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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


À SOMBRA DO CAMPANÁRIO / Erskine Caldwell
À SOMBRA DO CAMPANÁRIO / Erskine Caldwell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

O facto de eu ter sido, nos Estados do Sul, filho de um sacerdote, e de ter crescido num ambiente predominantemente religioso, constituiu a minha boa estrela na vida.

A experiência de viver durante seis meses, ou um ano, ou por vezes mais longamente, em sucessivos Estados do Sul, em cidades, vilas e terras de província, exposto a numerosa variedade de seitas protestantes que, em doutrina, eram calvinistas e, na prática, fundamentalistas, provou ser de mais valor para mim do que a educação secular intermitente e frequentemente interrompida que recebi nos primeiros dezassete anos da minha vida.

Este afortunado destino de nascimento e circunstância podia, aliás, ter sido trágico e infrutífero, se tanto meu pai, como minha mãe, não tivessem sido sensatos e tolerantes, dando-me, consequentemente, a possibilidade de alcançar uma compreensão da vida, que ultrapassava as fronteiras traçadas pelas crenças religiosas prevalecentes e atitudes mentais imbuídas de preconceito.

Meu pai era o Reverendo Ira Sylvester Caldwell, cidadão da Carolina do Norte, sacerdote ordenado da Associação de Presbiterianos Reformados, veterano da Guerra Hispano-Americana, e diplomado pelo Instituto Universitário Erskine, pelo Seminário Teológico Erskine e pela Universidade de Jórgia. Minha mãe, Caroline Bell Caldwell, era oriunda da Virgínia, professora, e diplomada pelo Instituto Universitário Mary Baldwin e pela Universidade de Jórgia. Não tive nenhum irmão, nem irmã.

 

 

 

 

Até aos doze anos de idade, eu chamava a meu pai Bud, e a minha mãe Tarrie. O nome que eu dera à mãe derivou do facto de ouvir constantemente, na minha infância, tratarem-na por Carrie, diminutivo de Carolina. Assim, também, o nome de Bud, naquele tempo, tinha para mim ressonância adequada e autêntica, como o meu próprio nome. Os pais nunca me pediram, nem me exigiram, que os tratasse por outros nomes que não fossem Bud e Tarrie.

À parte o usual título de Reverendo, meu pai era conhecido de muita gente como Ira.

Na atmosfera menos convencional das barbearias e nas excursões de pesca com os amigos, era costume tratarem-no por Pregador.

Contudo, os irmãos e irmãs e outros parentes de meu pai apelidavam-no de Bud, provavelmente por ser o mais velho dos seis filhos de seus pais. Sentindo-me tão intimamente relacionado com ele como os outros, também me pareceu sempre natural tratá-lo por Bud.

Aconteceu, porém, que, ao completar doze anos de idade, uma das minhas tias disse-me que era de mau gosto e desrespeitoso eu tratar os meus pais por Bud e Tarrie, e fui coagido e induzido a nunca mais os chamar por aqueles nomes. A recompensa que recebi foi uma bicicleta de um azul lustroso, com uma campainha no guiador e uma bomba de pneus presa à armação. Cedo me acostumei a dizer Mãe ou Mère, em vez de Tarrie, mas, embora não tivesse esquecido a promessa feita, nunca pude pensar no meu pai com o nome de Pai ou Père.

Nunca houve discussão acerca do que devia chamar ao pai em vez de Bud, mas, como se tivéssemos achado um compromisso e entrado em acordo secreto, a partir daí, quando estávamos sós e ninguém mais presente, tratava-o por Ira Sylvester ou I. S. Era entre nós, e, portanto, não o considerávamos uma quebra de promessa. Afinal, embora a minha tia se convencesse de que eu passaria a tratá-lo por Pai ou Père, ou talvez Papá ou Paizinho, a única promessa que lhe fiz foi a de nunca o tratar por Bud.

Meu pai nunca se opôs, mesmo anos depois, a que eu o tratasse por Ira Sylvester ou I. S. e, quando ele me olhava, piscando os olhos e com um significativo sorriso, era como se a minha tia nunca me tivesse oferecido a bicicleta. Todavia, ele bem reconhecia ser inevitável que um rapaz da minha idade, que tanto queria ter uma bicicleta, se dispusesse a prometer o que quer que fosse, dentro do razoável, para vir a possuí-la.

Foi nessa altura que comecei a interessar-me pela relação entre meu pai e a religião. Talvez por ser sombriamente alto e musculoso, e usar camisas brancas engomadas e um laço preto ligeiramente descaído, tinha a aparência de um clérigo cheio de dignidade. Eu sabia, também, que ele pregava nas igrejas e viajava frequentemente com fins religiosos. Contudo, não sabia porque é que ele era sacerdote e como sucedeu sê-lo.

Quando lhe pedia para explicar a razão do seu ingresso no sacerdócio, em vez de ser um médico, um advogado ou um lojista, ele fugia à pergunta e pouco tinha a dizer, talvez por pensar que eu não tinha idade suficiente para entender uma explicação plena. A única coisa que Ira Sylvester me dizia era que tinha estudado para padre, porque a mãe dele lhe tinha pedido.

Só muitos anos mais tarde é que descobri a razão por que a mãe dele lhe tinha pedido para estudar para padre.

Aos doze anos de idade, o meu conhecimento de religião, e a evidência do seu apelo emocional limitavam-se ao que eu tinha ouvido e visto no âmbito da A. P. R. Naqueles anos, era escasso conhecimento para o filho de um sacerdote, e, embora eu tivesse sido cristianizado numa cerimónia religiosa celebrada na minha terra natal, do condado de Coweta, na Jórgia ocidental, nunca tivera a experiência de ser baptizado. Mais do que isso, intencionalmente ou não, nunca me pediram, nem me obrigaram a frequentar a escola dominical. Quando ingressei nela, foi porque os meus companheiros de brincadeira a frequentavam e eu queria estar com eles.

Não me surpreendeu, dado que era permitido conhecer a vida à medida que a ia vivendo, o facto de não ter sido o meu pai, mas sim um comerciante judeu, de Charlotte, Carolina do Norte, quem me fez ciente de que existiam no mundo outros credos religiosos, além do da A. P. R., e de que era possível à compaixão humana transpor as fronteiras religiosas existentes. O nome do comerciante era Mr. Goldstein, que possuía um estabelecimento de vestuário e sapataria na Trade Street, situado no centro comercial de Charlotte.

Ia eu, montado na minha bicicleta, pela rua fora, numa tarde de Verão, à procura de folhas de estanho, de pacotes vazios de cigarros. Já tinha coleccionado folhas bastantes para formar uma bola do tamanho de um melãozinho, e esperava receber pela mercadoria um quarto de dólar, vendendo-a a um negociante de junco, num beco por trás da Tryon Street.

Parei em frente da loja de vestuário e sapatos para apanhar da valeta um pacote de cigarros amarfanhado, e ele veio à porta e perguntou-me se eu queria um emprego— entregar encomendas de sapatos. Foi a primeira vez que me ofereceram um emprego no mundo dos negócios, e fiquei demasiado surpreendido para proferir palavra. Pôs a mão sobre o meu ombro e apertou-o, como se receasse que eu me retirasse e não aceitasse o emprego. Disse que me pagaria dois dólares por semana, se eu trabalhasse todas as tardes, excepto aos sábados e domingos.

A certeza de ganhar dois dólares por semana era muito mais atraente do que a incerteza de encontrar folhas de estanho nas ruas, suficientes para render vinte e cinco cêntimos, ocasionalmente, e eu aceitei avidamente o emprego. Mr. Goldstein conduziu-me ao interior do estabelecimento, entregou-me uma caixa de sapatos, e escreveu a direcção do destinatário num pedaço de papel. Pedalei a minha bicicleta num percurso que me pareceu ser de vários quilómetros, chegando finalmente ao lugar de destino, na States ville Avenue, próximo dos arredores da cidade.

Depois de entregar os sapatos ao cliente, regressei à cidade, mas já estava a escurecer e Mr. Goldstein fechara já a porta do estabelecimento, retirando-se. Cheguei a casa, a hora tardia para o jantar, e esperava ser severamente repreendido e proibido de continuar no emprego. Contudo, meus pais disseram-me que, uma vez que eu fora contratado para trabalhar à semana para Mr. Goldstein, devia manter o acordo, de minha parte; assim, voltei ao estabelecimento na tarde seguinte, prontamente, às treze horas.

Na tarde de sexta-feira seguinte, último dia da minha primeira semana de trabalho para Mr. Goldstein, e dia de pagamento, foram-me entregues duas caixas de sapatos para levar à mesma direcção, sendo-me dadas instruções para cobrar dois dólares por um par, trazendo o outro par de novo ao estabelecimento. Mr. Goldstein explicou que os sapatos eram de dois tamanhos, para um rapaz de cerca de doze anos, e que a mãe do rapaz devia ficar com o par que melhor servisse.

Quando cheguei à direcção do Boulevard Sul, onde os sapatos deviam ser entregues, reconheci imediatamente a pequena casa, despintada e desbotada pelas intempéries, que ficava na vizinhança do lugar em que eu tinha vivido.

Era o lar de dois dos meus companheiros de folguedo, e frequentemente fui ali jogar com eles no pátio traseiro.

A mãe deles era uma viúva, que fazia costura e passava a ferro de dia, sempre que encontrava trabalho na vizinhança. Os três viviam nessa casa, composta de dois compartimentos, com pouca mobília, além de duas camas, algumas cadeiras e uma grande mesa coberta com uma toalha de oleado, no compartimento de trás. A mulher, frágil, de cabelo escuro, pertencia à igreja da A.P.R., de que meu pai era, temporariamente, pastor, e ela assistia aos ofícios religiosos quase todos os domingos de manhã. Todavia, os dois rapazes já havia dois meses, ou mais, que não iam à escola dominical.

Enquanto o rapaz mais velho, que se chamava Fíoyd, ficou dentro de casa, a experimentar os sapatos, seu irmão Pete e eu fomos para o pátio onde brincámos com o comboio e o carro de bombeiros que guardavam num abrigo que haviam construído com pedaços de caixotes e de latas.

Por instantes, a mãe deles chamou-me à porta traseira, entregando-me dois dólares e uma das caixas de sapatos. Disse-me depois que o par maior serviu ao Floyd e que me tornaria a ver no piquenique que a escola dominical promovia num parque, na tarde seguinte. Quando perguntei se Pete iria também ao piquenique, respondeu-me que tinha de ficar em casa, porque ela apenas podia comprar um par de sapatos e não queria que ele fosse descalço ao piquenique da escola dominical.

Peguei no dinheiro e na caixa de sapatos, e ia montar a bicicleta para voltar ao estabelecimento da Trade Street. Foi então que vi Floyd surgir à porta com o seu novo par de sapatos. Olhei, então, para Pete. Pensei que Mr. Goldstein me havia de dar os dois dólares em pagamento, quando eu chegasse à loja, e que os sapatos de menor tamanho serviriam ao Pete, porque era um ano mais novo que seu irmão. Aproximei-me da porta, e coloquei a caixa de sapatos nos degraus; seguidamente, montei a bicicleta e pedalei ao longo do Boulevard Sul, o mais velozmente possível.

Quando cheguei ao estabelecimento, entreguei a Mr. Goldstein os dois dólares que havia cobrado e pus-me a explicar, então, por que razão não tinha trazido comigo o outro par de sapatos, conforme as instruções que me dera. Antes que falasse, disse-lhe que era minha intenção que ficasse com os dois dólares que acordara pagar-me, como pagamento dos sapatos que eu deixara ficar, para o Pete os poder usar no piquenique da escola dominical do dia seguinte.

Mr. Goldstein sentou-se num banco e não proferiu palavra durante muito tempo. Era já tarde e não havia clientes na loja. Depois, olhou-me e chamou por mim com um gesto da cabeça. Quando me aproximei, fez sinal para me sentar no balcão, perto dele.

Em primeiro lugar, perguntou-me que igreja é que eu frequentava, e depois perguntou-me em que é que meu pai ganhava a vida. Seguidamente, levantou a cabeça para me fitar, e abanou a cabeça, com uma solene expressão na face.

Houve um longo silêncio. Então, Mr. Goldstein disse que nunca seria capaz de compreender, enquanto vivesse, como é que os cristãos e os gentios podiam viver dos negócios sem caírem em falência. Voltando a fitar-me, disse-me que os judeus eram tão bondosos e sentimentais e humanos como os cristãos, mas que os judeus tinham aprendido há muito tempo a ganhar dinheiro em primeiro lugar, e a dar parte dele, mais tarde, em benefício de uma boa causa. Disse-me que devia ter isto em mente, se tinha tenção de viver do comércio e evitar os tribunais de falência, quando fosse mais velho.

Eram horas de fechar a loja. Mr. Goldstein levantou-se do banco, falando alto consigo próprio, e começou a apagar as luzes. Eu não ouvi bem o que ele dizia, mas, quando se preparava para fechar a porta à chave, entregou-me um dólar. Ao fazê-lo, disse-me que me devia dois dólares de salário semanal e que eu lhe devia dois dólares pelos sapatos que tinha dado e que a única maneira de resolver o problema era cada um de nós contribuir com um dólar para os sapatos de Pete.

Quando fui para casa e contei ao meu pai o que tinha acontecido, ele observou-me que isso provava que um homem não precisava de ser presbiteriano, baptista ou metodista, para ser abençoado pela virtude da humanidade. De seguida, Ira Sylvester disse que precisava, há muito, de um novo par de sapatos e que na segunda-feira de manhã iria à loja de Mr. Goldstein comprar um par. Tive de abandonar o meu emprego no estabelecimento de Mr. Goldstein, quando nos mudámos de Charlotte para Tampa, Florida, no fim do ano.

Foi em Tampa que eu reparei pela primeira vez que alguns brancos se recusavam a participar em ofícios religiosos com pessoas cuja cor de pele era mais escura que a sua — incluindo o meu pai que era de pele escura e tinha o cabelo preto.

Ao tempo, Ira Sylvester era secretário do conselho das missões regionais do sínodo da A.P.R., e frequentemente se deslocava a algumas das igrejas que se encontravam em dificuldades financeiras, ou onde havia divergências entre membros de alguma congregação, a ponto de ameaçar a sobrevivência dessa igreja particular. Nessas circustâncias, cabia-lhe a responsabilidade de tentar reajustar as condições que ele considerava a razão de ser da crise. Ocasiões havia em que obtinha êxito nos seus esforços para unir duas facções opostas e outras em que era incapaz de persuadir as partes a aceitar ou até a discutir as sugestões que ele propunha.

A igreja de Tampa ficava na zona, de língua espanhola, da cidade de Ybor, onde viviam muitos cubanos, que trabalhavam nas fábricas de cigarros. Era uma missão recentemente organizada, instituída por um grupo de agricultores e negociantes retirados, do Mississipi, de Alabama e da Jórgia, e possuía, ao tempo, uma pequena congregação de menos de cinquenta membros. Como meio de obter recursos para a igreja, o plano de meu pai era aumentar a assistência e os donativos, convidando os cubanos que viviam próximo a frequentar os ofícios de domingo.

Após algumas semanas, Ira Sylvester disse estar convencido de que era um erro esperar que os cubanos de língua espanhola aceitassem o protestantismo escocês-irlandês, sem serem instruídos em certa medida no seu dogma. Sabendo que os cubanos da cidade de Ybor não estavam comprometidos com o catolicismo, tinha a certeza de que alguns deles seriam inclinados a assistir aos ofícios divinos protestantes, se os sermões fossem mais breves e houvesse mais música.

Para que os cubanos pudessem compreender melhor as palavras que cantavam, os salmos de língua inglesa eram traduzidos em espanhol, e, para avivar o compasso da música, o órgão foi substituído por um piano.

Não tardou que mais de metade do grupo originário dos agricultores e negociantes retirados deixasse de frequentar os ofícios divinos e contribuir para os encargos da igreja.

Todavia, à medida que decrescia a assistência dos primeiros membros, a assistência dos cubanos aumentava. Pouco tempo depois, a pequena igreja de madeira enchia-se completamente todos os domingos, de manhã e de tarde. E os donativos cresceram a tal ponto, que havia dinheiro bastante na tesouraria da igreja para substituir o telhado, ferrugento e mal vedado, por um lustroso telhado de latão, novo.

Poucas semanas antes de nós termos planeado sair da Florida, para nos mudarmos para Virgínia, dois veteranos disseram a Ira Sylvester quererem que ele se demitisse e abandonasse imediatamente a vila. Quando pediu uma explicação, disseram-lhe que os brancos que tinham nascido e sido educados segundo as tradições do Sul não estavam para violar os seus princípios, frequentando uma igreja ao lado de cubanos que pareciam mulatos; que a igreja tinha sido construída por brancos apenas para adorar a Deus, e que preferiam ver a igreja encerrada ou queimada até às cinzas a vê-la profanada por gente que não era convenientemente branca. Disseram que era sabido por todos, em Tampa e nesse sector da Florida, que certas pessoas que se consideravam cubanas eram, na verdade, de descendência negra, assim como havia pessoas consideradas negras que eram de descendência cubana, e que os brancos do Sul não estavam para se associar, no mesmo edifício, com gente cuja pele era escura como a de um vulgar mulato.

Quando o meu pai lhes perguntou se estavam descontentes com ele, como sacerdote, um dos veteranos observou que havia mais uma coisa a dizer. Foi-lhe dito, então, que alguns dos membros originários se sentiam incomodados por causa da cor escura da pele dele, visto não ser mais clara que a de alguns dos cubanos que frequentavam os ofícios religiosos.

Ira Sylvester replicou aos veteranos que não tinha possibilidade de verificar a pureza da sua ascendência anglo-saxónica, porque os seus antepassados escoceses haviam deixado a Escócia, mesclando-se com os irlandeses e huguenotes — e provavelmente, também, com índios americanos — mas achava que a sua mistura racial não tinha descolorido as suas convicções religiosas.

Os dois homens retiraram-se sem apertar as mãos, nem dizer adeus, quando Ira Sylvester lhes disse que viera tomar conta da igreja pelo prazo de seis semanas e que não partiria dali sem completar o período.

Quando perfiz dezassete anos, completara o curso do liceu em Wrens, Jórgia, e planeava ingressar no instituto universitário, no período seguinte. No entretanto, consegui empregar-me como ajudante de pedreiro em Calhoun, Jórgia, não distante de Chattanooga, Tennesse. Explicaram-me que o meu trabalho consistiria em misturar argamassa e carregar caixotes de tijolo para uma igreja em construção. O salário seria de vinte e cinco cêntimos por hora, das sete e meia às cinco e meia, e o custo do quarto e pensão seria de um dólar por dia.

Nessa altura, tendo estado com meus pais em numerosos lugares, em todos os Estados do Sul, e tendo vivido a vida de filho de um ministro religioso durante esses anos, havia acumulado uma considerável experiência religiosa e sentia-me capaz de me ajustar à vida, onde quer que estivesse. Por isso, não esperava necessitar de conselho religioso quando tivesse de viver fora de casa pela primeira vez e ficaria surpreso se meu pai fizesse qualquer menção acerca de religião, ao partir para o meu emprego de Verão na Jórgia. Ele sabia que o meu conhecimento do aspecto religioso da vida já não se confinava apenas ao que eu tinha observado nas igrejas da A.P.R.

Nessa altura, muitas coisas notáveis ocorreram nos Estados do Sul, desde a Virgínia à Florida e a Arkansas, quando, com ele estivera presente em igrejas de vários credos e denominações. Tínhamos assistido às reuniões nocturnas celebradas ao ar livre, da Igreja de Deus, às exibições do Santo Cilindro sobre chão de madeira lascada, às imersões baptismais dos Primitivos Cristãos em lagoas lamacentas, ao lava-pés dos Adventistas do Sétimo Dia, às comunhões, com bebida de sangue, do Corpo de Cristo, ao manipular de cobras, do Reino de Deus, aos serviços religiosos da Glossolalia O do Pleno Redentor, às reuniões nas esquinas das ruas, da Santidade Baptizada pelo Fogo, à missa católica da meia-noite na véspera de Natal, aos rituais das sinagogas judaicas, e às conferências filosóficas das igrejas Unitárias.

Depois de assistir ao calmo e grave serviço religioso, executado com uma série de cânticos e orações, I. S., habitualmente, fazia comentários favoráveis sobre a arquitectura da igreja ou a qualidade da música coral. Mas I. S. raras vezes me fazia qualquer observação, depois de me levar a escutar a prolongada e ininteligível babel de Língua Desconhecida, ou a ver pessoas a rolar em gestos de êxtase no chão da igreja, ou a observar algum pregador santificado bater na sua cabeça com o cabo de um machado, até atingir o estado de delírio semiconsciente. Contudo, é provável que a sua intenção fosse, além do seu próprio interesse pelo que via, proporcionar-me um meio de me instruir acerca de todas as práticas religiosas contemporâneas.

Também nessa altura, depois de ter vivido todos aqueles anos à sombra do campanário, era de esperar ouvir I. S. dizer que eu devia, então, saber o suficiente acerca da vida para decidir por mim, se desejava jamais assistir de novo a algum serviço religioso, ou se desejava associar-me a alguma igreja, de qualquer denominação.

 

(’) Glossolalia: ladainha ininteligível proferida em alta voz pelos membros de uma congregação que dizem orações individuais, mas não em uníssono. E; conhecida também pela expressão “falar em Língua Desconhecida”.

 

Tendo-me sido oferecida a liberdade de escolha, duvidei que algum dia viesse a perder interesse em observar o espectáculo de práticas religiosas, à medida que crescia em idade. Parecia-me que não. Eu tinha estado tão ligado à religião evangélica por tantos anos, que sentia, ainda que não frequentasse qualquer igreja, o desejo de observar o efeito que o seu apelo emocional exercia nas pessoas, pelo tempo fora.

Agora, após quarenta anos extraordinários, parece razoável esperar que, em contraste, a evocação das práticas religiosas dos protestantes brancos anglo-saxões, dos históricos anos 20, e a observação daquelas práticas, dos anos 60, servirão para iluminar, em certa medida, a vida eclesial das duas eras, nos Estados do Sul.

Durante a minha juventude, no Sul, nos primeiros anos do século, e antes de sair de casa pela primeira vez, o que sempre me despertava interesse era ouvir I. S. falar acerca de qualquer experiência que tivera, nalguma das suas frequentes excursões em pregações, ou em inquérito, sobre qualquer disputa ou rompimento que tivesse ocorrido em qualquer das igrejas da A. P. R. Por vezes, dava-me a impressão de estar a escutar algum polícia ou agente secreto, acerca de alguma aventura sucedida em lugar distante, ainda que o acontecimento se resumisse ao furto da mala de viagem dele, numa estação de caminho-de-ferro.

De vez em quando, I. S. ausentava-se de casa por uma semana, ou mais, viajando sempre de comboio, quando o tempo era demasiado breve, ou a distância longa de mais para ir de automóvel, por estradas não pavimentadas. Voltava ao lugar onde, ao tempo, vivíamos, e contava histórias excitantes acerca de lugares, cujos nomes me eram estranhos, como Live Dak, Florida, e Red Levei, Alabama, e, também, Mississipi.

Quando regressava de alguma longa viagem de comboio, o vestuário dele tinha o cheiro acre do fumo de carvão, das locomotivas a vapor. Como habitualmente ele me trazia o horário dos caminhos-de-ferro, não tardou que eu me sentisse capaz de identificar um certo percurso de caminho-de-ferro em que tinha viajado, pelo odor do fumo de carvão que lhe saturava o fato.

Alguns caminhos-de-ferro utilizavam carvão betuminoso, extraído na Virgínia e na Virgínia Ocidental, enquanto outros atiçavam as suas locomotivas a vapor com carvão de Kentucky, Tennessee e Alabama. Procurava aprender a detectar as diferenças do odor, ao notar a coloração do fumo da locomotiva — castanho-escuro, cinzento-escuro ou negro de carvão — que variava de um caminho-de-ferro para outro. Se, por ser Verão, I. S. não usava o casaco, no comboio, era fácil distinguir um odor particular ao sacudir as cinzas das abas do seu chapéu e esfregá-las vigorosamente entre as palmas das mãos.

Com o andar do tempo, passou a ser fácil discriminar o cheiro do fumo de carvão dos caminhos-de-ferro Southern, Seaboard, Atlantic Coast Line, Louisville, Nashville e outros, também importantes. Todavia, nunca tive a certeza, ao procurar identificar os caminhos-de-ferro de menor extensão, tais como os de Charlestone, Carolina Ocidental, Atlanta e West Point, e Columbia, Newberry e Laurens, polo cheiro do fumo ou pelas cinzas das suas locomotivas a vapor.

Ira Sylvester andava sempre de bom humor, e, habitualmente, tinha sempre novas histórias pitorescas a contar, quando regressava a casa de alguma jornada bem sucedida. Mas, se a viagem não dera resultado satisfatório, voltava quase sempre melancólico e desalentado. Quando se sentia assim desanimado, dizia, por vezes, que certas pessoas, no mundo, não deviam ser autorizadas a ingressar em igrejas de qualquer denominação, e que melhor seria, para eles próprios e para todos, se desistis sem da intenção de praticar a religião e se fizessem ateus ou agnósticos, o que mais adequado seria.

Várias vezes, quando regressava de alguma viagem em que não alcançava o êxito desejado, lhe ouvi afirmar que, se lhe fosse dado decidir, ele dissolveria toda a congregação de certa igreja e venderia o terreno e o edifício, pelo melhor preço, ainda que a posse e a propriedade deles passassem para os Santos Rolantes. Sempre que vinha profundamente desencorajado e exprimia o seu desdém pelas facções não cooperantes de alguma congregação, dizia que essa gente teria melhor oportunidade de ir para o céu, se tal era o seu intento, demitindo-se da igreja da A. P. R. O lugar ideal para porem em prática o seu género de religião seria no chão com os Santos Rolantes, ou nalguma igreja santificada, onde pudessem bater nas suas cabeças com um malho, ou o cabo de um machado, até ficarem completamente atordoados e tontos.

Uma das mais memoráveis viagens feitas por Ira Sylvester, sem o êxito que esperava, ocorreu quando ele regressou a casa e jurou que se demitiria, se tivesse de discutir, de novo, com semelhante grupo queixoso de cristãos professos. Sucedeu isso quando ele viajou por três caminhos-de-ferro diferentes, não tendo eu sido capaz, por causa do odor mesclado do fumo das locomotivas, de identificar qualquer deles. Fiquei tão descontente com esta minha incapacidade, como ele ficara com os resultados da sua viagem.

Quanto a este caso em particular, conforme ele contou acerca da igreja que havia visitado, cerca de metade dos seus membros queria atapetar o chão da igreja, ao passo que os restantes se opunham à ideia. Disse que, quando chegou à vila, onde a igreja estava situada, verificou que cada um dos membros havia tomado uma atitude firme e, aparentemente, inalterável, quer de um lado, quer de outro e que não encontrou qualquer pessoa imparcial ou razoável, de entre os componentes da congregação, que o ajudasse a procurar alcançar uma solução satisfatória. Até o pastor da igreja se recusou a intervir. O pastor tinha sido ameaçado por ambas as facções com a extinção dos seus salários, se porventura favorecesse uma facção ou outra.

Em resultado da controvérsia, os que advogavam a causa do chão despido e do chão atapetado deixaram de falar uns com os outros, dois divórcios ocorreram entre as famílias divergentes, e houve uma cena de tiros em que um dos membros foi morto e um outro ficou paralítico por toda a vida.

E isso não foi tudo. A companhia de electricidade ameaçou cortar as luzes, porque a factura não foi paga; o prémio de seguro de fogo estava seis meses em atraso, e um último aviso fora remetido pela companhia intimando cancelar a apólice, se o pagamento não fosse efectuado no prazo de dez dias; e o sacristão negro negou-se a ir tocar o sino da igreja, a varrer o chão, e a lavar os vidros das janelas, até que resolvessem pagar-lhe os salários, em atraso havia quatro meses.

Os diáconos continuavam a passar os pratos da colecta, todos os domingos, mas nem os partidários do chão despido, nem os do chão atapetado, davam qualquer contribuição. Ambas as facções se encerravam no seu orgulho, recusando-se a ceder, já havia cerca de seis meses, e todos os membros continuavam a afirmar que não contribuiriam com um cêntimo, sequer, para sustento da igreja, a não ser que fosse posto em prática o que pretendiam.

O conflito, dentro da congregação, de cerca de duzentas pessoas, começou no ano anterior, quando alguns membros se queixaram de que muitos dos outros estavam a deteriorar e a profanar o ambiente sagrado dos serviços religiosos e a adoração de Deus, batendo ruidosamente com os calcanhares dos sapatos no chão liso, em compasso com a música do coro e dos cantos da congregação.

Os membros da facção ruidosa sustentavam que todos os bons cristãos deviam acompanhar o ritmo da música da igreja com o bater dos pés, e que era necessário um chão descoberto, para que o compasso pudesse ser ouvido distintamente.

Quando i.S. regressou a casa, após uma ausência de cerca de uma semana, dessa vez, contou que tinha dito aos membros da igreja que a melhor sugestão que poderia dar, naquelas circunstâncias, era eliminarem a cantoria do coro e da congregação, por um período experimental de dois ou três meses, e dedicar a hora inteira do serviço religioso a escutarem o sermão do pastor.

Porém, como habitualmente, i. S. não se demitiu do lugar de secretário do conselho das missões regionais, nem, como por vezes ameaçava, quando se encontrava extremamente desanimado, se demitiu do ministério da A. P. R.

Quando falava em se demitir, dizia que havia chegado à conclusão de que tudo tinha feito para o bem da igreja. Nunca disse o que iria fazer, no caso de abandonar o ministério, mas afirmava, frequentemente, que o Sul tinha mais necessidade de experimentados obreiros profissionais de bem-estar social e de professores de escolas públicas, do que de mais ministros e evangelistas. Naquela altura, estava convencido de que metade dos membros de qualquer congregação, das que conhecia, tinha já adequado lugar no Céu, e a outra metade estava fatalmente comprometida com o Inferno.

Quanto à controvérsia entre os partidários do chão despido e do chão atapetado, I. S. opinava que a situação estava, obviamente, em ponto morto, ambas as partes decididas a não entrar no menor compromisso, e que poucas possibilidades havia de o conflito ficar decidido antes de a igreja se desorganizar por completo. O que ele tinha em vista, se lhe fosse permitido tomar uma decisão, era recomendar que a igreja fosse encerrada e a propriedade vendida, para solver compromissos. Quanto aos membros, podiam, ou construir duas igrejas separadas, uma com chão despido, outra com chão atapetado, ou podiam agregar-se a igrejas de outras denominações, que celebrassem ofícios religiosos a seu gosto.

Finalmente, I. S. observou que os partidários do chão descoberto começavam por cometer um erro em não se fazerem membros de uma seita tradicional que praticasse o bater dos pés e das mãos, como, por exemplo, a Assembleia de Deus ou o Evangelho da Plena Fé, dado que a organização dos A. P. R. com os seus salmos cantados, não era considerada apreciadora do ritmo musical.

De uma outra vez que Ira Sylvester foi efectuar um inquérito e procurar um remédio para determinada situação de uma das igrejas, voltou a casa, dias depois, satisfeito com as suas diligências. Foi no Inverno, e ele usava um sobretudo cinzento-escuro que estava completamente impregnado do cheiro agridoce do que eu tinha a certeza provir do fumo da locomotiva dos Caminhos-de-Ferro da Atlantic Coast Line. Quando tirou o horário do bolso, agradou-me verificar que, mais uma vez, eu tinha sabido identificar o odor sulfuroso do fumo do carvão de Uma certa linha de caminhos-de-ferro.

Tudo o que Ira Sylvester sabia acerca da situação, antes de sair de casa para investigar, era que a igreja em causa possuía uma congregação de mais de trezentas pessoas; que era uma congregação próspera, que não acarretava problemas financeiros à igreja; que o pastor era um jovem recentemente formado por um seminário teológico e sem prévia experiência pastoral; e, o que era mais importante, que alguém havia subtraído uma considerável quantia de dinheiro, no decurso de alguns meses, da colecta dos domingos.

Entre as primeiras coisas que descobriu, quando começou a interrogar, foi que o dinheiro depositado, no princípio das semanas, na conta bancária da igreja, tinha decrescido para menos de metade do normal. Em consequência, houve letras de câmbio não cumpridas, e o pastor passara a receber menos ordenado do que o estabelecido.

Ira Sylvester disse que nenhum dos mais velhos acusava qualquer dos quatro diáconos de tirar dinheiro das colectas de domingo, mas que alguns deles suspeitavam que um diácono, recentemente nomeado, se ocultava com mais de metade dos donativos.

O novo diácono tinha muitos parentes na congregação, e era um jovem solteiro que, havia pouco tempo, abrira uma agência de seguros. Embora o seu negócio de seguros parecesse próspero, era sabido na cidade que nem as rendas do escritório, nem o ordenado do seu secretário eram pagos pontualmente.

Era uma situação invulgar, porque em muitas igrejas não havia ocasião propícia para qualquer diácono de recente nomeação tirar dinheiro das colectas de domingo. Além disso, os diáconos eram considerados homens de indiscutível honestidade, que nunca cediam à tentação de furtar. Contudo, era tradição desta igreja, já havia anos, dar a conhecer ao diácono recentemente nomeado que estava incumbido de um cargo de responsabilidade, confiando-lhe o dinheiro da igreja, colectado aos domingos, para ser depositado às segundas-feiras de manhã.

Aqueles que suspeitavam do novo diácono tinham receio de que, no caso de ele ser falsamente acusado, e ser considerado depois inocente, os numerosos parentes dele, ou abandonariam a igreja, para se associarem a outra, de diferente denominação, ou, se se mantivessem como membros, provocariam uma grave dissensão na congregação, por longos anos.

Foi proposto, por um dos mais velhos, que o dinheiro fosse confiado a um dos outros diáconos, mas verificou-se que isso era o mesmo que acusar directamente o suspeito, o mesmo acontecendo se instalassem, para o efeito, um cofre na igreja.

Desconfiou-se, a certa altura, que o furto fosse da autoria de um empregado bancário, mas uma investigação levada a cabo pelos directores do banco mostrou que não fora autor de tal desvio.

O que os mais velhos queriam evitar, acima de tudo, era um escândalo público na igreja, e, por tal motivo, opuseram-se à proposta de contratar um agente da polícia ou um inquiridor que, porventura, conduzisse à detenção do diácono, por furto. Sabiam que factos semelhantes haviam ocorrido em igrejas de outras denominações, mas achavam impossível que uma igreja da A. P. R. se manchasse com tamanha indignidade.

Sucedeu que I. S. passou o dia a conversar com cada um dos veteranos, e um outro dia a conversar com vários membros da igreja, nenhum dos quais queria acusar o diácono suspeito; e, por fim, passou uma tarde com o jovem pastor.

O pastor, homem nervoso, de cabelo fino, cor de areia, solteiro, receava que a denúncia pública do culpado prejudicasse a sua carreira ministerial. Implorou a I. S. que se retirasse imediatamente da vila, sem fazer qualquer investigação nessa altura, e que voltasse meses depois, se necessário. Era ambição sua tornar-se pastor de igreja de um outro Estado, que possuísse uma congregação mais vasta e mais rica, onde pudesse auferir salário a dobrar, em relação ao que obtinha na sua situação actual.

O jovem ministro não hesitou em admitir que estava menos preocupado acerca do dinheiro subtraído as colectas, do que acerca da possibilidade de os mais velhos da outra igreja serem ouvidos sobre o caso. Se o diácono suspeito fosse acusado de furto e reconhecesse a sua culpa, o facto repercutir-se-ia nele, como ministro, e afectaria tão profundamente a sua reputação, que a oferta do lugar, que esperava receber dentro de semanas, lhe seria certamente retirada.

Explicou então a I. S. que uma outra razão para manter a questão suspensa era o facto de estar noivo da filha de um rico membro da igreja que esperava ser convidado a pastorear, uma oportunidade vantajosa que poderia também perder.

Ao fim da tarde, quando I. S. estava para regressar ao hotel, disse ao jovem ministro que tinha vindo ali para prestar auxílio a toda a congregação, em matéria grave, e não para o ajudar a ganhar um salário elevado, noutro lugar, e a casar com pessoa de família rica.

  1. S. disse que uma outra coisa que lhe devia ter afirmado, nessa ocasião, era que constituía um facto muito de lamentar que um jovem, com tais ideias, se tivesse ordenado; e que melhor seria abandonar o ministério e procurar outra ocupação, o mais breve possível.

Na manhã seguinte, dirigiu-se ao escritório da agência de seguros, para conversar com o jovem diácono. Conversaram sobre muitas coisas, durante uma hora ou mais, sem mencionarem uma vez, sequer, o dinheiro em falta da igreja. Não tardou que descobrisse a razão da subtracção dos dinheiros da colecta dominical.

Acabou por lhe perguntar — contou o meu pai — qual o resultado das apostas que fazia nas corridas de cavalos. Quando o jovem pastor admitiu que as perdas eram maiores do que aquelas que ele podia suportar, e que a sua agência de seguros não dava para as despesas, I. S. sugeriu-lhe que passasse seis dias por semana a trabalhar em cheio na agência e que dedicasse todo o domingo, não aos serviços divinos da igreja, mas ao estudo das apostas de corridas.

  1. S. disse que não houve necessidade de sugerir que o jovem diácono se demitisse, pois foi fácil ver, pela expressão de gratidão e alívio na sua face, como se sentia reconhecido por não ter sido publicamente acusado de tirar dinheiros para apostar em corridas de cavalos.

Ambos sabiam que ele não mais se locupletaria com dinheiro das colectas e que, no futuro, se assistisse aos ofícios religiosos depois de se demitir de diácono, sentar-se-ia num banco da retaguarda, e colocaria dinheiro na bandeja do peditório, em vez de o retirar de lá.

Como tem acontecido no decurso de várias gerações, e acontecerá por outras gerações vindouras, a cordilheira de Cumberland, em Kentucky e Tennessee, é uma região insular dos Apalaches do Sul, onde, cada ano, o dinheiro se torna mais escasso e a religião cresce em medida cheia.

A agricultura nunca foi uma actividade compensadora, numa terra de escarpas e ravinas, para os colonos anglo-saxões e seus descendentes. Durante algum tempo, as minas de carvão proporcionaram empregos; depois, a mineração mecânica do carvão acarretou, inevitavelmente, a redução de mão-de-obra, ano após ano. Mas a religião evangelista e fundamentalista cresceu e floresceu na terra-mãe dos Cumberlands, na primeira metade do século, como em nenhuma outra parte dos Estados Unidos.

Enquanto a fome e a pobreza e o desespero se alastravam, de ano a ano, o êxtase religioso era o único narcótico disponível para atenuar a dor de viver. A esperança no Céu era o que despertava os ânimos na Terra, e o que atiçava essa esperança era um frequente estímulo das glândulas emocionais, com promessas de uma vida melhor, após a morte. O evangelismo prometeu sempre mais, para o futuro, do que qualquer governo consegue para o presente.

A escassez de recursos, nos começos do século actual, que resultava da falta de oportunidade, para muitas pessoas dos Cumberlands, de ganharem a vida, adequadamente, na agricultura e nas minas, instituiu o costume de troca de géneros entre vizinhos e estranhos, como meio de sobrevivência e de existência.

Era inevitável, numa região em que constituía uma necessidade económica recorrer à troca de géneros, que um protestantismo evangelístico cheio de imagens de inferno-fogo-e-enxofre e pórticos celestes de madrepérola fizesse de uma religião dura um produto avidamente procurado pelos sulistas pobres e ignorantes de descendência anglo-saxónica, ali aprisionados.

A troca de produtos, nos Cumberlands, agora como no passado, processa-se dentro dos seus limites, ao passo que a religião emocional, prolífica, evangelística, no estilo de Cumberland, é tão exuberante que, todos os anos, o excedente é exportado com zelo missionário. A maior parte do excedente vai para os Estados do Sul, de Virgínia até as Carolinas, Arkansas e Louisiana; e sobra, ainda, zelo missionário para evangelizar as regiões do Midwest, de Ohio ao Missouri e Southwest, do Texas à Califórnia.

Este “hinterland” envolvido de montanhas, de Kentucky oriental e do Tennessee oriental, larga colónia fundada há duzentos anos, com uma população de algumas centenas de milhares, é a terra natal dos brancos protestantes, anglo-saxões — designados por WASP — incluindo os separatistas, divisionistas, revisionistas, conformistas e não conformistas — desde os Santos Rolantes e Manipuladores de Cobras até os Lavadores de Pés e Baptistas de Concha Dura.

O preceito do fundamentalismo é o espírito orientador de todas as religiões de estilo Cumberland, o que conduz inevitavelmente aos princípios reaccionários e ultraconservadores, na vida secular.

Um zelador religioso de Cumberland, quer seja um ministro ordenado, quer um envangelista não ordenado, ou um leigo, é o mais indicado para membro, e muitas vezes para dirigente, de organizações segregacionistas, e identicamente extremistas, quando sai para o exterior. Após uma geração, mais ou menos, os seus descendentes contam-se entre os membros que envergam túnicas, de algum clube sem recursos, militantemente reaccionário, como o Ku-Klux-Klan, ou entre os que apoiam algum outro clube provocadoramente ultraconservador dos ricos, como o Conselho dos Cidadãos.

Em tal ambiente de tradições firmes e rígido fundamentalismo, é natural que as mudanças sociais e políticas, que têm ocorrido com frequência noutras regiões dos Estados Unidos, nos últimos anos, encontrem forte resistência nos Cumberlands. Assim, poucas mudanças têm sido ali assinaladas, entre o começo dos anos 20 e o final dos anos 60.

À parte as inevitáveis alterações no estilo de vestuário, a única mutação verificada tem sido a transformação das carroças em camiões e dos postes de prender os cavalos por parquímetros. De resto, a vida entre os descendentes, magros e de perfil anguloso, dos colonos escoceses-irlandeses e ingleses, dos séculos dezoito e vinte, mantém-se relativamente inalterada e inalterável.

A primeira vez que estive nos Cumberlands foi pouco antes da Primeira Grande Guerra. Viajava eu então com meu pai, numa das suas frequentes excursões ao Sul, embora desta vez ele fosse em viagem de negócios e não em missão do sínodo da A. P. R. Ira Sylvester tinha-me dito que queria que fosse com ele aos Cumberlands, para que pudesse ver com os meus próprios olhos, enquanto novo, como é que as pessoas viviam naquela parte do mundo.

Era Verão, e as estradas sujas estavam secas e poeirentas. Tínhamos vindo num Ford de turismo, descapotável, desde Tennessee até o Kentucky oriental, para encomendar um carro especial, utilitário.

Ira Sylvester preferia uma viatura própria para percursos longos aos carros de estilo corrente, e sabia que a melhor madeira de carvalho e nogueira, para as rodas, eixos e estruturas era a da região de Cumberlands; e possuíamos a direcção de um construtor desses carros, que acordara, por correspondência, executar exactamente o modelo escolhido. O carro era uma necessidade, como meio de transporte no Inverno, no Tennessee ocidental, em que as estradas do interior naquele tempo não alcatroadas, eram escorregadias e lamacentas de mais para se viajar de automóvel.

Parámos, uma tarde, numa vila dos Cumberlands, e alugámos um quarto de hotel para a noite. Era ainda cedo para jantar e percorremos a rua principal para conhecer a terra. Depois de passarmos alguns quarteirões, aproximámo-nos de um grupo de seis ou oito homens, sentados em bancos e caixotes de madeira, em frente de uma loja de ferragens e arreios. Um dos homens levantou o braço em saudação e convidou-nos a sentar e descansar.

O homem sentado ao lado de Ira Sylvester disse que era agricultor, vivia num pedaço de terra, numa das enseadas, cultivava um pouco de trigo e de tabaco, e possuía alguns porcos. Além disso, era dono de uma pequena mina de carvão por trás da sua casa, que ele cavava o bastante para extrair carvão para cozinhar e aquecer. Disse que auferia recursos razoáveis para a sua família, trocando os produtos, que podia economizar, nas lojas, por outros que precisava, e que raramente via dinheiro nas mãos.

Ira Sylvester deu a conhecer ao habitante de Kentucky que ele era um ministro presbiteriano, do Tennessee ocidental, e que tínhamos vindo de longe para adquirir um carro construído com madeira genuína de Cumberland.

Conversaram um pouco acerca da melhor espécie de madeira para raios de rodas e eixos para carruagens, e o agricultor, então, tirou um canivete do bolso da fatiota, propondo ao meu pai uma troca. Ambos compararam as lâminas, os cabos de osso e as marcas comerciais dos canivetes de um e outro, durante muito tempo, aguardando, cada um, que o outro fizesse a sua oferta.

Finalmente, foi o agricultor quem fez a oferta, a cinquenta cêntimos. Ira Sylvester propôs-lhe vinte e cinco cêntimos. Ao fim e ao cabo, a troca fez-se, por trinta cêntimos, pela diferença.

O homem que havia ganho trinta cêntimos no negócio, meteu o dinheiro na algibeira, e acariciou-o gostosamente. Depois disso, disse ele, estava em boa forma para ir à igreja no domingo seguinte e não ser censurado outra vez pelo pregador, como no domingo anterior, em que não possuía, sequer, uma moeda de cinco cêntimos para deitar no cesto da colecta.

Quando nos levantámos para regressar ao hotel, para jantar, apertou a mão a Ira Sylvester, dizendo que esperava não houvesse ressentimento pelo facto de receber dinheiro provindo de negócio de um pregador presbiteriano para o ir oferecer a um pregador de Pentecostes.

Ira Sylvester replicou que não se preocupasse, porque o dinheiro ia ser utilizado com um bom objectivo religioso.

O homem abanou a cabeça e disse que talvez fosse verdade em relação aos presbiterianos, mas que o pregador de Pentecostes costumava sempre tirar avidamente o dinheiro do cesto da colecta, enfiando-o no bolso das calças, antes que Deus tivesse a oportunidade de ver quanto era.

Na região carbonífera dos Cumberlands, ao findar os anos de 60, ao longo do trágico vale de pobreza e degradação, desde Middlesboro a Pineville Harlan, deve haver ainda menos que trocar e negociar do que havia há meio século. Ao longo dos trilhos e atalhos, nas ravinas, a perder de vista das estradas alcatroadas e caminhos principais, os carros vergam-se, descaem e enferrujam, à beira do colapso, sob a ramagem verde dos carvalhos claros e das nogueiras escuras. Os rostos juvenis empalidecem de desespero, e os velhos murmuram que tudo está perdido e que amanhã será como ontem e hoje — ou talvez pior.

Os planos do governo para aliviar a pobreza são remotos, invisíveis e indefinidos; mas perto, à mão, existe a fé numa igreja que dá imediato conforto; e há o costume tradicional de negociar facas e relógios, para companhia e conversação — e, possivelmente, para lucro.

Como dizia um magro montanhês de Cumberland, a melhor coisa a fazer, enquanto se aguarda a viagem para o Céu, é viver confortàvelmente com Jesus, e fazer o melhor negócio possível na Terra, lucrando um quarto ou meio dólar, de vez em quando.

Só no domingo passado, quando resolvi ir à pregação, próximo da lagoa, eu estava sem a mais pequena moeda na algibeira para deitar na caixa da colecta, quando os diáconos começaram o peditório.

Um desses diáconos — esse velho Eã Hawkins — encostou com força a caixa ao meu peito, pensando que eu estaria a dormir e precisava de ser acordado. Ele sabia que eu não estava a dormir, mas não me deixava em paz. Continuou a incomodar-me com a caixa, de tal maneira que tive de me levantar e rejeitar a, caixa com uma cotovelada, assim mesmo. Não foi a primeira vez que me vi naquela igreja sem dinheiro algum, mas toda a gente me olhava e fitava, e eu tinha ganas de meter a cauda entre as pernas traseiras, como se fosse algum velho cão. Os diáconos são bem capazes de fazer a gente sentir-se mal, quando somos pobres, como eu. E aquele velho Eã Hawkins é o pior de todos.

Eu vou sempre à igreja aos domingos, para salvar a minha alma, como o pregador me aconselha — e quando há alguma reunião especial, também—, e a última vez, que foi no domingo passado, eu fiquei encolhido até aos ossos, porque não ia ser salvo por uma semana inteira. O pregador sabia que eu tinha ganho um quarto de dólar em dinheiro dois dias antes, na sexta-feira, e eu podia vê-lo ali de pé, no púlpito, constantemente a olhar-me de frente, por eu não colocar o dinheiro na caixa da colecta. O que ele não sabia é que já o tinha gasto.

A maneira como o pregador soube que eu possuía aquela quantia, o que era verdade, antes de eu a gastar com um pacote de rapé na loja, foi porque eu e ele trocámos canivetes nessa sexta-feira, e ele pagou-me um quarto de dólar pela diferença e disse-me que não me esquecesse de pôr o dinheiro na caixa da colecta, no domingo, se queria que a minha alma fosse salva, de modo a poder ir para o Céu e viver com Jesus.

Eu jurei ao pregador que havia de pôr o dinheiro na caixa, no domingo. Mas depois de ele se retirar, comecei a sentir grande necessidade de rapé e foi quando, não podendo refrear-me, fui à loja e adquiri um pacote. Fui um grande mentiroso, mas não fui capaz de evitar isso. Todos sabem o que é a gente ter desejo forte de um pouco de rapé.

De qualquer modo, eu já sabia o que havia de acontecer no domingo de manhã. Sabia, sabia. O pregador ergueu-se e começou a pregar com severidade, logo que os diáconos acabaram a colecta; e pregou, sempre a olhar para mim, como se ninguém mais estivesse na igreja. Estavam mais umas quarenta pessoas nas bancadas, mas isso não lhe fazia diferença. Eu lhe digo, ele estava louco. Só porque não lhe foi devolvido o quarto de dólar, após um negócio honesto. Não chegou a proferir o meu nome, mas pouco faltou. Disse e repetiu que Jesus fecharia à chave as portas aos grandes mentirosos, mantendo-os fora do Céu, e enviando-os para o Inferno.

O pregador continuou neste tom durante a pregação toda, por uma hora, a implicar comigo, e eu pensei que não mais me largava.

Mas, no final, ele disse que Jesus poderia perdoar às pessoas as mentiras proferidas, se elas se arrependessem, e compensassem com o dobro,, logo que pudessem. Eu bem sabia aonde queria chegar. Queria significar que, se eu pusesse o dinheiro a dobrar, isto é, meio dólar, na caixa da colecta, no domingo seguinte, tudo estaria bem, e eu teria a minha alma salva, e poderia assim ir para o Céu e viver em paz com toda a boa gente no mundo.

Portanto, ganhei agora meio dólar com a troca de facas com aquele sujeito vindo de Pineville, há pouco, e por isso estou satisfeito. Tenho o quarto de dólar que não dei no domingo passado, mais um quarto para o próximo domingo. Tudo ficará bem. Posso depois olhar a direito para o pregador, quando estiver sentado na bancada, e não haverá razões para ele, desta vez, me culpar e me chamar mentiroso. Não haveria pretexto para ele não salvar a minha alma, por mais uma semana, pelo menos.

Eu tenho tido sempre a preocupação de me manter do lado bom dos pregadores, durante toda a minha vida, e continuarei assim. O pregador que está agora a pregar é um homem exigente em religião, deixe-me que lhe diga, a quem não escapa a mínima oportunidade para dizer que a gente perderá a alma a favor do Diabo e acabará no Inferno em vez de ganhar o Céu, se não fizer sempre o que ele aconselha. Não é como alguns pregadores suaves que tenho ouvido no passado, que agem como se tivessem receio de falar alto. Este amedronta-me, mortalmente.

O pregador de quem falo é um pregador santificado. Eu lhe digo, é um homem duro, em matéria de religião, e não é dos que receiam os outros. É capaz de clamar em alta voz e acho que é melhor assim. Tenho frequentado uma ou outra igreja, durante a minha vida, mas agora virei-me para a verdadeira religião, assodando-me aos Santificados. Fiz isto por causa dele. Não voltarei à religião fácil e de falas mansas, por nada deste mundo. Foi o mesmo pregador que chamou, um dia, o meu filho de lado, num domingo, após a pregação, e lhe disse que desejava que ele fosse também um pregador. Não sei bem o que teria dito ao rapaz, mas deve tê-lo assombrado, ao afirmar que deixaria de ir para o Céu, se não abandonasse tudo para começar a pregar.

O rapaz tinha então quase trinta anos de idade e cultivava um pedaço de terra a uma milha daqui, na encosta. Era casado já há oito anos e tinha cinco filhos, aguardando um outro. O pregador disse que possuir uma família assim não fazia a menor diferença e que melhor seria começar a pregar imediatamente, se não quisesse perder a alma e acabar no Inferno.

Não era culpa sua, mas o rapaz não tinha frequentado a escola mais que três ou quatro anos, durante toda a sua vida, e, de um modo geral, não era esperto. Mas era capaz de extrair alguma coisa do que vinha na bíblia, e o pregador achava que era o suficiente. Indicou ao rapaz como rezar no púlpito e o que devia rezar, e, seguidamente, mandou-o seguir com toda a família, sentados nas traseiras de um camião, para o Tennessee, onde os Santificados tinham em vista estabelecer uma nova igreja, necessitando de um pregador para, pôr a coisa a funcionar. Disse que os melhores pregadores do mundo nasceram e foram educados no fundo desta região montanhosa, razão por que ele escolhera o meu filho para ser um dos pregadores no Tennessee, e ali instituir uma igreja para as pessoas que na região desejassem possuir a verdadeira religião.

Isto aconteceu há cerca de dois anos, e eu e minha mulher nada sabemos acerca do que o rapaz, sua mulher e filhos fazem por lá. Mas o pregador assegura que reza pelo rapaz uma vez por semana e não se preocupa com a situação, porque Deus tomará conta dele.

Sinto-me, de verdade, orgulhoso pelo facto de o meu filho mais velho ser um pregador santificado, algures no Tennessee, e por essa razão procuro sempre fazer boas trocas, a fim de obter um quarto de dólar para a caixa da colecta deste pregador, todos os domingos, quando os diáconos fazem o peditório.

Isto não quer dizer que eu não procure fazer outros negócios que rendam. Estou sempre a precisar de cinquenta cêntimos ou de um dólar para compras que preciso de fazer na loja; não posso efectuar trocas, porque isso leva-me o dinheiro que o lojista exige. Os estrangeiros pagam melhor do que a gente da terra.

De resto, não me governo mal. De vez em quando consigo negociar batatas, ou um saco de trigo, ou carne fresca de porco, com algum vizinho. Minha mulher cozinha muito bem fígado de porco, o que também proporciona boas trocas.

Já possuí, também, um alambique, mas deixei de fazer bebida fermentada quando ingressei nos Santificados. O pregador disse que não queria que nenhum dos seus membros fosse apanhado e detido, e impedido de frequentar a igreja. Se às vezes me apetece uma bebida, negoceio uma troca de qualquer produto.

E, dia a dia, eu me torno um bom membro da igreja dos Santificados, e nada tenho que me preocupar acerca do destino da minha alma quando me falta dinheiro para a caixa da colecta do pregador. Eu lhe digo, a gente enche-se de satisfação ao saber que tem um filho a pregar no mundo e a salvar as almas dos outros, enquanto eu estou aqui, sem preocupar absolutamente ninguém acerca da minha própria alma, e certo de que irei para o Céu ter com Jesus, quando morrer.

Aposto que há no mundo muita gente pecadora que bem desejaria ser como eu. Quando a gente sabe que não tira grande rendimento desta vida, o melhor que tem a fazer é deixar de mentir ou de pecar de outra maneira qualquer.

É uma grande consolação saber que nos espera o bem, quando formos para o Céu, e não nos importamos em ser enganados, como acontece cá em baixo, sempre que trocamos facas ou relógios com algum estrangeiro que nunca conhecemos e de quem nunca ouvimos falar. Eu lhe digo, é uma coisa arriscada viver neste mundo.

Nas lonjuras da serrania dos Cumberlands, o estudo da teologia como preparativo para ingressar no ministério pastoral, como ocupação ou profissão, nem sempre foi um requisito prévio exigido aos protestantes escosseses-irlandeses e outros anglo-saxões chamados a pregar.

Embora seja compreensível que adequada educação e experiência são requisitos necessários para a qualificação como professores em escolas públicas, a pregação e a oração surgem nos naturais de Cumberland com tanta facilidade, que o estudo da teologia é, usualmente, considerado uma perda de tempo. Quando se sabe, por experiência, como martelar um prego ou depenar um frango, não faz sentido esforçar-se por fingir estudar aquilo que se sabe na perfeição.

Todavia, não há nenhuma outra região na América comparável em área, onde tão grande número de pessoas de ambos os sexos, professando e aderindo aos preceitos rígidos e inflexíveis do velho fundamentalismo protestante, são transformadas em pregadores e evangelistas, ordenados ou não, entre os quinze e os sessenta anos de idade. É possível que os evangelistas portadores de Bíblias sejam em número superior aos cantores populares portadores de violas que percorrem as estradas dos Cumber lands, até Nashville, que buscam fama e fortuna na Grand Old Opery1.

Instruída em teologia ou não, uma pessoa que esteja convencida de haver recebido o chamamento divino para pregar, tem de tomar uma decisão, antes de iniciar a sua carreira evangelística, na terra natal ou nalgum outro Estado do Sul. Isto porque, embora todas as religiões de estilo Cumberland derivem da Bíblia, algumas seitas se inspiram no Velho Testamento, na sua adoração a Deus, ao passo que outras utilizam o Novo Testamento para glorificarem a Jesus Cristo. Todavia, se o pregador ou evangelista em causa não foi previamente doutrinado, pode evitar decidir-se por Deus ou Jesus Cristo, agregando-se a uma seita que utilize a Bíblia inteira como seu dogma religioso.

Geralmente conservadores e frequentemente reaccionários, quer sejam evangelísticos, fundamentalísticos, ou leigos devotos, estes homens e mulheres dos Cumberlands, chamados por vocação, são unilaterais em religião, na política e na vida social. Agarram-se à sua herança religiosa, e aos costumes da comunidade que vieram de gerações passadas.

Como os seus antepassados — baptistas dissidentes, metodistas e presbiterianos, que organizaram novas seitas ao seu gosto, quando as igrejas-mãe deixaram de ser fundamentalísticas para serem ritualísticas—, não hesitam em abandonar uma igreja estabelecida, quando lhes não agradam os serviços modernizados. Então, forma-se uma nova seita, dedicada ao fundamentalismo extremo.

 

1 Grand Old Opery: concerto de canções populares e música das montanhas ou da província, com acompanhamento de violas eléctricas de som amplificado. Nashville, Tennessee, orgulha-se de ter originado e perpetuado a Grand Old Opery.

 

Neste ambiente de competição religiosa, um homem ou mulher que tenha tido uma visão, de noite, ou que tenha sentido um impulso interior e fervor religioso para se tornar ministro ou evangelista, não perderá muito tempo a decidir que espécie de religião irá pregar. Qualquer religião servirá, mas a espectacularidade crescente do evangelismo produz resultados melhores e mais rápidos, em termos de dinheiro e receptividade emocional, do que a adoração sedentária e grave.

Quando o serviço evangelístico chega ao auge, as vertigens de medo e orgulho exercem imediata reacção na mente susceptível dos montanheses ou aldeões emocionalmente excitados. E quando essa pessoa, da cidade ou da província, se convence de que necessita de uma religião sonhadora, ela quere-a aqui e já, sem demora, prontificando-se a contribuir com o dinheiro que pode alcançar, para o conseguir.

A região mais rica do evangelismo elementar — assim como o seu anexo vivo, a música das montanhas e o lírico lamento das canções populares — continua a ser, após quase duzentos anos, constituída por aquelas parcelas da Virgínia, Kentucky e Tennessee, nas serranias de Cumberland e Blue Ridge dos Apalaches.

Enquanto a fonte efervescente, nesta região montanhosa, continua hoje, após tão longo tempo, a fluir com a mesma constância e intensidade, o seu evangelismo perde parte do seu primitivismo e tende a ser menos exuberante e mais sofisticado, ao descer para o Sul, desde as montanhas até o Piedmont das Carolinas, Jórgia, Alabama e Mississipi. A seguir ao Piedmont, porém, ao atingir as colinas avermelhadas de barro e as arenosas planícies costeiras do profundo Sul, o sabor religioso dos velhos tempos é revitalizado e a sua verdadeira essência alastra-se pelas províncias e infiltra-se nas cidades.

No Piedmont industrializado, diversamente do que acontece no profundo Sul, os acampamentos rurais foram substituídos por auditórios suburbanos, de tijolo, e as tendas dos revivalistas por abrigos contra a chuva. Apenas nas vizinhanças menos povoadas é que as ribeiras e os lagos são ainda utilizados para os ritos de imersão total. Noutros lugares de Piedmont, pias baptismais têm sido instaladas nas igrejas, vestiários construídos para os baptistérios e a água de imersão aquecida à temperatura confortável de uma piscina.

Contudo, o genuíno evangelismo americano não possui fronteiras geográficas. É tão eficiente num lugar como noutro, onde quer que uma multidão se congregue e se trate da salvação de almas, para Jesus Cristo. E melhor será, se o evangelista transpira e a sua voz se exprime em trémulos emocionais de sinceridade.

Os gritos excitados e as inibidas rotações físicas do Irmão Smith, um pregador não ordenado que fizera um curso de treino de duas semanas de evangelismo prático, na Escola Teológica de Clear Creek, em Kentucky, são tão efectivos na salvação de almas como a técnica estudada e pessoal de Billy Graham. E, na região barrenta do profundo Sul, os irmãos evangelistas, ele e ela, gémeos, munidos de viola eléctrica, e o par marido e mulher, de Língua Desconhecida, com seu acordeão e tamborete, são tão eficazes em conseguir conversões como o Irmão Smith e Billy Graham o são com os seus fatos pretos e a sua oratória inflamada.

Enquanto, numericamente, os resultados evangelísticos são semelhantes em todas as regiões, financeiramente diferem, a não ser que os gémeos e o casal procurem pregar com mais frequência, a fim de alcançarem donativos comparáveis aos recebidos nas sessões e cruzadas dirigidas pelo Irmão Smith e por Billy Graham.

Tal como a chegada de um circo, as reuniões de revivescência, dirigidas por evangelistas de larga reputação, atraem grandes multidões nas cidades, uma ou duas vezes por ano. Em locais mais pequenos as igrejas promovem serviços todas as semanas do ano, e não poderiam sobreviver se não tivessem o apoio de membros que assistissem a eles regularmente, duas vezes aos domingos, e com frequência nas noites de quarta-feira e sábado. É aqui, usualmente, nas cidades da província povoadas de casas de rendas baixas, ou nas áreas mais pobres, que a religião evangélica prospera mais. Aqui é que se encontra um lugar propício para a gente do povo se reunir, em mangas de camisa, batendo nas costas uns dos outros, numa atmosfera de sociabilidade e recreio, sem convenções, onde ao mesmo tempo há pretexto para pecar e para salvar almas.

Mas quando a congregação se torna demasiado vasta para a compatibilidade e amizade pessoal, se o ministro se torna impessoal, ou os serviços demasiado formais, é quase certo alguns dos membros descontentes formarem um grupo dissidente, organizando uma outra igreja mais ao seu gosto.

Se há membros discordantes que abandonam, por exemplo, uma igreja denominada Pleno Evangelho, é natural adoptarem a denominação Pleno Evangelho Espiritual, ou expressão semelhante, a fim de a nova igreja possuir uma identidade própria. Depois de estabelecida, filiar-se-á, apenas vagamente, em qualquer denominação, sínodo, conferência ou organização.

Mantendo-se independente, uma igreja recentemente estabelecida não é obrigada a contribuir com dinheiro de colectas para financiamento de escolas, orfanatos, hospitais e sedes administrativas, em locais distantes. Em vez disso, talvez dentro de poucos anos, poderá acumular dinheiro suficiente para a congregação substituir o seu pequeno edifício de madeira despintada, por um templo evangélico maior, dotado de um campanário, e com paredes de tijolo.

Como frequentemente acontece, quando um novo templo imponente é construído, haverá ainda a possibilidade de recolher dinheiro bastante para erigir um grande sinal luminoso, no topo do edifício. O letreiro, iluminado todas as noites durante o ano, é usualmente idêntico ao das igrejas evangélicas do mesmo estilo: JESUS SALVA.

Numa nova igreja, tal como numa antiga, uma vez que um seu filiado se acostuma à excitação de um tipo particular de religião evangélica, é quase certo que se aborrecerá e ficará descontente, se a igreja começa a copiar os ritos e as formalidades da Primeira Igreja Baptista, da cidade alta, ou da igreja metodista Memorial, do distrito de rendas caras. Ele não quererá participar de uma igreja que lhe pareça perigosamente suspeita de adoptar os ritos formalizados e impessoais que associa aos católicos e episcopalianos.

O que um novo convertido evangelizado deseja, no serviço religioso de igreja fundamentalística, é orações prolongadas e tristes, proferidas por um Irmão ou um adulto volúvel, inspiradoras advertências do ministro acerca da inevitabilidade da morte, as sonoridades estimulantes de uma viola eléctrica, as observações humorísticas de alguma senhora visitante, envangelista, o chamamento do púlpito para ele percorrer a nave e erguer os braços em súplica e poder, uma vez mais, renunciar ao pecado em público e declarar a sua lealdade inalterável a Jesus Cristo.

O evangelista magro, de cabelos escuros, trintão, tinha sido um mineiro de carvão, a horas, nos Cumberlands, antes de vir para a cidade fabril de Piedmont na Carolina do Norte, tendo conseguido emprego eventual num depósito de madeiras. Era casado e tinha três filhos.

Recordou que, antes de abandonar o Kentucky e vir para a Carolina do Norte, tinha tido uma visão, pouco depois de se ter convertido, confessando os seus pecados perante a multidão, numa sessão de revivescência. Deus disse-lhe, na visão, que deixasse tudo e seguisse para a Carolina do Norte, a salvar almas para Jesus Cristo.

Só após dois meses chegou à Carolina do Norte, após a visão, e a razão da demora fora porque não lhe tinha sido fácil encontrar compradores para os seus móveis de casa e suas ferramentas. Precisava de dinheiro para adquirir um automóvel em segunda mão, para a viagem que era longa, dado que ninguém lhe vendia um a crédito.

Disse que, durante alguns anos, tinha ouvido boatos acerca de os salários serem muito mais elevados nas terras da Carolina do Norte, onde havia fábricas de cigarros e têxteis e estabelecimentos de móveis, mas que tais boatos nada tinham que ver com a sua retirada de Cumberlands. Observou que a única razão de ele ter abandonado a terra natal, para seguir para a Carolina do Norte, fora porque Deus lhe aparecera em visão e lhe indicara esse caminho.

Antes de me erguer, na reunião revivalista confessando os meus pecados de modo a poderem ser ouvidos por todos, eu era tão grande pecador como os piores pecadores do mundo. Menti e forniquei e pratiquei pequenos furtos, aqui e acolá, e cometi outros actos pecaminosos que os grandes pecadores cometem.

Eu, dantes, não pertencia a qualquer igreja. Era quando me esgueirava de casa, para longe da minha mulher, fingindo que ia algures, de noite, ouvir a pregação nalguma igreja. A razão por que eu ia à igreja, assim, era por ser o único sítio onde havia uma grande multidão depois do escurecer, e, como sabe, havia sempre raparigas e mulheres que iam e vinham da casa delas, por trás da igreja.

O que eu estava habituado a fazer era ir para trás da igreja, no escuro, e encontrar-me com alguém com quem passar a noite. Depois, ia para a mata, onde sabia que tinha a oportunidade de tomar uma bebida. Não pensava, então, em furtar bebida de algum alambique alheio. Havia sempre muita por ali; o que tinha a fazer era só procurar pela mata, até tropeçar numa das vasilhas cobertas de folhas e tirar dali a quantidade desejada. Se não bebia de mais e não ficava estirado no chão demasiado tempo, voltava para trás da igreja, a ver se encontrava mais alguma que quisesse ter relações comigo. Isso acontecia quase todos os domingos à noite, quando o tempo estava bom e não muito frio ou chuvoso. Mas, uma noite, começou a chover, quando eu estava à espera por aqueles lados e nada mais pude fazer do que entrar na igreja, para não me molhar. Foi assim que me converti e acabei por ter a visão.

Eu lhe digo, eu era maior pecador que qualquer outro, naquelas cercanias onde vivia. Alguns dos conterrâneos que me ouviram confessar os pecados, na reunião, afirmaram que eu estava a inventar. As pessoas bondosas pensavam desta maneira. Mas os que eram pecadores como eu não duvidaram da verdade, quando me ouviram confessar. A única verdade que deixei de dizer, ao fazer a confissão, foi revelar os nomes das raparigas e mulheres com as quais dormia, e assim fiz porque não queria ser morto a tiro antes de chegar a casa nessa noite.

Mas ser convertido, e confessar os meus pecados e, depois, ter aquela visão, mudaram-me depressa de mau para bom. E não fiz mais coisas daquelas desde que tudo isso aconteceu, e agora posso encarar as pessoas a direito e posso assegurar-lhes que sou bom. Mas não me arrependo de ter pecado, após a confissão. Eu sei mais acerca do pecado do que a maior parte das pessoas, e é por isso que posso agora pregar tão bem contra ele.

Eu disse a minha mulher, depois de ter confessado e ter tido a visão, que era um homem mudado e que ela não teria que preocupar-se mais comigo, acerca do que eu tinha sido. Ela não disse palavra, porque conhecia tudo sobre os meus hábitos de fornicação e furto, e suponho que ela queria apenas aguardar, a ver se eu dizia a verdade ou, outra vez, alguma grande mentira.

Minha mulher disse que não teve qualquer visão e nem precisava disso, pois nunca a apanhei a mentir, a furtar e a fazer outras coisas mais que eu fazia. Queria que eu ficasse na terra, onde todos os parentes dela tinham nascido e vivido, em vez de vir para aqui, onde só havia estranhos, para qualquer lado que ela olhasse. Diz que não se sente bem de saúde, aqui, ao contrário do que sentia nas montanhas, mas pode ser que desperte, quando se habituar mais ao meio.

Agora, por exemplo, queixa-se de que precisa de roupas novas, como as outras mulheres usam, nesta região. Respondi-lhe que eu vim para aqui, Carolina do Norte, porque o Senhor me enviou para salvar almas para Jesus e não entreter-me a comprar vestidos para ela. Como quer que seja, ela é uma beleza, com, vinte anos de idade apenas, e não precisa de se vestir à moda, como o fazem algumas mulheres. Pode ser que ela não goste que eu diga isto, mas, para dizer a verdade como sempre gosto de dizer, quando ela fecha as portas e corre as cortinas e se põe ao natural, é a coisinha mais linda que jamais se viu. A maneira como vim parar aqui, para pregar, foi porque eu tinha contado ao pregador lá da terra o que a visão me disse para fazer. Ele observou-me que eu tivera a visão no momento exacto, porque ouvira falar numa igreja, neste lugar, que era filial de uma outra e que necessitava de um pregador. Quando lhe contei tudo acerca da visão, ele disse-me que este era o local exacto onde Deus queria que eu viesse. Disse-me que não havia membros que chegassem para pagar-me o suficiente para viver, mas que um deles me arranjaria uma ocupação num depósito de madeiras. Calhava-me bem, porque toda a minha vida me habituei a trabalhos pesados.

Agora, bem vê como as coisas sucederam. E está tudo a correr como Deus me prometeu, na visão. Estou aqui um pouco melhor do que há quatro meses, pregando duas vezes aos domingos e uma vez nas noites de quarta-feira e sábados, na pequena igreja que os membros construíram, e aqui estou a conquistar almas para Jesus Cristo.

O povo gosta de me ouvir pregar. Gosta de ouvir falar sobre mentiras, fornicação e furto, da maneira como falo. Um dos ouvintes disse-me, não há muito tempo, que nunca tinha ouvido uma pessoa tão experiente falar sobre o pecado, assim como eu. Às vezes ponho-me a pensar o que seria se eu continuasse ali, onde costumava estar, e não me tivesse convertido e a minha alma salva, e não tivesse tido a visão a coroar aquilo tudo.

Quando me dá para pensar nisso, não tarda que eu me ponha de joelhos a agradecer a Deus por me conceder a verdadeira religião e a visão: sei que há muita outra gente, no mundo, que frequenta igrejas diferentes, que não valem tanto, ou que não têm nenhuma religião, e sinto pena deles por não terem tido a sorte, que eu tive, de uma visão e de ouvir Deus falar comigo. Foi grande sorte para mim. Além de todas as almas que eu salvo para Jesus, eu recebo três dias completos de salários no depósito de madeiras, podendo assim economizar metade de todo o dinheiro colocado nos pratos da colecta dos domingos de manhã.

Lá em cima, antes de eu me converter na sessão de revivescência, eu apenas trabalhava dois dias, por semana, a tirar carvão para uma pequena empresa que possuía um pequeno jazigo de carvão na montanha, próximo do local onde eu vivia. Por vezes, só tinha trabalho para um dia, em vez de dois, e nunca tive a possibilidade de contribuir para as colectas na igreja. Converter-me e ter a alma salva, e trabalhar para Deus, era a melhor coisa que jamais me acontecera em toda a vida, até agora. E tudo aconteceu, porque começou a chover e eu entrei na igreja para não me molhar.

Levaria muito mais vezes o dinheiro que recebo, para eu poder voltar a mentir, fornicar e furtar, e fazer outros pecados que eu fazia. E, de certo, eu não quereria voltar àquele velho jazigo de carvão, a enfarruscar-me todo. Ser um pregador evangelista é um trabalho simpático e limpo.

Sempre fui um bom conversador, e é o que vale, para ser um pregador evangelista. Começo sempre por falar de pecados que conheço em primeira mão, porque o povo quer saber se os seus pecados são idênticos ou diferentes dos meus. Nem todos pecam da mesma maneira, e por isso querem saber como é que eu fiz.

Depois de falar sobre isso, o que há a fazer a seguir é abrir o Novo Testamento em qualquer ponto que calhar e ler algumas passagens.

Depois, tudo se torna fácil. Nunca me deu para ler muito, porque andei pouco tempo na escola, para aprender o suficiente. Mas, para principiar, consigo dar sempre um sentido às palavras do Novo Testamento. A minha grande dificuldade é travar e parar a tempo de as pessoas não adormecerem nas bancadas mais do que uma hora, ou pouco mais. Quando me entusiasmo a pregar, não me dá vontade de calar. Tenho tendência para continuar por aí fora.

O pregador que me converteu do pecado para a salvação, e me disse o que devia fazer, acerca da visão que tive, fez-me recomendações especiais sobre a espécie de Bíblia com que devia pregar. Fez-me prometer não usar a Bíblia com o Velho Testamento. Disse-me porque queria que eu prometesse.

Disse-me que o Velho Testamento pouco fala sobre Jesus Cristo, que é como os Judeus querem que a religião seja, mas o Novo Testamento, sim, e que a verdadeira religião é aquela que salva almas para Jesus Cristo, como se diz no Novo Testamento. Disse que os católicos usavam uma espécie de religião diversa, também, mas não dão atenção a isso e não perdem tempo com a outra parte da Bíblia como o fazem os Judeus.

Esse pregador era, realmente, esperto, quanto a religião. Disse-me que certas pessoas não acreditam no bom evangelismo, como nós acreditamos, e não procuram, sequer, salvar almas para Jesus, como nós. Falou sobre pregadores de algumas outras igrejas, que pregam sobre coisas que não vêem em nenhuma parte da Bíblia — como sobre política, e governo, e muitas outras coisas. Disse que era uma pena haver por aí pregadores como esses, que não são melhores que os comunistas que não acreditam em qualquer parte da Bíblia.

Foi uma sorte para mim conhecer essas coisas sobre salvação de que nunca tinha ouvido falar, pois era capaz de as ignorar toda a vida.

Agora sei a verdade sobre a salvação, e sei falar sobre mentiras, fornicação e furto, sinto satisfação em ser um evangelista devastador, vigoroso como um touro, perseguidor do Diabo, a favor de Jesus, por toda a vida.

A razão da minha certeza é porque sinto o bem a invadir-me todo, quando me ergo ali diante do povo, na igreja, e começo a transpirar, ainda que esteja frio. E quando chego ao meio da pregação, o suor escorre-me pelas costas, e nada é capaz de, nessa altura, me fazer calar.

E quando termino, se alguém me pregunta, eu digo a verdade, digo que senti ser o próprio Jesus Cristo ali de pé, e não eu próprio, a pregar. Eis o verdadeiro sentimento religioso que um bom pregador sente no seu íntimo.

Pode haver sinais de relaxe físico e intelectual, entre os protestantes anglo-saxões do Sul, mas a agressividade das suas denominações fundamentalísticas e o impulso emocional das suas seitas evangelísticas não diminuíram. Além disso, os filiados das suas igrejas estão em constante aumento, como tem acontecido de década em década, nos últimos cem anos. Numericamente, transformaram-se numa força poderosa da vida americana contemporânea, e, agrupando-se umas às outras, as suas crenças religiosas fundamentalísticas começaram já a imprimir uma direcção no sentido de um reaccionarismo social e político.

Compreensivelmente, a raça negra, no Sul, que teve sempre relutância em confiar demasiado num Deus ou num Cristo branco, não tem inclinação para a religião fundamentalística e, em vez disso, exprime grande parte da sua fé religiosa em canções espirituais e encantamentos musicais.

Verifica-se que a adoração de Deus, entre os negros, por mais ardorosa que seja a sua crença e reverente a sua atitude, nunca se aproximou dos excessos religiosos dos protestantes brancos das numerosas seitas evangélicas.

Consequentemente, os negros não são influenciados por princípios fundamentalísticos, na busca de vantagens políticas e revolucionárias, sociais e políticas.

Há muitas razões que explicam a larga popularidade do fundamentalismo entre os anglo-saxões económica e socialmente subprivilegiados das regiões rurais do Sul e dos burgos fabris. Entre eles pode incluir-se a atmosfera popular e informal dos serviços religiosos, a temporária sensação de solidão, a referência constante, pelo ministro, à morte iminente, a promessa de salvação imediata, o ritmo crescente da música de piano e viola, o incitamento produzido pelos exemplos pormenorizados de imoralidade sexual, nos sermões, e a oportunidade de partilhar dos espasmos emocionais em público, sem inibição.

O planeamento e o acesso de tais incentivos e actividades patrocinadas pelas igrejas são o resultado de uma viva competição entre as numerosas seitas fundamentalísticas e evangélicas. O seu objectivo é aumentar o número de sequazes e de contribuições financeiras, oferecendo um tipo de participação, na audiência, de maior estímulo e excitação emocional do que o permitem os convencionais e restritos serviços religiosos.

Nem a revolução agrícola do Sul, nem o acesso e a atracção do cinema ao ar livre e da televisão, nem o semi-intelectualismo das centenas de diplomados, anualmente, pela Universidade de Bob Jones e outros institutos teológicos fundamentalísticos, conseguem diminuir a atracção que as exibições religiosas sem inibições exercem, como recreio popular que entretém, domingo após domingo, na roda do ano, como também às quartas-feiras e sábados à noite.

Tanto na cidade como na província, as organizações religiosas há muito estabelecidas no remoto Sul, que continuam a celebrar serviços religiosos formais, numa atmosfera de solene dignidade, especialmente entre os Baptistas e Metodistas, são constantemente abandonadas por sequazes dissidentes, que já não se entusiasmam, nem se exaltam, com os tradicionais serviços de música — oração e música.

Muitos deles são pessoas que — a não ser que abandonem definitivamente a religião e não voltem a frequentar qualquer igreja— se reorganizam para formar em grupo com maior vida religiosa. Os mais impacientes de entre eles agregam-se a uma seita que já tenha demonstrado estimular o exibicionismo religioso sem inibições.

O que mais apreciam aqueles que rejeitam a adoração formal de Deus, bem como aqueles que se opõem ao intelectualismo dos sermões referentes a problemas contemporâneos sociais, económicos e políticos, são os serviços em que se lhes dá a oportunidade e o estímulo para neles participarem, física e emocionalmente. Aqui, as exibições não inibidas constituem manifestações de fé religiosa. A única exigência que se lhes faz, ao permitirem que saltem, gritem e se sacudam a seu gosto, é a obrigação de reconfirmarem. todas as semanas, a sua adesão aos princípios religiosos ortodoxos, baseados exclusivamente na interpretação literal da Bíblia.

Como é praticada entre as seitas com filiados relativamente numerosos — tais como a Assembleia de Deus, a Igreja de Deus, a Igreja da Profecia, a Igreja do Nazareno, a Igreja de Deus em Cristo, a Igreja de Pentecostes, o Pleno Evangelho da Fé, e a Santidade— esta crença fundamentalística prega a certeza positiva do nascimento de Cristo de uma virgem, o segundo advento de Cristo, a criação directa do homem por Deus, a cura miraculosa pela fé, a eficácia da oração, a salvação pessoal dos convertidos e dos regressados, e a recompensa da existência física celestial após a morte.

É a celebração semanal de uma ou mais destas crenças fundamentalísticas, por uma vasta porção da população anglo-saxónica, que permite a expressão de vários tipos e estilos de exibicionismo religioso que é semelhante ao que vulgarmente está associado aos clubes nocturnos e outros locais de divertimento teatral.

Assim como no mundo da recreação profissional, uma variedade de actos é executada sob a direcção de um ministro residencial ou de um evangelista visitante, como mestre-de-cerimónias. Nas igrejas em que esta forma de exibicionismo é comum, quatro actos típicos são representados periodicamente.

De ordinário, apenas um ou dois dos actos são representados nos serviços dos domingos de manhã ou de tarde. Contudo, no decorrer de alguma campanha de revivescência ou cruzada no Verão, que dura uma semana, em alguma barraca ou igreja, e em ocasiões especiais, como nos primeiros e últimos domingos de cada mês, é corrente representarem-se os quatro actos num só serviço.

Nas sessões revivalistas, em ocasiões especiais, adopta-se um procedimento típico, quando os filiados de uma congregação e os novos convertidos acabam de ser emocional e fisicamente estimulados pelo ministro residencial ou pelo evangelista visitante, e assumem atitudes extáticas. Para que todos possam participar e alcançar o êxtase, atribuem-se cerca de vinte minutos a cada uma das quatro principais categorias.

Na primeira delas, os novos convertidos e os velhos regressados abandonam as bancadas e colocam-se em frente do púlpito, para fazerem confissão pública dos seus pecados, e testemunham ter recebido a salvação.

Na segunda, a igreja ressoa como a babel da glossolalia, ou a Língua Desconhecida, num bramar de orações individuais, pela congregação inteira, a implorar a Deus os favores que cada qual deseja.

Na terceira, trinta ou quarenta pessoas deslocam-se das bancadas para o genuflexório em frente do púlpito para o período aprazado de lamentações em voz alta ou de oração silenciosa.

Na quarta, o acto final e objectivo último de êxtase e exibicionismo, verificasse a agonia lacrimosa, habitualmente acompanhada de violentas voltas e sacudidelas físicas, no decurso da “saída”, significando a expulsão do Diabo, para que o espírito de Cristo possa penetrar, para abençoar a alma.

Como é natural entre pessoas dedicadas ao protestantismo fundamentalístico, o seu extremo conservantismo consiste em manter o tradicional sistema de colectas, o padrão de segregação racial, os direitos estatais, e a dominação política de um partido. Tanto nas cidades como na província, onde esses princípios prevaleceram durante gerações, a glorificação do ruralismo e do anti-intelectualismo é a influência predominante social, económica e política.

Em tal ambição, quer em áreas de grande população, quer em regiões isoladas, é fácil à Ku-Klux-Klan e organizações semelhantes arranjarem adeptos. As organizações com um passado histórico de terror exercem grande atracção nas pessoas inclinadas à crueldade e à violência.

Os dois principais incentivos que oferecem aos seus sequazes são, primeiro, lutar, militantemente, pela preservação da raça branca, protestante, e, em segundo lugar, lutar, com fervor evangélico, contra a ameaça implícita do intelectualismo —que se suspeita estar aliado ao comunismo — para abolir a liberdade de culto, na forma tradicional, nas suas igrejas.

O Tabernáculo da Plena Fé, numa cidade têxtil da Carolina do Norte, dedica os serviços nocturnos de domingo, uma vez por mês, a um programa de testemunhos. A igreja de tijolo, erigida há pouco, possui lugares sentados para setecentas pessoas e, usualmente, nas noites de testemunho, o edifício enche-se totalmente de adeptos e de alguns visitantes curiosos que vêm escutar as confissões minuciosas dos pecados.

Os serviços mensais de testemunho são dirigidos a dois grupos diferenciados pela idade, alternando entre si. Num desses serviços, o testemunho é dado por rapazes e raparigas de entre catorze e dezassete anos, como forma de iniciação para o pleno ingresso na igreja; no serviço seguinte, aos novos convertidos adultos e aos regressados mais idosos, que periodicamente sentem a necessidade de confessar pecados actuais ou imaginários, é dada a oportunidade de testemunhar, para sua salvação.

A rapariga trémula, de cabelo escuro, usando um florido vestido de Verão e sapatos brancos de saltos rasos, tinha dezassete anos e era a última das filiadas da Juventude do Tabernáculo para Cristo a dar testemunho. O pai dela era um operário de fábrica têxtil; a mãe, cozinheira de restaurante, e ela tinha cinco irmãs e irmãos mais novos. Tinha já dois anos de liceu quando foi trabalhar como empregada numa esplanada.

Quando a rapariga começou a falar, de pé, por baixo do púlpito, e enfrentando as bancadas cheias, a sua voz era tão indistinta que o ministro tocou-lhe no braço, a reconfortá-la, e murmurando-lhe ao ouvido. Ela sorriu, nervosamente, e começou de novo.

Eu quero que todos os rapazes e raparigas ouçam o que sucedeu comigo. Se as raparigas e rapazes me escutarem, não terão as preocupações que eu tive, porque saberão que hão-de ter preocupações, como eu, se se comportarem mal, como eu me comportei há cerca de um ano.

Tive preocupações, porque cometi pecados. Mas agora estou bem. Porque tudo deixei, e Jesus perdoou os meus pecados e salvou a mmha alma. Nunca voltarei a praticar o mal, e a encher-me de preocupações. Manterei a minha alma salva, daqui em diante. Prometi isso a Jesus.

Eu quis folgar, mas a princípio tive receio de sair com eles. Tinha uma amiga na esplanada, que muitas vezes tinha encontros, e ela disse-me que gostaria que eu fosse com ela, no mesmo carro, para os encontros.

Bem, comecei a fazer isso, e quase todas as noites, depois do trabalho, eu tinha encontros depois da uma hora, em vez de ir para casa. Por vezes eu ia com o grupo ver cinema nalgum “drive-in” e, dentro do carro, divertíamo-nos à doida. Por vezes, íamos para os arredores e ali nos divertíamos.

Depois, a minha amiga largou o emprego da esplanada e abandonou a cidade, indo para Charlotte, e, então, eu saía quase todas as noites para algum encontro. Nem sempre era o mesmo, porque eram às dúzias os jovens e velhos que me procuravam. Depois tornei-me amiga verdadeira de um deles, e saía mais com ele do que com os outros.

Sempre que eu lidava com ele, era tão manobrada que o deixava fazer de mim o que queria. Era um homem de idade, que dizia ter cerca de trinta e cinco anos, e eu gostei tanto dele que lhe dizia para fazer de mim o que quisesse. Eu e ele fazíamos isso duas ou três vezes por semana, nos arredores, quando era Verão, e, à chegada do Inverno, havia uma casa turística onde íamos.

Isto continuou durante muito tempo e eu tinha a certeza de que ia ter um bebé. Quando lhe falei nisso, ele disse que não podia fazer nada, porque era casado. Eu não sabia. Nunca mo tinha dito. Depois disso, deixou de aparecer na esplanada, e eu não tive mais coragem de o ver e nunca mais o vi.

Tinha realmente medo de ter um bebé e receava contar às pessoas amigas. Tinha medo que o meu pai me batesse. Guardei o segredo para mim, e um dia cheguei à conclusão de que, afinal, não ia ter bebé.

Sentia-me tão satisfeita por não ir ser mãe, que me deu vontade de rezar por causa disso. Eu tinha ido a uma igreja, uma vez por outra, mas não muitas vezes. Mas apeteceu-me rezar em qualquer parte. Por isso vim aqui, à igreja da Plena Fé, quando um dia passei por ela e vi a porta aberta; e entrei, e ajoelhei-me, e desatei a rezar, agradecida por acabarem os meus problemas.

A mulher do pastor viu-me aqui e levou-me a contar tudo o que tinha sucedido. Depois, foi ter com o marido, e ele falou-me em me filiar na igreja. Disse que eu tinha pecado, mas que Jesus me perdoaria, se eu me arrependesse e declarasse que acreditava em Jesus. E, desde então, eu acreditei em Jesus. Louvado seja Deus!

Foi assim que me salvei depois de haver pecado, e agora estou bem. Agora, volto sempre para casa, quando termino o meu trabalho, e não me vou divertir, como dantes. Todos os rapazes e raparigas devem deixar de pecar, como eu fiz, e dedicar as suas almas a Jesus. Louvado seja Deus!

Era um homem de ombros curvados, cabelo grisalho, hirsuto, que parecia ter entre cinquenta e cinquenta e cinco anos de idade. As suas calças cor de canela eram limpas e engomadas, e ele usava uma camisa aberta, de Verão. Estava sentado num dos bancos traseiros do tabernáculo e tinha escutado atentamente os testemunhos, durante os serviços que duravam uma hora e meia, nessa tarde.

Antes de deixar o tabernáculo, demorou-se para apertar a mão ao ministro, e quis falar com ele sobre qualquer problema, mas o ministro abanou a cabeça, irritado, e afastou-se para trocar apertos de mão com outros adeptos.

O homem da camisa aberta foi dos últimos a deixar o tabernáculo, e, quando chegou ao canto, parou a olhar para trás, como se tivesse relutância em sair sozinho, e quisesse falar com alguém. Eram pouco mais de dez horas, numa noite cálida de Verão, e a rua estava sossegada, agora que quase todos haviam abandonado o tabernáculo, retirando-se para casa.

Eu costumo ouvir sempre os jovens darem testemunho, quando chega a sua vez, mas nenhum deles diz o que a gente espera, nos dias de hoje. Eu sei isso, porque tudo era diferente no meu tempo. A gente pensa que os jovens cometem mais pecados do que aqueles de que dão testemunho, mas não é assim. O mais que podem dizer é que furtaram alguma coisa em qualquer parte, ou mentiram uma vez, ou apanharam uma boleia para irem divertir-se, ou tiveram relações carnais em qualquer pousada. Eu ouço-os sempre, o que eles dizem de pouco vale.

Por vezes, ponho-me a pensar que não é por culpa deles que deixam de confessar os verdadeiros pecados que cometem. Julgo que a culpa é do pregador, que os impede de falar abertamente. Primeiro ouve-os em particular, e aconselha-os a deixar muita coisa de fora, quando se levantam diante do povo para prestar testemunho. Não permite que digam certas coisas, impede que cada um diga o que quer.

Como quer que seja, dantes não era assim. Como agora se vê, os jovens não falam de pecados grandes. O que confessam hoje são apenas pecados vulgares que as pessoas praticam e logo esquecem. Nada parecido com o que eu testemunhei sobre os meus pecados há três anos, quando me converti. Mas, para dizer a verdade, eu próprio ocultei alguns, porque era a primeira vez e sentia-me envergonhado perante toda aquela gente. Mas, se eu tiver outra oportunidade, não ocultarei nada.

O que quer dizer é que estou pronto a testemunhar tudo de novo, se o pregador me deixar. Quero que o público saiba o que é verdadeiramente pecar. Mas o pregador diz-me sempre que é cedo de mais e que espere. Procurei falar-lhe, esta noite, sobre o assunto, mas ele continua a arredar-me, o que eu não gosto.

O pregador diz que eu já estou salvo e não preciso de testemunhar de novo, a não ser que tenha feito coisa pior do que dantes. Ora, não é de esperar mais nada de mim, nesta idade. Eu disse isto ao pregador. As mulheres já não gostam de mim como dantes, e pecar com elas era a única coisa que me podia interessar. Expliquei isto ao pregador, mas ele continua a dizer que aguarde mais um bocado. Parece que se envergonha do meu género de pecado, e está convencido de que, se me continuar a pôr de lado durante muito tempo, eu me irei tornando velho e esquecerei tudo o que agora lembro.

Pensei em me filiar noutra igreja, onde possa ser apreciado e onde eu possa erguer-me para prestar testemunho como eu quero. Ouvi dizer que a Igreja Quatro Quadrados quer pessoas como eu. Têm irmãs pregadoras, e não só homens como nesta igreja, e eu sempre tive maneira de me aproximar de qualquer mulher que eu quisesse.

É exactamente esse o género de pecado de que quero dar testemunho, para a outra vez, se puder. Eu não falei desse grande pecado, da primeira vez que testemunhei, há três anos. Tinha vergonha de o diser diante daquela gente estranha. Mas agora estou pronto a confessar. Eu disse ao pregador que queria dar testemunho de haver pecado, uma vez, com uma irmã pregadora, mas ele mandow-me calar sobre o assunto e continua assim ainda hoje.

De qualquer modo, apenas dormi com a irmã pregadora uma vez. Ela agiu, assustada e precipitadamente, mas a mim nada me preocupou. Deixei de ir à igreja para a ver pregar, depois disso, e lidei com outras mulheres. Com duas delas é que começaram os meus grandes pecados. É sobre isso que testemunho, para a outra vez, se ele não me deixar falar sobre a irmã pregadora.

Ora, quando se peca com duas mulheres ao mesmo tempo, e ambas são casadas, é quando a gente comete os pecados maiores. É verdade, porque é um pecado a dobrar, é duas vezes maior que o vulgar. Eu contei isto ao prega dor, repetidamente, mas ele disse-me que devia aguardar e não prestar testemunho sobre esse género de pecado logo depois de o cometer.

Como qualquer pessoa sabe, e é o que eu digo ao pregador, quando se lida com duas mulheres ao mesmo tempo, tem que se acomodar as duas de qualquer maneira. Se não se faz assim, elas agem como mulheres, e uma delas ficará fula com a injustiça e tornar-se-á agressiva.

Quando as coisas começaram com as duas mulheres, eu disse-lhes que era muito melhor se me deixassem fazer as coisas com tempo, de modo que eu pudesse acomodar-me com uma, numa noite, e com outra, noutra. Mas isso não servia para qualquer delas. Disseram que sempre foram boas amigas, e não queriam separar-se para fazerem o favor uma à outra. Nunca percebi isto. É uma conversa que só as mulheres entendem.

Foi o que eu disse ao pregador há muito tempo. Eu não estava acostumado a essas coisas, mas fui para diante e fiz o que elas me pediram, e foi assim que comecei a pecar a dobrar, com duas mulheres casadas ao mesmo tempo.

Agora, pode ver a razão por que não acredito muito nesses jovens que prestaram testemunho hoje. Se é só isso que confessam, é difícil alcançarem a salvação.

Mas eu lhe digo uma coisa. Hei-de insistir com aquele pregador até ele ceder e me deixar testemunhar autênticos pecados grandes. E se ele me afastar por muito tempo, eu ir-me-ei embora, em busca de uma outra igreja que tenha gosto em me ver testemunhar, como eu quero, acerca da irmã pregadora e das duas mulheres casadas. Já tenho a minha salvação e não tenho necessidade de hesitar, para a outra vez.

Embora eu nunca tivesse ouvido Ira Sylvester criticar as convicções religiosas dos outros, o facto é que ele disse, uma vez, que certas pessoas infelizes, como os alcoólicos e os glutões, seriam melhores cidadãos se ficassem curados de excessos religiosos. Falou assim, referindo-se ao que tinha visto, uma tarde, na primeira metade dos anos 20.

Estávamos a olhar através de uma janela aberta de uma igreja de província, no decorrer de uma sessão revivalista, numa noite de domingo, espantando a todo o tempo os mosquitos, enquanto um idoso agricultor se rebolava no chão durante um quarto de hora, e gesticulava como que atacado por uma crise epiléptica. Era este um dos métodos mais violentos de alcançar o êxtase; vulgarmente, os principiantes que procuravam o mesmo resultado contentavam-se com gemer, tremelicar, gritar e proferir palavras confusas. Quando, finalmente, o homem ficou quieto no chão, o ministro ungiu a sua fronte com azeite.

Usualmente, porém, quando íamos a algum serviço evangelístico, celebrado numa igreja fundamentalística, nos anos 20, para assistir ao manipular das cobras, ao lava-pés, ou ao rebolar no chão, exibições que em geral culminavam em gritaria e saltos alucinados, Ira Sylvester regressava calado e subjugado, como que a significar que bastava ver, e que qualquer comentário era supérfluo.

De outras vezes, I. S. falava sobre determinado serviço a que tinha assistido, só dois ou três dias depois da ocorrência. Mais do que uma vez, observou que se tratava de uma religião de compaixão, pervertida por certas seitas até ficar esvaziada de qualquer valor ético e utilizada por gente desorientada para praticar orgias emocionais e físicas, sob o disfarce de adoração divina.

Quando i. S. voltava particularmente deprimido por ter visto algum ministro a lidar com cobras ou bater na cabeça com um malho, dizia que gostava de saber como é que os rijos e sensíveis anglo-saxões retrogradaram a esse primitivismo, no decorrer de tão poucas gerações na América. Ele orgulhava-se da sua própria descendência escocesa-irlandesa, mas ficava embaraçado com as grotescas práticas religiosas de outros, do mesmo tronco anglo-saxónico.

Havia ocasiões em que afirmava pensar em se demitir, para dedicar o resto da vida ao ensino, em vez da pregação. Havia ampla prova — argumentava ele — de que o Sul estava engolfado em práticas religiosas primitivas e, para reagir contra esta influência, à geração mais nova devia ser dada oportunidade de obter educação mais completa nas escolas oficiais.

  1. S. previa, com base na sua experiência, que a civilização, no Sul, seria retardada de cinquenta ou cem anos, se os interesses das gerações mais novas não fossem desviados, por adequada educação secular, da perniciosa influência de uma religião pervertida. Dizia ele que as pessoas se entregavam a práticas que nem eram espirituais, nem materialistas, e que, se deixassem de considerar Deus como um símbolo de moralidade, para se dedicarem a uma religião orgíaca, mais valia que se encorajasse a jovem geração a adorar ídolos totémicos.

Em ocasiões destas, quando parecia que ele ia abandonar o ministério, i S. hesitava, visivelmente, em demitir-se, por causa das razões do seu ingresso no ministério, não inteiramente esclarecidas. Perguntei-lhe, pela segunda vez, porque é que tinha estudado Teologia, ao que ele não respondeu mais do que da primeira vez.

O nosso carro seguia por uma estreita estrada enlameada, através de campos de algodão em flor. Estávamos a algumas milhas de distância da cidade mais próxima, e as únicas coisas que se avistavam eram umas moradias pequenas, descoloridas, cercadas de pátios de areia vazios e manchas de árvores verdes. Havia um povoado, constituído por casebres e dependências, à volta de uma máquina separadora de algodão, a uma milha de distância, mas nos campos as casas eram ocupadas por agricultores brancos.

Não tínhamos avistado ninguém nos campos, nem à porta das casas, depois de passarmos pela máquina separadora, e, ao calor da tarde, o ambiente rural parecia completamente deserto. Surgiu então, subitamente, um homem, que parecia ter cerca de cinquenta anos, saído da beira da estrada onde estivera sentado à sombra de uma árvore, que se pôs a acenar para nós com o seu chapéu castanho de palha.

O excitado agricultor usava um casaco de estrias azuladas, desbotado pelo sol e pelas lavagens, e a sua face ossuda estava revestida de uma barba hirsuta. Parámos logo, aguardando que ele se aproximasse.

Agitando o chapéu, a refrescar o rosto, e ofegante, perguntou ao meu pai se era pregador. Julgávamos que nos ia pedir uma boleia para a cidade, e, por isso, a pergunta causou surpresa.

Quando Ira Sylvester respondeu que era um pregador, o agricultor apontou para uma casa de telhado ferrugento, com três divisões, à beira da estrada, e pediu-lhe que viesse depressa. Ira Sylvester perguntou-lhe por que razão desejava que ele lá fosse. Pegando pela manga do casaco de meu pai, e rogando-lhe que saísse do carro, o homem disse que a mulher dele estava a morrer e queria que um pregador e curandeiro religioso pousasse a mão sobre a cabeça dela e lhe salvasse a vida.

Ira Sylvester respondeu-lhe que não era um curandeiro religioso, e que a mulher dele precisava mas era de um médico. Ele abanou a cabeça, afirmando que um médico estivera já ali na véspera e lhe dissera que a sua mulher estava a morrer de um mal de estômago, e que a única ajuda que lhe podia dar era oferecer-lhe umas pílulas para lhe atenuar as dores. A mulher recusara-se a tomar o remédio, na convicção de que só um pregador-curandeiro de santidade a podia salvar.

Saindo do carro, Ira Sylvester disse que iria lá a casa para falar com a mulher, a ver se a persuadia a tomar o remédio, mas queria que soubessem que não tinha poderes para a curar pela fé.

Quando entrámos em casa, uma mulher pálida, extenuada, de cabelo grisalho, que parecia ter muito mais que cinquenta anos, jazia num colchão manchado, apenas coberta em parte com uma velha camisa e uma colcha desfiada de algodão. Ao ouvir o ruído de passos no chão de madeira, ela abriu os olhos e olhou para Ira Sylvester com uma expressão suplicante.

Ele sentou-se numa cadeira, à beira da cama, e perguntou-lhe como estava. Passados minutos, sem que ela respondesse às perguntas, pegou no frasco de pílulas que o médico deixara. Com um débil gesto do braço, ela rejeitou o frasco. Então, pediu-lhe que pusesse as suas mãos salvadoras sobre ela, e a curasse.

Ele falou-lhe, pacientemente, dizendo que era um ministro presbiteriano, e não um curandeiro de santidade, e queria que ela fosse para um hospital do condado, para que os médicos cuidassem dela. Enquanto lhe falava, procurando convencê-la de como melhoraria no hospital, ela aproximou-se e tentou, várias vezes, bater-lhe com a mão. Todavia, de cada vez que levantava o braço, este tombava de cansaço sobre o colchão.

Tínhamos estado meia hora dentro de casa, quando meu pai lhe disse que ia tratar de chamar uma ambulância para ela, se prometesse ir para o hospital. Debruçando-se de repente para junto dele, cuspiu-lhe várias vezes na cara, rapidamente. Ao erguer-se logo da cadeira, para limpar o cuspo do rosto, com o lenço, ela pôs-se a rogar-lhe pragas.

De pé, no meio do quarto, ele não fez qualquer esforço para a mandar calar. Ela chamou-lhe hipócrita, falso pregador, diabo pecador, presbiteriano ateu, bastardo desprezível, inútil, cão mijinhas, macaco sujo, filho-da-mãe, e mais, e mais nomes, e repetidamente. Finalmente, quando o marido a mandou calar, ela passou a insultá-lo a ele, tal como tinha insultado Ira Sylvester. Completamente exausta, cerrou os olhos, e ficou deitada em silêncio.

Quando íamos a caminho do carro, à beira da estrada, Ira Sylvester disse ao marido dela que ia telefonar a um médico, ao chegar à cidade, e que trataria de arranjar uma ambulância que a levasse ao hospital. Tocando na aba do chapéu, e apertando seguidamente a mão de Ira Sylvester, reconhecidamente, o homem disse-lhe que estava satisfeito com as palavras dele, depois de ter suportado tanto insulto e tanta praga.

íamos já a meio caminho do destino, sem que meu pai tivesse proferido palavra sobre a mulher agonizante. Disse, então, que era sempre uma experiência triste, estar na presença de uma pessoa agonizante, mas que sentir-se-ia bastante aliviado se alguém, do hospital, lhe lavasse a boca com sabão, antes de ela morrer.

  1. S. dissera uma vez que, se além de levar uma vida exemplar, a função de um ministro era apenas preparar o sermão para pregar do púlpito, aos domingos, a sua vida seria idealmente agradável e fácil.

Aquilo a que ele se queria referir era a obrigação do pastor de uma igreja presidir aos serviços fúnebres, pois ele e o agente funerário eram as pessoas mais procuradas na cidade. A celebração de casamentos, contudo, era uma tarefa agradável, e compensava o trabalho que lhe dava ter de ir ao cemitério nos dias chuvosos de Verão e nos dias frios de Inverno.

Por agradável que lhe fosse celebrar casamentos, houve um incidente relativo ao matrimónio de um casal, cerimónia para a qual, disse ele depois, preferia nunca ter sido chamado.

Foi numa noite de Inverno, entre as duas e as três da manhã, quando alguém bateu forte à porta da frente, acordando toda a gente de casa. Acontecia, às vezes, algum bêbado errar na porta, mas, desta vez, o bater, alta e persistentemente, era de alguém que sabia onde estava e que vinha com ar decidido.

  1. S. levantou-se, acendeu as luzes da entrada e da sala de estar, e voltou depressa ao quarto, calçou os sapatos, enfiou as calças e abotoou o casaco sobre a camisa de dormir.

A primeira pessoa a entrar na sala de estar foi a telefonista do turno da noite, uma mulher cheia, de cerca de trinta e cinco anos, com cabelo louro, solto, que raras vezes era vista nas ruas ou numa loja, porque dormia durante o dia. Atrás dela vinha um agente de vendas, alto, de rosto trigueiro, muito mais novo, que vivia na cidade e viajava cinco vezes por semana, ao serviço de uma empresa de tabaco. Logo que entraram, um agente da polícia que os seguia penetrou também na sala, fechando a porta atrás de si. Era o irmão mais velho da telefonista.

A telefonista e o empregado da empresa de tabaco, ambos a tremer ligeiramente de frio no ambiente morno da casa, vindos do frio exterior, sentaram-se nas cadeiras, nos dois cantos da sala. Ambos fizeram uma vénia para I. S., ao entrarem, mas nenhum lhe dirigiu palavras.

Nessa altura, o xerife interrompeu o silêncio, para dizer ao meu pai o que pretendia. Trazia uma pistola no coldre e, de vez em quando, levava a mão à arma, enquanto falava, tirou uma licença de casamento do bolso e disse que queria que I. S. celebrasse o casamento da irmã dele com o empregado da empresa, imediatamente.

  1. S. estava então bem acordado e sabia que não lhe vinham pedir que realizasse uma cerimónia matrimonial vulgar, embora já tivesse casado pares fugidos de casa, a qualquer hora do dia ou da noite. A primeira coisa que lhes disse foi que, por verificar que nenhum deles era membro da igreja do A. P. R., melhor seria se falassem com o pastor da igreja a que um deles, pelo menos, pertencesse.

O Xerife disse que tentou fazer isso, mas tal não foi possível. Disse também que os outros pregadores talvez não fossem ordenados, mas sabia que i.S. era ordenado, e queria ter a certeza de que o casamento seria vinculante e legal. Além disso, queria que sua irmã fosse casada em cerimónia religiosa e não por um juiz de paz.

O que acontecera foi que a irmã do xerife estava grávida há meses e conseguira manter o facto em segredo, esperando sempre que o empregado da empresa de tabaco aparecesse, uma noite, na repartição dos telefones, a pedir-lhe para casar com ele. Quando o agente da polícia descobriu o facto, nessa tarde, exigiu que ela lhe dissesse quem era o pai. Actuando imediatamente, fez com que o empregado fosse à Repartição do registo civil à meia-noite e conseguisse uma licença de casamento.

  1. S. disse ao agente que teria de perguntar ao casal se desejavam casar-se, antes de poder realizar uma cerimónia legal e, se qualquer deles dissesse que não, não tinha poderes para os casar, quaisquer que fossem as circunstâncias. Nem a telefonista, nem o empregado da empresa tabaqueira lhe tinham falado antes de aparecerem em casa, e I. S. sugeriu que, dado que a hora era tardia, seria melhor aguardar até de manhã, de modo a todos poderem ponderar melhor sobre tão delicado assunto.

O xerife, homem robusto, de fisionomia dura, com cerca de quarenta anos, abanou negativamente a cabeça, por forma decidida, e, mais uma vez, afagou a pistola. Disse ele que não estava para esperar que o empregado aproveitasse nova oportunidade para se retirar da cidade, sem mais regressar, e queria que o casamento se realizasse aqui e já.

O tempo foi-se passando e o agente impacientava-se. I. S. ainda hesitava, mostrando que não podia realizar um casamento forçado. Tinha de estar convencido de que ambos queriam o casamento.

A irmã do xerife declarou logo que queria casar. Fez-se um longo silêncio, enquanto todos olhavam para o empregado da empresa tabaqueira, aguardando que ele se pronunciasse. Este olhou de soslaio para o agente policial, que estava de pé, com a sua arma, no meio da sala; e olhou para a telefonista. Passados momentos, fez sinal que sim, com um ligeiro sorriso.

Foi, para meu pai, uma das mais rápidas cerimónias matrimoniais que jamais realizou, disse ele mais tarde. Logo que terminou, o casal e o agente policial retiraram-se. Quando i. S. os acompanhou até à porta, o agente quis entregar-lhe cinco dólares. I. S. disse-lhe que ficasse com o dinheiro e que o utilizasse para comprar um bonito presente de casamento.

Enquanto a noiva subia para o carro-patrulha, o empregado da empresa tabaqueira seguia sozinho, a pé, pela rua abaixo, a passo apressado. I. S. chamou o agente, para lhe dizer que era costume os noivos saírem juntos depois do casamento e lembrou-lhe que o casamento não seria legal se não fosse consumado.

O agente subiu para o carro e fechou a porta com estrondo. Chamou i. S. e disse-lhe que já tinha havido consumação a mais e que, se o empregado da empresa de tabaco se atrevesse a aproximar-se novamente de sua irmã, ela corria o risco de ser uma viúva, em vez de noiva.

Ira Sylvester tinha sido pastor da única igreja da cidade, da A. P. R., durante seis meses, quando lhe fizeram entrega de uma petição, contendo as assinaturas de vinte e sete dos duzentos filiados, ou mais, da igreja.

A petição dos vinte e sete membros era a exigir que Ira Sylvester se demitisse do lugar de pastor, imediatamente. Ao exigirem a sua demissão, acusavam-no de dedicar o tempo pastoral aos problemas de pessoas que não pertenciam à sua igreja, que negligenciara assistir às necessidades espirituais dos seus membros, e, consequentemente, violara a obrigação de cumprir os seus deveres de pastor. A petição declarava que seriam tomadas providências para lhe ser retirado o ordenado mensal de setenta e cinco dólares.

Ira Sylvester sabia que as acusações eram graves, mas não foi colhido de surpresa. Ouvira dizer que alguns dos adeptos se queixavam de que ele não pregava a religião no estilo tradicional, que não visitava as suas casas nos dias de semana, para lhes ler os trechos inspiradores da Bíblia e para rezar, em particular, pela alma de cada um.

O comentário que meu pai fez, quando pela primeira vez ouviu os rumores, foi que a religião do velho estilo tradicional tinha sido adequada no passado, e no passado devia ficar; e que as pessoas que sentiam a necessidade de leitura bíblica e oração diária deviam aprender a fazê-las pessoalmente.

O que instigou a circulação da petição dos membros dissidentes foi o facto de Ira Sylvester ter procurado ajudar uma família branca, composta de marido, mulher e onze filhos, desprovida de bens, que vivia num casebre além dos limites da cidade.

O casebre tinha sido abandonado por uma família negra, nos princípios do ano, porque uma parte do telhado se desmoronara e o senhorio rejeitara qualquer responsabilidade pelos danos, até ser paga a renda em atraso. No estado em que se encontrava, o curral possuía um telheiro de zinco, sob o qual a família se acoitava quando chovia.

Ira Sylvester esforçou-se por conseguir da repartição de saúde e do departamento de bem-estar, do condado, que concedesse à família de treze pessoas uma habitação condigna, mas o comissário afirmou que o seu único dever, em tal caso, era analisar o poço de água usada pela família, o que faria com todo o gosto.

O presidente e os vogais da câmara municipal disseram que não tinham a obrigação, nem possuíam dinheiro para ajudar as pessoas que viviam fora dos limites da cidade. Todavia, Ira Sylvester conseguiu que um estabelecimento de ferragens oferecesse um rolo de papel alcatrão para a cobertura da casa, e várias caixas de géneros alimentícios em conserva foram doadas por alguns empregados do estabelecimento. Também obteve peças de vestuário de várias pessoas, filiados ou não na igreja, que se dispuseram a ceder roupa usada à família em causa.

Foi relativamente fácil arranjar comida e vestuário para essa família. O mais difícil era conseguir dinheiro para pagar as despesas médicas e hospitalares.

O pai, de trinta e cinco anos, perdera a perna direita num acidente ocorrido numa serralharia, e precisava de muletas para poder andar, sem o que não podia alcançar qualquer emprego. O rapaz, de seis anos, tinha um braço partido, que não foi metido em gesso, e o braço infectou, evidenciando sinais de gangrena. A filha, de dezasseis anos, sofria de bócio, e tinha um inchaço no pescoço do tamanho de uma pêra, e que cada dia se avolumava mais.

A acrescentar a tudo isto, a mãe, de trinta e três anos de idade, que já tivera onze filhos e esperava mais um, pediu a meu pai que lhe conseguisse ser operada ou sujeita a qualquer processo de controlo de nascimentos, para não tornar a engravidar.

A petição, reclamando a demissão de Ira Sylvester, fora-lhe entregue na segunda-feira. Todos os outros membros já anteriormente sabiam do caso, porque tinham sido abordados, recusando-se a assiná-la, pelo que, passados poucos dias, toda a gente da cidade tinha já conhecimento do caso. Antes de a semana findar, dois médicos e um cirurgião prontificaram-se a colaborar, e dinheiro bastante foi dado em subscrição pelos cidadãos, para pagamento de todas as despesas médicas e hospitalares da referida família.

Na manhã do sábado seguinte, quando Ira Sylvester subiu ao púlpito, havia mais membros da congregação presentes do que nos anteriores serviços, durante os seis meses em que ele a pastoreou. Nem todos os presentes eram concordantes, porque estavam entre eles alguns dos vinte e sete dissidentes, mas a demonstração traduzia a aprovação de uma grande maioria dos membros da igreja. Acresce que estavam presentes, na demonstração, alguns indivíduos que não pertenciam à congregação.

Mais tarde, nesse mesmo dia, meu pai disse que foi a primeira vez que recebeu uma grandiosa ovação, de adeptos de uma igreja, e que, quando a congregação se ergueu para o aplaudir, foi pena ele não ter feito não uma, mas várias vénias de agradecimento, como o teria feito um actor profissional shakespeariano ou um político vitorioso.

A única coisa que muitas das denominações protestantes têm em comum, no remoto Sul, nos anos 60, é o uso do nome de Deus; mas essa afinidade poderá desaparecer dentro de pouco tempo.

No começo do século actual, os métodos de adoração religiosa, entre os protestantes brancos do Sul, apresentavam quase sempre a mesma feição fundamentalística tradicional. Pouco depois, contudo, começou a verificar-se uma divergência, e, uma vez mais nos anos 60, os dois extremos distanciaram-se tanto um do outro, na ideologia e na prática, que é pouco visível a semelhança entre o modernismo e o fundamentalismo.

Todavia, embora cada um deles pretenda ignorar a existência do outro, tanto os modernistas como os fundamentalistas estão conscientes de que devem, ao menos por agora, continuar a esforçar-se, agressivamente, em nome de Deus, por aumentar o número de adeptos e de donativos.

Se a divergência continuar a alargar-se, no futuro, como tem acontecido no passado, o uso do nome de Deus pode, eventualmente, desaparecer, como elo teórico entre as duas práticas.

Como sucede na actualidade, os modernistas, em muitas igrejas baptistas, metodistas e presbiterianas, ricas, urbanas e com numerosos adeptos, usam o nome de Deus com parcimónia, se é que o usam, no púlpito. Os eufemismos mais frequentes que empregam são divindade, espiritualidade e eclesiástico.

Tornou-se já moda, nalgumas igrejas protestantes modernistas, praticar as devoções religiosas sem identificar Deus pelo nome, como objecto de adoração. Em vez de ameaçar os pecadores com a ira de Deus, um pastor perceptivo e cauteloso não ofenderá ninguém, e ao mesmo tempo captará a simpatia da audiência, recomendando a serenidade de pensamento como sendo o modo ideal de alcançar um confortável sentimento religioso.

Entre os fundamentalistas, tanto da cidade como da província, contudo, especialmente dos púlpitos da Igreja de Deus, da Assembleia de Deus, de Santidade, de Pentecostes, o nome de Deus é inserido indiscriminadamente, e muitas vezes reiterado, em quase todas as frases ou sentenças proferidas. De facto, quem não estiver acostumado a ouvir tão frequentes e irrelevantes referências a Deus, fica impressionado, ou pelo menos espantado, acabando por considerar, talvez, o constante uso do nome de Deus uma blasfémia, se não uma profanação.

De qualquer maneira, quando chega o momento de decidir a qual das duas facções se deve conceder o privilégio — aos modernistas ou aos fundamentalistas —, verifica-se que estes últimos dão prioridade ao uso do nome de Deus, pelo que devem ter o privilégio do seu uso exclusivo.

A religião modernista, na sua forma mais avançada, é comparável à espectacularidade das organizações cívicas de homens de negócios, tais como os Kiwanis, o Clube Rotário e a Câmara de Comércio Júnior. Estrelas douradas ou distintivos de esmalte são a recompensa pela assiduidade, entusiasmo clamoroso, contribuições em dinheiro, e serviços pessoais voluntários.

Qualquer que seja o objectivo normal de uma igreja modernista, comprar uma propriedade anexa para um parque, ou ampliar um auditório da escola paroquial, ou investir fundos da igreja em prédios rendáveis, o movimento é conduzido com a táctica de uma agência de vendas de categoria. Essas campanhas para donativos são habitualmente manobradas com a perícia de uma verdadeira empresa de compra e venda de propriedades que celebra contratos para a criação de um novo centro comercial importante, abrangendo quarenta acres, no valor de um milhão de dólares.

No outro extremo, a igreja fundamentalista é, muitas vezes, uma pobre de pedir. Dado que as dificuldades financeiras constituem uma situação crónica, é política de algumas igrejas procurar obter mais dinheiro, fazendo dois peditórios em cada serviço — um para a igreja, outro para o ministro. Mesmo assim, o ministro tem habitualmente uma ocupação nocturna nalgum estabelecimento, ou estação de gasolina, ou fábrica, para poder sustentar a sua família.

A razão dessa necessidade é que os membros das igrejas fundamentalistas são, na maior parte, empregados de lojas, funcionários municipais, trabalhadores e assalariados, cujas remunerações não chegam para sustentar a igreja e o ministro. E, ironicamente, como às vezes acontece, quando um membro se torna relativamente rico, a mulher dele insistirá no sentido de tratarem de melhorar o seu estado social, aderindo e prestando ajuda a alguma elegante igreja baptista, metodista ou presbiteriana.

Assim como nada há como o êxito em qualquer empresa comercial, a Primeira Igreja Baptista, numa cidade típica do Sul, possui, invariavelmente, o maior número de sequazes, o edifício arquitectònicamente mais imponente, e a receita semanal mais volumosa de entre as igrejas protestantes do lugar. Depois dela, em ordem descendente, com raras excepções, seguem-se as Igrejas Segunda Baptista, a Metodista e a Presbiteriana. Onde surge uma excepção, verifica-se que a Igreja de Cristo supera a dos Presbiterianos.

Numa cidade da Carolina, do Piedmont, que possui uma população excedendo cinquenta mil, o rotundo, jocoso, bem trajado pastor da modernista Primeira Igreja Baptista pouco tempo tem para se dedicar à preparação e realização de sermões na sua própria igreja. A razão está em que cerca de metade do tempo é gasto fora da cidade, a assistir a alguma convenção eclesiástica algures nos Estados Unidos, ou como convidado de honra para discursar nalgum banquete cívico ou fraternal em qualquer outra cidade do Sul. É formado pela universidade de Estado e por um seminário teológico, tendo conseguido o grau honorário de doutor de divindade por duas universidades baptistas, com a perspectiva de receber ainda o título de L. L. D.

O dinâmico pastor tem ao seu serviço um ministro assistente que prega em vez dele, quando se encontra ocupado noutras funções, ou quando se sente fatigado após algum tardio banquete. A igreja também paga os salários de um secretário privado trabalhando em “full-time”, para os seus assuntos privados, e um dactilógrafo de escritório para correspondência diversa. Ê casado, tem quarenta e oito anos de idade, dois filhos e uma filha, que frequentam colégios baptistas nos arredores da cidade. Além de possuir uma residência paroquial de sete divisões, isenta de renda, e um automóvel oferecido pela igreja, recebe doze mil dólares por ano.

A Primeira Igreja está a florescer, sob todos os aspectos, com grande satisfação minha. Eu não podia esperar melhor assistência e resposta às nossas necessidades financeiras. Actualmente, a nossa congregação é composta de mais de mil membros e todas as semanas ingressam novos filiados. Os nossos arquitectos trabalham em projectos para a ampliação do auditório, de modo que aos domingos possamos admitir mais duzentos e cinquenta pessoas.

Todavia, antes de começarem as obras de ampliação do auditório, celebrámos já um contrato para aumentar o número de salas de conferências, para uma creche maior e uma nova dependência na nossa secção educacional. E planeamos, a seguir, instalar um café, para os nossos jovens, que poderão passar grande parte do tempo ocupados com as suas várias actividades juvenis, ao entardecer e no começo da noite, todos os dias da semana, no Verão, e nos fins-de-semana, durante o ano escolar.

Enquanto tudo isto for decorrendo, tenho em mente recolher donativos para a construção de um novo bloco para um ginásio e uma piscina interior, para os nossos rapazes e raparigas mais novos. A nossa juventude não deve ser privada destas vantagens.

O nosso programa de obras de expansão, destinadas a criar facilidades, começou há cerca de dez anos, quando tomei conta do cargo de pastor. Era minha ambição tornar a Primeira a maior congregação da cidade e dotada com os mais bonitos edifícios.

O primeiro passo que dei foi lançar uma campanha de peditórios para a compra dos prédios vizinhos da igreja, a fim de conseguir amplo espaço para expansão das obras. Graças a generosos donativos para o fundo, o bloco inteiro passou a ser propriedade nossa. Logo que isso foi alcançado, promovi nova campanha de fundos, para o programa de construção. Essa campanha, felizmente, teve também grande êxito.

Embora não tenha a mesma grandeza, em termos de dinheiro, uma outra coisa que pudemos fazer, graças ao auxílio dos nossos adeptos, que prontamente ocorreram à chamada para a criação de um outro fundo especial, foi comprar quatro colecções completas de batinas de coro, para que os vinte e quatro membros do nosso coro possam trajar em cores diferentes, em cada domingo do mês. Esta inovação fez sensação quando os jornais noticiaram o acontecimento, do que resultou admitirmos muitos novos filiados, que vieram de outras igrejas. Além disso, este fundo permitiu aumentar os salários aos solistas e outros membros do coro, tornando possível manter intacto o nosso departamento de música.

Quanto aos donativos excedentes, feitos espontaneamente, foram contabilizados separadamente dos nossos diversos fundos. Temos a nossa comissão, incumbida de investigar as várias situações que possam interessar, e cedo decidiremos onde investir esse dinheiro.

Evidentemente, tal como os bancos e outras organizações similares, que lidam com largas somas de dinheiro que lhes são confiadas, a nossa primeira preocupação é a solidez do investimento a longo prazo, e a preocupação seguinte é ver qual a necessidade imediata. Nós operamos na teoria segundo a qual este dinheiro deve trabalhar para nós, como o homem que trabalha e que não queremos ver de braços caídos.

É política nossa fazer investimentos em prédios sitos na zona comercial e em apartamentos rendáveis. Contudo, temos conhecimento da actual mais-valia das propriedades, pelo que consideramos a oportunidade de participar no financiamento de um grande motel, a construir na estrada principal, nos arredores da cidade. Os impostos são menores nas cercanias e o intenso tráfego naquela estrada enche-nos de optimismo quanto ao investimento.

Não chegámos ainda a uma decisão final acerca do investimento no motel e ainda não sei se resultará. Devemos ter em mente, como toda a gente na nossa situação terá, que as unidades residenciais destinadas a arrendamento a grupos de economia débil, negros ou brancos, dão hoje em dia mais lucros, em cada dólar investido. É triste verificar-se, considerando as pessoas envolvidas, que a percentagem de acções de despejo, relativamente a casas de renda baixa, é maior do que em relação aos estabelecimentos comerciais e industriais. Mas há que encarar estes factos, quando se é responsável pela segurança e uso de dinheiros dados de boa-fé, pela congregação, nos peditórios.

Como se vê, nós enfrentamos briosamente estes problemas e avançamos, operando na base de sólidos princípios comerciais. Dado que a maioria dos nossos filiados é constituída por gente abastada, muitos deles ricos, censurar-nos-iam e desaprovariam os nossos investimentos que rendessem apenas cinco ou seis por cento.

Eis porque A maior parte dos nossos investimentos incide sobre prédios arrendados em bairros operários, onde obtemos um juro de dez a quinze por cento, ou mais. É ali que temos, também, as avaliações mais baixas, com vantagem de ordem fiscal, para não mencionar certos benefícios de isenção fiscal que só as organizações religiosas e de caridade recebem. Estes factos contribuíram para aumentar consideràvelmente os nossos rendimentos. Portanto, como vê, é necessário um inteligente critério comercial para pôr a funcionar uma igreja como a Primeira, nestes dias e nesta época.

Estou convencido de que foi devido ao êxito obtido nos últimos dez anos, aqui, na Primeira, que recebi convites de dois colégios baptistas de outros Estados. Ambos estes colégios estão ansiosos por aumentar os seus fundos e procuram um homem altamente qualificado para presidente e para dirigir campanhas destinadas a obtenção de dinheiros. São convites atraentes e vou ponderar sobre eles.

Não me decidi ainda, porque sou, primariamente, um ministro. Mas verifiquei nos últimos anos que tenho, realmente, qualidades para planear e dirigir com êxito campanhas de obtenção de fundos. Por isso é que, provavelmente, renunciarei ao cargo de pastor, para aceitar a mais vantajosa das duas ofertas para reitor de um colégio.

Suponho que a razão principal para aceitar a oferta, qualquer que seja, é que, como director de um colégio, poderei solicitar centenas de milhares de dólares, em vês de apenas milhares, como acontece aqui, periodicamente. A minha teoria é que, se conseguirmos acertar na cabeça de um touro, a coisa seguinte a fazer é alongar a vista para outro mais distante, com mira numa recompensa maior.

Como a maior parte dos ministros reconhecerá, se forem sinceros, o escolher temas para os sermões e o pregar uma ou duas vezes por semana podem transformar-se numa rotina cansativa e aborrecida para um homem normalmente ambicioso. Eu sou a espécie de pessoa que precisa de vida activa todos os dias da semana e que constantemente busca mais altos objectivos para se realizar.

Mais do que isso: não sou apenas um homem activo; sou um homem apressado, desejoso de actuar imediatamente. Eis porque me atrai fortemente o lugar de director do colégio. Terei um campo mais largo onde actuar. Associar-me-ei com pessoas de alto nível intelectual. Estarei em contacto com benfeitores ricos. E, é claro, um aumento de quinze mil, de ordenado, mais um subsídio para viagens e férias, significam muito para mim. Não há nenhuma razão para a gente deixar de aceitar o que a vida nos oferece de bom, quando as coisas estão ao nosso alcance.

Não sei qual será o futuro da religião na América. Haverá sempre um punhado de fiéis, estou convencido disso. A religião é um conforto para os solitários e para os que sofrem. Proporciona espírito de camaradagem, na vida terrestre. A geração mais idosa, na Primeira, é cumpridora dos seus deveres. Mas a geração mais nova está a interessar-se de mais nos negócios mundanos e é essa a razão por que temos de facultar maior número de actividades dentro da igreja, para poder mantê-los no nosso grémio. Devemos evitar que se transviem. Serão os futuros pilares da igreja.

Mas não são só essas as nossas preocupações. Os tempos vão difíceis para os jovens ministros saídos das escolas teológicas. Muitos deles pensam que devem saltar imediatamente para o tumulto da época, e aí está o primeiro erro deles.

A igreja, hoje, no Sul, tem de agir com segurança. Não é lugar para. um ministro expor as suas convicções pessoais, em certas matérias como as respeitantes à integração e à igualdade racial., e aos partidos políticos, ou ao Ku-Klux-Klan, ou ao Conselho dos Cidadãos brancos. Os problemas seculares são, nos tempos de hoje, demasiado discutíveis, o que não beneficia a igreja.

Se tais problemas são aflorados no púlpito, sobretudo por estudantes ou licenciados inexperientes de teologia, quer sejam pró ou contra, em atitude e doutrina, haverá sempre, no auditório, quem se sinta ofendido, do que resulta uma certa dissensão na congregação. A igreja deve ser uma família feliz, e não uma família bulhenta. Muito trabalhei para que a Primeira fosse o que é hoje. É uma família felis, e eu quero-a assim.

Tenho-me sentido muito perturbado com as atitudes públicas de alguns ministros de outras comunidades — e com a sua participação em demonstrações — em matéria de direitos cívicos e outras similares. Não é um bom exemplo para os estudantes de teologia da mesma comunidade.

Por tal motivo, insisto sempre em ler o sermão preparado por um jovem ministro, antes que ele o profira do púlpito, como meu convidado. Por vezes, tenho tido de riscar quase metade do sermão, à última hora, aconselhando-o a preencher o intervalo com uma oração prolongada e hinos adicionais. Alguns não gostam e procuram discutir comigo. É porque são jovens, e destituídos de experiência. Mas hão-de aprender. Chegarão à conclusão de que devem conformar-se com os nossos princípios religiosos.

Como centenas de outras igrejas fundamentalistas, em comunidades provinciais, pequenas cidades, e capitais do distrito de economia débil, no Sul, uma igreja da Assembleia de Deus estava a ser preparada para as cerimónias de sábado à noite, domingo de manhã e domingo à noite. As portas tinham sido encerradas, e fechadas à chave, desde o serviço habitual de quarta-feira à noite.

Enquanto um pequeno grupo de mulheres de idade varria o chão e espanejava as bancadas, várias raparigas lavavam as janelas. Alguns homens estavam sentados nos automóveis, frente à igreja, à espera que as mulheres e raparigas terminassem o trabalho.

No estrado do coro, por trás do púlpito, um violista e um pianista ensaiavam alguns hinos que o director de coro e o ministro haviam seleccionado para os três serviços seguintes. O dinâmico tocador de viola eléctrica interrompia frequentemente a música dos hinos com alguns compassos de música folclórica conhecida, e a jovem pianista seguia-o com o acompanhamento, com cautelosos olhares dirigidos às mulheres mais velhas, munidas de vassouras e panos.

Era uma manhã tépida de sábado, no mês de Julho, com nuvens de trovoada a mover-se para ocidente, no horizonte, anunciando chuvadas breves para a tarde.

A pequena igreja de madeira, descolorida, sem campanário, com capacidade para umas duzentas pessoas, ficava num terreno bastante largo, arenoso, plantado de carvalhos, à beira da rua, do lado sul de uma cidade do estado de Carolina. Era uma cidade fabril, com uma população de quase oito mil, e a fábrica situava-se a pouca distância das centenas de casas de operários, no estilo de “bungalows”, com três ou quatro divisões, separadas, ao longo de ruas batidas. A nova igreja da Assembleia de Deus, de recente construção, que ficava a meio do casario, era uma das catorze igrejas protestantes brancas da cidade. O distrito negro, segregado, a meia milha de distância, possuía três igrejas da comunidade protestante negra.

O ministro, calvo, e usando uma camisa branca, aberta, seguiu a pé, pelo meio da rua poeirenta, e parou à sombra de um dos carvalhos, em frente da igreja. Tinha cerca de quarenta anos, cabelo negro, frisado, e um magro perfil anglo-saxónico. O seu sorriso era amistoso, e dirigia-se às pessoas com gesto firme, mas condescendente e simpático. Quando se pôs a falar, começou a raspar com a unha o rótulo de um pequeno frasco de azeite, que havia comprado numa mercearia vizinha.

Mudei-me aqui para a cidade, com minha mulher e família, há cerca de um ano. Vim de uma província situada a cerca de doze milhas deste lugar. Ali Deus falou-me e disse-me que fosse para a cidade pregar a verdadeira palavra da Bíblia. Eu possuía lá uma pequena quinta, mas não rendia, muito, e não foi problema para mim arrumar a bagagem e partir. Tinha um bom camião para transportar os móveis e outros objectos.

Bem, a maneira como eu me converti foi quando assisti a uma, reunião de revivescência, ocorrida próximo do sítio onde eu vivia, onde o pregador apontou o deão para mim, dizendo-me que Deus me estava a chamar e que eu estivesse bem, atento, para não perder palavra. De verdade, ouvi Deus a falar-me. Ouvia Deus com toda a clareza. Deus disse-me que me baptizasse depressa e começasse a pregar imediatamente.

Quando ouvi isso, deixei de hesitar. Eu e minha mulher éramos membros de uma pequena igreja metodista, mas Deus disse que tal coisa não fazia diferença. Deus disse que eu devia pertencer à igreja da Assembleia, de Deus, e que me baptizasse nela sem demora, começando a vida de novo. Louvado seja Deus!

Bem, estávamos a meio do Inverno e era custoso sujeitar-me a um baptismo molhado. Era frio de mais para me lançar ao lago, que tinha então uma fina cobertura de gelo. Mas o pregador disse que Deus permitia coisa diversa, por causa do frio no Inverno. Assim, o pregador ministrou-me o baptismo enxuto. Apenas tive de ficar de pé, durante a reunião, e aguardar que o espírito de Deus penetrasse em mim, no baptismo sem água. Se o senhor já o experimentou, saberá que leva muito mais tempo que o outro baptismo, porque primeiro a gente tem que expulsar o Diabo, o que não é fácil, se não podemos afogá-lo dentro de água, ouvindo-o gorgolhar, como num ribeiro ou lago.

De qualquer modo, cerca de meia hora depois de ter iniciado, senti um tremor por todo o corpo, meus joelhos cederam e eu tombei ao chão. O certo é que, logo a seguir, nunca mais o Diabo permaneceu dentro de mim, e sei que o espírito de Deus penetrara em mim. E dentro de mim tem permanecido sempre. Posso sentir a diferença no meu íntimo, constantemente. Louvado seja Deus!

Aqui na cidade, eu faço baptismos molhados e secos. No Verão, como é agora, levo os jovens para um lago, situado a três milhas daqui, no primeiro domingo de cada mês, quando se destinam a ser baptizados com água. Não os incomoda nada, porque os jovens não correm o risco de apanhar uma constipação grave, uma pneumonia ou outra doença. É do que mais gostam também, porque, depois da cerimónia, podem esparrinhar na água durante algum tempo.

Diversamente se passa com os velhos. É arriscado fazer-lhes baptismo molhado. Eu digo aos convertidos, se são velhos, que devem sujeitar-se ao baptismo seco. O mesmo aconselho aos regressados, quando dizem querer sentir novamente o espirito de Deus, que já um dia possuíram. Alguns dirão que um baptismo é o suficiente, mas eu tenho opinião diferente, ao contrário do que pensam muitos dos que frequentam a igreja. Acho que precisam de novo baptismo, todas as vezes que resvalam para as mãos do Diabo e querem voltar à graça de Deus. Louvado seja Deus!

Pode ser que um dia eu possa obter dinheiro suficiente para colocar no interior da igreja um grande tanque, mantendo-o aquecido durante o Inverno, de modo a poder ministrar baptismos molhados sempre que seja necessário. Mas obter dinheiro não é fácil. Leva tempo descobrir gente rica. Sei isso bem, porque esta igreja não me dá o suficiente para sustento. Eu consigo o restante necessário para a minha vida e a da minha família, quando tenho a oportunidade de efectuar trabalhos para algum estabelecimento comercial ou alugando o meu camião.

Bem, como digo, não é tão cedo que hei-de conseguir um tanque para o baptismo molhado. Por essa razão, uso este pequeno frasco de azeite para o baptismo seco. Há quem chame “unção” a esta cerimónia. Mas eu não. Eu chamo-lhe “baptismo”.

Leva uma semana inteira a esvaziar o frasco, que custa um quarto de dólar no merceeiro. Basta uma porção mínima na ponta do meu dedo, para molhar a fronte de uma pessoa, expulsando dela o Diabo e deixando penetrar nela o espirito de Deus. Tenho agora um frasco novo, mas no sábado à noite estará vazio. Isso mostra quanto uso faço dele. Louvado seja Deus!

Nas primeiras três categorias de Protestantismo, no Sul anglo-saxónico dos anos 60, os liberais, modernistas e conservadores são bem definidos e facilmente identificados como episcopalianos, baptistas, metodistas, presbiterianos e luteranos. É na quarta e última categoria, que inclui dezenas de denominações e seitas fundamentalísticas, que os princípios e práticas da crença religiosa criam constantemente tamanha confusão e discussão, que se torna difícil proceder a definições e identificações.

Entre os grupos e organizações fundamentalísticas mais rígidas, tais como a Assembleia de Deus, a Igreja de Deus, os Nazarenos, os de Pentecostes, os de Santidade, e a igreja do Pleno Evangelho da Fé, há uma permanente ameaça de discórdia e desunião. Até a simples menção de Cristo andando sobre as águas, ou de Jonas a ser engolido por uma baleia, pode desenvolver-se, rapidamente, numa controvérsia insolúvel, se se sugere que esses milagres são simbólicos e não reais, daí resultando uma profunda ruptura entre os membros.

Nesta atmosfera religiosa altamente sensitiva, pode surgir a desunião quando um ministro, ou um leigo em oração, desagrada aos assistentes do “Amen Comer” (*),

 

(*) Amen Comer: as primeiras bancadas, numa igreja fundamentalista ou evangélica, usualmente situadas no canto da direita, defronte do púlpito, são um lugar de privilégio para os homens mais idosos que exprimem a sua devoção, clamando frequentes vezes “Amen! Amen!” em alta voz, durante um sermão.

 

ao frisar a sua crença nos milagres bíblicos em voz não suficientemente sonora, portanto sem mostrar a necessária sinceridade e convicção. Nada é tomado mais a sério pelos fundamentalistas do que a interpretação literal da Bíblia.

Quando essa ruptura se verifica, numa congregação fundamentalista, o que não tem sido invulgar nos últimos cinquenta anos, o passo imediato tomado pelo grupo dissidente é organizar uma nova igreja, sob um nome diferente, e tornar-se independente da sua denominação ou seita original.

Esta tendência para a secessão tem produzido um sistema religioso de livre empreendimento, em que qualquer homem pode organizar uma nova seita, o que explica o grande número de ramos e divisões de denominação fundamentalista. Isso também explica que certas seitas rejeitem Deus e o Velho Testamento, que outros rejeitem Cristo e o Novo Testamento, e que outros, ainda, reconheçam Deus e Cristo, e aceitem a Bíblia na íntegra.

O que instiga a divisão entre os fundamentalistas é o princípio do próprio fundamentalismo. Não existe papa, ou bispo, ou sacerdote, ou rabino, que emita regras e éditos, para orientação dos crentes, e a aconselhá-los na prática. Um ministro experimentado, fundamentalista, consciente da sua inferior situação, pôr-se-á de lado, recusando-se a favorecer uma ou outra das facções, .quando se ergue alguma acalorada controvérsia.

Se a questão é sobre a glossolalia, por exemplo, e independentemente de ele aprovar ou não a fala na Língua Desconhecida, não é invulgar colocar-se ele à margem, até que os membros cheguem a acordo ou rompam definitivamente com a igreja.

Entre as seitas fundamentalistas, cada indivíduo age como o seu próprio mentor, e, consequentemente, procura atingir o ideal que ele próprio tem em vista, através da sua interpretação literal da Bíblia. Como frequentemente acontece, especialmente numa igreja onde há muita gente tosca e fanática, esta liberdade conduz à competição entre os membros, cada qual procurando provar a sua verdade, por meio das interpretações extremas dos escritos bíblicos. Contudo, há uma crença principal que é geralmente aceite por todos: os protestantes brancos, fundamentalísticos, são o povo eleito de Deus, e, portanto, são superiores aos judeus e aos negros. Quando esta doutrina antijudaica e antinegra é ensinada aos jovens, é natural tornar-se uma obsessão, à medida que vão crescendo, daí resultando o preconceito, a intimidação e a violência.

Na igreja fundamentalística, cujos membros se consideram qualificados para estabelecer as suas interpretações pessoais, literais, de qualquer passagem da Bíblia, o ministro encontra-se sempre numa posição precária. Está em constante perigo de ofender alguns dos seus membros, causando assim uma ruptura na igreja ou sujeitando-se ao pedido de demissão. Tem de ser cauteloso nas suas interpretações, para ser aceitável àqueles que esperam o mais pequeno desvio da linha ortodoxa, e deve ter o cuidado de repetir certas interpretações ortodoxas, antes de se retirar do púlpito.

Uma vez, depois de ter sido advertido, em duas ocasiões anteriores aos serviços de domingo, um ministro, que deixara de referir, do púlpito, que Cristo tinha nascido da Virgem Mãe e que Deus tinha criado o mundo em seis dias, foi acusado de heresia e intimado a devolver a chave da igreja, antes de se retirar da cidade no fim da semana.

De uma outra vez, os ultraconservadores, entre os membros de uma igreja fundamentalista, acusavam o ministro de ser culpado de heresia, por, inadvertidamente, ter afirmado, no púlpito, que a Terra era redonda. Quando se recusou a retractar-se e a declarar que a Terra era chata, o grupo dissidente desligou-se da igreja e estabeleceu uma nova igreja na mesma vizinhança, esta dedicada à estrita e inflexível interpretação literal da Bíblia.

Os pregadores fundamentalistas entram em funções com habilitações que vão desde o analfabetismo até à formação universitária e teológica.

Há numerosos seminários teológicos, escolas bíblicas, e institutos de treino religioso, no Sul e noutras regiões — em maior número nas colinas de Kentucky e de Tennessee, dos Cumberlands — e ali se formam centenas de ministros e evangelistas, todos os anos, após cursos que exigem uma frequência de quatro anos e duas semanas. Além disso, há licenciados ministros, não ordenados, por escolas de correspondência a cem dólares, e há os não ordenados que afirmam terem tido uma visão e recebido um chamamento directo de Deus, para se dedicarem à pregação.

De entre eles, a elite entre os ministros e evangelistas fundamentalistas são, quase invariavelmente, os licenciados pela Universidade Bob Jones, em Greenville, Carolina do Sul. A razão de ser desta distinção é que, além de oferecer um curso de quatro anos em teologia, campanhas de promoção pericial deram-lhe a identidade de uma verdadeira universidade e não um seminário vulgar ou uma escola bíblica.

A Universidade Bob Jones não está afecta a qualquer denominação, é ortodoxa, protestante, fundamentalista, evangelística, e só branca. A sua qualificação universitária — embora não reconhecida por qualquer associação nacional de educação — é baseada no facto de, em aditamento ao seu colégio de religião, possuir um colégio de artes e ciências.

Além da frequência obrigatória de cursos de estudo da Bíblia e evangelismo, os estudantes da Universidade Bob Jones recebem cursos religiosos práticos, frequentando a escola paroquial, as devoções de domingo de manhã, a sociedade dos jovens, as devoções de domingo à tarde, vésperas diárias e capela, seis dias por semana. Todas as aulas, independentemente da matéria, abrem com uma oração pelo professor ou por um estudante finalista, e, se três ou mais estudantes se encontram, socialmente, nos dormitórios ou no recinto académico, são aconselhados a nunca deixarem de dizer “uma pequena oração”.

Para os mais ambiciosos, de entre os três mil e quinhentos estudantes que frequentam a Universidade Bob Jones, há vinte e cinco sociedades extra-circulares, missionárias, activistas, e de camaradagem, para membros de várias seitas —além da baptista, metodista e prebisteriana — tais como Aliança Cristã, Centro Missionário, Irmãos Evangélicos, Evangélicos Livres, Evangélicos Reformados.

Os empregados de escritórios comerciais são os representantes nomeados da Universidade Bob Jones. Professores e estudantes, advertidos e aconselhados pela trindade administrativa —Bob Jones Sr., Bob Jones Jr., e Bob Jones III— não se sujeitam ao risco de serem censurados por terem discutido com algum visitante outro tema que não seja as condições meteorológicas ou a beleza arquitectónica dos edifícios académicos.

Todavia, o jovem afável e vivaz, sentado à secretária do seu escritório, estava ansioso por falar acerca do êxito da universidade, como centro cultural, baseado em princípios religiosos fundamentalísticos.

Nunca variámos o nosso curso, absolutamente nada, a partir do conceito original da instituição, do nosso fundador, que foi o próprio Dr. Bob Jones. Nos anos 20 e 30, quando o Dr. Bob Jones era um famoso evangelista em todo o Sul, sonhou criar uma importante instituição educativa. Eià-la aqui, hoje, o que nós chamamos a mais inédita universidade do mundo. E porque é que a designamos assim? Porque é a única instituição educativa onde um jovem ou uma jovem podem obter o treino essencial que necessita para uma carreira relevante no ministério e no evangelismo e no campo missionário.

Aqui, o estudante recebe educação completa, em cursos universitários ou secundários — belas-artes, letras, música, literatura e outros. Mas — o que é mais importante — ao mesmo tempo recebe treino pastoral e conhecimento prático de evangelismo, enquanto estuda teologia.

E claro, o Dr. Bob Jones determinou, desde o princípio, que a nossa ênfase incidisse sobre a religião fundamental. Damos especial atenção aos fundamentos básicos, a criação do homem por Deus, o nascimento de Jesus Cristo da Virgem Mãe, o poder de Cristo para redimir o homem do pecado, e a dádiva da vida futura, por graça de Deus.

Orgulhamo-nos de ser conservadores em matéria escolar, bem como em matéria religiosa. E, naturalmente ensinamos os perigos do ateísmo, do agnosticismo e das interpretações científicas do evangelho. Pela mesma razão, somos conservadores em assuntos políticos e mostramos aos nossos estudantes os perigos do radicalismo e do comunismo, para que possam operar contra estas forças quando forem para o mundo. Confiamos em que os nossos estudantes saíam da Universidade Bob Jones, a saber quando devem votar a favor, e quando devem votar contra. Assim, sabemos como aconselhar as suas congregações quanto à votação a favor e contra os vários candidatos, desde as situações locais até à presidência dos Estados Unidos.

Não, nós não aceitamos estudantes jovens, nem negros, na Universidade Bob Jones. Não é conforme os nossos ideais. Pode surpreender muita gente que os nossos estudantes, na maior parte, não sejam de Greenville, nem das Carolinas.

De facto, a grande maioria deles provém de outras partes do país — desde New Hampshire à Califórnia, desde o Oregon à Florida. Há uma boa razão para esta vasta distribuição geográfica nacional.

Como vê, os ministros e evangelistas de todo o país conhecem a Universidade Bob Jones, dada a sua esplêndida reputação, mesmo que não tenham sido bons alunos. Recomendam-na sempre aos jovens, rapazes e raparigas, com vocação religiosa, ajudando-os muitas vezes nas despesas, de uma maneira prática.

Por exemplo, um ministro não evangelista do Dákota Norte, ou do Texas, ou de outro lado, é impressionado por um jovem que quer dedicar a sua vida à pregação da palavra de Deus e de Jesus Cristo, e precisa de instrução profissional para aperfeiçoar o seu talento. Segue-se que esse ministro ou evangelista tratará de conseguir donativos para cobrir as despesas a pagar na Universidade Bob Jones por um ano. Após este período, se o jovem deu boas provas, nós damos-lhe uma bolsa de estudo ou fazemos-lhe um empréstimo, que ele possa pagar a longo prazo, do seu futuro ordenado como ministro ou evangelista.

Muita gente se admira de onde vem todo este dinheiro que nos habilita a conceder bolsas de estudo e empréstimos a todos os estudantes necessitados e merecedores. Nós recebemo-lo, e continuaremos a recebê-lo, das mesmas fontes que contribuíram com vinte e cinco milhões de dólares para comprarmos todo este terreno para a nossa universidade, erigirmos estes trinta magníficos edifícios, estabelecermos o nosso fundo de doações. Durante muitos anos como famoso evangelista, o Dr. Bob Jones salvou as almas de milhares de pessoas e foi em reconhecimento por este facto que muitos foram os que contribuíram com dinheiro ou nos contemplaram nos seus testamentos.

Bem, foi tanto o dinheiro que entrou, e tantos os estudantes que bateram às nossas portas, solicitando educação religiosa, que o nosso pequeno recinto académico de Cleveland, Tennessee, já não chegava, e mudámos então para este magnífico e amplo lugar, em Greenville, onde possuímos ilimitado espaço para futura expansão. Tudo é devido aos admiráveis cruzados do próprio Dr. Bob Jones.

Bem vê, os ministros e evangelistas de todo o país crêem não haver razão para qualquer jovem, rapaz ou rapariga, com vocação religiosa como nós a entendemos, deixar de se matricular na Universidade Bob Jones, e por isso é que estamos todos a trabalhar para vós.

Se um estudante completa ou não o curso de quatro anos, é com, ele. Nós aconselhamos o estudante a sair e a abandonar a cidade, se não coopera plena e completamente com o espírito da Universidade Bob Jones. Adoptamos esta política por duas razões. Em primeiro lugar, para bem do estudante. Em segundo lugar, abrem-se as vagas para estudantes mais cooperantes. Eis porque somos uma família feliz, de três mil e quinhentos estudantes, aqui, na Universidade Bob Jones.

Nem todas as setenta e cinco mil pessoas que vivem em Greenville são entusiásticas a respeito da Universidade Bob Jones. Um dos cidadãos não hesitou em exprimir a sua atitude, perante a instituição. Era um negociante de fazendas, do centro comercial, e membro de uma das igrejas baptistas da cidade. Natural de Greenville, ali tinha vivido toda a sua vida, e seu filho e sua filha frequentavam a Universidade da Carolina do Sul, em Colúmbia.

Nós não precisávamos daquela escola de Bobby Jay, aqui, em Greenville, nem dela precisamos agora. Eles fizeram pressão sobre pessoas moribundas, para os contemplarem nos seus testamentos; e mendigaram não sei quantos milhões de dólares a outras populações dos Estados Unidos, para que pudessem transferir a escola de Tennessee para aqui e erguer todos esses edifícios amarelados, naquela parte da cidade. E o que têm para mostrar não é uma real universidade mais do que o é uma escola paroquial, pertencente a uma igreja de Santidade, a vinte milhas da cidade, no cruzamento enlameado das estradas.

Nós já possuímos uma das melhores universidades, aqui, em Greenville, como ainda hoje é. Furman é uma das boas universidades, comparável a outra qualquer, e aquele dinheiro devia ter sido aplicado nela. E Furman é uma das muitas que existem na Carolina do Sul. Há a universidade ãc Estado, a, Clemson, a Citadel, a Presbiteriana, e outras.

Nós estaríamos muito melhor se Bòbby Jay tivesse ficado onde estava, em Tennessee, em vez de ser transferida aqui para Greenville, forçando muita gente a sentir-se enjoada, por viver com ela na mesma cidade. Ela pertence aos Cumberlands, ou coisa parecida, onde estaria ”bem com os restantes clamorosos evangelistas da Bíblia. E o que ensinam ali em Bobby Jay — pregar, rezar, ler a Bíblia. Que educação é essa para os jovens de hoje.

O meu filho disse que não frequentaria o liceu naquele lugar, e não o censurei por isso. Não podem jogar a bola, nem fumar, nem podem olhar para as raparigas, excepto de longe. Não se podem dosear os alimentos com bastante salitre, para manter a mente de um rapaz saudável apartado das raparigas. E quando não podem encontrar raparigas, desesperam-se e fazem outra coisa que é realmente reprovável. Ora, como é que um homem de senso pode obrigar o filho a ir para um lugar desses? E a filha, a mesma coisa.

Não vejo actualmente muitos estudantes de Bobby Jay na cidade. Dantes, vinham aqui rezar nas esquinas das ruas e pedir para as missões. Não sei de onde lhes vem o vestuário, porque não compram nada na minha loja, como o fazem os estudantes de Furman. Parece-me que usam camisas e calças de lã, que a escola lhes vende, ou recebem vestuário em segunda mão, remetido de qualquer parte. Uma coisa que ouvi dizer foi que Bobby Jay não permitia que os estudantes comprassem roupas na cidade, porque não queria que fizessem quaisquer compras em lojas judaicas.

Ouvem-se muitas histórias acerca do que acontece em Bobby Jay, mas nunca se sabe até que ponto as histórias são verdadeiras, porque as pessoas que dirigem a escola emudecem, quando se trata de algum escândalo. Tenho ouvido falar acerca de rapazes que saltam pelas janelas para os dormitórios das raparigas e são apanhados, mas não sei em que medida é verdade.

Uma coisa de que ouvi falar, e que fizeram calar, não há muito tempo, foi acerca de um dos professores e uma rapariga estudante. Podia ter acontecido, em qualquer escola, onde procuram afastar as raparigas dos rapazes, e não sei porque é que não havia de acontecer em Bobby Jay.

O amigo que me contou o caso é um marceneiro que tem feito obras, ali há vários anos, e que se relacionou com um dos professores que vive na universidade. Conheceram-se tão bem, que costumava ir ter com o professor depois do trabalho, e sentavam-se a conversar. O professor era casado e tinha alguns filhos. Era professor em Bobby Jay há quatro ou cinco anos.

Da última vez que lá foi efectuar um trabalho de marceneiro, verificou que o professor tinha sido demitido e já lá não estava. Alguém que lá trabalhava contou-lhe tudo.

O professor demitido andava a namoriscar uma das bonitas raparigas estudantes e oferecia-lhe caixas de bombons e coisas como essas. Tinha um pequeno escritório num dos edifício de aulas e mudara a fechadura da porta, guardando para si a única chave. Então, já sabe o que aconteceu — o que era de esperar.

A rapariga engravidou e não tardou que uma das vigilantes ou governantes descobrisse o caso, obrigando a rapariga a revelar tudo. Naturalmente, a mulher foi direita a um dos dirigentes de Bobby Jay e contou a história da rapariga e do professor.

Bem., uma hora depois, embarcaram a rapariga para a, terra dela, ou para outro sítio, e marcaram prazo até ao pôr do Sol, para o professor arrumar a bagagem e sair dali. Ninguém sabe o que a mulher dele lhe fez, se é que tomou alguma atitude. De qualquer modo, o escândalo foi abafado e só pouca gente sabe do caso, como eu.

Qualquer que seja a nossa opinião, algum bem deve provir daquela escola, ainda que encham o país, todos os anos, com os clamores de pregadores bíblicos e evangelistas.

É por isso que eu aplaudo os de Bobby Jay por manter os seus rapazes fora das ruas, de noite, longe da outra rapaziada que, nesta cidade, circula ruidosamente pelas ruas, nas suas motos e carros. É difícil, garanto-lhe, a um jovem saudável ser drogado com salitre, ou coisa que o valha. Mas o certo é que torna-nos a vida fácil, para nós, cá fora, pois não corremos o risco de ser atropelados, nem surpreendidos com um assalto à mão armada, na loja. E ainda mais. As coisas correm melhor, na cidade, para os pais que têm filhas jovens. É caso para estarmos gratos, se não há qualquer outra razão para a nossa gratidão.

 

Talvez tenha acontecido muitas vezes, mas apenas sei que, um dia, meu pai estava tão exasperado que quase rogou pragas, como muita gente o faria nas mesmas circunstâncias. Mas não fez mais do que resmungar demoradamente, nada dizendo que outros pudessem ouvir.

Se i. S. não tivesse refreado a sua indignação, e se profanasse publicamente o seu ministério, teria de abandonar para sempre o púlpito. Nesse caso, deixaria de realizar o seu ideal, ao assumir o cargo de ministro.

Contudo, assim como se tinha abstido de o fazer muitas vezes, antes, quando surgia alguma questão especialmente irritante, no seio da igreja, não se manifestou a ponto de pedir a demissão, como imposição de consciência. No entretanto, considerando o q-a tinha acontecido, qualquer ministro seria isento de culpa por usar as expressões indignadas que lhe eram familiares.

O que sucedeu, nesse Verão dos anos 20, na pequena cidade de Jórgia, onde I. S. era pastor da igreja da A. P. R., foi que os pastores das outras duas igrejas, a baptista e a metodista, haviam sido facilmente persuadidos, pelo agente de negócios de um evangelista viajante, a concordar em cooperar com o que devia ser uma campanha de revivescência comunitária, não-sectária, abrangendo as várias seitas protestantes. A cooperação que ele pedia era a promessa de os três pastores não realizarem serviços divinos nas suas igrejas durante a cruzada evangelística. O objectivo da revivesvência, conforme o relatou o agente do evangelista, era conquistar novos convertidos, inspirar os bons frequentadores das igrejas e intimidar os transviados.

Todos os comerciantes se entusiasmaram com a perspectiva de uma campanha de revivescência que ia durar uma semana. Alguns deles possuíam estabelecimentos de fazendas e falaram com I. S., dizendo que o movimento estimularia a compra de fatos e vestidos pelas pessoas que precisassem de novo vestuário a usar para os serviços religiosos. Os gerentes de dois estabelecimentos afirmaram que seria uma grande ajuda nos seus negócios, e também os donos de lojas de ferramentas e mobílias disseram que uma campanha prolongada de revivescência, na cidade, acarretaria melhor negócio do que o usual nessa época do ano.

A proposta feita pelo agente do evangelista era que os serviços evangelísticos se realizassem duas vezes por dia, num lugar central de reunião, e que os convertidos escolhessem livremente o filiarem-se numa das três denominações protestantes. Dizia que o produto das colectas seria dividido em partes iguais pelos evangelistas e pelas três igrejas.

Quando ele foi abordado, pela primeira vez, pelo agente do evangelista, que chegara três semanas antes para os acordos a realizar e para os arranjos prévios, I. S. disse que os membros da igreja dos Presbiterianos Reformados Associados não eram melhores do que os membros de qualquer outra igreja, mas que faziam já o melhor que podiam. Acrescentou que, se os membros da sua igreja tivessem necessidade de maior estímulo religioso, ele era capaz de lhes atiçar o ânimo.

Depois de falar durante uma hora, e fracassando no propósito de convencerem I. S. a cooperar com o seu plano de revivescência, o agente de negócios retirou-se dali. Porém, voltou mais tarde, com os dois outros ministros. Os três pediram e imploraram a I. S., frisando, primeiro, que havia necessidade religiosa de uma campanha de Verão, de revivescência, na cidade, e afirmando, depois, que a sua persistente oposição exercia uma influência retardadora na religião, por todo o Sul, e dificultava, também, o trabalho dos missionários vindos de fora.

O argumento final dos três homens era que a campanha, que se realizaria na última semana de Julho, coincidiria com a época de descanso nas quintas e que era esse o único período do ano em que os agricultores podiam afastar-se dos campos e trazer as suas famílias de manhã cedo para o primeiro serviço, ficando até à noite, para o segundo serviço. O gerente de negócios possuía uma estatística que mostrava haver maior número de convertidos, de famílias de agricultores, durante o mês de Julho, do que em qualquer outro mês do ano.

Cedendo, relutantemente, I. S. disse-lhes que os argumentos deles o não deixavam convencido, mas, na perspectiva de haver gente da comunidade que poderia aproveitar a semana de revivescência, acabava por consentir que a igreja da A. P. R. cooperasse com o evangelista e com as outras duas denominações.

  1. S. pediu então que mostrassem a fórmula escrita do acordo, para conhecer quais os arranjos práticos para a campanha de revivescência.

O agente do evangelista disse que todos eles eram bons cristãos e que seria uma afronta para o evangelista, bem como para o próprio cristianismo, fazer arranjos para uma revivescência religiosa, como se fosse um vulgar negócio comercial.

Ele disse a I. S. que era costume, no campo evangelístico, dar-se a um evangelista experiente a liberdade de dirigir uma campanha de revivescência como julgasse mais adequado, de modo a dedicar todo o seu tempo e a sua energia à salvação das almas para Jesus Cristo, sem ter que preocupar-se com negócios mundanos.

Entre a meia-noite e o romper da aurora da manhã de segunda-feira, da última semana de Julho, vários camiões bem carregados chegaram à cidade, estacionando no terreno vago onde devia realizar-se a reunião de revivescência. O primeiro serviço foi anunciado para as doze horas da manhã, em ponto.

As primeiras pessoas da cidade a avistarem os camiões pesados estavam convencidas de que tinha havido qualquer confusão. Cada um dos camiões estava pintado com as cores vermelho-vivo, amarelo e verde, com figuras de tamanho natural de mulheres gordas, homens magros, encantadores de serpentes, bailarinos, cow-boys e índios.

Contudo, quando os motoristas e seus ajudantes começaram a descarregar os camiões ao pôr do sol, tornou-se evidente que não se tratava de uma montagem carnavalesca.

Os homens disseram que a sua companhia de Carnaval dera de arrendamento ao evangelista a grande barraca, as cadeiras de dobrar, dois pianos, e demais equipamento, firmando com ele um contrato para, uma vez por semana, se deslocarem de uma cidade para outra. Disseram que, depois de erguer a tenda e amarrar as estacas, e distribuir as cadeiras de dobrar, e o estrado, retirar-se-iam para Macon, só regressando no domingo seguinte, à noite, para desarmar a barraca e carregar tudo para a localidade seguinte.

A enorme tenda cinzenta foi erguida e amarrada pelas oito da manhã e, pouco depois, vários camiões carregados com serradura chegavam e despejavam a sua carga à entrada principal da tenda. Vários negros começaram então a espalhar a serradura com as pás, sobre o chão poeirento.

Quando a serradura ficou espalhada, as cadeiras de dobrar foram postas dentro da barraca e dispostas em fila, com quatro corredores para facilitar o movimento das pessoas. Um estrado de madeira, com cerca de trinta pés de comprido e vinte pés de fundo, foi montado e fortemente aparafusado, e aos cantos foram colocados dois pianos. A última coisa a ser trazida foi um púlpito invulgarmente largo e ornamentado, munido de uma prateleira, para pousar uma caldeira com água e copos.

As nove horas, vários electricistas começaram a despejar arames sobre a plataforma, estendendo os fios de uma estaca para outra; e, dentro de uma hora, os globos de luz foram enroscados nos encaixes.

Todo o trabalho ficou completo ao tempo em que começaram a chegar as primeiras pessoas, à procura dos melhores lugares dentro da tenda. Todos os camiões de Carnaval tinham regressado a Macon, excepto um, pequeno, que foi colocado por trás da tenda, mas que era visto por quem ia chegando. Um homem e sua mulher abriram a porta traseira do carro e montaram um pequeno balcão, protegido do sol por um dossel vermelho, branco e azul. Dentro em breve vendia-se ali soda, cachorros quentes e milho assado.

O evangelista, que tinha reservado todos os oito quartos no último andar do hotel de três pisos, chegara à cidade de noite, acompanhado de onze pessoas da sua equipa. Todos dormiram até tarde, nessa manhã, mas, após um rápido pequeno-almoço no hotel, percorreram os dois blocos da rua e penetraram na tenda, através de uma abertura traseira, às onze horas. Havia, dentro da tenda, onze cadeiras de lona, e pouco mais de metade delas estava ocupada, quando se deu início à primeira sessão.

As doze pessoas tomaram imediatamente os habituais lugares no estrado. O evangelista e o seu secretário, que era também o evangelista auxiliar, sentaram-se em cadeiras por trás do púlpito. Três jovens raparigas, cantoras, estavam de pé, a um canto do estrado, e, atrás delas, estavam os quatro ajudantes que eram também cantores. O regente ergueu os braços, apontando com o dedo para cada um dos pianistas, e o primeiro dos quatro hinos foi cantado.

Logo que o hino terminou, o evangelista, atarracado e robusto, ergueu-se energicamente, encaminhando-se para o púlpito. Tinha quarenta e cinco anos, usava um fato descaído e sapatos brancos, empoeirados. Antes de falar, bateu com o punho no púlpito, três vezes, e ergueu ambos os braços para cima da cabeça, murmurando, sorridente, uma saudação inaudível, dirigida a todos os presentes no interior da tenda.

A primeira coisa que disse, após momentos de silêncio, foi que ia mandar já toda a gente para casa, a fim de que, em obediência ao comando de Deus, convidassem todos os seus amigos, vizinhos e parentes para o serviço das sete horas da tarde, de modo a ocuparem todas as cadeiras dentro da tenda.

Depois de uma pausa significativa e um repetido abanar da cabeça, disse que acabara de mentir e que pediria a Deus que os perdoasse. Anunciou, seguidamente, que antes de deixar que se levantassem, para se retirarem, ia proceder a uma reunião de convívio, para que todos, no interior da tenda, se sentissem felizes pelos próximos dias e noites da semana de revivescência.

Convidou, então, os presentes a apertar a mão ao vizinho do lado. Quando se procedia aos apertos de mão, bateu com o punho no púlpito, gritando que estivessem quietos.

Cobrindo os olhos com as mãos, num gesto envergonhado, o evangelista disse que se havia esquecido de que os que estavam sentados nas filas de cadeiras só sabiam apertar as mãos aos vizinhos e não aos outros. Chamando os quatro escuteiros e as três raparigas cantoras, mandou que fossem trocar apertos de mão com todos os presentes.

Quando a cerimónia terminou, quase meia hora havia passado desde que o serviço começara, e o evangelista sentou-se e limpou o rosto com o lenço. O evangelista assistente assumiu então a direcção e fez sinal para o regente musical. Primeiramente, ouviu-se um dueto de piano, depois as três raparigas ergueram-se para cantar.

As raparigas envergavam vestidos curtos, cor-de-rosa, feitos de seda tão fina que as suas combinações pretas pareciam estar a ser usadas do lado de fora, e não do lado de dentro. O ritmo do piano crescia com cada hino, até que, finalmente, as raparigas começaram a balouçar e a ondular os braços, como que ao compasso de música de jazz ou de música folclórica.

Isto aconteceu quando a música atingiu o auge e os quatro ajudantes desceram para o meio dos assistentes, a fazer a colecta. Os escuteiros usavam, uniformemente, sapatos brancos, calças pretas, camisas brancas, e gravatas escuras. Em vez de levarem pratos ou cestos para o peditório, transportavam longas estacas, de cuja extremidade pendia um saco encarnado de veludo, do tamanho e formato de um saquinho de açúcar.

O topo dos sacos de veludo tinha uma abertura bastante larga para receber o dinheiro, mas pequena de mais para a mão de uma pessoa poder penetrar. A razão do uso desse receptáculo era evitar que a pessoa lançasse para dentro meio dólar, ou mais, de troco, como estaria acostumado a fazer numa igreja vulgar, onde se usam pratos ou cestos para a colecta.

Feito o peditório, e ocultos os sacos por trás do estrado, as três raparigas cantaram mais um hino e, depois, o evangelista levantou-se e ergueu os braços sobre a cabeça, enquanto dava uma breve bênção.

Imediatamente a seguir, todos os que estavam no estrado saíram através da abertura à retaguarda da tenda, tomando o caminho mais curto para o hotel.

O serviço, nessa tarde, às sete horas, que o evangelista anunciou como sendo um princípio de calor religioso, iniciou-se solenemente com uma longa oração pelo evangelista auxiliar que pediu a Deus perdão para todos os pecadores, onde quer que estivessem no mundo.

O evangelista tinha mudado de vestuário, usando agora um fato de linho branco. O seu assistente e o regente musical passaram a usar fatos escuros, para a sessão da tarde, e todos eles transpiravam e limpavam o rosto. O calor de Julho abafava, dentro da tenda, e os assistentes refrescavam-se, abanando os livros de hinos ou outros objectos.

As três raparigas, usando agora vestidos de fina seda preta, e combinações brancas, cantaram vários hinos, e depois o evangelista pregou um breve sermão, descrevendo a beleza do Céu. Quase todos, de entre os oitocentos lugares da tenda, foram ocupados e os quatro ajudantes levaram muito mais tempo a completar o peditório, do que de manhã.

Ao terminar, o evangelista só conseguiu que nove pessoas avançassem para ajoelhar sobre a serradura, diante do púlpito, para confessarem os seus pecados e pedirem perdão. Ele aceitou, rapidamente, as suas almas para Jesus Cristo, e depois, com voz trémula, disse que estava muito desiludido por tão poucos terem comparecido para a sua salvação, dado que ele viera ali, por expressa ordem de Deus, para salvar as almas de todos os pecadores da cidade.

O evangelista manteve-se em silêncio no púlpito, durante momentos, até as lágrimas lhe encherem os olhos e lhe reluzirem nas faces, sob a luz brilhante. Depois, ergueu os braços, a sua voz soluçou, e disse que estava tão embaraçado perante Deus por ter salvo apenas nove almas que, nessa noite, ele voltaria imediatamente ao hotel para se pôr de joelhos e implorar a Deus perdão pelo seu pecado.

Então, deixando no seu lugar o evangelista auxiliar, para dar a bênção, correu através do estrado e desapareceu através da abertura da tenda.

Ira Sylvester tinha assistido a vários dos serviços revivalistas, durante a semana, e no sábado à noite, foi ao último deles. Antes de entrar na tenda, para se sentar na última fila de assentos, como sempre o fazia, dirigiu-se ao balcão dos refrescos, por trás da tenda, e comprou uma garrafa de limonada e um cachorro quente.

Enquanto ali esteve, de conversa com o homem e sua mulher encarregados do negócio, com lucros a partilhar com o evangelista, os serviços de revivescência iniciaram-se com sonora música de piano, e todos convergiram para o interior da tenda. O homem por trás do balcão reconheceu meu pai, e perguntou-lhe se tinham feito contas e divisão dos donativos recolhidos durante a semana. Ira Sylvester disse que não, mas que tinha sido combinado ele e os dois ministros encontrarem-se com o evangelista no hotel, logo após o serviço final, nessa noite.

Ira Sylvester não voltou ao interior da tenda, de noite. A mulher do encarregado começou a falar acerca do processo comercial usado pelo evangelista, observando como era difícil eles receberem o que consideravam a sua quota legítima nos lucros de exploração do balcão. Disse ela que o auxiliar do evangelista vinha ao balcão duas vezes por dia tirar o dinheiro da gaveta do cofre para o levar ao hotel, sem o contar na sua presença. Tinha a certeza de que estavam a ser ludibriados, mas eram incapazes de fazer qualquer coisa, pois haviam assinado um acordo por seis meses, que dava ao evangelista o direito exclusivo de proceder à divisão dos lucros.

Quando Ira Sylvester ia a retirar-se, o homem por trás do balcão disse esperar que os três ministros tivessem celebrado um acordo firme, que lhes permitisse receber a sua exacta parte do dinheiro colectado durante a campanha de revivescência. A última observação que fez a Ira Sylvester foi que, se fizessem contas claras, colheriam muito melhores resultados do que outros ministros, nalgumas cidades de Jórgia e de Alabama.

Depois de dar uma volta a observar as três sombrias igrejas e a escutar a música, era tempo de Ira Sylvester voltar ao hotel. Os camiões carnavalescamente pintados, de Macon, tinham chegado para desmontar a tenda e mais equipamento, para ser levado para a cidade seguinte, e eram cerca de dez horas quando a campanha terminou.

O evangelista saiu apressadamente da tenda, tomando o caminho mais curto para o hotel, e estava já no andar do seu quarto, quando meu pai e os dois ministros se encontraram no vestíbulo do hotel. Depois de subirem as escadas até ao terceiro andar, bateram à porta dele.

Como Ira Sylvester contou, mais tarde, podiam ouvir vozes no quarto, mas houve uma longa espera antes de a porta ser, finalmente, aberta.

A cama estava salpicada de pedaços de papel e vários saquinhos de dinheiro estavam em parte ocultos por trás de uma das cadeiras. Tanto o evangelista, como o seu ajudante, apertaram as mãos e convidaram os três a sentarem-se. O evangelista, tirando o casaco branco, húmido de suor, sorriu, pedindo desculpa pela pressa que levava de partir para a cidade seguinte. Depois, a expressão radiosa do rosto desvaneceu-se, e começou a abanar a cabeça, melancolicamente.

Sentou-se na borda da cama, tapando a cara com as mãos, e o seu ajudante começou a ler uma folha. Era evidente que não havia o propósito de dividir-se o dinheiro.

Depois de especificar várias despesas, tais como as do aluguer da tenda e do equipamento, o transporte do material pela empresa de Carnaval, os salários das doze pessoas, quartos e refeições do hotel, e outras, o ajudante declarou que era de lamentar que as receitas mal cobrissem as despesas. Ao terminar, ocupou-se a recolher, com tristeza, os papéis, dentro de uma pasta, e os ministros ficaram hesitantes em conferir a exactidão das contas.

Ira Sylvester disse que, ao saírem do quarto, o evangelista lhes afirmara que a campanha tinha sido um êxito religioso e que tinha salvo muitas almas para Jesus Cristo, esperando voltar no Verão seguinte, para dirigir uma cruzada que fosse também um êxito financeiro. Depois disse que, uma vez que pessoalmente não tinha ganho dinheiro, estava certo de que as três igrejas pagariam as contas que ele não tivera tempo de liquidar antes de deixar a cidade. Esperava, sobretudo, que a factura da companhia de electricidade não fosse excessiva.

Na manhã seguinte, sempre a falar para os seus botões, Ira Sylvester percorreu a rua, até o terreno vago onde as sessões haviam decorrido. A única coisa que restava era a serradura pisada sobre o chão.

Resmungando sempre, mas sem nada dizer em voz alta, avançou através da serradura, batendo os pés com indignação. Ao chegar a meio, parou e deu pontapés na serradura até o chão ficar desnudo. Foi então que viu uma moeda vistosa, de meio dólar, a reluzir ao sol, e baixou-se a apanhá-la.

Estava mais irritado que nunca, mas sorriu ao pensar que era menos meio dólar que o evangelista levava daquela cidade. Depois de contemplar a moeda, por instantes, disse que não a queria como recordação do que tinha acontecido e que ia sorteá-la entre os outros dois ministros.

Afirmou que isso serviria para o ministro vencedor se lembrar de que nunca mais devia tentar persuadi-lo, outra vez, a fazer outro acordo com qualquer evangelista ambulante.

 

Nunca fui capaz de determinar a extensão da crença de meu pai, se é que tinha alguma, em Deus e no protestantismo tradicional, e, é claro, nunca lhe fiz perguntas sobre isso, assim como ele nunca me fez perguntas acerca da minha própria crença. Eu sabia, por associação de ideias e por observação, que ele nem praticava, nem pregava o que vulgarmente se chamava a religião dos velhos tempos, e era óbvio, talvez deixando que a sua conduta servisse de exemplo, que me queria dar a oportunidade de criar as minhas opiniões sobre isso.

Nunca me mencionava em particular Deus ou Cristo, e no púlpito as suas referências directas a Deus e a Cristo eram expressas simbolicamente, com o fim de inspirar um comportamento ético entre os membros da Igreja. Várias vezes me dissera que não importava quem realmente tinha criado ou reunido os Dez Mandamentos — judeus ou gentios, cristãos ou infiéis — nenhum código social mais perfeito foi elaborado para a conduta ética dos seres humanos. Dizia que qualquer pessoa que cumprisse os mandamentos não precisava de ler a Bíblia, para ser um bom cidadão.

Era inevitável que essa filosofia iria causar conflitos, de vez em quando, entre I. S. e indivíduos ou grupos, das igrejas em que ele exercia o cargo, permanente ou temporário, de pastor. Esta oposição aborrecia-o, e, em especial, quando criticado por não pregar a religião dos velhos tempos, os seus comentários eram sempre lacónicos. Contudo, mesmo quando o ameaçavam com a suspensão do seu vencimento anual de seiscentos, ou mil e duzentos, ou dois mil e quatrocentos dólares, ele resistia com êxito a todos os esforços para o levarem a conformar-se com as práticas preponderantes do protestantismo no Sul.

Assim era na época em que o renome de amado pastor podia ser alcançado somente se este visitasse os filiados, para com eles rezar nas suas próprias casas, lembrando-lhes, de vez em quando, a interpretação literal da Bíblia, e condenando vivamente todos aqueles que tivessem opiniões diversas em matéria de crença e prática religiosa.

Dado que I. S. não fazia qualquer esforço para cumprir estas regras do protestantismo fundamentalístico, mas, em vez disso, dedicava a maior parte do seu tempo, nos anos 20 e 30, a algum projecto humanitário, em benefício de membros ou não membros, brancos ou negros, era, por várias vezes, acusado de não ser ortodoxo. Mais do que isso, não era pouco vulgar acusarem-no, por trás das costas, de heresia, imoralidade, transgressão de deveres, e advogado da igualdade racial e de princípios socialistas e comunistas. Quando lhe davam conhecimento dessas acusações, ele observava que iria perder a simpatia de alguns homens, mas que sempre havia de confiar em si próprio.

Os críticos mais persistentes de meu pai eram, usualmente, os membros da igreja que se queixavam de que ele apresentava sempre uma desculpa para não participar dos jantares familiares de domingo, a que ele chamava encher o papo.

Eram reuniões frequentes, que se realizavam em grupos de vinte, ou vinte e cinco, ou mais, parentes, de alguma família importante, congregados para jantares de duas ou três horas, que usualmente incluíam frango assado, presunto, bife, pãezinhos, saladas, numerosos pratos acessórios, pudins, qualidades diversas de empadas, sorvete, doce de coco e de chocolate. I. S. dizia que não tinha apetite para uma refeição, quando conhecia dúzias de famílias de trabalhadores brancos e negros que se alimentavam, duas ou três vezes por dia, apenas de pão de trigo e batatas, e que ficaria enjoado se abençoasse aquelas reuniões jantantes.

  1. S., provavelmente, nunca usava a mesma linguagem rude quando recusava um convite para alguma refeição familiar desse tipo, mas dizia, em particular, que, se estimulasse os glutões com a sua presença, isso significaria que teria de fazer, em breve, mais um funeral e confortar mais uma viúva.

Em muitas igrejas havia um grupo de membros mais idosos que preenchiam os lugares no Amen Corner, homens esses que estavam acostumados a soltar piedosas exclamações de aprovação, em voz alta, quando o ministro citava passagens familiares da Bíblia.

Quando i. S. deixava de satisfazer os membros do Amen Corner com as esperadas citações rotineiras à maneira antiga, não lhes dando portanto a oportunidade de realizarem a sua liturgia de amen-amen-amen, sucedia que saíam da igreja, ofendidos, e rabujando, a ponto de não falarem com ele à saída. Quando queriam manifestar a sua completa desaprovação a I. S., eles contavam ostensivamente as moedas — às vezes, notas de dólar — mas lançavam no prato da colecta apenas um níquel.

As pessoas da igreja por quem I. S. nutria verdadeira simpatia e às quais queria prestar ajuda eram aquelas que tinham mergulhado tão fundo na fé religiosa que pouco ou nada mais lhes interessava. Em regra, eram viúvas de meia idade e de idade avançada, que viviam sós, ou partilhavam de um quarto com um filho ou uma filha, e que haviam perdido a vontade de participar na vida quotidiana da comunidade. O seu único interesse parecia ser ler a Bíblia e publicações religiosas, várias horas por dia, assistir às reuniões de oração, às da sociedade missionária e da escola paroquial, aos serviços religiosos, gostando que o pastor estivesse presente, e rezasse por eles durante longos períodos da semana.

Quando i. S. conversava sobre isso, dizia que eram pessoas ansiosas, e que gostava de as ajudar, embora soubesse que precisavam de longo tratamento de psiquiatras para as arrancar do fanatismo e restituí-las à vida normal e útil. Não é a gente do povo que deve ser condenada pela sua atitude; mas sim os ministros e as igrejas, por terem encorajado os excessos religiosos, devendo ser compelidos a fazer algo para curar as vítimas.

  1. S. dizia que não julgava ser pernicioso para ninguém crer em Deus, ou em qualquer coisa digna de venerar, uma vez que fosse racional na sua crença e reconhecesse que ela tinha as suas limitações. O que ele deplorava era a política de certas denominações protestantes em encorajar e, até, instruir os seus membros no sentido de os levar à prática de extremismos fanáticos, como processo de demonstrar a sua crença em Deus.

Sentia que, se tais demonstrações eram necessárias para se obter a salvação, os membros de todas as igrejas dos Estados Unidos deviam apresentar a glossolalia e os ministros de todas as denominações deviam ser obrigados a martelar as suas próprias cabeças com um malho, mostrando assim que são sinceros a respeito daquilo que pregam.

Nos anos 20 e 30, numa pequena cidade da Jórgia, o ministro protestante era frequentemente chamado a actuar como agente de bem-estar, conselheiro de matrimónios, consultor financeiro, árbitro entre famílias feudatárias, consultor psiquiátrico, e juiz para julgar da moralidade ou da imoralidade de determinado comportamento. Ira Sylvester dizia que estava disposto a ser um pau para todas as colheres, quando necessário, mas deixava de colaborar quando o chamavam para fazer curas religiosas.

Uma das vezes, meu pai foi severamente criticado, não pela sua atitude respeitante à cura pela fé, mas pelo padrão moral. Aconteceu isso quando uma comissão de mulheres do clube local de leitura e letras se dirigira ao chefe da polícia, a pedir-lhe que prendesse uma divorciada, de trinta anos de idade, por conduta imoral. Era conhecida, na cidade, como prostituta, há vários meses.

O chefe hesitou em prender uma mulher que vivia na zona residencial do norte da cidade, quando muitas outras, tanto brancas como negras, que viviam no sul, tinham sido toleradas como prostitutas, há muitos anos. Como a jovem mulher pertencia à igreja de Ira Sylvester, embora tivesse deixado de assistir aos serviços religiosos desde o seu divórcio no ano anterior, o chefe veio consultá-lo, perguntando-lhe como devia agir.

O chefe disse ter conhecimento de que alguns maridos das mulheres queixosas visitavam a divorciada à noite, pois tinha vigiado a casa dela numerosas vezes, mas que, na sua opinião, os homens apenas faziam a sua vida social, sem quebra de qualquer lei. O que ele queria era evitar ter de entrar à força, naquela casa, em busca de provas que confirmassem a queixa da comissão clubista.

Afirmando que se sentia em parte responsável pelo acontecimento, Ira Sylvester disse ao chefe que já tinha ouvido boatos sobre a jovem mulher, e era, portanto, sua obrigação ter-se avistado com ela, procurando falar-lhe sobre o seu modo de vida, antes que surgisse a queixa das mulheres associadas. Pediu, então, ao chefe que esperasse um pouco mais antes de tomar qualquer medida, dando-lhe a oportunidade de ver o que podia conseguir.

O chefe da polícia andava preocupado com o cargo para o qual fora nomeado e que exercia já há dez anos, receando perdê-lo. Contudo, disse que aguardaria mais uns dias, a ver o que Ira Sylvester poderia fazer. A reunião mensal do presidente da câmara e conselho municipal seria daí a uma semana e era então que devia comparecer e justificar o que tinha feito, ou não, a respeito da queixa do clube das mulheres.

A jovem mulher, de boa aparência e bem vestida, não tinha filhos, e tinha vivido só, durante quase um ano, numa moderna casa de tijolo, a norte da cidade. A casa fora-lhe atribuída no acordo do divórcio, e ela recebia uma pequena renda de uma quinta. O seu ex-marido tinha saído da cidade, e os seus pais e outros parentes viviam num outro condado.

Ira Sylvester encaminhou-se para a casa da divorciada pela primeira vez, de tarde. Ao anoitecer, circulavam pela cidade vários boatos acerca da sua visita. Uma das versões era que ele a tinha ido ver de dia, para evitar ser visto ali de noite por outros homens. Quando lhe falaram nesses rumores, ele observou que em parte era verdade, porque tinha ido ali propositadamente de dia, precisamente para não embaraçar ninguém.

Durante a sua visita, que durou cerca de duas horas, a jovem mulher, que chorava, falou da sua solidão e da sua infelicidade. Quando ia a explicar porque é que seu marido se divorciara dela, apenas pôde dizer que ainda gostava dele e que não cometera qualquer infidelidade na sua vida de casados e que a culpa fora dela, por o culpar de não terem filhos. Disse ela que durante um ano, antes do divórcio, lhe dizia constantemente que nunca seria feliz com ele, a não ser que tivessem filhos, e culpava-o a ele. Disse que foi essa a única razão por que ele se divorciara dela, abandonando a cidade.

Quando ele lhe perguntou acerca dos rumores que corriam sobre os homens que ela entretinha em sua casa, respondeu que realmente recebia quase todas as noites alguém em casa, porque se sentia só e deixara de ter a estima das mulheres que conhecia, sendo essa companhia a sua única distracção. Disse que as visitas masculinas a reconfortavam muito; mas, apesar disso, muitas vezes pensava em suicidar-se. Ira Sylvester contou que ela não falou em receber dinheiro dos homens que a visitavam; nem ele lhe fez perguntas nesse sentido. O importante era achar um meio de a tirar daquela situação deprimente.

Foi vê-la, de novo, duas vezes, nos dias seguintes, o que foi motivo de mais boatos a seu respeito, incluindo uma acusação de imoralidade, e, ao findar da semana, ele falou por telefone com o marido dela, acabando por o convencer a regressar para junto dela. Fez-lhe uma sugestão: que, se voltassem a casar-se, deviam adoptar uma criança.

Muito depois de terem casado de novo, indo viver para Atlanta, alguns membros do clube de leitura e letras continuaram a criticar Ira Sylvester pelo que fizera, ajudando uma mulher que se dedicara à prostituição a casar de novo com o ex-marido e fingir regressar a uma vida digna. O que quer que pensasse acerca dessas críticas, nunca fez qualquer comentário, reservando para si as suas próprias ideias.

Uma das situações mais difíceis que meu pai teve de enfrentar, entre os anos 20 e 30, surgiu em resultado do comportamento pessoal de um rapaz solteiro, de vinte e oito anos, que ministrava o ensino na escola paroquial da sua igreja.

Foi quando Ira Sylvester afirmou que devia exigir-se a todos os ministros uma formatura médica, ou uma educação especializada, equivalente, em determinado campo, antes de lhe ser concedida a formatura em teologia e a consequente responsabilidade de pastor, a não ser que a pessoa em questão fosse excepcionalmente dotada com a sabedoria de Salomão. Disse que, se lhe fosse dado começar de novo, estudaria direito ou medicina, antes de pensar em estudar para ministro. E, mais uma vez, parecia, pelo tom da sua voz, que lamentava não ter escolhido uma outra profissão para a sua vida.

O jovem solteiro era membro de uma rica família de proprietários e vivia com seus pais, e com uma irmã solteira, mais velha, numa das grandes casas da cidade, com suas típicas colunatas. Era alto, simpático, de boas maneiras, e a família dele orgulhava-se dos seus antepassados que, de geração em geração, provinham dos pioneiros da Carolina do Sul e da Jórgia. Tinha numerosos primos em Charleston e Savannah, e possuía um curso superior, trabalhando como caixa no estabelecimento bancário do pai.

A irmã dele, de trinta anos, tinha também o curso secundário e era solteira. Como irmão e irmã, filhos únicos, iam juntos aos casamentos, festas e reuniões sociais, e sentavam-se na igreja, todos os domingos, nas bancadas da família.

Talvez tivesse acontecido diversamente no colégio, mas desde que regressaram a casa, nem ele nem a irmã jamais tiveram qualquer namoro. O que mais espantava o povo da cidade era que a jovem mulher era invulgarmente bela, usava vestidos da última moda, e possuía um feitio simpático; mas era evidente o seu desinteresse em achar um marido. Muitas vezes fora requestada, mas apresentava sempre desculpas para não aceitar namoro.

Quanto ao irmão dela, Ira Sylvester, disse que nunca pensara que houvesse qualquer coisa de anormal no facto de o rapaz dizer que gostaria de deixar de ensinar na aula de adultos da escola dominical, preferindo ensinar uma das aulas de jovens. Arranjou-se que ele tomasse a seu cargo uma aula infantil, dos sete aos dez anos de idade, onde ele deu lições sobre a Bíblia durante um mês.

Ao fim de um mês, disse que preferia ensinar crianças mais crescidas. Ira Sylvester pediu ao superintendente da escola dominical que reorganizasse o programa, de modo a que o jovem pudesse encarregar-se de uma aula de jovens, entre os doze e os quinze anos. Na primeira manhã de domingo em que tomou a seu cargo a nova aula, ele pediu às quatro raparigas, que faziam parte dela, que se retirassem para uma outra aula. Ninguém soube porque é que tinha decidido isso, mas não se fez qualquer comentário, e, durante as quatro semanas seguintes, deu aulas aos rapazes cujas idades variavam entre os dez e os quinze anos.

Decorria então o Verão. Não havia piscina na cidade, e o lugar mais próximo, onde se poderia nadar, era o lago, no recinto de uma fábrica, a cerca de quatro milhas de distância. No tempo quente de Julho e Agosto, muita gente se dirigia a esse lago, e, com frequência, grupos de veraneantes se juntavam ao ar livre, na frescura da tarde, depois do sol-pôr.

Quando o jovem professor da escola dominical convidou a sua aula de dez rapazes a ir nadar para o lago, na tarde do domingo seguinte, os rapazes ficaram todos satisfeitos e não lhes foi difícil obterem autorização dos pais. Ele arranjou dois carros, que os transportassem a todos para o local, e provisões para o jantar ao ar livre.

Os rapazes regressaram todos bem, nessa tarde, e, como de costume, foram para a escola dominical na manhã seguinte. Foi só a meio da semana, quando os pais de três das raparigas falaram com meu pai sobre o caso, que ele verificou que algo de anormal tinha ocorrido durante o piquenique. Foi, então, imediatamente, falar com um médico, que era membro da igreja. O médico praticava clínica geral, mas tinha grande experiência, e disse que não era a primeira vez que ouvira falar em ocorrência semelhante.

Foi esta uma das raras ocasiões em que, por se tratar de um caso melindroso, Ira Sylvester não fez qualquer observação sobre o que se passara. Contudo, o que ele calou, em nossa casa, era conhecido de outras pessoas, que não se mostravam tão reticentes, pois falavam livremente sobre o acontecido, nas barbearias e nas lojas.

O que sucedeu, no local do lago, foi que, quando todos despiam os fatos de banho molhados, depois do banho, para envergarem o seu vestuário, aprontando-se para o jantar, alguns dos rapazes notaram que o professor da escola dominical envergava um fato que lhes parecia não ser próprio de um homem. Um dos rapazes disse ter ficado tão surpreendido, que julgou tratar-se de uma rapariga que ali aparecera por engano. Disse que os outros rapazes também fizeram reparo nisso, mas que tiveram receio de falar no caso, até se encontrarem a sós.

Como foi contado a Ira Sylvester pelos três pais, o jovem professor usava meias compridas de mulher, em vez de peúgas de homem, presas com ligas cor-de-rosa. Numa das barbearias, dizia-se que o rapaz contara ao pai que as meias e as ligas lhe causaram estranheza, e que o homem, a seguir, envergara a camisa por cima de uma combinação cor-de-rosa, que trazia.

Numa reunião dos mais velhos da igreja, foi proposto e deliberado suspender as aulas da escola dominical e declarado iniciar-se imediatamente as férias de Verão, até Setembro. No entretanto, o ensino seria ministrado apenas por mulheres.

Ira Sylvester disse, depois, que a sua única preocupação quanto a essa solução era o facto de a irmã do jovem solteiro poder querer tomar parte mais activa na igreja e insistir em ensinar na escola dominical das raparigas. Disse que, se tal acontecesse, ele resolveria ir para a África, a missionar os infiéis.

 

Numa grande capital do Sul, como é Atlanta, pouco vulgar seria duas ou mais igrejas protestantes não possuírem a estabilidade financeira dos principais bancos da cidade e o estatuto social dos seus clubes de província mais categorizados.

Enquanto Atlanta se esforçava, durante a primeira metade do século, por atingir a prosperidade e preponderância económica, os protestantes anglo-saxões da capital estavam, ao mesmo tempo, a construir grandes igrejas de pedra e tijolo, com dinheiro economizado para lhes imprimir grandeza arquitectónica. Agora que realizou a sua ambição de superioridade económica no Sul, Atlanta, nos anos 60, tem o direito de ser intitulada a capital das grandes igrejas.

Uma igreja de pedra morena ou de tijolo, baptista, metodista ou presbiteriana, situada num bairro moderno

— com o traçado arquitectónico de uma catedral e um elevado campanário — é tão eficientemente administrada e tão rendosa, financeiramente, como um banco que empresta a seis por cento, ou um clube de província com as suas contas em dia e os créditos cobráveis.

Para os ricos, o ser membro de uma dessas modernas igrejas protestantes é o melhor investimento da cidade

— com dedução nos impostos, bons contactos comerciais, alto nível social, e salvação automática. São a gente bonita da religião. Os primos da província podem ser membros da mesma denominação, mas vivem num mundo remoto, onde a sua igreja, plantada num terreno de erva bravia, tem as paredes brancas estaladas, janelas sem cortinas, e vespas nas goteiras do telhado. O destino será o mesmo, mas ir em carruagem de luxo é, espiritualmente, mais confortável do que ir em segunda classe.

Tudo parece estar tranquilo e sereno, no interior dos muros financeiramente seguros do protestantismo da alta igreja, livre de hipotecas, embora haja censuras invejosas de alguns membros que se sentem inferiorizados. Isto acontece quando o orgulho pelo seu lugar de adoração, por custoso e imponente que seja, é atenuado pela advertência de que o édito eclesiástico dá aos católicos o privilégio de denominar o seu lugar de adoração uma catedral, e põe restrições a outros, compelindo-os a designar os seus próprios arquitectònicamente magníficos lugares de adoração como igrejas ou tabernáculos. Todavia, os protestantes verdadeiramente fundamentalísticos, não se preocupam com o facto de os episcopalianos designarem a sua casa de reunião como igreja ou catedral, pois são considerados como pertencentes a uma denominação que na prática desfaz a linha divisória entre o catolicismo e o protestantismo.

A Primavera, em Atlanta, quando os pessegueiros estão em flor e os estabelecimentos de modas prosperam, é a melhor época do ano para a gente ficar a observar a parada dos domingos de manhã, pelo caminho que vai dar à igreja.

Dentro da igreja, tudo é calmo e sereno, durante a hora que dura a cerimónia religiosa, executada com a perfeita estilização de um bailado bem ensaiado. Os encarregados da colecta, com os seus fatos pretos, o coro, com as suas túnicas coloridas, e o ministro entoando trivialidades inofensivas, são um espectáculo inspirador para a congregação de figuras atentas e graves.

Ao findar o serviço, marca-se o programa de salvação da semana seguinte. Então, da porta da igreja até à berma da rua, entre alas de jovens cumprimentadores, as senhorinhas, de espírito liberto, têm finalmente a oportunidade de exibirem as suas ancas revestidas de sedas.

O jovem protestante, bem trajado, educado num colégio, de rosto atraente, era contabilista num escritório de corretor de fundos públicos. Era um jorgiano, com feições visivelmente anglo-saxónicas, e um ar sempre satisfeito, ao assistir nos domingos de manhã aos serviços de qualquer igreja, quer fosse baptista, metodista ou presbiteriana. Tinha menos de trinta anos de idade, e era solteiro.

Escolha qualquer das igrejas, nesta parte da cidade; é o melhor lugar, de entre todos, para a gente se relacionar com o mundo de negócios de títulos.

Sente-se algo, na religião, quando se cresce no seio dela, na igreja baptista, que faz de todos uma espécie de fraternidade e não é preciso deitar abaixo as portas ou aguardar uma apresentação formal, por mais rico que seja o negociante em vista. Há uma linguagem comum, que todos entendem. Sei como é, porque já trabalhei em clubes nocturnos, em clubes cívicos e outros, e verifico que há mais oportunidade de venda de acções entre pessoas que pertencem a uma igreja de classe elevada, do que entre as pessoas que encontro noutras reuniões.

O mais interessante é que a gente não precisa de falar sobre religião, quando aborda essas pessoas. Eles não querem falar de religião. É assunto que põem à margem, ao saírem da igreja. Também não querem que alguém lhes lembre o assunto. Há quase dois anos que eu vendo acções, e acho que é um bom negócio.

Falemos de qualquer outra coisa — basquetebol, futebol, golfe, política, o governador, Washington — mas não de religião, nem de integração racial. Se falarmos sobre integração ou segregação ou direitos cívicos — tudo está perdido. Não interessa qual o nosso ponto de vista, o negócio desfaz-se e a gente perde a oportunidade de um bom lucro. Não interessa também se o interlocutor é do Norte ou do Sul — não podemos prever as suas opiniões, e há que ser cauteloso por causa dos prejuízos.

É a primeira vez que venho a esta igreja, de há um mês para cá. Tenho três ou quatro igrejas na minha lista, e eu procedo alternadamente. Faço a ronda, porque há boas perspectivas por toda a cidade, quer entre metodistas, presbiterianos ou baptistas. Procurei, uma vez, fazer alguns contactos numa igreja luterana, e numa Igreja de Cristo, mas não valeu a pena. O negócio era lento. Talvez por ter sido criado no meio baptista, as minhas actividades rendem mais nos três grandes — baptistas, metodistas e presbiterianos.

Eu começo o trabalho, contactando com o pastor da igreja. Não para lhe vender qualquer coisa. Os pregadores, em geral, não intervêm no mercado de títulos. A razão é simples, não têm o dinheiro que é preciso — quero dizer, muito dinheiro. Preferem, os fundos de seguros, as rendas vitalícias, as pensões de reforma. É natural que queiram a segurança que sentem em matéria de religião. Por isso é que nunca menciono o mercado de títulos quando falo com um pregador, e, se ele se refere a isso, aconselho-o sempre a ficar com o seguro. Evidentemente, se vendesse fundos de seguros ou mútuos — a coisa seria diferente.

O que costumo fazer é ir cumprimentar o pastor, logo depois do serviço. Já todos se conhecem e chamam-se pelo nome. Então fico, com o ministro, e aguardo. Há sempre numerosos membros que vêm apertar a mão ao ministro, e manifestar-lhe o gosto com que lhe ouviram o sermão — bom, já sabem como é. Ora, é natural que lhes faça a minha apresentação. Aprendi a conhecer a espécie de pessoas que me interessa à primeira vista, e escolho uma delas para propor o meu negócio.

Procuro sempre homens dos seus quarenta ou cinquenta anos, que sejam bem vestidos, pois são os que devem ter dinheiro a investir, e verifico se traz a sua mulher, para eu poder apreciar quanto ela gasta em vestidos e jóias.

Se vêm acompanhados de uma filha, de entre os dezoito e os vinte e cinco anos — digo, de mim para mim, está mesmo a calhar. Converso com eles, sobre assuntos vários, saindo da igreja em sua companhia, mas não é nessa altura que lhes entrego o meu cartão de negócios. Primeiro, realizo o contacto social. Sigo com eles até ao extremo do quarteirão, para ver de que marca é o carro deles.

Se a filha vem com eles, é fácil dar mais um passo. Dou-lhe outra vez o meu nome, não tivesse ele esquecido, na pressa da apresentação, e procuro saber ao certo como ela se chama, para depois lhe poder telefonar. Deixo, então, passar uns dias, até ao meio da semana, para contactar pelo telefone. No entretanto, estudo a possibilidade de negócio com o pai, e, se a coisa é prometedora, trato de marcar um encontro com ele.

Gosto de começar por convidá-la para um almoço. É a melhor maneira de travar relações com uma rapariga, sem perder muito tempo. Ela aparece toda vestida, e a magicar sobre o que eu pretendo dela. Mantenho-a nessa expectativa, sem manifestar nada de especial, o que a levará a convidar-me para almoçar a casa dela. Será a altura de fazer um esforço definitivo para me relacionar com o pai dela.

Daí por diante, o resultado nem sempre é de cem por cento, mas é uma boa oportunidade para um negócio proveitoso. De qualquer modo, daí a dias, telefono para o escritório dele, para uma entrevista, ou, querendo ele, para um encontro no bar do clube, entre bebidas. E então que lhe faço entrega do meu cartão de negócios e lhe toco no assunto do mercado de títulos. Depois disto, é ganhar ou perder. Se, após muito esforçar, não consigo o negócio que pretendo, largo mão dele e não mais volto à carga.

Eis o meu estilo, pois foi por este processo difícil que me entranhei no negócio de vendas. Vou-lhe contar como isto sucedeu.

Antes de entrar na actividade de corretagem, tentei outras espécies de venda, mas não queria coisa que me desse muito trabalho. Mas preferia sempre o negócio da compra e venda. No colégio, passei um Verão inteiro a vender a Bíblia, de porta em porta, por quase todas as cidades da Jórgia. Deu bom resultado e fiz muito dinheiro. Toda a gente é capaz de fazer o mesmo, neste país dedicado à leitura da Bíblia, mas, Deus me perdoe, acabei por me aborrecer tanto que nem me apetecia ver a minha cara ao espelho. Não podia ver também a Bíblia.

Descarregar Bíblias vulgares para uns pobres diabos, era o que eu fazia. O preço era de dois dólares. Daí retirava a minha comissão. Mies obrigavam-se a pagar prestações mensais de um dólar, durante um ano. Na falta de pagamento de alguma prestação, a sociedade tinha dois homens robustos ao seu serviço permanente na rua, encarregados de levarem as Bíblias e vendê-las a outros pobres diabos por dois dólares.

Essas Bíblias eram mal impressas, em papel grosseiro, e encadernadas em imitação de couro malcheiroso, e não valiam os dois dólares. Eu tinha dois tipos de Bíblia. Uma delas era para os brancos. A outra era Jesus Negro para as pessoas de cor. A sociedade vendedora limitava-se a colar dentro algumas imagens religiosas, dando-lhes a designação de Bíblias ilustradas.

Depois de completar o curso secundário, alcancei o emprego de venda de automóveis em segunda mão num terreno destinado a grandes vendas, aqui em Atlanta. Não parece um ofício próprio para um diplomado do colégio, mas era o que havia e, quando se passa fome, há que aproveitar tudo. Eu queria vender carros novos, mas o patrão disse-me que devia começar o negócio vendendo carros usados. Não me importei, porque estava desejoso de aprender a negociar. O que eu não gostava nesse emprego era saber que mentia e ludibriava. Sabia que os conta-quilómetros eram atrasados para diminuir a quilometragem e os pneus velhos eram vulcanizados para parecerem novos, e os ruídos dos motores eram sufocados até os carros saírem do campo de venda. Ninguém compraria esses calhambeques, se eu lhes dissesse a verdade; e o calar-me fazia de mim um mentiroso e um burlão. Por isso deixei o emprego.

Mas ainda gostava de efectuar vendas, e o emprego seguinte, que arranjei, foi transportar géneros enlatados para uma firma de vendas por grosso. Era melhor. Era uma actividade honesta. A minha área era a Jórgia do Norte, e eu andava na estrada seis dias por semana, à procura de merceeiros a retalho. Nestas condições, não temos casa própria e era difícil estar em Atlanta por uma noite, uma ou duas vezes por mês. Para um rapaz que apreciava a vida de uma grande capital, era um sacrifício grande de mais. Larguei o emprego, após um ano, e regressei a Atlanta, disposto a vencer a todo o custo.

Eu tinha tirado uns cursos comerciais de contabilidade e economia, no colégio, com mira em actividades de venda em grande escala. Comecei a procurar o que havia. Não queria emprego num estabelecimento bancário, ou coisa parecida. Obriga-nos a estar sentado a uma secretária. Como vendedor, não precisamos sequer de um escritório— anda-se na rua em circulação.

Em menos de uma semana, ouvi falar num escritório de corretor, que pretendia admitir um vendedor de títulos, proporcionando-lhe os conhecimentos necessários. Era o que eu queria, e o patrão achou que eu servia. Isto aconteceu há dois anos e cá vou andando.

. Assim cheguei aos dias de hoje. Foi há cerca de um ano que iniciei a ronda às três ou quatro igrejas nesta parte da cidade, e tem dado lucro. O único problema surge quando é preciso afastar-me de algumas das jovens senhoras com quem travo relações amigas. Algumas delas levam a coisa a sério, e telefonam-me para casa ou para o escritório. Eu procuro não avançar de mais com essas raparigas —a não ser que sejam algo de excepcional—, porque depois é difícil libertar-me para dedicar o tempo à filha de algum outro novo cliente em perspectiva.

Quando temos uma relação de clientes, como aquela que eu há dois anos venho organizando, e não nos esquivamos dessas raparigas, é difícil entabular relações com outras, quando há novos clientes em vista, apresentados pelo pregador. Até aqui, tenho tido muita sorte. A maior parte dessas raparigas já casou, foi para o colégio, ou saiu da cidade. Há uma ou duas, ainda, que andam por aí, e com quem eu gosto de me encontrar, de vez em quando. São as tais, muito especiais, de que lhe falei há pouco, e que dificilmente esqueço.

Espero que tudo me corra bem, neste negócio de corretagem, e espero trabalhar mais um ano, para depois casar e estabelecer-me. Como as coisas estão agora, é-me impossível ter uma mulher e, ao mesmo tempo, conviver socialmente com todas as mulheres, no decorrer das minhas actividades. Quando eu vendia Bíblias, e carros em segunda mão, e feijão enlatado, parecia-me que nunca passaria daí. Isso aconteceu até que conheci como era vantajoso frequentar uma igreja, numa cidade cheia de igrejas como é Atlanta.

O secretário da comissão de finanças da igreja estava bem indicado, pela sua figura e pelas suas aptidões, para um lugar daquela importância. Andava pelos cinquenta anos, tinha uma cabeleira escura, a branquear, e um rosto fino, anglo-saxónico, com uma expressão variável de serenidade e simpatia, e era alto e erecto, revestido da autoridade de um banqueiro próspero. A sua posição, num dos maiores bancos de Atlanta, era a de vice-presidente e conselheiro. Durante muitos anos, fora membro da igreja protestante do moderno bairro do Norte, desde que transferiu para ela a sua filiação numa igreja muito mais pequena, situada num bairro do Sul, menos próspero.

Quando foi projectada a construção de uma igreja grandiosa, para substituir a mais antiga, no bairro do Norte, o proeminente banqueiro foi incumbido de tomar a seu cargo a campanha de fundos, e, com facilidade, conseguiu o dinheiro necessário, que excedeu o suficiente, antes mesmo de o terreno começar a ser cavado para o novo edifício. Além disso, quando a congregação se mudou para o novo e importante lugar de adoração, ele enriqueceu a tesouraria da igreja, vendendo a velha propriedade para área residencial, por um preço elevado que ninguém previa. Agora, como secretário da comissão de finanças, dirigia a campanha para aumentar o permanente fundo de donativos da igreja.

O exacto objectivo do fundo de donativos não estava bem definido, mas parecia que se destinava a ser aplicado no embelezamento da igreja e no ajardinamento dos terrenos anexos, semelhantemente ao cuidado perpétuo que é costume dispensar-se aos cemitérios.

É uma campanha, de fundos de tipo diferente daquele que as igrejas usualmente promovem. Não se constitui hipoteca sobre a igreja e não há necessidade de construir uma dependência anexa. Mais do que isso, não há outro objectivo senão aumentar o fundo de donativos. É tão pouco habitual, que desperta imediato interesse quando se fala a alguém nisso, e é por isso que a campanha resulta imediatamente num êxito.

É um plano muito melhor, psicologicamente, do que o usado pela Cruz Vermelha e pelo Cofre da Comunidade para obter dádivas de dinheiro determinado e para determinados objectwos; nestas campanhas, não existe o elemento de mistério quanto ao objectivo, e as pessoas aguardam e esperam que os vizinhos contribuam para atingir o montante pretendido. Eis porque essas campanhas fatigam e findam de repente.

A técnica psicológica que nós usamos na nossa campanha não pode falhar. Podemos desenvolvê-la indefinidamente. De outro modo, os promotores da nossa campanha, humanos como são, cansar-se-iam, naturalmente, no seu esforço, ao atingir um alvo pré-estabelecido.

O que fazemos é estruturar a campanha a longo prazo, indefinido no tempo, no montante, e no objectivo.

Claro que aceitamos donativos de pequena importância, um dólar ou dois, aqui e além. Isto dá ao contribuinte de menores recursos a satisfação de se sentir um colaborador, a quem nunca deixam perder o ânimo. Agradecemos-lhe um recibo, para ser considerado perante o fisco. Mas isso é acidental, em relação à nossa finalidade principal. O que queremos são doações, em grande escala — dinheiro em milhares, para cima. É a espécie de doações que procuramos que figurem nos testamentos. Por isso é que não marcamos uma data na nossa campanha de donativos — esperamos indefinidamente: cinco, dez anos, ou mais. Não importa. Não temos pressa. Ficamos satisfeitos em esperar, na certeza de que obteremos uma boa soma.

Até agora, apenas uma doação foi contestada e o caso não será decidido até ser julgado ou até se resolver a questão amigavelmente, por transacção.

Os quatro filhos e filhas de um dos nossos benfeitores instauraram uma acção judicial para anular uma doação que nos foi feita, de umas centenas de milhares de dólares e pedem que o tribunal decida que eles são os únicos titulares legítimos da herança da sua mãe.

Trata-se de uma importante doação, que um dos nossos promotores da campanha procurou captar, um trabalho que durou meses. O nosso benfeitor era uma mulher idosa, que tinha sido membro dedicado da igreja, durante muitos anos. Durante a sua vida, os seus donativos foram generosos e frequentes, e nós sabíamos que ela queria contemplar-nos com uma importância substancial, no seu testamento.

Quando chegou a altura de a aconselhar, o nosso encarregado, talvez demasiado zeloso, não devia ter-lhe sugerido que deixasse toda a sua herança à igreja, sem reservar uma quota-parte razoável para seus filhos e filhas. Mas, é claro, um testamento é um testamento, e a lei é que decidirá.

Sucedeu que ela deserdou os filhos, deixando-lhes apenas cinco dólares a cada um, de uma herança de cerca do meio milhão de dólares. Foram para o tribunal, para obterem a anulação do testamento e a restituição de toda a herança, a dividir entre eles. Eu simpatizei com aqueles quatro herdeiros, evidentemente, mas também temos de proteger os interesses da igreja.

Não queremos que a questão seja debatida pelo júri, por razões óbvias. Os advogados dos herdeiros conseguirão, sem dúvida, constituir o júri com pessoas que não pertencem a nenhuma igreja — até judeus e negros — muito imbuídos, portanto, de preconceitos, ou com membros das igrejas mais pequenas, do Sul, também possuídos de ideias preconcebidas.

Contratámos uma das preponderantes firmas de advogados da cidade para nos representar e demos-lhes instruções para empregarem os seus melhores esforços para conseguirem uma transacção extra-judicial. Esperamos dividir a herança ao meio. Pessoalmente, parece-me uma solução equitativa para os herdeiros.

Como vê, aquela filiada da nossa igreja foi beneficiada com a herança do marido, há anos; não se trata de bens acumulados pelos esforços dela. Eis porque a convencemos que, em memória, do seu falecido marido, contemplasse a igreja com a herança, no seu testamento.

Porém, como quer que seja, temos já outros importantes benfeitores já dispostos a contemplar a igreja com quantias substanciais, para o fundo de doações. Isto enche-nos de optimismo quanto ao futuro.

Como as abundantes colheitas de sorgo, trigo e ervilhas nas húmidas planícies, a religião protestante de todas as fés e denominações tem singrado, através de gerações, no clima balsâmico do golfo, do Sudoeste de Jórgia e do Sudoeste de Alabama.

Diversamente do fanatismo, sem inibições, do estilo Cumberland, ou do constrangimento sofisticado das grandes capitais, devoções domingueiras, ritualismo cerimonioso, é aquela uma região do remoto Sul onde, durante mais de cem anos, as famílias de ascendência inglesa e escocesa-irlandesa têm propagado as suas tradicionais práticas religiosas protestantes.

Agora, nos anos 60, o modo de ser do povo da região é tão imbuído de crenças e costumes piedosos, que as manifestações religiosas na vida secular são tão regionais como os pinheiros e o falar arrastado.

Aqui, a Bíblia é mantida permanentemente à vista sobre a mesa da sala de estar — nunca fechada, mas sempre visivelmente aberta nalgum capítulo do Novo Testamento, a lembrar que deve ser lido nas devoções quotidianas.

É a região onde seria pouco vulgar não estar presente o ministro protestante, para dizer orações em toda a espécie de manifestações públicas — almoços cívicos, ágapes fraternais, festivais de boas-vindas, acontecimentos desportivos e reuniões políticas.

É a região onde os costumes piedosos prevalecem, com o ritmo inevitável do sol nascente e do sol poente — oração antes das refeições, em público e em particular, seriedade na igreja, levar a Bíblia ao domingo, rezar à despedida.

É a região onde o código rigoroso do Cristianismo é o guia espiritual no comportamento pessoal e na conduta dos negócios — até que o Judeu e o Negro tenham a presunção de se intrometerem social ou economicamente nos domínios protestantes, anglo-saxões, ferozmente guardados.

De cabelo branco, e confortàvelmente carnuda, com um rosto sereno e um sorriso benevolente para todos, era uma viúva dos seus setenta anos, com um razoável rendimento proveniente do arrendamento de vários casebres situados na área segregada negra da cidade. Nos meses tépidos do ano, tinha o hábito de sentar-se na sua cadeira de descanso favorita, na larga varanda da casa de sua filha, com a Bíblia no regaço e dormindo uma sesta, de vez em quando, à brisa refrescante do golfo, nas tardes de vento.

Vivia com sua filha na casa de madeira de um andar, descolorida pelas intempéries, na sossegada rua sombreada de árvores, e, durante uma vida inteira, pertencera à igreja de resplandescente brancura, e dotada de um alto campanário, que ficava muito perto, ao virar da esquina. Levando, infalivelmente, a sua Bíblia, caminhava para a igreja e dali voltava a pé, quando o tempo estava bom. Nos dias de chuva e no tempo frio de Inverno, o genro levava-a de carro até à porta da igreja, duas vezes aos domingos, e, às quartas-feiras, às reuniões nocturnas de oração.

O banco reservado onde se sentava ficava no corredor central, na segunda fila, e, diversamente dos outros, o dela possuía uma almofada, mandada colocar pelo jovem pastor, para maior conforto dela durante o serviço que, ordinariamente, durava uma hora e meia.

Era seu costume chegar à igreja pelo menos meia hora antes, e demorava-se sempre mais meia hora, ou ainda mais tempo, após as cerimónias, para conversar com o pastor ou com os outros membros da igreja. E então, deleitava-se em troçar do jovem ministro, ao dizer-lhe que era mais religiosa do que ele, porque despendendo um total de cinco horas na igreja, nos serviços da manhã e da tarde dos domingos, e uma hora nas noites de quarta-feira, e duas horas a ler a Bíblia em casa, ela dedicava muito mais tempo à observância religiosa do que ele. O ministro abanava a cabeça, gravemente, e acariciava-lhe a mão, reconhecendo a falta.

A prática da minha religião conforta-me imenso e eu adoro, simplesmente, o meu pastor. É tão santo, como o dia é longo. Quando as pessoas se admiram do meu ar bem-disposto e feliz, felicitando-me por isso, eu digo-lhes sempre que a minha felicidade interior é ainda maior, porque leio a minha Bíblia todos os dias e gosto imenso do meu pastor.

Todos os dias, quando acordo, e todas as noites, antes de me deitar, peço ao Senhor que abençoe o meu pastor e lhe dê boa saúde, e que nada de mal lhe aconteça. Seria um golpe para o meu coração, se algo de mal lhe sucedesse, ou se ele perdesse a saúde. Eu sobrevivi a dois dos meus pastores e sei quanto me entristece a morte do meu pastor. Peço ao Senhor, todos os dias, que, quando chegar a hora da partida, desta vez que seja eu, e que não fique atrás.

O meu pastor é um jovem esbelto e eu quero que ele esteja aqui para pregar no meu funeral, quando chegar a hora. Já lhe disse qual a passagem da Bíblia que ele deverá ler, na cerimónia fúnebre. Por essa razão, peço ao Senhor, em todas as minhas orações, que lhe conceda saúde e longa vida.

A minha tristeza maior, acerca do meu pastor, é que a sua mulher é uma pessoa insignificante, que em nada se parece com ele. Ele merece uma mulher mais fina e é por isso que sinto tão grande pena. É lamentável que um homem bom, como ele é, tenha de suportar um fardo, como é a vida dela.

Quando me sento no meu lugar, na igreja, e olho para o meu pastor, sinto pena dele e vontade de fazer algo que lhe faça esquecer que é casado com pessoa tão simplória. Ela senta-se no banco da frente, mas eu sinto ganas de a expulsar para fora da sagrada igreja, por se fingir piedosa quando não passa de uma coisa vulgar.

E então, quando o convido a visitar-me para ler a Bíblia, e rezar por mim, não posso deixar de me sentir comovida até às lágrimas, ao pensar que ele me vai deixar, para voltar para junto dela. Arranjo todos os pretextos imagináveis para o reter o mais tempo possível. É horrível pensar que ele tem de voltar àquela mulherzinha digna de compaixão, para ali ficar, no presbitério, sozinho com ela.

Desde que eu os vi juntos, pela primeira vez, há cerca de quatro anos, quando chegaram de Macon, logo senti grande pena dele e procurei fazer qualquer coisa que o ajudasse. Ela é tão ingénua e tão desajustada para o homem simpático que ele é... Ainda tentei uma vez, por caridade cristã, descobrir-lhe qualquer qualidade, mas nada encontrei digno de louvor. Ela não sabe vestir, não sabe pentear-se, e já sei que vai estragar a saúde dele com a sua desajeitada cozinha.

Estou certa de que um homem fino, como ele é. nunca teria casado com uma insignificante daquelas, se ela não o obrigasse ao casamento, praticando um acto terrível que nenhuma mulher decente pratica. Há muitas mulheres desprezíveis neste mundo, que não se envergonham dessas coisas, e ela é uma das tais. Ela não me engana nada, com os seus olhares piedosos, sentada ali na igreja como um anjo imaculado.

Se ele tivesse chegado aqui solteiro, para ser nosso pastor, antes que ela pudesse cometer o acto que o levou a casar com ela em Macon, eu evitaria isso. Conheço bem o género de mulher, que ela é, e tê-lo-ia salvo das suas garras. Não é a primeira mulher reles que vejo na minha vida.

Bem, graças a Deus, não têm filhos e estão casados há quatro anos — e espero e rezo para que tal não aconteça. É mortificante pensar que um homem tão novo e simpático se rebaixe a manter relações íntimas com uma mulher vulgar, que não teve vergonha do que fez para o seduzir. Eu choro, sempre que penso que ele repete a coisa ali, no presbitério, com ela.

Não creio no divórcio, porque a Bíblia diz que é um mal; portanto, o que faço é rezar pelo meu pastor, para que seja um carácter forte e que não se humilhe diante dela. Se as minhas orações são ouvidas, ele manter-se-á puro e não se humilhará. A Bíblia ensina que o Senhor olha, com favor, o homem bom que se mantém puro, quando tentado pelo mal. Não será fácil para ele viver sob o mesmo tecto com ela, mas ele sabe que eu rezo por ele, e ele diz que as minhas orações são um grande conforto e uma grande ajuda para ele.

Eu amo muito o meu pastor. E sinto tanta pena dele. Por isso rezo por ele, noite e dia. E sei que as minhas orações serão ouvidas e que ele se livrará, de algum modo, da tentação de se rebaixar perante ela. Pode ser que ela adoeça e que, dentro em breve, morra.

Havia várias barbearias na cidade. A maior delas, virada para a praça do tribunal, possuía quatro cadeiras, e era a favorita dos forasteiros e dos alunos do liceu, que gostavam dela, porque os barbeiros eram rapazes novos e sofisticados, e não rapavam demasiado o cabelo. Todas as outras pessoas preferiam as barbearias de uma só cadeira, não só porque o corte de cabelo era vinte e cinco cêntimos mais barato, mas também porque havia mais liberdade para falar acerca do que acontecia na cidade, e de dizer toda a espécie de piadas, quando não estavam presentes os estudantes e os estrangeiros. Mesmo quando não queriam cortar o cabelo, havia usualmente dois, ou três, ou mais homens sentados numa das pequenas barbearias, pois era lugar ideal para conversar e passar o tempo.

As paredes simples de pinho, ressumando gotas de resina, de uma das barbearias de uma cadeira, num quarteirão da praça do tribunal, estavam cobertas com dúzias de grandes calendários ilustrados e retratos coloridos tirados de revistas masculinas e periódicos religiosos. Nas vistosas paredes figuravam Babe Ruth e Joe di Maggio envergando uniformes de “baseball”, Red Grange e Charley Conerly, com equipamento de futebol, Barry Godwalter e George Wallace a discursar, raparigas nuas, em poses exóticas, e quadros sangrentos de Jesus Cristo coroado de espinhos e pregado à cruz. Na parede do fundo, e isolada dos outros quadros, estava uma fotografia de homens de túnica branca, num cortejo luminoso de tochas acesas, da Ku-Klux-Klan.

O barbeiro, alto, de rosto solene, aparava com vagar, e metodicamente, o cabelo alourado de um sujeito de meia idade, que envergava uma farda azulada, empregado de um posto de gasolina do outro lado da rua. Quando o cliente atravessou a rua e se sentou na cadeira, perguntou, casualmente, o que havia de novo na cidade, nesse fim-de-semana.

O barbeiro pôs-se a falar de uma reunião a que assistira no sábado anterior, de noite, num acampamento a cerca de três milhas a sul da cidade.

A noite estava esplêndida para uma reunião. O tempo melhorou ao entardecer, após uma trovoada, e a lua não tardou a aparecer. Quando a chuva começou a cair, no sábado à tarde, pensei para comigo: — Ô Deus! estou a ver que vamos apanhar uma molha como há duas semanas, quando se fez ali a reunião.

Ainda me lembro. Tinha chovido duas polegadas nesse dia, e o campo estava enlameado e sujo. Não se podia estar ali, naquela confusão. Mas ontem à noite, foi diferente. Não tinha chovido muito, e o chão estava bom e enxuto. Não podia ser melhor, graças a Deus.

Pelas oito horas, no sábado à noite, havia cerca de duzentos pessoas no acampamento, por trás do velho celeiro, no lugar de Howard. Contei mais de cinquenta carros, e camiões de aluguer, enfileirados ao longo da estrada, quando lá cheguei, e outros tantos vieram depois, quando as coisas começaram um pouco antes das nove horas.

Ouvimos um bom orador, vindo de Montgomery, mas antes dele escutámos uma prédica e uma bonita oração pelo pregador aqui da cidade, que o senhor conhece, e que aparece em todas as reuniões. Foi uma pena ter de trabalhar nessa noite no posto de gasolina e não poder abandonar o trabalho. Perdeu-se uma reunião estupenda.

Bem, como ia dizendo, a reunião começou cerca das nove horas, como nós queríamos. A Lua iluminava bastante e toda a gente se juntou ali. Quando o pregador acabou de rezar, o tal sujeito que tinha vindo de Montgomery tomou a seu cargo as coisas, daí em diante. Ouvi dizer que ele tinha dirigido outras reuniões, antes, em Alabama, na Jórgia e na Florida e noutros lugares, e parecia um homem muito habilidoso.

A coisa principal que nos disse, ao começar, foi que nós devíamos aparecer sem acanhamento, durante o dia, e conversar uns com os outros. Disse que a lei dos direitos cívicos torna os negros mais atrevidos e que nos pertence a nós traçar uma linha e evitar que eles a transponham. Disse que a maneira de agir é publicar nos jornais e dizer pela rádio que vamos manter os negros no seu lugar, e, se algum deles atravessar a linha, o que se deve fazer é ir lá e, por Deus, empurrá-los para a área a que pertencem.

Disse que, se deixarmos os negros meter o pé, eles a seguir quererão entrar e sentar-se ao nosso lado, na igreja. Depois disse: cuidado também com os judeus, por que os judeus não estão do nosso lado e dão-se bem com os negros, e tentam dominar-nos.

O que falou a seguir foi acerca das demonstrações que os negros faziam e disse que nós podemos ser mais numerosos do que eles, dois para um, em qualquer altura, e que tratássemos de agir, quando houvesse qualquer demonstração por parte deles. Terminou, então, por dizer que devíamos ter mais reuniões como aquela de sábado à noite, para que os negros saibam que não brincamos com coisas sérias. Ele distribuiu um pequeno jornal a todos os presentes, dizendo o que se está a fazer aos negros em todo o país, e mostrando como lidar com eles, quando saem da linha. Era, realmente, um jornal educativo.

Eram quase onze horas e era tempo de a reunião acabar. Foi então que se deitou fogo à cruz. Foi um lindo espectáculo, quando as labaredas cresceram. Erguia-se a doze pés de altura, no topo de um montão de terra, no acampamento, e os braços da cruz tinham a largura de quatro ou cinco pés. Tinha sido bem regada com gasolina e, depois, envolvida em trapos, de modo a arder por longo tempo. O incêndio durou uma hora.

As pessoas começaram a retirar-se, antes de a cruz ficar toda queimada, porque não queríamos que o vento assoprasse as centelhas através do acampamento, incendiando o velho celeiro. Podia suceder que certas pessoas nos acusassem de lançar fogo ao celeiro, quando afinal nós queremos fazer o bem e não o mal.

Não sei quando será a próxima reunião, mas é bom estarmos preparados para largar o trabalho, para não faltarmos. O espectáculo não é de perder.

Era o último armazém de mercadorias gerais que restava, na cidade, pertença de uma família durante setenta e cinco anos da sua existência. O armazém ficava num centro comercial, a um dos cantos da praça do tribunal. O espaçoso edifício de tijolo vermelho tinha só um andar, mas a sua escada de caracol, de madeira trabalhada, subia à altura de dois andares. Era uma espécie de marco, tal como o tribunal, de tijolo amarelo, com sua torre, no centro da praça.

A mercadoria em exposição sobre os balcões gastos pelo tempo e prateleiras— vestuário familiar, géneros secos, mobília, e ferramentas — estava numa confusão desordenada de portas e janelas, de mistura com berços e rolos de pano. Mesmo assim, o neto do fundador do estabelecimento, de sessenta anos, de cabelo ralo e face rosada, e os seus dois velhos empregados, podiam imediatamente chegar a qualquer peça que fosse pedida, estendendo o braço.

Contudo, o dono lamentava-se que estava a perder no negócio e seria levado à falência pelos descontos e montras resplandecentes das lojas competidoras e suas filiais, estabelecimentos de artigos sortidos e mercadorias de especialidade. Disse que ia esforçar-se o máximo por manter o negócio por mais um ano ou dois, até ser forçado a vender tudo e ver-se substituído por um novo dono que havia de modernizar o estabelecimento, expondo mercadorias de outro tipo.

Tenho sido um membro fiel e um bom cristão, desde que fui baptizado, quando ainda rapaz, há uns quarenta e cinco anos. A minha mulher é também tão boa cristã como qualquer pessoa, e despende todo o tempo disponível a trabalhar para a sociedade missionária, ajudando a recolher fundos para a causa cristã em todo o mundo. Mas não sei o que entrou na cabeça dos meus três filhos. Eles foram educados na fé cristã, como os outros. Eu lia -lhes a Bíblia e rezava por eles, todos os dias da semana. Mas o certo é que eles não se interessavam pela igreja, como eu e minha mulher, e não tardou que casassem, retirando-se para fora da cidade.

E não era só a igreja. Não queriam trabalhar no armazém, nem aprender a comerciar, de modo a continuá-lo por outra geração, após a minha partida. Agiam como se tivessem vergonha de trabalhar na loja, e quando se lhes falava no assunto, diziam que era uma loja demasiado antiquada para eles. Eu sabia o que diziam sobre a loja, mas não conseguia descobrir o que tinham contra a igreja.

Quando me encontro com algum deles, de vez em quando, e falo no assunto da frequência da igreja, eles não dizem que sim, nem que não, e fico sem saber se, depois de terem saído de casa, terão ido à igreja.

Eu disse-lhes, aos três, que reservei bastante espaço, no cemitério da igreja, para eles e suas famílias, mas eles não querem também ser enterrados em qualquer parte, próximo da igreja. Tudo isso me fere, assim como o não quererem eles trabalhar na loja e continuar o negócio da família, quando eu morrer. Bem, eu nada tenho contra os judeus, a não ser que os não considero como nós; mas alguns deles vieram instalar-se aqui e abriram um grande estabelecimento do outro lado da praça, vendendo os mesmos artigos que eu, à excepção de mobílias e ferramentas. Possuem em armazém toda a espécie de mercadorias para equipar uma família, desde chapéus e sapatos até vestuário para bebés.

Além disso., anunciaram descontos nos preços, muito maiores que os meus, conseguindo vender as mercadorias mais barato do que ficava o preço de custo dos artigos que eu comprava por grosso. Isto aconteceu há dois anos, quando iniciaram a actividade comercial. E, deste modo, sempre que eu baixo o preço de certa mercadoria, eles baixam ainda mais os seus preços de venda, para atrair os clientes, não se importando com os resultados desse jogo.

Eu já antes tinha ouvido falar nos judeus, mas não lhes ligava grande importância até que eles apareceram aqui na cidade. Os cortes que os judeus têm feito nos preços causaram-me prejuízos, mas não é esse o pior aspecto da questão. Sabe que mais fizeram? Eu lhe conto.

O senhor já sabe qual é o costume estabelecido. Quando um homem de cor entra na loja e pretende comprar qualquer artigo, a gente entrega-lhe o artigo, ele paga-o e retira-se. Sempre foi assim que fiz negócio com as pessoas de cor, durante toda a minha vida. Eles sabem que não podem entrar só para experimentar o vestuário, porque se alguma peça lhes não serve, e não a compram, fica inutilizada para os clientes brancos. A única excepção que faço é deixar experimentar sapatos, antes de escolherem o par que lhes convém.

Pois então, veja o que aconteceu. Desde que os judeus abriram ali a loja, na praça, os negros são admitidos a entrar e provar os fatos conforme mais lhes agrada. E os judeus do estabelecimento até os ajudam a descalçar os sapatos, permitindo que escolham os que mais lhes agradam. Está a ver isto?

Bem, quanto a mim, antes quero ir para a falência e acabar com o comércio do que ver-me prostrado diante de um negro, laçando e ãeslaçando sapatos para ele, como se ele fosse um branco.

Eu sou um bom cristão, e seria capaz de me ajoelhar para lavar os pés a Jesus Cristo, se tivesse oportunidade para tal. Mas nunca me verão dobrar-me perante um negro, a atar-lhe os sapatos. Mas os judeus fazem-no, porque são judeus. Basta isto para os classificar.

 

  1. S. disse que tinha sido criado numa quinta da Califórnia do Norte onde quem quer que tenha lavrado a terra com arado puxado por uma mula do Tennessee, especialmente terra coberta de cepos, no calor do Verão, teve a oportunidade de aprender, muito cedo, na sua vida, as conhecidas expressões regionais que eram necessárias para proficiência na ocupação da lavoura. E, mais do que isso, o rapaz do arado depressa se tornava versado no uso de novas expressões e exclamações por ele inventadas, na presença de alguma mula corpulenta, tão teimosa e irritante, que obrigava a praguejar. Disse ele que, desde esse tempo, nunca mais conheceu ninguém que se mostrasse capaz de dar grande continbuição para o vocabulário de imprecações e pragas.

Poucas foram as vezes que eu vi I. S. ofendido ou embaraçado, ou protestando contra a vulgaridade e a blasfémia de outros na sua presença, chamando a atenção para o facto de ser um ministro. Habitualmente, pelo silêncio e mostrando falta de entusiasmo, aparentando aborrecimento pela ausência de originalidade no uso de uma frase, fazia logo ver aos estranhos que a sua linguagem blasfema não era do seu gosto.

Era como se I. S. dissesse que cada um tinha o direito de se exprimir como entendesse, mas que a conversação seria muito mais interessante se não se perdesse tanto tempo, apartando do assunto, para fazer referências escatológicas a Deus, a Jesus Cristo e à Virgem Maria.

Depois das mulas, as dificuldades que os primitivos sição da linguagem blasfema, da província para a cidade pioneiros iam desbravando, proporcionavam a lógica transição da linguagem blasfema, da província para a cidade e para as estradas. Contudo, ou esporeando a mula, ou acelerando um carro, as invectivas eram semelhantes.

Muito antes da primeira Grande Guerra meu pai interessou-se por automóveis e o primeiro que ele comprou foi um Ford, modelo 1909. Depois desse, sempre que surgia no mercado um novo modelo, ele trocava logo o anterior por um novo.

  1. S. viajava, naqueles tempos, de comboio, quando o tempo era pouco e a distância grande, mas havia muitas deslocações para lugares próximos, que ele podia fazer de carro, e, por vezes, no Verão, era de carro que se deslocava de um Estado para o outro.

Uma das dificuldades, nas viagens de automóvel, derivava do facto de as estradas se tornarem lamacentas e escorregadias no Inverno e esburacadas ou acidentadas no resto do ano. E, por vezes, sucedia que o radiador vertia ou se partia a direcção, obrigando-o a perder horas ou dias, à beira da estrada. Quer dizer, não podia então chegar a tempo para uma entrevista ou para uma reunião. Quando tardava de mais, voltava atrás, para sua casa. Todavia, mesmo quando as estradas eram transitáveis e não ocorriam acidentes, havia sempre a possibilidade de algum cavalo se espantar, à vista do automóvel, perturbando e indignando as pessoas envolvidas na ocorrência. Não eram raros estes episódios, que por vezes resultavam em prisões e ameaças com processos judiciais.

Uma das viagens mais longas, que fizemos de automóvel, em distância e tempo, foi das Carolinas, através das Montanhas Blue Ridge, até à Virgínia do Norte. I. S. ia assumir a direcção de uma igreja da A. P. R. na Virgínia, por um ano, e, como era Verão e ele tinha acabado de comprar um Ford, último modelo, a oportunidade era boa para uma longa viagem de carro. Havia muito tempo disponível, e ele não tinha pressa de chegar.

A demora mais longa, no decurso da viagem, ocorreu no alto do Blue Ridge, quando havíamos percorrido apenas seis milhas, desde a madrugada até ao anoitecer. Não foi por o carro se ter avariado e devido às condições da estrada, mas porque I. S. disse que tinha sede e parou para perguntar a um homem de barba preta, sentado num tronco, à beira da estrada, onde podia obter uma bebida.

O montanhês disse-lhe que o seguisse, e ambos desapareceram no bosque. Só duas horas depois é que voltaram e, desta vez, I. S. vinha à frente e o homem da barba preta seguia atrás, com uma espingarda apontada para a cabeça de meu pai. Ninguém proferiu palavra, quando se aproximou do carro, e via-se que o homem estava fulo por qualquer motivo. Disse a I. S. que não arrancasse o carro, nem tentasse partir, até ele mandar.

Depois de uma longa espera, um cavalo e uma carroça apareceram na estrada, e o carroceiro fazia estalar o chicote no lombo do cavalo. Ao aproximarem-se do carro, o montanhês saltou para a frente e agitou os braços, com gestos excitados. O cavalo espantou-se e escorregou para a berma, onde a carroça estacou, inclinada.

O carroceiro, que era um rapaz de cerca de dezassete anos, e que parecia ser filho do montanhês, saltou para fora da carroça e segurou o cavalo pelas rédeas, enquanto o homem lhe falava. Depois o rapaz endireitou a carroça, chicoteou o cavalo e conduziu-o velozmente pela estrada fora.

Sem dirigir ainda a palavra a I. S., e mantendo a arma apontada para ele, o montanhês sentou-se, de novo, à beira da estrada. Meia hora depois, ergueu-se e disse a I. S. que arrancasse o carro e se retirasse dali.

  1. S. não teve a oportunidade de explicar o que havia acontecido e a razão de ser daquele incidente, apenas dizendo que não conseguira a água desejada, pois a pouco menos de meia milha alcançámos as primeiras casas de uma cidade e, a meio da estrada, surgiram vários homens armados, a bloquear o caminho.

Quando parámos, um dos homens exibiu a I. S. a sua. divisa de xerife e disse-lhe que estava sob prisão por espantar um cavalo com o automóvel, derrubando uma carroça. Um dos agentes meteu-se no carro e entrámos na cidade, parando diante do pequeno edifício do tribunal, de tijolo vermelho, ao centro da praça. I. S. pagou a multa, como o faziam todos no tribunal, e saímos para fora da cidade, devagar, para não correr o risco de prisão por espantar outro cavalo, ou por excesso de velocidade. Já era tarde, e já escuro, antes de descobrirmos uma casa provinciana à beira da estrada, onde pudéssemos comer e passar a noite.

Meu pai contou que o sarilho começou quando chegaram a um alambique, no interior do bosque, e o montanhês se indignou porque ele insistia em pedir água e não quis comprar-lhe uma canada de bebida fermentada. O fabricante clandestino baixou o preço, para poder vender, mas I. S. continuou a recusar a compra. O outro ofereceu-lhe então um golo, a provar, de graça. Quando I. S. recusou, o fabricante irritou-se, sentiu-se ofendido e começou a rogar pragas, por rejeitar o seu gesto hospitaleiro.

Então, obrigou I. S. a acompanhá-lo a uma casa próxima, onde o filho dele estava sentado à porta. I. S. disse que não pudera ouvir bem o que diziam, mas era evidente que, nessa altura, mandou o rapaz atrelar o cavalo à carroça e conduzi-la ao encontro do carro, na estrada. Recomendou-lhe também que fingisse espantar o cavalo, e então, que fosse à cidade apresentar queixa ao xerife, para que este prendesse I. S.

Do que aconteceu durante as duas horas que ele permaneceu junto do alambique, e longe de vista, I. S. disse que procurara convencer o fabricante clandestino que a razão de querer água fresca e não bebida fermentada, era por ser um ministro. O homem replicou que meu pai não tinha ar de pregador e devia ser um agente fiscal incumbido de descobrir o local do alambique. Foi então que o fabricante começou a praguejar e a usar expressões que I. S. disse que nunca tinha ouvido, desde que deixara a lavoura, dos seus tempos de infância.

  1. S. acrescentou que replicou, frisando que era de facto um ministro, e provavelmente fez o mais convincente apelo religioso da sua vida, a um pecador, porque já tinha ouvido dizer que agentes fiscais eram mortos a tiro no local, quando descobriam o local do fabrico clandestino de bebida licorosa. Observou que não se importava com o facto de o fabricante se vingar dele, fazendo com que fosse preso por espantar um cavalo com o automóvel, pois a multa era insignificante.

Disse que, para a outra vez, não só levaria água para beber, mas também usaria o cabeção de padre, para não ficar sujeito à linguagem vulgar e blasfema de um montanhês, mais própria dos ouvidos de um agente fiscal do que de um ministro que há muito se desacostumara de ouvir palavrões.

Era costume, nas estradas, naquela época dos primeiros automóveis, considerar que a direita pertencia ao condutor, quando em sentido contrário vinha um cavalo atrelado a um carrinho, ou parelhas de mulas atreladas a uma carroça. O costume surgiu pelo menos na Carolina do Sul, por duas razões de ordem prática.

Em regra, as estradas tinham apenas a largura de um automóvel, e os condutores de carros e carroças eram avisados para se desviarem do leito da estrada para o campo, onde melhor podiam controlar os cavalos e mulas, evitando que se espantassem e empinassem, perante a vista e o estranho ruído de um automóvel.

Os lavradores faziam isto, para sua própria protecção, mas, desde que os automóveis começaram a ser mais numerosos, o motorista entendia, frequentemente, que, à aproximação de um outro carro numa estrada estreita, só ele tinha o direito de passar. Contudo, era uso corrente na estrada, quando dois carros se encontravam num caminho estreito, um deles recuar para o mais próximo local de maior espaço. Havia então discussão, que podia resultar em troca de socos.

  1. S. saiu cedo, numa tépida manhã de domingo, para conduzir o seu carro de Prosperity para uma igreja da A. P. R., próximo de Newberry, onde devia pregar no serviço da manhã das onze horas. A distância era menos de dez milhas, e ele calculou que levaria uma hora ou uma hora e meia a fazer o percurso.

Era Verão na Carolina do Sul e a estrada, da largura de um carro só, estava seca e poeirenta, e parte dela cheia de sulcos e areia. Como habitualmente, quando as estradas se apresentavam assim, ele envergava uma bata de linho sobre o fato novo.

Tínhamos percorrido metade da distância no nosso Forde novo, cor de creme, de três larguras, que possuía um assento duplo à frente e outro, isolado, na retaguarda, sobre a caixa de ferramentas, quando chegámos a um ponto da estrada que era bastante espaçoso para dois carros se encontrarem e cruzarem folgadamente. Era o sítio em que a estrada, sem montículos de areia, apresentava dois profundos sulcos rasgados no duro barro vermelho. Quando dois carros se encontravam nesse local, era fácil, se ambos os condutores fossem pessoas corteses. cruzarem-se, sem mesmo terem de retardar o seu andamento. O necessário era apenas cada um dos condutores enfiar as rodas do lado esquerdo no sulco do lado direito. Contudo, se o condutor metesse o carro dentro de ambos os sulcos, era impossível tirar o carro de lá e teria de fazer marcha atrás e iniciar de novo o avanço.

Nós avistámos um carro cerca de cem jardas à nossa frente, que avançava para nós a grande velocidade, e o meu pai, imediatamente, enfiou as rodas da esquerda no sulco do lado direito. Havia tempo suficiente para ambos os carros se meterem nos devidos sulcos para poderem passar, e ele julgou que o outro condutor faria o mesmo que ele fez.

Mas o outro carro avançou a direito, utilizando ambos os sulcos da estrada, e sem abrandar nada a velocidade. Quando L S. reparou no que estava a acontecer. carregou nos travões e parou imediatamente o carro. O outro carro começou a abrandar a velocidade, mas não parou senão quando a roda esquerda da frente embateu na nossa roda esquerda, sacudidamente.

O automóvel que chocou com o nosso era um grande “Pierce Arrow”, preto, que parecia uma limusina e nele iam dois outros homens, além do condutor. Todos os três usavam batas, dois sentados à frente e um atrás; saíram logo do carro e dirigiram-se a nós.

Um dos homens começou a falar em voz alta e acusou I S. de se meter no caminho deles. I. S. nada disse em resposta e o outro, raivoso, começou a rogar-lhe pragas. Enquanto isto acontecia, um homem corpulento, de semblante rubro e carregado, começou a agitar-se de um lado para o outro, com a sua longa bata a abanar à volta das pernas.

O homem que praguejava perguntou a I. S. se sabia de quem era o carro que ele estava a obstruir, impedindo a sua marcha. I. S. disse que reconhecera o governador, na pessoa que envergava a bata, mas, fosse quem fosse, estava no seu lugar e não tinha culpa do acontecido.

  1. S. saiu então, a ver se a parte dianteira do nosso carro se ameigara com o choque. Verificou que não havia danos e ficou a aguardar que o carro do governador fosse retirado dali. Já passava muito das dez horas, e pouco tempo restava para chegar a horas à igreja, para pregar.

O governador andava de um lado para o outro, na estrada, sem intervir na discussão. O outro sujeito continuava a rogar pragas contra I. S., em voz alta, mas meu pai limitava-se a abanar a cabeça de vez em quando, sem proferir palavra. Uma carroça puxada a cavalo apareceu na estrada com gente dentro, que ia, evidentemente, a caminho da igreja mais próxima e, a seguir, apareceu uma outra carroça. Ambos os condutores, vendo a estrada completamente bloqueada, meteram-se no campo, torneando os dois carros. O governador fez sinal para pararem e foi cumprimentá-los, apertando-lhes as mãos.

  1. S. voltou para dentro do nosso carro e sentou-se ao volante, aguardando. Era muito depois das onze horas quando o governador voltou, finalmente, depois de falar às pessoas que vinham nas carroças e, como levaria pelo menos meia hora para chegar à igreja, I. S. disse que, pela primeira vez, ia deixar de aparecer a tempo na igreja onde era esperado.

O governador, verificando que I. S. era um ministro, ao conversar com as pessoas que iam nas carroças, caminhou apressadamente para o nosso carro, a apertar efusivamente a mão a I. S. Pediu-lhe desculpa, lamentando o acontecido, e declarou estar à disposição de I. S. para o que fosse preciso.

Meu pai observou que o melhor favor que lhe podia prestar era dizer ao homem, que praguejava e jurava, que se calasse e tirasse o automóvel do caminho. Pelo tempo que perdemos, foi inútil continuarmos a viagem. Sentámo-nos ali, a assistir à manobra do carro do governador, que foi metido nos sulcos apropriados e seguiu, estrada fora, em direcção a Colúmbia.

Havia um local, não distante, onde poderíamos virar o carro, retomando o caminho para Prosperity. Tínhamos percorrido duas milhas, de regresso a casa, quando I. S. disse que o domingo não fora totalmente perdido, porque pelo menos o governador e dois indivíduos, do seu pessoal, tiveram a oportunidade de aprender as regras de cortesia na estrada. Se realmente aprenderam a lição, podia ser que ele votasse de novo a favor do governador nas próximas eleições.

  1. S. disse que, na sua opinião, as estradas fáceis, pardas e lamacentas, próximo do rio Mississipi, em Tennessee, eram as mais acidentadas para os automóveis, de entre todas as estradas que havia percorrido, no Sul. Até as estradas principais estavam empapadas de água, sem cascalho, nem fossos de drenagem, e as chuvas do ano abriam nelas sulcos profundos e enlameados.

Quando as enxurradas não cobriam totalmente as estradas, estas eram perigosamente escorregadias, após as breves chuvadas de Verão ou de Inverno. Todos os que, na nossa vizinhança, possuíam automóvel, também tinham um cavalo e uma carroça, para usarem na época mais dura do Inverno. Além disso, o cavalo era necessário, por vezes, para puxar algum carro atolado num buraco, ou derrapado na valeta em dia de chuva.

A nossa casa ficava próxima da estrada principal, que atravessava o Condado de Tipton, onde vivíamos, a meio caminho entre Covington e Mênfis. Como as outras pessoas que possuíam automóvel, nós possuíamos um cavalo e uma carroça que utilizávamos quando era insensato deslocar-nos no nosso Ford, modelo de 1913. O meu pai tratava com simpatia os donos dos carros que se atolavam na lama da estrada, ou que derrapavam nalguma curva escorregadia, mas disse que não tardaria que os lavradores se cansassem de ceder uma parelha de cavalos, a meio da noite, para ajudar algum acidentado, que muitas vezes não sabia dizer duas palavras de agradecimento.

Era entre a uma e as duas horas da madrugada, após uma grossa chuvada, em meados de Março, quando alguém bateu à nossa porta, pedindo a I. S. que o ajudasse a tirar o carro dum poço de lama. I. S. levantou-se da cama e disse ao forasteiro que não possuía uma parelha de cavalos que puxassem o carro, mas que um lavrador vizinho o poderia ajudar. O forasteiro respondeu que já tinha tentado obter ajuda, em duas quintas, mas que ninguém o queria auxiliar àquela hora da madrugada.

O homem pediu a I. S. que o auxiliasse de qualquer maneira, porque tinha muita pressa de chegar a Mênfis antes do amanhecer. Meu pai perguntou-lhe de onde é que vinha e porque é que tinha pressa de chegar a Mênfis, mas o outro apenas dizia que tinha saído de Kentucky nessa tarde.

Fomos ao celeiro, e enfiámos as correias do arado na cabeça do cavalo da nossa carroça, obtivemos os cabos, um tronco, uma corda, e seguimos pela estrada fora, num percurso de um quarto de quilómetro, até o local onde um grande carro escuro escorregara fundo para uma poça de lama.

A noite era estrelada, embora sem o brilho da Lua, e era fácil ver o que fazíamos. Com os cavalos a puxar e toda a gente a puxar, levantámos o pesado carro ao nível da estrada. Não sabíamos que espécie de carro era, mas pelo tamanho parecia uma limusina.

O dono do carro ofereceu dez dólares a I. S., mas o meu pai observou que lhe era muito grato ser-lhe útil e não precisava de ser pago. Apesar da insistência do outro, que dizia ser bem merecida a paga, e até com mais dinheiro, I. S. continuou a recusá-lo. Quando estávamos prontos para partir, o homem foi à bagageira, tirou uma caixa, de onde sacou duas grandes garrafas de uísque, e ofereceu-as a I. S.

Notámos que o carro, bem pesado, se dirigiu, cautelosamente, pela estrada lamacenta, em direcção a Mênfis, até desaparecer de vista, e então voltámos a casa, na companhia de I. S., trazendo connosco as garrafas de uísque. Quando lá chegámos, recolhemos o cavalo na estrebaria e guardámos as garrafas no meio da palha do celeiro a caminho de casa, para nos deitarmos, disse que nunca tinha prestado auxílio a um vendedor de bebidas, mas não estava arrependido disso, porque foi a única vez que encontrou um homem, que não rogou pragas nem disse palavrões, por causa de um carro atolado.

Como secretário do conselho regional das missões do sínodo da A. P. R., Ira Sylvester estava habituado a tratar de questões religiosas e seculares que eram causa de desunião no seio de determinada congregação. Com. muitos anos de experiência na área de Virgínia até à Florida, era pessoa bem qualificada para assumir uma posição de responsabilidade.

Entre as suas qualificações, era de notar o modo directo com que exprimia os seus pontos de vista religiosos e opiniões pessoais, relativos ao bem-estar da igreja. Calmo e objectivo, a sua franqueza nem sempre o tornava simpático a todos os que com ele contactavam, em local distante ou até na comunidade de que fazia parte. Quanto à sua vida pessoal, ele não se preocupava com a opinião pública e não apresentava desculpa pelos princípios que professava.

Como resultado do seu modo franco de falar, no púlpito ou na rua, Ira Sylvester era frequentemente criticado pelos membros da sua própria igreja, como também por membros de outras denominações que, ou manifestavam respeitosamente a sua discordância, ou se mostravam seriamente ofendidos. Os que faziam críticas ligeiras acusavam-no de falta de ortodoxia. Os que o censuravam severamente, chamavam-lhe irreligioso, e, se ele usava expressões duras, ateu ou comunista.

Não era que Ira Sylvester se deleitasse com a controvérsia ou a favorecesse ou, intencionalmente, a provocasse. O que acontecia era que ele não era caracteristicamente um sacerdote, nas suas opiniões, e não se preocupava com as reacções desfavoráveis quando resolvia, definitivamente, actuar a bem da igreja ou em prol de uma causa de natureza religiosa, mas secular.

Dirigia censuras a muitos, que tinham sido criados em ambiente de província, intelectualmente atrasados por uma educação incompleta, mesclada com fantasia religiosa. Quando assumia uma posição impopular, em matéria discutida, ou quando não emparceirava com algum indivíduo cujo ponto de vista era para ele inaceitável, não exprimia desdém por ninguém, mas dizia apenas que a geração mais jovem seria mais feliz em poder aproveitar as vantagens da educação que tinham sido recusadas à geração mais antiga. Não significava isto que ele julgava ter sempre razão, e nunca se enganar. Quando reconhecia ter laborado em erro, era o primeiro a admiti-lo.

A tragédia da religião, no Sul, como dizia Ira Sylvester quando se achava deprimido pelo predomínio do fanatismo, consistia no facto de povos gloriosos — escoceses, irlandeses, ingleses, huguenotes e outros— terem tido a felicidade de encontrar nos Estados Unidos um lugar de abrigo protestante, mas, seguidamente, terem permitido que a prática da sua religião se tornasse degradada e pervertida. Nunca disse que a religião estava em falta. Queixava-se, sim, da falta de educação adequada e do fracasso dos ministros em imprimir uma orientação inteligente, no decurso de muitas gerações.

Como ele via o fenómeno, o protestantismo exaltado do Sul degenerara num sentimentalismo excessivo — que consistia em glorificar a religião por amor da religião — e todos os valores éticos emergentes da Bíblia eram ignorados e substituídos por grotescas atitudes teatrais de evangelismo e promessas aliciantes de espiritualidade e mortalidade.

A solidão da existência no Sul agrícola, a ânsia humana de uma vida melhor após a morte, a excitação da multidão nas reuniões de domingo, e a suave persuasão do evangelismo eram uma combinação que raramente deixava de produzir abundância de êxtase emocional e físico.

Foi essa longa transformação da vida sulista, e suas inevitáveis consequências —a exultação das fanáticas práticas religiosas que iam desde o encantamento de serpentes as pancadas na cabeça, até fazerem sangue — que influenciaram meu pai, levando-o a tomar uma decisão final, e há muito diferida, acerca do rumo a seguir, no resto da sua vida.

Não se podia dizer que ele tinha fracassado como ministro — foram as práticas religiosas que prevaleciam nalgumas igrejas protestantes e exerciam influência perniciosa no meio respectivo, que o desiludiram por completo.

As missões de Ira Sylvester duravam, usualmente, de seis meses a um ano, embora assim sucedesse antes de ser designado como pastor de uma igreja da A. P. R., no Tennessee ocidental. As dificuldades surgidas no seio da congregação mantiveram-no no seu cargo durante três anos. Quando, finalmente, se demitiu de pastor, ele contou que tinha sido a mais difícil missão, de entre aquelas que fora chamado a desempenhar.

Tratava-se de uma das maiores igrejas pertencentes ao sínodo, com uma congregação de várias centenas de fiéis, e uma das mais prósperas e financeiramente sólidas. Sucedeu que os membros mais abastados que controlavam a tesouraria e todas as finanças da igreja, formaram um grupo de minoria, com o fim de retirarem a igreja do sínodo da A. P. R. e filiarem-se noutra denominação protestante, extremamente fundamentalística na prática.

Para efectuar essa retirada, todos os membros que não se colocaram do lado do grupo dissidente foram dissuadidos de assistir aos serviços da igreja, e, se persistissem em frequentá-los, seriam inteiramente desprezados e ameaçados com o corte de relações.

A razão apresentada pelos membros dissidentes para levarem a comunidade a filiar-se numa outra denominação, foi que os ministros da A. P. R. eram demasiado intelectuais e impessoais, e já não pregavam a religião à maneira antiga. Vários ministros haviam pedido a exoneração nas últimas semanas, por várias razões, e o mais recente a demitir-se saíra do local, porque o grupo de agitadores tinha retirado da igreja os livros de salmos, substituindo-os por livros de hinos.

Quando Ira Sylvester chegou, para o cargo do pastor do Tennessee ocidental, imediatamente mandou retirar os livros de hinos, não autorizados, substituindo-os pelos livros de salmos, da denominação. Em represália, houve um movimento de provocações contra I. S., forçando-o também a demitir-se.

A série de provocações teve início quando foi posta a circular uma petição, pelos membros dissidentes, exigindo que ele se demitisse, porque, em vez de pregar o verdadeiro evangelho, dedicava os seus sermões a matérias seculares. Ao ser-lhe presente a petição, verificou que continha apenas as assinaturas de menos de um terço dos membros da igreja. Rejeitando-a, ele concordou, todavia, em demitir-se, se os membros votassem individualmente, não por mãos levantadas ou maioria relativa, mas sim por maioria absoluta, no sentido de não quererem a sua continuação como pastor. A petição foi retirada e a assembleia não se reuniu.

Meses depois, uma nova campanha se levantou, para o forçarem à demissão. O seu ordenado foi reduzido a metade, pelo tesoureiro, sob pretexto de que as contribuições não eram suficientes para o pagamento total. Esta manobra falhou, quando os membros leais deixaram de lançar dinheiro no cesto da colecta e contribuíram com a outra metade, entregando-lha directamente.

No ano seguinte, outras numerosas campanhas fracassaram completamente, e Ira Sylvester convenceu-se de que tinha conseguido unificar a congregação, prontificando-se a pedir a demissão, para ir para outro lado. Contudo, isto acontecia na altura da participação dos Estados Unidos na primeira Grande Guerra, facto que servia de pretexto para mais uma campanha do grupo dissidente, com o fim de se desembaraçarem dele.

Ira Sylvester serviu-se do patriotismo em tempo de guerra como tema de um sermão, e isto foi causa de uma série de actos vindicativos que se prolongaram pelo ano adiante. Por causa da duração da guerra, ele pôs de lado o seu intento de se demitir.

A princípio, a campanha desenvolveu-se em surdina. Correu depois que meu pai estava a ser pago por uma organização subversiva não identificada, que incitava os rapazes e adultos protestantes brancos a alistarem-se como voluntários das forças armadas, para que fossem enviados à Europa, a fim de serem mortos, e assim, os negros e os judeus seriam poupados, de modo a governarem, no futuro, o país.

O efeito desta campanha surda contra Ira Sylvester levou-o a dedicar uma série de sermões ao tema do patriotismo. Em represália, uma campanha nocturna foi organizada com o propósito de intimidar os jovens que planeavam alistar-se como voluntários no exército e na armada. E ainda, cartazes do governo, a pedir o recrutamento, eram rasgados e queimados, poucos dias depois de afixados em lugares públicos.

Persistiu nas suas prédicas sobre o patriotismo, domingo após domingo, até ser abandonado pelos agitadores clandestinos, que o advertiram que devia abandonar o Tennessee imediatamente. Ele ignorou os avisos, até que começou a receber cartas de ameaça, pelo correio, e mensagens escritas, também ameaçadoras, deixadas à porta principal da casa. Ira Sylvester não fez qualquer participação por ameaças contra a sua vida, mas participou na esquadra mais próxima que os cartazes governamentais estavam a ser queimados. Isto acabou rapidamente com a perseguição, que durou um ano, e nunca mais foi molestado.

No fim da primeira Grande Guerra, chegou à conclusão de que prestara bom serviço, tanto ao seu país, como à sua igreja, e que podia abandonar o Tennessee com a consciência limpa. Pediu a demissão de pastor da igreja e de secretário do conselho regional das missões, e disse que ia procurar outro modo de vida, noutro lugar. Todavia, continuou a ser um ministro da A. P. R.

Estávamos todos nesta pequena cidade, de uma região agrícola do Alabama do Sul, nos fins do Verão, quando o calor já não era demasiado desconfortável. Em regra, caía uma breve chuvada, ao crepúsculo, e sobrevinham as noites, claras e estreladas. As moscas eram gordas e indolentes, nessa quadra do ano, mas as picadelas dos mosquitos produziam comichões toda a noite.

As sessões de revivescência religiosa, no interior da grande tenda castanha, foi anunciada em cartazes pregados aos postes telegráficos, colados nas fachadas de lojas vagas e noutros espaços disponíveis. A campanha devia durar uma semana inteira, de manhã e de noite, e os evangelistas eram marido e mulher, os quais contratavam um dirigente musical, que utilizava um acordeão para acompanhar a cantoria da audiência. A entrada não era paga, mas, no começo e no encerramento de cada reunião, era feito o peditório pelos dois, marido e mulher, que transportavam grandes cestas de verga através das naves, enquanto o acordeonista tocava melodias animadas.

A campanha de revivescência era um empreendimento independente dos dois evangelistas, e não associado a qualquer igreja local. Foi anunciada como uma reunião conjunta das seitas de várias denominações, o que implicava a obrigação de os adeptos de cada igreja assistirem a todos os serviços, mantendo todavia a sua posição religiosa. Alguns estabelecimentos da cidade encerravam de manhã, para que os empregados e patrões pudessem estar presentes. De noite, vinha gente de lugares distantes.

Não era uma daquelas exibições religiosas primitivas, vulgares nos Estados do Sul, nos anos 20, em que o evangelista batia com a cabeça no púlpito, ou tirava do seu braço sangue com que enlambuzava as faces, ou sangrava, um frango, bebendo-lhe o sangue. Mas o meu pai ouvira falar do estilo de cruzada do marido e mulher, e queria verificar pessoalmente como dirigiam as reuniões.

A mulher, da equipa evangelística, era a primeira a falar, da plataforma, após o peditório efectuado na abertura da sessão. Era uma mulher robusta, que parecia ter trinta e cinco anos de idade, com cabelos loiros, soltos, e envergando um vestido preto, cingido ao corpo e que se movia de uma ponta à outra da plataforma com passadas vigorosas, enquanto ia pedindo e implorando a todos os que se encontravam no interior da tenda que se preparassem para dedicar a sua alma a Jesus Cristo. Ela transpirava abundantemente, no calor da noite, e de vez em quando estacava, a meio de uma frase, para enxugar o rosto e o pescoço com uma pequena toalha que estava pendurada num prego, ao lado do púlpito.

O discurso dela era um breve sumário da sua vida antes de se converter ao cristianismo numa sessão revivalista, semelhante a esta, efectuada em Mobile. Disse que tinha vivido para o Diabo, ao cobiçar o vestuário fino e as bonitas jóias de outras mulheres, o que a levou a pensar que o dinheiro e a propriedade eram as coisas mais importantes da vida, ideias essas que a conduziram aos extremos limites da sexualidade. Ao terminar, disse que não podia acrescentar mais nada acerca da sua vida de pecado, diante dos homens presentes, mas que teria gosto em conversar com as jovens mulheres de todas as idades, em particular, ao encerrar o serviço.

Estávamos sentados à retaguarda da tenda, e I. S. mostrava-se inquieto, no seu lugar desconfortável, quando o marido, pertencente à equipa, subiu ao púlpito. O evangelista possuía uma Bíblia grande, encadernada a vermelho, que afagava ternamente, olhando para um lado e para outro, e sorrindo para a audiência de cerca de rtrezentas pessoas.

A mulher sentara-se numa cadeira, à retaguarda da plataforma e agitava um leque, freneticamente, ao falar baixinho para o dirigente musical ao seu lado. Numa pausa do orador, ela cochichou qualquer coisa ao ouvido do músico, que se apressou a tapar a boca com as mãos, quando se pôs a rir.

O evangelista, no púlpito, era um homem alto, magro, de aspecto grave, que teria uns quarenta anos de idade, e que usava fato preto, camisa branca e laço preto. Possuía grossa franja de cabelo castanho e uma calva que brilhava sob as luzes.

A primeira coisa que o evangelista fez foi mandar que todos, dentro da tenda, inclinassem a cabeça e orassem em silêncio, durante um minuto. Depois, batendo sonoramente na Bíblia, disse que todos os presentes, que quisessem ser salvos por Jesus Cristo e ir para o Céu, se levantassem e mostrassem o seu desejo de receber a salvação.

  1. S. levantou-se, como todos os outros, e começou a aproximar-se da mais próxima saída da tenda. Saímos para o recinto relvado, precisamente quando o evangelista recomeçava a contar a história da sua vida de pecado, antes de ter recebido a salvação numa sessão como a que estava decorrendo. Cá de fora ouvíamos a sua voz a avolumar-se cada vez mais. Havia vários outros homens nas proximidades, que escutavam, na penumbra, durante instantes, e comentavam, depois, o que o evangelista dizia dos seus pecados.

Um dos homens perguntou a I. S. se voltaria ao interior da tenda, quando fizessem o apelo a todos os que tivessem pecados, que subissem à plataforma, para receber a salvação. A sua resposta foi que, se tivesse pecados, preferiria lutar contra eles em privado, e não em público. Ao retirarmo-nos, um dos homens observou, em voz suficientemente alta para que I. S. ouvisse, que havia um pobre diabo que estava, evidentemente, tão carregado de pecados, que tinha vergonha de os confessar em público, o qual ia perder a única oportunidade que tinha de alcançar a salvação.

Imediatamente a seguir à primeira Grande Guerra, na última fase dos anos 20, a Jórgia ocidental estava possuída da loucura do “baseball”, e o entusiasmo pelo jogo era tão grande entre os espectadores, como entre os jogadores. Havia outras regiões do Sul, em que a loucura era exuberante; todavia, não parecia haver maior paixão por aquele desporto do que nas numerosas cidades pequenas dos condados de Jefferson, Washington, Glascock, Burke e Emanuel.

Não havia uma liga organizada de equipas semiprofissionais, mas isso pouco importava, porque a rivalidade entre as equipas era tão grande, e o partidarismo dos adeptos exprimia-se por forma tão passional que cada jogo era disputado como se se tratasse de um desafio importante entre as equipas de vulto. A competição mais intensa era sempre entre equipas que representavam cidades vizinhas, cujas populações estavam já habituadas, há muitos anos, às competições liceais de “baseball” e de futebol.

A diferença era que o “baseball” meio profissional era jogado pelos adultos, por dinheiro, e não pelos rapazes, por divertimento e a bem do desporto. Nestas circunstâncias, era inevitável que, por vezes, surgissem cenas de soco nas bancadas e no campo, e os árbitros fossem agredidos, tendo de ser escoltados para fora da cidade. Eis porque aparecia sempre no parque de jogo polícia extraordinária, armada de pistolas e cacetes, para manter a ordem e evitar sérias ofensas corporais. Quando algum entusiasta conflituoso era detido, algemado e conduzido à esquadra, era posto em liberdade após o jogo, a tempo de ir para o jantar.

Toda a gente andava excitada, quando havia algum jogo de semiprofissionais — até o marcador de golos. O ser um marcador oficial, durante uma época, nos jogos disputados no campo local de uma das equipas do Condado de Jefferson, provocava imediata reacção, quando algum jogador visitante era responsabilizado por um erro, ou não era creditado por um golo, e a decisão era afixada no quadro do campo. Se o jogador ofendido se indignasse e corresse em direcção à bancada do marcador —arrancando, no caminho, a raqueta de outro jogador—, a protecção da polícia era sempre reconfortante.

Durante a época de “baseball”, de Abril a fins de Setembro, quando fui marcador e estatístico, pelo clube semiprofissional do Wrens, era costume programar pelo menos um jogo por semana, no campo local, e de preferência num sábado à tarde. Durante o último mês da época, um segundo jogo era fixado para outro dia da semana.

Nesse último mês, poucas eram as pessoas da cidade que não andassem preocupadas com as vitórias e derrotas da equipa local. Parecia que todos —droguistas, lojistas, carteiros, paquetes, mecânicos de automóveis e até médicos e dentistas— usavam um barrete de “baseball”, como sinal de apoio à equipa local e como modo de exprimir entusiasmo pelo desporto”

Ainda que meu pai não usasse um barrete de “baseball”, assistia a todos os jogos. Mais, era membro do clube de apoio que havia sido fundado com o propósito de promover a obtenção de fundos que proporcionariam ao jogador um bónus no fim da época. O clube não tinha dificuldade em obter o necessário dinheiro, concedido por comerciantes e médicos entusiastas.

Mais tarde, todavia, em vez de dissolverem o clube de apoio, quando se realizaram os seus fins, alguns dos membros começaram a fazer apostas de grande valor com adeptos de equipas, em Louisville, Sandersviíle, Swainsboro, Waynesboro, e outras cidades vizinhas. Quando I. S. soube do caso, desligou-se imediatamente do clube.

Todos os homens do clube de apoio eram membros de várias igrejas da cidade. Alguns eram pessoas de idade, ou diáconos, e todos eles possuíam convicções religiosas arreigadas. Sucedeu que foram apostadas consideráveis quantias, num dos jogos finais da época. Na noite anterior ao jogo, correu o boato de que a equipa visitante havia contratado um apreciado atirador de “baseball” que tinha feito um jogo admirável na semana anterior, numa das outras equipas semiprofissionais da Jórgia oriental.

Era tarde de mais, pois, para impedir as apostas, e alguns dos membros do clube de apoio estavam tão preocupados sobre a eventual perda de dinheiro, que foram ter com I. S. a uma hora tardia da noite. Pediram-lhe que se dirigisse ao vestiário da equipa local, ao iniciar-se o jogo do dia seguinte, e que rezasse pela vitória dos jogadores.

  1. S. observou que era um dos pedidos de oração mais irreligiosos que jamais lhe fizeram. Então, disse-lhes que nem sequer ia ao campo assistir ao jogo de “baseball”, porque a sua presença podia ser interpretada, por alguns membros do clube de apoio, como aprovação das apostas e podiam pensar que ele estaria a orar, em silêncio, para ganharem as apostas. Ao retirarem-se, disse que não lhes desejava má sorte; mas que, se perdessem a partida, talvez fosse o fim da organização, que degenerara em clube de apostadores.

O jogo do dia seguinte foi ganho pela equipa visitante, e os homens que perderam as apostas atribuíram a culpa a I. S. Os que comentaram o sucedido, nos dias seguintes, disseram estar convencidos de que ele tinha rezado, em silêncio, pela vitória da equipa visitante para que eles perdessem o seu dinheiro.

Quando contaram isto a I. S., este sorriu, e não fez qualquer observação.

 

Após quase vinte e cinco anos de serviço, como secretário do conselho regional das missões, do sínodo da A. P. R., durante os quais fora pastor de numerosas igrejas nos territórios do Sul, Ira Sylvester disse que tinha chegado a ocasião para realizar uma ambição que acalentara toda a vida. No passado, ele esteve quase para se demitir do ministério, mas nunca a sua decisão fora tão firme como agora.

Estávamos na primeira metade dos anos 20. O sistema de plantação florescia, mas não em benefício económico e social dos homens analfabetos e subprivilegiados, nem dos segadores e operários negros. Nesta altura, I. S. estava mais convencido do que nunca de que uma adequada educação seria o único processo efectivo de ajudar a aliviar a depressão humana que se verificava no Sul, situação que as práticas religiosas de muitas denominações protestantes mantinham ou ignoravam. Foi este desejo de tomar uma parte activa na educação da geração nova que o levou a decidir ser professor de escola oficial, a trabalhar plenamente.

A fim de se qualificar devidamente para professor, licenciado em Letras, Ira Sylvester programou a sua vida, de modo a poder dedicar-se ao estudo num total de dois anos, primeiro na Universidade de Colúmbia e, finalmente, na Universidade de Jórgia.

Talvez para cumprir uma jura que tivesse feito à mãe, ou talvez como um meio de dar apoio financeiro, o certo é que aceitou a direcção permanente, como pastor, de uma igreja da sua denominação em Wrens, uma pequena cidade de Jórgia oriental, próxima de Augusta. Nos anos seguintes, conseguindo licença para se ausentar, frequentemente, do seu lugar de pastor, e ganhando dinheiro para cobrir algumas despesas universitárias, através de colaboração com artigos de fundo para um dos jornais de Augusta, obteve a licenciatura pela Universidade de Jórgia.

Primeiro, como professor de inglês no liceu de Wrens, e, mais tarde, professor de ciência e história, não achou suficiente para satisfazer o seu conceito de adequada educação para exercer o ensino liceal. Convencido de que o estudo escolástico devia ser doseado com o treino físico, organizou a primeira secção de atletismo, e, em aditamento aos seus deveres propriamente de ensino, fomentou os jogos de futebol, basquetebol, “baseball” e corridas. Também ele tinha praticado o atletismo. Além de jogar o “baseball”, jogara como centro da equipa futebolística dos tempos do colégio, constituída por doze jogadores — onze em campo, e um sentado nas bancadas, como suplente, no caso de haver algum lesionado. Apesar de os seus deveres de professor, com horário completo, durante cinco dias, e a prática de jogos desportivos por seis dias, em cada semana, o deixarem livre apenas aos domingos, para o exercício das suas funções de pastor, não havia queixas. Pelo contrário, os membros deram a sua aprovação quando I. S. lhes disse que, se ele não podia incutir-lhes a necessária inspiração religiosa, durante o serviço dominical da manhã, então sentia que era escusado tentar suprir a. sua ineficiência, celebrando serviços de oração nocturnos, aos domingos e quartas. As únicas objecções foram as apresentadas por alguns dos membros de outras igrejas protestantes, dado que não tinham o privilégio de dispensarem dois serviços por semana.

Sucedeu que muitos pais de estudantes liceais afirmaram que preferiam ter um pastor, como meu pai, que mantinha os filhos e filhas deles ocupados com a prática desportiva seis vezes por semana, do que ter um pastor cuja única preocupação era pregar sermões dominicais, bem intencionados mas ineficientes, em que condenavam a vida de pecado da moderna juventude.

Estando já habituado a ser criticado por alguns pelas suas opiniões discordantes acerca de certas práticas religiosas protestantes, Ira Sylvester não se perturbou com as observações desfavoráveis que lhe faziam a propósito do seu interesse pelo desporto. As críticas surgiam quando se faziam apostas e a equipa futebolística do liceu perdia algum jogo importante, ou quando ele e o motorista de autocarro faziam alguma excursão, até ao dia seguinte, com uma equipa de dez ou doze raparigas novas, sem outra companhia.

Um dos apostadores da cidade, dentista, fez uma advertência a I. S., porque uma vez perdeu cem dólares no último jogo de futebol da época.

Foi quando lhe perguntei acerca do palpite sobre a, vitória, naquele desafio de futebol. Foi só isso que perguntei, e então, ele quis saber por que razão me preocupava tanto com tal coisa. Respondi-lhe que eu era um grande adepto da equipa liceál e perdia a cabeça quando assistia a algum jogo.

Ele sábia tudo acerca de mim e porque é que eu procurava descobrir algo. Não era fácil de enganar. Por isso é que me olhou de frente e como que sorriu um pouco. Já era de esperar que ele não pregasse como muitos pregadores o fazem.

Começou a falar acerca da má preparação da equipa. Disse que dois dos seus melhores jogadores tinham lesionado os joelhos, num jogo que disputaram na semana anterior e que um outro ainda coxeava de um tornozelo inchado que resultara de um outro desafio, e que os dois suplentes não ofereciam resistência bastante contra uma equipa pesada.

Assim falou ele durante muito tempo, abanando a cabeça e parecendo cada vez mais triste, e parecia que queria acabar com o jogo para que não houvesse mais rapazes lesionados. Até me fez sentir triste, também, por os nossos rapazes serem assim dominados por um bando de latagões.

Nessa altura, ninguém dotado de senso teria apostado naquela equipa, sem possuir todos os pontos do mundo, e mesmo então, eu não me sentiria à vontade para arriscar os meus cem dólares, depois de ver a maneira como ele falava.

Sabe, então, o que aconteceu? Ele pôs-se a falar acerca dos dois defesas, e como eram habilidosos, e como passavam bem a bola. Parecia, na realidade, satisfeito, enquanto falava deles, e não se podia deixar de pensar que ele tinha a certeza absoluta da vitória, nesse desafio.

Bom, quando ele parou de falar, deixou-me tão confuso que tive receio de apostar por uns ou por outros — ganhar ou perder, pontos ou nenhuns pontos. E sabe o que aconteceu? Eles ganharam o desafio tão facilmente, com aqueles três rapazinhos a jogar como suplentes, que até tive pena dos latagões que derrotaram.

Fez-me parar na rua e perguntou-me se eu tinha gostado. Estava a querer saber como é que eu apostei sem primeiro fazer indagações. Eu disse-lhe a verdade. Disse-lhe que ficara tão confuso com o que lhe tinha ouvido, que nunca mais o abordaria para saber qual era a previsão dele quanto a determinado jogo.

Pareceu ficar realmente satisfeito por me ouvir, porque gostou de saber que eu tinha ficado confuso e receoso de apostar, depois de o escutar. Foi então que ele disse que procurava evitar que a sua equipa se tornasse demasiado confiante, porque era uma maneira certa de perder o jogo, e, além disso, estragava o jogo aos entusiastas de futebol, se estes previssem o resultado antes de se iniciar o jogo.

Nunca mais procurei prever o resultado, através dele, e era isto mesmo que ele queria. Não era daqueles que ofereciam dinheiro às pessoas, para apostarem nos seus rapazes de liceu. Queria que jogassem a bola para seu próprio bem — e não para gente, como eu, que se dedicava a apostas.

Foi já anos depois da morte de Ira Sylvester que eu perguntei a um dos irmãos mais novos dele se sabia qual a razão por que a mãe pediu a meu pai que estudasse teologia e ingressasse e se fizesse ministro, em vez de o encorajar a estudar para professor ou a escolher uma outra carreira, depois de concluir o curso.

Meu tio disse-me que estava surpreendido com a pergunta, porque pensou que meu pai me tivesse contado as razões, há muito tempo. Observei-lhe que tinha feito a pergunta ao pai, mas que este se limitara a dizer que quando saiu de casa para entrar no colégio, a mãe dele lhe pedira para se fazer ministro da igreja da A. P. R. Assim foi, e como ele não quisesse adiantar mais nada, eu também não lhe perguntei quais tinham sido os motivos particulares de sua mãe para lhe fazer tal pedido, ou se ele tinha feito à mãe qualquer promessa nesse sentido.

A resposta de Bud era, sincera, e suponho que ele pensaria, ter de recuar muita no passado, se tentasse explicar as circunstâncias em que o caso aconteceu, há tanto tempo. De qualquer modo, a Mamã tinha uma razão qualquer para fazer o pedido. E no seu ponto de vista, a razão era boa.

Assim, não tendo Bud dado uma explicação satisfatória, creio que o fez para eu não ter preconceitos a respeito da religião. Ele sustentava que a educação sem preconceito dava às pessoas maior aptidão para enfrentar a vida. Não porque ele acreditasse que uma mente treinada era um fim em si própria, mas sim que proporcionava o meio de se tomarem decisões inteligentes — e que as melhores decisões eram aquelas que se achavam isentas de preconceitos.

Por isso é que, provavelmente, nunca me dizia qual era a sua crença particular, nem tentava impor-me a sua fé. O que ele fazia era obrigar-me a encarar a vida e religião. E, se não aprendi muito nas viagens que fiz com ele, pelo país fora, a culpa foi minha. Oportunidade não me faltou.

Eu não podia assistir à celebração da missa e da comunhão, e ao ritual do lava-pés e do sangue espalhado pélas faces, sem sentir a alegria da posse na liberdade de aceitar a parte que queria, da religião, ou de a rejeitar inteiramente.

Eu lhe conto uma outra faceta de Bua. Ele não se interessava ou se preocupava com a religião mais do que eu — o que pouco significa — quando terminou o curso liceal e se preparava para entrar no colégio. Mas a Mamã interessava-se, e foi quando lhe disse que queria que ele estudasse para ministro. Eu não ouvi o que ele lhe disse, mas, o que quer que fosse, era o bastante para ele o fazer por amor dela.

A Mamã frequentava a igreja. Vivia para, a igreja seis dias por semana e contava os dias que faltavam para o domingo. A única vez que a vi faltar à igreja aos domingos, foi por estar doente e não poder levantar-se da cama — o que poucas vezes aconteceu durante a vida dela. Não me perguntem, como é que ela adquiriu esse hábito, pois eu não sei: responder. Suponho que a religião a impressionou muito, como acontece a muitos, e ficou a envolvê-la toda a vida. Ela lia a Bíblia diariamente, rezava muito, e praticava todos os actos com devoção religiosa.

Mas o problema estava em que nunca conseguiu que o Papá frequentasse a igreja ou se interessasse pela religião, por mais que pedisse, implorasse, rabujasse ou ralhasse. O Papá faria tudo o mais; não isso.

Muitas vezes a” Mamã procurava que o Papá lesse a Bíblia, mas ele observava que não tinha instrução suficiente para ler coisas tão transcendentes. Quando ela convidou o pregador para vir a casa proferir orações, o papá lembrou-se de que tinha que fazer, no celeiro ou no campo. E se ela procurava levá-lo à igreja consigo, ele dizia-lhe que tinha de ficar em casa, pois a mula podia adoecer e precisar do veterinário.

Ela, muitas vezes, era provocada pelo Papá, e por vezes chorava, mas nunca perdia a calma, nem se zangava, nem o chamava ateu, nem lhe dizia que havia de ir para o Inferno, nem coisa semelhante. Quando lhe procurava falar sobre religião, ele dizia que aguardava, a ver se a religião viria ao seu encontro.

Eis como tudo acontecia em casa, e Bud cresceu, como todos nós, os outros cinco, neste ambiente.

Nunca cheguei a saber o que Bud sentia acerca de religião ou acerca do facto de ele ser um ministro. Ele ouvia muitas discussões entre a Mamã e o Papá, mas nunca tomou partido, mas julgo que ia formando as suas próprias opiniões.

Tudo o que sei é que antes de deixar a casa para ir para o colégio, ia às vezes com a Mamã à igreja, outras vezes não. De qualquer modo, nós éramos de mais para irmos à igreja aos domingos, ao mesmo tempo, na carrinha, mesmo quando o Papá ficava em casa. Era assim que sucedia, e não penso que Bud tenha jamais ido à igreja mais do que uma vez, de mês a mês. E quando ficava em casa e não saía a pescar ou a caçar lebres com o Papá e comigo e outros, lia livros durante o domingo todo.

Depois de Bud ter deixado a casa para ir para o colégio, nunca tive notícias bastantes dele para saber o que pensava acerca do que a Mamã queria que ele fizesse. Frequentou o colégio e o seminário teológico durante dez anos, trabalhou algures, no Verão, esteve algum tempo na guerra de Cuba. Depois disso, ou viajava, ou pregava em qualquer parte, desde as Carolinas até ao Arkansas e Texas.

Julgo que a Mamã ficou definitivamente satisfeita quando Bud se fez ministro, pois que ela nunca nos disse, a nós, os outros, que seguíssemos a mesma carreira. Talvez quisesse que ele fosse ordenado ministro, porque o Papá não frequentava a igreja, ou então porque ele era o mais velho e ela esperava que ele nos servisse de exemplo. Contudo, nenhum de nós quis seguir-lhe o exemplo. E ela deve ter ficado também completamente satisfeita, porque, depois disso, nunca mais disse nada ao Papá acerca da frequência da igreja, das orações, ou da leitura da Bíblia. Eu nunca soube o que o Papá pensava acerca de Bud ter decidido frequentar um seminário teológico e preparar-se para o lugar de ministro da igreja, mas eu sei que sentia orgulho pelo facto de Bud ter recebido uma educação superior. Se o Papá fés alguma vês algum comentário sobre o facto de ele ser um ministro, aposto que foi a querer significar que um pregador na família era o suficiente, até a religião mostrar, por si, o seu próprio valor.

 

Como era de esperar, verificaram-se algumas mudanças importantes na doutrina teológica e nas práticas religiosas, entre os protestantes anglo-saxónicos dos Estados Unidos do Sul, durante as décadas entre os anos 20 e 60.

Além de manifestos escandalosos de jovens teólogos radicais que afirmam a morte de Deus, e a inovação dos púlpitos teatrais, talvez a mudança mais visível no dogma religioso e no estilo de culto, das igrejas protestantes do Sul tenha consistido na brecha, cada vez mais ampla, entre os fundamentalistas fanáticos e os modernistas conservadores, que crêem no Ente Supremo.

O conflito entre as facções fanáticas e conservadoras foi agravado e intensificado, durante anos, pelos extremos da pobreza e da riqueza que dividiram a população, social e economicamente.

Os pobres e os subprivilegiados são facilmente estimulados, sentimentalmente, por evangelistas que prometem uma vida melhor além da morte, assim como políticos oportunistas prometem uma vida regalada, aqui e já.

Os sulistas brancos, frequentadores de igrejas, ricos e sofisticados, sentindo-se social e economicamente seguros, desdenham a exibição das suas emoções em público e cumprem os seus deveres religiosos, frequentando os serviços da igreja durante uma hora, aos domingos de manhã, cantando hinos e escutando as prédicas inofensivas do seu pastor.

No decurso destes anos recentes, as práticas religiosas dos fanáticos e dos conservadores passaram a diferir tanto umas das outras que só existem hoje dois elos a uni-los. Um destes elos é a Bíblia, embora as interpretações da Bíblia de cada uma das facções sejam divergentes. O outro elo é a consciência idêntica do evangelista fanático e do pastor conservador a respeito do preconceito racial dos sulistas brancos, e a comum atitude de evitar prédicas inflamadas acerca do problema da integração ou dos direitos civis. Só um ministro excepcional deixará de circunscrever os seus comentários do púlpito ao louvor de Deus e à renúncia ao pecado.

Contudo, os protestantes, na sua maioria, nem são fanáticos, à beira da loucura, nem ultraconservadores no limiar da calamidade sentimental. Trata-se de pessoas comuns, vulgares, bons vizinhos, gente que vive o seu dia-a-dia nas quintas isoladas da província nos “bungalows” das pequenas cidades, e nos apartamentos povoados da cidade. São centenas de milhares de cidadãos frequentadores de igreja e cumpridores dos seus deveres, de uma lealdade inflexível para com a sua fé ou seita — a grande massa dos indivíduos conscienciosos para quem a consolação terrena da religião e a perspectiva da imortalidade celestial proporcionam conforto espiritual e paz de espírito.

Talvez alguns destes milhares de pessoas, de convicção religiosa, tenham sofrido lavagens de cérebro e tenham sido induzidos a converterem-se a alguma seita religiosa particular por evangelistas, ou por parentes activistas. Outros terão aderido a uma igreja simplesmente para adquirir prestígio na vida social e comercial de uma comunidade dominada pela religião, onde a divisa do próspero homem de negócios é “Cristo foi o primeiro Rotário”, ou “Não venda Cristo barato”. E alguns talvez assistam a serviços religiosos e professem uma crença religiosa só por receio de, no futuro, viverem uma vida isolada e sem amizades.

Mas, na maior parte, os frequentadores de igrejas das capitais, das cidades e da província, são aqueles que herdaram de seus pais e avós uma crença religiosa tradicional. E, tal como aqueles membros de uma comunidade, que se orgulham excessivamente de um nome de seus antepassados, as pessoas que nascem no seio de uma fé religiosa sentem-se superiores aos retardatários que são apenas convertidos.

Porém, quer frequentem a igreja como convertidos, quer como cristãos natos, muitos deles seriam incapazes de justificar a sua filiação em determinada seita, com a mesma convicção com que justificariam a sua lealdade ao mesmo partido político dos seus ascendentes. No entretanto, trata-se de críticos dedicados, que aceitam, sem discutir, as crenças de certa fé religiosa, com a mesma inevitabilidade com que glorificam e, assiduamente, perpetuam o nome dos seus antepassados, de geração em geração.

O protestante sulista branco, santo ou pecador, prende-se às suas convicções religiosas com uma tenacidade inabalável. Quer tenha praticado actos de boa vontade, quer ilícitos, na semana anterior, raras vezes deixa de estar presente nas bancadas da igreja, aos domingos, inclinando a cabeça com-a devida piedade.

É neste expansivo e populoso lar dos sulistas evangelizados que se encontram as pessoas inteligentes, educadas, progressivas, confiantes, generosas e bondosas, que personificam o carácter da comunidade em que vivem. As comunidades em que essas forças predominam não se encontram facilmente num miasma de preconceito, mas existem, aqui e além, nos Estados do Sul.

Ao mesmo tempo, em todas as comunidades do Sul, grandes ou pequenas em população, existe uma organização subterrânea, activa ou potencialmente activa, de adversários dos direitos cívicos e da justiça social que outros reconhecem, a favor dos não-brancos, opositores que agem na sombra da noite, aterradores e terroristas que, aos domingos, adoram a Deus nas suas igrejas manifestando-se ostensivamente com suspiros, e ais, e aleluias de ardor religioso. Estes são os segregacionistas duros, de mentalidade feudal, os brancos imbuídos de superioridade, os inveterados inimigos do negro, que, durante a semana, não têm pejo em ignorar, por conveniência própria, o preceito bíblico que proclama a fraternidade de todos os seres humanos. Esta divisão entre os três Estados do Sul e a formação dos grupos fanáticos e conservadores não resultou de uma disputa religiosa, mas foi trazida pelo progresso revolucionário social e político dos anos 60.

Nos primórdios do século, a religião pairava alto e à margem da vida secular e existia apenas para os valores espirituais. Não havia, nessa época, compromisso com os negócios do mundo. Por um lado, um homem dedicava-se de todo o coração a uma fé ou seita particular, e de boa vontade se tornava um leigo que oferecia o seu tempo e a sua energia mais aos assuntos da igreja do que ao seu comércio ou profissão. Se assim não fizesse, ele era olhado como sendo uma das almas perdidas que se recusavam a ser convencidas de que a religião era mais importante que qualquer outro objectivo na vida mundana.

Mais tarde, todavia, verificou-se que era útil buscar auxílio económico fora da igreja, a fim de realizar fins evangelísticos. Assim sucedeu quando denominações protestantes solicitaram grandes somas de dinheiro para construir templos e tabernáculos e missões, nas cidades que se desenvolviam, e para estabelecer as suas escolas próprias, seminários e colégios. E assim, o homem de negócios, a princípio escarnecido, foi convidado a dar a sua contribuição e a ingressar na igreja, tal como era.

A amálgama que resultou da igreja e do comércio floresceu a seu tempo e desempenhou o seu papel. Mas, como em todas as eras da história protestante, atingiu uma fase de amargas discussões e recriminações. Nestas circunstâncias, a causa não foi uma disputa doutrinal, mas uma divergência secular acerca da política eclesiástica contemporânea respeitante à igualdade racial e aos direitos cívicos. Foi nesta emergência, quando a unidade não era possível, que os fanáticos seguiram uma direcção e os conservadores, eufóricos, tomaram a direcção oposta. Embora cada uma das facções se mostrasse satisfeita em se libertar da outra, nenhuma delas abrira as portas da igreja aos não-brancos.

O que quer que a próxima era traga de novo ao Protestantismo Sulista, é evidente, nos anos 60, que a tessitura secular e religiosa da civilização, nos Estados do Sul, se desfiou e passou de moda, com o rodar do tempo.

Um tanto envergonhada e cônscia dos seus actos, emaranhada na teia rota, tecida por indivíduos bem intencionados, mas socialmente ineptos, das eras passadas, uma geração nova e mais esclarecida está já a modificar e a amoldar o futuro.

Nos tempos vindouros, haverá, provavelmente, conflitos e movimentos de rebeldia, mais drásticos do que no passado, mas ao menos hoje há a certeza de que o protestantismo sulista, quer praticado no tablado desnudado das missões instaladas em barracas, quer nos tabernáculos alcatifados e embelezados de vitrais, possui o desejo e a aptidão necessários para sobreviver, ao menos por mais uma geração.

Enquanto os protestantes anglo-saxões dos Estados do Sul evangelizavam, ardorosamente, os povos da sua própria cor, na cidade e província, de fronteira a fronteira, durante os primeiros anos do século vinte, os negros sulistas eram considerados indesejáveis convertidos ao cristianismo.

Embora missionários brancos, protestantes, estivessem a ser enviados para África para redimir as almas dos negros nativos, pagãos, na sua prática receava-se que os negros sulistas se revoltassem contra o facto de serem mantidos nos lugares que lhes eram circunscritos, ao imbuírem-se, demasiadamente, do espírito de fraternidade cristã, julgando que teriam o privilégio de confraternizarem, social, política e religiosamente.

Esta exclusão das grandes campanhas evangélicas, nos Estados do Sul, mantinha os negros onde sempre estiveram— do lado de fora. E, quanto a estes, a preocupação dos negros, nessa época, não era acerca do destino das suas almas na vida do além, mas sim acerca da imediata sobrevivência física e bem-estar, num ambiente social e económico hostil, na Terra. A perspectiva da salvação de suas almas por um Jesus Cristo branco e a continuação de uma vida marginal, num Céu, administrado por um Deus branco, carecia do apelo humano de um melhor tratamento na vida terrestre.

Diferentemente dos negros do Norte, cujas igrejas tinham sido fundadas, desde Filadélfia a Boston, muito antes da Guerra Civil, poucos negros do Sul, quaisquer que fossem os seus anseios espirituais, possuíam o mais ligeiro conhecimento de qualquer fé religiosa organizada, quando se libertaram da escravatura. Nesta sociedade primitiva, era inevitável que os rumores da misteriosa intervenção de Deus houvessem de incorporar-se, juntamente com a pata de lebre, e o chifre de vaca, e a escama de serpente, nas superstições do povo.

Mesmo após a escravatura, gerações passaram antes que a sociedade dominante, branca, permitisse o ensino elementar que libertasse os negros do absoluto analfabetismo, de modo a poderem soletrar a Bíblia ou qualquer publicação impressa. No entretanto, e já em pleno século vinte, o único conhecimento que os negros possuíam da religião organizada era o exemplificado pela piedade dos frequentadores de igreja, protestantes, brancos.

Os poucos negros do Sul que haviam assistido aos serviços religiosos dos protestantes anglo-saxões eram antigos escravos. Eram indivíduos idosos e subservientes — Tio Pete, Tia Maria, Mamã Beulah — aos quais haviam conferido a distinção de serem denominados “boa gente de cor” e, por essa razão, admitidos ao balcão da igreja branca, aos domingos. Mesmo assim, a admissão ao balcão, designado por “céu negro” pelos brancos das primeiras plantações do Sul, era mais uma ordem do que um convite.

A concessão deste privilégio dominical ajudava a ressalvar a consciência. Era uma espécie de recompensa, tardia e final, por uma vida inteira de obediência e trabalho para obtenção de alimento, vestuário e habitação, como moços de recados, governantas, cozinheiras, criados e ajudantes. Os trabalhadores das plantações e operários— homens e mulheres — eram considerados demasiado incrustados — e sujos e grosseiros, para gozarem de tal privilégio.

Durante muitos anos a seguir à Guerra Civil, contudo, após a morte dos criados domésticos mais velhos e quando todos os negros tinham sido afastados dos coros das igrejas brancas, como afirmação da supremacia branca e de segregação expressa, os negros do Sul que trabalhavam nos campos e os segadores eram pobres de mais para poderem construir igrejas próprias.

Mesmo assim, à excepção dos criados domésticos, o domingo era um dia de descanso e, em vez de serviços de igreja, havia reuniões da comunidade negra, junto de uma ribeira, em torno de uma fogueira de lenha, num bosque, no Inverno. Nestes pontos de encontro, ao ar livre, a principal actividade, além da distribuição de alimentos e conversação, era o canto e a entoação de seculares canções de trabalho. Como não havia livros de hinos, nem se conheciam os cânticos sagrados, à medida que o tempo ia passando, muitos dos cânticos e das canções seculares do campo, eram gradualmente parafraseados, transformando-se, enventualmente, em espirituais religiosos, próprios para serem cantados na igreja.

Todavia, independentemente da inspiração e da letra dos espirituais, as notas e o ritmo originais, musicais, das canções de trabalho permaneceram imutáveis durante anos. E, além disso, muitos destes espirituais há muito que atravessaram a fronteira racial e são, desconhecidamente e ingenuamente, cantados agora, muitos anos mais tarde, nalgumas igrejas protestantes do Sul, com as melo dias originais dos cânticos eróticos livres dos operários negros, em grupos de doze.

As implicações expressas nesses grupos, ou eram referências satíricas e descorteses às práticas sexuais sem aventura, da raça branca, ou as implicações eram referências ostensivas e reais a imaginárias aventuras sexuais entre homens e mulheres da sua própria raça. Quando entre si, as canções eram descontraídas; quando algum branco podia ouvir, as canções eram mais veladas.

O ilimitado objectivo do grupo ia muito além das referências às aventuras sexuais de um branco com uma negra, e ainda mais além da franca descrição da prolongada e aliciadora sedução de um negro por uma branca. Eram estas as canções eróticas de trabalho dos negros dos campos de algodão, e dos engenhos, que se transformavam em espirituais quando iam à igreja, e se transformavam em jazz quando iam à cidade.

Só nos primórdios do século vinte, cinquenta anos ou mais após a Guerra Civil, é que era economicamente possível construírem-se algumas igrejas negras nas pequenas cidades e comunidades de província dos Estados do Sul. Mesmo então, a população negra continuava a ser predominantemente rural e iletrada e sem aptidão para ler as Bíblias; e os hinários eram inúteis, mesmo quando disponíveis.

Os serviços religiosos, nestas circunstâncias, eram primitivos, e, na maior parte, dedicados ao canto de espirituais. Em vez de um sermão e oração, era costume qualquer inspirado erguer-se e apresentar uma versão desenvolvida e calorosa de alguma narração bíblica familiar.

A história mais repetida, de entre todas — transmitida de pai ou avô, que a ouvira num coro de igreja branca nos tempos da escravatura — era a de Jonas e a baleia. Noutras regiões, apenas algumas poucas igrejas urbanas, nessa era, tinham a possibilidade de direcção de um ministro culto, que pudesse ler trechos directamente da Bíblia e recitar a letra dos hinários.

Quando as igrejas eram construídas em regiões agrícolas — o que era a regra, no começo dos anos 19 — poucos eram os que nelas se filiavam, em comparação com a população. A principal razão por que muitos negros tinham relutância em aderir a uma igreja era porque não desejavam ser convertidos e ser obrigados a comparecer nas reuniões do que lhes parecia ser um ramo segregado do cristianismo de raça branca. Como o cristianismo, personificado pelos baptistas e metodistas anglo-saxões, era a única religião deles conhecida, e tão definitivamente associado com o patrão e o senhorio branco, receavam ser compelidos a passar a eternidade onde o Deus de raça branca continuasse a impor-lhes a mesma crueldade e injustiça que sempre tinham sofrido.

As igrejas negras eram construídas sem torre, nem campanário, e os edifícios anexos eram propositadamente deixados sem pintar. A razão não era só a falta de dinheiro para comprar tinta e um sino. Como se tornou tradicional, entre os protestantes anglo-saxões, erigir torres agudas e pintar as suas igrejas de branco, poucos negros eram inclinados a assistir aos serviços religiosos no interior de um edifício altaneiro e esplendorosamente branco, que para eles constituía um símbolo da dominação da raça branca.

Mais tarde, durante esta era de sujeição económica no Sul agrícola, particularmente desde os anos 19 da Primeira Grande Guerra, muitos negros verificaram que o único lugar terrestre de refúgio temporário do tormento das suas vidas era dentro da sua própria igreja. E, mais do que isso, diferentemente das margens de um lago ou de um bosque de pinheiros, uma igreja proporcionava um tecto para as chuvas de Verão e um tépido ambiente no Inverno, como lugar de reunião da sua comunidade.

Isto era uma consciência realista, e não religiosa, dos benefícios que da construção de uma igreja advinham. E, sendo um benefício imediato e terrestre, depressa as comunidades negras através dos Estados do Sul começaram a procurar processos e meios de construir igrejas, ainda que fossem pequenas e insignificantes. Assim como os grupos musicais, em canções improvisadas, haviam proporcionado um meio de fazer comentários satíricos acerca do patrão e do senhorio branco, a igreja tornou-se um meio de evasão da dominação branca.

Como os próprios negros podiam recolher pouco dinheiro, aceitavam de boa mente a ajuda dos seus patrões e senhorios. As dádivas para este fim eram consideradas um bom investimento pelos protestantes brancos, os quais acreditavam, tal como os seus antepassados escravistas, que um negro religioso seria um bom negro e não incomodativo. Encorajando o negro, neste sentido, a expor-se à influência pacificadora da religião, ao mesmo tempo que lhe era negado o ensino, mesmo elementar, era de esperar que ele continuasse a ser um analfabeto e um subserviente, e receoso de reclamar um tratamento mais humano.

Contudo, o acaso fazia modificar o previsto. Sucedia que, quando uma igreja era erigida por uma comunidade negra, nos princípios do nosso século, ela constituía, essencialmente, um santuário que permitia ao negro escapar ao domínio cruel e autocrático daqueles que tinham ajudado a levantar o templo. Tal como o objectivo do celeiro de um plantador é a preservação dos géneros, assim, naqueles tempos, uma igreja negra era constituída para servir de refúgio, num ambiente social e económico opressivo.

Mais tarde, os serviços religiosos nestas igrejas eram usados, primariamente, para exprimir gratidão e dar graças a Deus do homem branco, por lhes permitir terem um santuário terrestre. E, para não se correr o risco de ofender um patrão e senhorio branco despertando nele a suspeita, em virtude de tamanha exuberância, a gratidão era expressa, mais seguramente, na letra vaga dos cânticos e canções, mais do que nas palavras explícitas do sermão e da oração.

Dado que a população branca do Sul era predominantemente baptista e metodista, os negros sulistas achavam conveniente, ao princípio, que as suas igrejas fossem identificadas como Baptistas Primitivos de Cor, ou Metodistas Episcopais Africanos. Esta identificação era agradável aos governantes brancos, dado que houveram os nomes das suas denominações dominantes anglo-saxónicas e, ao mesmo tempo, não deixavam dúvida de que as igrejas negras eram racionalmente distintas das denominações protestantes anglo-saxónicas.

Actualmente, todavia, os negros não tinham outra escolha a fazer, nas presentes circunstâncias. Outras seitas fundamentalistas do Sul, tais como as de Pentecostes e a Santidade, recusavam a admissão de gente de cor, a não ser brancos, e proibiam o uso dos seus designativos, mesmo às igrejas negras segregadas.

Era nestas igrejas negras baptistas e metodistas que se tolerava, através do Sul agrícola, que algumas horas de libertação semanal das exigências e restrições do patrão e senhorio branco pudessem ser entusiasticamente celebradas.

A celebração, a não ser para alguma repetição eventual de qualquer narração bíblica, familiar, consistia quase em constante cantoria e entoação de cânticos improvisados, sem especial cuidado na sua letra, adaptada à ocasião religiosa — e, frequentemente, acompanhada de dança, nos arredores do templo. Estas canções eram cantadas com bater de palmas e de pés, pois que raras vezes havia possibilidade de adquirir instrumentos musicais nas pequenas cidades e comunidades rurais.

Estes espirituais improvisados, muitos dos quais ainda possuíam implicações eróticas e o sabor da sua origem secular, operária, substituíam o cântico formal de hinos, onde não existiam hinários. Orações apropriadas, que principiavam por ser súplicas e logo se transformavam em lamentações, eram entoadas sonoramente com o mesmo compasso e ritmo dos espirituais. Tudo isto constituía a música popular do negro sulista.

Havia, então, pequeno número de igrejas dispersas, por razões de ordem secular, ou de ordem religiosa. Só no século vinte, a maioria dos negros sulistas passou a ter um ponto de reunião próprio, entre paredes e debaixo de um tecto. Sendo uma igreja, de nome, e um meio de escapar, temporariamente, do mundo branco, mais do que isso, o templo tornou-se em salão de reunião da comunidade, onde a tristeza e a dor e a alegria e a exultação podiam exprimir-se sem restrição em cânticos espirituais e entoações musicais.

Os sulistas brancos, escutando a celebração dominical de uma congregação negra, nem sempre eram capazes de resistir ao apelo dos cânticos e canções, e depressa os incorporaram — sem a marca originária — na sua própria cultura.

Nos Estados do Sul de hoje, acontece, não raramente, um segregacionista ou racista convicto proclamar que só aos brancos devia ser permitido cantar certos espirituais. Uma canção, particular, “Quando os Santos avançam, marchando”, tem sido apontada como devendo ser proibida aos negros cantar, e reservada ao uso exclusivo da raça branca.

O armazenista branco, de idade, numa pequena cidade da região agrícola do Alabama do Sul, não hesitou em conversar sobre os negros e o seu modo de vida, como ele a conhecia. A sua pequena loja de comércio geral, uma construção batida pelas intempéries, com uma porta descaída, ficava dentro de um bloco do sector negro da cidade e os seus clientes eram de duas raças.

A tarde era chuvosa, naquele Verão, e a única pessoa que entrara no estabelecimento, no último quarto de hora, havia sido uma mulatinha, que trazia um recipiente vazio, de carvão. Possuía uma moeda para gastar em caramelos, e outra para pagar o preço de um novo recipiente de carvão para a sua mãe.

É claro que me lembro de alguns homens de cor dos velhos tempos — os ires marrecas, e as tias apavoradas de mostrarem a cara, frente a frente, à distância da cuspidela de um branco. E o ficar à distância de uma cuspidéla tinha de ser bem longe de um patrão fumador inveterado de tabaco. Eu já os vi projectar o fumo do tabaco para cima da cabeça ferrugenta de um prego a quinze pés de distância — e para cima do branco do olho de um negro, também, com a mesma pontaria.

Eu sempre tive pena dos tipos escuros virem aqui à minha loja, assim recurvados, e sempre lhes disse que não era preciso abaixarem-se para gatinharem à minha volta. Mas estavam tão habituados a fazerem-no à volta de qualquer homem branco, que me parecia já não serem capazes de perder esse jeito, mesmo na idade deles. Eu sou um branco e acredito nas raças que vivem à parte. Mas eles também são gente, e não gosto de os ver sofrer, só porque não são brancos como eu.

Bom, os homens de cor dos velhos tempos de quem estou falando viviam em regra nas plantações, da região planáltica, acolá. Foi onde eles nasceram para morrer. E nunca conheceram outra coisa, senão trabalho duro, desde o nascer ao pôr do sol, e sem salários. Nunca vi os patrões baterem neles, mas ouvi muitas histórias a esse respeito no decurso da minha vida. Estou convencido de que é por essa razão que os velhos homens de cor se habituaram a rondar de cabeça baixa em torno do homem branco — andar assim dava ao homem branco uma sensação de superioridade sobre eles.

Como quer que seja, eles viviam acolá, na margem do rio, em casebres de um só quarto, tão miseráveis e esburacados, que nem para curral serviam, e nunca tinham muito que comer, a não ser papas de trigo, toucinho R nabos — as vezes, também, melaço. Não tinham muita terra para cultivar, a não ser nabos, porque o senhorio plantava algodão e trigo, dos quatro lados do casebre. Porém, duas ou três vezes por ano, o senhorio permitia que um dos seus porcos fosse estripado e pendurado, e posto ao fumeiro.

As vezes que eu os via era quando o senhorio levava alguns deles à cidade numa carrinha, para, tratamento médico de alguma doença —úlcera nos olhos ou gangrena nas feridas — e talvez lhes oferecesse um quarto ou um dólar para gastarem no que desejassem comprar. Alguns deles eram a mais esfarrapada gente que jamais se viu, porque não possuíam outro vestuário.

Quando entravam aqui no meu estabelecimento, as mulheres vinham comprar um novelo de linha e botões e coisas semelhantes, e talvez um pedaço de pano para servir de remendo, se o dinheiro chegasse. Os homens preferiam sempre gastar em rapé ou tabaco. Mas se sobrasse alguma coisa, levavam também um cartucho de caramelos para a mulher. Eram tão submissos que me fazia pena saber como eram tratados pelo senhorio.

Quando se retiravam, por vezes eu dizia: — desejava que toda a gente fosse da mesma cor — qualquer cor — preta ou branca ou outra qualquer—, de modo que ninguém nascesse para ser maltratado por causa da sua cor. É o que eu digo com os meus botões — mas não posso dizer isto alto, neste sítio, onde há tantos brancos susceptíveis em matéria de raça, que arruinariam- o meu negócio ou que se voltariam, furiosos, contra mim.

Tenho lidado muito com os velhos homens de cor, na minha vida, e parece-me que os conheço bem. Eles não são como os da nova geração da sua raça — esta nova geração é toda independente e educada e sem receio de expor as suas ideias sobre qualquer assunto. Admiro-os por lutarem pelos seus direitos, mas não me importo, contanto que não me apareçam e me perturbem a vida, o que até hoje nunca fizeram.

Eu sei que todos os brancos lhes são suspeitos, mas eu digo “deixem lá os novos fazer como entendem” — e que tratem da sua vida. Eu não quero que eles se virem contra mim e eu não me vou virar contra eles, como alguns brancos o fazem, sem razão alguma. Eu ficaria mal se eles não viessem à minha loja negociar. Muitos deles fazem agora bastante dinheiro, coisa, que os velhos negros não faziam.

Os negros dos velhos tempos, de quem falo, viveram aqui, após os tempos da escravatura, mas a sua situação não melhorou. O nascerem livres não adiantava nada. Não possuíam recursos nenhuns — nem o suficiente para viverem, ao menos, como os pobres da cidade.

Sei tudo acerca da vida deles, naqueles casebres, a remendarem os fatos para vestirem, e a comerem aquela pequena refeição de papas e carne de porco que o patrão lhes dava, e recebendo, talvez, mais cinquenta cêntimos quando os transportava à cidade duas ou três vezes por ano. Eu não podia fazer muito por eles, quando entravam na minha loja, a não ser oferecer-lhes um pouco mais de caramelo ou tabaco, quando faziam as compras.

Qualquer que fosse a sua religião, praticavam-na à maneira deles e não como os outros. Não sei como adquiriram a religião deles, pois não havia pregadores que lhes fizessem prédicas — eles é que tinham de criar uma religião nova. De qualquer maneira, eu gostava deles, porque detestava vê-los fazerem aquelas coisas ridículas que alguns brancos fazem, ao escutarem os seus pregadores — como os Lidadores de cobras, os Santos Rolantes, os Martela-Cabeças e outros que tais.

Vou-lhes contar, o melhor que puder, a espécie de religião que alguns dos velhos negros possuíam — homens e mulheres. Lembro-me que uma vez fui vê-los, onde um grupo deles vivia nos seus casebres. Eles tinham erguido uma igreja rústica, num entroncamento. Chamavam-na uma igreja, mas ninguém adivinhava que se tratava de uma igreja. Era apenas uma barraca, com um telhado de zinco, ferrugento, que encontraram em qualquer canto, que possuía duas janelas e uma porta solta. Parecia mais uma velha coisa de campo, onde os algodoeiros recolhiam o algodão quando começava a chover.

Bom, no interior colocaram alguns bancos de madeira vacilantes, sem encosto, e possuíam um pequeno recipiente de lata, com um tubo que saía por uma das janelas, quando, no frio Inverno, faziam uma fogueira. E nada mais havia ali — nem púlpito, nem nada. O que chamavam uma igreja não levava mais de vinte ou trinta pessoas, mesmo quando se juntavam todos.

Era uma noite tépida de domingo, no Verão, quando lá fui e sentei-me num tronco, de onde podia espreitar pela porta a escutar tudo. Digo-lhe a verdade, era uma coisa digna de ser escutada.

Ali estive uma hora inteira, e durante todo o tempo não fizeram nada daquilo que se costuma fazer nas igrejas— nem cânticos, nem orações, nem nada. E também não cantavam muito — como se não tivessem letras para cantar.

O que aqueles negros faziam era gemerem e lamentarem-se — como se tivessem decidido morrer ali. Era uma entoação triste de se ouvir, todos ao mesmo tempo.

De vez em quando cessavam os gemidos, não por muito tempo, e cantavam algo que parecia ser inventado naquele momento. Mas isso nunca durava muito. E o resto do tempo passavam-no gemenda e lamentando-se o mais alto possível. Alguns ajoelhavam-se — como pessoas que realmente rezassem numa verdadeira igreja. Mas isto, só na primeira parte.

A outra coisa que começavam a fazer era virarem-se para as paredes, batendo nas pranchas de pinho com as suas mãos e punhos, e gemendo e lamentando-se, ao mesmo tempo, como se um senhorio lhes batesse até à morte. Eu não percebia porque é que faziam isso, e pedi uma explicação a um dos negros. Como todos os outros, ele não quis dizer nada a um branco.

Mas eu continuei a pedir-lhe que me explicasse porque é que todos gemiam, como se fossem morrer. Ele não me soube explicar, a não ser que o fazia, sentir-se muito melhor, depois das altas lamentações e punhadas nas paredes. Continuei a perguntar-lhe como é que aquilo o fazia sentir-se melhor, e ele respondeu que aquela pequena igreja era o único lugar onde ele e os outros podiam gemer e lamentar-se à vontade à sua maneira, sem perturbar os patrões.

O velho negro disse-me que o fazer isso os ajudava a libertarem-se da miséria, e melhor quando todos o faziam juntamente, mas temendo fazê-lo noutro sítio. O patrão disse-lhes que podiam utilizar a pequena igreja para a religião, mas que não podiam ter encontros em casa alheia, onde esquecessem a religião para conversar de mais sobre outras coisas.

Perguntei-lhe qual era o nome da igreja e que espécie de religião era aquela. Respondeu que não tinha nome e que era apenas o seu género de religião: era certo, porque não possuíam um pregador que lhes fizesse prédicas e orasse. Nem era preciso dizer-me isto, porque eles não tinham dinheiro bastante para poderem pagar a um pregador. Aquela pobre gente nem um dólar era capaz de arranjar, se o próprio Jesus Cristo ali parasse para lhes pregoar.

Sendo eu próprio um baptista sem grande convicção, não sabia se devia ter pena ou não daqueles negros acerca da religião que possuíam. Mas parecia-me que eles tiravam tanta consolação daqueles gemidos e lamentações e bater de punhos nas paredes, como a maioria dos brancos, aqui na cidade, tirava da religião baptista ou metodista, com um pregador pago e uma igreja requintada, com, um alto campanário e bancadas com encosto, e eles ali sentados confortàvelmente, sem fazer nada. É caso para a gente ficar a pensar para que serve a religião, se as pessoas apenas se sentam a escutar.

Mas tudo isto aconteceu há muito tempo e os tempos mudaram. A maioria desses negros morreu, e aquela pobre igreja caiu em ruínas.

A jovem geração dos homens de cor abandonou as plantações, junto do rio, há muito tempo. Vieram viver para a cidade. Tiveram de retirar-se, porque o dono dos terrenos meteu tractores e atrelados, e não lhes permitiu que continuassem ali.

Os homens de cor desta jovem geração possuem, na cidade, duas igrejas de tijolo, de fino recorte, e eles contratam pregadores para ambas elas. Uma outra diferença grande é que os pregadores de cor podem erguer-se e ler a Bíblia em voz alta, e todos sabem já soletrar as palavras dos livros de hinos.

Talvez seja uma boa coisa. Mas não sei se a sua religião, hoje, é melhor para eles do que nos velhos tempos em que os negros se limitavam a gemer e a bater os punhos nas paredes.

Mas a mudança que me parece maior é que esta jovem geração utiliza as suas igrejas, hoje, para muita coisa que não é propriamente religiosa. Têm ali runiões, quase todas as semanas, acerca de eleições e integração e direitos cívicos e coisas semelhantes. Talvez sejam o melhor serviço que as igrejas proporcionam hoje aos homens de cor — uma, espécie actualizada, de gemidos e lamentações e bater de punhos nas paredes.

Pelo que eu ouço dizer ao pregador da minha igreja, só há um Céu, quer dizer, não há outro, separado, para os negros.

Se assim é, não vejo porque é que os homens de cor querem ser tão religiosos, com o fim de alcançarem o Céu. Se para lá fossem, teriam de sofrer de novo, ali, ais mesmas coisas que os incomodam aqui. É assim que eu entenderia as coisas, se eu fosse um deles.

Moses Coffee era, já há alguns anos, o sacristão negro da igreja da Associação dos Presbiterianos Reformados, em Bradley, Carolina do Sul, de que meu pai foi pastor, durante alguns meses, dos princípios do nosso século. Bradley era uma pequena cidade, com uma máquina separadora de algodão, um banco, uma estação de caminhos-de-ferro, e várias mercearias e lojas. Ficava na região argilosa, agricultada, do lado ocidental do Estado, não longe do rio Savannah.

Moses Coffee, de sessenta anos, cabelo grisalho, tinha uma cor de tabaco, luzidia, e andava, habitualmente, recurvado, como se tivesse passado a vida a transportar às costas pesado fardo. Era ainda de compleição musculosa, e as suas mãos grossas tinham ainda a rudeza calosa adquirida nos muitos anos de trabalho nas plantações.

Paralelamente ao seu emprego de sacristão da igreja da A. P. R., pelo qual recebia alguns dólares por mês, Moses Coffee exercia há anos, em “part-time”, o ofício de porteiro do correio de Brabley, auferindo um pequeno salário. E também, mas sem remuneração, era o guarda voluntário da igreja e do cemitério do Evangelho Africano Monte Zion.

Nos dias de semana, Moses envergava a sua bata remendada e desbotada, e, ao domingo, usava sempre o casaco preto de lã e umas flácidas calças cinzentas que alguém lhe oferecera em paga de alguns dias de serviço no seu quintal.

Ele e sua mulher, Rose, cuja cor da pele era semelhante à dele, viviam num casebre de dois quartos, no sector negro da linha férrea onde ela lavava a roupa e passava a ferro, durante a semana, para algumas famílias brancas de Bradley.

Antes de vir viver para a cidade, Moses tinha trabalhado nos campos e em engenhos de serração, entre Bradley e o rio Savannah, quase toda a sua vida, desde os oito e nove anos de idade. Não sabia ao certo quantos anos tinha, mas parecia-lhe que era essa a idade dele, quando fora tirado da casa de seus pais e posto a trabalhar numa plantação, com outras crianças negras.

Disse ele que nunca fora capaz de encontrar a sua mãe ou o seu pai, nem os irmãos ou as irmãs, depois de ser levado e fechado à chave, à noite, com as outras crianças, num estábulo de mulas. Todos os seus filhos e filhas tinham casado e tinham-se mudado para outras cidades das Carolinas. Eventualmente, um deles vinha visitar Moses e sua mulher, trazendo os netos consigo. Contudo, quando abordado abruptamente ou inesperadamente por algum branco, e particularmente por algum forasteiro, costumava tremer muito e gaguejar. Nessas ocasiões, sendo incapaz de falar com clareza, e fazer-se compreender, inclinava profundamente a cabeça e titubeava, a pedir desculpa, afastando-se depressa do homem branco.

Alguém que conheceu Moses, durante anos, contou a Ira Sylvester que a razão do seu grande medo perante os brancos provinha do facto de, nos primeiros anos da sua vida, os fiscais das plantações lhe terem batido severamente. Ainda tinha cicatrizes na cara e no pescoço, que pareciam vergões produzidos por algemas.

Moses contou que, quando era jovem, fugiu um dia da plantação e procurou atingir o rio Savannah, para nadar através dele para as margens de Jórgia. Contudo, foi apanhado antes de alcançar o rio e acusado de furto de um canivete que ele disse ter encontrado na estrada. Foi imediatamente condenado a dois anos de trabalho forçado a cumprir no condado. Quando libertado do grupo de algemados, um fiscal aguardava-o, para o levar de novo para a plantação. Ali o mantiveram, até que ficou velho de mais para trabalhar como os negros mais novos.

Como sacristão da igreja da Associação dos Presbiterianos Reformados, em Bradley, além de abrir as portas e tocar o sino do campanário meia hora antes dos serviços das onze horas da manhã, de domingo, Moses limpava as teias de aranha, varria o chão e tirava o pó das bancadas, todos os sábados à tarde. Como não sabia ler, sempre que encontrava um pedaço de papel no chão, guardava-o para o mostrar a Ira Sylvester, porque podia ser importante.

Uma vez por mês, lavava as janelas, subia as escadas até à torre, para untar o eixo do grande sino de bronze. E quando havia um casamento ou uma cerimónia fúnebre, na igreja, aparecia sempre cedo, para abrir as portas, e voltava depois, para se certificar que todas as janelas, bem como as portas, estavam seguramente trancadas, de modo que a rapaziada marota não pudesse introduzir-se e danificar o órgão.

No Verão, quando as janelas estavam abertas, aos domingos, para fazer circular ar mais fresco dentro do auditório, Moses despendia parte do tempo, nos sábados à tarde, com um trapo, embebido em petróleo, na ponta de uma vara, a queimar os ninhos de vespas e de outros insectos, construídos na véspera, por baixo das goteiras do telhado. Dizia ele que, como sacristão, era seu dever vigiar para que ninguém fosse picado enquanto assistia aos serviços de domingo. No Inverno, chegava à igreja antes do amanhecer, aos domingos, e acendia uma fogueira. E ali ficava, a atiçar o lume dentro do fogão de ferro junto do púlpito e do coro, até pelo menos essa parte do grande templo ficar aquecida e confortável.

No decorrer do ano, Moses ficava na igreja aos domingos de manhã, até se finalizarem os serviços divinos, pois ia vestido para a ocasião com o seu casaco preto e calças cinzentas, e era costume dele sentar-se num banco, no vestíbulo, entre as portas da entrada, de acesso ao auditório. Enquanto sentado por trás das portas interiores, ninguém o podia ver, na igreja, mas ele podia ouvir e escutar a música e a cantoria.

Alguns dos fiéis contavam a Ira Sylvester que tinham a certeza de terem ouvido Moses, por vezes, cantar, acompanhando o coro, e que era preciso alguém adverti-lo. Ira Sylvester dizia-lhes que o que eles tinham ouvido era, provavelmente, um eco das melodias cantadas pelo coral.

Várias vezes, durante o clima frio desse Inverno, Ira Sylvester tinha pedido para sair do vestíbulo, não aquecido, e para se sentar numa bancada vazia, por trás do auditório, durante os serviços. Como se tratava de um vasto templo de madeira, com um tecto invulgarmente alto e que não podia ser adequadamente aquecido, no rigor do Inverno, a congregação sentava-se sempre na parte da frente da igreja, para ficar próxima do fogão, nos dias mais frios.

Moses recusou-se sempre a sair do vestíbulo, ou mesmo a abrir as portas interiores, dizendo que os brancos não gostariam que ele se sentasse no mesmo recinto em que estavam e que ele tinha receio de se mudar para ali. De cada vez que se dizia alguma coisa sobre o facto de ele se sentar à retaguarda da igreja, as mãos tremiam-lhe violentamente e ele gaguejava.

Todavia, num dos domingos mais frios do Inverno, Ira Sylvester, ao verificar que Moses estava muito constipado, conseguiu convencê-lo, pela primeira vez, a deixar o vestíbulo não aquecido e a sentar-se na última fila das bancadas. A temperatura estava abaixo de zero, nesse dia, com geada fina no chão, e os caixilhos das janelas recobertos de gelo. Os poucos membros da igreja que tinham vindo aos serviços, nessa manhã, envergavam, ainda, os seus sobretudos, enquanto esfregavam as mãos junto do fogão.

Poucos momentos depois de ele se sentar, tossiu, e, logo a seguir, algumas pessoas começaram a virar de vez em quando a cabeça e a fitá-lo com olhares indignados, no lugar distante da retaguarda em que se encontrava. Moses encolheu-se cada vez mais, na bancada, até se avistar apenas o seu rosto.

Muito antes de concluídos os serviços, tossindo profundamente, Moses levantou-se e saiu, em bico de pés, para o vestíbulo, encerrando as portas anteriores. Dali foi para o compartimento das vassouras, e ali ficou, longe das vistas, até que toda a congregação abandonou a igreja e se retirou para casa.

Quando Moses saiu, finalmente, do compartimento e viu Ira Sylvester no vestíbulo, ele ainda tremia. Então, quando ia a tomar a palavra, começou a gaguejar tanto que mal se fez entender. Logo que pôde fechar à chave as portas da frente da igreja, com as mãos trémulas, inclinou a cabeça, encostando o queixo ao peito, e pôs o chapéu. Ainda a titubear, pedindo desculpa, voltou-se e saiu rapidamente em direcção ao trilho da linha férrea, a caminho de casa.

Na manhã seguinte, dois dos membros da igreja vieram ver Ira Sylvester. O mês de Dezembro decorria frio e glacial.

Os dois homens, um dos quais um armazenista chamado Mr. Foxhall e o outro um lavrador cujo nome era Mr. Bonner, ficaram de pé junto da lareira, a aquecerem•se durante muito tempo, enquanto falavam acerca do desusado tempo invernoso e das doenças que o tempo tinha causado às suas famílias.

Depois, com a testa franzida e um grande abanar de cabeça, Mr. Foxhall, que era quem conversava mais, disse qual era o propósito da visita ao meu pai. Mr. Foxhall era um homem robusto, de cinquenta anos de idade, aproximadamente, com uma pele fina e pálida, que se punha cor-de-rosa, quando ele se excitava.

O que Mr. Foxhall queria dizer era que muitos dos membros da igreja estavam muito perturbados, e alguns muito indignados, porque Moses Coffee se tinha sentado numa bancada da igreja da A. P. R. durante os serviços da manhã.

Depressa a sua voz se alterou, as faces coraram, enquanto Mr. Bonner abanava a cabeça, em completa aprovação do que ele dizia. A seguir, disse que havia um outro assunto sério a resolver. Alguns membros exigiam que desse ordens a Moses para ele deixar de cantar, juntamente com o coro, mesmo que estivesse longe da vista do público, no vestíbulo. Finalmente, lembrou a Ira Sylvester que estava a viver na Carolina do Sul e não na Carolina do Norte, em Virgínia, ou noutros Estados do Norte.

Depois, perguntou a Ira Sylvester se concordava em nunca mais convidar ou permitir a Moses Coffee ou outro negro que se sentasse numa bancada da igreja ou que cantasse no vestíbulo. Porque Ira Sylvester hesitava na resposta, avisaram-no que muitos membros que ajudavam, financeiramente, a apoiar a igreja andavam tão aborrecidos com o que tinha acontecido, que ameaçaram deixar de dar a sua contribuição, e que, assim, o dinheiro do peditório não chegaria para pagar os ordenados de um ministro.

Ira Sylvester escutou, pacientemente, durante quase meia hora, sem interromper ou mostrar sinais de desacordo ou protesto. Após um longo silêncio no compartimento, Mr. Foxhall, franzindo a testa, com importância, perguntou-lhe o que ia decidir sobre os dois tão importantes problemas.

Em vez de responder às perguntas, Ira Sylvester começou a falar calmamente acerca de um recente incidente, que ocorrera em Bradley.

Sucedeu que uma malta de rapazes brancos, numa noite de domingo, atirou pedras e estilhaçou todas as janelas da igreja do Evangelho Africano de Monte Zion. Como era costume, então, em Bradley, a igreja negra celebrava os seus serviços dominicais à noite, dado que a maioria dos membros trabalhava para famílias brancas que precisavam deles para cozinhar e servir o almoço dominical do meio-dia. E, como usualmente, a igreja de Monte Zion encheu-se de gente, naquela noite de domingo, em que as pedras foram atiradas. Alguns dos presentes foram alvejados com as pedradas e outros foram lacerados por estilhaços de vidros.

Toda a gente da cidade sabia quem eram os rapazes, e que seus pais eram membros, ou da igreja da A. P. R. ou das igrejas baptistas e metodistas. Alguns dos rapazes até se gabaram, na rua, da facilidade com que quebraram todas as janelas, fugindo sem serem apanhados.

Uma vez que nenhum dos pais dos rapazes se ofereceu para contribuir com dádivas para a aquisição de novas vidraças, os membros da igreja de Monte Zion estavam ainda a tentar recolher dinheiro suficiente, entre eles, para o arranjo das janelas. Consequentemente, não foi possível aquecer a igreja desprovida de janelas, nos meses de Inverno, e era pouco provável que os serviços pudessem ser celebrados no interior, até vir a temperatura amena da Primavera.

Quando Ira Sylvester acabou de falar acerca do incidente das janelas, na igreja de Monte Zion, Mr. Foxhall abanou imediatamente a cabeça, dizendo que isso era uma questão inteiramente diferente e nada tinha a ver com a queixa sobre o Moses Coffee ter sido autorizado a sentar-se no interior da igreja, na véspera.

Nesta altura, Ira Sylvester disse aos dois homens que o propósito dele era explicar porque é que ia convidar a congregação inteira da igreja negra a celebrar os seus ofícios na igreja da A. P. R., nos domingos à noite, a não ser que se recolhesse o dinheiro suficiente, nessa semana, para restaurar todas as janelas danificadas.

Quando voltaram à lareira, nada disseram acerca da possibilidade de impedir a entrada dos negros na sua igreja. Pelo contrário, o comerciante disse que iam imediatamente tratar de arranjar o dinheiro necessário para o arranjo das janelas partidas. Porém, insistiu que Ira Sylvester devia, decididamente, proibir Moses Coffee de sentar-se de novo nas bancadas da igreja, aos domingos de manhã. Ira Sylvester disse-lhes que Moses Coffee conhecia bem os costumes do país, e que antes queria assistir aos serviços dominicais na sua própria igreja de Monte Zion, onde se sentiria à vontade, do que sentar-se, onde quer que fosse, na igreja dos homens brancos. E acrescentou que a única maneira de tornar isso possível era não apenas arranjar as janelas quebradas, mas também a congregação da A. P. R., comprar um grande calorífero portátil, a petróleo, para o vestíbulo da sua igreja, evitando, assim, que o sacristão se sentasse no recinto dos homens brancos, para se aquecer nesse Inverno, que era dos mais rigorosos passados na Carolina do Sul, nos últimos anos.

Dentro de poucos dias, e antes do fim-de-semana, já havia novas janelas na igreja de Monte Zion e um grande calorífero portátil, a petróleo, foi comprado para o vestíbulo da igreja da A. P. R.

Embora o calorífero a petróleo fosse colocado no vestíbulo da igreja, como fora combinado, Moses Coffee nem o viu, nem mesmo soube que fora posto ali para seu benefício.

No domingo seguinte, de manhã, um outro frio dia de Dezembro, a mulher de Moses, Rose, mandou um rapaz negro dizer a meu pai que Moses estava muito doente, com uma grande constipação, e impossibilitado de sair da cama e de vir à igreja acender o lume do grande fogão. Moses entregou ao rapaz as chaves da igreja e ele ofereceu-se para fazer o fogo nessa manhã.

Na mesma tarde, o meu pai atravessou os trilhos do caminho-de-ferro, em direcção ao outro lado da cidade, para ver se Moses precisava de um médico e de dinheiro para remédios.

A mulher de Moses veio à porta, a chorar e a soluçar, e disse que ele tinha morrido de uma pneumonia nessa manhã, antes que o médico pudesse ali chegar a salvá-lo. Acrescentou que o funeral seria na tarde seguinte, na igreja do Monte Zion, e Moses devia ser enterrado no cemitério anexo, do qual fora guarda voluntário durante muitos anos. O coveiro negro já ali se encontrava e Rose preparava o casaco preto de lã e as calças cinzentas para o enterro.

Ira Syívester disse que ofereceu a Rose o dinheiro que ele tinha a intenção de deixar para pagar os remédios para Moses e deu-lhe também mais umas moedas que tinha na algibeira.

No dia seguinte, Ira Syívester era o único branco presente no funeral. Contou que, quando o ministro negro lhe pediu para proferir algumas palavras junto da campa, sentiu-se envergonhado por esperar que Moses Coffee morresse para lhe exprimir o apreço que por ele tinha, como um ser humano, e pedindo desculpa pela atitude hostil de alguns dos membros da igreja quando ele se retirou do vestíbulo não aquecido, com uma constipação que se desenvolveu em pneumonia, para se introduzir no auditório, a fim de se aquecer.

Estava muito frio e um fino chuvisco ia engrossando,, quando ele deixou o cemitério, após o funeral, e atravessou os trilhos do caminho-de-ferro para o outro lado da cidade. Contou que ia percorrendo a rua principal, apressando-se para casa, quando o fizeram parar em frente do estabelecimento de comércio geral, pertencente ao homem que se queixara, indignadamente, na semana anterior, por ele ter autorizado Moses Coffee a sentar-se numa bancada da igreja da A. P. R.

Entraram no estabelecimento, aquecido por um grande fogão a carvão; e Mr. Foxhall começou a dizer que era insensato um homem branco sair com este tempo para assistir ao funeral de um negro, correndo o risco de apanhar uma pneumonia. Disse que o facto de Moses ter sido sacristão da A. P. R. não era razão para ir ao funeral, mesmo que fizesse bom tempo.

Então, aguçando a voz, disse que era caso para preocupações o facto de o pastor da sua igreja se atrever a ir ao funeral de um negro. Acrescentou que os negros eram bons clientes, mas que, depois de lhes vender a mercadoria, não se punha a tratá-los como aos brancos, e o pastor da sua igreja devia fazer o mesmo. Ira Sylvester escutou, atentamente, abanando a cabeça de vez em quando, em desacordo com ele, e não se mostrou arrependido do que fizera.

Passados momentos, vendo que Ira Sylvester não tinha aprovado a sua atitude, afirmou que não queria que houvesse qualquer mal-entendido. Disse que queria que soubessem que era um bom cristão, um bom membro da A. P. R., e um homem de bom coração. Falou, calorosamente, do amor pela sua mulher e filhos, e de tudo o que fazia para ajudar os seus parentes, em caso de necessidade ou faltas de dinheiro.

Mas depois, depressa crescendo em irritação, traduzida no sangue que lhe afluía às faces, disse que era um branco genuíno e leal, e portanto, era para ele uma satisfação que Moses Coffee tivesse falecido, pois assim a questão levantada acerca da sua introdução na igreja para se sentar ao lado de um branco, não mais se repetiria. Disse que Moses nunca teria tido o atrevimento de se sentar na bancada da igreja da A. P. R., se não tivesse sido contratado como porteiro dos correios, em regime de “part-time”, porque o trabalhar para o governo federal dava-lhe a impressão de que ele valia tanto como um branco.

Ira Sylvester tentou protestar contra o modo como estava falando acerca de Moses, mas Mr. Foxhall, erguendo a voz, disse que ninguém o impediria de dizer o que pensava sobre os negros. Seguidamente, disse que ia averiguar, pessoalmente, se o seguinte sacristão negro contratado para a igreja estaria possuído do temor de Deus e de toda a raça branca, logo desde o início, de maneira que não tivesse a audácia de se sentar no mesmo lugar em que se sentavam os brancos.

Replicando a Mr. Foxhall que já tinha ouvido bastante sobre o assunto que não estava disposto a ouvir mais, Ira Sylvester retirou-se de junto do calorífero e percorreu um dos corredores onde havia mercadoria exposta. Os balcões e prateleiras estavam abarrotados, tal como nas outras lojas da cidade, de vestuário doméstico, ferramenta e géneros de mercearia. A um canto do estabelecimento havia uma secção em que os sapatos estavam expostos, e várias cadeiras foram colocadas sob um grande cartaz anunciando que eram para uso exclusivo de clientes brancos.

Sorrindo, e com a face já ruborizada pela indignação, Mr. Foxhall apontou para o cartaz “só para brancos” e disse que era uma boa oportunidade para provar que ele praticava o que pregava. Conduziu Ira Sylvester a uma porta que abria para uma estreita dependência que fora construída para uso de clientes negros que não podiam comprar sapatos sem os experimentar.

Havia só um banco de madeira na dependência, desprovida de janelas, e numa das janelas havia um cabide do qual pendia um chicote grosso, escuro, de couro entrelaçado, de nove a dez pés de comprido, e da espécie que se usou, durante muitos anos, para conduzir parelhas de bois aos campos de lenha.

Pegando no chicote, Mr. Foxhall levou-o para dentro do estabelecimento. Fez sibilar o pesado e escuro chicote, várias vezes, sobre a cabeça, e depois, estalou-o contra o chão.

De pé, jogando com o chicote, estalando-o repetidamente, disse que era desse modo que conseguiria infiltrar o temor de Deus e de toda a raça branca na alma de qualquer negro.

Foi nessa altura que Ira Sylvester, afastando-se em direcção à rua, disse ao dono da loja que, evidentemente, ele tinha fracassado em desempenhar eficientemente a sua função de ministro, enquanto viveu em Bradley. Acrescentou que ia pensar se devia permanecer ali apenas uns dias e não semanas, como tinha planeado, para ir assumir o lugar de pastor de uma outra igreja.

Andando ao lado de Ira Sylvester e batendo-lhe, amistosamente, no braço, Mr. Foxhall implorou-lhe que não alterasse os seus planos sobre a retirada. De seguida, pegando num grande saco de papel, encheu-o apressadamente com doces e cigarros e acompanhou Ira Sylvester à rua. Insistindo, ainda, que não modificasse o seu plano de partida, o comerciante entregou-lhe o grande saco de papel, dizendo-lhe, repetidamente, que levasse consigo os doces e os cigarros.

Quando meu pai se distanciava, na rua, Mr. Foxhall chamou por ele e disse-lhe que, se quisesse qualquer coisa mais, antes de se ausentar da cidade, que voltasse quantas vezes quisesse, e levasse tudo o que lhe apetecesse.

Na pequena cidade da Jórgia oriental, onde o meu pai foi, durante algum tempo, pastor da igreja da Associação de Presbiterianos Reformados, pouco depois da Primeira Grande Guerra, parecia que toda a gente era próspera e possuía dinheiro abundante para gastar — toda a gente, excepto os negros. A população da cidade estava igualmente dividida entre brancos e negros.

Um sinal de prosperidade, entre os cidadãos brancos, era que os agricultores começavam a mudar-se para a cidade, construindo casas gigantes, com pórticos majestosos. Uma outra prova era que os comerciantes abasteciam as suas lojas com mobílias e vestuário feminino da última moda.

E, a acrescentar, um dos médicos da cidade fechou o consultório para dedicar todo o seu tempo à exposição e venda de automóveis novos, de fabricos variados, aos agricultores e comerciantes ricos.

Havia tamanha procura dos últimos modelos de automóveis, quando o stand de exposição foi inaugurado, que o médico viu-se obrigado a abrir uma importante sucursal do outro lado da rua. Quando algum empregado queria seguir imediatamente num novo automóvel e não estava preparado para preencher um cheque pelo preço total, era-lhe dada essa facilidade.

O médico aceitava, então, uma garantia hipotecária, pelo prazo de seis meses, sobre uma quinta ou sobre algum imóvel de real valor, com a cláusula inserta no contrato, dispondo que a escritura da hipoteca seria executada na falta de cumprimento pontual. O médico prosperou tanto com a venda de automóveis caros e os contratos de hipoteca que nunca mais abriu o consultório, abandonando a profissão de médico. Não tardou a mudar-se para a Florida, retirando-se da vida activa.

Durante esta era inflacionária de alguns anos, que precedeu a depressão dos anos 30, a pobreza e a carência da comunidade negra, que era já manifestamente extrema, tornou-se cada vez mais grave.

A principal razão desta disparidade era porque, não possuindo terras e nada tendo para venda a preços de inflação, os negros não partilhavam da riqueza derivada da venda de produtos agrícolas e florestais, tais como o algodão e as madeiras, e, durante esse tempo, tinham de pagar, a preços excessivamente altos, o vestuário e a alimentação. Havia tantos negros em busca de trabalho de qualquer espécie, e alguns deles sofriam tantas necessidades, que quando havia empregos disponíveis, tinham de aceitar, por necessidade, qualquer salário que lhes oferecessem. Consequentemente, os salários tornavam-se, progressivamente, mais baixos, de mês a mês.

De entre os muitos negros que pediram emprego a Ira Sylvester, por qualquer salário, apareceu-lhe um tal Rumson Tatum.

Rumson Tatum designava-se a si próprio como um ministro independente — não um pregador — e afirmava não estar filiado em qualquer religião que não fosse a sua. Dirigia o seu próprio tipo particular de serviços, nos domingos à noite, num edifício pequeno, com paredes de madeira, sem pintura, situado no limiar do sector negro e à distância de dois quarteirões das primeiras casas do sector residencial branco da cidade. Rumson levou dois anos a recolher dádivas de madeiras e construiu a igreja com as suas próprias mãos.

Era um homem de tez bronzeada, alto, simpático, dos seus quarenta anos de idade, com uma sólida perna de pau, recortada de um ramo de nogueira e atada com um cinto de couro ao seu joelho direito. Havia perdido a parte inferior da perna num acidente sofrido numa serração, quando tinha trinta anos. Por causa do aleijão, não pudera arranjar um emprego certo, desde o acidente. E, por uma razão ou outra, não era casado, mas vivia com uma rapariga que trabalhava como criada, a horas, para uma família branca e que mantinha a casa em que ele vivia.

Nessa manhã, quando Rumson Tatum parou a perguntar se necessitava de qualquer serviço, Ira Sylvester disse-lhe que havia no jardim muita erva daninha que precisava de ser cortada, e que podia fazer esse trabalho em duas ou três horas.

Quando terminou o trabalho, recebendo a paga” Rumson foi para o pátio beber água e sentou-se num banco, à sombra.

Enquanto tirava a lama da parte inferior da perna de pau, que se apegara a ela quando aparava as ervas no chão molhado do jardim, ele contou ao meu pai que um homem branco, cuja casa ficava à distância de dois blocos da igreja do Convívio da Vida Verdadeira, tinha-se queixado ao chefe da polícia de que não podia dormir, aos domingos, por causa da música e da cantoria em voz alta. O chefe da polícia avisou Rumson que, se recebesse outra queixa no mesmo sentido, havia de encerrar a igreja, não permitindo que a utilizassem de novo.

Rumson disse que andava preocupado acerca da queixa, e com receio de que fechassem a igreja. Disse que não tinha qualquer ressentimento contra o facto de os brancos da cidade prosperarem e possuírem casas grandes; mas achava que deviam deixá-lo em paz com a sua igreja, para poder obter alguns dólares por mês, nos peditórios.

Conforme explicou, receava que as pessoas procurassem outro lugar onde pudessem cantar, deixando de frequentar a igreja do Convívio, se não pudessem ali cantar à vontade. E disse que, quando começavam a cantar, não havia processo de os fazer cantar com menos força. E ainda mais: para proporcionar a espécie de música de que os assistentes gostavam, um dos membros trazia sempre o seu tambor para a igreja e acompanhava a música de órgão com um rufar estrondoso. Era um tambor grande e de som cavernoso, que se ouvia por toda a cidade, durante horas, aos domingos à noite, e a música parecia mais dos salões de dança do que música sacra.

Ele disse que a razão por que as pessoas vinham à igreja era porque estavam descontentes com o género de serviços religiosos que se efectuavam nas outras igrejas negras, onde se despendia muito tempo em longos sermões e orações, e pouco com música e cânticos. E o que ele fazia na igreja do Convívio da Vida Verdadeira era dizer algumas palavras sobre religião e terminar depressa, de modo a deixar muito tempo disponível para hinos e espirituais e o mais que os assistentes quisessem cantar.

Rumson disse que tinha construído a sua igreja para convívio, tal como se depreendia da designação, e não para pregar; e que as pessoas que desejavam a religião com abundância de prédicas e orações deviam frequentar as igrejas baptistas e metodistas negras. Porém, os seus sequazes queriam convívio sem prédicas sobre religião e por essa razão construíra a igreja só para eles, e intitulara-se a si próprio camarada Rumson Tatum e não reverendo Rumson Tatum.

Ira Sylvester disse-lhe que era uma transgressão dos regulamentos citadinos perturbar a paz, embora não desejasse que a igreja fosse encerrada e selada pela polícia. Sugeria que os serviços nocturnos fossem temporariamente suspensos ao findar o Verão, daí a poucas semanas, e que, quando o tempo se tornasse mais fresco, a porta e todas as janelas podiam ser fechadas, de modo a confinar o som ao interior do edifício, evitando que fosse perturbar os outros, a um ou dois quarteirões de distância.

Depois de ponderar um pouco na sugestão, Rumson abanou a cabeça. Disse que os seus membros tinham de possuir um lugar para cantar todas as semanas e tinha receio de que fossem buscar outro lugar para cantar, se deixassem alguma vez de o permitir na sua igreja. Pelo contrário, disse que fecharia a porta e as janelas no sábado seguinte, à noite, para que houvesse música e cânticos, como de costume, por mais calor que fizesse.

Ao levantar-se para se retirar, Rumson agradeceu a Ira Sylvester a sugestão que lhe deu, de evitar que a cantoria incomodasse os outros e os levasse a participar à polícia. Seguidamente, satisfeito e sorridente, convidou meu pai a aparecer na igreja do Convívio da Vida Plena, no sábado próximo, à noite, e que experimentasse colocar-se do lado de fora, para ver como era abafado o som da música e dos cânticos.

Tinha havido um violento, embora breve, temporal na tarde de domingo, que contribuiu para refrescar a atmosfera, durante algum tempo. Contudo, ao crepúsculo, entre as oito e as nove horas, a noite de Agosto era mais tépida e o ar mais húmido do que antes de a chuva ter caído. Mesmo depois do sol-pôr, em Agosto, não era coisa rara a temperatura subir bastante.

Ira Sylvester e eu percorremos a rua, ao anoitecer, em direcção à igreja de Rumson Tatum. Como era ainda costume em muitas pequenas cidades dos Estados do Sul, não havia serviços dominicais nocturnos aos domingos, na igreja da Associação dos Presbiterianos Reformados, e meu pai e eu íamos muitas vezes a outras igrejas da cidade ou da província, para observar as actividades e rituais religiosos de várias denominações.

Quando chegámos ao sector negro da cidade, cujas ruas não eram iluminadas, a noite era completamente escura, alumiada apenas por algumas pequenas estrelas. E quando chegámos à igreja, não vimos mais do que algumas estrias de luz amareladas, saídas das estreitas fendas das janelas.

A porta do edifício, como as janelas, estavam bem encerradas, e ouvia-se a música e a cantoria como um eco distante. Das várias vezes que tínhamos ido a uma igreja negra, sentámo-nos sempre no último banco da retaguarda. Desta vez, Ira Sylvester disse que queria ficar de fora, para verificar como se ouviam os sons com a porta e as janelas encerradas.

Estávamos ali, de pé, havia meia hora, quando uma das janelas foi subitamente escancarada e várias pessoas se amontoaram ali, debruçadas quanto possível com as cabeças de fora, para respirar um ar mais fresco. No mesmo instante em que a janela se abriu, uma onda de música irrompeu do interior da igreja, que foi ouvida a muitos quarteirões de distância. E acima de tudo, atroaram os ares as pancadas rítmicas do grande tambor.

Passaram-se vários minutos antes que Rumson Tatum pudesse retirar as pessoas da janela e fechar as gelosias. Logo que o fez, a ressonância do tambor e dos cânticos tornou a ouvir-se dèbilmente.

No caminho para casa, mais tarde, e a vários quarteirões distante da igreja, ouvimos de novo um súbito irromper de música alta, cantoria e ritmos de tambor, certamente porque abriram outra vez a janela para respirar ar fresco. Perante o barulho àquela distância, tão tardiamente, à noite, parecia certo que o homem apresentaria nova queixa às autoridades.

Não passava muito da meia-noite, quando o sinal de alarme da estação de bombeiros se fez ouvir, e, dentro de momentos, o carro de extinção de incêndios avançou ruidosamente pela rua, em direcção ao sector negro, com o sinal de alarme a alvoroçar toda a gente na sua correria.

Quando meu pai e eu chegámos próximo, notámos um clarão vermelho no firmamento, pairando sobre o sector negro. Ao corrermos em direcção ao fogo, com muita outra gente, uma comprida língua de chamas e fumo ergueu-se do edifício. Quando chegámos às proximidades, notámos que a igreja do Convívio da Vida Plena, de Rumson Tatum, ardia.

Os bombeiros não possuíam água disponível naquela zona da cidade, com que pudessem dominar o fogo, e utilizavam um pouco de água que elevavam de um poço, para molhar os telhados das moradias vizinhas, a fim de evitar que as centelhas dispersas ocasionassem focos de incêndio.

O telhado, à retaguarda da igreja,) estava em chamas, embora o fogo não tivesse atingido a parte fronteira da igreja, quando Rumson ali chegou. Manquejando na sua perna de pau, não pôde comparecer ali mais depressa. Quando notou que o fogo apenas lavrava no telhado da retaguarda, disse que ia salvar o órgão, avançando pela porta adentro. Alguém disse-lhe que o órgão não se encontrava na parte da igreja que estava em chamas, mas ele ignorou a advertência.

Enquanto as pessoas gritavam a Rumson para se afastar do edifício, ele abriu a porta. Labaredas e fumo romperam através da porta aberta, e ele deu uma queda nos degraus. Vários homens, protegendo o rosto com os braços, apanharam-no a tempo e arrastaram-no dali.

O cabelo de Rumson empastou-se no crânio, tinha rasgões chamuscados na camisa e nas calças, e a parte inferior da sua perna de pau estava enegrecida e deitava fumo. Duas mulheres, que pertenciam à sua igreja, chorando alto, correram para ele e refrescaram-lhe a cara abanando a ponta das saias.

Ao sentar-se no chão, esfregando com terra húmida a perna de pau, para evitar que ardesse mais, ele disse que, logo que pudesse obter uma nova perna de pau, juntaria tábuas para construir uma nova igreja, onde todos pudessem cantar.

Quando as traves caíram em chamas e as paredes ruíram, Rumson enxugou as lágrimas. Com um sorriso confiante, ele disse que a nova igreja do Convívio da Vida Plena havia de possuir muitos ventiladores eléctricos para, no Verão, proporcionar um ambiente fresco no interior, e seria construída sem janelas, para não perturbar o sossego dos outros, nem levá-los a deitar fogo à igreja.

Nos primeiros anos de 60, mais de quarenta anos depois do incêndio da primeira igreja do Convívio da Vida Plena, e a construção do edifício novo e mais vasto, Rumson Tatum estava ainda vivo e fazia a mesma vida limitada, na sua idade avançada, como tinha feito no passado. Embora fosse ainda solteiro, uma outra jovem mulher vivia com ele e tratava dos assuntos domésticos.

Rumson tinha os cabelos brancos e já ia nos seus oitenta. Trazia no extremo inferior da sua perna de pau uma sola de borracha, para que fosse menor o perigo de escorregar nos passeios pavimentados e ferir-se.

Uma vez por semana, como sempre, as pessoas que viviam no sector negro da cidade, vinham à igreja de Rumson, aos domingos, para, durante horas, tocar instrumentos musicais e cantar. Contudo, a diferença agora era que os concertos se realizavam de tarde, e não à noite, e ninguém se queixava de que o barulho perturbava o sossego. Mesmo aqueles que viviam junto da rua diziam que o edifício sem janelas era tão impenetrável ao som, que mal ouviam a música e os cânticos.

Uma outra diferença, nos anos 60, era que os frequentadores da igreja eram muito mais novos do que aqueles que, quarenta anos antes, a frequentavam; e, em vez de tocarem órgão e tambor, usavam guitarras eléctricas, acordeões, tambores, trompetes, tamboretes, e outros instrumentos de sopro e de corda, para executarem música “rock-and-roll” e jazz moderno.

Ainda se cantavam hinos, espirituais e canções populares. Contudo, dado tamanho interesse, entre os jovens, pelo jazz e música instrumental, e todos eles desejosos de utilizar o seu instrumento favorito, muito menos tempo era dedicado ao canto do que à música.

Rumson Tatum disse que não punha objecção à mudança que se verificara nos últimos anos. De facto, até sentia prazer nisso, dado o maior número de gente que afluía à igreja, criando um convívio mais vasto.

Além de abrir a igreja do Convívio da Vida Plena, aos domingos à tarde, em vez de o fazer à noite, Rumson agora cobrava uma pequena importância, à parte, em vez de fazer depois o peditório, com resultados incertos, e nem sempre satisfatórios.

Tudo correu bem na igreja de Rumson, durante alguns anos, até que um grupo de jovens negros a alugou para uma reunião a efectuar-se num domingo de manhã. Pagaram adiantadamente o aluguer a Rumson e prometeram deixar vago o edifício ao meio-dia, para que ele pudesse realizar, como de costume, o seu concerto de domingo à tarde. Supondo que iam utilizá-la para uma sessão especial de prática musical, não lhes perguntou qual o fim para que a queriam alugar.

Uma grande multidão se juntou na igreja, muito cedo, nessa manhã de domingo, e vários discursos frenéticos foram proferidos a propósito da nova atitude do proprietário de um pequeno café, situado a seguir a um posto de gasolina.

Sucedeu que, alguns dias antes, o dono do café, estabelecimento que não passava de uma espécie de balcão de venda de cachorros quentes, com um só empregado, havia colocado um grande cartaz à entrada anunciando que só os brancos seriam servidos e que qualquer outra pessoa que entrasse no café seria processada. Quando um jovem negro parou à entrada e disse que desejava uma sanduíche para levar consigo, o dono chamou a polícia a quem pediu para o prender.

Muitos negros possuíam bombas de gasolina ao longo da rua e, como aquele café era o único nas redondezas, criaram o hábito de o frequentar várias vezes ao dia, consumindo cachorros quentes e pregos, ou levando-os consigo, em vez de os comerem ao balcão. Vários dos negros que tinham ido almoçar mais longe, viram os seus salários cortados, em virtude de terem regressado tardiamente ao trabalho.

Quando perguntaram ao dono do café, um homem de modos grosseiros, de meia idade, que já havia sido agente da polícia, por que razão deixou de admitir os negros, ele respondeu que a maioria dos seus clientes brancos eram motoristas de camião, vindos de todas as regiões do Sul, e não queriam que os negros entrassem no café quando estivessem a comer ao balcão. E dizendo isto, alteava a voz, indignado.

Finalmente, disse que tinha um motivo melhor para proibir os negros, do que o de agradar aos brancos. Explicou que já há muito tempo pensava em os proibir, porque muitos deles, e cada vez mais, procediam como se estivessem convencidos de que tinham tanto direito de ingressar no café como os brancos, e falavam com ele como se fossem tão bons como ele. Disse que foi por isso que resolveu não dar atenção aos negros quando estes pediam os pregos bem ou mal passados, ou com mostarda ou molho picante.

Na reunião desse domingo de manhã, na igreja do Convívio da Vida Plena alguns dos assistentes propuseram quebrar as janelas do café e devastar o estabelecimento. Outros eram a favor de um protesto sentados no interior do café, e dispostos a serem conduzidos à prisão.

Porém, após quase duas horas de argumentação e discussões, a maioria votou por uma demonstração de protesto no café, com cartazes de protesto, até forçarem o dono a permitir-lhes fazer compras.

Foi nomeada uma comissão para planear a manifestação, de modo que ninguém com emprego certo tivesse de largar o emprego e perder o salário, distribuindo-os por horários convenientes. Deliberou-se que, pelo menos duas pessoas, de cada vez, segundo o horário que melhor lhes servisse, andariam de um lado para o outro em frente do café, com cartazes de protesto, desde a sua abertura, de manhã, até ao seu encerramento, à noite. Estabeleceu-se um programa de manifestações por uma semana, a começar na segunda-feira, de manhã, ao abrir-se o café.

Havia dois manifestantes no passeio, fronteiro ao café, quando o dono chegou na segunda-feira, de manhã, às sete horas. Sem qualquer palavra, abriu a porta à chave, e, dentro de poucos minutos, voltou à rua com uma pesada tranca, tentando agredi-los.

Indignado e ameaçador, ao descobrir que os dois homens eram ágeis e capazes de evitar as pancadas, ele disse que ia saber os nomes dos negros que eram responsáveis pela organização do protesto. Depois, advertiu que alguém havia de arrepender-se, porque havia de saber tudo e, depois, agir em conformidade.

Nessa noite, já tarde, depois de o café fechar, e os manifestantes se retirarem, a igreja do Convívio da Vida Plena, de Rumson Tatum, foi incendiada pela segunda e última vez.

No dia seguinte, o chefe da polícia avisou alguns negros que deviam cessar o protesto diante do café. Acrescentou que haveria mais incêndios no sector deles, enquanto continuassem as manifestações.

Paxá muitas gerações, nos Estados do Sul, os protestantes brancos das seitas fundamentalistas, desde a elite dos Baptistas até os subservientes Martela-Cabeças, vinculados embora às suas ideologias individuais religiosas, agiam todos de acordo em matéria política. Em suma, isto significava votarem pelo partido democrático, opondo-se assim ao reconhecimento social e económico dos não-brancos.

Esta frente unida permitiu que os fundamentalistas usassem o supremo poder político para dominar e governar, resistindo efectivamente à aprovação de legislação progressiva que beneficiaria e daria estímulo à população de raça negra.

O voto da igreja, como se dizia, que era suficientemente poderoso para dominar o partido democrático nos Estados do Sul, e mesmo sem a cooperação dos católicos e dos episcopalistas, tinha força para depor e remeter ao exílio político qualquer político ou estadista que ignorasse os ditames dos fundamentalistas. Para substituir o lugar do legislador exilado, o demagogo era elevado à posição de chefe.

Foi nesta era que a religião fundamentalista reaccionária e a política de direitos dos Estados se amalgamaram a tal ponto que mesmo nos anos 60 eram ainda sinónimos e inseparáveis.

Agora, após muitas décadas, as forças de oposição estão a perder, gradualmente, o seu poder de superioridade e domínio absoluto do negro. No curso dos acontecimentos nacionais, e, por depleção, por morte, a geração mais velha dos fundamentalistas está a ser suplantada por uma geração mais nova e mais esclarecida, e a separação da Igreja do Estado torna-se já evidente através dos Estados do Sul.

Embora se verifique ali uma resistência esporádica à legislação em benefício educacional e social dos negros— localmente, e, com mais amplitude, sobretudo no Alabama e no Mississipi—, os factores progressivos já se fazem sentir. As leis federais são impostas e executadas. E, o que é mais importante, a jovem geração de negros de formação académica é franca, confiante, consciente na votação sobre direitos e privilégios de cidadania americana. Onde quer que os indivíduos e grupos desta nova geração tenham tido uma chefia responsável, democrática ou republicana, o poder de voto já conseguiu mais a favor deles do que a violência física.

Nos colégios, desde as Carolinas até à Luisiana, o novo negro dos Estados do Sul é, talvez, tão politicamente agressivo e demonstrativo como o seu parceiro branco das universidades, desde a Califórnia a Massachusetts.

Tirando estes aspectos, contudo, a semelhança entre eles é que o estudante branco costuma mudar a sua lealdade a uma causa, idealística ou popular, para outra, ao passo que o estudante negro tende a persistir, realisticamente, no seu objectivo de superar o preconceito racial e atingir a igualdade democrática.

O alvo da maioria dos estudantes colegiais negros, dos anos 60, não é, necessariamente, matricularem-se numa universidade tradicionalmente branca, apenas para atingirem uma integração simbólica. Ordinariamente, aqueles que realmente querem matricular-se em tal instituição são impelidos por uma finalidade diferente. São, em geral, estudantes ambiciosos e qualificados que buscam uma educação de mais alto nível e especializada, em escolas superiores, o que nem sempre encontram nos colégios negros, e de que necessitam nas suas carreiras de direito, medicina, ciências e magistério.

Por outro lado, o maior número de estudantes negros dos Estados do Sul dirão que antes querem frequentar os colégios negros para sua formação básica, do que sofrer a experiência social de constituírem uma minoria racial nas mais importantes universidades integradas oficiais e particulares.

Todavia, entre as excepções contam-se muitos jogadores robustos, musculosos e pesados, dos colégios negros juniores. São estes os estudantes que são atraídos pelos mais variados clubes de futebol, os quais lhes oferecem tão sedutoras bolsas de estudo que, todos os anos, um número crescente deles se matricula nas universidades oficiais e particulares, ao longo de todo o país, até à costa do Pacífico.

O estudante de vinte anos, que, como os seus irmãos e irmãs, tinha uma cor e um perfil distintos, estava de regresso a casa, no Mississipi, para as suas férias de Verão. Possuía um emprego de dois meses, que requeria força física, trabalhando para uma empresa de construções que edificava pontes, numa nova auto-estrada. Antes disso, completara o curso no liceu da sua cidade natal e frequentara um colégio negro de juniores, vizinho, durante um ano, onde jogou numa equipa de futebol.

Agora acabava de completar estudos de um ano, com boa classificação, numa importante universidade oficial, em cuja equipa futebolística era juiz de linha. A sua bolsa de estudo, concedida pelas suas qualidades desportivas, pagaria todas as suas despesas, por dois ou mais anos até à formatura.

Quando lá fui, há um ano, olhei em, volta e pareceu-me que ia alcançar o outro mundo. Nunca dantes estive muito tempo fora do Mississipi, excepto até Mênfis, e na região de Alabama, e eu não sabia o que ia encontrar de novo, quando deixei isto.

Pensei que seria igual a esta região plana e seja, onde as altas árvores nos impedem de olhar longe. Mas não era. Era, na verdade, diferente. Era uma região cercada de colinas, com grandes rochedos à vista, de um castanho suave, e despida de arvoredo, a não ser as plantas rasteiras, semelhantes aos tufos de amoras bravas. A universidade estava situada no topo de uma das colinas, e dali a vista alcançava uma distância de muitas milhas, e toda aquela região possuía uma configuração idêntica — como que, simultaneamente, arredondada e plana. Se eu quisesse, teria saudades da minha terra, mas eu não quis.

Uma outra coisa: o frio veio depressa, logo depois da minha chegada, e ali permaneceu longo tempo. Para um rapaz de cor, do Mississipi, como eu, o frio apertava. Mas comecei a habituar-me a ele, e agora até parece que gosto. Além disso, estimula-nos, quando jogamos a bola, ou nos treinamos.

A região é bonita — de um relvado verde, durante o ano, e branca de neve no Inverno. Aprecio-a muito.

Fui para ali, porque gostava de jogar o futebol e a oportunidade era boa. Se ficasse aqui, não teria jogado mais do que um ano no colégio de juniores. Além disso, eu acabaria por ser contra o futebol, porque nenhum dos grandes clubes universitários manda aqui os seus representantes para contratar jogadores.

Que eu saiba, não vêm cá buscar rapazes de cor para jogarem nas suas equipas. Nas equipas deles só jogam rapazes brancos. A minha grande ambição é ser um profissional — numa equipa importante, como a Liga Nacional de Futebol ou ai Liga Americana de Futebol — e sempre imaginei que nunca o conseguiria, se ficasse aqui, a jogar numa equipa colegial de juniores, durante dois anos. Aqueles grandes representantes das ligas futebolísticas não ligariam importância a uma pessoa como eu, que jogara por pouco tempo num colégio negro de juniores, aqui em Mississipi, e sem nunca fazer jogo grande como eles o fatiem em Qle Miss, Georgia Tech e Alabama.

Eu lhe digo, homem, que na verdade me senti satisfeito quando um representante veio aqui, vindo do Oeste, só para me ver, porque alguém lhe dera muitas informações a meu respeito.

Quando ele disse que todas as minhas despesas seriam cobertas por uma bolsa de estudo — matrículas, quarto, pensão e tudo, além de um emprego, em “part-time”, que me permitisse ganhar para extraordinários—, não quis ouvir mais. Saltava de alegria. Só sei que era a coisa melhor que jamais me acontecera em toda a minha vida, e comprometi-me a ser o primeiro homem, daqui, a praticar lá o futebol.

Tivemos, na verdade, uma boa, época, no ano passado — ganhámos oito jogos, perdemos só dois — naquele rude campeonato — e melhor será a época seguinte. A perspectiva é tão boa que não me causaria surpresa se nós ganhássemos o título de campeões, desta vez. E, creia, é um jogo violento. A maioria das equipas possui um ou dois rapazes de cor, robustos como eu. E os rapazes brancos também são robustos.

O que eu espero é que os delegados dos clubes apareçam, nesta época, a propor um contrato. Pode ser que eu tenha sorte. Ainda tenho mais um ano, na equipa universitária, para me preparar para os grandes jogos. Não depende de mim a escolha, mas isso não importa. O que interessa é que eles me queiram. Se dependesse de mim, gostaria de jogar para os Chicago Bears ou para os Gleveland Browns. Apenas os vi na televisão, e acho-os, a ambos, grandes equipas.

Se eu conseguir progredir e iniciar bem a carreira, estarei em forma para jogar durante dez a vinte anos. Suponho que, se eu conseguir alcançar a posição desejada dentro de pouco tempo, aos vinte e dois anos de idade, poderei ali permanecer até aos trinta e cinco, aproximadamente. Então, interessar-me-ia desempenhar o lugar de delegado desportivo nalgum colégio júnior negro, aqui em Mississipi, ou em qualquer outro lado. Tudo isto daria para a minha vida. Pode ser que, um dia, as grandes universidades do Sul venham a contratar negros para delegados, se tiverem qualidades para o cargo, mas por enquanto não conto com isso.

Por agora, interessa-me manter a classificação, de modo a permanecer na equipa por dois anos. Há muito tempo livre para os estudos. Não é aí que reside o problema. O que importa é obter uma boa classificação.

Eu não me imiscuo muito na vida social. Tendo a cor que tenho, as oportunidades não são grandes — como por exemplo, relativamente a bailes, reuniões sociais, e coisas semelhantes. Ainda sou um rapaz de cor, do Mississipi, e não posso esquecer este facto, mesmo lá no Oeste.

O mesmo acontece, no que diz respeito à frequência da igreja. Não há igrejas só para negros, e eu não posso esquecer quem sou, ao entrar numa igreja cheia de brancos. Talvez não ligassem importância, mas eu não me sentia no direito de os incomodar. Eu havia de tremer todo, se pusesse o pé dentro de uma igreja branca, no Mississipi. As vezes, sento-me a tomar café com raparigas brancas, na liga académica, mas não passo daí. Alguns deles gostam de troçar de mim, por não pedir namoro. Pode ser que o digam a sério, pode ser que não. Como quer que seja, eu ficaria todo confuso se, aqui no Mississipi, uma rapariga branca me dissesse tal coisa, e não teria nada a dizer, que não fosse coisa idiota ou estúpida. Não sei. Pode ser que no próximo ano eu tenha mais coragem para isso. Mas fazer isso aqui no Mississipi — até tenho medo de pensar em coisas semelhantes.

Bem, é o que sucede aqui, a respeito de raparigas brancas. Elas fazem troça, mas com amizade. Com os rapazes, a coisa sucede de maneira diversa. Não é que eles tomem ares importantes por serem brancos, e me tratem como negro. Não é bem isso. Há ainda muita diferença entre o que acontece ali, em relação ao que se passa aqui no Mississipi — não me tratam com desprezo. Mas é difícil definir em que consiste a diferença. É como que não pertencer ao mesmo clube. Somos só quatro na universidade, e todos os rapazes brancos nos tratam igualmente. O meu camarada de quarto veio também transferido de um colégio de juniores, do Alabama, com uma bolsa de estudo como a minha, e ele sente como eu — estamos ao mesmo tempo dentro e fora.

O que sei é que eu não vou forçar a minha posição no meio dos rapazes brancos. É a melhor maneira. É verdade que fazem comentários atrás das costas, e, por outro lado, felicitam-nos com efusivos apertos de mão na época do jogo. Não me importo. Mas, após o último desafio, as coisas parece que decorrem de maneira diferente, e a gente apetece estar só.

O que eu procuro é aprender a viver como um negro, e não me envergonhar da minha cor, quando ando na companhia dos brancos. Se eu vivesse sempre aqui, no Mississipi, toda a vida, e não tivesse daqui saído, eu não teria aprendido a ser assim, para me ajudar a mim próprio. Vivendo sempre neste meio, nunca há a oportunidade de se conhecer os brancos. Aqui, traçam sempre uma linha carregada a dividir todas as coisas: eles ficam de um lado, nós do outro.

Palavra, quando eu completar os estudos, terei tanto orgulho nisso que nenhum homem branco me há-de ofender com as suas palavras, nem me há-de fazer sentir que sou o negro que alguns deles querem que eu mostre ser. Para isso é que eu me educo — para ter na cabeça as boas ideias que alguns brancos têm, e ideias melhores do que as de muitos deles.

De todas as comunidades negras dos Estados do Sul, Atlanta possui o mais vasto complexo educacional e o maior número de igrejas. E, à vista de qualquer escola, liceu, colégio ou universidade, é quase certo erguer-se a torre de uma igreja, e, com maior probabilidade, uma igreja baptista. E, como na comunidade branca, o estatuto social é regulado e classificado conforme a posição e a afluência de determinada igreja baptista, à qual se pertence.

O estudante negro do colégio frequentava o curso de história, interessando-se também pela filosofia. Era também um distinto poeta, com trabalhos inéditos. Viera a Atlanta, provindo de Savannah, sua cidade natal, para cursar o magistério. Tinha vinte e três anos de idade e, como dizia de si próprio, era um negro sem creme no seu café.

Quando chegou pela primeira vez a Atlanta, disse que estava satisfeito por ser moderadamente agnóstico, não se metendo em sérias discussões sobre religião. Contudo, passados três anos, tornara-se especificamente adversário dos baptistas, tendo travado lutas a soco, quando a argumentação lhe fazia perder a calma.

De início, não tive qualquer motivo especial para hostilizar os baptistas. Eu costumava frequentar uma igrejinha negra baptista, de gente pobre, em Savannah, e nada aconteceu ali que me tivesse irritado. Havia sempre muita música e cantoria, e menos pregação e oração. Era realmente um lugar amistoso onde ir aos domingos, e em nada parecido com estas igrejas negras, baptistas, de sociedade, aqui em Atlanta, que reagem como se nós não tivéssemos o direito de entrar e nos sentarmos nas bancadas, a não ser possuindo uma cor de pele branqueada. Em Savannah havia muitos mulatos, mas nunca se comportavam, na igreja, como se fossem melhores que os negros.

Quando eu cheguei a Atlanta, durante um ano, tanto se me dava ir a uma igreja baptista, metodista ou de outra denominação* Assim sucedeu até que algumas pessoas insistiram para que eu fosse a uma das grandes igrejas baptistas, aonde fui numa manhã de domingo.

Eu não ia trajado com elegância, como os outros, e, imediatamente, observei que eles faziam gala e ostentação do seu vestuário e posição social.

Depois de eu ter executado o ritual de raspar o excremento de porco das solas dos meus sapatos, como costumamos fazer em Savannah, transpus a porta principal. Lá dentro, perguntei a um dos vigilantes onde é que me podia sentar. Ele usava um fato elegante, de seda cinzenta, e uma gravata de pontos brancos, como quem, vai casar e se prepara para uma boa fotografia.

Era um dos negros de cor branqueada, como todos os demais presentes, excepto eu, que era negro. Ele contemplou o meu fato, de cima a baixo, e não me disse nada. Eu considerava-me decentemente trajado para assistir a qualquer serviço religioso. Levava um bom fato castanho, gravata e uma camisa branca lavada. Tinha engraxado os meus sapatos, nessa manhã, precisamente para ir à igreja. Mas ele continuava sem dizer palavra, e sem me indicar onde devia sentar-me. Acabei por o mandar à fava, e avancei pelo corredor, sentando-me numa bancada onde havia espaço bastante.

Dentro de momentos, duas raparigas, dos seus vinte anos, perfumadas, e rebolando as ancas, sentaram-se na minha bancada. Usavam refulgentes anéis de diamantes e toda a espécie de jóias, e vinham com vestidos de festa.

Possuíam muito mais creme do que café, e a cabeleira delas estava desfrisada e enrolada no topo das suas cabeças. Uma delas tinha cabelo ruivo pintado, e a outra, pintado de castanho claro. Ou talvez cabelo postiço — mas era difícil assegurá-lo, a não ser tirando-o das cabeças ou metendo as mãos nas cabeleiras. E deviam ser penteados caros, certamente.

Logo que se sentaram, ajeitaram vistosamente as saias e afastaram-se bastante de mim. Depois começaram a fitar-me o rosto, como que a dizer que não queriam um negro ao pé delas. O que eu fiz foi também fitar as suas estranhas cabeleiras, e abanar a minha cabeça, a significar que preferia sentar-me noutro lugar, onde estivesse mais à vontade. Quando elas perceberam o meu gesto, mostraram-se irritadas e ofendidas.

No entretanto, o grande órgão de tubos ressoou na igreja, e os componentes do coro ergueram-se, vestidos de pomposas túnicas de veludo vermelho-dourado. Logo que o canto começou, o mesmo vigilante, com seu ar importante, tocou-me nos ombros e, arqueando o seu dedo indicador, fez sinal para eu seguir. Eu não estava para isso, mas já estava farto daquela atmosfera nauseabunda e precisava de ar fresco. Por isso, levantei-me e saí.

Quando cheguei ao exterior da igreja, perguntei ao vigilante o que havia de especial. Ele disse-me que eu tinha ocupado o lugar reservado por certos fiéis que apareciam regularmente, e que a igreja, nesse dia, estava cheia, não havendo lugar para mim.

Eu estava para o mandar à fava, mais a sua igreja, e ir-me embora, quando ele me fez estacar, para me dizer qualquer coisa. O que disse foi que eu não me devia sentir à vontade naquela igreja e que não me esperava ver ali de novo.

Bem sei o que queria significar. Seria talvez por causa do meu velho fato castanho. Mas devia ser, sobretudo, por eu ser negro, sem creme no meu café.

Homem, deviam ver o salto que ele deu, quando lhe chamei negro meio branco! Que salto! Chamem a um desses arrogantes bastardos um negro — simplesmente negro, ou coisa parecida — e notem como ele salta!

Quando lhe chamei aquilo, ele cresceu para mim. Mas eu esquivei-me. Seguidamente, dei-lhe dois ou três socos poderosos na cara, antes que outros vigilantes aparecessem para me expulsar dali. Não fizeram mais do que dar-me pontapés e puxar-me, com medo de que eu agarrasse um deles e o esfregasse no chão, sujando-lhe o rico fato de seda. Eu estava bastante fulo para correr tudo à pancada, mas eles eram muitos e eu afastei-me.

Nunca entrei numa igreja baptista branca onde pessoas com pretensões sociais se reúnem, e, portanto, não conheço nenhum deles. Mas se eles têm alguma semelhança com as pessoas que frequentam aquela grande igreja negra baptista, é natural que, todos os domingos, façam exibição da sua classe social.

Eu nunca tomaria a atitude que tomei, na igreja negra baptista, se não visse com os meus olhos aquela gente petulante. Um pouco de religião não faria mal a ninguém, doseada com boa música e canto. Ainda que pertencessem, a outra igreja,. Mas como as coisas se passam, todos querem filiar-se nas igrejas baptistas de grande classe.

Toda esta agitação acerca de projectos de lei contra a discriminação — conceder direitos iguais aos negros e coisa parecida — para quê ? As leis que eu quero são aquelas que proíbam as igrejas negras baptistas e os clubes nocturnos negros de praticarem a discriminação contra a gente de pele negra.

É uma experiência humilhante ser um negro e ver-se oprimido por gente da sua própria raça como um pária leproso, como alguns deles o fazem.

Eu lhe digo como acontece. Há um certo clube nocturno negro, aqui em Atlanta, que faz a mesma coisa que fazem aqueles da igreja baptista aonde eu fui. Frequentei algumas vezes esse clube e eu sei. Entro ali com uma rapariga para ver o espectáculo, tomo umas bebidas, e eles fazem-me sentar na fila de trás, ainda que haja mesas vagas à frente, junto do tablado. E não interessa que a rapariga seja bonita ou clara. É contra a minha cara negra que eles reagem. Eu não quero frequentar todos os lugares que eles reservam para si, mas sinto a humilhação de ser discriminado pela minha própria gente.

Eu sei porque é que o fazem. E eles não se importam de mentir a este respeito. Tal como os frequentadores da igreja baptista, os que dirigem este clube nocturno julgam que lhes dá classe e distinção reservar os lugares da frente, à beira das luzes do tablado, só aos negros mistos de cor branqueada. Imaginam que estes são pessoas abastadas e pertencem à alta sociedade, que deixam de aparecer, se permitem a algum negro como eu sentar-se ao lado deles numa mesa da frente.

Uma outra razão é que aquela gente gosta que lhe tirem fotografias, no clube, para figurarem em páginas de sociedade dos jornais e não querem que uma cara negra apareça entre eles. Que diabo, eu não me importo de ser negro! Sou eu. O que eu não gosto é da discriminação. Eu reclamo direitos iguais, eis tudo.

E sabe qual é o aspecto engraçado disto? É que os dois proprietários do clube nocturno são negros como eu.

Enquanto os brancos elaboram leis que permitem que os negros comam em restaurantes públicos e durmam em motéis públicos, reclamo que se apressem a elaborar outros que proíbam os clubes nocturnos negros de me humilhar. Quando pago, exijo que me deixem entrar e sentar na fila da frente, a observar as bailarinas. Se não posso ver e apreciar bem os bailados, quem me convence de que gastei bem o dinheiro ?

Desde o final da Guerra Civil até ao começo dos anos 60, período notável pela sua história centenária de discriminação racial e injustiça humana, a preocupação dominante do negro sulista tem incidido sobre o seu bem-estar social e económico.

Embora haja prova exuberante de sincera fé religiosa entre os negros, em regra ela tem sido conservadora, comunitária e secundária, em relação ao desejo humano de igualdade de direitos e privilégios. Nem a adulteração da igreja das grandes cidades, nem o primitivismo das missões do interior representavam a fé religiosa do negro.

A verdade é que o negro dos Estados do Sul raras vezes introduziu na sua igreja os excessos religiosos fanáticos do fundamentalismo anglo-saxónico. Bater com a cabeça de encontro a uma parede até se ficar atordoado e flagelar o corpo com um chicote para produzir o êxtase, e atiçar uma serpente para ela cuspir o seu veneno mortal, não são espectáculos religiosos vulgares no interior das igrejas negras de qualquer denominação.

A amostra mais próxima desse género de espectáculos é uma exibição teatral representada por um evangelista negro oportunista que se dá pelo nome de índio Americano, ou Hindu, ou Muçulmano, e que usa um exótico toucado que lhe serve para atrair o público. E a contrapartida do branco fundamentalista, de poderes mágicos, que, no começo do século, também montava, com êxito financeiro, uma tenda de curandeiro vendendo grandes quantidades de ervas medicinais a gente crédula. Quanto ao povo, em si, quer busque, sinceramente, inspiração religiosa, ou apenas procure satisfazer a sua curiosidade, a feição mais apreciada do entretenimento verifica-se quando a audiência pode partilhar na música das canções espirituais.

Agora, nos anos 60, tal como tinha acontecido desde que as primeiras igrejas foram construídas nos últimos anos do século dezanove, os negros sulistas continuam a usar as suas igrejas como um refúgio da comunidade, das ameaças e intimidações de racistas inveterados, de entre os cidadãos brancos. Mas não só para isto. Em aditamento à sua finalidade primitiva, nos anos mais recentes as suas igrejas tornaram-se marcos de uma nova era — lugares de reunião para realizarem protestos políticos e demonstrações contra as limitações dos direitos sociais, económicos e educacionais.

Como esses marcos são agora, simultaneamente, reais e simbólicos, o uso das suas igrejas como lugares para se reunirem em prol da causa dos direitos cívicos, não raramente deu azo aos ataques à bomba e ao incendiar dos seus edifícios, por perseguidores brancos, a coberto da noite, em Alabama, Mississipi e outros Estados do Sul. Em todos os casos, porém, estes actos de violência constituem uma intimidação passageira, e servem, por sinal, para induzir os negros a um esforço maior para atingirem os seus objectivos.

Tal como os antigos escravos foram há muito excluídos dos lugares privilegiados das igrejas brancas, em represália, por terem conseguido a libertação da escravatura, aos negros, dos anos raciais de 60, era proibido, em certas localidades, pelos conselhos escolares constituídos por brancos, usarem as suas próprias escolas públicas segregadas, para reuniões em prol de direitos cívicos. Consequentemente, a igreja negra, como um lugar tradicional de reunião, passou a ser cada vez mais usada para defesa da causa dos direitos cívicos, num mundo hostil de brancos.

A chefia, nas comunidades negras espalhadas por esta região, agora como no passado, desde há muitos anos, pertence, invariavelmente, a um ministro local negro. Actualmente, porém, é em regra um homem educado, calmo e criterioso nos seus juízos, que possui a aptidão necessária para persuadir a geração mais velha a libertar-se do seu medo tradicional do homem branco, e, ao mesmo tempo, para refrear a geração mais nova da prática impulsiva de actos de vingança.

O referido ministro talvez não saiba pregar com apreciável eloquência, aos domingos, mas no decurso dos outros dias da semana, ele mostra ser um dirigente do seu povo, intemerato e respeitado. ”É o mesmo que tem sido visto, frequentemente, no Sul, nos últimos anos, chefiando marchas de protesto pelas estradas do país e ruas da cidade.

O negro dos Estados do Sul, dos anos 60, não duvida, necessariamente, dos resultados positivos que pode acarretar o conselho e a orientação de um forasteiro, que bem pode ser um negro do Norte, profissionalmente qualificado para fornecer uma ajuda eficiente. Os métodos de organização são, em regra, úteis, mas a execução desses planos pode ser nociva, se não for ajustada aos interesses locais.

Dado que ele vive e trabalha na sua terra, consciente do antagonismo incrustado do racista branco, o residente negro receia ver a sua casa incendiada. Assim, compreensivamente, ele sente-se mais protegido e seguro, quando o bem intencionado, vindo de fora, se retira, e a chefia continua entregue a um homem que vive a seu lado.

Como resultado de uma chefia hábil e da sua própria educação, vantagens desconhecidas do seu pai ou avô, o jovem negro do Sul, do nosso tempo, confia em si próprio e na sua causa. Em especial, entre os estudantes do colégio e professores, este espírito novo é evidente na maneira firme e directa como as opiniões pessoais são expressas e como os problemas são debatidos publicamente.

Causaria espanto, certamente, aos negros de há cinquenta anos, como ainda hoje causaria a muitos protestantes fundamentalistas, ouvir um estudante negro de colégio criticar, com audácia, certa medida política do Estado ou do governo federal, ou ouvi-lo negar a existência de Deus. Os negros mais velhos manter-se-iam calados com medo, enquanto os protestantes fundamentalistas o acusariam de ser um comunista.

Mas nós vivemos numa época de contestação, de protesto e rejeição. E o jovem negro dos Estados do Sul já não vive isolado; respira o mesmo ar revigorante de pensamento e opressão que os jovens brancos respiram em toda a América.

São estes os jovens, que, em breve, irão às urnas votar pelos seus direitos, como negro-americanos, e que repudiarão qualquer funcionário que no seu cargo público deixe de promover a concessão de direitos plenos de cidadania a todos.

Após quase uma década dos anos raciais de 60, a revolução negra dos Estados do Sul que, na sua primeira fase, era concretizada por movimentos de entrada nos restaurantes e recintos públicos, passou dos excessos de actuação física para uma acção mais sofisticada e intelectual, tanto em ambição como em actividade. Quando ocorrem demonstrações periódicas, elas são, usualmente, espontâneas e não planeadas, ou são instigadas por proponentes interessados. Esta fase avançada da evolução é já plenamente evidente na área de Atlanta e Nova Orleães, e as primeiras indicações começaram a aparecer em Birmingham, Jackson e outras cidades dos Estados do Sul.

Muito embora o ministro negro tradicional continue ainda a ser, por longo tempo, um mentor e um chefe, especialmente nas comunidades rurais, no entretanto, surgiu uma nova geração, que está a rever, com rapidez, a táctica política de Martin Luther King e de Stokely Carmichael nas regiões urbanas. Alcançados já os direitos cívicos, como primeiro objectivo, essa causa está passando à história e está a ser suplantada pelas causas, intelectualmente dirigidas, da liberdade social e económica.

A chefia deste movimento emergente está entregue aos jovens negros largamente dispersos, educados em colégios — um sector da população que aumenta ano após ano —, muitos dos quais são jovens que, nos tempos passados, teriam seguido a carreira de ministro religioso. Agora, ou são educadores profissionais, ou ingressam nos serviços de assistência social do governo estatal ou federal, que rapidamente se desenvolveu.

Este movimento de jovens, no campo educacional e social, brotou da urbanização do negro dos Estados do Sul na última década e da expansão das oportunidades de uma educação de mais alto nível. No passado, as tropas recrutadas pelos organizadores de protestos e organizações eram usualmente trabalhadores agrícolas; mas hoje, que a agricultura mecânica reduziu as oportunidades de emprego rural, os desempregados afluíram às cidades em busca de ocupações na indústria e de um melhor padrão de vida, e aí se tornaram educadores convincentes e assistentes sociais.

Esta transição da província para a cidade deixou atrás a chefia de um ministro negro local, bem como a igreja como lugar de reunião comunitária, e os negros vivem agora sob a influência da atmosfera intelectual revigoradora da cidade. Se esta deslocação súbita não degenerar no descalabro económico e social dos bairros de lata — que é um constante e inevitável perigo para muitos—, a transição pode estimular as ambições dos negros mais jovens e constituir um ajustamento cómodo para os mais velhos.

No final de contas, a igreja negra dos Estados do Sul não nasceu apenas para ser um templo religioso e, em toda a sua história, tem sido comparada, só em designação, às instituições fundamentalistas brancas, dedicadas exclusivamente à prática incestuosa da religião por amor da religião. E, assim, o negro nascido na cidade ou vindo da província, urbanizado, e vivendo em atmosfera de inquérito intelectual e revolta, não sofre, na sua consciência, se decide abandonar a igreja, para se tornar um agnóstico ou um ateu.

Este é o negro da geração mais nova, que já olha para além das vitórias e derrotas dos anos raciais de 60, em direcção a possíveis realizações, de mistura com algumas perplexidades da época que se avizinha. Educado e confiante na sua crença de que as maciças demonstrações de rua, do passado, já cumpriram a sua missão — e cumpriram-na bem—, não têm a certeza se os mesmos métodos de protesto terão a mesma eficiência no futuro. Em vez disso, o jovem negro propõe-se dirigir um apelo à mentalidade dos povos, através de conferências, escritos, e colóquios, com vista à obtenção do direito de uma liberdade mais confortável. Ele é professor, ou assistente social ou, talvez, ministro, na sua comunidade. Mas, qualquer que seja a sua vocação, a sua influência sobre a mentalidade dos outros negros com os quais se associa, bem como o seu apelo à simpatia dos povos brancos, será reconhecido quando os votos forem contados, nos anos vindouros. E. na política e na propaganda, o método verbal de influenciar as pessoas não deve ser considerado sem importância.

No entretanto, independentemente das aptidões e das realizações do negro nos Estados do Sul, ele ainda é travado pela barreira do preconceito racial que o torna um pária, em todo o mundo branco, com raras excepções. Quando tolerado, é porque ele contribui para aumentar a receita dos estabelecimentos comerciais dos brancos, e não por ser membro da faculdade, da Universidade de Tuskeegee ou de Dillard.

Considerando as indignidades infligidas sobre o negro sulista, durante todos estes anos, abstraindo mesmo das torturas físicas, ele tem desempenhado um papel notável como ser humano e como cidadão americano. No movimento de fusão das raças, é concebível que a infusão de tal energia e fortaleza venha a ser eventualmente reconhecida como tendo proporcionado à civilização americana a supremacia e a longevidade que, de outro modo, não teria atingido.

Chamem-lhe Guerra Civil, ou Guerra entre os Estados ou Guerra da Agressão do Norte contra o Sul, o resultado foi que a abolição da escravatura, dela resultante, apenas deu aos negros um começo de justiça social.

A atitude extremamente anti-social e o preconceito dos fundamentalistas protestantes brancos, que se traduziu na lei da separação, discriminação e privação dos direitos civis, atirou a maior parte da população negra para a pobreza e o analfabetismo por mais de meio século, após o termo da escravatura.

Os legisladores dos Estados do Sul podiam ter agido doutra maneira, se não fossem portadores, do infeccioso ódio racial — um ódio germinado e cultivado à sombra dos pervertidos princípios da religião cristã.

Eu era muito novo, quando meu pai se sentiu tão magoado pelo discurso de um candidato a senador de Estado, no decurso de uma campanha política, que disse pensar em se demitir de ministro religioso, para ingressar na política e fazer tudo o que lhe era possível para derrotar aquele demagogo, evitando que ele viesse a assumir um cargo público. Mas, tal como havia acontecido antes, ao dizer que talvez abandonasse o ministério, também agora não o fez.

O que indignou tanto Ira Sylvester foi a promessa do candidato de, no caso de ser eleito, apresentar um projecto de lei no senado, consignando disposições para evitar que o dinheiro dos contribuintes brancos fosse desviado para despesas de serviços de ensino para crianças negras além da quarta classe.

Aquele político declarou, no seu discurso, que era um facto estabelecido por eminentes teólogos que Deus havia propositadamente limitado a mentalidade do negro à quarta classe e que era um gasto de dinheiros públicos, além de ser contra a vontade de Deus, proporcionar ensino suplementar aos negros. Também declarou que os negros que aspiravam a uma educação superior eram mulatos e outros de sangue misto, e que ele ia tentar que fosse aprovada uma lei proibindo o casamento de negros mistos, para que a raça revertesse à sua originária negridão que Deus lhes destinara desde que foram criados.

O candidato foi derrotado nas eleições primárias. E, uns dias mais tarde, talvez para comemorar a derrota. Ira Sylvester disse que iria a Alabama falar com George Washington Carver que, na sua opinião, era um vivo exemplo de que um negro podia ser tão culto como um branco, e, mais do que isso, um génio na ciência.

Quando regressou do Alabama, meu pai disse que tinha tido duas memoráveis impressões nessa visita. Uma impressão era a de ter visto o laboratório de investigação agrícola de George Washington Carver. A outra impressão era o resultado de uma discussão especulativa acerca da questão se seria mais conveniente serem os filhos mulatos gerados por pais brancos de intelecto superior, ou por brancos de intelecto inferior, como era mais vulgar — e, talvez, em certas circunstâncias, um reverso do habitual parentesco homem branco-mulher negra.

Muitos anos depois, nos anos 60, deu-se a mesma coincidência de eu estar na mesma cidade de Alabama,.

onde Ira Sylvester tinha vindo visitar George Washington Carver, recordando o que meu pai tinha dito acerca da discussão sobre o parentesco de mulatos.

Achava-me na companhia do calmo e jovial professor de sociologia do colégio negro. Tinha os seus quarenta anos, nascera no Sul, com a cor bronzeada do mulato, e havia quase dez anos que ministrava o ensino desde que se licenciara por uma universidade do Norte. Além do seu interesse pela sociologia, dedicava parte do seu tempo a rastear e investigar as origens da música popular e do jazz do negro sulista.

Suponho que alguns brancos do Alabama ficariam ligeiramente chocados — e alguns, certamente, sentir-se-iam racialmente ofendidos — por eu ser um episcopalista. Bem vê, neste território, os episcopalistas brancos são considerados os intocáveis da alta igreja, e um pouco mais da intimidade de Deus do que mesmo os baptistas e metodistas. Por isso, pode imaginar qual seria a reacção local, se eu o revelasse publicamente. De quanta presunção é capaz um negro!

Todos os bons negros — como eles dizem, no Alabama — melhor seria que fossem negros baptistas, ou outra coisa. Bem, eu sou daqueles que têm a consciência de que essa expressão “ou outra coisa” envolve uma real ameaça, que pode traduzir-se em actos de vingança contra nós. Mas espero que isso não me aconteça porque eu não tenciono meter-me em aventuras numa região onde seria uma provocação aos lordes da segregação, sentando-me na mesma igreja, ao lado dos brancos. Assim, quando eu entro numa igreja da minha escolha, o que é possível apenas duas ou três vezes por ano, nas férias de Verão, isso acontece, geralmente, em Nova Iorque ou Filadélfia.

Há uma boa razão para eu ser um episcopalista — senão, a estas horas, eu seria um agnóstico ou um declarado ateu. A razão de eu ser o que sou, é em homenagem ao meu parentesco. Vou-lhe falar nisso em poucos minutos.

Mas, para começar, o senhor bem vê que tanto minha mulher como eu, possuímos sangue racial misto. Como ela, eu sou um mulato tanto na aparência, como de facto — meio branco, meio negro — e bem orgulhoso disso. Isto impele-me, constantemente, em dois sentidos — uma dupla lealdade —, e é um sentimento tão bom que nunca preiendi retirar essa lealdade de qualquer dos lados.

Uma das consequências desta dupla lealdade é eu aceitar a condição de ser classificado como negro, à vista, para onde quer que vá, nos Estados Unidos, e sinto-me satisfeito em viver com essa feição. E porque eu presto homenagem aos meus ascendentes, sou capaz de ser tolerante e desprovido de ressentimento de qualquer afronta racial, não tendo ódio a tudo o que é branco, nem a tudo o que é negro.

Esta minha atitude não é o resultado de uma calculada ilusão ou auto-hipnose. Considero-me feliz por ser o rebento de casualidade de nascimento —ou, no meu caso, talvez, de um projecto consciente —, porque isto me dá a vantagem de ser capaz de apreciar e possuir um sentimento subjectivo em relação a cada raça, de que eu faço parte.

Até aqui, tudo muito bem. Mas agora, chegamos ao ponto em que temos de enfrentar essa inevitável fraqueza humana — o preconceito. Brancos, negros ou mestiços, todos somos em certo grau e eu não sou diferente, a esse respeito diferente do ser humano que a seguir virá ao mundo. Contudo, desde que eu sei que estou firmemente enquadrado na categoria de mulato, julgo que o meu preconceito pessoal é justificado e lógico. E não porque eu julgue que sou melhor do que o homem branco ou o homem negro. Nem por me sentir inferior a um ou a outro. É por causa do meu invulgar parentesco — explicando melhor, invulgar para um mulato dos Estados do Sul.

Tenho tentado obter uma explicação do facto de eu ser um homem com preconceitos, e vou-lhe dizer em que consiste o meu preconceito.

Eu detesto, desaprovo, discordo, rejeito, e, em todos os aspectos, tomo a atitude de oposição aos vangloriosos objectivos do Poder Negro. Poder Negro ou Muçulmanos Negros, ou qualquer designação semelhante — são termos que implicam a escolha exclusiva de uma pessoa de pele negra, para representar os negros. Eu já sou negro há bastante tempo para sentir as coisas diversamente.

Quanto aos meus sentimentos a respeito do Poder Negro — que eu considero uma contrapartida oportunista, política, modernizada, do desacreditado conceito religioso da Bíblia Negra, do Moisés Negro, do Jesus Negro, da Virgem Negra —, pouco mais tenho a dizer. Apenas direi que os negros profissionais aderem tanto à sua fantasia, como os atávicos brancos sulistas, racistas, aderem à fantasia deles.

Agora, depois deste desabafo, o que quero dizer é que prosseguirei no meu caminho, orgulhando-me de ser o mulato que sou — que é o meu método de exprimir gratidão pelos meus pais, e de os homenagear.

Como vê, vai nisso o meu profundo sentimento. E a minha razão. Porque a minha mãe era uma mulher branca. É verdade: uma mulher branca. E ninguém era mais branca do que ela. Cabelos loiros, olhos azuis, anglo- saxónica, inglesa — e uma mãe terna e dedicada, que qualquer filho adoraria.

Eis a razão por que sou um episcopalista — ela era membro leal da igreja episcopal.

Tudo começou há mais de quarenta anos em Mobile, onde minha mãe era enfermeira de hospital. Tinha vindo para este país, rapariga nova em busca de aventura — como muita gente inglesa tem vindo.

Meu pai era negro, das Baamas ou das índias Ocidentais, não sei; e encontrou-se com minha mãe em Mobile. Nunca o vi. Mas respeito a sua memória, como meu pai. Ele é a minha outra metade.

Minha mãe podia ter-me abandonado — havia muitas maneiras de ela se libertar de mim. Adopção de uma família negra. Um orfanato. E por aí adiante. Mas não era esse género de mãe. Manteve-me e educou-me naquela estreita zona de terra fronteiriça entre brancos e negros, em Mobile, e outras cidades do Sul. É uma zona dúbia, sem direitos estabelecidos de residência para uma ou outra raça, que pode ter a largura de um quarteirão, num local, ou de vários quarteirões noutro, e o único lugar onde uma amalgamação de raças é proibida, mas tolerada. É como andarmos por entre um denso nevoeiro, de noite, e não saber exactamente onde estamos, e termos medo de pousar o pé adiante.

Claro que eu não compreendia então absolutamente nada de como era difícil a vida para minha mãe — uma senhora branca, no Sul, vivendo naquela zona crepuscular de dois mundos e trabalhando para criar e educar uma criança negra. Mas ela tinha decidido dar-me educação. E conseguiu-o, Deus a abençoe! Trabalhando para me sustentar durante muitos anos, educou-me e manteve-me ali, até eu ter idade suficiente para ir trabalhar e poder fazer, por minha conta, os estudos de liceu e de colégio.

Não vi minha mãe muitas vezes, nos últimos anos de vida dela. Num lugar como Mobile —ela preferia viver ali porque tinha sido a sua terra adoptiva— não seria conveniente para qualquer de nós que um negro fosse visto frequentemente a visitar uma senhora branca. Quando a fui ver depois de ela se ter mudado para a outra parte residencial da cidade, era sempre depois de anoitecer, e ambos nós nos sentíamos mais seguros quando a noite era chuvosa, com pouca gente —gente branca — na rua.

E, mesmo agora, quando eu visito a campa dela no cemitério branco, em Mobile, tenho sempre o cuidado de não me demorar, e apresso o passo, para evitar ser abordado por alguém que me peça satisfações por ser um negro, a colocar flores na campa de uma senhora branca.

No final de contas, parece que tenho motivos para me considerar feliz. Não conceituado. Não superior. Só feliz. E se há qualquer justificação para esta felicidade, é porque eu sei como é feliz ser-se um negro do Sul, que possui uma mãe amorosa, branca, frequentadora de uma igreja episcopal, que dedicou a vida a ajudar o seu filho mulato a obter uma educação que lhe permitisse erguer-se acima do que é, para a maioria de nós, uma vida devastadora, neste pedaço do mundo.

 

 

                                                                  Erskine Caldwell

 

 

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