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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A TORRE DE MARFIM / Mary Stewart
A TORRE DE MARFIM / Mary Stewart

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A TORRE DE MARFIM

 

"Aluga-se torre de marfim", dizia o anúncio. Uma moradia numa pequena ilha escocesa, com prados cintilando de flores e bandos de pequenas aves, chamadas painhos, enchendo o céu ao crepúsculo. Para Rose Fenemore, que procurava um lugar calmo para escrever, era o ideal. Foi então que, emergindo de um temporal terrível, lhe apareceram à porta dois atraentes desconhecidos, cada um com a sua história. Mas se uma era verdadeira, a outra devia ser falsa. Qual seria a verdadeira e qual seria a falsa? E o que é que levou aqueles homens até à dita torre de marfim?

 

 

DEVO começar por uma coincidência, que não me atreveria a narrar se esta obra fosse de ficção. Acontecem diariamente coincidências na "vida real" que seriam ridicularizadas se fossem relatadas numa mera história e por isso os escritores tentam evitá-las. Mas elas acontecem. Acontecem diariamente. E naquele dia aconteceram, ou melhor, uma coincidência aconteceu duas vezes.

            Eu estava a trabalhar no meu quarto quando um bater à porta anunciou a entrada de quatro estudantes do segundo ano. Habitualmente, recebo-os bem, pois eles até são o meu trabalho. Como professora de Inglês no Haworth College, em Cambridge, lido com eles todos os dias. Mas naquela tarde soalheira de uma terça-feira de Maio, eu não receberia nenhum intruso, nem que ele fosse o contínuo da faculdade com uma carta registada anunciando que eu ganhara o primeiro prémio da lotaria. Eu estava a escrever um poema.

            Dizem que depois dos trinta ou do casamento, dependendo do que acontecer primeiro, já não se consegue escrever poesia. É verdade que depois dos trinta anos alguns poetas parecem ser incapazes de escrever algo que valha a pena ler; há excepções, mas apenas servem para confirmar a regra. Na realidade, acho que a questão do casamento só se põe relativamente às mulheres, o que revela alguma coisa sobre aquilo que se espera que o casamento lhes faça. Mas naquela tarde nenhuma dessas situações se aplicava a mim. Tinha vinte e sete anos, era solteira, o meu coração estava inteiro, até ver, e encontrava-me completamente imersa no meu trabalho.

Devia receber os estudantes, que queriam falar comigo sobre a poesia do início do século XIX de George Darley, que um colega meu despropositadamente incluira numa série de conferências, e na qual alguns dos meus alunos mais perspicazes não conseguiram ver qualquer mérito. Mas fora assolada por aquilo que, naquela altura do período lectivo, geralmente, era uma rara inspiração e estava a escrever um poema da minha autoria. Seria mais importante do que os de George Darley? De qualquer maneira, melhor era, o que também não seria difícil.

            Mandei-os sentar, ouvi-os, depois falei e, finalmente, vi-me livre deles e regressei ao meu poema. Tinha desaparecido. A primeira estrofe estava ali, em cima da minha secretária, mas a ideia fugira. Reli o que tinha escrito, debati-me com a desvanecida visão durante alguns minutos extenuantes, depois desisti, praguejei, amarrotei a folha toda, arremessei-a para a lareira vazia e disse em voz alta:

            - O que eu realmente preciso é de um retiro numa torre de marfim à moda antiga.

            Empurrei a minha cadeira para trás, atravessei a sala até à janela aberta e olhei lá para fora. As tílias estavam magníficas com as suas folhas verdes novas, o canto das aves proliferava por todo o lado e da trepadeira ao lado da janela vinha o odor a mel e o murmúrio de inúmeras abelhas. Tennyson. Ali estava, pensei, uma das verdadeiras e honrosas excepções à regra: nunca falhando, nunca enfraquecendo, mesmo na velhice, enquanto eu, aos vinte e sete anos, nem sequer era capaz de acabar um poema que, pouco tempo antes, parecia ir inevitavelmente a caminho do acorde final.

            Bem, então eu não era Tennyson e, provavelmente, nem sequer era um George Darley. Ri-me de mim própria, senti-me melhor e instalei-me no assento junto àjanela para apreciar o que restava da tarde. Ojornal The Times, semilido, jazia no lugar ao meu lado. Ao pegar nele para o atirar para o lado, umas linhas miúdas chamaram-me a atenção:

                        Aluga-se torre de marfim. Por período longo ou curto. Moradia isolada numa pequena ilha das Hébridas ao largo da costa de Muíl. Ideal para retiro de escritor ou artista à procura de sossego. Modernas condições de habitabilidade.

            É uma posta-restante.

            Um retiro com modernas condições de habitabilidade. Comentei em voz alta:

            - Não acredito.

- Em que é que não acredita, Dra. Fenemore?

            Uma das minhas alunas regressara e estava, hesitante, junto à porta de entrada. Era Megan Lloyd, a filha de um trabalhador agrícola galês de Dyfed, que conseguira o seu lugar na faculdade através de uma bolsa que obtivera com grande mérito. Baixa, um tanto rechonchuda, com cabelo preto encaracolado, olhos escuros e sardas, parecia que estaria muito à vontade no meio de cães e cavalos, e talvez estivesse, mas também era muito inteligente, extraordinariamente criativa e de longe a minha melhor aluna. Um dia viria a ser uma boa escritora. Lembrei-me de que lhe prometera recebê-la por causa de uns poemas que ela tinha escrito e que, nervosamente, me pedira para ler. Ainda parecia estar nervosa.

            - Oh, Megan, entre. Desculpe, estava a pensar com os meus botões. Sim, tenho aqui o seu dossier e li-os.

            Dirigi-me à secretária, peguei no dossier e fiz um gesto, indicando-lhe a cadeira. Os olhos dela estavam com o dobro do tamanho normal e apercebi-me da tensão em cada um dos seus músculos. Eu sabia muito bem como ela se sentia: sempre que o nosso trabalho é lido, morremos várias vezes por cada palavra. Por isso, fui direita ao assunto.

            - Gostei deles. De alguns até bastante, de outros nem tanto... - Continuei a falar sobre os poemas, enquanto Megan lentamente se descontraia e começava a ficar com ar feliz, tornando-se até mesmo, no fim, alegremente argumentativa.

            Por fim, fechei o dossier:

            - Bom, aqui tem. Se os quiser publicar, vá em frente e boa sorte. Aconteça o que acontecer, deve continuar a escrever.

            Megan engoliu em seco, em seguida inclinou a cabeça afirmativamente sem falar.

            Entreguei-lhe o dossier.

            - Não vou dizer-lhe mais nada. Escrevi algumas notas razoavelmente detalhadas sobre alguns deles. Penso que seria melhor que as visse com tempo. É claro que, se houver alguma coisa que não perceba ou sobre a qual queira conversar, sinta-se à vontade para o fazer. Está bem?

            - Sim. Obrigada. Era só que... uma pessoa não se conhece

            - Sim, eu sei.

            Megan sorriu subitamente, com o rosto iluminado do interior.

            - Claro que sabe. E, em retribuição, posso dar-lhe um conselho?

            - Que conselho? - perguntei, surpreendida.

            Megan olhou de relance para a lareira, para onde caíra a página amarrotada e que parcialmente se desdobrara. Era óbvio, mesmo do sítio onde ela se encontrava sentada, que a folha continha versos de um poema inacabado. Com uma razoável imitação da minha voz, mas com um sorriso que retirava qualquer nota de impertinência, Megan repetiu:

            - Aconteça o que acontecer, deve continuar a escrever. - E depois, já séria, disse: - Tenho a certeza de que não deveria deitá-lo fora, Dra. Fenemore. Adorei o seu último publicado no Jornal.

            Após uma pausa, eu disse bastante desajeitadamente:

            - Bom, obrigada. Mas durante o período de aulas... Não se pode escolher a altura.

            Subitamente embaraçada, Megan reuniu as suas coisas e levantou-se.

            - Desculpe. Não era nada da minha conta, mas não pude deixar de ver.

            Mais para a pôr de novo à vontade do que por qualquer outro motivo, peguei no Times e mostrei-lhe:

            - Estava a tentar, sabe. Uma ilha das Hébridas... parece um local onde se poderá trabalhar em paz e, na realidade, até lhe chamaram torre de marfim, ou seja um retiro para criação artística. É ali. Onde fiz um círculo.

            Megan levantou os olhos, que brilhavam.

            - Uma ilha ao largo de Muíl? Mas que extraordinário! Ann Tracy e eu vamos para Muíl este Verão passar duas semanas. Nunca lá estive, mas a família de Ann costumava passar férias lá, e ela diz que pode ser fabuloso. Que coincidência! É como se fosse o destino, na realidade. Vai responder ao anúncio, não vai?

            - Parece que é o melhor que eu tenho a fazer - disse. - Vou responder ainda hoje à noite.

            MAS o DESTINO não se resolveu a ficar por ali. Nessa noite, o meu irmão Crispin telefonou-me.

            Crispin é médico e sócio de uma clínica no Hampshire. É seis anos mais velho do que eu, casado e tem dois filhos num colégio interno. Ele teria preferido que eles ficassem em casa, mas a sua mulher, Ruth, impusera-se nessa matéria, como aliás acontecia em muitas outras. Não que Crispin fosse um homem fraco, mas era muito ocupado e tinha de se contentar em deixar a gerência da vida doméstica, na sua maior parte, nas mãos da mulher, de resto altamente competente. Eram toleravelmente felizes, felicidade essa conseguida em parte pela aceitação do direito de divergirem.

Uma das coisas em que divergiam era nas férias. Ruth adorava cidades, lojas e teatros. Crispin, sempre que tinha férias da sua exigente rotina, ansiava por sossego e espaços abertos. Ele, tal como eu, adorava a Escócia e ia lá sempre que tinha oportunidade. Quando lá estava, passeava, pescava e tirava fotografias. A sua verdadeira paixão era fotografar aves, e ao longo dos anos reunira uma colecção notável de diapositivos. Quando as nossas férias coincidiam, frequentemente passávamo-las juntos, satisfeitos nas nossas respectivas solidões.

            Por isso, quando ele telefonou nessa noite para me dizer que ia tirar quinze dias de férias lá para o fim de Junho e a sugerir-me uma viagem até ao Norte, senti realmente como se os destinos tivessem dado as mãos.

            - Estava a planear exactamente a mesma coisa. - Contei-lhe do anúncio do jornal e ele ficou entusiasmado. Deixei-o falar sobre as raras e maravilhosas aves que indubitavelmente estariam à sua espera para serem fotografadas e em seguida coloquei a habitual questão:

- E a Ruth?

- Não vai. Desta vez, não. - A habitual resposta trivial. - Ela não gosta das Terras Altas e vai estar muito ocupada nessa altura. Mais tarde, irá fazer umas férias no estrangeiro, depois de John e Julie voltarem para o colégio. Mas se conseguisses essa casa, era óptimo. A maior parte das aves novas ainda estarão no ninho. Olha, Rose, porque não? Parece excelente. Escreve para lá e pede informações detalhadas, e depois eu volto a entrar em contacto contigo.

            E assim foi tratado. Escrevi nessa noite para o número da posta-restante e obtive a minha torre de marfim.

            A ILHA DE MOILA é a primeira paragem depois de Tobermorv no ferrv-boat que navega pela costa norte de Muíl. Moila não é uma ilha grande, talvez com uns quinze quilómetros por oito, e tem uns penhascos fantásticos a noroeste. Desde os prados íngremes aparados pelas ovelhas até ao cimo destes penhascos, a terra inclina-se suavemente até a um vale estreito onde o único rio digno desse nome existente na ilha corre em direcção ao mar, partindo de um lago), que se encontra aninhado numa bacia pouco profunda entre montes baixos.

            A costa da ilha é essencialmente rochosa, mas, à excepção dos rochedos a norte, os rochedos costeiros são baixos, estendendo-se aqui e ali pelo mar adentro, formando pequenas praias curvas, a maioria das quais são de seixos, mas as viradas a oeste são de areia, tendo como fundo o machair, aquele maravilhoso prado selvagem que em Maio e Junho está cheio de flores e de aves a construírem os ninhos.

            Eu vi a ilha de Moila pela primeira vez num dia bonito na última semana de Junho. As minhas férias tinham começado uns dias antes das de Crispin, por isso tínhamos combinado viajar separados e encontrar-nos em Moila. O ferry-boat fazia a travessia todas as segundas-feiras, quartas e sábados de Oban, no continente, até Tobermory e depois seguia para oeste, para Moila. Eu descobrira que havia pouca utilidade em ter um carro em Moila, por isso decidimos viajar de comboio.

            Foi uma viagem agradável. Apanhei o comboio para Fort William, onde entrei no pequeno comboio regional que segue para Oban, na costa ocidental. O barco para as ilhas deveria partir às 6 horas da manhã seguinte, por isso hospedei-me no Columba, um hotel que dava para o mar, e depois passei o dia a explorar Oban. às 5 e 30 da manhã seguinte, entrei a bordo do fer-boat e encontrava-me na etapa final da minha viagem.

            O mar estava calmo enquanto navegávamos tranquilamente por entre as ilhotas e rochas com os cimos em forma de castelos, com as aves marinhas planando ao sabor do vento no nosso encalço e por todo o lado, mesmo sobrepondo-se aos odores do cheiro a sal e do vento, os aromas do Verão. Idílico. O cenário perfeito para uma torre de marfim.

            Ou, pelo menos, assim o esperava eu. Nenhuma das pessoas com quem falara, tanto no comboio como no barco, já tinha ido a Moila, que, segundo me contaram, não tinha mais de trinta habitantes. Quando atracámos e o comissário de bordo apontou para o mar, para um grupo de pequenas rochas (ou assim parecia) em fila no horizonte, como uma pata com os seus patinhos atrás, senti um assomo de cobardia e dei comigo a pensar quais seriam as "modernas condições de habitabilidade".

            - Além, aquela ilha grande, vê? É Moila - disse o comissário de bordo.

            - E as outras?

            - Ah, têm todas nome, mas não lhos sei dizer. Não há lá gente, só aves.

            - Pode ir-se até lá?

            - Oh, sim, com um pouco de sorte num dia bonito. Vão para lá grupos com câmaras para filmar as aves.

            Nesta altura, o comissário de bordo teve de me deixar para ir receber os abastecimentos que estavam a ser trazidos para bordo, e uns vinte minutos depois eu podia ver o sítio com os meus próprios olhos.

O FERRY não era grande, mas o porto de Moila tornava-se minúsculo ao pé dele, por isso teve de manter-se à distância do cais e fomos para terra de bote: A povoação, tanto quanto me era dado ver, tinha umas oito ou nove casas alinhadas junto a uma estrada estreita que circundava a baía. O edifício mais perto do cais servia de posto dos Correios e de loja. Um cartaz artesanal informava-me que o dono era Mr. McDougaíl, que também alugava quartos com o pequeno-almoço incluído. A alguns metros de distância, encontrava-se um edifício caiado - a escola da povoação, vim posteriormente a saber. Um rio estreito deslizava suavemente, passando pelos Correios, e era atravessado por uma ponte estreita e abaulada, do tipo pitoresco, que seguramente danificaria qualquer carro que por lá passasse. Mas, tal como me tinham avisado, não havia carros. Um Land-Rover todo amolgado estava parado junto aos Correios e, encostadas ao muro da escola, viam-se umas quantas bicicletas, mas não havia mais nenhum meio de transporte. E tanto quanto a minha vista conseguia alcançar, a estrada nem sequer continuava para lá da povoação.

            A minha moradia, segundo me haviam informado, ficava no outro lado da ilha.

            Bom, a culpada era eu. Deixei as minhas malas no cais e dirigi-me aos Correios.

            Dado que o barco, nas suas visitas à ilha, três vezes por semana, levava todos os mantimentos e correspondência. a pequena estação dos Correios estava apinhada. e a encarregada, atarefada, separando correspondência e jornais enquanto trocava notícias com o capitão do barco em gaélico, nem sequer tinha tempo de olhar para mim. A lojinha estava organizada como mini-supermercado. por isso peguei num cesto e ocupei-me a juntar mantimentos para os próximos dias. O apito da sirene do barco fez-me voltar à realidade, deparando com a loja já vazia e a encarregada contornando apressadamente o balcão para se ocupar da forasteira.

            - É a jovem que vai para Camus na Dobhrain? A menina Fenemore, não é verdade?

            Era uma mulher um tanto magra, de cerca de cinquenta anos, com o cabelo a ficar grisalho e uns olhos muito azuis. Vestia uma bata às flores e tinha a bonita pele das gentes das ilhas, quase sem rugas, apenas as do sorriso junto aos olhos. A sua expressão estava repleta de curiosidade benevolente, e a suave pronúncia das ilhas, acentuada pela cadência gaélica, aqueceu-me tão palpavelmente como se o sol tivesse entrado na pequena loja sombria e atravancada.

- Sim, sou Rose Fenemore. E a senhora é Mrs. McDougall? Como está? -Demos um aperto de mão. - É verdade, venho para a casa do anúncio da Agência Harris. É a essa que se referiu? - Lamento, mas não entendo gaélico.

            - E como haveria de entender? Sim, é essa. O nome em inglês é Baía das Lontras. É o único lugar em Moila que é alugado. - Sorriu, ocupando-se das minhas compras enquanto falava. - Se o tempo continuar bom, vai ter a oportunidade de fazer agradáveis passeios. E, tanto quanto sei, a casa está bastante confortável. Mas é muito isolada. Veio sozinha, veio?

            - Até quarta-feira. Nessa altura, chega o meu irmão. O ferry na quarta-feira chega à mesma hora do de hoje?

            - Sim, chega. Não pôs aí nenhum acendedor. É muito mais fácil manter o lume aceso com um daqueles. Está acostumada com o lume de turfa?

            - Não, mas espero conseguir aprender. Mrs. McDougall, como é que se vai daqui até à casa? Disseram-me que eram cerca de três quilómetros. Posso facilmente fazer o percurso a pé para fazer as compras ou coisas do género, mas trouxe umas malas e com elas não vou ser capaz de o fazer de certeza.

            - Não se preocupe com isso. O Archie McLaren vai lá levá-la no Land-Rover. Então, vai querer uns sacos de carvão para a ajudar a fazer o lume? Temos tido bom tempo, mas é melhor que armazene agora para o que a próxima semana nos possa reservar.

            - Sim, obrigada. Dois sacos de carvão, então, se faz favor, e os acendedores, e... Ah, que acha de eu levar leite e pão?

            - É uma longa caminhada desde a Baía das Lontras com mau tempo. É melhor levar dois pacotes de leite. O pão vem no barco. Quer que lhe guarde um pão na quarta-feira e outro no fim-de-semana?

            - Acho que sim. Obrigada. Quanto é tudo, Mrs. McDougall?

            Ela disse-me quanto era e eu paguei-lhe. Um rapaz moreno, baixo, robusto, com uma camisola da Marinha, calças de ganga e galochas, entrou para vir buscar os sacos de carvão, colocando-os no Land-Rover ao lado das minhas malas. Peguei no saco de compras, no qual a encarregada dos Correios enfiara as minhas mercearias.

            - Não deve haver telefone na casa para onde vou, pois não?

            - Não há, não. Só há um aqui e outro na Casa. E o da Casa está cortado desde que a velha senhora morreu.

            - A Casa? - Por qualquer razão, a forma como o disse dava-lhe um aspecto de letra maiúscula.

- A Casa Grande. Não fica longe de si, a uns oitocentos metros pela costa. Chamam-lhe Taigh na Tuir, o que significa Casa da Torre. Há mesmo ali ao pé uma pequena ilha ao largo com as ruínas de uma broch, uma torre de pedra pré-histórica. Julgo que foi essa torre que deu origem ao nome da Casa. A Casa foi construída como pavilhão de caça nos velhos tempos, e depois os Hamiltons compraram-na e passaram a viver lá. A velha Mrs. Hamilton, a última a desaparecer, morreu em Fevereiro passado. Por isso, agora está vazia e é provável que assim continue. - Sorriu. - Nem toda a gente quer o tipo de paz e sossego que temos em Moila.

            - Posso imaginar. Bem, de qualquer maneira, estou toda pronta para apreciar. E, na realidade, eu não quero telefone, a não ser para me certificar da vinda do meu irmão. Por isso, venho até aqui amanhã para lhe telefonar, se não se importa. A que horas fecha?

            - às cinco e meia, mas se quer telefonar, bata ali em casa. Não, não é incómodo nenhum. É o que toda a gente faz. - Pegou no segundo saco de compras e acompanhou-me até à porta. - Ficarei à sua espera amanhã. Adeus. Agora, toma conta da senhora, Archie.

            Archie deu a entender que sim. Entrei no carro, sentando-me a seu lado, e partimos. O Land-Rover já conhecera melhores dias, e quando saímos da estrada da povoação entrando no carreiro que serpenteava desde a povoação até à charneca, tornou-se difícil conversar.

            O caminho, acidentado e juncado de pedras, subia, ao princípio suavemente, através da turfa, roída pelas ovelhas, cercada de juncos e cardos e salpicada por extensões de fetos. Quando deixava de se ver a povoação, o caminho tornava-se cada vez mais íngreme e tortuoso. Em todo o redor havia urze, ainda escura e por florir, excepto em pequenos pedaços de terra onde uma outra variedade de urze, a campainha-do-monte, salpicava com a sua cor púrpura-forte as rochas cinzentas. O tojo era de um ouro resplandecente, e por toda a parte, na erva, espalhavam-se as minúsculas flores brancas e amarelas da tormentila e da granza-brava. Ao longe, para a direita, vislumbrei o brilho fugaz e plano do loch.

            Não se ouvia nada acima do barulho do motor, mas vi uma cotovia saltando da urze em direcção ao céu e depois, quando o Land-Rover atingiu o topo e começou a descer para o vale estreito, um bútio elevou-se no ar em círculos lentos até se perder de vista no cume da charneca. A seguir, descemos suavemente a encosta ao lado de um ribeiro em

direcção ao brilho distante do mar. Ali, abrigadas dos vendavais do Atlântico, árvores altas apinhavam-se bem juntinhas. Sobretudo carvalhos, mas também havia faias e freixos, e ainda bétulas e aveleiras.

            O caminho aplanava-se, o vale alargava-se e lá em baixo ficava a baía. A Baía das Lontras era pequena, uma meia-lua de seixos secundada por uma praia, batida pelas tempestades, com rochas lisas. Curvas pretas e grossas de algas marinhas secas marcavam a linha até onde chegavam as marés. à nossa esquerda, um penhasco escarpado tirava-nos a vista, e, à direita, um promontório baixo projectava-se no mar. Franzindo os olhos contra o brilho do Atlântico, vi um caminho que subia desde a baía e seguia pelo promontório para oeste.

            Então, o Land-Rover parou ao lado de um cais rudimentar feito de calhaus empilhados e amarrados com arame para vedações. E ali, de costas para o penhasco, que ficava um pouco acima de nós, estava a minha casa.

 

A CASA ERA maior do que eu esperava. Originalmente, fora construída de acordo com o padrão habitual: um minúsculo hall quadrado, com portas dos dois lados dando para duas divisões da frente, e uma escada íngreme que conduzia a dois quartos geminados. Mas alguém, bastante recentemente, fizera um trabalho de reconversão. As duas divisões do rés-do-chão tinham sido transformadas numa grande sala, apenas com a escada a dividi-la ao meio. A zona de estar, à direita, tinha uma agradável lareira, duas poltronas, uma mesa baixa e um sofá de aspecto duvidoso encostado à parede da escada. A sala de jantar e a cozinha, no outro lado, ostentavam os habituais guarda-louças e aparadores e uma mesa junto à janela com quatro cadeiras. Num dos aparadores havia uma chaleira eléctrica e uma torradeira. E estas eram as únicas "modernas condições de habitabilidade" que se avistavam.

            Uma porta na parte de trás dava para a copa, uma divisão estreita ao longo de toda a largura da casa. Debaixo de uma janela, ficava um moderno lava-louça com um termo-acumulador eléctrico montado na parede e ao lado havia um fogão a gás. E a modernização não avançara mais que isto. A outra ponta da copa tinha, como sempre tivera, um tanque de lavar, velho e fundo. Não havia frigorífico, mas a casa devia ser fresca, mesmo no Verão. Espreitando pela janela, constatei que devia ter existido um jardim entre a casa e o penhasco; agora, um muro em ruínas circundava apenas um emaranhado de silvas e rosas silvestres, quase escondendo um caramanchão.

- Eu levo-lhe as malas lá para cima - disse Archie.

- Não, não se incomode... Bem, muito obrigada.

            Larguei os sacos com as compras na mesa da cozinha e comecei a desembrulhá-las. Ouvi-o a movimentar-se no andar de cima, e, passado um minuto ou dois, ele desceu.

            - Estive só a dar uma vista de olhos. Ainda não tinha visto os quartos lá de cima depois de prontos. Mas lembro-me do trabalho que tiveram com a casa de banho. - Olhou à sua volta com interesse. - Isto aqui era muito diferente quando a família cá morava. Alastair Mackay viveu aqui, era o jardineiro da Casa. Saíram de cá apenas há dois anos, foram para o continente, e depois Mrs. Hamilton mandou arranjar isto para alugar.

            - Não me tinha apercebido de que esta casa pertencera a Mrs. Hamilton. Mrs. McDougall disse-me que ela tinha morrido recentemente.

            - É verdade. Era uma boa senhora, e o marido era um entusiasta da caça e da pesca. Costumava ir para o Norte todos os anos, para a pesca do salmão, mas ela ficava aqui. Depois de o coronel Hamilton morrer, ela nunca mais saiu daqui, nem mesmo durante o Inverno. Mas este último Inverno foi demais para ela, pobre senhora.

            - O que é que acha que vai acontecer agora à casa grande?

            - Não sei. Acho que há um parente algures no estrangeiro. Vai ser vendida, creio eu, mas quem é que irá comprá-la?

            - Alguém que aprecie a paz e o sossego, julgo eu.

            - Uma torre de marfim?

            - Uma quê?! - perguntei, estupefacta.

            - Uma torre de marfim. Era o que Mrs. Hamilton costumava chamar-lhe. Ela dizia que era uma forma poética de uma pessoa dizer que queria ser deixada em paz.

            - Estou a perceber. Será que vão também tentar vender esta casa ou irão continuar a alugá-la?

            - Foi sempre só alugada no Verão, e ainda cá não tinha estado ninguém este ano, a não ser no mês passado, umas pessoas da Cornualha, acho eu. Vieram no seu próprio barco e faziam todas as compras em Tobermory, por isso vimo-las muito pouco.

            - Acho que faz sentido ter um barco, se se estiver aqui bastante tempo. Ah, quase me esquecia. Trouxe o carvão do carro?

            - Sim. Está lá fora nas traseiras, onde se guarda a turfa. Mesmo ao lado da porta. Encontra imensos gravetos lá em baixo na praia.

            - Muito obrigada, Archie.

Paguei-lhe e ele foi-se embora. Observei o Land-Rover rangendo ao longo do caminho, e pouco depois o barulho do seu motor desvanecera-se no silêncio.

            Silêncio? O marulhar das ondas na praia de seixos, o grito das gaivotas girando no céu e, em remate final, o barulho abafado da sirene do ferry'-boat afastando-se em direcção a oeste. O último elo de ligação desaparecera. Solidão. Solidão completa e inexpugnável.

            Fechei a porta da rua suavemente e subi as escadas para ver o que aquela simpática senhora, Mrs. Hamilton, providenciara relativamente aos quartos.

            As CAMAS eram razoáveis, os quartos, minúsculos, encolhidos sob a inclinação do telhado, e encantadores: pintados de branco, com papel de parede às flores, o mínimo de mobiliário e, claro, aquela magnífica vista para sudoeste. O habitante original deve ter partido para o Atlântico num pequeno barco em muitas noites de tempestade. Mas naquele dia o mar estava maravilhoso, sedoso, salpicado do brilho de asas brancas sob a luz do Sol, à medida que as gaivotas saíam dos penhascos.

            Aquilo servia. Servia até muito bem. Eu ia acabar de desembrulhar as compras, preparar as coisas para o jantar; depois, iria passear até ao mar e apanhar gravetos, não fosse a noite arrefecer.

            HAVIA, como Archie assegurara, imensos e bons gravetos na praia. Rapidamente arranjei uma braçada. Depois, trepei com dificuldade pelos seixos em direcção ao melhor caminho da turfa, molhada pela água do mar, onde o ribeiro cortava caminho para a costa. Cravinas abundavam por todo o lado.

            Gradualmente, fui tomando consciência de uma sensação crescente de desconforto. Uma sensação de ardor na cara e nas mãos, umas picadas desagradáveis que subitamente se tornaram insuportáveis.

            Mosquitos. Tinha-me esquecido dos mosquitos. A maldição das Terras Altas. O inimigo infinitesimal. A serpente do paraíso.

            Aconchegando a minha carga de pauzinhos debaixo de um braço e esfregando a cara com a mão livre, desatei a andar apressadamente em direcção à segurança da minha casa.

            Afinal, a noite manteve-se amena, por isso a lareira não foi acesa. Jantei, lavei a louça, depois observei a paisagem, alterando-se com a noite, refugiada na janela e fui cedo para a cama.

            ACORDEI na manhã seguinte com uma luminosidade brilhante e rosada, mas quando cheguei à janela, não se via o mar. Na realidade, não se via nada. O Mundo estava coberto por uma cortina de nevoeiro, um véu de um branco suave corrido entre a Terra e o Sol. Nem sequer conseguia ver para além da foz do ribeiro. Por isso, hoje não ia haver passeio, pelo menos enquanto eu não soubesse melhor o caminho.

            Não estava desapontada. Disse-o a mim mesma, firmemente, várias vezes. Tinha a paz e a privacidade que desejara, um dia só para mim, antes da chegada de Crispin, e uma total obrigação de olhar de novo para o poema, que fora interrompido pelas funções docentes em Cambridge. Pelo menos, hoje, não era provável ser interrompida por alguém.

            Ninguém o fez. O dia foi calmo e silencioso, à excepção do grito abafado das aves marinhas e do triste chilrear de uma tarambola anelada nos seixos da praia. Sentei-me à mesa da cozinha, fitando aquela palidez de um branco-baço à minha frente, e, lentamente, como uma nascente límpida brotando da terra, o poema surgiu, espalhou-se e preencheu-me, imparável como um dilúvio. Quando surge, vale tudo no Mundo. Fala-se em demasia e de uma forma vã sobre a inspiração, mas é em momentos como este que se vê exactamente o que ela é: o inspirar de toda a experiência, de toda a apreensão da beleza, de todo o amor.

            Quando, finalmente, levantei os olhos, foi para ver os penhascos brilhando ao sol da tarde e o mar, com a sua espuma branca, batendo calmamente contra a praia na mais suave das marés altas. O céu estava límpido, deixando a promessa de um fim de tarde encantador. Um fim de tarde com uma boa brisa. Era-me possível ver alguma agitação nos fetos que circundavam o caminho. Pouco importavam os mosquitos, e ainda deveria ser melhor no topo do monte. Ia fazer uma chávena de chá, decidi, e depois iria passear até aos Correios para fazer o meu telefonema para Crispin.

            A MINHA cunhada atendeu o telefone num tom de voz que, quer ela faça de propósito ou não, soa sempre abrasivo e ressentido quando fala comigo. Tinha muita pena, mas Crispin fora chamado e saíra. Não, não sabia quando voltaria. O comboio? Bem, parecia que ele queria ver uma pessoa em Glasgow, por isso passava por lá na viagem. Tinha feito uma reserva no wagon-lit de amanhã à noite e seguiria para Oban na sexta-feira. Depois, apanharia o ferry-boat na manhã seguinte, sábado. Seria assim?

            - É possível. Estava com esperanças de que ele conseguisse vir no barco de amanhã, mas no sábado também está óptimo. Já tenho mais informações sobre o barco, por isso, não se importa de lhe transmitir uma mensagem, Ruth? Tem um lápis à mão? Bem, oferry-boat parte às seis da manhã, o que vai para Coll e Tiree... Sim. São duas das ilhas das Hébridas Interiores. Crispin sabe. Fiquei no Hotel Columba, mesmo ao pé do cais. Não me ofereço para o ir esperar ao barco. Ele atraca às oito da manhã, mas arranjo-lhe transporte até à casa. Conseguiu apanhar tudo?

            - Sim. Mas não seria melhor ele telefonar-lhe quando chegar a casa?

            Dei uma gargalhada.

            - É um bocado difícil. Há apenas o telefone público no posto dos Correios, e eu ainda agora andei três quilómetros para telefonar. Mas vou dar-lhe o número de lá e se ele quiser deixar-me um recado, Mrs. McDougall toma nota.

            - Mrs. McDougall. Está bem. - Agora era a sua voz profissional, rápida e fria, a mulher do médico. Depois, voltou a ser ela de novo. - Rose, como é isso por aí? Com o telefone a três quilómetros... Devo dizer que parece mesmo o tipo de lugar que Crispin adora.

            - Ele vai adorar. É perfeitamente encantador. - Com total falta de sinceridade, acrescentei: - Devia vir também, Ruth.

            - Mas o que é que há aí parafazer?

            - Bem, nada.

            Nada, abençoada afirmação para o trabalhador Crispin e para mim mesma, depois da agitação dos exames e do fim do período.

            - Simplesmente não suporto estar sem fazer nada. Vou a Marrakech em Setembro. O hotel é maravilhoso, as excursões turísticas são imensas, e as compras fascinantes.

            - Parece excelente. Tenho de desligar, Ruth. Volto a telefonar quinta-feira à noite para saber se Crispin sempre vem. Adeus.

            - Adeus. - E desligou.

            Mrs. McDougall estava na sua cozinha tirando uma fornada de pão. Paguei-lhe a chamada e fiquei a conversar um pouco, contando-lhe que o meu irmão poderia telefonar para me deixar um recado.

            - Se ele realmente vier no sábado - acrescentei -, seria possível Archie estar aqui e levá-lo, a ele e à bagagem, até lá a casa?

            - Ele vai estar aqui. Ele vem sempre receber o barco. Há sempre mantimentos, que foram encomendados, para transportar. Bom, vai ser bom para si ter cá o seu irmão, e vamos esperar pelo melhor. Infelizmente, há uma previsão de mau tempo.

- Oh, meu Deus. Suficientemente mau para oferty-boat não poder fazer a travessia?

            - Bem, teria de ser mesmo muito mau para que isso acontecesse. Não se preocupe; o seu irmão chega cá. Mas poderá vir a achar a casa um pouco ventosa se o tempo ficar mesmo mau.

            - Eu corro as escotilhas - disse eu, e ela riu-se.

            Quando parti, levava uma embalagem de repelente de mosquitos no bolso e uma oferta de pão acabado de fazer, ainda quente, num saco de plástico.

            NUNCA fica muito escuro numa noite límpida de Junho nas Terras Altas. E durante as longas noites iluminadas, nunca as aves marinhas deixam de piar e de voar. Mesmo antes de me deitar, fui até lá fora para ver as estrelas.

            Numa abóbada luminosa de um cinzento-metalizado, lá estavam elas, fracas e brilhantes e tão numerosas como papoilas no campo. Mas o tempo estava a mudar, até mesmo naquele momento.

            Durante a noite, levantou-se vento, e o dia amanheceu cinzento e tempestuoso, com rajadas de chuva intensa. Felizmente, tinha lenha seca, acendi a lareira e rapidamente obtive um bom lume.

            Uma vez acabados os afazeres domésticos, não havia mais nada a fazer, a não ser escrever.

            Creio que é altura de fazer uma confissão. Embora eu fosse, ou assim me considerasse, uma professora razoavelmente boa, e embora fosse, além disso, uma poetisa com seriedade que gozava de um pequeno reconhecimento, a minha vida de escritora não estava confinada a poemas e artigos. Eu escrevia ficção científica.

            Não só escrevia como publicava. Sob um outro nome, é claro. E os voos da imaginação de Hugh Templar pagavam bastante bem a Rose Fenemore.

            Por isso, durante aquele dia sombrio, Hugh Templar sentou-se à mesa da cozinha e foi no encalço das aventuras de um grupo de viajantes do espaço que tinham descoberto um mundo, mesmo por detrás do Sol, que era a imagem reflectida do nosso próprio planeta Terra, mas com uma população bastante diferente da nossa - uma raça com ideias estranhas e, esperava eu, contestatárias sobre como governar o seu planeta...

            às 10 horas, as luzes apagaram-se.

            As nuvens tempestuosas que se tinham avolumado ao longo do dia tornavam tudo muito escuro. O lume dera lugar a cinzas frias, todavia dirigi-me às apalpadelas até ao local onde tinha visto um castiçal, já pronto, na consola da lareira. Atravessei até à janela e espreitei lá para fora. O vento estava mais forte do que nunca e punhados de chuva arremetiam contra ajanela. Uma noite tempestuosa e desagradável.

            Acabei o parágrafo que estava a escrever - uma ideia deixada a meio tem tendência a desaparecer muito rapidamente - e a seguir peguei no castiçal e fui cedo para a cama.

            As PAREDES da casa eram suficientemente grossas para não deixarem passar os piores barulhos das rajadas da tempestade, e mesmo o ranger das portas e o matraquear das janelas não foram capazes de me deixar acordada durante muito tempo. Mas algo, um som mais agudo e pouco habitual, me arrancou do meu primeiro sono profundo, pondo-me em vigília, à escuta.

            A tempestade continuava assoladora; eu ouvia a rebentação das ondas na praia de seixos e o intermitente assobio estridente do vento. Mas o barulho que me sobressaltara, acordando-me, era diferente. Vinha do interior da casa. Era um som discreto, mas que se sobrepunha completamente a todo o barulho do exterior. Uma porta a ser fechada, pensei. E depois barulhos vindos da copa. Uma torneira a correr. Uma chaleira a ser enchida.

            Crispin? Contra todas as expectativas, teria o meu irmão conseguido chegar até ali, mesmo apesar da tempestade?

            Demasiado aturdida pelo sono para pensar que aquilo era impossível, deslizei para fora da cama, vesti o meu roupão à pressa e abri a porta do meu quarto. Havia luz no andar de baixo. Por momentos, pensei que talvez tivesse deixado o interruptor ligado antes de a luz ter falhado, mas não, tinha a certeza de o ter desligado. E tinha fechado à chave a porta das traseiras. Corri escada abaixo.

            Ele estava mesmo a virar-se do lava-louça, com a chaleira na mão. Um homem novo, relativamente alto, magro, de cabelo preto todo desgrenhado pelo vento e rosto pálido e esguio. Um rosto bonito, olhos azuis, nariz rectilíneo, faces molhadas pela chuva e barba a despontar. Vestia uma camisola de pescador, galochas e um grosso anorak escorrendo água.

            Nunca o tinha visto na minha vida.

            Fiquei petrificada à porta. Ele permaneceu com a chaleira na mão. Falámos ambos ao mesmo tempo, dizendo inevitavelmente as mesmas palavras:

            - Mas quem é você?

ELE POUSOU a chaleira bruscamente. Parecia ter ficado mais surpreendido do que eu, facto que me deu coragem, portanto disse, mostrando-me razoavelmente calma:

            - O senhor fique à vontade para se abrigar da tempestade, mas costuma entrar em casa das outras pessoas sem bater à porta? Eu até pensava que a porta estava fechada à chave.

            - Casa das outras pessoas? - Fez a pergunta sem ter a mínima noção de que era uma pergunta idiota.

            - Sim, temporariamente. Aluguei-a por quinze dias. Ah, estou a perceber. Conhece os donos e pensou que poderia simplesmente entrar

            - Na realidade, pensei que isto era a minha casa. Fui criado aqui. Percebe? - Enfiou a mão no bolso e retirou uma chave, o duplicado da que me tinham dado. - Não fazia qualquer ideia de que isto tinha mudado de mãos. Peço desculpa.

            - Quer dizer que os seus pais viveram aqui? Esta era a sua casa?

            - Sim, é verdade. - Detectei então na sua voz, sob a capa da pronúncia uniforme do continente, a inconfundível cadência das ilhas. O meu pai costumava tratar dos jardins em Taigh na Tuir. Aliás, o meu pai adoptivo. - Bem... - Parei, sem saber o que dizer.

            Então, ele sorriu pela primeira vez, e o sorriso iluminou o seu rosto com um súbito e intenso encanto.

            - É uma situação um pouco embaraçosa, não é?

            - Eles mudaram-se há uns anos atrás, contaram-me. Não sabia mesmo que eles se tinham ido embora? Entrou na sua casa pensando que eles estariam a dormir lá em cima?

            - Isso mesmo.

            - Mas... isso é horrível. Você... - Voltei a parar. - Você está a levar tudo com muita calma. O que é que vai fazer?

            - O que é que posso fazer para além de esperar que amanheça? - O sorriso mantinha-se, mas por detrás dele havia agora um assomo de preocupação. - Não foi um choque assim tão grande quanto possa imaginar. Eu realmente sabia que a velha senhora, Mrs. Hamilton, falecera no princípio do ano, e é claro que isso poderia ter significado que o trabalho do meu pai tivesse acabado e que eles tivessem de se mudar. Mas disse-me que eles já se foram embora há uns anos... - Fez uma pausa e tomou fôlego. Já não sorria agora. - Se ela não estava bem, então talvez lhes tenha dito para se irem embora?

            Terminou em tom de interrogação, mas eu abanei a cabeça.

- Não faço ideia. Não sei de mais nada, a não ser o que lhe contei. Mas não soube que eles se foram embora?

            - Estive fora, no estrangeiro. Andando de um lado para o outro, perde-se o contacto, infelizmente. Acabei de regressar ao Reino Unido.

            -Disse que sabia que Mrs. Hamilton tinha morrido?

            - É verdade. Aluguei o meu barco em Faarsay, que é uma pequena ilha ao sul de Muíl, e lá tinham sabido de Mrs. Hamilton. Mas não conheciam a minha família, por isso não sabiam que a casa fora alugada.

            Parecia não haver mais nada a dizer. A água pingava perseverantemente do seu anorak, fazendo uma poça no chão. Ele estava com um ar pálido, cansado e relativamente perdido.

            - Tem ar de quem lhe sabia bem uma bebida quente, e acontece que comigo se passa o mesmo - disse eu num tom animado. Levei a chaleira para a outra sala e liguei-a à tomada. - Porque é que não tira esse anorak encharcado e acende a lareira enquanto eu preparo as bebidas?

            Ele seguiu a minha sugestão, deixando o anorak atrás da porta das traseiras.

            - É muito simpática a sua atitude. O carvão continua a estar à porta de casa?

            - Sim, mas eujá trouxe algum cá para dentro. Está naquele balde e há turfa ali também. Julgo que deve saber lidar com lume de turfa. Podia mostrar-me como é. O que é que vai tomar? Café? Chá? Cacau? Lamento, mas ainda não estou fornecida de bebidas fortes.

            - Se há café, preferia, se faz favor. O instantâneo serve perfeitamente.

            Veio da copa com o balde do carvão numa das mãos e na outra um pequeno cilindro de metal.

            - Não sabia que havia isto?

            - Um atiçador a gás? Que maravilha! Onde estava?

            - No fundo do guarda-louça. É uma grande ajuda e muito rápido. - Ajoelhou-se junto à lareira da sala e empilhou a turfa e o carvão no centro frio da lareira.

            Eu preparei as bebidas e segui-o, pousando as canecas na mesa baixa perto da lareira.

            - Quer açúcar?

            - Sim, se faz favor. - Ele pegou na caneca que lhe estendi e em seguida tirou um frasco do bolso, do qual despejou uma generosa quantidade para dentro da caneca. Estendeu-me o frasco, mas eu abanei a cabeça. A turfa pegou fogo, espalhando um brilho quente. Sentindo-me como se estivesse a ter um sonho peculiar, sentei-me do outro lado da lareira e bebi um gole de cacau quente e apresentei-me.

            - Chamo-me Rose Fenemore e sou de Cambridge.

            - Ewen Mackay, sou de Moila, mas já há muito tempo que cá não estou. Está a aceitar isto muito bem, Rose Fenemore. Algumas mulheres teriam vindo escada abaixo com o atiçador em riste.

            - Eu podia tê-lo feito, só que estou à espera que o meu irmão venha ter comigo. Estava demasiado ensonada para pensar como é que ele teria conseguido chegar aqui a esta hora da noite. - Olhei de relance para ajanela. - Veio mesmo de barco no meio daquilo?

            - Porque não? Contornar o cabo Horn é pior. - Riu-se. - Na realidade, o pior bocado foi, quando vinha a pé para aqui, passar pelo topo do penhasco, ali ao vento.

            - Por cima do penhasco? Então, não ancorou aqui na baía?

            - Não. Com o vento e a corrente nesta direcção, é muito perigoso trazer um barco para aqui. Há uma pequena enseada a meio caminho da Casa Grande, a casa dos Hamiltons. É um ancoradouro seguro, faça o tempo que fizer, e o mais perto de casa.

            A última palavra soou de uma forma estranha. Bebi o cacau e interroguei-me sobre como e quando poderia eu devolvê-lo à noite. Asjanelas escorriam água, e de tempos a tempos as portas e janelas chocalhavam como se a casa estivesse a ser atacada. "Bem, Rose Fenemore, agora talvez fosse a altura de alargares os teus horizontes um pouco." Podia nomear pelo menos três amigas minhas que estariam prontas a oferecer àquele jovem, inegavelmente atraente, uma dormida no sofá.

            Ele estava a perguntar qualquer coisa sobre a casa dos Hamiltons.

            - Desculpe? - disse eu.

            - Perguntei se já lá esteve?

            -Não.

            - Devia lá ir. É um percurso bastante bonito, por cima do penhasco, e a ilha com a broch vale uma visita. Há também uma boa baía, muito abrigada. De qualquer maneira, atraquei bem o meu barco em Halfway House, a enseada, e vim a pé até Taigh na Tuir, o sítio da casa dos Hamiltons. Queria rever aquilo - pôs mais um pouco de turfa no lume -, embora soubesse que não havia lá ninguém. Pareceu-me esquisito ver as janelas todas escuras. Pode dizer-se que Taigh na Tuir representou tanto para mim como esta casa.

            - Archie McLaren, acho, disse-me que Alastair Mackay, o seu pai, tomava lá conta do jardim.

            - O meu pai adoptivo. - De novo aquela ênfase. - Fui adoptado. Sim, ele trabalhou na Casa e a minha mãe também. Mas eles, o coronel e Mrs. Hamilton, não tinham família, apenas um irmão que vivia no estrangeiro, e, bem, tratavam-me como um filho ou um neto. Foi o próprio coronel quem me ensinou a atirar com a espingarda, e eu ia sempre à pesca com ele. Pela forma como eles lidavam comigo, às vezes dou comigo a pensar... - Interrompeu-se.

            - Estava a dizer?

            - Nada. Nada mesmo... - Atiçou a turfa e o gaélico apareceu subitamente acentuado na sua voz. - Mas é estranho ser despojado das duas casas numa mesma noite de tempestade.

            "Será que ele está a dramatizar tudo isto", perguntei-me, "para obter compaixão e uma cama para dormir ou é esta a maneira de ser do celta?" O assomo frio de censura fez-me despertar. Queria que ele se fosse embora. Endireitei-me na cadeira.

            - Lamento, lamento sinceramente. - Mas

            Subitamente, sorriu-me, um lampejo rápido daqueles olhos azuis.

            - Isso não foi uma deixa para me oferecer uma cama para passar a noite. Já foi muito amável da sua parte, e eu também já dormi no barco em noites piores do que esta. Bom, deixe-me que lhe lave as canecas antes de me ir embora.

            - Não, obrigada, isso não tem qualquer importância. Dê-me a sua.

            No momento em que me levantei para receber a caneca, ouviu-se uma pancada seca na porta da frente. Ewen Mackay levantou-se, e uma das mãos dirigiu-se, de forma inacreditável, a um bolso. Era um movimento que eujá vira centenas de vezes na televisão, mas nunca na vida real.

            Ele deixou tombar a mão. Eu disse em voz débil:

            - Importava-se de ir ver quem é, se faz favor? E se for o meu irmão, não lhe dê um tiro.

            Ele não sorriu. Olhou-me de soslaio, de uma forma curiosamente desconcertante, e dirigiu-se à porta.

            Esta abriu-se, deixando o ar entrar impetuosamente. Lá fora, estava um homem novo de anorak, com o capuz impelido para trás pelo vento, exibindo um cabelo castanho encharcado e todo emaranhado e uma mão agarrando uma mochila.

            Ewen Mackay desviou-se para o deixar entrar.

            - Faça o favor de entrar. A chaleira está mesmo a ferver. É Mr. Fenemore, presumo?

            O recém-chegado ficou quieto, ensopando o tapete, enquanto Ewen Mackay fechava a porta atrás dele. Parecia completamente aturdido.

- Afinal o seu irmão sempre conseguiu cá chegar - disse-me Ewen Mackay, mas eu abanei a cabeça e retorqui:

            - Eu nunca o vi na minha vida.

 

- PEÇO IMENSA desculpa por me intrometer desta maneira.

            O recém-chegado olhava de Ewen Mackay para mim, e vice-versa, tomando-nos, compreensivelmente, por um casal em férias, embora fosse difícil imaginar porque estaríamos sentados à lareira àquela hora, eu com um roupão pouco elegante e Ewen de calças de ganga manchadas e camisola. Algo semelhante a isto devia estar a ocorrer-lhe. Fez uma pausa e terminou com alguma hesitação:

            - A minha tenda foi levada pelo vento juntamente com algumas das minhas coisas. Tentei apanhá-las, mas com o escuro não me valeu de nada. Vi a vossa luz, por isso apanhei o que me restava e dirigi-me para aqui. Se não se importassem, eu ficava aqui até a tempestade passar para depois ir tentar encontrar as minhas coisas.

            - É claro - disse Ewen Mackay calorosamente, sem eu sequer ter tempo de falar.

            Olhei-o surpreendida, mas ele ignorou-me.

            - Venha para aqui e dispa essas coisas molhadas. íamos tomar uma bebida quente. Faz-nos companhia?

            - Obrigado. É muito simpático da vossa parte. Sabia-me bem.

            Enquanto falava, tirava a sua roupa molhada e deitou-me um olhar de relance, indicando quem deveria despachar-se a arranjar-lhe a bebida quente.

            Consegui falar. Lancei um olhar gélido a Ewen, declarando:

            - Se é o anfitrião, prepare a bebida. Sabe onde está a chaleira.

            O recém-chegado pareceu surpreendido, mas Ewen sorriu e disse:

            - Claro! - E depois dirigiu-se ao outro homem: - A propósito, chamo-me Mackay e apresento-lhe Rose Fenemore. Há café, se quiser.

            - Sim, perfeitamente. Obrigado. - Largou as suas coisas molhadas numa cadeira e foi para junto da lareira. - Chamo-me John Parsons.

            Falou por cima da minha cabeça para a copa, onde Ewen se encontrava a encher a chaleira. Obviamente que continuava a tomar-nos por um casal, e o seu embaraço por se ter intrometido assumiu a forma de me ignorar.

Eu estava ocupada a pensar porque é que Ewen Mackay, ao assumir o papel de anfitrião, se tinha dado a tanto trabalho para causar aquela impressão. Uma demonstração de vaidade machista? Descoberto a sós numa casa remota com uma jovem a qual o irmão uma vez descrevera como "uma doutora, ai de mim!, mas uma brasa quando se dá ao trabalho" -, teria ele deliberadamente induzido em erro o recém-chegado? Ou teria começado a ter esperanças de passar ali a noite e, consequentemente, utilizara aquele meio para se ver livre do outro homem?

            - Leite e açúcar? - Ewen, continuando a ser o hospitaleiro anfitrião, estava a deitar a água a ferver.

            Parsons estava aconchegado junto da lareira.

            - Sim, as duas coisas, se faz favor. - Aceitou a caneca a fumegar das mãos do outro homem e depois perguntou: - Está de férias ou vive aqui?

            Ewen Mackay retomou o seu lugar, no outro lado da lareira. Fez um ar ligeiramente apologético. E bem que devia fazê-lo, pensei. Teria ele realmente pensado que eu ia alinhar naquilo? Esticou um pé em direcção ao lume.

            - Vivi realmente aqui há uns anos atrás. Fui criado aqui, mas neste momento sou como você, um órfão da tempestade. Miss Fenemore também me abrigou a mim.

            - Ah, sim. Estou a perceber. - Parsons finalmente olhou para mim.

           Detectei um outro tipo de embaraço, substituindo o primeiro, quando enfrentou o meu olhar irónico.

            - Bem, Miss... ah... é extraordinariamente amável da sua parte. Lamento imenso causar tanto incómodo.

            - Não tem importância. Onde é que está a acampar, Mr.... ah?

            Por instantes, pensei que tinha ido longe demais. Nos olhos cinzentos que me fitavam vi uma centelha do que podia significar divertimento, mas que poderia significar igualmente aborrecimento. No entanto, desapareceu logo em seguida e ele respondeu docilmente:

            - No machair.

            - Consegue mesmo ver-se as nossas luzes do machair? - perguntei-lhe.

            Houve uma pausa perceptível enquanto Parsons se voltava para pousar a sua caneca na cornija da lareira.

            - Duvido. Mas quando as vi hoje, há bocado, já chegara a custo à estrada.

            - Estava perto da Casa? - perguntou Ewen.

- Que casa? - perguntou Parsons.

            - Nós, as pessoas daqui, chamamos-lhe a Casa Grande ou simplesmente a Casa. Aquela que fica em frente à ilha, onde fica a torre de pedra pré-histórica.

            - Ah, sim, claro. Não é essa a casa dos Hamiltons?

            - Então, conhece-a? Já esteve cá em Moila.

            - Sim, há muito tempo, quando era estudante.

            Ewen Mackay estivera a fitar insistentemente o outro homem enquanto falavam e a seguir aventou:

            - Então, talvez nos tenhamos conhecido nessa altura.

            - Talvez, mas não me parece.

            - Então, o que é que o traz cá outra vez?

            - Sou geólogo. - Parsons bebeu tranquilamente a sua bebida. Tinha aceitado um cheirinho do frasco de Ewen. - Pensei que seria um local interessante para passar as minhas férias. Tenho estado a trabalhar na Austrália, em Sydney. Há um afloramento igneo no ilhéu da torre pré-histórica, com fragmentos de peridotite vermelho-granada. Estou a planear mudar a minha tenda para lá. Mas isto não é um assunto que vos interesse

            A conversa já há muito que tinha deixado de me interessar. Sentia a necessidade de voltar a dormir. Levantei-me para ver as horas no relógio, na consola da lareira, e uma outra coisa despertou-me a atenção. Enfiado atrás do relógio, estava um maço de papéis, cartas e contas antigas, presumivelmente esquecido pelos últimos inquilinos. Tinha uma direcção escrita:

J. R. Parsons,

Baía das Lontras

Ilha de Moila, Argyll

            Então, o "John Parsons" talvez não fosse genuíno! Quando Ewen Mackay sugerira que já antes se teriam encontrado, pareceu-me que o outro homem ficara com uma expressão cautelosa. E o próprio Ewen, apesar de todo o seu encanto, tinha certamente agido de uma maneira que dava que pensar. Além do mais, eu não conseguia esquecer aquele movimento da sua mão em direcção ao bolso quando "Parsons" batera à porta.

            Levei a minha caneca vazia para o lava-louça e depois fiquei à soleira da porta a observá-los. Nenhum deles dera a mínima atenção aos meus movimentos. à excepção do facto de Parsons já estar sentado na minha cadeira. Estavam ambos a falar da pesca ao salmão. Um assunto que, pensei secamente, propiciava um grande campo de acção aos mentirosos.

            Ajogada seguinte era minha. Mackay dissera que poderia dormir no seu barco, mas não fizera nada no sentido de convidar Parsons a partilhá-lo. Talvez não houvesse espaço suficiente para dois, e naquele momento dificilmente poderia pôr o outro na rua. O melhor era jogar pelo seguro. Ia deixá-los ficar aos dois. Eu podia ser uma brasa, mas também era uma doutora de Cambridge e não era propensa a ver o perigo onde ele não existia, por isso disse:

            - Já passa das três horas da manhã. Vou deitar-me. Atiro-vos cá para baixo umas toalhas e uns cobertores e vocês podem deitar à sorte quem fica no sofá e quem fica no chão. - Acrescentei: - Boa noite. Durmam bem.

            A MANHÃ estava calma e radiosa, com os raios de sol cintilando pela baía. O mar ainda repercutia a tempestade, com as ondas, com cerca de meio metro de altura, a rebentarem com um longo marulhar contra a praia de seixos, mas o céu estava azul e límpido. Não se ouvia nenhum barulho lá em baixo. Deslizei para fora da cama, vesti o meu roupão e desci as escadas silenciosamente.

            Sim, ambos se tinham ido embora. Os cobertores e as toalhas jaziam impecavelmente dobrados no sofá. Na copa, encontrei um bilhete apoiado no escorredor do lava-louça que dizia: "Muitíssimo obrigado pela hospitalidade. Espero que tenha dormido bem. Saí cedo para procurar a tenda, etc. Até um destes dias, talvez."

            Não estava assinado. A referência à tenda significava que ou fora "John Parsons" que o escrevera e esperava voltar a encontrar-se comigo, ou que eles se tinham associado numas tréguas declaradas.

            Coloquei cautelosamente a mão na chaleira. Estava quente. Pelos vistos, eles tinham arranjado qualquer coisa para o pequeno-almoço sem me acordarem. Uma atitude que evidenciava mais delicadeza da parte deles do que tinham mostrado na noite anterior. Coloquei a chaleira de novo ao lume e subi para me vestir.

            ZELOSA dos meus deveres, passei a manhã no espaço sideral de Hugh Templar e fui recompensada com uma nova ideia para o capítulo seguinte da história. Pus em dia as anotações, fiz uns ovos mexidos, depois decidi ir até aos Correios saber se o meu irmão telefonara na noite anterior.

Mrs. McDougall, ocupada com os clientes, apenas me fez um mero aceno com a cabeça, indicando a porta nas traseiras da loja que dava para a sua casa. Entrei de bom grado, dirigindo-me ao telefone.

            A minha cunhada atendeu tão depressa que deveria estar mesmo ao lado do telefone.

            - Está lá? É do hospital?

            - Não - respondi. - É a Rose. Não me diga que apareceu alguma coisa nesta altura dos acontecimentos que vai impedir Chris de se ausentar.

            - Oh,....... - Não havia nenhum tom áspero na voz de Ruth. Ouvi-a respirar fundo.

            A minha mão segurou com força o auscultador.

            - Diga-me. Crispin está bem?

            - Sim, está bem. Está ferido, mas não gravemente. É o tornozelo. Pensavam que estava partido; depois, disseram que fora apenas uma distensão forte, mas querem fazer mais raios X, portanto, simplesmente, não sei. Ele tentou telefonar-lhe, mas havia um problema qualquer com a linha. Ele ia naquele comboio, naquele que descarrilou a noite passada a sul de Kendal. Pensei que tivesse ouvido no rádio.

            - Não tenho rádio. Continue.

            - Uma carruagem foi atirada para fora da linha, mas não se virou até toda a gente ter saído. Não morreu ninguém, mas houve alguns feridos. Cris tentou ajudar, claro, mas assim que a ambulância chegou, mandaram-no para o hospital local e é lá que ele está agora. A voz dele parecia bastante normal quando telefonou, estava apenas aborrecido por causa das férias. Disse que voltava a telefonar assim que soubesse o resultado da nova radiografia. Não vai poder andar muito, claro, mas mesmo assim continua a querer ir.

            Terminou num tom de surpresa tal que não consegui deixar de me rir.

            - Vou desligar, não vá ele estar a tentar telefonar-lhe. Mas volto a telefonar hoje à noite.

            - Vou dar-lhe um número, e você pode telefonar-lhe. - Anotei o número. - Então, e você, Rose? Está bem sozinha? Não creio que ele consiga chegar aí antes de segunda-feira.

            Fiquei surpreendida e comovida.

           - Eu fico bem, obrigada. A casa é bastante acolhedora, e eu estou ocupada com uma nova história, por isso vou ter muito que fazer. Dê saudades minhas ao Crispin, Ruth. Eu telefono-lhe logo à noite.

            - Eu digo-lhe. Adeus, Rose.

- Adeus.

            Voltei para a loja e reuni o que precisava. Quando cheguei ao balcão, encontrei Mrs. McDougall e as suas vizinhas a falarem sobre o acidente do comboio. Mrs. McDougall tirou-me o cesto das mãos com um olhar preocupado.

            - Espero que não tenham sido más notícias, Miss Fenemore.

            - O meu irmão ia no comboio, infelizmente. Não. Não há problema. Ele não ficou gravemente ferido, uma distensão no tornozelo, e dizem que não é muito grave, mas isso significa que ele ainda não pode vir até cá acima...

            Todas soltaram exclamações e expressaram a sua solidariedade, após o que paguei as minhas compras e me escapuli.

            Já ia a meio caminho de casa quando me apercebi de que, com toda aquela conversa sobre o acidente, me tinha esquecido de falar com Mrs. McDougall sobre Ewen Mackay e até sobre John Parsons. Não que os quisesse voltar a ver, a qualquer deles, mas a cena da véspera à noite fora estranha.

            Começando por Parsons. Eu tinha a certeza de que ele era um impostor, a não ser que fosse o anterior inquilino da casa e tivesse, por qualquer razão, regressado a Moila sem querer ser detectado. Mentira certamente ao dizer que vira as luzes da casa. Se tinha andado a perseguir a sua tenda, levada pelo vento, desde o machair,; no lado ocidental da ilha, seguramente que as luzes da minha casa não se avistariam senão depois de ele ter percorrido a estrada pela encosta abaixo, passado a curva e quase chegar à Baía das Lontras. Consequentemente, a sua desculpa para se dirigir lá a casa era uma fraude.

            Agora, vejamos Ewen Mackay. Aquilo que dissera sobre a casa ter sido a sua poderia facilmente ser verificado. Ele até sabia onde se guardava o carvão e o atiçador de brasas a gás, e tinha uma chave... Mas houvera aquela reacção de inquietação ao baterem à porta e depois o logro despropositado que se seguira.

            Parei a meio de uma passada. Algo se moveu no lado mais afastado do iochan, algo volumoso de um branco-sujo apanhado na murta do lodo, onde ondulava com a brisa. A tenda de John Parsons?

            Pousei o saco com as compras no chão, ao lado da estrada, e atravessei a charneca. Se o objecto viesse a ser a tenda levada pelo vento, o dono iria precisar dela.

            Era uma velha saca de plástico. Encontrei o covil de uma raposa, há muito abandonado, e meti-a lá. Enfiei a saca bem para dentro até a esconder e endireitei-me, constatando que a minha busca me levara até acima de uma fenda através da qual avistava o machair ocidental.

            Era uma faixa de costa belíssima: areia branca e turfa mordiscada pelas ovelhas, tendo como fundo um prado florido e plano com margaridas amarelas ondulando na brisa marítima, como um véu colorido sobre o verde. Acima, à esquerda, havia um maciço de árvores e, destacando-se dele, as chaminés de uma casa.

            A casa dos Hamiltons, presumivelmente. Taigh na Tuir. Caminhei mais alguns metros e estiquei o pescoço para ver. Não havia sinal de vida na pequena baía do outro lado, que tinha uma casa de barcos e um molhe.

            Para lá da baía, a seguir a uma estreita extensão de água, havia uma pequena ilha, um ilhéu mais propriamente. Era comprido e baixo, com um outeiro no extremo norte. Mesmo por baixo do outeiro, distingui o contorno escuro do que deveria ser a broch em ruínas, e ao seu lado estava uma pequena mancha estranha de um laranja-vivo. Uma tenda. Ele encontrara a tenda e já se mudara para a ilha da torre.

            Fosse como fosse, ambos os homens tinham regressado aos seus afazeres e muito provavelmente não voltariam a incomodar-me. "Esquece; retoma mais um capítulo de ficção fantasiosa." E enquanto caminhava pela lama, contornando o lochan, em direcção à estrada, vi um mergulhão: uma grande ave castanha e cinzenta com o pescoço vermelho. "Deve estar a chocar", pensei. Com um pio estranho, o mergulhão levantou e voou em direcção ao mar, alarmado. E ali, a dois passos dos meus pés, estava o ninho.

            Dois ovos enormes de um castanho-esverdeado, com a casca baça, sarapintada como musgo, encontravam-se numa concavidade pouco profunda, mesmo na margem do loch: uma casa muito bem camuflada. O mergulhão provavelmente estava a observar-me. Regressei à estrada, peguei nas minhas compras e deixei a ave em paz.

            NESSA noite, não vi Mrs. McDougall. Estava uma rapariga a tomar conta da loja, uma criança de talvez doze anos, que me disse chamar-se Morag e que a sua tia a avisara de que a jovem senhora de Camus na Dobhrain devia lá aparecer para telefonar.

            Perguntei-lhe se ela conhecia um tal Ewen Mackay que em tempos teria vivido na Baía das Lontras, mas ela abanou a cabeça.

            - Não. - A pronúncia dela era de uma suavidade extrema. - Havia um senhor e uma senhora Mackay que viviam lá, mas foram-se embora para o continente.

            - Tinham filhos?

Hesitou, depois inclinou a cabeça afirmativamente. Sim, havia um rapaz, há muito tempo, mas nessa altura ela era muito pequena e não se lembrava dele. Agora, já devia ser um homem crescido. A tia devia saber

            Parti do princípio de que aquilo corroborava uma parte da história de Ewen Mackay. Agradeci a Morag e dirigi-me ao telefone.

            Liguei directamente para o meu irmão, para o número do hospital de Kendal que Ruth me dera.

            - Que história é essa de outra radiografia? - perguntei-lhe. - Já tens os resultados? É mesmo só uma distensão?

            - É, mas ainda está muito inchado. Deram-me uma muleta e posso perfeitamente fazer a viagem, mas nunca podia fazer muita coisa depois de chegar aí a Moila, pois não? Como é que isso é?

            - É encantador. A casa é pequenina, mas tem tudo o que precisamos, há muitos sítios para explorar sem transporte. Infelizmente, só há o Land-Rover de Archie McLaren, o que te vai transportar desde o porto. Mas o que é que isso importa? Vais descansar. Claro que, se te é muito doloroso, esquece. Eu fico lindamente sozinha e, se me fartar da inactividade, posso sempre ir para outro lado

            - Não. Não faças isso. Eu estava apenas com dúvidas por causa de poder estragar as tuas férias. Eu cá me arranjo e detestaria ficar sem conhecer Moila.

            - Estragavas-me muito mais as férias se não viesses - comentei eu. - Isto aqui é realmente encantador. Hoje, encontrei o ninho de um mergulhão-de-pescoço-vermelho, uma perfeita maravilha, com dois ovos, e não tinha a máquina fotográfica.

            - Não vou faltar - disse ele. - Conta comigo no barco de segunda-feira.

            - Doutor, cura as tuas próprias feridas... - disse eu, rindo, e desliguei com o coração aliviado.

 

A MANHÃ seguinte estava bonita, soalheira e com uma ligeira brisa, mas viajei diligentemente até ao espaço sideral, embrenhando-me nos problemas do meu grupo na Terra Secunda. As dificuldades ameaçavam rapidamente tornar-se demasiadas para eles e, consequentemente, para mim também. Em tais circunstâncias, sempre achei sensato não fazer nenhum esforço e deixar que o subconsciente resolvesse por si as coisas, enquanto o consciente se dedicava a fazer algo completamente diferente. Ir dar um passeio, por exemplo, e uma olhadela à casa dos Hamiltons.

            Fui pelo caminho do penhasco, que subia a pique para fora da Baía das Lontras, virando depois para oeste cerca de um quilómetro sobre o promontório, e deparei com a panorâmica da baía que avistara na véspera. Mesmo na direcção desta, para o interior, contra um fundo de árvores que a protegiam, ficava a Casa.

            Um muro alto de pedra circundava o terreno em volta dela numa extensão de cerca de dois hectares, e dentro dele havia mais árvores acima do amontoado colorido dos rododendros. Um arco de pedra no lado do muro virado para o mar enquadrava um portão alto de ferro forjado que conduzia aos jardins de Taigh na Tuir.

            Mesmo em frente da Casa, ficava o ilhéu com a broch. Naquela altura, com a maré baixa, o passadiço que ligava o ilhéu a Moila elevava-se, seco. Era constituído por pedras lascadas que formavam um caminho por onde se podia passar. Mas mesmo com a maré baixa, a travessia devia ser traiçoeira.

            O canal era suficientemente profundo para um barco conseguir entrar na casa dos barcos, que se encontrava por baixo do penhasco, do lado sul da baía, abaixo do caminho onde eu estava. Ao lado da casa dos barcos, havia um molhe do qual saía um caminho cheio de ervas daninhas que ia dar ao portão do jardim.

            Pus-me a caminho, descendo para a baía. Nunca vira nada igual, uma meia-lua deslumbrante de uma areia magnífica cor de pérola, apenas com marcas das ondas e, acima destas, marcas entrecruzadas de patas de aves marinhas.

            Era totalmente irresistível. Descalcei sapatos e meias, deleitando-me com a sensação da areia quente nos pés nus. Dirigi-me imediatamente até à beira-mar, mas a água estava fria, por isso retrocedi para a areia seca e voltei a calçar os sapatos.

            Feito isto, permaneci de pé a olhar para o ilhéu, uma extensão de turfa verde e fetos erguendo-se até ao círculo escuro da broch. Todo aquele lugar emanava vida com os voos e gritos de aves marinhas. Era muito tentador, mas seria uma estupidez fazer a travessia antes de conhecer melhor as marés. Perguntei a mim mesma onde estaria John Parsons. De onde me encontrava, avistava a tenda, montada perto do muro da broch. A entrada estava fechada.

            Subi pelo caminho que levava ao portão no muro do jardim e espreitei pelas grades. O caminho continuava por dentro da propriedade, serpenteando por entre os rododendros demasiado grandes em direcção à Casa. Hesitei. Devia haver um caminho para carros das traseiras da casa até à estrada - o caminho mais fácil para minha casa. Ir até lá, contornando o muro do jardim, significaria abrir caminho pelo meio de urtigas que me davam pela cintura e moitas de silvas. Portanto? Portanto, abri o portão e entrei.

            Para lá do emaranhado bravio dos rododendros, eu só via o andar de cima da Casa: pedra cinzenta, janelas de guilhotina altas, telhado de ardósia cinzenta e chaminés que não fumegavam. Havia cortinas nas janelas. A Casa ainda devia estar mobilada. Archie dissera que a Casa provavelmente seria vendida. Com certeza que não haveria qualquer problema em uma pessoa dar uma olhadela a um sítio que, de qualquer maneira, brevemente iria ser posto à venda. Atravessei um relvado por cortar até àjanela principal e espreitei lá para dentro.

            A sala de estar. Uma lareira bastante engraçada, com uma cornija hedionda. Cortinados e tapetes desbotados. Os quadros eram os típicos retratos de família, imitações de grandes mestres, sombrios, e com inverosímeis cães e cavalos. Mesas de camilha a abarrotar de fotografias. Cadeirões bambos. Num canto um vaso bastante horroroso cheio de erva seca.

            Na sala de jantar havia mais retratos - ainda mais sombrios, se possível - e duas horrendas naturezas-mortas: lebres e aves domésticas; mesmo o tipo de coisas para abrir o apetite às refeições.

            Era uma vulgar e agradável casa de Verão das Terras Altas; não tinha qualquer tipo de aquecimento para além das lareiras, e a cozinha, no que dizia respeito a modernas condições de habitabilidade, era bastante semelhante à da minha casa na Baía das Lontras. A única coisa verdadeiramente fora do normal foi o que encontrei quando cheguei às traseiras: a porta estava aberta.

            BATI à PORTA; depois, como não obtive resposta, entrei para um corredor com chão de pedra, com baldes de carvão e um cabide com velhas roupas de jardinagem. Cheirava a bafio e a falta de uso.

            A porta da cozinha ficava à minha direita. Empurrei-a, abrindo-a. De novo o vazio; de certa forma, a cozinha, que é o coração de qualquer casa, é o pior dos lugares sem os cheiros e o calor da comida e sem o pulsar da vida diária. Ao virar-me para sair, algo me chamou a atenção:

um chaveiro, mesmo ao lado da porta, com chaves penduradas, identificadas com rótulos. Um dos ganchos do chaveiro estava vazio: o rótulo dizia C. NA DOBHRAIN. A minha casa na Baía das Lontras.

Fosse qual fosse o motivo que me levara a entrar na Casa, foi ultrapassado por uma mera curiosidade avassaladora. Teria o meu visitante nocturno passado primeiro por ali para ir buscar a chave que me mostrara, deixando a porta das traseiras aberta? Mas se ele estava apenas à procura de abrigo, porque é que não ficara ali? Porque é que percorrera o caminho, debaixo de chuva no meio da tempestade, até à Baía das Lontras? Se havia algum mistério sobre a visita de Ewen Mackay à minha casa, a pista podia muito bem estar ali, na casa que ele afirmara conhecer muito bem.

            Para começar, avancei para o corredor da frente, iluminado apenas por uma janela de vitral em forma de leque por cima da porta da entrada. Num dos lados, encontrava-se uma pesada mesa de carvalho com pilhas de revistas e jornais, duas lanternas eléctricas e umas caixas não identificadas. Havia um cabide de latão com bengalas e um canapé de carvalho escuro com arca sob o assento, para cima do qual alguém atirara um casaco e um anorak velho. Alguns pares de botas de vários feitios estavam alinhados ao lado do canapé.

            Tive a forte sensação de que era uma casa cujos ocupantes tinham acabado de sair para dar um passeio. A minha presença ali pareceu subitamente uma intrusão. Virei-me para me ir embora, mas exactamente quando me ia a virar, ouvi qualquer coisa. No andar de cima: o ranger de uma porta.

            O meu coração deu um pulo, depois voltou ao ritmo normal ao registar o facto de que mesmo numa casa vazia havia correntes de ar e portas a mexerem-se e a rangerem sem que ninguém lhes tocasse. Mas, mesmo assim, dirigi-me rapidamente para a porta e, na obscuridade, tropecei numa das botas. Só consegui evitar a queda segurando-me ao braço do canapé de carvalho.

            Algo veio pelas escadas abaixo como uma avalancha. Um par de braços fortes agarraram-me por trás, levantando-me bruscamente. Apertada com força contra o peito de uma camisola de lá, gritei.

            Os braços largaram-me subitamente, e a camisola de lá afastou-se. Caí no canapé, bati com o cotovelo no braço torneado e tomei fôlego para gritar outra vez.

            - Não grite! - disse John Parsons apressadamente. - Por favor, não grite. Peço imensa desculpa. Pensei que era... não percebi que era você.

            Pus de parte o meu grito e esfreguei o cotovelo. Ele inclinou-se sobre mim com um ar ansioso e nada perigoso. E então eu disse:

            - O que é que está aqui a fazer? Sei que encontrou a sua tenda; se calhar achou que aqui arranjaria um abrigo mais confortável do que a minha casa, não?

            - Não, nem por isso. E na realidade a tenda nunca esteve perdida, mas...

            - Onde é que está Ewen Mackay? Também dorme aqui?

            - Não. Porque é que haveria de estar aqui? Então, ele não está consigo?

            - Não, não está. - Como me sentia simultaneamente culpada e embaraçada, respondi asperamente: - Espero que você não tenha caído naquela encenação dele. Eu nunca o tinha visto na minha vida! Julgo que ele deve ter levado a chave da minha casa daqui. Se ele forçou a entrada aqui... mas então por que razão teria ido lá para casa? E você, porque é que lá foi? Também forçou a entrada aqui?

            Ele respondeu apenas a uma da minha sucessão de perguntas e foi o suficiente.

            - Não - disse. - Eu tinha uma chave.

            - Tinha uma chave?! - A repetição soou de forma idiota. Mas a situação era uma repetição da noite de quarta-feira. - Você também. - Tomei fôlego. - Tinha marcado vir ver a Casa?

            - Não é bem isso. A casa é minha.

            - Oh! Não. Outra vez não. - Devo ter soado, se possível, ainda mais idiota. - Sua?

            Subitamente, ele sorriu.

            - Sim, minha. Eu era o único parente vivo da tia Emily, e sempre esteve subentendido que a propriedade ficaria para mim. Sou Neil Hamilton.

            - Estou a ver. Bom, obrigado por me dizer, Mr. Parsons.

            Então, ele disse num tom apologético:

            - Peço imensa desculpa, mas houve motivos para o fazer. Porque não vamos até a um sítio mais confortável para conversarmos sobre esses motivos? Sinto que realmente lhe devo isso. Aqui?

            Abriu a porta da sala de estar e fez-me entrar à sua frente. Atravessou a sala até à janela de sacada e abriu-a. à luz daquilo que acabara de dizer-me, observei-o novamente.

            Era alto e parecia bronzeado pelo sol. Não era bonito, mas era bem-parecido, de uma forma que eu habitualmente desaprovava bastante, se não mesmo desprezava: não tinha as feições magras e marcadas que eu sempre admirara, mas um rosto com feições difusas, uma boca grande, olhos escuros com os cantos exteriores ligeiramente inclinados para baixo e uma cabeleira castanha desalinhada, da qual caíam umas madeixas sobre a testa. Reparei que ele, por sua vez, me observava. Pensei que ele devia estar a ver uma jovem sem traços marcantes, demasiado solene, de cabelos castanhos e olhos cinzentos, nariz e boca toleráveis e - os meus únicos requisitos de beleza - com boa figura e uma pele boa e bonita.

            - Então, depreendo que esteja aqui apenas a passar férias, Miss Fenemore? Ou prefere Mss?

            - Isso parece um silvo de ganso. É impronunciável. Na realidade, se isso fosse a abreviatura de mistress, ou seja professora, que é bastante simpático e muito escocês, com toda a certeza que eu aceitaria de bom grado esse tratamento. Bom, mas Rose seria o mais fácil, não acha? Desculpe, estou a ser pedante, mas eu gosto de palavras, e isso é um dos melhores exemplos de não-palavra que eu conheço.

            - Bom, é um excelente passatempo.

            - Passatempo, qual passatempo? Eo meu trabalho. Sou professora de Inglês em Cambridge. No Haworth College. E, é verdade, estou simplesmente de férias. O meu irmão devia vir ter comigo esta semana, mas o comboio em que viajava teve um acidente, por isso ele ficou retido com um tornozelo magoado. Provavelmente, chegará aqui na segunda-feira. E é tudo sobre mim. Agora, é a sua vez Mr. Hamilton Parsons.

            - Essa parte do Parsons não foi uma mentira muito inspirada. Viu a carta na consola da lareira, não viu?

            - Vi. Mas a questão é: porquê?

            - Não podia dizer o meu nome verdadeiro antes de saber o que é que aquele tipo pretendia. Devia ter pensado em qualquer coisa quando ia a caminho para lá. Olhe, porque é que não se senta? O melhor é eu começar pelo princípio.

            Segui a sugestão, mas ele continuou de pé junto àjanela.

            - Chamo-me Neil Hamilton, como já lhe disse, e Mrs. Hamilton era a minha tia-avó. Sou geólogo, essa parte era verdadeira... e até há pouco tempo estive a trabalhar em Sydney. Foi lá que soube da morte da tia Emily, e apanhei o avião para aqui assim que me foi possível. Não há mais ninguém. Eu gostava muito dela e costumava passar a maior parte das minhas férias aqui, mas ultimamente vinha cá muito pouco; já cá não devia vir há pelo menos quinze anos. Festejei aqui os meus catorze anos. Lembro-me de que o tio Fergus me ofereceu uma espingarda. Ele ainda tinha esperanças em mim, mas na realidade nunca gostei de andar a matar coisas. - Sorriu. - Não sou mesmo nada o ideal proprietário escocês.

Enquanto falava, andava pela sala, pegando distraidamente em fotografias, olhando para os livros, pondo-se em frente aos quadros. Eu fi-lo regressar ao assunto em questão.

            - E o que é que o levou até à minha casa no meio da noite com a história da tenda levada pelo vento? Todas essas mentiras por causa de Ewen Mackay, antes mesmo de o conhecer?

            Ele virou-se para mim.

            - Sim, foram mentiras, mas eu já o conhecera há muitos anos, quando éramos rapazes. Ele quase me reconheceu, mas quinze anos, a passagem de rapaz a homem, é uma grande mudança e duvido que ele tenha percebido.

            - Está a dizer-me que montou toda aquela charada porque o reconheceu? Que tinha razões para desconfiar dele?

            Ele acenou afirmativamente com a cabeça.

            - Quando ele era rapaz... bem, digamos, não era digno de confiança. Mas não foi por isso. Eu já o vira antes naquela noite, aqui em casa, comportando-se de uma forma que me fez ficar bastante ansioso por descobrir o que é que ele estava a fazer aqui em Moila.

            - Então, você estava aqui? Toda a gente disse que a casa estava vazia.

            - E estava. Eu tinha acabado de chegar e ainda não fora à povoação nem vira ninguém. E, aliás, ainda não vi.

            - Como veio para cá?

            - Aluguei um barco. A tia Emily vendeu o que cá havia. Vim de Oban a toda a pressa, com o tempo a ficar cada vez pior, mas cheguei aqui são e salvo. Meti o barco na casa dos barcos e depois subi até à Casa. Tinha ido falar com os advogados da minha tia, em Glasgow, e eles deram-me as chaves. Comprei tudo aquilo de que precisava em Oban, e como já era muito tarde e estava cansado, dirigi-me ao meu antigo quarto e fui direito para a cama. Já passava bem da meia-noite quando fui abrir a janela do quarto e vi uma pessoa a atravessar o jardim, vinda da baía.

            Deixou-se cair numa das poltronas à minha frente e prosseguiu:

            - A princípio, pensei que fosse alguém de um barco arrastado até aqui pelo temporal. O tipo tinha uma lanterna. Chegou até ao relvado, ali mesmo, e depois parou e ficou quieto a fitar a casa debaixo de toda aquela chuva. Bom, eu desci as escadas. A porta da frente ainda estava fechada à chave; eu apenas utilizara a das traseiras desde que chegara. Não acendi as luzes, e quando entrei nesta sala, regozijei-me por não o ter feito. Dei com ele a tentar entrar pela janela.

- Bem, no meio daquela tempestade e se ele pensava que a casa estava vazia.... - disse eu, tentando ser razoável.

            - Eu sei. Mas ele não experimentou apenas a maçaneta. Tinha uma ferramenta com que estava a tentar abrir a porta, levantando-a. Fiquei ali como um idiota a observá-lo... Depois, pensei: "Bem, eu vou ter que enfrentar o tipo de qualquer maneira, por isso o melhor, com ou sem chuva, é ir pelas traseiras e apanhá-lo por trás."

            - Ele tinha uma arma - disse eu.

            Ele ficou deveras surpreendido.

            -A sério?!

            - Acho que sim. Continue, por favor!

            - Não sou propriamente um homem de acção... deste tipo de acção. Costumava haver armas cá em casa, claro, mas nem sequer me ocorreu ir ver se ainda estavam no mesmo sítio. Mas quando cheguei à parte de trás da casa, ele já lá estava, junto àjanela da cozinha. Depois, por qualquer razão, desistiu: num momento estava lá e depois, de repente, desapareceu. Corri escada acima para ver o que pudesse, e lá ia ele, de lanterna e tudo, a correr pelo jardim fora e depois enfiando-se pelo caminho do penhasco, como se soubesse exactamente para onde ia. É claro que eu sabia que o caminho dava para Camus na Dobhrain, e os advogados tinham-me dito que a casa estava alugada a uma rapariga, por isso pus-me a pensar por que razão se dirigiria ele para lá, e decidi segui-lo e ver o que se passava.

            - Mas você levava uma mochila... Era só cenário para a sua história sobre a tenda?

            - Mais ou menos. Tenho uma tenda, porque quero trabalhar em Eilean na Rom, a Ilha das Focas, onde fica a broch, e as marés são estranhas, por isso preciso de lá ter uma base. Levei a tenda para lá hoje de manhã.

            - Eu sei, vi-a. Mas não esteve aqui quando era estudante universitário, pois não? Se tivesse conhecido Ewen Mackay nessa altura...

            - Ele ter-me-ia reconhecido, claro. Sim, isso também foi uma mentira. Bom, mas, quando ele me abriu a porta, reconheci-o. E como ele não me reconheceu, eu não quis ligar o meu nome à casa até descobrir qual era ojogo dele.

            - Eo meu?

            - Bem, sim. É o seu.

            Sorri.

            - Éjusto. Mas, independentemente dos seus motivos para ir até lá, ainda bem que o fez. Se ele realmente não estava com boas intenções, a situação poderia ter-se tornado esquisita... embora eu não estivesse nervosa.

           - Sim, eu percebi. E foi isso que me fez pensar se não estaria envolvida também. - Fez uma pausa, franzindo o sobrolho, depois acrescentou: - Bem, ainda não consegui vislumbrar qual é ojogo dele.

            - Quando saíram para irem procurar a sua tenda, o que é que aconteceu?

            - Nada de especial. Fizemos uma busca insignificante no caminho para a baía, mas depois ele foi direito para o seu barco e desapareceu, e não faço a mínima ideia para onde foi. Não há sinais dele algures perto de sua casa?

            - Nenhum. Então, o que é que se segue?

            - Nada, espero eu, a não ser mantermos os olhos bem abertos. O homem não fez nada que justifique comunicarmos à Polícia

            - Estou a perceber o seu ponto de vista. Só mais um outro detalhe: há um sítio no seu chaveiro, junto à porta, para a chave da minha casa e falta lá a chave. A não ser que você a tenha tirado.

            Ele abanou a cabeça.

            - Então, se foi Ewen quem a tirou, isso significa que essa não foi a primeira visita dele a esta casa. Já aqui tinha estado e...

            - E deixou a porta envidraçada aberta para poder entrar outra vez. Tem razão! Realmente encontrei-a aberta e fui eu que a tranquei. Não dei qualquer importância ao facto, apenas pensei que quem tinha fechado a casa se esquecera. Mas deve ter sido isso: ele voltou e, encontrando a entrada de novo trancada, deve ter-se assustado.

            - Ele realmente disse-me que tinha estado aqui - continuei eu. - Claro que não disse que tentara entrar cá dentro. Mas insinuou... Parei.

            -Sim?O quê?

            -Não. Era... bem, pessoal. Não tinha nada a ver com isto.

            - Até sabermos o que é "isto" - disse ele sensatamente -, tudo pode ter a ver com isto. Portanto, continue, se faz favor.

            - Duvido que tenha alguma importância. Não quero... Bom, está bem. Ele insinuou que teria uma ligação à sua família.         Para meu alívio, ele riu-se.

            - É mesmo dele. A criança adorada do tio-avô Fergus, adoptada presumivelmente por consideração pelo jardineiro. Já tinha ouvido essa. E outras ainda mais absurdas. Já em garoto ele costumava mentir sem qualquer motivo. Deu-lhe mais algumas indicações? Disse-lhe onde esteve desde que saiu de Moila?

- Apenas disse que esteve no estrangeiro... Ah, e que tinha dobrado o cabo Horn.

            - Só acreditarei nisso quando vir o diário de bordo - disse Neil secamente. - Vou passar revista à casa para ver se falta alguma coisa. Os advogados deram-me um inventário. Diga-me uma coisa, tem mesmo a certeza de que ele tinha uma arma?

            - Não tenho a certeza absoluta. Foi apenas a forma como levou a mão ao bolso quando você bateu à porta.

            - Vamos esperar que isso também não passasse de fachada. Bom... - Fez menção de se levantar e depois perguntou: - Quando é que disse que o seu irmão chegava?

            - Segunda-feira, espero.

            - Bem, até lá a única coisa que podemos fazer é manter os olhos abertos.

            - É isso que eu vou fazer. E você?

            - Como viu, tenho a minha tenda montada na ilha. Vou trabalhar para lá, mas venho dormir a casa. Se Ewen vir a tenda, pensará que o "Parsons" está fora do caminho. Então, seja qual for o interesse que tem na casa, irá mostrá-lo. E eu cá estarei para o apanhar.

            Levantou-se e eu segui-o. O Sol, com os seus raios oblíquos entrando pela janela aberta, revelava a ruína desbotada da sala, mas lá fora as copas das árvores estavam douradas e as abelhas faziam-se ouvir nitidamente nas roseiras. Ele dirigiu-se à porta que dava para o hall e abriu-a.

            - Antes de eu a acompanhar a casa, não quer tomar uma chávena de chá?

            - Sim, agradeço. Mas não há necessidade de me acompanhar a casa.

            - Provavelmente, não. Mas vou na mesma - afirmou alegremente. - Por aqui, então, Mistress Fenemore. Mas já me esquecia de que já esteve a explorar a minha cozinha, não é verdade? Faça favor de passar.

            DEPOIS do chá, atravessámos o que restava do jardim. O caminho estava coberto de ervas daninhas pela altura do tornozelo, e de ambos os lados os rododendros, demasiado grandes, estavam cheios de flores.

            - Vamos por um atalho - disse Neil, seguindo à minha frente por uma abertura entre os arbustos que dava para uma alameda ampla e relvada. No fim desta, por uma abertura entre as árvores e o matagal, via-se o brilho do mar e a ponta do ilhéu da broch.

Eu ia a olhar para aquilo e não para onde punha os pés. Bati com o meu dedo do pé, praguejei, tropecei e só não caí porque fui salva por uma mão forte que me agarrou acima do cotovelo.

            - Magoou-se? - Ele segurou-me enquanto eu permanecia de pé, apoiada só numa perna, para massajar o dedo.

            - Sim. Já passou. Obrigada. - Então, ele largou-me e eu olhei de relance para o chão. - Olhe, veja isto!

            Bem enfiada na erva, como se estivesse a dormir num sofá verde, estava uma figura nua. Talvez tivesse um metro e vinte de altura: uma rapariga delicadamente esculpida. Uma rapariga de mármore que já fora branca, mas que agora estava raiada de verde do musgo, olhos cegos em alvo. De certa forma, via-se que os olhos estavam toldados de lágrimas.

            - Quem é ela? - perguntei.

            - Acho que deve ser a figura de Eco. - Parou para afastar a erva e os fetos. - Estava ali. Consegue ver o plinto? O caro tio Fergus trouxe-as de Itália. Tinha muito orgulho nelas. De facto, eu acho que elas são bastante boas.

            - Gosto muito de Eco. Você disse: elas. Há mais?

            - Devia haver outra em frente a esta. Sim, aqui está.

            Empurrou para o lado uns ramos emaranhados, descobrindo um bebedouro de pedra semicheio com água escura das chuvas. Um rapaz de mármore, um jovem, ajoelhava-se sobre a água, olhando fixamente para baixo.

            - Narciso?

            - Julgo que sim - disse ele. - Não me lembro. Há mais no fim desta alameda. Mas as árvores crescem de tal forma que mal se conseguem ver.

            Neil virou-se e ficou a olhar para trás, para a casa. Com a luminosidade que estava, via-se claramente a deterioração.

            Algo no seu rosto fez-me dizer-lhe em voz baixa:

            - Mas a beleza desaparece, a beleza parte, Por muito rara, rara que seja.

            - De quem é isso?

            - É de Walter De la Mare. Deus sabe, aqui há beleza e em abundância, sem nada do que o homem construiu.

            Ele estava silencioso, continuando a olhar para a casa. Finalmente, acabou por murmurar, como se falasse com os seus botões:

            - Ainda bem que voltei. - Depois, mais animado, disse-me: - Talvez quem comprar a casa a arranje de novo.

- Vai mesmo vendê-la?

            - Que outra coisa hei-de eu fazer? Não posso viver aqui.

            - Bom, para casa de férias fica um pouco longe de Sydney.

            - Não, Sydney não. Já era para lhe ter dito. Vou para Cambridge no próximo período. Vou viver para o Emmanuel Coliege.

            - Ora, parabéns. Deve estar ansioso.

            - Claro. E agora mais do que nunca.

            Não explicou o que queria dizer com aquilo, mas continuou imediatamente a falar-me daquela nova colocação como professor, e por momentos conversámos sobre Cambridge, os lugares e as pessoas que ambos conhecíamos. Iria começar por viver na faculdade, mas afirmou que gostaria de arranjar uma casa, de preferência fora da cidade.

            Isto trouxe-nos de volta ao assunto da casa que ele realmente possuía. Parecia que, apesar de Taigh na Tuir formalmente ainda não ter sido posta à venda, já havia interessados. Um agente de Londres, aparentemente actuando em nome de alguém ansioso por possuir uma propriedade numa ilha, fizera uma boa oferta mesmo sem ver, e os advogados de Neil tinham-no aconselhado vivamente a aceitá-la. Neil seguira o conselho e já houvera uma troca de missivas, que, pelo que percebi, na Escócia eram vinculativas; serviam de contrato de promessa de compra e venda.

            - Vincula-me a mim - disse Neil -, pois o comprador, depois de ver a propriedade, pode ainda retirar a oferta.

            - Então ainda há uma possibilidade de ficar com ela?

            Neil abanou a cabeça:

            - Na realidade, não. Mesmo se eu não tivesse um emprego que me obriga a ficar no outro lado do país, este sítio não poderia fornecer-me meios de sustento. Originalmente, a família possuia quatro quintas, mas já foram todas vendidas. - Encolheu os ombros num gesto de pesar resignado. - Mas mesmo que a propriedade ainda estivesse intacta, hoje em dia mal se pode subsistir com a lavoura, e muito menos eu. Vamos?

            Quando alcançou o promontório, parou por instantes para olhar o ilhéu. As gaivotas circulavam sobre ele, e o barulho era incessante. Ouvia-se também algo diferente, e ali entre as gaivotas que voavam em círculos, como um avião de caça entre aviões comerciais, um falcão-peregrino voava a grande velocidade.

            - Se o meu irmão conseguir cá chegar - disse eu -, posso levá-lo até à ilha para ver as aves? Como se chama a ilhota, mais uma vez?

            - Eilean na Rom, que significa "Ilha das Focas". Elas vêm à costa para terem as crias. Pode ir lá, com certeza, mas tenha muito cuidado com as marés. A travessia só é segura durante mais ou menos duas horas durante a maré baixa. De qualquer forma, não precisa da minha autorização para ir até lá. Não há nenhuma lei sobre a invasão de propriedade alheia na Escócia.

            - Nem mesmo em sua casa?

            - Isso foi um prazer. - Ele sorriu. - Aliás, toda a sua visita foi um prazer para mim. Gostaria de a prolongar, convidando-a parajantar, mas... - Um gesto acabou a frase por ele: a casa vazia, a cozinha abandonada.

            - Muito bem engendrado - comentei eu num tom elogioso. - Mas não estará a arriscar-se? Bem, quero dizer, eu sou uma professora universitária. O que é que o leva a pensar que cozinho tão bem como jogo com as palavras?

            - O facto de ter vindo até Moila - disse ele alegremente. - Além disso, vi ovos, queijo e todo o tipo de coisas no armário. Posso depreender que estou convidado, Mistress Fenemore?

            - Bem, claro, e por amor de Deus pare de me lembrar a minha profissão. O meu nome é Rose. Diga-me só, se não nos tivéssemos encontrado hoje, o que é que estava a pensar fazer? Chupar ovos de gaivotas?

            - Voltar outra vez à Baía das Lontras e pedir abrigo. Que mais podia eu fazer?

            - Tendo em conta que me disse ter comprado provisões em Oban e que o seu barco deve estar a abarrotar de latas e até de garrafas...

            - Garrafas! Aí está uma boa lembrança. Vamos buscar agora umas quantas... E é capaz de ter razão acerca dos mantimentos. Janta comigo amanhã, se faz favor?

            - Em sua casa? Luzes acesas, a chaminé a deitar fumo? Esqueceu-se do seu plano, Mr. Parsons?

            - E é que esqueci mesmo. - A sua voz soou subitamente irritada.

- Está bem, vamos adiar isso para daqui a um dia ou dois. Mas agora vou acompanhá-la a casa e não tente dissuadir-me. Estou esfomeado. E, por amor de Deus, trate-me por Neil.

            - Está bem. - Era extraordinário, mas de repente parecíamos ter uma relação completamente diferente. - Está bem, eu dou-lhe de comer. Mas só se for buscar as tais garrafas e depressa. Também estou esfomeada.

            - Tinto ou branco? E quer gin ou xerez? - Estava à porta da casa dos barcos, tirando uma chave do bolso. - Não, esqueça, levo a caixa toda. E prometo ajudar a lavar a louça.

 

SÁBADO de manhã, mais outro dia bonito e fresco; tão bonito que decidi conceder a mim mesma um feriado na minha prosa e ir, logo a seguir ao pequeno-almoço, buscar os mantimentos de que precisava para o fim-de-semana. Mrs. McDougall prometera guardar-me leite e pão, que tinham chegado no barco da manhã.

            Com o céu cheio de cotovias, e as bermas da estrada apinhadas de dedaleiras e rosas-bravas, os estranhos acontecimentos de quarta-feira à noite pareciam distantes. Enquanto caminhava, ocupei-me a fazer planos para o jantar de segunda-feira, dia em que esperava já ter cá o meu irmão. Tinha convidado Neil para jantar connosco.

            Ao chegar perto da povoação, vi duas raparigas sentadas no parapeito da pequena ponte. Uma delas acenou-me, e percebi que eram Megan Lloyd e Ann Tracy, as minhas duas alunas que tinham planeado ir de férias até ali.

            Ann, a amiga de Megan, era o total oposto da rapariga galesa, que era morena e viva. Era de Norfolk, alta e bonita, com o cabelo de um louro carregado caindo em caracóis sobre os ombros. O seu rosto oval, rosado e com olhos azuis, parecia enganadoramente meigo. Na realidade, eu sabia que ela era uma rapariga inflexível, bastante mais interessada nas políticas estudantis do que seria desejável para o seu trabalho académico.

            Depois de nos termos cumprimentado, disseram-me que tinham estado uns dias numa pensão, com dormida e pequeno-almoço, em Muil e que haviam acabado de chegar a Moila e se tinham hospedado em casa de Mrs. McDougall.

            - Ela disse-nos onde ficava a sua casa. Estávamos a planear visitá-la hoje - disse Ann.

            Megan interpôs rapidamente:

            - Soubemos que estava sozinha. Mrs. McDougall contou-nos o que se passou com o seu irmão. Lamentamos imenso. Ficou muito ferido?

            - Não, não. Ele diz que não é nada. Deve chegar aqui na segunda-feira. Terei imenso gosto que venham conhecer a casa.

            - E não se preocupe - disse Megan, dando palmadinhas numa mochila pousada no parapeito ao lado dela. - Temos montanhas de comida para um piquenique, por isso não tem de nos alimentar. Vamos lá cumprimentá-la e depois vamos dar uma volta até àquela ilhota.

- Mas já se informaram sobre as marés? Isso que está aí marcado no mapa não é uma ponte, é uma passagem que está coberta a maior parte do tempo. Duvido até que consigam passar antes das duas horas. Porque é que não vão certificar-se? Julgo que vi uma tabela de marés nos Correios.

            Enquanto as raparigas examinavam a tabela das marés, fiz as minhas compras. Pelos vistos, o meu palpite sobre a maré não estivera muito longe de ser correcto.

            - Baixa-mar às quatro horas e quatro minutos - disse Ann -, e fomos avisadas para não sairmos um segundo depois das seis, senão ficamos lá retidas toda a noite. Dra. Fenemore, não quer vir connosco? Nós gostávamos imenso que viesse, e assim a Megan pode contar-nos tudo sobre a maldita broch. Anda a ler coisas sobre ela há dias.

            - Sim, venha lá! - Megan aliou o seu pedido ao de Ann.

            - Gostaria imenso. Mas porque é que não vêm agora até minha casa e almoçávamos? Depois, podíamos ir à ilha à tarde e lanchávamos lá. Mas com uma condição, que parem de tratar-me por Dra. Fenemore. Estamos a uma grande distância de Cambridge, e o meu nome é Rose.

            Partilhámos os nossos mantimentos ao almoço, as sanduíches das raparigas para o piquenique e fruta que eu comprara nessa manhã, e tudo isto comido na cozinha da minha casa, com a sua vista magnífica sobre a baía. Para nosso deleite, tivemos também uma vista magnífica dos donos originais da ilha, as lontras. Uma adulta, presumivelmente fêmea, aproximou-se da costa, seguida por duas mais jovens. A lontra adulta mergulhou, afastando-se, e os filhotes deslizaram para fora de água, para cima dos penedos cheios de ervas daninhas, a pouco mais de dez metros de distância da janela da casa, e ficaram à espera. A adulta reapareceu trazendo um peixe de tamanho razoável, que as duas crias comeram, lutando por ele entre os sargaços do mar. Depois, afastaram-se as três nadando.

            As raparigas lamentaram ter-se esquecido da máquina fotográfica.

            - Se as lontras voltarem, quando o meu irmão aqui estiver - disse eu, consolando-as -, ele tira umas fotografias para vocês. E agora, alguém quer café?

            - ALGUMAS pessoas pensam - disse Megan numa voz suave de conferencista - que as broch escocesas podem ser um prolongamento da cultura de construções megalíticas circulares do Sul, mas isto parece improvável, dado...

            - Eu falo mesmo assim? - perguntei.

Megan ficou ofegante e corou.

            - Não era... Eu não... - Depois, viu-me a rir e disse, aliviada: - Claro que não! Tenho andado a ler coisas sobre as brochs e estava a citar.

            -           Então não eram fortificações? - perguntei.. - Locais de defesa?

            - Sim. Devem ter sido o equivalente da Idade do Ferro ao castelo medieval com a povoação em volta. Pode ver-se onde deverão ter existido algumas construções fora dos muros. Então, Ann, tem cuidado!

            Ann já ia a meio de uma escada primitiva, uma série de pedras lisas salientes da superfície interior da secção mais alta da parede.

            - É bastante seguro. Anda daí.

            E Megan foi.

            Eu dirigi-me, ao longo da parte interior da parede circular, a uma entrada. Aquela secção alta do lado ocidental encontrava-se notavelmente preservada, as pedras firmemente assentes e a escada sólida. Mas, fora este bocado, a parede da broch aparecia apenas num círculo elevado de turfa, com pedras caídas aqui e ali.

            As raparigas soltavam exclamações sobre a vista. Gritei-lhes:

            - Vou ver as aves - e deixei-as a ver a paisagem.

            Pelo que Neil me contara durante o jantar da noite anterior, eu sabia que as principais colónias de aves ficavam no lado ocidental da ilha, onde a orla costeira escarpada era cortada em gargantas profundas, algumas delas a pique e outras preenchidas com pedregulhos lá caídos. Caminhei pelo cimo da ilha em direcção ao topo dos penhascos, onde nuvens de aves marinhas já voavam em círculos, gritando por me estar a aproximar.

            Eu nunca vira uma grande colónia de aves marinhas. O barulho era ensurdecedor, e o precipício, à minha frente, cheio de asas rodopiantes, era assustador. Sentei-me a observar.

            Não havia aves raras, apenas um número inacreditável e muita variedade. Cada nicho do penhasco escarpado tinha um ninho; cada cavidade da saliência mesmo abaixo de mim tinha ovos ou filhotes de gaivotas aninhados nelas. Vi gaivinas, mais pequenas, com os seus meigos olhos escuros; abaixo delas, em fendas mais profundas, os feios corvos-marinhos com os seus filhotes, ainda mais feios, exibindo o seu bico escancarado cor de damasco-brilhante e de pescoço esticado à espera de comida.

            As raparigas chegaram a seguir, sem fôlego e a rir.

            - É um bocadinho a pique, não é? - Era Ann. - Importa-se que recuemos? Habitualmente, a altura não me faz impressão, mas isto é diferente.

            Recuámos para o cimo da ilha e sentámo-nos. Megan desfez o embrulho com as bolachas e o chá para o piquenique. Os seus olhos cintilavam.

            - Que local maravilhoso! Até somos levadas a pensar que, com tantas asas, a ilha vai levantar voo!

            - Como a do Guiliver- disse Ann.

            Isto iniciou uma conversa sobre As Viagens de Guiliver,; que, apesar do meu esforço para o evitar, enveredou para o tema da ficção científica. Mas, felizmente, não houve lugar a nenhuma situação embaraçosa. Quando Megan realmente mencionou Hugh Templar, foi a propósito de Arthur C. Clarke e Ursula Le Gum. Ann nunca ouvira falar neles e recusava-se a interessar-se por um género que equiparava a contos de fadas.

            A seguir, calaram-se, deleitando-se com o calor e a vista.

            Lá longe, para oeste, avistava-se Tobermory. Ann estava a olhar para o outro lado com os binóculos. Focou-os para mais perto.

            - De quem será aquela tenda? Um local bastante estranho para acampar; tem de se estar sempre de olho nas marés.

            - É de um geólogo - informei. - Eu conheci-o.

            Ela baixou as lentes e olhou de relance para o relógio de pulso.

            - Por falar em estar de olho nas marés, são quase quatro e meia e Mrs. McDougall faz um chá muito bem servido às seis e meia. Se vamos para casa pelos campos, junto à costa... Como é que lhes chamaste, Meg?

            - O machair - respondeu Megan. - Sim. Devíamos ir por aí. Agora, era ela que tinha os binóculos. - Estes binóculos são bons, Ann. Consigo até ver aquela pensão onde ficámos em Tobermory, e...

- Espera aí um minuto. Será que...? Sim, pode ser. É o Painho, tenho a certeza.

            - O quê? - A minha voz agudizou-se de entusiasmo. - Um painho? Onde?

            - Ali. Está a ver? Aquele barco mesmo ao largo de Tobermory. Dá uma olhadela, Ann. - Passou-lhe os binóculos. - É?

            Ann levantou-se e focou.

            - Acho que é apenas um barco de pesca.

            Afundei-me na turfa.

            - Um barco. Pensei que estavam a falar de uma ave, embora fosse difícil conseguirem detectar uma coisinha daquelas... Ora, paciência. Que barco é esse de que estavam a falar, esse tal Painho?

- Ah, pertence a um fulano terrivelmente simpático que conhecemos em Muíl, mas tenho a certeza de que não é ele. - Ann baixou os binóculos.

            - Provavelmente, ainda bem, a avaliar pelo que Mrs. McDougall nos contou sobre ele - disse Megan.

            - De que é que vocês as duas estão a falar? - perguntei.

            - Nada de importância. Conhecemos um fulano noutro dia quando estávamos em Muíl. Ele tinha o tal barco chamado Painho e vivia nele. Bem, encontrámo-nos umas quantas vezes... Ele era um homem interessante, tinha viajado muito de barco.

- Ele tinha umas histórias mesmo boas - disse Ann -, e a forma como as contava... Bem, era divertido. Levou-no- a passear no barco. Ele era muitíssimo simpático, não era, Megan?

            - Bem, assim o pensávamos.

            Olhei de uma para a outra.

            - E Mrs. McDougall contou-vos alguma coisa acerca dele que vos fez mudar de ideias?

            Ann disse ponderadamente:

            - O que ela nos contou não altera o facto de ele ter montes de charme, mas parece que faz parte do seu..., bem, da sua maneira de actuar. Ela conhece-o. Ele era de Moila e desde rapaz que é uma espécie de charlatão.

            - Um ladrão e mentiroso patológico. - Gerações de metodistas galeses ressoaram na forma directa como Megan falou.

            - Mrs. McDougall ficou um pouco desconcertada quando lhe dissemos que ele estava em Muíl - disse Ann. - Pelos vistos, toda a gente esperava que ele não regressasse, porque a família dele mudou-se depois de ele ir para a prisão e pediu a Mrs. McDougall para não lhe dizer a sua morada

            - Ele foi para a prisão? - Apanhei o olhar de relance de Megan, mas Ann pareceu achar normal o meu aguçado interesse.

            - Sim. Mrs. McDougall disse que ele deve ter sido libertado mais cedo. O nome dele é Mackay, portanto, se vier a cruzar-se com ele...

            - Ela contou-vos porque é que ele foi preso?

            - Não. Pouco depois, ela desviou o assunto.

            - Depois de saber que vocês vinham ter comigo?

            Elas estavam ajuntar as coisas, preparando-se para se irem embora. Pararam e fitaram-me.

            - Bem. Sim. Acho que é capaz de ter sido isso. Ann?

- Penso que sim. Porquê? O que é que isso tem a ver consigo?

            - Nada, espero eu - comentei num tom alegre, levantando-me. - A única ligação é que os Mackays viviam em minha casa.

            - Agora que sabe que ele está fora da prisão e anda por aí, não se importa de ficar sozinha até segunda-feira? - perguntou Ann.

            - Não. Não se preocupem comigo. Se querem chegar a tempo do vosso chá muito bem servido, o melhor é irem - disse eu.

            - Não vem também? - quiseram saber.

            - Não, não vou já. Ainda tenho tempo. Venham visitar-me outra vez, está bem? E obrigada pelo chá.

            - Nós é que lhe agradecemos este dia magnífico!

            Observei-as enquanto desciam para a passagem. Depois de atravessarem, viraram-se e acenaram-me, e seguidamente deixei de as avistar.

            Aquilo que as raparigas me haviam contado dava um aspecto bastante diferente ao mistério. Teria de procurar Neil e contar-lhe que o seu antigo conhecido era agora um vilão.

            Neil dissera-me que talvez fosse trabalhar para o ilhéu durante a mudança das marés, nas rochas da ponta nordeste, mas já não me restava tempo suficiente para ir procurá-lo.

            Dirigi-me à passagem e atravessei cautelosamente - mesmo com a maré baixa as algas tornavam as rochas traiçoeiras -, depois fui até à janela da casa dos barcos e espreitei.

            Não estava lá nenhum barco. Bom, ele voltaria à noite para ficar de guarda à casa, e certamente que no dia seguinte ainda iria a tempo de o avisar. Subi pelo jardim de ervas daninhas. A medida óbvia era eu própria ir ter com Mrs. McDougall. Ela podia estar disposta a contar-me os pormenores que não dissera a Ann e a Megan.

            Fui para casa, jantei cedo e depois parti para o passeio até aos Correios.

            A LOJA estava fechada, mas a porta da casa, aberta. Não havia sinal das raparigas; deviam ter saído de novo depois do chá bem servido. Mas Mrs. McDougall estava na cozinha, sentada ao lado do fogão, fazendo malha. Deu-me as boas-vindas e indicou-me com a cabeça uma cadeira do outro lado do fogão. Um quilo de tomate, obviamente acabado de apanhar, estava em cima da mesa.

            - Já há tomate? - Na realidade, eu era bastante ignorante sobre a época do tomate ou, verdade seja dita, de qualquer outro legume.

            - São da minha irmã - disse Mrs. McDougall. - Duncan, o marido dela, passa a maior parte do tempo no jardim. Eles têm uma estufa.

Chegou ao fim de uma volta, virou a malha creme de lá Aran e recomeçou.

            Agora, mal me consigo lembrar do que é que foi dito, mas recordo-me de como a conversa prosseguiu facilmente, com a minha visita inesperada, serenamente tomada como certa, enquanto a chaleira apitava por estar quase a ferver. Depois, ela pôs de lado a malha e serviu o chá e os scones barrados com manteiga e mel. Interrogava-me sobre como havia de introduzir decentemente na conversa, que já fora desde o tomate até ao melhor tipo de lã para tweed, as minhas questões sobre Ewen Mackay.

            Não era preciso ter-me preocupado. Aquilo era a versão insular da cerimónia do chá. Ao pegar na sua chávena, sentando-se de novo na sua cadeira, Mrs. McDougall olhou para mim por cima dos óculos e disse calmamente:

            - As raparigas com certeza que lhe falaram de Ewen Mackay?

            - Sim, falaram.

            - E Archie contou-lhe que a família de Ewen viveu na sua casa. Portanto, se calhar, está preocupada, no caso de ele regressar.

            Hesitei e a seguir abanei a cabeça.

            - Nem por isso. Mas sinto que gostaria de saber um pouco mais acerca dele. Porque é que ele esteve preso, por exemplo? Foi por algo que fez aqui?

            - Não. Foi em Londres.

            - Mas os pais dele ainda viviam aqui na altura?

            - Viviam. E claro que toda a gente soube, tal como sabiam que os Mackays, pobres almas, tinham feito tudo o que podiam pelo rapaz desde que o acolheram. - Beberricou o chá. - Em parte, saíram de Moila por vergonha, depois de todas as conversas, mas também porque queriam cortar com ele de uma vez por todas. Foi sempre mau, aquele desgraçado.

            - Mrs. McDougall, de que é que ele foi acusado? - perguntei directamente.

            Ela pôs a chávena de lado e pegou de novo na malha.

            - Miss Fenemore, dizem que, se um homem fez mal e foi punido por isso, o assunto deve ficar encerrado. O homem é mau, mas passou dois anos na prisão.

            -Sim.Bem... Obrigada pelo chá, Mrs. McDougall. Foi uma conversa muito agradável, mas se quero chegar a casa... - Levantei-me.

            Ela tinha a malha no colo e fitava-me insistentemente por cima dos óculos.

- Sente-se só mais um minuto, menina. - Este tratamento era uma promoção em relação ao Miss. - Não foi só para fazer conversa que fez perguntas sobre esse malandro. Está com medo de dormir lá em casa?

            - Não. Está tudo bem. Não é isso.

            Ela inclinou a cabeça.

            - Foi o que me pareceu, a questão é outra. - Houve uns instantes de silêncio, e depois ela continuou: - Muito bem, vou contar-lhe o que me perguntou. Ele foi julgado por andar a roubar velhinhas. Ele via a necrologia nos jornais e depois ia ter com a viúva pesarosa com uma mentira qualquer. Parecia tão íntegro e inocente que elas acreditavam sempre nele. Utilizava o encanto e as mentiras para enganar as velhinhas. Uma delas tinha oitenta e cinco anos, e ele roubou-lhe as magras poupanças que ela fizera durante toda a vida. Percebe agora o que eu quis dizer quando falei em vergonha?

            - Sim, compreendo - respondi, embrenhada em pensamentos.

            Deveria contar-lhe que Ewen Mackay já estivera lá em casa? Era possível que a sua vinda a Moila tivesse sido animada pela morte de Mrs. Hamilton. Não sabendo ainda da partida dos pais ao sair da prisão, teria vindo directamente para Moila, pensando ir para casa. E a seguir? Não havia nenhuma viúva idosa para vigarizar, mas havia uma casa vazia que ele conhecia bem. Ele devia saber o que lá havia de valor. Por isso, não era preciso vigarizar; apenas um simples roubo? Mas a sorte fugira-lhe, pois o novo proprietário não era uma senhora de idade, mas um homem novo bastante bem constituído que ali chegara antes dele e o conhecia.

            E Neil sabia que, se alguém em Moila viesse a saber do seu regresso, a notícia chegaria de certeza a Ewen Mackay. Por isso, eu não queria contar a Mrs. McDougall a visita nocturna de Ewen, uma vez que não podia tranquilizá-la dizendo-lhe que Neil também lá estava.

            Tinha de falar primeiro com Neil. Amanhã. Voltei a agradecer a Mrs. McDougall e dirigi-me ao telefone para ligar a Crispin, que me disse que ia apanhar o barco de segunda-feira, tal como planeado. Estava tão bem-disposto que percebi que estava tudo bem.

 

ACORDEI na manhã seguinte, domingo, e vi uma cascata de gotas de água perseguindo-se umas às outras pela janela abaixo. Quando terminei o pequeno-almoço, a chuva já abrandara, mas ainda era suficiente para manter em casa quem não tivesse necessidade de sair.

            Eu decidi que não tinha necessidade de sair, pensando que, se Neil já estava alerta à espera de Ewen, eu podia esperar que a tempestade passasse. Não havia mais nada a fazer, a não ser sentar-me à mesa a escrever.

            Pus-me a escrever. Mais ou menos um ano depois - ou talvez tenha sido uma hora -, o livro chegou a uma fase em que eu conseguia entrar no meu país imaginário e ver coisas que não criara conscientemente, ouvia as pessoas e observava os seus movimentos, como se tudo se passasse fora de mim.

            Saí daquele imaginário e vi a janela seca e o sol brilhando num céu azul e límpido. Fiz um termo de chá, que enfiei no bolso do casaco juntamente com um pacote de bolachas, e parti pelo caminho do penhasco.

            Eram 2 e 30 da tarde no meu relógio quando cheguei a casa dos Hamiltons. Fui até à porta das traseiras e bati. A pancada ressoou com o inequívoco barulho oco de vazio. Talvez Neil estivesse a trabalhar na ilha.

            Contornei a casa e olhei lá para dentro pela janela da sala de estar: não estava lá ninguém, claro. A casa parecia estar na mesma. Neil devia estar a esforçar-se imenso para não deixar sinais da sua presença. Por qualquer razão, aquele facto perturbava-me e pensei até que toda e qualquer ideia de um mistério naquele sítio era errada e irritante. O que quer que fosse que Ewen Mackay tivesse em mente, não se devia dar-lhe importância. Ele já não fazia parte daquele lugar, talvez nem nunca tivesse feito.

            Refreei os meus pensamentos, que não deviam ter lugar ali. Moila, a minha torre de marfim, era demasiado encantadora. Eram as minhas férias, o meu irmão chegava no dia seguinte e tudo voltaria novamente ao normal.

            A casa dos barcos estava vazia, com as portas para o mar abertas para trás. Caminhei até ao fundo do molhe e olhei para a ilha do outro lado: não havia qualquer sinal de vida, à excepção das aves. Olhei de relance para o relógio. A maré continuava a baixar e ainda devia ser seguro atravessar durante mais umas três horas. Atravessei.

            SUBI a encosta até onde a tenda de Neil estava empoleirada. Pus-me à escuta: não se ouvia o barulho do martelo de geólogo. Segui então para a broch, para os degraus de pedra que as raparigas tinham subido na véspera.

Os degraus conduziam ao cimo, em ruínas, da torre. Dali, via até lá abaixo, ao sítio em que Neil me dissera que queria trabalhar. Não estava lá nenhum barco. Desci cuidadosamente as escadas, fazendo tenção de me deitar ao sol na base do muro a beber o meu chá, mas havia um cheiro estranho, que parecia de um produto de limpeza, vindo da parede onde crescia uma espécie de trepadeira. Para além disso, os mosquitos andavam à solta. Afastei-me da broch e dirigi-me para o lado sul da ilha. Ali, a terra inclinava-se gradualmente até ao mar em terraços de rocha compridos e planos, e a brisa ainda se fazia sentir o suficiente para manter os mosquitos ao longe. Sentei-me para piquenicar.

            O barulho das aves e do mar, o ar deslocando-se docemente e os odores do tomilho e da urze, tudo se combinava, destilando algo muito intenso. Era o tipo de altura e lugar onde se podia esperar ter-se uma ideia, o brotar de um poema jorrado da calma e da beleza. Mas os sentidos puros e simples o calor do Sol, o odor do ar, o prazer mundano do chá e dos biscoitos apoderaram-se de mim de tal forma que apenas conseguia sentir e não pensar. Uma olhadela para o mar lá em baixo disse-me que a maré continuava baixa, embora presumivelmente já tivesse começado a subir. O meu relógio mostrava que eram apenas 5 e 10. Inclinei-me para trás, fechei os olhos e deixei que o sol me envolvesse.

            Gradualmente, fui-me apercebendo de um barulho estranho e suave que enchia o ar. Era como que o barulho do mar e do vento juntos, cantando em lamúria, lastimando-se numa voz não propriamente humana, era bizarro, extraterreno. Abri os olhos e sentei-me para ouvir.

            Ensina-me a ouvir as sereias a cantar... O que é maravilhoso na boa poesia é que consegue introduzir-se em qualquer pensamento ou experiência. Então, devido ao ressoar do verso do poema de John Donne na minha cabeça, identifiquei o barulho. Neil dissera-me que aquela era a Eilean na Rom, a Ilha das Focas. Talvez as focas tivessem chegado com a maré da tarde e estivessem a cantar. Não era nada de admirar que, ao ouvirem aquele som invulgar saindo do nevoeiro, quase humano, mas na realidade não o sendo, os antigos marinheiros o atribuíssem às sereias.

            Rastejei para a frente em direcção à esquina da parede. Finalmente, ultrapassei a crista de uma elevação no terreno, e lá em baixo estendiam-se as rochas inclinadas, e, sim, lá estavam as sereias, os seus corpos indolentes e satisfeitos, os olhos fechados, apreciando a tarde, precisamente como eu própria fizera.

            Eram horas de me ir embora. Relutantemente, recuei aos poucos e poucos e levantei-me. Voltei a olhar para o relógio. 5 e 10.

Já eram 5 e 10 quando vira as horas pela última vez.

            Levei o relógio ao ouvido. Nem um tique. Agora, pensando nisso, lembro-me de ter achado que percorrera num bom tempo o caminho desde casa e que passara um grande bocado de ociosidade na ilha. O meu relógio devia ter trabalhado muito lentamente durante todo o dia até que parara.

            Corri.

            Ainda conseguia ver a passagem. Estava meia fora de água. Mas a maré, dissera-me Neil, "aproxima-se como um cavalo a galope".

            E assim foi. Mesmo enquanto eu para lá me dirigia a correr, o nível do mar pareceu subir uns trinta centímetros ou mais.

            Hesitei. O turbilhão das ondas parecia perigoso. Então, veio a onda seguinte e a passagem desapareceu. Com que então era assim!

            Durante uns minutos, fiquei cheia de raiva, pensando na minha casa, no jantar e na lareira acolhedora. Depois, a raiva desapareceu. Outras imagens tomaram o lugar destas: a tenda de Neil perto da broch e a possibilidade não só de me abrigar durante a noite, mas também de poder ver, desse ponto de observação, Neil regressar no seu barco. Se conseguisse chamar-lhe a atenção, certamente que ele levaria o barco até ali para me ir buscar.

            Percorri o caminho de volta ao acampamento. Dentro daquela tendazinha resistente, havia um eficiente fogão a gás de campismo, uma chaleira, fósforos, pacotes de chá e de leite em pó. Encontrei latas de feijão e de sardinhas e umas tostas. Ainda havia um saco-cama. Não tinha muito de que me queixar.

            As focas cantaram até o Sol se pôr, depois caíram no silêncio. Gradualmente, as aves foram-se silenciando também. Apenas a maré que subia enchia a média luz da noite das Terras Altas com o seu barulho frio. E não apareceu nenhum barco. Acendi o fogão a gás e comi feijões, chá e bolachas. Depois, meti-me no saco-cama.

            TINHA adormecido com o barulho do mar envolvendo a noite com uma canção suave. O que me acordou foi a terra a cantar.

            Era um barulho tão estranho como o canto das sereias entoado pelas focas, um lamento suave e lento pontuado por pequenos sons agudos como gritos; era como uma linguagem, uma comunicação zunindo ao longo de um fio eléctrico enterrado no chão. Deslizei para fora do saco-cama e corri o fecho da tenda, abrindo-a. Pus a cabeça de fora e olhei em volta.

à média luz, o céu estava cintilante de estrelas. A meia-lua, junto à linha do horizonte, irradiava pouca luz. O meu mundo, a ilha, estava despovoado de cores, mas todas as formas eram nítidas. Mais fraca, mas persistente, surgia aquela canção subterrânea, semelhante a um murmúrio. Então, subitamente, apercebi-me de que o céu se encontrava cheio de movimento, pequenas formas sombrias voando baixo, deslocando-se em grande número entre a broch e o mar.

            Os painhos, ou calca-mares. As frágeis e minúsculas aves pretas, nocturnas e solitárias, que vêm a terra fazer os ninhos, mas que passam a maior parte das suas vidas voando rente às ondas do mar. Deviam ter os ninhos nas tocas dos coelhos, debaixo da turfa, onde a tenda estava montada, e na broch, onde o singular cheiro químico que eu notara não provinha das plantas, mas dos buracos onde as aves chocavam os seus ovos.

            Se mais alguma coisa fosse necessária para coroar o meu dia, era aquilo. Estar ali sozinha, no crepúsculo das Terras Altas, a testemunhar o voo daquelas maravilhosas criaturas, tão tímidas, tão raramente avistadas... Estava já de pé fora da tenda. Não me ligaram qualquer importância; eram criaturas da noite, do ar e do oceano, e eu era apenas um pedaço de terra para ser contornado, como um penedo ou um cepo.

            Regressei à realidade terrena devido a um arrepio que me percorreu todo o corpo. Algures durante a madrugada, a maré devia mudar. Com certeza que em breve seria possível escapar-me da ilha e voltar para minha casa. Dei uns passos cautelosos em frente, mas mesmo esticando o pescoço não conseguia ver em que estado estava a passagem.

            Depois, repentinamente, ouvi qualquer coisa: o motor de um barco produzindo um ruído surdo, deslizando suavemente algures do outro lado do promontório para leste. Neil voltando para vigiar a sua casa. E vindo de onde? Da pesca?

            Naquele momento, aquilo só me sugeriu a possibilidade de ter peixe fresco para o pequeno-almoço

            Mergulhei de novo para dentro da tenda, enfiei atabalhoadamente o blusão e os sapatos, voltei a sair e fechei a tenda. Depois, dirigi-me à praia, à passagem.

            Estava quase a descoberto. Mesmo que não conseguisse chamar a atenção de Neil, provavelmente poderia fazer a travessia muito em breve. Percebi que já não ouvia o motor do barco. Esforçava-me por ouvi-lo no meio do marulhar das ondas quando vi uma luz.

            Não era a luz de posição de um barco. Era a luz pequena e esquiva de uma lanterna eléctrica vinda do caminho que contornava o promontório. O caminho da minha casa. Lembrei-me da pequena enseada conhecida por Halfway House, uma enseada onde, com quaisquer condições atmosféricas, um barco podia atracar em segurança e o seu dono seguir dali para Taigh na Tuir. Dono esse que não queria, ou não se atrevia, a levar o seu barco até ao molhe? Então, não era Neil. Era outra pessoa qualquer que não queria dar a conhecer a sua visita.

            O peixe fresco desapareceu da mesa do pequeno-almoço, e o mistério regressou num ápice. Era Ewen Mackay. Eu reconheci-o, delineado contra o fundo claro da praia, aproximando-se rapidamente pela beira-mar da casa dos barcos.

            Sentei-me na areia, no meio da escuridão, protegida por um penedo. Ele estava na casa dos barcos. Um lampejo da lanterna, como se estivesse a verificar que não havia lá nenhum barco; depois, virou-se para a passagem e levou aos olhos binóculos de infravermelhos. Fiquei petrificada sob o abrigo da minha rocha, mas os binóculos apontavam para mais alto, para a tenda. Continuei sentada, muito quieta, até que, aparentemente satisfeito, ele se virou e em grandes passadas se dirigiu à Casa Grande.

            Pensei que, mesmo que a passagem ficasse desimpedida, eu não ia, de maneira nenhuma, seguir Ewen para espiar as suas actividades na casa. Se ele deixara o barco na enseada, antes do cabo, teria de regressar pelo mesmo caminho. Aconcheguei-me dentro do blusão e esperei.

            PARECEU passar muito tempo até ele voltar. A água destapara a passagem, e estava visivelmente mais claro quando ele transpôs o arco de pedra do portão do jardim. Ao ombro levava o que parecia ser um saco bojudo devido a qualquer coisa que tinha dentro. Dirigiu-se apressadamente à casa dos barcos, já não tinha necessidade da lanterna e desapareceu atrás dela. Quase de imediato, reapareceu sem o saco, partindo de novo para a casa.

            Levantei-me para ver melhor o estado da passagem e fiz uns cálculos rápidos. Embora fosse agora possível atravessar, as pedras ainda estavam molhadas e com aquela luz fraca seria perigoso. Era uma decisão fácil de tomar. Sensatamente, decidi esperar para ver.

            E ainda bem que o fiz. Ele regressou poucos minutos depois. Transportava um objecto plano e quadrado que parecia pesado. Depois de também o ter deixado atrás da casa dos barcos, apareceu, esticando os braços de alívio enquanto inspeccionava mais uma vez a baía e os declives sombrios da ilha da broch.

            Parecia ter acabado por agora. Ele desapareceu por detrás da casa dos barcos, e quando o vi reaparecer, dirigia-se rapidamente para o caminho do penhasco com o saco pendurado ao ombro. Fiquei a observá-lo a contornar a ponta do cabo e a desaparecer de vista; depois, corri para a passagem.

            Atravessei sem problemas e segundos depois encontrava-me nas traseiras da casa dos barcos. O objecto quadrangular estava lá, encostado à parede. Era um quadro: um retrato a óleo com uma pesada moldura trabalhada. A figura de um homem, não jovem, em trajes escoceses regionais, com uma espingarda ao ombro e um spaniel logo atrás. Não percebia o suficiente de pintura para sequer tentar adivinhar-lhe o valor, mas aparentemente valia o trabalho e risco que Ewen Mackay correra. Diverti-me com a ideia de eu própria o levar e esconder algures, mas era bastante pesado para o transportar e não havia nenhum lugar onde o pudesse esconder que fosse mais perto do que a Casa. Além disso, tal atitude dificilmente seria útil; apenas iria alertá-lo e fazê-lo procurar não só o quadro, mas quem o levara.

            De qualquer das formas, não era necessário. Respirei de alívio ao ouvir o motor de outro barco reduzindo a velocidade, até restar apenas um murmúrio à medida que ele entrava na baía.

            Era o barco de Neil, e Neil em pessoa estava de pé, pronto para saltar para fora do barco, enquanto atracava de frente ao lado da plataforma de desembarque.

            Corri para ele, tropeçando nas pedras irregulares do molhe. Ele saltou do barco e agarrou-me no braço para me segurar.

            - Rose? Rose! Mas o que está a fazer aqui?

            - Chiu! Ele esteve outra vez aqui. Vi-o ir lá acima, até à Casa...

            - Tenha calma. Está a tremer.

            - Eu estou bem. Eo Ewen Mackay. Eu vi-o. Anda a tirar coisas da Casa. Trouxe-as aqui para baixo e depois foi-se embora com elas. Ele vai voltar

            - Ouviu algum barco?

            - Ouvi. Ele deve tê-lo deixado naquela enseada do lado de lá do cabo, Halfway Ilouse.

            - Viu-o mesmo a assaltar a casa?

            - Não. Eu estava ali na ilha. Vi-o inspeccionar a casa dos barcos e depois, quando viu que você não estava, subiu em direcção à Casa. Voltou primeiro com um saco parecido com a sua mochila e depois com um quadro. Largou-o atrás da casa dos barcos e a seguir foi-se embora com o saco.

            - Espere lá. Um quadro?

- Sim. Um grande. Está ali, atrás da casa dos barcos.

            - Não há nenhum quadro na Casa que valha a pena roubar. Vamos lá ver.

            Amarrou rapidamente o barco ao molhe, e dirigimo-nos às traseiras da casa dos barcos.

            - Meu Deus! Éo meu tio-avô Fergus.

            - É valioso?

            - Felizmente, não. Nem sequer é bom, embora isto seja mesmo do Ewen. A tia Emily adorava o quadro. Costumava dizer que era a melhor coisa que havia lá em casa. - Olhava em volta enquanto falava. - O saco. Será que ele levava armas lá dentro?

            - Acho que não. Armas? Não me diga...

            - Sim. - O seu tom de voz era ríspido. - As espingardas do tio Fergus desapareceram. Fui ao continente fazer queixa à Polícia. Mas se ele realmente as levou, deve tê-lo feito quando esteve aqui antes.

            - Podem estar no barco dele, não podem? - Aventei com premência. - Bom, ele tirou este quadro esta noite, e isso quer dizer que ele vai voltar a buscá-lo

            Parei. No meio do silêncio, ouvimos nitidamente um motor a pegar.

            Neil agarrou-me de novo no braço.

            - Depressa. Entre. Ele não volta. Vai a fugir. Deve ter-me ouvido.

            De repente, eu estava dentro do barco, com Neil a fazê-lo recuar, dando meia volta, até ficar aproado ao mar. Com a aceleração rápida do motor, o barco deu um salto para diante e depois entrou num andamento suave e veloz.

            - Ei-lo ali. Não, acolá! - gritei acima do barulho do motor, apontando para o local onde se via o barco cinzento acelerando.

            Neil abanou a cabeça, gesto que não consegui perceber, por isso continuei com um olho em Neil, para o caso de ter de o ajudar, e o outro no Painho.

            Os dois barcos corriam ao longo da costa, quase em rumos paralelos, com Ewen a aproximar-se, seguindo a linha recortada da costa, enquanto o nosso barco - que vim a saber mais tarde chamar-se Lontra do Mar - ia num rumo a direito, mais por fora. Quando o matreiro do Ewen, por duas vezes, virou em direcção ao mar alto, Neil, aumentando ligeiramente a velocidade, manteve o que parecia ser um rumo de colisão. A ameaça foi suficiente para fazer que o Painho virasse para o seu rumo original.

            Estávamos quase a chegar à Baía das Lontras. O cabo avolumava-se à nossa frente, sob a luz crescente do dia. Eu via, pela ponta do cabo e numa certa extensão para fora, que as ondas rebentavam, brancas, contra as rochas pontiagudas semi-submersas. Ewen abrandou para passar cautelosamente entre elas, e num certo ponto chegou a desaparecer entre uma rocha alta isolada e os penhascos escarpados da costa. Então, uma vez transposto o cabo, Ewen reduziu a velocidade e entrou cálmamente na Baía das Lontras, dirigindo-se ao molhe.

            Virei-me para Neil, surpreendida, e vi-o apontar para uma nuvem de espuma feita por uma lancha de aspecto potente que vinha velozmente na nossa direcção. Tinha um aspecto inequivocamente oficial.

            Ewen Mackay estava ainda a amarrar o barco quando atracámos suavemente ao lado do Painho.

            - Ora viva, Miss Fenemore! - disse Ewen com ar de surpresa e de deleite. - Então, andava a passear com Mr. Parsons? - Com o cabelo escuro desordenado pelo vento, faces coradas e aqueles olhos de um azul-cintilante, estava muito atraente. A sua expressão alterou-se ao virar-se para Neil. - Ou será antes Mr. Hamilton? Ah, sim, levei um certo tempo a reconhecê-lo, mas acabei por lá chegar. Parece que já se esqueceu de como manobrar um barco, Neil. Que diabo estava você a fazer? Podia ter-me abalroado lá atrás e depois tinha de responder a umas quantas perguntas!

            - Eu tenho uma a fazer. - Neil nem tentou falar numa voz normal. O seu tom era severo e totalmente hostil. - Onde estão as espingardas?

            - ESPINGARDAS? - perguntou Ewen, surpreendido. - Que espingardas?

            Isto passou-se um pouco mais tarde, e o cenário transferira-se para a sala de estar da minha casa, a qual, comigo, os dois homens, Neil e Ewen, e dois corpulentos agentes da Polícia, estava bastante apinhada. Ewen mostrara uma surpresa genuína quando viu que a lancha que atracava junto do cais não era da Polícia, mas da Guarda Fiscal, que anunciou a sua intenção de revistar o Painho enquanto os agentes da Polícia também tinham "umas perguntas a fazer". Ewen ainda protestou com o argumento de ser um prisioneiro recém-libertado: iria agora ser perseguido para onde quer que fosse e nem sequer podia fazer uma visita à sua antiga casa, na esperança de saber para onde se tinham mudado os seus pais? E continuou naquela voz agradável, com olhos sinceros, apelando à sensatez e à demência de todos os presentes.

            Os polícias, longe de o estarem a perseguir, disseram que estavam a agir de acordo com uma informação e que gostariam de revistar o barco dele. Ele não tinha quaisquer objecções? Então deixariam isso ao pessoal da Guarda Fiscal enquanto falavam com Mr. Mackay em minha casa.

            Depois, um deles perguntou-me:

            - Permite-nos, Miss Fenemore? Julgo que alugou a casa, não é assim?

            Respondi que sim e que seriam bem-vindos. Ele agradeceu-me e apresentou-se como sendo o sargento Fraser, e o seu colega era o cabo Campbell.

            Segui à frente deles. Ewen avançou com um encolher de ombros e um sorriso, logo seguido pelos dois policias. Atrás, vinha Neil, que fechou a porta.

            - De acordo com uma informação? - perguntou Ewen, olhando de um polícia para o outro. - De quem e sobre o quê? E porquê a Guarda Fiscal? Afinal, de que é que se trata?

            O sargento Fraser consultou um bloco-notas.

            - Alugou a embarcação Painho no dia quinze de Junho a um indivíduo chamado Hector McGillivray na ilha de Faarsay?

            - Sim. O que é que isso tem?

            - Temos motivos que nos levam a crer que esse barco esteve envolvido em tráfico ilegal - explicou o sargento.

            - Tráfico ilegal? - Ewen parecia ter sido apanhado de surpresa; depois, deu uma gargalhada. - Quer dizer que o velho Hector anda de novo a pescar salmão furtivamente? E o que é que isso tem a ver comigo?

            O cabo estava sentado à mesa da cozinha tomando notas.

            Salmão, não - disse o sargento. - Não. Isso não traria a Guarda Fiscal aqui. Eles estão à procura de droga.

            - Droga? - Ewen ficou branco como a cal e endireitou-se na cadeira com um salto. - O quê?! Estão a dizer-me que aquele louco do Hector me impingiu um barco que... - Parou abruptamente.

            Os dois polícias observavam-no, impassíveis. Ewen exibiu um ligeiro sorriso de escárnio.

            - Não admira que eu tenha conseguido alugar o maldito barco tão barato - comentou. - Bem, no que me diz respeito, fui ter com o Hector simplesmente porque o conhecia, e utilizei o barco para vir até aqui visitar a minha gente. Por isso, a Guarda Fiscal pode revistar o que quiser que não vai encontrar nada.

            O sargento Fraser informou:

            - A história do barco é assunto dos agentes da Guarda Fiscal, eles falarão consigo depois. Nós temos o nosso próprio inquérito para lhe fazer. A lancha deu-nos uma boleia para nos poupar o tempo de espera pelo barco da manhã, foi só isso. Mas a busca deles ao seu barco também nos vai poupar tempo.

            - Busca de quê? Já que não estão à procura de heroína, o que é que julgam que eu andei a transportar pelas ilhas?

            - Temos motivos para crer que o senhor assaltou recentemente Taigh na Tuir, a casa pertencente a Mr. Hamilton, e que sabe do paradeiro de duas armas valiosas.

            - Armas? - repetiu Ewen inocentemente. - Que armas? E quem é que vos deu motivos para pensarem?...

            - Fui eu - esclareceu Neil.

            O choque na cara de Ewen parecia tão genuíno que, se eu não soubesse, teria pensado que era verdadeiro. Ele fitou Neil a direito, com os olhos esbugalhados, ofendidos, incrédulos; os de Neil estavam empedernidos, mas eu percebi que ele estava a odiar a situação. E de facto eu também, por isso retirei-me para a copa para encher a chaleira de água para o chá.

            - Muito bem - disse Ewen, dirigindo-se a Neil. - Então, quando é que eu assaltei a casa e porque diabo pensa que eu sei alguma coisa de umas armas? - Recostou-se para trás na cadeira, aparentemente já descontraído, e cruzou as pernas.

            - Já contei ao sargento Fraser o que é que aconteceu. Eu estava em casa na noite em que você regressou e vi-o a forçar ajanela e depois a ir às traseiras, até à janela da cozinha, encontrando-a também fechada. Provavelmente, o facto deixou-o perturbado, por isso foi-se embora pelo caminho do penhasco para a Baía das Lontras. Os advogados tinham-me dito que a casa fora alugada a uma rapariga. Pensei que ela podia estar consigo, mas, se ela fosse apenas uma simples turista, tinha de me certificar de que estava bem. Por isso, segui-o até aqui. Você dissera à Dra. Fenemore que pensava que os seus pais ainda cá viviam. Isso até podia ser verdade, mas de momento é irrelevante.

            - Eu digo-lhe o que é irrelevante. - Ewen deixava agora a raiva emergir. - Toda aquela conversa do assalto. Tentei forçar as janelas. E porque não? Fora bem recebido naquela casa durante tanto tempo como você.

            - Só que aquela não fora a sua primeira visita desde a morte da minha tia-avó - disse Neil. - Não sei quando ocorreu a primeira, mas deve ter sido bastante recente.

            O sargento acenou com a cabeça afirmativamente e disse:

            - Sabemos que alugou um barco logo a seguir à sua saída da prisão e chegada a Oban. É possível que tenha vindo até Moila, e é claro que isso não tinha nada de suspeito. Mas então Mr. Hamilton descobriu o desaparecimento das tais armas valiosas e comunicou-o à Polícia, assim como a sua tentativa de entrar na casa quarta-feira à noite. Daí a nossa investigação...

            - Que não vos levará a lado nenhum - disse Ewen. - Não sabem rigorosamente nada. E quanto às armas que supostamente terão desaparecido de Taigh na Tuir, posso dizer-lhes tudo o que quiserem saber sobre isso. Quando o coronel era vivo, levava-me sempre à caça. Ele tinha umas quantas espingardas, meia dúzia, na sala de armas. Mrs. Hamilton odiava-as. - Olhou para Neil. - E você também. Eu estava cá quando o coronel morreu. As armas foram vendidas. Tanto quanto sei, a sala de armas está vazia desde essa altura.

            Neil respondeu-lhe:

            - Não mencionou as Purdeys.

            - Purdeys?

            - Não se ponha a fingir que não sabia da existência delas. As espingardas preferidas do meu tio, as especiais, feitas para o pai dele em 1906, na grande época das caçadas. Ele caçou uma vez com orei Eduardo VII. Você sabia isso. Era uma das histórias que ele gostava de contar. Se as espingardas eram valiosas quando o tio Fergus morreu, agora

o seu valor é astronómico.

            - Mas o que é que essas têm de especial? Claro que me lembro delas. Foram vendidas com as outras, não foram?

            - Não. A minha tia-avó não as vendeu. O marido pedira-lhe para as manter na família, mas ela não quis incomodar-se com as inspecções exigidas pela Lei de Uso e Porte de Armas de Caça. Por isso, guardou simplesmente o par de Purdeys numa arca no sótão, mas incluiu-as no testamento e disse-nos onde deveríamos procurá-las. Eu fui à procura delas ontem e encontrei a arca vazia. Por isso, fui ao continente dar parte à Polícia. Estabelecemos contacto com os advogados, os armeiros e as casas de leilões. Não há vestígios delas, e, pela nossa descrição, a leiloeira Christie cotou-as em cerca de trinta mil libras.

            - E então? - Ewen continuava com um ar animado.

            - E então você podia ter sabido quais eram os planos do meu tio para as espingardas preferidas dele. Juntando isso às suas visitas à casa e ao desaparecimento das espingardas

            Ewen apelou para o sargento:

            - Está a ouvir isto? E chama a isto motivos... motivos de suspeita?

            O sargento não respondeu, pois nessa mesma altura a porta abriu-se e um dos guardas-fiscais entrou. Os seus olhos procuraram os do sargento e a seguir ele abanou a cabeça.

            - Nada. Não há nada naquele barco que não devesse lá estar.

            Parecia ser o momento indicado para uma mudança de acto. Levei um tabuleiro até à mesa, junto àjanela. Lá fora já era dia claro.

            - Alguém quer tomar um chá?

 

SERVI o chá a todos e depois sentei-me. Ewen, sentado, beberricava exactamente como se fosse um encontro normal para tomar chá. Para ele, até ali estava tudo bem: muito palavreado, mas nenhuma prova.

            O sargento estava a falar com Neil.

            - Então, o senhor poderia relatar-nos o que aconteceu ontem à noite depois de ter regressado a Moila? Tem algum motivo, para além da suspeita que já nos contou, para ter perseguido Mr. Mackay de uma forma perigosa como parece ter feito?

            Vi Ewen a sorrir para dentro da sua chávena e intervim:

            - Sargento, eu posso contar o que aconteceu antes de Mr. Hamilton cá chegar?

            Ele ficou surpreendido.

            -           Então, a senhora não estava no continente com Mr. Hamilton?

            -           Não, não estava. Passei a noite na ilha onde fica a broch.

Pousei a minha chávena na mesa.

            O cabo escrevia diligentemente. Não olhei para Ewen, mas apercebi-me de que ele ficara muito quieto. Aclarei a voz e continuei:

            -           Fui até à casa grande depois do almoço, pensando ver Mr. Hamilton. Ele não estava lá e a casa dos barcos encontrava-se vazia. Por isso, pressupus que saíra de barco. Queria visitar a ilha, a Ilha das Focas, porque Mr. Hamilton me contara que havia mesmo focas lá. Bom, atravessei e observei as focas. Um pouco mais tarde, descobri que o meu relógio tinha parado e por isso calculara mal a hora da maré. Quando percebi que não podia atravessar a passagem, dirigi-me à tenda de Mr. Hamilton e fiz o meu jantar. - Olhei para Neil. - Achei que não se iria importar.

            -           Claro que não. Fez muito bem.

            - E onde é que isso nos leva? - perguntou Ewen. O sargento ignorou-o.

            -           Continue, se faz favor, Miss Fenemore.

-           Fiquei com esperança de que Mr. Hamilton regressasse no seu barco e me levasse da ilha, mas ele não apareceu, por isso fui dormir. Acordei um pouco mais tarde e ouvi o motor de um barco. É claro que pensei que fosse Mr. Hamilton, por isso desci até à passagem. Foi então que vi Mr. Mackay no caminho do penhasco descendo até ao molhe.

            O silêncio era total. Nunca eu tivera uma classe tão atenta. O cabo falou:

            -           Tem a certeza de que era Mr. Mackay?

            -           Absoluta. O canal não é largo e eu estava na extremidade da passagem, e ele veio mesmo até cá abaixo espreitar para a casa dos barcos. Julgo que para verificar se estava vazia.

            -           Sargento, é possível identificar alguém àquela hora e com aquela luminosidade? - perguntou Ewen bruscamente.

            - Se fosse a si, ficava calado e deixava a senhora acabar - respondeu o sargento. - Continue, miss. Esqueça o que julga, diga-nos apenas o que viu.

            Respirei fundo. Contar a minha história naquela atmosfera pesada era como nadar contra uma corrente forte.

            -           Vi Mr. Mackay pegar nuns binóculos e olhar para a tenda. Depois, transpôs o portão do jardim e seguiu pelo caminho que conduz à Casa.

            - Conseguia ver a Casa de onde estava? - indagou o sargento.

            - Não - respondi, e ele inclinou a cabeça afirmativamente. Continuei a custo: - Um bocado depois, creio que cerca de meia hora, ele voltou trazendo ao ombro um saco, que era mais ou menos do tamanho de uma mochila e parecia bastante pesado. Deixou-o atrás da casa dos barcos e regressou à... ou seja, voltou a transpor o portão do jardim.

            - Ah! - exclamou Ewen. - Então, deixámo-nos de suposições?

            As palavras eram de troça, mas quando cruzei os meus olhos com os dele, vi que neles não havia troça. Havia, sim, ansiedade, apelo, a percepção de que aqui, finalmente, havia algo que podia ser confirmado: o quadro do tio-avô Fergus encostado à parede das traseiras da casa dos barcos, à espera de confirmar a minha história e de lançar a Polícia no encalço do saco. Lembrei-me de quando o Painho desaparecera por detrás daquela grande rocha isolada, muito perto da costa. Teria ele atirado para lá o saco para o ir buscar posteriormente?

            No momento em que cruzei o meu olhar com o de Ewen, recordei tudo o que vira e ouvira sobre ele desde a noite de quarta-feira. Era exactamente o tipo de situação na qual ele se apoiara anteriormente: a bondade das outras pessoas e a pena eram, para ele, armas. A tia-avó Emily era apenas mais uma viúva para ele roubar, e estava agora nas minhas mãos não o deixar escapar.

            - Quando regressou - disse eu -, levava um grande quadro a óleo que deixou também atrás da casa dos barcos. Depois, subiu pelo caminho do penhasco com o saco. O barco de Neil chegou quase imediatamente e, quando ele ouviu o arranque do motor de Ewen, foi no seu encalço. A mochila, bem... nada, é suposição. Mas o quadro ainda lá está. - Respirei fundo e concluí: - É tudo.

            - Bom - disse Ewen -, espero bem que seja. - Levantou-se e estendeu os braços num gesto conscientemente teatral. - Desisto. Fui realmente à casa Hamilton e tirei, de facto, um quadro. Admito-o. Mas não foi roubo. Era um retrato do coronel Hamilton, e acho que me era devido. O coronel disse sempre que eu era como um filho para ele, e Mrs. Hamilton disse que, quando ela desaparecesse, eu podia ficar com aquele quadro para o recordar.

            - Ela nunca diria tal coisa. Ela não gostava de si e não confiava em si - disse Neil num tom colérico.

            - E como é que sabe isso? Você nunca cá estava. Só vinha nas férias da escola, portanto, como é que pode saber alguma coisa sobre o que eles sentiam por mim?

            - Sei imensas coisas.

            Subitamente, brotara entre os dois homens uma verdadeira torrente de antagonismo.

            - Então, é capaz de me dizer porque é que eu havia de me dar ao trabalho e risco, sim, porque, admito, fi-lo enquanto você não estava, visto que já sabia que era esta atitude que iria tomar. Porque é que eu quereria o quadro se não me tivesse sido prometido e se ele não tivesse sido um pai para mim?

            - Provavelmente - disse Neil num tom mais desagradável do que eu imaginara que ele fosse capaz -, porque ouviu a minha tia dizer que era a coisa mais valiosa que havia lá em casa.

            - E era? - perguntou o sargento.

            - Valiosa? Meu Deus, não. Mas era tal e qual o meu tio, e por isso ela valorizava-o.

            Subitamente, senti que não aguentava mais. Levantei-me.

            - Sargento Fraser, se me dá licença. Foi uma noite muito longa, e eu quero tomar banho e mudar de roupa. Claro que pode ficar o tempo que precisar. - Subi as escadas.

           Deliberadamente, deixei passar o tempo, na esperança de que tudo estivesse acabado e a Polícia, juntamente com Ewen Mackay, tivesse partido antes de eu voltar a descer. Não fazia ideia se se poderia formular alguma acusação, mas isso certamente dependeria do facto de a mochila ser encontrada e de qual fosse o seu conteúdo. Ainda os ouvia, pergunta e resposta, quando atravessei o pequeno patamar para a casa de banho e fechei a porta. Depois, não ouvi mais nada além do barulho da água das torneiras a correr.

            Regressada ao meu quarto, ainda sem me apressar, vesti-me. Um barulho no exterior levou-me até à janela, e vi o Land-Rover de Archie dirigindo-se para a minha casa.

           Rodopiei para olhar para o relógio da mesinha-de-cabeceira. O barco não deveria chegar antes de, pelo menos, meia hora. E eu estava a contar que aquela situação desagradável se resolvesse antes da chegada

do meu irmão.

            O Land-Rover parou junto à porta de entrada. Ouvi-os entrar e depois uma confusão de vozes. Não era possível continuar a adiar: desci as escadas.

            - AQUI está ela!

            - Oh, Rose! - exclamaram Megan e Ann em simultâneo.

            Estavam ambas sentadas à mesa, junto àjanela. Mesmo à porta, que estava fechada, encontrava-se Archie McLaren, que parecia disposto a ficar para assistir ao drama, portanto os passageiros do barco iriam ter de se amanhar sozinhos. A cena na minha sala estava realmente montada para um drama. Ewen continuava sentado na cadeira junto à lareira, com o sargento Fraser em frente dele, mas o cabo Campbell tinha deslocado a sua cadeira, bloqueando a passagem para a copa, e Neil estava de pé ao lado da lareira. O lume crepitava alegremente.

            - Olá a todos. Bom dia, Archie. - Cumprimentei os recém-chegados um pouco hesitante.

            Ann falou de um só fôlego e estava com um ar tenso.

            - Rose, quando Archie nos disse que a Polícia estava aqui, achámos que tínhamos de vir contar-lhe o que acontecera ontem.

            Sentei-me no sofá, olhando de forma inquiridora para o sargento Fraser, que fez um aceno de cabeça.

            - Sim, tem realmente a ver com isto. Enquanto a senhora esteve na ilha ontem, as meninas vieram até aqui. O que nos contaram pode ser importante. Talvez Miss Tracy ou Miss Lloyd não se importem de lhe repetir a história.

            Levantei as sobrancelhas para elas. Megan, corada e com um ar infeliz, abanou a cabeça. Ann inclinou-se para a frente.

- Sim. Viemos até aqui ontem ao fim do dia. Queríamos ver de novo as lontras. Não estava em casa, e por isso fomos até acolá - fez um gesto vago -, atrás da casa, e encontrámos um sítio de onde podíamos ver sem sermos vistas. Sabe, um esconderijo.

            - Ann. - Era Megan em voz baixa. - Despacha-te. Limita-te a acabar.

            Ann tomou fôlego, olhando para Ewen.

            - Ele chegou. Ewen Mackay. O barco dele foi direito ao cais, ele saiu e dirigiu-se à porta aqui de casa e bateu. Ninguém abriu e ele entrou. Tinha uma chave. Não se demorou muito... chamou em voz alta, apenas como se estivesse a certificar-se de que a casa estava mesmo vazia. Depois, voltou ao barco. - Fez uma pausa. - Tirou de lá uma trouxa, que era comprida e rígida. Contornou rapidamente as traseiras até àquela arrecadação. Não se demorou lá muito, e quando saiu não trazia a trouxa. Dirigiu-se ao barco e foi-se embora.

            Ela parou, e Megan disse, muito infeliz:

            - Esperámos por si, mas, como não apareceu, passado um bocado descemos e fomos dar uma olhadela à arrecadação, mas não havia nada para ver, por isso fomos para casa. Depois, hoje de manhã, Archie apareceu à hora do pequeno-almoço e disse que a Polícia estava aqui mais os das alfândegas, portanto percebemos que devia haver coisa grave, e Archie ofereceu-se para nos trazer aqui.

            O sargento levantou-se.

            - Fizeram muito bem, meninas. E agora, Miss Fenemore, com a sua permissão, gostaríamos de dar uma olhadela a essa arrecadação. - Virou-se para Ewen. - A não ser que Mr. Mackay nos queira poupar o trabalho?

            Ewen sorriu. Abandonara qualquer pretensão de indignação:

            - Dêem uma olhadela, dêem, e vão para o inferno - disse, recostando-se na cadeira.

            - Muito bem. - Fraser virou-se para o cabo. - Jimmy, ficas aqui... Archie, aí vem o barco. Não ouviu? É melhor você ir andando.

            Archie esboçou um adeus a mim e às raparigas e foi-se embora surpreendentemente depressa. É claro que dentro em breve estaria de volta com Crispin.

            - Só um momento - disse Neil quando o polícia se dirigiu para a porta, seguindo o exemplo de Archie. - Posso ir consigo?

            Ewen fitava Neil com uma nova expressão no rosto. Perdera a cor, e vi-o engolir em seco uma série de vezes.

            - Duvido que encontre alguma coisa, sargento, a não ser que desfaça a arrecadação em pedaços, mas eu sei onde procurar - afirmou Neil.

            - Está bem - disse Ewen abruptamente. - Está bem. - Endireitou-se e olhou de soslaio para Neil.

            Não detectei nada no seu olhar, a não ser uma aceitação de um humor amargo.

            - Tinha-me esquecido. Que estupidez da minha parte - disse Ewen.

            - Esquecido de quê? - perguntou o sargento.

            Foi Neil quem lhe respondeu:

            - Apenas que uma vez, quando éramos miúdos, ele me roubou a minha cana de pesca à truta. Um dia, vi-o a pescar com ela e segui-o até aqui a casa e vi-o escondê-la num sítio que ele arranjara na arrecadação. Estavam lá outras coisas que eu sabia terem andado a desaparecer de barcos e jardins de outras pessoas. Não o denunciei para que os pais dele não soubessem. Esperei até o ver a utilizar de novo a cana de pesca e então tirei-lha.

            - Foi cá uma luta.. - concordou Ewen. - Bom, vá lá. Vá lá buscá-las.

            -           As Purdeys? - perguntou Neil.

            -           As Purdeys. E espero que fique bem tramado por todos estes anos de posse ilegal.

            O sargento fez um aceno de cabeça a Jimmy, e este e Neil saíram.

            OLHEI para a expressão de Megan e o que vi fez-me levantar.

            -           Sargento Fraser - disse -, o meu irmão deve vir neste barco, portanto Archie deve estar de volta daqui a pouco. Miss Lloyd e Miss Tracy podem regressar com ele?

            -           Com certeza.

            - Então, não há problema se esperarmos lá fora?

            - Com certeza - disse de novo, e dirigiu-se à porta para a abrir.

            Ann estava de pé. Megan já ia a caminho da porta, mas parou na soleira e olhou para trás, para o sítio onde Ewen estava sentado, com um ar de total descontracção, junto à lareira. Ela aclarou a voz, mas as palavras surgiram roucas e num atropelo.

            -           Lamento. Lamento sinceramente, mas foi a verdade.

            Ewen sorriu-lhe, um sorriso cheio do seu próprio e poderoso encanto.

            -           Claro que foi. Não se preocupe. Sempre fui um caso perdido. Então, adeus. Gozem bem as vossas férias.

Vi as lágrimas surgirem nos olhos dela. Amaldiçoei-o em silêncio, e com um braço sobre os ombros dela conduzi-a lá para fora e pelo caminho abaixo até à praia.

            Ann falou rápida e impetuosamente:

            - Ouve, Meg, não fiques assim. O que é que podíamos fazer? Tínhamos de contar à Polícia, e nem sequer havia qualquer dúvida, porque ele próprio o admitiu. O homem é um ladrão e um mentiroso. Estava a merecê-las.

            - Mas foi simpático connosco, e nós não tínhamos nada contra ele. Eu sei que tínhamos de contar à Polícia, mas parece-me uma traição.

            -           Megan - disse eu -, ouve-me. Eu tive uma conversa com Mrs. McDougall e ela contou-me mais do que a vocês. Ewen Mackay não é um homem de quem se deva ter pena. Teve todas as condições boas: pais carinhosos, um protector indulgente, inteligência, boa aparência e encanto. A única coisa que não tinha era dinheiro, e, para o obter, roubava as pessoas friamente, algumas delas idosas e tão pobres como ele próprio. Roubava-lhes, sem quaisquer escrúpulos, tudo o que tinham. Pensa nessas pessoas, Megan, e não nele.

            Ela acenou a cabeça afirmativamente.

            -           Desculpe. Eu realmente percebo. Só que, ao ver aqueles polícias, que queriam era apanhá-lo e eram quatro contra um, oito contra um, contando connosco

            -           Eu sei, foi horrível. Mas não houve nenhuma traição. De qualquer forma, agora já acabou. E parece que encontraram as armas.

            Os dois homens contornaram a esquina da casa e entraram. O cabo transportava um objecto esguio embrulhado, e debaixo do braço de Neil via-se a forma alongada e brilhante de uma espingarda.

            - Encontraram, pois - disse Ann com satisfação. - Esperemos que aquelas espingardas levem Ewen de volta para o lugar que merece.

            Megan atirou-lhe um olhar onde ainda se notava uma sombra de preocupação, mas limitou-se a dizer:

            -           Ainda não percebo porque é que ele se decidiu pelas armas. Se tivesse roubado as pratas ou coisa parecida, talvez tivesse escapado.

            - Vinte ou trinta mil libras em leilão, e sempre a subir cada ano que passa - disse Ann, que percebia do assunto.

            -           Meu Deus! - exclamou Megan de olhos esbugalhados.

            Ocorreu-me então que os recursos de Megan, como filha de um agricultor, eram sensivelmente os mesmos de Ewen Mackay, mas ela conseguira entrar em Cambridge com uma bolsa e iria ainda muito mais longe.

A porta da minha casa abriu-se, e Ewen Mackay saiu com os dois agentes da Polícia e Neil atrás deles. Ewen estava algemado.

            E na curva do caminho surgia o Land-Rover; Archie McLaren trazia o meu irmão.

 

TRAZIA outro homem também, o qual saiu cautelosamente do Land-Rover; um homem baixo, na casa dos cinquenta anos, com um nariz pontiagudo, uma boca um tanto pequena e olhos cintilantes. O seu cabelo já escasseava e exibia um tom grisalho. Ele estava vestido de forma incongruente para as Ilhas Ocidentais: fato escuro completo dois números acima do seu, rematado por colete e gravata. O fato era caro, e o seu relógio de pulso e botões de punho tinham o cintilar rico e inconfundível do ouro.

            Em contraste, o meu irmão, Crispin, magro e alto, estava vestido exactamente como um médico em férias: calças velhas e camisola antiga. Deslizou para fora do Land-Rover e ajustou-se à muleta que tinha mencionado - um objecto tubular resistente e cromado. - Coxeava ligeiramente, mas andava suficientemente bem para chegar junto de mim e se inclinar para me dar um beijo.

            - Rose. Estás com óptimo aspecto e que lugar maravilhoso que escolheste. - Não parecia ter notado nada de estranho naquele grupo de homens ao longe, descendo para a praia em direcção aos barcos. - Este é Mr. Hartley Bagshaw, que viajou comigo.

            - Mr. Bagshaw - disse eu, dando-lhe um aperto de mão e interrogando-me porque é que Crispin o trouxera. - Também está de férias?

            Mas o olhar de Mr. Bagshaw já me ultrapassara, e obviamente não lhe passara despercebido o que estava a passar-se no cais.

            - Mas que diabo...? - disse, quase a explodir. - Aqueles homens são polícias. O que é que se passa? Depois, altíssimo: - Ewen Mackay? Ewen Mackay?

            A Polícia olhara na nossa direcção quando o Land-Rover se aproximara, depois apressara-se discretamente a afastar-se antes que as minhas visitas chegassem. Mas naquela altura todo o grupo ficou imóvel quando Ewen, entrando para dentro da lancha, parou e se virou, com as algemas nitidamente visíveis.

            Mr. Bagshaw também ficou imóvel durante longos segundos; depois, voltou a explodir em palavras, e eu aprendi três palavras novas nos três segundos seguintes e depois várias formas interessantes que nunca me haviam ocorrido de utilizar palavras respeitáveis. Vislumbrei um lampejo do ar horrorizado e chocado de Archie e das faces coradas de Megan. E a seguir o sargento Fraser vociferou qualquer coisa, Ewen deu uma gargalhada e Mr. Bagshaw fechou a sua boca com um estalido e depois disse:

            - Peço desculpa, minhas senhoras. Tive um choque. A Polícia parece ter prendido um amigo meu. Deve ser um erro. Com licença.

            E correu pela praia abaixo em direcção ao cais, com os olhos brilhando de fúria e do que poderia ser medo. Archie, ainda com um ar ultrajado, gritou:

            - Eh, você aí! - e desatou a correr atrás de Mr. Bagshaw.

            Talvez fosse uma reacção provocada pela noite sem dormir, pela tensão desagradável da recente entrevista dentro de casa e agora por aquela inesperada interrupção na cena, mas eu estava com vontade de rir e vi que as raparigas estavam prestes a sucumbir à mesma quase-histeria. Chamei-as com um gesto, controlando-me a todo custo, e apresentei o meu irmão.

            -           Ann, Megan, este é o meu irmão. Crispin, apresento-te Ann Tracy e Megan Lloyd.

            E foi o fim. Eu tivera esperanças que a apresentação semiformal nos pusesse mais sóbrias, mas ela foi então acompanhada em contraponto por outra enxurrada de discurso colérico e idiomático de Mr. Bagshaw, que chegava claramente até onde nos encontrávamos. As raparigas ainda conseguiram apertar a mão de Crispin e dizer qualquer coisa. Depois, ambas explodiram irremediavelmente a rir à gargalhada.

            -Ele disse que era amigo dele. - Era Ann, enxugando os olhos. - O que é que ele chamará às pessoas de quem não gosta?

            - Se ficarmos mais um pouco - disse Megan com voz trémula - pode ser que venhamos a descobrir.

            -           O que é que se passa aqui? - perguntou Crispin.

            Controlei-me e agarrei-lhe no braço.

            - Vamos para casa tomar um café. Lá podemos falar.

            - ELES estão a regressar - informou Megan.

            Ela estava ao pé da janela, à mesa, em frente de mim. Nós os quatro - Crispin, as raparigas e eu - tínhamos acabado com canecas de café e uma pilha de torradas com doce. Crispin até exibira uma caixa de dou ghnuts frescos que comprara no barco, mas deixámo-los para o "depois". Ninguém perguntou "depois de quê?" Todos sabíamos que não haveria sossego naquela ilha calma até o centro da tempestade ser afastado.

            O Lontra do Mar e o Painho ainda estavam no cais, mas a lancha da Guarda Fiscal partira ao longo da costa em direcção a Halfway House. O cabo fora nela, com Neil, Ewen e os guardas-fiscais. Deduzia-se que tinham ido à procura da mochila lançada fora.

            Parecia que Mr. Bagshaw acalentava a esperança de eles não se demorarem. Ele estava lá em baixo, junto ao cais, falando verbosamente com o impassível sargento Fraser e com Archie McLaren, um ouvinte fascinado. Eu tivera a esperança de que este último estivesse à espera para levar consigo Mr. Bagshaw, mas pelo que Crispin nos contara, parecia que ele viera falar de negócios com Neil.

            Durante o café, cada um contara as suas novidades. Em primeiro lugar, o ferimento de Crispin: ainda lhe doía, mas não era isso que iria evitar que andasse por ali razoavelmente bem, nem que utilizasse a máquina fotográfica. Depois, eu forneci-lhes todos os pormenores sobre o que Ann denominava O Grande Mistério de Moila.

            Por fim, Megan pegou na cafeteira.

            - E Archie e Mr. Bagshaw? Faço café para eles?

            - Não, enquanto não ouvirmos a versão do meu irmão. Cris, quem é Mr. Bagshaw? Ele contou-te o que é que queria ao Neil?

            - Pareceu-me, de facto, haver uma ligação entre ele e Ewen Mackay - disse Megan, pegando distraidamente num doughnut.

            - São amigos. Foi o que ele afirmou - disse Ann, dando uma pequena gargalhada. - Mas o mais provável é que não o sejam. De onde será que se conhecem?

            - Acho que posso adivinhar - disse eu, e Crispin piscou-me um olho. - Terei razão? Foi na prisão?

            - Sim, foi. Íamos os dois no comboio quando se deu o acidente, e há qualquer coisa na vivência de uma tragédia que parece fazer derrubar as barreiras. Ele fartou-se de falar. Tinha acabado de sair da prisão depois de ter cumprido dois anos, embora fosse inocente de qualquer participação na fraude.

            - Fraude? Estás a dizer que ele estava metido nas trapaceirices de Ewen Mackay, roubando mulheres idosas e solitárias?

            - Não, não. Ele foi um dos homens apanhados no escândalo da compra fraudulenta da Prescott. Lembras-te? Foi há três ou quatro anos?

            - Não posso dizer que me lembre. Não me interesso muito por esses acontecimentos.

- Não tem importância - disse Crispin. - Na realidade, acreditei nele. É um indivíduo rijo, que se fez a si mesmo, mas tenho a certeza de que é relativamente honesto. Foi,em parte o azar e um sócio corrupto que o levaram a ser condenado. É um tipo que se dedica a empreendimentos imobiliários, e quando Ewen Mackay, que também ia sair em liberdade na mesma altura, lhe disse que uma senhora velhota tinha morrido em Moila recentemente e talvez houvesse uma boa propriedade à venda, Bagshaw interessou-se. Segundo parece, Ewen Mackay prometeu, em troca de uma comissão, ajudá-lo a negociar com a família, clamando que era praticamente da família. - Ergueu uma sobrancelha interrogativamente na minha direcção.

            Eu abanei a cabeça, dizendo:

            - Não há nenhuma ligação, e não há família com quem negociar, à excepção de Neil, mas continua.

            - Bem, pelo que me acabaste de contar, deduzo que Bagshaw já estava a ser enrolado por Mackay ainda antes de saírem da prisão. Bagshaw providenciou uns fundos a Mackay para ele alugar um barco e vir até aqui para ir adiantando as coisas com a família.

            Megan disse, convicta:

            - Tinha razão, Rose. Não foi nenhuma traição. Estão a ver? Isso significa que, ainda antes de sair da prisão, já andava a tratar de enganar alguém!

            - Quem nasce torto, tarde ou nunca se endireita - disse Ann. - Então, Crispin, é esse o negócio de Mr. Bagshaw com Neil Hamilton? Ele vai comprar a Casa?

            - E a Ilha das Focas? - perguntou Megan, ficando com uma expressão angustiada quando o meu irmão acenou afirmativamente com a cabeça.

            - Ele até já fez uma oferta - disse-lhes eu. - Pelo menos, julgo que foi ele. Através de um agente. - Contei-lhes o que Neil me dissera.

            Crispin voltou a dizer que sim com a cabeça.

            - Sim, foi Bagshaw. Ele está muito interessado nas praias e na ilha. Há muito espaço para construir uma marina e aquilo a que ele chama um grande centro de férias, com apartamentos de luxo, campo de golfe, etc

            - Ao longo do machair? - perguntou Megan, quase num sussurro.

            - Sim, se é esse o nome da faixa ao longo da costa ocidental. Eu tentei argumentar com a beleza das ilhas e com o que o desenvolvimento lhes faz, mas não valeu de nada. O que é que se pode fazer?

- Sei que Neil lhe concedeu a opção - disse eu -, mas duvido que ele queira ver aqui esse tipo de desenvolvimento.

            - Em breve saberemos - disse Megan à janela. - Eles estão a regressar.

            NÃo TENHO a certeza do que esperava que acontecesse quando a lancha voltasse, mas foi um alívio descobrir que não voltaríamos a ser confrontados com Ewen Mackay. Ele devia ter ficado lá em baixo com o cabo. A lancha posicionou-se ao lado do Lontra do Mar, e Neil e o sargento dirigiram-se para minha casa.

            Não antes de, como era de esperar, terem sido emboscados por Mr. Bagshaw, que ainda tinha muita coisa para dizer. O sargento continuou a avançar calmamente, com Bagshaw mesmo ao seu lado a falar.

            O sargento foi breve. Disse-nos que a mochila fora recuperada e estava cheia com objectos pequenos, na sua maioria de prata, alguns objectos de valor artístico embrulhados em papel e o relógio da cornija da sala de estar. Para além do relógio, que nunca mais voltaria a ser o mesmo, nada estava danificado. A mochila fora largada em águas pouco profundas, quando o barco de Ewen se escapara para trás da grande rocha isolada, e afundara-se suavemente. E, sim, tinham encontrado o retrato do tio-avô Fergus encostado à parede traseira da casa dos barcos. Mr. Mackay teria de ir até ao continente para colaborar nas averiguações da Polícia... E, não, não havia qualquer necessidade de voltar a revistar o Painho. Estavam satisfeitos por Mr. Mackay não ter cometido nenhum delito de tráfico ilegal. Tanto quanto ele percebera, Mr. Bagshaw fornecera o dinheiro para alugar o barco, portanto, se assim o desejasse, poderia utilizá-lo à vontade.

            Finalmente, o sargento Fraser disse que tinha mesmo de se ir embora.

            Graças a Deus, Mr. Bagshaw pareceu contentar-se em deixar o sargento partir. Pelos fragmentos do discurso, que não pudera deixar de ouvir enquanto os homens se dirigiam para a casa, achei que Mr. Bagshaw tentara negar qualquer relação com as façanhas recentes de Ewen Mackay e estava agora desejoso de ver a lancha da Guarda Fiscal fazer-se seguramente ao caminho.

            Neil acompanhou o sargento até lá abaixo ao cais. O polícia saltou para bordo e a lancha afastou-se, saindo da pequena baía com um súbito rasto branco, dirigindo-se velozmente para o mar alto, perdendo-se de vista para lá do cabo.

            Foi como se o seu desaparecimento tivesse sido um sinal tão definitivo como o correr do pano numa peça de teatro. Drama e mistério acabavam ali; restava apenas um grupo de gente comum que queria prosseguir as suas vidas comuns.

            Archie foi tirar as malas de Crispin do Land-Rober. Crispin, coxeando atrás dele, tirou ele próprio o seu precioso equipamento fotográfico. Levaram as coisas para o primeiro andar. Megan estava a levantar a mesa, e Ann desaparecera para a copa, onde se ouviam os barulhos do lavar da louça e o cheiro de café acabado de fazer. Mr. Bagshaw, com um ar exausto, afundara-se na cadeira recentemente deixada vaga por Ewen.

            Eu dirigi-me a ele delicadamente:

            - Mr. Bagshaw, deve estar cansado. Dentro de um minuto já há café e depois talvez fosse melhor regressar à povoação com Archie McLaren. Tenho a certeza de que Mrs. McDougall, nos Correios, poderá ajudá-lo a arranjar um quarto.

            Mr. Bagshaw fitava as cinzas da lareira.

            - Não fazia a mínima ideia de que era isto que ele tinha planeado. A mínima ideia. Eles têm de acreditar em mim.

            - Tenho a certeza que sim. Se eles não tivessem acreditado em si, não se teriam ido embora sem o levar, pois não?

            Os seus olhos vieram então ao meu encontro.

            - Não era capaz de voltar para lá, Miss Fenemore. Eu contei ao seu irmão. Ele salvou-me, sabe. Quando o comboio descarrilou e se deu o impacte, fiquei debaixo de uma coisa qualquer. Estava tão escuro que eu não conseguia ver o que era, mas o seu irmão tirou-me de lá.

            - Ah, sim? Deve ter sido horrível. Ficou ferido?

            - Não, não. Só umas nódoas negras e o choque, foi tudo. Mas se ele não me tivesse tirado... Logo a seguir, aquilo tudo deslizou pela margem abaixo e eu podia ter morrido. Foi aí que ele se feriu no pé, e mesmo depois disso ele continuou a tentar ajudar pessoas. Depois, quando fomos levados para o hospital, descobrimos que vínhamos os dois para Moila e então eu disse-lhe que esperava mais uns dois dias para vir com ele no comboio, não fosse ele precisar de ajuda para transportar a bagagem, e coisas assim. Por isso, quando lhe deram alta, eu vim com ele.

            - Foi muito bondoso da sua parte. Tenho a certeza de que foi uma ajuda.

            - Mas não percebe... - Endireitou-se na cadeira, e com um toque de amargura na voz continuou: - Se eu tivesse apanhado o barco de sábado, poderia ter evitado que aquele estúpido, miserável... desculpe... Evitaria que o Mackay tivesse roubado todas aquelas coisas e pusesse a Polícia no nosso encalço, quando tudo isto não passa de uma transacção perfeitamente honesta. Se tivesse sabido das verdadeiras intenções de Mackay, acha que eu o teria deixado aqui sozinho para armar... uma confusão destas?

            - Café? - inquiriu Ann da soleira da porta, e entrou com um tabuleiro.

            -           E um dou ghnut? - perguntou Megan, entrando com uma bandeja. - São óptimos. Se eu não fosse aluna da Dra. Fenemore e fã de Hugh Templar, diria bestiais. - Olhou-me de frente. - Desculpe, Rose, mas deixou os seus papéis ali no parapeito da janela, e eu, com toda a sinceridade, não pude deixar de ver.

            -           De que é que estás a falar? - Ann, distribuindo canecas por todos, não parecia muito interessada. - Ah, Archie, aqui está você. Café?

            - Obrigado - respondeu Archie, que descera as escadas. - Mas só meia caneca. Tenho que ir andando. Vêm comigo, meninas? - E o senhor? - indagou, dirigindo-se a Mr. Bagshaw, que assentiu.

            - Acho que sim. - Olhou para mim. - Não a incomodo mais, minha cara. Mr. Hamilton ainda anda por aí, não anda? Vou combinar com ele uma hora e talvez nos voltemos a encontrar mais tarde. Foi muito gentil.

            Mr. Bagshaw levantou-se com dificuldade e pousou a sua caneca, ainda fumegante, na mesa.

            - Quando eu tiver a coisa a funcionar aqui (o seu irmão há-de contar-lhe os meus planos), a senhora e ele serão sempre bem-vindos, e eu pessoalmente providenciarei para que tenham o melhor que Moila possa oferecer.

            - Muito obrigada.

            Ele estendeu a mão e eu apertei-lha.

            - Apresente os meus cumprimentos ao seu irmão, e o meu desejo de que aquele pé melhore rapidamente.

            Observei-o enquanto se dirigia até onde NeH, dentro do Lontra do Mar, se atarefava com a escotilha do motor aberta. Houve uma troca rápida de palavras entre eles, com Neil apontando para Taigh na Tuir, e depois Mr. Bagshaw entrou no Land-Rover que se afastou encosta acima.

            - Nós vamos embora - disse Ann. - Vamos deixá-la a si e ao seu irmão terem um pouco de paz. Anda daí, Meg.

            -           Mas Archie acabou de sair - disse eu.

- Eu sei. Dissemos-lhe que íamos a pé. Acredite ou não, o dia ainda há pouco começou. Pensamos regressar pelo machair.

            - Enquanto ainda existe - disse Megan. - Antes que as bolas de golfe comecem a voar.

            - Bem, obrigada por toda a vossa ajuda. Voltem, está bem?

            - Com todo o gosto - disseram. - Adeus.

            No momento em que partiam, Megan olhou para trás e disse:

            - Bestial!

            - O quê? - perguntou Ann.

            - Nada - disse Megan.

            Avançaram com cuidado até lá baixo, onde Neil ainda se encontrava curvado no Lontra do Mar. Houve uma conversa breve; depois, Neil saltou do barco para o molhe e dirigiu-se a minha casa.

            à porta, espreitou para dentro.

            - Rose? Está bem? Foi uma manhã desagradável para si.

            - Para todos nós. Estou bem, obrigada. Estou óptima. O que é que vai acontecer agora?

            - Hoje, nada. Vou voltar agora para Taigh na Tuir.

            - Vem cá jantar, não vem?

            - Sim, com todo o prazer. Por volta das sete?

            - Sim. E... Neil, Mr. Bagshawjá disse alguma coisa sobre a Casa? Quero dizer, a venda?

            - Não. Combinámos encontrarmo-nos amanhã para eu lhe mostrar o sítio. Então, logo às sete. Adeus.

            ACABÁRAMOS de jantar naquele dia. Depois do seu início explosivo, o dia fora calmo. Eu recuperara algum do sono perdido e depois, ao longo do dia de sol e brisas suaves, Crispin e eu conversáramos e descansáramos e conversáramos de novo, e eu contei-lhe todos os recentes acontecimentos em Moila. O jantar foi fácil: frango frio com presunto e salada, seguido por morangos e um pouco de queijo, trazido nessa manhã pelo meu irmão. Depois, Neil trouxe da arrecadação umas cadeiras de abrir e fechar e armou-as na relva, junto à porta de casa. Levámos as chávenas do café lá para fora e sentámo-nos, enquanto lá em baixo o mar rebentava com brandura na praia e, no cais, o Lontra do Mar balançava ao lado do Painho.

            - Terei muito gosto em levar-vos a ambos no meu barco aonde quiserem ir - disse Neil.

            - Ora, muito obrigado - disse Crispin. - Assim, não tenho de utilizar este meu pé.

- Ou melhor, assim que tiver despachado o assunto de amanhã. Neil pousou a sua chávena na relva. - Eu disse a Rose que combinara encontrar-me com Bagshaw lá em casa. Naturalmente que ele vai querer ver tudo o que há em Moila. - Pareceu desapontado ao olhar para Crispin. - Depois do que me contaram acerca dos planos dele, ele não é definitivamente o comprador que eu desejava.

            - É um problema - concordou o meu irmão. - Mas você podia pensar na hipótese de alugar a casa no Inverno e utilizá-la no Verão.

            - A sua solução, Crispin, seria possível se eu conseguisse anular o contrato de promessa de compra e venda.

            - O que é que o fez mudar de ideias? - perguntei-lhe.

            Fez-se um silêncio que de imediato pareceu carregado.

            - Você - disse ele.

            Fitei-o.

            - A forma como falou ao jantar. As coisas que disse sobre a broch, o machair, as lontras... Sempre soube da existência deles e dos painhos, embora nunca tenha visto nenhum, mas você falou deles... - hesitou - bem, como se o lugar lhes pertencesse. Quando nos contou a sua noite na ilha, e dos painhos, vi o quanto aquilo significou para si. Calculo que os poetas devem sentir dessa maneira.

            Eu não disse nada e vi o meu irmão sorrir.

            - Por isso, quando ouvi o que Crispin nos contou sobre os planos de Bagshaw, soube que tinha de evitar a venda, se me fosse possível. Mas como?

            - Esperando que desate a chover amanhã - disse Crispin. - E que o telhado deixe entrar água, e depois dizer-lhe que nunca se consegue arranjar quem faça seja o que for nas Terras Altas Ocidentais.

            - Dizendo-lhe simplesmente que não consegue arranjar mantimentos aqui em Moila e que a electricidade falta quase todas as noites

-           aventei.

            -           O absurdo é que até simpatizo com ele - disse Crispin lentamente.    - É estouvado, mas não é mau tipo. Talvez seja possível

            - Eu também gosto dele. Continue - disse Neil.

            -           Em primeiro lugar, não percebo nada da lei escocesa, mas é possível que este contrato de promessa de compra e venda não seja vinculativo para si. Mas ocorreu-me que, se mostrasse tudo a Mr. Bagshaw, quero dizer, todas as belezas do lugar, e tentasse provar-lhe como todas as enchentes de pessoas nas férias iriam estragar precisamente as coisas que elas pensariam estar a pagar, não seria possível ele decidir ir à procura de outro sítio mais conveniente?

- Não apostava nisso - disse Neil. - Tenho um pressentimento de que todo o esquema é demasiado tentador. Vamos esperar que o contrato de promessa de compra e venda vá por água abaixo. Mas você fala como se conhecesse o local. Já cá esteve antes?

            - Não. Rose tem-me falado sobre isto de uma forma... bem, poética. Mal consigo aguentar a espera para ver os painhos.

            - Não precisa de esperar - disse Neil. - Podemos ir agora, se quiser. Levamos o barco. Rose, quer vir?

            - Descansei todo o dia e estou óptima. Adorava ir.

            - Então, vamos já - disse Neil, levantando-se.

            ESTAVAM LÁ. Não faziam um único barulho, mas os painhos estavam lá, esperando pela noite. Anoiteceu vagarosamente. Durante algum tempo, enquanto estávamos sentados fora da tenda de Neil, não ouvimos nada, a não ser a lenta quietude do mar lá em baixo e a ténue agitação das ervas altas na brisa que se extinguia. Então, finalmente, a canção começou.

            Naquele longo e calmo crepúsculo, o som era tão estranho, tão romântico, tão intelectualmente estimulante como nada que eu jamais tivesse conhecido. E então começou o voo. As moléculas de sombra rodopiavam e mergulhavam, e uma vez por outra uma ave passava tão perto e num tal silêncio de pequenas asas de veludo que era como se uma partícula da própria escuridão se tivesse soltado e fosse soprada, leve, para o mar.

            E de repente quebrou-se o encanto. Neil levantou-se subitamente e disse:

            - Bolas! - e esfregou uma das mãos com força na cara e no cabelo. Depois, virou-se e atirou-se para dentro da tenda.

            Regressei do mundo das nuvens com as mãos e a cara a arderem. Como a brisa se extinguira, os mosquitos tinham aparecido em força. Provavelmente, as aves, ao saltarem dos seus abrigos, haviam-nos perturbado.

            O meu irmão, deslocando-se bastante devagar, estava de pé, apoiado na muleta, e também se esfregava e dava palmadas furiosamente. Neil gatinhou para fora da tenda com uma pequena garrafa de plástico.

            - Tome. "Enxotem-nos" - disse.

            - Estou a tentar, mas eles não ligam nem um bocadinho - disse Crispin de mau-humor.

            Eu dei uma gargalhada.

"Enxotem-nos" é o nome do repelente de insectos. Põe-no.

            - Primeiro, tu. Ouçam, Rose e Neil, isto foi maravilhoso, mas importavam-se que nos fôssemos já embora, imediatamente, e voltássemos noutro dia, quando estiver uma ventania de força cinco?

            Estendi-lhe o frasco.

            -           Por mim, está bem. Devia ter-te avisado. Nesta época do ano, sempre que a brisa amaina, os Guardiões das Terras Altas atacam em força. Neil? Está pronto para ir?

            - Ainda não. Neil deu três grandes passadas até onde eu estava.

- Com licença - disse, abraçando-me e dando-me dois beijos. - Aqui está, isto é uma forma de dizer obrigada. Acabou de me mostrar o que fazer amanhã. E agora vamos embora daqui e deixemos os painhos em paz.

 

- Vou SER franco consigo - disse Mr. Bagshaw, parecendo estar a ser realmente muito franco. - Isto envolve muito trabalho, e você diz-me que aqui é difícil fazerem-se trabalhos de construção?

            - Quase impossível - disse Neil.

            - Mas com tempo e dinheiro pode ser feito. Com uma boa equipa vinda de Glasgow e arranjando uma rede de abastecimentos. Pode fazer-se.

            - As condições atmosféricas podem ser problemáticas - comentou Neil.

            Estávamos no jardim, do qual se via, para norte, o machair e, mesmo em frente, o canal para a ilha, onde os contornos da broch se evidenciavam sob a luz do Sol. Lá em baixo, para a nossa esquerda, encontrava-se o barco de Neil, no cais, com Crispin sentado à popa a pescar.

            Tinha sido um longo dia. Neil trouxera o Lontra do Mar logo a seguir ao pequeno-almoço e levara-me, a mim e a Crispin, até à Casa. Pouco depois, o Land-Rover de Archie trouxera Mr. Bagshaw, e a visita de inspecção começara. A pedido de Neil, eu fora com eles dar a volta pela Casa. Crispin saíra para ver o machair, e nós concentrámos a nossa atenção no almejado desencorajamento de Mr. Bagshaw.

            Parecia não estar a dar resultado. Sob aquele lindo dia de sol, a Casa não parecia deprimente nem sequer muito degradada, embora eu chamasse a atenção de Neil por duas vezes para marcas de humidade nos tectos e Neil respondesse com uma observação pesarosa sobre o estado do telhado. E o jardim, cheio de ervas daninhas, também não era problema:

            - Com aqueles arbustos - dizia Mr. Bagshaw, observando os rododendros com entusiasmo -, a única coisa que é preciso fazer é manter a relva cortada.

            E, claro, o machair desfez quaisquer hesitações. Para minha raiva e de Neil, parecia o postal mais idílico da paisagem de uma ilha. Lá estava a faixa de areia de um branco-leitoso, alongada e curva, sobre um fundo de mar

azul-turquesa, jade-claro e azul-indigo. Lá estavam os distantes penhascos com sombras violeta, como em qualquer paisagem clássica. E numa extensão de seis quilómetros de costa plana, entre a praia branca e os declives verdes da charneca, estendia-se o prado cheio de flores campestres: o machair. A turfa cintilava com as minúsculas flores brancas e amarelas da tormentila, das margaridas e da argentina. Depois, vinha o estrato seguinte, alguns centímetros mais acima, a eufrâsia, a erva-de-são-lourenço e a erva-dos-piolhos-amarela e, acima destas, os olhos-de-boi e as tasneiras e o rendilhado da túbara e do cerefólio, e os doces e delicados jacintos-do-campo, que são as campainhas da Escócia. E o aroma, misturado com o cheiro do mar e dos sargaços na beira das ondas, era o cheiro inesquecível das ilhas estivais.

            Mr. Bagshaw estava extasiado. As praias soalheiras, os desportos aquáticos e a vida nocturna, o centro de lazer, discotecas

            - Aquilo são as ruínas de uma broch - disse Neil. Parecia desalentado. - Um forte da Idade do Ferro. Não lhe será permitido mexer lá, claro.

            - Claro que não, mas seria uma outra atracção. É cultura - disse Mr. Bagshaw.

            - Pois é. Mas o canal pode ser muito perigoso.

            Mr. Bagshaw ficou calado por momentos e depois disse:

            - Tenho a impressão de que não está com vontade nenhuma de efectuar a venda. Estou certo?

            Neil hesitou.

            - Acho que sim. E... Bem, não é fácil imaginar tais modificações num lugar que se conhece e se ama. E o que se propõe fazer, Mr. Bagshaw, irá modificar toda a ilha.

            - Mas o Mundo inteiro muda cada dia que passa - disse Mr. Bagshaw com sinceridade. - E este tipo de lugar tem de evoluir com os tempos. As pessoas querem ar puro e mar, e se lhes pudermos dar isso aqui, neste país, o dinheiro não sai de cá, pois não?

- Então, quer mesmo ir avante com o negócio? Não vejo nada contra.

            - Bom, está resolvido, então - disse Neil. - Mas não gostaria também de ver a ilha pequena? Levo-o até aos penhascos das aves e poderá ir ver a broch.

            Mr. Bagshaw ficou encantado com a ideia, e estava agora no Lontra do Mar com nós três, navegando à volta de Eilean na Rom. As aves elevavam-se em nuvens de gritos enquanto Neil conduzia suavemente o barco ao longo da costa. Sentei-me, apreciando as cores do crepúsculo que chegava e o deleite no rosto do meu irmão.

            Por volta das 6 e 30, o vento extinguiu-se. A tarde ainda estava longe de escurecer, mas a penumbra esbatia os contornos da terra. Neil conduziu o barco suavemente até à costa interior de Eilean na Rom, saltou e ajudou Mr. Bagshaw a desembarcar.

            Preparei-me para sair, mas Neil fez-me sinal com a cabeça para não o fazer. Seguidamente, sugeriu a Mr. Bagshaw:

            - Porque é que não vai andando à frente para dar uma vista de olhos antes que fique demasiado escuro? Eu vou até à casa dos barcos num instante para arranjar uma coisa. Está bem?

            Mr. Bagshaw concordou e pôs-se a caminho, subindo em direcção à broch. Neil virou o barco e dirigiu-se não para a casa dos barcos, mas para Halfway House, a enseada estreita com rochas escarpadas onde um barco podia estar ancorado como num cais.

            - Será que estou a perceber bem? - disse Crispin. - Você quer que os Guardiões das Terras Altas façam o seu trabalho?

            - Quero apenas que dêem uma sugestão - disse Neil.

            - Eles já estão a atacar aqui - disse eu, dando uma palmada. - Onde é que está aquela coisa?

            - Algures na cabina. Nunca dou um passo sem ela.

            - Mas a sugestão certamente não vai ser suficiente. - Crispin estava também a dar palmadas.

            - Se calhar, vai apenas pô-lo furioso comigo, mas até isso pode vir a ser uma ajuda.

            FINALMENTE, regressámos a Eilean na Rom. Com o intensificar da noite, um ventinho generoso começou a agitar os fetos, mas esperávamos confiantemente encontrar Mr. Bagshaw furioso e perturbado, esperando junto à passagem, coçando as picadas dos mosquitos. No entanto, não havia sinal dele, e quando chamámos, não obtivemos resposta.

- Fui completamente louco - disse Neil explosivamente. - Venha, Rose, vamos à procura dele. Crispin, o melhor é você ficar aí.

            Enquanto Crispin amarrava o barco, Neil partiu à minha frente, em marcha rápida, e eu segui-o. Parámos junto à tenda.

            - Está aí, Mr. Bagshaw? - perguntou Neil.

            Não houve resposta. Ele abriu as abas da tenda, que mostraram um espaço vazio.

            - Vou até aos penhascos das aves - disse. - Rose, vá pelo outro caminho que desce em direcção às rochas das focas... Mr. Bagshaw! Está aí?

            Rapidamente deixei de o ver na penumbra, que se adensava.

            Do lado da ilha virado para o mar, a brisa que estava a levantar-se era mais forte, e as ondas rebentavam e ressoavam contra as rochas. Algumas aves, incomodadas, tinham saído em voo e gritavam. Os meus olhos estavam habituados à pouca luz, mas mesmo assim a caminhada era irregular.

            Eu estava quase a chegar às rochas das focas quando o encontrei. Ouvi um barulho suave, um "chiu" impaciente que provinha de uma figura ajoelhada, arqueada sobre qualquer coisa que estava no chão.

            - Mr. Bagshaw! Oh, graças a Deus! Está bem?

            - Chiu, moça! Claro que estou bem, mas está aqui uma ave com uma asa partida ou coisa parecida e vai assustá-la se gritar... Veja, aqui.

            Por debaixo dele, mal se vendo na escuridão de uma toca de coelho que se tinha desmoronado, uma pequena ave preta jazia semiescondida por pedaços de turfa caída. Uma asa, dobrada e contraída, projectava-se dos escombros, movimentando-se debilmente. O pequeno corpo deslocava-se como se estivesse a tentar levantar voo, mas estava preso pela recente queda de matéria arenosa que o tinha semienterrado.

            Mr. Bagshaw não fazia qualquer tentativa de lhe tocar. Ajoelhei-me no chão e comecei muito delicadamente a retirar algumas das coisas que tinham caído.

            - Olhe - disse eu. - A outra asa já está cá fora e está a mexer-se. Acho que não está ferida. Devia estar a sair da toca quando essa parte do aterro abateu.

            - Fui eu que fiz isso. Ouvi uma coisa esquisita que vinha de debaixo da terra e aproximei-me demasiado da beira da toca de coelho. Podia ter partido um tornozelo na escuridão.

            - Peço desculpa. Foi insensato da nossa parte termos ido embora daquela maneira, mas...

            - Não faz mal - disse Mr. Bagshaw. Vamos mas é tirar este passarinho daqui. E o que é que ele estava a fazer numa toca de coelho? Estou habituado a aves. Gosto delas. Tínhamos pombos quando eu era rapaz e o meu avô tinha uma criação de canários. Isso foi nos tempos em que se criavam para ser utilizados nas minas de carvão. Eu costumava ajudar o meu avô.

            Falava quase num murmúrio, enquanto delicadamente retirava para os lados os fragmentos de turfa.

- Ora aqui vem o seu irmão. Ele devia ter cuidado com esta luz.

            - O que é que se passa? - perguntou Crispin, coxeando.

            Neil também devia ter ouvido as nossas vozes. Vi-o a descer a encosta na nossa direcção.

            -           Está um pássaro aqui no chão. Um andorinhão, acho eu. - Não consegue voar. Pensei que estivesse ferido, mas a sua mana diz que não.

            -           É um painho - informei eu. - Está preso. Pelo menos é o que espero que seja.

            O meu irmão pôs a muleta de lado e ajoelhou-se. Neil juntou-se-nos, fazendo uma pergunta, e eu disse rapidamente:

            - Mr. Bagshaw está óptimo. Um dos seus painhos está com problemas, é só isso.

            Crispin estava a dizer em voz baixa a Mr. Bagshaw:

            - A Rose tem razão. Acho que não está ferido. Porque é que não o largamos no ar?

            Crispin ia a agarrá-lo, mas eu segurei-lhe o braço.

            -           Mr. Bagshaw está habituado a aves. Deixa-o fazer isso.

            O meu irmão olhou de relance para cima. Vi-o hesitar, depois ele levantou-se e disse:

            -           Vá lá, então, Mr. Bagshaw.

            -           Com certeza. - Mr. Bagshaw deslizou suavemente as palmas das mãos por baixo do peito da ave, segurando com firmeza a criatura, que parecia muito pequena e frágil nas suas mãos.

            -           Agora, se a levarmos até à beira dos penhascos... - Crispin seguiu à frente pela turfa. Parou a poucos centímetros da beira.

            - Atire-o agora - disse Crispin.

            Mr. Bagshaw virou-se para o fitar; a sua cara era uma mancha pálida na escuridão. Vi a sua boca abrir-se num protesto.

            -           É um painho - disse o meu irmão. - Essa coisinha minúscula consegue voar para qualquer sítio desde que seja sobre o mar. Vá lá, atire-o.

            Mr. Bagshaw atirou-o. A pequena ave fez uma curva, subindo no ar, virou-se, batendo as asas uma série de vezes como uma traça apanhada pela corrente de ar, e depois atirou-se num grande e impetuoso mergulho para o mar. Por momentos, conseguimos vê-la: uma mancha impelida pelo vento, preta contra o branco luminoso da rebentação; a seguir, desapareceu, batendo poderosamente em retirada, pelo Atlântico fora.

            Mr. Bagshaw fitava as suas mãos em concha, como se ainda segurassem a forma quente da ave.

            -           Ora, eu nunca... acreditaria se me contassem. Qual foi o nome que disse?

            -          Painho. Chamam-lhes também calca-mares. São muito pequenos, muito fortes e muito rijos.

            - E nidificam nesta ilha?

            -Sim.

Foi Neil quem respondeu, e eu acrescentei:

           - Deve ter o ninho nessa toca, e o senhor deve tê-lo ouvido cantarolando no seu ninho subterrâneo. O seu companheiro devia ter acabado de chegar do mar para o substituir no choco.

Dirigindo-se a Neil, Mr. Bagshaw disse:

            - Não me falou neles.

            - Não. Tentamos não falar muito sobre eles, porque são muito raros e vulneráveis quando vêm a terra.

            - Estou a ver. E também não me falou nas focas. Sabia que havia focas ali naquela ponta, nas rochas?

            - Sim, sabia. A ilha chama-se Eilean na Rom, que significa Ilha das Focas. Vivem aqui desde... bem, desde muito antes da broch. Muito antes de os homens terem vindo para aqui na Idade do Ferro.

            - Estou a ver - disse de novo Mr. Bagshaw. - Bem, arranjou o seu barco?

            - Arranjei, sim, obrigado. Acho que devíamos voltar para casa. O senhor consegue ver o caminho?

Voltámos para trás em direcção ao barco.

            -           Claro que consigo. Dê uma ajuda aqui ao doutor. E não me trate por senhor, o meu nome é Hartley, mas eu até prefiro Hart. Bem, não sei se há algum sítio na povoação onde se possa jantar, mas, se houver, gostaria que todos me fizessem companhia.

            -           Duvido que haja - disse eu. - Acho que não deve ser possível levar mais três pessoas para jantar no sítio onde está alojado sem avisar previamente. Mas porque é que não vamos todos até minha casa e arranjamos lá qualquer coisa?

            -           E depois eu levo-o de barco - disse Neil.

Tínhamos chegado à passagem. Mr. Bagshaw parou.

- Terei muito gosto. E queria agradecer-vos este dia. Adorei tudo, e esta ilha foi um privilégio raro e muito mais do que eu esperava.

            Fez-se um silêncio palpável, e depois Neil comentou:

            - Foi bastante mais do que qualquer um de nós esperava, creio eu.

            Foi UM JANTAR agradável. Dado que toda a gente em Moila sabe tudo e que Archie McLaren deveria ter certamente relatado os acontecimentos da véspera, Mrs. McDougall assumira que Mr. Bagshaw talvez ficasse para jantar na Casa Grande. Por isso, tinha mandado por Archie nessa manhã um saco de feijão verde acabado de apanhar, uma tarte de maçã feita por ela e meia dúzia de pãezinhos. Neil entregou-me as provisões, e com aqueles deliciosos recursos fiz macarrão de queijo com bacon e feijão verde, que foi seguido pela tarte de maçã.

            Mr. Bagshaw comeu com grande satisfação. O assunto escaldante da venda da Casa nem sequer foi abordado, por isso a refeição passou-se de forma bastante agradável.

           Neil ajudou-me a levantar a mesa e a fazer o café. Enquanto esperávamos que a chaleira fervesse, disse-me baixinho:

            - Não sei como agradecer-lhe o suficiente. Sozinho, eu não teria sido capaz.

            - Não tem importância. Percebeu pelo que ele disse que planeava partir amanhã?

            - Sim. Eu ainda lhe dei a entender que podia ficar lá em casa, mas ele disse que queria voltar para a povoação para apanhar o barco da manhã. Portanto, não sei o que pensar, mas...

            - Mas?...

            -           Mas, aconteça o que acontecer no futuro, desejo ardentemente que este lugar seja deixado em paz. Olhe, deixe-me levar essa bandeja.

            -           Eu posso com ela. Neil, Crispin trouxe brandy, está nesse armário dos copos. Que tal?

            - Estupendo.

            Levei a bandeja e distribuí as chávenas de café.

            - Como é que gosta do seu, Mr. Bagshaw?

            - Com leite e açúcar, se faz favor. Obrigado.

            - E, graças a Crispin, também há brandy - disse Neil, atravessando a sala com os copos.

            - Mesmo o que o médico mandou - disse Mr. Bagshaw, rindo entusiasticamente com a sua própria piada. - Obrigado. E agora... - Ergueu o seu copo e disse: - Não sei fazer discursos, mas tenho uma coisa para dizer. Primeiro, quero salientar que gostei muito de fazer esta viagem e de vos ter conhecido. Lamento o que aconteceu com aquela ratazana do Ewen Mackay, mas eu não tive nada a ver com o assunto, e todos vocês foram muito correctos em tratar o caso nessa perspectiva e não terem ficado ressentidos comigo. Por isso, muito obrigado a todos e especialmente a si, Miss Rose, por isto. -Com um gesto, indicou a mesa.

            - De nada - repliquei eu, sorrindo. - Parece-me que disse que não sabia fazer discursos, mas este foi muito bonito.

            -           Ainda não fiz o discurso. - Estava agora a olhar para Neil. - Todos sabem dos meus planos para desenvolver a ilha. Gosto do lugar e era possível fazer-se. Só que há dois problemas.

            -           Que são...? indagou Neil.

            -           Primeiro, você não quer vender - disse Mr. Bagshaw categoricamente. - Não pense que não percebi todas as dicas que me foi dando sobre o telhado e o facto de não haver ninguém para arranjar a canalização... Neil, seja o que for que lhe disseram sobre este negócio, não havia maneira de eu o obrigar a vender se você não quisesse, e depois do dia de hoje também não havia maneira de eu o querer obrigar a isso por causa da segunda coisa.

            Nesta altura, ninguém falou. Ele bebeu um gole do brandy.

            - Aquela ilha é dos lugares mais românticos que eu tenho visto, mas só um rinoceronte é que quereria apanhar banhos de sol naquela praia; e não me venham dizer que não sabiam disso! O que raio eram aquelas coisas?

            - Mosquitos - disse Neil. Pousou o seu copo e continuou calmamente: - Mr. Bagshaw... Hart... Devo-lhe uma desculpa. Sinto-me envergonhado pelo dia de hoje e não tenho o direito que mo agradeça. Foi... Bem, deixá-lo na ilha, na altura em que os mosquitos são piores, foi uma conspiração para o fazer odiar este lugar. A única desculpa é que... bom, parecia muito interessado e, honestamente, eu julgava que era obrigado a concretizar o negócio. Espero que me desculpe.

            - E eu - disse eu. - Lamento imenso.

            - O quê? Ter-me dado o meu jantar preferido? Esqueça. Você - disse, virando-se para Neil - é um homem cheio de sorte.

            Neil não percebeu. Eu senti-me ruborizar. Crispin sorriu para o seu copo de brandy.

            Mr. Bagshaw empurrou a sua cadeira para trás.

            - E agora é melhor ir andando. Neil, não se sinta mal. No que me diz respeito, ainda há para aí muitos sítios bons, e eu vou encontrar um onde não tenha que andar a dar cabo de passarinhos e onde possa mandar vir o zé-das-obras no mesmo dia. Despeço-me então, Miss Rose, e mais uma vez obrigado e sem ressentimentos. Crispin...

            O meu irmão levantou-se.

- Eu acompanho-o até ao barco. Deixa a loiça até eu voltar, Rose.

            Saiu com Mr. Bagshaw.

            Neil sorriu-me. O olhar cansado desaparecera.

            - Muito obrigado pelo dia de hoje. Não sei o que teria sido de mim sem si. Vamos voltar a ver-nos brevemente?

            - Eu fico por aqui. Isto é meu por mais seis dias.

            - Crispinjá perdeu uma semana inteira-comentou o meu senhorio. - Porque não ficam mais uns dias para compensar? Sem pagar, claro. Vou tratar disso com a agência. Agora, tenho mesmo de ir. Até breve. E quanto mais não seja...

            -Sim?

            - Até ao próximo período - concluiu, e foi-se embora.

            O BARULHO do motor do barco extinguiu-se. Crispin regressou para me ajudar a lavar a louça e depois foi para cima, para a cama, enquanto eu acabava de arrumar tudo. Antes de trancar a porta, fui até lá fora e desci os degraus até à beira da praia. A luz do quarto de Crispin já estava apagada. O meu cansaço já desaparecera, mas dei as boas-vindas ao silêncio e à solidão.

            Fiquei rodeada pelo bendito silêncio, composto de todos os sons pacíficos da noite: o murmúrio do mar na praia de seixos, a brisa nos fetos, o sussurro de um animal qualquer na erva, o marulhar da crista da maré e um movimento entre a subida e a descida de uma onda na escuridão.

            - Até amanhã - murmurei, e regressei a casa para me deitar.

            Estava quase a adormecer quando, de algures na baía, ouvi o motor de um barco deslizando num sussurro suave.

            - Até ao próximo período - disse, e sorri na minha almofada.

            Creio que ainda estava a sorrir quando adormeci.

 

                                                                                            Mary Stewart  

 

                      

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