso que ficasse trabalhando, ela dava a impressão de achar que me fazia de rogado e que havia algo de bobo e pretensioso em minhas palavras:

            - Mas Bergotte vem, certo? Será que você pensa que não está bem o que ele escreve? Está até melhor. - acrescentou -, pois está mais agudo, mais concentrado no jornal do que no livro, onde se dissolve um pouco. Consegui que fizesse de agora em diante o leader article no fígaro. Será bem o homem certo no lugar certo. - E acrescentava: -Venha, você dirá melhor que ninguém o que é necessário fazer.

            E era como quem convidasse um voluntário juntamente com seu coronel, era no interesse da minha carreira e, como se as obras-primas se compusessem "por relações", é que ela me dizia que não faltasse no dia seguinte ao jantar em sua casa em companhia de Bergotte. Assim, tanto da parte dos Swann como da parte de meus pais, isto é, da parte dos que, em momentos diversos, pareceram erguer obstáculos, não se fazia mais nenhuma oposição a essa doce vida em que podia ver Gilberte como quisesse, com enlevo, senão com calma. Porém calma é o que não pode haver no amor, visto que o que se obtém nunca passa de um novo ponto de partida para desejar mais. Enquanto não pudera ir à casa dela, os olhos fixos naquela ventura inacessível, não podia sequer imaginar novas causas de perturbação que ali me esperavam. Uma vez quebrada a resistência de seus pais, estando enfim resolvido o problema, este recomeçou a colocar-se, cada vez em termos diferentes. Neste sentido, a cada dia era de fato uma nova amizade que principiava. Todas as noites, voltando para casa, eu percebia que precisava dizer a Gilberte coisas capitais, das quais dependia nossa amizade, e essas coisas nunca eram as mesmas. Mas enfim sentia-me feliz, e já nenhuma ameaça se erguia contra minha felicidade. Viria uma, ai de mim, de um lado de onde jamais percebera qualquer perigo, do lado de Gilberte e de mim mesmo. No entanto, deveria estar atormentado pelo que, ao contrário, me dava segurança, pelo que julgava ser minha felicidade. Existe no amor um estado anormal, capaz de dar logo, ao acidente mais simples em aparência, e que pode sempre ocorrer, uma gravidade que, por si mesmo, tal acidente não comportaria. O que nos faz tão feliz é a presença, no coração, de alguma coisa instável que a gente procura constantemente manter em equilíbrio e que quase não percebemos enquanto não é deslocada. Na verdade, existe um sofrimento permanente no amor, que a alegria neutraliza, torna virtual, adia, mas que pode, a qualquer momento, transformar-se no que seria há muito tempo se a gente não tivesse obtido o que desejava: atroz.

            Várias vezes senti que Gilberte desejava espaçar minhas visitas. É verdade que, quando queria muito vê-la, bastava-me fazer ser convidado por seus pais, que estavam cada vez mais convencidos de minha boa influência sobre ela. Graças a eles, pensava, meu amor não corre nenhum risco; no momento em que estão a meu favor, posso ficar tranqüilo já que eles têm toda a autoridade sobre Gilberte. Infelizmente, por certos sinais de impaciência que esta deixava escapar quando seu pai me mandava buscar de algum modo contra vontade dela, eu me indagava se o que havia considerado uma proteção para a minha felicidade não seria antes o motivo secreto pelo qual não poderia durar. Da última vez que fui visitar Gilberte, estava chovendo. Ela fora convidada para uma aula de dança em casa de pessoas que mal conhecia e não podia me levar junto. Por causa da umidade, eu tomara mais cafeína que de costume. Talvez devido ao mau tempo, talvez por ter uma certa prevenção contra a casa onde aquela reunião matinal se realizaria, a Sra. Swann, no instante em que a filha ia sair, chamou-a com extrema vivacidade:

            - Gilberte! - e me apontou para indicar que eu viera para vê-la e que ela devia ficar comigo. O nome de "Gilberte" fora pronunciado, ou melhor, gritado, nas melhores intenções a meu respeito; mas, diante do erguer de ombros de Gilberte ao deixar suas coisas, compreendi que sua mãe, involuntariamente, havia acelerado a evolução, talvez até então possível de ser interrompida, que aos poucos separava de mim a minha amiga.

            -A gente não é obrigada a ir dançar todos os dias - disse Odette à filha, com uma sabedoria sem dúvida adquirida outrora com Swann. Depois, tornando a ser Odette, pôs-se a falar em inglês com a filha. E logo foi como se um muro me houvesse escondido uma parte da vida de Gilberte, como se um gênio malfazejo tivesse levado minha amiga para bem longe de mim. Em uma língua que conhecemos, substituímos a opacidade dos sons pela transparência das idéias. Mas um idioma desconhecido é um palácio trancado no qual aquela a quem amamos pode nos enganar, sem que, ficando de fora e desesperadamente crispados na nossa impotência, cheguemos a ver coisa alguma, sem poder impedir nada. Assim, aquela conversa em inglês, da qual teria apenas sorrido um mês antes, e em meio à qual alguns nomes próprios franceses não deixavam de fazer crescer e orientar minhas inquietações, tinha, sustentada a dois passos de mim por duas pessoas imóveis, a mesma crueldade de um rapto, fazendo-me sentir abandonado e só. Por fim, a Sra. Swann nos deixou. Nesse dia, talvez por ódio contra mim, causa involuntária de não ter ido se divertir, talvez também porque, adivinhando que estava zangada, mostrei-me preventivamente mais frio que de hábito, o rosto de Gilberte, despido de qualquer alegria, nu, devastado, parecia, a tarde inteira, consagrar um lamento melancólico ao pas de quatre que minha presença a impedia de ir dançar e desafiar todas as criaturas, a começar por mim, a compreenderem as razões sutis que nela determinaram uma inclinação sentimental pelo bóston. [valsa de origem americana] Limitou-se, em alguns instantes, a trocar comigo, acerca do tempo que fazia, o recrudescimento da chuva, o adiantamento do pêndulo, uma conversa pontuada de silêncios e monossílabos na qual eu próprio teimava, com uma espécie de raiva desesperada, em destruir os instantes que poderíamos ter dedicado à ventura e à amizade. E, a todas as nossas frases, uma espécie de suprema dureza era conferida pelo paroxismo de sua insignificância paradoxal, que entretanto me consolava, pois impedia Gilberte de se iludir com a banalidade de minhas reflexões e com a indiferença de meu tom. Era em vão que eu dizia:

            -Parece-me que no outro dia o pêndulo atrasava mais depressa-, pois ela traduzia evidentemente:

            "Como você é má!"

            Por mais que me obstinasse em prolongar, ao longo de todo aquele dia chuvoso, essas palavras sem aberturas, sabia que minha frieza não era algo tão definitivamente condensado como o fingia, e que Gilberte devia muito bem sentir que se, depois de já lhe ter dito três vezes, ousasse uma quarta vez repetir que os dias diminuíam, mal teria forças para evitar de me desmanchar em lágrimas. Quando ela estava assim, quando um sorriso não iluminava seus olhos e não lhe desanuviava o rosto, não se pode pintar que monotonia desoladora se imprimia em seus olhos tristes e nos traços pisados. A fisionomia, tornando-se quase feia, parecia então essas praias tediosas em que o mar, para bem longe afastado, nos cansa com um reflexo sempre igual que circunda um horizonte imutável e estreito. Por fim, não vendo ocorrer, da parte de Gilberte, a mudança feliz que esperava há muitas horas, disse-lhe que ela não era gentil:

            -Você é que não é gentil - retrucou ela-, claro que não! - Perguntei-me o que havia feito e, não descobrindo, indaguei dela mesma. -Naturalmente você se considera gentil! respondeu, rindo longamente. Então percebi o que havia de doloroso para mim em não poder atingir aquele outro plano, mais inacessível, de seu pensamento, que seu riso descrevia. Riso que parecia significar: "Não, não, não me deixo prender a nada do que você me diz; sei que está louco por mim, mas isto não me dá calor nem frio, pois você pouco me importa."

            Mas eu dizia comigo que, afinal de contas, rir não é uma linguagem muito precisa para que pudesse me assegurar compreender bem aquilo. E as palavras de Gilberte eram afetuosas.

            - Mas em que não sou gentil? - perguntei – Diga-me, farei tudo o que você quiser.

            - Não, isto não adiantaria nada, não posso explicar. -

            Por um momento tive medo que ela achasse que não a amava, e aquilo foi para mim um outro sofrimento, não menos vivo, mas que exigia uma dialética diferente.-Se soubesse o desgosto que me dá, me diria. - Mas esse desgosto, que, se tivesse duvidado de meu amor, a alegraria, ao contrário irritou-a. Então, compreendendo meu erro, decidido a não mais levar em conta suas palavras, deixando-a dizer-me sem crer nela:

            - Eu o amava de verdade, você verá isso um dia- (esse dia em que os culpados afirmam que sua inocência será reconhecida e que, por motivos misteriosos, nunca é aquele em que são interrogados), tive a coragem de subitamente tomar a resolução de não mais vê-la, e sem anunciá-lo ainda, pois ela não me acreditaria.

            Um desgosto causado por uma pessoa a quem amamos pode ser amargo, mesmo quando está metido no meio de preocupações, ocupações e alegrias que não têm essa pessoa por objeto, e das quais nossa atenção não se desvia a não ser de vez em quando para voltar a ele. Mas, quando semelhante desgosto nasce, como era o caso deste, num momento em que a felicidade de ver essa pessoa nos ocupa por inteiro, a brusca depressão que então se produz em nossa alma, até ali ensolarada, firme e tranqüila, determina em nós uma tempestade furiosa contra a qual não sabemos se seremos capazes de lutar até o fim. A tempestade que se desencadeava em meu coração era tão violenta que voltei para casa transtornado, mortificado, sentindo que só poderia recobrar fôlego arrepiando caminho, voltando sob qualquer pretexto para junto de Gilberte. Mas ela diria consigo:

            "Ele ainda! Decididamente, posso me permitir qualquer coisa, ele há de voltar todas as vezes, tanto mais dócil quanto mais infeliz sair daqui."

            Depois, era irresistivelmente arrastado para ela pelo pensamento, e essas orientações alternativas, o desvario da bússola interior, persistiram quando entrei em casa, traduzindo-se nos borrões das cartas contraditórias que escrevi a Gilberte. Ia passar por uma dessas conjunturas difíceis, diante das quais a gente se encontra, geralmente, diversas vezes na vida e que, embora não tenhamos mudado de caráter ou de natureza nossa natureza que cria, ela mesma, nossos amores e quase as mulheres que amamos, e até os seus erros-, não enfrentamos da mesma maneira a cada vez, ou seja, em todas as idades. Nesses momentos, nossa vida está dividida e como que distribuída numa balança em dois pratos opostos, onde é mantida por inteiro. Em um, existe o nosso desejo de não desagradar, de não parecer humilde demais aos olhos da criatura a quem amamos sem conseguir compreendê-la, mas que achamos mais próprio deixar um pouco de lado para que não cultive o sentimento de se julgar indispensável; no outro, há um sofrimento não um sofrimento parcial e localizado-que, ao contrário, não poderia ser apaziguado senão se, renunciando a agradar a essa mulher e fazê-la crer que podemos passar sem ela, fôssemos ao seu encontro. Se retirarmos do prato onde está o orgulho uma pequena porção de vontade que tivemos a fraqueza de deixar com a idade, e se acrescentarmos ao prato onde está o desgosto um sofrimento físico adquirido e que permitimos que se agravasse, logo, em vez da solução corajosa que teríamos vencido aos vinte anos, é a outra, muito pesada e sem base de contrapeso, que nos dobra aos cinqüenta. Tanto mais que, mesmo repetindo as situações mudam e há possibilidades de que, no meio ou no fim da vida, tenha - para conosco a funesta complacência de complicar o amor com uma partida - hábito que a adolescência desconhece, retida demais por outros deveres e livre por si mesma. 

            Acabava de escrever a Gilberte uma carta em que bradava meu furor, sem contudo lançar a lama de algumas palavras postas como que ao acaso e ordem a minha amiga poderia se firmar para obter uma reconciliação; um instante após, tendo mudado o vento, eram frases ternas que lhe dirigia, pela doçura de célebre expressões desoladas, dos "nunca mais" tão emocionantes para os que os empolgam, tão tediosos para aquela que os lerá, seja por julgá-los mentirosos e traduzir "nunca mais" por "esta noite mesmo, se você me permitir", seja por acreditá-los sinceros e que, então, lhe anunciam uma dessas separações definitivas exatamente iguais em nossa vida quando se trata de pessoas por quem não estamos apaixonados. Mas, visto que somos incapazes, enquanto amamos, de agir como dignos predecessores da próxima criatura que seremos e que não amará mais, como poderíamos inteiramente imaginar o estado de espírito de uma mulher a quem, mesmo sabendo que lhe somos indiferentes, temos emprestado perpetuamente em nós - as fantasias, para nos embalar com belo sonho, ou consolar de um grande desgosto, as mesmas frases que diria se nos amasse? Diante dos pensamentos e daria ações de uma mulher a quem amamos, ficamos tão desorientados como o poderá, estar, diante dos fenômenos da natureza, os primeiros físicos (antes que a ciência se constituísse e levasse um pouco de luz ao desconhecido). Ou, pior ainda, como uma criatura para cujo espírito o princípio de causalidade mal existia, uma criatura que não seria capaz de estabelecer um elo entre um fenômeno e outro e diante quem o espetáculo do mundo seria incerto como um sonho. Certamente, eu esforçava para sair dessa incoerência, por encontrar as causas. Procurava até "objetivo" e, para tanto, levar na devida conta a desproporção existente entre importância que tinha Gilberte para mim e, não só a que eu tinha para ela, mas a que ela própria tinha para as outras criaturas além de mim, desproporção que, se omitisse, me arriscaria a tomar uma simples amabilidade de minha amiga por um juramento apaixonado, e um passo grotesco e aviltante de minha parte pelo simples e gracioso movimento que nos dirige para uns belos olhos. Mas temia também cair no excesso oposto, onde veria na impontualidade de Gilberte um encontro, no movimento de mau humor, uma hostilidade irremediável. Procurava entre estas duas óticas igualmente deformadoras, aquela que me daria a justa vista das coisas; os cálculos que para tanto precisava fazer me distraíam de minhas mágoas; e, ou por obediência à resposta dos números, ou porque os fiz dizerem o que desejava, decidi-me, no dia seguinte, a ir à casa dos Swann, feliz, mas da mesma forma daqueles que, tendo me atormentado durante muito tempo por causa de uma viagem que não desejavam realizar, não vão muito além da estação de trem e voltam para casa a fim de desfazerem as malas. E como, enquanto a gente hesita, a única idéia de uma resolução possível (a menos que tenhamos tornado inerte essa idéia, ao decidir não tomar qualquer resolução) desenvolve, como uma semente vivaz, os delineamentos, todo o detalhe das emoções que nasciam do ato executado disse comigo que fora bastante absurdo, planejando nunca mais ver Gilberte, fazer tanto mal a mim mesmo como se houvesse realizado tal projeto e que, visto que, ao contrário, se era para acabar voltando à casa dela, bem poderia eu ter economizado tantas veleidades e aceitações dolorosas. Porém a retomada das relações de amizade só durou o tempo necessário para ir até os Swann; não porque o mordomo deles, que gostava muito de mim, me dissesse que Gilberte havia saído (de fato, soube, naquela mesma tarde, que aquilo era verdade, por intermédio de pessoas que a tinham encontrado), mas devido à maneira como me falou:

            - Senhor, a senhorita saiu, posso lhe afirmar que não estou mentindo. Se o senhor quer pedir informações, posso mandar buscar a criada de quarto. Senhor, veja bem que eu faria tudo o que estivesse a meu alcance para agradá-lo e que, se a senhorita estivesse presente, eu o levaria imediatamente para junto dela.

            Tais palavras, da única forma que são importantes, ou seja, involuntárias, dando-nos pelo menos uma radiografia sumária da realidade insuspeita de um discurso estudado, provavam que, no ambiente que cercava Gilberte, tinha-se a impressão de que eu lhe era inoportuno; assim, mal o mordomo as pronunciou, elas desencadearam em mim um ódio a que preferi, em vez de Gilberte, dar como objeto o próprio mordomo; concentraram-se sobre ele todos os sentimentos de cólera que eu poderia ter em relação à minha amiga; desembaraçado deles graças a tais palavras, só meu amor subsistiu; mas essas palavras me mostraram, igualmente, que não devia por algum tempo procurar ver Gilberte. Certamente ela iria me escrever para se desculpar. Apesar disso, eu não voltaria imediatamente para vê-la, a fim de lhe provar que podia viver sem ela. Além disso, logo que tivesse recebido a carta de Gilberte, freqüentar minha amiga seria uma coisa da qual poderia facilmente me privar durante algum tempo, pois estaria certo de encontrar-me com ela quando quisesse. Para suportar com menos tristeza a ausência voluntária, precisava sentir meu coração desimpedido da terrível incerteza de saber se estávamos brigados para sempre, se ela estava noiva, viajando, ou se fora raptada. Os dias que se seguiram assemelharam-se aos daquela antiga semana do Ano-Novo que tive de passar sem Gilberte. Acabada aquela semana, outrora, por um lado minha amiga voltaria aos Champs-Élysées, e eu voltaria a vê-la como antes, tinha certeza; e, por outro lado, sabia com não menor certeza que, enquanto durassem as férias de fim de ano valia a pena ir aos Champs-Élysées. De modo que, durante aquela tristeza sem distante, suportara a tristeza com calma, pois ela não estava mesclada nem de esperança. Ao contrário, agora, era este último sentimento que, quase como o temor, fazia intolerável o meu sofrimento. Não tendo recebido carta de Gilberte naquela mesma noite, levei em conta sua negligência, suas ocupações não duvidava de encontrar uma no correio da manhã. Esperei-o, todos os dias - palpitações no coração a que sucedia um estado de abatimento quando de que na remessa havia apenas cartas de pessoas que não eram Gilberte, ou nada, o que não era pior, pois as provas de amizade de uma outra me faziam mais cruel as de sua indiferença. Punha-me a esperar o correio da tarde. Nem as horas das coletas das cartas eu me animava a sair, pois ela poderia ter minuto de entregar em mão a sua carta. Depois, acabava por chegar o momento em que nem o carteiro nem o lacaio dos Swann já poderiam vir, era preciso deixar para o dia seguinte a esperança de ser tranqüilizado, e desse modo, por julgar que o momento não duraria muito, era obrigado, por assim dizer, a renová-la sem desgosto talvez fosse o mesmo, mas, em vez de apenas prolongar uniforme -, como outrora, uma emoção inicial, recomeçava diversas vezes por dia, principiando por uma emoção tão freqüentemente renovada que terminava em mal estar puramente físico, tão momentâneo por se estabilizar, de modo que as perturbações provocadas pela espera mal tinham tempo de se acalmar antes que fosse outro motivo para esperar, e não havia mais um só minuto no dia em que estivesse nessa angústia que, no entanto, era tão difícil de suportar durante hora. Assim, meu sofrimento era infinitamente mais cruel que no tempo antigo 1° de janeiro, pois desta vez existia em mim, em lugar da aceitação simples do sofrimento, a esperança, a cada instante, de vê-lo cessar. Acabei por chegar a esta aceitação; compreendi então que devia ser desfeito e renunciei a Gilberte para sempre, no próprio interesse do meu amor, e porque antes de tudo, que ela não guardasse de mim uma lembrança desdenhosa; desse momento, e para que ela não pudesse formar a idéia de um despeito de minha parte, mesmo quando, a seguir, ela me marcava encontros; aceitava muitas vezes e, no último instante, escrevia-lhe dizendo que não; mas afirmando que me sentia desolado, como o teria feito com qualquer um que não desejasse ver. Essas expressões de lástima, que reservamos era para as pessoas que nos são indiferentes, pareciam-me convencer melhora de minha indiferença do que o faria o tom de indiferença que se emprega diante de quem se ama. Quando, melhor que com palavras, por ações indefira repetidas vezes, eu lhe houvesse dado provas de que não sentia gosto em que ela voltasse a sentir por mim. Infelizmente, seria em vão procurar, e não mais, renovar nela o gosto de me ver, era perdê-la para sempre; primeiro quando ele principiasse a renascer, se eu quisesse que durasse, era preciso não lhe ceder tudo de imediato; além disso, as horas mais cruéis já teriam passado; nesse momento é que ela me era indispensável e eu gostaria de poder adverti-la que em breve ela só acalmaria, ao me rever, uma dor de tal modo diminuída que já não mais seria, como ainda teria sido naquele próprio momento, e para lhe pôr fim, um motivo de capitulação, de reconciliação e encontro. E mais tarde, quando enfim poderia me confessar sem perigo a Gilberte, de tal forma seu gosto por mim se teria fortalecido, o meu por ela, este não podendo resistir a uma tão longa ausência, já não existiria; Gilberte teria se tornado indiferente para mim. Eu o sabia, mas não podia lhe dizer; ela teria julgado que, se eu alegasse que deixaria de amá-la ficando muito tempo sem vê-la, era com o único objetivo de que ela me dissesse para voltar logo para junto dela. Enquanto esperava, o que me tornava mais fácil condenar-me a essa separação era que (para que ela ficasse bem ciente de que, apesar de minhas afirmações em contrário, era a minha vontade e não um impedimento, não o meu estado de saúde, o que me privava de vê-la) todas as vezes em que sabia, por antecipação, que Gilberte não estaria na casa dos pais, devia sair com uma amiga e não voltaria para jantar, ia ver a Sra. Swann (que se tornara para mim o que era no tempo em que eu via tão dificilmente sua filha, quando, nos dias em que esta não ia aos Champs-Élysées, eu passeava na avenida das Acácias). Desse modo ouviria falar de Gilberte e estava certo de que ela ia logo ouvir falar de mim, e de um modo que lhe mostraria que eu não ligava para ela. E achava, como todos os que sofrem, que minha triste situação poderia ser pior. Pois tendo entrada livre na casa em que Gilberte morava, dizia a mim mesmo que, embora decidido a não me utilizar dessa faculdade, se minha dor fosse um dia demasiado forte, poderia fazê-la cessar. Só me sentia infeliz com o passar dos dias. E é dizer muito, ainda. Quantas vezes por hora (mas agora sem a espera ansiosa das primeiras semanas após a nossa briga, antes de estar de volta à casa dos Swann) eu não recitava para mim mesmo a carta que Gilberte me mandaria um dia, e quem sabe me entregaria com suas próprias mãos! A visão constante dessa felicidade imaginária me ajudava a suportar a destruição da ventura real. Quanto às mulheres que não nos amam, como no caso dos "desaparecidos", saber que não há mais nada a esperar não nos impede de continuar a esperar. A gente vive à espreita, à escuta; mães cujos filhos partiram por mar para uma exploração perigosa imaginam, a todo instante, e mesmo depois de terem, há muito tempo, certeza de que morreram, que eles vão entrar em casa, miraculosamente salvos e bem de saúde. E essa espera, conforme o poder da lembrança e da resistência dos órgãos, ou lhes permite atravessar os anos até suportarem a idéia de que os filhos não mais existem, esquecer pouco a pouco e sobreviver, ou então as faz morrer. Por outro lado, meu desgosto era um tanto consolado pela idéia de que aproveitava ao meu amor. Toda visita que fazia à Sra. Swann sem ver Gilberte era-me cruel, mas eu sentia que melhorava muito a idéia que Gilberte formava a meu respeito. Além disso, se eu procurava sempre estar certo da ausência de antes de ir à casa da Sra. Swann, isto se devia tanto à minha resolução de nosso rompimento, quanto à esperança de reconciliação que se sobrepunha à minha vontade de renunciar (bem poucas são absolutas, ao menos de modo contínuo, nesta alma humana, na qual uma das leis, fortificada pelos afluxos inesperados de lembranças diferentes, é a da intermitência) e disfarçava o que era de mais cruel. Tal esperança, eu bem sabia o que tinha de quimérico. Eu era um pobre que mistura menos lágrimas a seu pão seco se diz a si mesmo que pouco um estranho vai lhe deixar toda sua fortuna. Para tornar a realidade suportável, somos todos obrigados a alimentar algumas pequenas loucuras dentro de si. Ora, minha esperança permanecia mais intacta -e ao mesmo tempo que a seção se realizava melhor-se não encontrava Gilberte. Se eu me encontrasse de cara com ela na casa da mãe, talvez trocássemos palavras irreparáveis que fizéssemos definitiva a nossa briga, matassem minha esperança e, por outro lado, criando nova ansiedade, despertassem e tornassem mais difícil a minha resignação. Há muito tempo, e bem antes de minha briga com sua filha, a Sra. Swann me dissera:

            "Faz muito bem em vir ver Gilberte, mas também gostaria que viesse por mim, não ao meu Choufleury, onde você se aborreceria porque há gente demais, mas nos outros dias em que há de me encontrar sempre um pouco tarde".

            Assim, ao visitá-la, parecia apenas obedecer, muito tempo depois, o desejo antigo expresso por ela. E bem tarde, já noite fechada, quase no momento em que meus pais se punham à mesa, eu ia fazer uma visita à Sra. Swann; durante a qual sabia que não veria Gilberte e em que, no entanto, só pensaria naquele bairro, então tido como afastado, de uma Paris mais sombria que hoje; onde, mesmo no centro, não havia eletricidade na via pública e bem próxima nas casas, as lâmpadas de um salão situado no andar térreo ou num sótão baixo (como era o dos apartamentos onde a Sra. Swann normalmente bastavam para iluminar a rua e para fazer erguer os olhos dos transeuntes), ligavam a sua claridade, como a sua causa aparente e velada, à presença diante da porta de alguns cupês bem atrelados. O transeunte acreditava, e não sem uma emoção, numa modificação ocorrida nessa causa misteriosa, quando via esses cupês pôr-se em movimento; mas era apenas um cocheiro que, temendo, os animais ficassem com frio, fazia-os dar algumas voltas de vez em quando, tanto mais impressionantes que as rodas forradas de borracha davam ao passar dos cavalos um fundo de silêncio sobre o qual ele se destacava mais distinto do que o "jardim de inverno" que naquele tempo o transeunte em geral observava, qualquer que fosse a rua, se o apartamento não estivesse em nível muito da calçada, só se via nas heliogravuras dos livros de P-J. Stahl dados como nos quais, em contraste com os raros ornamentos florais dos salões Luís hoje - uma rosa ou um íris do Japão num jarro de cristal de gargalo começado não podia conter uma só flor a mais -, parece, devido à profusão das plantas caseiras que então havia e da falta absoluta de estilização em seu arranjo, ter correspondido, para as donas de casa, mais a uma viva e deliciosa paixão pela botânica do que a uma fria preocupação com uma decoração sombria. Fazia pensar, em ponto maior, nos palacetes de então, nessas pequeninas estufas portáteis, colocadas na manhã de 1° de janeiro sob a lâmpada acesa, não tendo as crianças paciência para esperar que amanheça-, nomeio de outros presentes do dia de Ano Novo, e que, embora fosse dada, não às crianças e sim à Srta. Lili, heroína do livro, encantava-as a tal ponto que, sendo agora quase velhos, perguntavam-se se naqueles anos afortunados o inverno não teria sido a mais bela das estações. Afinal, no fundo desse jardim de inverno, através das arborescências de espécies variadas que faziam a janela iluminada parecer, vista da rua, a vidraça dessas estufas para crianças, desenhadas ou reais, o transeunte, pondo-se na ponta dos pés, em geral percebia um homem de sobrecasaca, com uma gardênia ou um cravo na botoeira, de pé diante de uma mulher sentada, ambos indefinidos como dois entalhes num topázio, ao fundo da atmosfera do salão, ambarizada pelo samovar de importação recente, à época-de vapores que dele se escapam talvez ainda hoje, mas em que, devido ao hábito, ninguém mais reparava. A Sra. Swann valorizava muito esse "chá"; julgava mostrar originalidade e irradiar encanto ao dizer a um homem:

            - O senhor me encontrará todos os dias um pouco tarde, venha tomar chá-, de modo que acompanhava com um sorriso fino e doce essas palavras, pronunciadas com um ligeiro acento inglês, e de que o seu interlocutor tomava nota, cumprimentando com ar grave, como se fossem algo importante e singular que impusesse a deferência e exigisse atenção. Havia um outro motivo além dos já mencionados e para o qual as flores só tinham um caráter de ornamento no salão da Sra. Swann; esse motivo não dizia respeito à época e sim, em parte, à vida que Odette levara antigamente. Uma grande cocote, como ela o fora, vive muito para seus amantes, ou seja, em casa, o que pode levá-la a viver para si mesma. As coisas que se vêem na casa de uma mulher honesta e que certamente podem também lhe parecer importantes, são as que, em todo caso, têm o maior valor para o cocote. O ponto culminante do seu dia é, não aquele em que se veste para a sociedade, mas aquele em que se despe para um homem. É necessário que seja tão elegante de chambre, de camisola, como em roupa de sair. Outras mulheres mostram suas jóias; porém, ela vive na intimidade de suas pérolas. Esse tipo de vida impõe a obrigação-e acaba por dar o gosto de um luxo secreto, isto é, bem próximo de ser desinteressado. A Sra. Swann o estendia às flores. Perto de sua poltrona havia sempre uma imensa taça de cristal, totalmente cheia de violetas de Parma ou de margaridas desfolhadas na água e que parecia testemunhar aos olhos do recém-chegado alguma ocupação predileta e interrompida, como o teria sido a taça de chá que a Sra. Swann bebera a noite para seu próprio prazer; uma ocupação até mais íntima e misteriosa, de tal modo que tinha-se vontade de pedir desculpas ao ver as flores ali expostas, o que faríamos ao olhar o título de um livro ainda aberto que tivesse revelado a recente leitura e, portanto, talvez o pensamento atual de Odette. E mais que o livro, as viviam; ficava-se constrangido, ao entrar para fazer uma visita à Sra. Swann, perceber que ela não estava sozinha ou, se se voltasse para casa com ela, por encontrar o salão vazio, de tal forma essas flores aí ocupavam um lugar exigente referindo-se às horas da vida da dona da casa que não eram conhecidas das flores, que não tinham sido preparadas para as visitas de Odette mas ali estavam como que esquecidas por ela, tinham tido e ainda teriam com ela conversas para lares que a gente receava perturbar e cujo segredo em vão tentaria ler, fixando os olhos a cor desbotada, líqüida, malva e dissolvida das violetas de Parma.

            Em fins de outubro, Odette voltava para casa o mais regularmente que podia, tomar chá, que naqueles tempos ainda era denominado ''o chá das cinco'', ouvido dizer (e gostando de repetir) que, se a Sra. Verdurin organizara um salão, porque todos estavam sempre seguros de encontrá-la em casa à mesma hora; imaginava Odette ter um, do mesmo gênero, porém mais livre, sem rigor, conforme gostava de dizer. Via-se, assim, como uma espécie de Lespinasse e julho; ter fundado um salão rival ao roubar ao pequeno grupo da Du Deffand seus agradáveis homens, especialmente Swann, que a seguira em sua separação enamorada, segundo uma versão que se compreende tenha conseguido fazer ser ágil pelos novos amigos, ignorantes do seu passado, mas não por ela própria certos papéis prediletos são desempenhados por nós tantas vezes perante a sociedade, e repassados outro tanto dentro de nós, que nos referimos mais facilmente não à seu depoimento fictício que ao de uma realidade quase inteiramente esquecida. Nos dias em que a Sra. Swann absolutamente não saía, podia ser encontrada vestindo um chambre de crepe da China, branco feito a primeira nevada, e às vezes, também um desses longos encanudados de musselina de seda semelhante uma juncada de pétalas rosas ou alvas, e que hoje seriam considerados, sem motivo, pouco apropriados para o inverno. Pois tais fazendas leves e essas cores davam à mulher no grande calor dos salões, então fechados com reposteir, sobre os quais o que os romancistas mundanos da época encontravam de mais elegante para dizer é que eram "delicadamente acolchoados" -o mesmo artifício das rosas que ali podiam ficar a seu lado, apesar do inverno, no encarnado de nudez, como na primavera. Por causa do abafamento dos sons pelos tapetes e isolamento da dona da casa em recantos do salão, esta não era avisada da entrada como hoje, e continuava a ler enquanto a gente já estava quase diante dela, o que vinha aumentar ainda essa impressão de romanesco, o encanto de uma espécie de segredo surpreendido, que hoje encontramos na lembrança daquelas roupas já então fora de moda, que a Sra. Swann era talvez a única a não ter abandonado, e que nos dão a idéia de que a mulher que as usava devia ser uma heroína de romance, porque, em sua maioria, nós as vimos apenas em certos romances de Henry Gréville. Odette agora tinha em seu salão, no começo do inverno, enormes crisântemos de uma variedade de cores como Swann não vira outrora em sua casa. Minha admiração por eles-quando fazia à Sra. Swann uma daquelas tristes visitas em que, devido ao meu desgosto, reencontrava toda a sua misteriosa poesia de mãe dessa Gilberte a quem ela diria no dia seguinte:

            "Teu amigo me fez uma visita" - provinha sem dúvida de que, cor-de-rosa pálido como a seda Luís XV de suas poltronas, de uma alvura de neve como seu chambre de crepe da China, ou de um rubro metálico feito o seu samovar, eles sobrepunham uma decoração suplementar à do salão, decoração de um colorido também rico e requintado, porém viva, e que só haveria de durar alguns dias. Mas eu me sentia tocado pelo que esses crisântemos possuíam menos de efêmero que de relativamente duradouro em relação a esses tons, tão róseos ou tão acobreados, que o sol posto exaltado de modo tão suntuoso na névoa dos fins de tarde de novembro e que, depois de os ter visto extinguindo-se no céu, antes de entrar na casa da Sra. Swann, encontrava prolongados, transpostos na palheta inflamada das flores. Como fogos arrancados por um grande colorista à instabilidade da atmosfera e do sol, a fim de que fossem ornar uma residência humana, eles me convidavam, esses crisântemos, e apesar de toda minha tristeza, a desfrutar avidamente durante aquela hora do chá os prazeres tão curtos de novembro, cujo esplendor íntimo e misterioso faziam flamejar perto de mim. Infelizmente, não era nas conversas que ouvia que eu podia alcançá-los; pareciam-se bem pouco a eles. Mesmo na companhia da Sra. Cottard e apesar do adiantado da hora, a Sra. Swann se tornava carinhosa para dizer:

            - Mas não, não é tarde, não olhe para o pêndulo, não está na hora, está parado; que tem de tão urgente para fazer? -e oferecia uma tortazinha recheada à esposa do professor, que segurava o seu porta-cartões.

            - Não se pode mais ir embora desta casa - dizia a Sra. Bontemps à Sra. Swann, ao passo que a Sra. Cottard, na surpresa de ouvir expressar sua própria opinião, exclamava:

            - É o que me digo sempre no meu juízo, no meu foro íntimo! - sendo aprovada pelos senhores do Jockey que se haviam confundido em saudações, e como que cumulados de tanta honra, quando a Sra. Swann os apresentara a essa burguesinha pouco amável, que, diante dos brilhantes amigos de Odette, mantinha-se na reserva, senão no que ela denominava "defensiva", pois sempre usava uma linguagem nobre para as coisas mais simples.

            - Quem diria? Faz três quartas-feiras que a senhora me rói a corda - dizia a Sra. Swann à Sra. Cottard.

            -É verdade, Odette, faz séculos, eternidades que não a vejo. Bem vê que me confesso culpada, mas devo dizer-lhe - acrescentava com ar recatado e vago, pois, embora mulher de médico, não ousaria falar, sem paráfrases, do reumatismo ou das cólicas dos rins - que tenho tido pequenos problemas. Cada um tem os seus. E depois, tive uma crise em minha domesticidade masculina. Sem ter maior noção da minha autoridade que qualquer outra, tive, para dar um exemplo, de mandar e meu Vatel, que aliás creio que procurava um posto mais lucrativo. Mas sua ausência arrastou a demissão de todo o ministério. Minha criada de quarto também queria ficar, houve cenas homéricas. Apesar de tudo, mantive a direção com firmeza; trata-se de uma verdadeira lição de coisas que não foi em vão. Aborreço-a com essas histórias de criados, mas você sabe tão bem que balbúrdia é ser a gente obrigada a proceder a remanejamento em nosso pessoal. E não veremos a sua deliciosa filha? perguntava.

            - Não. - respondia Swann -, minha deliciosa filha está jantando na casa de uma amiga. -E acrescentava, voltando-se para mim: -Acho que ela lhe escreveu para que viesse vê-la.

            -E seus bailes? - Indagava à esposa do professor.

            Eu respirava fundo. Essa fala da Sra. Swann, provando que poderia ver Gilberte quando quisesse, faz exatamente o bem que ali fora procurar, e que me tornavam tão necessitado de visitas à Sra. Swann àquela época.

            - Não, vou lhe escrever um bilhete. Aliás, Gilberte e eu não podemos nos ver mais-acrescentava, dando a impressão de atribuir nossa separação a uma causa misteriosa, o que me dava ainda a ilusão de amor, alimentada assim pela maneira carinhosa com que falava dela e com a qual ela falava de mim.

            -Você sabe que ela o ama infinitamente - dizia a Sra. Swann. - Não quer mesmo vir amanhã? - De súbito uma alegria me instigava: acabava de dizer a mim mesmo: "Mas, depois de tudo, por que não; viu é sua própria mãe que me faz a proposta?" Porém, logo recaía na minha consciência. Temia que, ao me ver, Gilberte pensasse que minha indiferença dos últimos dias fora simulada, e eu preferia prolongar a separação. Durante esse a parte Bontemps se queixava do aborrecimento que lhe causavam as mulheres dos médicos, pois ela afetava achar todo mundo maçante e ridículo, e de estar com a posição do marido:

            - Então a senhora pode receber sem mais nem menos cinqüenta mulheres de médicos de enfiada - dizia ela à Sra. Cottard, ao contrário, era cheia de benevolência para todos e respeitava todas as obrigações.

            -Ah, a senhora é virtuosa. Quanto a mim, no Ministério, naturalmente sou social, não é? Muito bem! É mais forte que eu, a senhora sabe, essas mulheres de funcionários, não posso deixar de lhes mostrar a língua. E minha sobrinha, como eu. Nem imagina como é atrevida essa menina. Na semana passada no meu dia tinha a visita da mulher do subsecretário de Estado das Finanças, que dizia não dar nada de cozinha. - Mas, minha senhora respondeu minha sobrinha sorriso mais gracioso -, deveria no entanto saber do que se trata, visto que era ajudante de cozinheiro.

            -Oh, gosto muito dessa história, acho-a bem divertida - dizia a Sra. Swann. - Mas, pelo menos para os dias de consulta deveria ter a sua pequena honra, com suas flores, seus livros, as coisas que gosta. - aconselhava ela à Sra. Cottard. - É como lhe digo: Pimbal! Na cara dela não anda com meias medidas. E aquela pequena mascarada não merece nada de coisa alguma; é astuta feito um macaco. A senhora tem a felicidade de saber conter-se; invejo as pessoas que sabem disfarçar seu pensamento.

            - Mas não tenho necessidade disso, senhora: não sou tão difícil - respondia com doçura a Sra. Cottard. - Primeiro, não tenho os mesmos direitos que a senhora - acrescentava com um tom de voz um pouco mais forte que assumia, a fim de as sublinhar, cada vez que insinuava na conversa algumas dessas amabilidades delicadas, desses engenhosos elogios que causavam admiração e ajudavam a carreira do marido.-E, além disso, faço com prazer tudo o que pode ser útil à carreira do professor.

            - Mas é para quem pode. Provavelmente a senhora não é nervosa. Eu, quando vejo a senhora do ministro da Guerra fazer caretas, imediatamente me ponho a imitá-la. É terrível ter um temperamento assim.

            - Ah, sim - disse a Sra. Cottard -, ouvi dizer que ela tem tiques; meu marido também conhece alguém altamente colocado e, naturalmente, quando esses senhores conversam entre si...

            - Mas olhe, senhora; há ainda o chefe do Protocolo, que é corcunda. É inevitável! Mal está cinco minutos na minha casa e já vou tocar na sua corcunda. Meu marido diz que vou fazer com que o demitam. Ora bolas, abaixo o Ministério!

            - Sim, abaixo o Ministério! Gostaria de botar isso como divisa em meu papel de cartas. Tenho certeza de que a estou escandalizando, porque é uma boa pessoa. Quanto a mim, confesso que nada me diverte tanto como as pequenas maldades. Sem isso, a vida seria bem monótona.

            E continuava a falar o tempo todo do ministério como se se tratasse do Olimpo. Para mudar de conversa, a Sra. Swann virava-se para a Sra. Cottard:

            - Mas você me parece bem bonita. Redfemfecit?

            - Não, você sabe que sou adepta fervorosa do Raudnitz. Aliás, é uma reforma.

            - Muito bem! É de um chique!

            -Quanto acha que foi? Não, mude o primeiro algarismo.

            - Como? Mas foi por nada, foi dado. Disseram-me três vezes mais.

            - Eis como se escreve a História - concluía a esposa do doutor. E mostrando à Sra. Swann uma manta com que esta a presenteara: -Olhe, Odette. Não está reconhecendo?

Na abertura de uma cortina, mostrava-se uma cabeça com cerimoniosa deferência, fingindo por gracejo estar com medo de incomodar: era Swann -Odette, o Príncipe de Agrigento, que está comigo no gabinete, pergunta se pode vir lhe prestar suas homenagens. Que devo lhe responder? - Ficaria encantada! - dizia Odette com satisfação, sem abandonar a calma, o que lhe era tanto mais fácil visto que sempre, mesmo quando era cocote, recebera homens elegantes.

            Swann saiu  a transmitir a autorização ao príncipe e, em sua companhia, voltava para junto da  mulher, a menos que, no intervalo, entrasse a Sra. Verdurin. Quando se casara com Odette, pedira-lhe que não mais freqüentasse o pequeno clã (tinha para tantos motivos e, ainda que os não tivesse, teria procedido da mesma maneira a obediência era uma lei de ingratidão que não suporta exceções e que faz ressentir a negligência ou o desinteresse de todos os intermediários). Somente permitia que Odette trocasse com a Sra. Verdurin duas visitas por ano, o que ainda era excessivo a certos fiéis, indignados com a injúria feita à Patroa, que durante anos havia tratado Odette, e mesmo Swann, como os filhos queridos da casa, se continha falsos confrades que largavam certas noites para atender a um de Odette, sem dizer uma palavra, prontos, caso fossem descobertos, para desculpar com a curiosidade de encontrar Bergotte (embora a Patroa afirmasse não freqüentava os Swann, era destituído de talento e, apesar disso, procura acordo com uma expressão que lhe era cara, atraí-lo), o pequeno clã possuía também seus "radicais". E estes, ignorando conveniências particulares que às vezes desviam as pessoas das atitudes extremadas que gostariam de vê-las dirimir para aborrecer a alguém, teriam desejado, sem consegui-lo, que a Sra. Verdurin interrompesse todas as relações com Odette, tirando-lhe, assim, a satisfação de dizer rindo:

            - Vamos tão raramente à casa da Patroa desde o Cisma. Era impossível quando meu marido era solteiro, mas, para um casal, nem sempre há para se falar a verdade, o Sr. Swann não suporta a mãe Verdurin e não gostaria que eu a freqüentasse habitualmente. E eu, esposa fiel...          Swann acompanhava a mulher aos saraus dos Verdurin, mas evitava estar presente quando a Sra. Verdurin vinha visitar Odette. Assim, se a Patroa estivesse no salão, o príncipe de entrava sozinho. Aliás, era também sozinho que era apresentado por Odette, preferia que a Sra. Verdurin não ouvisse nomes obscuros e, vendo mais ainda um desconhecido dela, pudesse julgar-se num meio de notabilidade sarcástica, cálculo que dava tão bom resultado que, à noite, a Sra. Verdurin dizia mágoa ao marido:

            - Ambiente encantador! Estava presente toda a fina flor. - Reação que Odette, em comparação com a Sra. Verdurin, vivia numa ilusão. Não que aquele salão tivesse recém começado o que o veremos tornar-se um outro salão. A Sra. Verdurin nem sequer estava no período de incubação, quando são suspensas as grandes festas em que os raros elementos brilhantes, recentemente se afogariam na turba excessiva, e quando é preferível que o poder gerador dos justos que se conseguiu atrair, tenha produzido setenta vezes dez. Como Odette demoraria em fazê-lo, a Sra. Verdurin se propunha à "alta Sociedade" como a voz; porém, suas regiões de ataque eram ainda tão limitadas e aliás, daquelas por onde Odette apresentava alguma chance de alcançar um resultado idêntico, a furar, que esta vivia na mais completa ignorância dos planos elaborados pela Patroa. E era com a melhor boa-fé do mundo que falavam a Odette da Sra. Verdurin como sendo uma esnobe, ela se punha; dizia:

            - Pelo contrário. Primeiro, ela não possui todos os elementos para falar quando não conhece ninguém. Depois, é necessário fazer-lhe justiça que é assim mesmo que lhe agrada. Não, ela gosta mesmo é das suas quartas-feiras, dos que têm conversa agradável.

            E, em segredo, invejava a Sra. Verdurin (embora não desesperasse de ter ela própria, em tão grande escola, acabado por assim içá-las) essas artes às quais a patroa dava tanta importância, de modo que apenas matizassem o inexistente, esculpissem o vácuo, e sejam, propriamente falando, as Artes do Nada: a arte (para uma dona-de-casa) de saber "reunir", "agrupar", "pôr em evidência", de se "apagar", de servir de "traço-de-união". Em todo o caso, as amigas da Sra. Swann ficavam impressionadas por verem em sua casa uma mulher que normalmente só era imaginada em seu próprio salão, cercada de um quadro inseparável de convidados, de todo um grupinho que assombrava-se ver assim evocado, resumido, apertado em um único sofá, sob as aparências da Patroa, transformada em visitante no abafamento de seu casacão forrado de plumas, tão penugento como os agasalhos de peles que revestiam o salão, em meio ao qual a própria Sra. Verdurin era um salão. As mulheres mais tímidas queriam retirar-se por discrição e, empregando o plural como quando se deseja fazer compreender aos outros que é mais sensato não cansar demais um doente que se levanta pela primeira vez, diziam:             Odette, já vamos te deixar. - Invejavam a Sra. Cottard, que a Patroa chamava pelo prenome.-Será que posso te levar? - perguntava-lhe a Sra. Verdurin, que não podia suportar a idéia de que uma fiel ficaria ali em vez de segui-la. - Mas a senhora é bastante amável para me levar. - respondia a Sra. Cottard, não desejando parecer que esquecia, em favor de uma pessoa mais célebre, ter aceito a oferta da Sra. Bontemps de levá-la no seu carro enfeitado de plumas.

            - Confesso que sou especialmente reconhecida às amigas que desejam levar-me com elas em seus carros. É na verdade uma pechincha, já que não tenho cocheiro. -Tanto mais - respondia a Patroa (sem ousar dizer mais, pois conhecia um pouco a Sra. Bontemps e acabava de convidá-la para as reuniões das quartas-feiras) que na casa da Sra. de Crécy você não está perto de sua casa. Oh, meu Deus! Nunca hei de chegar a dizer Sra. Swann.

            Era um gracejo no pequeno clã, das pessoas que não eram dotadas de muito espírito, darem a impressão de não poderem se acostumar a dizer Sra. Swann:

            -Já me habituei tanto a dizer Sra. de Crécy, que ainda costumo enganar-me. -

            Somente a Sra. Verdurin, quando falava com Odette, não caía em erro e se enganava de propósito.

            - Não tem medo, Odette, de morar neste bairro perdido? Creio que só ficaria meio sossegada ao voltar para casa à noite. Além disso, é tão úmido. Não deve ser nada bom para o eczema do seu marido. Ao menos não têm ratos?

            - Claro que não! Que horror!

            - Tanto melhor, tinham-me falado nisso. Estou muito contente em saber que não é verdade, pois tenho um medo horrível deles, e não voltaria mais aqui se tivessem. Até logo, minha querida, até breve, sabe como estou feliz por vê-la. Você não sabe arrumar os crisântemos-dizia ela ao sair, enquanto a Sra. Swann se erguia para levá-la à porta -São flores japonesas; convém dispô-las como fazem os japoneses.

            -Não na opinião da Sra. Verdurin, ainda que em todas as coisas ela seja para mim a Lei dos Profetas.

            -Não há ninguém como você, Odette, para encontrar crisântemos belos, ou antes tão belas, visto que parece ser assim que se diz hoje - declarara a Sra. Cottard, quando a Patroa fechara a porta.

            -A cara Sra. Verdurin nem sendo benevolente para com as flores alheias- respondia suavemente a Sra. Swann.

            - Quem está cultivando, Odette? - perguntava a Sra. Cottard, para não deixar que se prolongassem as críticas à Patroa...

            - Lemaitre? Confesso que na frente da casa Lemaitre havia outro grande arbusto cor-de-rosa que me fez cometer uma loucura. - Mas, por pouco recusou-se a dar informações mais precisas sobre o preço do arbusto e disse que o professor, "que no entanto não era de mau gênio", fizera um escândalo quando lhe dissera que ela não conhecia o valor do dinheiro. - Não, não, tenho melhor que Debac.

            - Eu também. - dizia a Sra. Cottard -, mas confesso que faço infidelidades com Lachaume.-   - Ah, você o engana com Lachaume; vou contar à ele. - replicava a Sra. Swann, que se esforçava por mostrar espírito e condolência na conversação em sua casa, onde se sentia mais à vontade que no pequeno salão. - Afinal, Lachaume faz-se na verdade muito caro; seus preços são excessivos; sabe; chego a considerá-los inconvenientes! -acrescentava rindo.

            Entretanto, a Sra. Bontemps, que dissera cem vezes que não desejava ir à casa dos Verdurin, encantada por ser convidada para as quartas, pusera-se no lar como poderia fazer para lá se encontrar o maior número de vezes porém ignorava que a Sra. Verdurin desejava que não lhe faltassem a uma só; por outro lado, era dessas pessoas pouco solicitadas que, quando são convidadas para "sério'' por uma dona-de-casa, não aparecem, ao contrário dos que sabem causar sempre quando têm um momento livre e vontade de sair; elas não privam de assistir, por exemplo, ao primeiro e ao terceiro saraus, pensando que sua ausência será notada, reservando-se para o segundo e o quarto; a menos que suas intuições lhes afirmem que o terceiro será especialmente brilhante, elas não usam outra ordem, alegando que "infelizmente da última vez não se achavam disponíveis". Assim, a Sra. Bontemps computava quantas quartas-feiras ainda podia antes da Páscoa e de que maneira podia fazer para ir a mais uma quarta, se no entanto parecesse estar impondo sua presença. Contava com a Sra. Cottard; quem sairia junto, para obter algumas indicações.

            -Oh, Sra. Bontemps! Vejo que está indo. Não fica bem dar o sinal de retirada. Deve-me uma compensação, por ter vindo na quinta passada... Vamos, volte a sentar-se por um momento. Assim, não vai fazer outra visita antes do jantar.

            -De fato não se deixa tentar? acrescentava a Sra. Swann, estendendo-lhe um prato com doces: - Sabe que não são nada más, essas coisinhas?

            -O aspecto não ajuda, mas prove, que vai ver...

            - Pelo contrário, isto parece delicioso - respondia a Sra. Cottard. - Em sua casa, Odette, nunca faltam iguarias. Não preciso lhe perguntar a marca da fábrica, sei que você manda vir tudo do Rebattet. Devo dizer que sou mais eclética. Para os sequilhos, para as guloseimas em geral, muitas vezes vou ao Bourbonneaux. Mas reconheço que eles não sabem o que é um sorvete.            -Para tudo quanto é sorvete, ou refresco, Rebattet é o grande artista. Como diria meu marido, é o nec plus ultra. - Mas isto é simplesmente feito aqui. Não quer mesmo?

            - Não poderia jantar - respondia a Sra. Bontemps - mas sento-me de novo por alguns instantes; sabe, adoro conversar com uma mulher inteligente como você. Você vai me julgar indiscreta, Odette, mas gostaria de saber como julga o chapéu da Sra. Trombert. Sei muito bem que é moda usar chapéus grandes. Ainda assim, não está um pouco exagerado? E, em comparação com o chapéu com que ela foi outro dia à minha casa, esse que ela usava há pouco era microscópico.

            - Mas não, eu não sou inteligente - dizia Odette, pensando que isso ficava bem. - No fundo, sou uma palerma que acredita em tudo que lhe dizem, que se incomoda por nada.-

            E insinuava que, no começo, muito sofrera por ter casado com um homem como Swann, que levava uma vida toda sua e a traía. Entretanto, o príncipe de Agrigento, tendo ouvido as palavras "não sou inteligente", achou-se no dever de protestar, mas não sabia aproveitar a ocasião própria.

            - Ora, ora - gritava a Sra. Bontemps. - Então você não é inteligente?! - De fato, eu estava dizendo para mim mesmo:

            Que ouço! - dizia o príncipe, apanhando a deixa. - Com certeza meus ouvidos me enganaram.

            - Mas não, asseguro-lhe - dizia Odette-; no fundo sou uma pequeno-burguesa que se escandaliza facilmente, cheia de preconceitos, vivendo no seu buraco, e sobretudo muito ignorante. -E para pedir notícias do barão Charles: -Tem visto o nosso caro baronete? -dizia ela.

            -Você, ignorante? -exclamava a Sra. Bontemps. - Muito bem. Que diria então do mundo oficial, todas essas mulheres de excelências, que só sabem falar de futilidades! Veja, senhora, não faz uma semana falei no Lohengrin para a ministra de Instrução Pública. Ela responde: "Lohengrin? Ah, sim, a última revista do Folies-Bergere, dizem que é hilariante." Muito bem, senhora, que quer? quando a gente ouve coisas desse tipo, chega a ferver o sangue. Tive desejos de esbofeteá-la. Pois sou lá meio geniosa, você sabe. Veja, senhor-disse, voltando-se para mim-, não tenho razão?

            -Escute -dizia a Sra. Cottard -, é desculpável responder um pouco atravessado quando se é interrogada assim à queima-roupa, sem aviso. Sei disso, pois a Sra. Verdurin também tem o hábito de nos pôr entre a faca e a parede.

            - A propósito da Sra. Verdurin perguntava a Sra. Bontemps à Sra. Cottard -, sabe o que haverá na quarta-feira na casa dela?... Ah, lembro-me agora que aceitamos um convite para a quarta seguinte. Não quer jantar conosco na quarta, às oito horas? Iríamos juntas para a casa da Sra. Verdurin. Fico intimidada de entrar sozinha, não sei porque, mulherão sempre me dá medo. -Vou lhe dizer - respondia a Sra. Cottard. O que assusta na Sra. Verdurin é o seu tom de voz. Que quer? Nem todos têm uma voz tão bonita como a da Sra. Swann. Mas é só começar a conversar, como diz e logo o gelo se quebra. Pois no fundo ela é bastante acolhedora. Mas eu compreendo muito bem a sua sensação; nunca é agradável encontrar-se pela primeira vez em região perdida.

            -Você também poderia jantar conosco - dizia a Sra. Bontemps à Swann. - Depois do jantar, iremos todos para a casa dos Verdurin, fazer visita mesmo que isso tenha como resultado fazer a Patroa me olhar com maus olhos e não me convidar mais, uma vez em sua casa ficaremos as três a conversar nós, pois sinto que isto é o que mais me agradaria. - Mas esta afirmação não pode ser muito verídica, pois a Sra. Bontemps perguntava:

            -Quem acha que estará quarta-feira, às oito? Que vai acontecer? Pelo menos, não haverá muita gente não é?

            -Certamente não irei -dizia Odette. -Só vamos aparecer rapidamente na última quarta-feira. Se não se importa de esperar até lá... -

            Mas a Sra. Bontemps parecia seduzida por essa proposta de adiamento. Conquanto os méritos espirituais de um salão, e sua elegância, é geralmente antes em relações inversas do que diretas, é preciso crer, visto que a Sra. Swann achava agradável a Sra. Bontemps, que toda degradação aceita tem conseqüência tornar as pessoas menos difíceis quanto àquelas com quem pensam conviver, menos difíceis quanto ao seu espírito como em relação a mais de uma. E, se isto é verdade, os homens devem, como os povos, ver sua cultura, a sua língua, desaparecer com a sua independência. Um dos efeitos dessa inteligência é o de agravar a tendência que, a partir de uma certa idade, as pessoas de acharem agradáveis as palavras que homenageiam nosso próprio pensar, nossas inclinações, e representem um estímulo para nos entregar à elas; é a idade em que um grande artista prefere, à companhia dos gênios ou a dos alunos que só têm em comum consigo a letra de sua doutrina e pela qualidade é ouvido e incensado, em que um homem ou uma mulher notáveis, que vivem um amor, consideram como mais inteligente, em uma reunião, uma pessoa, de nível inferior, mas que, numa frase, terá revelado que sabe compreender e levar o que é uma existência voltada à galanteria, e, assim, terá lisonjeado agilmente a tendência voluptuosa do amante ou da amante; era também a idade que Swann, na qualidade de marido de Odette, se comprazia em ouvir a Sra.Bontemps dizer que era ridículo só receber duquesas (daí concluindo, do que teria feito outrora na casa dos Verdurin, que se tratava de uma boa bastante espirituosa e nada esnobe) e a contar-lhe histórias que a faziam "Ser de riso", pois não as conhecia e de que ela, aliás, "pegava" logo o espírito, para agradar e divertir-se.

            - Então o doutor não é doido por flores como você? - perguntava a Sra. Swann à Sra. Cottard.

            - Ora, você sabe que meu marido é sábio; é moderado em todas as coisas. No entanto, sim, tem uma paixão.

            Com os olhos brilhantes de malícia, de alegria e de curiosidade, a Sra. Bontemps indagava:

            -Qual, madame?

            Com simplicidade, a Sra. Cottard respondia:

            - A leitura.

            - Oh, é uma paixão repousante para um marido! -exclamava a Sra. Bontemps, sufocando um riso satânico. - Quando o doutor está lendo um livro, já sabe! - Muito bem, madame, isso não deve espantá-la demais... - Claro que sim! Por causa da vista. Vou estar com ele outra vez, Odette, e voltarei a bater à sua porta na próxima semana. Por falar em vista, já lhe disseram que a residência que a Sra. Verdurin acaba de comprar será iluminada com eletricidade? Não o soube pela minha pequena polícia particular, e sim de outra fonte: foi o próprio eletricista, Mildé, quem me disse. Estão vendo que cito meus informantes. Até os quartos terão lâmpadas elétricas com um abajur para matizar a luz. Evidentemente, é um luxo encantador. Aliás, as mulheres de hoje querem absolutamente o que há de mais novo, como se já não houvesse bastante novidade neste mundo. A cunhada de uma de minhas amigas tem telefone instalado em casa! Pode fazer uma encomenda a um fornecedor sem sair do seu apartamento! Confesso que fiz as mais baixas maquinações para conseguir falar um dia nesse aparelho. Aquilo me seduz muito, mas antes na casa de uma amiga do que na minha. Creio que não gostaria de ter telefone em casa. Passado o primeiro momento de diversão, deve ser uma verdadeira chatice. Muito bem, Odette, já estou indo; não retenha mais a Sra. Bontemps, porque ela vai comigo. Tenho mesmo que ir; você me faz passar cada uma! Vou chegar em casa depois do meu marido!

            E eu também precisava voltar para casa, antes de haver desfrutado aqueles prazeres de inverno, dos quais os crisântemos me pareceram ser o brilhante invólucro. Tais prazeres não tinham vindo e, no entanto, a Sra. Swann não parecia esperar ainda alguma coisa. Deixava os criados levarem o chá como se tivesse anunciado:

            "Vai fechar!" E acabava de me dizer: "Então, vai embora mesmo? Muito bem, good-bye!"

            Sentia eu que poderia ter permanecido sem encontrar esses prazeres ignorados e que não era só minha tristeza que me privava deles. Não estariam, portanto, situados naquele caminho batido das horas que levam sempre tão depressa ao instante da partida, e sim em algum caminho transversal que desconhecia, e por onde seria necessário bifurcar? Pelo menos, atingira o objetivo de minha visita: Gilberte saberia que estivera na casa de seus pais em sua ausência e, como não deixava de repetir a Sra. Cottard, "conquistara logo de assalto a Sra. Verdurin", a quem, acrescentava a esposa do doutor, ela nunca vira "fazer tantas amabilidades", - Parece dissera ela

que vocês dois têm átomos enganchados. - Assim Gilberte saberia que falara dela como devia fazê-lo, com ternura, mas que já não sentia aquela incapacidade de viver sem que nos víssemos, que eu julgara ser a fonte de aborrecimento que ela sentira por mim nos últimos tempos. Dissera à Sra. Swann que não mais podia me encontrar com Gilberte. Dissera-o como se tivesse decidido para todo o sempre não mais vê-la. E a carta que iria enviar a Gilberte seria concebida dentro do mesmo espírito. Apenas, para criar coragem, propunha a mim mesmo só um supremo e breve esforço de alguns dias. Dizia comigo: "É o último encontro dela que vou recusar; aceitarei o próximo." Para que a separação fosse menos difícil de se realizar, imaginava-a como não definitiva. Mas bem sabia que iria sê-lo.

            O dia 1° de janeiro me foi especialmente doloroso naquele ano. Sem dúvida, quando somos infelizes, todos os dias de festa de aniversário o são. Mas, se o dia nos recorda apenas, por exemplo, a perda de um ente querido, o sofrimento só consiste numa comparação mais viva com o passado. No meu caso, acrescentava-se a esperança não formulada de que Gilberte, tendo querido me deixar a iniciativa dos primeiros passos e, vendo que eu não os dera, houvesse esperado o pretexto do dia de Ano-Novo para me escrever: "Enfim, o que há? Sou louca por ti; vem para que nos expliquemos com toda a franqueza; não posso viver sem ver-te." Desde os últimos dias do ano, essa carta me pareceu provável. Talvez não o fosse, mas, para acreditar nessas coisas, basta o desejo e a necessidade que temos de que sejam possíveis. O soldado está persuadido de que existe à sua frente um espaço de tempo infinitamente inadiável antes de ser morto; o ladrão, antes de ser preso; os homens em geral, antes que a morte os leve. É este o amuleto que preserva os indivíduos e às vezes os povos não do perigo, e sim do medo do perigo, na verdade da crença no perigo, o que em certos casos permite que o desafiem, sem que sejam obrigatoriamente corajosos. Uma confiança desse gênero, tão pouco fundada, é a que sustenta o apaixonado que conta com uma reconciliação, com uma carta. Para que eu deixasse de esperar a de Gilberte, bastaria que deixasse de deseja-la. Embora saiba que somos indiferentes em relação à mulher que ainda amamos, atribuímos-lhe uma série de pensamentos - mesmo que sejam de indiferença -, uma intenção de manifestá-los, uma complicação de vida interior onde somos talvez o objeto de uma antipatia, mas também de uma atenção, permanentes. Ao contrário, para imaginar o que se passava no espírito de Gilberte, seria preciso que eu simplesmente antecipasse, naquele dia de Ano-Novo, o que iria sentir num dos anos vindouros, e no qual a atenção ou o silêncio, ou o carinho, ou a frieza de Gilberte, tivessem passado quase despercebidos a meus olhos; onde não tivesse sonhado, e nem sequer pudesse sonhar, em buscar a solução dos problemas que teriam deixado de se colocar para mim. Quando a gente ama, o amor é grande demais para caber inteirinho em nós; irradia-se para a pessoa amada, encontra nela uma superfície que o faz parar, força-o a voltar ao ponto de partida e é esse choque de volta do nosso próprio carinho a que chamamos os sentimentos do outro e que nos encanta mais do que na ida, pois já não reconhecemos que procede de nós. O dia 1º de janeiro fez soar todas as suas horas sem que chegasse carta de Gilberte. E, como recebi outras congratulações tardias, ou atrasadas; pelo acúmulo de serviço no correio nessas datas, ainda esperava nos dias 3 e 4 de janeiro, entretanto cada vez menos. Chorei muito nos dias seguintes. Claro, isto porque, ao renunciar a Gilberte, fora menos sincero do que julgava, conservara a esperança de receber uma carta dela no Ano-Novo. E, vendo-o terminado antes que tivesse tomado a precaução de me servir de outra ilusão, sofria como um enfermo que esvaziou sua ampola de morfina sem ter uma outra à mão. Porém, talvez em mim essas duas explicações não se excluem, pois um só sentimento é feito às vezes de coisas contrárias; a esperança de enfim receber uma carta aproximara de mim a imagem de Gilberte; recriara as emoções que me haviam causado antigamente a espera de me encontrar junto dela, de sua vista, sua maneira de estar comigo. A possibilidade imediata de uma reconciliação suprimira essa coisa de cuja enormidade não nos damos conta: a resignação. Os neurastênicos não podem crer nas pessoas que lhes asseguram que aos poucos se acalmarão; permanecendo na cama sem receber cartas, sem ler jornais. Imaginam que tal regime só contribuirá para exasperar seu nervosismo. Da mesma forma os enamorados, como o consideram do fundo de um estado oposto, não tendo ainda começado a experimenta-lo, não podem acreditar na força benfazeja da renúncia.

            Por causa da violência das batidas do meu coração, diminuíram minha dose de cafeína, e elas cessaram. Então, perguntei-me se não era um pouco devido a ela que me sentira angustiado quando quase briguei com Gilberte, e que atribuíra, cada vez que se renovava a angústia, ao sofrimento de não mais ver a minha amiga ou de arriscar-me a vê-la apenas dominada pelo mesmo mau humor. Mas, se esse medicamento estivera na origem dos sofrimentos que minha imaginação, à época, interpretara falsamente (o que não seria nada extraordinário, pois as penas morais mais cruéis têm muitas vezes como causa, no caso dos amantes, o hábito físico da mulher com quem vivem), era à maneira do filtro que, muito tempo depois de ter sido absorvido, continua a unir Tristão a Isolda. Pois a melhora física que a diminuição da cafeína me trouxe quase imediatamente não estancou a evolução da mágoa que a absorção do tóxico tinha tornado mais aguda, se é que não havia criado.

            Unicamente, quando estava em meados de janeiro, já perdidas as esperanças de uma carta de Ano-Novo e acalmada a dor suplementar que acompanhara a decepção, foi o meu desgosto de antes das "Festas" que recomeçou. E o mais cruel de tudo, talvez, é que eu mesmo era o artesão consciente, voluntário, paciente e impiedoso desse desgosto. A única coisa que me interessava, minhas relações com Gilberte, era eu mesmo quem cuidava em torna-las impossíveis, criando pouco a pouco, pela prolongada separação de minha amiga, não a sua indiferença, mas a minha, o que afinal vinha a dar no mesmo. Encarniçava-me continuamente, com a clarividência não só do que fazia no presente, mas do que daí resultaria para o futuro, num longo e cruel suicídio do eu que dentro de mim amara Gilberte; sabia não só que dentro de algum tempo não amaria mais Gilberte, mas também que ela própria o lamentaria, e que as tentativas que então faria para me ver seriam inúteis como as de hoje, não mais porque a amasse demasiado, e sim porque certamente amaria a uma outra mulher e passaria as horas a deseja-la, a esperar sem ousar desviar uma parcela desse tempo para Gilberte, que não seria mais nada para mim. E, sem dúvida, naquele momento mesmo em que já perdera Gilberte, visto que estava resolvido a não mais vê-la, a menos que houvesse um ponto formal de explicações ou uma completa declaração de amor de sua parte, (e que certamente não tinham nenhuma chance de ocorrer) e em que a amava (sentia tudo o que ela significava para mim melhor do que no ano anterior, passando todas as tardes com ela, sempre que desejasse, achava que nada ia ameaçar nossa amizade), sem dúvida naquele momento, a idéia de que haveria de experimentar os mesmos sentimentos por uma outra era-me odioso, pois tal idéia me roubava, além de Gilberte, meu amor e meu sofrimento; sofrimento em que, chorando, eu tentava justamente descobrir o que era Gilberte; sem outro remédio senão reconhecer que esse amor e esse sofrimento não pertenciam especialmente à mim, sendo, mais cedo ou mais tarde, o quinhão desta ou daquela mulher. De modo que - pelo menos era essa a minha maneira de pensar - a gente sempre está separado das outras criaturas: quando amamos, sentimos que esse amor não conserva o nome do ser amado; poderá renascer no futuro, se tiver podido nascer, mesmo no passado, por uma outra pessoa e não por esta; durante o tempo em que não amamos, se aceitamos filosoficamente que o amor é contraditório, é que esse amor de que se fala com tanta tranqüilidade, não sentimos até então, portanto, é algo desconhecido, pois o conhecimento nessa matéria intermitente não sobrevive à presença efetiva do sentimento. Nesse futuro, em eu não mais amaria Gilberte e que meu sofrimento me ajudava a adivinhar sem imaginação; pudesse ainda figura-lo com clareza, certamente ainda restava tempo para avisar Gilberte de que ele haveria de formar-se aos poucos, sem dúvida era, senão iminente, pelo menos infalível. Se ao menos a própria Gilberte viesse em meu auxílio e destruísse no embrião a minha futura indiferença. As vezes não estive a ponto de escrever, ou de ir dizer a Gilberte: "Cuidado. Tome uma resolução; o passo que dou é um passo decisivo. Vou vê-la pela última vez. Em breve não a amarei mais." Mas para quê? Com que direito teria censurado à Gilberte uma indiferença que, sem me crer culpado por isso, manifestava a todos menos  à ela? Pela última vez! A mim aquilo parecia uma coisa imensa, pois eu amava Gilberte. A ela, sem dúvida, causaria tanta impressão como as cartas em que os amigos pedem para nos fazer uma visita antes de se expatriarem, visita que, como de mulheres tediosas que nos amam, nós recusamos receber, pois temos outros prazeres à espera. Elástico é o tempo de que dispomos todos os dias; as paixões, sentimos que o dilatam, as que inspiramos o encolhem e o hábito o preenche.

            Além disso, seria inútil falar a Gilberte, não me compreenderia. Pensamos sempre que são nossos ouvidos, nosso espírito, que escutam; as palavras só chegariam desviadas à Gilberte, como se obrigadas a atravessar a cortina móvel de uma catarata antes de atingir minha amiga; palavras irreconhecíveis, produzindo um som ridículo, não tendo mais qualquer tipo de sentido. A verdade é que aquilo que pomos nas palavras não trilha diretamente o seu caminho, não é dotada de uma evidência irresistível. É necessário que decorra muito tempo para que uma verdade da mesma espécie possa formar-se nelas. Então o adversário político que, apesar de todas as provas e arrazoados, considerava traidor o sectário da doutrina oposta, compartilha ele mesmo a convicção detestada quando já não interessa àquele que antes buscava inutilmente difundi-la.

            Então, a obra-prima que, para os admiradores que a liam em voz alta, parecia mostrar por si mesma as provas de sua excelência e só oferecia aos que a escutavam uma imagem insana e medíocre, será por estes proclamada obra-prima, tarde demais para que o autor o possa saber. Da mesma forma, no amor as barreiras que, malgrado tanto esforço, não puderem ser rompidas de fora por aquele a quem elas desesperam; e é quando ele já não se preocupa com elas que, de repente, essas barreiras, atacadas outrora sem êxito, caem sem utilidade, devido ao trabalho vindo de outro lado, cumprido no íntimo daquela mulher a quem já não ama. Se anunciasse a Gilberte a minha futura indiferença e a forma de preveni-la, ela teria inferido desse gesto que meu amor e a necessidade de estar com ela seriam ainda maiores do que julgara, e o seu tédio em me ver teria aumentado. De resto, é bem certo que era esse amor que me ajudava, pelos estados de espírito disparatados que fazia sucederem dentro de mim, a prever melhor que era o fim desse mesmo amor. Entretanto, tal advertência, talvez a tivesse endereçado a Gilberte, em carta ou de viva voz, quando já houvesse passado bastante tempo, tornando-a para mim, na verdade, menos indispensável, mas também podendo lhe provar que já podia passar sem ela. Infelizmente, certas pessoas, bem ou mal-intencionadas, falaram-lhe de mim de um modo que lhe deve ter dado idéia de que o faziam a pedido meu. Todas as vezes que tinha certeza de que o Dr. Cottard, minha própria mãe e até o Sr. de Norpois tinham, com palavras desastradas, tornado inútil todo o sacrifício que eu acabara de fazer, estragado todo o resultado de minha reserva, pois assim davam falsamente a entender que já abandonara minha atitude de discrição, sentia-me duplamente aborrecido. Primeiro, já não podia datar senão desse dia a minha penosa e frutífera abstenção que os inoportunos tinham interrompido à minha revelia e, portanto, anulado. E mais, teria tido menos prazer em ver Gilberte, que agora já não acreditava que eu estivesse dignamente resignado, e sim manobrando na sombra com vistas a um encontro que ela desdenhara marcar. Mal dizia essa tagarelice inútil de pessoas que muitas vezes, sem sequer terem a intenção de prejudicar ou de prestar um serviço, por nada, só por falar, às vezes porque não pudemos nos calar diante delas e porque são indiscretas (como nós), nos causam tantos danos num certo momento. É verdade que, no cumprimento do trabalho funesto de destruição do nosso amor, tais criaturas longe estão de desempenhar um papel igual ao de duas pessoas que têm hábito de desfazer tudo no momento em que as coisas iam se arrumar, um excesso de bondade e a outra por muita maldade. Porém não queremos mal às duas, tanto quanto aos Cottards inoportunos, pois a última é a pessoa a qual amamos e a primeira somos nós mesmos. Entretanto, como quase todas as vezes em que ia vê-la; a Sra. Swann convidava para merendar com sua filha e me dizia que respondesse diretamente à Gilberte, eu escrevia a esta muitas vezes, e nessa correspondência não escolhi frases que, segundo me parece, poderiam convencê-la, procurando apenas leito mais suave para o correr das minhas lágrimas. Pois o lamento, como não busca analisar-se e sim satisfazer-se; quando a gente começa a amar, o tempo todo não querendo saber o que é o nosso amor, mas preparando as possibilidades dos encontros do dia seguinte. Quando a ele renunciamos, procuramos sim, não distinguir bem a nossa mágoa, mas expressá-la da maneira mais caridosa possível àquela que a provocou. Dizemos as coisas que precisamos dizer e que outro não compreenderá; falamos só para nós mesmos. Eu escrevia: "Achei que não seria possível. Infelizmente, vejo que não é tão difícil." Dizia também: "Provavelmente, não voltarei a vê-la." Dizia isto, continuando a evitar uma frieza que poderia ter julgado afetada, e essas palavras faziam-me chorar ao escrevê-las, sentia que exprimiam, não aquilo em que desejava acreditar, mas o que iria acontecer. Pois, da próxima vez que me convidasse para um encontro, ainda teria, como agora, a coragem de não ceder e, de recusa em recusa, chegaria aos poucos ao instante em que, de tanto não a ter visto, não desejaria mais vê-la. Chorava e criava coragem; conhecia a doçura de sacrificar a felicidade de estar junto dessa possibilidade; de um dia lhe parecer agradável, dia infelizmente em que mesmo agradável, me seria de todo indiferente. A própria hipótese, no entanto tão verossímil, de que me amava, como ela o dera a entender durante a última visita que lhe fizera, tornava menos cruel minha resolução, embora, naquele momento tivesse tomado como tédio para com a pessoa que nos aborrece, pois que passava de suscetibilidade ciumenta, de uma fingida indiferença parecida minha. Julgava, então, que dentro de alguns anos, depois que tivéssemos esquecido um do outro, quando poderia retrospectivamente lhe dizer que a carta, que neste momento estava a ponto de lhe escrever, não

fora sincera de modo algum, ela responderia:

            "Como? Então você me amava? Se soubesse como a chegada dessa carta, na esperança de um encontro, como ela me fez chorar!"

            E que voltava da casa de sua mãe e enquanto escrevia a Gilberte, apenas a idéia talvez estivesse consumando exatamente aquele mal-entendido, tal idéia, própria da tristeza, pelo prazer de pensar que era amado por Gilberte, continuaria a escrever a carta.

            Se, no momento de deixar a Sra. Swann, quando o "chá" terminava pensando no que escreveria à sua filha, a Sra. Cottard, no entanto, pensava coisas muito diversas. Fazendo sua "inspeçãozinha", não deixava de elogiar a Sra. Swann pelos móveis novos, as recentes "aquisições que via no salão". Aliás, podia reencontrar ali, embora poucos, alguns dos objetos que Odette possuíra antigamente em seu apartamento da rua La Pérouse, especialmente seus fetiches, seus animais feitos de matéria preciosa.

            Mas tendo a Sra. Swann conhecido, por um amigo a quem venerava, o termo tocard que lhe abriu novos horizontes porque designava precisamente as coisas que alguns anos antes consideraria "chiques" todas essas coisas foram aos poucos seguindo, em sua retirada, as grades douradas que serviam de apoio aos crisântemos, as várias bomboneiras da casa Giroux e o papel de cartas com coroa (para não falar dos luíses de ouro feitos de cartolina, espalhados pelas lareiras e que, bem antes que ela conhecesse Swann, um homem de gosto a aconselhara a sacrificar). Além do mais, na desordem intencional, na confusão de ateliê artístico daquelas salas de paredes ainda pintadas de cores sombrias, que as faziam tão diversas quanto possível dos salões brancos que a Sra. Swann teve mais tarde, o Extremo Oriente recuava cada vez mais diante da invasão do século XVIII; e os almofadões que a Sra. Swann colocava e apertava às minhas costas, para que me sentisse mais "confortável", estavam semeados de buquês Luís XV, e não mais, como antigamente, de dragões chineses. No quarto onde a encontravam com mais freqüência, e do qual dizia:

            -Sim, gosto muito dele; passo ali bastante tempo; não poderia viver no meio de coisas hostis e pretensiosas; é aqui que eu trabalho - (sem, aliás, precisar se era em um quadro, talvez num livro, pois começava a criar o costume de escrever, que atinge as mulheres que gostam de fazer algo e não se sentirem inúteis); estava ali rodeada de porcelanas de Saxe (porque preferia esta espécie de porcelana, cujo nome pronunciava com um acento inglês, chegando a falar a qualquer pretexto: "É lindo, isto se parece com flores de Saxe!"; temia por elas, ainda mais que outrora para os seus vasos e estatuetas da China, o toque ignorante dos criados, aos quais castigava, pelos maus transes por que passava, com acessos de cólera a que Swann, patrão suave e polido, assistia sem se mostrar chocado. A vista lúcida de certas inferioridades; aliás não tira nada do afeto; este afeto, ao contrário, é que as torna encantadoras. Agora, era mais raramente em seus chambres japoneses que Odette recebia os íntimos, preferindo as sedas claras e espumantes dos peignoirs Watteau, dos quais fazia o gesto de acariciar sobre os seios a espuma florida, como se se banhasse naquelas sedas, embalando-se e ostentando-se nelas com tal aspecto de bem-estar, de frescura de pele, respirando tão profundamente, que parecia considerá-las não como decorativas, mas como um quadro, porém necessárias da mesma forma que o tub e o footing, para contentar as exigências de sua fisionomia e os requintes de sua higiene. Tinha o hábito de dizer que mais facilmente passaria sem pão do que sem arte e sem limpeza, que lhe valeria mais a pena ver arder A Gioconda que as "sujeiradas" de pessoas a quem conhecia.

            Teorias que pareciam paradoxais às suas amigas, mas faziam-na passar por mulher superior junto a elas, e lhe valeram a visita do ministro da Bélgica por semana, de modo que, no pequeno mundo em que ela era o sol, todos ficavam surpresos se soubessem que, em outra parte, na casa dos Verdurin, por exemplo, ela era tida por imbecil. Por causa dessa vivacidade de espírito, a Sra. Swann ria à companhia dos homens e das mulheres. Mas, quando criticava estas, falava sempre com alma de cocote, nelas assinalando os defeitos que podiam prejudica-las aos olhos dos homens: tornozelos grossos, tez ruim, pêlos nas pernas, mau cheiro, sobrancelhas postiças. Ao contrário, para que outrora se houvesse mostrado indulgente e amável, Odette era mais calada, sobretudo se se tratava de uma pessoa infeliz. Defendia-a com habilidade, ''- Isto é injusto; é uma pessoa muito bondosa, não tenha dúvidas.''

            Não era apenas o mobiliário do salão de Odette, era a própria Odette quem a Sra. Cottard e todos os que haviam convivido antigamente com a Crécy achariam difícil de reconhecer, se a tivessem deixado de ver durante tempo. Parecia ter tantos anos menos que outrora! Sem dúvida, aquilo em parte devia-se ao fato de que ela engordara, mostrando boa saúde, com um aspecto calmo, fresco, repousado, e, por outro lado, aos penteados novos, de cabelos que davam maior amplitude ao seu rosto, animado pelo pó-de-arroz cor-de-rosa; onde os olhos e o perfil, outrora tão salientes, pareciam agora ser reabsorvidos pelas faces. Mas havia um outro motivo para essa mudança, e consistia em que ao chegar à meia-idade, afinal havia descoberto, ou inventado, um traço pessoal, um "caráter" imutável, um "tipo de beleza" e, sobre seus traços os quais durante tanto tempo, entregues aos caprichos ocasionais e ímpetos da carne e que, ao menor cansaço, assumiam uma espécie de velhice pesada; carregando-se de anos, lhe haviam composto, bem ou mal, conforme o seu gesto, uma fisionomia esparsa, diária, informe e deliciosa - havia nesse tipo fixo, como se fosse de uma juventude imortal.

            No seu quarto, em vez das belas fotografias que agora se tirava de mulher, e onde a mesma expressão enigmática e vitoriosa deixava que, fossem quais fossem, o vestido e o chapéu, a sua silhueta e seu rosto triunfavam. Swann guardava um pequeno daguerreótipo antigo, muito simples, e do qual, ainda não encontradas por ela, a juventude e a beleza pareciam ausentes. Mas sem dúvida Swann, fiel ou então por ter voltado à concepção diversa da nova vida saboreava naquela jovem esbelta, de olhos e feições pisadas, a atitude suspensa entre o andar e a imobilidade, uma grande Botticellesca. De fato, gozava de ver ainda em sua esposa um Botticelli. pelo contrário procurava não ressaltar e sim compensar; dissimular mesmo que não lhe agradava, o que era talvez para um artista o seu "caráter", como mulher julgava cheio de defeitos, não queria ouvir falar desse pintor. Possuía uma maravilhosa écharpe oriental, azul e rósea, que havia comprado por ser exatamente igual a da Virgem do Magnificat. Porém a Sra. Swann não queria usa-la. Uma vez apenas deixou o marido lhe encomendar um vestido crivado de margaridas, cinerárias, miosótis e campânulas, de acordo com a primavera. Às vezes, de noite, quando Odette estava cansada, Swann me fazia ver, em voz baixa, como ela dava, sem perceber, às suas mãos pensativas, o movimento sutil, um pouco atormentado, da Virgem que mergulha sua pena no tinteiro que o anjo lhe estende, antes de escrever no livro santo onde já está traçada a palavra             "Magnificat". E acrescentava:

            -Principalmente, não lhe diga nada; basta que o note para não fazê-lo.

            A não ser nesses momentos de abandono involuntário, em que Swann tentava recuperar o melancólico ritmo botticellesco, o corpo de Odette era agora recortado em uma única silhueta, toda ela cingida por uma linha que, para seguir o contorno da mulher, abandonara os caminhos sinuosos, as falsas saliências e reentrâncias, os entrelaçamentos, a dispersão composta das modas de antigamente, mas que, mesmo assim, onde a anatomia se enganava fazendo voltas inúteis, aquém ou além do traçado ideal, sabia retificar num traço ousado os desvios da natureza, suprindo em grande parte do trajeto as deficiências da carne e do tecido. Haviam sumido as almofadas, a "armadura" do terrível colete, bem como os corpinhos com alertas que, sustidos por barbatanas, sobressaíam por cima do vestido; todas as peças que, durante muito tempo, tinham acrescentado a Odette um ventre postiço e lhe haviam dado a aparência de ser composta de peças disparatadas sem qualquer individualidade que as unisse. As linhas verticais das franjas e a curva dos franzidos tinham cedido o posto à inflexão de um corpo que fazia palpitar a seda, como a sereia faz arfar as ondas, e dava à percalina uma expressão humana, agora que se libertara, como forma organizada e viva, do longo caos do envolvimento nebuloso das modas destronadas. Porém a Sra. Swann desejara, e soubera conservar, o vestígio de algumas delas até no meio das que havia substituído. Quando à noite, sem poder trabalhar e estando seguro de que Gilberte se achava no teatro com as amigas, eu ia sem avisar à casa dos pais dela, muitas vezes encontrava a Sra. Swann vestindo um elegante déshabillé, cuja saia, de belos tons sombrios, vermelho-escuro ou alaranjado, cores que pareciam ter um sentido especial porque já não estavam na moda, era obliquamente atravessada por uma faixa ampla e perfurada, de renda negra, que lembrava os volantes de antigamente. Quando, num dia ainda frio de primavera, antes de minha briga com sua filha, ela me levara ao Jardim da Aclimação, a Sra. Swann entreabria mais ou menos a gola da jaqueta, conforme o calor que sentia enquanto andava, de forma que aparecia a gola denteada de sua blusa bem como a vislumbrada lapela de um ausente casaco sem mangas, Semelhante a um dos que usara alguns anos antes e que lhe agradava tivessem as bordas ligeiramente picotadas; e sua escocesa, pois permanecia fiel ao tipo escocês, mas suavizando de tal modo os tons (fazendo rosa o vermelho, e lilás o azul); safira, de trevos de quatro folhas de prata e medalhões de ouro, de amuletos de turquesa, contas de topázio, no próprio vestido havia um certo desenho de cores.

            Eu pensava como nos sonhos, onde alguém ama nossos desejos, como a preterimos àquela entediada, em que teríamos de encarar uma pessoa a quem já não poderíamos dizer à vontade as palavras desejadas, mas de quem sofreríamos novas friezas e inesperadas! Todos sabemos que o esquecimento e até mesmo a vaga lembrança quando já não amamos, não causam tanta dor como o amor infeliz. Eu sem confessá-lo, a doçura repousante desse esquecimento antecipado. Além disso, o que esse regime de desprendimento psíquico e delineamento pudesse ter de penoso ia aos poucos diminuindo por um outro que esse regime enfraquece a idéia fixa que forma o amor, enquanto não o completo. Meu amor ainda era bastante intenso para que continuasse até o meu prestígio aos olhos de Gilberte; prestígio que, devido à minha visita voluntária, devia, conforme achava, crescer progressivamente, de modo que os dias tranqüilos e tristes em que não a via, vindo um após outro, sem interrupção; sem prescrição (a menos que um intrometido se misturasse nos seus assuntos) eram dias ganhos e não perdidos. A resignação, modalidade do hábito, permite certas forças e indefinidamente. Aquelas, tão ínfimas, com que pudera suportar meus dias, na primeira noite de minha briga com Gilberte, desde então chegaram à ausência incalculável. Apenas, a tendência a se prolongar, que todas as coisas têm, é por vezes cortada por impulsos bruscos, aos quais cedemos, praticamente sem escrúpulos, justo por sabermos durante quantos dias e meses teriam durado; ou saberíamos ainda, resistir. E muitas vezes ocorre que esvaziamos muitas vezes a bolsa de dinheiro bem quando ia ficar cheia, sem esperar pelo resultado do tratamento quando já estávamos acostumados a segui-lo. Um dia em que repetia à Sra. Swann as palavras de costume acerca do prazer que Gilberte ao me ver sentia; como que ao alcance da mão, aquela ventura de que já roe há tanto tempo, fiquei perturbado ao verificar que ainda não me era: desfrutá-la; e custou-me esperar pelo dia seguinte; resolvera ir surpreender antes do jantar.

            O que me ajudou a ter paciência por todo o espaço de um dia; - projeto que engendrei. Desde o instante em que tudo estava esquecido, reconciliara com Gilberte, só queria vê-la como apaixonado. Todos os dias recebia de mim as mais belas flores que houvesse. Se a Sra. Swann, tivesse o direito de se mostrar mãe muito severa, não me permitisse o envio de flores, eu encontraria presentes mais preciosos e menos constantes, não me davam muito dinheiro para comprar coisas caras. Pensei nunca potiche chinês antigo que me fora deixado pela tia Léonie; todos os dias agourava que Françoise viria dizer-lhe: "Caiu..." e que dele não sobraria tais condições, não era mais prudente vendê-lo, para poder dar todo o presente que desejava à Gilberte? Achava que poderia conseguir uns mil francos; por estar embrulhado; por força do hábito, nunca havia reparado nele; se o desembrulhasse teria ao menos uma vantagem, a de conhecê-lo. Antes de ir à casa dos Swann, eu mesmo o carreguei, dando o endereço deles ao cocheiro, e avisando que fosse pelos Champs-Élysées, onde ficava a loja de um grande negociante de antigüidades chinesas conhecido de meu pai. Para minha grande surpresa, ofereceu-me logo pelo potiche não mil, mas dez mil francos. Peguei as notas, deslumbrado: durante um ano, poderia encher Gilberte de rosas e lilases. Quando voltei para o carro, deixando o negociante, o cocheiro, com toda a naturalidade, visto que os Swann moravam perto do Bois, em vez de seguir o caminho de costume, desceu a avenida dos Champs-Élysées. Já ultrapassara a esquina da rua de Berri quando, ao crepúsculo, julguei reconhecer, bem perto da casa dos Swann, mas indo em direção contrária e afastando-se, Gilberte, que caminhava devagar, embora com passo firme, ao lado de um rapaz com quem conversava e cujo rosto não pude distinguir. Ergui-me no carro, querendo parar, depois hesitei. Os dois passeantes já estavam um tanto longe, e as duas linhas suaves e paralelas que seu lento passeio traçava iam se esfumando na sombra elísia. Em breve parei diante da casa de Gilberte. Fui recebido pela Sra. Swann:

            -Oh, ela vai ficar triste - disse-me -; nem sei como é que não está presente. Saiu com muito calor de uma aula; disse que desejava tomar um pouco de ar com uma das amigas.

            - Creio tê-la visto na avenida dos Champs-Élysées.

            - Não acho que se tratasse dela. Em todo caso, não conte nada a seu pai, pois não gosta nada que ela saía a essas horas. Good evening.

            Despedi-me, disse ao cocheiro que voltasse pelo mesmo caminho, mas já não encontrei os dois passeando. Para onde teriam ido? Que diriam um ao outro, na noite, com aquele ar confidencial?

            Voltei para casa, segurando com desespero os dez mil francos repentinos que me permitiriam dar tantos pequenos prazeres à Gilberte, a qual, agora, estava decidido a nunca mais ver. É claro que a parada na loja do negociante de antigüidades chinesas me alegrara, pois dera-me a esperança de só ver a minha amiga reconhecida e contente comigo. Mas, se não tivesse parado, se o carro não tivesse ido pela avenida dos Champs-Élysées, não teria encontrado Gilberte e aquele rapaz. Desse modo, um mesmo fato compreende ramais opostos e a desgraça que engendra anula a felicidade que causara. Acontecera-me o contrário do que ocorre com tanta freqüência. Alguém deseja uma alegria e lhe faltam os meios materiais de obtê-la. "É triste-diz La Bruyere -amar sem possuir uma grande fortuna." Não há outro remédio senão tentar liquidar aos poucos o desejo de ter essa alegria. Quanto a mim, ao contrário, obtivera os meios materiais, mas, no mesmo instante, senão por um efeito lógico, ao menos por uma conseqüência fortuita desse primeiro êxito, escapou-me essa alegria. Aliás, parece que sempre deve nos escapar. É verdade que, normalmente, não costuma escapar na mesma noite em que adquirimos o que a torna possível. Em geral, continuamos a nos esforçar e a ter esperança durante algum tempo. Porém a felicidade jamais pode se realizar. Se as circunstâncias chegam a ser ultrapassadas, vencidas, a natureza transporta a luta de fora para dentro e aos poucos faz mudar bastante o nosso coração, a ponto que ele sinta outra coisa diversa da que vai possuir. E, se foi tão rápida a peripécia que o coração não teve tempo de mudar, nem por isso a natureza desesperada por dominar-nos, é verdade que de uma forma tardia, mais sutil; mas igualmente. Então, no último momento, a posse da felicidade nos é roubada, ou melhor, a mesma posse que, com argúcia diabólica, a Natureza encarrega de destruir a felicidade. Tendo fracassado em tudo que fosse do domínio dos fatos e da vida, impossibilidade última; a impossibilidade psicológica, o que a Natureza fenômeno da felicidade não se produz ou cede lugar às mais amargas realidades. Tinha os dez mil francos na mão. Mas eles já não me serviam para nada; aliás, gastei-os mais depressa ainda do que se tivesse mandado flores todos os dias à Gilberte, pois quando baixava a noite sentia-me tão infeliz que não podia ficar em casa e ia chorar nos braços de mulheres a quem não amava. Já não desejava esforços para agradar Gilberte; agora, voltar à casa de Gilberte só poderia aumentar meu sofrimento. Mesmo tornar a vê-la, o que me parecera tão delicioso na véspera, hoje não me bastaria. Pois ficaria preocupado todas as horas que estivesse longe dela. Tal é a razão por que, quando uma mulher nos causa um mágoa, muitas vezes sem sabê-lo, aumenta seu domínio sobre nós, mas igualmente nossas exigências a seu respeito. Pelo mal que nos causou, a mulher cada vez mais, duplica nossas cadeias, mas também aquelas cadeias que até nos pareciam suficientes para prendê-la de tal forma que nos sentíssemos tolos. Na véspera, se não julgasse aborrecer Gilberte, teria me contentado em conceder algumas raras entrevistas, que agora já não me satisfariam e que substituíram as condições bem diversas. Pois no amor, ao contrário do que se passa: combates, quanto mais somos vencidos mais duras condições impomos; deixar de agravá-las, se, todavia, estivermos em situação de as exigir. Não era o caso quanto a Gilberte. Assim, primeiro preferi não voltar à casa de sua mãe. Continuava a dizer para mim mesmo que Gilberte não me amava, que há muito disso, que podia revê-la se quisesse e, se não quisesse, esquecê-la com rapidez. Essas idéias porém, como um remédio que é inócuo diante de certas afecções, tinham qualquer eficácia contra aquelas duas linhas paralelas que eu revia quando, lembrava de Gilberte e do rapaz, avançando devagar pela avenida Champs-Élysées. Era um novo mal, que também acabaria por se deteriorar, imagem que um dia se apresentaria a meu espírito inteiramente depurada do que possuía de nocivo, como esses venenos mortais que a gente manuseia em perigo, como um pouco de dinamite junto à qual podemos acender o sem medo de explosão. Enquanto esperava, em mim havia uma outra pessoa que lutava poderosamente contra essa força malsã; que me representava invariado o passeio de Gilberte ao crepúsculo; para quebrar os assaltos sucessivos da memória, trabalhava com eficiência a minha imaginação, em sentido com a primeira dessas duas forças, é claro que continuava a me mostrar os dois passeantes da avenida dos Champs-Élysées, oferecendo-me outras imagens desagradáveis, extraídas do passado: por exemplo, Gilberte dando de ombros quando sua mãe lhe pedia que ficasse comigo. Porém a segunda força, operando no plano das minhas esperanças, desenhava um futuro mais aprazivelmente amplo do que aquele pobre passado em suma tão restrito. Por um minuto em que revia Gilberte de mau humor, quantos outros não existiam em que eu fantasiava os passos que ela daria para nossa reconciliação, talvez até para o nosso noivado! É verdade que semelhante força de imaginação, dirigida ao futuro, era extraída toda do passado. À medida que se apagasse todo o meu aborrecimento pelo fato de Gilberte ter dado de ombros, diminuiria também a recordação de seu encanto; recordação que me fazia desejar que ela voltasse para mim. Mas achava-me ainda muito longe dessa morte do passado. Continuava sempre a amar aquela a quem de fato julgava detestar. Cada vez que me via bem penteado, de bom aspecto, gostaria que ela estivesse presente. Sentia-me irritado com o desejo, manifestado por muitas pessoas àquela época, de me receberem e a cujas casas me recusava a ir.

            Houve uma cena em casa porque não acompanhei meu pai a um jantar oficial, onde estariam os Bontemps com sua sobrinha Albertine, mocinha que era quase uma criança ainda. Os diferentes períodos de nossa vida se sobrepõem assim uns aos outros. Recusamos desdenhosamente, por causa de quem amamos e que um dia nos será indiferente, conhecer a que hoje nos é indiferente; que amanhã haveremos de amar e que talvez pudéssemos, se tivéssemos concordado em conhecê-la, amar mais cedo, e que, assim, teria abreviado nossos atuais sofrimentos, é claro que substituindo-os por outros. Os meus iam se modificando. Espantava-me verificar, no fundo de mim mesmo, um sentimento num dia, no dia seguinte um outro, geralmente inspirados por uma esperança ou por um temor em relação a Gilberte. A Gilberte que trazia dentro de mim. Tive de concordar que a outra, a de verdade, talvez fosse bem diversa desta, ignorava todos os lamentos relativos a ela e provavelmente pensava muito menos em mim não apenas do que eu nela, mas nem mesmo como a fazia pensar em mim, quando estava a sós em conversa com minha Gilberte imaginária, querendo descobrir quais seriam seus propósitos a meu respeito, fantasiando-a desse modo, com a atenção sempre voltada para mim.

            Nesses períodos em que, sempre se enfraquecendo, a mágoa persiste, é necessário distinguir entre a que nos causa o pensamento constante na própria pessoa, e a que certas lembranças reavivam, uma frase infeliz pronunciada, um verbo empregado numa carta recebida. Reservando-nos para descrever por ocasião de um amor futuro as formas diversas do desgosto, diremos que, desses dois, o primeiro é infinitamente menos cruel que o segundo. Isto se deve a que a nossa opção da pessoa, vivendo sempre em nós, é embelezada com a auréola que não tivemos a lhe emprestar e se reveste, senão das freqüentes doçuras da esperança, ao menos da tranqüilidade de uma tristeza permanente. (Aliás, convém na imagem de uma pessoa que nos faz sofrer ter pouco espaço nessas composições que agravam um desgosto de amor, prolongando-o e atrapalhando sua cura; em certas moléstias a causa é desproporcional em relação à febre constante de lentidão da entrada em convalescença.) Mas, se a idéia da pessoa a quem recebe o reflexo de uma inteligência em geral otimista, o mesmo não está nessas lembranças especiais, essas frases infelizes, essa carta hostil (ainda tivesse recebido de Gilberte nenhuma que o fosse); dir-se-ia que a própria vive naqueles fragmentos, contudo tão restritos, e com uma força que longe de possuir na idéia habitual que formamos dela inteira. Não esquecemos a carta como a imagem do ser amado, numa nostalgia calma e melancólica, lemo-la, devoramo-la na terrível angústia com que nos comprime uma imagem inesperada. A formação desses tipos de desgostos é bem diversa; eles vieram de fora e foi pelo caminho do mais cruel de sofrimento que atingiram coração. A imagem da nossa amiga, imagem que julgamos antiga e autêntica, na realidade é refeita por nós várias vezes. A lembrança cruel não contem essa imagem restaurada, pertence a outra época, é uma das raras testemunhas de um passado monstruoso. Mas, como esse passado continua a existir, em nós mesmos, porque agradou-nos substituí-lo por uma maravilhosa felicidade; um paraíso onde todos estarão reconciliados, tais lembranças e tais cartas de advertência da realidade deveriam nos fazer sentir, pelo mal súbito, o quanto estamos dela afastados nas loucas esperanças de nossa vida cotidiana. Não é que essa realidade deva permanecer sempre a mesma, embora ocorra às vezes. Na nossa vida há muitas mulheres que nunca procuramos que responderam muito naturalmente ao nosso silêncio, de modo nenhum reducional, mas por um outro silêncio análogo. Unicamente, estas, como não as amamos não contamos os anos passados longe delas e, quando raciocinamos, eficácia do isolamento, esse exemplo, que a invalidaria, é por nós de como aqueles que acreditam em pressentimentos desdenham todos os cálculos. que estes não se confirmam. Mas enfim, o afastamento pode ser eficaz. O desejo e a apetência de novo acabam renascendo nesse coração que hoje nos despreza. Apenas é preciso dar tempo ao tempo.

            Ora, nossas exigências, no que concerne ao tempo são menos exorbitantes que as que o coração exige para mudar. Primeiramente é o que cedemos com a maior dificuldade, pois nosso sofrimento é cruel há pressa em vê-lo acabar. Depois, esse tempo, de que precisa o outro para mudar, servirá ao nosso também para mudar, de modo que quando nos propomos se tornar acessível terá deixado de ser um objetivo para disso, a mesma idéia de que será acessível, de que não haverá felicidade; e possamos atingir quando já não nos seja uma felicidade; pois comporta apenas uma parte da verdade. Alcança-nos quando já nos tornamos indiferentes. porém, justamente essa indiferença nos fez menos exigentes e nos permite acreditar, retrospectivamente, que a felicidade nos enfeitiçou numa época em que talvez se nos afigurasse muito incompleta. Não somos muito exigentes, nem bons juízes, acerca de coisas que não nos interessam. A gentileza de uma pessoa a quem já não amamos e que ainda parece excessiva à nossa indiferença, talvez estivesse bem longe de bastar ao nosso amor. Essas palavras ternas, à oferta de um encontro, pensamos no prazer que nos teriam causado e não em todas aquelas que desejaríamos ver imediatamente seguidas e cuja realização talvez tivéssemos impedido com essa avidez. De forma que não é certo que a ventura sobrevindo tarde demais, quando já não podemos gozá-la, quando já não amamos, seja exatamente a mesma ventura cuja falta outrora nos fez tão infelizes. Só uma pessoa poderia decidir a respeito, o nosso eu de antigamente; já não existe; e sem dúvida bastaria que retornasse para que, idêntica ou não, a felicidade se desvanecesse.

            Enquanto esperava essas realizações, afinal já sem motivo, de um sonho em que não mais acreditava, à força de inventar, como no tempo em que mal conhecia Gilberte; palavras, cartas em que ela implorava o meu perdão, confessava nunca haver amado alguém além de mim, e me pedia em casamento, uma série de doces imagens incessantemente recriadas acabaram por ocupar mais lugar em meu espírito que a visão de Gilberte e do rapaz, visão que não era mais alimentada por coisa alguma. E talvez desde então tivesse voltado à casa da Sra. Swann, não fosse um sonho que tive; onde um de meus amigos, entretanto para mim desconhecido, agia comigo com a maior falsidade e achava que eu fazia o mesmo com ele. Bruscamente acordado pelo sofrimento que o sonho me causava, e vendo que a dor persistia, pensei de novo nele, procurei me lembrar quem seria o amigo que vira dormindo e cujo nome espanhol já não era distinguível. Fazendo ao mesmo tempo o papel de José e do Faraó, passei a interpretar meu sonho.

            Sabia que em muitos sonhos não se deve ligar à aparência das pessoas, que podem estar disfarçadas e terem trocado seus rostos, como esses santos mutilados das catedrais que os arqueólogos ignorantes andaram refazendo, pondo sobre o corpo de um a cabeça de outro, e misturando os atributos e os nomes. Os nomes que as pessoas adotam nos sonhos podem nos levar a erros. A pessoa a quem amamos deve ser nele reconhecida apenas pela intensidade da dor que experimentamos. E a minha dor me disse que, transformada em rapaz durante o sonho, a pessoa cuja falsidade recente ainda me causava mal era Gilberte. Lembrei-me então que, da última vez que a vira, no dia em que sua mãe a impedira de ir a uma matinê dançante, Gilberte, sincera ou fingidamente, negou-se a crer na retidão de minhas intenções, rindo de forma estranha. Por associação, tal lembrança trouxe outra à memória. Muito tempo antes, foi Swann quem não quis acreditar na minha sinceridade, ou que eu fosse um digno amigo para Gilberte. Inutilmente lhe escrevera. Gilberte trouxera a carta e devolvera com o mesmo riso incompreensível. De fato, devolvera logo; lembrei-me de toda a cena por trás do bosquezinho. Fazemo-nos moralistas quando somos infelizes. A antipatia atual de Gilberte surgiu-me como um castigo infligido pela vida devido à conduta que tivera no dia. A gente crê evitar os castigos, porque evita os perigos tendo muito cuidado ao atravessar a rua. Mas há castigos internos. O acidente chega de onde nem se imagina, de dentro, do coração. As palavras de Gilberte: "Se quiser, continue a lutar" me causaram horror. E imaginava-a em situação idêntica, em sua rouparia, com o rapaz que vira em sua companhia na avenida dos Champs. Assim como fora tão insensato há tempos, ao acreditar que estava tranqüilamente instalado nos domínios da felicidade, também o era hoje, quando já desistira feliz, ao ter como seguro que pelo menos me achava tranqüilo e que assim mereceria. Pois, enquanto o nosso coração acolhe de modo permanente a imagem de outra criatura, não é apenas a nossa felicidade que pode a qualquer momento ser destruída; quando se desvanece tal felicidade, depois de muito sofrer, tão tentador e precário como o fora a própria felicidade é o sossego. Meu sossego por regressar, pois o que penetrou no nosso espírito, modificando nosso moral, nossos desejos, graças a um sonho, também pouco a pouco se dissipa das que são prometidas a permanência e a duração, nem mesmo à dor. Aliás, sofrer pelo amor são, como se poderia dizer de certos doentes, seu próprio contágio. Como só obtêm consolo do próprio ser que causa a sua dor e essa dor já é emanação dele, é nela mesma que acabam por encontrar um remédio. A criatura amada lhes revela, num dado momento, esse remédio, pois, a melhoria revolvem dentro de si mesmos, essa dor lhes mostra um outro aspecto da que perderam, ou tão odiosa que nem mesmo sentem mais desejo de vê-la, antes de gozar sua presença; seria necessário fazê-la sofrer, ou então dar-lhe a mesma doçura que a dor lhe empresta é considerada um mérito da qual se tira um motivo de esperança.

            Mas, conquanto se apaziguasse em sofrimento que voltara a despertar, não quis retornar à casa da Sra. Swann muito raramente. Primeiro porque, nas pessoas que amam e não são escondidos, o sentimento de espera - ainda que de espera inconfessa - em que transforma por si mesmo, embora de aparência idêntica, faz suceder a um um outro exatamente contrário. O primeiro era a conseqüência, o reflexo de antes dolorosos que nos tinham transtornado. A expectativa do que poder está mesclada de terror, tanto mais que desejamos nesse momento, de novo nos acontece da parte da pessoa amada, agir por conta própria e não também qual será o êxito de semelhante ato, que, uma vez cumprido, impede a ação de outro. Em breve, porém, sem que nos apercebamos de tal, nossa vida, que continua, já não é determinada, como vimos, pela recordação que sofremos mas pela esperança de um futuro imaginário. Daí então, agradável. Além disso, a primeira, durando um pouquinho, habituou-nos a viver na expectativa. O sofrimento que sentimos nos nossos últimos encontros ainda sobrevive em nós, mas já amortecido. Não temos pressa em renová-lo, tanto mais que agora já não saberíamos o que pedir. Possuir um pouco mais da mulher amada só faria tornar mais necessário aquilo que não possuímos e que, apesar de tudo, permaneceria sendo algo irredutível, visto que nossas necessidades se originam de nossas satisfações.

            Por fim, uma última razão se acrescentou posteriormente a esta para fazer com que cessasse inteiramente minhas visitas à Gilberte Swann. Essa razão, mais tardia, não era que já houvesse esquecido Gilberte, mas que tentasse esquecê-la mais depressa. É claro que, desde que minha grande mágoa acabara, as visitas à casa da Sra. Swann tinham voltado a ser, para o que me restava de tristeza, o calmante e a distração que me foram preciosos no começo. Mas o motivo da eficácia do primeiro causava também a inconveniência do segundo, isto é, a recordação de Gilberte estava intimamente associada a essas visitas. A distração só me seria útil caso tivesse sido posta em luta com um sentimento que a presença de Gilberte já não alimentava, com pensamentos, interesses e paixões com que Gilberte nada tivesse a ver. Esses estados de consciência, aos quais o ser amado permanece estranho, ocupam então no espírito um lugar que, por menor que seja a princípio, já é vedado ao amor que enchia toda a alma. É preciso tentar nutrir, fazer crescer esses pensamentos, enquanto declina o sentimento que já não passa de uma lembrança, de modo que os elementos novos introduzidos no espírito lhe contestem, lhe arranquem uma porção cada vez maior da alma, e finalmente roubem-na toda. Percebia eu que era essa a única maneira de matar um amor; era bastante jovem e corajoso para tentar fazê-lo, para assumir a mais cruel das dores, a que nasce da certeza de que, mesmo que demoremos algum tempo, chegará o dia em que atingiremos nosso objetivo. A razão que expunha agora em minhas cartas a Gilberte, acerca da recusa em vê-la, era a alusão a um misterioso mal-entendido, completamente fictício, que teria ocorrido entre mim e ela e sobre o qual primeiro havia esperado que Gilberte me desse explicações. Mas na verdade nunca, mesmo nas mais insignificantes relações da vida, são solicitados esclarecimentos por um correspondente que sabe que uma frase obscura, mentirosa, incriminadora, ali está justamente para que ele proteste, e que se dá por muito feliz em ver que, desse modo, possui e mantém a iniciativa e o domínio das operações. O mesmo ocorre nas mais carinhosas relações, onde o amor tem tanta eloqüência e a indiferença tão pouco de curiosidade. Não tendo Gilberte posto em dúvida nem procurado esclarecer o mal-entendido, ele se tornou para mim algo de real a que me referia em todas as cartas. E há nessas situações falseadas, na afetação de frieza, um sortilégio que nos faz perseverar a força de escrever: "Desde que nossos corações se desuniram"; para que Gilberte me respondesse: "Mas não estão desunidos, expliquemo-nos"; acabara por me convencer de que o estavam. Sempre repetindo: "A vida mudara para nós, mas não apagará o sentimento que tivemos", desejando ouvi-la dizer: "Mas nada mudou, esse sentimento está mais forte que nunca''; vivia com a idéia de que a vida de fato mudara, e que conservaríamos a recordação do sentimento que já não existia, como certas pessoas nervosas por terem sofrido uma enfermidade acabam por ficar sempre doentes. Agora, todas as vezes que tinha de escrever a Gilberte, reportava-me a essa mudança imaginária, cuja ausência, de agora em diante tacitamente reconhecida pelo silêncio que ela observaria a tal respeito em suas respostas, subsistiria entre nós. Depois, Gilberte deixou importar com rejeições. Ela própria adotou meu ponto de vista; e, como nos grandes oficiais em que o chefe de Estado que é recebido retoma aos poucos algumas expressões que acaba de empregar o chefe de Estado que o recebe, as vezes em que escrevia a Gilberte: "A vida pôde nos separar, a recordação em que nos conhecemos há de permanecer", ela não deixava de responder, pôde nos separar, não poderá nos fazer esquecer as boas horas que nos sempre caras" (ficaríamos muito embaraçados para dizer por que "a vida separara, qual a mudança que se produzira). Eu já não sofria muito. No entanto, o dia em que, numa carta, lhe dizia que soubera da morte da nossa velha vendedora de balas dos Champs-Élysées, ao acabar de escrever estas palavras: "Imagino que isto te causou pesar. Em mim, veio agitar muitas lembranças", não pude me desmanchar em lágrimas ao ver que falava no passado, e, como já estava morto quase esquecido, daquele amor em que, apesar de tudo, jamais, pensar como se fosse vivo, podendo ao menos renascer. Nada mais que essa correspondência entre amigos que não queriam se ver mais. As vezes Gilberte tinha a delicadeza das que eu escrevia aos indiferentes e me confessava as mesmas aparentes marcas de afeto, tão suaves para mim por virem dela. Aliás, aos poucos, toda recusa minha em vê-la me era menos como ela se me tornasse menos cara, minhas lembranças dolorosas já não tinham força bastante para destruir, no seu retorno incessante, a formação do prazer que sentia em pensar em Florença, em Veneza. Nesses momentos, lamentava ter desistido a entrar para a carreira diplomática e de ter-me construído uma sedentária, a fim de não me afastar de uma jovem que já não mais esquecera quase por completo. A gente constrói a vida para uma pessoa, enfim podemos recebê-la em nossa vida, essa pessoa não vem, depois nós acabamos vivendo prisioneiros na morada que só a ela se dedicou.

            Quando se aproximou a primavera, afastando o frio, no tempo dos santos de gelo e das chuvas de granizo da Semana Santa, como a Sra. Swann achasse que a casa estava muito gelada, aconteceu várias vezes vê-la receber as visitas envolta em peles, as mãos e os ombros friorentos desaparecendo sob o branco e brilhante tecido de um imenso regalo e de uma capa, ambos de marta-zibelina, que não retirara ao entrar e que apresentavam o aspecto das últimas nevascas de inverno, mais persistentes que as outras e que nem o calor do fogo nem o avanço da estação haviam logrado derreter. A verdade integral dessas glaciais semanas, contudo já florescentes, era-me sugerida naquele salão, aonde em breve não voltaria mais, por outras brancuras mais inebriantes, a das "bolas-de-neve", por exemplo, que reuniam no alto de seus grandes caules despidos como os arbustos lineares dos pré-rafaelitas, seus globos parcelados mas unidos, alvos como anjos anunciadores, e que eram envoltos num aroma de limão. Pois a castelã de Tansonville sabia que abril, mesmo gelado, não é destituído de flores; que o inverno, a primavera e o verão não são separados por divisões tão herméticas como é levado a crer o morador dos bulevares que, até os primeiros calores, imagina que o mundo é composto somente de casas desabrigadas sob a chuva.

            Que a Sra. Swann se contentasse com as remessas que lhe fazia o seu jardineiro de Combray, e que, por intermédio de sua florista "oficial", não preenchesse as lacunas de uma evocação insuficiente com o auxílio de empréstimos tomados à precocidade mediterrânea, longe estou de o pretender e não me preocupava com isso. Para sentir a nostalgia do campo, bastava-me que, junto com as nevadas do regalo da Sra. Swann, as bolas-de-neve (que não tinham quem sabe outro objetivo, na idéia da dona da casa, senão o de compor, aos conselhos de Bergotte, uma "sinfonia em branco maior" com suas mobílias e sua toalete) me recordassem que o encantamento da Sexta-feira Santa configura um milagre natural, a que poderíamos assistir todos os anos se fôssemos sensatos; ajudadas pelo perfume ácido e capitoso das corolas de outras espécies, cujos nomes ignorava e que tantas vezes me haviam feito parar nos meus passeios de Combray, tornassem o salão da Sra. Swann tão virginal, tão candidamente florido sem nenhuma folha, tão sobrecarregado de aromas autênticos como a pequena ladeira de Tansonville.

            Mas já era demais que aquilo me fosse lembrado. Sua recordação arriscava alimentar o pouco que subsistia do meu amor por Gilberte. Assim, embora já não sofresse absolutamente durante essas visitas à Sra. Swann, tornei-as mais raras ainda e procurei vê-la o menos possível. Quando muito, como continuasse a não deixar Paris, concedia-me alguns passeios com ela. Enfim haviam voltado os dias findos, juntamente com o calor. Como sabia que antes do almoço a Sra. Swann saía por uma hora e andava um pouco pela avenida do Bois, perto da Étoile, e do mal que então se denominava "clube dos Prontos" por causa das pessoas que ficavam a olhar os ricos a quem só conheciam de nome - obtive de meus pais que no domingo (pois não estava livre a essa hora nos dias úteis) poderia almoçar depois deles, à uma e quinze, e ir dar uma volta antes. Nunca faltei um dia naquele mês de maio, visto que Gilberte estava no campo com umas amigas. Chegava ao Arco do Triunfo por volta do meio-dia. Ficava à espreita na avenida, sem deixar de olhar a esquina da ruazinha por onde a Sra. Swann, precisava andar alguns metros, vinha de sua casa. Como já fosse hora de passeantes voltarem para almoçar, restavam poucos, em sua maioria, pessoas elegantes. De súbito, sobre a areia de uma alameda, tarda, atrasada, como a mais bela flor, e que só se abriria ao meio-dia, aparecia a Sra. Swann, desabrochando a seu redor uma toalete sempre diversa, mas que recordo principalmente cor de malva; depois alçava e desenrolava sobre um longo momento de sua mais completa irradiação, o pavilhão de seda de uma sombrinha, do mesmo matiz que o desfolhar das pétalas de seu vestido. Séquito a rodeava; Swann, quatro ou cinco homens de clube que tinham ido de manhã ou que ela havia encontrado no caminho; e a negra ou cinzenta ração obediente, executando movimentos quase mecânicos de um quadro em torno de Odette, davam a essa mulher, que só possuía intensidade no aspecto de estar olhando à sua frente, dentre todos aqueles homens, como a janela da qual se houvesse aproximado, fazendo-a surgir, frágil, sem nudez de suas cores tenras, como a aparição de um ser de uma espécie diferente, uma raça desconhecida, e de um poder quase guerreiro, graças ao que ela passava, sozinha, a sua múltipla escolta. Sorridente, feliz pelo bom tempo com o sol que ainda não incomodava, tendo o ar de segurança e calma; como aquele que rematou sua obra e não se preocupa mais com o resto, certa de que sua obra, mesmo que os transeuntes vulgares não a apreciassem era a mais bela de todas, ela a vestia para si mesma e para os amigos, com naturalidade, sem ser exagerada, mas também sem desprendimento completo, não impedindo pequenos laços de fita da blusa e da saia flutuassem de leve diante dela criaturas cuja presença não ignorava e às quais permitia, com indulgência, entregassem a seus brinquedos, conforme seu ritmo próprio, contanto que seguissem a marcha, e até sobre a sombrinha malva que muitas vezes trazia fechada ao chegar, ela deixava cair por um momento, como sobre um buquê de violetas de Parma, seu olhar feliz e tão doce que, mesmo quando não se mostrava mais a seus amigos e sim a um objeto inanimado, dava a impressão de sorrir. Assim reservava, e fazia sua toalete ocupar, aquele intervalo de elegância, espaço e necessidade os homens, a quem a Sra. Swann falava com mais intimidade, respeitavam não sem uma certa deferência de profanos, uma confissão própria ignorância e sobre o qual reconheciam à sua amiga competência e afeição, como a um doente sobre os cuidados especiais que deve tomar, ou a uma mãe sobre a educação de seus filhos. Não menos do que pela corte rodeava e não parecia ver os passantes, a Sra. Swann, devido à hora tardia em que surgira, evocava aquele apartamento onde havia passado uma manhã tão comprida e para onde precisava voltar em breve para o almoço; parecia indicar sua aproximação com a calma despreocupada de seu passeio, semelhante ao que a gente faz pelo próprio jardim; poder-se-ia dizer que, daquele apartamento, ela trazia ainda a seu redor a sombra interior e fresca. Mas, devido a tudo isto, sua vista só me fazia acentuar a sensação do ar livre e do calor. Tanto mais que, já persuadido de que, em virtude da liturgia e dos ritos em que a Sra. Swann era profundamente versada, sua toalete estava ligada à estação e à hora por um laço necessário, único, as flores de seu flexível chapéu de palha e as pequenas fitas do seu vestido me pareciam nascer do mês de maio ainda com mais naturalidade que as flores dos jardins e dos bosques; e, para conhecer o novo tumulto da estação, não precisava erguer os olhos além da sua sombrinha, aberta e estendida como um outro céu mais próximo, clemente, móvel e azul. Pois esses ritos, se eram soberanos, empregavam sua glória, e em conseqüência a Sra. Swann empregava a sua, em obedecer condescendentemente à manhã, à primavera, ao sol, os quais não me pareciam muito lisonjeados de que uma mulher tão elegante porfiasse em não ignorá-los por causa deles, escolhesse um vestido de tecido mais claro, mais leve, fazendo pensar, devido à abertura do colo e das mangas, na transpiração do pescoço e dos pulsos, que, enfim, tivesse para com eles todas as atenções de uma grande dama que, tendo-se rebaixado alegremente para ir ver no campo pessoas comuns e que todo mundo, até o vulgo, conhece, nem ao menos deixa de vestir, especialmente para esse dia, um traje campesino. Saudei a Sra. Swann à sua chegada; ela me fez parar e me disse sorrindo:

            -Good morning. - Demos alguns passos. E eu compreendia que era por si mesma que ela obedecia àqueles cânones conforme os quais se vestia, como a uma sabedoria superior da qual fosse a grã-sacerdotisa; pois se lhe ocorria, devido ao calor, entreabrir ou até mesmo tirar a sua jaqueta, dando-a a mim para que a carregasse, e que ela achara poder conservar abotoada, eu descobria na blusinha mil detalhes de execução que poderiam muito bem ter ficado despercebidos como as partes de orquestra a que os compositores deram o maior cuidado, embora jamais devam chegar aos ouvidos do público; ou nas mangas da jaqueta dobrada no meu braço eu via, observava longamente, por prazer ou amabilidade, um pormenor refinado, uma faixa de delicioso matiz, uma cetineta cor de malva normalmente oculta aos olhos de todos, mas tão delicadamente trabalhadas que as partes externas, como essas esculturas góticas de uma catedral, dissimuladas no reverso de uma balaustrada, a oitenta pés de altura, tão perfeitas como os baixos-relevos do grande pórtico mas que ninguém nunca vira antes que, ao acaso de uma um artista, para dominar toda a cidade, tivesse permissão para ir passear no céu, entre as duas torres.

            O que aumentava a impressão de que a Sra. Swann passeava pela do Bois como na alameda de um jardim que lhe pertencesse era para pessoas que ignoravam os seus hábitos de footing que tivesse vindo de carro; que a seguisse, ela que desde o mês de maio estava acostumada a passar com a atrelagem mais cuidada e a mais elegante libré de Paris, languidamente sentada como uma deusa, no morno ar livre de uma imensa de oito molas. A pé, a Sra. Swann, sobretudo com o caminhar vagaroso, dava a impressão de ter cedido a uma curiosidade, de ter cometido elegante infração às regras do protocolo, como esses soberanos que, acompanhados pela admiração um tanto escandalizada de um que não se atreve a formular uma crítica, saem do camarote durante um gala e visitam o saguão, misturando-se aos outros espectadores durante minutos. Assim, entre a Sra. Swann e a multidão, esta sentia as barreiras certo tipo de riqueza e que lhe parecem ser as mais intransponíveis de Saint-Germain também tem as suas; porém falam menos aos de imaginação dos "duros". Estes, ao lado de uma grande dama mais fácil de ser confundida com uma pequena burguesa, menos distanciada; não sentirão a sua desigualdade, quase a sua indignidade, que demonstram de uma Sra. Swann. É claro que as mulheres desse gênero não ficam, como impressionadas com o brilhante aparato que as rodeia, não lhe dão maioria mas é de tanto estarem acostumadas àquilo, ou seja, por terem acabado portanto mais natural e necessário, é que julgam os outros conforme são menos iniciados nesses hábitos de luxo; de modo que descobrem nos outros, inteiramente e fácil de verificar, demorada para adquirir, difícil de compensar, se essas colocam um transeunte no degrau mais inferior, tal ocorre da mesma forma lhe aparecem elas no mais superior, a saber, imediatamente, à primeira visão de apelação. Talvez essa classe social particular que então se compunha de como Lady Israels, mesclada às da aristocracia, e a Sra. Swann, que freqüentá-las um dia, essa classe intermediária, inferior ao Saint-Germain já que o cortejava, mas superior ao que não pertence tinha a particularidade de que, já estando afastada do mundo dos ricos a era riqueza; mas uma riqueza tornada maleável, obediente a uma destinação de pensamento artístico, ouro flexível, poeticamente cinzelado e que sabe muitas vezes essa classe, ao menos com o mesmo caráter e o mesmo fascínio. Aliás as mulheres que dela faziam parte, hoje não mais teriam aquilo como primeira condição de seu reinado, pois, com a idade, quase todas perdem beleza. Ora, tanto como do alto de sua nobre riqueza, era do auge do seu verão maduro e ainda tão saboroso que a Sra. Swann, majestosa, sorridente e boa, avançando pela avenida do Bois, via rolarem os mundos, como Hipácia, sob o vagaroso caminhar de seus pés. Os rapazes que passavam olhavam-na com ansiedade, incertos se suas vagas relações com ela (tanto mais que, tendo sido apresentados uma única vez a Swann, receavam que ele não os reconhecesse) seriam suficientes para os autorizar a cumprimentá-la. E era tremendo diante das conseqüências que se decidiam, indagando a si próprios se o seu gesto, audaciosamente provocador e sacrílego, atentando contra a inviolável supremacia de uma casta, não iria desencadear catástrofes ou fazer descer o castigo de um deus. Esse gesto acionava tão-somente, como um movimento de relojoaria, a gesticulação de pequenos personagens saldadores que não eram outros senão os da comitiva de Odette. A começar por Swann, o qual erguia sua cartola forrada de couro cru, com graça risonha, aprendida no faubourg Saint-Germain, mas à qual já não se aliava a indiferença que tivera antigamente, e que fora substituída (como se, em certa medida, ele tivesse absorvido os preconceitos de Odette) ao mesmo tempo pelo tédio de ter de retribuir à saudação de alguém tão mal-vestido e pela satisfação de que sua mulher conhecesse tanta gente; sentimento misto que traduzia dizendo aos amigos elegantes que o acompanhavam:

            - Mais um ainda! Palavra que não sei onde Odette vai descobrir toda essa gente! - Entretanto, tendo respondido com um aceno de cabeça ao passante alarmado já fora do alcance da vista, mas cujo coração ainda batia, a Sra. Swann se virava para mim:

            -Então - dizia - acabou? Você não voltará nunca mais para ver Gilberte? Estou contente por ser uma exceção e que não tenha me "cortado" sem cerimônia. Gosto muito de vê-lo, mas gostava também da influência que exercia sobre minha filha. Creio que ela também lamenta muito. Enfim, não quero importuná-lo, pois aí é que você não se aproximaria mais nem de mim! -             - Odette, Sagan está dando bom-dia! - observava Swann à mulher. E, com efeito, o príncipe fazendo, como numa apoteose de teatro, de circo, ou num quadro antigo, seu cavalo se postar de frente, dirigia a Odette uma grande saudação teatral, meio alegórica, onde se amplificava toda a cortesia cavalheiresca do grão-senhor inclinando o seu respeito diante da mulher, ainda que encarnada numa mulher que sua mãe ou irmã não poderiam freqüentar. De resto, a todo momento, reconhecida no fundo da transparência líqüida e do verniz luminoso que sobre ela derramava a sua sombrinha, a Sra. Swann era saudada pelos últimos cavaleiros atrasados, como que filmados a galope sobre o ensolaramento branco da avenida, homens de estirpe; cujos nomes, célebres para o público - Antoine de Castellane, Adalbert Montmorency, e tantos outros eram para a Sra. Swann nomes familiares de amigos. E, como a duração média da vida -a longevidade relativa- é muito maior quanto às lembranças das sensações poéticas do que relativamente aos desgostos dolorosos, tanto tempo depois de se terem apagado as mágoas que então sentia por causa de Gilberte, sobreviveu-lhes o prazer que experimento, todas as vezes que desejo ler, numa espécie de quadrante solar, os minutos que decorrem entre quinze e uma hora, no mês de maio, ao me rever conversando assim com a Sra.Swann, debaixo de sua sombrinha, como sob o reflexo de uma lua.

 

            Quando, dois anos mais tarde, chegara a uma quase total indiferença por Gilberte, parti com minha avó para Balbec. Quando experimentava o encantamento de um rosto novo, quando era com o auxílio de outra moça que esperava conhecer as catedrais góticas, os palácios e jardins da Itália, dizia comigo tristemente que o nosso amor, na medida em que significa o amor de uma determinada criatura, talvez não seja algo muito real, pois se associações de fantasias agradáveis ou dolorosas podem uni-lo por algum tempo a uma mulher até nos fazer imaginar que foi inspirado por ela de um modo necessário, em compensação, se nos libertamos voluntariamente, ou contra a

vontade, dessas associações, este amor, como se pelo contrário fosse espontâneo e surgisse apenas de nós, renascesse para se doar a outra mulher. No entanto, no momento daquela partida para Balbec e durante os primeiros tempos de minha estada, minha indiferença ainda era apenas intermitente. Muitas vezes (visto que nossa vida é muito pouco cronológica, tantos anacronismos interferindo na seqüência dos dias), eu estava vivendo naqueles dias em que amava Gilberte, anteriores à véspera ou à antevéspera. Então, não vê-la mais era-me de súbito muito doloroso, como o fora naquele tempo. O eu que a havia amado, já quase inteiramente substituído por um outro, ressurgia, e era-me restituído com mais freqüência por algo fútil do que por uma coisa importante. Por exemplo, para antecipar a minha estada na Normandia, ouvi em Balbec um desconhecido, com quem cruzara no molhe, dizer:

            -A família do diretor do ministério dos Correios...

            Ora (como não sabia então a influência que essa família iria ter na minha vida), essa frase deveria me parecer ociosa, porém me causou um vivo sofrimento, o sofrimento que em mim sentia um eu, abolido em grande parte há muito tempo, por estar separado de Gilberte. É que jamais voltara a pensar numa conversa que Gilberte tivera com o pai na minha presença, relativamente à família do "diretor do ministério dos Correios". Ora, as recordações de amor não fazem exceção às leis gerais da memória, elas próprias regidas pelas leis mais gerais do hábito. Como este enfraquece tudo, o que nos recorda melhor uma criatura é justamente o que tínhamos esquecido, porque era insignificante e assim lhe havíamos deixado toda sua força. Porque a melhor parte de nossa memória está fora de nós, numa brisa chuvosa, num cheiro de quarto fechado, ou no odor de uma primeira labareda, em toda parte encontramos de nós mesmos o que nossa inteligência rejeitara, por julgá-lo a última reserva do passado, a melhor, aquela que, quando todas as nossas lágrimas parecem ter secado, sabe nos fazer chorar ainda. Fora de nós? Erre para melhor dizer, mas escondida a nossos próprios olhares, num esquecimento mais ou menos prolongado. É somente graças a tal esquecimento que pode de vez em quando, reencontrar o ser que já fomos, colocar-nos face a face àquela como o era essa criatura, sofrer de novo, porque não somos mais nós mas ele, e é quem amava a pessoa que agora nos é indiferente. Em plena luz da mente habitual, as imagens do passado empalidecem aos poucos, vão se apagando, resta mais nada delas, não as encontraremos nunca mais. Ou melhor, não as traremos mais se algumas palavras (como "diretor do ministério dos Correios) não tivessem sido cuidadosamente trancadas no ouvido, assim como se na Biblioteca Nacional o exemplar de um livro que, sem isso, se arriscaria não encontrá-lo.

            Porém tal sofrimento e tal rebrotar do amor por Gilberte não foram longos que os que são sonhados, e desta vez ao contrário porque, em Balbec; hábito antigo já não estava ali para fazê-los durar. E, se tais efeitos dó parecem contraditórios, é que ele obedece a leis múltiplas. Em Paris, eu estava cada vez mais indiferente a Gilberte, graças ao hábito. A mudança de hábito, é, a

momentânea cessação do Hábito, rematou a obra do Hábito quando parti! Balbec. Ele se enfraquece mas se estabiliza, traz a desagregação porém indefinidamente. Cada dia, desde muitos anos, eu vinha decalcando, bem o meu estado de alma sobre o da véspera. Em Balbec, uma cama nova com cabeceira me traziam todas as manhãs um desjejum bem diverso do de Paris. Devia mais alimentar os pensamentos de que se havia nutrido o meu amor por Gilberte; existem casos (é verdade que muito raros) em que o sedentarismo banaliza os dias, e o melhor modo de ganhar tempo é mudar de local. Minha vida em Balbec foi como a primeira saída de um convalescente que só espera por perceber que está curado.

            Sem dúvida, esta viagem a faríamos hoje de automóvel, achando que desse modo, se tornaria mais agradável. Ver-se-á que, realizada assim, seria mais verdadeira em certo sentido, visto que seguiríamos mais de perto, numa intimidade mais estreita, as diversas gradações pelas quais se muda a superfície dá enfim o prazer específico da viagem não está em poder pôr-se a caminho é quando nos sentimos cansados; é tornar a diferença entre a partida e a chegada tão insensível mas tão profunda quanto possível, em senti-la na sua rota intacta, bem como era no nosso pensamento quando nossa imaginação do lugar em que vivíamos até o âmago do lugar desejado, num salto, parecia menos miraculoso por franquear uma distância do que por unir as dualidades distintas da terra, levando-nos de um para outro nome, e que esquece (melhor que um passeio, onde não existe mais chegada, pois a gente vai onde quiser) a misteriosa operação que se cumpria nesses lugares as estações, que, por assim dizer, não fazem parte da cidade mas contêm a essência de sua personalidade, do mesmo modo que lhe mostram o nome numa tabuleta indicadora.

            Mas o nosso tempo, em todas as coisas, tem a mania de só querer mostrar aquilo de que se cerca na realidade, e, assim, suprimir o essencial, o ato do espírito que as isolou dessa realidade. "Apresenta-se" um quadro no meio de móveis, de bibelôs, de tapeçarias da mesma época, cenário insípido que a dona-de-casa mais ignorante se esmera em armar, até à véspera, nos hotéis de hoje, passando agora seus dias nos arquivos e bibliotecas, cenário em meio ao qual a obra-prima que se contempla durante o jantar não provoca a mesma alegria embriagadora que só se lhe deve exigir numa sala de museu, a qual simboliza melhor, com sua nudez e seu despojamento de todas as particularidades, os espaços interiores em que o artista se abstraiu para criar.

            Infelizmente, esses lugares maravilhosos de onde a gente parte para um destino longínquo, são igualmente lugares trágicos, pois, se ali se cumpre o milagre em virtude do qual os lugares que ainda não tinham existência senão em nosso pensamento passarão a ser aqueles em que iremos viver, por essa mesma razão é necessário renunciar, ao deixar a sala de espera, a reencontrar logo o quarto familiar onde estávamos há pouco. É preciso perder toda a esperança de voltar a dormir em casa, uma vez que decidimos penetrar no antro emprestado por onde se tem acesso ao mistério, num desses grandes estúdios envidraçados, como o de Saint-Lazare, onde eu fui procurar o trem para Balbec, e que estendia acima da cidade desventurada um desses imensos céus crús e cheios de amontoadas ameaças de drama, semelhantes a certos céus, de uma modernidade quase parisiense, de Mantegna ou de Veronese, e sob os quais só se podia cumprir algum ato solene e terrível como uma partida em trem de ferro ou a ereção da Cruz.

Enquanto me contentara em avistar, do fundo da minha cama em Paris, a igreja persa de Balbec em meio aos flocos de neve da tempestade, meu corpo não fizera qualquer objeção a essa viagem. As objeções começaram apenas quando compreendera que estava de partida e que, na noite da chegada, me conduziriam ao "meu" quarto, que lhe seria desconhecido. Sua revolta foi tão mais profunda quando, na própria véspera da partida, eu soubera que minha mãe não nos acompanharia, pois meu pai, retido no ministério até o momento em que partiria para a Espanha com o Sr. de Norpois, tinha preferido alugar uma casa nos arredores de Paris. Aliás, a contemplação de Balbec não me parecia menos desejável por ter de comprá-la ao preço de um mal-estar; o qual, pelo contrário, me parecia representar e garantir a realidade da impressão que ia procurar, impressão que nenhum espetáculo equivalente teria substituído, nenhum "panorama" que eu pudesse ir ver sem por isso ser impedido até de voltar para dormir em minha cama. Não era a primeira vez que percebia que as pessoas que amam não são as mesmas que desfrutam dos prazeres. Julgava desejar tão profundamente Balbec que o médico espantando-se com meu ar infeliz na manhã da partida, disse:

            -Garanto-lhe que se tivesse a oportunidade de ter apenas oito dias para ir tomar ar fresco num mar, não me faria de rogado. Você há de ver as corridas, as regatas; será ótimo.

            Eu já sabia, e bem antes de ter ouvido a Berma, que, fosse qual fosse o obtido de meu amor, sempre a encontraria ao cabo de uma penosa busca, durante a qual preciso sacrificar o meu prazer a esse bem supremo, em vez de nele achar o prazer.

            Minha avó, naturalmente, concebia nossa partida de modo um tanto diverso. Sempre desejosa, como antigamente, de emprestar aos presentes algo que me dava um caráter artístico, quisera, a fim de me ofertar dessa viagem, a "sensação" um tanto antiga, que seguíssemos o caminho metade por trem e outra de carro, o trajeto que a Sra. de Sévigné percorrera de Paris a "Lorient", passava por Chaulnes e pelo "Pont-Audemer". Porém minha avó fora obrigada a renunciar esse projeto, devido à proibição de meu pai, que sabia que, quando minha avó organizava uma viagem, com o objetivo de tirar dela o maior proveito possível, era inacreditável o que se podia prever de trens perdidos, malas e das dores de garganta e infrações de regulamentos. Mas, ao menos, tinha prazer de pensar que nunca, quando estivéssemos na praia, estaríamos expostos a ser surpreendidos por quaisquer das que a sua querida Sévigné denominava "Ia de carruagem", já que não conheceríamos ninguém em Balbec, pois Legrandin não dera um cartão de visitas para a sua irmã. (Abstenção que não fora apreciada da mesma maneira por minhas tias Céline e Victoire, que tinham conhecido quando era moça, aquela a quem só chamavam até então de Renée de Camb para marcar a sua intimidade de antes, e ainda conservavam presentes seus, que ornamentam um quarto e uma conversa, mas aos quais a realidade de hoje não corresponde; julgavam se vingar da afronta que nos fizeram evitando pronunciar, na casa da Sra. Legrandin mãe, o nome da filha, e, à saída, se limita felicitar-se com frases como: "Não fiz alusões ao que sabes" e "Creio que compreenderam.")

            Portanto, partiríamos simplesmente de Paris naquele trem de uma e vinte e dois minutos, que já me parecia conhecido, de tanto o haver procurado um indicador das estradas de ferro, onde sempre me inspirava a emoção e bem-aventurada ilusão da partida. Como a determinação dos aspectos feitos em nossa imaginação, consiste antes na identidade dos desejos do que na precisão das informações que temos a seu respeito, julgava eu com todos os detalhes aquele prazer de viagem e não duvidava que experimentaria no vagão um prazer especial quando começasse a entardecer, e que contando tal efeito de luz ao se aproximar uma certa estação; de modo que revelando sempre em mim as imagens das mesmas cidades que eu desenvolvi. Daquelas horas da tarde que ele atravessa, parecia-me diferente de todos os outros trens; e eu acabava por dar, como ocorre muitas vezes quanto a uma pessoa que nunca vimos mas cuja amizade nos apraz imaginar que conquistamos, uma fisionomia particular e imutável a esse viajante artista e louro que me levaria pelo seu caminho, por acaso teria dado adeus junto à catedral de Saint-Cloud, antes que ele se afastasse na direção do ocaso.

            Como a minha avó não podia se resolvera ir assim "idiotamente" a Balbec, pararíamos por 24 horas na casa de uma de suas amigas, de onde eu voltaria a seguir viagem na mesma noite para não incomodar e também de modo a ver no dia seguinte a igreja de Balbec, pois tínhamos sabido que ficava muito longe de Balbec-Plage, e talvez não fosse possível ir até lá depois de ter principiado o meu tratamento de banhos. Talvez me fosse menos penoso sentir que o objetivo admirável de minha viagem estava situado antes da cruel primeira noite em que entraria numa nova morada e teria de me resignar a ficar ali. Mas primeiro era necessário deixar a antiga; minha mãe resolvera instalar-se naquele mesmo dia em Saint-Cloud, e tinha tomado, ou fingira que tomara, todas as disposições necessárias para ir diretamente a Saint-Cloud depois de nos haver deixado na estação, sem ter de passar de novo em casa, pois temia que eu, em vez de partir para Balbec, quisesse voltar com ela. E, pretextando ter muito que fazer na casa que acabara de alugar e de ter pouco tempo, mas na verdade para me poupar a crueldade dessa despedida, decidira não estar conosco-até a partida do trem, quando, dissimulada até então nos vaivéns e nos preparativos que a nada levam em definitivo, aparece bruscamente uma separação impossível de suportar, ainda que já não seja possível de evitar, inteiramente concentrada num imenso instante de lucidez impotente e suprema.

            Pela primeira vez sentia ser possível que minha mãe vivesse sem mim, dedicada a outra coisa, com outra vida diferente. Ia ficar com meu pai, cuja vida talvez achasse que eu complicava e entristecia com minha saúde precária e meu nervosismo. E essa separação ainda mais me desesperava porque pensava que provavelmente fosse para minha mãe o fim das sucessivas decepções que lhe causara, que ela soubera calar, e que lhe fizeram compreender a dificuldade de férias comuns; e talvez também a primeira tentativa de uma existência à qual começara a se resignar para o futuro, à medida que os anos passavam para meu pai e para ela, existência em que a veria muito menos, na qual, o que nem nos meus pesadelos me ocorria, ela seria uma pessoa um pouco estranha para mim, como uma senhora que a gente vê entrar sozinha numa casa onde eu não estaria, perguntando ao porteiro se não havia cartas minhas.

            Mal pude responder ao empregado que quis segurar minha mala. Minha mãe tentava me consolar com os meios que lhe pareciam mais eficazes. Achava que fingir não ver minha mágoa,  dela troçava com carinho:

            - Ora, vamos; que diria a igreja de Balbec se soubesse que é com aspecto de infeliz que te preparas para ir vê-la? É este o viajante extasiado de Ruskin? Aliás, hei de saber se estiveste à altura das circunstâncias; eu mesma ainda estarei com o meu filhinho. Amanhã mesmo receberás uma carta da minha filha - disse minha avó -, vejo-te como a Sra. de Sévigné: carta diante dos olhos que não nos deixando um só instante.

            Mamãe procurava distrair-me; perguntava o que iria encomendar para jantar, admirava Françoise e cumprimentava-a pelo chapéu e pela capa a qual reconhecia, embora antigamente lhe tivessem causado horror quando os vira igualzinhos, usados por minha tia-avó, o chapéu encimado por um pássaro, capa ornamentada de azeviche e desenhos horrendos. Mas como a capa bem gasta, Françoise mandara virá-la pelo avesso, ela exibia agora um tecido de bela cor. Quanto ao pássaro, havia muito tempo que se quebrara e fora posto de lado. E, do mesmo modo que às vezes é desconcertante encontrar refinamento que os artistas mais conscientes se esforçam por obter, em alguma canção pop ou na fachada de uma casa de campo, que faz desabrochar acima da porta uma flor branca ou cor de enxofre, justamente no ponto em que devia estar assim Françoise com gosto infalível e ingênuo, soubera colocar naquele chapéu, agora delicada, laçada de veludo e o laçarote de fitas que teriam encantado num quadro de Cheu ou de Whistler.

            Para remontar a um tempo mais antigo, a modéstia e a honestidade; muitas vezes conferiam nobreza ao rosto da nossa velha criada, haviam alcançado os vestidos que, como mulher reservada; mas sem baixeza, que "manter seu nível e conhecer seu lugar", ela voltara a pôr para a viagem, a fim de se manter digna de ser vista conosco sem dar a impressão de querer se colocar evidência.

            Assim, com o pano cor de cereja, mas fanado, de sua capa e os botões sem rudeza do seu casaco de pele, fazia pensar num desses retratos de Artita Bretanha pintados nos Livros de Horas por um velho mestre, e nos quais tudo põe tão bem no seu posto, o sentimento do conjunto é tão igualmente difundido em todas as partes, que a singularidade rica e desusada do vestuário expõe a mesma gravidade piedosa dos olhos, dos lábios e das mãos. Não se poderia falar de pensamento a propósito de Françoise. Ela não conhecia nada, naquele sentido total em que não saber nada equivale a nada compreender, a não ser as raras verdades que o coração é capaz de entender diretamente. O mundo imenso das idéias não existia para ela. Mas, diante da claridade do olhar, das linhas delicadas do nariz, dos lábios, diante de todos esses testemunhos ausentes em muitas dessas pessoas cultas, nas quais teriam significado a direção suprema, o nobre desinteresse de uma alma de elite, a gente se sentia desconcertado como diante do olhar inteligente e bondoso de um cão, ao qual, no entanto, sabemos serem estranhos todos os conceitos dos homens, e poder-se-ia perguntar se não há entre esses outros irmãos humildes, os camponeses, criaturas que sejam como os homens superiores da sociedade dos simples de espírito, ou melhor, os que, condenados, por um destino injusto, a viver entre esses simples de espírito, privados de luz; no entanto mais natural e essencialmente aparentados às naturezas de elite do que a maioria das pessoas instruídas, são como que membros dispersos, extraviados, privados de razão, da família sagrada, parentes, que não saíram da infância, das mais altas inteligências, e a quem faltou, para terem talento, unicamente o saber-como se percebe, sem erro, na claridade de seu olhar que, todavia, não se aplica a nada.

            Minha mãe, vendo que eu mal continha as lágrimas, dizia:

            "Régulo tinha o costume, nas grandes ocasiões... E depois, não é bonito fazer assim para a mamãe." Citemos a Sra. de Sévigné, como a tua avó: "Vou ser obrigada a empregar toda a coragem que tu não tens."

            Lembrando-se que o afeto por outrem desvia as dores egoístas, tentava me animar dizendo que sua viagem a Saint-Cloud seria tranqüila, que estava contente com o fiacre que reservara, que o cocheiro era muito bem educado e o carro confortável. Eu me esforçava por sorrir a tais pormenores e inclinava a cabeça em sinal de aquiescência e satisfação. Mas isto só servia para me representar com mais veracidade a partida de mamãe, e foi com o coração apertado que a encarei como se ela já estivesse separada de mim, sob aquele chapéu de palha redondo que comprara para usar na roça, com o vestido leve que pusera devido ao longo percurso em dia muito quente, e que a transformavam em outra, já pertencente àquela Vila de Montretout, onde não a veria.

            Para evitar as crises de sufocação que a viagem me daria, o médico recomendara que tomasse um pouco de cerveja ou de conhaque no momento de partir, a fim de me pôr nesse estado que denominava "euforia", em que o sistema nervoso fica momentaneamente menos vulnerável. Ainda não estava certo se o faria ou não, mas queria pelo menos que minha avó reconhecesse, no caso de me decidir a fazê-lo, que eu procedia com sensatez e por motivo justo. Assim, falei nisso a minha avó como se minha hesitação se limitasse ao local em que haveria de beber álcool no refeitório da estação ou no vagão-restaurante. Porém logo, diante do ar de censura da fisionomia de minha avó, do seu desejo de nem querer ouvir falar naquilo:

            -Como! -exclamei, decidindo-me de súbito a beber, coisa agora necessária para provar minha liberdade, visto que seu simples anúncio verbal não pudera passar sem protesto. - Como! Sabe muito bem que estou doente, sabe o que o médico me disse e é este o conselho que me dá!

Quando expliquei meu mal-estar à minha avó, ela assumiu um ar tão contristado, tão bondoso, ao responder:

            - Mas então vai tomar logo essa cerveja, ou o conhaque, se é que isto vai te fazer bem.- Lancei-me nos seus braços e a cobri de beijos. E, se por fim fui beber no bar do trem, era por sentir que sem aquilo teria um acesso muito forte de sufocação, o que magoaria muito mais a minha avó.

            Quando, na primeira estação, subi para o nosso compartimento, disse-lhe que estava muito feliz por ir a Balbec, que sentia que tudo correria bem, que me habituaria depressa a estar longe de mamãe, que aquele trem era agradável; que o gerente do bar e os demais empregados eram muito simpáticos, de tal modo desejaria viajar mais seguidamente para poder revê-los. Entretanto, essas notícias pareciam inspirar a minha avó o mesmo regozijo que a mim. Evitando me disse:

            -Talvez fosse melhor que cuidasses de dormir um pouco - e desviou para a janela; tínhamos baixado a cortina que no entanto, não cobria todo o vidro de forma que o sol se insinuava pela madeira envernizada da portinhola batendo sobre o estofado dos assentos a mesma luz morna e dormente que cochilava clareiras lá fora, claridade que era como um anúncio da vida em plena. Naturalmente muito mais convincente que as paisagens dos cartazes colocadas nos altos compartimentos e cujos nomes, por esse motivo, eu não conseguia ler.

            Mas, quando minha avó pensava que eu mantinha os olhos fechados a via por momentos, por baixo de seu véu de grandes pintas pretas, lançar olhar; depois afastá-lo, e depois voltar a olhar-me, como alguém que propõe esforçar por habituar-se a um exercício que lhe é penoso. Então eu lhe falava, mas isso parecia não lhe agradar muito. No entanto, minha própria voz me dava muito prazer, assim como os movimentos mais invisíveis e internos do meu corpo. Portanto, tentava fazê-los durar, deixava cada uma de minhas inflexões prolongar-se por muito tempo nas palavras, sentia que - um de meus olhares se encontrava muito bem onde quer que pousasse e aí permanecesse mais tempo que de costume.

            -Vamos, descansa - disse a minha avó. não podes dormir, lê alguma coisa. - E me passou um volume da Sra. de Sévigné que abri, enquanto ela se absorvia nas Memórias da Sra. de Beausergent. Ela viajava sem um tomo de uma ou de outra. Eram suas duas escritoras escritoras prediletas.

            Sem mexer muito a cabeça naquele instante e experimentando grande prazer em manter uma dada posição, fiquei segurando o livro da Sra. de Sévigné sem abaixar o olhar para vê-lo, pois os olhos só tinham à sua frente o azul da janela. Mas parecia-me admirável contemplar esse cortinado, e nem me incomodaria em responder a quem quisesse me tirar daquela contemplação da cor azul do cortinado, talvez não por sua beleza e sim pela vivacidade que parecia eliminar a tal ponto todas as cores que tivera diante de meus olhos; do dia em que nascera até o momento em que acabara de engolir a bebida a qual começava a fazer efeito, que, em comparação com aquele azul, todos os coloridos eram para mim tão baços, tão inúteis como o pode ser, retrospectivamente, a escuridão para os cegos de nascença que são operados tardiamente afinal as cores. Um velho empregado da estrada de ferro veio pedir nossas passagens. Os reflexos prateados dos botões de metal de sua túnica não deixaram encantar. Desejei lhe pedir que sentasse ao nosso lado, mas ele passou para outro vagão, e fiquei pensando com nostalgia na vida dos ferroviários que, passando o tempo todo nas estradas de ferro, sem dúvida não deixariam de ver um só dia aquele velho fiscal. O prazer que eu sentia em ver o cortinado azul e em perceber que minha boca estava entreaberta começou por fim a diminuir. Quis mover-me e me agitei um pouco; abri o livro que minha avó me estendera e pude fixar a atenção nas páginas escolhidas ao acaso. Enquanto lia, senti crescer minha admiração pela Sra. de Sévigné. Cumpre não nos deixarmos enganar pelas particularidades puramente formais, referentes a uma época e à vida social de então, e que levam muitas pessoas a julgar que já fizeram o seu pouco de Sévigné quando dizem:

            "Dê-me suas ordens, querida" ou "Esse conde me pareceu possuir um pouco de espírito" ou "A coisa mais bonita do mundo é pôr o feno para secar." Já a Sra. de Simiane pensava que se parecia com a avó, Sra. de Sévigné, por ter escrito: "O Sr. de Ia Boulie vai às maravilhas, senhor, e pode perfeitamente ouvir a notícia da própria morte", ou: "Oh! meu caro marquês, como me agradou a sua carta! Como farei para respondê-la", ou ainda: "Senhor, parece que me deve uma resposta e eu, caixas de tangerinas. Envio oito, outras irão depois... A terra nunca deu tanta tangerina. Aparentemente, é para lhe agradar."

            No mesmo estilo escreve cartas sobre a sangria, os limões, etc., imaginando que são cartas da Sra. de Sévigné. Porém minha avó, que chegara até estar por dentro, pelo amor aos seus, à natureza, ensinara-me a estimar suas verdadeiras belezas, que são bem diversas das outras. Deviam impressionar-me bastante, tanto mais que a Sra. de Sévigné é uma grande artista, da mesma família de um pintor que eu iria conhecer em Balbec e que teve uma influência tão profunda sobre minha visão das coisas, Elstir. Em Balbec, percebi que a Sévigné nos apresenta as coisas da mesma maneira que o pintor, ou seja, de acordo com nossas percepções, em vez de as explicar primeiro por sua causa. Mas já naquela tarde, no vagão, relendo a carta em que aparece o luar: "Não pude resistir à tentação, botei todas as minhas toucas e casacões que não eram necessários, fui para aquele passeio público onde o ar é bom como o do meu quarto; encontrei mil quimeras, monges brancos e negros; várias religiosas cinzentas e brancas; roupa branca atirada aqui e ali; homens amortalhados de pé contra árvores etc.", fiquei deslumbrado com o que teria chamado, um pouco mais tarde (pois ela não pinta as paisagens da mesma maneira que ele os caracteres?), o lado Dostoievski das Cartas da Sra. de Sévigné.

            Quando à tardinha, depois de ter levado minha avó e ficar durante algumas horas na casa de sua amiga, voltei sozinho para o trem, pelo menos não achei penosa a noite que caía; é que não tinha de passá-la na prisão de um quarto cuja própria sonolência me manteria acordado; estava rodeado pela atividade calmante de todos os movimentos do trem, que me faziam companhia, se ofereciam para conversar comigo se não tivesse sono, me acalentavam com seus rumores que eu harmonizava como o som dos sinos de Combray, ora a um ritmo, ora (ouvindo, conforme a minha fantasia, primeiro quatro duplas concheias; logo uma dupla concheia furiosamente precipitada contra uma semi-mínima); suavizavam a força centrífuga da minha insônia, sobre ela exercendo pressões com as quais me mantinham em equilíbrio e a minha imobilidade. Depois, do meu sono se sentiram sustentados com a mesma impressão de que me teria proporcionado o repouso, devido à vigilância de forças poderosas no seio da Natureza e da vida, se por um momento eu pudesse me encarnar num peixe que dorme no mar, ou pudesse passear em seu entorpecimento pelas correntes vagas, ou nalguma águia unicamente apoiada na tempestade.

            As auroras são um acompanhamento das longas viagens de trem, os ovos cozidos, os jornais ilustrados, os jogos de cartas e os rios onde se esforçam sem avançar. Num momento em que eu enumerava os pensamentos, que me haviam enchido o espírito nos minutos precedentes, para verificar se inspirava ou não (e quando a própria incerteza que me inspirava a pergunta me foi uma resposta afirmativa), no quadrado da janela, acima de um bosquezinho nuvens recortadas cuja suave penugem era de um róseo parado, morto, que - mais haveria de mudar, como aquele que tinge as penas da asa que o assimilam o pastel sobre o qual o depositou a fantasia do pintor. Mas eu sentia ao contrário, essa cor não era inércia nem capricho, e sim necessidade e vida. Em breve amontoaram, por detrás dela, reservas de luz. Ela se avivou, o céu tornou-se um encarnado que eu, colando os olhos no vidro, procurava perceber melhor, sentia-o relacionado com a profunda existência da Natureza; mas a linha férrea mudou de direção, o trem fez uma volta, o cenário matinal foi substituído no vidro da janela por uma aldeia noturna de telhados azuis de luar, com um, manchado pelo nácar opalino da noite, sob um céu ainda semeado de todas as suas estrelas, e eu me desolava por haver perdido a faixa de céu róseo que percebi de novo, porém rubra dessa vez, na janela do outro lado, que acabava a um segundo cotovelo da linha férrea; de modo que eu passava o tempo de uma janela a outra, para aproximar, enquadrar os fragmentos intermitentes de minha bela manhã escarlate e inconstante dela ter uma visão total, quadro contínuo. A paisagem se tornou acidentada, abrupta; o trem parou numa fresta entre duas montanhas. Ao fundo da garganta, à beira da corrente, só se via casa de guarda mergulhada na água que corria por baixo das janelas. E, se é possível que determinada terra produza uma criatura em que se possa desfrutar o particular encanto, mais ainda que a camponesa que eu tanto desejara que aparecesse quando vagueava sozinho para os lados de Méséglise, nos bosques Roussainville, essa devia ser aquela moça alta que vi sair da casa e dirigir-se à estação, pelo caminho estreito que o sol nascente iluminava, oblíquo, levando um jarro de leite. No vale, que as alturas das vizinhas escondiam ao resto do mundo, a moça não devia ver outras pessoas senão as que vinham nos trens, que paravam por um instante. Andou ao longo dos vagões, oferecendo café com leite a alguns viajantes acordados. Colorido pelos reflexos da manhã, seu rosto era mais róseo que o céu. Diante dela, senti esse desejo de viver que renasce em nós cada vez que tomamos consciência, de novo, da beleza e da felicidade. Sempre esquecemos que elas

são individuais e, substituindo-as em nosso espírito por um tipo convencional formado de uma espécie de média dos diversos rostos que nos agradaram, entre os prazeres que conhecemos, temos apenas imagens abstratas, vaporosas e insossas, pois lhes falta precisamente esse caráter de novidade, diverso do que já conhecemos, esse caráter que é próprio da beleza e da felicidade. Lançamos sobre a vida um julgamento pessimista que consideramos justo, pois acreditamos ter levado em conta a beleza e a felicidade, quando as omitimos, substituindo-as por sínteses onde não há sequer um átomo delas. É assim que boceja antecipadamente um literato a quem falam de

um novo "belo livro", pois imagina uma espécie de composto de todos os belos livros que já leu, ao passo que um belo livro é algo particular, imprevisível, e não se compõe da soma de todas as obras-primas precedentes e, sim, de alguma coisa que não se obtém com a perfeita assimilação de tal soma, porque está justamente fora dela. Assim que toma conhecimento dessa nova obra, o literato, até então enfastiado, sente interesse pela realidade que ela descreve. Desse modo, estranha aos modelos de beleza, que meu pensamento delineava, quando eu estava a sós, a bela moça logo me deu o gosto de uma certa felicidade (única forma, sempre particular, sob a qual podemos conhecer o gosto da felicidade), de uma felicidade que se realizaria caso vivesse junto dela. Porém ainda aqui, em grande parte agia a cessação momentânea do Hábito. Eu beneficiava a vendedora de leite com o que era o meu ser completo, à sua frente, capaz de gozar dos mais vivos prazeres. Em geral, é com o nosso ser reduzido ao mínimo que vivemos; a maioria das nossas faculdades permanecem adormecidas, pois repousam no hábito, que sabe o que tem a fazer e não precisa delas.

            Mas, naquela manhã de viagem, a interrupção da rotina da minha vida, a mudança de hora e lugar, tornaram indispensável a sua presença. Meu hábito, que era sedentário e não madrugador, fazia falta, e todas as minhas faculdades tinham acorrido para ocupar seu posto, rivalizando entre si de zelo erguendo-se todas, como as ondas, a um mesmo nível desacostumado-, da mais vil à mais nobre, da respiração, do apetite e da circulação sangüínea à sensibilidade e à imaginação; não sei se, fazendo-me crer que aquela moça não era igual às outras mulheres, o encanto selvagem daqueles lugares se acrescentava ao seu, mas a verdade é que ela o devolvia ao ambiente. A vida teria me parecido deliciosa se eu pudesse apenas, horas seguidas, passá-las em sua companhia, acompanhá-la até a torrente, até a vaca, até o trem, estar sempre a seu lado sentir-me conhecido dela, tendo meu lugar em seu pensamento. Ela teria me iniciado nos encantos da vida rústica e das primeiras horas do dia. Fiz-lhe sim, que me servisse café com leite. Precisava ser notado por ela. Não me viu, acima de seu corpo muito grande, a pele do rosto era tão dourada e rósea dava a impressão de ser vista através de um vitral iluminado. Ela voltou não podia desviar os olhos do seu rosto cada vez maior, semelhante a um sol fosse possível encarar e que se aproximaria até chegar bem junto; deixando-se observar bem de perto, ofuscando-nos de ouro e de vermelho; em mim o olhar agudo, mas, como os empregados fechavam as portinholas o trem se pôs em marcha; vi-a deixar a estação e retomar o atalho, o dia já estava claro agora: eu me afastava da aurora. Que minha exaltação tenha sido provocada por aquela moça, ou, ao contrário, se foi a principal razão do prazer que senti me achar perto dela, não sei. Em todo caso, estava tão mesclada a ela que o desejo de revê-la era antes de tudo o desejo moral de não deixar que esse estado de excitação morresse de todo, e de não me separar para sempre da criatura que dela tomara parte, mesmo sem o saber. E não era apenas porque tal fosse agradável. Era sobretudo porque (como a máxima tensão de uma corda a mais rápida vibração de um nervo produz uma sonoridade ou uma cor que dava uma outra tonalidade ao que eu via, introduzia-me, como ator, em um único desconhecido e infinitamente mais interessante; essa bela moça que ainda conseguia avistar, enquanto o trem acelerava a sua marcha, era como uma parte da vida diferente da que eu conhecia, dela separada por uma orla e onde as sensações despertadas pelos objetos já não eram as mesmas; de onde sair agora seria o morrer para mim mesmo. Para ter a doçura de me sentir ao menos ligado à vida, bastaria que morasse bem próximo à pequena estação para poder vir todos os dias pedir café com leite àquela camponesa. Mas infelizmente ela estaria ausente da outra vida para a qual eu ia cada vez mais depressa, e que só me restava aceitar, combinando os planos que me permitiriam um dia retomar esse momento no trem e de parar naquela mesma estação, projeto que também tinha de fornecer alimento à disposição interessada, ativa, prática, maquinal, prega centrífuga, que é a do nosso espírito, pois facilmente ele se desvia do necessário para aprofundar em si mesmo, de um modo geral e desinteressante uma impressão agradável que tenhamos tido. Como, por outro lado, quer continuar a pensar nessa impressão, o espírito prefere imaginá-lo no futuro, para habilmente as circunstâncias que poderão fazê-la renascer, o que não nos conta coisa alguma sobre sua essência, porém nos evita o cansaço de recriá-la, permitindo-nos esperar recebê-la novamente de fora.

            Certos nomes de cidades, Vézelay ou Chartres, Bourges ou Beau vem para designar, por abreviatura, sua igreja principal. Essa designação que o tomamos com freqüência acaba se se tratar de lugares que ainda não conhecemos-por esculpir o nome completo, que desde então, quando incluir-lhe a idéia da cidade; a cidade que nunca vimos-há de lhe impor, como um molde-a mesma cinzelagem, o mesmo estilo, transformando-a numa espécie de grande catedral. Entretanto, foi numa estação de trem, acima de um bufete, em letras brancas sobre um cartaz azul, que li o nome, quase de estilo persa, de Balbec. Atravessei com rapidez a estação e o bulevar que ali terminava, e perguntei pela praia, para só ver a igreja e o mar; não pareceram compreender o que dissera. Balbec-le-Vieux, Balbec-en-Terre, onde me encontrava, não era praia nem porto. Certamente, fora mesmo no mar que os pescadores, de acordo com a lenda, haviam encontrado o Cristo milagroso, de que um vitral daquela igreja, que se achava a alguns metros de mim, contava a descoberta; era mesmo das falésias batidas pelas ondas que fora tirada a pedra da nave e das torres. Mas esse mar, que por isso mesmo eu pensava viesse morrer ao pé do vitral, estava a mais de cinco léguas de distância, em Balbec-Plage; ao lado de sua cúpula, aquele campanário que, por haver lido que ele próprio fora uma rude falésia normanda onde se ajuntavam os grãos e revoluteavam os pássaros, sempre imaginara como recebendo em sua base a última espuma das vagas revoltas erguia-se numa praça onde ocorria o cruzamento de duas linhas de bondes, diante de um café que ostentava, em letras de ouro, a palavra "Bilhar"; destacava-se sobre um fundo de casas a cujos telhados não se misturava nenhum mastro. E a igreja entrando na minha atenção junto com o café, com o transeunte a quem tivera de perguntar o caminho, com a estação para onde eu iria voltar-formava um todo com o resto, parecia um acidente, um produto daquele fim de tarde, na qual a cúpula suave e altiva contra o céu era como um fruto cuja pele rósea, dourada e tenra fosse amadurecida pela mesma luz que banhava as chaminés das casas. Mas não quis mais pensar em nada senão no significado eterno das esculturas quando reconheci os Apóstolos cujas estátuas moldadas vira no museu do Trocadéro e que, dos dois lados da Virgem, diante da abertura profunda do pórtico, esperavam-me como para me prestar honras. O rosto benevolente e suave, o nariz achatado, o dorso curvo, pareciam avançar com um aspecto de boas-vindas, cantando a Alleluia de um belo dia. Mas a gente verificava que sua expressão era imutável como a de um morto e só se modificava se andássemos a seu redor. Dizia comigo:

            "É aqui, é esta a igreja de Balbec. Esta praça que parece conhecer a sua glória é o único lugar do mundo que possui a igreja de Balbec. O que vi até agora eram fotos dessa igreja, e destes Apóstolos, desta Virgem do pórtico, tão célebres, apenas as moldagens. Agora é a própria igreja, a própria estátua, são elas; elas, as únicas, e isto é muito mais."

            E talvez também fosse menos. Como um rapaz, num dia de exame ou de duelo, acha o fato sobre o qual o interrogaram, a bala que ele disparou, bem pouca coisa quando pensa nas reservas de ciência e de coragem que possui e das quais gostaria de dar provas, assim também o meu espírito, que elevara a Virgem do pórtico fora das reproduções que tivera diante dos olhos, inacessível às vicissitudes que poderiam ameaçar aquelas, intacta se as destruíssem, ideal, de um universal, espantava-se ao ver a estátua que mil vezes esculpira, reduzida sua própria aparência de pedra, ocupando em relação ao alcance do meu braço, posto onde tinha por rivais um cartaz eleitoral e a ponta da minha bengala, à Praça, inseparável da saída da rua principal, não podendo fugir aos olhares e do escritório de ônibus, recebendo no rosto a metade do raio do sol poente breve, dentro de algumas horas, da claridade do lampião de que o escritor do Banco de Descontos recebia a outra metade, alcançada, ao mesmo tempo que a sucursal de um estabelecimento de crédito, pelo mofo das cozinhas da palavra submetida à tirania do particular a tal ponto que, se eu quisesse traçar, assinatura naquela pedra, seria ela, a Virgem ilustre que até então havia adotado uma existência geral e de uma beleza intangível, a Virgem de Balbec, a única (infelizmente, queria dizer ela só), que, sobre seu corpo manchado da mesma imagem que a das casas vizinhas, mostraria a todos os admiradores ali chegado contemplá-la, sem poder desfazê-las, as letras do meu nome e as marcas do pedaço de giz; e era ela, enfim, a obra de arte imortal e desejada por tanto tempo, que eu encontrava transformada, bem como a própria igreja, em uma pequena igreja de pedra de que eu podia medir a altura e contar as rugas. As horas passaram era preciso voltar para a estação, onde devia esperar minha avó e Françoise para irmos juntos à praia de Balbec. Recordava o que havia lido sobre Balbec, e as falas de Swann:

            "É delicioso, tão lindo como Siena."

            E só acusando de minha descrição as contingências, a má disposição em que me encontrava, o cansaço, a incerteza de saber olhar as coisas, tentava consolar-me à idéia de que restavam outras cidades, ainda intactas para mim, e que eu talvez pudesse em breve como no meio de uma chuva de pérolas, no viçoso gorjeio das gotas W Quimperlé, atravessar o reflexo esverdeado e róseo que banhava Pont-à-Coulevre no caso de Balbec, logo que ali entrara, fora como se houvesse entreaberto o nome que era necessário manter hermeticamente fechado e onde, aproveitavam a entrada que eu lhes havia aberto com imprudência, e expulsando todas as coisas que ali viviam até então; um bonde, um café, as pessoas que passavam pela sucursal do Banco de Descontos, irresistivelmente impelidos por uma externa e uma força pneumática, tinham se engolfado no interior das síla voltando a se fechar sobre eles, deixavam-nos agora enquadrar o pórtico persa e nunca mais os deixariam de conter.

            No trenzinho local, que devia nos levar a Balbec-Plage, encontrei minha avó, mas ela estava sozinha, pois havia pensado em mandar Françoise antes para que tudo estivesse preparado quando chegássemos (deu-lhe indicações falsas, e Françoise partira em direção errada, e àquela hora correndo a toda a velocidade para Nantes e talvez acordasse em Bordéis). Sentei no compartimento, repleto da fugidia luz do crepúsculo e do calor da tarde (a primeira revelou-me, no rosto de minha avó, o quanto o segundo a fatigara), ela me perguntou:

            -E então, é Balbec? - com um sorriso tão ardentemente iluminado pela esperança do grande prazer que, na sua opinião, eu deveria ter sentido, que não me atrevi a lhe confessar de imediato a minha decepção. Além disso, a impressão que meu espírito havia procurado preocupava-me cada vez menos à medida que ia se aproximando o local a que o meu corpo teria de se acostumar. No fim do trajeto, que ainda levaria mais de uma hora, tentava imaginar o gerente do hotel de Balbec, para quem eu ainda não existia neste momento, e gostaria de me apresentar à ele numa companhia de mais prestígio do que a da minha avó, que certamente lhe pediria um abatimento. Imaginava-o cheio de arrogância, porém muito vago de contornos.

            A todo instante, o trenzinho parava numa das estações que precediam Balbec-Plage e cujos próprios nomes (Incarville, Marcouville, Doville, Pont-à-Coulevre, Arambouville, Saint-Mars-le-Vieux, Hermonville, Maineville) me pareciam estranhos, ao passo que lidos em um livro apresentariam alguma relação com os nomes de certas localidades de Combray. Mas ao ouvido de um músico dois motivos, materialmente compostos de várias notas comuns, podem não ter semelhança alguma se diferirem pelo colorido da harmonia e da orquestração. Da mesma forma, esses nomes tristes feitos de sal e areia, de espaços arejados e vazios, nomes de onde se escapava a terminação ville como o vole no jogo do pigeon-vole, não me lembravam em nada os nomes de Roussainville ou Martinville, os quais, porque os ouvira pronunciados com freqüência por minha tia-avó, quando estávamos sentados à mesa na "sala", tinham adquirido um certo encanto sombrio, onde talvez se misturassem essências do gosto de doces, do cheiro do fogo de lenha e do papel de um livro de Bergotte, da cor de argila da casa em frente, e que, ainda hoje, quando sobem como uma bolha de gás do fundo da minha memória, conservam sua virtude específica através das camadas superpostas de meios diferentes que precisam vencer até chegar à superfície.

            Dominando o mar longínquo do alto de suas dunas, ou já se acomodando para a noite ao pé das colinas de um verde cru e de formas abruptas, como o canapé de um quarto de hotel aonde a gente acaba de chegar, eram cidadezinhas compostas de algumas residências, que as quadras de tênis prolongavam, e às vezes de algum cassino, cuja bandeira se agitava ao impulso do vento fresco, ansioso e vazio, de estaçõezinhas que me mostravam pela primeira vez os seus hóspedes de costume, mas só em seu aspecto exterior; jogadores de tênis de bonés brancos; o chefe da estação que vivia ali com suas rosas e tamarindos; uma dama de chapéu de palha, que, seguindo o traçado diário de uma vida que eu jamais conheceria, chamava o seu cão lebréu que se atrasava, e voltava para seu chalé onde já estava aceso o lampião -e essas imagens, tão estranhamente comuns e desdenhosamente familiares ao meu olhar, feriam-me cruelmente a vista surpreendida e o coração saudoso. Todavia, ainda mais se agravou meu sofrimento quando descemos no hotel Grande Hotel de Balbec, diante da escadaria monumental que imitava o mar e, enquanto isso, minha avó, sem se preocupar com o aumento da hostilidade e o desprezo dos estranhos, em cujo ambiente íamos viver, discutia as condições com o gerente. Sujeito rechonchudo, com o rosto e a voz cheios de cicatriz de rosto, pelas sucessivas extirpações de numerosas verrugas, a voz devido aos mais diferentes por causa das origens longínquas e de uma infância cosmopolita; trajando smoking de mundano, com um olhar de psicólogo que em geral tomava, à chegada do ônibus, os grão-senhores por miseráveis e os do hotel por grão-senhores! Esquecendo, sem dúvida, que ele mesmo ganhava quinhentos francos por mês, desprezava profundamente às pessoas das quais recebia quinhentos francos, ou antes, como dizia, "vinte e cinco luíses", eram uma grande soma, e as considerava como fazendo parte de uma raça de párias a quem era destinado o Grande Hotel. É verdade que, naquele mesmo Palácio, havia os que não pagavam muito caro, sem deixar de ser estimados pelo gerente, desde que este estivesse certo de que, se cortavam os gastos, não fazia por falta desses e, sim, por avareza. De fato, a avareza não diminuía em nada o prestígio da pessoa, pois trata-se de um vício e, portanto, pode encontrar-se em todas as classes sociais. A posição social era a única coisa a que o gerente dava atenção; a posição social, ou antes, os sinais que lhe pareciam implicar que fosse eleitos como o não tirar o chapéu à entrada do hall, usar knickerbockers, paletó sobretudo e de tirar um charuto enfaixado em púrpura e ouro de um estojo de marrom (vantagens que, ai de mim, me faltavam todas!). Pontuava as frases com expressões escolhidas, mas sem qualquer sentido.

            Enquanto ouvia minha avó, sem se constranger que ele a escuta com chapéu na cabeça e assobiando, perguntar-lhe com uma entonação artificial ''quais são os seus preços?'', ''muito altos para o meu pequeno orçamento'' esperando numa banqueta, refugiava-me no mais íntimo de mim esforçava-me por emigrar para pensamentos eternos, não deixar nada de nada vivo, na superfície de meu corpo -, insensibilizado como o são antes que por inibição se fingem de mortos ao serem feridos – a fim de não sofrer naquele ambiente onde minha falta absoluta de hábito me tornava ainda sensível diante da vista do hábito local, que naquele momento parecia de dama elegante a quem o gerente testemunhava seu respeito tornando-se íntimo com o cãozinho que o acompanhava, e o jovem que de pluma já entrava perguntando "se havia cartas", todas essas pessoas para as quais os degraus de mármore falso era o mesmo que voltar para o seu honre. E admirando por tempo o olhar de Minos, Eaco e Radamanto, olhar no qual mergulhei despovoado, como em um lugar desconhecido onde nada mais além de um pacote foi lançado severamente por senhores que, pouco versados talvez na arte de receber; ostentavam o título de "chefes de recepção"; mais distante, por trás de uma vidraça fechada, havia pessoas sentadas num salão de leitura, para cuja descrição teria de escolher, alternadamente, em Dante, as cores que ele atribui ao Paraíso e ao Inferno, conforme pensava na ventura dos eleitos que tinham ali o direito de ler em sossego, ou no terror que teria me causado minha avó se, na sua despreocupação com esse tipo de impressões, me tivesse mandado entrar naquele recinto.

            Minha impressão de solidão cresceu ainda mais um instante após. Como houvesse confessado à minha avó que não me sentia bem, que achava que íamos ser obrigados a voltar a Paris, ela dissera, sem protestar, que sairia para fazer algumas compras úteis tanto se tivéssemos de partir como ficar (e que, a seguir, eu soube que me eram todas destinadas, pois Françoise levara consigo algumas coisas que me fariam falta); esperando-a, fora dar uma volta pelas ruas entulhadas de uma multidão que ali mantinha um calor de apartamento e onde ainda estavam abertos um salão de barbeiro e uma pastelaria, na qual os fregueses tomavam gelados diante da estátua de Duguay-Trouin. Ela me causou quase o mesmo prazer que sua imagem, no meio de uma revista ilustrada, pode trazer ao doente que a folheia na sala de espera de um cirurgião. Espantava-me que houvesse pessoas bem diferentes de mim para que, nesse passeio pela cidade, o gerente me pudesse tê-lo recomendado como distração, e também para que o local de suplício, que é uma nova morada, pudesse parecer a certas pessoas "um jardim de delícias", como dizia o prospecto do hotel, que podia estar exagerando mas se dirigia a toda uma clientela cujos gostos lisonjeava. É verdade que ele invocava, para que viessem ao Grande Hotel de Balbec, não apenas "o tratamento requintado" e o "panorama feérico dos jardins do cassino", mas ainda os "decretos de Sua Majestade a Moda, que não se pode violar impunemente sem se passar por um idiota, coisa a que nenhum homem bem-educado desejaria se expor".

            A necessidade que eu sentia de minha avó aumentara pelo receio de lhe haver causado uma desilusão. Ela devia estar desanimada, achando que, se eu não suportava esse cansaço, era de desesperar que qualquer viagem me fizesse bem. Decidi entrar para esperá-la; o gerente veio pessoalmente apertar um botão: e um personagem, ainda meu desconhecido, a quem chamavam lift (e, no ponto mais alto do hotel, lá onde ficaria o lanternim de uma igreja normanda, estava instalado como um fotógrafo por trás de seus vidros ou um organista em sua câmara), pôs-se a descer na minha direção com a agilidade de um esquilo doméstico, industrioso e cativo. Depois, deslizando de novo ao longo de uma pilastra, arrastou-me consigo para o domo da nave comercial. A cada andar, dos dois lados de pequenas escadas de comunicação, desdobravam-se

em leque escuras galerias, nas quais, carregando um travesseiro, passava uma camareira. Aplicava ao seu rosto, que o crepúsculo me tornava indeciso, a máscara de minhas fantasias mais apaixonadas; lia no seu olhar voltado para mim o horror do meu nada. Entretanto, para dissipar, no decurso da subida interminável, a angústia mortal que experimentei em atravessar em silêncio o mistério daquele claro-escuro sem poesia, iluminado apenas por uma fileira vertical de vidraças, formada pela superposição do water-closet de cada andar, dirigi a palavra ao jovem organista, artesão de viagem e companheiro de minha prisão, o qual continuava a manusear os respectivos tubos de seu instrumento. Desculpei-me por ocupar tanto espaço e lhe dar tanto trabalho, e perguntei-lhe se não o incomodava no exercício de uma arte, a respeito, para lisonjear o virtuoso, fiz mais do que manifestar a minha curiosidade confessei-lhe minha predileção. Mas ele não me respondeu, fosse por estar diante de minhas palavras, atenção ao trabalho, preocupação com a etiqueta, respeito ao lugar, receio do perigo, preguiça de inteligência ou ordem do gerente. Talvez não haja nada que nos dê mais fortemente a impressão da realidade daquilo que nos é exterior como a mudança de posição de uma pessoa em reter a nós, mesmo que seja uma pessoa insignificante, antes e depois de a ter conhecido. Eu era o mesmo homem que, no fim da tarde, tomara o trenzinho em Balbec, trazia comigo a mesma alma. Porém nessa alma, no lugar onde, àquelas horas, havia a impossibilidade de imaginar o gerente, o Palácio, o seu pessoal; vaga e temerosa espera do momento da chegada, encontravam-se agora as rugas extirpadas do rosto do gerente cosmopolita (na realidade natural e monegasco, embora fosse como dizia, pois empregava sempre expressões que julgava distintas, sem perceber que eram viciosas, de originalidade romeno gesto para chamar o lift, o próprio lift, toda uma galeria de personagens saídos daquela caixa de Pandora que era o Grande Hotel, inegáveis, irremovíveis como tudo que está realizado, esterilizantes. Mas pelo menos esta mudança da qual não tomara parte, provava-me que ocorrera algo exterior a mim desprovido de interesse que fosse em si mesmo; eu estava como o viajante tendo o sol à sua frente ao iniciar uma caminhada, percebe as horas quando o vê por detrás. Morto de cansaço, sentia febre; bem que deitaria, mas não tinha nada do que era necessário para isso. Desejaria pelo menos estender-me um momento na cama, mas para que, se não poderia encontrar descanso para esse conjunto de sensações que, para cada um de nós, é o seu consciente, senão seu corpo material, e se os objetos desconhecidos que o vêm, forçando-o a colocar suas sensações em permanente estado de latente, teriam mantido o meu olhar, meu ouvido, todos os meus sentidos, posição tão reduzida e incômoda (mesmo se tivesse esticado as pernas) de cardeal La Balue na gaiola onde não podia estar de pé nem sentado. Em atenção que põe os objetos num quarto, e o hábito que os retira, abriu para nós. Espaço era o que não havia para mim no meu quarto de Balbec, pois estava cheio de coisas que não me conheciam e viram o olhar desconfiado que lhes lancei e, sem levar em conta a minha existência, participaram que eu lhes desarrumava a sua rotina; ouvia o pêndulo, ao passo que em casa eu só ouvia por alguns segundos na semana, e apenas quando saía de uma profunda meditação-continuou sem se interromper um único instante, fazendo em língua estranha considerações que deviam ser pouco elogiosas a meu respeito, pois as grandes cortinas roxas a escutavam sem responder, mas na atitude análoga à das pessoas que dão de ombros para mostrar que a vista de um terceiro as irrita. Davam àquele quarto tão alto um caráter quase histórico que o poderia tornar apropriado ao assassinato do duque de Guise e, mais tarde, a uma visita de turistas conduzidos por um guia da agência Cookmas de modo algum ao meu sono. Sentia-me atormentado pela presença de pequenas estantes envidraçadas, ao longo das paredes, mas sobretudo por um grande espelho com pés, atravessado no meio do quarto e antes de cuja partida achava eu que para mim não haveria sossego possível. A todo instante erguia os olhos a que os objetos do meu quarto em Paris não incomodavam mais que minhas próprias pupilas, pois não eram mais que anexos de meus órgãos, uma ampliação de mim mesmo para o teto soerguido daquele belvedere situado no cimo do hotel e que minha avó escolhera para mim; e até mesmo nessa região mais íntima do que aquela que vemos e ouvimos, nessa região em que sentimos a qualidade dos odores, era quase no interior de mim mesmo que o cheiro do vetiver vinha impelir sua ofensiva até minhas últimas defesas, assédio a que eu opunha, não sem cansaço, a resposta inútil e incessante de uma fungação alarmada. Já não tendo universo nem quarto, só corpo ameaçado pelos inimigos que me cercavam, e invadido até os ossos pela febre, estava sozinho e tinha vontade de morrer. Então minha avó entrou; e, para a expansão de meu coração reprimido, abriram-se logo espaços infinitos.

            Ela vestia um chambre de tergal, que punha em casa sempre que um de nós estava doente (pois assim sentia-se mais à vontade, dizia, atribuindo sempre motivos egoístas ao que fazia), e que servia para nos cuidar, para nos velar, era o seu traje de criada e de enfermeira, seu hábito de religiosa. Mas, ao passo que os cuidados destas, a bondade que têm, o mérito que lhes reconhecem e a gratidão que lhes devem, aumentam ainda mais a impressão que a gente tem de ser, para elas, uma outra pessoa, de sentir-se só, de guardar para si o peso dos pensamentos, de seu próprio desejo de viver, eu sabia, quando estava com minha avó, que, por maior que fosse o meu desgosto, seria acolhido com piedade ainda mais ampla; que tudo o que era meu, minhas preocupações, meu desejo, seria, em minha avó, apoiado num desejo de conservação e acréscimo de minha própria vida, aliás mais forte que o que eu mesmo tinha. E meus pensamentos se prolongavam nela sem sofrer desvio porque passavam do meu espírito para o dela sem mudar de ambiente, de pessoa. Como alguém que deseja dar o nó à gravata diante de um espelho  - compreender que a ponta que vê não está colocada, em relação a ele, no lado para onde dirige a mão, ou como um cão que persegue no solo a sombra de um inseto -, enganado pela aparência do corpo como o somos no mundo que não percebemos diretamente as almas, lancei-me nos braços de minha avó! Ergui os lábios para o seu rosto, como se assim cedesse àquele imenso abraço que ela me abria. Quando estava assim, com a boca unida às suas faces, à sua havia ali algo tão benéfico, tão nutriente, que mantinha a imobilidade, a tranqüila avidez de uma criança que mama. Depois contemplava, sem cansar, seu grande rosto desenhado como bela nuvem ardente e calma, por trás do qual sentia-se irradiar a ternura. E, aquilo que ainda recebia, por mais debilmente que fosse, um pouco de suas reações, tudo o que ainda podia ser desse modo dito a ela, ficava logo tão espiritual tão santificado, que com minhas palmas eu alisava seus lindos cabelos, que se faziam grisalhos, com tanto respeito, precaução e doçura, como se neles acariciando a sua bondade. Ela sentia tanto prazer em toda mágoa que era igual a mágoa à mim; num momento de imobilidade e de calma para os membros fatigados, algo tão delicioso que, tendo visto que ela queria ajudar me deitar e tirar os sapatos, quando fiz menção de impedi-la e de começar a me deitar sozinho, ela reteve com olhar súplice as minhas mãos que tocavam os primeiros botões de minha roupa e das botinas.

            - Oh, peço-te - disse ela. - É uma alegria tão grande para tua avó; principalmente, não deixes de bater na parede se tiveres necessidade de qualquer coisa esta noite; minha cama está pegada à tua e a divisória é bem fina. No instante que estiveres deitado, bate, para ver se podemos nos ouvir.

            E, de fato, naquela noite bati três pancadas que, na semana quando estive doente, renovei por alguns dias todas as manhãs, pois queria me dar leite bem cedo. Então, quando achava que ela já acordara - para que ela não esperasse e pudesse dormir de novo logo após-, arriscava três pancadas tímidas, fracamente, apesar de tudo bem distintas, pois se temia lhe interromper o sono no caso de me haver enganado e que ela já dormisse; não gostei que ela aguardasse ainda um apelo que não teria percebido a princípio e que eu não tinha mais coragem de renovar. E, mal eu dera as minhas batidas, ouvi três outras entonações diferentes, cheias de uma calma autoridade, repetidas duas vezes para maior clareza, e que significavam: "Não te inquietes, já escutei; daqui a um minuto estarei aí"; e logo depois minha avó chegava. Dizia-lhe que temera que ela não ouvisse ou pensasse que era um vizinho quem batia; ela ria:

            - Confundir as batidas do meu queridinho com as de outros... milhões de distância a sua vovó as reconheceria! Achas então que existem outras no mundo tão bobas, tão nervosas, tão divididas entre o medo de me acordar e de não ser compreendido? Mas, mesmo que o meu ratinho se contentasse com uma parede, eu logo o reconheceria, sobretudo quando é tão querido

e coitadinho é. Já fazia um momento que eu te ouvia hesitar, remexer na cama, e fazer todas as tuas manobras.

            Ela entreabria as persianas; o sol já se instalara no anexo de hotel que formava uma saliência, como um consertador de telhados que madruga e principia o seu trabalho, cumprindo-o em silêncio para não despertar a cidade que ainda está dormindo, e cuja imobilidade ainda mais ressalta a agilidade do operário. Dizia-me as horas, o tempo que faria, que não valia a pena eu ir à janela, que havia névoa sobre o mar, se a padaria já estava aberta, qual era o carro que já se ouvia rodar: insignificante ante o ato, desprezível intróito do dia a que ninguém assiste; minúsculo pedacinho de vida que era só de nós dois, que eu logo haveria de evocar de bom grado durante o dia, diante de Françoise ou de estranhos, falando da névoa espessa das seis da manhã, com a ostentação, não de um saber adquirido, mas de um sinal de afeto recebido somente por mim; doce instante matinal que principiava como uma sinfonia pelo diálogo ritmado de minhas três pancadinhas, às quais a divisória, toda penetrada de ternura e alegria, harmoniosa, imaterial, cantando como os anjos, respondia com outras três pancadas, ardentemente aguardadas, duas vezes repetidas, e nas quais a parede sabia transportar inteira a alma de minha avó, e a promessa de sua vinda, com uma alegria de anunciação e uma fidelidade musical. Mas na primeira noite da chegada, quando minha avó me deixou, recomecei a passar mal, como já sofrera em Paris no momento de deixar a casa. Talvez esse meu medo de dormir num quarto desconhecido - medo que tantos outros também têm -, não passe da forma humílima, obscura, orgânica, quase inconsciente, da grande recusa desesperada oposta pelas coisas que constituem o melhor da nossa vida presente à possibilidade de revistarmos mentalmente com a nossa aceitação a fórmula de um futuro onde elas não mais apareçam; recusa que estava na base daquele horror que tantas vezes me inspirara a idéia de que meus pais um dia haveriam de morrer, que as necessidades da vida poderiam me obrigar a viver longe de Gilberte, ou simplesmente a me fixar em definitivo numa terra onde nunca mais veria os meus amigos; recusa que estava inclusive na base da dificuldade que sentia em pensar na minha própria morte ou numa sobrevivência como a que Bergotte prometia aos homens em seus livros, na qual não poderia carregar junto minhas próprias recordações, meus defeitos, meu caráter, que não se resignavam à idéia de não existir mais e não desejavam para mim nem o Nada, nem uma eternidade em que eles não existissem. Quando Swann me dissera em Paris, um dia em que me sentia bastante real:

            -Você deveria partir para aquelas deliciosas ilhas da Oceania; verá que não há de voltar

mais - tive vontade de responder:

            - Mas então não veria mais a sua filha e viveria em meio a coisas e pessoas que ela nunca viu. - E no entanto a razão me dizia: ''- E que importa, visto que não sofrerás mais? Quando o Sr. Swann diz que não voltarás, quer dizer que não quererias mais voltar, e, visto não quereres voltar, é porque lá te sentirias feliz."

            Pois minha razão sabia que o hábito de assumir agora a tarefa de me fazer amar aquela casa desconhecida, espelho do lugar, o colorido das cortinas e de parar o pêndulo - se encarrega também de nos tornar caros os companheiros que a princípio nos desagradava dar outro formato aos rostos, de fazer simpático o som de uma voz, de modificar inclinações do coração. É claro que essas amizades novas por lugares e pessoas são tecidas sobre o esquecimento das antigas; mas justamente a minha, pensava que eu podia encarar sem terror a perspectiva de uma vida em que ficaria para sempre separado de pessoas cuja lembrança me fugiria; e era como uma espécie de consolo que oferecia ao meu coração a promessa de um esquecimento que, pelo contrário, me deixava louco de desespero. E não é que o nosso coração não deva também experimentar, ao consumar-se a separação, os efeitos acostumados pelo hábito; mas, até que isso aconteça, continuará sofrendo. Temo no futuro em que não poderemos ver nem conversar com os entes queridos, quais hoje tiramos a nossa mais profunda alegria, esse temor, longe de diminuir, aumenta quando pensamos que, à dor de uma tal separação, se acrescentará; no momento nos parece ainda mais cruel, de não mais sentirmos como permanecermos indiferentes; pois então o nosso eu terá mudado; não ser mais o encanto de nossos pais, de nossa amante, de nossos amigos, que deixa estar à nossa volta; nossa afeição por eles terá sido tão bem extirpada do coração a qual hoje em dia se constitui parte tão importante, que poderiam alegrar com essa vida separada deles, cuja idéia hoje nos causa horror; será uma verdadeira morte de nós mesmos, é verdade que morte seguida de ressurreição, mas num eu diverso e que não pode inspirar afeto às partes antigas, condenadas a morrer. São elas até as mais débeis, como o obscuro das dimensões, à atmosfera de um quarto as que se assustam e reprovam; rebeliões em que se pode ver uma forma secreta, parcial, tangível e verdadeira resistência à morte, da longa resistência desesperada e cotidiana à morte refratária e sucessiva tal como se insere em todos os momentos da nossa vida; ficando pedaços de nós a cada instante e fazendo que sobre a carne morta se multipliquem células novas. Para um temperamento nervoso como o meu nos quais os intermediários nervos, cumpriam mal suas funções, não restando o passo, até à consciência, das queixas dos mais humildes elementos do que vai desaparecer; ao contrário deixando-as chegar claras, exaustivas, inumeráveis e dolorosas; o angustioso alarme que eu experimentava sob aquele teto desaparecido e alto demais era apenas o protesto de uma amizade que sobrevivia em por um teto baixo e familiar. Sem dúvida essa amizade desapareceria, tendo seu posto em outra parte; então a morte e, depois, uma nova vida teriam nome de Hábito, cumprindo sua dupla obra; mas até o seu aniquilamento da afeição sofreria, principalmente naquela primeira noite, colocada em piedade num futuro já realizado, onde não mais havia lugar para ela, se revoltava, torturando-me com os gritos de suas lamentações cada vez que meus olhares, não podendo se desviar daquilo que a fazia sofrer, tentavam pousar no teto inacessível.

            Mas na manhã seguinte! - Depois que um criado veio me acordar e me trouxe água quente; enquanto me aprontava e tentava em vão encontrar na sala as coisas de que necessitava, e de onde tirava, em desordem, somente as peças que para nada serviam, que alegria senti ao pensar no prazer do almoço e do passeio; ao ver pela janela, em todas as vitrinas das estantes, como pelas vigias de um camarote de navio; o mar límpido, sem sombras, embora metade de sua superfície, delimitada por linha delgada e móvel, estivesse ensombrecida; ao seguir com os olhos as ondas que se arremessavam uma após outra como saltadores num trampolim! Em todos os instantes, tendo na mão a toalha tesa e engomada, na qual estava escrito o nome do hotel e com a qual fazia inúteis esforços para me secar, voltava para junto da janela a fim de lançar ainda um olhar àquele vasto circo resplandecente e montanhoso; aos nevados cumes de suas ondas de esmeralda aqui e ali polida e translúcida; que, com plácida violência e aspecto leonino, deixavam erguer-se e cair as suas rampas, às quais o sol acrescentava um sorriso sem rosto. Janela à qual, a seguir, eu deveria me pôr todas as manhãs como à portinhola de uma diligência onde adormecesse um viajante, para ver se durante a noite se aproximou ou se afastou uma desejada cordilheira - aqui as colinas do mar que, antes de voltar em nossa direção a passo de dança, podem recuar para tão longe que muitas vezes eu só avistava ao fim de uma longa distância as suas primeiras ondulações, numa transparência longínqua, vaporosa e azulada; como as geleiras que se vêem no fundo dos quadros dos primitivos toscanos. De outras vezes, era bem perto de mim que o sol ria sobre essas ondas; de um verde tão macio como o que mantém nas campinas alpestres (nas montanhas onde o sol aparece aqui e ali como um gigante que descesse alegremente, por vertentes e saltos desiguais) mais a líqüida mobilidade da luz do que a umidade do solo. De resto, nessa brecha que a praia e as ondas abrem no meio do mundo, para que nela penetre e se acumule a luz, é sobretudo a própria luz, de acordo com a direção de onde provém e que seguimos com o olhar, que desloca e situa as ondulações do mar.

            A diversidade de iluminação também modifica a orientação de um lugar, e nos oferece novos objetivos; dando-nos o desejo de atingi-los, não menos que o faria um trajeto longa e efetivamente percorrido em viagem. Quando, pela manhã, o sol vinha por detrás do hotel, abrindo à minha frente as praias iluminadas até os primeiros contrafortes do mar, era como se me mostrasse uma outra vertente da cordilheira; convidando-me a fazer, pelo caminho turbilhonante de seus raios, uma viagem imóvel e variada pelos mais belos sítios da paisagem acidentada das horas. Desde a primeira manhã, o sol me indicava ao longe, com um dedo risonho, os cimos azulados do Mar que não têm nome em nenhuma carta geográfica, até que, extasiado com aquele sublime passeio à superfície rumorosa e caótica de suas cristas, vinha se abrigar do vento em meu quarto, refestelando-se na cama derramando suas riquezas na pia molhada, na mala aberta, onde, por seu esplendor e luxo deslocado, aumentava ainda mais a impressão de desordem. Infelizmente, uma hora depois, na grande sala de jantar, enquanto almoça; de um limão cortado, espalhávamos algumas gotas de ouro sobre dois peixes dos quais logo deixaram em nossos pratos a armação de suas espinhas; como uma pena e sonora como uma cítara pareceu cruel à minha avó que pudéssemos receber o vivificante sopro do vento marinho por causa da vidraça transparente mas fechada que, como uma vitrina, nos separava da praia, mas enquadrava tão perfeitamente o céu que o seu azul parecia as cordas e suas nuvens brancas, um defeito do vidro. Convencido de que estava "sentado no molhe" ou no interior do boudoir, de que nos fala Baudelaire, perguntava -  "sol raiando sobre o mar", do poeta, não seria aquele bem diverso do dos da tarde, simples e superficiais como setas douradas e trêmulas que naquele momento queimava o mar como um topázio, fazia-o fermentar, tornava-o louro - sol como a cerveja, espumante como o leite, enquanto, por alguns instantes, - ele passeava aqui e ali grandes sombras azuis, obra sem dúvida de um deus que parecia se divertir em deslocá-las, movimentando um espelho no céu. Infelizmente não só pelo aspecto é que a sala de jantar de Balbec diferia da de Combray, para as casas fronteiras, uma sala sem ornatos, porém repleta de sol verde água de uma piscina, onde, a poucos metros de distância, a maré cheia e a claridade do dia elevavam, como diante de uma cidade celestial, uma indestrutível muralha de ouro e esmeralda. Em Combray, como todos nos conheciam, ninguém se preocupava com ninguém. E na vida de banhos de mar ninguém conhece banhos. Eu era ainda muito jovem e sensível para ter renunciado ao prazer de agradar as pessoas e possuí-las. Não tinha essa mais nobre indiferença que sentir homem mundano em relação às pessoas que ali almoçavam, nem quanto aos rapazes e moças que passavam pelo molhe; e sofria ante a idéia de que não pudesse fazer excursões com eles; a menos que minha avó, desprezando as convenções, e só preocupada com a minha saúde, lhes fosse pedir que me aceitassem como companheiro de passeios, coisa humilhante para mim. Uns se dirigiam para o chalé desconhecido; outros saíam de raquete em punho para um campo de, outros, ainda, montavam cavalos cujos cascos me pisavam o coração. Eu os olhava com uma curiosidade apaixonada, envoltos naquela ofuscante claridade; onde se modificam todas as proporções sociais; seguia todos os seus movimentos, através da transparência daquele enorme vão envidraçado, que deixava passar a luz. Mas ela interceptava o vento, o que era um defeito na opinião de minha avó que, não podendo suportar a idéia de que eu perdesse o benefício de uma ar, abriu furtivamente uma das vidraças, fazendo ao mesmo tempo voar cardápios, os jornais, os véus e bonés das pessoas que estavam almoçando; mas ela própria, animada com aquele sopro divino, permanecia calma e sorridente como santa Blandina, no meio dos impropérios que, aumentando minha impressão de tristeza e isolamento, reuniam contra nós todos os turistas desdenhosos, despenteados, furiosos. Um certo número dos hóspedes do hotel se compunha de personalidades eminentes dos principais departamentos daquela porção da França, o que, em Balbec, dava à população, que nesse tipo de hotéis de grande luxo costuma ser banalmente rica e cosmopolita, um caráter regional bastante acentuado; eram o primeiro magistrado de Caen, o presidente da Ordem dos Advogados de Cherburgo, um respeitável tabelião de Le Mans, que, durante as férias, partindo de pontos onde haviam estado dispersos o ano inteiro como atiradores de guerrilha, ou peões do jogo de damas, vinham se concentrar neste hotel. Mandavam reservar sempre os mesmos quartos e, com as esposas que tinham pretensões aristocráticas, formavam um pequeno grupo ao qual se ajuntavam um grande advogado e um grande médico de Paris, que no dia da partida lhes diziam:

            -Ah, é verdade, vocês não tomam o mesmo trem que nós. São privilegiados, estarão de volta em casa para o almoço.

            -Como, privilegiados? Vocês que moram na capital, Paris, a grande cidade, enquanto eu resido numa cabeça de comarca de cem mil almas, na verdade cento e dois mil pelo último recenseamento; mas o que é isso diante de vocês, que contam com os dois milhões e meio de Paris, e que logo terão de volta o asfalto e todo o esplendor do mundo parisiense!

            Diziam isto com um rolar de provinciano, sem qualquer aspereza, pois todos eram notabilidades em sua província, que, como tantos outros, poderiam ter ido à Paris, ao magistrado de Caen; tinham oferecido várias vezes um cargo no Supremo Tribunal; mas haviam preferido ficar no mesmo lugar, por amor à sua cidade, ou à sua glória ou à vida obscura, ou porque eram reacionários, e pelo prazer das amizades de vizinhança nos castelos da região. Aliás, muitos não voltavam diretamente para a sua terra. Pois-visto que a baía de Balbec era um pequeno universo à parte no meio do grande, um buquê de estações onde estavam reunidos em círculo os dias variados e os meses sucessivos, de modo que, não só nos dias em que se avistava Rivebelle, o que era sinal de tempestade, sobre cujas casas o sol brilhava, ao passo que em Balbec o céu estava negro, mas também, quando os dias frios já haviam atingido Balbec, podia-se ter certeza de obter dois ou três meses suplementares de calor na margem oposta; os hóspedes habituais do Grande Hotel cujas férias começavam tarde, ou duravam mais tempo mandavam, ao principiarem as chuvas e os nevoeiros, à aproximação do outono, colocar suas malas num barco e partiam ao encontro do verão em Rivebelle ou Costedor. Aquele grupinho do hotel de Balbec olhava com ar desconfiado todos os recém-chegados; aparentando não se interessar por eles, iam todos pedir informações a seu respeito ao amigo comum; pois o mordomo era o mesmo-Aimé-que voltava todos os anos para a temporada de verão e lhes reservava as mesas; e as senhoras suas esposas, sabendo mulher de Aimé esperava um neném, trabalhavam cada uma, após o almoço, a peça do enxoval, sempre nos examinando com seus lorgnons, a minha avó e a mim, porque comíamos ovos cozidos na salada, o que era considerado vulgar; não se praticava na boa sociedade de Alençon. Afetavam uma atitude de ironia desdenhosa em relação a um francês que era chamado de Majestade e que se autoproclamara rei de uma ilhota da Oceania povoada por alguns selvagens. Estava no hotel com sua bonita amante, à cuja passagem, quando ela ia tomar banho os garotos gritavam:

            "Viva a rainha!", porque ela os cobria com uma porção de moedas de cinqüenta cêntimos. O magistrado supremo e o presidente da ordem dos Advogados nem sequer desejava parecer que a via e, se algum dos amigos a olhava, julgavam-se no dever de prevenir que se tratava de uma operária.

            - Mas tinham-me assegurado que em Ostende eles ocupavam a cabine

            - Lógico! Alugam-na por vinte francos. Você pode ocupá-la, se lhe agradar. E sei, de fonte limpa, que ele mandou pedir uma audiência ao rei, o qual lhe fez saber que não tinha por que entrar em relações com soberanos de opereta.

            -Ah, na verdade é engraçado... Há cada tipo de gente!      

            Sem dúvida, tudo aquilo era verdade; mas era igualmente pelo aspecto de se sentir que, para uma boa parte da multidão, eles não passavam de bons burgueses, que não conheciam aquele rei e aquela rainha, pródigos de seu dinheiro; o tabelião, o magistrado, o presidente, à passagem do que chamavam uma máscara; sentiam tanto mau humor e manifestavam em voz bem alta uma indignação que estava a par seu amigo, o mordomo, o qual, obrigado a fazer boa cara aos mais generosos que autênticos, entretanto, sempre atendendo às suas o dirigia de longe aos antigos clientes um significativo piscar de olhos. Talvez tivesse também um pouco desse mesmo tédio de serem tidos, erroneamente, menos "chiques" e de não poderem explicar que o eram ainda mais no fundo daquele "Moço bonito!", com que qualificavam um jovem engomado, filho de um grande industrial e que, todos os dias, com uma roupa nova, orquídea na botoeira, almoçava com champanha e ia, pálido, impassível, um sorriso de indiferença nos lábios, jogar, na mesa do cassino, somas "que ele não tem fundos para perder", dizia com ar bem-informado o tabelião do primeiro magistrado, cuja mulher "sabia de boa fonte" que aquele jovem fazia os pais morrerem de desgosto.

            Por outro lado, o presidente da Ordem dos Advogados e seus amigos, poupavam sarcasmos a propósito de uma velha dama rica e nobre, que andava levando consigo todos os criados. Todas as vezes que a mulher do tabelião e a do primeiro magistrado a viam na sala de jantar, por ocasião das refeições, examinavam-na insolentemente com suas lentes, com o mesmo ar minucioso e desafiador como se ela fosse algum prato de nome pomposo, mas de aparência suspeita, que, após o resultado desfavorável de uma observação metódica, é mandado embora com um gesto distante e uma careta de desgosto.

            Com isso, certamente queriam indicar apenas que, se havia certas coisas que lhes faltavam no caso, algumas prerrogativas da velha dama, e o fato de estarem em relações com ela -, não era porque não pudessem, mas porque não queriam tê-las. Porém, tinham acabado por se convencer elas próprias; e era a supressão de todo desejo, de toda curiosidade pelas formas da vida que não conheciam, da esperança de agradar a novas pessoas, substituídas nelas por um desdém fingido, uma alegria artificial, que apresentava o inconveniente de colocar o desprazer sob a etiqueta de contentamento e as fazia mentir perpetuamente a si mesmas, duas condições para que fossem infelizes. Mas, sem dúvida, todo mundo naquele hotel agia da mesma maneira que elas, conquanto sob formas diversas; sacrificava, senão ao amor-próprio, ao menos a certos princípios de educação, ou a alguns hábitos intelectuais, a deliciosa inquietação de misturar-se a uma vida ignorada. Sem dúvida, o microcosmo em que se isolava a velha dama não estava empeçonhado de azedumes atrozes como o grupo em que riam de raiva a mulher do tabelião e a do primeiro magistrado. Ao contrário, estava embalsamado num perfume requintado e velhusco, mas que não era menos artificial. Pois no fundo a velha dama teria provavelmente encontrado em seduzir, em atrair a misteriosa simpatia das criaturas novas (ao mesmo tempo que ela própria se renovava), um encanto despojado do prazer que há em freqüentar apenas pessoas do seu próprio mundo e em recordar que, sendo sua sociedade a melhor que existe, torna-se desprezível o desdém alheio e mal informado. Talvez sentisse que, chegando incógnita ao Grande Hotel de Balbec, teria feito sorrir, com seu vestido de lã negra e sua touca fora de moda, a algum gaiato que teria murmurado: "que múmia!", ou principalmente a um homem de talento que, tendo conservado, como o primeiro presidente, entre as suíças grisalhas, um rosto jovem e olhos espirituosos como ela os amava, e que talvez houvesse logo indicado à lente aproximadora do lorgnon conjugal o aparecimento desse fenômeno insólito; talvez fosse por inconsciente receio desse primeiro minuto, que sabemos ser breve mas que não é menos temido -como da primeira vez que a gente mergulha-, que aquela velha dama enviava previamente um criado para pôr o hotel a par de seus hábitos e, cortando as gentilezas do gerente, subia para o quarto com uma rapidez em que havia mais timidez do que orgulho, quarto onde as cortinas pessoais, substituindo as que pendiam das janelas, dos biombos e das fotografias, colocavam de tal forma entre ela e o Mundo exterior, a que devia adaptar-se, a divisão de seus hábitos, que era mais na casa que morava e na qual permanecera...

            Desde então, tendo colocado entre ela de um lado, e o pessoal dos fornecedores, do outro, os seus criados que recebiam em vez dela, o daquela nova humanidade e mantinham em torno à sua patroa a atmosfera; tendo posto os seus preconceitos entre ela e os banhistas, sem se preocupar em agradar às pessoas que seus amigos não teriam recebido; era no seu mundo que continuava a viver pela correspondência com suas amigas, pela recordação, consciência íntima que possuía de sua posição, da qualidade de seus modelos de competência de sua polidez. Todos os dias, quando ela descia para dar um passeio em sua cabeça, sua criada de quarto, que carregava seus objetos pessoais, seu lacaio, que seguia à sua frente, davam a impressão dessa sentinela às portas de uma embaixada embandeirada com as cores do país do qual dá garantia para ela, em pleno solo estrangeiro, o privilégio da extraterritorialidade. Ela não deixou o quarto antes do meio da tarde; no dia em que chegamos vimos na sala de jantar aonde o gerente, como éramos recém-chegados, nos colocou sob sua proteção, à hora do almoço, como um oficial que conduz recrutas ao alfaiate para fardá-los; mas, em compensação, vimos, logo após, um fidalgo com sua filha, de uma obscura porém antiga família da Bretanha, o Sr. e a Srta. de Stermaria; cuja mesa nos haviam dado, julgando que não voltariam naquela noite. Tinham vindo a Balbec, exclusivamente, para se encontrarem com castelães que conheciam nos arredores, e não passavam pela sala de jantar do hotel, entre os convites de fora e as visitas realizadas, senão o tempo estritamente necessário. Era a sua elegância que os preservava de toda simpatia humana, de todo interesse pelos conhecidos sentados a seu redor, e no meio dos quais a Srta. de Stermaria mantinha o ar glacial apressado, distante, rude, exigente e mal-intencionado, que se põe no carro-restaurante no meio de viajantes nunca vistos, e a quem jamais voltaremos a ver, e com quem a gente não admite outras relações senão a defesa, contra nosso frango frio e do nosso canto no vagão. Mal começávamos a almoçar, vieram nos fazer erguer da mesa por ordem do Sr. de Stermaria, que acabavam de chegar e, sem o menor gesto de desculpas para nós, pediu em voz alta ao mordomo que cuidasse para que aquele erro não mais se repetisse, pois era-lhe desagradável que "pessoas a quem não conhecia" tivessem ocupado a sua mesa.

            Com certeza, no sentimento que levava determinada atriz (aliás conhecida devido à sua elegância, seu espírito, suas lindas coleções de alemão do que por seus desempenhos no Odeon), e mais o seu amante, rapaz rico, pelo qual ela se empenhara, bem como dois homens muito em evidência da aristocracia, a levarem uma vida à parte, a só viajarem juntos, a almoçar Balbec muito tarde, quando todas as pessoas já haviam terminado, a passar o dia inteiro em seu salão jogando cartas, não entrava má vontade alguma, apenas as exigências do gosto que tributavam a certas formas de engenho na conversação, a certos refinamentos de boa comida, o que só lhes dava para viverem e comerem juntos, e lhes tornaria insuportável a vida em comum com pessoas que não fossem iniciadas em tudo aquilo. Mesmo diante de uma mesa posta ou de uma mesa de jogo, cada um deles precisava saber que no conviva ou parceiro sentado à sua frente repousavam, em suspenso e sem utilidade, certos conhecimentos que permitem reconhecer a obra de carregação de que muitas casas parisienses se enfeitam como se se tratasse de uma "Idade Média" ou de uma "Renascença" autênticas e, em todas as coisas, critérios que lhes eram comuns para distinguir o bom do mau. Sem dúvida, naqueles momentos não era mais do que por uma rara e engraçada interjeição, atirada no meio do silêncio da refeição, ou da partida, ou pelo vestido novo e encantador que a jovem atriz pusera para almoçar ou jogar pôquer, que se manifestava a existência especial em que seus amigos queriam ficar mergulhados em toda a parte. Assim, porém, envolvendo-os em hábitos que conheciam a fundo, bastava ela para protegê-los contra o mistério da vida ambiente. Durante as longas tardes, o mar só estava suspenso diante deles como uma tela de cor agradável pendurada no toucador de um rico solteirão, e somente no intervalo das cartadas é que um dos jogadores, não tendo coisa melhor, erguia os olhos para o mar, a fim de ter uma indicação acerca do tempo ou da hora, e lembrar aos outros que a merenda esperava. E de noite não jantavam no hotel, onde os focos elétricos, derramando luz na sala de jantar, transformavam-na num imenso aquário maravilhoso diante de cuja parede de vidro a população obreira de Balbec, os pescadores e também as famílias de pequenos burgueses, invisíveis na sombra, se comprimiam contra o vidro para contemplar, vagarosamente embalada em redemoinhos de ouro, a vida luxuosa daquelas pessoas, tão extraordinária para os pobres como a dos peixes e dos moluscos estranhos (uma grande questão social, saber se a parede de vidro protegerá sempre o festim dos animais maravilhosos e se as pessoas obscuras que olham avidamente dentro da noite virão colhê-los em seu aquário e devorá-los). Entretanto, talvez houvesse, no meio da multidão parada e confundida na noite, algum escritor, algum amador de ictiologia humana, que, observando as maxilas dos velhos monstros femininos se fecharem sobre um pedaço de alimento engolido, se interessasse em classificá-los por suas raças, pelos caracteres inatos e também pelos adquiridos, que fazem que uma velha dama sérvia, cujo apêndice bucal é o de um grande peixe marinho, com a salada como uma La Rochefoucauld porque desde a infância vive na água doce do faubourg Saint-Germain.

            Àquela hora, viam-se os três homens de smoking esperando a mulher que estava atrasada, a qual, em breve, depois de ter chamado o lift do seu andar, saía do elevador como de uma caixa de brinquedos, num vestido quase sempre novo e com écharpes escolhidas segundo o gosto especial do seu amante. Os quatro, que eram de opinião de que o fenômeno internacional do Palace, implantado em Balbec, fizera ali florir o luxo mas não a boa cozinha, entravam num carro e iam jantar a meia légua dali, num pequeno e bem considerado restaurante, onde; tinham intermináveis conferências como cozinheiro sobre a composição do cardápio e a confecção dos pratos. Durante esse trajeto, a estrada margeada de mansões que parte de Balbec não era para eles, - senão a distância que seria preciso um pouco distinta, na noite negra, da que separava suas residências parisienses do café Anglais ou da Tour d'Argent-antes de chegar ao pequeno e fino restaurante onde, enquanto os amigos do rapaz rico o invejavam por ter uma amante tão bem vestida, as écharpes desta se desdobravam diante do pequeno grupo como um véu macio e perfumado, mas que era o bastante para separá-los do resto do mundo.

            Infelizmente para o meu sossego, eu estava bem longe de ser e daquela gente. Alguns ali me preocupavam; gostaria de não ser ignorado homem de testa fugidia, de olhar esquivo, que vagava entre os antolhos, os preconceitos e de sua educação, o grão-senhor daquelas terras, e que não era menos que o cunhado de Legrandin, que vinha às vezes de visita a Balbec e que aos domingos, ia para o garden-party semanal que ele e a mulher ofereciam, levavam do hotel uma boa parte de seus hóspedes, porque um ou dois dentre eles eram de fato convidados para a festa, e os outros, para não darem a impressão que não o eram, escolhiam esse dia para fazer uma excursão distante. Todavia a primeira vez em que entrou no hotel foi muito mal recebido, pois o pessoal acabara de chegar da Côte d'Azur, ainda não sabia de quem se tratava, estava vestido de flanela branca, mas também, fiel aos velhos costumes franceses e ignorantes da vida dos Palaces, tirara o chapéu ao entrar no saguão por lábia às senhoras, o que fez com que o gerente nem sequer tocasse no seu chapéu para cumprimentá-lo, julgando que se tratasse de alguém de condição muito humilde, que denominava homem "saindo do ordinário". Somente a mulher dele chamou a atenção para o recém-chegado, que denotava a vulgaridade afetada das pessoas elegantes, e declarou, com base no discernimento infalível e na indiscreta autoridade de uma pessoa para quem a alta sociedade de Le Mans não tem segredos, que sentia-se diante dela a presença de um homem de grande distinção; muito bem-educado, e que se sobressaía dentre toda aquela gente que encontrava em Balbec e que ela considerava indignos de convívio enquanto freqüentasse. Esse juízo favorável que pronunciou a respeito do cunhado de Legrandin se fundava provavelmente no aspecto apagado de alguém que nada tem para se impor; talvez tivesse reconhecido nesse fidalgo do campo com sacristão, os sinais maçônicos de seu próprio clericalismo.

            Por mais que me certificasse de que aqueles rapazes que todos montavam a cavalo em frente ao hotel eram os filhos do proprietário mal reputado de um magazine de novidades e que meu pai nunca teria consentido conhecer, a vida na praia os transformava, a meus olhos, em estátuas eqüestres semideuses, e o melhor que podia esperar era que nunca deixassem de lançarem olhares sobre o pobre rapaz que eu era, que só deixava a sala de jantar do hotel para ir sentar-se na areia. Gostaria de inspirar simpatia, até mesmo ao aventureiro que fora o rei de uma ilha deserta da Oceania, e até ao jovem tuberculoso, e aprazia-me pensar que sob aquele seu exterior insolente haveria uma alma tímida e carinhosa que talvez me guardasse tesouros de afeto. Aliás (ao contrário do que se costuma dizer das amizades feitas em viagem), como o sermos vistos na companhia de determinada pessoa pode nos conferir, numa praia para onde às vezes voltaremos, um prestígio seu igual na verdadeira vida mundana, não existe nada como as amizades dos banhos de mar, as quais a gente não só não evita como cultiva cuidadosamente na vida de Paris. Preocupava-me com a opinião de todas essas notabilidades momentâneas ou locais a meu respeito, devido à minha inclinação a me colocar no lugar das pessoas e a recriar seu estado de espírito; imaginava-as situadas não no seu nível real, aquele que teriam ocupado em Paris, por exemplo, e que seria um nível bastante inferior, mas no que pensavam ter, efetivamente, possuíam em Balbec, onde a falta de uma medida comum lhes dava uma superioridade relativa, emprestando-lhes um singular interesse. E, de todas essas pessoas, nenhuma havia cujo desprezo mais me fosse penoso como o do Sr. de Stermaria. Pois reparara em sua filha desde a entrada, seu lindo rosto pálido e quase azulado, o que havia de particular no porte de sua alta estatura, no seu modo de andar, e que com boas razões me evocava sua linhagem, sua educação aristocrática, e tanto mais nitidamente porque conhecia seu nome como aqueles temas expressivos criados pelos compositores de gênio e que pintam de modo esplêndido o fulgor das chamas, os murmúrios do rio e a paz campestre, que os ouvintes de um concerto, depois de terem folheado o programa, já de imaginação avivada, reconhecem bem. Acrescentando aos encantos da Srta. de Stermaria a idéia de sua causa, a "raça" tornava-os mais

completos e inteligíveis. Fazia-os também mais desejáveis, anunciando serem pouco acessíveis, como um preço elevado aumenta a estima de um objeto que nos agradou. A estirpe hereditária dava àquela epiderme composta de sumos selecionados o sabor de um fruto exótico ou de um molho célebre.

            Ora, o acaso pôs em nossas mãos, de repente, o modo de obtermos, minha avó e eu, um prestígio imediato aos olhos de todos os hóspedes do hotel. De fato, desde aquele primeiro dia, no momento em que a velha dama descia de seu quarto, produzindo, devido ao lacaio que a precedia e à camareira que corria atrás dela com um livro e uma manta esquecidos, uma viva impressão nos espíritos e excitando em todos nós uma curiosidade e um respeito aos quais era visível que nem o Sr. de Stermaria escapava, o gerente se inclinou para minha avó e, por amabilidade (como se mostra o xá da Pérsia ou a rainha Ranavalo a uma pessoa obscura que, evidentemente, não pode ter qualquer relação com a poderosa Majestade, mas deve gostar de vê-lo a poucos passos), segredou-lhe ao ouvido:

            "A marquesa de Villeparisis"; e, no mesmo instante ao olhar para minha avó, não pôde reter um olhar de surpresa alegre. Pode-se imaginar que a súbita aparição dela, nada mais influente, causou nos traços de uma velhinha. Não me causaria alegria maior, pois, não conhecia ninguém, sem quaisquer recurso para aproximar-me da Srta. de Stermaria. Isto é, não conhecia ninguém do ponto de vista prático. Porque esteticamente falando o número de tipos humanos é bastante limitado, onde quer que vá, do prazer de encontrar pessoas conhecidas sem ter necessidade de buscá-las; como fazia Swann com os quadros dos velhos mestres. Assim passamos os primeiros dias de nossa temporada em Balbec. Numa ocasião encontramos o porteiro dos Swann e a própria Sra. Swann, convertidos em garçom de café, num estranho de passagem que não volta a ver a praia. E uma espécie de imantação que atrai e retem por maneira tão inseparável bem apertadas umas junto à outras, certas características de fisionomia e mentalidade que quando a natureza assim introduz uma pessoa em um corpo novo não muda muito. Num garçom conservava intactos sua estrutura, o perfil do nariz e parte do queixo; a Sra. Swann, em sua nova condição no sexo masculino de banho, conservara não somente sua fisionomia, mas também sua forma especial de falar. Apenas, agora, no seu cinturão vermelho, usando a bandeirola que proíbe os banhos de mar (porque os banhos de mar aos que não sabem nadar, são muito prudentes); ela em seu antigo estado feminino como no afresco da Vida de Moisés, onde Swann a reconhecia por trás das feições da filha de Jetro. Ao passo que aquela Sra. de Villeparisis era na verdade não vítima de um encantamento que a despojasse de seu poder; ao contrário capaz de colocar influência à minha disposição, centuplicando-a; graças à ela como pelas asas de um pássaro fabuloso, levando-me em suas asas para diminuir as distâncias sociais infinitas - pelo menos em Balbec, que me separavam da Srta.de Stermaria.

            Infelizmente, se havia alguém mais fechado em seu universo particular, esse alguém era minha avó. Simplesmente não me compreenderia;  e no caso de haver se inteirado do interesse que me inspiravam as opiniões das pessoas e que experimentava grande prazer; mal notava e partiria de Balbec sem confessar-lhe que essas pessoas me dariam grande satisfação, pois o prestígio da marquesa no hotel e sua amizade nos colocaria em bom lugar aos olhos de Stermaria. Não que eu imaginasse que a amiga de minha avó não fosse o protótipo da aristocracia, pois estava muito acostumado com seu nome familiar aos meus ouvidos; antes que meu espírito desde menino, ouvia-o pronunciado em casa. Seu título sobre seu nome não era mais que uma particularidade estranha; como ocorre com esses nomes de ruas, diferente do que ocorre com os nomes de ruas tão vulgares e populares. A marquesa de Villeparisis, não me trazia a visão de um mundo especial; porém minha avó achava que não se fazia amizade durante as viagens. Achando que todos partilhavam da mesma idéia, no mesmo instante, que a velha dama Villeparisis, nos olhava, minha avó não pôde reter um olhar de alegre surpresa.

            A senhora de Villeparisis comia também no restaurante do hotel,  mas  no  extremo  oposto.  Não  conhecia  nenhuma  das pessoas que viviam no hotel ou que foram ali de visita, nem sequer o senhor do Cambremer; porque vi que este cavalheiro não a saudava um dia em que foi comer com sua esposa ao hotel, convidado pelo advogado de Cherburgo, o qual, transportado por aquela honra de sentar a sua mesa ao nobre, evitava a seus amigos de todos os dias e limitava-se a lhes fazer algum piscar de olhos de longe, maneira de aludir a este  acontecimento  histórico, bastante  discreto  para que  não pudesse tomar-se como um convite para aproximar-se de sua mesa.

            - Com todo o prazer; não tínhamos coragem de propô-la ao senhor, agora é comensal de marquesas! - disse aquela noite a mulher do magistrado.

            - Ora, vamos, eles não têm nada de tão extraordinário. Vejam, tenho de jantar na casa dela. Se quiserem, podem ir no meu lugar. É um oferecimento de coração. Francamente, tanto me faz ir como ficar...

            - Não, não, eu seria exonerado como reacionário. - Exclamou o magistrado, rindo até as lágrimas da piada. - E o senhor, também é recebido em Féter. - acrescentou, voltando-se para o tabelião.

            - Sim, vou lá aos domingos; questão de entrar por uma porta e sair outra. Mas eles não almoçam na minha casa como na casa do advogado.

            O Sr. de Stermaria não estava em Balbec naquele dia, para grande pesar advogado. Mas este, insidiosamente, comentou com o mordomo:

            -Aimé, pode dizer ao Sr. de Stermaria que ele não é o único nobre que está na sala de jantar. Reparou naquele senhor que almoçou comigo esta manhã? De bigodinho, e com ar militar? Muito bem, é o marquês de Cambremer.

            -Sim? Pois não me espanta.

            - Isto lhe mostrará que não é o único aristocrata no salão. Que fique sabendo! Não é mau baixar um pouco a crista desses nobres. Aimé, não diga se não quiser, não falo por mim; aliás, ele conhece bem o marquês.

            E no dia seguinte o Sr. de Stermaria, que sabia que o advogado defendia a causa de um de seus amigos, foi em pessoa apresentar-se.

            - Nossos amigos comuns, os de Cambremer, queriam precisamente reunir, nossos dias não coincidiram, e, enfim, não sei o que houve - disse o advogado; que, como muitos mentirosos, não imaginam que um dia alguém há de pôr em pratos limpos um detalhe insignificante, e que no entanto basta (se o acaso nos coloca a par de uma humilde realidade que está em contradição com o que se disse) para denunciar um caráter e inspirar desconfiança para sempre.

            Como sempre, porém mais facilmente enquanto o pai se afastara para conversar com o advogado, eu olhava a Srta. de Stermaria. Assim como a sua autoridade ousada, sempre bela as suas atitudes, feito quando, com os cotovelos apoiados na mesa, erguia o copo acima dos antebraços; a secura do olhar esgotado; a dureza fundamental e familiar que se percebia, mal encoberta inflexões pessoais; no fundo da voz, e que havia chocado minha avó; uma estátua de cânone atávico ao qual ela voltava quando acabava de expressar seu pensamento com um olhar ou uma entonação de voz; tudo isso fazia imaginar, a que contemplava, a linhagem que lhe legara essa insuficiência de simpatia humana; lacunas de sensibilidade, uma carência de amplitude de caráter em sua forma que a todo instante fazia falta. Mas certos olhares que passavam rapidamente no fundo árido de suas pupilas e nos quais sentia-se aquela doçura quase humilde; o gosto predominante dos prazeres dos sentidos confere à mulher mais orgulhosa que algum dia acabará dando valor apenas a quem lhe proporcionar tais prazeres, seja um cômico ou um saltimbanco, pelo qual talvez um dia largará o marido; em certo matiz de pele, vivo e rosado, que se espalhava por suas faces pálidas, semelhante ao que coloria de encarnado o coração das ninféias do Vivonne, eu julgava sentir que ela facilmente me permitiria que fosse nela buscar o gosto daquela vida tão poética que levava na Bretanha, vida à qual, fosse por hábito, por distinção inata, por nojo da pobreza ou da avareza dos seus, parecia dar tão pouco valor, e que, no entanto, ela mantinha eclusa em seu corpo. Na fraca reserva de vontade que lhe fora transmitida e que dava à sua expressão algo de covarde, talvez não encontrasse a Srta. de Stermaria apoio suficiente para resistir. O chapéu de feltro cinza, encimado por uma pluma um tanto fora de moda e pretensiosa, que ela usava invariavelmente em cada refeição, fazia-a mais simpática ainda a meus olhos, não porque se harmonizasse com sua pele argêntea e rosada, e sim porque, por ele, imaginava eu que não fosse rica, aproximando-a de mim. Obrigada a uma atitude convencional devido à presença do pai, mas guiando-se já por princípios diversos dele, para olhar e classificar as pessoas que estavam à sua frente, talvez visse em mim não a linhagem insignificante, mas o sexo e a idade. Se um dia o Sr. de Stermaria saísse sem ela, principalmente se a Sra. de Villeparisis viesse sentar-se em nossa mesa e assim lhe desse a nosso respeito uma opinião que me encorajasse a me aproximar dela, talvez pudéssemos trocar algumas palavras, marcar um encontro, ligar-nos mais. Num mês em que ela ficasse sozinha sem os pais, em seu castelo romanesco, talvez passeássemos ao crepúsculo, quando suavemente reluzissem as flores róseas das sarças sobre a água ensombrecida, debaixo dos carvalhos onde vinham morrer as ondas. Juntos, percorreríamos essa ilha imaginada por mim com tanto encanto porque teria enfeixado a vida habitual da Srta. de Stermaria e que repousava na memória de seus olhos. Pois parecia-me que não a possuiria de verdade senão ali, quando tivesse atravessado aqueles lugares que a rodeavam de tantas recordações, véu que o meu desejo queria arrancar, desses que a natureza interpõe entre a mulher e algumas criaturas (com a mesma intenção com que coloca, para todos, o ato de reprodução entre os seres humanos e o mais vivo prazer, e, no caso dos insetos, entre estes e o néctar, o pólen que eles devem transportar) a fim de que, enganados pela ilusão de possuí-la, assim de modo mais completo, sejam forçados a se apoderar primeiro das paisagens em que ela vive, e que, mais úteis para sua imaginação que o prazer sensual, não teriam contudo, sem ele, força bastante para atrair os homens. Mas tive de deixar de olhar a Srta. de Stermaria, pois seu pai, considerando sem dúvida que entrar em relações com uma personalidade importante era um ato curioso e breve, que se bastava a si mesmo e que, para desenvolver todo o interesse que comportava, não exigia mais que um aperto de mão e um olhar penetrante sem conversação imediata nem relações posteriores, já se despedira do advogado e voltara a sentar-se à frente dela, esfregando as mãos como um homem que há de fazer uma preciosa aquisição. Quanto ao advogado, tão logo passara a prior emoção daquela entrevista, como nos outros dias, ouviram-no por alguns instantes dirigir-se ao mordomo:

            - Mas eu não sou rei, Aimé; vá você ver o rei... Diga, meu caro presidente, é verdade que essas trutas têm muito bom aspecto? Vamos pedi-las a Aimé. Parecem-me bem recomendáveis esses peixinhos que você tem aí; traga-nos uns tantos deles, Aimé. - Repetia o tempo todo o nome de Aimé, de modo que, quando tinha - convidado para jantar, este lhe dizia:

            "Vejo que conhece muito bem a casa", e julgava dever também pronunciar constantemente "Aimé", devido à predisposição de certas pessoas em achar espirituoso e elegante imitar literalmente aquelas a quem se encontram, atitude em que entram, ao mesmo tempo, a timidez, a vulgaridade e a idiotice. Repetia-o sem parar mas com um sorriso, pois fazia questão de ostentar, a um tempo, as boas relações com o mordomo e sua superioridade sobre ele. E o próprio mordomo, toda vez que era pronunciado o seu nome, sorria um ar de carinho e orgulho mostrando que reconhecia a honra e compreendia o gracejo.

            Eram sempre aborrecidas para mim as refeições naquele vasto restaurante do Grande Hotel, normalmente apinhado, mas tornavam-se ainda mais quando chegava, para passar alguns

dias, o proprietário (ou gerente-geral eleito por assembléia de acionistas, não sei) não só daquele hotel como de sete outros situados em todas as partes da França, e que se habituara a estar sempre numa roda-viva de hotel em hotel, uma semana em cada um. Então, quase a princípio do jantar, aparecia todas as noites, na entrada da sala de jantar, homenzinho de cabelos brancos e nariz vermelho, de impassibilidade extraordinária, e que era, ao que parece, conhecido, tanto em Londres como em Monte Cario, como um dos primeiros hoteleiros da Europa. Uma ocasião eu havia saído um instante no início do jantar, como na volta passasse por todos, saudou-me, sem dúvida para mostrar que eu estava em sua casa, mas com frieza cujo motivo não consegui saber se se tratava da reserva de alguém que não esquece do que representa, ou do desdém por um freguês sem importância daqueles que, ao contrário, tinham grande importância, o gerente-geral se via, igualmente frio, porém mais profundamente, as pálpebras abaixadas; espécie de respeito pudico, como se tivesse à sua frente, numa cerimônia o pai da morta ou o Santo Sacramento. A não ser por esses cumprimentos e raros, não fazia um só movimento, como para mostrar que seus olhos davam a impressão de lhe saltarem do rosto, viam tudo; regulavam, asseguravam no "Jantar do Grande Hotel" não só o acabamento dos detalhes, mas a harmonia do conjunto. Evidentemente, ele se sentia muito mais que um regente de orquestra; sentia-se um verdadeiro generalíssimo. Julgando que uma contemplação levada ao máximo de intensidade era o bastante para lhe assegurar que tudo estava preparado, que nenhum erro cometido poderia acarretar a desordem; para assumir enfim suas responsabilidades, abstinha-se não só de qualquer gesto, como até de mover os olhos petrificados, pela atenção que abarcava e dirigia a totalidade das operações. Eu sentia que mesmo os movimentos da minha colher não lhe escapavam e, conquanto se eclipsasse logo após tomada a sopa, a revista que acabava de fazer me tirava o apetite para o resto da refeição. Seu apetite, no entanto, era muito bom, como se podia ver quando almoçava como simples particular, à mesma hora que os demais, na sala de jantar. Sua mesa apenas tinha uma peculiaridade: é que, ao lado, enquanto ele comia, o gerente habitual permanecia de pé o tempo inteiro conversando. Pois, sendo subordinado ao gerente-geral, procurava lisonjeá-lo e tinha-lhe muito medo. Durante essas refeições, eu sentia menos medo, pois o gerente, perdido no meio dos clientes, assumia a discrição de um general sentado em um restaurante onde há também soldados, e que tem o ar de não se ocupar deles. Todavia, quando o porteiro, cercado de seus criados, me anunciava:

            "Amanhã ele vai para Biarritz e depois para Cannes" eu respirava mais livremente.

            Minha vida no hotel se tornara não só triste, porque não tinha relações, mas incômoda, porque Françoise, em compensação, fizera muitas. Pode parecer que tais relações nos teriam facilitado muita coisa. Pelo contrário. Os proletários, embora lhes fosse muito difícil serem tratados como conhecidos por Françoise e só o conseguissem à custa de certas finezas para com ela, em compensação, quando por fim lhe alcançavam as graças, eram as únicas pessoas a lhe merecerem consideração. Seu velho código lhe ensinava que nada devia aos amigos dos patrões e, se estivesse apressada, podia mandar embora uma dama que tivesse vindo visitar minha avó. Mas, no tocante às próprias relações, ou seja, com as raras pessoas do povo admitidas à sua difícil amizade, suas ações eram reguladas pelo protocolo mais sutil e absoluto. Assim Françoise, tendo travado relações com o cafeteiro do hotel e com uma criadinha de quarto que fazia vestidos para uma senhora belga, não subia mais para preparar as coisas de minha avó imediatamente após o almoço, e sim uma hora mais tarde, porque o cafeteiro queria lhe preparar café ou chá na cafeteria, e a criada de quarto lhe pedia que fosse vê-la coser, e recusar-se a tal era-lhe impossível, pois tais coisas não se fazem. Além disso, a criadinha de quarto merecia-lhe atenções especiais, pois era órfã e fora educada por uma família estranha, em cuja casa costumava passar alguns dias. Tal situação excitava a piedade de Françoise bem como o seu desdém benevolente. Ela que possuía família, uma casinha que herdara dos pais e onde o irmão criava algumas Vacas, não podia considerar sua igual uma moça sem lar nem parentes. E, como esta esperava o dia 15 de agosto para visitar os benfeitores, Françoise não podia deixar de repetir:

            -Ela me faz rir. Diz: espero ir para casa no dia 15 de agosto, casa, diz ela! E nem sequer é sua terra; trata-se de pessoas que a recolheram, e chama de sua casa como se fosse verdadeiramente sua. Pobre menina! Bastante pobrezinha para não se dar conta do que é ter uma casa.-

            Embora Françoise não se relacionasse senão com criadas de quarto trazidas pelos hóspedes, as quais jantavam com ela no "refeitório dos serviçais" e que, diante a sua touca de rendas e seu fino perfil, a tomavam por uma dama, talvez nobre, requerida pelas circunstâncias ou pelo afeto a dama de companhia de minha avó, se, palavra, Françoise só conhecesse pessoas que não trabalhavam no hotel, o mal teria sido grande; pois ela não teria podido impedi-las de nos servir para a coisa, simplesmente porque, em caso algum, e mesmo desconhecidos dela, não nos serviria de nada. Mas ela também se ligara em amizade com o copeiro, com um ajudante de cozinheiro e com uma primeira camareira. No que diz respeito à nossa vida diária, foi que Françoise, que no dia  em que ela chegou, quando ainda não conhecia ninguém, tocava a campainha por qualquer coisa em horas inoportunas, quando nem minha avó nem eu teríamos coragem de fazê-lo, e respondia, se lhe fazíamos uma ligeira observação:

            "Mas a gente paga bem caro pelo serviço" como se pagasse do próprio bolso, agora que era uma personalidade da cozinha, o que nos parecera de bom agouro para nossa comodidade. Se minha avó ou eu tínhamos frio nos pés, Françoise, na mesma hora, achando perfeitamente normal, não se atrevia a tocar; afirmava que aquilo não pegaria bem, pois obrigaria a reacenderem os fornos ou incomodaria os criados, que ficavam descontentes. E terminava com uma locução que, apesar da forma insegura que a pronunciava, não era menos clara e nos fazia perder a paciência:

            "A Vê é que...". Não insistíamos, de medo que nos saísse com uma outra, bem grave: "Seja o que for..." De modo que não mais podíamos ter água quente. Françoise se tornara amiga da pessoa a quem cabia esquentar a água. Por fim, nós também fizemos uma amizade, embora sem que minha avó quisesse, pois ela e a Sra. de Villeparisis se encontraram certa manhã em frente, passando por uma porta, e foram obrigadas a se falarem, não sem trocarem gestos de surpresa e de hesitação, e executando movimentos de recuo, de que, afinal, fazendo protestos de delicadeza e alegria, como em certas cenas de uma peça onde dois atores monologam há muito tempo, cada um de seu lado, acompanhando os passos um do outro, fazendo de conta que não se viram ainda, e de repente se reconhecem, não podem crer nos seus olhos, entrecortam suas frases e finalmente juntos - o coro vindo após o diálogo - se lançam nos braços um do outro. Ao de um instante, a Sra. de Villeparisis, por discrição, quis deixar a minha avó que ao contrário, reteve-a até o almoço, desejando saber como procedia ela para mais cedo o correio e para que lhe servissem boa carne grelhada; pois a Villeparisis, muito gulosa, gostava bem pouco da cozinha do hotel. Serviam refeições que minha avó sempre citando a Sra. de Sévigné, a "tão magníficas que nos matavam de fome". E a marquesa todos os dias aceitava sentar-se à nossa mesa, enquanto esperava que a servissem; permitia que nos levantássemos ou nos incomodássemos por sua presença e demorávamos à mesa, conversando com ela, tendo terminado naquele momento sórdido em que as facas jazem na toalha junto dos desfeitos. De minha parte, a fim de conservar, para poder gostar de que estava na extremidade da terra, esforçava-me por olhar somente o mar, procurar nele os efeitos descritos por Baudelaire e olhar cair sobre a mesa senão nos dias em que haviam servido um monstro marinho que, ao contrário das facas e dos garfos, era de conter épocas primitivas, quando a vida começava a surgir no Oceano, cujo corpo, dotado de inumeráveis vértebras, de nervos fora construído pela natureza mas segundo um plano arquitetônico de catedral polícroma dos mares. Assim como o barbeiro que, ao ver que um oficial a quem com especial consideração reconhece um freguês que acaba de entrar para conversar com ele, se regozija ao compreender que são da mesma época não pode deixar de ir sorrindo, em busca da saboneteira, pois no estabelecimento, juntam-se às tarefas ordinárias de simples salão, os prazeres sociais, e até mesmo aristocráticos. Assim Aimé, vendo que Villeparisis encontrara em nós amizades antigas, ia em busca de taça boa com o mesmo sorriso orgulhosamente modesto e sabiamente de uma dona-de-casa que sabe se retirar no momento oportuno. Dir-se-ia de um pai feliz e enternecido que vigia, sem perturbá-la, a ventura de um moço que principiou em sua mesa. De resto, bastava que pronunciassem diante de uma pessoa dotada de um título, para que Aimé parecesse feliz. Françoise, diante de quem não se podia dizer "o Sr. conde Fulano" a fisionomia ficasse sombria e suas palavras fossem secas e breves, fazia com que ela estimasse a nobreza em grau inferior a Aimé. Aliás, Françoise possuía uma qualidade que nos outros é o maior dos defeitos: era orgulhosa. Não era do tipo agradável de  Aimé, tipo que sente e manifesta um vivo prazer quando suplicante, mas inédito, que não saiu nos jornais. Françoise, ao contrário, demonstrava espanto. Se houvessem dito diante dela que o arquiduque de cuja existência jamais suspeitara, não havia morrido como ainda vivia, teria respondido "sim", como se o soubesse há muito. Françoise, mesmo de nossos lábios, lábios de quem ela chamava seus patrões; que a tínhamos quase inteiramente do mesmo modo que um parente; não podia ouvir o nome de um nobre sem ter de reprimir um movimento; da família a que pertencia, ocupasse na sua aldeia uma posição de destaque, e que só devia ser perturbada na consideração de que gozava pelos mesmos nobres em cuja casa Aimé, pelo contrário, servira como criado desde a infância, se é que não fora educado por caridade. Assim, para Françoise, a Villeparisis é que tinha de pedir perdão por ser nobre. Mas, ao menos na França precisamente o talento; a única ocupação dos grão-senhores e das grandes Françoise, obedecendo à tendência dos criados a sempre andarem recolhendo respeito de seus patrões, informações fragmentárias sobre suas relações com as outras pessoas, das quais às vezes extraem deduções errôneas - como o faz homens acerca da vida dos animais -, achava a cada instante que estava em falta conosco. Conclusão a que aliás chegava com facilidade tanto devido ao exagerado por nós quanto ao grande prazer que sentia em nos ser desagradável. Tendo porém constatado, sem erro possível, as mil atenções que a Sra. de Villeparisis, tinha para conosco e até para com ela, Françoise perdoou-lhe o fato de ser marquesa; como ao mesmo tempo, nunca havia deixado de respeitá-la por seu título, de preferi-la a todos os nossos conhecidos. A verdade é que nenhum deles se esforçava ser tão continuamente amável. Toda vez que a minha avó reparava num livro a Sra. de Villeparisis estava lendo, ou dizia ter achado muito bom. Algumas frutas lhe mandara uma amiga, uma hora após um lacaio subia para nos trazer tais frutas. E, quando a víamos depois, para responder aos nossos agradecimentos, ela se contentava em dizer, dando a impressão de procurar desculpar; com o pretexto de uma utilidade especial:

            "Não é uma obra-prima, mas já chegam tão tarde, é necessário ter algo para ler" ou "é sempre mais prudente frutas confiáveis quando se está à beira-mar."

            - Mas parece que vocês não comem ostras nunca. - disse à Villeparisis (aumentando a minha náusea daquela hora, pois a carne viva das ostras me repugnava ainda mais que a viscosidade das medusas que me incomodavam na praia de Balbec) ; aqui são excelentes! Ah, vou dizer à minha criada de que vá pegar sua correspondência ao mesmo tempo que a minha. Como? Sua filha lhe escreve todos os dias? E o que é que vocês encontram para dizer uma à outra?

            Minha avó se calou, creio que por desdém, ela que repetia para mamãe as palavras da Sra. de Sévigné:

            "Logo que recebo uma carta, já queria ter outra, antes de recebê-la. Poucas pessoas são dignas de compreender o que sinto."

            Receei que aplicasse à Sra. de Villeparisis a conclusão:

            "Procuro a minoria que me corresponde e evito os outros."

            Mas ela mudou de assunto para elogiar as frutas que Villeparisis nos mandara na véspera. Eram, de fato, tão lindas que o gerente, desgosto de ver suas compoteiras desprezadas, me dissera:

            - Sou como o senhor; tenho um fraco maior pelas frutas do que por qualquer outra. Minha avó disse a sua amiga que ainda mais lhe agradecia, pois as que serviam no hotel em geral eram detestáveis.

            - Não posso dizer como a Sra. de Sévigné.- acrescentou - que, se não quisermos ter frutas ruins, seríamos obrigadas a mandá-las vir de Paris.

            -Ah, sim, a senhora lê a Sra. de Sévigné. Vejo-a desde o primeiro dia com suas Cartas (esquecia que nunca vira a minha avó no hotel antes de reencontrá-la naquela porta). Não acha que ela é um pouco exagerada com aquela preocupação constante a respeito da filha; parece que fala demais no assunto para ser sincera. Falta-lhe naturalidade. Minha avó achou inútil a discussão e, para evitar ter de falar de coisas de que gostava diante de alguém que não podia compreendê-las, escondeu com a valise as ''Memórias da Sra. de Beausergent.''

            Quando se encontrava com Françoise, no momento que esta chamava de "meio-dia", em que, com sua bela touca e cercada da consideração geral, descia para comer "no refeitório dos criados", a Sra. de Villeparisis a detinha para pedir notícias nossas. E Françoise nos transmitia os recados da marquesa:

            - Ela disse: "Dê-lhes bom-dia de minha parte" -, imitando a voz da Sra. de Villeparisis, da qual julgava citar textualmente as palavras, não as deformando menos que Platão as de Sócrates ou São João as de Jesus.

            Naturalmente, Françoise ficava muito sensibilizada com essas atenções. Quando minha avó afirmava que a Sra. de Villeparisis fora deslumbrante na juventude, não acreditava, achando que esta mentia por interesse de classe, pois os ricos se defendem uns aos outros. É verdade que daquela beleza de outrora subsistiam bem poucos indícios, e, para reconstituir com eles a beleza perdida, seria preciso ser mais artista que Françoise. Pois, para bem compreender o quanto uma velha pode ter sido bonita, não basta olhar mas traduzir cada feição.

            -Preciso me lembrar de lhe perguntar um dia se não me engano ao achar que existe algum parentesco entre ela e os Guermantes - disse minha avó, que com isso me indignou.

            Como era possível que eu acreditasse na origem comum de dois nomes que haviam entrado em mim através de portas tão diferentes, um pela porta baixa e vergonhosa da experiência, outro pela porta de ouro da imaginação? Via-se passar por ali, já por alguns dias, com vistoso aparato, a princesa de Luxemburgo, alta, ruiva, linda, com um nariz um tanto saliente; passava algumas semanas na região. Havia parado diante do hotel, e um lacaio fora falar ao gerente, voltando a carruagem para pegar um cesto de frutas maravilhosas (que uma em uma só corbelha, como a baía, estações diferentes), com um cartão:

            "A Princesa de Luxemburgo", onde estavam escritas algumas palavras a lápis. A que viajante principesco, que permanecesse incógnito no hotel, poderiam ser destinadas aquelas glaucas ameixas, luminosas e esféricas, como a redondeza do mar naquele momento; aquelas uvas transparentes, pendentes do galho seco como um claro dia de outono; aquelas pêras de um azul celeste? Pois certamente a pessoa a quem a princesa vinha visitar não podia ser a amiga de minha avó. Entretanto, na tarde seguinte, a Sra. de Villeparisis nos mandou aquele cacho de uvas fresco e dourado além de umas ameixas e pêras que logo reconhecemos.

            Eu me indagava por que acaso, na luneta indiferente pela qual a Sra. de Villeparisis considerava de muito longe a agitação sumária, minúscula e vaga da multidão de pessoas que conhecia, se encontrava intercalado, no local onde ela via meu pai, um pedaço de vidro prodigiosamente aumentativo que a fazia ver com tanto destaque e no maior detalhe, tudo o que ele possuía de agradável, as contingências que o forçavam a voltar, seus aborrecimentos de alfândega, seu gosto por El Greco, e, mudando para ela a escala de visão, mostrava-lhe este único homem tão grande no meio dos outros, bem pequeninos, como aquele Júpiter a que Gustave Moreau conferiu, quando o pintou ao lado de um frágil mortal, uma estatura mais que humana.

            Minha avó despediu-se da Sra. de Villeparisis para que pudéssemos ficar mais um momento a respirar o ar livre diante do hotel, à espera de que nos fizessem sinal, pela vidraça, de que o nosso almoço estava servido. Ouviu-se um tumulto. Era a jovem amante do rei dos selvagens que acabara de tomar seu banho de mar e entrava para o almoço.

            - Na verdade é uma praga; é o caso da gente deixar a França! - gritou com raiva o advogado, que passava naquele instante.

            Entretanto, a esposa do tabelião arregalava os olhos para a falsa rainha.

            - Não posso lhes dizer como a Sra. Blandais me irrita reparando em pessoas desse tipo -

disse o advogado ao presidente. - Gostaria de lhe dar um tapa. É assim que se dá importância a essa gentalha que certamente não deseja outra coisa. Diga ao marido dela para avisá-la que isto é ridículo; quanto a mim, não saio mais na companhia deles se continuam a prestar atenção aos embusteiros.

            Quanto à visita da princesa de Luxemburgo, cuja carruagem e acessórios, no dia em que viera trazer as frutas, parara diante do hotel não havia escapado ao grupo da mulher do tabelião, da do advogado e do primeiro magistrado, já desde algum tempo muito agitadas para saber se se tratava de uma legítima marquesa e não de uma aventureira aquela Sra. de Villeparisis a quem mostravam tanta deferência. Todas aquelas senhoras ardiam por descobrir que a marquesa era indigna dessa consideração. Quando a Sra. de Villeparisis atravessava o hall a mulher do primeiro magistrado, que em toda parte vislumbrava irregularidades, erguia o nariz do trabalho e olhava-a de um modo que fazia as amigas morrerem de rir.

            - Oh, vocês sabem que eu - dizia ela com orgulho - começo sempre por pensar mal. Não consigo admitir que uma mulher esteja verdadeiramente casada senão depois de ver a certidão de nascimento e os registros da cerimônia de casamento. Aliás, não se incomodem que vou fazer um pequeno inquérito.

            Todos os dias aquelas senhoras vinham rindo.

            - Vimos saber das novidades.

            Mas, no dia da visita da princesa de Luxemburgo, a mulher do primeiro magistrado pôs um dedo sobre os lábios.

            -Temos novidades.

            - Oh, a senhora Poncin é extraordinária! Nunca vi ninguém assim! Mas diga... o que é que há?

            - Muito bem: uma mulher de cabelos louros, uma grossa camada de pintura no rosto, um carro que cheirava a prostitutas a uma légua de distância, e como só essas senhoritas possuem, veio há pouco para visitar a pretensa marquesa.

            -Ora, ora! Não diga! Ora vejam! mas é aquela dama que vimos, lembram? Bem que achamos que não nos enquadrava bem, mas não sabíamos que tinha vindo para ver a marquesa. Uma mulher com um negro, não?

            - Essa mesma.

            -Vejam só! E não sabe o nome dela?

            - Sim, fingi que me enganava e peguei seu cartão; tem como nome de guerra o de princesa de Luxemburgo! Bem que eu tinha razão de desconfiar. Muito agradável estarmos aqui nessa promiscuidade com esta espécie de baronesa d'Ange.

            O advogado citou Mathurin Régnier e Macette ao primeiro magistrado. Aliás, não é necessário crer que semelhante mal-entendido fosse momentâneo, como os que se formam no segundo ato de um vaudeville para se resolverem no último ato. A Sra. de Luxemburgo, sobrinha do rei da Inglaterra e do imperador da Áustria, e a Sra. de Villeparisis pareceram sempre, quando a primeira vinha buscar a segunda para passearem de carro, duas estouvadas, dessas que é bem difícil evitar nas estâncias balneárias. Três quartas partes dos homens do faubourg Saint-Germain passam aos olhos de uma boa parte da burguesia por crápulas arruinados (o que aliás são às vezes, individualmente) e que, portanto, ninguém recebe. A burguesia é por demais honesta nesse ponto, pois as suas taras não os impediriam de forma alguma de serem recebidos com o maior favor onde ela jamais o será. E, de tal maneira imaginam que a burguesia o sabe, que afetam com uma simplicidade no que lhes diz respeito, um menosprezo pelos amigos particularmente "duros", que aumenta ainda mais o mal-entendido. Se por acaso um homem da alta sociedade se relaciona com a pequena burguesia porque, sendo extremamente rico, ocorre-lhe presidir as mais importantes sociedades financeiras, a burguesia, que vê por fim um nobre digno de ser um grande burguês, juraria que ele não convive com o marquês jogador e arruinado, a quem julga tanto mais desprovido de relações quanto mais amável. E qual não é seu espanto quando o duque, presidente do conselho administrativo da colossal empresa, dá ao filho por esposa a filha do marquês; jogador, mas cujo nome é o mais antigo da França, assim como um soberano antes fará seu filho casar-se com a filha de um rei destronado que a de um presidente da república no exercício de seu mandato. Quer dizer que os dois mundos têm, um do outro, uma noção tão quimérica como os habitantes de uma praia situada numa das extremidades da baía de Balbec têm da praia localizada na outra extremidade: de Rivebelle avista-se um pouco Marcouville -l'Orgueilleuse, mas mesmo isto ilude, pois a gente julga ser avistado de Marcouville, de onde ao contrário, os esplendores de Rivebelle são em grande parte invisíveis.

            O médico de Balbec, chamado em virtude de um acesso de febre tivera, achou que eu não deveria ficar o dia inteiro à beira-mar, em pleno soalheira, e prescreveu para meu uso algumas receitas. Minha avó as tomou com um respeito aparente, onde logo reconheci sua firme decisão de não cumprir nenhuma, mas levou em consideração o conselho em matéria de higiene e aceitar o oferecimento da Sra. de Villeparisis para alguns passeios de carro. Eu ia à hora do almoço, do meu quarto ao de minha avó. Este não dava diretamente ao mar, como o meu, mas recebia luz de três lados diversos: de uma extremidade do molhe, de um pátio e do campo, e era mobiliado de modo diferente, com toalhas bordadas de filigranas metálicas e de flores róseas de onde parecia emanam suave e agradável que a gente encontrava ao entrar. E, nessa hora em que vindos das exposições e como que de horas diversas quebravam os ângulos do muro, ao lado de um reflexo da praia, punham na cômoda um repositório como as flores do caminho, suspendiam à parede as asas dobradas, têm as mornas de uma claridade em vias de retomar seu vôo, aqueciam como um retângulo de tapete provinciano diante da janela do patiozinho; que engrinaldava como a uma videira, aumentavam o encanto e a complexidade da decoração dos móveis, parecendo esfoliar a seda florida das poltronas, aquele quarto que eu atravessava um momento antes de me vestir para o passeio, dava a impressão de um prisma onde se decoram as cores da luz de fora, ou de uma colméia onde os sucos do dia que estivessem dissociados, esparsos, inebriantes e visíveis, ou de um jardim a lembrança que se dissolvesse numa palpitação de raios de prata e de pétalas. Porém, antes de tudo, eu abrira minhas cortinas na impaciência de saber onde a marquesa brincava aquela manhã na praia, como uma nereida. Pois nenhum desses mares ficava por ali mais de um dia. Na manhã seguinte haveria outra vez que se parecia com ele. Mas nunca vi duas vezes o mesmo mar. Havia uns de beleza tão rara que, ao percebê-los, o meu prazer em ser constatado ainda pela surpresa. Que privilégio teria uma manhã sobre as outras; a janela, ao entreabrir-se, desvelasse aos meus olhos maravilhados, glaucônome, cuja preguiçosa beleza e suave respirar tinham a transparência de uma vaporosa esmeralda, através da qual eu via fluírem os elementos que a coloriam? Fazia o sol brincar com um sorriso enfraquecido por mais invisível, que outra coisa não era que o espaço vazio reservado à superfície translúcida, que assim se tornava mais abrangente e sedutor que essas deusas que o escultor salienta em meio a um bloco, que nem consegue desbastar. Assim, com sua cor única, o mar nos convidava ao passeio pelos caminhos grosseiros e terrenos, de onde, instalados na carruagem da Sra. De Villeparisis contemplaríamos o dia inteiro, sem nunca o alcançar, o frescor de sua palpitação macia. A Sra. de Villeparisis mandara atrelar cedo, para que tivéssemos tempo de ir a Saint-Mars-le-Vêtu, ou aos rochedos de Quetteholme, ou até qualquer outro ponto de excursão que, para um carro muito vagaroso, seria bem distante e levava o dia inteiro. Na minha alegria pelo passeio demorado que íamos fazer, cantarolava uma canção recentemente ouvida e andava de um lado para o outro à espera de que a Sra. de Villeparisis se aprontasse. Se fosse domingo, seu carro não estaria sozinho diante do hotel; vários fiacres alugados esperavam não só as pessoas que eram convidadas para o castelo de Féterne, pela Sra. de Cambremer, mas as que, em vez de ali ficarem como crianças castigadas, declaravam que o domingo era um dia aborrecido em Balbec e iam se esconder, logo após o almoço, numa praia vizinha ou visitar algum lugar das redondezas. Muitas vezes, quando perguntavam à Sra. Blandais se fora à casa dos Cambremer, ela respondia peremptoriamente:

            - Não, estávamos na cascata do Balbec -, como se fosse esta a única razão pela qual não passara o dia todo em Féterne. E o advogado afirmava caridosamente:

            - Invejo-os. Com muito gosto teria trocado com vocês; é bem mais divertido. Junto dos carros, diante do pórtico onde eu esperava, estava plantado, como um arbusto de rara espécie, um jovem criado do hotel que chamava a atenção de todos menos pela singular harmonia dos cabelos coloridos que por sua epiderme de planta. No interior, no hall que correspondia ao nártex, ou igreja dos catecúmenos dos templos romanos, e onde tinham direito a entrar as pessoas que não residiam no hotel, os companheiros do groom "externo" não trabalhavam muito mais que ele; porém ao menos executavam alguns movimentos. É provável que de manhã ajudassem na limpeza; mas de tarde estavam ali apenas como esses membros do coro que, mesmo quando não servem para nada, permanecem em cena para aumentar o número de figurantes. O gerente-geral, o mesmo que me dava tanto medo, contava aumentar consideravelmente o seu número no próximo ano, pois ''via em ponto grande". Sua decisão muito afligia o gerente do hotel, que achava que todos aqueles meninos não passavam de uns impertinentes, querendo com isso dizer que estorvavam a passagem e eram inúteis. Mas, pelo menos no espaço entre o almoço e o jantar, entre as saídas e regressos dos hóspedes, preenchiam eles o vazio da ação, como as alunas da Sra. de Maintenon que, vestidas de jovens israelitas, dançam um intermezzo cada vez que Ester ou Joab saem de cena. Mas o groom de fora, tão rico em matizes, de talhe delgado e frágil, perto de quem eu esperava que a marquesa descesse, conservava uma imobilidade cheia de melancolia, pois seus irmãos mais velhos tinham largado o hotel por destinos mais brilhantes e ele se sentia isolado naquela terra estranha. Enfim chegou a Sra. de Villeparisis. Talvez coubesse ao groom mandar o carro se aproximar e ajudar a senhora a subir; mas, por um lado, sabia que quem traz a criadagem consigo deve servir-se deles e, em geral, dá poucas gorjetas num hotel, e que, por outro nobres do velho faubourg Saint-Germain procedem da mesma maneira. A Villeparisis pertencia ao mesmo tempo a essas duas categorias. Que arborescente concluía daí que nada havia a esperar da marquesa; deixando o mordomo e a criada de quarto desta que a instalassem no carro com seus; sonhava tristemente com a sorte invejável dos irmãos sem sair de sua imagem vegetal.

            Partíamos; algum tempo após ter contornado a estação de trem, estávamos numa estrada rústica que em breve se tornou tão familiar como Combray, desde o cotovelo que principiava a se meter por entre cercados até a outra volta, quando o abandonávamos, e que, de cada lado, terras cultivadas. No meio delas, via-se aqui e ali uma macieira, é certo que de suas flores não trazendo mais que um buquê de pistilos, mas que me encantaram porque reconhecia essas folhas inimitáveis, em cuja ampla beleza, como pelo tapete de uma festa nupcial já terminada, passara recentemente de cetim branco para de flores avermelhadas. Quantas vezes em Paris, no mês de maio do ano seguinte, ocorria comprar um ramo de macieira numa florista e passar a noite diante deste onde desabrochava aquela mesma essência cremosa a polvilhar ainda a espuma, os brotos das folhas; e parecia que entre suas brancas corolas como por generosidade comigo, por gosto inventivo e também por contraste, tinha posto como brinde, de cada lado, um botão róseo que lhe contemplava, colocava-as à luz da lâmpada, por tanto tempo que ainda assim estava ali quando a aurora lhes trazia a mesma vermelhidão; estar mostrando ao mesmo tempo sobre Balbec (eu procurava naquela estrada por meio da imaginação, multiplicá-las, e estendê-las) preparado, sobre a tela já pronta, quadro que formava como aquelas do desenho que sabia de cor e que tanto desejaria ver - e um dia haveria de conseguir o momento em que a primavera cobre as telas de suas cores com a inspiração do gênio.

            Antes de subir para o carro, já compusera o quadro marinho, na esperança de vê-lo sob o "sol radiante", que em Balbec eu só visse fragmentado entre tantas coisas vulgares e que meu sonho não admitia, cabines, iates de recreio. Mas, quando o carro da Sra. de Villeparisis chegou de uma colina, eu avistava o mar entre as folhagens; desapareciam na distância os detalhes contemporâneos que, por assim dizer, tinham da natureza e da história; eu podia, olhando as ondas, esforçar-me por que eram as mesmas que Leconte de Lisle nos pinta na Orestíada, quando os guerreiros da heróica Hélade, "feito bandos de pássaros, com cem mil vibram ao mar sonoro". Mas em compensação, já estava agora; mais o mar não se apresentava com vida e, sim, entorpecido; eu já não sentia força em suas cores estendidas, como as de uma pintura, entre as folhas das árvores; a água parecia tão inconsistente como o céu, e apenas um tanto mais escura que ele.

            Vendo que eu gostava das igrejas, a Sra. de Villeparisis prometia-me que haveríamos de visitá-las aos poucos; principalmente a de Carqueville, "toda coberta de hera antiga", disse ela, fazendo com a mão um movimento que parecia envolver com prazer a fachada ausente em uma folhagem delicada e invisível. A Sra. de Villeparisis, com freqüência, tinha desses miúdos gestos descritivos, acompanhados de uma palavra precisa para definir o encanto e a particularidade de um monumento, evitando sempre os termos técnicos, mas sem poder dissimular que sabia muito bem das coisas de que falava. À maneira de desculpa, alegava que um dos castelos de seu pai, no qual se criara, ficava num distrito em que havia igrejas de estilo semelhante às dos arredores de Balbec, e teria sido vergonhoso que ela não tomasse gosto pela arquitetura, ainda mais que aquele castelo era o mais belo exemplar dos da Renascença. Mas, como também era um verdadeiro museu, e como, por outro lado, ali haviam tocado Chopin e Liszt, e Lamartine recitado seus versos, e todos os artistas conhecidos de um século inteiro ali haviam deixado pensamentos, escrito melodias, feito desenhos no álbum da família; a Sra. de Villeparisis, fosse por gracejo, boa educação, modéstia verdadeira, ou falta de espírito filosófico, atribuía a essa origem puramente material o seu conhecimento de todas as artes; acabava considerando pintura e música, literatura e filosofia; como o privilégio de uma jovem educada da maneira mais aristocrática em um monumento ilustre e catalogado. Parecia que, para ela, não havia outros quadros senão os que se herdam. Ficou satisfeita que minha avó gostasse de um colar que estava usando e que lhe chegava à cintura. Estava no retrato de sua bisavó pintado por Ticiano e que nunca saíra da família, de modo que se podia afirmar que era um Ticiano legítimo. Ela não queria ouvir falar em quadros comprados Deus sabe como, por algum Creso; estava de antemão convencida de que eram falsos e não manifestava desejo algum de vê-los. Sabíamos que ela própria pintava aquarelas de flores e minha avó, que ouvira elogiá-las, falou-lhe delas. A Sra. de Villeparisis mudou de assunto, por modéstia, mas sem mostrar maior espanto ou prazer do que uma artista bastante conhecida, a quem os cumprimentos não trazem nada de novo. Contentou-se em dizer que era um passa-tempo encantador porque, se as flores nascidas do pincel não eram famosas, pelo menos pintá-las obrigava-nos a viver na companhia de flores naturais, cuja beleza, principalmente quando é necessário olhá-las bem de perto para as copiar, não cansa nunca. Mas em Balbec, a Sra. de Villeparisis tirava férias para descansar os olhos. Minha avó e eu ficamos muito espantados ao perceber que a marquesa era mais "liberal" até que a maior parte da burguesia. Ela se admirava que causas como é o do escândalo da expulsão dos jesuítas, dizendo que isto sempre se fizera, mesmo sob a monarquia, mesmo na Espanha. Defendia a República, cujo anti-clericalismo censurava apenas em termos medidos:

            "Acharia tão ruim que me impedissem de ir à missa como se me forçassem a ir sem ter vontade", chegando mesmo a citar certas frases, como:

            "Oh, a nobreza de hoje não vale quase nada!", ou: ''Pra mim, um homem que não trabalha não tem qualquer valor", talvez como a sentir que assumiam em sua boca um sentido picante, saboroso e memoráveis suas palavras. De tanto ouvir expressar com franqueza opiniões avançadas; mas nunca chegar ao socialismo, que era o pesadelo da Sra. de Villeparisis - exatamente por uma dessas pessoas que, por inspirarem consideração devido a seu talento, levam nossa tímida e escrupulosa imparcialidade a recusar-se a condenar dos conservadores. Minha avó e eu não estávamos longe de acreditar que, a amável companheira, se encontravam a medida e o modelo da verdade entre outras coisas. Acreditávamos nela, sob palavra, quando discorria acerca de seus Ticianos; da galeria do seu castelo, do espírito de conversação de Luís Filipe. Porém, esses eruditos que nos assombram ao falar da pintura egípcia e das inscrições etruscas, e que se expressam de modo tão banal sobre as obras modernas; a de nos fazerem desconfiar senão exageramos o interesse das ciências em que são versados, pois, ao tratarem delas, não demonstram essa mediocridade que era de se esperar e que transparece nos seus ensaios estúpidos sobre Baudelaire. A Villeparisis, interrogada por mim acerca de Chateaubriand, Balzac e Victor Hugo; todos antigamente recebidos por seus pais e conhecidos dela mesma, achou graça na minha admiração, contava deles coisas picantes como acabavam; sobre grão-senhores ou políticos, e julgava-os com severidade exatamente porque não tinham essa modéstia, esse apagamento do próprio valor, essa arte só se contenta com um só traço preciso e não insiste, e evita acima de tudo a grandiloqüência, essa oportunidade e essas qualidades de moderação e simplicidade, próprias do verdadeiro talento, conforme lhe haviam ensinado e que ela não vacilava em lhes preferir certos homens que, de fato, talvez tivesse por isso, vantagem sobre um Balzac, um Victor Hugo ou um Vigny, numa academia ou num conselho de ministros, como Molé, Fontanes, Vil Bersot, Pasquier, Lebrun, Salvandy ou Daru.

            - É como esses romances de Stendhal, por quem você parece ter admiração. Você o deixaria muito espantado se lhe falasse desse modo, que se encontrava com ele em casa do Sr. Mérimée este sim, um homem de talento-, me disse várias vezes que Beyle (era este o seu nome) era de uma vulgaridade, mas muito espirituoso num jantar e não alimentava ilusões de seus livros. Aliás, você bem sabe como respondeu, com um ar de elogios excessivos do Sr. de Balzac. Nisto, pelo menos, era homem de bom tom.

            Ela possuía autógrafos de todos esses escritores e parecia achar às relações particulares que sua família tivera com tais artistas, seu julgamento a respeito deles era muito mais justo que o de rapazinhos como eu, que não os tinham conhecido.

            - Creio que posso falar neles porque freqüentavam a casa de meu pai e, como dizia o Sr. Sainte-Beuve, que era muito espirituoso, sobre tais escritores, convém acreditar nos que os viram de perto e puderam julgar mais precisamente o quanto valiam.

            Às vezes, como o carro subisse por uma estrada entre campos cultivados, alguns camponeses hesitantes, parecidos com os de Combray, seguiam nosso carro, tornando mais reais os campos, ajuntando-lhes um sinal de autenticidade, como a preciosa florzinha com que certos mestres antigos assinavam os quadros. O andamento dos nossos cavalos em breve nos separava deles, porém pouco adiante já víamos outro que nos esperava, espetando na erva à nossa frente a sua estrela azul; vários deles se atreviam a chegar à beira da estrada, e formava-se uma nebulosa com minhas lembranças antigas e aquelas florzinhas domésticas.

            Descíamos a encosta; então cruzávamos, subindo a pé, de bicicleta, numa carroça ou num carro, com uma dessas criaturas-flores do dia claro, mas que não são como as flores dos campos, pois cada uma encerra algo que não existe nas outras, o que impede que possamos satisfazer com suas iguais o desejo que nos inspira-, uma moça de granja que guiava sua vaca, ou meio deitada numa charrete, filha de lojista a passeio, uma senhorita elegante sentada na banqueta de um landô, diante dos pais.

            Certamente Bloch me abrira uma nova era e mudara-me o valor da vida, no dia em que me ensinara que meus sonhos nos passeios solitários para os lados de Méséglise, quando desejava que passasse uma moça do campo para tomá-la nos braços, não eram uma quimera que não correspondesse a coisa alguma fora de mim, mas que toda moça que encontrasse, camponesa ou citadina, estaria em condições de satisfazer tais desejos. Conquanto agora, por estar doente e nunca sair sozinho, não pudesse fazer amor com elas, sentia-me no entanto alegre como uma criança nascida numa prisão ou num hospital e que, tendo acreditado durante muito tempo que o organismo humano só pode digerir pão seco e remédios, soube de repente que os pêssegos, abricós e uvas não são um simples ornato dos campos, mas alimentos deliciosos e assimiláveis. Mesmo que o carcereiro ou o enfermeiro não o deixe apanhar esses belos frutos, o mundo todavia lhe parece melhor e a existência mais clemente. Pois um desejo se embeleza à nossos olhos, e apoiamo-nos a ele com maior confiança quando sabemos que a realidade exterior a ele corresponde, ainda que não seja realizável ao nosso caso. Pensamos com mais alegria numa vida em que possamos imaginar saciá-lo, desde que afastemos um instante do nosso espírito o pequeno obstáculo acidental e particular que nos impede realizá-lo pessoalmente. Quanto às belas moças que passavam, desde o dia em que soubera que suas faces podiam ser beijadas, tornara-me curioso acerca de suas almas. E o universo me parecera crescer de interesse.

            O carro da Sra. de Villeparisis andava rápido. Mal me dava tempo de ver a menina que vinha em nossa direção; entretanto como a beleza das criaturas não é igual à das coisas e sentimos muito bem que pertence a uma criatura útil ciente e de vontade própria, enquanto sua individualidade, alma vaga, desconhecida de mim, se pintava numa pequena imagem prodigiosamente, mas completa, no fundo de seu olhar distraído, logo, misteriosa como os pólens bem preparados para os pistilos, sentia jorrar em mim o embrião tão minúsculo, do desejo de não deixar passar aquela menina sem que seu pensamento tomasse consciência de minha pessoa, sem impedir que seus olhos se dirigissem a outro homem, sem que me fixasse em suas fantasias e contagiar seu coração. Todavia, o nosso carro se afastava, a linda menina já estava rindo, como lhe faltassem a meu respeito sobre quaisquer noções das que constituem uma pessoa, seus olhos, que mal me haviam avistado, já me esqueciam. Julgara assim tão linda só por tê-la visto de forma tão fugaz? Talvez, a impossibilidade de ter parado junto de uma mulher, o risco de não encontrá-la em outra ocasião, davam-lhe subitamente o mesmo encanto que uma certa doença ou a pobreza que nos impedem de visitá-lo, ou, aos dias tão aborrecidos que nos restam por viver, a idéia do combate em que certamente morreria; de forma que, se não fosse o hábito, a vida deveria parecer deliciosa às pessoas que estivessem ameaçadas de morrer a todo instante ou seja, a toda humanidade. Além disso, se a imaginação é levada pelo desejo daquilo que não pode possuir, seu impulso não é limitado por uma realidade inteiramente percebida de encontros, onde o encanto da passante está em geral diretamente relacionado a rapidez da passagem. Por pouco que a noite tombava e que o carro deparava-se no campo ou na cidade, não há torso feminino, mutilado como um mármore antigo; pela velocidade que nos arrasta e pelo crepúsculo que o afoga, que não há coração, a cada volta da estrada, do fundo de cada loja, as flechas da Beleza que seria lícito perguntar se, neste mundo, ela é outra coisa além de complemento que nossa imaginação, sobre excitada pela angústia, ajusta à mulher que passa fragmentária e fugitiva. Se eu pudesse ter descido do carro e falar à moça por quem talvez ficasse decepcionado com algum defeito de sua pele, que não pudera distinguir. (Então, de súbito, todo esforço para penetrar em sua vida pareceria impossível. Pois a beleza é uma seqüência de hipóteses, e fidelidade barrando o caminho que já víamos abrir-se para o desconhecido.) Tal palavra que ela tivesse dito, um sorriso, que me houvesse fornecido; uma cifra inesperadas para ler a expressão de seu rosto e de seu porte, tornariam banais. É possível, pois jamais encontrei na vida mulheres - como naqueles dias em que estava com uma pessoa muito grave, não podia me separar não obstante os mil pretextos que inventava; em anos depois de minha primeira viagem a Balbec, dando um passeio dê um amigo de meu pai, e vendo uma mulher que caminhava depressa; pensei que não era razoável, por uma questão de conveniência, perder minha porção de felicidade na única vida que sem dúvida existe. E, saltando do carro sem pedir desculpas, parti em busca da desconhecida; perdi-a no cruzamento de duas ruas, voltei a encontrá-la numa terceira e me achei, todo resfolegante, debaixo de um lampião, diante da velha Sra. Verdurin, a quem evitava por toda a parte e que, surpresa e feliz, exclamou:

            -Oh, como foi amável em correr para me cumprimentar!

            Naquele ano em Balbec, quando tinha desses encontros, afirmava à minha avó e à Sra. de Villeparisis que, devido a uma grande dor de cabeça, era preferível que voltasse a pé para casa. Elas recusavam deixar-me descer do carro. E eu acrescentava a linda moça (bem mais difícil de reencontrar do que um monumento, pois era anônima e móvel) à coleção daquelas todas que tinha prometido a mim mesmo ver de perto. Entretanto, uma ocorreu passar de novo a meus olhos, em condições tais que julguei poder conhecê-la quando quisesse. Era uma leiteira que vinha de um sítio trazendo um suplemento de creme para o hotel. Pensei que me reconhecera e, de fato, olhava-me com uma atenção que talvez fosse causada pelo espanto que lhe dava a minha atenção. Ora, no dia seguinte, em que ficara repousando a manhã inteira, quando Françoise veio descerrar as cortinas, por volta do meio-dia, entregou-me uma carta que fora deixada para mim no hotel. Não conhecia ninguém em Balbec. Não tinha dúvidas de que a carta fosse da leiteira. Infelizmente, era apenas de Bergotte que, de passagem, tentara me ver mas, tendo sabido que eu dormia, deixara-me algumas linhas amáveis, para as quais o ascensorista fizera um envelope que eu havia julgado escrito pela leiteira. Fiquei tremendamente desapontado, e a idéia de que era bem mais difícil e lisonjeiro receber uma carta de Bergotte, não me consolou em nada o fato de não ter sido escrita pela leiteira. O caso é que não voltei mais a ver aquela moça, como acontecia com as outras que só avistava do carro da Sra. de Villeparisis. Vê-las e perdê-las todas; aumentava o estado de agitação em que vivia e reconhecia uma certa sapiência nos filósofos que nos recomendam limitar nossos desejos (se é que pretendem estar falando do desejo que nos inspiram as outras pessoas, pois é o único que pode provocar ansiedade, ao se aplicar ao desconhecido consciente. Supor que a filosofia queria falar do desejo das riquezas é absurdo demais). Entretanto, estava disposto a julgar incompleta semelhante sabedoria, pois dizia comigo que esses encontros me faziam achar ainda mais belo um mundo que assim deixava crescer em todos os caminhos do campo umas flores tão corriqueiras e raras a um tempo; tesouros fugitivos do dia, dádivas do passeio, que dão novo gosto à vida e que somente devido à circunstâncias contingentes, que talvez não se reproduzissem no futuro, me haviam impedido de desfrutar agora.Mas talvez, esperando que um dia, mais livre, eu pudesse encontrar moças idênticas em outras estradas, já começasse a falsear o elemento exclusivamente individual do desejo de viver com uma mulher que nos, pareceu bonita; pelo simples fato de admitir a possibilidade de fazê-lo nascer artificialmente, de modo implícito a sua natureza ilusória.

            No dia em que a Sra. de Villeparisis nos levou a Carqueville, àquela igreja coberta de hera de que nos havia falado e que, edificada um outeiro, que domina a aldeia, o rio que a atravessa e que manteve sua ponte da Idade Média. Minha avó, pensando que eu gostaria de permanecer sozinho parado olhando o monumento, propôs à amiga irem ambas lanchar na confeitaria; na praça via perfeitamente dali e que, com sua pátina dourada, era como uma outra um objeto bem antigo. Combinou-se que eu iria encontrá-las aí. Para uma igreja no bloco de verdura que tinha à minha frente, foi preciso um esforço que me pôs mais em contato com a noção de igreja; com efeito, do modo que esses estudantes que apreendem mais completamente se fazem uma frase quando são obrigados, por meio de um exercício de versão; ou a despojá-la das formas a que estão habituados, essa noção de igreja, de  que precisava ao me ver diante de torres que se davam a conhecer por si mesmas; agora era obrigado a chamar constantemente em meu auxílio para não me esquecer que o arco desse punhado de erva era o de uma vidraça ogival; ali, que a saliência das folhas era devida ao relevo de um capitel. Mas então soprou um ventinho, fazendo estremecer o pórtico móvel que formava redemoinhos dos trêmulos como ondas de luz; as folhas se agitavam umas contra às outras; a fachada vegetal, toda trêmula, arrastava consigo, acariciando os pilares ondulantes e fugitivos.

            Ao deixar a igreja, vi, diante da velha ponte, moças da aldeia que sem dúvida por ser domingo, estavam muito enfeitadas, interpelando os rapazes que por ali passavam. Menos bem vestida que as outras, mas parecendo ter uma certa ascendência; pois mal respondia ao que elas lhe falavam, com ar mais grave e voluntarioso; uma outra, alta, meio sentada no retiro da ponte, de pernas penduradas, tinha à sua frente um cesto cheio de peixes, provavelmente acabara de pescar. Era de pele amorenada, olhos suaves com olhar desdenhoso para tudo o que a rodeava; nariz pequeno e muito fino. Meus olhos pousaram em sua pele e, a rigor, meus lábios podiam crer que haviam seguido seus olhos. Mas não era apenas o seu corpo o que eu atingia, era igualmente a pessoa que nele vivia e com a qual estabelece uma espécie de contato quando chamamos sua atenção, e na qual como que penetramos ao lhe sugerir uma idéia. O ser interior da bela pescadora parecia ainda estar cerrado para um duvidoso que ali tivesse penetrado, mesmo depois de ter percebido minha imagem refletir-se furtivamente no espelho de seus olhos, conforme um indício de refração que me era tão desconhecido como se me houvesse colocado um visual de uma corça. Mas, da mesma forma que não me bastaria que sorvessem prazer nos seus lábios, mas que igualmente lhe dessem esse prazer; assim também desejaria que a idéia de minha imaginação entrasse naquele ser, que a ele se prendesse, não só atraísse sua atenção sobre mim, como a sua admiração, seu desejo, fazendo com que mantivesse minha lembrança até o dia em que pudesse reencontrá-la. Enquanto isso, via a alguns passos dali o lugar em que devia me esperar o carro da Sra. de Villeparisis. Só dispunha de um momento; e já sentia que as moças começavam a rir por me verem parado daquele jeito. Tinha cinco francos no bolso. Tirei-os e, antes de explicar à linda jovem o serviço de que ia encarregá-la, para ter mais chances de que reparasse em mim, ergui por um instante a moeda à altura de seus olhos.

            - Visto que parece ser daqui. - disse à pescadora - poderia ter a bondade de me fazer um favor? Chegar a uma confeitaria que dizem que há numa praça mas não sei onde, e ali deve haver um carro à minha espera. Preste atenção: para evitar confusões, pergunte se é o carro da Sra. marquesa de Villeparisis. Aliás, vai ver logo qual é; tem dois cavalos.

            Era isto o que eu queria que ela soubesse para fazer uma alta idéia de mim. Mas, quando pronunciei as palavras "marquesa" e "dois cavalos", experimentei um súbito sossego. Vi que a pescadora se lembraria de mim e que se dissipava, junto com meu medo de nunca mais vê-la, uma parte do meu desejo de reencontrá-la. Parecia-me que acabava de tocar sua pessoa com lábios invisíveis e que lhe agradara. Essa violenta conquista do seu espírito, essa posse imaterial, fizeram-na perder tanto mistério como o teria feito a posse física.

            Descemos até Hudimesnil; de súbito invadiu-me aquela profunda felicidade que quase não sentia desde o tempo de Combray, felicidade análoga à que me haviam dado, entre outros, os campanários de Martinville. Mas desta vez permaneceu incompleta. Acabava de ver, num dos lados da estrada, na encosta por onde íamos, três árvores que deviam servir de pórtico a uma alameda encoberta, formando um desenho que já não era a primeira vez que via; não podia reconhecer o local de onde pareciam ter se destacado, mas sentia que me fora familiar antigamente. De modo que, tendo meu espírito vacilado entre um ano bem remoto e o momento presente, também vacilaram os arredores de Balbec, e perguntei-me se todo aquele passeio não seria uma ficção. Balbec um lugar onde nunca estivera a não ser na imaginação, a Sra. de Villeparisis um personagem de romance e as três velhas árvores a realidade que descobrimos ao erguer os olhos do livro que estamos lendo e que descreve um meio ao qual nos pareceu que tínhamos sido de fato transportados.

            Contemplava as três árvores; via-as muito bem, mas meu espírito sentia que ocultavam algo que não conseguia apreender, como ocorre com os objetos colocados muito longe de nossos dedos, e que, mesmo que estendamos o braço, não fazemos mais que acariciar, sem poder agarrá-los. Então a gente descansa por um momento, para depois estender o braço ainda com mais força e tentar chegar mais adiante. Mas, para que meu espírito pudesse fazer o mesmo, tomar impulso era necessário que eu estivesse sozinho. Como gostaria de poder me isolar da mesma forma que o fazia em meus passeios para os lados de Guermantes, quando me separava de meus pais! Parecia-me até que deveria fazê-lo. Reconhecia o gênero de prazer que requer, na verdade, um certo esforço da mente sobressaindo de si mesma; mas muito grato em comparação com as medíocres alegrias do abandono e da renúncia. Tal prazer, cujo objeto era apenas pressentido e que eu mesmo tinha que criar, experimentava-o raras vezes apenas, mas, de cada vez, parecia-me que quaisquer coisas ocorridas no intervalo não tinham importância quase, e que era limitante em sua realidade, poderia enfim começar uma vida verdadeira. Por um momento a mão diante dos olhos para poder fechá-los sem que a Sra. de Villeparisis notasse. Permaneci sem pensar em nada e em breve, com o pensamento concentrado, impulsionado com mais força, saltei na direção daquelas três árvores, ou nessa direção interior em cuja extremidade eu as via em mim mesmo; senti por detrás delas a presença de um objeto conhecido, porém vago, o qual pude atrair até mim. Todavia, todas as três, à medida que o carro avançava, iam aproximando. Onde as teria visto já? Não havia, nos arredores de Combray nenhum lugar onde uma alameda se abrisse daquele jeito. O local que elas me davam também não se situava naquele campo alemão aonde fora certa vez numa estação de águas com minha avó. Por acaso, seria preciso crer que em prol de uns anos já bem remotos da minha vida, a tal ponto que a paisagem, rodeava já se apagara inteiramente da memória e que, como essas páginas a gente encontra, de súbito, emocionado, num livro que pensava nunca ter lido, as únicas coisas que sobre-nadavam do livro esquecido de minha primeira infância? Ou, ao contrário, não pertenceriam apenas à essas paisagens de sonho, se mesmas, ao menos para mim, a quem o seu aspecto estranho não parecia objetivação, em meu sono, do esforço que eu fazia durante a vigília, alcançar o mistério num lugar atrás de cuja aparência eu o pressentia, acontecera tantas vezes nos passeios para os lados de Guermantes, seja para reintroduzir esse mistério em um lugar que desejara conhecer e que me parecia superficial desde que o conhecera, como Balbec? Não seriam mais que uma imagem totalmente nova, destacada de um sonho da noite precedente mais apagada que me parecia vir de muito mais longe? Ou então talvez nunca tivesse visto, e ocultavam sob si mesmos, como aquelas árvores, como a verdura que eu vira no caminho de Guermantes, um sentido tão obscuro,de decifrar como um passado longínquo, de modo que, solicitado pode aprofundar um pensamento, pensava que reconhecia uma lembrança? Por acaso não continham pensamento algum e era um cansaço da minha vista que me fazia vê-los duplos no tempo como às vezes vemos duplicadamente? Não sabia. Entretanto, vinham em minha direção, talvez aparição mística ronda de bruxas, ou de normas que me propunham seus oráculos. Eu acreditei que eram fantasmas do passado, bons companheiros de minha infância; amigos desaparecidos que invocavam as nossas comuns lembranças. O mesmo que sombras, pareciam como que me pediam que as levasse comigo, que os devolvesse a vida. Em seus singelos gestos singelos e fogosos percebia eu a impotente pena de um ser amado que perdeu o uso da palavra e se dá conta de que não poderá dizer o que quer e que nós não podemos adivinhar. E numa encruzilhada o cocheiro os deixou pra trás. O cocheiro que me arrastava em direção oposta do único que eu considerava como certo; do único que me fizera feliz de verdade e parecia ser essa a minha vida.

            Vi como se distanciavam as árvores, agitando desesperadamente seus braços, como se me dissessem: ''O que você não aprender hoje de nós, nunca o poderá saber. Se nos deixar cair outra vez nesse caminho, que desde o fundo queríamos elevar à sua altura, toda uma parte de si mesmo que nós levávamos voltará para sempre a um nada.''

            Com efeito, mesmo que mais adiante encontrasse outra vez, esse nível de prazer e de inquietação que acabava de sentir, numa noite em que me entregasse à ele – não seria tarde, porém para sempre – pois, nunca soube o que queriam me trazer essas árvores, nem onde as tinha visto. E quando o cocheiro mudou de direção, dei-lhes as costas e deixei de vê-las; enquanto que a senhora de Villeparisis perguntava-me porque eu estava tão preocupado; sentia-me tão triste como se acabasse de morrer um grande amigo, de morrer eu mesmo, de renegar a um morto ou à Deus.

            Era hora de pensar na volta. A senhora Villeparisis que sentia a Natureza mais friamente do que minha avó; porém com sentido de somente apreciar museus e palácios aristocráticos, a beleza majestosa; sensível à certas coisas antigas; dizia ao cocheiro que voltasse pelo mesmo caminho que veio de Balbec; que era muito pouco freqüentado, mas que tinha árvores dos dois lados e nos pareciam admiráveis.

 

            Quando já conhecíamos bem essa estrada antiga voltávamos, para variar, se é que à ida já não passávamos por ali, por outro caminho que cruzava os bosques do Chantereine e Canteloup. A invisibilidade dos inumeráveis pássaros que se respondiam de árvore a árvore por todos lados dava a mesma impressão de descanso que quando se têm os olhos fechados. Encadeado à minha banqueta do carro como Prometeo à sua rocha, ia eu escutando àquelas  Oceánidas. E quando via por acaso a algum dos pássaros passar por detrás de umas folhas, havia tão pouca relação aparente entre ele e seus gorjeios, que eu não resistia a ver nesse pequeno corpo saltitante, assustado e cego, ser a causa dos cantos.

            Aquele caminho era igual a tantos outros que só encontramos na França. Subia uma encosta bastante inclinada e logo descia, pouco a pouco, por um trecho mais largo. Aquele momento não me parecia muito atraente; estava contente apenas por voltar. Mas, depois, tornou-se motivo de alegrias; porque me ficou na lembrança como recordação, aonde iam dar essas estradas; semelhantes por onde haveria de passar mais tarde a passeio. A viagem, sem solução de continuidade e que, graças a ela, poderia ir com com meu coração. Pois, desde que o carro ou o automóvel entravam numa estradas que desse a impressão de continuar aquela que eu percorrera com de Villeparisis, minha consciência atual se acharia de imediato apoiada, em meu passado mais recente, estando abolidos todos os anos intermediários de impressões que eu tivera naqueles fins de tarde, passeando pelas cercados de Balbec; quando as folhas cheiravam bem e se erguia a névoa, como além da próxima se vislumbrava o pôr-do-sol feito uma outra localidade distante, e que não era possível atingir na mesma tarde. Tais impressões, às quais experimentava agora, em outras regiões e estradas semelhantes, ficaram sendo todas as sensações acessórias de livre respiração, de curiosidade, de apetite e de alegria, que lhe eram comuns, excluindo todas as outras impressões se reforçavam, assumiam a consistência de uma espécie que compartilha prazer, quase de um quadro de vida que aliás muito raramente voltaria a ver; mas nos quais despertadas recordações punha em meio à realidade material percebida, uma porção bem ampla de realidade evocada, imaginada, inatingível que me dava, em meio a essas regiões que atravessava, algo mais que um momento de estética, um desejo fugaz, porém exaltado, de ali viver para sempre, quantas vezes, apenas por ter aspirado a fragrância de uma folhagem, ou estar sentado num carro defronte à Sra. de Villeparisis; de cruzarmos Luxemburgo, que lhe acenava do seu carro, e voltar para jantar no Hotel; era como que uma felicidade inefável que nem o presente nem futuro podem nos proporcionar e que só saboreamos uma vez na vida! Muitas vezes a noite já caíra antes que estivéssemos de volta; e recitava à Sra. de Villeparisis, mostrando-lhe a lua no céu, uma bela expressão de Chateaubriand, de Vigny ou de Victor Hugo: "Ela espalhava o velho segredo de melancolia" ou "Chorando como Diana junto de suas fontes" ou ainda "A era nupcial, augusta e solene".

            - E acha isso bonito? perguntava-me a marquesa. - Genial, como dizer? Pois lhe direi que sempre me espanta ver que se levam agora a sério as coisas que os amigos desses cavalheiros, mesmo fazendo inteiros a seus méritos, eram os primeiros a ridicularizar. Não se prodigalizava, o qualificativo de gênio, pois, se agora a gente diz a um escritor que ele talento, ele se sente injuriado. Você me cita uma grande frase de Chateaubriand sobre o luar. Vai ver, agora, como tenho meus motivos para ser imune às expressões do Sr. de Chateaubriand vinha seguidas vezes à casa de meu pai. De resto, agradável quando não havia gente de fora, porque então se mostrava divertido. Porém, quando havia audiência, começava a fazer pose e se tornava ridículo; diante de meu pai, afirmava que havia atirado sua demissão à cara do rei e que dirigira o conclave, esquecendo que meu pai fora por ele encarregado de suplicar ao rei que voltasse a admiti-lo e ouvira fazê-lo acerca da eleição do papa os prognósticos mais descabidos. Era necessário ouvir, sobre esse famoso conclave, o Sr. de Blacas, que era pessoa bem diferente do Sr. de Chateaubriand! Quanto às frases deste sobre o luar, simplesmente se tornaram uma instituição lá em casa. Cada vez que havia luar sobre o castelo, quando tínhamos um novo convidado, nós lhe aconselhávamos que levasse o Sr. de Chateaubriand para tomar um pouco de ar depois da refeição. Quando voltavam, meu pai não deixava de chamar à parte o convidado:

            "- O Sr. de Chateaubriand foi eloqüente?

            - Claro que sim.

            - E lhe falou do luar?

            -Sim, como sabe?

            -Espere, e não lhe disse... (e citava-lhe a frase)?

            -Sim, mas por que o mistério...?

            - E até lhe falou do luar na campanha romana.

            - Mas o senhor é feiticeiro?

            Meu pai não era feiticeiro, mas o Sr. de Chateaubrind se contentava em servir sempre o mesmo prato já preparado.

            Ao nome de Vigny, ela começou a rir:

            -Aquele que dizia: "Eu sou o conde Alfred de Vigny." A gente pode ou não ser conde, isto não tem a menor importância.

            No entanto, achava que deveria ter alguma, pois acrescentava:

            - Em primeiro lugar, não estou certa de que o fosse; e, de qualquer modo, era de pequena linhagem esse senhor que falou em seus versos de sua "viseira de nobre". Como tem bom gosto e é interessante para o leitor! É como Musset, simples burguês parisiense, que exclamava com ênfase: "O falcão de ouro que enfeita meu capacete." Um grão-senhor de verdade nunca diz dessas coisas. Pelo menos Musset possuía talento como poeta. Mas, tirando Cinq-Mars, nunca pude ler nada do Sr. de Vigny, o tédio me faz cair o livro das mãos. O Sr. Molé, dotado de todo o espírito e tato ausentes no Sr. de Vigny, empregou-os muito bem ao recebê-lo na Academia. Como? Não conhece o seu discurso? É uma obra-prima de malícia e impertinência.

            Censurava em Balzac, espantando-se que seus sobrinhos o admirassem, o ter pretendido pintar uma sociedade "em que não era recebido", e sobre a qual contou mil inverossimilhanças. Quanto a Victor Hugo, ela nos dizia que o Sr. De Bouillon, pai dela, que tinha muitos amigos entre a juventude romântica, graças a eles comparecera à estréia de Hernani, mas não pudera ficar até o fim, tão ridículos que achara os versos desse escritor talentoso porém exagerado, que só recebera o título de grande poeta em virtude de um contrato ajustado e como recompensa pela indulgência interessada que tivera para com as perigosas divagações dos socialistas.

            Já víamos o hotel e suas luzes, tão hostis na primeira noite, a da chegada; agora suaves e protetoras, anunciando o lar. E, quando o carro chegava à porta, o Porteiro, os grooms e o lift, apressados, ingênuos, vagamente inquietos com o nosso atraso, amontoados na escadaria à nossa espera, já tornados familiares, eram como essas criaturas que mudam tantas vezes no decurso de nossa vida e como nós próprios mudamos, mas nas quais encontramos o prazer de fiel e amistosamente refletidos, enquanto durar o tempo em que são o espelho de nossos hábitos. Os preferimos aos amigos que não vemos há muito tempo, porque contêm, em maior proporção que aqueles, algo do que somos na atualidade. Somente aquele que ficara exposto ao sol o dia inteiro voltara para dentro a suportar a friagem da noite, e, todo envolto em lã, com a cabeleira escorrida e a flor curiosamente rosada das faces, no meio do hall envidraçado; lembrava uma planta de estufa protegida contra o frio. Descemos do carro, ajudados por muito mais empregados do hotel do que seria necessário; mas eles a importância da cena e nela julgavam-se obrigados a representar um papel. Eu estava faminto. De modo que muitas vezes, para não atrasar o jantar, não subi ao quarto, que acabara por se tornar tão realmente meu que rever agora o cortinado violáceo e as estantes baixas era encontrar-me sozinho com esse espetáculo; se refletia nas coisas como nas pessoas e esperávamos juntos no hall; até que o mordomo viesse nos dizer que já estávamos servidos. Era a ocasião de ouvir uma vez a Sra. de Villeparisis.

            - Estamos abusando da senhora - dizia minha avó.

            - Nada disso, estou encantada, isto me agrada bastante - respondia a amiga com um sorriso carinhoso, afinando a voz num tom melodioso que contava com sua simplicidade habitual.

            É que, de fato, nesses momentos, ela não era natural; lembrava-se da educação, dos modos aristocráticos com que uma grande dama deve movimentar; os burgueses em cuja companhia se alegra de estar, que não é orgulhosa. A falta de verdadeira polidez que se podia observar nela eram os excessos da mesma polidez; pois nisso era possível reconhecer o vinco profissional da dama do faubourg de Saint-Germain, que, vendo sempre em certos burgueses descontentes que estava destinada a fazer em alguns dias, aproveitava a vida em todas as ocasiões em que lhe é possível escrever, no livro de contas de sua contabilidade para com eles, a antecipação de um tostão de crédito que lhe possa compensar no seu débito; a festa ou o jantar a que não os convidará. Assim, de sua casta social modelara a marquesa de forma definitiva, sem saber que as circunstâncias eram bem outras, as pessoas diferentes, e que em Paris poderíamos ver em sua casa seguidas vezes; de modo que esse gênio a impulsionava com ardor febril, como se o tempo que se lhe concedia para ser amável fosse muito curto, a multiplicar para nós, enquanto estávamos em Balbec; os de rosas e melões; os empréstimos de livros; os passeios de carro e verbais. Daí, seguia-se que da mesma forma que o esplendor ofuscante; o flamejar multicor e os clarões submarinos dos quartos, bem como a equitação com que os filhos de um comerciante eram deificados, como Alexandre da Macedônia - ficaram na minha memória, como características da vida dos balneários, as amabilidades diárias da Sra. de Villeparisis e também a facilidade momentânea festiva com que minha avó as aceitava.

            - Dêem-me suas capas, para que as levem para cima.

            Minha avó estendia-as ao gerente e eu, por causa de suas gentilezas para comigo, estava desolado com a falta de consideração dela, que o incomodava.

            - Creio que este senhor se aborreceu dizia a marquesa. - Provavelmente se julga fidalgo demais para pegar suas capas. Lembro-me do duque de Nemours, quando eu ainda era criancinha, entrando em casa de meu pai, que morava no último andar do palácio Bouillon, com um enorme pacote de cartas e jornais debaixo do braço. Creio ver o príncipe em seu fraque azul na soleira da porta (que, por sinal, tinha belos adornos em madeira; julgo que era trabalho de Bagard, aquelas pequenas molduras, vocês sabem, tão finas, a que o ebanista às vezes dava forma de conchas e de flores, como os laços que atam um buquê). - Olhe, Cyrus - dizia a meu pai. - Foi o porteiro quem me deu isto para você. Disse-me: "Já que o senhor vai à casa do senhor conde, não vale a pena que eu suba os andares, mas tenha cuidado para não desatar o nó." - Bem, já que se desembaraçou dos casacos, sente-se aqui - dizia a marquesa à minha avó, tomando-a pela mão.

            - Não; se não se importa, nessa poltrona não! É muito pequena para nós duas, mas grande em excesso para mim; não ficaria à vontade.

            -A senhora me faz pensar, porque era exatamente igual, numa poltrona que tive há muito tempo mas acabei por não ter como conservar, pois fora dada à minha mãe pela infeliz duquesa de Praslin. Minha mãe, que no entanto era a pessoa mais simples deste mundo, mas que ainda possuía idéias que lhe vinham de outra época e que eu já não entendia muito bem, não quisera a princípio ser apresentada à Sra. de Praslin, que era apenas uma Srta. Sebastiani, ao passo que esta, por ser duquesa, achava que não lhe cabia solicitar uma apresentação. E de fato-acrescentava a Sra. de Villeparisis, esquecendo-se que não distinguia esse tipo de nuanças - essa pretensão era insustentável, a não ser que ela fosse uma Sra. de Choiseul. Os Choiseul são o que existe de melhor, descendem de uma irmã de Luís, o Gordo, eram verdadeiros soberanos em Bassigny. Compreendo que levemos vantagens sobre eles pelas alianças e o brilho, mas a antigüidade de ambas as famílias é quase a mesma. Resultaram incidentes cômicos por causa dessa questão de precedência, como o caso de um almoço que foi servido com atraso de mais de uma hora, tempo necessário para convencer uma senhora a se deixar apresentar. Apesar de tudo, tornaram-se muito amigas, e a duquesa deu a minha mãe uma poltrona do mesmo feitio desta e na qual, como a senhora acaba de fazer, todos se recusavam a sentar. Um dia minha mãe ouve um carro no pátio do palácio. Pergunta a um criado de que "trata."

            É a Sra. duquesa de La Rochefoucauld, senhora condessa.

            - Muito bem, vou recebê-la." Ao fim de um quarto de hora, ninguém: "E então? Onde e duquesa de La Rochefoucauld?"

            - Está na escada, sem fôlego, senhora - responde o criado que chegara há pouco do campo, onde minha mãe tinha o bom costume de ir buscá-los. Muitas vezes vira-os nascer. É desse jeito, podem ter criados decentes. É o primeiro dos luxos. Com efeito, a duquesa Rochefoucauld ia subindo com dificuldade, porque era imensa, tão imensa que quando entrou, minha mãe teve um instante de preocupação, sem saber acomodá-la. Mas deu com os olhos na poltrona que fora presente.

            -Tenha a bondade de se sentar-disse ela, empurrando-lhe a poltrona.

            E a encheu-a até às bordas. Apesar de toda a sua imponência, era muito agradável.

            ''Ainda faz efeito quando entra'' - dizia um de nossos amigos.

            -Principalmente quando sai - respondia minha mãe, cujas tiradas eram mais atrevidas do que, 11% usaria. Na própria casa da duquesa, ninguém se constrangia em gracejar de suas enormes proporções diante dela, que era a primeira a achar graça.

            - O senhor está sozinho? - perguntou minha mãe um dia ao Sr. de La Rochefoucauld que fora visitar a duquesa e, à porta do salão, o duque a recebera, e minha mãe não viu sua esposa, que se achava no vão de uma janela. - Julguei que ela estivesse em casa, mas não a vejo.

            - Como a senhora é amável! - respondeu o duque, homens de menos perspicácia que já conheci, mas que às vezes tinha bom espírito.

            Depois do jantar, quando subia com minha avó, dizia-lhe que as coisas que nos encantavam na Sra. de Villeparisis, o tato, a finura, a discrição, o esquecimento de si mesma, talvez não devessem ter muito valor, pois as pessoas que os possuíram no mais alto grau não passaram de Molés e Loménies em compensação, se o fato de não tê-las pode tornar as relações cotidianas notáveis, ainda assim não impediu de chegar ao que foram Chateaubriand, Vigny, Balzac, vaidosos sem autocrítica, de quem era fácil zombar, como Bloch... nome de Bloch, minha avó protestava.

            Gabava a Sra. de Villeparisis.  Como que é o interesse da espécie que, no amor, dirige as preferências de cada pessoa e que, para que criança seja constituída da maneira mais normal, o instinto que as mulheres magras procurem os homens gordos, e as gordas assim também eram obscuramente as exigências de minha felicidade pelo nervosismo, pela minha doentia inclinação à tristeza, ao isolamento. Dizia minha avó colocar em primeiro plano as qualidades de juízo e as próprias não só da Sra. de Villeparisis; mas de uma sociedade onde eu poderia ter sossego e distração uma sociedade semelhante àquela onde se viu o talento de um Doudan, de um Sr. de Rémusat, para não falar de uma Beau de um Joubert, de uma Sévigné, talento que proporciona mais dignidade à vida que os requintes opostos, que levaram um Baudelaire, um Poe, e um Rimbaud a sofrimentos e desconsiderações que ela não desejava ao neto. Interrompi-a para beijá-la, perguntando se havia reparado em tal ou qual frase da Sra. de Villeparisis, em que se notava a mulher que preza o seu nascimento muito mais do que diz. Desse modo, submetia minha avó as minhas impressões, pois nunca sabia o grau de estima devido a alguém senão quando ela o indicasse. Todas as noites trazia-lhe as notas que tomara durante o dia sobre todos os seres inexistentes que não fossem ela. Uma vez, disse-lhe:

            - Sem ti, não poderia viver.

            - Não, isso não. - respondeu com voz perturbada. - É preciso ter um coração mais forte. Se não, o que seria de ti se eu fosse viajar? Ao contrário, espero que sejas razoável e feliz.

            -Saberei ser razoável e feliz se viajasses por alguns dias, mas ficaria contando as horas.        - Mas, se eu partisse por alguns meses... (só de pensar nisso meu coração se apertava) por muitos anos... por...

            Ficávamos calados. Não tínhamos coragem de nos olhar. No entanto, eu sofria mais pela sua angústia do que pela minha. Assim, aproximei-me da janela e lhe falei distintamente, desviando o olhar:

            -Sabes como sou um sujeito de hábitos. Nos primeiros dias, em que me vejo separado das pessoas a quem amo, sinto-me infeliz. Mas depois, sem deixar de querê-las, acabo me acostumando, minha vida se torna calma, suave; e eu suportaria uma separação de meses ou anos...

            Tive de me calar e olhar pela janela. Minha avó saiu do quarto por um instante. Mas, no dia seguinte, comecei a falar de filosofia, em tom bastante indiferente, mas fazendo com que minha avó prestasse atenção às minhas palavras; disse-lhe que era curioso verificar como, depois das últimas descobertas da ciência, o materialismo parecia arruinado, e que o mais provável era que ainda houvesse a imortalidade das almas e a sua futura reunião.

            A Sra. de Villeparisis preveniu que dentro em breve já não poderia nos ver com freqüência. Um jovem sobrinho, que se preparava para ingressar em Saumur, e estava de guarnição nas vizinhanças, em Doncieres, vinha passar com ela algumas semanas de licença, e a marquesa ficaria ocupada quase todo o tempo. Durante nossos passeios, havia elogiado sua profunda inteligência, sobretudo o seu bom coração; eu já imaginava que ele iria se tornar de simpatia por mim, que eu seria o seu amigo preferido e, quando um pouco antes de sua chegada, sua tia deu a entender a minha avó que ele infelizmente caíra nos braços de uma mulher má, por quem estava alucinado e que não o largaria nunca, eu, convencido que esse tipo de paixão redunda fatalmente na alienação mental, no crime e no suicídio; pensando no tempo tão curto reservado à nossa amizade, tão grande já em meu coração sem que o tivesse ainda visto, chorei por ela e pelas desgraças que a esperavam, como se chorasse por um ser querido do qual acabamos de saber que caiu gravemente doente e que seus dias estão contados.

            Numa tarde de muito calor, estava eu na sala de jantar do hotel, deixada na penumbra a fim de protegê-la dos raios do sol, baixando as cortinas que a luz marejava, e que pelos interstícios deixavam passar o azul do mar, quando vi, pelo passeio central que ia da praia à estrada, um rapaz alto, magro, de pescoço e cabeça orgulhosamente empinada, olhos penetrantes, de pele tão dourada, cabelos tão louros como se tivessem absorvido todos os raios de sol. Trajava uma calça de tecido muito fino, esbranquiçado, como jamais imaginei que um homem se vestiria e que, por sua leveza, evocava o calor e o bom tempo que fazia lá, menos que o frescor do refeitório; andava muito depressa. Seus olhos, dos quais a todo instante caía o monóculo, eram da cor do mar. Todos o olharam com curiosidade, pois sabiam que aquele jovem marquês de Saint-Loupen-Bray era célebre por sua elegância. Todos os jornais haviam descrito o traje que recentemente ao servir de testemunha, num duelo, a um jovem duque, que a qualidade tão peculiar de seus cabelos, de seus olhos, de sua pele e porte, que o teriam distinguido em meio de uma multidão como um ''precioso'' de opala brilhante e azulada, engastado em matéria grosseira, deveria ter uma vida diversa da dos outros homens. E, em conseqüência, quando, as relações que tanto desgostavam a Sra. de Villeparisis, as mais belas mulheres da alta sociedade o disputavam entre si, sua presença, em uma praia, por exemplo ao lado da beldade famosa a quem cortejava, não só a colocava no centro das atenções, como atraía os olhares tanto sobre ele quanto sobre ela. Devido a seu charme e a sua impertinência de jovem "leão", principalmente devido a seu grande físico, alguns lhe achavam mesmo um certo ar efeminado, mas sem censurar  pois sabiam o quanto era viril e que amava apaixonadamente as mulheres; era o sobrinho da Sra. de Villeparisis de quem nos falara. Fiquei encantado ao vê-lo, ia conhecê-lo durante algumas semanas e certo de que me daria todo o seu afeto. Atravessou rapidamente o hotel em todo o comprimento, parecendo perseguir o seu monóculo que volteava a seu redor como uma borboleta. Chegava da praia, e o mar que enchia até a metade a vidraça do hall, formava-lhe um fundo sobre o qual se destacava, como em certos retratos em que os pintores pretendem, sem trair em nada a observação mais exata da vida atual, porém escolhendo para seu modelo um quadro apropriado, campo de pólo ou de golfe, pista de corridas, convés; dar um equivalente moderno dessas telas em que os primitivos faziam a figura humana no primeiro plano de uma paisagem. Um carro tirado, cavalos, o esperava diante da entrada; e, enquanto o monóculo retomava brincalhão na estrada ensolarada, com a elegância e a maestria que um pianista consegue mostrar nos trechos mais simples, onde parecia não se superar um executante de segunda categoria, o sobrinho da Sra. de Villeparisis tomando as rédeas que o cocheiro lhe dera, sentou-se a seu lado e, ao mesmo tempo que abria uma carta que o gerente lhe entregara, fez partir os cavalos.

            Que decepção senti nos dias seguintes quando, cada vez que estava no hotel ou fora dele, com o pescoço erguido, equilibrando perpetuamente os movimentos dos membros ao redor do monóculo dançante e fugidio que passara a ser seu centro de gravidade-, percebi que ele não procurava aproximar-se de nós e que não nos cumprimentava, embora não pudesse ignorar que éramos amigos de sua tia!

            Recordando-me da amabilidade que me haviam testemunhado a Sra. de Villeparisis e, antes dela, o Sr. de Norpois, pensava que eles talvez fossem nobres de mentira, e que um artigo secreto das leis que governam a aristocracia deve permitir, quem sabe, às mulheres e a certos diplomatas que faltem, no seu convívio com os plebeus, e por um motivo que me escapava, a essa altivez que, ao contrário, um jovem marquês praticaria impiedosamente. Minha inteligência poderia me dizer o contrário. Mas a característica da idade ridícula que eu atravessava; idade nada ingrata, aliás muito fecunda -é que não se consulta a inteligência e que os menores atributos das criaturas parecem fazer parte indivisível de sua personalidade. Sempre cercados de monstros e deuses, a gente quase não conhece o sossego. E quase todos os gestos que fazemos por essa época, desejaríamos suprimi-los mais tarde. Mas, ao contrário, o que se deveria de fato lastimar seria não mais possuirmos aquela espontaneidade que nos inspirava. Depois, vêem-se as coisas de maneira mais prática, em plena concordância com o resto da sociedade, mas a adolescência é a única época da vida em que aprendemos algo.

            Aquela insolência que eu adivinhava no Sr. de Saint-Loup, e tudo o que ela implicava de dureza natural, ficou comprovada por sua atitude cada vez que passava por nós, o corpo bem empertigado, a cabeça sempre empinada, o olhar impassível, e (não será demais dizer) tão implacável, destituído desse vago respeito que se tem pelos direitos das outras criaturas, mesmo que elas não conheçam a nossa tia, e em virtude do qual minha atitude não era absolutamente a mesma diante de uma velha dama e diante de um bico de gás. Essas maneiras glaciais também estavam bem distantes das cartas encantadoras que eu, alguns dias antes, ainda imaginava que me escrevesse para me testemunhar sua simpatia, à mesma distância em que estão as ovações da Câmara da posição medíocre e obscura de um homem imaginativo que pensa ter levantado o ânimo do povo com um discurso inesquecível e que, após ter assim sonhado em voz alta, vê-se de novo um joão-ninguém, como antes, depois de cessarem as falsas aclamações.

            Quando a Sra. de Villeparisis, sem dúvida para tentar apagar a má impressão que nos causara a aparência do sobrinho, reveladora de um temperamento orgulhoso e malvado, voltou a nos falar da inesgotável bondade do seu sobrinho-neto (era filho de uma de suas sobrinhas e um pouco mais velho que eu), admirei-me como no mundo, ao desprezo de toda a verdade, atribuem-se qualidades de coração aos que o possuem tão seco, ainda que sejam amáveis com as pessoas brilhantes que fazem parte de seu ambiente social. A própria Sra. de Villeparisis acrescentou, mesmo de forma indireta, uma confirmação a esses traços essenciais do caráter de seu sobrinho, que já não me causavam dúvidas, um dia em que encontrei a ambos num caminho tão estreito que ela não teve outra alternativa senão me apresentar a ele. Pareceu não ouvir que lhe apresentavam alguém, nenhum músculo do rosto se mexeu; seus olhos; não brilhou o menor clarão de simpatia humana, mostraram simplesmente insensibilidade e inanidade do olhar, um exagero, a cuja falta nada os difere dos espelhos sem vida. Depois, fixando em mim a dureza do olhar, como para certificar-se bem de quem eu era, antes de devolver meu cumprimento; fez um movimento brusco que antes parecia efeito de um reflexo muscular do um ato voluntário, encompridou o braço em todo o seu tamanho e apresentando a mão, à distância, pondo entre ele e mim o maior intervalo possível. Quando no dia seguinte me mandou seu cartão, julguei que se tratava, no mínimo, de um duelo. Mas ele só me falou de literatura, declarando, depois de longa palestra, que muita vontade de me ver várias horas por dia. Não só dera provas, durante a conversa de um gosto muito vivo pelas coisas do espírito, como me testemunhara simpatia que combinava muito mal com a saudação da véspera. Depois, quão que saudava sempre dessa maneira quando lhe apresentavam alguém, comecei a pensar que se tratava de simples hábito mundano particular, próprio de uma parte da família, e ao qual sua mãe, que fazia questão que ele fosse admiravelmente educado, lhe acostumara o corpo; fazia tais cumprimentos sem neles pensar que em suas belas roupas, seus lindos cabelos; era algo desprovido do significado moral que eu lhe dera a princípio, uma coisa puramente aprendida, como outro hábito que tinha de fazer-se apresentar imediatamente aos pais de quem conhecia, e que se tornara tão instintivo nele que, vendo-me no dia seguinte do nosso encontro, lançou-se a mim e, sem me dar bom-dia, pediu-me que o apresentasse à minha avó que estava comigo, com a mesma rapidez febril corri para atender o pedido se devesse a um instinto defensivo, com o gesto de aparar um golpe, fechar os olhos diante de um jorro de água fervente, e que nos resguarda perigo que nos teria atingido um momento depois.

            Uma vez cumpridos os primeiros ritos de exorcismo, assim como a fada rabugenta se despoja de sua aparência inicial e se apresenta revestida de graças encantadoras, vi essa criatura desdenhosa fazer-se o mais amável e atencioso dos rapazes que já conhecera. "Bem" disse comigo, "já me equivoquei, fui vítima de uma miragem, mas só venci a primeira para cair numa outra, pois este é um grão-senhor enamorado de sua nobreza e procurando dissipar, de fato, toda a atraente educação, toda a amabilidade de Saint-Loup depois de algum tempo, deixar transparecer uma outra pessoa, mas bem daquela que eu suspeitava.

            Esse rapaz, com ares de um aristocrata e de um desportista que só estimava e se mostrava curioso pelos assuntos do espírito, sobretudo manifestações modernistas da literatura e da arte que pareciam tão ridículas para a tia; estava imbuído, por outro lado, daquilo que ela denominava declamações socialistas, e, cheio do mais profundo desprezo por sua casta, passava horas estudando Nietzsche e Proudhon. Era um desses "intelectuais", prontos para a admiração, que se encerram num livro preocupados apenas com altos pensamentos. Além disso, em Saint-Loup, a expressão dessa tendência bastante abstrata e que o afastava tanto de minhas preocupações habituais, conquanto me parecesse emocionante, aborrecia-me um pouco. Posso dizer que, logo que me inteirei bem acerca de seu pai, nos dias em que acabava a leitura de umas memórias cheias de fatos relativos a esse famoso conde de Marsantes, no qual se resume a elegância tão especial de uma época já distante, e com o espírito pleno de fantasias e desejando saber detalhes sobre a vida que levara o Sr. de Marsantes; fiquei furioso ao ver que Robert de Saint-Loup, em vez de se contentar em ser o filho de seu pai; em vez de se mostrar capaz de me guiar pelo romance antiquado que fora a sua vida, se elevara à intensa admiração de Nietzehe e de Proudhon. Seu pai não teria compartilhado os meus lamentos. Era também um homem muito inteligente, que ultrapassava os limites de sua vida de homem mundano. Mal tivera tempo de conhecer o filho, mas desejara que valesse mais que ele. Creio firmemente que, ao contrário do resto da família, teria admirado o filho, alegrando-se que este abandonasse pelas meditações austeras os motivos de diversão leviana que havia tido; e, sem dizer nada, com sua modéstia de grão-senhor talentoso, teria lido às escondidas os autores prediletos do filho para avaliar o quanto Robert lhe era superior.

            Apesar disso, ocorria algo muito triste: enquanto o Sr. de Marsantes, um espírito bem aberto, teria apreciado um filho tão diferente dele, Robert de Saint-Loup, como era dessas pessoas que julgam o mérito sempre ligado a certas formas de vida e arte, guardava uma lembrança afetuosa, mas eivada de um certo desdém, do pai, que se ocupara a vida inteira em caçar e correr, bocejara ao ouvir Wagner e adorava a música de Offenbach. Saint-Loup não era inteligente o bastante para compreender que o valor intelectual nada tem a ver com a adesão a uma determinada fórmula estética, e nutria pela "intelectualidade" do Sr. de Marsantes quase o mesmo tipo de desdém que poderiam ter tido por Boieldieu ou por Labiche um filho de Boieldieu ou de Labiche que tivessem sido adeptos da literatura mais simbolista ou da música mais complicada.- Mal conheci meu pai-dizia Robert. Parece que foi um homem refinado. Seu grande mal foi a época deplorável em que viveu. Ser nascido no faubourg Saint-Germain e ter vivido na época da Belle-Hélene é uma catástrofe para uma existência. Se fosse um pequeno burguês fanático pelo Ring, talvez tivesse dado outro rumo à vida. Disseram-me que até gostava de literatura. Mas nem sabemos se isso era verdade, pois o que entendia por literatura se compunha de obras já caducas.

            - Quanto a mim, se às vezes achava Robert um tanto sério demais, ele, em compensação, não entendia porque não tinha eu maior seriedade. Julgando todas as coisas apenas pela inteligência que possuem, não percebia os encantos da imaginação que me davam coisas que reputava frívolas, assombrava-se de que eu - a quem julgava muito superior a si próprio - me pudesse se interessar por elas.

            Desde os primeiros dias, Saint-Loup havia conquistado minha avó, pela incessante bondade que se empenhava em testemunhar-nos, mas pela e mentalidade que punha em todas as coisas. Ora, a naturalidade-sem dúvida porque se sente nela a natureza sob a arte humana-era a qualidade que minha avó punha acima de todas, tanto nos jardins, onde não gostava que houvesse, como Combray, canteiros muito regulares, quanto na cozinha, onde detestava as ''obras complexas" em que mal se reconhecem os alimentos que foram usados para compô-las, ou na interpretação pianística, que lhe desagradava quando era apurada ou lambida, a tal ponto que sentia uma complacência toda especial por notas ligadas, pelas notas falsas, de Rubinstein. Essa naturalidade, ela a saboreava até nas roupas de Saint-Loup, de uma elegância simples, sem artifícios ou engomações, sem goma nem armação. Apreciava ainda mais aquele rapaz rico pelo descuidado e livre que tinha de viver no luxo sem "cheirar a dinheiro", sem a ares de importância; e parecia-lhe até encantadora essa naturalidade quando se manifestava pela incapacidade-que Saint-Loup conservara e que desaparece com a infância com certas particularidades fisiológicas dessa idade de impedir que se refletisse uma emoção. Qualquer coisa que desejasse, por exemplo, algo com que não contara, mesmo sendo um cumprimento, determinava nele um prazer, brusco, tão ardente, tão volátil, tão expansivo, que lhe era impossível conter ou oculta-lo; uma expressão de contentamento assomava-lhe irresistivelmente; a pele muito fina das faces deixava transparecer um vivo rubor, seus olhos refletiam a alegria e o enlevo; e minha avó era infinitamente sensível a essa aparência de inocência e franqueza, que em Saint-Loup, aliás, ao menos na maneira, em que me liguei a ele, era bem sincera. Mas conheci outra criatura, e há muitas que como ela, qual a sinceridade fisiológica desse rubor passageiro não excluía de modo algum a duplicidade moral; muitas vezes, prova unicamente a vivacidade com que mostra o prazer, a ponto de se verem desarmadas diante dele e serem forçadas a confessa-lo aos outros, certas naturezas capazes das piores objeções. Mas, minha avó adorava mais a simplicidade de Saint-Loup, era no seu modo de ser sem rodeios, a simpatia que me devotava, e que expressava com palavras tais que ela mesma dizia consigo não saber achar mais justas e carinhosas, palavras dignas de levarem a assinatura de "Sévigné e Beausergent''; ele não se constrangia de gracejar dos meus defeitos - que desvelara com uma finura que encantara avó -, mas como ela própria o teria feito, com ternura; ao passo que exaltando minhas qualidades com um ardor e um abandono que não conhecia as reservas e a frieza, graças às quais os jovens de sua idade costumam achar que se dão importância. Mostrava, para prevenir-me o menor incômodo, para repor-me uma manta sobre as pernas sem que eu notasse, se o tempo esfriava, para arrumar uma sem nada me dizer, de ficar comigo mais tarde que de costume se me via indisposto, uma atenção vigilante que, do ponto de vista da minha saúde, chegava a achar quase excessiva, pois talvez fosse preferível menos mimos, mas que, por outro lado, tocavam-na profundamente como prova de afeição por ruim.

            E bem depressa ficou claro entre nós que éramos amigos íntimos para sempre, e ele dizia "nossa amizade" como se falasse de algo importante e delicioso que existisse fora de nós mesmos e que em breve denominou - sem contar o amor por sua amante - a maior alegria de sua vida. Tais palavras me deram uma espécie de tristeza e senti-me embaraçado para respondê-las, pois a verdade é que eu não experimentava, ao me encontrar ou conversar com ele - e sem dúvida me ocorreria o mesmo em relação aos outros - aquela felicidade que, pelo contrário, podia sentir quando estava a sós. Sozinho, sentia às vezes afluir do fundo de mim mesmo uma daquelas impressões que me proporcionavam um delicioso bem-estar. Mas, desde que estivesse em companhia de alguém, desde que falasse com um amigo, meu espírito dava meia-volta, era a esse interlocutor e não a mim mesmo que dirigia seus pensamentos. E, quando estes seguiam esse caminho oposto, não me davam qualquer prazer. Tão logo me separava de Saint-Loup, ia pondo em certa ordem, com o auxílio das palavras, os minutos confusos que passara com ele; dizia comigo que tinha uma boa amizade, que um bom amigo é uma coisa rara; mas, sentir-me cercado de objetos difíceis de adquirir causava-me uma sensação que era justamente o oposto do prazer que me era natural, o oposto do prazer de haver extraído de mim mesmo, e leva-lo à claridade, algo que em mim se ocultava na penumbra. Se passara duas ou três horas a conversar com Robert, ainda que ele tivesse admirado o que eu havia dito, eu sentia uma espécie de remorso, de cansaço, de pena, por não ter ficado sozinho e pronto enfim, para escrever. Então, retrucava a mim mesmo que ninguém é inteligente só para si, que os espíritos mais dotados apreciaram ser tidos em boa consideração, que eu não podia dar como perdidas as horas que passara a erguer uma alta idéia de mim no espírito de meu amigo, convencia-me facilmente que deveria estar feliz por isso, desejando com vivo ardor que semelhante felicidade jamais me fosse arrebatada porque não a sentira de fato. Teme-se acima de tudo a perda dos bens que existem fora de nós, pois nosso coração não chegou a se apoderar deles. Sentia-me capaz de exercer as virtudes da amizade melhor que muitos (porque poria sempre o bem de meus amigos acima de meus interesses pessoais, de que não prescindem jamais as outras pessoas, e que para mim não existiam), porém não de conhecer a alegria em um sentimento que, ao invés de aumentar as diferenças existentes entre minha alma e a dos outros-como as que existem entre todas as almas -contribuía para desfazê-las. Em compensação, às vezes meu pensamento distinguia em Saint-Loup um ser geral, o "nobre", e que, como um espírito interior, movia seus membros, ordenava seus gestos e suas opiniões; então, nesses instantes, embora junto dele, achava-me sozinho, como se estivesse diante de uma paisagem cuja harmonia compreendesse. Não era mais que um objeto que meu pensamento queria aprofundar. Experimentava uma alegria, da inteligência e não da amizade, ao encontrar sempre nele esse ser secular, o aristocrata que Robert justamente aspirava a não ser. Na agilidade física que conferia tanto encanto à sua amabilidade; no desembaraço com que oferecia seu carro à minha avó e a ajudava a subir; na destreza com que saía do carro quando temia que eu estivesse com frio, para lançar o seu casaco nos meus ombros; eu não sentia apenas a maleabilidade hereditária dos grandes caçadores que, desde muitas gerações, tinham sido os antepassados desse rapaz que aspirava à intelectualidade, algo mais que o desdém para com a riqueza, que, existindo nele junto com o gosto que sentia por ela, porque desse modo podia tratar seus amigos com mais capacidade e dava-lhe condições para lhes pôr à seus pés, com ar negligente, todo o seu luxo. Via eu, sobretudo, a certeza ou a ilusão que tiveram esses grão-senhores de serem "mais que os outros", graças a que legaram a Saint-Loup o desejo de mostrar que era "tanto como os outros", medo de parecer atencioso demais que, de fato, era-lhe verdadeiramente desconhecido e que desfigura com tanta mesquinhez e acanhamento a mais sincera generosidade plebéia. Censurava-me, às vezes, por ter prazer em considerar meu amigo só uma obra de arte, ou seja, encarar o maquinismo de todas as partes de sua pessoa como governado harmoniosamente por uma idéia geral a que eram afeitas, das quais ele não conhecia e, conseqüentemente, nada acrescentava às suas qualidades próprias, a esse valor pessoal de inteligência e de moralidade que ele tanto apreciava.

            No entanto, esse mérito pessoal era, em certa medida, condicionado aquela idéia. Sua atividade mental, suas aspirações socialistas, que o levavam à procurar jovens estudantes pretensiosos e mal vestidos, tinham nele algo de verdadeiramente puro e desinteressado que não se verificava naqueles rapazes, precisamente porque Robert era um aristocrata. Julgando-se herdeiro de uma casta ignorante e egoísta, Saint-Loup procurava, com sinceridade, que eles lhe perdoassem as origens aristocráticas, que, ao contrário, exerciam sobre eles uma sedução; com que o procurassem justamente por sua estirpe, sempre fingindo em sua presença, uma atitude de frieza e até de insolência. Assim, era Saint-Loup que vivia compelido a tomar a iniciativa para com pessoas que teriam deixado meus pais fiéis à sociologia de Combray, estupefatos porque achariam que era Robert quem devia se esquivar delas. Um dia estávamos, Robert e eu, sentados na areia e ouvimos sair, de uma barraca de lona a nosso lado, imprecações com fervilhamento de judeus que infestavam Balbec.

            "Não se pode dar dois passos sem encontrá-los" - dizia a voz. ''Em princípio não sou irredutivelmente hostil à raça judaica, mas assim já é demais. Só se ouve:

            "Olha, Apraão, sou eu, Chacó" e parece até estamos em Abuquir''

            O homem que esbravejava assim contra Israel saiu por fim da barraca e erguemos os olhos para aquele anti-semita. Era meu companheiro Bloch. Imediatamente, Saint-Loup me pediu que lembrasse a Bloch que ambos haviam se conhecido nos exames para o bacharelado, em que Bloch obtivera o prêmio de honra, e depois tinham se encontrado numa universidade popular.

            Às vezes eu sorria ao perceber em Robert o sinal das lições dos jesuítas, no desassossego que lhe causava o medo de ofender, sempre que um de seus amigos intelectuais cometia um erro mundano; fazia algo ridículo a que ele, Saint-Loup, não dava a menor importância, mas que teria envergonhado o outro se se apercebesse da falha cometida. Era Robert quem se ruborizava como se fosse ele o culpado; por exemplo, no dia em que Bloch prometeu ir vê-lo no hotel, dizendo:

            -Como não suporto esperar entre o falso luxo dessas grandes caravanas e os ciganos me fazem passar mal, diga ao laift que os mande ficar em silêncio e que avise a você em seguida.

            Pessoalmente, não tinha muito interesse em que Bloch fosse ao hotel. Ele estava em Balbec, infelizmente não sozinho e sim com suas irmãs, que tinham grande quantidade de parentes e amigos. Ora, essa colônia judia era mais pitoresca do que agradável. Acontecia em Balbec o que ocorre em certos países, a Rússia ou a Romênia, onde os cursos de geografia nos ensinam que a população judia não desfruta do mesmo favor, nem chegou ao mesmo grau de assimilação que em Paris, por exemplo. Andando sempre juntos, sem mistura de nenhum outro elemento, quando as primas e tios de Bloch, ou correligionários de ambos os sexos, iam para o cassino, umas para o baile e os outros se bifurcando para o bacará, formavam um cortejo homogêneo e inteiramente diverso das pessoas que os olhavam passar, gente que os via ali todos os anos sem jamais trocar um cumprimento com eles, nem o grupo dos Cambremer, nem o clã do magistrado, nem os grandes e pequenos burgueses; ou mesmo simples negociantes de cereais de Paris, cujas belas filhas orgulhosas, zombeteiras e tão francesas como as estátuas de Reims, não gostariam de se misturar a essa horda de moças mal-educadas, que levavam a preocupação com a moda dos "banhos de mar" ao ponto de parecerem ter sempre o ar de quem acaba de pescar camarões ou de estarem a fim de dançar o tango. Quanto aos homens, apesar do esplendor dos smokings e dos sapatos envernizados, o exagero de seu tipo fazia pensar nas pesquisas ditas "inteligentes" dos pintores que, tendo que ilustrar os Evangelhos, ou as Mil e Uma Noites, pensam no país onde a cena ocorre, e dão a São Pedro ou a Ali Babá precisamente a mesma cara do jogador mais gordo de Balbec. Bloch me apresentou suas irmãs, a quem tratava com extrema rispidez, cortando-lhes a palavra, e que riam às gargalhadas à menor tirada do irmão, a quem admiravam e idolatravam. De modo que é possível que o ambiente dessa família tivesse, como todas as outras, talvez mais que qualquer outra, muitos encantos, qualidades e virtudes. Mas, para senti-los, seria preciso penetrar nela. Porém esse ambiente não agradava aos demais, o que eles sentiam vendo nisso a prova de um anti-semitismo contra o qual faziam frente numa compacta e fechada, onde aliás ninguém sonhava em abrir caminho.

            Quanto ao laift, isto me surpreendia menos que alguns dias antes. BIoch me perguntara por que viera eu a Balbec (por outro lado, parecia-lhe muito natural sua presença ali) e se fora "com a intenção de fazer bons contatos"; quando soube que aquela viagem correspondia a um de meus desejos mais antigos, menos profundo do que ir a Veneza, respondeu-me:

            - Sim, naturalmente, tomar sorvetes com belas senhoras, e fingindo que lê as Stones of Venaice de Lord John Ruskin, um melancólico maçante, um dos sujeitos mais chatos que existe. Bloch julgava, portanto, que na Inglaterra não só todas as pessoas do sexo masculino são lordes, mas também que a letra “i” se pronunciava sempre “ai” em inglês. Quanto a Saint-Loup, achava que esse erro de pronúncia não era nada grave; considerava-o decorrente, antes de tudo, da ausência de uma dessas noções que a boa sociedade, que meu novo amigo desprezava tanto quanto as possuía. O medo de que Bloch um dia se certificasse que se diz Venice e que Ruskin não é lorde, e assim imaginasse, retrospectivamente, que Saint-Loup o achara ridículo diante dele fez com que este último se sentisse culpado como se não tivesse mostrado indulgência que lhe sobrava, e o rubor que um dia haveria de colorir o rosto Bloch quando descobrisse o seu erro, ele o sentiu antecipadamente, a reversibilidade, subir ao seu. Pois pensava, e com razão, que Bloch daria mais importância que ele a semelhante erro. E assim o provou Bloch, dias depois, ao me ouviu dizer lift, interrompendo-me:

            - Ah, diz-se lift. - E num tom altaneiro: -Aliás, isto não tem nenhuma importância.

            Frase análoga a um reflexo, igual em todos os homens que têm amor-próprio, tanto nas mais graves circunstâncias como nas mais ínfimas, denotando, tanto como no caso presente, que importância parece ter a coisa em questão para quem afirma que não tem importância; frase trágica, às vezes, que é a primeira a escapar e tão lancinante dos lábios de todo homem um pouco orgulhoso quando, negando-lhe um favor, acabara por lhe arrancar a última esperança a que se prendia:

            "Muito bem, isto não tem mais importância, vou me arrumar de outro modo"; e esse outro modo a que se vê compelido por algo que não tem importância, às vezes pode ser o suicídio.

            Depois, Bloch me disse coisas muito amáveis. Certamente desejava se mostrar muito atencioso comigo. No entanto, indagou:

            - É por vontade de teres à nobreza (aliás, uma nobreza meio esquecida) que freqüentas esse Saint-Loup-en-Bray? Pois és muito ingênuo. Deves estar passando por uma crise de esnobismo. És esnobe, mesmo? Sim, não é?

            Não é que seu desejo de ser amável se houvesse bruscamente mudado. Mas o que se chama em francês um tanto incorreto "a má educação" era o seu defeito; portanto, defeito em que reparava, e assim não julgava que pudesse chocar os outros. Na humanidade, a freqüência de virtudes idênticas para todos não é mais maravilhosa que a multiplicidade dos defeitos particulares de cada um. Sem dúvida, não é o senso comum a coisa mais disseminada pelo mundo, e sim a bondade. Nos pontos mais remotos e perdidos, assombramo-nos ao vê-la florescer espontânea, como num valezinho distante uma papoula igual às demais no resto do mundo, ela que nunca as viu e que jamais conheceu nada, senão o vento que às vezes faz tremular sua rubra corola solitária. Mesmo que essa bondade, paralisada pelo interesse, não chegue a se exercer, ela todavia existe, e a cada vez que não a impeça de agir um motivo egoísta, por exemplo durante a leitura de um romance ou de um jornal, ela se desabrocha, inclina-se, mesmo no coração daquele que, assassino na vida real, mantém sua ternura, enquanto leitor de folhetins, pelos fracos, pelos justos e perseguidos. Mas a variedade de defeitos não é menos admirável que a semelhança das virtudes. A pessoa mais perfeita possui um certo defeito que choca ou dá raiva. Este homem é de uma bela inteligência, enxerga tudo de um ponto de vista elevado, nunca fala mal de ninguém, mas esquece no bolso as cartas mais importantes que a gente lhe confiou porque ele mesmo se ofereceu para levá-las; e faz com que percamos um encontro importantíssimo, sem nem nos dar um sorriso de desculpas, pois timbra em nunca saber as horas. Este outro é finíssimo, gentil, de modos tão delicados, que só nos diz coisas que nos tornam felizes; mas sentimos que cala sobre outras coisas diferentes, que as esconde no coração, onde elas azedam, e o prazer que tem em nos ver é tão caro que antes nos mataria de cansaço do que nos deixaria sozinhos.

            Um terceiro é mais sincero; porém leva a sinceridade a tal extremo que, na ocasião em que nos desculpamos de não ter ido vê-lo alegando motivos de saúde, insiste em nos fazer saber que fomos vistos no teatro no mesmo dia, e de muito boa cara, ou que não lhe aproveitara muito algo que fizemos por ele, já que outros três vão lhe prestar o mesmo favor e, portanto, pouco tem a nos agradecer. Nas duas circunstâncias, o amigo anterior fingiria não saber que fôramos ao teatro e não diria que outras pessoas poderiam lhe prestar o mesmo serviço. Quanto ao último amigo, sente a necessidade de repetir ou de revelar a alguém aquilo que mais pode nos contrariar, está encantado com sua franqueza e diz firmemente:

            - Eu sou assim.

            Enquanto outros nos aborrecem com sua curiosidade exagerada, ou sua tão absoluta falta de curiosidade, tão grande que se pode falar nos mais sensacionais acontecimentos sem que saibam de que se trata; e outros, ainda, levam meses para nos responder uma carta, quando ela se refere a uma coisa que dizia respeito a nós e não a eles, ou então, se dizem que vêm nos perguntar algo, e ficamos sem ousar sair de casa com receio que venham e não nos encontrem, não aparecem e nos fazem ficar esperando semanas e semanas porque, não tendo recebido de nossa parte a resposta que sua carta de modo algum exigia, pensam que ficamos aborrecidos. Há os que, consultando seu desejo e não o nosso, falam sem nos deixar dizer uma só palavra, quando estão alegres têm vontade de nos ver, não importando o trabalho urgente que tenhamos; mas, quando se sentem enlanguescidos pelo tempo, ou de mau humor, não lhe podemos arrancar uma só palavra; opõem aos nossos esforços um langor inércia; não se dão ao trabalho de responder, mesmo por monossílabos, ao que foi dito como se não nos tivessem ouvido. Todos os nossos amigos têm defeitos, de modo que, para continuar a gostar deles, somos obrigados a nos consolar desses defeitos pensando em seu talento, sua bondade, sua afeição; ou prescindir deles, empregando nisso toda a nossa boa vontade. Infelizmente, nossa obstinação complacente em não ver o defeito de nosso amigo sempre está superada, sua obstinação em exibi-lo, ou pela própria cegueira, ou porque acha que cegos são os outros. Pois, ou ele não enxerga seu defeito, ou crê que os outros não o vêem. Como o risco de desagradar provém sobretudo da dificuldade de apreciar aquilo que passa despercebido ou não, pelo menos por prudência a gente nunca deveria falar de si mesmo, pois certamente este é um assunto em que podemos estar seguros que o nosso ponto de vista e o dos outros jamais coincidirão. Se temos a surpresa em visitar uma casa de aparência comum, cujo interior está repleto de tesouros, de gazuas e de cadáveres, quanto descobrir a verdadeira vida do próximo, o universo real sob o universo aparente, não menor a sentiremos quando, em imagem que fazíamos de nós mesmos graças ao que dizem de nós, certificamos pelo que essas mesmas pessoas dizem de nós quando estamos ausentes, da imagem inteiramente diversa que têm a nosso respeito e sobre nossa vida. De que, de cada vez que falamos de nós mesmos, podemos estar seguros de nossas prudentes e inofensivas palavras, ouvidas com aparente polidez e hipócrita aprovação, deram lugar aos comentários mais exasperados ou mais divertidos, em todo caso os menos favoráveis. Nosso menor risco será o de agastar os que nos ouvem, pela desproporção que há entre a idéia que fazemos de nós próprios e as nossas palavras, desproporção que em geral converte as frases das pessoas sobre si mesmas em algo tão risível quanto o cantarolar dos falsos amados a música que experimentam a necessidade de trautear uma música de que gostam, compensando a insuficiência de seu murmúrio inarticulado por uma mímica mágica e um ar de admiração que não se justifica de forma alguma diante dos que estão escutando. E, ao mau costume de falar de si mesmo e de seus defeitos é preciso acrescentar, como se com ele formasse um só bloco inteiriço, esse costume de denunciar nas demais pessoas defeitos precisamente iguais aos que temos. Ora, é sempre desses defeitos que falamos, como se fosse uma forma de rodeios de falar de nós mesmos e que alia ao prazer da absolvição ao da que são. Além disso, parece que nossa atenção, sempre atraída para aquilo que caracteriza, assinala-o mais que qualquer outra coisa nas demais pessoas míopes que dizem de outro:

            "Mas ele mal pode abrir os olhos"; um tísico tem dúvidas da integridade pulmonar do indivíduo mais robusto; uma pessoa pouco fala dos banhos que os outros não tomam; um mal-cheiroso pretende que os outros cheirem mal; um marido enganado vê em toda parte maridos enganados; a mulher leviana só vê mulheres levianas; o esnobe só enxerga esnobes. Além do mais, todo vício, como toda profissão, exige e desenvolve um conhecimento especial que se exibe com gosto. O invertido descobre logo os invertidos; o alfaiate, convidado a uma reunião social, ainda nem falou e já calcula a qualidade da fazenda da nossa roupa e seus dedos ardem por apalpar-lhe o tecido; e, se, após alguns momentos, pedimos a um dentista sua verdadeira opinião a nosso respeito, ele dirá a quantidade de nossos dentes cariados. Para ele, nada mais importante; para nós, que já reparamos em sua dentadura, nada mais ridículo. E não é apenas quando falamos de nós mesmos que achamos que os outros são cegos; agimos como se eles o fossem. Para cada um de nós, há um deus especial que nos oculta ou promete a invisibilidade do nosso defeito, assim como fecha os olhos e as narinas às pessoas que não se lavam, quanto ao sebo que trazem nas orelhas e ao cheiro de suor que têm nas axilas, convencendo-os de que podem exibir impunemente esses defeitos ao mundo, pois este não perceberá coisa alguma. E os que usam pérolas falsas ou as presenteiam, imaginam que as tomarão por verdadeiras. Bloch era mal-educado, neurastênico, esnobe e, pertencendo a uma família pouco estimada, suportava, como o fundo do mar, incalculáveis pressões que faziam pesar sobre ele não só os cristãos da superfície, mas as camadas superpostas das castas judias superiores à sua, cada qual oprimindo com seu desprezo a que estava imediatamente abaixo. Para atingir o ar livre, atravessando famílias e famílias judaicas, Bloch teria de levar milhares e milhares de anos. Mais valia buscar saída por outro lado. Quando Bloch me falou da crise de esnobismo que eu devia estar atravessando, pedindo-me que confessasse ser um esnobe, tive vontade de lhe responder:

            - Se fosse esnobe, não andaria com você. - Disse-lhe apenas que ele era pouco amável. Então quis se desculpar, mas de acordo com o jeito do homem mal-educado, que se sente feliz em desdizer suas palavras mas achando um meio de agravá-las.

            - Perdoe-me - dizia agora a cada vez que nos encontrávamos -, eu te desgostei, torturei, fui mau sem motivo. E, no entanto (o homem em geral, e seu amigo em particular, é um animal estranho), não podes imaginar, eu que te incomodo tão cruelmente, a afeição que sinto por ti. Tanto, que muitas vezes chego a chorar por ti.

            E deixou ouvir um soluço. O que me assombrava em Bloch, mais que os seus maus modos, era ver de que maneira a sua conversação era de qualidade desigual. Este rapaz tão difícil, que dos escritores mais em voga dizia:

            -É um lúgubre idiota, um rematado imbecil -,às vezes punha-se a contar, muito divertido, anedotas que não tinham nenhuma graça, e citava uma pessoa totalmente medíocre como sendo "alguém curiosíssimo". Essa dupla medida para avaliar o espírito, a qualidade e o interesse das criaturas, não deixava de me espantar até o dia em que conheci o Sr. Bloch pai. Achava que nunca nos seria permitido conhecê-lo, pois Bloch filho falava mal de mim a Saint-Loup e deste a mim. Especialmente dissera a Saint-Loup que eu sempre era terrivelmente esnobe.

            - Sim, sim, está encantado por conhecer Legrandin - disse. Esse modo de sublinhar um nome era, em Bloch, um sinônimo ao mesmo tempo de ironia e de literatura. Saint-Loup, que jamais ouvira o nomes Legrandin, espantou-se:

            - Quem é?

            - Oh, é alguém muito distinto. - respondeu - Bloch rindo. E punha, friorento, as mãos nos bolsos do jaquetão, convencido de que, naquele instante, estava contemplando o aspecto pitoresco de um extraordinário fidalgo provinciano, junto a quem não era nada o nome de Barbey d'Aurevilly. Consolava-se de não saber descrever o Sr. Legrandin, pronunciando-lhe o “n” com muitos LL e saboreando-o como se fosse um vinho respeitável. Mas meus gozos subjetivos ficavam desconhecidos dos outros. Se falou mal de mim à Saint-Loup, por outro lado não o fez menos de Saint-Loup para mim. Ficara sabendo dos pormenores dessas maledicências desde o dia seguinte, não que fôssemos repetir um ao outro, o que nos teria parecido incorreto, mas porque Bloch, a quem era tão natural e inevitável que assim o fizéssemos, inquieto - por certo que não ia nos dizer nada que não soubéssemos, preferiu antecipar; chamando de parte Saint-Loup, confessou-lhe que falara deliberadamente mal dele para que lhe contassem, e jurou "por Zeus, filho de Kronos, guardião dos juramentos",que o amava e daria sua vida por ele; e enxugou uma lágrima. No mesmo dia deu um jeito para estar a sós comigo, me fez sua confissão, declarou que agia por meu interesse porque julgava que certa espécie de relações sociais seriam prejudiciais e que eu "valia mais que isso". Depois, segurando minha mão com um sentimentalismo de bêbado, embora sua embriaguez fosse puramente de origem nervosa, disse: - Acredita em mim, e que a funesta Ker me agarre imediatamente e me faça entrar pelas portas de Hades, odiosas aos humanos, se não é verdade que ontem, fiquei pensando em ti, em Combray, em minha ternura infinita por ti, naquelas tardes de colégio, que nem te lembras mais, passei a noite inteira chorando. Sim, a noite inteira juro-te, e infelizmente sei, pois conheço as almas humanas, que não acreditará.

            De fato, não acreditava; e seu juramento "pela Ker" não acrescentava peso àquelas palavras, que eu percebia serem inventadas à medida que ele falava, o culto helênico era em Bloch puramente literário. Aliás, quando principiava em ser sentimental e queria enternecer os outros com alguma falsidade, dizia:

            - Eu te juro - mais pela volúpia histérica de mentir que pelo interesse em que pensassem que dizia a verdade. Não acreditei em nada do que me disse, mas não lhe guardei rancor, pois herdara de minha mãe e de minha avó a incapacidade de ser rancoroso, mesmo contra culpados bem mais graves, e de jamais condenar ninguém.

            Aliás, Bloch não era de todo um mau rapaz, podia praticar muitas bondades. E, desde que quase se extinguiu a raça de Combray, raça de onde criaturas absolutamente íntegras, como minha avó e minha mãe, e como já quase não tenho escolha senão entre brutos honrados, insensíveis e leais que, só pelo timbre da voz, mostram logo que não se preocupam de forma alguma com a nossa vida e outra espécie de pessoas que, enquanto estão conosco nos compreendem, nos estimam, se enternecem até às lágrimas e que, em compensação, horas depois fazem um cruel gracejo a nosso respeito, e no entanto voltam para nós, sempre tão compreensivos, tão encantadores, tão momentaneamente assimilados a nós mesmos; creio que é esta última espécie de homens a que prefiro, senão pelo valor moral, ao menos pelo convívio.

            - Não podes imaginar minha dor quando penso em ti - continuou Bloch. - No fundo, isto é um lado bastante judaico em mim - acrescentou ironicamente, contraindo a pupila como se cuidasse de dosar ao microscópio uma quantidade infinitesimal de "sangue judeu", e como teria podido dizê-lo (embora não o dissesse) um grão-senhor francês que entre seus ancestrais, todos cristãos, contasse entretanto com Samuel Bernard ou, mais antigamente ainda, a Virgem Maria, da qual se diz que pretendem descender os Lévys. - Fico muito satisfeito – continuou - por estabelecer deste modo em meus sentimentos a parte, aliás bem pequena, influenciada por minhas origens judaicas. - Pronunciou esta frase porque lhe pareceu a um tempo espirituoso e atrevido dizer a verdade acerca de sua raça, verdade que, da mesma forma, ele tratou de atenuar singularmente, como os avaros que decidem livrar-se das dívidas, mas só têm coragem de pagar a metade. O tipo de fraude que consiste em ter audácia de proclamar a verdade, mas misturando-a com uma boa proporção de mentiras que a falsificam, é mais espalhado do que se pensa e, até entre aqueles que habitualmente não a praticam, certas crises da vida, notadamente aquelas em que está em jogo uma relação amorosa, dão-lhes a ocasião de se entregarem a ela.

            Todas essas diatribes confidenciais de Bloch à Saint-Loup contra mim, e a mim contra Saint-Loup, acabaram num convite para jantar; não tenho certeza se antes não fez uma tentativa para ter Saint-Loup sozinho. A verossimilhança torna provável essa tentativa, mas não teve sucesso, pois um dia nos disse a ambos:

            - Caro mestre, e vós, cavaleiro amado de Ares, de Saint-Loup-en-Bray, domador de cavalos, já que os encontrei às margens de Anfitrite, a ressoar de espuma, perto das tendas dos Menier, os das naus velozes, quereis ambos vir jantar um dia desta semana em casa de meu ilustre pai de coração irrepreensível? - Dirigia-nos esse convite por desejar ligar-se mais estreitamente a Saint-Loup, que o faria, segundo esperava, penetrar nos ambientes aristocráticos. Formulada por mim, semelhante aspiração teria parecido a Bloch o sinal do mais horrível esnobismo, bem de acordo com a opinião que professava sobre uma parte de minha personalidade que, ao menos até então, considerava secundária; porém o mesmo desejo, de sua parte, parecia-lhe uma prova de bela curiosidade de sua inteligência, que ansiava por determinadas mudanças sociais que lhe fossem de utilidade literária. O Sr. Bloch pai, quando o filho lhe dissera que traria um amigo para jantar, nome e título declinou num tom de sarcástica satisfação:

            "O Marquês de Saint-Loup-en-Bray" -sentiu uma comoção violenta, e exclamou, usando a interjeição que nele era a maior prova de deferência social:

            - Caramba! O Marquês de Saint-Loup-en-Bray! - E lançou ao filho, capaz de travar semelhantes relações olhar admirativo que significava:

            "É verdadeiramente assombroso. Será que esse garoto prodígio é o meu filho?"-olhar que deu tanto prazer ao meu camarada como pai lhe houvesse aumentado a mesada em cinqüenta francos. Pois Bloch sentia muito à vontade em casa e percebia que o pai o considerava um desajustado devido à sua permanente admiração por Leconte de Lisle, Heredia e outros ''boêmios". Porém relações com Saint-Loup-en-Bray, cujo pai fora presidente da Companhia do Canal de Suez (caramba!), eram um resultado "indiscutível". Lamentava todos ter deixado em Paris o estetoscópio, com medo de estragá-lo. Somente Bloch pai tinha a arte, ou o direito, de se utilizar dele. O que, aliás, só fazia raramente, com conhecimento de causa, nos dias de baile de gala, quando tinham extras. De forma que de tais sessões de estetoscópio emanava, para quem a assistia, uma espécie de distinção, um favor de privilegiados e, para o dono da casa que as dava, um prestígio idêntico ao que o talento confere e que não poderia ter sido maior, ainda que as vistas fossem tiradas pelo próprio Sr. Bloch e o aparato fosse sua invenção.

            - Não foi ontem à casa dos Salomon? - perguntavam no âmbito familiar.

            - Não, não fui dos eleitos. Que foi que houve?

            - Um grande aparelho, estetoscópio, toda a aparelhagem.

            - Ah, o estetoscópio! Então lastimo não ter ido, pois parece que Salomon é insuperável quando o mostra.

            -Que queres? - perguntou o Sr. Bloch ao filho.-Não se deve dar tudo de uma vez; desse modo fica alguma coisa a desejar.

            Ocorrera-lhe, inspirado pela ternura paterna e pelo desejo de emocionar o filho, a idéia de mandar buscar o instrumento. Mas faltava o "tempo material", ou antes, achou que faltava; mas apressou-se o jantar porque Saint-Loup não dispunha de tempo suficiente, esperando um tio que vinha passar de visita com a Sra. de Villeparisis. Como esse tio era muito dado aos exercícios físicos, sobretudo às longas caminhadas, era em grande parte a pé que percorreria entre o castelo, onde veraneava, e Balbec, dormindo à noite nas fazendas, de que era incerto o momento em que chegaria. Sem ousar se mexer, Saint-Loup encarregou-me até de levar a Incarville, onde ficavam os escritórios do telégrafo, o despacho que enviava diariamente à sua amante. O tio que esperava chamava-se Palamede, prenome que herdara dos príncipes da Sicília, seus antepassados; mais tarde, quando encontrei nas minhas leituras históricas, pertencentes potentado ou príncipe da Igreja, esse mesmo nome, bela medalha da Renascimento - alguns dizem ser uma verdadeira antigüidade - sempre na família, tendo de descendente em descendente, desde o gabinete do Vaticano até o tio amigo, senti o prazer reservado àqueles que, não podendo por escassez de formar uma coleção de medalhas ou uma pinacoteca, procuram velhos nomes (nomes de lugares, documentais e pitorescos como um mapa antigo, uma paisagem ampla, uma insígnia ou um foro consuetudinário, nomes de batismo onde se ouve ressoar, nas belas finais francesas, o defeito de pronúncia, o sotaque de uma vulgaridade racial, a fala viciosa segundo a qual nossos antepassados impunham às palavras latinas e saxãs mutilações permanentes que mais tarde passaram a ser nobres legisladoras de gramáticas) e, em suma, graças a tais coleções de sonoridades antigas dão concertos a si mesmos, à maneira dos que adquirem violas de gamba e violas de amor para tocar música de outrora em instrumentos antigos. Saint-Loup me disse que, mesmo na mais fechada sociedade aristocrática, seu tio Palamede ainda se distinguia por ser dificilmente acessível, desdenhoso, muito aferrado à sua nobreza, formando com a cunhada e algumas pessoas escolhidas o que era conhecido como o círculo dos Fênix. Ainda aí era tão temido por suas insolências que ocorreu algumas vezes que certos aristocratas, desejosos de conhecê-lo, haviam recorrido a seu próprio irmão, que se negou a apresentá-los.

            - Não, não me peçam para apresentá-los a meu irmão Palamede. Mesmo que eu, minha mulher, nós todos nos empenhássemos, nada obteríamos. Ou o senhor se arriscaria a que ele não fosse amável, e eu não desejo isso. - No Jockey, ele e alguns amigos tinham relacionado duzentos sócios a quem jamais se deixariam apresentar. E, na casa do conde de Paris, era conhecido pelo apelido de "Príncipe", devido a sua elegância e a seu orgulho.

            Saint-Loup me falou da juventude, há muito passada, de seu tio. Todos os dias levava mulheres ao apartamento de solteiro que dividia com dois amigos, bonitos como ele, razão pela qual os chamavam as "Três Graças".

            - Um dia, um dos homens que atualmente é muito bem visto no faubourg Saint-Germain, como diria Balzac, mas que teve um primeiro período bastante tumultuado e mostrava estranhas preferências, pedira a meu tio que o deixasse ir àquele apartamento. Porém, mal chegado, declarou-se não às mulheres e sim a meu tio Palamede. Este fingiu não entender, chamou à parte os dois amigos com uma desculpa qualquer; voltaram, pegaram o culpado, despiram-no e lhe deram uma surra até que sangrasse, pondo-o depois porta afora, aos pontapés, sob um frio de dez graus abaixo de zero. O infeliz foi encontrado semimorto, a polícia instaurou inquérito, e custou muito ao desgraçado que a coisa não seguisse adiante. Hoje meu tio não daria um castigo tão cruel e você nem imagina o número de pessoas do povo a quem trata com afeto, ele tão altivo

para com as pessoas da alta roda. Protege-os, e eles lhes pagam com a ingratidão. Ora é um criado que o serviu num hotel, a quem arranja uma colocação em Paris, ora um camponês a quem custeia o aprendizado de um ofício. É até o lado bem gentil de meu tio, em contraste com o lado mundano.

            Com efeito, Saint-Loup pertencia a esse tipo de rapazes aristocratas situados a uma altura onde podem brotar essas expressões: "É o que ele tem de gentil, é o seu lado gentil", sementes preciosas que logo determina" modo de conceber as coisas, na qual não se vale nada e o "povo" vale tudo-, em outras palavras, o oposto do orgulho plebeu. - Na juventude, parece que nem pode imaginar como ele dava o tom, como ditava a lei na sociedade. De sua parte em qualquer circunstância, fazia o que lhe era mais agradável, mais cômodo, mas era logo imitado pelos esnobes. Se lhe acontecia ter sede no teatro e mandasse tirar bebidas ao camarote, era certo que, na semana seguinte, todos os salõezinhos detrás dos camarotes se encheriam de refrescos. Num verão muito chuvoso, porque ele sofreu um pouco de reumatismo, encomendou um sobretudo de vicunha fina, mas bem quente, que só se usa em cobertas de viagem, e respeitou o tecido de listras azuis e alaranjadas. Imediatamente, os grandes alfaiates receberam dos clientes encomendas de casacos listrados de azul, com franjas, de pelos compridos. Se, por um motivo qualquer, desejava tirar toda a solenidade de um jantar no castelo onde passava o dia, e, para indicar esse tom, não vestia casaco sentava-se à mesa com a jaqueta que usara de tarde, virou moda jantar no campo jaqueta. Se, ao comer um doce, se servia de um garfo em vez da colher, ou de um talher que inventara e que havia encomendado a um ourives, ou mesmo dedos, não era mais permitido fazer de outro modo. Sentira vontade de ouvir de novo certos quartetos de Beethoven (pois, com todas as suas idéias extravagantes, não é nenhum estúpido e possui talento) e encarregou alguns músicos de tocarem em sua casa aquelas peças, para ele e os amigos. A maior elegância daquele tempo era dar reuniões pouco freqüentadas, onde se ouvia música de câmara. Creio que deve ter se aborrecido nesta vida. Bonito como era, deve ter tido muitas mulheres - Apenas não poderia dizer quais, pois ele era muito discreto. Mas sei que enganou muito minha pobre tia. O que não impediu que fosse extremamente atencioso com ela, que ela o adorasse, e que tenha chorado durante anos. Quando está em Paris vai ainda ao cemitério quase todos os dias.

            Na manhã seguinte ao dia em que Robert me falara assim de seu tio, enquanto ele o esperava em vão, passava eu sozinho pela frente do cassino, vindo ao hotel, quando tive a sensação de estar sendo observado por alguém que se achava longe. Virei a cabeça e dei com um homem de uns 40 anos, muito robusto, com bigodes bem pretos e que, batendo nervosamente com a bengala nas calças, fixava em mim os olhos dilatados pela atenção. Por instantes, aqueles eram atravessados por olhares de extrema atividade, próprios apenas dos homens que estão diante de uma pessoa a quem desconhecem, pessoa que, por motivo, lhes inspira idéias que não ocorreriam a outros - por exemplo, os loucos dos espiões. Lançou-me um olhar derradeiro, a um tempo ousado e prudente; profundo, como o último golpe antes de iniciar a fuga, e, depois de olhar em redor, assumindo de repente um ar distraído e altaneiro, virou-se inteiramente para um cartaz de teatro, em cuja leitura se absorveu, cantarolando uma canção, enquanto arrumava a rosa musgosa da botoeira. Tirou uma caderneta do bolso e pareceu tomar nota do espetáculo anunciado; olhou o relógio duas ou três vezes, baixou mais sobre a testa a palheta de cor negra, prolongando-lhe a aba com a mão em viseira como para ver alguém que não chegava, fez um gesto de descontentamento como esses que a gente faz quando já está farto de esperar, mas que nunca fazemos quando esperamos de verdade; depois, empurrando o chapéu para a nuca e deixando aparecer o cabelo cortado à escovinha, mas que apresentava de cada lado grandes mechas onduladas, soltou o suspiro ruidoso não das pessoas que têm muito calor, mas das que desejam aparentar que estão com calor. Veio-me a idéia de que se tratava de um ladrão de hotel, que, já tendo reparado em mim e minha avó nos dias anteriores, e preparando um golpe, vendo que o havia surpreendido enquanto me espiava, adotara aquela nova atitude para despistar, e expressava distração e indiferença, mas com tão agressivo exagero que seu objetivo, mais que o de dissipar as suspeitas que eu porventura tivesse, parecia o de vingar uma humilhação que eu lhe houvesse infligido sem querer, dando-me a entender não tanto que não me houvesse visto, mas que eu era sem importância demais para atrair a sua atenção. Empertigava-se com ar de bravata, franzia os lábios, torcia o bigode e dava ao olhar um tom de indiferença, de dureza, quase insultante. De modo que a singularidade de sua expressão me fazia toma-lo tanto por um ladrão como por um doido. Todavia seu modo de trajar era extremamente correto, e muito mais sério e simples que o de todos os banhistas que eu via em Balbec, de forma que justificava minha jaqueta escura, tão freqüentemente humilhada pela deslumbrante alvura banal das roupas de praia. Porém minha avó vinha a meu encontro, demos uma volta juntos e, uma hora depois, esperava-a diante do hotel, onde entrara por um momento; vi então sair a Sra. de Villeparisis na companhia de Robert de Saint-Loup e do desconhecido que me olhara tão fixamente à porta do cassino. Com a rapidez do relâmpago, o seu olhar me atravessou como no momento em que o vira pela primeira vez, e, como se não me tivesse visto, voltou a pôr diante dos olhos aquele olhar embotado, neutro, que finge nada ter visto fora e não é capaz de ler coisa alguma para dentro, olhar que expressa apenas a satisfação de sentir a seu redor as pestanas que entreabre com sua beatífica redondeza, o olhar devoto e derretido de alguns hipócritas, o olhar presunçoso de certos tolos. Vi que mudara de roupa. A que usava era ainda mais sombria; e, sem dúvida, o fato é que a verdadeira elegância está menos longe da simplicidade que a falsa; mas havia outra coisa: olhando-o de bem perto, via-se que, se a cor estava quase totalmente ausente dessas roupas, não era porque as banira por lhes ser indiferente, mas antes porque as proibira por um motivo qualquer. E a sobriedade que denotavam parecia provir mais da obediência a um regime do que da falta de gulodice. Um debrum verde-escuro se harmonizava, no tecido das calças, com o desenho das meias, refinamento que provava a vivacidade de um gosto cultivado em qualquer outra parte e ao qual esta única concessão fora feita por tolerância, ao passo que uma pinta rosada na gravata era imperceptível como uma liberdade que mal ousamos tomar.

            - Como vai? Apresento-lhe o meu sobrinho, o barão de Guermantes - disse-me a Sra. de Villeparisis, enquanto o desconhecido, sem me olhar, resmungando um vago "Encantado", que fez seguir de uns grunhidos para emprestar à amabilidade um tom forçado, e dobrando o dedo mínimo, o indicador e o estendeu-me o médio e o anular, sem nenhum anel, que apertei, protegidos em, luva de couro da Suécia; depois, sem ter erguido os olhos para mim, virou-se para Sra. de Villeparisis.

            - Meu Deus, onde estou com a cabeça? - disse esta. - Já te chamei, barão de Guermantes. Apresento-lhe o barão de Charles. Afinal, o erro não é grande - acrescentou -, pois também és um Guermantes.

            Nesse meio tempo, saía a minha avó e começamos a andar todos. O tio de Saint-Loup não só não me honrou com uma palavra mas sequer com o olhar. Se encarava os desconhecidos (e nesse curto passeio lançou duas ou três vezes o seu olhar profundo e terrível como para sondar as pessoas insignificantes de condição bem modesta que passavam), em compensação não olhava posso julgar por mim, as pessoas conhecidas como um policial em missão secreta mas que mantém os amigos fora de sua vigilância profissional. Deixei minha avó, a Sra. de Villeparisis e ele conversando juntos, fiquei um pouco atrás com Robert:

            - Diga-me, escutei bem? A Sra. de Villeparisis disse a seu tio que era um Guermantes?

            - Sim, naturalmente, é: Palamede de Guermantes.

            - Mas dos mesmos Guermantes que têm um castelo perto de Combray, que pretendem descender de Genevieve de Brabante?

            - Perfeitamente. Meu tio, que é o que existe de mais heráldico, lhe responderia que o nosso grito de guerra, que mais tarde foi Passavent, em princípio era Combraysis - disse ele rindo, para não dar impressão de se envaidecia dessa prerrogativa do grito, próprio só das casas quase soberanas, dos senhores de brasões. - É irmão do atual proprietário do castelo.

            Assim, a Sra. de Villeparisis era parente, e bem próxima, dos Guermantes. Ela, que por muito tempo fora para mim a senhora que me dera uma caixa de chocolates com um pato, quando eu era pequeno, caixa então de tal modo a do lado de Guermantes como se tivesse sido preparada no lado de Méséglise; menos brilhante e menos considerada a meus olhos, que o oculista de Combray disse que sofria agora subitamente uma dessas altas fantásticas, semelhantes às baixas, menos imprevistas de outros objetos que possuímos, altas e baixas que introduzem na nossa adolescência, e nos aspectos de nossa vida onde subsistir algo de nossa adolescência, mudanças tão numerosas como as metamorfoses de Ovídio.

            - Não existem nesse castelo os bustos de todos os antigos senhores de Guermantes?

            - Sim, e são um belo espetáculo. - disse Saint-Loup com ironia. - Aqui, entre nós, acho essas coisas meio ridículas. Mas em Guermantes há coisas de maior interesse: um retrato impressionante da minha tia, pintado por Carriere. É lindo como um Whistler ou um Velásquez. -acrescentou Saint-Loup, que, no seu zelo de neófito, nem sempre conservava com exatidão a escala de valores. - Há também quadros muito curiosos de Gustave Moreau. Minha tia é sobrinha de sua amiga Sra. de Villeparisis, foi educada por ela e se casou com o primo, que também era sobrinho da tia de Villeparisis, o atual duque de Guermantes.

            - Mas então o que é o seu tio...?

            - Ele usa o título de barão de Charles. Na verdade, quando meu tio-avô morreu, o tio Palamede deveria ter tomado o título de príncipe des Laumes, que era o de seu irmão antes que se tornasse duque de Guermantes, pois na nossa família mudam de nome como quem troca de camisa. Mas meu tio tem idéias próprias sobre esse assunto. E, como acha que se abusa um pouco dos ducados italianos, grandezas espanholas, etc., embora pudesse ter escolhido entre quatro ou cinco títulos de príncipe, preferiu o de barão de Charles como forma de protesto e com uma simplicidade aparente onde há muito de orgulho. "- Hoje diz ele todo mundo é príncipe; portanto, é necessário a gente se diferenciar em alguma coisa; tomarei um título de príncipe quando quiser viajar incógnito." Segundo ele, não há título mais antigo que o de barão de Charles. Para provar que é anterior ao dos Montmorency, que falsamente se diziam os primeiros barões da França, ao passo que na verdade o eram apenas da Ilha de França, onde ficava o seu feudo, meu tio lhe dará explicações durante horas e horas, e com todo o prazer, pois que, embora seja homem de gosto e muito talento, este assunto de conversação parece lhe interessar sempre. -disse Saint-Loup com um sorriso. - Mas como não sou feito ele, não me faça falar de genealogia, pois não conheço nada tão aborrecido, tão morto, como isso; e de fato a existência é muito curta para essas coisas.

            Agora eu reconhecia, no olhar duro que me fizera desviar a cabeça há pouco, perto do cassino, o mesmo que vira fixado em mim em Tansonville, quando a Sra. Swann havia chamado Gilberte.

            - Mas dentre as numerosas amantes que me dizia que seu tio, Sr. de Charles, havia tido, não estava a Sra. Swann?

            - Oh, de jeito nenhum! Quer dizer, ele é um grande amigo de Swann e sempre o defendeu. Mas nunca se murmurou que fosse amante de sua mulher. Você provocaria um grande espanto na sociedade se desse a impressão de acreditar nisso.

            Não ousei responder-lhe que maior espanto haveria em Combray se eu afirmasse o contrário.

            Minha avó ficou encantada como Sr. de Charles. De fato, ele dava grande importância a questões relativas a linhagem e posição social, o que minha avó notara; mas sem aquela severidade onde em geral costuma haver uma inveja e a irritação de ver outra pessoa desfrutar vantagens que a gente deseja conseguir. Como, pelo contrário, minha avó, contente com sua sorte e não ficava lamentando de forma alguma o não viver numa sociedade mais brilhante, servia-se nas da inteligência para observar os caprichos do Sr. de Charles, falava dos Saint-Loup com essa benevolência desinteressada, sorridente, quase simpático, com que recompensamos o objeto de nossa observação casual pelo prazer que dá; e tanto mais que desta vez o objeto de observação era um personagem cujas pretensões ela considerava, senão legítimas, pelo menos pitorescas; o destacar-se vivamente das personalidades com que ela em geral tinha ocasião de lidar. Mas minha avó lhe perdoara facilmente o preconceito aristocrático, espertamente por causa da inteligência e da sensibilidade, que se adivinhava serem eternamente vivas no Sr. de Charles, ao contrário de tantas pessoas da alta sociedade de quem Saint-Loup escarnecia. Mas tal preconceito não fora entretanto sacrificado pelo tio, como o fizera o sobrinho, em favor de qualidades superiores. O Sr. Charles antes conseguira conciliar ambas as coisas. Descendente dos duques de Nemours e dos príncipes de Lamballe, possuía arquivos, móveis, tapeçarias, retratos dos antepassados feitos por Rafael, Velásquez e Boucher; podia dizer "visitava" um museu e uma incomparável biblioteca apenas ao percorrer as acomodações da família, e colocava, ao contrário, na posição de onde o sobrinho afirmava, descender, toda a herança da aristocracia. Talvez também, por ser menos ideólogo Saint-Loup, atentava menos nas palavras e era um observador mais realista dos homens; não queria desprezar um elemento essencial de prestígio aos olhos das pessoas em geral, e que, se dava à sua imaginação prazeres desinteressados; muitas vezes ser um auxílio extremamente eficaz para sua atividade utilitária permanece aberto o debate entre os homens desse gênero e aqueles que obedecem um ideal interior que os impele a se desfazerem dessas vantagens para tentar realizá-lo, nisto semelhantes aos pintores e escritores que renunciam à virtuosidade, aos povos artistas que se modernizam, aos povos guerreiros que tomam a iniciativa do desarmamento universal, aos governos absolutistas que tornam democráticos e revogam as leis severas, muitas vezes sem que a realidade recompense seus nobres esforços; pois uns perdem seu talento, outros a secular predominância; o pacifismo às vezes multiplica a guerra, e a indulgência leva à criminalidade. Se os esforços de sinceridade e de emancipação de Saint-Loup deviam ser considerados muito nobres, a avaliar pelo resultado exterior, seria de que o Sr. de Charles se felicitasse por não participar de tais idéias, visto mandar transportar para sua casa uma grande parte dos admiráveis entalhamentos do palácio dos Guermantes em vez de trocá-los, como fizera seu sobrinho, por mobiliário de estilo moderno, dos Lebourg e dos Guillaumin. Não é menos verdade que o ideal do Sr. de Charles era bastante artificial, se é que tal adjetivo se pode aplicar à palavra ideal, tanto no sentido social como no artístico. Em certas mulheres muito belas e de rara cultura, cujas avós, dois séculos antes, estiveram misturadas à glória e elegância do antigo regime, ele descobria uma distinção que o fazia só sentir-se a gosto em sua companhia; e, sem dúvida, era sincera a admiração que lhes votava, mas, em grande parte, contribuíam para este sentimento numerosas reminiscências de história e de arte evocadas por seus nomes, assim como as lembranças da Antigüidade são um dos motivos do prazer que um homem culto encontra na leitura de uma ode de Horácio, talvez inferior a alguns poemas de hoje que o deixariam indiferente. Cada uma dessas mulheres, na opinião do Sr. de Charles, estaria para uma linda burguesa como, para uma tela contemporânea que represente uma estrada ou um casamento, está um desses quadros antigos cuja história conhecemos perfeitamente, desde o rei ou o papa que o encomendaram, passando por determinadas personagens junto a quem sua presença, por doação, compra, roubo ou herança, nos lembra algum acontecimento, ou, pelo menos, uma aliança de interesse histórico e, por conseqüência, representa a aquisição de conhecimentos que adquirimos, dando-lhes uma nova utilidade, e aumentando o sentimento da riqueza dos recursos da nossa memória ou da nossa erudição. O Sr. de Charles se felicitava que um preconceito análogo ao seu impedisse essas grandes damas de conviverem com mulheres de sangue menos puro, pois assim se ofereciam intactas em sua nobreza inalterada, como essas fachadas do séc. XVIII sustentadas por lisas colunas de mármore róseo e que o tempo não mudou em nada.

            O Sr. de Charles celebrava a verdadeira nobreza de espírito e sentimentos dessas mulheres, fazendo assim um trocadilho com a palavra nobreza, num equívoco que a si mesmo o enganava e onde residia a falsidade desse conceito bastardo, dessa mistura ambígua de aristocracia, generosidade e arte, mas também a sua sedução, perigosa para as criaturas como a minha avó, a quem o preconceito mais grosseiro porém mais inocente de um nobre, que só vê os seus brasões e não se preocupa com o resto, teria parecido excessivamente ridículo, mas que ficaria indefesa desde que algo se lhe apresentasse sob as aparências de uma superioridade espiritual, a ponto de considerar os príncipes os mais invejáveis dos homens porque poderiam ter tido um La Bruyere ou um Fénelon como preceptores.

            Diante do Grande Hotel, os três Guermantes nos deixaram; iam almoçar na casa da princesa de Luxemburgo. No momento em que minha avó dizia adeus à Sra. de Villeparisis e Saint-Loup se despedia dela, o Sr. de Charles, que até então não me dirigira a palavra, deu alguns passos para trás até chegar a meu lado:

            -Vou tomar chá esta noite após o jantar, no apartamento de minha tia Villeparisis disse-me.

-Espero que me dê o prazer de comparecer com a senhora sua avó.- E foi reunir-se à marquesa.

            Embora fosse domingo, já não havia mais fiacres diante do hotel como no começo da temporada. A esposa do tabelião, em particular, achava ser gasto excessivo alugar todo fim de semana um carro a não ser para ir aos Cambremer; contentava-se em ficar encerrada no quarto.

            - A Sra. Blandais está doente? - perguntavam ao tabelião

            - Não vir hoje. Tem um pouco de dor de cabeça; deve ser o calor, a trovoada. Mas, uma coisinha de nada; mas creio que a verão esta noite. Aconselhei-a a que descansasse. Isto só poderá lhe fazer bem.

            Pensei que, ao convidar-nos assim para o apartamento de sua tia, sem dúvida a prevenira de nossa visita, o Sr. de Charles teria desejado reparar a descortesia com que me tratara no passeio daquela manhã. Mas, quando entramos o sobrinho estava no salão da Sra. Villeparisis; quis cumprimentá-lo, porém por mais voltas que desse a seu redor, não pude atrair o seu olhar, pois ele contava, em voz aguda, uma história bem malévola sobre um de seus parentes; quis cumprimentá-lo com voz bem forte, para adverti-lo de minha presença, mas, compreendi que havia reparado nela, pois, antes mesmo que meus lábios dissesse uma só palavra, no momento em que me inclinava, vi seus dois dedos estendidos para que os apertasse, sem que ele tivesse desviado os olhos ou interrompido a conversa. Evidentemente me vira, mas sem dá-lo a perceber, e só então verifiquei que seus olhos, que jamais se fixavam no interlocutor, passeavam permanentemente em todas as direções, como os de certos animais assustados, ou os desses vendedores ambulantes que, enquanto declamam seu palavreado e exibem mercadoria ilícita, perscrutam, sem todavia virar a cabeça, os diferentes pontos no horizonte de onde poderia vir a polícia. Com a nossa chegada, parecia surpresa por nos ver a Sra. de Villeparisis; parecia não estar prevenida; e fiquei mais assombrado ainda ao ouvir o Sr. de Charles dizer à minha avó:

            - É encantador, não é mesmo? Disse à tia. "Ah, foi uma idéia muito boa a que tiveram.'' Sem dúvida havia reparado na surpresa de sua tia; e que lhe bastaria para transformar, homem acostumado a dar o tom, como esta surpresa em alegria, indicando que também se achava surpreso e que esse calculava bem, o efeito do sentimento que a nossa chegada deveria causar. Levava em muita consideração o seu sobrinho, e a Sra. de Villeparisis, sabia quanto era difícil contentá-lo, pareceu de súbito achar novas qualidades em minha avó. Não podia compreender que o Sr. de Charles não cessou de agradá-la. Mas eu não entendia que aparentemente se esquecesse, em poucas horas, o convite tão breve que nos fez naquela manhã – denominava tão premeditado, que me parecia que fizera aquilo intencionalmente parecer a idéia de minha avó, uma idéia que era somente sua. Disse com um escrúpulo de precisão que até certa idade, foi que percebi que a gente não se certifica que se conserve verdadeiras intenções de uma pessoa pelo simples fato de lhe fazer uma pergunta e que é menor o risco de um mal entendido que certamente passará em brancas nuvens, do que insistir ingenuamente:

            - Mas, senhor - disse-lhe -, deve estar lembrado de que me pediu que viéssemos esta noite, não é? - Nenhum movimento, nenhum som revelou que o Sr. de Charles tivesse ouvido minha pergunta. De modo que a repeti, como os diplomatas ou os jovens que estão brigados e que, com inútil e incansável boa vontade, procuram obter esclarecimentos que o adversário decidiu não dar. Pareceu-me ver flutuar em seus lábios o sorriso dos que, de muito alto, julgam o caráter e a educação dos outros. Já que ele se recusava a uma explicação, tentei elaborar uma, e apenas cheguei a hesitar entre várias, nenhuma das quais podia ser a verdadeira. Talvez não se lembrasse, ou então fora eu quem não compreendera bem o que me havia dito pela manhã... Mais provavelmente por orgulho, não queria dar a impressão de ter procurado atrair pessoas que desdenhava, e preferia lançar sobre elas a iniciativa de sua vinda. Mas então, se nos desdenhava, por que fizera questão que viéssemos, ou melhor, que minha avó viesse, pois de nós dois foi somente a ela que o Sr. de Charles dirigiu a palavra naquela noite, e nem uma só vez a mim? Conversando com ela na maior animação, assim como com a Sra. de Villeparisis, de algum modo escondido atrás delas como se estivesse no fundo de um camarote, contentava-se apenas em desviar por vezes o olhar inquiridor de seus olhos penetrantes e pousá-lo em meu rosto, com a mesma seriedade e o mesmo ar de preocupação que teria se estivesse lendo um manuscrito difícil de entender. Sem dúvida, a não ser por esses olhos, o rosto do Sr. de Charles seria idêntico ao de muitos homens bonitos. E, quando Saint-Loup, falando-me de outros Guermantes, disse mais tarde:

            - "Ora, eles não têm esse ar de raça, de grão-senhor até a ponta dos dedos, como o tio Palamede", confirmando que o ar de raça e a distinção aristocrática não continham nada de novo e misterioso, mas eram constituídos de elementos que eu facilmente reconhecia sem que me causassem maior impressão. Percebi que se dissipava uma de minhas ilusões. Mas naquele rosto, que se parecia um pouco ao rosto de um ator devido à leve camada de pó-de-arroz que o recobria, por mais que o Sr. de Charles lhe fechasse hermeticamente a expressão, seus olhos eram como uma fenda, uma seteira que não pudera tapar e por onde, segundo a posição que a gente ocupava quanto a ele, saíam reflexos que bruscamente nos atravessavam, provindos de alguma arma interior que parecia assustadora até para aquele que, sem dominá-la, carregava-a dentro de si em estado de equilíbrio instável e sempre a ponto de explodir; e a expressão circunspecta e constantemente intranqüila desses olhos, com todo o cansaço que provocava no rosto, por mais composto e arrumado que estivesse, expresso nas olheiras muito caídas, fazia pensar num incógnito, num homem poderoso que corresse perigo e por isso se disfarçasse, ou pelo menos num sujeito perigoso, porém trágico. Gostaria de adivinhar que segredo era aquele que os outros homens não possuíam e que tornara tão enigmático o olhar do Sr. de Charles; quando o havia visto de manhã, perto do cassino. Mas agora, que já sabia a que família pertencia, não mais continuara crer que fosse o olhar de um ladrão, nem, já que o ouvira, o de um louco. Se se mostrava frio para comigo, enquanto era tão amável à minha avó, isto talvez não se devesse a uma antipatia pessoal, pois de um modo geral era benevolente para com as mulheres, de cujos defeitos falava habitualmente com muita indulgência; mas, quanto aos homens, principalmente os rapazes, tratava com um ódio violento que lembrava o de certos misóginos pelas mulheres, dois ou três gigolôs, que eram da família ou da intimidade de Saint-Loup, e cujos nomes este citara casualmente, disse:

            - São uns pequenos canalhas.- com a expressão quase feroz que contrastava com sua frieza costumeira. Compreendi o que censurava acima de tudo nos jovens de hoje era o serem muito efeminados.

            - São verdadeiras mulheres - dizia com desprezo. Mas qual vida não teria parecido efeminada em comparação com a que ele desejava que levasse um homem, e ainda assim lhe parecia pouco enérgica e viril? (Ele mesmo, em suas viagens, depois de horas de caminhada, todo afogueado, lançava-se em rios gelados.) Nem sequer admitia que um homem usasse anel. Porém esse preconceito da virilidade não o impedia de possuir as mais finas qualidades de homem sensível.  A Sra. de Villeparisis, que lhe pedia descrevesse para minha avó um castelo onde a marquesa da Sévigné passara um dia, acrescentando que achava um pouco literário o seu  gênero de se ver separada de uma pessoa tão aborrecida como sua filha, a Srta. Grignan, respondeu:

            - Pelo contrário, a mim me parece bastante verdadeiro. Aliás, era uma época em que esses sentimentos eram muito bem compreendidos. O habitante de Monomotapa, de La Fontaine, correndo à casa do amigo porque em sonho pareceu triste, o pombo achando que o maior dos males é a ausência de pombo, talvez lhe pareçam, minha tia, tão exagerados como a Sra. de Sévigné, não podia aguardar o momento em que estaria a sós com a filha. E é tão belo ela diz quando se separam: "Esta separação me faz doer tanto a alma que é como se fosse dor no corpo. Durante a ausência não poupamos horas. Adiava por um tempo que é a nossa aspiração."

            Minha avó ficou encantada de ouvir as cartas da Sra. de Sévigné da mesma forma como o teria feito. Assombra que um homem pudesse compreendê-las tão bem. Encontrava no Sr. de Charles delicadezas e sensibilidade femininas. Mais tarde, quando estávamos a sós, avó e eu falamos dele, concordando em que devia ter sofrido a influência de uma mulher, sua mãe, ou, mais tarde, de sua filha se tinha filhos. Quanto pensava: "Uma amante", reportando-me à influência que a de Saint-Loup pudesse ter sobre ele, o que me fazia notar até que ponto pode requintar um homem à uma mulher com quem ele convive.

            - E, uma vez junto da filha, ela provavelmente nada teria a dizer. - respondeu a Sra. de Villeparisis.

            - Claro que sim; mesmo que fossem aquelas coisas que dizia serem "tão insignificantes que só tu e eu sabemos apreciar". E, em todo caso, estava ao lado dela. E La Bruyere diz que isso é tudo: "Se estamos junto dos seres queridos, tanto faz falar-lhes ou não."

            - Tem razão; é a única felicidade - acrescentou o Sr. de Charles com voz melancólica-, e infelizmente a vida é tão mal arranjada que essa felicidade muito raramente podemos desfrutá-la. A Sra. de Sévigné é muito menos digna de compaixão que os outros, pois passou grande parte de sua vida junto de quem amava.

            - Esqueces que não se trata de amor e sim da filha.

            - O importante na vida, entretanto, não é o que se ama e sim sentir o amor, -replicou ele num tom peremptório, compenetrado e quase categórico.-O que a Sra. de Sévigné sentia pela filha pode parecer-se, com maior propriedade, à paixão que Racine pintou em Andrômaca ou na Pedra e não às frívolas relações do jovem Sévigné com suas amantes. Da mesma forma, o amor de alguns místicos por Deus. Os limites muito exíguos que traçamos em torno do amor decorrem apenas da nossa grande ignorância da vida.

            -Gosta muito da Andrômaca e da Fedra? - perguntou Saint-Loup ao tio, num tom levemente desdenhoso.

            - Há mais verdade numa tragédia de Racine do que em todos os dramas de Victor Hugo. respondeu o Sr. de Charles.

            - A sociedade é absolutamente medonha. - sussurrou-me Saint-Loup ao ouvido. - Preferir Racine a Victor Hugo, afinal, é terrível! -

            Estava sinceramente entristecido com as palavras do tio, mas o prazer de dizer "afinal" e sobretudo "terrível" o consolava.

            Nessas reflexões sobre a tristeza de viver separado daquilo que se ama (reflexões que fizeram minha avó dizer que o sobrinho da Sra. de Villeparisis compreendia certas obras bem melhor que a tia, e principalmente que estava em nível muito superior ao da maioria das pessoas da sociedade), o Sr. de Charles não deixava apenas transparecer uma finura de sentimento que, de fato, os homens raramente mostram; sua própria voz, semelhante a certas vozes de contralto em que não está suficientemente cultivado o registro médio, e cujo canto parece o dueto alternado de um rapaz e de uma mulher, colocava-se nas notas altas no momento em que exprimia estes pensamentos tão delicados, adquirindo uma doçura imprevista, como se contivesse coros de vozes de noivas, de irmãs, que disseminassem a sua ternura. Mas o bando de donzelas que o Sr. de Charles, com todo o seu horror por qualquer tipo de efeminamento, ficaria tão aflito de abrigar em sua voz, não se limitava à interpretação, à modulação dessas passagens sentimentais. Muitas vezes, enquanto conversava, o Sr. de Charles deixava ouvir o seu riso agudo e fresco de colegiais de pensionato ou de moças coquetes, que troçavam do próximo com malícias de pícaras e espertalhonas.

            Contou que uma casa que pertencera à família, onde uma vez dormiu Maria Antonieta, e cujo parque fora desenhado por Le Nôtre, era propriedade - dos ricos financistas Israel, que o tinham comprado.

            - Israel é, pelo menos, o nome que usam essas pessoas, e me parece um vocábulo genérico, étnico, em nome próprio. Não se sabe; talvez essa casta de gente nem tenha nome é designada apenas pela coletividade a que pertencem. Dá no mesmo! Ter sido a moradia dos Guermantes e ser propriedade dos Israel!!! - gritou. - Isto me lembra aquele quarto do castelo de Blois, do qual me dizia o guarda que me guiava, visita: - Era aqui que Maria Stuart rezava; e agora é onde guardo minhas vassoura - Naturalmente, nunca mais quero saber dessa casa, que está desonrada, como não quero saber da minha prima, Clara de Chimay, que largou o marido. Mas conservo a fotografia da casa quando ainda estava intacta, como a da princesa num quartel, seus grandes olhos só viviam para meu primo. A fotografia ganha um pouco a dignidade que lhe falta quando deixa de ser reprodução da realidade e nos mostra coisas que já não existem. Poderia lhe dar uma, visto que esse tipo de arquitetura lhe interessa - disse à minha avó. Nesse momento, percebendo que o lenço bordado que trazia no bolso deixava entrever a orla colorida, empurrou-o mais para dentro, com o rosto assustado de uma mulher pudica, mas não inocente, que dissimula atrativos físicos que, por excesso de escrúpulo, julga indecentes. - Imagine a senhora continuou que tais pessoas começaram por destruir o parque do Nôtre, o que é tão criminoso quanto estraçalhar um quadro de Poussin. Por esse motivo, esses Israel deveriam estar na cadeia. É verdade - acrescentou com sorriso, após um momento de silêncio - que sem dúvida há muitos outros motivos para que devessem ser presos! Em todo caso, imagine o efeito que faz desses prédios um jardim à inglesa.

            - Mas a casa é do mesmo estilo do Petit Trianon - disse a Sra. de Villeparisis -, e Maria Antonieta mandou fazer ali um jardim inglês.

            - Que, da mesma forma, põe a perder a fachada de Gabriel. - respondeu o Sr. de Charles. - Evidentemente, seria um ato de selvageria mandar desmanchar agora o Hameau. Mas, sejam quais forem os gostos de hoje, duvido muito esse respeito, um capricho da Sra. Israel tenha o mesmo prestígio que a lembrança da rainha.

            Nesse meio tempo, minha avó me fizera sinal para que subisse para deitar, apesar da insistência de Saint-Loup que, para grande vergonha minha, dissera, diante do Sr. de Charles, à tristeza que eu sentia muitas vezes de noite, antes de dormir, e que seu tio deveria considerar algo bem pouco viril. Demorei ainda instantes, depois saí; e fiquei muito espantado quando, logo após, tendo ouvido bater a porta do quarto e perguntado quem era, percebi a voz do Sr. de Charles que dizia em tom seco:

            - É Charles. Posso entrar, senhor? Senhor continuou no mesmo tom, tão logo fechou a porta -, há pouco meu sobrinho contava que o senhor estaria um tanto aborrecido antes de dormir, e, por outro lado, que é admirador dos livros de Bergotte. Como tenho na mala um deles, que o senhor provavelmente não conhece, estou trazendo-o para que o ajude a passar esses momentos em que não se sente feliz.

            Agradeci ao Sr. de Charles, emocionado, e lhe disse que, pelo contrário, receara que o que Saint-Loup havia dito acerca do meu mal-estar com a aproximação da noite me tivesse feito parecer a seus olhos mais estúpido ainda do que era.

            - Claro que não respondeu ele num tom mais suave. - O senhor talvez não tenha méritos pessoais, tão poucas pessoas o têm! Mas, ao menos por algum tempo, será jovem, o que e sempre uma sedução. Além disso, senhor, a maior das asneiras é achar ridículos ou censuráveis os sentimentos que não se tem. Gosto da noite e o senhor me diz que ela o atemoriza; gosto do aroma das rosas e tenho um amigo a quem o seu cheiro provoca febre. Julga que, por isso, acho que ele valha menos que eu? Esforço-me por compreender tudo, e evito condenar seja o que for. Enfim, não se lamente muito, não digo que essa tristeza não seja penosa; sei o que se pode sofrer por determinadas coisas que os outros não compreenderiam. Mas pelo menos o senhor empregou bem o seu afeto em sua avó. Sempre a vê. E, depois, é uma afeição lícita, isto é, bem correspondida. E há tantas outras de que não se pode dizer o mesmo!

            Andava de um lado para o outro, no quarto, olhando um objeto, pegando outro para examiná-lo. Tinha a impressão de que desejava anunciar-me algo e não sabia em que termos fazê-lo.

            -Tenho um outro livro de Bergotte aqui, vou mandar buscá-lo - acrescentou, tocando a campainha. Apareceu um groom dentro de instantes. - Vá chamar o mordomo. Só ele é capaz de cumprir um recado com inteligência - disse o Sr. De Charles com altivez.

            - O senhor Aimé, senhor? indagou o groom.

            - Não sei o seu nome, mas sim, lembro-me de ter ouvido que o chamavam de Aimé. Vá depressa, não tenho tempo a perder.

            - Num instante ele estará aqui, senhor; acabei de vê-lo lá embaixo. - respondeu o groom, que desejava mostrar-se a par de tudo. Passou-se algum tempo. O groom voltou.

            - O Sr. Aimé já está deitado, senhor. Mas posso me encarregar do recado.

            - Não, o que tem a fazer é acordá-lo.

            - Não posso, senhor, ele não dorme aqui.

            - Então, deixe-nos em paz.

            - Mas, senhor. - disse eu quando o groom se retirou-, é muito amável comigo; é suficiente um livro de Bergotte.

            -Sim, tem razão.

            O Sr. de Charles continuava a andar pelo quarto. Passaram-se alguns minutos desse modo. Depois, após uns instantes de hesitação, recomeçando várias vezes o ato interrompido, girou sobre si mesmo, lançou-me um:

            - Boa-noite, senhor. - Num tom novamente áspero, e foi embora.

            Na manhã seguinte, o Sr. De Charles, que deveria partir nesse mesmo dia, aproximou-se de mim na praia num momento em que eu ia tomar meu banho, a fim de me dizer, da parte de minha avó que ela me esperava tão logo saísse da água; e, depois dos nobres sentimentos - o ouvira expressar na noite anterior, fiquei muito espantado ao ouvi-lo dizer beliscando-me o pescoço com uma familiaridade e um riso bem vulgares:

            -Afinal, você está se lixando para a velha vovó, hein, malandrãol

            - Como, senhor, eu a adoro!       

            - O Senhor. - replicou, recuando um passo e com ar glacial - é jovem ainda deve aproveitar para aprender duas coisas: a primeira é abster-se de expressar sentimentos muito naturais, por serem subentendidos; a segunda é não responder de pronto ao que lhe dizem sem ter penetrado bem o seu sentido. Se tomasse cuidados há pouco, teria evitado dar a impressão de falar a torto e a direito como um surdo e, com isso, acrescentar um ridículo a mais ao ridículo de usar âncoras bordadas no seu traje de banho. Emprestei-lhe um livro de Bergotte o qual estou precisando. Mande-o trazer dentro de uma hora por esse mordomo, nome risível que tão mal lhe assenta; suponho que a estas horas já não esteja deitado. Lembro-me que ontem à noite, cedo demais talvez, lhe falei das seduções da juventude, e lhe teria prestado maior favor se lhe apontasse a leviandade; as inconseqüências e incompreensão. Espero, senhor, que esta pequena ducha seja mais salutar que o seu banho. Mas não fique aí parado, pois poderia sentir frio. Adeus, senhor.

            Com certeza se arrependeu dessas palavras, pois logo depois recebi numa encadernação em marroquim em cuja capa trazia embutida uma placa de couro que representava, em meio-relevo, um ramo de miosótis o livro que emprestara e que lhe fizera chegarás mãos não por Aimé, que se achava de férias, mas pelo ascensorista.

            Tendo partido o Sr. de Charles, Robert e eu pudemos enfim ir jantar à casa dos Bloch. Durante essa pequena recepção, compreendi que aquelas histórias que Bloch julgava tão engraçadas sem o serem, e as pessoas a quem considerava "curiosíssimas", eram histórias e amigos do Sr. Bloch pai, que os julgava desse modo. Há um certo número de pessoas a quem admiramos na infância: um mais inteligente que o resto da família, um professor que exalta a nossos olhos a metafísica que nos revela, um colega mais velho que nós (o que Bloch foi para mim) que despreza o Musset da Esperança em Deus quando ainda a aprecia que, em compensação, quando tivermos chegado ao bom Leconte ou a Claude se extasiará como em:

            A Saint-Claise, na Zuecca,

            Vós estareis, vós estareis bem à vontade...acrescentando:

            Pádua é um lugar bem bonito onde insignes doutores em Direito... Porém prefiro a polenta             Passa em seu dominó preto

            A Toppatelle e de todas as "Noites" só retém:

            No Havre, em frente ao Atlântico,

            Em Veneza, no horrível Lido,

            Onde vem, na grama de um túmulo,

            Morrer o pálido Adriático.

            Ora, dessas pessoas a quem admiramos sem hesitar, se recolhem e citam coisas bastante inferiores a outras que recusaríamos severamente caso nos deixássemos guiar pelo nosso próprio gosto, assim como um escritor emprega num romance, sob a alegação de que são verdadeiras, "frases" e personagens que, num conjunto vivo, são um peso morto, parcela medíocre. Os retratos de Saint-Simon, que ele escreveu sem admirar-se, são sem dúvida admiráveis; mas os rasgos, que considera deliciosos, das pessoas de espírito que conheceu hoje em dia nos parecem medíocres ou ininteligíveis. Ele teria desdenhado inventar coisas, que registra como sendo tão finas ou pitorescas, da Sra. Comuel ou de Luís XIV, o que afinal é fato que se observar em outros escritores e comporta diversas interpretações, das quais basta neste momento a seguinte; que, quando o escritor se acha no estado de espírito daquele que "observa", encontra-se no estado de espírito de nível muito inferior ao daquele que cria.

            Portanto, havia, encravado dentro do meu colega Bloch, um pai Bloch que se atrasava 40 anos em relação ao filho, contava anedotas insossas das quais ria, no fundo do filho, assim como fazia o pai Bloch exterior e verdadeiro, pois ao riso que este último soltava, não sem repetir duas ou três vezes à última frase para que o público saboreasse bem a história, acrescentava-se a gargalhada ruidosa com que o filho, à mesa, não deixava de saudar as anedotas do pai. Assim é que, depois de haver dito coisas muito inteligentes, o jovem Bloch, manifestando a herança recebida da família, nos contava pela trigésima vez alguns desses gracejos que o pai dava a luz (juntamente com a casaca) somente nos dias solenes em que o filho trazia alguém que valia a pena deslumbrar: um de seus professores, um colega que obtinha todos os prêmios, ou, naquela noite, Saint-Loup e eu. Por exemplo: "Um militar muito culto, que deduzira sabiamente, com base em provas, por que motivos infalíveis os japoneses, na guerra russo-japonesa, seriam vencidos e os russos vitoriosos", ou então: "É um homem eminente que passa por ser grande financista nos meios políticos e por um grande político nos meios financeiros." Essas histórias eram intercambiáveis com uma anedota relativa ao barão de Rothschild e referente a sir Rufus Israel, personagens postos em evidência de forma equívoca, que podia dar a entender que o Sr. Bloch os conhecera pessoalmente.

            Também caí na armadilha e, pela maneira que o Sr. Bloch pai falava, Bergotte, julguei que era um de seus velhos amigos. Ora, Bloch pai só conhecia pessoas célebres "sem conhecê-las", por tê-las visto de longe no teatro, nos bulevares. Aliás, imaginava que seu rosto, seu nome e sua personalidade não eram estranhos a elas, e que, ao vê-lo, eram muitas vezes obrigadas a reprimir um profundo desejo de saudá-lo. As pessoas da aristocracia conhecem diretamente os homens de talento, levam-nos para jantar, e nem por isso os compreendem melhor. Quando se viveu nesse ambiente, a estupidez das pessoas que o constituem inspira desejos de freqüentar círculos mais modestos, onde se conhecem homens de talento "sem conhecê-los", e os supomos mais inteligentes que são. Eu acabara de comprová-lo, falando de Bergotte. O Sr. Bloch pai não era o único a obter êxito na casa. Meu colega ainda mais o obtinha com as irmãs; não cessava de as entreter em tom resmungão, metendo o nariz no prato; assim, as fazia rir até às lágrimas. Além do mais, elas haviam adotado a língua do irmão, que falavam correntemente como se fosse obrigatória e o único objetivo de pessoas inteligentes. Quando chegamos, a mais velha disse a uma das menores:

            - Vai avisar nosso sábio pai e nossa mãe venerável.

            - Cadelas - disse-lhes Bloch - Apresento-lhes o cavalheiro Saint-Loup, o de dardos rápidos, que veio por uns dias de Boncieres, a de casa de pedra polida, fecunda em cavalos.

            Como era tão vulgar como letrado, o discurso terminava habitualmente com um gracejo menos homérico:

            - Vamos, feches um pouco mais esses belos broches. Que escândalo é esse? Afinal, não sei o que querem com isso.

            E as senhoritas Bloch se estorciam numa tempestade de risos. Disse à elas quantas alegrias o irmão me havia proporcionado ao me recomendara a leitura de Bergotte, cujos livros adorava.

            O Sr. Bloch pai, que só conhecia Bergotte de longe, e a sua vida só ouvira contar de voz pública, tinha uma forma também muito indireta de tomar conhecimento de sua obra, com o auxílio de julgamentos aparentemente literários. Vi no mundo do mais ou menos, onde se saúda no vazio e se julga em falso, a imprecisão e a incompetência não diminuem a auto-suficiência; pelo contrário é um milagre benéfico do amor-próprio que, como pouca gente pode ter amizades importantes e profundo conhecimento, faz com que pessoas a quem faltara coisas se julguem ainda as mais favorecidas, pois a ótica das escalas sociais todos a supõem que a melhor posição é a que ocupam; portanto, acham, menos favorecidos, menos aquinhoados, dignos de compaixão, os superiores a quem nomeiam e caluniam sem conhecer, e julgam e desprezam por não compreendê-los; e, mesmo nos casos em que a multiplicação das poucas vantagens pessoais pelo amor-próprio não bastaria para assegurar a cada um a dose de felicidade, superior à concedida aos outros, e que lhe é necessária, a inveja comparecer para preencher a diferença. É verdade que, se a inveja se exprime em frases desdenhosas, é mister traduzi-las: "Não quero conhecê-lo" por "Não posso conhecê-lo". É este o sentido intelectual, mas o sentido passional da frase é, de fato: "Não quero conhecê-lo". Sabe-se que isto não é verdade e, no entanto, não é dito por simples artifício, e sim porque desse modo é sentido, e basta isso para suprimir a distância, ou seja, para tornar feliz.

            O egocentrismo, permitindo que todo ser humano veja o universo a seus pés, leva-o a ser um rei. O Sr. Bloch dava-se ao luxo de ser um rei implacável quando, de manhã, tomando sua taça de chocolate, vendo a assinatura de Bergotte no fim de um artigo no jornal mal entreaberto, lhe concedia com desdém uma breve audiência, pronunciava sua sentença e se outorgava o confortável prazer de repetir, depois de cada gole da bebida fervente:

            "Este Bergotte se tornou ilegível. Como pode ser tão aborrecido! Vou cancelar a assinatura. Nada mais enfeitado que essa obra de confeitaria!"

            E pegava outra fatia de pão com manteiga.

            Essa importância ilusória do Sr. Bloch pai se estendia, aliás, um pouco além do círculo de sua própria percepção. Em primeiro lugar, os filhos o consideravam um homem superior. Os filhos têm sempre uma tendência, seja a depreciar, seja a exaltar os pais; e, para um bom filho, seu pai é sempre o melhor dos pais, mesmo sem contar todas as razões objetivas para admirá-lo. E razões bastantes havia no caso do Sr. Bloch, que era instruído, fino, afetuoso com os seus. Entre os parentes mais próximos, todos achavam agradável o seu convívio, pois, embora a sociedade julgue as pessoas conforme um padrão, aliás absurdo, e de acordo com regras falsas porém fixas, e em comparação com a totalidade das outras pessoas elegantes, em compensação, na vida fragmentada dos burgueses, os jantares e saraus em família giram em torno de personalidades declaradas agradáveis, divertidas, e que, nas rodas elegantes, não ficariam duas noites em cartaz. Enfim, nesse ambiente em que as grandezas artificiais da aristocracia inexistem, elas são substituídas por distinções ainda mais desvairadas. Assim e que, na sua família e mesmo num grau de parentesco bastante afastado, todos chamavam o pai do meu camarada de "falso duque de Aumale", devido a uma pretensa identidade no formato do nariz e no feitio do bigode. (No mundo dos moços de recado de um clube, se acontece a um deles usar o gorro de lado e a jaqueta bem justa de modo a se parecer, segundo julga, com um oficial estrangeiro, não é para seus companheiros uma celebridade?) A semelhança era das mais vagas, mas os outros diriam que se tratava de um título. Repetiam:

            "Bloch? Qual? O duque de Aumale?" como se dissessem: "A princesa Murat? Qual? A rainha de Nápoles?" Um certo número de indícios ínfimos acabavam de lhe dar, aos olhos da parentela, uma pretensa distinção. Embora não chegasse a ter uma carruagem, o Sr. Bloch alugava em determinados eventos uma vitória descoberta tirada por dois cavalos, na Companhia de Transportes e atravessava o Bois de Boulogne languidamente estendido no veículo, a cabeça apoiada na mão, de forma que dois dedos tocassem a têmpora e outros ficassem sob o queixo; e, se as pessoas que não o conheciam o tomassem por pretensioso ao vê-lo assim, todos na família estavam convencidos de que, era assunto de coisas chiques, o tio Salomon teria podido dar lições a Gramottt Caderousse. Era dessas pessoas que, quando morrem, e por terem muitas vezes sentado à mesa do redator-chefe de O Radical, num restaurante das alamedas, são consideradas "figuras bem conhecidas dos parisienses" pela crônica social de jantar na mesma folha. O Sr. Bloch disse-nos, a mim e a Saint-Loup, que Bergotte sabia muito bem por que ele, Bloch, não o cumprimentava, que Bergotte evitava olhá-lo quando o via no teatro ou no clube. Saint-Loup enrubesceu, pois pensara que no clube não podia ser o Jockey, do qual seu pai fora presidente, conquanto deveria ser um clube relativamente fechado, pois o Sr. Bloch havia dito que Bergotte ali seria mais recebido agora. Assim, com medo de "subestimar o adversário", foi que Saint-Loup perguntou se aquele clube era o da rua Royale, considerado como "desqualificador" por sua família, e onde sabia que eram recebidos alguns judeus.

            - Não. - respondeu com ar negligente o Sr. Bloch, entre orgulhoso e envergonhada é um pequeno clube, mas muito mais agradável, o Clube dos Palermas. Ali se junta com muita severidade a galeria.

            - O presidente não é o Sr. Rufus Israel? - perguntou Bloch filho ao pai, para lhe proporcionar a ocasião de uma mentira honrosa e se dar conta de que esse financista não tinha o mesmo prestígio para Saint-Loup que para ele. Na realidade, não era Sir Rufus Israel quem fazia parte do Clube Palermas, e sim um de seus empregados. Mas, como esse empregado tinha excelentes relações com o patrão, dispunha dos cartões do grande financistas, e dava um ao Sr. Bloch quando este precisava viajar em algumas das linhas férreas, que Sir Rufus era administrador; assim é que o pai Bloch dizia:

            - Vou passar no clube para pedir uma recomendação de Sir Rufus. - E aquele cartão poderia deixar deslumbrados os chefes de trem. As Srtas. Bloch estavam mais interessadas em Bergotte e, voltando a ele ao invés de continuarem no tema dos "Palermas''. A caçula indagou ao irmão, no tom mais sério do mundo, pois achava que designar pessoas de talento, não existiam outras expressões senão as que empregava:

            - É mesmo um sujeito formidável esse Bergotte? É da categoria caras de primeira, como Villiers ou Catulle?

            - Vi-o muitas vezes entre as estrelas - o Sr. Nissim Bernard. - É canhoto, é uma espécie de Schlemihl.

            Essa alusão à novela de Chamisso nada tinha de grave, mas o epíteto de Schlemihl fazia desse dialeto semi-alemão, semi-judeu, cujo emprego encantava o Sr. Blotch intimidade, mas este o julgava deslocado e vulgar diante de estranhos. De modo que lançou um olhar severo ao tio.

            - Sim, tem talento. - disse Bloch.

            -Ah! - disse gravemente a irmã, como se desse a entender que nesse caso era desculpável a minha admiração.

            -Todos os escritores têm talento. - comentou o pai Bloch com desprezo.

            - Parece até que vai se candidatar à Academia - disse o filho erguendo o garfo e piscando o olho com ar diabolicamente irônico.

            - Ora, ora, ele não tem bagagem suficiente. Falta-lhe o calibre necessário. - respondeu o Sr. Bloch, que parecia não sentir pela Academia o desprezo do filho e das filhas. -Além disso, a Academia é um salão aristocrático e Bergotte não tem brilho algum declarou o tio Bernard, sujeito rico e herança futura da Sra. Bloch, pessoa inofensiva e doce, cujo nome de Bernard teria por si só despertado os dons de diagnóstico de meu avô, nome aliás que não estava à altura daquele rosto que parecia ter sido arrancado do palácio de Dario e reconstituído pela Sra. Dieulafoy, se, no caso de ser escolhido por algum amador desejoso de dar um remate oriental a essa figura de Susa, o nome de Nissim não tivesse estendido sobre sua pessoa as asas de algum touro androcéfalo de Khorsabad.

            Porém o Sr. Bloch não cessava de insultar o tio, fosse porque o irritava a bonacheirice indefesa de sua vítima, fosse porque, sendo a villa de Balbec paga pelo Sr. Nissim Bernard, quisesse mostrar que conservava sua independência e, sobretudo, que não procurava garantir com bajulações a futura herança do ricaço. Este sentia-se constrangido principalmente por se ver tratado de modo tão grosseiro diante do mordomo. Murmurou uma frase ininteligível onde apenas se entendia:

            "Quando os Mexores estão presentes." O termo Mexores designa na Bíblia os servos de Deus. Os Bloch se serviam desse nome para designar os criados e se divertiam com a certeza de não serem compreendidos pelos cristãos e pelos próprios criados, e assim se exaltava nas pessoas dos Srs. Nissim Bernard e Bloch a sua dupla particularidade de "patrões" e "judeus". Mas este último motivo de satisfação se transformava em descontentamento na presença de estranhos. Então o Sr. Bloch, ouvindo o tio dizer "Mexores", imaginava que revelara demais o seu lado oriental, assim como uma cocote, que convida para uma reunião suas colegas acompanhadas de pessoas distintas, se irrita se elas aludem ao ofício que lhes é comum ou empregam frases pesadas. De modo que a súplica do tio não só não produziu efeito algum sobre o Sr. Bloch, como este, fora de si, não pôde mais se conter. Não perdeu a oportunidade de injuriar o pobre Nissim.

            - Na verdade, quando há uma asneira pretensiosa para dizer, pode-se ter certeza que o senhor não deixará de soltá-la, não é?

            - E seria o primeiro a lamber os pés de Bergotte se ele estivesse aqui! - gritou o Sr. Bloch, enquanto o Sr. Nissim Bernard, mortificado, inclinava para o prato sua barba anelada de rei Sargão. Meu colega Bloch, desde que deixara crescer a barba, que também era crespa e azulada, parecia-se muito ao tio-avô.

            - Como? O senhor é filho do marquês de Marsantes? Conheci-o muito bem -, disse o Sr. Nissim Bernard a Saint-Loup. Julguei que dizia "conheci-o" no sentido em que o pai Bloch afirmava que conhecia Bergotte, isto é, de vista. Mas ele acrescentou: - Seu pai era um dos meus bons amigos. - Entretanto Bloch ficara muito vermelho, seu pai se mostrava bastante contrariado, as senhoritas sufocavam o riso. É que, no Sr. Nissim Bernard, o gosto pela ostentação contido no Sr. Bloch pai e nos seus filhos, chegara a criar o hábito da mentira permanente. Por exemplo, em viagem, quando se hospedava num hotel, o Sr. Nissim Bernard como o teria feito o Sr. Bloch pai, mandava que o criado lhe trouxesse todos os jornais à sala de jantar, em pleno almoço, quando todos estavam reunidos, para que vissem bem que viajava com um criado de quarto. Mas, aos hóspedes do hotel era ele quem travava amizade, dizia o tio uma coisa que o sobrinho jamais diria: senador. Sabia perfeitamente que acabariam descobrindo que usurpara o título; no entanto, era-lhe impossível, naquele instante, resistir à necessidade de intitular-se senador. O Sr. Bloch sofria muito com as mentiras do tio e os aborrecimentos que lhe causavam.

            - Não lhe dê atenção, é muito amigo de lorotas -, disse ele a meia voz à Saint-Loup, que se interessou ainda mais pelo velho, pois sentia curiosidade pela psicologia dos mentirosos.

            - Mais mentiroso ainda que o itacense Odisseus, no entanto, Atena denominava o maior mentiroso dos homens - completou nosso companheiro Bloch.

            -Ah! Por exemplo! - exclamou o Sr. Nissim Bernard - diria que eu haveria de jantar com o filho de meu amigo! Na minha casa, em Paris tenho uma fotografia do senhor seu pai e muitas cartas dele. Ele sempre me chamava "meu tio", nunca soube por quê. Era um homem encantador, deslumbrante. Lembro-me de um jantar em minha casa, em Nice, onde compareceram Sardoy- Labiche, Augier...

            - Moliere, Racine, Comeille - continuou ironicamente o Sr. Bloch, pai, cujo filho terminou a enumeração, acrescentando:

            -Plauto, Menandro, Calidasaa - O Sr. Nissim Bernard, ofendido, interrompeu bruscamente a narrativa e, privando asceticamente de um grande prazer, permaneceu mudo até o fim do jantar.

            -Saint-Loup, do bronze de capacete - disse Bloch-, coma mais um pouco deste pato de gordurosas coxas, sobre as quais o ilustre sacrificador derramou numerosas libações de vinho tinto.

            Geralmente o Sr. Bloch, depois de tirar do fundo da gaveta para um companheiro notável do filho as anedotas relativas sobre Sir Rufus Israel e outros, percebendo que o filho estava já satisfeito e comovido, retirava-se da conversa para se "rebaixar" aos olhos do estudante. Entretanto, se havia um motivo especial como, por exemplo, quando seu filho foi aprovado no exame de agrégation, o Bloch acrescentava à série costumeira de anedotas esta reflexão reservada de preferência aos amigos íntimos, de que o jovem Bloch se mostrou extremamente orgulhoso por vê-la trazida à luz para seus amigos:

            - O Governo mostrou-se imperdível. Não consultou o Sr. Coquelin! O Sr. Coquelin fez saber que está muito descontente. (Pois o pai de Bloch se fazia de reacionário e aparentava desprezo pessoas de teatro.)

            Mas as senhoritas Bloch e seu irmão enrubesceram até as orelhas de emoção, quando Bloch pai, para se mostrar sinceramente régio para com os companheiros do filho, mandou trazer champanha e anunciou, como quem não quer nada, que, para nos regalar, adquirira três poltronas de primeira para a representação que uma companhia de operetas dava aquela mesma noite no cassino. Lamentava não ter conseguido camarote. Estavam todos reservados. Além disso, sabia por experiência própria que ficariam melhor perto da orquestra. Unicamente, se o defeito do filho, isto é, que seu filho julgava invisível aos outros, era a grosseria, o do pai era a avareza. Assim, serviu numa jarra o que chamava de champanha e não passava de um vinhozinho espumante; e as poltronas de primeira se transformaram de fato em assentos comuns da platéia que custavam a metade; e, milagrosamente convencido pela intervenção divina de seu defeito, achava que nem à mesa nem no teatro (onde todos os camarotes estavam vazios) nenhum de nós perceberia a diferença. Quando o Sr. Bloch nos deixou molhar os lábios nas taças de champanha que o filho adornara com o apelido de "crateras de flancos profundamente abertos", nos fez admirar um quadro que apreciava tanto que o trouxera consigo a Balbec. Disse que era um Rubens. Saint-Loup, ingenuamente, perguntou se estava assinado. O Sr. Bloch respondeu, enrubescendo, que mandara cortar a assinatura do pintor por causa do encaixe da moldura, o que aliás não tinha importância, visto que não desejava vendê-lo. E logo se despediu de nós para mergulhar na leitura do Diário Oficial, cujos números enchiam a casa e cuja leitura lhe era necessária, disse-nos, "por causa de sua situação parlamentar", e de cuja natureza não nos deu explicações.

            -Vou pegar um lenço para o pescoço - disse Bloch, pois Zéfiro e Bóreas lutam furiosamente pelo mar piscoso, e por pouco que nos atrasemos após o espetáculo, só voltaremos aos primeiros clarões de Eos, a de dedos cor de púrpura.

            - A propósito - perguntou a Saint-Loup quando saímos (e eu tremia, pois compreendi logo que era do Sr. de Charles que Bloch falava em tom irônico) quem é aquele excelente fantoche, de roupa escura, com quem você passeava pela praia anteontem de manhã?

            -Meu tio - respondeu Saint-Loup irritado.

            Infelizmente, uma gafe era algo que Bloch nem sonhava impedir. Torceu-se de riso:

            - Meus cumprimentos, deveria ter adivinhado; é muito chique; tem uma impagável cara de bobo da mais alta linhagem.

            -Você se engana de ponta a ponta. - retrucou Saint-Loup furioso -; ele é muito inteligente. - - Lamento-o, pois então é menos completo. De resto, gostaria muito de conhecê-lo; estou certo que escreveria coisas adequadas sobre esse tipo de gente. Quanto a ele, só o vê-lo passar é de morrer de riso. Mas deixaria de lado a parte caricata, no fundo bem desprezível para um artista apaixonado pela beleza plástica das frases, dessa cara ridícula, desculpe, que me fez rir a bandeiras despregadas, e poria em destaque o lado aristocrático de seu tio, que em suma produz um efeito incrível, e, passado o primeiro instante de riso, impressiona pelo grande estilo. Porém continuou, desta vez dirigindo-se a mim o que eu desejava lhe perguntar era algo inteiramente diverso, e, sempre que nos encontramos, algum deus, venturoso habitante do Olimpo, me varre da cabeça a idéia, e esqueço totalmente de pedir essa informação que já teria podido ser certa ainda me será útil. Quem é aquela senhora tão bonita com quem o encontrara no Jardim da Aclimação e que estava acompanhada de um senhor que julgo conhecer de vista, e de uma mocinha de cabelos compridos?

            Naquela ocasião, eu não havia percebido que a Sra. Swann não se lembrara do nome de Bloch, visto que dissera um outro nome e havia caracterizado o meu companheiro como adidos ao ministério, dado esse que jamais pensei em verificar se era exato. Mas como era Bloch, que, segundo a Sra. Swann me dissera então, se fizera apresentar a ela, podia ignorar seu nome? Fiquei tão espantado que estive um momento sem responder.

            - De qualquer maneira, meus parabéns - disse Bloch ; certamente não se aborrece com ela. Eu a encontrara alguns dias antes no trem do Contorno. Ela houve por bem ser amável com este seu criado aqui; nunca passei tão bons momentos; e já estamos combinando tudo para um novo encontro, quando alguém que ela conhece teve o mau gosto de subir para o nosso compartimento na antepenúltima estação.

            Meu silêncio parece não ter sido muito agradável a Bloch.

            -Graças a você, esperava obter o endereço dela e ir gozar, várias vezes por semana, em sua casa os prazeres de Eros, grato aos deuses. Mas não insisto, pois queres bancar o discreto quanto a uma profissional, que se entregou a mim três vezes seguidas e de modo refinadíssimo, entre Paris e o Point-du-Jour. Hei de encontrá-la uma noite dessas.

            Fui visitar Bloch depois desse jantar, e ele me fez também uma visita também, só que eu havia saído e, perguntando por mim no hotel, foi avistado por Françoise que, por acaso, nunca o vira até então, embora ele tivesse ido muitas vezes a Combray. De modo que ela sabia apenas que "um dos senhores" que eu conhecia havia passado para me ver, ignorando "com que objetivo", vestido de forma comum e sem causar maior impressão. Por mais que soubesse que certas idéias sociais de Françoise seriam sempre impenetráveis para mim, pois talvez se baseassem, em parte, nas confusões que fazia entre palavras ou nomes que trocava sempre, que pude evitar, eu que há muito deixara de me preocupar com esse tipo de coisa perguntar a mim mesmo, aliás em vão, que coisa enorme o nome de Bloch poderia significar para Françoise. Pois mal lhe disse que aquele rapaz que avistara era o Sr.Bloch, ela recuou alguns passos, tão grande tinham sido seu espanto e sua admiração.

            - Como, aquilo é que é o Sr. Bloch! - exclamou com ar apavorado, como, uma personalidade de tanto prestígio devesse ter uma aparência que "deste conhecer" de imediato a presença de um grande homem; e, como alguém um personagem histórico não está à altura de sua fama, ela repetia, num tom impressionado que revelava germes de um ceticismo universal:

            - Como, é aqui Sr. Bloch! Ah, na verdade ninguém diria ao vê-lo! -Dava a impressão de me guardar rancor como se eu tivesse "falsificado" Bloch. No entanto, teve a bondade de acrescentar: -Pois bem, por mais Sr. Bloch que ele seja, o senhor pode estar certo que não é tão distinto quanto ele.

            Em breve, a respeito de Saint-Loup a quem adorava, teve uma desilusão de outra espécie, e que durou menos: descobriu que era republicano. Ora, ainda que, ao falar por exemplo da rainha de Portugal, dissesse: "Amélia, a irmã de Filipe", com o desrespeito que, para o povo, é o maior respeito, Françoise era monarquista. Mas que, acima de tudo, um marquês, e um marquês que a deixara deslumbrada, fosse republicano, isso para ela era algo inconcebível. E a punha de mau humor, exatamente como se eu lhe houvesse feito presente de uma caixa supostamente de ouro e que ela a seguir, depois de me haver agradecido com efusão, descobrisse, por meio de um joalheiro, que era apenas folheada. Retirou sua estima a Saint-Loup, porém logo voltou a concedê-la, pois refletiu que ele, sendo marquês de Saint-Loup, não podia ser republicano, estava apenas fingindo, por interesse, pois, com o governo atual, assim tiraria maior proveito. Desde então cessaram a sua frieza em relação a ele e o seu despeito para comigo. E, quando falava de Saint-Loup, dizia:

            "É um hipócrita" com um grande e generoso sorriso que dava a entender que o "considerava" de novo tanto quanto no primeiro dia, e que o havia perdoado.

            Ora, pelo contrário, a sinceridade e o desinteresse de Saint-Loup eram absolutos; e era essa grande pureza moral que, não podendo satisfazer-se inteiramente em um sentimento egoísta como o amor, e que, por outro lado, não se achava na impossibilidade, como, por exemplo, ocorria comigo, de encontrar alimento espiritual fora de si próprio, tornava-o verdadeiramente capaz de amizade, tanto quanto eu era incapaz desse sentimento.

            Françoise também se enganava sobre Saint-Loup quando dizia que ele dava impressão de não desdenhar o povo, mas que aquilo não era verdade, e bastava vê-lo quando se encolerizava com o seu cocheiro. De fato, ocorrera às vezes a Robert ralhar asperamente com ele, coisa que, no seu caso, indicava antes o sentimento de igualdade que de diferença entre as classes. - Mas disse-me em resposta às censuras que lhe fiz por ter tratado o cocheiro com certa rudeza - por que motivo irei fingir cortesia com ele? Não é meu igual? Não está à mesma distância de mim que meus tios e primos? Você parece achar que eu deveria tratá-lo com considerações, como se fosse um ser inferior. Está falando como se fosse um aristocrata - concluiu com desprezo.

            Com efeito, se havia uma classe contra a qual mostrava prevenção e parcialidade, essa era a aristocracia, a ponto de só dificilmente admitir a superioridade de um homem da sociedade, superioridade que mais facilmente atribuiria a um homem do povo. Como lhe falasse da princesa de Luxemburgo, a quem encontrara com sua tia:

            - É uma tola - disse -, como todas as suas iguais. Aliás, é minha prima distante.

            Tendo prevenção contra as pessoas que freqüentavam a sociedade, Saint-Loup raramente ia às reuniões aristocráticas e, quando comparecia, adotava uma atitude desdenhosa ou hostil, o que aumentava ainda mais, na família, o desgosto provocado por sua ligação com uma mulher "de teatro", ligação que diziam lhe ser fatal e, principalmente, de ser responsável por haver desenvolvido nele aquele espírito de difamação, aquela má tendência que já o tinha "desviado" e que iria levá-lo a "se afastar" inteiramente de sua classe. Desse modo, alguns levianos do faubourg Saint-Germain eram impiedosos ao falarem da amante de Robert.

            "As meretrizes fazem o seu ofício. - diziam -, valem tanto quanto as outras; mas esta, não! Não lhe perdoaremos! Fez muito mal a alguém que é nosso amigo."

            Claro que Saint-Loup não era o primeiro a cair nas artimanhas de uma amante. Porém os outros continuavam sua divertida existência de mundanos, e pensando à moda de mundanos na política e em tudo o mais. Mas a família de Robert achava o "azedo". Não percebiam que para muitos jovens aristocratas uma amante é muitas vezes um mestre, e que as ligações desse gênero são a única escola de moral que os inicia numa cultura superior, onde aprendem o valor do conhecimento desinteressado; e que, sem isso, permaneceriam de espírito inculto, rudes em suas amizades, sem doçura e sem gosto. Até entre a gente baixa (que em termos de grosseria se parece tantas vezes com as pessoas da alta roda), a mulher, mais sensível, mais fina, mais ociosa, tem curiosidade por certos requintes, respeita certas belezas de arte e sentimento que, embora não os compreenda bem, coloca no entanto acima daquilo que mais desejável parece ao homem, o dinheiro, a posição social. Ora, quer se trate da amante de um jovem aristocrata, como Saint-Loup, ou de um jovem operário (os eletricistas, por exemplo, figuram atualmente nas listas da verdadeira Cavalaria), seu amante tem por ela muito respeito e, admiração para não os estender ao que ela própria respeita e admira; e, para ele, a escala de valores torna-se invertida. Devido mesmo a seu sexo, ela é frágil, tem perturbações nervosas, inexplicáveis, que no caso de um homem, e mesmo no de outra mulher, que fosse sua prima ou tia, teriam feito sorrir esse jovem robusto. Mas ele não pode ver sofrer aquela a quem ama. O jovem nobre que, como Saint-Loup, tem uma amante, adquire o hábito, quando vai jantar com ela no cabaré, de trazer no bolso o valerianato de que ela pode precisar, de recomendar ao garçom, com firmeza e sem ironia, que feche as portas sem barulho, que não enfeite a mesa com musgo úmido a fim de evitar à amiga essas indisposições que, de sua parte, jamais sentiu, que constituem para ele um mundo oculto em cuja realidade ela o ensinara a acreditar, indisposições que ele agora lastima sem que tenha necessidade de conhecê-las e que lastimará mesmo que sejam outras as mulheres a experimentá-las. A amante de Saint-Loup - como os primeiros monges da idade Média à cristandade - lhe ensinara a piedade para com os animais, pois tinha paixão por eles, e nunca viajava sem seu cachorro, seus canários, seus papagaios; Saint-Loup cuidava deles maternalmente e considerava uns brutamontes as pessoas que não tratam bem os animais. Por outro lado, uma atriz, ou que se dizia uma atriz, como a que vivia com ele-fosse inteligente ou não, coisa que eu ignorava-, fazendo com que ele achasse aborrecida a companhia das mulheres da sociedade e considerasse um suplício o dever de ir a um sarau, preservara-o do esnobismo e o curara da frivolidade. Se, graças a ela, as relações mundanas ocupavam menos espaço na vida de seu jovem amante, em compensação a amante lhe ensinara a pôr nobreza e refinamento em suas amizades, enquanto, fosse ele um simples homem de freqüentar salões, a vaidade ou o interesse teriam orientado suas amizades, marcando-as de sua rudeza. Com seu instinto de mulher e apreciando mais nos homens certas qualidades de sensibilidade que, sem ela, o amante teria desconhecido ou depreciado, sempre soubera distinguir e escolher, de imediato, dentre os amigos de Saint-Loup, o que lhe dedicava verdadeira afeição. Sabia forçá-lo a lhe testemunhar reconhecimento, a assinalar as coisas que lhe davam prazer, as que o magoavam. E em breve Saint-Loup, sem ter mais necessidade de que a amante o advertisse, começou a preocupar-se com tudo isso, e em Balbec, onde ela não estava, e por mim, que ela nunca vira e de quem talvez ele ainda não tivesse falado em suas cartas, fechava por conta própria o vidro do carro onde eu estava, retirava as flores que me causavam mal e, quando tinha de se despedir ao mesmo tempo de várias pessoas, cuidava de deixá-las um pouco mais cedo a fim de ficar sozinho e por último comigo, estabelecendo uma distinção entre mim e eles, tratando-me de forma diferente que aos outros. Sua amante abrira-lhe o espírito ao invisível, pusera seriedade em sua vida, delicadezas em seu coração, mas tudo isso passava despercebido à família em prantos, que repetia:

            "Essa meretriz ainda há de matá-lo e, enquanto isso, o desmoraliza."

            É verdade que ele acabara por tirar dela todo o bem que ela podia lhe fazer; e agora ela era apenas motivo para que ele sofresse sem parar, pois criara-lhe horror e torturava-o. Um dia, principiara achá-lo bobo e ridículo, pois os amigos que possuía entre os jovens atores e autores lhe haviam assegurado que o era, e, por sua vez, ela repetia o que diziam com aquela paixão, aquela ausência de reserva que a gente mostra a cada vez que recebe de fora e adota opiniões ou costumes que ignorava de todo. Como aqueles comediantes, afirmava, sem esforço, que era intransponível o fosso entre ela e Saint-Loup, porque eram de raças diferentes, que ela era uma intelectual e ele, embora pretendesse sê-lo, era desde a origem um inimigo da inteligência. Esse modo de ver lhe parecia profundo e procurava confirmá-lo nas palavras mais insignificantes, nos menores gestos do amante. Mas, quando os mesmos amigos a convenceram também que estava destruindo, em companhia tão pouco adequada para ela, as grandes promessas de que, segundo eles, já havia dado mostras, que seu amante acabaria por prejudicá-la, e que, vivendo com ele, estava estragando o seu futuro de atriz, ao seu desprezo por Saint-Loup foi juntar-se o mesmo ódio que sentiria se ele tivesse se obstinado em inocular-lhe uma doença mortal. Procurava vê-lo o menos possível, adiando sempre o momento da ruptura definitiva, a qual me parecia bem pouco verossímil. Saint-Loup fazia por ela tais sacrifícios que, a menos que ela fosse deslumbrante; mas nunca havia querido me mostrar sua fotografia, dizendo:

            - Primeiro,  não é uma beldade, e, além disso, não sai bem nas fotos; são instantâneos que eu mesmo tirei com a minha Kodak, e lhe darão uma falsa idéia dela.

            Parecia difícil que encontrasse um outro homem que consentisse em tais coisas. Eu não imaginava que uma certa mania de fazer nome, até quando não se tem talento, e a estima, iriam, mais que a estima privada, de pessoas que se impõem (o que, aliás, talvez não fosse o caso da amante de Saint-Loup), pudessem ser, mesmo para uma pequena cocote motivos mais determinantes que o prazer de ganhar dinheiro. Saint-Loup que, dizia compreender bem o que se passava na cabeça da amante, não a julgava totalmente sincera, nem nas censuras injustas nem nas promessas de amor eterno, sentira entretanto, em certas ocasiões, que ela haveria de romper quando pudesse e; isso, movido sem dúvida pelo instinto de conservação do seu amor, mais carente talvez que ele próprio, empregando aliás uma habilidade prática que nele não conciliava com os maiores e mais cegos impulsos do coração, recusara-se a constituir um capital, tomara emprestada uma quantia enorme para que nunca lhe faltasse, mas só a enviava parceladamente. E de certo, caso ela tivesse na verdade pensado em largá-lo, esperaria friamente encher seu "pé-de-meia", o que, com a somas dadas por Saint-Loup, levaria sem dúvida pouco tempo, mas ainda assim; concedido em suplemento para prolongar a felicidade do meu novo amigo - ou à sua desgraça. Esse período dramático da ligação deles - e que agora havia chegado ao ponto mais agudo, mais cruel para Saint-Loup, pois ela o proibira de permanecer em Paris, onde sua presença a exasperava, e o forçara a ir passar sua licença em Balbec, próximo ao seu quartel -começara uma noite na casa de uma tia de Saint Loup, com quem obtivera licença para que sua amiga fosse recitar, para inúmeros convidados, trechos de uma peça simbolista que representara uma vez num teatro de vanguarda e pela qual o fizera compartilhar da admiração que ela própria sentia. Mas, quando ela apareceu, com um grande lírio na mão, num vestido copiado da "Ancilla Domini" e que havia convencido a Robert tratar-se de uma verdadeira "visão de arte", sua entrada foi acolhida naquela assembléia de homem de clube e de duquesas com sorrisos, que o tom monótono da salmodia, a estranheza de algumas palavras e sua repetição constante haviam transformado em risadas loucas, a princípio sufocadas e, depois, tão irresistíveis que a pobre recitando não pudera continuar. No dia seguinte, a tia de Saint-Loup foi unanimemente censurada por ter recebido em sua casa uma artista de tal modo grotesca. Um duque bem conhecido não lhe escondeu que ela só podia queixar-se de si mesma, se criticavam.

            - Que diabo, também! Isso não é coisa que se apresente! Se ao menos aquela mulher tivesse talento; mas não tem e nunca terá. Bolas! Paris não é idiota, por mais que o digam. A sociedade não é só composta de imbecis. Essa moça evidentemente imaginou assombrar Paris. Mas Paris não se assombra com tanta facilidade e existem coisas que a gente não consegue engolir. Quanto à artista, saiu dizendo a Saint-Loup: - No meio de que peruas, de que galinhas mal-educadas e malandros, foi você me meter! E acho melhor dizer logo diante dos homens presentes, não houve um só que não me tivesse feito sinais, e, como repelindo suas tentativas, procuraram vingar-se.

            Palavras que haviam mudado a antipatia de Robert pelas pessoas da sociedade em um horror ainda mais profundo e doloroso, inspirado principalmente por aqueles que menos o mereciam, parentes devotados que, a pedido da família, tinham procurado convencer a amiga de Saint-Loup a romper com ele, atitude que esta lhe apresentava como ditado pelo amor que dedicavam a ela. Robert, embora tivesse imediatamente deixado de freqüentá-los, pensava, quando estava longe da amiga, como agora, que eles e outros se aproveitavam para voltar à carga e talvez obtivessem os seus favores. E, quando se referia aos espertos que traem seus amigos, procuram corromper as mulheres e tentam levá-las aos bordéis, seu rosto transpirava sofrimento e ódio.

            - Eu os mataria com menos remorso que a um cachorro. Ao menos o cachorro é um animal afável, leal e fiel. Pois eles merecem a guilhotina, muito mais do que os desgraçados que são levados ao crime pela miséria e pela crueldade dos ricos.

            Passava a maior parte do tempo enviando cartas e telegramas à amante. Sempre que, além de proibi-lo de ir a Paris, ela achava, à distância, um meio de brigar com ele, eu logo o via por suas feições abatidas. Como a amante nunca lhe dizia o que lhe tinha a censurar, supondo que, se o não dizia, era porque não sabia e estava simplesmente farta dele, ele, no entanto, gostaria de ter explicações; e escrevia:

            "Diga-me o que fiz de mal. Estou pronto a reconhecer meus erros."

            O desgosto que sentia acabava fazendo com que se convencesse de que agira mal. Mas ela fazia-o esperar indefinidamente suas respostas, aliás desprovidas de sentido. Portanto, era quase sempre de rosto preocupado, muitas vezes com as mãos vazias, que eu via Saint-Loup voltar do correio, onde, junto com Françoise, eram os únicos de todo o hotel a irem buscar e levar as cartas pessoalmente, ele por impaciência de amante, ela por desconfiar dos criados. (Os telegramas a forçavam a andar ainda muito mais.)

            Quando, alguns dias depois do jantar na casa dos Bloch, minha avó me disse, muito alegre, que Saint-Loup acabava de lhe perguntar se não queria que ele a fotografasse antes de deixar Balbec, e ao ver que, para isto, ela pusera seu mais belo vestido e estava indecisa entre vários penteados, senti-me um tanto irritado com aquela infantilidade que tanto me espantava de sua parte. Cheguei mesmo a indagar comigo se não me havia enganado quanto à minha avó, se não a colocara num pedestal muito alto, se era mesmo tão desligada de sua pessoa como sempre acreditara, se não tinha até aquilo que julgara lhe fosse mais estranho, a coqueteria. Infelizmente, a contrariedade que me causara o projeto da sessão fotógrafo ficava sobretudo, a satisfação que minha avó parecia sentir com tudo aquilo, de transparecer o bastante para que Françoise o notasse, apressando-se involuntariamente a aumentá-la com um discurso sentimental e enternecido, ao qual eu quis dar a impressão de que aderia.

            -Oh, senhor, esta pobre Senhora que ficará tão feliz que lhe tirem o retrato até vai pôr o chapéu que sua velha Françoise lhe arranjou; é preciso fazer-lhe a vontade, senhor!

            Convenci-me de que não era cruel por zombar da sensibilidade de Françoise lembrando-me que minha mãe e minha avó, meus modelos em tudo, procediam, da mesma forma muitas vezes. Porém minha avó, percebendo que eu me mostrava aborrecido, afirmou que se aquela sessão fotográfica me contrariava, desistia dela. Não quis agir assim, e lhe assegurei que não via nenhum inconveniente deixando-a embelezar-se, mas julguei dar provas de penetração e força ao lhe dar algumas palavras irônicas e ferinas, destinadas a neutralizar o prazer que ela parecia sentir em ser fotografada, de modo que, se fui constrangido a ver o magnífico chapéu de minha avó, consegui ao menos fazer sumir de seu rosto aquela expressão de alegria que me faria feliz e que, como acontece com freqüência quando estão vivas as pessoas a quem mais amamos, surge-nos como a manifestação exasperadora de um capricho mesquinho em vez de ser a forma preciosa da felicidade que tanto lhe desejaríamos proporcionar. Meu mau humor provinha sobretudo do fato de que, naquela semana, minha avó parecera fugir-me e eu não pudesse detê-la um só instante para mim, nem de dia nem de noite. Quando voltava à tarde para estar um pouco a sós com ela, diziam-me que havia saído; ou então ela se trancava com Françoise para longos conciliábulos a que não me era permitido perturbar. E, quando, tendo passado a noite fora com Saint-Loup, pensava durante a volta no momento em que ia poder encontrar e beijar minha avó, por mais que esperasse que ela batesse no tabique aquelas pancadinhas que me avisariam para entrar em seu quarto e lhe dar boa-noite, não ouvia nada; acabava por me deitar aborrecido com ela porque me privava, com uma indiferença que era nova nela, uma alegria com a qual tanto havia contado; e ficava ainda, o coração palpitando como na minha infância, a escutar a parede, que permanecia muda, e ia adormecer em lágrimas.

            Naquele dia, como nos precedentes, Saint-Loup fora obrigado à ir Doncieres, onde agora precisariam sempre de seus serviços até o fim, enquanto não regressasse em definitivo. Lamentava que ele não estivesse em Balbec. Vira descer do carro e entrar, umas no salão de danças do cassino, outras na sorveteria, algumas jovens que de longe me haviam parecido fascinantes. Eu estava num desses períodos da juventude, desprovidos de um amor particular, vazios, onde, por toda a parte como um enamorado em relação à mulher por quem se apaixonou se deseja, se busca e se vê a Beleza. Em que um só traço real o pouco a se distinguir de uma mulher vista de longe ou de costas; nos permite projetar a Beleza diante de nós, e imaginamos tê-la reconhecido, o nosso coração bate mais forte, apressamos o passo, e sempre estaremos meio persuadidos de que era ela, contanto que a mulher tenha desaparecido: somente quando podemos alcançá-la é que percebemos nosso erro.

            Além disso, cada vez mais doente, sentia-me tentado a encarecer os prazeres mais simples devido às próprias dificuldades com que me defrontava para atingi-los. Julgava perceber em todos os cantos mulheres elegantes, pois estava muito cansado, se me encontrava na praia, ou muito tímido, se estivesse no cassino ou numa confeitaria, para que pudesse aproximar-me delas fosse onde fosse. No entanto, se devesse morrer em breve, gostaria de saber como, na realidade, eram de perto as mais belas moças que a vida pudesse oferecer, ainda que fosse outro homem, ou mesmo ninguém, que devesse desfrutar essa oferta (de fato, eu não me dava conta de que havia um desejo de posse na origem de minha curiosidade). Teria ousado entrar no salão de baile caso Saint-Loup estivesse comigo. Estando sozinho, simplesmente fiquei diante do Grande Hotel, esperando o momento de ir encontrar-me com minha avó, quando, ainda quase na extremidade do molhe, onde faziam mover-se uma estranha mancha, vi que se aproximavam cinco ou seis mocinhas, tão diversas, pelo aspecto e pelos modos, de todas as pessoas a que a gente estava acostumado em Balbec, que poderiam ser, desembarcadas não se sabe de onde, um bando de gaivotas a executarem vagarosamente na praia as retardatárias alcançando as outras a esvoaçar - um passeio cujo intuito parece tão obscuro aos banhistas, a quem elas não demonstram ver, quanto claramente ditado pelo seu espírito de pássaros.

            Uma dessas desconhecidas empurrava sua bicicleta; duas outras empunhavam tacos de golfe; e sua roupa singular destoava do vestido das outras moças de Balbec, entre as quais, na verdade, havia algumas que se entregavam à prática de esportes mas sem para isso adotar uma roupa especial.

            Era a hora em que as damas e cavalheiros vinham diariamente dar uma volta pelo molhe, expostos aos reflexos implacáveis que fixava sobre eles, como se fossem portadores de alguma tara que ela devesse inspecionar nos menores detalhes, a esposa do primeiro magistrado, orgulhosamente sentada diante do quiosque de música, em meio à temida fila de cadeiras onde eles próprios, dali a pouco, iriam instalar-se, atores transformados em críticos, para julgar por sua vez todos os que desfilariam à sua frente. Todas essas pessoas que andavam pelo molhe, gingando de modo tão acentuado como se ele fosse o convés de um bar (pois não sabiam erguer uma perna sem ao mesmo tempo mexer com os braços; virar os olhos, empertigar os ombros, compensar com um movimento balouçam do lado oposto o movimento que acabavam de fazer do outro lado, e congestionam a fisionomia) e que, fingindo não ver para dar a entender que não se importavam com as outras pessoas que andavam a seu lado ou vinham em sentido contrário olhando disfarçadamente para evitar esbarrões, entretanto chocavam-se com ela, pois tinham sido reciprocamente, de sua parte, motivo da mesma atenção secreta oculta sob o mesmo aparente desdém; pois o amor, e conseqüentemente o temor, da multidão constitui um dos mais poderosos impulsos em todos os homem quer procurem agradar aos outros, quer busquem espantá-los, ou ainda mostrar que os desprezam. No solitário, a reclusão, mesmo sendo absoluta e durando até o fim da vida, tem muitas vezes por princípio um amor desordenado da multidão que o avassala tanto, acima de qualquer outro sentimento, que, não podendo obter, ao sair, a admiração do porteiro, dos transeuntes, do cocheiro ali parado, prefere nunca ser visto por eles e, por isso, renuncia a toda a atividade que o obrigasse a sair de casa.

            No meio de todas aquelas pessoas, algumas das quais estavam pensando em algo mas traíam então a mobilidade do espírito pelos gestos bruscos, pelos olhares que divagavam, tudo tão desarmonioso quanto à circunspecta hesitação de seus vizinhos, as mocinhas que eu vira, com o domínio dos movimentos que provém da perfeita flexibilidade do corpo e um sincero desprezo pelo resto da humanidade, vinham vindo em linha reta, sem hesitação nem rigidez, executando exatamente os movimentos desejados, numa total independência de cada um dos membros em relação aos outros, conservando a maior parte do corpo aquela habilidade tão notável nas boas valsistas. Já não estavam muito longe de mim. Embora cada qual fosse de tipo inteiramente diverso das outras, todas eram belas; para falar a verdade, eu as via há tão pouco tempo e sem ousar encará-las fixamente, que ainda não conseguira individualizar nenhuma delas. A não ser uma, cujo nariz reto e pele morena faziam contraste com as outras, como, num quadro da Renascença, um rei Mago de tipo árabe, só me eram conhecidas, esta pelos olhos duros, atrevidos e risonhos; outra pelas faces onde o tom de rosa ostentava esse marrom acobreado que dá idéia de gerânio; e mesmo esses traços eu não tinha ainda indissoluvelmente nenhum deles antes a uma que a outra menina qualquer: quando (conforme a ordem em que se desenrolava aquele conjunto, maravilhoso porque ali avizinhavam os mais diversos aspectos, e todas as gamas de cores-elas se aproximavam umas das outras, mas disposto de modo confuso como uma mulher em que eu não pudesse reconhecer e isolar as frases no momento de sua imagem, percebidas mas esquecidas logo após) via emergir um oval branco, negros, olhos verdes, não sabia se eram os mesmos que me haviam encantado a pouco, não tinha condições de ligá-los a esta ou aquela moça que eu tivesse esperado das demais, e reconhecido. E essa ausência, na minha visão, dos limites que em breve estabeleceria entre elas, propagava através do seu grupo uma flutuação harmoniosa, a contínua translação de uma beleza fluída, coletiva e móvel.

            Não era talvez somente o acaso que, na vida, para reunir essas amigas, as escolhera todas tão bonitas; talvez essas moças (cuja atitude bastava para revelar sua natureza audaciosa, frívola e dura), extremamente sensíveis a todo ridículo e a qualquer feiúra, incapazes de sentirem uma atração de ordem moral ou intelectual, tivessem naturalmente experimentado a mesma repulsa por todas as companheiras de sua idade cujas inclinações contemplativas ou sensíveis se traíssem pela timidez, pelo constrangimento, pela falta de jeito, por aquilo que elas deveriam denominar "um tipo antipático", e as tinham desse modo mantido afastadas; enquanto se haviam unido a outras para as quais as atraía uma certa mescla de graça, agilidade e elegância física, única forma sob a qual podiam imaginar a franqueza de um caráter sedutor e a promessa de boas horas de convivência. Talvez igualmente a classe a que pertenciam, e que eu não poderia precisar, estivesse nesse ponto de evolução onde, seja pelo enriquecimento e o lazer, seja pelos novos hábitos esportivos, espalhados até em certos ambientes populares, e de uma cultura física a que ainda não viera ajuntar-se a da inteligência, um meio social similar às harmoniosas e fecundas escolas de escultura, que ainda não buscam a expressão atormentada, produz, com naturalidade e abundância, belos corpos de bonitas pernas, lindas ancas, rostos saudáveis e tranqüilos, com um ar de agilidade e esperteza. E não eram nobres modelos calmos de beleza humana que eu via ali diante do mar, como estátuas expostas ao sol numa costa da Grécia?

            Como se julgassem, do seio do seu bando que progredia ao longo do molhe tal um cometa luminoso, que a multidão ao redor era composta de seres de outra raça e dos quais nem sequer o sofrimento lhes despertaria um sentimento de solidariedade, elas pareciam não vê-la, forçando as pessoas paradas a se afastarem, da mesma maneira que à passagem de uma máquina que partisse desenfreada e da qual não seria acertado esperar que evitasse os pedestres, e quando muito se limitavam a entreolhar-se rindo, se algum velho senhor, cuja existência não admitiam e cujo contato evitavam, fugia com movimentos medrosos ou coléricos, mas precipitados ou risíveis. Em relação a quem não pertencesse ao seu grupo, não exibiam nenhuma afetação de desprezo; seu desprezo sincero era bastante. Mas não podiam ver um obstáculo sem se divertirem em transpô-lo, tomando impulso ou de pés juntos, pois eram todas cheias e exuberantes dessa juventude que temos tanta necessidade de consumir que, mesmo quando estamos tristes ou doentes, obedecendo mais às exigências da idade que ao humor do dia, nunca deixamos passar uma ocasião de salto ou deslizamento, sem aproveitá-la conscienciosamente, interrompendo, semeando a nossa marcha lenta como Chopin, a frase mais melancólica-com graciosos torneios onde o capricho se mistura ao virtuosismo de seus olhos. Portanto, era toda a sua vida que me inspirava desejo; desejo odioso porque o sentia irrealizável, mas embriagador, pois o que fora até então a minha vida deixara bruscamente de ser a minha vida total, não sendo mais que uma pequena parcela do espaço estendido diante de mim, que eu ardia por transpirar, que era constituído pela vida daquelas moças, oferecendo-me esse prolongamento, essa possível multiplicação de si mesmo, que é a felicidade. E, sem dúvida, o fato de não haver entre nós nenhum hábito, nenhuma idéia em comum, devia tornar mais difícil ligar-me a elas e agradar-lhes. Mas talvez também fosse graças à essas diferenças, graças à consciência de que não entrava na composição da natureza e das ações daquelas moças nem um só elemento que eu conhecesse ou possuísse, que acabava de ocorrer em mim, à exaustão, a sede semelhante àquela com que arde uma terra esturricada; de uma vida que minha alma, visto que nunca recebera dela uma só gota, assimilaria tanto mais avidamente, a longos haustos, na mais perfeita absorção.

            De tal forma olhara aquela ciclista de olhos brilhantes que ela pareceu nem perceber isso e falou à maior algo que não ouvi mas que a fez rir. Na verdade, essa morena não era a que mais me agradava, justamente por ser morena e porque (desde o dia em que vira Gilberte na pequena ladeira de Tansonville) uma menina ruiva, de pele dourada, ficara sendo para mim o ideal inacessível. Mas a própria, Gilberte, não a amara eu, sobretudo porque me surgira carimbada pela auréola de amiga de Bergotte, de ir visitar catedrais em sua companhia. E do mesmo modo não podia eu alegrar-me de ter visto essa morena me olhar (o que me fazia esperar que talvez fosse mais fácil entrar em relações primeiro com ela), pois me apresentaria, outras, à implacável que saltara por cima do velho, à cruel que dissera: "Esse velho me dá pena"; sucessivamente a todas, das quais aliás tinha o prestígio de companheira inseparável. E, no entanto, a suposição de que um dia eu poderia ser amigo desta ou daquela das moças, que seus olhos, cujos olhares desconhecida às vezes me tocavam, brincando sobre mim sem o saber, como um efeito sobre um muro, poderiam, por uma alquimia milagrosa, deixar transpenetrar ao dia, entre suas parcelas inefáveis, a idéia de minha existência, alguma amizade por minha pessoa, que eu próprio poderia um dia tomar lugar entre elas, em tese; após o passeio ao longo do mar. Essa hipótese parecia-me encerrar uma contradição insolúvel, como se diante de um friso antigo, ou de um afresco em que figura um cortejo, eu julgasse possível, enquanto espectador, tomar parte, amado por elas, em meio às divinas processionárias.

            Era então irrealizável a ventura de conhecer aquelas moças? Certamente não era a primeira do gênero a que eu tivesse renunciado. Bastava lembrar que eram desconhecidas que, mesmo em Balbec, quando o carro se afastava a toda a velocidade, fora obrigado a abandonar para sempre. E até o prazer que me dava entrar no grupo, nobre como se fosse composto de virgens helênicas, provinha de possuir algo da fuga das passantes pela estrada. Essa fugacidade dos seres que não nos são conhecidos, que nos forçam a desatracar da vida costumeira onde as mulheres que freqüentamos acabam por revelar suas taras, coloca-nos nesse estado de perseguição em que nada mais detém a fantasia. Ora, desprover dela os nossos prazeres é reduzi-los a coisa alguma. Oferecidas na casa de uma dessas alcoviteiras que, aliás, eu não desprezava, como já vimos, retiradas do elemento que lhes proporcionava tantos matizes e incertezas, essas moças teriam me encantado menos. É preciso que a imaginação, despertada pela insegurança de poder atingir seu objetivo, crie uma finalidade que nos esconda a outra, e, substituindo o prazer sensual pela idéia de penetrar numa vida, nos impeça de reconhecer semelhante prazer, de experimentar seu legítimo sabor, de restringi-lo a seus limites. É preciso que entre nós e o peixe - que, se o víssemos pela primeira vez servido numa mesa não pareceria valer os mil ardis e rodeios necessários para capturá-lo se interponha, durante as tardes de pesca, o redemoinho a cuja superfície vêm aflorar, sem que saibamos exatamente o que pensamos fazer com isso, o polido de uma carne, a indecisão de uma forma, na fluidez de um azul móvel e transparente.

            Aquelas moças também se beneficiavam dessa mudança de proporções sociais, característica da vida nas estâncias balneárias. Todas as vantagens que nos prolongam, nos engrandecem no nosso meio habitual, encontram-se aí invisíveis, na verdade surpresas; em compensação, as pessoas a quem indevidamente se atribuem tais vantagens só progridem amplificadas numa falsa grandeza. O que tornava mais fácil que desconhecidas, e naquele dia essas moças, adquirissem uma importância enorme a meus olhos, e fazia que fosse impossível dar-lhes a conhecer a importância que eu poderia ter.

            Mas, se o passeio do pequeno grupo não era mais que um pedaço da fuga inumerável de passantes, que sempre me perturbara, essa fuga era reduzida aqui a um movimento de tal modo vagaroso que se aproximava da imobilidade. Ora, precisamente porque numa fase tão pouco rápida, os rostos, não mais envoltos num turbilhão e sim calmos e distintos, me parecessem ainda bonitos, isso me impedia de crer, como o fizera tantas vezes quando ia no carro da Sra. de Villeparisis, que, mais de perto, se eu parasse um instante, certos detalhes, uma pele bexiguenta, um defeito nas asas do nariz, um olhar comum, a careta do sorriso, um corpo mal feito, teriam substituído no corpo e no rosto da mulher os que eu sem dúvida imaginara; pois bastava um detalhe bonito do corpo, um frescor de pele entrevisto, para que, de boa-fé, eu lhe ajuntasse um ombro delicioso, um olhar cativante, cuja lembrança ou idéia preconcebida carregava sempre comigo, decifrações rápidas de um ser que se vê de relance, expondo-nos assim aos mesmos erros que essas leituras muito apressadas em que, sobre uma única sílaba e sem ter tempo de identificar as outras, colocamos no lugar da palavra que está escrita uma outra bem diferente que a nossa memória nos fornece. Agora, porém, não podia ser desse modo. Olhara bem os seus rostos; vira cada uma delas, não em todos os instantes raramente de frente, mas mesmo assim de dois ou três ângulos bastante diferentes para que pudesse fazer a retificação, ou a verificação, e a "prova" das diversas suposições de linhas e de cores, sugeridas à primeira vista, e para ver neles, através das expressões sucessivas, algo de inalteravelmente material. Podia dizer, com toda a certeza, que nem em Paris nem em Balbec, nas hipóteses mais favoráveis do que poderiam ser, mesmo que pudesse ficar ali conversar com elas, as passantes que haviam atraído os meus olhos, jamais houvera uma cujo aparecimento, e depois o desaparecimento sem que as tivesse conhecido, deixassem mais pena do que estas o fariam, e me tivessem dado a idéia de que a amizade pudesse ser tamanha embriaguez. Nem entre as atrizes, entre as camponesas, ou entre as moças do pensionato religioso, eu vira nada tão belo, impregnado de tanto desconhecido, tão inestimavelmente precioso, tão verossimilmente inacessível. Da felicidade desconhecida e possível da vida, elas eram um exemplar delicioso e em tão perfeito estado, que era quase por motivos intelectuais que me sentia desesperado por não poder realizar, em condições únicas, sem deixar qualquer margem a um possível engano, a experiência do que nos oferece de misteriosa beleza desejada e da qual a gente se consola de nunca possuir, pelo prazer-como Swann sempre se recusara a fazer, antes de Odette - às mulheres que não deseja, de forma que morremos sem jamais ter sabido o que seria outro prazer. Sem dúvida, podia ser que na verdade não fosse um prazer desconhecido, que, de perto, o seu mistério se dissipasse, que não passasse de uma imaginação, de uma miragem do desejo. Mas, neste caso, eu só poderia atribuí-lo à necessidade de uma lei da natureza-que, aplicando-se a essas moças, seria aplicá-la a todas e não ao defeito do objeto. Pois era aquele que eu teria escolhido de todos, percebendo muito bem, com uma satisfação de botânico, não ser possível encontrar reunidas espécies mais raras do que estas jovens flores que apareciam naquele momento, à minha frente, a linha das ondas com sua ligeira semelhante a um bosquezinho de rosas da Pensilvânia, ornamento de um jardim sobre o penhasco, entre as quais cabe todo o trajeto do oceano percorrido pelo vapor, tão lento em deslizar sobre o traçado horizontal e azul que vai de um caule, que uma borboleta preguiçosa, atrasada no fundo da corola; que no casco do navio há muito ultrapassou, pode esperar, para alçar vôo, estando certa que chegará antes do navio, que somente um pedaço azulado separe ainda a proa da primeira pétala da flor para qual ele navega.

            Voltei para dentro porque devia ir jantar em Rivebelle com Robert; minha avó exigia que, nesses dias, antes de partir, eu me deitasse na cama durante hora, sesta que o médico de Balbec logo me ordenou que estendesse à todas outras tardes.

            Aliás, para voltar, nem sequer havia necessidade de deixar o molhe e no hotel pelo hall, ou seja, por trás. Devido a um adiantamento comparável à sábado onde, em Combray, a gente almoçava uma hora mais cedo, agora, no auge do verão, os dias se tornavam tão longos que o sol ainda estava bem alto no céu, como numa hora de lanche, quando se punha a mesa para o jantar no Grande Hotel de Balbec. Assim, as grandes janelas envidraçadas e corrediças ficavam abertas ao mesmo nível do molhe. Bastava-me saltar uma estreita moldura de madeira para achar-me na sala de jantar, que logo deixava para tomar o elevador. Passando pelo escritório, dirigi um sorriso ao gerente e, sem sentir qualquer desagrado, percebi outro em seu rosto; pois, desde que me achava em Balbec, minha atenção compreensiva aos poucos se injetava naquela cara, transmutando-a como uma preparação de História Natural. Seus traços fisionômicos já eram usuais para mim, imbuídos de um significado medíocre sim, mas inteligível como uma escrita que se lê, e não se parecia de modo algum com os caracteres estranhos, intoleráveis, que seu rosto me apresentara naquele primeiro dia, quando vira à minha frente um personagem agora esquecido; personagem que, se me ocorria recordá-lo, julgava desconhecido, difícil de identificar com a personalidade polida e insignificante, da qual não era mais que a caricatura sumária e hedionda. Sem a timidez nem a tristeza do dia da minha chegada, toquei a campainha chamando o ascensorista, o qual agora já não ficava silencioso enquanto eu subia a seu lado no elevador, como numa caixa torácica móvel que se deslocasse ao longo da coluna vertebral, mas repetia-me:

            - Já não há tanta gente como há um mês. E começam a ir embora, os dias vão diminuindo.- Dizia isto não porque fosse verdade, mas porque, tendo uma colocação num hotel numa região mais quente do litoral, gostaria que todos nós fôssemos embora o mais cedo possível para que o hotel fechasse e que ele dispusesse de alguns dias de folga antes de "continuar" em seu novo emprego. "Continuar" e "novo" não eram nele expressões contraditórias, pois "continuar" era a forma usual do verbo "entrar". Espantou-me apenas que ele condescendesse em dizer "colocação", pois pertencia a esse proletariado moderno que deseja apagar na linguagem os vestígios do regime da domesticidade. Aliás, após alguns instantes, anunciou-me que, na "colocação" em que ia "continuar", teria uma "túnica" mais bonita e "honorários" melhores; as palavras "uniforme" e "salário" lhe pareciam antiquadas e inconvenientes. E, como, por uma contradição absurda, o vocabulário, apesar de tudo, sobreviveu no espírito dos "patrões" à concepção da desigualdade, eu sempre compreendia errado o que o ascensorista me dizia. Assim, a única coisa que eu desejava saber era se minha avó se encontrava no hotel. Ora, antecipando-se às minhas perguntas, o ascensorista dizia:

            -Aquela senhora acaba de sair do seu quarto.

            Eu sempre me confundia, achando que era a minha avó.

            - Não, aquela senhora que é, acho eu, empregada dos senhores.

            Como na antiga linguagem burguesa, que já deveria estar abolida, um cozinheiro não é uma empregada, eu pensava por um instante:

            "Mas ele se engana, nós  nem temos nem fábrica nem empregados."

            De súbito, lembrava-me que a qualidade de empregado é como o aspecto do bigode para os garçons: uma satisfação; dá amor-próprio que se dá aos criados, e que aquela senhora que acabara de sair era Françoise (provavelmente em visita à cafeteria, ou a fim de ver costurar a criada do quarto da dama belga), satisfação que ainda não bastava ao ascensorista, pois costumava dizer, apiedando-se de sua classe: "o trabalhador" ou "o pequena"; servindo-se do mesmo singular de Racine quando este diz: "o pobre..." Mas, habitualmente, eu não falava com o ascensorista, pois já estavam longe a minha timidez, era o desejo de agradar dos primeiros dias. Era ele agora quem ficava sem ter respostas na curta passagem entre os andares, trajeto cujos nós precisava ir fiando através do hotel, como feito um brinquedo, e que desdobrava ao nosso redor, andar por andar, suas ramificações de corredores em cujas profundezas a luz se amaciava enfraquecia, diminuía as portas de comunicação ou os degraus das escadas interiores, que acabava convertendo naquele âmbar dourado, misterioso e inconsistente como um crepúsculo, onde Rembrandt recorta ora o peitoril de uma janela, ora a manivela de um poço. E a cada andar, um clarão dourado refletido no tapete anunciava o pôr-do-sol e a janela dos banheiros.

            Perguntava-me se as moças que acabara de ver residiam em Balbec e quem poderiam ser. Quando o desejo está deste modo orientado para uma pequena tribo humana que ele escolheu, tudo o que pode referir-se a ela se torna motivo de emoção e, depois, de fantasia. Ouvira uma senhora dizer no molhe:

            "É uma amiga da pequena Simonet" no mesmo tom de exatidão presunçosa de alguém que dissesse: "É o companheiro inseparável do pequeno de La Rochefoucauld". Logo se percebeu, no rosto da pessoa a quem eram dirigidas tais palavras, uma curiosidade de olhar melhor a pessoa privilegiada que era "amiga do pequeno Simonet". Seguramente, privilégio que não parecia ser dado a qualquer um. Pois a aristocracia é uma coisa relativa. E existem pequenos povoados onde o filho de uma negociante de móveis é o árbitro da elegância e reina numa corte como um jovem príncipe de Gales. Depois, muitas vezes procurei me lembrar de que modo ressoa para mim, na praia, esse nome de Simonet, então ainda incerto em sua forma que mal distinguira, e também quanto a sua significação, na possibilidade que designasse a esta ou aquela pessoa; em suma, envolvido dessa divagação e dessa novidade tão emocionante para nós a seguir, quando esse nome, cujas letras são a cada segundo mais profundamente gravadas em nós devido a nossa atenção permanente, se torna (o que só iria acontecer comigo, quanto à pequena Simonet, alguns anos mais tarde) o primeiro vocábulo que encontraríamos ao despertar, ou após um desmaio, mesmo antes da noção da hora presente, do lugar em que estamos quase antes da palavra "eu", como se a criatura que ele nomeia fosse mais do que nós próprios, e como se, depois de alguns momentos de inconsciência, a trégua que expira fosse aquela em que, antes de tudo, deixávamos de pensar nesse nome.

            Não sei por que desde o primeiro dia disse comigo que o nome de Simonet deveria ser o de uma das moças; não mais deixei de me perguntar como poderia fazer para conhecer a família Simonet; e isso por meio de pessoas que ela julgasse superiores a si mesma, o que não devia ser difícil se elas todas não passassem de garotas livres do povo, para que não formasse uma idéia desdenhosa de mim. Pois não se pode alcançar o perfeito conhecimento nem efetuar a absorção completa de quem nos desdenha, enquanto não se tiver vencido esse desdém. Ora, de cada vez que a imagem de mulheres tão diversas penetra em nós, a menos que o esquecimento ou a concorrência de outras imagens a elimine, já não temos sossego enquanto não tenhamos convertido essas estranhas em algo semelhante a nós mesmos, pois nossa alma é, sob esse aspecto, dotada do mesmo tipo de reação e de atividade do nosso organismo físico, o qual não pode tolerar a intromissão, em seu seio, de um corpo estranho sem se empenhar imediatamente em digerir e assimilar o intruso. A pequena Simonet devia ser a mais bonita de todas e, aliás, a que chegasse talvez um dia a ser minha amante, pois fora a única a reparar, duas ou três vezes, na fixidez dos meus olhares, voltando ao meio a cabeça. Perguntei ao ascensorista se acaso não conhecia os Simonet em Balbec. Não gostando de confessar que ignorava alguma coisa, ele respondeu que lhe parecera já ter ouvido falar nesse nome. Chegado ao último andar, pedi-lhe que me mandasse a lista dos hóspedes recém-chegados.

            Saí do elevador, mas, em vez de ir para o meu quarto, continuei pelo corredor, pois àquela hora o camareiro daquele piso, embora temesse as correntes de ar, abrira a janela dos fundos, a qual olhava, em vez do mar, para os lados da colina e do vale, mas não os deixava ver nunca, pois seus vidros eram opacos e estavam quase sempre cerrados. Parei por um momento à sua frente, o tempo de prestar a devida devoção à "vista" que por uma vez me oferecia, para além da colina a que se encostava o hotel, e que só continha uma casa, edificada a certa distância, mas à qual a perspectiva e a luz da tarde, conservando-lhe o volume, davam um burilamento precioso e um escrínio de veludo, como uma dessas arquiteturas em miniatura, pequeno templo ou pequena capela de ourivesaria e esmaltes que servem de relicário e que só em alguns dias são expostas à veneração dos fiéis. Mas aquele instante de adoração já durara demais, pois o camareiro que segurava numa das mãos o molho de chaves e com a outra me cumprimentava, tocando sua calota de sacristão mas sem erguê-la, devido ao ar fresco e puro do entardecer, vinha fechar as duas folhas da janela, como quem fecha as portas de um relicário e subtraía à minha adoração o monumento reduzido e a relíquia de ouro. Entrei no meu quarto. À medida que a estação avançava, mudava o quadro que se avistava da janela. No princípio, havia muita claridade e só fazia sombra se o tempo ficava mau. Desde então, no vidro glauco a que o mar parecia intumescer com suas vagas redonda engastado entre os caixilhos de ferro de minha janela como entre os chumbos de um vitral, desfiava, em toda a profunda orla rochosa da baía, triângulos empenachados de uma espuma imóvel delineada com a delicadeza de uma pena ou de uma pluma desenhada por Pisanello, e fixadas por esse esmalte branco, inalterável e cremoso que figura uma camada de neve nos trabalhos em vidro de Gallé.

            Em breve os dias diminuíram e, no momento em que eu entrava no quarto, o céu violáceo, que parecia estigmatizado pela figura rígida, geométrica, passageiro e fulgurante do sol (semelhante à representação de algum sinal milagroso, de alguma aparição mística), se inclinava para o mar sobre a dobradiça do horizonte como um quadro religioso por cima do altar-mor, enquanto as diferentes partes do ocaso, expostas nos vidros das estantes baixas de mogno, que corriam ao longo das paredes -e que eu reportava em pensamento à maravilhosa pintura de que se destacavam -, pareciam-se com essas cenas diversas que algum mestre antigo realizou outrora para uma confraria sobre um relicário, e dos quais se exibem lado a lado, numa sala de museu, os painéis separados que só a imaginação do visitante volta a pôr em seu lugar sobre as predelas do retábulo. Algumas semanas mais tarde, quando eu subia, o sol já se havia posto. Semelhante àquela que eu via em Combray por cima do Calvário, quando voltava do passeio e me apressava a descer à cozinha antes do jantar; uma faixa de céu rubro ficava por sobre o mar compacto e recortado como carne congelada e, um instante após, sobre o mar já frio e azulado como o peixe a que chamam de tainha, o céu, do mesmo tom rosado de um desses salmões que dali a pouco nos iriam servir em Rivebelle, reavivava o prazer que eu teria em vestir a casaca para ir jantar. No mar, e bem perto da margem, tentavam elevar-se, uns sobre os outros, em camadas cada vez mais amplas, vapores de um negro de fuligem mas também de um polimento e de uma consistência de ágata, de um peso visível, de modo que os mais elevados, inclinando-se sobre a haste deformada e até para fora do centro de gravidade dos que até então os haviam sustentado, pareciam estar a ponto de arrastar toda aquela armação já a meio caminho do céu, e precipitá-la no mar. A vista de um barco que se afastava como um viajante noturno dava-me a mesma impressão, que já tinha tido no trem, de estar liberado das necessidades do sono e do enclausuramento em um quarto. Aliás, já não me sentia prisioneiro no quarto em que me achava, pois, dentro de uma hora, ia deixá-lo para entrar num carro. Atirei-me na cama; e sentia-me cercado por todos os lados de imagens do mar, como se estivesse no beliche de um desses barcos que via passar bem perto de mim, barcos que depois, durante a noite, nos assombraria ver deslocarem-se lentamente na escuridão, como cisnes sombrios e silenciosos mas que não dormem.

            Mas muitas vezes, de fato, não passavam de imagens; esquecia-me que, por trás dessas cores, cavava-se o triste vazio da praia, percorrida pelo vento inquieto da noite que eu tão intensamente sentira na chegada a Balbec; além do mais, mesmo em meu quarto, todo preocupado com as moças que vira passar, já não me sentia com disposição tão calma nem tão desinteressada para que pudessem produzir-se em meu espírito impressões verdadeiramente profundas de beleza. A espera pelo jantar em Rivebelle fazia meu humor ainda mais frívolo, e meu pensamento, ocupando nesses momentos a superfície do corpo, que eu ia vestir para tentar parecer o mais agradável possível aos olhos femininos que em mim se demorariam no restaurante iluminado, era incapaz de imaginar qualquer profundidade sob o colorido das coisas. E, se, debaixo da minha janela, o vôo macio e incansável dos ferreiros e das andorinhas não subisse como um repuxo, como uma girândola de vida, unindo o intervalo de seus altos foguetes com a fieira imóvel e branca dos longos sulcos horizontais, se não fosse o encantador milagre desse fenômeno natural local que una à realidade as paisagens que tinha diante dos olhos, eu poderia acreditar que não passavam de uma seleção, todo dia renovada, de pinturas que me mostravam arbitrariamente no local em que me achava e sem que tivessem relação obrigatória com este. Às vezes era uma exposição de estampas japonesas: ao lado do delgado recorte do sol, rubro e redondo como a lua, uma nuvem amarela parecia um lago, contra o qual os negros gladíolos se levantavam, como se fossem árvores plantadas à margem; uma faixa de um rosa suave, como jamais voltara a ver desde a minha primeira caixa de lápis de cor, inchava-se como um rio, em cujas margens os barquinhos pareciam estar esperando, em seco, que os pusessem para flutuar. E com o olhar desdenhoso, entediado e frívolo de um amador ou de uma mulher que percorre uma galeria entre duas visitas mundanas, murmurava comigo mesmo: "Curioso, este pôr-do-sol; é estranho; mas enfim, já vi outros tão delicados e espantosos como este." Mais me agradavam as tardes em que um navio absorvido e tornado fluido pelo horizonte surgia exatamente da mesma cor que ele, assim como numa tela impressionista, de tal modo que parecia ser também da mesma matéria, como se sua proa e os cordames não passassem de recortes feitos no azul vaporoso do céu, que neles se fazia mais sutil e filigranado. Às vezes o oceano enchia quase toda a minha janela, aumentada como estava por uma faixa de céu bordada no alto apenas por uma linha que era do mesmo azul do mar, mas que, por isso mesmo, eu imaginava ser ainda o mar, atribuindo sua tonalidade diferente a um efeito de luz. Em outra ocasião, o mar só se pintava na parte inferior da janela, estando todo o espaço restante coberto de tantas nuvens amontoadas umas contra as outras, em bandas horizontais, que as janelas pareciam, por premeditação ou especialidade do artista, apresentar um "estudo de nuvens", ao passo que as diferentes vitrinas das estantes, mostrando nuvens semelhantes, mas em outra parte do horizonte e diversamente coloridas pela luz, pareciam oferecer como que a repetição, cara a certos mestres contemporâneos, de um só e mesmo efeito, apanhado sempre em horas diferentes, mas que agora, com a imobilidade da arte, podiam ser todos vistos em conjunto em uma mesma habitação, executados a pastel e cada qual sob seu vidro. E às vezes, no céu e no mar uniformemente cinzentos, um leve tom rosado se ajuntava com delicado requinte, enquanto uma borboleta adormecida na parte inferior da janela parecia apor com suas asas junto daquela "harmonia em cinza e rosa" ao gosto das de Whistler, a assinatura predileta do mestre de Chelsea. Até mesmo o tom de rosa desaparecia; nada mais havia para olhar. Levantava-me por um momento e, antes de me estender de novo na cama, fechava as longas cortinas. Acima delas, via, da cama, a raia de claridade que ainda restava ensombrecer-se e diminuir progressivamente; mas era sem tristeza nem nostalgia que deixava assim morrer, no alto das cortinas, a hora em que de hábito estava à mesa, pois sabia que este dia era diferente dos outros, mais comprido como os dias polares, que a noite só interrompe durante alguns minutos; sabia que da crisálida desse crepúsculo se preparava para sair, por uma radiosa metamorfose, a luz deslumbrante do restaurante de Rivebelle. Dizia-me: "é hora"; espreguiçava-me na cama, erguia-me, concluía a toalete; e achava uma delícia esses momentos inúteis, livres de todo peso material, onde, enquanto os outros estavam embaixo jantando, eu empregava as forças acumuladas pela inatividade daquele fim de dia apenas em secar o corpo, vestir o smoking, dar o nó na gravata, fazer todos esses gestos já dominados pelo prazer esperado de rever uma mulher que vira da última vez que fora a Rivebelle, que parecera olhar-me, e que só se levantara um instante da mesa talvez na esperança de que a seguisse; era com muita alegria que me enfeitava com todos aqueles atrativos para entregar-me inteiramente a um vida nova, livre e despreocupada, em que apoiaria minhas indecisões na calma da Saint-Loup e escolheria, entre as espécies da História Natural e as provenientes de todas as regiões, aquelas que, formando os pratos inusitados logo encomendados pelo meu amigo, teriam tentado a minha gulodice ou a minha imaginação.

            Por fim chegaram os dias em que eu não podia mais entrar no hotel ao voltar do molhe, pelas janelas do refeitório. Os vidros já não estavam abertos, pois era noite lá fora e o enxame de pobres e de curiosos, atraídos pelo resplendor inacessível para eles, pendia, em negros cachos enregelados pelas paredes luminosas e escorregadias da colméia de vidro.

            Bateram; era Aimé, que fizera questão de entregar-me em mão própria as últimas listas de hóspedes. Antes de se retirar, Aimé insistiu em afirmar que Dreyfus era mil vezes culpado.

            - Vão saber de tudo – disse-me. -Não neste ano, mas no ano que vem. Foi um senhor muito relacionado no Estado-Maior quem me falou. Perguntei se não se resolveriam a descobrir tudo de uma vez antes do fim do ano. - Ele pousou o cigarro - continuou Aimé, imitando a cena e sacudindo a cabeça indicando, como fizera o seu hóspede, como se dissesse: não é necessário ser exigente demais. - Não este ano, Aimé - foi o que me disse batendo-me no ombro -, não é possível. Mas na Páscoa, sim! - E Aimé bateu-me de leve no ombro dizendo: - Veja, estou mostrando exatamente como ele fez seja por estar lisonjeado com aquela familiaridade de um grande personagem, seja para que eu pudesse melhor apreciar, com pleno conhecimento de causa, o valor do argumento e nossos motivos de esperança.

            Não foi sem um leve choque no coração que, na primeira página da lista de hóspedes, percebi as palavras: "Simonet e família." Conservava em mim velhas fantasias, datadas da infância, e nelas toda a ternura que havia em meu coração, mas que, sentida por ele e dele não se distinguindo, me fora trazida por uma criatura tão diversa de mim quanto possível. Este ser, agora uma vez mais eu o fabricava, para tanto utilizando o nome de Simonet e a lembrança da harmonia que reinava entre os corpos jovens que tinha visto a desfilar pela praia numa procissão esportiva digna da antigüidade e de Giotto. Não sabia qual daquelas jovens era a Srta. Simonet, se alguma delas assim se chamava, mas sabia que era amado pela Srta. Simonet e que, graças a Saint-Loup, ia tentar conhecê-la. Infelizmente, Saint-Loup obtivera prorrogação da licença, mas sob a condição de comparecer todos os dias a Doncieres; e, para fazê-lo faltar às suas obrigações militares, julgara eu poder contar, não somente com sua amizade por mim, mas também com aquela mesma curiosidade de naturalista humano que tantas vezes fizera despertar em mim o desejo de conhecer uma nova espécie de beleza feminina, mesmo sem ter visto a pessoa de que falavam, e apenas por ouvir dizer que numa certa casa de frutas havia uma caixeira muito bonita. Ora, foi em vão que procurei excitar em Saint-Loup essa curiosidade, falando-lhe nas minhas moças. Nele, a curiosidade estava há muito paralisada pelo amor que dedicava àquela atriz da qual se fizera amante. E, mesmo que houvesse sentido de leve essa curiosidade, tê-la-ia reprimido em virtude de uma crença supersticiosa de que de sua própria fidelidade poderia depender a fidelidade da amante. Assim, fomos jantar em Rivebelle sem que me prometesse ocupar-se seriamente de minhas jovens.

            Nos primeiros tempos, ao chegarmos, o sol acabava de se pôr, mas o céu ainda estava claro; no jardim do restaurante, cujas luzes ainda não se achavam acesas, o calor do dia tombava, depositava-se, como no fundo de um vaso ao longo de cujas paredes a geléia transparente e sombria do ar parecia tão consistente quanto uma grande roseira, colada à parede obscura que ela estriava de rosa, e que se assemelhava à arborização que se enxerga no fundo de uma pedra de ônix. Em breve era somente à noite que descíamos do carro, e muitas vezes até já noite cerrada quando deixávamos Balbec, caso o tempo estivesse feio e tivéssemos demorado em mandar atrelar os cavalos, na esperança de uma melhora. Mas, nesses dias, era sem tristeza que ouvia o vento soprar, pois sabia que não significava o abandono dos meus projetos, a reclusão em um quarto; sabia que, na grande sala de jantar do restaurante, aonde entraríamos ao som da música dos ciganos, as inumeráveis lâmpadas triunfariam com facilidade da escuridão e do frio, aplicando-lhes seus amplos cautérios de ouro, e eu subia alegremente e me sentava ao lado de Saint-Loup no cupê que nos esperava debaixo do aguaceiro. Depois de algum tempo, as palavras de Bergotte, dizendo-se convencido de que eu, malgrado o que pretendia, tinha inclinações para desfrutar os prazeres da inteligência, que haviam dado, quanto ao que poderia fazer mais tarde, uma esperança desmentida todos os dias pelo aborrecimento que sentia em sentar à mesa para principiar um estudo crítico ou um romance. "Afinal", dizia para mim mesmo, "talvez o prazer que se tenha de escrever uma bela página não seja o critério infalível do seu valor; talvez não passe de um estado acessório que muitas vezes vem se acrescentar a ela, mas cuja falta não faz diferença. Talvez certas obras-primas tenham sido feitas entre bocejos." Minha avó desfazia minhas dúvidas dizendo que eu trabalharia bem, com alegria, se estivesse bem de saúde. E, tendo o nosso médico julgado mais prudente advertir-me dos graves riscos a que poderia me expor o meu estado; prescrevendo-me todas as precauções de higiene que deveria seguir para evitar um acidente, eu subordinava todos os prazeres ao objetivo, que achava infinitamente mais importante que eles, de me tornar bastante forte para poder realizar a obra que talvez carregasse dentro de mim, e exercia sobre mim mesmo, desde que chegará a Balbec, um controle constante e minucioso. Ninguém poderia me fazer tocar na taça de café, que me privaria do sono noturno, necessário para não me mostrar cansado no dia seguinte. Mas quando chegávamos a Rivebelle-devido à excitação, de um prazer novo, e encontrando-me nessa região diferente em que o excepcional nos faz penetrar depois de ter cortado o fio, tecido com paciência há tantos dias que nos levava à sensatez-, como se nunca devesse haver amanhã, nem objetivos elevados a realizar, logo desaparecia aquele exato mecanismo de prudente higiene que funcionava para salvaguardá-los. Enquanto um criado pedia abrigo Saint-Loup me dizia:

            - Não vai ficar com frio? Talvez fizesse melhor em conservá-lo, não é muito quente.

            Respondia:

            - Não, não. E talvez não sentisse o frio, mas, em todo caso, não conhecia o medo de cair doente, a necessidade de não morrer, a importância de trabalhar.

            Dava minha capa; entrávamos na sala do restaurante ao som de uma marcha guerreira tocada pelos ciganos, avançávamos por entre as filas de mesas postas como num fácil caminho de glória e, sentindo o alegre ardor impressor de nossos corpos pelos ritmos da orquestra que nos concedia suas honras militar - aquele triunfo imerecido, nós o dissimulávamos por trás de um rosto grave e gelado, sob um andar cheio de lassidão, para não imitar essas cantoras de café-concerto que, a fim de cantar num tom belicoso uma canção indecente, entram em cena com entonação marcial de um general vitorioso.

            A partir daquele momento, eu era um homem novo, que já não seria o neto de minha avó e só lembraria dela ao sair, e sim o irmão momentâneo dos moços que iriam nos servir.

            A dose de cerveja, e com maior razão a de champanha, que em Balbec eu não consentiria em atingir numa semana, embora então à minha consciência calma e lúcida o sabor dessas bebidas apresentasse um prazer visivelmente apreciável mas facilmente sacrificado, eu a consumia numa hora, acrescentando-lhe algumas gotas de vinho do Porto, distraído demais para poder apreciá-lo, e dava ao violinista, que acabava de tocar, os dois luíses que economizava há um mês para comprar algo de que já não me lembrava. Alguns dos garçons que serviam, soltos por entre as mesas, corriam a toda pressa com um prato nas palmas estendidas, parecendo até que não deixá-lo cair fosse o objetivo dessas corridas. E, de fato, os suflês de chocolate chegavam ao destino sem terem sido revirados, as maçãs à inglesa, apesar do galope que as deveria ter sacudido, arrumadas, como na partida, em torno do carneiro de Pauillac. Reparei num desses criados, bem grande, ornado de soberbos cabelos pretos, o rosto pintado de uma cor que mais lembrava certas espécies de pássaros raros que a espécie humana, e que, correndo sem parar e, ao que parecia, sem objetivo, de uma extremidade a outra da sala, lembrava uma dessas araras que enchem os grandes aviários dos jardins zoológicos com suas cores ardentes e sua incompreensível agitação. Em breve o espetáculo se organizou, pelo menos a meus olhos, de um modo mais nobre e mais calmo.

            Toda aquela atividade vertiginosa se fixou numa tranqüila harmonia. Eu olhava as mesas redondas cuja inumerável assembléia enchia o restaurante, como outros tantos planetas, assim como eram figurados nos quadros alegóricos de antigamente. Ademais, exercia-se uma irresistível força de atração entre esses diversos astros e, em cada mesa, os ocupantes só tinham olhos para as mesas vizinhas, exceção feita a um rico anfitrião, o qual, tendo conseguido trazer um escritor famoso, empenhava-se em extrair dele, graças às virtudes da mesa giratória, frases insignificantes que deslumbravam as senhoras. A harmonia dessas mesas astrais não impedia a incessante revolução dos criados inumeráveis, que, por não estarem sentados como os que jantavam, e sim de pé, evoluíam numa zona superior. É claro que um corria para levar as entradas, trocar o vinho, juntar os copos. Porém, apesar dessas razões particulares, sua corrida permanente por entre as mesas redondas acabava por esclarecer a lei de sua circulação regulada e vertiginosa. Sentadas por detrás de um maciço de flores, duas horríveis caixas, ocupadas em cálculos sem fim, pareciam duas mágicas empenhadas em prever, por meio de cálculos astrológicos, as perturbações que às vezes poderiam ocorrer nessa abóbada celeste concebida conforme a ciência da Idade Média.

            Eu lastimava um pouco todos os que jantavam porque sentia que, para eles, as mesas redondas não eram planetas e que não tinham praticado nas coisas o seccionamento que nos desembaraça de sua aparência habitual, permitindo-nos perceber analogias. Pensavam estar jantando com tal ou qual pessoa, que a refeição custaria mais ou menos tanto, e que recomeçariam no dia seguinte. Pareciam absolutamente insensíveis ao desfilar de um cortejo de jovens empregados que não tendo provavelmente nada de urgente a fazer no momento, levavam processionalmente alguns pães em grandes cestos. Alguns, muito moços, estonteados pelos cachações que os mordomos lhes davam ao passar, fixavam os olhos, melancolicamente num sonho remoto e só se consolavam se um hóspede do hotel de Balbec, onde outrora tinham sido empregados, reconhecia-os, dirigia-lhes a palavra e lhes pedia pessoalmente que levassem a champanha, impossível de beber, o que os enchia de orgulho.

            Eu ouvia o vibrar de meus nervos, nos quais havia bem-estar, independente dos objetos exteriores que o pudessem proporcionar, e que o menor deslocamento que eu desse ao meu corpo, à minha atenção, bastava para me fazer experimentar, como num olho fechado uma leve compressão produz a sensação da cor. Já bebera muito vinho do Porto e, se ainda pedia mais, era menos em função do bem-estar que os novos copos me trariam do que por efeito do bem-estar produzido pelos copos anteriores. Deixei a própria música transportar meu prazer sobre cada nota, onde, docilmente, ele então vinha pousar. Se, como no caso das indústrias químicas, graças às quais são lançados para consumo, em grande quantidades, corpos que só de modo acidental se encontram na natureza, e raramente, este restaurante de Rivebelle reunia, num mesmo momento, mais mulheres de cujo íntimo me solicitavam perspectivas de felicidade que o acaso dos passeios ou das viagens me teria feito encontrar em um ano; por um lado, aquela música que ouvíamos arranjos de valsas, de operetas alemãs, de canções de café-concerto, todas novas para mim era ela própria como um lugar de prazer aéreo, superposto ao outro e mais excitante que ele. Pois cada motivo, particular como uma mulher, não reservava, como ela o teria feito, para algum privilegiado, o segredo de volúpia que encobria: ele o oferecia a mim, me ambicionava, vinha à mim com passo caprichoso ou canalha, me abordava, me acariciava como se, de repente, eu me tornasse mais sedutor, mais rico ou poderoso; bem que eu achava nessas músicas, algo de cruel; é que todo sentimento desinteressado de beleza, todo reflexo da inteligência, lhes era desconhecido; para elas, só o prazer físico existe. E elas são o inferno mais implacável, o mais destituído de saídas para o desgraçado ciumento a quem apresentam esse prazer; prazer que a mulher desfruta com outro como sendo a única coisa que existe no mundo para aquele o enche por inteiro. Mas, enquanto eu repetia a meia voz as notas dessa música, e lhe devolvia o seu beijo, a volúpia toda sua, que me dava, se me tornou tão preciosa que eu teria deixado meus pais para seguir esse motivo pelo mundo singular que ele construía no invisível, em linhas alternadamente cheias de langor de vivacidade. Conquanto um tal prazer não seja do tipo dos que dão mais valor pessoal a que se ajuntam, pois só é sentido por ela, e conquanto, a cada vez que nossa vida, desagradamos a uma mulher que nos viu, ela ignore se, naquele momento, possuíamos ou não essa felicidade interior e subjetiva que, por conseguinte, em nada lhe teria mudado o juízo que formou a nosso respeito, eu me sentia mais poderoso, quase irresistível. Parecia-me que meu amor já não era algo desagradável e de que pudessem sorrir, mas continha precisamente a beleza tocante, a sedução dessa música, ela mesma semelhante a um ambiente simpático onde a minha amada e eu nos encontraríamos e, de súbito, ficaríamos íntimos.

            O restaurante não era freqüentado apenas por mulheres levianas, mas também por pessoas da mais alta roda elegante, que ali vinham merendar às cinco da tarde ou davam grandes jantares. Os lanches ocorriam numa longa e estreita galeria envidraçada, em forma de corredor, o qual, indo do vestíbulo ao refeitório, costeava de um lado o jardim, do qual estava separada apenas por algumas colunas de pedras e pelas vidraças que se abriam aqui ou ali. Isso causava, além de numerosas correntes de ar, súbitos e intermitentes reflexos de sol, uma iluminação ofuscante e instável que quase impedia de distinguir as mulheres que, quando ali se encontravam, empilhadas de duas em duas mesas em todo o comprimento do estreito gargalo, como cintilassem a cada movimento que faziam para beber chá ou cumprimentar umas às outras, dir-se-ia um reservatório, uma armadilha em que o pescador acumulasse os fulgurantes peixes escolhidos, os quais, metade fora d'água e banhados de raios, resplandeciam aos nossos olhos em seu brilho cambiante.

            Algumas horas depois, durante o jantar, o qual era naturalmente servido no refeitório, acendiam-se as luzes, se bem que ainda estivesse claro lá fora, de modo que a gente via à nossa frente, no jardim, ao lado dos pavilhões iluminados pelo crepúsculo, e que pareciam os pálidos espectros da tardinha, alamedas arborizadas cuja glauca verdura era atravessada pelos últimos raios de sol, e que, do refeitório iluminado pelas lâmpadas, onde se jantava, surgiam, além das vidraças não mais, como se teria dito das damas que merendavam no fim da tarde, ao longo do corredor azulado e de ouro, numa faixa cintilante e úmida; mas como as vegetações de um pálido e verde aquário gigante banhado em luz sobrenatural. Erguiam-se da mesa; e, se os convivas, durante a refeição, passando o tempo todo a olhar, reconhecer, a perguntar sobre os convivas da mesa próxima, tinham sido retidos numa coesão perfeita em torno da própria mesa, a força atrativa, que os fazia orbitar ao redor de seu anfitrião de uma noite, perdia um tanto de seu poder no momento em que, para tomar café, dirigiam-se para aquele mesmo corredor em que os outros haviam tomado chá; muitas vezes acontecia que, na ocasião da passagem, algum jantar em andamento perdia um ou vários de seus corpúsculos que, tendo sofrido muito fortemente a atração do jantar rival, destacavam-se um instante do seu, onde eram substituídos por senhores ou senhoras que tinham vindo cumprimentar amigos, antes de regressar, dizendo:

            -Tenho de sair para me encontrar com o Sr. X, que hoje me convidou. E, por um instante, dir-se-ia que eram dois buquês separados que houvessem trocado algumas de suas flores.

            Depois o próprio corredor se esvaziava. Com freqüência, como mesmo depois de jantar ainda houvesse um pouco de claridade, esse longo corredor não era iluminado e, acotovelado pelas árvores que se inclinavam lá fora, do outro lado da vidraça, dava a impressão de uma alameda num parque espesso e tenebroso. Às vezes, a meia escuridão, uma conviva ali se demorava. Atravessando-o para sair, distinguia no corredor, uma noite, sentada no meio de um grupo desconhecido, a bela princesa de Luxemburgo. Sem parar, tirei o chapéu. Ela me reconheceu, inclinou a cabeça e sorriu; bem acima desse cumprimento, emanando daquele próprio gesto elevaram-se melodiosamente algumas palavras a mim dirigidas, e que deviam ser um "boa noite" um tanto prolongado, não para que ficasse, mas apenas para completar a saudação, transformá-la num cumprimento falado. Mas eram tão indistintas as palavras, e o único som que ouvi se prolongou tão suavemente e me parecera tão musical, que foi como se, na ramaria ensombrecida das árvores, um rouxinol se pusesse a cantar. Se, por acaso, para terminar a noitada com um grupo de amigos seus que havíamos encontrado, Saint-Loup decidia nos levar ao cassino de alguma praia vizinha, e se, partindo com eles, punha-me sozinho num carro, eu recomendava ao cocheiro que fosse a toda a velocidade, para que se tornassem menos longos os momentos que passaria sem ter ajuda de ninguém que me dispensasse; - fornecer eu próprio à minha sensibilidade - dando marcha a ré e saindo da passividade em que me havia prendido como numa engrenagem essas modificações que recebia dos outros desde que chegara a Rivebelle. O choque possível corria se o carro que viesse em sentido contrário nesses caminhos onde só há espaço para passagem de um e onde a noite era negra, a instabilidade do solo, com freqüência desmoronado, da falésia, a proximidade de sua vertente a pique sobre o mar, disso encontrava em mim o pequeno esforço necessário para levar a imagem de temor do perigo até a minha razão. É que, do mesmo modo que, não o desejo de tornar célebre, mas o hábito de trabalhar é que nos permite produzir uma obra, não é a alegria do momento presente, mas as sábias reflexões do passado, que nos auxiliam a preservar o futuro. Ora, se já, ao chegar a Rivebelle, lançara para longe de mim essas muletas da razão, do autocontrole, que ajudam nossa fraqueza a prosseguir no caminho certo; estava exposto a uma espécie de ataxia moral, o álcool distendendo excepcionalmente meus nervos, havia dado aos minutos de uma qualidade, um encanto que não tinham por efeito me tornar mais apto sequer mais resoluto para defendê-los; pois, fazendo-me preferi-los mil vezes resto da minha vida, minha exaltação os isolava; eu era como os heróis, estava encerrado no presente; momentaneamente eclipsado, meu passado não projetava à minha frente aquela sombra de si mesmo a que chamamos futuro; colocando o objetivo da minha vida não mais na realização dos sonhos desse passado, mas na felicidade do minuto presente, nada enxergava além. De modo que, por uma contradição apenas aparente, no momento em que eu experimentava um prazer excepcional, quando sentia que minha vida podia ser feliz, em que poderia ter mais valor a meus olhos, nesse momento é que, liberto das preocupações que até então ela poderia ter me inspirado, eu a entregava sem hesitar ao acaso de um acidente. Aliás, não fazia, em suma, senão concentrar numa noite a incúria que para os outros homens está diluída em sua existência inteira, onde diariamente afrontam sem necessidade o risco de uma viagem marítima, de um passeio de aeroplano ou de automóvel, quando os espera em casa a criatura que sua morte destruiria ou quando ainda está ligado à fragilidade de seus cérebros o livro cujo próximo lançamento é a única razão de suas vidas. Da mesma forma, no restaurante de Rivebelle, nas noites em que ali ficávamos, se alguém aparecesse com o intuito de me matar, como eu só via numa distância longínqua e irreal a minha avó, o meu por vir, os livros por escrever, como aderia por inteiro ao aroma da mulher que estava na mesa vizinha, à polidez dos mordomos, aos contornos da valsa que tocavam, como estava colado à sensação do momento, não tendo mais extensão que ela nem outra finalidade senão a de não ser separado dela, seria morto contra ela, me deixaria massacrar em resistência, sem me mexer, abelha entorpecida pelo fumo do tabaco, que já não se preocupa em conservar a provisão de seus esforços acumulados e a esperança de sua colméia.

            De resto, devo dizer que esta insignificância em que recaíam as coisas mais graves, em contraste com a violência de minha exaltação, acabava por abranger até a Srta. Simonet e suas amigas. A empreitada de conhecê-las parecia-me agora fácil, porém indiferente, pois só a minha sensação atual, graças a seu extraordinário poder, à alegria que provocavam suas menores alterações e até a sua simples continuidade, tinha importância para mim; tudo o mais, parentes, trabalho, prazeres, moças de Balbec, pesava menos que um floco de espuma numa ventania que não o deixa repousar, existia apenas em relação a esse poder interior; a embriaguez realiza, por algumas horas, o idealismo subjetivo, o fenomenismo puro; tudo não passa de aparências e só existe em função do nosso sublime eu. Aliás, não quer dizer que um amor de verdade, se o tivermos, não possa subsistirem semelhante estado. Porém, sentimos tão perfeitamente, como num meio novo, que pressões desconhecidas mudaram as dimensões desse sentimento, que não podemos considerá-lo do mesmo modo que antes. Este mesmo amor, é certo que o reencontramos, porém deslocado, já sem pesar sobre nós, satisfeito com a sensação que lhe concede o presente e que nos basta, pois não nos importamos com o que não é atual. Infelizmente, o coeficiente que muda assim os valores só os muda nessa hora de embriaguez. As pessoas que não tinham mais importância e sobre as quais soprávamos como se fossem bolhas de sabão, amanhã retomarão sua densidade; será preciso tentar entregar-se novamente a trabalhos que já não significam nada. Coisa ainda mais grave, essa matemática do amanhã, a mesma de ontem, e com cujos problemas nos encontraremos inexoravelmente enleados, é ela que nos rege mesmo durante aquelas horas, salvo para nós próprios. Se está perto de nós uma mulher virtuosa ou hostil, essa coisa tão difícil na véspera a saber, que chegávamos a lhe agradar nos parece agora um milhão de vezes mais fácil sem que tenha ficado em nada, pois apenas a nossos próprios olhos, nossos próprios olhos interiores, é que mudamos. E ela fica tão descontente, no momento mesmo que nos tenhamos permitido uma familiaridade, como o estaremos no dia seguinte por ter dado cem francos ao groom, e pelo mesmo motivo que para nós foi apenas retardado: a ausência de embriaguez.

            Não conhecia nenhuma das mulheres que estavam em Rivebelle e quer por fazerem parte de minha embriaguez como os reflexos fazem parte do espelho, me pareciam mil vezes mais desejáveis do que a cada vez menos existente Srta. Simonet. Uma jovem loura, sozinha, de ar triste, sob um chapéu de palha recheado de flores do campo, olhou-me por um instante com ar sonhador e me pareceu, agradável.

            Depois, foi a vez de uma outra; depois, de uma terceira; por fim, de uma morena de pele deslumbrante. Ao contrário do que ocorria comigo, quase todas eram conhecidas de Saint-Loup.

            Antes de conhecer a sua amante atual, ele de fato vivera de tal modo no mundo restrito da boêmia que, de todas as mulheres que jantavam naquelas noites em Rivebelle, muitas das quais ali se achavam por acaso, tendo vindo à praia, algumas para encontrar o amante, outras para tentar conseguir um, não havia quase nenhuma que ele não conhecesse por ter passado ele mesmo ou um de seus amigos-ao menos uma noite com ela. Não as saudava se estavam acompanhadas de um homem, e elas, mesmo olhando-o mais que a qualquer outro, pois indiferença que sabiam ter ele por toda mulher que não fosse a sua atriz lhe dava aos olhos delas um prestígio singular, fingiam não conhecê-lo. E uma sussurrava:

            ''É o pequeno Saint-Loup. Parece que está sempre amando a sua putinha. É um grande amor. Que rapaz lindo! Acho-o extraordinário! E como é chique! Mesmo assim, há mulheres que têm uma sorte! É um senhor tipo em tudo. Conheci-o muito bem quando eu estava com o d'Órleans. Os dois eram inseparáveis. Estavam na maior farra naquela época! Mas agora, nada disso; não lhe faz nenhuma infidelidade. Ah, ela pode dizer que tem mesmo sorte. E eu só me pergunto o que será que ele viu nela. É preciso que ele seja mesmo um grande idiota. Ela tem pés do tamanho de barcos, bigodes à americana, e a roupa de baixo é suja! Acho que uma operariazinha não ia querer ficar com suas calças. Repare bem nos olhos dele; faz gente se matar por um homem desses. Cale-se, ele me reconheceu, está rindo; eu sabia que ele se lembrava bem de mim.

            Entre ele e elas surpreendi um olhar de inteligência. Gostaria que me apresentasse a essas mulheres, gostaria de lhes pedir um encontro e que elas com isto concordassem, mesmo que eu não pudesse aceitá-lo. Pois sem isso o rosto delas permaneceria eternamente destituído, minha memória, dessa parte de si mesmo e como se estivesse oculto por um véu; que varia em todas as mulheres, que não podemos imaginar numa delas quando não a vimos, e que só aparece no olhar que nos é dirigido e que aquiesce ao nosso desejo e nos promete que ele será satisfeito. E, no entanto, mesmo assim restrito, a fisionomia delas valia muito mais para mim que a das mulheres que eu soubesse serem virtuosas, e não me parecia, como a destas, lisa, sem interior, composta de uma única peça sem espessura. Sem dúvida, não era para mim o que deveria ser para Saint-Loup que, pela memória, sob a indiferença, para ele transparente, dos traços imóveis que fingiam não conhecê-lo ou por trás da banalidade do cumprimento que lhe teriam dirigido tanto quanto a qualquer outro, lembrava, via, entre cabelos desfeitos, uma boca arquejante e olhos semicerrados, todo um quadro silencioso como aqueles que os pintores, para iludir a maioria dos visitantes, recobrem com um pano decente. Certamente, para mim, ao contrário, que sentia que nada do meu ser havia penetrado numa ou noutra dessas mulheres, e ali não seria transportado pelos caminhos desconhecidos que ela seguiria durante a vida, tais rostos permaneciam fechados. Mas já era muito saber que se abriam, para que me parecessem de um valor que não lhes teria atribuído se não fossem mais que belas medalhas, em vez de medalhões sob os quais se ocultavam lembranças de amor. Quanto a Robert, mal parando num lugar quando estava sentado, dissimulando com um sorriso de homem da sociedade a avidez de agir como homem de batalha, eu, encarando-o bem, percebia o quanto a ossatura enérgica de seu rosto triangular devia ser a mesma da de seus antepassados, mais apropriada para um ardente arqueiro do que para um letrado suave. Sob a pele fina, aparecia a construção ousada, a arquitetura feudal. A cabeça fazia pensar nessas torres de antigos torreões, cujas ameias inutilizadas permanecem visíveis, mas que foram preparadas internamente para serem bibliotecas.

            Voltando a Balbec, a respeito de uma dessas desconhecidas a quem ele me apresentara, repetia comigo sem cessar um segundo e, no entanto, sem notar quase: "Que mulher deliciosa!" como se canta um estribilho. De certo, essas palavras eram antes ditadas por disposições nervosas que por um julgamento perdurável. Não é menos verdade que, se eu tivesse mil francos comigo e ainda houvesse joalheiros abertos àquela hora, teria comprado um anel para a desconhecida. Quando as horas da nossa vida se desenrolam assim em planos bem diversos, ocorre darmos muito de nós mesmos para diferentes pessoas que, no dia seguinte, nos parecem destituídas de interesse. Mas sentimo-nos responsáveis pelo que lhes dissemos na véspera e desejamos cumprir nossa palavra.

            Como naquelas noites eu entrasse bem tarde no hotel, reencontrava com prazer em meu quarto, que já não me era hostil, a minha cama onde, no dia da minha chegada, achara que seria sempre impossível repousar e onde agora os meus membros, tão cansados, buscavam apoio; de modo que, sucessivamente, minhas coxas, meus quadris, meus ombros tentavam aderir em todos os seus pontos aos lençóis que envolviam o colchão, como se minha fadiga assemelhasse a um escultor, tivesse desejado tirar o molde total de um corpo humano - não conseguia adormecer; sentia a manhã aproximar-se; o sossego e a boa saúde estavam mais em mim. Na minha aflição, tive a idéia de que nunca mais os encontraria. Teria de dormir por muito tempo para atingi-los. Ora, ainda que cochilasse, de qualquer modo seria acordado duas horas depois pelo concerto sinfônico. De repente adormecia, caía nesse sono pesado onde se desvelam para nós o regresso à juventude, a retomada dos anos passados, sentimentos perdidos, a desencarnação a transmigração das almas, a evocação dos mortos, as ilusões da loucura, a regressarem, são aos reinos mais elementares da natureza (pois diz-se que muitas vezes vêem animais em sonhos, mas esquece-se que quase sempre nós mesmos somos; no sonho, um animal privado dessa razão que projeta sobre as coisas um lampejo de certeza; aí, pelo contrário, só oferecemos uma visão duvidosa ao espetáculo da vida e, a cada minuto apagado pelo esquecimento, a realidade precedente se desfiada diante da que lhe sucede, como uma projeção de lanterna mágica diante da seguinte, quando se troca o vidro), todos esses mistérios que julgamos não conhecer nos quais, na verdade, somos iniciados quase todas as noites, assim como outro grande mistério do aniquilamento e da ressurreição. Tornada mais vagabunda pela digestão difícil do jantar de Rivebelle, a iluminação sucessiva e errante das zonas ensombrecidas do meu passado fazia de mim uma criatura cuja suprema felicidade seria encontrar Legrandin, com quem acabava de conversar em sonho. Depois, mesmo a minha própria vida era-me inteiramente oculta por novo cenário, como o que se coloca bem na frente do palco e diante do qual, enquanto atrás se trocam os quadros, atores representam um entreato. Aquele em que eu então desempenhava o meu papel era ao gosto dos contos orientais; nele eu nada sabia de meu passado nem de mim mesmo, devido àquela grande proximidade de um cenário interposto; não passava de um personagem que levava e sofria castigos variados por uma falta que não notava, mas que era a de ter bebido muito vinho do Porto. De súbito despertava, percebia que, graças a um longo sono não tinha ouvido o concerto sinfônico. Já era meio-dia; certifiquei-me disso pelo relógio de pulso, após alguns esforços para me levantar, esforços a princípio esbaldados e interrompidos por quedas sobre o travesseiro, mas dessas quedas curtas se seguem ao sono como a outras tonteiras, sejam causadas pelo vinho ou pela convalescença; além do mais, mesmo antes de ter olhado a hora, estava certo que já era mais de meio-dia. Ontem à tardinha, eu não passava de um ser vazio, sem peso e (como é preciso ter estado deitado para ser capaz de sentar-se e de estar dormido para conseguir calar-se) não podia deixar de me mexer nem de falar; já não possuía consistência nem centro de gravidade, achava-me como que lança parecia-me poder continuar aquele sombrio percurso até a lua. Ora, se alguns dos meus olhos não tinham visto a hora, meu corpo soubera calculá-la, havia medido o tempo não sobre um quadrante superficialmente representado, mas pelo peso progressivo de todas as minhas forças refeitas que ele, como um possante relógio, deixara descer ponto a ponto do meu cérebro para o resto do corpo, onde agora ajuntavam, até acima de meus joelhos, a abundância intacta de suas provisões. Se é verdade que o mar outrora foi o nosso meio vital, onde é necessário voltar a mergulhar o nosso sangue para recuperar nossas forças, o mesmo se dá com o esquecimento, com o nada mental; então parecemos ausentes do tempo durante algumas horas; mas as forças que se organizaram durante esse intervalo, sem serem gastas, medem-no pela quantidade delas de forma tão exata como os pêndulos de um relógio ou os escorrentes montículos de areia da ampulheta. Aliás, não se sai mais facilmente de um tal sono do que da vigília prolongada, de tal maneira todas as coisas tendem a perdurar, e, se é verdadeiro que certos narcóticos fazem dormir, dormir por muito tempo é um narcótico ainda mais potente, após o qual temos muito trabalho para despertar. Semelhante a um marinheiro que vê muito bem o cais aonde amarrar o seu barco, no entanto ainda sacudido pelas vagas, bem que eu pensava olhar a hora e levantar-me, mas meu corpo era, a todo instante, jogado de volta ao sono; a aterrissagem era difícil e, antes de me pôr de pé para alcançar o relógio e comparar sua hora com a que me indicava a riqueza de materiais de que dispunham minhas pernas exaustas, caía ainda duas ou três vezes sobre o travesseiro.

            Por fim, enxergava claramente: "duas horas da tarde", tocava a campainha, mas logo recaía num sono que, desta vez, deveria ser infinitamente mais longo, a julgar pelo repouso e pela visão de uma imensa noite ultrapassada que eu encontrava ao despertar. Entretanto, como este era causado pela entrada de Françoise, entrada decorrente do meu toque de campainha, este novo sono, que me parecia ter sido mais longo que o anterior e me trouxera tanto bem-estar e esquecimento, não durara mais que meio minuto. Minha avó abria a porta de meu quarto, e eu lhe fazia algumas perguntas sobre a família Legrandin.

            Não é bastante dizer que havia recobrado a calma e a saúde, pois era mais que uma simples distância que os havia separado de mim na véspera; eu lutara a noite inteira contra uma onda contrária e, além disso, não me encontrava apenas junto delas: elas haviam reentrado em mim. Em pontos determinados e ainda um pouco dolorosos da minha cabeça vazia, e que um dia ainda seria quebrada, deixando meus pensamentos escaparem-se para sempre, estes haviam novamente assumido o seu lugar e recuperado essa existência de que, infelizmente, ainda não tinham sabido aproveitar-se.

            Uma vez mais eu escapara à impossibilidade de dormir, ao dilúvio, ao naufrágio das crises nervosas. Já não temia de modo algum o que me ameaçava na véspera, à noite, quando estava desprovido de repouso. Uma vida nova se abria diante de mim; sem fazer um só movimento, pois ainda estava moído embora - disposto, gozava o meu cansaço com alegria; ele isolara e rompera os ossos das minhas pernas, dos meus braços, que eu sentia reunidos à minha frente, prontos para se recomporem, e que iria reerguer-me apenas cantando, como o arquiteto da fábula.

            De súbito, recordei-me da jovem loura de ar triste que vira em Rivebelle percebia que me olhara por um instante. Durante toda a noite, muitas outras me haviam parecido agradáveis; agora somente ela vinha erguer-se do fundo de minha lembrança. Parecia-me que me havia notado; eu esperava que um dos garçons de Rivebelle viesse me dizer uma palavra de sua parte. Saint-Loup não a conhecia e achava que era direita. Seria muito difícil vê-la, vê-la constantemente. Mas eu estava disposto a tudo para tanto; só pensava nela. Muitas vezes a filosofia fala de livres e de atos necessários. Talvez não exista um ato mais absolutamente sofrido por nós do que esse que, devido a uma força ascensional comprimida durante a ação e, uma vez estando o nosso pensamento em repouso, faz remontar desse modo até ela uma lembrança até então nivelada às outras pela força opressiva da distração, e lançar-se à frente porque, sem que o soubéssemos, continha, mais linguagem dos outros atos, um encanto que só percebemos 24 horas depois. E talvez também não haja ato mais livre, pois ainda está destituído do hábito, dessa espécie de lembrança mental que, no amor, favorece o renascimento exclusivo da imagem de uma pessoa.

            Esse dia era justamente o seguinte àquele em que eu vira desfilar diante do mar o belo cortejo das moças. Sobre elas, interroguei vários hóspedes do hotel que vinham quase todos os anos a Balbec. Não puderam me dar informações. De tarde, um fotógrafo me explicou o motivo. Quem poderia reconhecer agora nelas recém-saídas, mas enfim já saídas de uma idade em que as mudanças são completas, certa massa amorfa e deliciosa, ainda bastante infantil, de meninas - apenas alguns anos antes, podiam ser vistas sentadas em círculo na areia, em tom de uma barraca; espécie de branca e indecisa constelação onde não se distinguiriam dois olhos mais brilhantes que outros, um rosto malicioso, cabelos louros, senão para logo se voltar a perdê-los e confundi-los bem depressa no seio de uma nebulosa láctea e indistinta?

            Sem dúvida, naqueles anos ainda bem pouco afastados, não era à vi no grupo, como na véspera em seu primeiro aparecimento diante de mim, mas era ao próprio grupo que faltava nitidez. Então, aquelas crianças muito novinhas estavam ainda nesse grau elementar de formação em que a personalidade não imprimiu um sinal em cada rosto. Como esses organismos primitivos em que o indivíduo que não existe por si mesmo e é antes constituído pelo polipeiro que por cada um dali pólipos que o compõem, elas permaneciam comprimidas umas contra as outras. Às vezes, uma fazia a sua vizinha cair, e então um riso louco, que parecia uma manifestação de sua vida pessoal, agitava-as todas ao mesmo tempo, apagando e confundindo esses rostos indecisos e careteiros na geléia de um só cacho cintilante e trêmulo. Numa fotografia antiga que elas deveriam me dar um dia, e que guardei comigo, seu grupo infantil já apresenta o mesmo número de figurantes que o seu cortejo feminino mais tarde; sente-se ali que já deviam realizar na praia certa mancha singular que forçava todos a olharem para elas, mas ali não se pode reconhecê-las individualmente senão por meio do raciocínio, deixando livre o campo a todas as transformações possíveis durante a juventude, até o limite em que essas formas reconstituídas redundassem numa outra individualidade que também é necessária a identificar e cujo belo rosto, por causa da concomitância de uma elevada estatura e de cabelos crespos, tem probabilidade de haver sido outrora esse encolhimento de careta mirrada apresentado pelo retrato; e a distância percorrida em pouco tempo pelos caracteres físicos de cada uma daquelas moças fazia deles um critério muito vago e, por outro lado, visto que o que possuíam em comum e, por assim dizer, de coletivo, era desde essa época bastante acentuado, ocorria às vezes às suas melhores amigas confundir uma com outra naquela fotografia, de modo que a dúvida afinal não podia ser inteiramente desfeita senão por um determinado acessório da toalete que uma delas tinha certeza de ter usado, com exclusão das outras. Desde esses dias tão diversos daquele em que eu acabava de vê-las no molhe, tão diversos e no entanto tão próximos, elas ainda se abandonavam ao riso, como eu havia reparado na véspera, mas a um riso que já não era o riso intermitente e quase automático da infância, escape espasmódico que antigamente fazia a todo instante aquelas cabeças darem um mergulho, como os ''bandos de vairões" no Vivonne se dispersavam e desapareciam para se reunirem logo após; suas fisionomias agora se haviam tornado senhoras de si mesmas, os olhos se fixavam nos objetivos que perseguiam; e ontem foram necessários a indecisão e o tremor de minha primeira percepção para confundir indistintamente, como o fizera a antiga hilaridade e a velha fotografia, as espóradas hoje individualizadas e desunidas da pálida madrépora.

            Sem dúvida, muitas vezes, à passagem das belas moças, fizera a mim mesmo a promessa de revê-las. De hábito, elas não reapareciam; além disso, a memória, que depressa esquece a sua existência, dificilmente reencontraria os seus vestígios; nossos olhos talvez não as reconheçam, e já veremos passar novas moças que tampouco voltaremos a ver. Mas outras vezes, e assim devia acontecer no caso do pequeno grupo insolente, o acaso as traz com insistência para diante de nós. Este então nos parece belo, pois nele percebemos uma espécie de princípio de organização, de esforço para compor a nossa vida; e nos torna fácil, inevitável às vezes, após interrupções que poderiam fazer crer que deixaríamos de lembrança cruel, a fidelidade das imagens a cuja posse acreditaremos mais tarde ter predestinados, e que, sem ele, poderíamos, logo no começo, esquecer tão fatalmente como tantas outras.

            Em breve a licença de Saint-Loup chegou ao fim. Eu não pudera esquecer aquelas moças na praia. Saint-Loup passava muito pouco tempo à tarde em Balbec para poder se ocupar delas e tentar conhecê-las por minha causa. A noite estava mais livre e continuava a me levar com freqüência a Rivebelle. Nesses restaurante como nos jardins públicos ou nos trens, há pessoas fechadas numa aparência comum e cujo nome nos assombra se, tendo-o perguntado por acaso, descemos que são não o inofensivo pobre diabo que supúnhamos, mas nada menor do que ministro ou o duque de quem muitas vezes ouvíramos falar. Já duas ou três vezes no restaurante de Rivebelle, Saint-Loup e eu tínhamos visto sentar a uma mesa, quando todo mundo começava a retirar-se, um homem de elevada estatura, bastante musculoso, de traços regulares, barba que principiava a embranquecer, mas com olhar sonhador permanecia fixo com determinação no vazio. Uma noite em que perguntamos ao proprietário quem era aquele freguês obscuro, isolado e retardatário:

            - Como? Não conhecem o célebre pintor Elstir? - indagou ele.

            Swann pronunciara esse nome uma vez diante de mim, e absolutamente eu não me lembrava a propósito de quê; porém a omissão de uma lembrança, como a de um membro da frase numa leitura, beneficia às vezes não a incerteza mas a eclosão de uma certeza prematura.    -É um amigo de Swann e um artista muito conhecido, de grande valor. - disse eu a Saint-Loup. E logo passou por nós dois, como um frêmito, a idéia de que Elstir era um grande artista, um homem célebre, e depois que, confundindo-nos com os outros fregueses, não desconfiava da exaltação em que nos lançara a qualidade de seu talento. Sem dúvida, o fato de que ignorava a nossa admiração e de conhecermos Swann não nos teria sido penoso se não estivéssemos igualmente nos banhos de Balbec. Mas, presos numa idade em que o entusiasmo não pode ficar silencioso e contidos numa vida em que o incógnito parece sufocante, escrevemos uma carta assinada com nossos nomes, em que revelávamos a Elstir, nos dois fregueses sentados a alguns passos dele, dois amadores apaixonados pelo seu talento, dois amigos de seu grande amigo Swann, e na qual pedíamos para apresentar nossas homenagens. Um garçom se encarregou de levar essa carta ao homem célebre.

            Célebre, Elstir talvez ainda não o fosse naquele tempo tanto quanto e pretendia o proprietário do restaurante, e como, aliás, o foi pouquíssimos anos depois. Mas fora dos primeiros a morar naquele estabelecimento, enquanto esta não passava de uma espécie de granja, e a levar para ali uma colônia de artistas (que, afinal, haviam todos emigrado para outras bandas desde que a granja, em que se comia ao ar livre, debaixo de um simples alpendre, se transformara num centro elegante; o próprio Elstir só voltava naquele momento a Rivebelle por causa de uma ausência da esposa, com quem morava não longe dali). Mas um grande talento, mesmo quando ainda não é reconhecido, provoca necessariamente alguns fenômenos de admiração, e tais que o proprietário da granja fora mesmo levado a distingui-los nas perguntas de mais de uma inglesa de passagem, devido a informações sobre a vida que levava Elstir, ou pelo número de cartas que este recebia do estrangeiro. Então, notara igualmente que Elstir não gostava de ser incomodado enquanto estava trabalhando, que se levantava de noite para levar um pequeno modelo a posar nu à beira-mar, quando brilhava a lua, e dissera consigo que tantas canseiras não eram perdidas, nem injustificada a admiração dos turistas, quando reconhecera num quadro de Elstir uma cruz de madeira que estava plantada à entrada de Rivebelle.

            -É ela, sem tirar nem pôr-repetia estupefato.-Tem os quatro braços! Ah, mas também ele trabalha tanto!

            E desconfiava que um pequeno "nascer do sol sobre o mar", que Elstir lhe dera, valesse mesmo uma fortuna. Nós o vimos ler nossa carta, pô-la no bolso, continuar a jantar, começar a pedir seus apetrechos, levantar-se para sair, e estávamos tão certos de tê-lo chocado com nosso pedido, que agora teríamos desejado (tanto quanto o receáramos) partir sem ser percebidos por ele. Nem um só instante pensamos numa coisa que no entanto deveria nos parecer a mais importante, ou seja, que o nosso entusiasmo por Elstir, de cuja sinceridade não teríamos permitido fosse posta em dúvida e de que poderíamos, com efeito, dar como testemunho a nossa respiração entrecortada pela espera, o nosso desejo de fazer qualquer coisa difícil ou heróica pelo grande homem, não era, como imaginávamos, admiração, já que nunca havíamos visto nada de sua autoria; nosso sentimento podia ter por objeto a idéia vazia de "um grande artista" e não uma obra que nos era ignorada. Quando muito, era admiração no vazio, o quadro nervoso, a estrutura sentimental de uma admiração sem conteúdo, isto é, algo tão indissoluvelmente ligado à infância como certos órgãos que não existem mais no homem adulto; ainda éramos crianças. Entretanto, Elstir já ia chegando à porta quando, de repente, deu meia-volta e veio até nós. Sentia-me transportado de um delicioso pavor como não poderia suportar alguns anos mais tarde, pois que, ao mesmo tempo que a idade diminui nossa capacidade, o costume da vida social nos tira toda idéia de provocar tão estranhas oportunidades, de sentir esse tipo de emoções.

            Dentre as poucas palavras que Elstir nos disse ao sentar-se à nossa mesa, nunca me respondeu nas várias vezes em que lhe falei de Swann. Comecei a acreditar que não o conhecia. Nem por isso deixou de me pedir que o visitasse no seu ateliê de Balbec, convite que não dirigiu a Saint-Loup, e que fiquei devendo, o que talvez não tivesse ocorrido quanto à recomendação de Swann se Elstir lhe fosse ligado (pois a parte dos sentimentos desinteressados é maior do que se julga na vida dos homens), a algumas palavras que o fizeram imaginar que eu amava artes. Prodigalizou-me uma amabilidade que era tão superior à de Saint-Loup como esta à afabilidade de um pequeno-burguês. Ao lado da de um artista, a amabilidade de um grão-senhor, por mais encantadora que seja, dá a impressão de um desempenho de ator, de uma simulação. Saint-Loup buscava agradar; Elstir gostava de dar, de se doar. Tudo o que possuía, idéias, obras, e o restante, a que atribuía muito menos valor, teria dado com alegria a alguém que o tivesse compreendido. Mas, falta de uma sociedade suportável, vivia no isolamento, com uma selvageria que as pessoas da sociedade denominavam pose e má educação, os poderes públicos; falta de espírito de cooperação, seus vizinhos loucura, e sua família, egoísmo e orgulho. E, sem dúvida, nos primeiros tempos havia pensado com prazer, mesmo na solidão, que, através de suas obras, dirigia-se à distância, dava uma idéia mais alta de si mesmo àqueles que o tinham desconhecido ou magoado. Talvez então vivesse a sós, não por indiferença mas por amor aos outros e, como eu renunciara a Gilberte para um dia reaparecer a seus olhos sob cores mais amáveis, destinava sua obra a alguns, como um retorno a eles, onde, sem que o revissem, o amariam, o admirariam, falariam dele; uma renúncia nem sempre é total desde o começo, quando nos decidimos por ela com a nossa alma antiga e antes que, em reação; tenha agido sobre nós, quer se trate da renúncia de um enfermo, de um monge, de um artista ou de um herói. Mas, se desejara produzir em função de algumas pessoas, ao produzir vivera para si mesmo, longe da sociedade à qual se tornara indiferente; a prática da solidão lhe conferira o amor a ela, como ocorre com toda grande coisa que no princípio receamos, porque a sabíamos incompatível com as coisas menores a que nos apegávamos e das quais ela menos nos priva do que desliga. Antes de conhecê-la, toda nossa preocupação é de saber em que medida poderemos conciliá-la com certos prazeres que deixam de sê-lo desde que a conheçamos.

            Elstir não ficou muito tempo conversando conosco. Eu me prometia ir a seu ateliê nos dois ou três dias seguintes, mas, no dia seguinte àquela noite, como tivesse acompanhado minha avó até a extremidade do molhe, na direção das falésias de Canapville, na volta, à esquina de uma das ruelas que desembocam, perpendicularmente, na praia, cruzamos com uma jovem que, de cabeça baixa como um animal que fizessem a contragosto entrar no estábulo, e segurando tacos de golfe, caminhava adiante de uma pessoa autoritária, provavelmente a sua "inglesá', ou aquela de suas amigas que se parecia com o retrato de Jeffries por Hogarth, ou vermelho como se sua bebida predileta fosse o gim em vez do chá, e prolongada em pontas torcidas e cheias de tabaco um bigode grisalho porém espesso. A menina que a precedia parecia-se com a do pequeno grupo que, sob um boné, mostrava olhos risonhos num rosto imóvel e gorducho. Ora, essa que retornava naquele momento tinha também um boné preto, mas me pareceu ainda mais bonita que a outra, a linha de seu nariz era mais reta e na base a asa era maior e mais carnuda.

            Depois, a outra me aparecera como uma orgulhosa moça pálida, e esta como uma criança submissa e de pele rosada. No entanto, como empurrava uma bicicleta semelhante e usasse as mesmas luvas de rena, concluí que as diferenças deviam-se talvez à maneira como eu estava colocado e às circunstâncias, pois era pouco provável que houvesse em Balbec uma outra moça de rosto apesar de tudo tão semelhante e que, no seu vestido singular, reunisse as mesmas particularidades. Ela lançou um rápido olhar na minha direção; nos dias seguintes, quando revi o pequeno grupo na praia, e até mais tarde, quando conheci todas as moças que o formavam, nunca tive certeza absoluta que alguma delas, mesmo aquela que, de todas, mais se lhe parecia a moça de bicicleta - fosse exatamente aquela que eu vira nessa noite no extremo da praia, na esquina da rua, moça que não era muito, mas afinal era um pouco, diversa da que eu observara no cortejo.

            A partir daquela tarde, eu, que nos dias anteriores havia pensado principalmente na maior delas, foi a dos tacos de golfe, presumível Srta. Simonet, que recomeçou a me preocupar. No meio das outras, ela muitas vezes parava, forçando as amigas, que pareciam respeitá-la muito, a também interromper a caminhada. É assim, fazendo alto, os olhos brilhantes sob o seu boné preto, que a revejo ainda agora, silhuetada contra a tela que o mar lhe faz, ao fundo, e separada de mim por um espaço transparente e azulado - o tempo transcorrido desde então-, primeira imagem, bem pequenina na minha memória, desejada, perseguida, depois esquecida, depois reencontrada, de um rosto que desde então com freqüência projetei no passado para poder dizer comigo acerca de uma moça que estava em meu quarto:

            "É ela!"

            Porém, era talvez ainda a de pele de gerânio e olhos verdes a que mais desejaria conhecer. Aliás, fosse qual fosse a que preferia avistar num determinado dia, as outras, sem ela, bastavam para excitar-me; meu desejo, mesmo se inclinando ora por uma, ora por outra, continuava - como a minha visão confusa do primeiro dia a reuni-las, a fazer delas o pequeno mundo à parte, animado de uma vida comum, que de resto elas sem dúvida tinham a pretensão de constituir; tornando-me amigo de uma delas, teria penetrado como um pagão requintado ou um cristão escrupuloso entre os bárbaros em uma sociedade rejuvenescedora onde reinavam a saúde, a inconsciência, a volúpia, a crueldade, a falta de intelectualidade e a alegria.

            Minha avó, a quem havia contado minha conversa com Elstir e que se alegrava com todo lucro intelectual que eu pudesse extrair de sua amizade, achava absurdo e pouco amável que eu ainda não tivesse ido lhe fazer uma visita. Mas eu só pensava no pequeno grupo e, incerto quanto à hora em que as moças passariam pelo molhe, não ousava afastar-me. Minha avó também se espantava com a minha elegância, pois eu me lembrara de repente de roupas que até então deixara no fundo da mala. Todo dia punha uma roupa diferente e chegara a escrever a Paris para que me enviassem novos chapéus e gravatas. É um grande encanto que se acrescenta à vida numa estância balneária como Balbec, que o rosto de uma linda moça, uma vendedora de conchinhas, de doces, ou de flores, pintada em cores vivas no nosso pensamento, seja diariamente para nós, desde a manhã, a finalidade de cada um desses dias ociosos e brilhante á que a gente passa na praia. São então, e por isso mesmo, embora desocupados-alertas como dias de trabalho, espicaçados, imantados, levemente tendentes a um momento próximo, aquele em que, sempre comprando sablés, rosas, amonitàs nos deleitaremos em ver, num rosto feminino, as cores expostas tão puramente como numa flor. Mas pelo menos pode-se primeiro falar com essas pequena vendedoras, o que evita construir com a imaginação as outras facetas diversas que nos fornece a simples percepção visual, e recriar-lhes a vida, exagerar o seu encanto, como diante de um retrato; principalmente, justo porque lhes falamos; podemos ficar sabendo onde e a que horas voltara encontrá-las. Ora, não acontecia absolutamente o mesmo comigo no que se referia às moças do pequeno grupo; visto que seus hábitos me eram desconhecidos, quando não as via em certos dias ignorando o motivo de sua ausência, procurava descobrir se se tratava de algo fixo, se só eram vistas de dois em dois dias, ou quando fazia determinado tempo, ou se havia dias em que nunca apareciam. Imaginava-me previamente amigo dela dizendo-lhes:

            "Mas não estavam aqui em tal dia? -Ah, sim, é porque era sábados nós nunca vimos no sábado porque..."

            Ainda se fosse tão simples saber que no triste sábado era inútil insistir, que se poderia percorrer a praia em todos os sentidos, sentar-se à frente da confeitaria, fingir comer um doce, entrar na loja de curiosidades, esperar a hora de tomar banho, de ir ao concerto, a chegada da maré, sentir o pôr-do-sol, a noite, sem ver o pequeno grupo desejado. Mas o dia fatal talvez não voltasse uma vez por semana. Pode ser que não caísse forçosamente num sábado. Talvez certas condições atmosféricas influíssem nele, ou talvez lhe fossem inteiramente alheias. Quantas observações pacientes, mas não tranqüilas, é necessário recolher sobre os movimentos aparentemente irregulares desses mundos desconhecidos antes que possamos estar seguros que não nos deixamos levar por coincidências, que nossas previsões não serão traídas, antes de deduzirmos as leis corretas, adquiridas ao custo de cruéis experiências, dessa astronomia apaixonado. Lembrando-me que não as vira no mesmo dia da semana que hoje, dizia comigo que elas não viriam, que era inútil ficar na praia. E justamente as avistava. Era a compensação, um dia que, assim como pudera supor que havia leis regulando retorno dessas constelações, calculara ser um dia nefasto, elas não apareciam. Mesmo essa primeira incerteza, se as veria ou não no mesmo dia, vinha acrescentar-se outra, mais grave, a de que jamais voltasse a vê-las, pois afinal ignorava se deveriam partir para a América ou voltar a Paris. Isto era suficiente para me fazer com que arriá-las. Podemos ter inclinação por uma pessoa. Mas, para desencadear essa tristeza, esse sentimento do irreparável, essas angústias que preparam o amor, é necessário-e é talvez isto, e não uma pessoa, o próprio objeto que a paixão deseja ansiosamente estreitar o risco de uma impossibilidade. Assim já iam atuando essas influências que se repetem no decurso de amores sucessivos (podendo, aliás, se produzir, mas então de preferência na vida das grandes cidades, a respeito de operárias das quais não sabemos o dia de folga e nos assustamos ao não vê-las à saída do trabalho), ou, pelo menos, que se renovaram no transcurso dos meus. Talvez sejam inseparáveis do amor; talvez tudo o que formou uma particularidade do primeiro venha ajuntar-se aos seguintes por lembrança, sugestão, hábito e, através dos períodos sucessivos de nossa vida, dar a seus diferentes aspectos um caráter geral.

            Eu usava de todos os pretextos para ir à praia às horas em que esperava poder encontrá-las. Tendo-as avistado uma vez durante o nosso almoço, só chegava atrasado à mesa, esperando indefinidamente no molhe que elas passassem; ficando o pouco de tempo em que estava sentado na sala de jantar a interrogar com os olhos o azul da vidraça; levantando-me bem antes da sobremesa para não perdê-las, caso estivessem passeando em outra hora e irritando-me com minha avó, inconscientemente má, quando ela me fazia ficar em sua companhia além da hora que me parecia favorável. Tentava prolongar o horizonte, colocando transversalmente a minha cadeira; se por acaso avistava qualquer uma das moças, como participavam todas da mesma essência especial, era como se tivesse visto, projetado à minha frente numa alucinação diabólica e móvel, um pouco do sonho inimigo e, no entanto, passionalmente cobiçado que ainda um momento antes só existia em meu cérebro, aliás ali estagnando de modo permanente.

            Não amava a nenhuma delas, amando-as todas; entretanto, o seu possível encontro era, para os meus dias, o único elemento delicioso, e sozinho fazia nascer em mim essas esperanças onde se dobrariam todos os obstáculos, esperanças muitas vezes seguidas de raiva, quando não as via. Neste momento, essas moças eclipsavam a minha avó; uma viagem teria me sorrido se fosse para ir a um lugar onde elas se achassem. Era a elas que meu pensamento agradavelmente se prendia quando julgava pensar em outra coisa, ou em nada. Mas, quando pensava nelas, mesmo sem o saber, mais inconscientemente ainda, dava-se que eram, para mim, as ondulações montanhosas e azuis do mar, o perfil de um desfiladeiro em frente ao mar. Era o mar o que eu esperava encontrar, se fosse a uma cidade onde elas estivessem. O amor mais exclusivo por uma pessoa é sempre o amor de outra coisa.

            Porque agora eu me interessava demais pelo golfe e pelo tênis, deixando fugir a ocasião de ver trabalhar e ouvir falar um artista que ela sabia ser dos maiores, minha avó me testemunhava um desprezo que me parecia provir de uma visão um pouco estreita das coisas. Antigamente eu havia entrevisto nos Champs-Élysées melhor o verificaria desde então, que, ao nos apaixonarmos por uma mulher, simplesmente projetamos nela um estado de nossa alma; que, por conseguinte importante não é o valor da mulher mas a profundeza desse estado; e que as emoções que uma moça medíocre nos proporciona podem fazer com que subam à consciência as partes mais íntimas de nós mesmos, as mais pessoais, mais longínquas, mais essenciais, o que não faria o prazer que nos dá a convergição de um homem superior ou até a contemplação admirativa de suas obras.

            Acabei por obedecer à minha avó, com tanto mais aborrecimento já que Elstir morava muito longe do molhe, numa das mais novas avenidas de Balbec. O calor do dia obrigou-me a pegar o bonde que passava pela Rua da Praia, e me esforcei para pensar que estava no antigo reino dos cimérios, talvez na terra dominadas por Marcos ou no lugar em que houve a floresta da Brocelianda, em não olhar só luxo grosseiro das construções que se desenvolviam à minha frente e entre as quais vivenda de Elstir era talvez a mais suntuosamente feia, e apesar disso alugada por ele porque, de todas as que existiam em Balbec, era a única que poderia lhe oferecer um amplo ateliê. Foi assim, desviando os olhos, que atravessei o jardim, que tinha relvado-como uma miniatura de qualquer residência burguesa nas vizinhanças de Paris-, uma pequena estatueta de galante jardineiro, bolas de vidro onde a gente se olhava, cercaduras de begônias e um pequeno caramanchão sob o qual alongavam-se cadeiras de balanço diante de uma mesa de ferro. Mas, depois de todos esses sinais de feiúra citadina, não mais prestei atenção às molduras cor de chocolate dos plintos quando estava no ateliê; senti-me absolutamente feliz, por todos os estudos que me rodeavam, imaginava a possibilidade de me darem um conhecimento poético, fecundo em alegrias, de muitas formas que até então não havia isolado do espetáculo geral da realidade. E o ateliê de Elstir me surgiu como um laboratório de uma espécie de nova criação do mundo, onde, do caos que são todas as coisas que vemos, ele havia tirado, pintando-os sobre vários retângulos de tela que estavam colocados em todos os sentidos, aqui uma onda do mar arrebentando colérica de encontro à areia com sua espuma lilás, ali um jovem de terno de brim branco, apoiado no convés de um barco. O casaco do jovem e a onda espumejante tinha adquirido uma dignidade nova pelo fato de que continuava a existir, ainda que desprovidos daquilo que aparentemente os constituía, visto onda já não podia molhar, nem o casaco vestir pessoa alguma.

            No momento em que entrei, o criador estava a ponto de terminar, com pincel que tinha na mão, a forma do sol poente. Os estores se achavam descidos de quase todos os lados, o ateliê era bem refrescado e obscuro, salvo num ponto em que a claridade do dia colava à parede sua decoração deslumbrante e efêmera. Só estava aberta uma pequena janela retangular enquadrada de madressilvas que, depois de um pedaço do jardim, dava para uma avenida; de modo que a atmosfera da maior parte do ateliê estava sombria, transparente e compacta na sua massa, mais úmida e brilhante nas fraturas onde a luz lhe colocava engastes, como um bloco de cristal de rocha, uma de cujas faces, já talhada e polida, aqui e ali, reluz e se irisa como um espelho.   Enquanto Elstir, a meu pedido, continuava a pintar, eu circulava por esse claro-escuro, parando diante de um quadro e depois diante de outro. A maioria dos que me rodeavam não eram dos que mais desejaria ver de Elstir; eram pinturas pertencentes às suas duas primeiras formas, como dizia uma revista inglesa de arte atirada na mesa do salão do Grande Hotel, a maneira mitológica e aquela em que ele sofrera a influência do Japão, ambas admiravelmente representadas, segundo se dizia, na coleção da Sra. de Guermantes. Naturalmente, o que havia no seu ateliê eram só marinhas pintadas aqui em Balbec. Mas eu podia distinguir que o encanto de cada uma delas consistia numa espécie de metamorfose das coisas representadas, fenômeno análogo ao que em poesia se denomina metáfora e que, se Deus Pai havia criado as coisas nomeando-as, era tirando-lhes os nomes ou dando-lhes outros que Elstir as recriava. Os nomes que designam as coisas correspondem sempre a uma noção da inteligência, estranha às nossas impressões verdadeiras e que nos obriga a eliminar delas tudo o que não se refira a essa noção.

            Às vezes, da minha janela, no hotel de Balbec, de manhã, quando Françoise abria as cortinas que ocultavam a luz de tarde, quando eu esperava o momento de partir com Saint-Loup, ocorrera-me, graças a um efeito de sol, tomar uma parte mais sombria do mar por uma costa afastada, ou olhar com alegria uma região azul e fluida sem saber se pertencia ao céu ou ao mar. Bem depressa a minha inteligência restabelecia, entre os elementos, a separação que minha impressão abolira. Era assim que me acontecia em Paris, no meu quarto, ouvir uma discussão, quase um motim, até que tivesse transferido à sua causa, por exemplo um carro cujo rodar se aproximava, esse barulho do qual então eliminava essas vociferações agudas e discordantes que meu ouvido de fato percebera, mas que minha inteligência sabia que as rodas não produzem. Mas os raros momentos em que se vê a natureza tal como é, poeticamente, era desses momentos que se compunha a obra de Elstir. Uma de suas metáforas mais freqüentes nas marinhas que tinha ali naquele momento era justamente aquela que, comparando a terra ao mar, suprimia toda demarcação entre eles. Era esta comparação, tácita e infatigavelmente repetida numa mesma tela, que aí introduzia essa unidade poderosa e multiforme, causa, às vezes não percebida claramente por eles, do entusiasmo que excitava em certos amadores a pintura de Elstir.

            Era, por exemplo, para uma metáfora deste gênero num quadro que retratava o porto de Carquethuit, quadro que terminara há poucos dias e que contemplei longamente que Elstir preparara o espírito do espectador, só utilizava para o lugarejo termos marinhos, e vocábulos urbanos para o mar. Fosse porque casas escondessem uma parte do porto ou uma doca de calafetagem ou talvez o próprio mar, abrindo-se em golfo nas terras como acontecia constantemente na região de Balbec, do outro lado da ponte avançada onde se erguia a cidadezinha com telhados que eram ultrapassados (como se o fossem por chaminés ou acompanhados por mastros, os quais pareciam fazer, dos barcos a que pertenciam, algo construído em terra, impressão que era aumentada por outros barcos, afundados ao longo do cais, mas em fileiras tão apertadas que os homens ali corseavam de um para o outro sem que se pudesse distinguir sua separação e o interstício da água, e assim, aquela flotilha de pesqueiros dava menos idéia de pertencer ao mar que, por exemplo, as igrejas de Criquebec, as quais, ao longe, cercadas por todos os lados, por serem vistas sem a cidade, numa pulverização de sol; casas vagas, pareciam sair do mar, feitas de espuma ou de alabastro e, fechadas na ode um arco-íris fruta-cor, formar um quadro místico e irreal. No primeiro plano da praia, o pintor soubera acostumar os olhos a não reconhecerem fronteiras: - demarcações absolutas, entre a terra e o oceano. Homens que empurravam barcaça para o mar corriam tanto nas ondas como sobre a areia, que, molhada, já refletiam cascos como se fosse água. O próprio mar não subia com regularidade, mas seguia os acidentes da costa, que a perspectiva ainda mais recortava, de maneira que um navio em alto-mar, meio oculto pelas obras avançadas do arsenal, parecia vagar no meio da cidade; mulheres que apanhavam mariscos nas rochas pareciam, pontos por se verem cercadas de água e devido à depressão que, após a barreira circular das rochas, abaixava o nível da praia (dos dois lados mais próximos das terras) o mar, estar numa gruta marinha coberta de barcos e ondas, aberta e protegida no meio das vagas miraculosamente afastadas. Se o quadro todo proporcionava - impressão de portos onde o mar entra terra a dentro, onde a terra já é marinha população anfíbia, a força do elemento marinho surgia de todas as partes; e - dos rochedos, à entrada do molhe, onde o mar estava agitado, sentia-se os esforços dos marinheiros e pela obliqüidade dos barcos inclinados em agudo diante da tranqüila verticalidade do entreposto, da igreja e das casas do lugar, aonde uns voltavam, de onde outros saíam para a pesca, que trotavam somente n'água como sobre um animal fogoso e veloz, cujos sobressaltos, na sua habilidade, os teriam jogado em terra. Um grupo saía alegremente a num barco sacolejante como uma carriola; um marinheiro alegre, mas atento, governava-o como se estivesse com rédeas, dirigindo a vela fogosa; um se mantinha bem no seu lugar para não fazer peso demais de um lado e virar; e assim corriam pelos campos ensolarados, nos locais despenhando-se pelas ladeiras. Era uma bela manhã apesar da tempestade que ocorrera. E até sentiam-se ainda as ações potentes que tinham neutralizá-las pelo equilíbrio dos barcos imóveis, desfrutando do sol e do frescor, nas partes em que o mar estava tão calmo que os reflexos quase mostravam mais solidez e realidade que os cascos vaporizados por um efeito de sol, e que a perspectiva confundia uns com os outros. Ou antes, não se deveria dizer outras partes do mar. Pois entre essas partes havia tanta diferença como entre uma delas e a igreja que saía das águas, e os barcos por detrás da cidadezinha. A inteligência fazia a seguir um só elemento daquilo que era, aqui negro devido à tempestade, mais longe de uma cor única com o céu e tão lustroso como ele, e acolá tão branco de sol, de névoa e de espuma, tão compacto, tão terreno, tão circundado de casas, que se poderia pensar num calçamento de pedras ou num campo de neve, sobre o qual a gente se assombrava ao ver um navio erguer-se em subida vertical, e a seco, como um carro a resfolegar ao sair de um vau, mas que, após um momento, vendo barcos vacilantes sobre a extensão alta e desigual do platô sólido, se compreendia ser ainda o mar, idêntico em todos esses aspectos diferentes.

            Ainda que se diga, com razão, que não há progresso nem descobertas na arte, mas unicamente nas ciências, e que cada artista recomeçando por conta própria um esforço individual não pode ser ajudado nem estorvado pelos esforços alheios, é preciso no entanto reconhecer que, na medida em que a arte põe em relevo certas leis, uma vez que uma indústria as vulgarizou, a arte anterior perde, retrospectivamente, um pouco de sua originalidade. Desde os tempos em que Elstir se iniciou na pintura, temos conhecido o que se denomina "admiráveis" fotografias de paisagens e cidades. Se procuramos precisar o que os amadores designam nesse caso por este epíteto, veremos que ele se aplica em geral a uma imagem singular de coisa conhecida, imagem diversa das que temos o costume de ver, singular e entretanto verdadeira, e que por esse motivo é para nós duplamente surpreendente porque nos assombra, faz que saiamos de nossos hábitos e, ao mesmo tempo, faz-nos entrar em nós mesmos ao nos recordar uma impressão. Por exemplo, determinada dessas fotografias "magníficas" ilustrará uma lei da perspectiva, nos mostrará uma certa catedral que temos o costume de ver em plena cidade, pregada, ao contrário, de um ponto escolhido de onde dará a impressão de ser trinta vezes mais alta que as casas e formando quebra-mar à beira do rio do qual na verdade está bem distante. Ora, os esforços de Elstir para não expor as coisas tais como sabia que eram, mas segundo essas ilusões de ótica de

que a nossa primeira vista é composta, o haviam conduzido precisamente a realçar algumas destas leis de perspectiva, então mais espantosas, pois a arte era a primeira a revelá-las. Um rio, devido à sinuosidade de seu curso, um golfo, por causa da aparente proximidade dos barrancos, tinham o aspecto de escavar, no meio da planície ou das montanhas, um lago absolutamente fechado de todos os lados. Num quadro feito em Balbec durante um tórrido dia de verão, uma reentrância do mar parecia, encerrada em paredes de granito cor-de-rosa, não ser o mar, o qual principiava mais ao longe. A continuidade do oceano só era sugerida pelas gaivotas que, revoluteando sobre o que ao espectador parecia pedra, ao contrário aspiravam a umidade da onda. Outras leis se desprendiam da mesma tela como, no sopé das imensas falésias, a graça liliputiana das velas brancas sobre o espelho azul onde elas pareciam borboletas adormecidas, e certos contrastes entre a profundeza das sombras e o calor da luz. Estes jogos de sombra, também banalizados pela fotografia, haviam despertado o interesse de Elstir, a tal ponto que antigamente ele sé comprazera em pintar verdadeiras miragens, onde um castelo ornado de uma torre surgia como um castelo inteiramente circular, prolongado no alto por uma torre-e embaixo, por uma torre invertida, ou porque a pureza extraordinária de um bom tempo desse à sombra que se refletia na água a dureza e o brilho da pedra, ou porque as brumas da manhã fizessem a pedra tão vaporosa como a sombra. Da mesma forma, para lá do mar, atrás de uma fila de árvores, um outro mar principiava, rosado pelo pôr-do-sol, e que era o céu. A luz, como que inventando novos sólidos, impelia o casco do barco onde incidia, em detrimento da parte que permanecia na sombra, e arrumava, como se fossem degraus de uma escadaria de cristal a superfície, materialmente plana, mas partida pela iluminação do mar da manhã. Um rio que corre por sob as pontes de uma cidade fora apanhado de um tal ponto de vista que parecia totalmente deslocado, aqui desdobrando-se num lago, adelgaçando-se ali num filete de água, mais adiante interrompido pela interposição, de uma colina coroada de árvores, onde à noitinha a gente da cidade vai espairecer e o próprio ritmo dessa cidade transtornada só era assegurado pela vertical inflexível dos campanários que não subiam, ou antes, conforme o peso do fio de prumo marcando a cadência como numa marcha triunfal, pareciam conter em suspenso, acima deles toda a massa mais confusa das casas sobrepostas na névoa, ao longo do rio esmagado e desfeito.

            E (como as primeiras obras de Elstir datavam da época em que se enfeitavam as paisagens com a presença de um personagem), sobre falésia ou na montanha, a estrada, essa porção meio humana da natureza, sofrida como o rio ou o oceano, os eclipses da perspectiva. E, se uma aresta montanhosa, ou a bruma de uma cascata, ou o mar impedissem a continuidade do caminho visível para o passeante mas não para nós, o minúsculo personagem humano, com roupa fora de moda, perdido naquelas solidões, parecia muitas vezes estar diante de um abismo, ali terminando a trilha que seguia, ao passo que, treze - metros acima, naqueles bosques de pinheiros, víamos emocionados e de coração tranqüilizado reaparecer a delgada brancura da areia hospitaleira aos passos de viajante, daquela estrada cujas curvas intermediárias, que contornavam a casca ou o golfo, nos tinham sido ocultas pela vertente da montanha.

            O esforço que Elstir fazia para, em presença da realidade, se despojar de todas as noções da inteligência era tanto mais admirável porque este homem antes de pintar se fazia ignorante, esquecia tudo por probidade, pois a que sabemos não é da gente-era dotado de uma inteligência excepcionalmente cultivada. Como lhe confessasse a decepção que sentira diante da igreja de Balbec:

            - Como disse-me, ficou decepcionado com aquele pórtico? Mas é a mais linda Bíblia historiada que o povo já pôde ler. Aquela Virgem e todos os baixos-relevos que contam a sua vida são a expressão mais terna, mais inspirada desse longo poema de adoração e louvores que a Idade Média foi desenvolvendo à glória da Madona. Se soubessem, ao lado da exatidão mais minuciosa em traduzir o texto santo, quantos achados de delicadeza teve o velho escultor, quantos pensamentos profundos, quanta poesia deliciosa!

            A idéia daquele grande véu no qual os anjos levam o corpo da Virgem, sagrado demais para que ousem tocá-lo diretamente (disse-lhe que o mesmo assunto era tratado na igreja de Saint-André-des-Champs; ele havia visto fotografias do pórtico desta última igreja, mas me fez notar que o empenho desses pequenos camponeses que rodeiam ao mesmo tempo a Virgem era coisa diversa da gravidade dos dois grandes anjos quase italianos, tão esguios e benignos, da igreja de Balbec); o anjo que conduz a alma da Virgem para reuni-la a seu corpo; no encontro da Virgem com Santa Isabel, o gesto desta última que toca o seio de Maria e se maravilha ao senti-lo cheio; e o braço esticado da parteira que não queria crer, sem tocar, na Imaculada Conceição; e o cinto lançado pela Virgem a São Tomás para lhe dar uma prova de sua ressurreição; e também esse véu que a Virgem arranca do seio para cobrir a nudez do filho de um lado em que a Igreja recolhe o sangue, o licor da Eucaristia, enquanto, do outro, a Sinagoga, cujo reinado é findo, tem os olhos vendados, segura um cetro partido ao meio e deixa escapar, com a coroa que lhe cai da cabeça, as tábuas da antiga Lei; e o marido que, na hora do Juízo Final, ajudando a jovem esposa a sair do túmulo, lhe apóia a mão contra seu próprio coração para sossegá-la e lhe provar que combate de verdade, será que isso é uma idéia tola ou um lugar-comum? E o anjo que leva o sol e a lua, tornados inúteis, visto que está dito que a Luz do Cruzeiro será sete vezes mais intensa que a dos astros; e aquele que mergulha a mão na água do banho de Jesus para ver se está bem quente; e aquele que sai das nuvens para pousar sua coroa na fronte da virgem; e todos os que, debruçados do alto dos céus entre os balaustres da Jerusalém celeste, erguem os braços de pavor e alegria diante dos suplícios dos malvados e da ventura dos eleitos! Pois são todos os círculos do céu, todo um gigantesco poema teológico e simbólico que o senhor tem ali. É louco, é divino, é mil vezes superior a tudo aquilo que verá na Itália, onde aliás esse tímpano foi literalmente copiado por escultores de muito menor talento. Porque, compreenda, é tudo uma questão de talento. Não houve época em que todo mundo tivesse talento, isso é pura conversa... Seria mais forte que a Idade de Ouro. O sujeito que esculpiu aquela fachada, acredite que era tão forte e tinha idéias tão profundas como as pessoas de hoje a quem o senhor mais admira. Eu lhe mostraria tudo isso, caso fôssemos lá juntos. Há certas palavras do ofício da Assunção que foram traduzidas com uma sutileza que um Odilon Redon não igualou.

            Essa ampla visão celestial de que ele me falava, esse gigantesco poeta teológico que eu compreendia ter sido escrito ali, não foi isso, no entanto, que meus olhos cheios de desejos viram, ao abrirem-se diante daquela fachada. Eu lhe falava daquelas grandes estátuas de santos que, erguidas em muletas, formavas uma espécie de avenida.

            - Ela parte do fundo das idades para dar em Jesus Cristo - disse-me Elstir, - São, por um lado, seus ancestrais segundo o espírito; por outro, os reis dos Judeus, seus ancestrais segundo a carne. Todos os séculos estão ali. E, se o senhor tivesse olhado melhor o que lhe pareceu serem muletas, teria podido denominar os que se achavam erguidos. Pois, sob os pés de Moisés, teria percebido o bezerro de ouro; sob os pés de Abraão o carneiro, sob os de José o demônio aconselhando a mulher de Putifar.

            Disse-lhe também que esperara encontrar um monumento quase persa que isto fora sem dúvida uma das causas de minha decepção.

            - Mas há muito de verdade nisso-respondeu ele.-Certas partes são visivelmente orientais; um capitel reproduz tão exatamente um tema persa que a persistência das tradições orientais não basta para explica-la. O escultor deve ter copiado algum cofre trazido pelos navegadores.

            E de fato, ele deveria mais tarde me mostrar a fotografia de um capitel onde vi dragões meio chineses que se devoravam, mas em Balbec esse detalhe de escultura me passara despercebido no conjunto do monumento, que em nada se assemelhava ao que me haviam indicado estas palavras: "igreja persa".

            As alegrias intelectuais que desfrutei nesse ateliê não me impediram de forma alguma de sentir, embora nos envolvessem e contra a vontade nossa, as mornas transparências, a penumbra cintilante da peça, e, ao fundo da pequena janela enquadrada de madressilvas, na avenida bem rústica, a resistente secura da terra queimada de sol, velada exclusivamente pela transparência da distância e a sombra das árvores. Talvez o inconsciente bem-estar que me causava aquele dia, o verão viesse aumentar, como um afluente, a alegria provocada pela vista do "Por de Carquethuit".

            Julgara Elstir modesto, mas percebi que me enganara ao ver seu rosto Somatizar de tristeza quando, numa frase de agradecimento, pronunciei a palavra glória. Aqueles que crêem duráveis as suas obras e era esse o caso de Elstir, adquirem o hábito de situa-las numa época em que eles mesmos não serão mais que pó. E assim, obrigando-os a refletir a cerca do nada, a idéia da glória os entristece porque é inseparável da idéia da morte. Mudei de assunto para dissipar e nuvem de altiva melancolia com que eu, sem querer, velara a fronte de Elstir. Tinha me aconselhado -disse-lhe eu, pensando na conversa que tivéramos Legrandin em Combray e sobre a qual gostaria de ter a opinião de Elstir- que fosse à Bretanha, porque seria maléfico para um espírito já inclinado ao sonho.

            - Que nada! - respondeu ele. - Quando um espírito já é inclinado ao sonho, não se deve mantê-lo afastado dele, raciona-lo. Enquanto o senhor desviar o espírito dos sonhos, não saberá nada sobre eles; o senhor será o joguete de mil aparências porque não terá compreendido a sua natureza. Se um pouco de sonho é perigoso, o que há de cura-lo não será menos sonho e sim mais sonho, todo o sonho. É importante conhecer inteiramente os próprios sonhos para não mais sofrer com eles; há uma certa separação entre o sonho e a vida, tão freqüentemente útil de se fazer que me pergunto se não se deveria, haja o que houver, pratica-la preventivamente, como certos cirurgiões dizem que é necessário extirpar o apêndice de todas as crianças para evitar a possibilidade de uma futura apendicite.

            Elstir e eu tínhamos ido até o fundo do ateliê, diante da janela que dava, atrás do jardim, para uma estreita avenida transversal, quase um caminho rústico. Chegáramos até ali para respirar o ar fresco da tarde mais adiantada. Julgava-me bem distante das moças do pequeno grupo e, sacrificando de vez a esperança de vê-las, é que eu acabara por ceder aos rogos de minha avó e fora ver Elstir. Pois nunca se sabe onde está o que procuramos, e muitas vezes evitamos durante um longo período o lugar para o qual, por outros motivos, todos nos convidam. Mas não suspeitamos que ali veríamos justamente a criatura em que pensamos. Eu olhava de maneira vaga o caminho campestre que, exterior ao ateliê, passava bem junto dele mas não pertencia a Elstir. De súbito, apareceu ali, a passos rápidos, a jovem ciclista do pequeno grupo com a boina abaixada, sobre os cabelos pretos, para suas faces rechonchudas, seus olhos alegres e um pouco insistentes; e naquela senda afortunada, milagrosamente repleta de suaves promessas, eu a vi, debaixo das árvores, lançara Elstir um cumprimento sorridente de amiga, arco-íris que uniu, para mim, o nosso mundo terreno a regiões que até então julgara inacessíveis. Ela até se aproximou para estender a mão ao pintor, sem parar, e vi que tinha um sinalzinho no queixo.

            - Conhece esta moça? - perguntei a Elstir, compreendendo que ele me poderia apresenta-la, convida-la para entrar. E aquele ateliê tranqüilo, com seu horizonte rural, encheu-se de um delicioso acréscimo como ocorre com uma casa onde uma criança já brinca muito e onde além disso, fica sabendo que, pela generosidade que as belas coisas e as nobres pessoas têm em aumentar indefinidamente os seus dons, está sendo preparado para ela um magnífico lanche.    Elstir me disse que ela se chamava Albertine Simonet e deu-me também o nome de suas outras amigas, que lhe descrevi com exatidão suficiente para que ele não hesitasse. Eu cometera um erro no que tangia à sua posição social, mas não no mesmo sentido que de hábito em Balbec. Ali eu tomava facilmente por príncipes os filhos de donos de lojas que andavam a cavalo. Desta vez, situara num ambiente suspeito moças de uma pequena burguesia muito rica, do mundo industrial e dos negócios. Era o que, antes de tudo, menos me interessava, pois não tinha para mim o mistério nem do povo nem de uma sociedade como a dos Guermantes. E sem dúvida, se o brilhante vazio da vida de praia não lhes houvesse conferido um prestígio prévio a meus olhos deslumbrados, prestígio que não mais perderiam, talvez eu não chegasse a lutar vitoriosamente contra a idéia de que eram filhas de fortes negociantes. Pude apenas admirar como a burguesia francesa era um esplêndido ateliê da mais variada escultura. Quantos tipos imprevistos, quanta invenção nos caracteres das fisionomias, quanta decisão, quanto frescor, quanta simplicidade nos traços!

            Os velhos burgueses avaros de onde haviam brotado essas Dianas e ninfas me pareciam os maiores estatuários. Antes que tivesse tido tempo de me aperceber da metamorfose social dessas jovens, e de tal forma essas descobertas de um engano, essas modificações da noção que se tem de uma pessoa possuem a instantaneidade de uma reação química, já se instalara, por trás da aparência de um gênero tão vulgar daquelas moças que eu pensara serem amantes de ciclistas ou de campeões de boxe, a idéia de que elas podiam muito bem estar ligadas à família de algum tabelião nosso conhecido.

            Não sabia absolutamente quem era Albertine Simonet. Ela decerto ignorava o que devia ser um dia para mim. Mesmo esse nome de Simonet, que eu já ouvira na praia, se me houvessem pedido que o escrevesse, tê-lo-ia grafado com dois nn, sem saber da importância que aquela família dava a só possuir um. À medida que se desce na escala social, o esnobismo se apega a ninharias que talvez não sejam mais nulas que as distinções da aristocracia, mas que, devido a serem mais obscuras, mais próprias a cada um, surpreendem em maior grau. Talvez tivesse havido Simonnets que se envolvessem em maus negócios, ou coisa ainda pior. O fato é que os Simonets, ao que parecia, sempre se irritavam, como diante de uma calúnia, quando lhes duplicavam o-n. Davam a impressão de serem os únicos Simonet com um ene em vez de dois, e punham nisso talvez tanto orgulho como os Montmorency de serem os primeiros barões da França.

            Perguntei a Elstir se essas moças moravam em Balbec, e ele me respondeu que sim quanto a algumas delas. A casa de uma delas estava situada precisamente no extremo da praia, no ponto em que começavam as falésias de Canapville. Como era essa uma grande amiga de Albertine Simonet, mais uma razão havia para que eu acreditasse que fora mesmo esta última a que eu encontrara quando estava com minha avó. Por certo havia tantas ruazinhas perpendiculares à praia e formando com ela um ângulo semelhante, que eu não poderia especificar exatamente de qual se tratava. A gente gostaria de ter uma lembrança precisa, mas no exato momento a visão estivera perturbada.

            No entanto, que Albertine e aquela moça que entrava na casa da amiga fossem a mesma e uma só pessoa, era praticamente uma certeza. Apesar disso, ao passo que as inúmeras imagens que a segui me apresentou a morena jogadora de golfe, por mais diversas que sejam umas das outras, se superpõem (pois sei que todas lhe pertencem) e que, se remonto o fio de minhas lembranças, posso, protegido por essa identidade e como que num carinho de comunicação interior, recordar todas essas imagens sem sair de uma mesma pessoa; em compensação, se desejo remontar até a moça pela qual cruzei no dia em que estava com minha avó, é-me necessário retornar ao ar livre. Estou persuadido de que é Albertine quem encontro, a mesma que parava muitas vezes, no meio das amigas, naquele passeio, em que suas imagens se erguiam contra o horizonte do mar.

            Mas todas essas imagens continuam separadas daquela outra, pois não lhe posso atribuir, retrospectivamente, uma identidade que ela não tinha para mim no momento em que impressionou meu olhar; e, apesar do que possa me garantir o cálculo das probabilidades, aquela moça de faces gorduchas, que me encarou de modo tão atrevido na esquina da ruazinha e da praia e pela qual julgo que poderia ter sido amado, no sentido estrito da palavra "rever", essa eu nunca mais revi.

            Minha hesitação entre as diversas moças do pequeno grupo, todas conservando um pouco do encanto coletivo que me perturbara a princípio, terá se acrescentado igualmente a essas causas para me deixar depois, mesmo no tempo do meu maior do meu segundo-amor por Albertine, uma espécie de liberdade intermitente, e muito breve, para não amá-la? Por ter vagueado entre todas as suas amigas antes de se fixar definitivamente nela, o meu amor conservou às vezes, entre ele e a imagem de Albertine, certo "dispositivo" que lhe permitia, como uma iluminação mal adaptada, pousar em outras antes de voltar a se aplicar nela; a relação entre o mal que sentia no coração e a lembrança de Albertine não me parecia necessária, eu talvez o pudesse ter relacionado com a imagem de uma outra pessoa. O que me permitia, no luzir de um raio, fazer desvanecer-se a realidade, não só a realidade exterior, como no meu amor por Gilberte (que eu havia reconhecido como um estado interior em que extraía de mim apenas a qualidade particular, o caráter especial da criatura a quem amava, tudo aquilo que a fazia indispensável à minha felicidade), mas até a realidade interior e puramente subjetiva.

            - Não há um só dia que uma ou outra delas não passe diante do ateliê e não dê uma chegadinha.- disse Elstir, desesperando-me com a idéia de que, se tivesse ido visitá-lo logo que minha avó pedira, provavelmente há muito já teria conhecido Albertine. Ela se afastara; do ateliê já não era visível. Pensei que fora juntar-se às amigas no molhe. Se pudesse estar ali com Elstir, teria travado conhecimento com elas.

            Inventei mil pretextos para que anuísse em dar uma volta pela praia comigo. Eu não tinha mais o mesmo sossego que tivera antes do aparecimento da moça no quadro da janela tão encantadora até então sob suas madressilvas e agora toda vazia. Elstir me causou uma alegria mesclada de tortura ao me dizer que daria alguns passos comigo, mas que primeiro era obrigado a terminar o pedaço que estava pintando. Eram flores, mas não daquelas cujo retrato eu mais gostaria de lhe encomendar, em vez do de uma pessoa, a fim de saber, pela revelação de seu gênio, o que tanto havia procurado em vão diante delas-espinheiros brancos, espinheiros cor-de-rosa, escovinhas, flores de macieiras. Pintando, Elstir me falava, mas eu quase não o escutava; ele já não se bastava a si mesmo, não para o intermediário preciso entre mim e aquelas moças. O prestígio que seu talento lhe dava a meus olhos ainda há pouco só valia agora na medida em que atribuía tanto a mim mesmo aos olhos do pequeno grupo ao qual seria apresentado por ele.

            Eu ia e vinha, impaciente por vê-lo terminar a pintura; pegava estudos o contemplá-los; muitos deles, virados contra a parede, estavam empilhados uns sobre os outros. E, assim, ocorreu-me descobrir uma aquarela que devia pertencer a uma época bem mais antiga da vida de Elstir e me causou esse tipo específico de encanto proporcionado pelas obras não só de uma realização deliciosa, mas também de um tema tão singular e sedutor que é a ele que atribuímos uma parte desse fascínio, como se este o pintor não tivesse feito mais que descobri-lo, observá-lo,

materialmente já efetuado pela natureza, e pronto para ser reproduzido. Que tais objetos possam existir, belos até fora da interpretação do artista, isto satisfaz em nós um materialismo inato, combatido pela razão, e serve de contrapeso às abstrações da estética. Essa aquarela era o retrato de uma mulher jovem, não bonita, mas de um tipo curioso, que usava um boné bem semelhante a um chapéu-coco, mais do de uma fita de seda cor-de-cereja; uma de suas mãos, com luvas sem dedo, segurava um cigarro aceso, ao passo que a outra erguia à altura do joelho uma espécie de chapelão de jardineiro, simples anteparo de palha contra o sol. Ao lado dela, uma floreira cheia de rosas sobre uma mesa. Muitas vezes, e era o caso aqui, a singularidade dessas obras decorre sobretudo de terem sido executadas em condições particulares, de que não nos damos conta com toda a clareza a princípio; por exemplo, se o estranho vestido de um modelo feminino é um disfarce de baile à fantasia, ou se, pelo contrário, a capa rubra de um velho, que parece tê-la vestido para atender a um capricho do pintor, é a sua toga de catedrático ou de conselheira, ou sua murça de cardeal. A natureza ambígua da criatura, cujo retrato eu contemplava, provinha, sem que eu o compreendesse, de que se tratava de uma jovem atriz de outros tempos, em meio-travesti. Mas o seu chapéu-coco, sob o qual os cabelos estavam estufados porém curtos, sua jaqueta de veludo sem lapela, abrindo-se sobre um peitilho branco, fizeram-me vacilar quanto à data da moda e ao sexo do modelo, de modo que não sabia exatamente o que tinha diante dos olhos, a não ser que era a mais luminosa das telas de pintura. E o prazer que ela me proporcionara era perturbado apenas pelo medo de que Elstir, atrasando-se ainda mais, me fizesse esperar, pois o sol já se mostrava oblíquo e bem baixo na janelinha. Medo de perder as moças, e se representava nessa aquarela estava ali como um fato real, e pintado devido à sua utilidade para a cena: o vestuário porque era preciso que a dama estivesse vestida, ou a floreira por causa das flores. O vidro da floreira, armado por ele mesmo, dava a impressão de encerrar a água onde mergulhavam as hastes cravos em algo tão límpido, quase tão líqüido quanto ela; a roupa da mulher envolvia de uma matéria que tinha um encanto independente, fraterno, e como se as obras da indústria pudessem rivalizarem encanto com as maravilhas da natureza, tão delicadas, tão saborosas ao toque do olhar, tão frescamente pintadas como o pêlo de uma gata, as pétalas de um cravo ou as penas de uma pomba. A brancura do peitilho, de uma finura de granizo, e cuja frívola plissagem tinha campânulas como o lírio-do-vale, se estrelava de claros reflexos do quarto, eles próprios agudos e finamente matizados como buquês de flores que houvessem tecido o linho em relevo. E o veludo da jaqueta, brilhante e nacarado, tinha aqui e ali algo de eriçado, picotado e veloso que dava idéia do desalinho dos cravos no vaso. Mas sentia-se, acima de tudo, que Elstir, pouco se importando para o que pudesse apresentar de imoral aquele travesti de uma jovem atriz, para quem o talento com que interpretaria o papel tinha decerto menos importância que o excitante atrativo que ela ia oferecer aos sentidos embotados ou depravados de certos espectadores, se prendera ao contrário àqueles traços de ambigüidade como a um elemento estético que valesse a pena pôr em relevo e que tudo fizera para ressaltar. Ao longo das linhas do rosto, o sexo parecia a ponto de confessar que era o de uma moça um tanto viril, depois se esvaía e mais ao longe reaparecia, sugerindo antes a idéia de um jovem efeminado vicioso e sonhador; depois fugia de novo, ficava inatingível. O caráter de tristeza sonhadora do olhar, pelo seu mesmo contraste com os acessórios pertencentes ao mundo da boemia e do teatro, não era o que havia de menos perturbador. Aliás, pensava-se que devia ser artificial e que a jovem criatura, que parecia se ofertar às carícias nesse vestido provocante, julgara provavelmente ser picante acrescentar-lhe a expressão romântica de um sentimento secreto, de um desgosto inconfesso. Embaixo do retrato estava escrito:

            "Miss Sacripant, outubro de 1872".

            Não pude conter minha admiração.

            -Oh, não é nada, é um esboço da mocidade; era uma fantasia para uma revista das Variedades. Tudo isto está bem distante.

            -E que fim levou o modelo?

            O espanto causado por minhas palavras antecedeu, no rosto de Elstir, o ar indiferente e distraído que ele imprimiu após um segundo.

            - Olhe, passe-me depressa esse quadro - disse ele.-Estou ouvindo a chegada da Sra. Elstir e, embora a jovem do chapéu-coco não tenha desempenhado, garanto-lhe, nenhum papel na minha vida, é inútil que minha mulher tenha essa aquarela diante dos olhos. Só guardei isto como um documento divertido sobre o teatro daquela época.

            E, antes de esconder atrás dele a aquarela, Elstir, que certamente não a via há muito, deu-lhe um olhar atento.

            - Só vou poder conservar a cabeça. -murmurou; -o resto está verdadeiramente mal pintado, as mãos são de um principiante.

            Eu estava desolado com a chegada da Sra. Elstir, que ia nos fazer demorar mais ainda. Em breve o peitoril da janela se apresentou cor-de-rosa. Nossa saída seria em pura perda. Não havia mais chance alguma de ver as moças e, por conseguinte, nenhuma importância que a Sra. Elstir nos deixasse mais cedo ou mais tarde. Aliás, ela não ficou por muito tempo. Achei-a extremamente aborrecida; poderia ter sido bela se tivesse vinte anos, levando um boi pela campina romana; mas seus cabelos negros embranqueciam; e ela era vulgar sem ser simples, pois achava que a solenidade das maneiras e a majestade da atitude eram requisitados por sua beleza escultural, que aliás havia perdido todos os encantos com a idade. Trajava-se com a maior

simplicidade. E a gente ficava impressionado, mas surpreso, por ouvir Elstir dizer a todo o instante, e com uma ternura respeitosa como se apenas o fato de pronunciar tais palavras lhe causasse ternura e veneração:

            "Minha bela Gabrielle''

            Mais tarde, quando conheci a pintura mitológica de Elstir, a Sra. Elstir também adquiriu, a meu ver, uma certa beleza. Compreendi que o pintor atribuíra de fato um caráter quase divino a um determinado tipo de ideal, resumido em certas linhas, certos arabescos que se encontravam a cada passo em sua obra, a certos cânones, visto que todo o tempo disponível, todo esforço de pensamento de que era capaz, em uma palavra, toda a sua vida, ele a consagrara à tarefa de distinguir melhores suas linhas e de reproduzi-las com a maior fidelidade. Semelhante ideal inspirava a Elstir um culto na verdade tão grave, tão exigente, que não lhe permitia jamais sentir-se satisfeito: era a parte mais íntima de si mesmo, de forma que não o pudera encarar com distanciamento e dele extrair emoções, até o dia em que o encontrou realizado exteriormente no corpo de uma mulher, no corpo daquela que em seguida se tornou a Sra. Elstir e no qual pudera-como o que só nos é possível com o que não é nossa própria pessoa -julgá-lo meritório, comovente, divino. Além disso, que descanso pousar os lábios naquela Beleza que até então tinha de extrair de si mesmo com tanto esforço e que agora, misteriosamente encarnada, se ofertava a ele para uma série de eficazes comunhões!

            Naquela ocasião, Elstir já não estava mais na primeira juventude, quando se espera a realização do ideal apenas com a força do pensamento. Aproximava-se da idade em que contamos com as satisfações do corpo para estimular a força do espírito, em que a fadiga deste, inclinando-nos ao materialismo, e a diminuição da atividade à possibilidade de influências passivamente recebidas, começam a nos fazer admitir que talvez haja certos corpos, certos ofícios, certos ritmos privilegiados realizando com tanta naturalidade o nosso ideal, que, mesmo sem gênio, apenas copiando o movimento de uma espádua, a tensão de um pescoço, faríamos uma obra-prima; é a idade em que nos agrada acariciar a Beleza do olhar fora de nós, junto a nós, num belo esboço de Ticiano descoberto num antiquário, numa amante que é tão bela como o esboço de Ticiano. Quando compreendi isto, já pude ver a Sra. Elstir com prazer, e seu corpo deixou de ser pesado, pois enchi-o de uma idéia, a idéia de que ela era uma criatura imaterial, um retrato de Elstir. Ela o era para mim e, sem dúvida, também para ele. Os dados reais da vida não contam para o artista; para ele não passam de uma ocasião para evidenciar o seu gênio. Ao ver, lado a lado, dez retratos de pessoas diversas pintados por Elstir, sente-se perfeitamente que são sobretudo Elstirs. Unicamente, depois dessa maré montante do gênio que recobre a vida, quando o cérebro se cansa, o equilíbrio pouco a pouco se rompe e, como um rio que retoma o curso após o contra-fluxo de uma maré intensa, é a vida que retoma o predomínio. Ora, enquanto durava o primeiro período, o artista foi aos poucos deduzindo a lei, a fórmula de seu dom inconsciente. Conhece que situações, se é romancista, que paisagens, se é pintor, lhe fornecem a matéria, indiferente em si, mas necessária às suas pesquisas como o seria um laboratório ou um ateliê. Sabe que fez suas obras-primas com efeitos de meia-luz, com remorsos que modificam a idéia de uma culpa, com mulheres assentadas sob as árvores ou meio mergulhadas na água como estátuas. Dia virá em que, pelo desgaste do cérebro, já não terá, diante desses materiais de que seu gênio se aproveitava, a força de cumprir o esforço intelectual necessário e único para produzir a obra; no entanto, continuará a procurá-los, feliz por se achar junto a eles devido ao prazer espiritual que despertam nele e que convida ao trabalho; e, além disso, cercando-os de uma espécie de superstição, como se fossem superiores a qualquer outra coisa, como se neles já residisse uma boa parte da obra artística que de alguma forma trariam bem acabada, não irá além de freqüentar e adorar seus modelos. Conversará indefinidamente com criminosos arrependidos, cujos remorsos e regeneração lhe valeram outrora para assunto de seus romances; comprará uma casa de campo numa terra em que a névoa atenua a luz; passará longas horas olhando as mulheres a se banharem; colecionará belos tecidos. E assim a beleza da vida, palavra de algum modo desprovida de sentido, ponto situado aquém da arte e onde eu vira que Swann estacionava, era o lugar ao qual, pelo esmorecimento do gênio criador, por idolatria das formas que o tinham favorecido, por desejo de menor esforço, Elstir devia um dia ir retrocedendo aos poucos.

            Enfim, ele acabava de dar uma última pincelada às suas flores; perdi um momento a olhá-las; não havia mérito em fazê-lo, pois sabia que as moças já não se encontravam na praia; porém, mesmo que acreditasse que elas ali permaneciam e que aqueles minutos de contemplação me impediriam de alcançá-las, ainda assim olharia o quadro, pois dizia comigo que Elstir se interessava mais por suas flores do que pelo meu encontro com as moças. O temperamento de minha avó, temperamento que era exatamente o oposto do meu egoísmo total, entretanto refletia-se no meu. Numa circunstância em que alguém que me fosse indiferente, por quem sempre fingira afeição ou respeito, arriscasse apenas uma contrariedade, ao passo que eu me visse em perigo, não faria outra coisa senão sentir pena dele pelo seu desgosto, como se fosse algo considerável, e encarar meu perigo como coisa insignificante, porque me parecia que, para essa pessoa, as coisas deveriam se apresentar sob essas proporções. Para dizer as coisas tais como são, e até indo além disso, não só não lastimava o perigo que corria, mas ia-lhe ao encontro e, no que se referia aos outros, tentava ao contrário, ainda que houvesse mais probabilidades de que recaíssem sobre mim, evitar-lhes o perigo. Isto decorre de vários motivos que não me fazem honra alguma. Um deles é que, enquanto eu não fazia mais que raciocinar, julgava principalmente apegar-me à vida: toda vez que, no decurso de minha existência, me vi assediado por preocupações morais ou apenas por inquietações de origem nervosa, às vezes tão pueris que não teria coragem de narrá-las, se então ocorria uma circunstância imprevista, que para mim envolveria risco de morte, essa nova preocupação era tão leve, relativamente às outras, que eu a acolhia com um alívio que chegava à alegria. E assim sucedia que eu, o homem menos corajoso do mundo, vinha a conhecer essa coisa que, quando eu raciocinava, me parecia tão estranha e inconcebível à minha natureza: a embriaguez do perigo. Porém, mesmo quando surgisse o perigo, ainda que mortal, e eu me encontrasse num período da vida inteiramente calmo e feliz, não poderia, se estivesse com outra pessoa, deixar de pô-la a salvo e assumir o lugar do perigo. Quando um número bem vasto de experiências terminou por demonstrar que eu agia sempre assim, e com prazer, descobri, para minha vergonha, que, ao contrário do que sempre julgara e afirmara, era bastante sensível à opinião alheia. Esse tipo de amor-próprio inconfesso, entretanto, nada tem a ver com a vaidade e o orgulho. Pois aquilo que pode satisfazer o orgulho ou a vaidade não me dá prazer nenhum e sempre o repeli. Mas às pessoas a quem consegui esconder completamente os pequenos méritos, que talvez pudessem lhes dar uma idéia menos mesquinha a meu respeito, jamais pude negar-me o prazer de lhes mostrar que punha mais cuidado em afastar a morte de seu caminho do que do meu. Como o meu objetivo é então o amor-próprio e não a virtude, acho bem natural que em qualquer circunstância elas agissem de outra forma. Estou bem longe de censurá-las, o que talvez fizesse se fosse movido pela idéia de um dever que, nesse caso, me parecia obrigatório para elas como para mim. Pelo contrário, considero-as muito sensatas por preservarem suas vidas, mas não posso deixar de colocar a minha em segundo plano, o que é especialmente absurdo e culposo desde que julguei reconhecer que a vida de muitas pessoas, à cuja frente me coloco ao rebentar uma bomba, tem menos valor que a minha. Além disso, no dia daquela visita a Elstir, ainda estava longe o tempo em que eu tomaria consciência dessa diferença de valor e não se tratava de nenhum perigo, mas simplesmente de um sinal prévio do pernicioso amor-próprio: dar a impressão de não conceder, àquele prazer tão ardentemente desejado, mais importância que a seu trabalho de aquarelista ainda inacabado:             - Afinal ficou pronto o quadro.

            Logo que saímos, percebi que-como os dias eram mais longos naquela estação ainda não era tão tarde como supunha; íamos pelo molhe. Quantos ardis empreguei para reter Elstir no ponto em que achava que as moças ainda podiam passar! Mostrando-lhe os alcantis que se elevavam bem perto, não cessava de pedir que me falasse deles para fazê-lo esquecer a hora e obrigá-lo a ficar por ali. Parecia-me ter mais probabilidades de encontrar o grupo das moças se nos encaminhássemos até o fim da praia.

            - Gostaria que víssemos bem de perto estes rochedos. -disse a Elstir, tendo reparado que uma das moças ia com freqüência para aqueles lados. - E, enquanto isso, fale-me de Carquethuit. Ah, como me agradaria ir a Carquethuit! -acrescentei, sem pensar que o caráter tão novo, que se manifestava com tanta força no "Porto de Carquethuit" de Elstir, referia-se mais à visão do pintor que a um mérito especial dessa praia. - Desde que vi esse quadro, é o local que mais tenho vontade de conhecer, junto com a Ponta do Raz, que por sinal daria uma viagem bem longa daqui.

            - E depois, mesmo que estivesse mais perto, eu lhe aconselharia que fosse de preferência a Carquethuit-respondeu Elstir. -A Ponta do Raz é admirável, mas afinal sempre é uma grande falésia normanda ou bretã, que o senhor já conhece; ao passo que Carquethuit é bem diferente com seus rochedos sobre a praia baixa. Não conheço nada parecido na França; lembra-me antes de certos aspectos da Flórida. É um lugar curioso e também extremamente selvagem. Fica entre Clitourps e Nehomme, e sabe muito bem como essas paragens são desoladas; o perfil das praias é deslumbrante. Aqui, a sua linha litorânea não quer dizer nada; porém lá, nem sei lhe dizer como é graciosa e suave.

            A noite caía; era preciso voltar. Eu acompanhava Elstir à sua casa quando, de repente, tal como Mefistófeles aparecendo diante de Fausto, surgiram na extremidade da avenida-como uma simples objetivação irreal e diabólica do temperamento oposto a mim, da vitalidade quase bárbara e cruel de que era tão destituída a minha fraqueza, meu excesso de sensibilidade dolorosa e de intelectualismo alguns flocos dessa substância impossível de confundir com qualquer outra, algumas esporadas do grupo zoofítico das moças, as quais pareciam não me ver, mas na verdade deveriam estar fazendo a meu respeito um juízo irônico. Sentindo ser inevitável um encontro com elas, e que Elstir me chamaria, voltei-me de costas como um banhista que vai receber a onda; parei e, deixando que meu ilustre companheiro seguisse o caminho, fiquei para trás, fingindo um súbito interesse pela vitrina do negociante de antigüidades diante da qual passávamos naquele momento; estava satisfeito por dar a impressão de pensar em coisa diversa dessas moças e já sabia, obscuramente, que, quando Elstir me chamasse para ser apresentado, teria o tipo de olhar interrogativo que revela não a surpresa, mas o desejo de parecer surpreendido isto porque somos maus atores ou porque o próximo é um bom fisionomista-e talvez até chegasse a levar o dedo ao peito como se perguntasse:

            "É a mim que estão chamando?", para logo acorrer, a cabeça docilmente inclinada, obediente, o rosto dissimulando friamente o tédio de ser arrancado à contemplação de velhas faianças para que me apresentassem a pessoas que não desejava conhecer. Entretanto, considerava a vitrina à espera do momento em que meu nome, gritado por Elstir, viesse me atingir como uma bala esperada e inofensiva. A certeza da apresentação a essas moças tivera por resultado não só fazer-me aparentar indiferença, mas senti-la de verdade. Inevitável daí em diante, o prazer de conhecê-las foi comprimido, reduzido, pareceu-me bem menor que o de conversar com Saint-Loup, de jantar com minha avó, de fazer excursões pelas redondezas, as quais decerto lamentaria ter de abandonar para travar relações com pessoas que pouco se interessariam por monumentos históricos. Além do mais, o que diminuía o prazer que eu teria não era somente a iminência, mas a incoerência de sua realização. Leis tão exatas como a da hidrostática mantêm a superposição das imagens que formamos numa ordem fixa, subvertida pela proximidade de um acontecimento. Elstir ia chamar-me. Mas não era daquele modo como, várias vezes, na praia ou no meu quarto, imaginara que conheceria as moças. O que ia acontecer era outro evento, para o qual não me achava preparado. Não estava reconhecendo nem o meu desejo nem o seu objeto; quase lamentava ter saído com Elstir. Mas, sobretudo, a contração do prazer que tivera anteriormente se devia à certeza de que nada mais podia subtraí-lo de mim. E esse prazer recuperou toda a sua dimensão, como em virtude de uma força elástica, quando deixou de sofrer a pressão dessa certeza, no momento em que eu, tendo decidido voltar a cabeça, vi que Elstir parado alguns passos adiante, junto das moças, despedia-se delas. A fisionomia da que estava mais perto de mim, cheia e iluminada pelos seus olhares, parecia uma torta em que houvessem reservado um lugar para um pedacinho do céu. Seus olhos, mesmo fixos, davam a impressão de mobilidade, como ocorre nesses dias de muito vento, em que o ar, embora invisível, deixa transparecer a velocidade com que passa sobre o fundo azul. Por um instante os seus olhares cruzaram com os meus, como esses céus viajantes dos dias de tempestade, que se aproximam de uma nuvem mais vagarosa, tangenciam por ela, tocam-na, ultrapassam-na. Mas não se conhecem e se separam um do outro. Assim, nossos olhares se encararam por um momento, cada um ignorando o que continha de promessas e de ameaças para o futuro continente celeste que estava à sua frente. Apenas no momento em que seu olhar pousou bem no meu foi que se turvou ligeiramente, mas sem diminuir a velocidade. Do mesmo modo, numa noite clara, a lua, arrastada pelo vento, passa por detrás de uma nuvem e encobre por um momento o seu brilho, logo reaparecendo. Mas Elstir já deixara as moças sem ter me chamado. Elas tomaram por uma rua transversal e o pintor veio até mim. Tudo estava perdido.

            Já disse que Albertine não me aparecera nesse dia com o mesmo ar com que surgira nos dias precedentes e que, a cada vez, ela devia me parecer diferente. Mas, naquele momento, senti que certas modificações no aspecto, na importância, no tamanho de uma criatura podem se referir à variabilidade de certos estados interpostos entre ela e nós. E um dos que maior papel desempenham nesse caso é a crença em determinada coisa. (Naquela tarde, a crença, depois o desvanecimento da crença, de que ia conhecer Albertine, converteram-na, com segundos de intervalo, em algo quase insignificante, depois infinitamente precioso, a meus olhos alguns anos mais tarde, a crença, depois o desaparecimento da crença, de que Albertine era fiel causaram mudanças análogas.)

            De certo, em Combray, já vira diminuir ou aumentar, conforme as horas; conforme eu entrasse numa ou noutra das duas grandes espécies que repartiam entre si a minha sensibilidade -o desgosto de não estar junto de minha mãe, tão imperceptível de tarde como a luz da lua enquanto brilha o sol e que, quando caía a noite, reinava sozinho em minha alma ansiosa, no lugar onde estavam as lembranças apagadas e recentes. Mas, naquele dia, vendo que Elstir deixava as moças sem ter me chamado, compreendi que as variações de importância que um prazer ou um desgosto assumem a nossos olhos podem referir-se não apenas a essa alternância de dois estados de espírito, mas à mutação de crenças invisíveis, que, por exemplo, nos fazem parecer indiferente a morte, porque a cercaram de uma luz irreal e, assim, nos permitem atribuir grande importância ao fato de irmos a um sarau musical, o qual perderia o seu encanto se, de súbito, pela notícia de que nos irão guilhotinar, a crença que envolve este sarau se dissipasse; é verdade que algo em mim sabia acerca desse papel das crenças: era a vontade; mas esta o sabe em vão se a inteligência e a sensibilidade continuam a ignorá-lo; estas agem de boa-fé quando crêem que temos vontade de abandonar uma amante, a qual apenas a vontade sabe que desejamos muito. É que elas são obscurecidas pela crença de que voltaremos a encontrá-la em breve. Mas, quando essa crença se dissipa, quando elas ficam sabendo de repente que tal amante se foi para sempre, então a inteligência e a sensibilidade, tendo perdido o equilíbrio, procedem como loucas, e o ínfimo prazer aumenta ao infinito.

            Variação de uma crença, também vazio do amor, o qual, preexistente e móvel, se detém na imagem de uma mulher simplesmente porque essa mulher será quase impossível de alcançar. Desde então, pensa-se menos na mulher, que dificilmente se evoca, e mais nos meios de conhecê-la. Todo um processo de angústias se desenvolve e basta para fixar nosso amor por ela, objeto apenas conhecido do nosso amor. O amor se torna imenso, e nem imaginamos como é reduzido o lugar que a mulher real nele ocupa.

            E se, de súbito, como no momento em que eu vira Elstir com as moças, acaba a nossa preocupação, a nossa angústia, como se essa angústia fosse todo o nosso amor, parece que o amor se dissipou bruscamente, no momento mesmo em que sua presa está ao nosso alcance, presa em cujo valor não pensamos muito. Que conhecia eu de Albertine?

            Um ou dois perfis diante do mar, certamente menos belos que o das mulheres de Veronese, que eu deveria preferir caso obedecesse a razões puramente estéticas. Ora, que outras razões poderia ter visto que, arrefecida a angústia, só me encontrava com esses mudos perfis, e nada mais possuía? Desde que vira Albertine, fizera todos os dias a seu respeito milhares de reflexões; mantinha, com o que eu denominava Albertine, um diálogo interior em que a fazia perguntar e responder, pensar, agir, e, na série indefinida de Albertines imaginadas que se sucediam em mim hora após hora, a Albertine real, avistada numa praia, só figurava à frente, como criadora de um papel, a estrela, só aparecia nas primeiras em uma longa série de representações. Essa Albertine era quase só uma silhueta; tudo o que se superpunha a ela era de minha invenção, já que, no amor, as nossas contribuições superam mesmo que unicamente do ponto de vista da quantidade-as que provêm da criatura amada. E isto é verdadeiro quanto aos amores mais eficazes. Há os que podem não apenas se formar, porém subsistirem redor de muito pouca coisa-e até entre os que receberam sua aprovação carnal.

            Um antigo professor de desenho de minha avó teve uma filha de uma amante obscura. A mãe morreu pouco depois do nascimento da criança, e o professor teve tal desgosto que não lhe sobreviveu por muito tempo. Nos últimos meses de sua vida, minha avó e algumas senhoras de Combray, que jamais haviam querido fazer sequer uma alusão, diante do professor, àquela mulher, com quem aliás ele não vivera oficialmente e com a qual não tivera muitas relações, pensaram em assegurar o futuro da menina, contribuindo cada uma para lhe proporcionar uma renda vitalícia. Foi minha avó quem o propôs; algumas amigas se fizeram de rogadas; aquela menina valeria a pena o seu interesse, seria mesmo filha de quem se acreditava seu pai? Com mulheres do tipo daquela mãe a gente nunca sabe. Enfim se decidiram. A menina veio à casa para agradecer. Era feia e parecia-se tanto com o velho professor de desenho que dissipou todas as dúvidas; como fosse o cabelo único traço que tivesse de bonito, uma senhora disse ao pai, que a acompanhara:

            - Como são lindos os seus cabelos!

            E, pensando que agora a mulher culpada estava morta e o professor a caminho do túmulo, e que não haveria problemas em fazer uma alusão àquele passado que todos sempre tinham fingido ignorar, minha avó acrescentou:

            - Deve ser de família. A mãe dela tinha cabelos assim tão lindos?

            -Não sei respondeu ingenuamente o pai. - Nunca a vi sem chapéu.

            Precisava reunir-me a Elstir. Olhei-me numa vidraça. Além do desastre de não ter sido apresentado, reparei que minha gravata estava torta e que meu chapéu deixava aparecer os cabelos compridos, o que não me caía bem; mas, de qualquer forma, sempre era uma sorte que as moças, mesmo assim, me tivessem visto na companhia de Elstir e, portanto, não pudessem me esquecer; também foi sorte que naquela tarde, e a conselho de minha avó, eu estivesse com o colete bonito, pois pouco faltara para que o substituíssem por um outro, horroroso, e com a minha melhor bengala; porque, se um evento que desejamos jamais ocorre da maneira que pensamos, à falta das vantagens com que julgávamos contar, outras, que não esperávamos, se apresentam e, assim, tudo se compensa; e de tal modo temíamos o pior que, por fim, nos inclinamos a achar que, em conjunto, e tudo pesado, o acaso nos favoreceu.

            - Ficaria tão contente em conhecê-las - disse a Elstir quando me aproximei.

            - Então, por que ficou a léguas de distância?

            Foram estas as palavras que pronunciou, não que exprimissem o seu pensamento, visto que, se o seu desejo tivesse sido o de satisfazer o meu, nada mais fácil que chamar-me, mas talvez porque ouvisse frases desse tipo, familiar às pessoas vulgares apanhadas em falta, e porque mesmo os grandes homens são, em certos assuntos, semelhantes às pessoas vulgares, procuram suas desculpas diárias no mesmo repertório que elas, como compram o pão cotidiano no mesmo padeiro; ou então porque tais palavras, que de certa forma devem ser lidas às avessas já que sua letra significa o contrário da verdade, sejam o efeito necessário, o gráfico negativo de um reflexo.

            - Elas estavam com pressa.

            Eu, sobretudo, achava que as moças o haviam impedido de chamar alguém que lhes era pouco simpático; não sendo assim, ele teria me chamado, depois de todas as perguntas que lhe fizera sobre elas e do interesse que bem tinha visto que me despertavam.

            - Eu lhe falava de Carquethuit - disse-me ele antes que o deixasse à porta de casa. - Fiz um pequeno esboço onde se vê bem melhor o delineamento da praia. O quadro não é mau, mas é outra coisa. Se me permite, dar-lhe-ei esse esboço em nome da nossa amizade-acrescentou, pois as pessoas que nos negam as coisas que desejamos costumam oferecer coisa diversa.

            -Gostaria muito de ter uma fotografia desse retrato de Miss Sacripant, se é que possui alguma. Mas o que significa esse nome?- É o de uma personagem de uma opereta idiota, representada pelo modelo do retrato.

            - Não a conheço; o senhor sabe muito bem disto, mas parece que não acredita. - Elstir calou-se.

            - No entanto, deve ser a Sra. Swann antes do seu casamento-disse eu por um desses súbitos e casuais encontros com a verdade, afinal muito raros, mas que bastam, quando ocorrem, para fornecer uma certa base à teoria dos pressentimentos desde que se tenha o cuidado de esquecer todos os erros que a invalidariam. Elstir não respondeu. Era com efeito um retrato de Odette de Crécy. Ela não o quisera conservar por muitos motivos, alguns bem evidentes. Havia outros. O retrato era anterior ao momento em que Odette, disciplinando seus traços fisionômicos, formara com seu próprio rosto e corpo essa criação que, através dos anos, deviam respeitar em suas linhas gerais os cabeleireiros e as modistas, e também a própria Odette, em seu modo de andar, de falar, de sorrir, de colocar as mãos, de olhar e de pensar. Era necessária a depravação de um amante entediado para que Swann preferisse, às numerosas fotografias da Odette  que era a sua deslumbrante mulher, a pequena fotografia que tinha em seu quarto e onde, sob um chapéu de palha ornado de amores-perfeitos, se via uma mulher magra e bem feia, de cabelos em tufos e feições pisadas.

            Aliás, mesmo que o retrato fosse não anterior, como a fotografia predileta de Swann, à sistematização das feições de Odette em um novo tipo, majestoso e encantador, e sim posterior, bastaria a visão de Elstir para desordenar esse tipo. O gênio artístico procede à maneira dessas temperaturas extremamente elevadas, que têm o poder de dissociar as combinações de átomos e de reagrupá-los segundo uma ordem absolutamente oposta, correspondendo a outro tipo. Toda essa harmonia artificial que a mulher impôs às suas feições e de cuja continuidade ela se assegura todos os dias diante do espelho, mudando a inclinação do chapéu, o alisado do cabelo, a jovialidade do olhar; essa harmonia, a visão do grande pintor a destrói em um segundo e, no seu lugar, procede a um reagrupamento dos traços da mulher de modo a dar satisfação a um certo ideal feminino e pictórico que traz: dentro de si. Da mesma forma, ocorre muitas vezes que, a partir de uma certa idade o olho de um grande pesquisador encontra por toda a parte os elementos necessários para estabelecer as únicas relações que o interessam. Como esses operários e jogadores, que não são pretensiosos e se contentam com o que lhes cai às mãos, poderiam dizer de qualquer coisa: isto serve. Assim, uma prima da princesa de Luxemburgo, beldade das mais altivas, tendo se deixado apaixonar outrora por uma arte que era nova então, pedira ao maior dos pintores naturalistas que fizesse o seu retrato. E logo o olho do pintor achou o que procurava em toda parte. E sobre a tela, no lugar da grande dama, havia uma moça de recados e, por trás dela, um amplo cenário inclinado e cor-de-violeta que lembrava a Praça Pigalle. Mas, mesmo sem chegar a tanto, um retrato de mulher por um grande artista não só não tenderá a satisfazer de modo algum quaisquer exigências da mulher que lhe serviu de modelo como, por exemplo, as que, quando ela começa a envelhecer, a fazem retratar-se em roupas quase de mocinhas que realçam o seu talhe ainda juvenil e a fazem parecer irmã ou até mesmo filha de sua filha (que, se necessário, aparecerá bem mal vestida a seu lado) mas, pelo contrário, porá em relevo as desvantagens que ela procura ocultar e que, como, por exemplo, um tom de febre ou até mesmo um matiz esverdeado, o tentam mais porque têm mais "caráter"; mas são suficientes para decepcionar o espectador comum e reduzir a nada o ideal, cuja armadura a mulher sustentava com tanto orgulho e que a colocava, em sua forma única e irredutível, de fora e acima do resto da humanidade. Agora, decaída, situada fora de seu próprio tipo onde reinava invulnerável, não passa de uma mulher como qualquer outra, cuja superioridade já não nos inspira confiança. De tal modo identificamos esse tipo, não só com a beleza de uma Odette, mas a sua personalidade, sua substância íntima, que, diante do retrato que a despojou de si mesma, somos tentados a exclamar não apenas:

            "Como ficou feia!", mas também: "Assemelha-se muito pouco a ela."

            Mal acreditamos que se trate dela. Não a reconhecemos. E, no entanto, ali há uma criatura que bem sentimos já ter visto antes. Mas essa criatura não é Odette; o seu rosto, seu corpo, seu aspecto nos são bem conhecidos. Recordam-nos não a mulher, que nunca se mantinha assim, e cuja postura habitual de modo algum desenhou um tal estranho e provocante arabesco, mas outras mulheres, todas as que Elstir pintou e que sempre, por mais diferentes que fossem gostou de colocar assim de frente, o pé recurvado ultrapassando a saia, o grande chapéu redondo seguro na mão, correspondendo simetricamente, à altura do joelho, que ele encobre, a esse outro disco, visto de frente, o rosto. Enfim, não só um retrato genial desloca o tipo de uma mulher, tal como o estabeleceram a sul coqueteria e sua concepção egoísta da beleza, mas, se é antigo, também não se contenta em envelhecer o original da mesma forma que a fotografia, ou seja, apresentando-o com roupas fora de moda. No retrato, não é apenas a maneira de vestir da mulher que o data, mas também a maneira como o artista o pinta. Esta maneira de pintar, a primeira maneira de Elstir, era a mais terrível certidão de nascimento para Odette, pois fazia dela não somente, como suas fotos da época, a caçula das cocotes então conhecidas, mas também porque tornava seu retrato contemporâneo de um dos numerosos retratos que Manet ou Whistler pintaram com tantos modelos já desaparecidos e que pertencem ao olvido ou à História.

            A tais pensamentos, silenciosamente ruminados ao lado de Elstir enquanto o acompanhava até em casa, é que me arrastava a descoberta que acabava de fazer com relação à identidade de seu modelo. Ele fizera o retrato de Odette de Crécy. Seria possível que este homem de gênio, este sábio, este solitário, este filósofo de conversação magnífica e que dominava todos os assuntos fosse o pintor ridículo e perverso adotado outrora pelos Verdurin? Perguntei-lhe se os havia conhecido, se por acaso eles não o apelidavam de Sr. Biche. Respondeu-me que sim, sem constrangimento, como se se tratasse de um pedaço já um pouco antigo de sua existência; e não desconfiava da extraordinária decepção que me causou, mas, erguendo os olhos, leu-a no meu rosto. No seu estampou-se um ar de descontentamento. E, como já quase chegáramos à sua casa, um homem de menor inteligência e coração do que ele talvez se despedisse um tanto secamente e, depois, teria evitado encontrar-se comigo. Mas não foi assim que Elstir procedeu; como verdadeiro mestre -e ser um mestre era, talvez, do ponto de vista da criação pura, o seu único defeito, neste sentido da palavra mestre, porque um artista, para penetrar inteiramente na verdade da vida espiritual, deve ser sozinho e não prodigalizar a sua individualidade, mesmo aos discípulos buscava extrair de toda circunstância, fosse relativa a ele ou aos outros, e para melhor ilustração dos jovens, a parte de verdade que ela contivesse. Então, às palavras que poderiam vingar seu amor-próprio, preferiu as que podiam me instruir.

            - Não existe homem, por mais sábio que seja- disse-me-, que não tenha, em certa época de sua juventude, pronunciado palavras, ou até levado uma vida, cuja recordação lhe seja desagradável e que ele desejasse ver abolidas. Mas não deve lamenta-la de todo, pois não pode estar seguro de se ter tornado um sábio, na medida em que isso é possível, sem passar por todas as encarnações ridículas ou odiosas que devem precedê-la. Sei que há jovens, filhos e netos de pessoas célebres, a quem os preceptores ensinaram a nobreza de espírito e a elegância moral desde o colégio. Talvez nada se tenha a dizer de suas vidas, poderiam assinar e publicar tudo o que disseram, mas são pobres espíritos, descendentes sem força dos doutrinadores, e cuja sabedoria é negativa e estéril. A gente não herda a sabedoria; é preciso descobri-la por nós mesmos depois de uma trajetória que ninguém pode fazer por nós, e que ninguém nos pode evitar, pois ela é uma forma de ver as coisas. As vidas que o senhor admira, as atitudes que julga nobres, não foram obtidas pelo pai de família ou pelo preceptor; foram precedidas por inícios bem diversos, tendo sido influenciadas pelo que lhes havia em torno, fosse bom ou banal. Representam um combate e uma vitória. Compreendo que já não reconheçamos a imagem do que fomos num primeiro período da vida, a qual, em todo o caso, nos é desagradável. Entretanto, não deve ser renegada, pois trata-se de um testemunho de que temos vivido segundo as leis da vida e do espírito e que dos elementos comuns da vida, da vida dos ateliês, dos grupos artísticos, se se trata de um pintor-extraímos algo que os supera. 

            Tínhamos chegado diante de sua porta.

            Sentia-me decepcionado por não ter conhecido as moças. Mas enfim, agora haveria uma possibilidade de reencontrá-las na vida; deixavam de somente passar por um horizonte onde eu julgara que não as veria jamais reaparecer. A seu redor já não se agitava essa espécie de redemoinho que nos separava, e que não passava da tradução do desejo em permanente atividade, móvel, urgente, alimentado de inquietudes despertadas em mim pela inacessibilidade delas, ou pelo seu possível desaparecimento para sempre.

            Já podia agora pôr em sossego o meu desejo por elas, guardá-lo em reserva, junto com tantos outros cuja realização ia adiando, uma vez que o sabia possível. Deixei Elstir; encontrei-me a sós. Então, de súbito, apesar da minha decepção, vi no meu espírito toda essa série de acasos que não havia suspeitado pudessem realizar-se: que Elstir fosse precisamente ligado a essas moças; estas que de manhã ainda eram, para mim, figuras em um quadro que tinha como fundo o mar, me tivessem visto em companhia de um grande pintor, o qual sabia agora do meu desejo de conhecê-las e sem dúvida o apoiaria. Tudo aquilo me dera satisfação, mas uma satisfação que me ficara oculta; era como essas visitas que esperam, para nos fazer saber que estão presentes, que os demais convivas tenham se retirado, e que estejamos sozinhos.

            Então nós as vemos, podemos dizer-lhes: estamos a seu dispor, e escutá-las. Às vezes, entre o momento em que estas satisfações entraram em nós e o momento em que nós entramos nelas, passaram-se tantas horas e vimos tanta gente no intervalo que tememos não nos tenham esperado. Mas elas são pacientes, não se cansam e, logo que todos foram embora, vemo-las face a face. Outras vezes, somos nós que estamos tão cansados que nos parece não termos força bastante, em nosso pensamento desfalecente, para reter essas lembranças e impressões para as quais o nosso eu frágil é o único lugar habitável, o único modo de realização. E o lamentaríamos, pois a existência quase só tem interesse nesses dias em que a poeira das realidades vem misturada com areia mágica, e um vulgar incidente da vida se transforma em motivo romanesco. Todo um promontório do mundo inacessível surge então da iluminação do sonho e entra em nossa vida; em nossa vida onde, como quem despertou de um sonho, vemos as pessoas com quem tínhamos sonhado tão intensamente que julgáramos que só haveríamos de revê-las em sonho; o sossego trazido pela possibilidade de conhecer aquelas moças quando quisesse era-me tanto mais precioso, porque agora não podia continuar em seu encalço devido aos preparativos de viagem de Saint-Loup. Minha avó desejava testemunhar a meu amigo seu agradecimento por tantas gentilezas que tivera para conosco. Disse-lhe que Saint-Loup era um grande admirador de Proudhon e sugeri que mandasse vir a Balbec numerosas cartas autografadas desse filósofo que ela havia comprado; Saint-Loup veio vê-las no hotel no dia em que chegaram, que era o da véspera de sua partida. Leu-as avidamente, manuseando cada folha com respeito, procurando reter as frases; ergueu-se depois, e já se desculpava com minha avó de ter ficado por tanto tempo, quando a ouviu dizer:

            - Nada disso; leve-as. São suas, foi para você que mandei trazê-las.

            Aquilo lhe deu uma alegria tamanha que não a pôde dominar, como não se pode dominar um estado físico que ocorre sem intervenção da vontade. Ficou vermelho como uma criança que está sendo castigada, e minha avó se sentiu muito mais emocionada ao ver todos os esforços que ele fizera (sem o conseguir) para conter a alegria que o agitava, do que com todos os protestos de gratidão que ele pudesse ter externado. Mas ele, temendo ter mal demonstrado o seu reconhecimento, ainda pedia que o desculpasse, no dia seguinte, debruçado à janela do trenzinho de ramal secundário que tomara para alcançar o seu quartel. Este, de fato, ficava bem perto. Saint-Loup havia pensado em ir de carro, como fazia muitas vezes quando devia voltar à tarde e não se tratava de uma partida definitiva. Mas desta vez era necessário mandar de trem sua numerosa bagagem. E ele achou mais simples subir igualmente ao vagão, de acordo com a opinião do gerente do hotel que, consultado, havia respondido que trem ou carro "seriam mais ou menos equívocos". Com isso queria dizer que seriam equivalentes (em suma, mais ou menos o que Françoise teria expressado ao dizer que "isto iria do semelhante ao mesmo").Ou seja concluiu Saint-Loup-, irei pelo "tortinho".

            Também o teria tomado se não estivesse tão cansado, para acompanhar meu amigo a Doncieres; prometi-lhe, ao menos, durante o tempo que ficamos na estação de Balbec, isto é, o tempo que o maquinista dedicou a esperar alguns retardatários, sem os quais não queria partir, e também para tomar algum refresco, ir vê-lo várias vezes por semana. Como Bloch também tinha vindo à estação, para grande contrariedade de Saint-Loup, este, ao ver que meu colega o ouvia me pedir que fosse almoçar, jantar e morar em Doncieres, acabou por lhe dizer, num tom bastante frio, cujo objetivo era o de corrigir a amabilidade forçada do convite e impedir que Bloch o levasse a sério:

            - Se alguma vez passar por Doncieres à tarde, poderá perguntar por mim no quartel; mas quase nunca estou livre.

            Talvez Robert igualmente receasse que, sozinho, eu não fosse e, pensando que eu estivesse mais ligado a Bloch do que dizia, dava-me, assim, oportunidade de ter um companheiro de viagem que me animasse a ir.

            Eu receava que esse tom, essa maneira de convidar alguém, aconselhando-o a que não fosse, fosse deixar Bloch melindrado, e achava que Saint-Loup teria feito melhor em não falar coisa alguma. Mas estava enganado, pois, logo após a partida do trem, enquanto voltávamos juntos até o cruzamento das duas avenidas onde iríamos nos separar, visto que uma levava ao hotel e a outra à vivenda dos Bloch, este não parou de indagar em que dia iríamos a Doncieres, porque, depois de "todas as amabilidades que Saint-Loup lhe fizera", seria "muito grosseiro de sua parte" não atender a seu convite. Gostei de que ele não tivesse notado o tom pouco insistente, meramente polido, com que o convite fora feito, ou, caso o houvesse notado, que fingisse e não se desse por achado. Contudo, desejaria que Bloch não caísse no ridículo de ir de imediato a Doncieres. Mas não ousava lhe dar um conselho que só poderia incomodá-lo, mostrando-lhe que Saint-Loup fora menos insistente no convite do que ele em aceitá-lo. Bloch era extremamente inoportuno, porque, embora todos os defeitos que tivesse no gênero fossem compensados por notáveis qualidades que outras pessoas, mais reservadas, não possuíam, levava a indiscrição a um nível exasperador. Na sua opinião, a semana não poderia terminar sem que fôssemos a Doncieres. (Dizia "fôssemos", pois julgo que contava com minha presença para desculpar a sua.) Em todo o caminho de volta, diante do ginásio, debaixo das árvores, diante do campo de tênis, diante da Prefeitura, diante do mercado de conchas, parava, suplicando que eu fixasse um dia determinado; e, como eu recusasse, retirou-se aborrecido, dizendo:

            - Como quiser, cavalheiro. Em todo caso, sou obrigado a ir, pois ele me convidou.

            Saint-Loup temia tanto não ter agradecido à minha avó como devia, que, dois dias depois, ainda me encarregava de lhe testemunhar sua gratidão numa carta sua que recebi da cidade onde se achava aquartelado e que parecia, pelo envelope em que o correio havia carimbado o nome dela, ter corrido bem depressa ao meu encontro para me dizer que, entre suas muralhas, no quartel de cavalaria Luís XVI, ele pensava em mim. O papel trazia as armas de Marsantes, nas quais distingui um leão que superava uma coroa encimada por um barrete de par da França.

            "Depois de uma viagem sem novidades (dizia-me), dedicada a ler um livro que comprei na estação, escrito por Arvede Barine (penso que seja um autor russo; pareceu-me extremamente bem escrito para um estrangeiro; mas diga o que acha, pois você, poço de ciência que leu tudo, deve conhecê-lo), eis-me de volta ao ambiente desta vida grosseira, onde infelizmente me sinto bem exilado e nada tenho do que deixei em Balbec; esta vida onde não encontro nenhuma sombra de afeto, nenhum vestígio de intelectualidade; vida cujo ambiente você sem dúvida desprezaria e que, todavia, possui algum encanto. Tudo me parece ter mudado desde que estive aqui pela última vez, pois no intervalo começou uma das épocas mais importantes da minha vida, aquela da qual data a nossa amizade. Espero que esta não, acabe jamais. Só falei dela e de você a uma única pessoa, a minha amiga, que me fez a surpresa de vir passar uma hora comigo. Ela gostaria muito de conhecê-lo e creio que você concordaria com isto, pois também é muito literária. Em compensação para repensar em nossas conversas, para reviver essas horas que jamais esquecerei, isolei-me de meus camaradas, excelentes moços mas que teriam sido incapazes de compreender essas coisas. Essas lembranças dos momentos passados com você, gostaria de evocá-las, no primeiro dia, só para mim e sem lhe escrever. Mas receio que você, espírito sutil e coração ultra-sensível, fique preocupado se não receber nenhuma carta minha, se é que se dignou a abaixar seu pensamento logo para este rude soldado que tanto trabalho lhe há de dar para desbastar e tornar um pouco mais sutil e digno de você."

            No fundo, esta carta se parecia muito, por sua ternura, àquelas que, quando ainda não conhecia Saint-Loup, imaginara que ele me escreveria, naquelas fantasias de imaginação de que me arrancou a frieza do nosso primeiro encontro, pondo-me diante de uma realidade glacial que não deveria ser definitiva. Depois de tê-la recebido, cada vez que, à hora do almoço, traziam a correspondência, eu reconhecia logo quando chegava uma carta dele, pois elas ostentavam sempre aquela fisionomia que uma criatura ausente mostra e de cujas feições (o tipo de letra) não há razão alguma para que não acreditemos extrair uma alma individual tão bem como a distinguimos na forma do nariz ou nas inflexões da voz.

            Agora, eu ficava de boa vontade à mesa enquanto retiravam o serviço, e não me limitava mais a olhar o mar, a não ser no momento em que as moças do grupinho poderiam passar. Desde que vira essas coisas nas aquarelas de Elstir, procurava reencontrá-las na realidade, apreciava como elemento poético o gesto interrompido das facas ainda atravessadas, a redondeza abaulada de um guardanapo desfeito onde o sol intercala um pedaço de veludo amarelo, a taça meio vazia que assim revela a nobre amplitude de suas formas e, no fundo de seu cristal translúcido, semelhante a uma condensação do dia, um resto de vinho escuro, mas cintilante de brilhos, o deslocamento dos volumes, a transmutação dos líqüidos por efeitos de luz, a alteração das ameixas, que passam do verde ao azul e do azul ao dourado na compoteira já meio vazia, o passeio das cadeiras velhinhas que, duas vezes ao dia, vêm se instalar ao redor da toalha estendida na mesa, como sobre um altar onde são celebrados os ritos da gula, e na qual há ostras em cujo interior jazem algumas gotas de água lustral como em pequenas pias de água benta; eu tentava encontrar a beleza onde jamais imaginara que estivesse, nas coisas mais comuns, na vida profunda das "naturezas mortas".

            Dias depois da partida de Saint-Loup, consegui que Elstir promovesse uma pequena matinê onde me encontraria com Albertine; houve quem me achasse elegante e charmoso, aliás qualidades ambas momentâneas, quando saía do Grande Hotel (o que se devia a um repouso prolongado e a cuidados especiais de indumentária), e lamentei não poder reservar a simpatia e a elegância (bem como o prestígio de Elstir) para a conquista de uma outra pessoa mais interessante, lamentei gastar tudo isto pelo simples prazer de conhecer Albertine. Minha inteligência julgava bem pouco valioso esse prazer, desde que estava assegurado. Mas dentro de mim a vontade não concordava um instante sequer com essa ilusão, a vontade, que é servidora perseverante e imutável de nossas personalidades sucessivas; oculta na sombra, desdenhada, de uma fidelidade infatigável, trabalha sem cessar e sem se preocupar com as variações do nosso eu para que nunca lhe falte nada do que necessita.

            Ao passo que, no momento em que vai se efetuar uma viagem desejada, a inteligência e a sensibilidade começam a perguntar-se se de fato vale a pena viajar, a vontade, que sabe que esses mestres ociosos recomeçariam imediatamente a achar maravilhosa essa viagem caso ela não pudesse realizar-se, a vontade os deixa dissertar diante da estação, multiplicar as hesitações; porém ocupa-se em pegar as passagens e vai nos colocando no vagão para quando chegue a hora da partida. Ela é tão invariável quanto a inteligência e a sensibilidade se mostram mutáveis; mas, como é silenciosa, não dá suas razões, parece quase inexistente. É à sua firme determinação que obedecem as outras partes do nosso eu, mas sem o perceber, ao passo que elas distinguem nitidamente suas próprias incertezas. Minha sensibilidade e minha inteligência instituíram então um debate sobre o valor do prazer que haveria em conhecer Albertine, enquanto eu olhava ao espelho os vãos e frágeis adornos de minha pessoa, que ambas prefeririam conservar intactos para outra ocasião; mas minha vontade não deixou passar a hora em que era necessário partir, e foi o endereço de Elstir que ela deu ao cocheiro. Minha inteligência e minha sensibilidade ainda pensaram que era uma pena, pois a sorte estava lançada. Se minha vontade tivesse dado outro endereço, elas ficariam desapontadas.

            Quando cheguei em casa de Elstir, pouco depois, a princípio julguei que a Srta. Simonet não se achava presente. No ateliê estava uma jovem sentada, de vestido de seda, cabeça descoberta; eram-me desconhecidos a cabeleira magnífica,o nariz e a cor da pele, onde nada encontrei da entidade que extraíra de uma jovem ciclista que passeava coberta por uma boina, ao longo da praia. No entanto era Albertine. Porém, mesmo quando o soube, não me ocupei dela. Quando se é jovem, ao entrar em qualquer reunião social, a gente morre para si mesmo, torna-se homem diferente, visto que todo salão é um novo universo onde, obedecendo à lei de uma outra perspectiva moral, fixamos a atenção, como se fossem nos importar para sempre, em pessoas, danças, jogos de cartas, que no dia seguinte estarão esquecidos. Obrigado a seguir, para chegar a uma conversa com Albertine, um caminho que de modo algum traçara e que parava primeiro diante de Elstir, passava por outros grupos de convidados, a quem ia sendo apresentado, depois ao longo do bufê, onde me eram oferecidas, e onde comia, tortas de cerejas, enquanto escutava imóvel a música que principiavam a tocar, acabei dando a estes episódios diversos a mesma importância que à minha apresentação à Srta. Simonet, apresentação que não era senão uma a mais dentre aqueles episódios, e que eu inteiramente esquecera ter sido, alguns minutos antes, o objetivo único da minha vinda. Aliás, não ocorre o mesmo na vida ativa, com nossas verdadeiras felicidades, nossas grandes desgraças? No meio de outras pessoas, recebemos, daquela a quem amamos, a resposta favorável ou mortal que esperávamos há um ano. Mas é preciso continuar a conversar, as idéias se ajuntam umas às outras, desenvolvendo uma superfície à qual só vem aflorar surdamente, de quando em vez, a lembrança, aliás bem profunda porém tênue, de que nos chegou a desgraça. Se, no lugar desta, vem a felicidade, pode ocorrer que somente muitos anos depois nos lembremos que o maior acontecimento da nossa vida sentimental se cumpriu sem que tivéssemos tido tempo de lhe prestar uma atenção prolongada, e quase que de tomar consciência dele, numa reunião social, por exemplo, e à qual havíamos comparecido apenas na expectativa desse acontecimento.

            No momento em que Elstir me chamou para me apresentar a Albertine, sentada um pouco mais adiante, primeiro acabei de comer uma bomba de chocolate com café e pedi com interesse a um velho senhor, a quem acabara de conhecer, e ao qual julguei poder oferecer a rosa que ele admirava em minha botoeira, que me desse pormenores acerca de algumas feiras normandas. Não preciso dizer que a apresentação que se seguiu não me causou prazer nenhum, nem pareceu ter a meus olhos qualquer gravidade. Quanto ao prazer, só o conheci naturalmente um pouco mais tarde, quando, de volta ao hotel, e estando sozinho, me tornei de novo eu mesmo. Com os prazeres, ocorre o mesmo que com as fotografias. O que colhemos na presença da pessoa amada não passa de um clichê negativo que revelamos depois, logo que estivermos em casa, quando temos à nossa disposição essa câmara escura interior cuja entrada é "proibida" enquanto há gente à vista.

            Se o conhecimento do prazer me foi assim retardado de algumas horas, em troca percebi logo a gravidade dessa apresentação. No momento dela, podemos sentir-nos de súbito gratificados e portadores de um "vale" para futuros prazeres, atrás do qual corríamos há várias semanas; mas bem percebemos que sua obtenção põe fim, para nós, não apenas a exaustivas buscas o que apenas poderia nos encher de júbilo-, mas também à existência de uma certa criatura, aquela que nossa imaginação tinha desfigurado, e que o nosso temor ansioso de jamais poder conhecê-la havia engrandecido. No instante em que o nosso nome ressoa na boca do apresentador, sobretudo se é cercado, como o fez Elstir, de palavras elogiosas nesse instante sacramental, análogo àquele em que, numa féerie, o gênio ordena a uma pessoa que seja uma outra de repente-, desaparece aquela criatura de quem nos desejávamos aproximar; antes de mais nada, como permaneceria ela igual a si mesma, já que devido à atenção que a desconhecida é obrigada a prestar ao nosso nome e à nossa pessoa nos olhos ontem situados no infinito (e que julgávamos que os nossos, errantes, mal regulados, aflitos, divergentes, jamais lograriam atingir), o olhar consciente, o pensamento incognoscível que procurávamos acaba de ser milagrosa e simplesmente substituído por nossa própria imagem pintada como no fundo de um espelho que estivesse sorrindo. Se a encarnação de nós mesmos que nos parecia bem diverso de nós, é o que mais modifica a pessoa a quem acabam de nos apresentar, a forma dessa pessoa permanece ainda bastante imprecisa; e podemos nos indagar se ela será deus, mesa ou bacia.     Porém, tão ágeis como os ceroplastas que modelam um busto à nossa frente em cinco minutos, as poucas palavras que a desconhecida vai nos dizer precisarão essa forma e lhe dar algo de definitivo que há de excluir todas as hipóteses às quais, na véspera, se entregavam o nosso desejo e a nossa imaginação. Sem dúvida, mesmo antes de comparecer àquela reunião, Albertine já não era de todo para mim esse único fantasma digno de assombrar nossa vida, que permanece para nós uma passante de quem nada sabemos, e que mal vislumbramos. Seu parentesco com a Sra. Bontemps já restringira essas hipóteses maravilhosas, tapando uma das vias por onde podiam se espalhar. À medida que me aproximava da moça, e a conhecia mais, tal conhecimento se fazia por subtração, sendo cada pedaço de imaginação e de desejo substituído por uma noção que valia infinitamente menos, noção à qual, é verdade, vinha acrescentar-se uma espécie de equivalente, no terreno da vida, ao que as sociedades financeiras dão após o reembolso da ação primitiva, e que denominam ação de usufruto. Seu nome e seus parentes haviam sido uma primeira limitação trazida às minhas hipóteses. Sua gentileza foi um outro limite, enquanto, bem junto dela, eu voltava a encontrar seu sinalzinho no rosto, abaixo do olho; enfim, admirei-me de ouvi-la empregar o advérbio "perfeitamente" em vez de "completamente", ao se referir a duas pessoas, dizendo que era "perfeitamente louca, mas afinal muito gentil" e, da outra, que "é um senhor perfeitamente vulgar e perfeitamente aborrecido". Por pouco agradável que fosse aquele emprego de "perfeitamente", indica um grau de civilização e de cultura ao qual não poderia imaginar que a bacante de bicicleta, a musa orgiástica do golfe, alcançaria. O que aliás não impediu que, após esta primeira metamorfose, Albertine devesse ainda mudar várias vezes para mim. As qualidades e os defeitos que uma criatura apresenta dispostos no primeiro plano de seu rosto ordenam-se de acordo com uma formação completamente diferente se a abordamos de um lado diverso como em uma cidade os monumentos espalhados em ordem dispersa sobre uma só linha, sob outro ponto de vista escalonam-se em profundeza e trocam suas grandezas relativas. Para começar, achei Albertine com aspecto bastante intimidado, em vez de implacável; pareceu-me mais distinta do que mal-educada, a julgar pelos epítetos de "ela terá mau gênio, ela tem um gênio esquisito" que aplicou a todas as moças de quem falei; enfim, como ponto marcante do rosto, tinha Albertine têmpora bastante afogueada e pouco agradável de ver; não mais o olhar estranho em que eu havia pensado até então. Mas aquilo não passava de uma segunda vista, e sem dúvida haveria outras pelas quais eu devia passar sucessivamente. Assim, só depois de ter reconhecido, não sem hesitações, os erros de ótica do começo, é que podemos alcançar o conhecimento exato de uma criatura, se é que tal conhecimento é possível. Mas não o é pois, ao passo que se retifica a visão que temos dela, ela mesma, que não é um objetivo inerte, muda por conta própria; julgamos apanhá-la, ela se desloca, e, acreditando vê-la enfim mais claramente, conseguimos aclarar apenas as imagens antigas que havíamos tomado, mas essas imagens não a representam mais.

            Entretanto, apesar das inevitáveis decepções que possa acarretar, essa marcha na direção do que apenas se entreviu, para o que se teve tempo de imaginar essa marcha é a única saída para os sentidos, que nela entretêm seu apetite. De que morno aborrecimento está impregnada a vida das pessoas que, por preguiça ou timidez, vão diretamente de carro à casa dos amigos, a quem conheceram sem primeiro ter sonhado com eles, sem jamais ousar, durante o caminho, parar junto de quem desejam!

            Voltei para o hotel pensando naquela reunião matutina, revendo a bomba com café que acabara de comer antes de deixar que Elstir me levasse para junto de Albertine, a rosa que havia dado ao velho senhor, todos esses detalhes escolhidos à nossa revelia pelas circunstâncias e que compõem para nós, num arranjo especial e fortuito, o quadro de um primeiro encontro. Mas esse quadro, tive a impressão de vê-lo sob outro ponto de vista, de muito longe de mim mesmo, compreendendo que não havia existido só para mim quando, alguns meses depois, para meu grande espanto, como falasse a Albertine sobre o dia em que nos conhecêramos pessoalmente, ela me recordou a bomba, a flor que eu havia dado, tudo o que eu julgava, não digo importante apenas para mim, mas apenas de mim conhecido, e que encontrava assim transcrito, em uma versão de cuja existência nem suspeitava, no pensamento de Albertine.

            Desde esse primeiro dia, quando ao regressar pude ver a lembrança que trazia comigo, compreendi que passe de mágica fora perfeitamente executado, e como havia conversado por um instante com a pessoa que, graças à habilidade do prestidigitador, sem ter coisa alguma daquela que eu seguira por tanto tempo à beira da praia, fora-lhe substituída. Aliás, deveria tê-lo adivinhado previamente, visto que a moça da praia fora fabricada por mim. Apesar disso, como eu a houvesse, em minhas conversas com Elstir, assimilado a Albertine, sentia-me, em relação a esta, na obrigação moral de manter as promessas de amor feitas à Albertine imaginária. A gente fica noivo por procuração e, a seguir, julga-se obrigado a desposar a pessoa interposta. Além disso, se havia desaparecido provisoriamente, ao menos da minha vida, uma angústia, à qual bastaria, para serenar, a recordação das maneiras corretas, da expressão "perfeitamente vulgar" e da têmpora afogueada, essa recordação despertava em mim um outro gênero de desejo, que, embora suave e nada doloroso, semelhante a um sentimento fraternal, podia com o tempo se tornar bem perigoso, fazendo-me sentir a todo instante a necessidade de beijar essa nova pessoa, cujas boas maneiras e timidez, além da disponibilidade inesperada, detinham a corrida inútil da minha imaginação, mas davam origem a uma gratidão enternecida. E depois, como a memória começa de imediato a tirar fotografias independentes umas das outras, suprimindo todo elo, todo progresso entre as cenas nelas figuradas, a derradeira, na coleção das que ela expõe, não destrói forçosamente as anteriores. Em face da medíocre e palpável Albertine a quem havia falado, eu via a misteriosa Albertine diante do mar. Agora, eram lembranças, ou seja, quadros dos quais nenhum me parecia mais verdadeiro que o outro. Enfim, para terminar com esse dia de apresentação, tentando rever o sinalzinho no rosto abaixo do olho, lembrei-me que, quando Albertine fora embora, vira-lhe eu o mesmo sinalzinho no queixo. Em suma, quando a via, reparava que tinha um sinalzinho; porém, a seguir, minha memória radiante passeava pelo rosto de Albertine, pondo-o ora aqui, ora ali.

            Por mais desapontado que ficasse por ter achado na Srta. Simonet uma moça muito pouco diferente de todas que conhecia, assim como a minha decepção diante da igreja de Balbec cancelava-me o desejo de ir a Quimperlé, a Pont-Aven e a Veneza, dizia comigo que, ao menos por meio de Albertine, caso ela mesma não fosse o que eu havia esperado, poderia conhecer suas amigas do pequeno grupo. A princípio julguei que iria fracassar. Como ela devia permanecer ainda muito tempo em Balbec, e eu também, achara que o melhor seria não insistir em vê-la e esperar uma ocasião que me proporcionasse um encontro. Mas isso acontecia todos os dias; era muito de temer que ela se contentasse em responder de longe à minha saudação, a qual, neste caso, repetida diariamente por toda a temporada, não levaria a coisa alguma.

            Pouco tempo depois, certa manhã em que chovera e em que fazia quase frio, fui abordado no molhe por uma moça que usava boina e regalo, tão diferente daquela que vira na reunião em casa de Elstir, que parecia a meu espírito uma operação impossível reconhecer nela a mesma pessoa; todavia, pude reconhecê-la, mas após um momento de surpresa que julgo não ter escapado a Albertine. Por outro lado, lembrando-me naquele instante das "boas maneiras" que me haviam espantado, ela me deixou assombrado em sentido inverso pelo seu tom rude e suas maneiras "pequeno grupo". Quanto ao mais, a têmpora deixara de ser o centro ótico e tranqüilizador do rosto, seja porque eu estivesse colocado do outro lado dela, seja porque a boina a tapasse, seja porque a vermelhidão fosse inconstante.

            -Que tempo! -disse ela.- No fundo, o verão sem fim de Balbec é uma grande piada. Você não faz nada aqui? Nunca se vê você no golfe, nos bailes do cassino; tampouco anda a cavalo. Como deve se aborrecer! Não acha que a gente se imbeciliza ficando o tempo todo na praia? Ah, você gosta de bancar o lagarto, hein? Bem, você tem tempo. Vejo que não é como eu; adoro todos os esportes! Não esteve nas corridas da Sogne? Nós fomos até lá de bonde, e compreendo que não lhe agrade um calhambeque daqueles. Levamos duas horas até lá! No mesmo tempo, eu teria ido e voltado três vezes com a minha bicicleta.

            Eu, que havia admirado Saint-Loup quando ele se referira, com toda a naturalidade, ao pequeno trem de ferro local como "tortinho", devido às numerosas curvas que fazia, fiquei intimidado com a facilidade com que Albertine dizia "calhambeque". Sentia a sua maestria em um sistema de designações em que eu temia que ela percebesse e desprezasse a minha inferioridade.

            Também a riqueza de sinônimos que possuía o pequeno grupo para designar aquela estrada de ferro ainda não me fora revelada. Falando, Albertine conservava a cabeça imóvel, as narinas apertadas, e movia apenas a ponta dos lábios. Daí resultava um som como que arrastado e nasal, em cuja composição talvez entrassem heranças provincianas, uma afetação juvenil de fleuma britânica, lições de uma professora estrangeira e uma hipertrofia congestiva da mucosa do nariz. Tal emissão de voz, que aliás cedia bem depressa à medida que ia conhecendo as pessoas, e se tornava naturalmente infantil, poderia passar por desagradável. Era no entanto muito especial e me deixava encantado. Todas as vezes que ficava alguns dias sem vê-la, exaltava-me repetindo:

            "Nunca se vê você no golfe", com o tom nasal com que ela falara, muito reta, sem mexer a cabeça. E então imaginava não existir pessoa mais desejável.

            Formávamos, naquela manhã, um desses pares que matizam aqui e ali o passeio do molhe com seus encontros, suas paradas, justo o tempo necessário para trocar algumas palavras antes de se despedirem para cada um tomar em separado o seu passeio divergente. Aproveitei essa imobilidade para olhar e saber em definitivo onde estava situado o sinalzinho. Ora, assim como um trecho de Vinteuil que me encantara na Sonata e que minha memória fazia vaguear do andante ao final, até o dia em que, tendo em mãos a partitura, pude encontrá-lo e imobilizá-lo na minha lembrança em seu lugar devido, no scherzo-da mesma forma o sinalzinho que me lembrava estar ora na face, ora no queixo, parou para sempre sobre o lábio superior abaixo do nariz. Do mesmo modo encontramos, com espanto, versos que sabíamos de cor, numa peça onde não suspeitávamos que estivessem.

            Naquele momento, como para que diante do mar se multiplicasse livremente, na variedade de suas formas, todo o rico conjunto decorativo que era o belo desfilar das virgens, a um tempo róseas e douradas, curtidas pelo sol e pelo vento, as amigas de Albertine, de pernas bonitas e lindo corpo, mas tão diversas umas das outras, mostraram seu grupo, que foi se desenrolando, avançando em nossa direção, mais perto do mar, numa linha paralela. Pedi licença a Albertine para acompanhá-la por alguns instantes. Infelizmente ela se contentou em lhes abanar com a mão.

            - Mas suas amigas vão se queixar se não acompanhá-las. - disse-lhe, esperando que passeássemos juntos.

            Um rapaz de feições regulares, com raquetes na mão, se aproximou de nós. Era o jogador de bacará, cujas loucuras tanto indignavam a esposa do primeiro magistrado. Com ar frio, impassível, no qual evidentemente ele imaginava consistir a suprema distinção, cumprimentou Albertine.

             - Está vindo do golfe, Octave? - indagou esta. - Correu tudo bem? Está em forma?

            - Oh, isto me aborrece, estou em apuros - respondeu ele.

            - André também estava lá?

            - Sim, e fez setenta e sete.

            - Oh, mas é um recorde!

            - Eu tinha feito oitenta e dois ontem.

            Octave era filho de um industrial muito rico que deveria desempenhar um papel importantíssimo na organização da próxima Exposição universal. Espantou-me ver a que ponto, naquele moço e nos outros raros amigos masculinos dessas moças, o conhecimento que possuíam de tudo quanto era roupa, modo de vestir, charutos, bebidas inglesas, cavalos-conhecimento que Octave possuía nos mínimos detalhes com uma infalibilidade altiva que atingia a modéstia silenciosa do sábio se desenvolvera isoladamente sem ser acompanhado da menor cultura intelectual. Não mostrava qualquer hesitação sobre a oportunidade do smoking ou do pijama, mas não suspeitava do caso em que se pode ou não empregar certa palavra, e nem mesmo das regras mais elementares do francês. Essa disparidade entre os dois tipos de cultura devia ser a mesma no caso de seu pai, presidente do Sindicato dos Proprietários de Balbec, pois, numa carta aberta aos eleitores, que acabara de afixar em todos os muros, dizia:

            "Eu quis ver o prefeito para falá-lo a respeito disso, ele não quis ouvir minhas justas queixas."

            Octave, no cassino, ganhava prêmios em todos os concursos de bóston, tango, etc., o que lhe proporcionaria, se quisesse, um belo casamento nesse ambiente de "banhos de mar", onde não é no sentido figurado, mas no literal, que as moças acabam casando com seu "par". Octave acendeu um charuto enquanto dizia a Albertine:

            - Com licença. - como se pede autorização para terminar um trabalho urgente enquanto se conversa. Pois ele nunca podia "ficar sem fazer nada", embora nunca fizesse coisa nenhuma. E, como a inatividade completa acaba por ter os mesmos efeitos que o trabalho exagerado, tanto no domínio moral como na vida do corpo e dos músculos, a constante nulidade intelectual que morava por trás da fronte sonhadora de Octave acabara por lhe conferir, apesar de seu aspecto tranqüilo, ineficazes tentações de pensamento que o impediam de dormir à noite, como poderia ocorrer a um metafísico exausto.

            Imaginando que se conhecesse seus amigos poderia ter mais oportunidades de ver essas moças, estava a ponto de pedir para lhe ser apresentado. Assim o disse a Albertine, logo que ele foi embora repetindo:

            -Estou em apuros. Pensava incutir-lhe a idéia de me apresentar da próxima vez.

            -O quê! -exclamou Albertine. - Não posso apresentá-lo a um gigolô! Isto aqui fervilha de gigolôs. Mas eles não poderiam conversar com você. Este joga muito bem o golfe, e pronto. Sei o que estou dizendo, não é absolutamente do seu gênero.

            - Suas amigas vão se queixar se as deixa assim - disse eu, esperando que ela propusesse irmos juntos ao encontro delas.

            - Nada disso, elas não têm necessidade alguma de mim.

            Passamos por Bloch, que me lançou um sorriso fino e insinuante e, embaraçado quanto a Albertine, a quem não conhecia, ou pelo menos conhecia "sem conhecer", abaixou a cabeça para o colarinho num movimento seco e rebarbativo.

            - Como é que se chama esse ostrogodo? perguntou Albertine. - Não sei por que me cumprimenta, visto que não me conhece. Portanto, não lhe retribuí seu cumprimento.

            Não tive tempo de responder a Albertine, pois, caminhando direito sobre nós:

            - Desculpa-me a interrupção. - disse ele-, mas queria te avisar que vou amanhã a Doncieres. Não posso mais esperar sem cometer uma grosseria e me pergunto o que Saint-Loup-en-Bray deve estar pensando de mim. Previno-te que tomo o trem das duas horas. À tua disposição.

            Mas eu não pensava mais do que em rever Albertine e tentar conhecer suas amigas, e Doncieres, como elas não iam para lá e me obrigaria a voltar para casa depois da hora em que elas estariam na praia, me parecia ficar no fim do mundo. Disse a Bloch que aquilo era-me impossível.

            - Pois bem, irei sozinho. Conforme os dois ridículos alexandrinos do Sr. Arouet, direi a Saint-Loup, para acalentar seu anticlericalismo: Saiba que meu dever não depende do seu. Faça o que lhe aprouver; eu cumprirei o meu.

            - Reconheço que é um belo rapaz-disse-me Albertine;- mas o fato é que ele me desagrada.

            Jamais imaginara que Bloch pudesse ser tido como um belo rapaz. Era-o de fato. Com uma cabeça um tanto proeminente, um nariz bem recurvo, um ar de extrema finura, e de quem estava convencido da própria finura, tinha um rosto agradável. Mas não podia agradar Albertine. Era talvez devido às más qualidades de Albertine, à dureza e à insensibilidade do pequeno grupo, à grosseria dela para com tudo o que lhe não dizia respeito. Aliás, mais tarde, quando os apresentei, a antipatia de Albertine não diminuiu. Bloch pertencia a um meio no qual, entre o gracejo empregado na alta sociedade e o suficiente respeito pelas boas maneiras que deve ter um homem que tem "mãos limpas", ergueu-se entretanto uma espécie de compromisso particular que difere das maneiras da alta sociedade e é, apesar de tudo, uma forma singularmente odiosa de mundanismo. Quando era apresentado a alguém, Bloch se inclinava a um tempo com um sorriso de ceticismo e um respeito exagerado e, se se tratava de um homem, dizia:

            - Encantado, senhor - com uma voz que se ria das palavras pronunciadas mas tinha consciência de pertencer a alguém que não era um sujeito grosseiro. Após esse primeiro momento de um costume que ele seguia e do qual, ao mesmo tempo, troçava (como quando dizia no dia 1° de janeiro: "Feliz Ano-Novo"), tomava um ar de finura e malícia e "proferia coisas sutis" que, muitas vezes, eram cheias de verdade, mas "irritavam os nervos" de Albertine. Quando lhe disse naquele primeiro dia que ele se chamava Bloch, ela exclamou:

            - Eu seria capaz de jurar que era judeu. É bem do jeito deles.

            Aliás, Bloch, a seguir, devia irritar Albertine de outra forma. Como diversos intelectuais, ele não podia dizer com simplicidade as coisas simples. Para cada uma, encontrava um qualificativo precioso e depois generalizava. Isto aborrecia Albertine, que não gostava muito de que se ocupassem como que ela fazia; quando torceu o pé e teve de ficarem sossego, Bloch observou:      -Ela está na espreguiçadeira mas, por ubiqüidade, não deixa de freqüentar simultaneamente indistintos golfes e remotos tênis.

            Aquilo não passava de "literatura", mas que, devido às dificuldades que Albertine sentia que poderia lhe criar com as pessoas cujo convite recusara, dizendo que não podia se mover, bastou para que criasse aversão ao rosto e ao som da voz do rapaz que dizia tais coisas.     Separamo-nos, Albertine e eu, combinando sair juntos um dia. Conversara com ela sem mais saber aonde cairiam minhas palavras e aonde iriam parar, como se lançasse pedras num abismo sem fundo. Que em geral sejam preenchidas, pela pessoa a quem as dirigimos, de um sentido que ela tira de sua própria substância e que é bem diferente do que havíamos posto nessas mesmas palavras, é um fato que a vida cotidiana nos revela permanentemente. Mas se, além disso, estamos juntos de uma pessoa cuja educação (como, para mim, a de Albertine) nos é inconcebível, desconhecidas as inclinações, as leituras, os princípios, não sabemos se nossas palavras nela despertam maior reação que num animal, a quem no entanto tivéssemos de fazer compreender certas coisas. De modo que tentar ligar-me a Albertine me parecia uma tomada de contato com o desconhecido, senão com o impossível, como um exercício tão incômodo feito o de domar um cavalo, tão repousante como o de criar abelhas ou cultivar rosas.

            Algumas horas antes, julgara que Albertine só responderia de longe ao meu cumprimento. Acabávamos de nos separar fazendo projeto de um passeio juntos. Prometi a mim mesmo, quando encontrasse Albertine de novo, ser mais ousado com ela, e já traçara previamente o plano de tudo o que lhe diria e até mesmo (agora que tinha a impressão absoluta de que ela devia ser leviana) de todos os prazeres que lhe exigiria. Mas o espírito é influenciável como a planta, como a célula, como os elementos químicos e o meio que o modifica, se nele o mergulhamos, vem a ser as circunstâncias, um quadro novo. Tornando-me diverso pelo fato de sua própria presença, quando me encontrei de novo com Albertine disse-lhe coisas bem diferentes das que havia planejado. Depois, lembrando-me da têmpora avermelhada, perguntava a mim mesmo se Albertine não gostaria mais de uma gentileza que soubesse desinteressada. Enfim, sentia-me embaraçado diante de alguns olhares seus, de certos sorrisos. Podiam significar costumes fáceis, mas também a alegria meio boba de uma moça brincalhona, mas no fundo honesta. Uma mesma expressão, do rosto como da linguagem, podia comportar diversas acepções, e eu vacilava como um aluno diante das dificuldades de uma tradução do grego.

            Desta vez nos encontramos quase em seguida com a moça alta, Andrée, a que havia saltado sobre o velho magistrado; Albertine teve de me apresentar. Sua amiga possuía olhos extraordinariamente claros, como a abertura das portas que, num quarto sombrio, dão para o sol e o reflexo esverdeado do mar imerso em luz. Passaram cinco senhores que eu conhecia muito bem de vista desde que chegara a Balbec. Muitas vezes indagara a mim mesmo quem seriam.

            - Não são pessoas muito chiques - disse-me Albertine, com uma risadinha de desprezo.

            -O velhinho de cabelo pintado e luvas amarelas tem uma pinta, hein?

            - É o dentista de Balbec, é um bom tipo; o gordo é o prefeito, não o baixinho, esse você deve ter visto, é o professor de dança, também é detestável; não pode nos suportar porque fazemos muito barulho no cassino, estragamos suas cadeiras, queremos dançar sem tapete, de forma que nunca nos deu um prêmio, embora somente nós é que saibamos dançar. O dentista é um bom sujeito; por mim, o cumprimentaria, para enfurecer o professor de dança, mas não podia porque com ele está o Sr. de Sainte-Croix, o conselheiro-geral, um homem de muito boa família que aderiu aos republicanos por dinheiro; nenhuma pessoa decente o cumprimenta mais. Ele conhece meu tio, por causa do governo, mas o resto da minha família lhe volta as costas. O magro, de impermeável, é o regente da orquestra. Como? Não o conhece? Ele toca divinamente. Não foi ouvir a Cavalleria Rusticana? Ah, acho-a ideal! Ele dá um concerto esta noite, mas não podemos ir porque se realiza na sala da Prefeitura. No cassino, não teria problemas, mas, na sala da Prefeitura, de onde retiraram o Cristo, a mãe de Andrée teria uma apoplexia se fôssemos. Você pode me dizer que o marido de minha tia está no governo. Mas que quer? Minha tia é minha tia. E não é por isso que não gosto dela! Ela só teve um desejo na vida: livrar-se de mim. A pessoa que verdadeiramente me serviu de mãe, e com duplo valor, já que não é nada minha, é uma amiga a quem, aliás, amo como se fosse mãe. Vou lhe mostrar a sua foto.

            Fomos abordados neste momento pelo campeão de golfe e jogador de bacará, Octave.

            Julguei ter descoberto um laço comum entre nós porque, pela conversa, fiquei sabendo que era parente afastado dos Verdurin, que muito o estimavam. Mas ele falou com desdém das famosas quartas-feiras e acrescentou que o Sr. Verdurin ignorava o uso do smoking, e era muito constrangedor encontrá-lo em certos music-hafis, onde a gente bem gostaria de não ser saudado aos gritos de "Alô, malandro!" por um senhor de paletó e gravata preta de tabelião de aldeia.        Depois Octave nos deixou e em breve foi a vez de Andrée, que chegara a seu chalé, onde entrou sem que, em todo o passeio, tivesse dito uma só palavra. Senti muito que fosse embora, tanto mais que, enquanto falava a Albertine de sua frieza para comigo, e comparava em pensamento a dificuldade que Albertine parecia ter em me unir às suas amigas com a hostilidade contra a qual parecia ter se chocado Elstir para satisfazer meus desejos no primeiro dia, passaram umas moças a quem saudei, as senhoritas d'Ambresac, que Albertine também cumprimentou.

            Pensei que minha situação fosse melhorar diante de Albertine. Elas eram filhas de uma parenta da Sra. de Villeparisis e que também conhecia a Sra. de Luxemburgo.

            O Sr. e a Sra. d'Ambresac, que possuíam uma pequena herdade em Balbec e eram excessivamente ricos, levavam uma vida bem simples e sempre vestiam, o marido o mesmo gênero de casaco, e a mulher um costume escuro. Ambos faziam grandes cumprimentos à minha avó que não levavam a nada. As filhas, muito bonitas, vestiam-se com mais elegância, mas uma elegância citadina e não de balneário. Em seus vestidos longos, debaixo de grandes chapéus, davam a impressão de pertencerem a uma outra humanidade diversa da de Albertine. Esta sabia muito bem quem eram elas.

            -Ah, você conhece as pequenas d'Ambresac? Muito bem, conhece gente muito chique. Além do mais, elas são bem simples. - acrescentou como se isso fosse uma contradição. - São muito gentis, mas de tal maneira bem-educadas que não as deixam ir ao cassino, principalmente por nossa causa, porque somos inconvenientes. Agradam-lhe? Diabo, isso depende... São bem umas patinhas brancas. Isso tem seu encanto, talvez. Se você gosta das patinhas brancas, está bem servido. Parece que elas podem agradar, pois uma delas já está noiva do marquês de Saint-Loup. E isto deu muita mágoa à mais moça, que estava apaixonada pelo rapaz. Quanto a mim, só a sua maneira de falar com a ponta dos lábios me deixa enervada. E depois, elas se vestem de uma forma ridícula. Vão jogar golfe com vestido de seda. Na sua idade, são mais pretensiosas no vestir que as mulheres idosas que sabem trajar-se. Veja a Sra. Elstir. Eis aí uma mulher elegante.          Respondi que ela me parecera trajada com bastante simplicidade. Albertine se pôs a rir.        -Com bastante simplicidade, é certo, mas se veste admiravelmente bem e, para chegar ao que você chama de simplicidade, gasta um dinheiro louco.

            Os vestidos da Sra. Elstir passavam despercebidos aos olhos de quem não tivesse gosto apurado e sóbrio das coisas da toalete. Tal gosto me faltava. Elstir o possuía no mais alto grau, pelo que me disse Albertine. Não o havia desconfiado, e nem mesmo que as coisas elegantes, porém simples, que enchiam o seu ateliê, fossem maravilhas há muito desejadas por ele, que as seguira de venda em venda, conhecendo toda a sua história, até o dia em que ganhara dinheiro bastante para possuí-las. Mas sobre tal assunto Albertine, tão ignorante quanto eu, não podia me informar coisa alguma. Ao passo que, no que dizia respeito às toaletes, advertida por um instinto de coqueteria, e talvez por uma nostalgia de moça pobre que saboreia com mais delicadeza e desinteresse, nos ricos, aquilo que ela própria não poderá usar, soube falar muito bem dos requintes de Elstir, tão exigente que achava mal vestidas todas as mulheres, e que, colocando um mundo inteiro numa proporção, num matiz, mandava fazer para a mulher, a preços exorbitantes, sombrinhas, chapéus, capas, que ensinara Albertine a achar deliciosos, e que uma pessoa destituída de gosto não teria reparado mais do que eu. De resto, Albertine, que fizera um pouco de pintura sem que tivesse, aliás, segundo confessava, nenhuma "disposição" para tal, tributava uma grande admiração a Elstir e, graças ao que ele lhe dissera e mostrara, era entendida em quadros de uma forma que muito contrastava com sem entusiasmo pela Cavalleria Rusticana. E que, na verdade, embora isso ainda não notasse, ela era muito inteligente e, nas coisas que me dizia, a estupidez não era soma do seu ambiente e de sua idade. Elstir tivera sobre ela uma influência benéfica, mas parcial. Todas as formas da inteligência não haviam chegado a Albertine num mesmo grau de desenvolvimento. O gosto da pintura quase tinha alcançado o da toalete e de todas as formas de elegância, mas não fora seguido pelo gosto da música, que ficara bem para trás.

            De nada valeu que Albertine soubesse quem eram os Ambresac, pois, como quem pode o muito nem por isso também pode o pouco, depois de eu ter saudado aquelas moças, não a achei mais disposta do que antes a me fazer conhecer suas amigas.

            - Você é muito amável para lhes dar tanta importância. Não lhes preste atenção, não valem nada. Que é que essas garotas têm para um homem do seu valor? Andrée, pelo menos, é bem inteligente. É uma boa garota, apesar de perfeitamente maluca, mas as outras são mesmo muito idiotas.

            Depois de ter deixado Albertine, senti de repente muita mágoa de Saint-Loup, por ter me ocultado que estava noivo, e por fazer algo tão incorreto como casar sem antes romper com a amante. No entanto, poucos dias depois fui apresentado a Andrée e, como ela falou por muito tempo, aproveitei para lhe dizer que apreciaria muito vê-la no dia seguinte; mas ela me disse que era impossível, pois encontrara a mãe passando muito mal e não queria deixá-la sozinha. Dois dias após, tendo ido visitar Elstir, este me falou da enorme simpatia que Andrée sentia por mim; como lhe respondesse:

            - Mas fui eu que tive muita simpatia por ela desde o primeiro dia; tinha lhe pedido para vê-la no dia seguinte e ela disse que não podia.

            - Sim, eu sei, ela me contou disse Elstir-; lamentou muito, mas havia aceitado ir a um piquenique a dez léguas daqui, aonde devia ir de break, e não podia mais desmarcar.

            Embora a mentira fosse muito insignificante, pois Andrée me conhecia tão pouco, eu não deveria ter continuado a freqüentar uma pessoa que era capaz de dizê-la. Pois as pessoas que assim começam continuam indefinidamente.

            E, se fôssemos visitar todos os anos um amigo que da primeira vez não pôde comparecer a um encontro por se achar resfriado, encontrá-lo-íamos resfriado de novo e faltaria outra vez a um encontro, ao qual não compareceria pelo mesmo motivo permanente em lugar do qual ele julga ver motivos diversos, causados pelas circunstâncias.

            Uma das manhãs que se seguiram àquela em que Andrée me dissera ser obrigada a ficar junto da mãe, estava eu passeando com Albertine, a quem encontrara atirando ao ar, na ponta de uma corda, um objeto esquisito que a fazia parecer-se com a Idolatria, de Giotto; aliás, chama-se diabolô e de tal maneira caiu em desuso que, diante do retrato de uma moça com um deles, os comentadores do futuro poderão dissertar, como diante de uma figura alegórica da Arena, sobre o que ela segura na mão. Passado um momento, sua amiga do grupo, de aspecto rude e pobre, que troçara no primeiro dia com um ar tão maligno:

            "Esse pobre velho me dá pena"; falando do velho senhor roçado pelos pés ligeiros de Andrée, veio dizer a Albertine:

            - Bom dia, estou incomodando?

            Tirara o chapéu, que a atrapalhava, e seus cabelos, como uma variedade vegetal deslumbrante e desconhecida, caíam-lhe na testa com a minuciosa delicadeza de sua foliação. Albertine, talvez irritada por vê-la de cabeça descoberta, não respondeu nada, mantendo um silêncio glacial; apesar disso, a outra ficou, conservada a distância por Albertine, que às vezes dava um jeito de ficar a sós com ela, outras vezes de andar a meu lado, deixando-a por trás. Para que me apresentasse, fui obrigado a pedi-lo diante da outra. Então, no momento em que Albertine disse o meu nome, no rosto e nos olhos azuis daquela moça em quem achara um ar tão cruel quando havia dito:

            "Esse pobre velho me dá pena" -vi passar e brilhar um sorriso cordial, amável, e ela me estendeu a mão. Seus cabelos eram dourados e não só eles; pois, se suas faces eram rosadas e os olhos azuis, era como o céu ainda purpurino da manhã onde em toda parte o ouro brilha e aponta.

            Ficando logo entusiasmado, imaginei que fosse uma menina tímida quando amava e que era por mim, por amor a mim, que ela havia ficado conosco apesar das grosserias de Albertine, e que devia sentir-se feliz de poder enfim me confessar, com aquele olhar risonho e bondoso, que seria tão doce comigo quão terrível para com os outros.

            É claro que devia ter reparado em mim na praia, quando não a conhecia ainda, e pensava em mim desde então: talvez fosse para se fazer admirada por mim que havia zombado do velho senhor, e porque não tivesse chegado a me conhecer é que, nos dias seguintes, ostentara aquele ar melancólico. Do hotel, muitas vezes a avistara a passar à tardinha na praia. Provavelmente era na esperança de me encontrar. E agora, constrangida pela presença de Albertine, como o tinha sido pela de todo o pequeno grupo, evidentemente não se juntava a nós, apesar da atitude cada vez mais fria de sua amiga, senão na esperança de ficar por último, de marcar encontro comigo para um momento em que tivesse meios de escapar, sem que a família e as amigas soubessem, num lugar seguro antes da missa ou depois do golfe. E era ainda mais difícil vê-la porque Andrée estava de mal com ela e a detestava.

            - Durante muito tempo suportei sua terrível falsidade - disse-me Albertine -, sua baixeza, as inúmeras sujeiras que me fez. Suportei tudo por causa das outras. Mas a última foi a gota d'água.    E me contou uma intriga que essa moça havia espalhado e que, de fato, podia causar prejuízos a Andrée.

            Mas as palavras a mim prometidas pelo olhar de Gisele para o momento em que Albertine nos deixasse sozinhos não puderam ser ditas, pois, tendo Albertine, obstinadamente colocada entre nós dois, continuado a responder cada vez com maior brevidade, e depois deixando inteiramente de responder às palavras da amiga, esta acabou por nos deixar. Censurei a Albertine o ter sido tão desagradável.

            - Isto a ensinará a ser mais discreta. Não é má menina, mas é chata demais. Não precisa vir meter o nariz por toda parte. Porque se gruda a nós sem ter sido chamada? Por pouco não a mandei plantar batatas. Aliás, detesto que use os cabelos desse jeito; não fica bem.

            Eu olhava as faces de Albertine enquanto ela falava, a indagava-me que perfume e que gosto deveriam ter; naquele dia estava, não fresca mas lisa, de um rosado unido, violáceo, cremoso, como certas rosas que têm um verniz de cera. Estava apaixonado por elas como o estamos às vezes por um espécime de flor.

            - Não tinha reparado - respondi.

            - No entanto, olhou muito para ela, se poderia até dizer que desejava fazer o seu retrato. -respondeu ela sem se acalmar pelo fato de que, naquele instante, era ela mesma quem eu olhava tanto. - Não creio, no entanto, que lhe agrade. Ela não flerta de jeito nenhum. Você deve gostar das moças que flertam. Em todo caso, ela não mais terá oportunidade de se grudar e se oferecer, pois em breve volta a Paris.

            - Suas outras amigas vão com ela?

            - Não, apenas ela e a Miss, porque ela tem de fazer exames de recuperação; vai ter de estudar muito, a pobre. Garanto-lhe que não é nada engraçado. Pode ser que lhe caia um bom tema. O acaso é importante. Assim, uma de nossas amigas pegou: "Narre um acidente ao qual tenha assistido." Isto é que é sorte. Mas conheço uma moça que teve de se virar (e por escrito, ainda por cima) com o seguinte: "Entre Alceste e Philinte, qual dos dois preferiria ter como amigo?" O que eu não teria suado com isso! Primeiro, e acima de tudo, não é pergunta que se faça a moças. As moças se unem a outras moças e não são obrigadas a ter senhores como amigos. (Esta frase, mostrando que eu tinha poucas chances de ser admitido no pequeno grupo, me fez tremer.) Mas, em todo caso, mesmo que a pergunta fosse feita a rapazes, que é que você acha que se possa dizer a respeito? Várias famílias escreveram ao Gaulois para se queixarem da dificuldade de questões semelhantes. O melhor de tudo é que, numa coletânea das melhores provas de alunas coroadas, o assunto foi tratado duas vezes de forma absolutamente oposta. Tudo depende do examinador. Um queria que se dissesse que Philinte era um homem adulador e tratante, outro que não se podia recusar sua admiração por Alceste, o qual era por demais azedo, e que, como amigo, era preciso preferir-lhe Philinte. Como quer que as infelizes alunas se acertassem se nem os professores estão de acordo entre si? E isso ainda não é nada, pois a cada ano a coisa se torna mais difícil. Gisele só poderia se dar bem com um pistolão.

            Regressei ao hotel, mas minha avó estava ausente; esperei por ela durante muito tempo; por fim, quando ela chegou, roguei-lhe que me deixasse fazer uma excursão, em condições inesperadas, que levaria talvez 48 horas; almocei com ela, encomendei um carro e mandei que me levassem à estação. Gisele não ficaria espantada por me ver ali; uma vez que faríamos baldeação em Doncieres, havia, no trem de Paris, um vagão-corredor onde, enquanto a Miss cochilasse, eu poderia levar Gisele para um canto escuro, marcar encontro com ela para o meu regresso a Paris, que eu cuidaria de apressar o mais possível. Conforme o desejo que ela me expressasse, eu a acompanharia até Caen ou mesmo a Évreux, e tomaria o primeiro trem de volta. Ainda assim, o que não pensaria Gisele se soubesse que eu havia hesitado por muito tempo entre ela e suas amigas, e que tanto quisera apaixonar-me por ela como por Albertine, pela moça de olhos claros ou por Rosemonde? Senti remorsos, agora que um amor recíproco ia me unir a Gisele. Aliás, poderia lhe assegurar, muito veridicamente, que Albertine já não me agradava. Vira-a naquela manhã voltar-se, quase me dando as costas, para falar com Gisele. Sobre a cabeça inclinada, com ar amuado, seus cabelos, que trazia penteados para trás e mais negros que nunca, brilhavam como se ela acabasse de sair de dentro d'água. Pensei até numa franga molhada, e esses cabelos tinham-me feito encarnar em Albertine uma outra alma diferente da que até então me lembravam o rosto cor-de-violeta e o olhar misterioso. Durante um momento, tudo o que pude perceber dela foram aqueles cabelos luzidios por trás da cabeça, e era apenas isso o que continuava a ver. Nossa memória se assemelha a essas lojas que, em suas vitrinas, expõem de uma certa pessoa ora uma fotografia, ora outra. E, de hábito, a mais recente é a única a permanecer, durante algum tempo, em exposição. Enquanto o cocheiro apressava o seu cavalo, eu ouvia as palavras de reconhecimento e ternura que Gisele me dizia, todas nascidas do seu sorriso bom e de sua mão estendida; é que nos períodos da minha vida em que não estava enamorado e nos quais o desejava estar, não levava em mim apenas um ideal físico de beleza entrevista que reconhecia de longe em cada passante, bastante afastada para que seus traços confusos não se opusessem a tal identificação mas também o espectro moral -sempre disposto a ser encarnado da mulher que ia se apaixonar por mim e dar-me a réplica na comédia amorosa que eu trazia inteiramente escrita na cabeça desde minha infância e que toda jovem amável, a meu ver, estaria querendo representar, contanto que tivesse um pouco das condições físicas para o papel. Nessa peça, fosse qual fosse a nova "estrela" que eu chamasse para criar ou repetir o papel, o cenário, as peripécias e o próprio texto conservavam uma mesma forma.

            Alguns dias depois, apesar da pouca pressa de Albertine em nos apresentar, eu já conhecia todo o pequeno grupo do primeiro dia, que continuava completo em Balbec (menos Gisele, que, devido a uma parada longa diante da barreira da estação e a uma mudança de horário, eu não pudera encontrar no trem, que partira cinco minutos antes da minha chegada, e na qual, além disso, já não pensava) e a mais duas ou três amigas delas que, a meu pedido, me haviam sido apresentadas. E assim, a esperança do prazer que eu teria com uma nova moça era proveniente de outra moça a quem por ela fora apresentado; a mais recente era então como uma dessas variedades de rosas que se obtém graças a uma rosa de outra espécie. E, remontando de corola em corola nessa cadeia de flores, o prazer de conhecer uma outra diferente fazia-me virar para aquela a quem a devia, com uma gratidão mesclada de tanto desejo como se fosse a minha nova esperança. Em breve passei o dia inteiro com elas.

            Mas, infelizmente, na flor mais viçosa já se podem distinguir os pontos imperceptíveis que, para o espírito prevenido, delineiam o que será, pela dissecação ou frutificação das carnes hoje em flor, a forma imutável e já predestinada da semente. Seguimos encantados um nariz semelhante a uma onda minúscula, que enche deliciosamente uma água matinal e que parece imóvel, delineável, porque o mar está de tal modo tranqüilo que nem percebemos a maré. Os rostos humanos não parecem mudar no momento em que os olhamos, pois a revolução que cumprem é muito lenta para que a percebamos. Mas bastaria ver, ao lado dessas moças, sua mãe ou sua tia, para avaliar as distâncias que, sob a atração interna de um tipo em geral horrendo, essas feições teriam atravessado em menos de trinta anos, até a hora do declínio dos olhares, até o momento em que o rosto, tendo ultrapassado a linha do horizonte, já não recebe luz. Eu sabia que, tão profundo, tão inelutável como o patriotismo judeu ou o atavismo cristão, naqueles que se julgam mais liberados de suas raças, habitava, sob a rósea inflorescência de Albertine, de Rosemonde e de Andrée, desconhecidos delas próprias, mantidos em reserva pelas circunstâncias, um nariz grosso, uma boca proeminente, uma gordura que espantaria mas que na realidade já estava nos bastidores, pronta para entrar em cena, imprevista, fatal, feito uma onda de dreyfusismo, de clericalismo, de heroísmo nacional e feudal, subitamente aparecidos, ao apelo das circunstâncias, de uma natureza anterior ao próprio indivíduo, pela qual ele pensa, vive, evolui, se fortifica ou morre, sem que a possa distinguir dos motivos particulares com que a confunde. Mesmo mentalmente, dependemos das leis naturais muito mais que julgamos e nosso espírito possui previamente, como certo criptógamo, ou determinada gramínea, as particularidades que acreditamos escolher.

            Mas não apreendemos mais que as idéias secundárias sem nos apercebermos da causa primeira (raça judia, família francesa, etc.) que as produzia necessariamente e que manifestamos no momento desejado. E talvez, enquanto umas nos parecem o resultado de uma deliberação e as outras a conseqüência de um descuido na nossa higiene, herdamos da nossa família, como as papilionáceas a forma de sua semente, tanto as idéias de que vivemos como a doença de que havemos de morrer.

            Como num viveiro onde as flores amadurecem em épocas diversas, eu as vira, como velhas damas, naquela praia de Balbec, essas duras sementes, esses tubérculos macios, que minhas amigas um dia haveriam de ser. Mas que importava? Neste momento era a estação das flores. Assim, quando a Sra. de Villeparisis me convidava para um passeio, eu buscava uma desculpa para não estar livre. Só visitei Elstir quando minhas novas amigas me acompanhavam. Nem mesmo pude encontrar uma tarde para ir a Doncieres a fim de ver Saint-Loup, como lhe prometera. As reuniões sociais, as conversações sérias, até mesmo uma palestra amigável, se viessem substituir meus passeios com aquelas moças, me causariam o mesmo efeito de que se nos levassem, à hora do almoço, não para comer e sim para olhar um álbum. Os homens, os rapazes, as mulheres velhas ou maduras com quem julgamos agradável conviver, só os levamos a uma superfície plana e inconsistente porque não tomamos consciência deles senão pela percepção visual reduzida a si mesma; mas é como delegada dos outros sentidos que ela se dirige às moças; eles vão procurar, uma após outra, as diversas qualidades odoríferas, tácteis, saborosas, de que desfrutam, mesmo sem ajuda das mãos e dos lábios; e, capazes, graças às artes da transposição e ao gênio da síntese em que excede o desejo, de restituir sob a cor das faces ou do busto, o contato, a degustação, o roçar proibido, eles conferem a essas moças a mesma consistência de mel que dão às rosas e às uvas quando vagueiam por um roseiral ou um vinhedo, cujos cachos comem com os olhos.

            Se chovia, conquanto o mau tempo não assustasse Albertine, que era muitas vezes vista com seu impermeável, correndo de bicicleta debaixo dos aguaceiros, passávamos o dia no cassino, onde me pareceria impossível não ir naqueles dias. Eu sentia o maior desprezo pelas senhoritas d'Ambresac, que jamais entravam ali. E, com muito gosto, ajudava minhas amigas a pregar peças no professor de dança. Em geral sofríamos algumas admoestações do gerente do cassino ou dos empregados, que se arrogavam poderes ditatoriais, porque minhas amigas até a própria Andrée, que justamente devido àquele salto eu havia, desde a primeira vez, julgado uma criatura tão dionisíaca e que, pelo contrário, era frágil, intelectual e, naquele ano, muito adoentada, mas que, apesar disso, obedecia menos ao seu estado de saúde que ao temperamento dessa idade que arrasta e confunde tudo na alegria, tanto os doentes como os robustos não podiam ir do vestíbulo ao salão de festas sem tomar impulso, saltar por cima de todas as cadeiras, voltar deslizando, conservando o equilíbrio com um gracioso movimento dos braços, cantando, misturando todas as artes nessa primeira juventude, à maneira daqueles poetas dos tempos antigos para quem os gêneros ainda não estão separados e que mesclam num poema épico os preceitos agrícolas aos ensinamentos teológicos.

            Essa Andrée, que me havia parecido a mais fria da primeira vez, era infinitamente mais delicada, mais afetuosa, mais refinada que Albertine, a quem devotava uma ternura carinhosa e suave de irmã mais velha. Vinha ao cassino sentar-se a meu lado e sabia ao contrário de Albertine recusar uma valsa ou até, se eu estivesse cansado, desistir de ir ao cassino para vir ao hotel. Expressava sua amizade por mim, por Albertine, com nuanças que davam provas da mais deliciosa inteligência das coisas do coração, o que talvez se devesse em parte ao seu estado enfermiço. Tinha sempre um sorriso alegre para desculpar as criancices de Albertine, que exprimia com uma violência ingênua a atração irresistível que para ela ofereciam os prazeres a que não sabia, como Andrée, preferir decididamente uma conversa comigo. Quando se aproximava a hora de um lanche servido no campo de golfe, ela se preparava e depois ia ter com Andrée:

            - E então, Andrée, está esperando o quê? Está sabendo muito bem que vamos lanchar no campo de golfe.

            - Não, eu fico para conversar com ele. - respondia Andrée me apontando.

            - Mas você sabe que a Sra. Durieux a convidou - gritava Albertine, como se a intenção de Andrée de ficar comigo só pudesse se explicar pela ignorância, de sua parte, de que fora convidada.

            - Ora vamos, minha filha, não seja tão idiota - respondia Andrée.

            Albertine não insistia, de medo que lhe propusessem ficar também.

            - Faça o que quiser. - respondia sacudindo a cabeça, como se diz a um doente que por prazer se mata aos pouquinhos; - vou andando, pois parece que o seu relógio está atrasado.

            E saía voando.

            - Ela é encantadora, mas incrível - dizia Andrée, envolvendo a amiga num sorriso que a acariciava e julgava ao mesmo tempo.

            Se, nesse prazer pelo divertimento, Albertine mostrava um pouco da Gilberte dos primeiros tempos, é que existe uma certa semelhança embora sempre evoluindo, entre as mulheres que amamos sucessivamente, semelhança que tem a ver com a fixidez do nosso temperamento, porque é ele quem as escolhe, eliminando todas aquelas que não nos seriam, a um tempo, opostas e complementares, isto é, próprias para satisfazer nossos sentidos e deixar sofrer nosso coração.

            Tais mulheres são um produto do nosso temperamento, uma imagem e uma projeção às avessas, um "negativo" da nossa sensibilidade. De modo que um romancista poderia, no decurso da vida de seu herói, pintar de modo quase exatamente igual os seus amores sucessivos e, assim, dar a impressão não de imitar a si próprio, mas de criar, visto que há menos força numa inovação artificial do que numa repetição destinada a sugerir uma verdade nova. Embora deva assinalar, no caráter do apaixonado, um índice de variação que se denuncie à medida que vai chegando a novas regiões, sob outras latitudes da vida. E talvez ainda exprimisse uma verdade a mais se, pintando caracteres para suas outras personagens, ele se abstivesse de conceder qualquer caráter à mulher amada. Conhecemos o caráter dos que nos são indiferentes; como poderíamos apreender o de uma criatura que se confunde com a nossa vida, que em breve não mais havemos de separar de nós próprios, sobre cujos motivos não cessamos de formular ansiosas hipóteses, perpetuamente remanejadas? Lançando-se para além da inteligência, nossa curiosidade quanto à mulher a quem amamos ultrapassa em sua corrida o caráter dela. Poderíamos ali parar, mas de certo não o desejaríamos. O objeto de nossa inquieta investigação é mais essencial que essas particularidades de caráter, iguais a esses pequenos losangos da epiderme cujas variadas combinações formam a florida originalidade da carne. Nossa radiação intuitiva os atravessa e as imagens que ela nos restitui não são de modo algum as de um aspecto particular, mas representam a sombria e dolorosa universalidade de um esqueleto.

            Como Andrée era extremamente rica e Albertine pobre e órfã, a primeira, com grande generosidade, fazia a outra aproveitar o seu luxo. Quanto aos sentimentos que externava em relação a Gisele, não eram inteiramente aqueles que eu imaginara. De fato, em breve tivemos notícias da estudante e, quando Albertine mostrou a carta que recebera dela, carta destinada por Gisele a dar notícias da viagem e da chegada, desculpando-se pela preguiça de ainda não ter escrito às outras, fiquei surpreso ao ouvir Andrée, que julgara estar de mal com ela por toda a vida, dizer:

            -Vou lhe escrever amanhã, porque se espero primeiro a sua carta, posso ficar esperando por muito tempo, ela é tão negligente. - E, virando-se para mim, acrescentou: - Evidentemente, você não a acharia muito interessante, mas é uma moça muito boa; e depois, sinto na verdade uma grande afeição por ela.

            Concluí que as brigas de Andrée não duravam muito.

            A não ser nos dias de chuva, como tínhamos de ir de bicicleta pelos rochedos da costa ou pelos campos, com uma hora de antecipação eu já procurava me preparar e gemia se Françoise não cuidara bem dos meus apetrechos.

            Ora, mesmo em Paris, ela aprumava, altiva e raivosamente, o corpo que a idade começava a curvar, diante da menor falta de que a acusassem, ela que era tão humilde, modesta e encantadora quando seu amor-próprio era lisonjeado. Como este era o principal móvel da sua vida, a satisfação e o bom-humor de Françoise estavam na razão direta da dificuldade das coisas que lhe pediam. As coisas que tinha a fazer em Balbec eram tão fáceis que quase sempre ela demonstrava um descontentamento que, de súbito, era centuplicado, e ao qual se aliava uma irônica expressão de orgulho quando eu me queixava, no momento de ir encontrar as minhas amigas, que o meu chapéu não fora escovado, ou que minhas gravatas não estavam em ordem. Ela, que podia trabalhar tanto sem por isso achar ter feito alguma coisa, à simples observação de que um casaco não estava no lugar, não só se gabava do cuidado com que "o guardara para não deixar que ficasse empoeirado", mas, fazendo um elogio em regra de seus trabalhos, deplorava que absolutamente não eram férias o que estava passando em Balbec, que não achariam outra pessoa como ela para suportar uma vida daquelas.

            - Não entendo como alguém pode deixar seus negócios desse jeito, e ver se uma outra saberia dar conta desta confusão. Até o diabo perderia o seu latim.

            Ou então, contentava-se em assumir um aspecto de rainha, lançando-me olhares inflamados, e mantinha um silêncio interrompido logo que fechava a porta e enfiava pelo corredor; este, então, retumbava de frases que eu adivinhava serem injuriosas, mas que permaneciam tão indistintas como as das personagens que recitam suas primeiras palavras nos bastidores antes de entrar em cena. Além disso, quando me preparava desse modo para sair com minhas amigas, mesmo que nada me faltasse ou que Françoise estivesse de bom humor, ela ainda assim se mostrava insuportável. Pois, servindo-se de gracejos que, na minha necessidade de falar daquelas moças, eu lhe fizera sobre elas, Françoise assumia um ar de quem vai me revelar o que eu melhor do que ela saberia ser exato, mas que não o era, pois Françoise o compreendera mal. Como todos, Françoise possui seu gênio próprio; uma pessoa nunca se assemelha a um caminho reto, e nos assombra com seus desvios singulares e inevitáveis de que os outros não se apercebem, e por onde nos é penoso ter de passar. Cada vez que eu chegava ao ponto:

            "Chapéu fora do lugar", "em nome de Andrée ou de Albertine", era obrigado, por Françoise, a me perder em caminhos absurdos e cheios de desvios que muito me atrasavam. O mesmo ocorria quando eu mandava preparar os sanduíches de queijo e a salada, e comprar tortas que comeria à hora do lanche, sobre o rochedo, com essas moças, e que elas bem poderiam pagar, cada uma por sua vez, se não fossem tão interesseiras, declarava Françoise, em cujo socorro vinha então todo um atavismo de rapacidade e vulgaridade provincianas e para quem se diria que a alma repartida da defunta Eulalie se encarnara, mais graciosamente que em santo Elói, nos corpos encantadores de minhas amigas do pequeno grupo. Eu escutava essas acusações com a raiva de topar com um desses pontos a partir dos quais o caminho rústico e familiar, que era o caráter de Françoise, se tornava impraticável felizmente não por muito tempo. Depois, achado o casaco e prontos os sanduíches, eu ia procurar Albertine, Andrée, Rosemonde, por vezes outras, e, a pé ou de bicicleta, íamos embora.

            Outrora, eu teria preferido que esse passeio se desse com mau tempo. Então, queria eu descobrir em Balbec "o país dos cimérios", e dias bonitos eram uma coisa que não deveria ter existido ali, uma invasão do estio vulgar dos banhistas nessa região antiga velada de brumas. Porém agora, tudo o que eu desdenhara, afastara dos olhos, não só os efeitos do sol mas também as regatas, as corridas de cavalos, tudo isso eu procuraria com paixão pelo mesmo motivo por que, antigamente, só desejava mares tempestuosos, e era porque se prendiam, uns hoje em dia como outrora os outros, a um ideal estético. É que, com minhas amigas, ia às vezes visitar Elstir e, nos dias em que as moças lá estavam, ele mostrara de preferência alguns esboços de lindas yachtswomen ou então um rascunho feito num hipódromo vizinho a Balbec.

            Primeiramente, confessara com timidez a Elstir que não quisera comparecer às reuniões que ali se realizavam.

            -Fez mal - disse-me ele -, é tão bonito, e também curioso. De início, essa criatura particular, o jóquei, no qual se fixam tantos olhos, e que diante do paddock está acinzentado e sombrio em sua casaca de espavento, formando um só todo com o cavalo inquieto que ele retém; como seria interessante liberar seus movimentos profissionais, mostrara mancha brilhante que produz e que também faz o pêlo dos cavalos na pista de corridas! Que transformação de todas as coisas nessa imensidade luminosa de uma pista de corridas onde nos surpreendemos com tantas sombras, reflexos que só ali se vêem! Como são lindas as mulheres ali! Especialmente a primeira reunião estava de arrebatar! Havia mulheres de extrema elegância, numa luz úmida, holandesa, onde se sentia subir, mesmo ao sol, o frio penetrante da água. Nunca vi mulheres chegando de carro, ou de binóculos, numa luz como aquela, resultante sem dúvida da umidade marinha. Ah, como gostaria de captá-la numa tela! Voltei louco daquelas corridas, com tanta vontade de trabalhar!

            Depois, extasiou-se mais ainda com as reuniões de iatismo do que com as corridas de cavalos, e percebi então que as regatas, os embates esportivos, onde as mulheres bem vestidas se banhavam na glauca iluminação de um hipódromo marinho, podiam ser, para um artista moderno, motivos tão interessantes como, para um Veronese ou um Carpaccio, as festas que eles tanto gostavam de descrever.

            - Sua comparação é tanto mais exata. - disse-me Elstir -, visto que, por causa da cidade onde pintavam, tais festas eram náuticas por um lado. Apenas, a beleza das embarcações daquele tempo residia o mais das vezes no fato de serem pesadas, na sua complicação. Havia torneios marítimos como agora, geralmente em honra de alguma embaixada semelhante àquela que Carpaccio representa na Lenda de Santa Úrsula. Os navios eram maciços, construídos como arquiteturas, e pareciam quase anfíbios como Venezas menores no meio da outra, quando, unidos por meio de pontes levadiças, recobertos de cetim escarlate e de tapetes persas, levavam mulheres de brocado cereja ou de damasco verde até junto dos balcões incrustados de mármores multicores onde outras mulheres se debruçavam para ver, em seus vestidos de mangas negras, cujas aberturas de forro branco eram bordadas com pérolas ou ornadas de rendilhado fino. Não se sabia mais onde acabava aterra e onde começava a água, o que ainda era palácio ou já formava o navio, a caravela, a galeaça, o Bucentauro.

            Albertine escutava com uma atenção apaixonada esses detalhes de toalete, essas imagens luxuosas que nos descrevia Elstir.

            -Oh, como gostaria de ver os rendilhados de que fala, é tão linda a ponte de Veneza! -exclamou. -Aliás, gostaria muito de ir a Veneza!

            - Talvez possa ir em breve - disse Elstir - contemplar os tecidos maravilhosos que lá se usavam. Só podiam ser vistos nos quadros dos pintores venezianos, ou então, muito raramente, nos tesouros das igrejas, e às vezes até aparecia algum para vender. Mas conta-se que um artista de Veneza, Fortuny, encontrou o segredo de sua fabricação e que, daqui a alguns anos, as mulheres poderão passear e sobretudo ficar em casa vestindo brocados tão magníficos como os que Veneza ornamentava, para suas cidadãs, com desenhos do Oriente. Mas não sei se gostaria muito disso, se isso não seria um tanto anacrônico demais para as mulheres de hoje, mesmo que se exibam nas regatas, pois, para voltar aos nossos modernos barcos de recreio, são totalmente o oposto os tempos de Veneza, "Rainha do Adriático". O maior encanto de um iate, da mobília de um iate, das roupas adequadas ao iatismo, é a sua simplicidade de coisas do mar, e eu amo tanto o mar! Confesso-lhes que prefiro as modas atuais às do tempo de Veronese e até de Carpaccio. O que há de bonito nos nossos iates e principalmente nos iates médios, pois não gosto dos enormes, bancando navios; e, mesmo no caso dos chapéus, há uma certa medida a guardar-é a coisa lisa, singela, clara, discreta que, em épocas de névoa, azuladas, adquire uma vaporosidade cremosa. É preciso que o recinto em que se está pareça um pequeno café. O mesmo ocorre com as toaletes femininas em um iate; o gracioso são as toaletes leves, brancas e lisas, de linho, de cambraia, de brim, de pequim, que, ao sol e sobre o azul do mar, produzem um branco tão deslumbrante como uma vela branca. Aliás, há muito poucas mulheres que se vestem bem; no entanto, algumas são maravilhosas. Nas corridas, a Srta. Léa usava um chapeuzinho branco e uma sombrinha também branca que eram arrebatadores. Não sei o que daria para possuir uma sombrinha dessas.

            Muito gostaria eu de saber em que semelhante sombrinha diferia das demais, e muito mais ainda o queria saber Albertine, por motivos diversos, de coqueteria feminil. Mas, como dizia Françoise dos suflês, "é conforme a mão", a diferença estava no corte.

            - Era - dizia Elstir - pequenino, bem redondo, como um guarda-sol chinês.

            Citei as sombrinhas de várias mulheres, mas não era nada disso. Elstir achava horríveis tais sombrinhas. Homem de gosto difícil e requintado, fazia consistirem um nada, que era tudo, a diferença entre o que usavam três quartas partes das mulheres, e que lhe causava horror, e uma coisa linda que o deslumbrava; e ao contrário do que sucedia comigo, para, quem todo luxo era esterilizante, aquilo lhe exaltava o desejo de pintar, "para tentar fazer coisas tão bonitas".

            -Olhe, aí está uma menina que já compreendeu como eram o chapéu e a sombrinha. Disse-me Elstir indicando Albertine, cujos olhos brilhavam de cobiça.

            - Como gostaria de ser rica para ter um iate! - disse ela ao pintor. - Eu lhe pediria conselhos para arrumá-lo. Que belas viagens poderia fazer! E como seria lindo ir às regatas de Cowes! E um automóvel! Não acha lindas as modas femininas para automóveis?

            - Não. - respondeu Elstir - mas um dia serão. Aliás, há poucos costureiros, um ou dois; Callot, embora abuse um pouco das rendas, Doucet, Cheruit, às vezes Paquin. Os restantes são uns horrores.

            - Mas então, há uma enorme diferença entre uma toalete de Callot e a de um costureiro qualquer? - perguntei à Albertine.

            - Mas imensa, seu bobo. - respondeu ela. - Oh, perdão. Infelizmente, aquilo que custa trezentos francos em qualquer outro lugar, custa dois mil francos no estabelecimento deles. Mas nem há comparação; só parecem idênticos para quem não entende do riscado.

            - Perfeitamente. - concordou Elstir - sem que se possa dizer, entretanto, que a diferença seja tão profunda como a que existe entre uma estátua da catedral de Reims e da igreja de Saint-Augustin. Olhe, a propósito de catedrais - disse ele dirigindo-se especialmente a mim, pois aquilo se referia a uma conversa da qual as moças não tinham participado e que, de resto, não as teria interessado de forma alguma -, outro dia eu lhe falava da igreja de Balbec como de uma grande falésia, um grande montão de pedras da região, mais inversamente - disse ele, mostrando-me uma aquarela-; olhe estes rochedos (era um esboço feito muito perto daqui, nos Creuniers) -, olhe como estas rochas, delicadas e poderosamente recortadas, fazem pensar numa catedral. - De fato, dir-se-iam imensos arcos de abóbada cor-de-rosa. Mas pintados num dia tórrido, pareciam reduzidos a pó, volatilizados pelo calor, o qual havia bebido a meio o mar, que quase passara, em toda a extensão da tela, ao estado gasoso.

            Naquele dia, em que a luz como que destruíra a realidade, esta se concentrara em criaturas sombrias e transparentes que, por contraste, davam uma impressão mais próxima e mais impressionante de vida: as sombras. Sequiosas de frescor, a maior parte desertando o largo inflamado, se haviam refugiado ao sopé dos rochedos, ao abrigo do sol; outras, nadando devagar nas águas como golfinhos, se chegavam aos flancos dos barcos em passeio, cujos cascos alargavam, sobre a água pálida, com seu corpo brunido e azul. Era talvez a avidez do frescor comunicada por elas o que mais contribuía para a sensação de calor desse dia e que me fez exclamar o quanto lamentava não conhecer os Creuniers. Albertine e Andrée asseguraram que eu deveria ter ido ali umas cem vezes. Nesse caso, era sem o saber, sem desconfiar que um dia a sua vista poderia me inspirar uma tal sede de beleza, não propriamente natural, como a que eu havia procurado até aqui nas falésias de Balbec, mas sim arquitetônica. Sobretudo eu que, tendo partido para ver o reino das tempestades, nunca achava, nos meus passeios com a Sra. Villeparisis onde muitas vezes só o víamos de longe, pintado no intervalo das árvores, bastante real o oceano, suficientemente líqüido, vivo, que desse forte impressão de lançar suas massas de água, e que só gostaria de ver imóvel sob um lençol invernal de bruma não poderia de jeito nenhum acreditar que sonhasse agora com um mar que não passava de um vapor esbranquiçado e que perdera a consistência e a cor. Mas este mar, Elstir, como os que sonhavam nesses barcos entorpecidos pelo calor, lhe havia provado a tamanha profundidade o encantamento que soubera transportar, fixar na tela o imperceptível refluxo da água, a pulsação de um minuto feliz; e de súbito a gente ficava de tal forma enamorado, ao ver o quadro mágico, que não tinha pensamento senão para correr mundo, a fim de encontrar aquele dia que se fora, com toda sua graça instantânea e sossegada.

            De modo que, se antes dessas visitas à casa de Elstir, antes de ter visto uma tal marinha dele em que uma jovem com vestido de cambraia ou barege, num iate que arvorava a bandeira americana, punha o "duplo" espiritual de um vestido branco de cambraia e de uma bandeira na minha imaginação que, imediatamente, foi movida por um desejo insaciável de ver logo vestidos brancos de cambraia e bandeiras junto ao mar, como se aquilo nunca me houvesse ocorrido antes eu sempre me esforçara, diante do mar, para expulsar do campo da minha visão os banhistas do primeiro plano, os iates de velas demasiado brancas como um traje de banho, tudo o que me impedia de me convencer que contemplava a onda imemorial que já desdobrava sua vida misteriosa mesmo antes do aparecimento da espécie humana; e até os dias radiosos que me pareciam revestir do aspecto banal do verão universal essa costa de brumas e de tempestades, eram apenas um simples tempo de repouso, o que em música se denomina compasso de espera, enquanto, agora, era o mau tempo que se me afigurava tornar-se um acidente funesto, não mais podendo encontrar espaço no mundo da beleza; vivamente desejava ir achar na realidade aquilo que me exaltava com tanta força e esperava que o tempo seria suficientemente favorável para ver, do alto do rochedo, as mesmas sombras azuis que havia no quadro de Elstir.

            Ao longo da estrada, já não protegia a vista com as mãos como naqueles dias em que, concebendo a natureza como animada de uma vida anterior ao aparecimento do homem e em oposição a todos os aborrecidos aperfeiçoamentos da indústria, que até agora me haviam feito bocejar de tédio nas exposições universais ou nas lojas das modistas; em que tentava ver do mar apenas a seção em que não houvesse barcos a vapor, de maneira a me representá-lo como se fosse imemorial, ainda contemporâneo das eras em que fora separado da terra, pelo menos contemporâneo dos primeiros séculos da Grécia, o que me permitia repetir com veracidade os versos do "pai Leconte", tão caros a Bloch:

            ''Partiram já os reis das naves agressivas,

            Levando, é pena, pelo mar tempestuoso,

            Da heróica Hélade os homens cabeludos.''

            Eu não podia mais desprezar as modistas, visto que Elstir me dissera que o gesto delicado com que fazem a última prega, uma suprema carícia aos nós ou às plumas de um chapéu já acabado, lhe interessaria tanto desenhá-lo como as posturas do jóqueis (o que deixou Albertine encantada). Mas, no que dizia respeito às modistas, era forçoso esperar o meu regresso a Paris, e quanto às corridas e às regatas, a minha volta a Balbec no ano seguinte. Até mesmo um iate que levasse mulheres vestidas de alva cambraia era inencontrável.

            Muitas vezes encontrávamos as irmãs de Bloch, que eu era obrigado a cumprimentar desde que jantara em casa de seus pais. Minhas amigas não as conheciam.

            - Não tenho permissão para brincar com israelitas. - dizia Albertine.

            O modo como ela pronunciava a palavra, "issraelita" em vez de "izraelita", teria bastado para indicar, mesmo que não se ouvisse o começo da frase a seguir, que não eram sentimentos de simpatia em relação ao povo eleito o que animava essas jovens burguesas, de famílias devotas, e que deviam facilmente acreditar que os judeus degolavam as crianças cristãs.

            - Além disso, que gente suja essas suas amigas. - dizia Andrée com um sorriso que significava que sabia muito bem que não eram minhas amigas. 

            - Como tudo o que se refere à tribo - retrucava Albertine, no tom sentencioso de uma pessoa experiente.

            Para falar a verdade, as irmãs de Bloch, ao mesmo tempo muito vestidas e meio nuas, de ar lânguido, aspecto atrevido, faustoso e imundo, não produziam propriamente uma boa impressão. E uma de suas primas, de quinze anos apenas, escandalizava o cassino pela admiração que mostrava pela Srta. Léa, cujo talento de atriz Bloch pai prezava muito, embora não se pudesse censurá-lo como à sobrinha, pois não era tido por inclinar-se de preferência pelos homens.

            Em certos dias merendávamos em alguma das granjas-restaurantes que havia pelas redondezas. Eram estabelecimentos chamados de Ecorres, Maria-Thérese, Croix-d'Heuland, Bagatelle, Californie, Marie-Antoinette. Esta última é que fora adotada pelo pequeno grupo das moças.

            Porém às vezes, em lugar de ir para uma granja, subíamos até o alto da falésia e, logo ao chegar, sentados na grama, desfazíamos os embrulhos de sanduíches e de doces. Minhas amigas preferiam os sanduíches e se espantavam de me ver comer somente um doce de chocolate, goticamente enfeitado de açúcar, ou uma torta de damasco.

            É que eu não tinha nada a dizer aos sanduíches de queijo e de salada, iguaria nova e ignorante. Mas os doces eram instruídos, as tortas tagarelas. Nos primeiros havia velhos sabores de creme, e nas segundas frescores de frutas que muito sabiam acerca de Combray, de Gilberte, não só sobre a Gilberte de Combray, mas sobre a de Paris, em cujos lanches eu as havia encontrado. Elas me relembravam os pratos de sobremesa com bolinhos, das Mil e Uma Noites, que tanto distraíam a tia Léonie com seus "assuntos", quando Françoise lhe levava um dia, Aladim ou a Lâmpada Maravilhosa, outro dia, Ali Babá, o Dorminhoco Acordado, ou Simbad, o marujo embarcando em Baçorá com todas as suas riquezas. Muito me alegraria revê-los, mas minha avó não sabia aonde tinham ido parar e, aliás, imaginava que fossem pratos vulgares comprados na região. Não importa; na melancólica e champanhesa Combray as suas vinhetas se engastavam, multicores, como na escura igreja os vitrais de pedrarias cambiantes, como no crepúsculo do meu quarto as projeções da lanterna mágica, como diante da estação e da estrada de ferro do departamento os botões de ouro da Índia e os lilases da Pérsia, como a coleção de porcelanas chinesas antigas da minha tia em sua casa sombria de velha dama provinciana.

            Estendido sobre o rochedo, só via diante de mim alguns prados e, acima deles, não os sete céus da física cristã, mas a superposição de apenas dois: um mais carregado -o mar-e, ao alto, outro mais pálido. Comíamos e, se eu também tivesse trazido, para dar de presente, uma lembrancinha que agradasse a uma ou outra de minhas amigas, a alegria ocupava com tamanha e súbita violência o seu rosto translúcido, que num instante se fazia vermelho, que sua boca não a podia conter e para deixá-la sair, rebentava em riso. Estavam juntas a meu redor e, entre seus rostos, pouco afastados uns dos outros, o ar que as separava abria caminhos de azul como que traçados por um jardineiro que quisesse obter um pouco de espaço para ele próprio circular no meio de um bosque de rosas.

            Esgotadas nossas provisões, brincávamos de jogos que até ali me haviam parecido tediosos, às vezes tão infantis como "a torre de guarda" ou "aquele que rir primeiro", mas dos quais agora não abriria mão nem por um império; a aurora da juventude, que ainda coloria o rosto dessas moças, e que já não me atingia na minha idade, iluminava tudo diante delas e, como a pintura fluida de certos primitivos, fazia ressaltar os mais insignificantes detalhes de suas vidas sobre um fundo de ouro. Em sua maioria, os rostos das jovens estavam confundidos naquele arreboi indeciso da aurora, de onde ainda não tinham surgido suas verdadeiras feições. Só se via uma cor admirável sob a qual não se discernia o que deveria ser o perfil dentro de alguns anos. O de hoje não apresentava nada de definitivo e bem podia ser apenas uma semelhança momentânea com um membro defunto da família, a quem a natureza quisera prestar essa cortesia comemorativa. Vem tão depressa o momento em que já não temos o que esperar, em que o corpo se fixa numa imobilidade que não promete mais surpresas, quando se perde toda a esperança ao ver, como as folhas já mortas nas árvores em pleno verão, como caem ou embranquecem os cabelos em pessoas ainda jovens; é tão curta essa manhã radiosa que acabamos por amar somente as mocinhas muito jovens, essas em quem a carne, como uma pasta preciosa, encontra-se ainda em pleno desenvolvimento. Elas não passam de uma onda de matéria dúctil, a todo instante trabalhada pela impressão passageira que as domina. Dir-se-ia que cada uma é sucessivamente uma estatueta da alegria, da seriedade juvenil, da carícia, do espanto, modelada por uma expressão franca, repleta, fugitiva. Essa plasticidade confere muita variedade e encanto aos cuidados gentis que uma adolescente mostra para conosco. Certo, são também indispensáveis na mulher adulta, e aquela a quem não agradamos, ou que não nos deixa ver que a agradamos, assume a nossos olhos algo de tediosamente uniforme. Mas tais atenções, a partir de uma certa idade, já não trazem suaves flutuações a um rosto que as lutas da existência endureceram e tomaram para sempre militante ou estático. Um pela força contínua da obediência

que submete a esposa a seu marido parece, antes que de uma mulher, o rosto de um soldado; o outro, esculpido pelos sacrifícios que dia após dia fez a mãe pelos filhos, é o de um apóstolo; ainda outro é, depois de anos de reveses e tempestades, o de um velho lobo-do-mar, numa mulher de quem somente as roupas revelam o sexo.

            E, decerto, as atenções que uma mulher tem para conosco podem ainda, quando a amamos, encher de encantos novos as horas que passamos junto dela. Mas ela não é para nós, sucessivamente, uma mulher diversa. Sua alegria permanece exterior a um rosto imutável. Mas a adolescência é anterior à consolidação completa, e daí decorre que a gente experimenta, ao lado das mocinhas, esse refrigério que inspira o espetáculo das formas em constante mutação, brincando numa oposição instável que lembra a perpétua recriação de elementos primordiais da natureza que contemplamos diante do mar.

            Não era apenas uma reunião social matutina, um passeio com a Sra. de Villeparisis o que eu teria sacrificado ao "jogo do anel" ou às "adivinhas" das minhas amigas.

            Saint-Loup me mandara dizer várias vezes que, já que não ia visitá-lo em Doncieres, pedira uma licença de 24 horas e iria passá-la em Balbec. E eu lhe escrevia sempre que não viesse, dando como pretexto o fato de ser obrigado a me ausentar, justo naquele dia, para cumprir uma visita de obrigação de família com minha avó. Sem dúvida pensou muito mal de mim ao saber pela tia em que consistia o tal dever de família e quais as pessoas que, no caso, faziam o papel de minha avó. E, todavia, eu talvez não agisse mal em sacrificar não só os prazeres do mundanismo, mas até da amizade, ao de passar o dia inteiro naquele jardim.

            As criaturas que têm a possibilidade de viver para si mesmas- é verdade que se trata de artistas, e eu, há muito, estava convencido de que nunca o seria-têm igualmente o dever de viver por si mesmas; ora, a amizade significa para elas uma dispensa desse dever, uma abdicação de si próprias. Até a conversação, que é a forma de expressão da amizade, não passa de uma divagação superficial, que não nos faz adquirir coisa alguma. Podemos conversar durante a vida inteira sem dizer nada senão repetir indefinidamente o vazio de um minuto, ao passo que a marcha do pensamento no trabalho solitário de criação artística se faz no sentido da profundidade, a única direção que não nos é fechada, onde poderíamos progredir, claro que com mais sofrimento, para obter uma verdade. E a amizade não é apenas destituída de virtudes, como a conversa; ela é, ademais, funesta. Pois a impressão de tédio que não podem deixar de sentir junto do amigo, isto é, de permanecer na superfície de si mesmos em vez de prosseguir sua viagem de descobertas nas profundezas, aqueles em que a lei de desenvolvimento é puramente interna, essa impressão de tédio a amizade nos persuade a retificá-la quando nos achamos a sós, a recordar com emoção as palavras que o nosso amigo pronunciou, a considerá-las um dom precioso, já que não somos feito construções às quais se pode ajuntar pedras de fora, e sim feito árvores que extraem da própria seiva o nó seguinte do seu caule, o estádio superior de sua fronte. Estava mentindo a mim mesmo, interrompia o crescimento no sentido em que podia de fato crescer de verdade e ser feliz, quando me congratulava de ser estimado e admirado por uma criatura tão boa, tão inteligente, tão solicitada como Saint-Loup, quando adaptava minha inteligência, não às minhas próprias impressões obscuras, que seria obrigação minha destrinçar, mas às palavras de meu amigo, pois repetindo-as; fazendo com que me fossem repetidas por esse outro eu que vive em nós e no qual descarregamos com alívio o encargo de pensar-esforçava-me por achar uma beleza, bem diversa da que perseguia em silêncio quando estava efetivamente só, mas que conferiria mais mérito a Robert, a mim mesmo, à minha vida. Na vida que um tal amigo me proporcionava, eu surgia a mim mesmo como cuidadosamente preservado da solidão, nobremente desejoso de me sacrificar por ele; em suma, incapaz de me realizar. Ao contrário, junto dessas moças, se o prazer de que desfrutava era egoísta, ao menos não se baseava na mentira que busca nos fazer acreditar que não estamos irremediavelmente sós e que, quando conversamos com outros, nos impede de reconhecer que já não somos nós que falamos, que então nos modelamos à semelhança dos estranhos e não de um eu que difere deles. As palavras trocadas entre mim e as moças do pequeno grupo eram de escasso interesse, aliás raras, cortadas de minha parte por longos silêncios.

            Isto não me impedia de sentir, quando me falavam, tanto prazer em escutá-las como de as contemplar, descobrir na voz de cada uma um quadro vivamente colorido. Era deliciado que escutava o seu gorjeio. Amar auxilia a discernir, a diferenciar. Num bosque, o amador de pássaros distingue logo esse chilrear privativo de cada ave, que o vulgo confunde. O amador de moças sabe que as vozes humanas são ainda bem mais variadas. Cada uma possui mais notas que o mais rico instrumento. E as combinações segundo as quais ele as agrupa são tão inesgotáveis quanto a variedade infinita das personalidades. Quando conversava com uma de minhas amigas, percebia que o quadro original, único, de sua individualidade era-me engenhosamente desenhado, tiranicamente imposto, tanto pelas reflexões de sua voz como pelas de seu rosto, formando dois espetáculos que traduziam, cada qual em seu plano, a mesma realidade singular. Sem dúvida, as linhas da voz, como as da fisionomia, ainda não estavam fixadas em definitivo; a primeira ainda mudaria bem como mudaria a segunda. Assim como as crianças possuem uma glândula cujo líqüido as ajuda a digerir o leite, e que deixa de existir no adulto, havia no chilreio dessas jovens, certas notas que as mulheres não têm mais. E, nesse instrumento mais variado, elas tocavam com os lábios, com aquela aplicação, aquele ardor dos anjinhos músicos de Bellini, os quais também são um apanágio exclusivo da juventude. Mais tarde, essas jovens perderiam esse acento de convicção entusiasta que dava encanto às coisas mais simples, fosse porque Albertine, num tom autoritário, fizesse trocadilhos que as mais jovens escutavam com admiração até que o riso louco tomasse conta delas com a violência irresistível de um espirro, fosse porque Andrée se pusesse a falar de seus trabalhos escolares, mais infantis ainda que seus jogos, com uma gravidade essencialmente pueril; e as palavras delas ressoavam, semelhantes a essas estrofes dos tempos antigos onde a poesia, ainda pouco diferenciada da música, se declamava em notas diferentes. Apesar de tudo, a voz dessas moças acusava já, com nitidez, a maneira que cada uma tinha de encarar a vida, tão individual que seria generalizar demais dizer de uma:

            "ela leva tudo na brincadeira", ou de outra:

            "ela vai de afirmação em afirmação"; e de uma terceira:

            "ela se detém numa dúvida expectante".

            Os traços do nosso rosto são quase só gestos tornados definitivos pelo hábito. A natureza, como a catástrofe de Pompéia, como uma metamorfose de ninfa, nos imobilizou no movimento de costume. Da mesma forma, nossas entonações contêm nossa filosofia de vida, aquilo que a pessoa diz a si mesma a todo instante acerca das coisas. É claro que esses traços não eram somente das moças. Pertenciam a seus pais. O indivíduo banha-se em algo mais geral que ele próprio. Desse modo, os pais não fornecem apenas esse gesto habitual que são os traços do rosto e da voz, mas também certas maneiras de falar, certas frases consagradas, que, quase tão inconscientes quanto uma entonação, quase tão profundas, indicam, como ela, uma forma de encarar a vida. É verdade que, quanto às moças, há determinadas expressões que seus pais não lhes dão antes de uma certa idade, em geral não antes que se tornem mulheres. São guardadas em reserva. Assim, por exemplo, se o assunto eram os quadros de um amigo de Elstir, Andrée, que ainda usava cabelos soltos nas costas, não podia fazer pessoalmente uso da expressão empregada por sua mãe e sua irmã casada:

            "Parece que o homem é encantador."

            Mas isto acabaria acontecendo com a permissão para ir ao Palais-Royal. E, já desde a primeira comunhão, Albertine dizia, como uma amiga de sua tia:

            "Isso me pareceria atroz."

            Tinham-lhe dado também de presente o costume de repetir o que lhe diziam, a fim de dar a impressão de que se interessava e que procurava formar opinião própria. Se diziam que a pintura de um artista era boa ou que sua casa era linda:

            "Ah, é boa a pintura?" "Ah, é linda a casa?"

            Enfim, mais geral ainda que o legado familiar, era a matéria saborosa imposta pela província de origem, de onde elas tiravam a sua voz, e a mesma a que se ligavam as suas entonações. Quando Andrée extraía secamente uma nota grave, não podia fazer com que a nota perigordense do seu instrumento vocal desse um forte som cantante, aliás muito em harmonia com a pureza meridional de suas feições; e às perpétuas gaiatices de Rosemonde respondiam a qualidade de sua fisionomia e as inflexões de sua voz do Norte com o sotaque de sua província. Entre essa província e o temperamento da moça, que ditava as inflexões, eu percebia um belo diálogo. Diálogo, não discórdia. Ninguém teria sido capaz de separar a moça de sua terra natal. Uma era a outra, ainda. De resto, tal reação dos materiais locais sobre o engenho que os utiliza e ao qual emprestam mais verdor, não torna menos individual a obra, e, seja a de um arquiteto, de um ebanista ou de um músico, não reflete com menor minúcia os traços mais sutis da personalidade do artista, porque este foi obrigado a trabalhar na pedra molar de Senlis ou na greda vermelha de Estrasburgo, mesmo que respeite os nós peculiares do freixo, ou que tenha considerado, na escrita, os recursos e os limites da sonoridade, as possibilidades da flauta ou da violeta.

            Tudo isto eu percebia e, no entanto, conversávamos tão pouco! Ao passo que, com a Sra. de Villeparisis ou com Saint-Loup, teria demonstrado por minhas palavras muito mais prazer do que de fato sentia, pois, ao deixá-los, estava fatigado; ao contrário, deitado entre essas moças, a plenitude do que eu sentia em muito ultrapassava a pobreza e a escassez de nossas frases e transbordava dos limites da minha imobilidade e do meu silêncio em ondas de ventura, cujo marulhar vinha morrer aos pés daquelas jovens rosas.

            Para um convalescente que repousa o dia inteiro num jardim ou num pomar, um aroma de flores e de frutos não impregna mais profundamente as mil e uma ninharias de que se compõe o seu farniente do que, para mim, aquela cor, aquele aroma que meus olhos iam buscar nessas jovens e cuja doçura acabava por se incorporar a mim. Assim as uvas se adoçam ao sol. E, por sua lenta continuidade, aqueles jogos tão simples também tinham determinado em mim, como ocorre com as pessoas que não fazem outra coisa senão ficar estendidas à beira-mar, respirando o sal e bronzeando-se, um alívio, um sorriso beatífico, um vago deslumbramento que me chegara até os olhos.

            Às vezes uma gentileza desta ou daquela despertava em mim amplas vibrações que afastavam por algum tempo o desejo pelas outras. Assim, um dia, Albertine indagara:

            - Quem tem um lápis?

            Andrée dera-o, Rosemonde forneceu o papel, Albertine lhes dissera:

            - Meninas, é proibido ver o que estou escrevendo.

            E, depois de cuidar muito em fazer a letra clara, com o papel apoiado nos joelhos, ela o passara a mim, dizendo:

            - Cuidado para que ninguém veja.

            Então o desdobrei e li as palavras que me escrevera:

            - Amo-te muito.

            Mas, em vez de escrever asneiras gritou, voltando-se com ar subitamente impetuoso e grave para Andrée e Rosemonde

            - É preciso que lhes mostre a carta que Gisele me escreveu esta manhã. Estou doida; tenho a carta aqui no bolso, e dizer que isto nos poderá ser útil!

            Gisele julgara dever endereçar à amiga, a fim de que esta a comunicasse às outras, a composição que tivera de fazer para obter seu diploma de estudos do segundo grau. Os temores de Albertine acerca das dificuldades dos assuntos propostos tinham aumentado ainda mais devido aos dois entre os quais Gisele fora obrigada a optar. Um era:

            "Sófocles escreve dos Infernos para consolar Racine pelo fracasso de Athaiie"; o outro: “Suponha que, após a primeira representação de Esther, a Sra, de Sévigné escreve à Sra. de La Fayette para lhe dizer o quanto lamentou a sua ausência."

            Pois Gisele, por um excesso de zelo que deve ter tocado os examinadores, escolhera o primeiro, o mais difícil dos dois assuntos, e o desenvolvera de modo tão notável que obtivera 14 e fora felicitada pelo júri. Teria conseguido a menção "ótimo" se não tivesse levado pau no exame de espanhol. A composição, cuja cópia Gisele enviara a Albertine, nos foi lida imediatamente por esta, visto que, devendo ela própria passar pelo mesmo exame, desejava muito ouvir a opinião de Andrée, muito mais forte que elas todas e que podia lhe dar bons conselhos.

            - Ela tem uma sorte! - disse Albertine. - Era justamente o assunto que lhe deu aqui sua professora de francês.

            A carta de Sófocles a Racine, redigida por Gisele, começava assim:

            "Meu caro amigo, desculpai-me o escrever-vos sem ter tido a honra de ser conhecido pessoalmente de vós, mas vossa nova tragédia, Athalie, não mostrará por acaso que estudastes perfeitamente bem as minhas modestas obras? Não pusestes versos senão na boca dos protagonistas, ou personagens principais do drama, porém escrevestes alguns, e encantadores; permiti que vos diga sem lisonjas, quanto aos coros, que não faziam má figura, segundo se diz, na tragédia grega, mas que são na França uma legítima novidade. Além do mais, o vosso talento, tão fino, tão aprimorado, tão arrebatador, tão sutil, tão delicado, alcançou uma energia pela qual vos felicito.

            Athalie, Joad, eis personagens que vosso rival, Corneille, não teria burilado melhor. As índoles são viris, a intriga é simples e forte. Eis uma tragédia cujo móvel não é o amor e apresento-vos meus mais sinceros cumprimentos. Os mais famosos preceitos nem sempre são os mais verdadeiros. Citar-vos-ei como exemplo:

            ''Desta paixão a sensível pintura

            Chega-nos pela via mais segura.''

            Tendes provado que o sentimento religioso que transborda de vossos coros não é menos capaz de emocionar. O grande público pode ter ficado desorientado, mas os verdadeiros conhecedores vos rendem justiça. Portanto, fiz questão de vos enviar minhas congratulações, às quais acrescento, meu caro confrade, a expressão dos meus mais elevados sentimentos."

            Os olhos de Albertine não tinham deixado de cintilar enquanto estivera lendo:

            -Parece até que ela copiou isto - exclamou, ao acabar. - Nunca teria acreditado que Gisele fosse capaz de realizar uma tarefa destas. E os versos que ela cita! De onde será que os afanou? A admiração de Albertine, é verdade que mudando de objeto, ainda mais aumentou, bem como a mais aplicada atenção, fazendo com que "os olhos lhe saíssem das órbitas" quando Andrée, consultada por ser a mais velha e a mais instruída, falou do trabalho de Gisele primeiro com uma certa ironia e, depois, com um ar displicente que mal dissimulava a sua verdadeira seriedade, e refez à sua moda a mesma carta.

            - Não está má. - disse ela a Albertine mas, se eu fosse você e me dessem o mesmo tema, o que pode ocorrer, pois o apresentam seguido, não faria desse jeito. Eis como faria. Primeiro, se fosse Gisele, não me deixaria embalar e teria começado escrevendo numa folha à parte o plano da obra. Na primeira linha, a posição da questão e a exposição do tema; depois, as idéias gerais que entrariam no desenvolvimento do assunto. Por fim, a apreciação, o estilo, a conclusão. Desse modo, inspirando-se num sumário, a gente sabe aonde vai. Desde a exposição do tema, ou, se você prefere, Titine, já que se trata de uma carta, desde a entrada no assunto, Gisele comete um equívoco. Dirigindo-se a um homem do século XVII, Sófocles não devia ter escrito: "Meu caro amigo".

            - É verdade, deveria tê-lo feito dizer: "Meu caro Racine" - gritou fogosamente Albertine. - Teria ficado bem melhor.

            - Não. - respondeu Andrée num tom meio trocista -, deveria ter posto "Senhor". Da mesma forma, para encerrar deveria ter encontrado algo como: "Permiti, Senhor (quando muito "caro Senhor"), que vos diga dos sentimentos de estima com os quais tenho a honra de ser vosso servidor." Por outro lado, Gisele diz que os coros são uma novidade em Athalie. Ela esquece Esther, e duas tragédias pouco sabidas, mas que precisamente este ano foram analisadas pelo professor, de modo que, bastando citá-las, pois são a mania dele, a gente tem certeza de ser aprovada. São As Judias, de Robert Garnier, e o Amante, de Montchrestien.

            Andrée citou estes dois títulos sem conseguir esconder um sentimento de benevolente superioridade que se exprimiu num sorriso, aliás bem gracioso. Albertine não se conteve:

            -Andrée, você é de abafar - exclamou.-Vai me escrever estes dois títulos. O quê? Imagine só se me cair isso na prova; mesmo que fosse na oral, eu os citaria logo e causaria um efeito tremendo.

            Mas, a seguir, cada vez que Albertine pediu a Andrée que lhe repetisse os nomes das duas peças para que ela as escrevesse, a tão sábia amiga fingiu tê-los esquecido e nunca mais pôde recordá-los.

            - Depois - continuou Andrée num tom de imperceptível desdém pelas companheiras mais pueris, porém feliz por se fazer admirar e dando mais importância do que parecia à forma de como teria desenvolvido o assunto - Sófocles nos Infernos deve estar bem informado. Assim, deve saber que não é diante do grande público, mas diante do Rei-Sol e de alguns cortesãos privilegiados que Athalie foi representada. O que Gisele diz a respeito da estima dos conhecedores não está inteiramente ruim, mas poderia ser completado. Sófocles, tornado imortal, pode muito bem ter o dom da profecia e anunciar que, segundo Voltaire, Athalie não será apenas "a obra-prima de Racine, mas do espírito humano".

            Albertine bebia todas essas palavras. Tinha as pupilas em fogo. E foi com a mais profunda indignação que repeliu a proposta de Rosemonde para começarem a jogar.

            - Enfim. - disse Andrée no mesmo tom desligado, desenvolto, um tanto zombeteiro e ardentemente convicto-, se Gisele tivesse anotado antes as idéias gerais para desenvolvê-las, talvez houvesse pensado no que eu faria, ou seja, mostrar a diferença existente entre a inspiração religiosa dos coros de Sófocles e a dos de Racine. Eu teria feito, por meio de Sófocles, a observação de que, se os coros de Racine são impregnados de sentimentos religiosos como os da tragédia grega, não se trata todavia dos mesmos deuses. O deus de Joad nada tem a ver com o de Sófocles. E isto leva, muito naturalmente, após o fim do desenvolvimento, à conclusão: Que importa que as crenças sejam diversas?" Sófocles sentiria escrúpulos em insistir nesse ponto. Recearia ferir as convicções de Racine e, insinuando a esse respeito algumas palavras sobre seus mestres de Port-Royal, prefere felicitar o seu êmulo pela elevação do seu gênio poético,

            A admiração e a atenção tinham dado tanto calor a Albertine que ela suava em bicas. Andrée conservava a fleuma sorridente de um dândi feminino.

            -Também não seria mau citar alguns julgamentos de críticos célebres. - disse ela antes que recomeçassem a jogar.

            -Sim - respondeu Albertine-, já me disseram isso. Os mais recomendáveis, em geral, são os julgamentos de Sainte-Beuve e Merlet, não é?

            - Não está enganada de modo nenhum. - replicou Andrée que aliás se recusou a lhe escrever os dois outros nomes malgrado as súplicas de Albertine. - Merlet e Sainte-Beuve são bem lembrados. Mas é preciso citar principalmente Deltour e Gasc-Desfossés.

            Enquanto isso, eu pensava na folhinha do bloco que Albertine me passara:

            "Amo-te muito", e, uma hora depois, descendo os caminhos, um tanto íngremes para o meu gosto, que levavam a Balbec, dizia comigo que seria com ela que viveria o meu romance.

            O estado caracterizado pelo conjunto de signos pelos quais normalmente julgamos estar enamorados, como as ordens que eu dava no hotel para não me despertarem fosse qual fosse a visita, a não ser que se tratasse de uma ou outra dessas moças, como as batidas de coração ao esperá-las (qualquer que fosse a que estivesse por chegar) e, naqueles dias, a minha raiva se não achasse um barbeiro e devesse me apresentar diante de Albertine, Rosemonde ou Andrée com a barba por fazer esse estado, sem dúvida, renascendo alternativamente por uma ou por outra, era tão diferente daquilo a que chamamos amor como difere a vida humana da dos zoófitos, nos quais a existência, a individualidade se assim podemos chamá-la, se reparte entre organismos diversos. Mas a História Natural nos ensina que se observa semelhante organização animal e que nossa própria vida, por pouco que já esteja um tanto adiantada, não é menos afirmativa sobre a realidade dos estados insuspeitados por nós antigamente e pelos quais devemos passar, mesmo que seja para abandoná-los em seguida; tal era para mim aquele estado amoroso dividido simultaneamente entre várias moças. Dividido, ou melhor, indiviso, pois, na maioria das vezes, o que me era mais delicioso, diferente do resto do mundo, o que principiava a me ser tão caro a ponto de que a esperança de voltar a vê-lo no dia seguinte era a melhor alegria da minha vida, era antes o grupo inteiro dessas moças, tomado em conjunto naquelas tardes sobre o rochedo, durante aquelas horas ao ar livre, naquela faixa de relva onde se sentavam as figuras, tão excitantes para a minha imaginação, de Albertine, de Rosemonde e de Andrée; e isto sem que eu pudesse dizer qual delas me fazia tão preciosas aquelas paragens, qual delas eu tinha mais desejos de amar.

            No princípio de um amor, como no seu término, não estamos exclusivamente ligados ao objeto desse amor, ou melhor, o desejo de amar de que ele vai derivar (e, mais tarde, a recordação que ele deixa) erra voluptuosamente numa zona de encantos intercambiáveis-encantos às vezes simplesmente de natureza, de gula, de moradia-bastante harmônicos entre si para que ele não se sinta em terra estranha junto de nenhum. Além disso, como diante delas eu ainda não me mostrava enfastiado pelo hábito, tinha a faculdade de vê-las, ou seja, de sentir profundo espanto, cada vez que me encontrava em sua presença. Por um lado, sem dúvida, esse espanto se deve à criatura que nos apresenta então uma nova faceta de si mesma; mas é tão grande a multiplicidade de cada uma, a riqueza de linhas de seu rosto e de seu corpo, linhas das quais tão pouco voltamos a encontrar, logo que não estamos mais perto da pessoa, na simplicidade arbitrária de nossa lembrança-como a memória escolheu determinada particularidade que nos impressionou, isolou-a, exagerou-a, fazendo de uma mulher que nos pareceu alta um estudo onde o comprimento do seu talhe é desmesurado, ou de uma mulher que nos pareceu loura e rosada uma pura "Harmonia em rosa e ouro", no momento em que essa mulher está de novo perto de nós, todas as outras qualidades esquecidas que lhe dão equilíbrio nos assaltam, em sua complexidade confusa, diminuindo a altura, afogando o tom róseo, e substituindo o que viemos buscar com exclusividade por outras particularidades que não nos lembrávamos de ter notado da primeira vez e que não compreendemos que contássemos tão pouco com revê-las. Lembramo-nos: íamos ao encontro de um pavão e encontramos uma peônia. E esse espanto inevitável não e o único; pois junto dele há um outro, nascido da diferença não mais entre as estilizações da lembrança e da realidade, mas entre a criatura que vimos pela última vez e a que nos surge hoje sob outro ângulo, mostrando-nos um novo aspecto. O rosto humano é verdadeiramente como o do deus de uma teogonia oriental, todo um cacho de fisionomias justapostas nos planos diferentes que não vemos ao mesmo tempo.

            Mas, em grande parte, o nosso espanto provém sobretudo de que a criatura também nos apresenta uma mesma face. Ser-nos-ia necessário um tão grande esforço para recriar tudo o que nos foi proporcionado por algo que não é nós próprios ainda que seja o sabor de uma fruta-que mal recebemos a impressão descemos insensivelmente o declive da lembrança e, sem dar por isso, em pouco tempo estamos muito longe daquilo que sentimos. De modo que todo novo encontro é uma espécie de correção que nos reconduz ao que muito bem tínhamos visto. Já não nos lembrávamos mais, de tal modo o que se denomina lembrar uma criatura é na verdade esquecê-la. Mas, enquanto ainda sabemos ver, no momento em que o traço esquecido aparece nós o reconhecemos, somos obrigados a retificar a linha que se desviou e, assim, a perpétua e fecunda surpresa que fazia tão saudáveis e suavizadores para mim esses encontros diários com as bonitas moças à beira-mar, era feita de partes iguais de descobertas e reminiscências. Acrescentando-se a isto a agitação despertada pelo que elas representavam para mim, que jamais era inteiramente aquilo que eu julgara, o que fazia que a esperança do próximo encontro não mais fosse idêntica à precedente e sim à lembrança ainda vibrante do último encontro, compreender-se-á que cada passeio dava a meus pensamentos uma violenta mudança de rumo, e não na direção que eu traçara a sós no meu quarto, com a cabeça descansada. E essa direção ficava esquecida, anulada, quando eu voltava, vibrando como uma colméia, com as frases que me haviam perturbado, e que ressoavam dentro de mim por muito tempo. Cada criatura é destruída quando a deixamos de ver; depois, o seu aparecimento seguinte é uma nova criação, diversa da que a precedeu imediatamente, senão de todas. Pois o mínimo de variedades que possa reinar em tais criações é representado pelo número dois.

            Se lembramos um olhar enérgico, um jeito atrevido, o próximo encontro inevitavelmente nos deixará espantados, ou seja, quase exclusivamente impressionados com um lânguido perfil, por uma espécie de doçura sonhadora, coisas que havíamos negligenciado na recordação anterior. No confronto entre a nossa lembrança e a nova realidade, é isso que marcará a nossa decepção ou nossa surpresa, e agora nos parece o retoque da realidade advertindo-nos de que nossa recordação era falha; por seu turno, o aspecto fisionômico negligenciado da última vez e, por isso mesmo, mais sedutor agora, mais real e corrigido, se transformará em matéria de recordações e devaneios. É um perfil suave, langoroso, uma expressão sonhadora e doce, o que desejamos rever. E então, da próxima vez, o que houver de voluntário no olhar penetrante, no nariz pontudo, nos lábios cerrados, virá corrigir a defasagem entre o nosso desejo e o objeto que julgava corresponder-lhe. Fica bem entendido que essa fidelidade às impressões primeiras, puramente físicas, reencontradas sempre junto de minhas amigas, não se referia somente às suas feições, pois já vimos que eu também era sensível às suas vozes, talvez mais inquietantes (pois elas não oferecem apenas as mesmas superfícies singulares e sensuais das feições, mas fazem parte do abismo inacessível que dá a vertigem dos beijos sem esperança), vozes semelhantes ao som único de um pequeno instrumento onde cada uma punha inteira a sua alma e que era exclusivamente seu. Traçada por uma inflexão, a linha profunda de uma dessas vozes espantava-me sempre que a reconhecia depois de a ter esquecido. Tanto que as retificações que eu era obrigado a fazer a cada novo encontro, para voltar ao tom exato, eram tão adequadas a um afinador ou a um professor de canto, como a um desenhista.

            Quanto à harmoniosa coesão em que se neutralizavam já algum tempo, pela resistência que cada uma opunha à expansão das demais, as diversas ondas de sentimento propagadas em mim por essas moças, tudo se rompeu em favor de Albertine, numa tarde em que brincávamos de passar anel. Era num pequeno bosque sobre a falésia. Colocado entre duas jovens estranhas ao pequeno grupo e que minhas amigas haviam trazido porque nesse dia deveríamos ser bem numerosos, eu olhava com inveja o vizinho de Albertine, um rapaz, dizendo comigo que, se estivesse no seu lugar, poderia tocar as mãos da minha amiga naqueles minutos inesperadas que talvez jamais voltassem e que tão longe poderiam me levar. Já o simples contato das mãos de Albertine, e até sem pensar nas conseqüências que daí adviriam, me parecia delicioso. Não que eu nunca tivesse visto mãos mais lindas que as suas. Até no grupo de suas amigas, as de Andrée, delgadas e bem mais finas, tinham como que uma vida particular, dócil ao comando da moça, mas independente, e muitas vezes se alongavam diante dela como nobres lebréus, com atitudes de preguiça, de sonho profundo, e estiramentos bruscos de uma falange, devido aos quais Elstir havia feito vários estudos dessas mãos. Num deles, via-se Andrée aquecendo-as ao fogo e, diante da luz, elas mostravam a diafaneidade dourada de duas folhas de outono. Porém mais grossas, as mãos de Albertine cediam um instante e depois resistiam à pressão da mão que as apertava, transmitindo uma sensação toda particular. A pressão da mão de Albertine era dotada de uma doçura sem igual bem em harmonia com a coloração rósea, ligeiramente malva, de sua pele. Com essa pressão, parecia que a gente penetrava na moça, na profundidade de seus sentidos, assim como na sonoridade do seu riso, indecente como um barulho sensual ou como certos gritos. Era uma dessas mulheres a quem temos tão grande prazer em apertar a mão que ficamos gratos à civilização por ter feito do shake-hand um ato permitido entre rapazes e moças que se encontram. Se os costumes arbitrários de cortesia tivessem substituído esse aperto de mãos por outro gesto, eu teria contemplado todos os dias as mãos intangíveis de Albertine, tão ardentemente curioso de conhecer o seu contato, como o era de saber o gosto de suas faces.

            Mas, no prazer de ter por muito tempo suas mãos entre as minhas, se tivesse sido o seu vizinho no jogo do anel, eu tinha como objetivo um pouco mais que esse prazer: quantas confissões, quantas declarações até hoje caladas por timidez, eu teria podido confiar a certas pressões da mão; de sua parte, como lhe teria sido fácil demonstrar, com outras pressões de mão, que me aceitava; que cumplicidade, que princípio de volúpia! Meu amor podia progredir mais em alguns minutos assim passados ao lado dela do que desde que a conhecia. E não me agüentava no lugar, pois via que aqueles minutos não durariam muito, estariam em breve chegando ao fim, pois aquele joguinho certamente não continuaria por muito tempo, e tão logo acabasse seria tarde demais. Deixei que me pegassem o anel de propósito e, uma vez no meio da roda, fingia que não o via passar e o seguia com os olhos esperando o momento em que chegasse às mãos do vizinho de Albertine; esta, rindo loucamente, estava toda cor-de-rosa na animação e alegria do jogo.

            - Estamos justamente no bosque bonito - disse-me Andrée, designando as árvores que nos rodeavam, com um sorriso no olhar que era só para mim e parecia passar por cima dos jogadores como se só nós dois fôssemos bastante inteligentes para nos desdobrarmos e fazer, a respeito do jogo, uma observação de caráter poético. E ela chegou até a levar a delicadeza de espírito a ponto de cantar, sem vontade, o "Ele passou por aqui, o furão do bosque, senhoras, passou por aqui o furão do bosque bonito", como essas pessoas que não podem ir ao Trianon sem dar uma festa estilo Luís XVI, ou que muitas vezes se divertem mandando cantar uma canção no mesmo ambiente para o qual foi escrita. E ao contrário, sem dúvida, eu teria ficado triste por não achar qualquer encanto na comparação proposta por Andrée, se tivesse tempo para pensar naquilo. Mas estava bem longe o meu espírito. Jogadores e jogadoras começavam a se espantar com a minha estupidez, e porque não pegava o anel. Eu contemplava Albertine tão bela, tão indiferente, tão alegre que, sem o prever, ia ser minha vizinha, quando enfim pegasse o anel nas mãos designadas, graças a uma manobra de que ela não suspeitava e que, se soubesse, muito a irritaria. Na febre do jogo, os longos cabelos de Albertine tinham-se desfeito um pouco e, em mechas encaracoladas, caíam-lhe pelo rosto, cuja rósea carnação ainda mais ressaltavam pela sua negra secura.

            - Você tem as tranças de Laura Dianti, de Éléonore de Guyenne e de sua descendente, tão amada por Chateaubriand. Deveria usar sempre os cabelos meio caídos. - disse-lhe ao ouvido para me aproximar dela.

            De repente, o anel passou para o vizinho de Albertine. Imediatamente me lancei sobre ele, brutalmente abri suas mãos, e peguei o anel; ele foi obrigado a ocupar meu posto no meio do círculo e eu tomei o seu ao lado de Albertine. Poucos minutos antes, invejava o rapaz ao ver suas mãos deslizando pelo barbante e encontrando a todo momento as de Albertine. Agora que chegara a minha vez, muito tímido para procurar esse contato, muito emocionado para poder desfrutá-lo, só conseguia sentir as batidas rápidas e dolorosas do coração. Num dado instante, Albertine se inclinou para mim com um ar de inteligência, o rosto cheio e rosado, fingindo assim que estava com o anel, a fim de enganar o furão e evitar que ele olhasse para o lado onde o anel estava sendo passado. Compreendi logo que os subentendidos expressos no olhar de Albertine se referiam àquela artimanha, mas perturbei-me ao ver assim passar em seus olhos a imagem, puramente simulada para os propósitos do jogo, de um segredo, de uma combinação que não existia entre nós dois, mas que desde então me pareceram possíveis e me seriam divinamente gratificantes. Como esse pensamento me exaltasse, senti uma leve pressão da mão de Albertine contra a minha, e seu dedo caricioso que deslizava por baixo do meu e vi que, ao mesmo tempo, ela me piscava o olho, procurando fazê-lo imperceptivelmente. De súbito, uma multidão de esperanças, até então invisíveis para mim mesmo, se cristalizaram:

            "Ela aproveita o jogo para me demonstrar que me ama muito", pensei no auge de uma alegria, da qual imediatamente despenquei ao ouvir Albertine me dizer com raiva:

            - Mas pegue logo o anel, seu burro, faz uma hora que estou lhe passando.

            Aturdido pela dor, larguei o barbante; o furão percebeu o anel, se atirou sobre ele e tive de voltar para o meio do círculo, desesperado, olhando a ronda desenfreada que continuava a meu redor, interpelado pelos gracejos de todas as jogadoras, obrigado, para lhes responder, a rir também quando tinha tão pouca vontade disso, enquanto Albertine não parava de dizer:

            - Não se deve jogar quando não se pode prestar atenção, para não fazer os outros perderem. Ou a gente não o convida nos dias em que formos jogar, Andrée, ou sou eu que não venho mais.

            Andrée, superior ao jogo e que continuava cantando o seu "Bosque bonito", que Rosemonde por espírito de imitação repetia sem qualquer convicção, quis desviar as censuras de Albertine e me disse:

            - Estamos a dois passos dos Creuniers que você tanto gostaria de ver. Venha, vou levá-lo até lá por um belo caminho enquanto essas doidas bancam crianças de oito anos.

            Como Andrée era extremamente gentil comigo, pelo caminho lhe fui dizendo de Albertine tudo o que me parecia próprio para que esta me amasse. Andrée me respondeu que também gostava muito dela, achava-a encantadora; entretanto, meus elogios à sua amiga davam-me a impressão de não lhe causar nenhum prazer. De súbito, ao pequeno caminho vazio, parei, tocado no coração por uma doce lembrança da meninice: acabava de reconhecer, nas folhas recortadas e brilhantes que avançavam para a entrada dos Creuniers, uma moita de espinheiros-rosa sem flor, infelizmente, desde o fim da primavera. Em torno a mim flutuava uma atmosfera de antigos meses de Maria, de tardes de domingo, de crenças, de erros esquecidos. Desejaria apreendê-la. Parei por um segundo e Andrée, com adivinhação encantadora, deixou-me conversar por um instante com as folhas do arbusto. Pedi-lhe notícias das flores, aquelas flores de espinheiro-rosa semelhantes a alegres moças estouvadas, coquetes e piedosas.

            - Essas senhoritas já se foram há muito tempo. - diziam-me as folhas.

            E talvez pensassem que, para o grande amigo delas que eu pretendia ser, não parecia de modo algum informado sobre seus hábitos. Um grande amigo, mas que não as revia desde muitos anos, apesar de suas promessas. E, no entanto, como Gilberte fora o meu primeiro amor por uma menina, elas tinham sido o meu primeiro amor por uma flor.

            - Sim, eu sei, elas vão embora em meados de junho. respondi -, mas tenho muito prazer em ver o local onde elas moravam aqui. Foram me ver em Combray, no meu quarto, trazidas por minha mãe quando eu estava doente. E nos encontrávamos aos sábados de tarde, no mês de Maria. Aqui elas podem ir às novenas?

            - Oh, naturalmente! Aliás gostam muito dessas senhoritas na igreja de Saint-Denis-du-Désert, que é a paróquia mais próxima.

            - E como fazer agora para vê-las?

            - Ora, não antes do mês de maio do ano que vem.

            - Mas posso estar certo de que elas estarão lá?

            - Regularmente todos os anos.

            - Só não sei se encontrarei o lugar.

            - Como não!? Essas senhoritas são tão alegres; elas só param de rir para entoar cânticos, de modo que não é possível a gente se enganar e, na beira do caminho, você reconhecerá o seu aroma.

            Voltei para junto de Andrée e recomecei a lhe fazer elogios acerca de Albertine. Parecia-me impossível que ela não os fosse transmitir a Albertine, tamanha era a minha insistência. E, no entanto, jamais soube que Albertine tomasse conhecimento deles. Todavia, Andrée possuía mais conhecimento em assuntos do coração do que ela, e maior refinamento na gentileza; descobrir o olhar, a palavra, a ação que mais engenhosamente pudessem dar prazer, calar uma reflexão que arriscasse magoar, fazer o sacrifício (e sem parecer que era um sacrifício) de uma hora de jogo, e até de uma reunião matinal, de um garden-party, para ficar junto de um amigo ou de uma amiga triste e lhe mostrar assim que preferia sua simples companhia a prazeres frívolos, tais eram as suas delicadezas habituais. Mas, depois que a gente a conhecia um pouco melhor, dir-se-ia que com ela se dava o mesmo que ocorria com esses covardes heróicos que não querem ter medo e cuja bravura é particularmente meritória; dir-se-ia que, no fundo de sua natureza, não havia nada daquela bondade que ela manifestava a todo instante por distinção moral, por sensibilidade, por vontade nobre de se mostrar boa amiga. Ao ouvir as coisas encantadoras que ela me dizia acerca de uma possível afeição entre mim e Albertine, parecia que ela iria trabalhar com todas as suas forças para realizá-la. Ora, talvez por acaso, nunca se utilizou do menor dos nadas de que dispunha e que poderiam unir-me a Albertine, e eu não juraria que meus esforços para ser amado por Albertine não tenham provocado, de sua amiga, manobras secretas destinadas a contrariá-los, mas despertado nela uma cólera aliás bem oculta e contra a qual talvez lutasse ela própria por delicadeza. Albertine seria incapaz dos mil refinamentos de bondade de Andrée, e no entanto eu não estava certo da bondade profunda desta última como o fiquei mais tarde da bondade da primeira. Sempre se mostrando indulgente para com a exuberante frivolidade de Albertine, Andrée tinha para ela palavras e sorrisos que eram de amiga, e mais, agia como amiga. Eu a vi, dia após dia, para fazê-la aproveitar o seu luxo, tornar feliz essa amiga pobre, ter, sem nenhum interesse, mais trabalho que um cortesão que deseja captar o favor do soberano. Era encantadora de doçura, de palavras tristes e carinhosas, quando lamentavam diante dela a pobreza de Albertine, e esforçava-se mil vezes mais por ela do que o faria por uma amiga rica. Mas, se alguém suspeitasse que Albertine não era tão pobre como diziam, uma nuvem mal perceptível velava afronte e os olhos de Andrée; ela parecia de mau humor. E se iam ao ponto de dizer que afinal não tivesse tanta dificuldade de casar como pensavam, Andrée protestava com veemência e repetia quase com raiva:

            -Oh, ela não poderá casar, bem sei. E isso me dá muita pena!

            Mesmo no que me dizia respeito, ela era a única das moças que jamais me repetiria algo desagradável que tivessem dito de mim; mais ainda, se era eu mesmo quem o contasse a ela, dava a impressão de não acreditar ou vinha com uma explicação que tornava inofensiva a frase. É o conjunto dessas qualidades a que se denomina tato. É o apanágio das pessoas que, se vamos ao campo da honra, nos felicitam e acrescentam que não havia razão para um duelo, a fim de aumentar ainda mais aos nossos olhos a coragem de que demos prova, sem a isso ser constrangidos. São o oposto das pessoas que, nas mesmas circunstâncias, afirmam:

            - Deve ser bastante aborrecido para você bater-se em duelo, mas por outro lado você não podia engolir essa afronta, não podia proceder de outra maneira.

            Mas, como em tudo há prós e contras, se o prazer ou pelo menos a indiferença de nossos amigos em nos repetir algo de ofensivo que foi dito a nosso respeito prova que absolutamente não se colocam na nossa pele no momento em que nos falam, e enfiam-lhe o alfinete ou a faca como numa bexiga, a arte de nos ocultar sempre o que pode ser desagradável no que ouviram dizer de nossos atos ou da opinião que estes lhes inspiraram, pode provar, em outra categoria de amigos, a dos amigos cheios de tato, uma forte dose de dissimulação. Não há inconveniente se, de fato, não podem pensar mal de nós e se o que lhes é dito os faz apenas sofrer, como a nós mesmos. Achava que este era o caso de Andrée, sem contudo estar absolutamente certo disso.

            Deixáramos o bosquezinho e seguíamos por um emaranhado de veredas muito pouco freqüentadas que Andrée conhecia perfeitamente bem.

            -Olhe -disse ela de repente , eis os seus famosos Creuniers. E você ainda tem muita sorte, pois estão exatamente na hora e na luz em que Elstir os pintou.

            Mas eu ainda estava muito triste por haver caído, no jogo do anel, de tão alto apogeu de esperanças. Portanto, não foi com o prazer que certamente teria sentido em outras circunstâncias que pude distinguir de súbito a meus pés, agachadas contra as rochas onde se protegiam do calor, as Deusas marinhas que Elstir espiara e surpreendera, sob uma sombria transparência tão bela como o teria sido a um Leonardo, as maravilhosas Sombras escondidas e furtivas, ágeis e silenciosas, prestes a escorregar pelas pedras ao primeiro remoinho de luz, a se ocultar num buraco e prontas, passada a ameaça do raio luminoso, a voltar para junto do rochedo ou da alga, sob o sol esfarelador das falésias e do Oceano descolorido, cuja modorra parecem velar, guardiãs imóveis e leves, deixando aparecer à flor d'água o seu corpo viscoso e o olhar atento dos olhos fundos.

            Fomos ao encontro das outras para voltar. Agora eu sabia que amava Albertine; mas infelizmente não me preocupava em confessar-lhe o meu amor. É que, desde o tempo em que brincava nos Champs-Élysées, minha concepção de amor tomara-se muito diversa, enquanto as criaturas a que sucessivamente se prendia o meu amor permaneciam quase idênticas. Por um lado, a confissão, a declaração do meu afeto àquela a quem amava já não me parecia uma das cenas capitais e necessárias do amor; e nem este seria uma realidade exterior, mas simplesmente um prazer subjetivo. E esse prazer, eu sentia que Albertine tanto mais faria o que fosse necessário para alimentá-lo quanto ignorasse que eu o experimentava.

            Durante todo o caminho de volta, a imagem de Albertine, afogada na luz que emanava das outras, não foi a única a existir para mim. Mas como a lua, que durante o dia não passa de uma pequena nuvem branca de uma forma mais caracterizada e mais fixa, assume toda a sua força quando o dia se esvai, assim, logo que entrei no hotel, foi somente a imagem de Albertine que se ergueu do meu coração e se pôs a brilhar.

            De súbito, meu quarto parecia novo. Claro, havia muito que já não era o aposento inimigo do primeiro dia. Modificamos sem cessar a nossa morada ao nosso redor; e, à medida que o hábito nos dispensa de sentir, suprimimos os elementos nocivos de cor, de dimensão e de cheiro que causavam nosso mal-estar. Não era mais o quarto, bastante poderoso ainda sobre a minha sensibilidade, certamente não para me fazer sofrer, mas para me proporcionar alegria, a bacia dos belos dias, semelhante a uma piscina pela metade, de que eles faziam resplandecer um azul úmido de luz, a que recobria por um instante, impalpável e branca feito uma emanação de calor, uma vela refletida e fugitiva; nem o quarto puramente estético das noites pictóricas; era o quarto em que estava há tantos dias que já não o via. Ora, eis que eu principiava a abrir os olhos para ele, mas desta vez da perspectiva egoísta que é a do amor. Imaginava que o belo espelho oblíquo, as elegantes estantes envidraçadas dariam a Albertine, se viesse me visitar, uma boa idéia a meu respeito. Em vez de um lugar de transição onde eu passasse por um momento antes de fugir para a praia ou para Rivebelle, meu quarto se tornaria real e querido para mim, renovando-se, pois eu olharia e apreciaria cada móvel com os olhos de Albertine.

            Alguns dias após o jogo do anel, tendo-nos distanciado demais num passeio e como ficássemos bem contentes por encontrar em Maineville dois pequenos tonneaux de dois lugares, que nos permitiriam voltar à hora do jantar, a vivacidade já bastante acentuada do meu amor por Albertine teve como efeito que fosse sucessivamente a Rosemonde e a Andrée que eu propusesse subissem comigo, e nem uma só vez a Albertine; a seguir, sempre convidando de preferência Andrée ou Rosemonde, levei todo o mundo, por motivos secundários de hora, caminho ou de capas, a decidir, como contra a minha vontade, que o mais prático seria levar comigo Albertine, a cuja companhia eu fingia me resignar mais ou menos. Infelizmente o amor, tendendo à assimilação completa de um ser, e como nenhum é comestível só pela conversação, Albertine, por mais que se mostrasse gentil durante esse retorno em que a levei para casa, deixou-me feliz, porém ainda mais esfomeado por ela do que estava ao partir, e contando os momentos que acabávamos de passar juntos apenas como um prelúdio, sem muita importância em si mesmo, dos que se seguiriam. Entretanto, possuía esse primeiro encanto que jamais se volta a encontrar. Ainda não pedira coisa alguma a Albertine. Ela podia imaginar o que eu desejava, mas, não tendo certeza, supor também que me inclinava a relações sem um fim determinado, nas quais devia a minha amiga achar esse vago delicioso, rico em surpresas esperadas, que é o romanesco.

            Na semana seguinte, quase não tentei ver Albertine. Fingia preferir Andrée. O amor se inicia, e desejaríamos continuar para aquela a quem ama o desconhecido que ela pode amar, mas temos necessidade dela, temos necessidade de tocar menos o seu corpo que sua atenção, seu coração. Insinuamos numa carta uma maldade que obrigará a indiferente a nos pedir um favor, e o amor, segundo uma técnica infalível, aperta para nós, num movimento alternado, a engrenagem na qual não se pode mais amar nem ser amado. Consagrava a Andrée as horas em que as outras iam a alguma reunião matinal que eu sabia que Andrée sacrificaria por mim com prazer, e que mesmo com tédio teria sacrificado, por elegância moral, para não dar às outras, nem a si mesma, a idéia de que atribuía valor a um prazer relativamente mundano. Assim, eu dispunha de modo a tê-la todas as noites só para mim, não pensando em fazer ciúmes em Albertine mas aumentar a seus olhos o meu prestígio ou, pelo menos, não perdê-lo revelando-lhe que era a ela e não a Andrée quem eu amava. Tampouco o dizia a Andrée, receando que ela o fosse contar a Albertine. Quando falava de Albertine a Andrée, afetava uma frieza pela qual esta foi talvez menos enganada do que eu com sua aparente credulidade. Fingia acreditar em minha indiferença por Albertine e desejar a união mais completa possível entre mim e Albertine. É provável que, pelo contrário, ela não acreditasse na primeira nem desejasse a segunda. Enquanto lhe dizia que pouco me importava com sua amiga, eu só pensava em uma coisa: tentar travar relações com a Sra. Bontemps, que estava por algum tempo nas vizinhanças de Balbec e com quem Albertine devia ir passar em breve três dias. Naturalmente não deixei transparecer esse desejo a Andrée e, quando lhe falei da família de Albertine, assumi um ar bastante distraído.

            As respostas explícitas de Andrée não pareciam pôr em dúvida a minha sinceridade. Por que então ocorreu-lhe num daqueles dias comentar comigo:

            - Justamente acabei de ver a tia de Albertine"?

            Certamente não me dissera:

            "Percebi muito bem pelas suas palavras, lançadas como que ao acaso, que você só pensava em travar relações com a tia de Albertine."

            Mas era bem à presença, no espírito de Andrée, de semelhante idéia que ela achava mais bonito me ocultar, que parecia referir-se a palavra "justamente". Era da família de certos olhares, de certos gestos, que, embora não tenham uma forma lógica, racional, diretamente elaborada pela inteligência de quem a escuta, lhe chegam todavia com seu significado verdadeiro, assim como a palavra humana, mudada em eletricidade no telefone, se refaz palavra para ser ouvida. A fim de apagar do espírito de Andrée a idéia de que me interessava pela Sra. Bontemps, não falei mais dela apenas distraído, mas com malquerença; disse ter encontrado antigamente essa espécie de louca e esperava que isso nunca mais ocorresse. Ora, ao contrário, eu procurava encontrá-la de qualquer modo.

            Tentei obter de Elstir, mas sem dizer a ninguém que o havia solicitado, que lhe falasse de mim e me reunisse a ela. Ele prometeu-me fazer conhecê-la, espantando-se contudo de que eu o desejasse, pois julgava-a uma mulher desprezível, intrigante e tão desinteressante como interesseira. Pensando que, se visse a Sra. Bontemps, Andrée o saberia mais cedo ou mais tarde, julguei que era melhor avisá-la.

            -As coisas de que a gente mais procura fugir são as que chegam sem que possamos evitá-las. - disse-lhe. - Nada no mundo pode me aborrecer tanto como encontrar a Sra. Bontemps e, no entanto, não tenho como lhe escapar; Elstir deve me convidar com ela. 

            - Nunca duvidei um só instante - exclamou Andrée num tom amargo, enquanto seu olhar, engrandecido e alterado pelo descontentamento, fixava-se em alguma coisa invisível.

            Estas palavras de Andrée não constituíam a mais ordenada exposição de um pensamento que assim pode resumir-se:

            "Sei muito bem que você ama Albertine e que faz de tudo para se aproximar de sua família."

            Mas eram as ruínas informes e reconstituíveis desse pensamento o que eu fizera explodir, ao me chocar com ele, apesar de Andrée. Assim como o "justamente", essas palavras só tinham significado em grau secundário. Isto é, eram dessas que, ao contrário das afirmações diretas, nos inspiram estima ou desconfiança para com alguém, ou nos fazem brigar com ele.

            Visto que Andrée não me acreditara quando lhe dizia que a família de Albertine me era indiferente, é que ela pensava que eu amava Albertine. E provavelmente não se sentia feliz com isso. Em geral, ela bancava o terceiro em meus encontros com sua amiga. Entretanto, havia dias em que eu devia ver Albertine sozinha, dias que esperava em febre, que passavam sem nada me trazer de decisivo, sem terem sido esse dia crucial cujo papel eu confiava imediatamente ao dia seguinte, que igualmente não o sustentaria; escoavam-se desse modo, sucessivamente como ondas, esses cumes logo substituídos por outros.

            Cerca de um mês depois do dia em que tínhamos brincado o jogo do anel, disseram-me que Albertine devia partir na manhã seguinte para ir passar 48 horas na casa da Sra. Bontemps, e, obrigada a tomar o trem muito cedo, viria dormir na véspera no Grande Hotel, de onde, de ônibus, poderia, sem incomodar as amigas em cuja casa habitava, tomar o primeiro trem. Falei sobre isso a Andrée.

            - Não creio de jeito nenhum. - disse Andrée com ar descontente.-Aliás, isso não lhe adiantaria nada, pois tenho certeza que Albertine não vai querer vê-lo, caso for sozinha ao hotel. Não seria protocolar - acrescentou, empregando um adjetivo de que muito gostava, desde pouco, no sentido de "aquilo que se faz". Digo isto porque sei das idéias de Albertine. A mim, que me importa que você a veja ou não? Tanto faz.

            Reuniu-se a nós Octave, que não pôs obstáculos em dizer a Andrée o número de pontos que obtivera no golfe, na véspera, e depois Albertine, que passeava jogando o seu diabolô, como uma freira empunha o seu rosário. Graças a tal jogo ela podia ficar horas sozinha sem se aborrecer. Logo que se ajuntou a nós, surgiu-me a ponta rebelde de seu nariz, que eu havia omitido ao pensar nela nos últimos dias debaixo de seus cabelos pretos, a verticalidade da testa se opunha, e não pela primeira vez, à imagem indecisa que dela guardara, ao passo que, com sua brancura, mordiscava fortemente o meu olhar; saindo da poeira das lembranças, Albertine se reconstruía à minha frente. O golfe dá o hábito dos prazeres solitários. Aquele proporcionado pelo diabolô certamente o é. No entanto, depois de se reunir conosco, Albertine continuou a jogá-lo, sempre conversando com a gente, como uma dama a quem as amigas vieram visitar nem por isso pára de fazer crochê.

            - Parece que a Sra. de Villeparisis - disse ela a Octave - fez uma reclamação ao senhor seu pai - (Eu ouvi, por detrás da palavra "parece", uma dessas notas que eram bem de Albertine; cada vez que percebia tê-las esquecido, lembrava-me, ao mesmo tempo, de já ter entrevisto atrás delas a fisionomia decidida e francesa de Albertine. Poderia ser cego e conhecer muito bem algumas das qualidades alertas e um tanto provincianas dessas notas e da ponta do seu nariz. Umas e outro se equivaliam e teriam podido substituir-se, e sua voz era como o que dizem há de realizar o fototelefone do futuro: no som se recortava com nitidez a imagem visual). -Aliás, ela não escreveu apenas ao senhor seu pai, mas, ao mesmo tempo, ao prefeito de Balbec, para que não joguem mais diabolô no molhe. Atiraram-lhe uma bola à cara.

            -Sim, eu o ouvi falar dessa reclamação. É ridícula. Já não há tantas distrações por aqui.

            Andrée não se imiscuiu na conversação. Não conhecia, como tampouco Albertine e Octave, a Sra. de Villeparisis.

            - Não sei por que essa senhora criou tamanho caso. - disse ela no entanto. - A velha Sra. de Cambremer também levou uma bolada mas não se queixou.

            -Vou lhe explicar a diferença - respondeu gravemente Octave, riscando um fósforo. -É que, na minha opinião, a Sra. de Cambremer é uma dama da sociedade e a Sra. de Villeparisis é uma arrivista. Vocês vão ao golfe esta tarde?

            E nos deixou, bem como Andrée. Fiquei sozinho com Albertine.

            - Olhe. - disse ela -, eu agora arrumo os cabelos do jeito que você gosta; veja a minha mecha. Todo mundo zomba disso e ninguém sabe por quem me arrumo assim. Minha tia também vai rir de mim. Tampouco lhe direi o motivo.

            Eu via de lado as faces de Albertine que muitas vezes pareciam pálidas; porém assim, banhadas por um sangue claro que as iluminava, adquiriam esse brilho que têm certas manhãs de inverno em que as pedras, parcialmente ensolaradas, parecem granito róseo e desprendem alegria. A que me dava naquele instante a vista das faces de Albertine era bem viva, mas levava a um outro desejo que não era o de passear, e sim o de beijar. Perguntei-lhe se eram verdadeiros os projetos que lhe atribuíam.

            -Sim - disse ela -,vou passar esta noite no seu hotel e até vou deitar antes do jantar, pois estou um pouco resfriada. Você poderá vir assistir ao meu jantar, ao lado da cama, e depois poderemos jogar o que você quiser. Ficaria contente se for à estação amanhã de manhã, mas tenho medo que isso pareça meio estranho, não digo a Andrée, que é inteligente, mas às outras que lá estarão; iria provocar histórias se o repetissem à minha tia; mas poderíamos passar juntos o serão. Minha tia não saberá nada disso. Vou me despedir de Andrée. Então, até logo mais. Venha cedo para que tenhamos boas horas a nosso dispor - acrescentou sorrindo.

            A essas palavras, fui mais além do que nos tempos em que amava Gilberte, àqueles em que o amor me parecia uma entidade não só exterior, mas realizável. Ao passo que a Gilberte que eu via nos Champs-Élysées era uma outra diversa da que eu encontrava em mim desde que estava sozinho, de súbito, na Albertine real, a que eu via diariamente, que eu julgava cheia de preconceitos pequeno-burgueses e tão franca com a tia, vinha encarnar-se a Albertine imaginária, aquela por quem, quando não a conhecia ainda, me avaliara furtivamente molhado no molhe, a que parecia voltar a contragosto enquanto via que me afastava.

            Fui jantar com minha avó; sentia em mim um segredo que ela não conhecia. Do mesmo modo, quanto a Albertine, amanhã suas amigas estariam com ela sem saber o que havia de novo entre nós dois e, ao beijar a sobrinha na testa, a Sra. Bontemps ignoraria que eu estava entre ambas, naquele arranjo de cabelos que tinha por objetivo, oculto a todos, ser agradável a mim, a mim que até então tanto invejara a Sra. Bontemps porque, aparentada às mesmas pessoas que a sobrinha, precisava usar os mesmos lutos, fazer as mesmas visitas de família; ora, acontecia que eu era para Albertine mais do que a sua própria tia. Junto desta, era em mim que ela pensaria.           Não sabia muito bem o que se passaria dali a pouco. Em todo o caso, o Grande Hotel e o serão já não me pareceriam vazios; continha a minha felicidade. Chamei o elevador para subir ao quarto que Albertine ocupava, que dava para o vale. Os menores movimentos, como sentar-me na banqueta do ascensorista, eram-me suaves, pois tinham relação imediata com meu coração; eu não via, nas cordas que faziam o aparelho subir, nos poucos degraus que me restava galgar, senão as rodas, os degraus materializados da minha alegria. Bastavam-me dois ou três passos a dar no corredor antes de chegar àquele quarto onde estava encerrada a preciosa substância daquele corpo rosado-esse quarto que, mesmo que ali se devessem desenrolar atos deliciosos, conservava aquela permanência, aquele ar de ser, para um transeunte não informado, semelhante a todos os outros, que fazem das coisas as testemunhas obstinadamente mudas, os escrupulosos confidentes, os depositários invioláveis do prazer.

            Esses poucos passos do patamar ao quarto de Albertine, esses passos que ninguém mais podia interromper, transpu-los com delícias, com prudência, como que mergulhado num elemento novo, como se, avançando, eu estivesse lentamente deslocando felicidade e, ao mesmo tempo, com um sentimento desconhecido de onipotência, e de entrar enfim de posse de uma herança que me pertencera o tempo todo. Depois, de súbito, pensei que errara em manter dúvidas; ela me dissera que fosse quando estivesse deitada.

            Era evidente: eu sapateava de alegria; quase atirei Françoise no chão porque estava no meu caminho; corria, os olhos cintilantes, para o quarto da minha amiga. Encontrei Albertine na cama. Descobrindo-lhe o pescoço, a camisola branca mudava as proporções do seu rosto, o qual, congestionado pela cama, pela gripe, ou pelo jantar, parecia mais róseo; pensei nas cores que tivera algumas horas antes, a meu lado, no molhe, e das quais iria enfim saber o gosto; a face estava atravessada, de alto a baixo, por uma de suas tranças negras e encaracoladas, que, para me agradar, desfizera completamente. Olhava-me sorrindo. A seu lado, na janela, o vale estava iluminado pelo luar. A visão do pescoço despido de Albertine, daquelas faces muito rosadas, me deu tal embriaguez (ou seja, pusera para mim a realidade do mundo não mais na natureza, mas na torrente de sensações que eu mal podia conter) que rompeu o equilíbrio entre a vida imensa, indestrutível, que rolava no meu ser, e a vida do universo, comparativamente tão mesquinha. O mar, que eu percebia perto do vale, na janela, os seios arqueados dos primeiros rochedos de Maineville, o céu onde a lua ainda não alcançara o zênite, tudo isso parecia mais leve de carregar do que plumas para os globos de minhas pupilas que, entre as pálpebras, eu sentia dilatadas, resistentes, prontas para erguer muitos outros fardos, todas as montanhas do mundo, sobre sua superfície delicada. Seu orbe já não se encontrava bastante preenchido pela própria esfera do horizonte. E tudo o que a natureza pudesse me trazer de vida teria me parecido bem pouco, os sopros marinhos me pareceriam curtos demais para a imensa aspiração que soerguia o meu peito. Inclinei-me para Albertine a fim de beijá-la. Ainda que a morte devesse me tocar naquele momento, isso me pareceria indiferente, ou melhor, impossível, pois a vida não estava fora de mim, estava em mim; eu teria sorrido com pena se um filósofo me externasse a idéia de que um dia, mesmo afastado, eu teria de morrer, que as forças eternas da natureza me sobreviveriam, as forças dessa natureza sob cujos pés divinos eu não passava de um grão de poeira; que, depois de mim, haveria ainda aquelas falésias arredondadas e arqueadas, aquele mar, aquele luar, aquele céu! Como seria possível isto, como poderia o mundo existir mais que eu, visto que eu não estava perdido nele, mas ele é que estava contido em mim, em mim que ele estava longe de preencher, em mim, onde, sentindo lugar para acumular tantos outros tesouros, eu jogava desdenhosamente para um canto, céu, mar e rochedos?

            - Acabe com isso, ou eu toco a campainha - exclamou Albertine, vendo que me lançava sobre ela para beijá-la. Mas eu dizia comigo que não era para ficar sem fazer coisa alguma que uma moça convidava um rapaz para entrar às escondidas no seu quarto, manobrando para que sua tia não soubesse de nada, e que além disso a audácia é proveitosa para quem sabe desfrutar as ocasiões; no estado de exaltação em que me encontrava, o rosto redondo de Albertine, iluminado por um fogo interior como por uma lamparina, assumia para mim um tal relevo que, imitando a rotação de uma esfera ardente, parecia-me girar como as figuras de Michelangelo que um imóvel e vertiginoso turbilhão arrasta. Eu ia conhecer o aroma, o sabor desse desconhecido fruto róseo. Ouvi um som precipitado, prolongado e estridente. Albertine tocara a campainha com todas as forças.

            Julgara que o amor que sentia por Albertine não se baseava na esperança da posse física. Entretanto, quando me pareceu resultar da experiência daquela noite que essa posse era impossível e que, depois de não ter duvidado, no primeiro dia, na praia, que Albertine fosse uma sem-vergonha, e de ter passado depois por suposições intermediárias, pareceu-me certo, em definitivo, que ela era absolutamente virtuosa; quando, ao voltar da casa da tia, oito dias mais tarde, disse-me com frieza:

            - Perdôo-o; lamento até lhe ter causado desgosto, mas não recomece nunca mais , ao contrário do que ocorrera quando Bloch me havia dito que eu poderia possuir todas as mulheres, e como se, ao invés de uma moça real, eu tivesse conhecido uma boneca de cera, deu-se que pouco a pouco se foi destacando dela o meu desejo de penetrar em sua vida, de acompanhá-la nas terras onde passara a infância, de ser iniciado por ela numa vida desportiva; e minha curiosidade intelectual sobre o que ela pensava acerca de tal ou qual assunto não sobreviveu à crença de que poderia beijá-la. Meus sonhos a abandonaram desde que deixaram de ser alimentados pela esperança de uma posse, da qual os julgara independentes. Desde então viram-se livres para se referir-conforme o encanto que lhes achasse um certo dia, sobretudo conforme a possibilidade e as chances que entrevia de ser amado por elas -a esta ou aquela das amigas de Albertine, principalmente Andrée. No entanto, se Albertine não tivesse existido, talvez eu não tivesse sentido o prazer que principiei a sentir cada vez mais, nos dias seguintes, diante da gentileza que me testemunhava Andrée. Albertine não contara a ninguém o fracasso que eu experimentara com ela.

            Era uma dessas moças bonitas que, desde a extrema juventude, por sua beleza, mas principalmente por um atrativo, um encanto que permanece bem misterioso e que tem suas origens talvez nas reservas de vitalidade onde os menos favorecidos pela natureza vêm se saciar, sempre-em sua família, no meio das amigas, na sociedade-agradaram mais que outras mais belas, mais ricas; era dessas criaturas a quem, antes da idade do amor e bem mais ainda quando ele chega, se pede mais do que elas pedem e até mais do que podem dar. Desde a infância, Albertine tivera sempre em admiração a seu redor quatro ou cinco amiguinhas, entre as quais Andrée, que lhe era tão superior e o sabia (e talvez essa atração exercida por Albertine tão involuntariamente estivesse na origem, tivesse servido para a fundação do pequeno grupo). Essa atração se exercia mesmo bem longe, nos ambientes relativamente mais brilhantes onde, se houvesse uma pavana para dançar, Albertine era solicitada de preferência a uma jovem mais bem-nascida. O resultado era que, não tendo um tostão de dote, vivendo bastante mal, aliás, a cargo do Sr. Bontemps, que diziam ser corrupto e desejar livrar-se dela, ela era no entanto convidada não só para jantar mas para morar em casa de pessoas que, aos olhos de Saint-Loup, não teriam qualquer elegância, mas que, para a mãe de Rosemonde ou para a mãe de Andrée, mulheres muito ricas mas que não conheciam tais pessoas, representavam algo enorme. Assim, Albertine passava, todos os anos, algumas semanas com a família de um diretor do Banco da França, presidente do Conselho de administração de uma grande companhia de estradas de ferro. A mulher desse financista recebia personagens importantes e jamais cumprimentara a mãe de Andrée, a qual achava descortês essa dama, mas nem por isso se sentia menos prodigiosamente interessada por tudo o que se passava na casa dela. Assim, todos os anos exortava Andrée a convidar Albertine para a sua vivenda, porque, dizia, era uma boa obra oferecer uma temporada à beira-mar a uma menina que não tinha nada de seu para viajar e com quem a tia praticamente não se importava; a mãe de Andrée provavelmente não era movida pela esperança de que o diretor do Banco e sua esposa, sabendo que Albertine era mimada por ela e sua filha, formassem uma melhor opinião sobre ambas; com muito maior razão, não esperava que Albertine, contudo tão boa e hábil, soubesse fazê-la ser convidada, ou, pelo menos, que conseguisse convidar Andrée para os garden-party do financista. Mas todas as noites, ao jantar, sempre assumindo um ar de indiferença e desdém, ela ficava encantada ao ouvir Albertine lhe contar o que se passara no castelo durante a sua permanência, as pessoas que ali tinham sido recebidas, quase todas conhecidas dela de vista ou pelo nome. Mesmo a idéia de que ela não os conhecia senão desse modo, ou seja, simplesmente não os conhecia (ela chamava a isto conhecer as pessoas "desde sempre") conferia uma ponta de melancolia à mãe de Andrée, enquanto fazia a Albertine perguntas sobre eles com ar altivo e distraído, com a extremidade dos lábios, e que poderia deixá-la inquieta e insegura quanto à importância de sua própria condição, caso não se tranqüilizasse a si mesma e se recolocasse na "realidade da vida" dizendo ao mordomo:

            - Diga ao chefe que suas ervilhas não estão bem cozidas.

            Recuperava então a sua serenidade. E estava mesmo disposta a que Andrée só se casasse com um homem, de excelente família, é claro, mas suficientemente rico para que ela também pudesse ter um chefe de cozinha e dois cocheiros. Era isso o positivo, a verdade efetiva de uma situação social. Mas que Albertine houvesse jantado no castelo do diretor do Banco com essa ou aquela dama, que essa dama chegasse mesmo a convidá-la para o inverno seguinte, isso não deixava de trazer à moça, no modo de ver da mãe de Andrée, uma espécie de consideração particular que se casava muito bem à piedade e até ao desprezo excitados pelo seu infortúnio, desprezo aumentado pelo fato de o Sr. Bontemps haver traído a sua bandeira aliando-se ao governo e até mesmo vagamente panamista, ao que diziam. O que, aliás, não impedia que a mãe de Andrée, por amor à verdade, fulminasse com seu desprezo as pessoas que davam a impressão de crer que Albertine fosse de baixa extração.

            -Como, é o que há de melhor, são Simonets com um só.

            Certamente, devido ao meio em que tudo isso ia evoluindo, em que o dinheiro desempenha tal papel, e onde a elegância faz com que nos convidem mas não com que nos desposem, nenhum casamento "aceitável" poderia ser, para Albertine, a conseqüência útil da consideração tão distinta de que ela gozava e que não teriam julgado compensadora de sua pobreza. Mas só por si mesmos, e sem trazer esperança de uma conseqüência matrimonial, tais "sucessos" excitavam a inveja de certas mães maldosas, que se encolerizavam por ver Albertine ser recebida como "filha da casa" pela mulher do diretor do Banco, e até pela mãe de Andrée, a quem mal conheciam. Assim, diziam a amigos comuns a elas e a essas duas damas, que estas ficariam indignadas se soubessem a verdade, isto é, que Albertine contava na casa de uma (e vice-versa) tudo o que a intimidade em que a admitiam imprudentemente lhe permitia descobrir sobre a outra, mil pequenos segredos que seria infinitamente desagradável à interessada ver desvendados. Tais mulheres invejosas diziam isto para que se espalhasse e para que Albertine fosse mal vista pelos seus protetores. Mas semelhante política, como ocorre muitas vezes, não alcançava nenhum êxito. Sentia-se demais a maldade que a inspirava, e isto só fazia desprezar ainda mais aquelas que tinham tomado tal iniciativa. A mãe de Andrée estava bem determinada a respeito de Albertine para que mudasse de opinião. Considerava-a uma "infeliz", mas de índole excelente, e que não sabia o que mais inventar para agradar.

            Se essa espécie de fama que obtivera Albertine não parecia comportar nenhum resultado prático, ela imprimira à amiga de Andrée o caráter distintivo das criaturas que, sempre solicitadas, jamais têm necessidade de se oferecer (caráter que também se encontra, por motivos análogos, num outro extremo da sociedade, nas mulheres de grande elegância) e que é não exibirem o sucesso que obtêm, mas antes ocultá-lo. Ela nunca dizia de alguém:

            "Ele tem vontade de me ver", falava de todos com grande benevolência e como se fosse ela quem corresse atrás, procurasse os outros. Se falavam de um rapaz que minutos antes lhe havia feito pessoalmente as mais amargas censuras, porque ela lhe recusara um encontro, bem longe de se gabar publicamente ou de lhe querer mal, Albertine o elogiava:

            - É um excelente rapaz.

            Ficava mesmo muito aborrecida que se agradassem tanto dela, pois aquilo a obrigava a causar mágoa, ao passo que, por sua natureza, gostava de causar prazer. Gostava mesmo de causar prazer ao ponto de ter dito uma mentira especial a certas pessoas utilitárias, a certos homens vitoriosos. Existindo, aliás, em estado embrionário, em um número enorme de pessoas, esse tipo de insinceridade consiste em não saber se contentar com um único ato, em causar prazer, graças a este, a uma só pessoa. Por exemplo, se a tia de Albertine desejava que a sobrinha a acompanhasse a uma reunião matinal pouco divertida, Albertine, comparecendo, poderia achar suficiente o proveito moral de ter dado prazer à tia. Mas, acolhida gentilmente pelos donos da casa, preferia lhes dizer que desejava há muito visitá-los e que escolhera aquela ocasião e solicitara a permissão da tia. Isto ainda não era bastante: naquela matinê se achava presente uma das amigas de Albertine que tivera um grande desgosto. Albertine lhe dizia:

            - Não quis te deixar sozinha, julguei que te faria bem que eu estivesse junto de ti. Se queres que deixemos a matinê, vamos a outro lugar; farei o que quiseres, pois acima de tudo desejo te ver menos triste- (o que aliás também era verdade).

            Às vezes, no entanto, ocorria que o objetivo fictício destruía a finalidade real. Assim, tendo Albertine um serviço a pedir para uma das amigas, ia por esse motivo visitar uma certa dama. Mas, logo ao chegar à casa dessa dama bondosa e simpática, ela, obedecendo sem querer ao princípio de utilização múltipla de uma única ação, achava mais afetuoso dar a impressão de ter vindo apenas devido ao prazer que sentia que iria experimentar ao rever aquela dama. Esta ficava muito sensibilizada pelo fato de Albertine ter percorrido um longo trajeto por pura amizade.

            Vendo a dama quase comovida, Albertine gostava ainda mais dela. Unicamente, acontecia o seguinte: experimentava tão vivamente o prazer da amizade pelo qual mentirosamente pretendia ter vindo, que temia que a senhora duvidasse dos sentimentos, na verdade sinceros, se ela lhe pedisse o obséquio para a amiga. A dama julgaria que Albertine a fora visitar para aquilo, o que era verdadeiro, mas concluiria que Albertine não sentia prazer desinteressado em vê-la, o que era falso. De modo que Albertine voltava sem lhe ter pedido o obséquio, como os homens que foram tão bons com uma mulher na esperança de obter os seus favores, que não se declaram a elas para que essa bondade mantenha um caráter de nobreza. Em outros casos, não se pode dizer que o objetivo verdadeiro fosse sacrificado ao objetivo acessório e imaginado posteriormente, mas o primeiro era de tal modo oposto ao segundo que, se a pessoa que Albertine comovia ao lhe declarar um ficasse conhecendo o outro, seu prazer logo se transformaria no desgosto mais profundo. A seqüência da narrativa fará melhor compreender, bem mais adiante, esse gênero de contradições. Digamos, com um exemplo tirado a uma ordem de fatos muito diversos, que são muito freqüentes nas mais variadas situações que a vida oferece.     Um marido instalou sua amante na cidade em cujo quartel está servindo. Sua mulher, que ficou em Paris e está relativamente a par da verdade, mostra-se desolada, escrevendo ao marido cartas cheias de ciúme. Ora, a amante é obrigada a vir passar um dia em Paris. O marido não pode resistir a seus pedidos de acompanhá-la e obtém uma licença de 24 horas. Mas, como é uma boa pessoa e sofre por causar desgosto à esposa, chega em casa e lhe diz, derramando algumas lágrimas sinceras, que, transtornado pelas cartas dela, arranjou um meio de a vir consolar e abraçar. Assim, achou um meio de dar, com uma só viagem, uma prova de amor ao mesmo tempo à esposa e à amante. Mas, se a esposa soubesse o motivo pelo qual o marido tinha vindo a Paris, sua alegria se iria mudar sem dúvida em desgosto, a não ser que visse que o ingrato a tornava, apesar de tudo, mais feliz do que infeliz com suas mentiras. Entre os homens que me pareceram praticar mais assiduamente o sistema de fins múltiplos está o Sr. de Norpois. Às vezes aceitava ser o intermediário entre dois amigos brigados, e isto fazia com que o chamassem o mais obsequioso dos homens. Mas não lhe bastava dar a impressão de prestar um serviço a quem o solicitara; apresentava ao outro as negociações que fazia junto a ele como empreendidas, não a pedido do primeiro, mas no interesse do segundo, o que persuadia facilmente um interlocutor sugestionado de antemão pela idéia de que tinha à sua frente "o mais serviçal dos homens". Dessa forma, jogando em dois tabuleiros, fazendo o que em linguagem de teatro se chama contraparte, jamais deixava que sua influência corresse qualquer risco, e os serviços que prestava não constituíam uma alienação e sim uma frutificação de uma parte do seu crédito. Por outro lado, todo serviço prestado, parecendo duplamente retribuído, aumentava ainda mais a sua reputação de amigo serviçal, e serviçal com eficiência, que não faz esforços inúteis, cujos passos dão sempre bom resultado, o que era demonstrado pelo reconhecimento dos dois interessados. Essa duplicidade no obséquio era, e com desmentidos como em toda criatura humana, uma parte importante do caráter do Sr. de Norpois. E muitas vezes, no Ministério, servia-se de meu pai, que era bastante ingênuo, fazendo-o crer que o estava servindo.

            Agradando mais do que desejava e não tendo necessidade de alardear o seu sucesso, Albertine guardou silêncio sobre a cena que tivera comigo ao lado da cama, e que uma moça feia gostaria de ter dado ciência ao universo inteiro. Além disso, eu não conseguia me explicar sua atitude naquela cena. Pelo que respeita à hipótese de uma virtude absoluta (hipótese que a princípio atribuíra à violência com que Albertine recusara se deixar beijar e agarrar por mim e que, de resto, não era de modo algum indispensável à minha concepção da bondade, da honestidade essencial da minha amiga), não deixei de examiná-la por diversas vezes. Essa hipótese era bem o contrário da que eu levantara no primeiro dia em que vira Albertine. Depois, tantos atos diferentes, todos de gentileza para comigo (uma gentileza carinhosa, às vezes inquieta, alarmada, ciumenta de minha predileção por Andrée), banhavam por todos os lados o gesto rude com o qual, para fugir de mim, ela tocara a campainha. Por que então me pedira para vir passar o serão junto de sua cama? Por que falava o tempo todo a linguagem da ternura? Sobre o que repousa o desejo de ver um amigo, de temer que ele lhe prefira a sua amiga, de tentar agradá-lo, de lhe dizer romanescamente que as outras não saberão que passou o serão com ela, se lhe recusa um prazer tão simples e que não é um prazer para ela? Da mesma forma, não podia acreditar que a virtude de Albertine fosse até esse ponto e chegava a me perguntar se não houvera, para sua violência, um motivo de coqueteria, por exemplo, um aroma desagradável que julgasse ter em si e com o qual temera me incomodar, ou de pusilanimidade, se, por exemplo, julgasse, em sua ignorância das realidades do amor, que meu estado de fraqueza nervosa podia ter algo de contagioso através do beijo.

            Certamente ficou desolada por não ter podido me dar prazer e me ofereceu um pequeno lápis de ouro, devido a essa virtuosa perversidade das pessoas que, enternecidas com a nossa gentileza e não concordando em nos conceder o que ela reclama, querem todavia fazer outra coisa em nosso favor: o crítico, cujo artigo lisonjearia o romancista, em vez disso o convida para jantar; a duquesa não leva o esnobe consigo ao teatro, mas manda-lhe o seu camarote para uma noite em que ela não irá. Tanto aqueles que fazem o mínimo e poderiam não fazer nada são levados pelo escrúpulo a fazer algo! Disse a Albertine que, dando-me o lápis, ela me proporcionava um grande prazer, todavia menor do que eu teria se, na noite em que ela dormira no hotel, tivesse permitido que a beijasse.

            - Isto me faria tão feliz! E o que é que lhe podia acontecer? Estou surpreso que me tenha repelido.

            -O que me espanta. - respondeu ela- é que você ache isso espantoso. Pergunto a mim mesma que tipo de moças poderá ter conhecido para que minha conduta lhe cause surpresa. - Estou desolado por tê-la aborrecido, mas, mesmo agora, não posso lhe dizer que considero ter procedido mal. Minha opinião é que se trata de coisas sem importância, e não compreendo que uma moça que tão facilmente pode causar prazer não consinta nisso. Entendamo-nos. - acrescentei, para dar uma meia-satisfação às suas idéias morais, lembrando-me como ela e suas amigas tinham difamado a amiga da atriz Léa-,não quero dizer que uma moça possa fazer tudo e que não existe nada que seja imoral. Assim, olhe, essas relações de que você falava outro dia a respeito de uma menina que mora em Balbec e que existiria entre ela e uma atriz, acho isso ignóbil, tão ignóbil que penso que são os inimigos dessa moça que inventaram tudo isso e que nada do que foi contado é verdade. Isto me parece improvável, impossível. Porém deixar-se beijar, e ainda mais por um amigo, já que você diz que sou seu amigo...

            - É meu amigo, mas tive outros antes de você; conheci rapazes que, asseguro-lhe, tinham por mim amizade igual. Muito bem, nenhum deles teria ousado fazer coisa semelhante. Bem sabiam o par de tapas que teriam levado. Aliás, nem pensavam nisso; a gente se apertava as mãos com toda a franqueza, como amigos, como bons camaradas; jamais nos falaríamos em beijar e não éramos menos amigos por isso. Vamos, se faz questão da minha amizade, pode ficar contente, pois é preciso que eu goste muito de você para perdoá-lo. Mas estou certa de que pouco liga para mim. Confesse que gosta mesmo é de Andrée. No fundo você tem razão; ela é muito mais amável que eu, e é deslumbrante! Ah! Os homens!

            Apesar da minha decepção recente, essas palavras de tanta franqueza, dando-me uma grande estima por Albertine, causaram-me uma doce impressão. E talvez essa impressão tivesse para mim grandes e lastimáveis conseqüências, pois foi por ela que principiou a se formar aquele sentimento quase familiar, aquele núcleo moral que sempre devia subsistir no meio do meu amor por Albertine. Um tal sentimento pode ser a causa de mágoas maiores. Pois, para sofrer verdadeiramente por uma mulher, é preciso ter acreditado totalmente nela. Naquele momento, esse embrião de estima moral, de amizade, permanecia no meio da minha alma como pedra de espera. Não teria podido nada, sozinho, contra a minha felicidade se tivesse continuado assim, sem aumentar, numa inércia que deveria conservar no ano seguinte e, com muito mais razão ainda, durante as últimas semanas de minha primeira temporada em Balbec. Estava em mim como um desses hóspedes que, apesar de tudo, seria mais prudente expulsar, mas que deixam que permaneça sem inquietá-lo, de tanto que os tornam provisoriamente inofensivos sua fraqueza e seu isolamento no meio de uma alma estranha.

            Agora, meus sonhos voltavam a ser livres para se reportar a esta ou àquela das amigas de Albertine e, em primeiro lugar, a Andrée, cujas amabilidades talvez me tivessem tocado menos se não tivesse certeza de que seriam conhecidas de Albertine. É claro que a preferência que há muito eu vinha fingindo por Andrée me fornecera em hábitos de conversas, de declarações de carinho como que a matéria de um amor já inteiramente pronto para ela, ao qual até então não faltara mais que um sentimento sincero a acrescentar-lhe, e que agora o meu coração livre de novo, poderia proporcionar. Mas Andrée era muito intelectual, muito nervosa, muito doentia, muito parecida comigo para que a amasse de verdade. Se agora Albertine se me afigurava oca, Andrée estava repleta de algo que eu já conhecia de sobra. No primeiro dia pensara ver na praia a amante de um corredor, embriagada de amor pelo esporte, e Andrée me dizia que havia principiado a praticar esportes a conselho do médico, a fim de curar a neurastenia e as perturbações de nutrição.

            Mas seus melhores momentos eram aqueles em que traduzia um romance de George Eliot. Minha decepção, fruto de um erro inicial sobre o que seria Andrée, não teve, de fato, nenhuma importância para mim. Mas o erro era do tipo desses que, se permitem que o amor nasça e só são reconhecidos como erros quando a situação já não pode ser mudada, tornam-se motivo de sofrimento. Tais erros-que podem ser diferentes dos que havia cometido em relação a Andrée, e até mesmo opostos provêm muitas vezes, como em particular no caso dela, do fato de que assumimos demais o aspecto e as maneiras daquilo que não somos mas desejaríamos ser, para iludir à primeira vista. A aparência exterior, à afetação, à imitação e ao desejo de ser admirado, seja pelos bons, seja pelos maus, acrescenta-se o falso aspecto das palavras e dos gestos. Há cinismos e crueldades que não resistem à prova mais que certas bondades, certas generosidades. Do mesmo modo que muitas vezes se descobre um avaro vaidoso em um homem conhecido por sua caridade, a jactância do vício nos faz supor uma Messalina em uma moça honesta cheia de preconceitos. Eu julgara encontrar em Andrée uma criatura saudável e primitiva, quando não passava de alguém que buscava saúde, como o eram talvez muitos daqueles em que ela pensava encontrá-la, e que na verdade não a possuíam, assim como um homem gordo e artrítico, de rosto vermelho e vestido de flanela branca, não é forçosamente um Hércules. Ora, há circunstâncias em que não é indiferente para a felicidade que a pessoa a quem se amou pelo que parecia ter de saudável na realidade não passasse de um desses enfermos que só recebem sua saúde de outros, como os planetas tomam emprestada a sua luz, como certos corpos se limitam a deixar passar a eletricidade.

            Não importa; Andrée, como Rosemonde e Gisele, e até mais do que elas, era em última análise uma amiga de Albertine, que compartilhava a sua vida e imitava as suas maneiras a ponto de que no primeiro dia eu a princípio não as distinguira uma da outra. Entre essas moças, caules de rosas, cujo encanto principal era se destacarem sobre o mar, reinava a mesma indivisão que no tempo em que não as conhecia e quando o aparecimento de qualquer uma me causava tanta emoção por me anunciar que o pequeno grupo não estava longe. Ainda agora, a vista de uma me proporcionava um prazer onde entrava, numa percentagem que eu não saberia avaliar, a possibilidade de ver as outras a segui-la mais tarde, e, ainda que não viessem naquele dia, a oportunidade de falar a respeito delas e de saber que lhes seria dito que eu estivera na praia.

            Não era mais a atração dos primeiros dias; era uma genuína veleidade de amar que hesitava entre todas, de tal forma cada uma era a substituta natural da outra. Minha maior tristeza não teria sido o fato de ser abandonado por aquela que eu preferia entre todas; mas logo preferiria, porque nela fixara a soma de tristeza e de sonho que flutuava entre elas, aquela que me tivesse abandonado. Ainda nesse caso, era a todas as suas amigas, a cujos olhos eu em breve perderia todo o prestígio, que eu teria inconscientemente lamentado naquela, tendo lhes confessado essa espécie de amor coletivo que o político ou o ator dedicam ao público pelo qual não se consolam de ser abandonados depois de ter recebido todos os seus favores. Mesmo os favores que não pudera obter de Albertine, esperava por eles, de repente, de uma ou outra que me dissera uma palavra ou lançara um olhar ambíguo, ao me deixar à noite, devido aos quais era para essa última que se voltava o meu desejo por um dia inteiro.

            E o meu desejo errava ainda mais sensualmente entre os seus rostos móveis, porque uma fixação relativa das feições já estava bastante iniciada para que se pudesse distinguir, mesmo que mudasse ainda, a efígie maleável e flutuante. Às diferenças existentes entre esses rostos estavam, sem dúvida, muito longe de corresponder as diferenças idênticas no comprimento e largura das feições, as quais, de uma a outra das moças, e por mais dissemelhantes que parecessem, talvez pudessem ser quase superpostas. Mas o nosso conhecimento dos rostos não é matemático.

            Primeiro, não começa por medir as partes, mas tem como ponto de partida uma expressão, um conjunto. Em Andrée, por exemplo, a finura dos olhos doces parecia juntar-se ao nariz estreito, tão delgado como uma simples curva, que tivesse sido traçada para que fosse possível prosseguir numa só linha a intenção de delicadeza divisada anteriormente no duplo sorriso dos olhares gêmeos. Uma linha da mesma finura lhe riscava os cabelos, ágil e profunda como a que o vento traça na areia. E essa linha devia ser hereditária, pois os cabelos inteiramente brancos da mãe de Andrée eram dispostos da mesma maneira, aqui formando um tufo, ali uma depressão, como a neve que se ergue ou se afunda de acordo com as desigualdades do terreno. É evidente que, comparado à fina delineação do de Andrée, o nariz de Rosemonde parecia oferecer amplas superfícies, como uma torre alta assentada numa base poderosa. Ainda que a expressão seja bastante para fazer crer em diferenças enormes entre coisas separadas por algo infinitamente pequeno, e ainda que o infinitamente pequeno possa por si só criar uma expressão absolutamente particular, uma individualidade, o fato é que nem o infinitamente pequeno de uma linha nem a originalidade da expressão faziam com que esses rostos aparecessem irredutíveis uns aos outros. Entre os de minhas amigas, a coloração abria uma separação ainda mais profunda, não tanto pela variada beleza dos tons que lhes proporcionava, tão opostas que eu sentia diante de Rosemonde- inundada de um róseo sulfurino sobre o qual reagia ainda a luz esverdeada dos olhos -e diante de Andrée-cujas faces brancas recebiam tanto da austera distinção de seus cabelos negros o mesmo tipo de prazer como se olhasse alternadamente um gerânio à beira do mar ensolarado e uma camélia à noite; mas sobretudo porque as diferenças infinitamente pequenas das linhas se achavam desmesuradamente aumentadas, assim como as proporções entre as superfícies eram inteiramente mudadas por esse elemento novo da cor, o qual, assim como é um dispensador de matizes; e funciona também como grande regenerador ou, pelo menos, modificador de dimensões. De maneira que as fisionomias, construídas talvez de modo pouco diverso, conforme sejam iluminadas pelo fogo de uma cabeleira ruiva ou de uma pele rosada, ou pela branca luz de um pálido fosco, encompridavam-se ou se ampliavam, tornando-se uma coisa diferente, como esses acessórios dos balés russos, que consistem às vezes, se são vistos em plena luz do dia, numa simples rodela de papel e que o gênio de um Bakst, segundo a iluminação vermelho-pálida ou lunar em que mergulha o cenário, faz incrustar-se duramente neste, como uma turquesa na fachada de um palácio, ou desabrochar molemente, rosa de bengala no meio de um jardim. Assim, ao tomar conhecimento dos rostos, nós os medimos realmente, mas como pintores e não como agrimensores.

            Dava-se o mesmo com Albertine que com suas amigas. Em certos dias, delgada, pálida, aborrecida, uma transparência violácea descendo obliquamente no fundo de seus olhos, como ocorre algumas vezes no mar, ela parecia sentir uma tristeza de exilada. Em outros, seu rosto mais liso atraía os desejos à sua superfície envernizada e os impedia de irem mais além; a menos que eu não a visse de súbito de lado, pois suas faces foscas feito uma cera branca eram, na superfície, rosadas por transparência, o que dava tanta vontade de as beijar, de tocar aquela pele diferente que se esquivava. De outras vezes, a felicidade banhava suas faces de uma claridade tão móvel que a pele, tornada vaga e fluida, deixava passar como que olhares subjacentes que a faziam parecer de uma outra cor, mas não de matéria diferente da dos olhos; às vezes, sem querer, ao olhar para seu rosto matizado de pontinhos castanhos e onde flutuavam apenas duas manchas mais azuis, lembrava um ovo de pintassilgo, e muitas vezes era como uma ágata opalina, trabalhada e polida somente em dois lugares, onde, no meio da pedra escura, luzissem como asas transparentes de uma borboleta azul, os olhos, em que a carne se torna espelho e nos dá a ilusão de deixar, mais que em outras partes do corpo, que nos aproximemos da alma. Porém, com mais freqüência, tinha boa cor e se mostrava mais animada; umas vezes só era cor-de-rosa, em seu rosto branco, a ponta do nariz, fino como o de uma gatinha sorrateira, com a qual se tivesse vontade de brincar; às vezes suas faces eram tão polidas que o olhar deslizava como pelas de uma miniatura, sobre o seu esmalte rosado, ainda mais delicado e interior devido à tampa entreaberta e superposta de seus cabelos negros; ocorria que a pele de suas faces chegava ao rosa violáceo do ciclâmen, e às vezes até, quando ela estava congestionada ou febril, e dando então a idéia de uma compleição doentia que rebaixava o meu desejo a qualquer coisa de mais sensual e fazia seu olhar exprimir algo mais perverso e indecente, assumia o púrpura sombrio de certas rosas de um rubro quase negro. E cada uma destas Albertines era diferente, como é diferente cada uma das aparições da bailarina cujas cores, forma e caráter vão se transmudando, conforme os jogos inumeravelmente variados de um projetor luminoso. Talvez por serem tão diversas as criaturas que eu contemplava em Albertine àquela época, é que mais tarde adquiri o hábito de tornar-me eu mesmo um outro personagem, de acordo com a Albertine em que pensava: um ciumento, um indiferente, um voluptuoso, um melancólico, um furioso, recriados não só ao acaso da lembrança que renascia, mas conforme a intensidade da crença interposta, para uma mesma recordação, pelo modo diverso com que a apreciava. Pois era sempre a isto que precisava retornar, a essas crenças que na maior parte do tempo nos enchem a alma à nossa revelia, mas que, todavia, têm mais importância para a nossa felicidade que determinada criatura que vemos, pois é através delas que a vemos, são elas que atribuem à criatura contemplada a sua efêmera grandeza. Para ser exato, eu deveria dar um nome diferente a cada um dos eus que a seguir pensou em Albertine; mais ainda, deveria dar um nome diferente a cada uma dessas Albertines que apareciam diante de mim, nunca a mesma, como-chamados simplesmente por mim, para maior comodidade, o mar-esses mares que se sucediam e diante dos quais, outra ninfa, se destacava Albertine. Mas principalmente da mesma forma, porém de modo bem mais útil do que se diz, numa narrativa, o tempo que estava fazendo em tal dia-deveria sempre denominar a crença que, no dia em que eu via Albertine, reinava em minha alma, formando a atmosfera e o aspecto dos seres, bem como o aspecto dos mares depende dessas névoas apenas visíveis que mudam a cor de todas as coisas devido a sua concentração, sua mobilidade, sua disseminação, sua fuga-como a que Elstir havia rompido uma tarde não me apresentando às moças com quem se detivera e cujas imagens subitamente me pareceram mais belas quando se afastavam -, névoa que alguns dias depois, quando as conhecera, tornara a formar-se, velando o seu brilho, interpondo-se muitas vezes entre elas e meus olhos, opaca e doce, semelhante à Leucotéia de Virgílio.

            Sem dúvida, os rostos de todas elas tinham mudado de significação para mim, desde que o modo pelo qual era preciso lê-los me fora em certa medida indicado por suas próprias frases, às quais tanto maior valor eu podia atribuir, visto que à vontade as provocava com minhas perguntas, fazia-as variar como um experimentador que submete a contraprovas a verificação daquilo que supôs. E, em suma, é uma forma como outra qualquer de resolver o problema da existência, o de aproximar bastante as coisas e as pessoas que de longe nos pareceram belas e misteriosas, para nos darmos conta de que não têm mistério nem beleza; é uma das higienes entre as quais se pode optar, uma higiene que talvez não seja muito recomendável, mas que nos proporciona uma certa calma para passar a vida e também para nos resignarmos à morte, uma vez que nos permite não lamentar coisa alguma, convencendo-nos que alcançamos o melhor e que o melhor não é grande coisa.

            Eu havia substituído, no fundo do cérebro daquelas moças, o desprezo à castidade, a recordação de saídas diárias, por princípios honestos, talvez capazes de ceder mas tendo até então preservado de qualquer deslize aquelas que os haviam recebido de seu ambiente burguês. Ora, quando nos enganamos desde o começo, mesmo quanto às pequenas coisas, quando um erro de suposição ou de memória nos faz procurar o autor de uma intriga malévola ou o local para onde se desgarrou um objeto em direção falsa, pode acontecer que só descubramos o nosso engano para o substituir não pela verdade, mas por um outro engano. No tocante ao modo de viver daquelas moças e à forma de tratá-las, eu tirava todas as conseqüências da palavra inocência que havia lido em seus rostos, conversando familiarmente com elas. Mas talvez tivesse lido irrefletidamente, no lapso de uma decifração por demais rápida, e ali não mais estivesse escrita, como não estava o nome de Jules Ferry no programa da matinê em que pela primeira vez ouvira a Berma, o que não me impedira de garantir ao Sr. de Norpois que Jules Ferry, sem qualquer dúvida, escrevia anteatos.

            No caso de qualquer das minhas amigas do pequeno grupo, como não seria o último rosto que eu tivesse visto, o único de quem me lembraria? Porque, de todas as lembranças relativas a uma pessoa, a inteligência elimina aquilo que não concorre para a utilidade imediata de nossas relações cotidianas (mesmo e sobretudo se tais relações são impregnadas de um pouco de amor, o qual, sempre insatisfeito, vive no momento a decorrer)? Ela deixa afrouxar a cadeia dos dias passados, só lhe segura com força o último elo, muitas vezes formado de metal bem diverso do dos elos desaparecidos na noite, e, na viagem que fazemos através da vida, só considera como real a região em que estamos no presente. Nenhuma das minhas primeiras impressões, já tão distantes, podia encontrar contra a sua deformação diária um recurso em minha memória; durante as longas horas que eu passava conversando, lanchando, jogando com aquelas moças, nem me lembrava que elas eram as mesmas virgens implacáveis e sensuais que eu vira, como num afresco, desfilar diante do mar.

            Os geógrafos e os arqueólogos nos conduzem à ilha de Calipso, exumam o palácio de Minos. Unicamente, Calipso não passa de uma mulher, Minos de um rei sem nada de divino. Até as qualidades e os defeitos que a História nos ensina terem sido então o apanágio dessas pessoas muito reais, diferem às vezes, grandemente, das qualidades e defeitos que havíamos atribuído aos seres fabulosos do mesmo nome. Assim se dissipara toda a graciosa mitologia oceânica que eu havia elaborado nos primeiros dias.

            Porém não é totalmente indiferente que nos ocorra, ao menos às vezes, passar o nosso tempo na familiaridade do que julgáramos inacessível e que havíamos desejado.

            Na convivência com as pessoas que a princípio acháramos desagradáveis, persiste sempre, mesmo no meio do prazer fictício que podemos sentir junto delas, o gosto falsificado dos defeitos que conseguiram dissimular. Mas, nas relações como as que eu tinha com Albertine e suas amigas, o legítimo prazer que está em sua origem deixa esse perfume que nenhum artífice consegue conferir aos frutos forçados, às uvas que não amadureceram ao sol. As criaturas sobrenaturais que elas tinham sido um momento para mim, conservavam ainda, mesmo sem que eu o soubesse, um tom de maravilhoso nas relações mais banais que tivera com elas, ou melhor, preservavam essas relações de terem jamais algo de banal. Meu desejo buscara com tamanha avidez a significação dos olhos que, agora, me conheciam e sorriam, mas que no primeiro dia tinham cruzado os meus olhares como raios emitidos de um outro universo, tão ampla e minuciosamente havia ele distribuído a cor e o perfume sobre a superfície carnosa daquelas moças que, estendidas sobre o rochedo, me alcançavam simplesmente sanduíches ou brincavam de adivinhações, que, em muitas dessas tardes, enquanto eu, deitado no chão, como aqueles pintores que buscam a grandeza do antigo na vida moderna e dão a uma mulher que apara a unha do pé a nobreza do "Menino que extrai o espinho" ou que, como Rubens, mudam em deusas mulheres suas conhecidas para compor um quadro mitológico, contemplava aqueles belos corpos morenos e louros, de tipos tão opostos, espalhados a meu redor pela relva, sem esvaziá-los talvez de seu conteúdo medíocre de que os enchera a experiência diária, e no entanto sem me lembrar expressamente de sua origem celeste como se, igual a Hércules ou a Telêmaco, estivesse brincando rodeado de ninfas.

            Depois os concertos acabaram, chegou o mau tempo, minhas amigas deixaram Balbec, não juntas todas, como as andorinhas, mas na mesma semana. Albertine foi a primeira, de repente, sem que nenhuma das amigas pudesse entender, nem então nem mais tarde, por que voltara de súbito a Paris, onde nem trabalhos nem distrações a esperavam.

            "Ela não disse quê nem porquê, e depois foi embora" resmungava Françoise, que aliás gostaria que fizéssemos o mesmo. Achava-nos indiscretos diante dos empregados, todavia já bem reduzidos em número, mas retidos pelos raros fregueses que permaneciam no hotel, diante do gerente que "comia dinheiro". É verdade que, há muito tempo, o hotel, que não tardaria a fechar, vira partir quase todo o mundo; mas também, nunca fora tão agradável como agora. Não era essa a opinião do gerente; ao longo dos salões onde a gente enregelava e a cuja porta já não montava guarda nenhum groom, ele media os corredores, de redingote novo, tão cuidado pelo barbeiro que seu rosto apagado parecia consistir em uma mistura na qual, para uma parte de carne, havia três de cosméticos, e mudando sem cessar de gravata (tais elegâncias custam mais barato que assegurar o aquecimento e manter o pessoal, e aquele que já não pode mandar dez mil francos para obras de caridade, ainda facilmente banca o generoso dando cem sous de gorjeta ao telegrafista que lhe traz um despacho). Dava a impressão de inspecionar o nada, de querer dar, graças ao bom aspecto pessoal, um ar provisório à miséria que se sentia naquele hotel, onde a temporada não fora boa, e parecia o fantasma de um soberano que regressa para assombraras ruínas do que outrora foi seu palácio. Ficou descontente sobretudo quando o trem local, que já não tinha passageiros suficientes, deixou de funcionar até a primavera seguinte.

            - O que falta aqui, - dizia o gerente- são os meios de comoção.

            Apesar do débito registrado, fazia projetos grandiosos para os anos seguintes. E, como, ainda assim, era capaz de reter exatamente belas expressões quando se aplicavam à indústria hoteleira e tinham por resultado engrandecê-la:

            - Eu não estava bastante bem assessorado, embora tivesse uma boa equipe na sala de jantar -dizia -; mas os grooms deixam a desejar; verão que falange saberei reunir no ano que vem.

            Enquanto esperava, a interrupção dos serviços do B.C.B. o obrigava a mandar buscar a correspondência e às vezes conduzir os viajantes de carro. Eu pedia muitas vezes para sentar ao lado do cocheiro e, desse modo, passeava qualquer que fosse o tempo, como no inverno que passara em Combray.

            Entretanto, às vezes, a chuva bem forte nos retinha, a minha avó e a mim; estando fechado o cassino, em peças quase completamente vazias, como no porão de um navio quando o vento sopra, e onde todos os dias, como no decorrer de uma travessia, uma nova pessoa daquelas com quem passáramos três meses sem travar relações, o primeiro presidente do conselho de Rennes, o decano de Caen, uma senhora americana e suas filhas, vinham se juntar a nós, começavam a conversar, inventavam uma forma de tornar as horas menos longas, revelavam um talento, ensinavam-nos um jogo, convidavam-nos para tomar chá ou tocar música, ou para uma reunião em determinada hora, combinando em conjunto essas distrações que possuem o verdadeiro segredo de nos dar prazer, apenas porque não pretendem mais que isso, e simplesmente nos ajudam a passar o tempo e a matar o tédio. Enfim, travavam conosco, no fim da nossa temporada, amizades que suas partidas sucessivas, no dia seguinte, vinham interromper. Cheguei a travar relações com o rapaz rico, e com um de seus amigos nobres, e com a atriz que voltara por alguns dias; mas a pequena sociedade só se compunha de três pessoas, tendo o outro amigo regressado a Paris. Convidaram-me para ir jantar com elas no seu restaurante. Creio que ficaram bem contentes por eu não ter aceito. Mas haviam feito o convite da maneira mais amável possível, e, embora na verdade partisse do rapaz rico, visto que os outros eram apenas seus hóspedes, como o amigo que os acompanhava, marquês Maurice de Vaudémont, era de casa muitíssimo nobre, a atriz instintivamente, perguntando-me se não queria ir, acrescentou para me lisonjear:

            - Isso daria imenso prazer a Maurice.

            E, quando encontrei todos os três no hall, foi o Sr. de Vaudémont, enquanto o rapaz rico ficava em silêncio, que me disse:

            - Não vai nos dar o prazer de jantar conosco?

            Em resumo, aproveitara eu muito pouco de Balbec, o que me aumentava o desejo de para ali voltar. Parecia-me que ali ficara muito pouco tempo. Não era esta a opinião de meus amigos, que me escreviam para perguntar se tencionava viver em Balbec definitivamente. E, ao ver que era o nome de Balbec que eles se obrigavam a colocar no envelope, e como, em vez de dar para uma campina ou para a rua, a minha janela se abria para os campos do mar, cujo rumor ouvia à noite, e ao qual, antes de adormecer, confiara o meu sono como uma barca, tinha a ilusão de que essa promiscuidade com as ondas devia materialmente, à minha revelia, fazer penetrar em mim a noção do seu charme, à maneira das lições que a gente aprende dormindo.

            O gerente me oferecia melhores quartos para o próximo ano, mas agora sentia-me ligado ao meu, onde entrava sem mais sentir o cheiro do vetiver, e do qual o meu pensamento, que antigamente se elevava dali com tanta dificuldade, acabara por tomar tão exatamente as dimensões que fui obrigado a fazê-lo sofrer um tratamento inverso, quando tive de me deitar de novo no meu quarto antigo, cujo teto era baixo.

            De fato, tínhamos sido forçados a deixar Balbec, já que o frio e a umidade se tornaram penetrantes demais para permanecermos por muito tempo naquele hotel desprovido de lareiras e caloríferos. Aliás, esqueci quase de imediato essas últimas semanas. O que revi quase invariavelmente, quando pensei em Balbec, foram os momentos em que, todas as manhãs, como devia sair à tarde com Albertine e suas amigas, minha avó, por ordens do médico, me forçou a ficar deitado no escuro. O gerente ordenava que não fizessem barulho no meu andar e ele próprio vigiava para ser obedecido. Por causa da luz muito forte, eu conservava fechadas, o máximo de tempo possível, as grandes cortinas cor-de-violeta que me haviam testemunhado tanta hostilidade na primeira noite. Mas, apesar dos alfinetes com os quais, para que a luz do dia não passasse, Françoise as prendia à noite, e que só ela sabia retirar, apesar das cobertas, da toalha da mesa de cretone vermelho, dos tecidos pegados aqui e ali para ajustar às cortinas, não conseguia uni-los de todo e a escuridão não era completa; e parecia que se espalhavam pelo tapete um escarlate desfolhar de anêmonas, entre as quais eu não podia evitar de, por um momento, pousar os pés nus. E na parede defronte à janela, parcialmente iluminada, havia um cilindro de ouro, sem qualquer sustentáculo, colocado verticalmente e deslocando-se devagar como a coluna luminosa que precedia os hebreus no deserto. Voltava a me deitar; obrigado a gozar, sem me mexer, apenas pela imaginação, e todos ao mesmo tempo, os prazeres dos jogos, do banho, da caminhada, que a manhã aconselhava, a alegria me fazia bater bruscamente o coração como uma máquina em plena atividade, porém imóvel, e que, para descarregar a sua velocidade, só pode girar sobre si mesma no mesmo lugar.

            Sabia que minhas amigas estavam no molhe mas não podia vê-las, enquanto elas passavam diante dos píncaros assimétricos do mar, no fundo do qual, empoleirada no meio de seus cimos azulados como uma aldeia italiana, eu às vezes discernia, numa clareira, a cidadezinha de Rivebelle, minuciosamente detalhada pelo sol. Não via minhas amigas, mas (enquanto chegavam até meu belvedere o pregão dos jornaleiros, dos "jornalistas", como dizia Françoise, os chamados dos banhistas e das crianças que brincavam, pontuando, à maneira dos gritos dos pássaros marinhos, o ruído das ondas que quebravam suavemente) adivinhava a sua presença, ouvia o riso delas, envolto como o das nereidas na suave arrebentação que subia até os meus ouvidos.

            - Olhamos para ver se você descia. - dizia-me Albertine à noite. - Mas os seus postigos ficaram fechados mesmo na hora do concerto.

            Com efeito, às dez horas ele rebentava debaixo de minhas janelas. Entre os intervalos dos instrumentos, se o mar estava muito cheio, voltava-se a ouvir, contínuo e ligado, o deslizar da água de uma onda, que parecia envolver as cordas do violino em suas volutas de cristal e lançar sua espuma por sobre os ecos intermitentes de uma música submarina. Impacientava-me por não me terem trazido ainda as minhas coisas a fim de que pudesse me vestir. Soava meio-dia e por fim chegava Françoise. E, durante meses a fio, nessa Balbec que tanto desejara, porque só a imaginara batida pela tempestade e coberta de névoas, o bom tempo fora tão deslumbrante e tão fixo que, quando ela vinha abrir a janela, eu pudera sempre, sem me enganar, esperar encontrar a mesma réstia de sol dobrada no ângulo da parede externa, e de uma cor imutável que emocionava menos como um sinal de verão do que pelo teor melancólico, como o de um esmalte artificial e inerte. E, enquanto Françoise desprendia os alfinetes dos cortinados, despregava os tecidos e corria as cortinas, o dia de verão que ela aos poucos desvelava parecia tão morto, tão imemorial, como uma suntuosa e milenária múmia que nossa velha empregada não fizesse mais que ir desenrolando cuidadosamente de suas bandagens, antes de fazê-la aparecer embalsamada em seu vestido de ouro.

 

                                                                                            Marcel Proust

 

 

                      

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