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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A TORRE NEGRA / Stephen King
A TORRE NEGRA / Stephen King

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A TORRE NEGRA

 

Parte I

O PEQUENO REI VERMELHO - DAN-TETE

 

CALLAHAN E OS VAMPIROS

Père Callahan tinha sido o padre católico de uma cidade, ’Salem’s Lot era seu nome, que não existe mais em qualquer mapa. Ele não se importava muito com isso. Conceitos como o de realidade tinham deixado de ter importância.

Este antigo padre tinha agora em seu poder um objeto pagão, uma pequena tartaruga talhada em marfim. Havia uma lasca no bico e um arranhado que lembrava um ponto de interrogação no casco, mas apesar disso era uma bonita peça.

Bonita e poderosa. Ele podia sentir o poder em sua mão como uma carga elétrica.

— Como é bela — sussurrou para o garoto que estava com ele. — É a Tartaruga Maturin? É, não é?

O garoto era Jake Chambers, que completara um longo circuito para voltar quase exatamente a seu ponto de partida ali em Manhattan.

— Não sei — disse ele. — Ela a chama de sköldpadda. Pode nos ajudar, mas não pode matar os capangas que estão à nossa espera lá dentro. — Apontou a cabeça para o Dixie Pig, sem saber se pretendera se referir a Susannah ou a Mia ao usar o nada inocente pronome feminino ela. Há algum tempo teria dito que isso não importava porque as duas mulheres estavam inseparavelmente atadas. Agora, contudo, achava que tinha importância, ou logo iria ter.

— Está pronto? — Jake perguntou ao Père, querendo dizer: Pronto para enfrentar. Pronto para lutar. Pronto para matar.

— Oh, estou — Callahan disse calmamente, pondo a tartaruga de olhos sábios e casco arranhado no bolso da camisa, ao lado das balas extras de revólver que carregava. Depois deu batidinhas na peça habilidosamente trabalhada, para se certificar de que viajaria em segurança. — Vou atirar até as balas acabarem e, se eu ficar sem balas antes que me matem, vou acertá-los com a... a coronha da arma.

A pausa foi tão breve que Jake nem reparou. Mas nessa pausa, o Branco falou com o padre Callahan. Era uma força que ele conhecia há muito tempo, desde a época de criança, embora tivesse havido alguns anos de má-fé ao longo do caminho, anos em que sua compreensão daquela força elementar primeiro se embaçara, depois se perdera. Mas aqueles dias tinham passado, o Branco era de novo seu e ele disse obrigado, Deus!

Jake sacudia a cabeça, falando algo que Callahan mal conseguia ouvir. E o que Jake dizia não importava. O que aquela outra voz dizia — a voz de alguma coisa

(Gan)

talvez grande demais para ser chamada de Deus — sim.

O garoto tem de continuar, a voz disse a Callahan. Aconteça o que acontecer aqui, dê no que dê, o garoto tem de continuar. Sua parte na história está quase acabada. A dele não.

Passaram por uma placa num cavalete de cromo (FECHADO PARA REUNIÃO PARTICULAR), Oi, o amigo especial de Jake trotando entre os dois, as orelhas em pé e o focinho exibindo o habitual sorriso de dentes arreganhados. No alto dos degraus, Jake enfiou a mão no saco de pano que Susannah-Mia trouxera de Calla Bryn Sturgis e agarrou dois pratos — os pratos Orizas. Bateu um contra o outro, abanou a cabeça ante o tilintar abafado e disse:

— Vamos ver as suas armas.

Callahan levantou a Ruger que Jake trouxera de Calla Nova York e que agora estava de volta; a vida é uma roda e todos devemos dizer obrigado. Por um momento o Père colocou o cano da Ruger ao lado da face direita como um duelista. Depois tocou no bolso da camisa, volumoso das balas e da tartaruga. A sköldpadda. Jake abanou a cabeça

— Depois que entrarmos, ficamos juntos. Sempre juntos, com Oi no meio. Sempre um trio. E depois que começarmos, não paramos mais.

— Não paramos mais.

— Certo. Está pronto?

— Sim. Que o amor de Deus caia sobre você, garoto.

— E sobre você, Père. Um... dois... três. — Jake abriu a porta e juntos penetraram na luminosidade pálida e no aroma penetrante, adocicado, de carne assada.

 

Jake caminhou para o que tinha certeza que seria sua morte recordando duas coisas que Roland Deschain, seu verdadeiro pai, havia dito. Batalhas que duram cinco minutos engendram lendas que vivem mil anos. E: Você não precisa morrer feliz quando seu dia chegar, mas deve morrer em paz consigo mesmo, achando que viveu sua vida do início ao fim e que o ka sempre foi servido.

Jake Chambers inspecionou o Dixie Pig com a mente em paz.

 

E com uma clareza cristalina. Seus sentidos estavam tão aguçados que ele podia sentir não apenas o cheiro da carne sendo assada, mas o do alecrim com que fora temperada; podia ouvir não só o ritmo calmo de sua respiração, mas o murmúrio das ondas do sangue subindo em direção ao cérebro por um lado do pescoço e descendo para o coração pelo outro.

Também se lembrava de Roland dizendo que mesmo a batalha mais curta, do primeiro tiro ao último corpo que cai, pareceu longa para os que dela participaram. O tempo ficava elástico; esticava-se a ponto de parecer ter sumido. Jake assentira a cabeça como se tivesse compreendido, embora na época não tivesse.

Agora compreendia.

Seu primeiro pensamento foi que eram muitos... realmente, realmente muitos. Estimava que chegassem quase a uma centena, a maioria sem dúvida do tipo que Père Callahan rotulava de “homens baixos” (alguns eram na realidade, mulheres baixas, mas Jake tinha certeza que o princípio era o mesmo). Espalhados entre eles, menos corpulentos que o baixo folken e às vezes esguios como armas de esgrima, sempre de aspecto muito pálido e com os corpos cercados de sombrias auras azuis, estavam vultos que tinham de ser vampiros.

Oi permanecia no calcanhar de Jake, o pequeno focinho de raposa com uma expressão severa, a garganta deixando escapar um rosnado baixo.

Aquele cheiro de carne cozinhando que flutuava no ar não era de porco.

 

Três metros entre nós sempre que for possível, Père... Fora o que Jake dissera lá fora, na calçada, e mesmo enquanto ainda se aproximavam do balcão da gerência, Callahan seguia à direita de Jake mantendo a requerida distância entre eles.

Jake também tinha lhe dito para gritar o mais alto e por mais tempo que pudesse, e Callahan estava abrindo a boca para começar a fazer exatamente isso quando a voz do Branco tornou a falar dentro dele. Só uma palavra, mas foi o bastante.

Sköldpadda, disse ele.

Callahan continuava segurando a Ruger junto à face direita. Agora mergulhava a mão esquerda no bolso da camisa. Sua consciência da cena diante dele não se mostrou tão alerta quanto a de seu jovem companheiro, mas ele viu bastante coisa: os flambeaux elétricos, vermelho-alaranjados, nas paredes, as velas de cada mesa encapsuladas em redomas de vidro de um alaranjado mais vivo, como o do Halloween, os guardanapos brilhando. À esquerda da sala de jantar uma tapeçaria mostrava cavaleiros e suas damas sentados numa comprida mesa de banquetes. Havia uma certa atmosfera no lugar — Callahan não sabia exatamente o que a provocava, pois os diferentes sinais e estímulos eram demasiado sutis — de gente acabando de se recompor após um momento de nervosismo: por exemplo, um pequeno incêndio na cozinha ou um acidente de automóvel na rua.

Ou uma dama tendo um bebê, Callahan pensou fechando a mão sobre a Tartaruga. Isto sempre acaba provocando uma boa e pequena pausa entre o aperitivo e o primeiro prato.

— Chega agora o ka-mais de Gilead! — gritou uma voz agitada, nervosa. Não uma voz humana, disso Callahan tinha quase certeza. Tinha zumbido demais para ser humana. Callahan viu o que parecia ser algum tipo monstruoso de híbrido, pássaro-gente, parado na extremidade do salão. Usava uma calça jeans de corte reto e camisa social branca, mas a cabeça que saía da camisa estava coberta com penas sedosas de um tom amarelo-escuro. Os olhos pareciam gotas de alcatrão líquido.

— Peguem os dois! — gritou a coisa apavorantemente ridícula, rapidamente removendo um guardanapo sob o qual havia algum tipo de arma. Callahan supôs que fosse um revólver, só que parecia o tipo de revólver que se vê em Jornada nas Estrelas. Como era mesmo que se chamavam? Phasers? Paralisadores?

Não importava. Callahan tinha uma arma muito melhor e quis se certificar de que todos a viam. Derrubou o que havia sobre a mesa mais próxima, inclusive a redoma de vidro com a vela. Depois puxou bruscamente a toalha como um mágico fazendo seu truque. A última coisa que queria era tropeçar numa toalha no momento crucial. Então, com uma agilidade que uma semana antes se teria julgado incapaz, subiu numa das cadeiras e passou da cadeira ao tampo da mesa. Uma vez em cima da mesa, levantou a sköldpadda com a parte de baixo da peça apoiada nos dedos, permitindo que todos dessem uma boa olhada.

Eu podia cantarolar alguma coisa?, ele pensou. Quem sabe “Moonlight Becomes You” ou “I Left My Heart in San Francisco”.

A essa altura estavam dentro do Dixie Pig há exatamente 34 segundos.

 

Professores de escola secundária diante de um grande grupo de estudantes numa sala de estudos ou numa reunião de todo o colégio dirão que os adolescentes, mesmo de banho tomado e bem arrumados, fedem dos hormônios que seus corpos tão avidamente fabricam. Qualquer grupo de pessoas sob estresse emite um fedor similar, e Jake, com os sentidos sintonizados num tom dos mais sofisticados, sentiu-o ali. Quando passaram pelo posto do maître (Central de Extorsão, como seu pai gostava de chamar esses locais), o cheiro dos freqüentadores do Dixie Pig estava fraco, era apenas o cheiro de pessoas voltando ao normal após algum tipo de rebuliço. Mas quando a criatura-pássaro lá no canto gritou, Jake já começara a sentir com mais intensidade o cheiro dos fregueses. Um aroma metálico, capaz, como o sangue, de estimular sua tempera e suas emoções. Sim, viu o Pássaro Canoro remover o guardanapo; sim, viu a arma embaixo; sim, compreendeu que Callahan, em cima da mesa, era alvo fácil. Mas Jake se preocupava muito menos com isso que com a arma engatilhada que era a boca do Pássaro Canoro. Jake estava fazendo recuar o braço direito, querendo atirar o primeiro de seus 19 pratos e amputar a cabeça onde aquela boca se encontrava, quando Callahan ergueu a tartaruga.

Não vai dar certo, não aqui, Jake pensou, mas antes mesmo de a idéia se articular completamente em sua mente, ele compreendeu que estava dando certo. Soube pelo cheiro deles. A agressividade deixou a atmosfera. E os poucos que tinham começado a se levantar das mesas (os buracos negros nas testas dos homens baixos se abrindo mais, as auras azuis dos vampiros parecendo mais próximas dos corpos e mais intensas) voltaram a se sentar, a desabar nas cadeiras, como se, de repente, tivessem perdido o comando dos músculos.

— Pegue os dois, são esses aí, Sayre... — Então o Canoro parou de falar. Sua mão esquerda (se é que uma garra tão feia podia ser chamada de mão) tocou a coronha do revólver high-tech e caiu ao lado do corpo. O brilho pareceu deixar seus olhos. — São esses aí Sayre... S-S-Sayre... — Outra pausa. Então a coisa-pássaro disse: — Oh, sai, que bela peça é essa que você tem na mão?

— Você sabe o que é — disse Callahan. Jake estava andando e Callahan atento ao que o garoto-pistoleiro lhe contara lá fora (cuide para que cada vez que eu olhe para a direita veja seu rosto), desceu da mesa para acompanhá-lo, sempre segurando a tartaruga no alto. Callahan quase pôde saborear o silêncio do salão, mas...

Mas havia outro salão. Riso rouco e áspero, entremeado de gritos — pelo som, uma festa, e bem próxima. À esquerda. Por trás da tapeçaria que mostrava os cavaleiros e suas damas no jantar. Alguma coisa está acontecendo lá atrás, Callahan pensou, e provavelmente não é um baile de debutantes.

Ouviu Oi respirando depressa e baixo por entre seu eterno sorriso, um perfeito motorzinho. E mais alguma coisa. Um áspero som de chocalho com rápida crepitação por baixo, em surdina. A combinação fez os dentes de Callahan baterem e trouxe um frio para sua pele. Havia algo escondido embaixo das mesas.

Oi foi quem primeiro viu os insetos avançando e ficou estático como um cachorro em posição de caça, uma pata erguida, o focinho empinado para a frente. Por um momento a única parte dele a se mover foi a escura e aveludada pele do focinho, primeiro se contraindo e revelando as cerradas agulhas dos dentes, depois relaxando para escondê-las, em seguida se contraindo de novo.

Os insetos avançaram. Fossem o que fossem, a Tartaruga Maturin erguida na mão do Père nada significava para eles. Um sujeito gordo, usando um smoking com lapelas em xadrez, falou num tom baixo, quase indagador, com a coisa-pássaro:

— Não era para eles irem além daqui, Meiman, nem sair. Nos disseram...

Oi se atirou para a frente, um rosnado passando entre os dentes apertados. Sem a menor dúvida um som nada habitual, fazendo Callahan se lembrar de uma legenda cômica de história em quadrinho: Arrrrrr!

— Não! — Jake gritou, alarmado. — Não, Oi!

Com o berro do garoto, os gritos e risos saindo de trás da tapeçaria cessaram abruptamente, como se o folken lá atrás tivesse de repente tomado consciência de que alguma coisa tinha se alterado no salão da frente.

Oi nem pareceu ouvir o grito de Jake. Triturou três insetos em rápida sucessão, o estalar das carapaças quebradas com horrível nitidez no silêncio renovado. Oi não tentou comê-los. Simplesmente atirou os corpos, cada um do tamanho de um camundongo, para o ar com uma guinada do pescoço e um arreganhado abrir de maxilares.

E os outros retrocederam para baixo das mesas.

Ele foi feito para isto, Callahan pensou. Talvez em tempos muito recuados todos os trapalhões fossem feitos para isto. Feito para aquilo do modo como algumas raças de terrier são feitas para...

Um grito rouco vindo de trás da tapeçaria interrompeu esses pensamentos.

— Humes! — uma voz gritou e logo uma segunda: — Ka-humes!

Callahan teve um absurdo impulso de gritar: Saúde!

Antes que pudesse gritar isso ou qualquer outra coisa, a voz de Roland encheu de repente sua cabeça.

 

— Jake, vá.

O garoto se virou para Père Callahan, confuso. Caminhava com os braços cruzados, pronto para atirar os ’Rizas no primeiro homem baixo ou mulher baixa que se mexesse. Oi voltara a se sentar nas patas traseiras, embora balançasse a cabeça sem parar de um lado para o outro e os olhos brilhassem com a perspectiva de uma nova caçada.

— Vamos juntos — disse Jake. — Eles estão intimidados, Père! E estamos perto! Eles a levaram através... deste salão... depois atravessaram a cozinha...

Callahan não prestava atenção. Mantendo ainda a tartaruga erguida (como alguém segurando uma lanterna no fundo de uma caverna), tinha se virado para a tapeçaria. O silêncio que vinha de trás dela era muito mais terrível que os gritos e o riso febril, cacarejante. Era silêncio como arma apontada. E o garoto havia parado.

— Vá enquanto pode — disse Callahan, lutando para manter a calma. — Vá buscá-la se puder. É esta a ordem de seu dinh. É também a vontade do Branco.

— Mas você não pode...

— Vá, Jake!

Os homens e mulheres baixos reunidos no Dixie Pig, hipnotizados ou não pela sköldpadda, murmuraram nervosos ouvindo aquele grito, e sem dúvida tinham suas razões, pois não era a voz de Callahan o que saía da boca de Callahan.

— Esta é a única chance que você tem e precisa aproveitá-la! Encontre-a! Como dinh eu lhe ordeno!

Os olhos de Jake se arregalaram com o som da voz de Roland saindo da garganta de Callahan. Seu queixo caiu. Ele olhou em volta, atordoado.

Um segundo antes de a tapeçaria à esquerda deles ser puxada violentamente para o lado, Callahan percebeu o humor negro dela, o que o olho desatento a princípio certamente não veria: o assado que era o principal prato do banquete tinha uma forma humana; os cavaleiros e suas damas estavam comendo carne humana e bebendo sangue humano. O que a tapeçaria mostrava era uma comunhão de canibais.

Então o povo antigo que desfrutava seu próprio jantar puxou com força a obscena tapeçaria e atacou, gritando através dos grandes caninos que mantinham as bocas deformadas eternamente abertas. Os olhos pretos como a cegueira, a pele dos rostos e testas (inclusive das costas das mãos) estava cheia de tumores que lembravam dentes. Como os vampiros do outro salão de jantar, estavam cercados de auras, mas auras de um violeta viscoso, muito escuro, quase negro. Uma espécie de gosma escorria pelos cantos dos olhos e bocas. Tagarelavam e vários estavam rindo. Aparentemente, no entanto, os sons não pareciam estar saindo deles. Era como se estivessem sendo agarrados do ar como algo que pudesse ser partido vivo.

E Callahan os conhecia. É claro que sim. Afinal não chegara até ali justamente graças a um deles? Ali estavam os verdadeiros vampiros, os de Tipo Um, conservados como segredo e soltos agora contra os intrusos.

A tartaruga que Callahan segurava não servia de nada para retardá-los.

Callahan viu Jake parado, pálido, olhos vidrados de horror, saltando das órbitas, toda a determinação perdida ante a visão daquelas anomalias.

Sem saber o que ia sair da sua boca antes de ouvir, Callahan gritou:

— Primeiro vão matar Oi! Vão matá-lo na sua frente e beber o sangue!

Oi latiu ao som de seu nome. Os olhos de Jake pareceram clarear ouvindo aquilo, mas Callahan não tinha mais tempo de se preocupar com a sorte do rapaz.

A tartaruga não vai detê-los, mas pelo menos está mantendo os outros recuados. Balas não vão detê-los, mas...

Com uma sensação de déjà vu — e por que não, ele já passara por tudo aquilo antes, na casa de um garoto chamado Mark Petrie —, Callahan pôs a mão na frente da camisa aberta e puxou a cruz que usava lá. Ela estalou contra a coronha da Ruger, e daí ficou pendurada embaixo dela. Um brilhante clarão branco-azulado iluminava a cruz. As duas coisas do povo antigo que vinham na frente até então pareciam prestes a agarrá-lo, a puxá-lo para o meio delas. Agora recuavam, gritando de dor. Callahan viu a superfície da pele das criaturas chiar e começar a se liquefazer. A visão daquilo o encheu de uma felicidade febril.

— Afastem-se de mim! — ele gritou. — O poder de Deus ordena! O poder de Cristo ordena! O ka do Mundo Médio ordena! O poder do Branco ordena!

Mesmo assim um deles se atirou para a frente, um ancião esquelético e deformado num velho smoking com incrustações de musgo. Usava em volta do pescoço uma espécie de condecoração antiga... seria a Cruz de Malta? Arremessou uma das mãos de unhas compridas para o crucifixo que Callahan estava segurando. Callahan puxou a cruz para baixo no último segundo e a garra do vampiro passou a dois centímetros dela. Callahan se jogou para a frente sem pensar e dirigiu a ponta da cruz para a membrana amarela na testa da coisa. O crucifixo dourado entrou como um espeto incandescente na manteiga. A coisa no smoking cor de ferrugem deixou escapar um grito cristalino de dolorosa aflição e cambaleou para trás. Callahan puxou a cruz. Por um momento, antes que o monstro chapasse as garras na própria testa, Callahan viu o buraco que a cruz tinha feito. Então uma coisa grossa, amarela, quase coagulada, começou a se derramar pelos dedos do velho vampiro. Os joelhos se desconjuntaram e o ancião rolou para o chão entre duas mesas. Seus pares se apartaram dele, gritando furiosos. A face da coisa já estava se encolhendo sob as mãos torcidas. A aura oscilava como vela e de repente não houve mais nada além de uma poça amarela e carne se liquefazendo, se derramando como vômito das mangas do paletó e das pernas da calça.

Callahan avançou vigorosamente para os outros. O medo passara. A sombra de vergonha que caíra sobre ele desde que Barlow pegara e quebrara sua cruz também se fora.

Enfim livre, ele pensou. Enfim livre, grande Todo-Poderoso, enfim estou livre! Então: Creio que isto é a redenção. O que é bom, não é? De fato muito bom.

— Jogue isso fora! — um deles gritou, as mãos erguidas para proteger o rosto. — Brinquedo asqueroso do Deus-cordeiro, jogue isso fora se tiver coragem!

Brinquedo asqueroso do Deus-cordeiro, não é? Se é assim, por que vocês se encolhem?

Ele não se atrevera a reagir quando Barlow o desafiara, o que foi sua desgraça. No Dixie Pig, Callahan virou a cruz para a coisa que se atrevera a falar.

— Não sei se vale a pena apostar minha fé diante de uma coisa como você, sai — disse ele, as palavras soando claramente no salão. Forçara os antigos a recuarem quase até a arcada por onde tinham vindo. Grandes tumores escuros tinham aparecido nas mãos e faces dos que seguiam na frente, devorando como ácido o pergaminho das peles antigas. — Sem dúvida eu jamais jogaria fora uma cruz tão amiga. Mas guardá-la? Sim, se preferir. — E ele tornou a colocar a cruz dentro da camisa.

De imediato, vários vampiros se atiraram para a frente, as bocas contraídas pelos caninos e se contorcendo no que poderia passar por sorriso. Callahan estendeu os braços para eles. Os dedos (e o cano da Ruger) brilhavam, como se tivessem sido enfiados numa chama azulada. Os olhos da tartaruga tinham igualmente se enchido de luz; o casco brilhava.

— Fiquem longe de mim! — Callahan gritou. — O poder de Deus e do Branco ordenam!

 

Quando o terrível xamã virou-se para enfrentar os Avós, Meiman do taheen sentiu o terrível, incrível fascínio da Tartaruga enfraquecer um pouco. Viu que o rapaz tinha ido, o que o encheu de desânimo; se bem que o rapaz acabara entrando mais em vez de fugir, de modo que tudo ainda podia estar sob controle. Se o garoto, no entanto, achasse a porta para Fedic e a usasse, Meiman poderia ficar numa situação muito ruim. Pois Sayre respondia a Walter das Sombras e Walter respondia apenas ao próprio Rei Rubro.

Não importa. Uma coisa de cada vez. Primeiro tratar adequadamente do xamã. Soltar os Avós contra ele. Depois ir atrás do garoto, talvez gritando que o amigo o queria sim, isso podia dar certo...

Meiman (Homem-Canário para Mia, Pássaro Canoro para Jake) andou furtivamente para a frente, agarrando Andrew (o gordo naquele smoking com lapelas em xadrez) com uma das mãos e a garota ainda mais gorda de Andrew com a outra. Mostrou com um gesto o que Callahan estava fazendo.

Tirana balançou a cabeça com veemência. Meiman abriu o bico e silvou para ela. Ela se encolheu. Detta Walker já tinha posto os dedos dentro da máscara que Tirana usava e esta já pendia em frangalhos em volta de seu maxilar e pescoço. No meio da testa, uma ferida vermelha se abria e fechava como a guelra de um peixe agonizante.

Meiman se virou para Andrew, soltou-o pelo tempo suficiente para apontar para o xamã, depois passou a garra que lhe servia de mão pelo pescoço cheio de penas, um gesto sombriamente expressivo. Andrew abanou a cabeça e empurrou as mãos rechonchudas da esposa quando elas tentaram detê-lo. A máscara de humanidade era boa o bastante para mostrar o homem baixo, no smoking brilhante, com a expressão de quem toma coragem. E então ele saltou para a frente com um grito estrangulado, agarrando Callahan pelo pescoço não com as mãos, mas com os gordos antebraços. No mesmo instante, sua garota se precipitou para a frente, tirando a tartaruga de marfim da mão do Père, gritando enquanto fazia isso. A sköldpadda rolou para o tapete vermelho, quicou para baixo de uma das mesas e ali (como um certo barco de papel de que alguns de vocês talvez se lembrem) saiu para sempre desta história.

Os Avós continuavam contidos, assim como os vampiros de Tipo Três que haviam jantado no salão da frente, mas os homens e mulheres baixos sentiram fraqueza e andaram para a frente, primeiro de forma hesitante, depois com crescente confiança. Cercaram Callahan, fizeram uma pausa e caíram em massa em cima ele.

— Me deixem em nome de Deus! — Callahan gritou, mas obviamente foi inútil. Ao contrário dos vampiros, as coisas com as feridas vermelhas nas testas não reagiram ao nome do Deus de Callahan. Tudo que ele pôde fazer foi torcer para Jake não parar, muito menos dar meia-volta; torcer para que ele e Oi corressem como o vento em direção a Susannah. Para salvá-la, se pudessem. Para morrer com ela se não pudessem. E para matar o bebê, se tivessem chance. Deus, mas ele se enganara sobre o bebê. Deviam ter liquidado a vida do bebê na Calla, quando tiveram oportunidade.

Alguma coisa mordera profundamente seu pescoço. Agora os vampiros viriam, com cruz ou sem cruz. Assim que sentissem o primeiro cheiro de seu sangue, cairiam em cima dele como tubarões. Me ajude, Deus, me dê coragem, Callahan pensou e sentiu a coragem fluindo para ele. Rolou para a esquerda quando garras arranharam sua camisa, deixando-a em frangalhos. Por um momento a mão direita ficou livre e ainda segurava a Ruger. Ele se virou para o rosto determinado, suado, congestionado pela raiva do homem gordo que se chamava Andrew e encostou o cano do revólver (comprado, no passado distante, para a proteção da casa pelo mais que semiparanóico executivo de TV, pai de Jake) na macia ferida vermelha no centro da testa do homem baixo.

— Nã-ooo, não vai se atrever! — Tirana gritou e, quando ela estendeu a mão para o revólver, a frente de sua túnica finalmente rasgou, fazendo os seios maciços transbordarem. Eles estavam cobertos com um áspero pêlo.

Callahan puxou o gatilho. O tiro da Ruger foi ensurdecedor no salão de jantar. A cabeça de Andrew explodiu como uma cuia cheia de sangue, borrifando as criaturas que tinham se amontoado atrás dele. Houve gritos de horror e perplexidade. Callahan teve tempo de pensar: Não devia ser assim, não é? E: Isso já dá para me colocar no clube? Já sou um pistoleiro?

Talvez não. Mas havia o Homem-Pássaro, parando entre duas mesas, bem na frente dele, o bico se abrindo e fechando, o nervosismo fazendo a garganta pulsar de forma evidente.

Sorrindo, apoiando-se num cotovelo enquanto o sangue saía de sua garganta rasgada e jorrava para o tapete, Callahan fez mira com a Ruger de Jake.

— Não! — Meiman gritou, levando as mãos deformadas ao rosto num gesto de proteção absolutamente inútil. — Não, você NÃO PODE...

Posso sim, Callahan pensou com alegria infantil e atirou de novo. Meiman deu dois passos trôpegos para trás, depois um terceiro. Bateu numa mesa e caiu sobre ela. Três penas amarelas ficaram flutuando, ondulando preguiçosamente.

Callahan ouviu uivos selvagens, não de raiva nem de medo, mas de fome. O aroma do sangue tinha finalmente penetrado nas narinas cor de jade dos antigos e agora nada iria detê-los. Então, se Callahan não queria se juntar a eles...

Père Callahan, antigo padre Callahan de ’Salem’s Lot, virou o cano da arma contra si próprio. Não perdeu tempo procurando a eternidade na escuridão do cano, mas empurrou-o com força contra a parte de baixo do queixo.

— Salve, Roland! — ele disse, e soube

(a onda eles foram erguidos pela onda)

que foi ouvido. — Salve, pistoleiro!

O dedo fez pressão no gatilho quando os monstros antigos caíram sobre ele. Callahan se sentiu sufocado pelo fedor do hálito seco e frio deles, mas não estava assustado. Nunca se sentira tão corajoso. Em toda a sua vida, nunca fora tão feliz como quando era um simples andarilho, não um padre mas apenas Callahan das Estradas, e sentiu que logo estaria livre para retomar aquela vida e perambular como quisesse, os deveres cumpridos. Isso era muito bom.

— Que você encontre sua Torre, Roland, consiga penetrar nela e escalá-la até o topo!

Os dentes de seus velhos inimigos, aqueles antigos irmãos e irmãs de uma coisa que dissera se chamar Kurt Barlow, afundaram nele como ferrões. Callahan absolutamente não os sentiu. Estava sorrindo quando puxou o gatilho e escapou deles para sempre.

 

ERGUIDO NA ONDA

Durante o trajeto pela estradinha de terra que os levara à casa do escritor na cidade de Bridgton, Eddie e Roland avistaram um pequeno caminhão laranja com as palavras CENTRAL MAINE MANUTENÇÃO ELÉTRICA pintadas dos lados. Perto dele, um homem de boné amarelo e colete laranja muito berrante estava cortando galhos que ameaçavam os fios de eletricidade que corriam mais embaixo. E não foi então que Eddie sentiu alguma coisa, alguma força mobilizadora? Talvez precursora da onda que se precipitava pelo Caminho do Feixe em direção a eles. Mais tarde Eddie achou que sim, mas não pôde dizer com certeza. Só Deus sabia como seu clima mental já estivera estranho, e não sem razão. Quantas pessoas conseguem encontrar seus criadores? Bem... Stephen King não tinha criado Eddie Dean, um jovem cuja Co-Op City ficava no Brooklyn, não no Bronx — não ainda, não naquele ano de 1977, mas Eddie tinha certeza de que, no tempo certo, King o criaria. Se não, como poderia ele estar ali?

Eddie emparelhou com o capô do caminhão, saltou e perguntou ao homem suado com a serra na mão como se chegava à Via do Casco da Tartaruga, na cidade de Lovell. O sujeito da Central Maine Manutenção deu a informação com ar bastante prestativo e acrescentou:

— Se está falando sério em ir hoje para Lovell, vai ter de usar a rota 93. A estrada do Pântano, como alguns a chamam.

Ele ergueu a mão e balançou a cabeça como um homem querendo impedir uma contestação, embora Eddie não tivesse dito uma palavra desde que fez a pergunta.

— Aumenta o percurso em 11 quilômetros, eu sei, e seu carro vai sacudir como um carro de boi, mas hoje não se pode passar por East Stoneham. A estrada está bloqueada por muita gente. Polícia estadual, caipiras locais, até mesmo a chefatura do condado de Oxford.

— Está brincando — disse Eddie. Parecia uma resposta suficientemente segura.

O sujeito da companhia elétrica balançou severamente a cabeça.

— Ninguém parece saber exatamente o que está acontecendo, mas houve tiros... talvez de metralhadoras... e explosões. — Ele bateu no velho walkie-talkie coberto de poeira que trazia preso no cinto. — Eu mesmo ouvi o t-word uma. ou duas vezes esta tarde. Mas para mim não foi surpresa.

Eddie não fazia idéia do que podia ser o t-word, mas sabia que Roland queria continuar. Podia sentir mentalmente a impaciência do pistoleiro; quase podia ver o impaciente gesto de Roland agitando o dedo, um gesto que queria dizer vamos, vamos.

— Estou falando de terrorismo — disse o cara da eletricidade, baixando depois a voz. — As pessoas não acham que uma merda dessas pode acontecer na América, parceiro, mas pode, acredite. Se não hoje, então mais cedo ou mais tarde. Alguém vai explodir a Estátua da Liberdade ou o Empire State Building, é o que eu penso... os grupos da direita, os grupos da esquerda ou os malditos árabes. Tem muita gente louca.

Eddie, que estava bem familiarizado com dez anos a mais de história que aquele sujeito, abanou a cabeça.

— Provavelmente você está certo. Seja como for, obrigado pela informação.

— Só estou tentando impedir que perca tempo. — E, quando Eddie abriu a porta do lado do motorista do Ford sedã de John Cullum, ele acrescentou: — Se meteu em alguma briga? Parece que está meio machucado. E está mancando.

Eddie entrara numa briga, sem dúvida: fora ferido no braço e baleado na panturrilha direita. Nenhum desses ferimentos tinha sido sério, e no precipitar dos acontecimentos quase se esquecera deles. Agora voltavam a doer bastante. Por que, em nome de Deus, dispensara o vidro de comprimidos de Percocet de Aaron Deepneau?

— É — disse ele —, por isso é que estou indo para Lovell. O cachorro de um sujeito me mordeu. Tenho de ter uma conversa com ele. — História bizarra, praticamente sem trama, mas Eddie não era escritor. Isso era tarefa de King. De qualquer modo, a desculpa serviu para deixá-lo retomar em paz o volante do Ford Galaxie de Cullum antes que o cara da energia lhe fizesse mais alguma pergunta. Eddie achou que sua tirada fora um sucesso. Partiu sem demora.

— Conseguiu a informação? — Roland perguntou.

— Consegui.

— Bom. Tudo está estourando ao mesmo tempo, Eddie. Temos de pegar Susannah o mais depressa possível. E também Jake e Père Callahan. E o bebê está vindo, seja ele o que for. Talvez já tenha chegado.

Vire à direita quando sair de novo na estrada do Kansas, o cara da energia dissera a Eddie (o Kansas como na história de Dorothy, Totó e tia Em, tudo estourando ao mesmo tempo) e foi o que ele fez. Isso os colocou rodando para o norte. O sol tinha caído atrás das árvores à esquerda, jogando as duas pistas de asfalto inteiramente na sombra. Eddie teve uma sensação quase palpável de tempo, algo que deslizava entre os dedos como alguma roupa fabulosamente cara e macia demais para ficar no lugar. Pisou no acelerador e o velho Ford de Cullum, mesmo com as válvulas rateando, deu uma pequena arrancada. Eddie chegou aos noventa e manteve a velocidade. Talvez fosse possível aumentá-la, mas a estrada do Kansas era cheia de curvas e sem manutenção.

Roland tirara uma folha de bloco do bolso da camisa, abrira e estava agora a examiná-la (embora Eddie duvidasse que o pistoleiro pudesse realmente ler muita coisa do documento; as palavras escritas naquele mundo seriam sempre extremamente misteriosas para ele). No alto do papel, sobre a letra trêmula mas perfeitamente legível de Aaron Deepneau (e a pomposa assinatura de Calvin Tower), havia a caricatura de um castor sorridente e as palavras MINHAS COISAS IMPORTANTES A FAZER.* Um trocadilho idiota, com certeza.

Não gosto de perguntas tolas, não faço jogos tolos, Eddie pensou, de repente sorrindo. Era um ponto de vista ao qual Roland ainda se apegava, Eddie tinha bastante certeza disso, não obstante o fato de que, durante a viagem em Blaine, o Mono, suas vidas tinham sido salvas por um bem articulado grupo de questões tolas. Eddie abriu a boca para dizer que o que talvez se convertesse no mais importante documento da história do mundo — mais importante que a Carta Magna, a Declaração de Independência ou a Teoria da Relatividade de Albert Einstein — estava encabeçado por um jogo de palavras idiota, o que Roland achava disso? De qualquer modo, antes que ele pudesse proferir uma única palavra, a onda arrebentou.

 

Seu pé escapou do acelerador, o que foi bom. Se o pé tivesse continuado lá, tanto ele quanto Roland teriam certamente saído feridos, talvez mortos. Quando a onda chegou, manter o controle do Ford Galaxie de John Cullum passou para o último lugar na lista de prioridades de Eddie Dean. Era como naquele momento em que a montanha-russa atinge o alto da primeira descida, hesita um momento... se inclina... mergulha... e você cai com um súbito jato de ar quente de verão em seu rosto, uma pressão contra o peito e seu estômago flutuando em algum lugar atrás de você.

Naquele momento Eddie viu que tudo no carro de Cullum tinha se soltado e estava flutuando — cinzas de cachimbo, duas canetas, um clips que estava no painel, seu dinh e, ele percebeu, o ka-mai do dinh, o bom e velho Eddie Dean. Não era de admirar que tivesse perdido o frio no estômago! (Não estava consciente de que o próprio veículo, que tinha parado na margem da estrada, estava também flutuando, se inclinando vagarosamente de frente para trás a 10 ou 15 centímetros do solo, como um pequeno barco num mar invisível.)

Então a estrada de barro cercada de árvores desapareceu. Bridgton desapareceu. O mundo desapareceu. Havia o som de sinos todash, repulsivo e nauseante, fazendo com que Eddie tivesse vontade de protestar com um rangido de dentes... Só que seus dentes também tinham desaparecido.

 

Como Eddie, Roland teve a nítida sensação de ser primeiro erguido e depois de ficar suspenso, como alguma coisa que tivesse perdido os laços com a gravidade da Terra. Ouviu os sinos e teve a impressão de estar sendo guindado pelo muro da existência, mas entendeu que aquilo não era um verdadeiro todash — pelo menos não do tipo que tinham experimentado antes. Aquilo era provavelmente o que Vannay chamava aven kal, palavras que significavam erguido no vento ou carregado na onda. Só que a forma kal, em vez da mais habitual kas, indicava uma força natural de proporções desastrosas: não um vento, mas um furacão; não uma onda, mas uma tsunami.

O próprio Feixe quer falar com você, Gabby, disse mentalmente Vannay (Gabby* era o velho e sarcástico apelido que Vannay aplicara a Roland, pois o garoto de Steve Deschain falava pouco). O tutor manco e brilhante tinha deixado de usá-lo (provavelmente por insistência de Cort) quando Roland fez 11 anos. Faria muito bem em ouvir o que ele tem a dizer.

Vou ouvi-lo com atenção, Roland respondeu e foi jogado de volta no banco do carro. Engasgou, sem peso e nauseado.

Novos sinos. Então, de repente, estava flutuando de novo, desta vez sobre um salão cheio de camas vazias. Uma olhada foi suficiente para ter certeza que era para cá que os Lobos levavam as crianças seqüestradas nas Callas da Fronteira. Na extremidade do quarto...

Uma mão agarrou-lhe o braço, uma coisa que Roland teria julgado impossível naquele estado. Olhou para a esquerda e viu Eddie a seu lado, flutuando nu. Estavam ambos nus, as roupas lá atrás, no mundo do escritor.

Roland já tinha visto o que Eddie estava apontando. Na extremidade da sala, tinham colocado duas camas, uma ao lado da outra. Numa delas havia uma mulher branca. Suas pernas — as mesmas que Susannah usara em sua visita todash a Nova York, Roland não tinha dúvida — estavam muito abertas. Curvada entre as pernas, uma mulher com cabeça de rato — uma dos taheen, Roland tinha certeza.

Ao lado da mulher branca havia uma de pele negra cujas pernas terminavam logo abaixo dos joelhos. Flutuando nu ou não, nauseado ou não, em todash ou não, Roland nunca tinha se sentido tão feliz em ver alguém. E Eddie sentiu o mesmo. Roland ouviu-o gritar de alegria no centro de sua cabeça e estendeu a mão para silenciar o homem mais jovem. Tinha de silenciá-lo, pois Susannah estava olhando para eles, quase certamente os vira, e se falasse com eles, Roland queria ouvir cada palavra que dissesse. Pois embora aquelas palavras pudessem sair de sua boca, seria muito provavelmente a fala do Feixe, a Voz do Urso ou da Tartaruga.

As duas mulheres tinham os cabelos cobertos por capacetes de metal. Um tubo metálico segmentado os conectava.

Alguma espécie de fundidor de mente de Vulcano, disse Eddie, mais uma vez enchendo o centro da cabeça de Roland, eliminando tudo o mais. Ou talvez...

Silêncio!, Roland interrompeu. Silêncio, Eddie, pelo amor de seu pai!

Um homem usando um paletó branco pegou numa bandeja um fórceps de aparência sinistra e empurrou para o lado a enfermeira taheen de cabeça de rato. Curvou-se, espreitando entre as pernas de Mia e segurando o fórceps acima da cabeça. Parado ao lado dele, usando uma camiseta com palavras do mundo de Eddie e Susannah, havia um taheen com a cabeça marrom de um pássaro.

Ele vai perceber que estamos aqui, Roland pensou. Se demorarmos, vai certamente perceber e dar o alarme.

Mas Susannah estava olhando para ele, olhos febris sob a beirada do capacete. Brilhando de compreensão. Vendo os dois, ié, confesse!

Ela disse uma palavra e, num momento de intuição inexplicável mas perfeitamente confiável, Roland compreendeu que a palavra não vinha de Susannah mas de Mia. Contudo era também a Voz do Feixe, uma força talvez suficientemente inteligente para compreender com que seriedade estava ameaçada e para querer se proteger.

Chassit foi a palavra que Susannah disse; Roland a ouviu na cabeça porque eles eram ka-tet e an-tet; também viu a palavra se formando silenciosa nos lábios de Susannah. Ela erguia os olhos para o lugar onde os dois, flutuando, observavam algo que estava acontecendo, naquele exato momento, em algum outro onde e quando.

O taheen cabeça de falcão também levantou os olhos, talvez seguindo o olhar dela, talvez ouvindo os sinos com seus ouvidos protonaturalmente aguçados. Então o médico baixou o fórceps e enfiou-o sob a camisola de Mia. Ela gritou. Susannah gritou junto com ela. E como se o ser essencialmente incorpóreo de Roland pudesse ser empurrado pela força daqueles gritos conjuntos, como paina erguida e carregada por uma rajada do vento, o pistoleiro sentiu que era violentamente suspenso, perdendo contato com aquele lugar enquanto subia, mas segurando-se naquela simples palavra. A palavra lhe trouxe uma nítida recordação da mãe se inclinando sobre ele no berço. Acontecera num quarto de muitas cores, um quarto de criança, e ele agora, é claro, compreendia coisas que, quando menino, só aceitava — aceitava como as crianças mal saídas das fraldas aceitam tudo: com uma admiração que não questiona, com a muda suposição de que tudo é mágico.

As janelas do quarto de criança tinham vidros coloridos representando as Curvas do Arco-íris. Ele se lembrava da mãe se inclinando, o rosto coberto por uma incrível variedade de tons, o capuz atirado para trás de modo que ele podia seguir a curva do pescoço com o olho de uma criança

(tudo é mágico)

e a alma de um amante; ele se lembrava de ter pensado em como iria cortejá-la e tirá-la do pai; como se casariam, teriam seus próprios filhos e viveriam para sempre naquele reino de conto de fadas chamado Todo-Clarão; e ela cantava, Gabrielle Deschain cantava para o menino de olhos grandes que a olhava solenemente do travesseiro e já tinha estampadas no rosto as muitas e cambiantes cores de uma vida errante. Cantava uma alegre canção absurda que era assim:

 

Bebê cabeça, bebê amado,

Bebê me traga aqui suas frutas.

Chussit, chissit, chassit!

Traga o bastante para encher sua cesta!

 

O bastante para encher minha cesta, ele pensou enquanto era atirado, sem peso, através da escuridão e do terrível som dos sinos todash. A letra não era nonsense. As palavras eram números num idioma antigo, a mãe explicou quando, um dia, ele perguntou. Chussit, chissit, chassit: dezessete, dezoito, dezenove.

Chassit é dezenove, ele pensou. Claro, tudo é dezenove. De repente ele e Eddie estavam de novo na luz, uma luz alaranjada de aparência mortiça e doentia, e lá estavam Jake e Callahan. Roland chegou a ver Oi parado perto do tornozelo esquerdo de Jake, o pêlo arrepiado, o focinho recuando para mostrar os dentes.

Chussit, chissit, chassit, Roland pensou enquanto contemplava seu filho, um menino tão pequeno e parecendo terrivelmente inadequado no salão de jantar do Dixie Pig. Chassit é dezenove. O bastante para encher minha cesta. Mas que cesta? O que isso significa?

 

Ao lado da estrada do Kansas em Bridgton, o Ford de 12 anos de John Cullum (cento e setenta mil e quinhentos quilômetros no odômetro e só estava começando a entrar na meia-idade, como Cullum gostava de dizer) costurava vagarosamente de um lado para o outro sobre o acostamento de terra, os pneus da frente tocando o chão e depois se elevando para que os pneus traseiros pudessem beijar brevemente o solo. Lá dentro, dois homens que pareciam não apenas inconscientes mas transparentes, rolavam preguiçosos com o movimento do carro, como cadáveres num barco afundado. E em volta deles flutuava o lixo que existe em qualquer veículo que já tenha sido bastante usado: cinzas, canetas, clips, o mais antigo amendoim do mundo, uma moeda vinda do banco traseiro, espinhos de pinheiro dos tapetes e um dos próprios tapetes. Na escuridão do porta-luvas, objetos roçavam timidamente contra a porta fechada.

Algum passante teria sem a menor dúvida ficado atônito com a visão de toda aquela coisa — e gente!, gente que talvez estivesse morta! — flutuando no interior do carro como escapamentos de jatos numa cápsula espacial. Mas ninguém acabou aparecendo. Os que moravam daquele lado de Long Lake estavam olhando principalmente para o lado de East Sotonenam, embora não houvesse realmente nada lá para se ver. Mesmo a fumaça quase sumira.

Lentamente o carro flutuava e, dentro dele, Roland de Gilead subia devagar até o teto, onde a cabeça era pressionada contra o forro sujo do teto e as pernas deixavam o banco da frente para se arrastarem atrás dele. Eddie foi primeiro mantido no lugar pelo volante, mas de repente, com algum movimento do carro para o lado, ele escorregou e também subiu, no rosto uma expressão molenga, sonhadora. Um filete prateado de cuspe escapou pelo canto de sua boca e flutuou, brilhante e cheio de minúsculas bolhas, ao lado da bochecha com crostas de sangue.

 

Roland sabia que Susannah o vira e que provavelmente também tinha visto Eddie. Fora por isso que se esforçara tanto para falar aquela única palavra. Jake e Callahan, contudo, não viram nenhum deles. O garoto e o Père tinham entrado no Dixie Pig, um ato muito corajoso ou muito tolo, e agora toda a concentração deles estava necessariamente voltada para o que tinham encontrado lá.

Imprudente ou não, Roland estava febrilmente orgulhoso de Jake. Viu que o garoto tinha estabelecido a canda entre ele e Callahan: aquela distância (jamais a mesma em duas situações) que assegura que uma dupla de pistoleiros que apareçam de repente não possam ser mortos por um mesmo tiro. Ambos tinham chegado dispostos a lutar. Callahan estava segurando o revólver de Jake... e também outra coisa: algum tipo de estatueta. Roland tinha quase certeza que era um can-tah, um dos pequenos deuses. O garoto tinha os Orizas de Susannah com sua bolsa, resgatados só os deuses sabiam de onde.

O pistoleiro observou uma mulher gorda cuja humanidade acabava no pescoço. Acima do trio de queixos flácidos, a máscara que estivera usando era uma ruína. Vendo a cabeça de rato sob a máscara, Roland entendeu de repente um bom número de coisas. Algumas podiam ter lhe ocorrido claramente mais cedo, se sua atenção não estivesse (como a do garoto e a do Père) concentrada em outros assuntos.

Nos homens baixos de Callahan, por exemplo. Podiam muito bem ser taheen, criaturas saídas nem do primal nem do mundo natural, mas coisas bastardas vindas de algum lugar entre os dois. Certamente não eram o tipo de seres que Roland chamava de Vagos Mutantes, que tinham surgido como resultado das guerras insensatas e das experiências desastrosas do Povo Antigo. Não, eles podiam ser genuínos taheen, às vezes conhecidos como terceiro povo ou can-toi, e sim, Roland devia ter previsto isso. Quantos taheens estariam agora a serviço do ser conhecido como Rei Rubro? Alguns? Muitos?

Todos?

Se a resposta certa fosse a terceira, Roland achava que o caminho para a Torre seria realmente difícil. Mas pretender olhar além do horizonte não era muito da natureza do pistoleiro e, neste caso, sua falta de imaginação foi certamente uma bênção.

 

Viu o que precisava ver. Embora o can-toi — o povo baixo de Callahan — tivesse cercado Jake e Callahan por todos os lados (Jake e Callahan ainda não tinham visto a dupla que estava atrás deles e que tomava conta da porta para a rua 61), o Père os imobilizara com a estatueta, assim como Jake fora capaz de imobilizar e fascinar as pessoas com a chave que encontrara no terreno baldio. Um taheen amarelo, com corpo de homem e cabeça de abutre, tinha uma espécie de revólver quase à mão, mas não fez qualquer esforço para pegá-lo.

Contudo havia outro problema, um detalhe em que o olho de Roland, treinado para enxergar cada possível armadilha e emboscada, se fixou de imediato. Ele reparou na paródia, que era uma blasfêmia, da Última Fraternidade do Eld na parede e compreendeu plenamente seu significado segundos antes que ela fosse violentamente puxada para um lado. E o cheiro: não era apenas carne, mas carne humana. Também aquilo ele teria compreendido antes, se tivesse tido tempo de pensar no assunto... só que a vida em Calla Bryn Sturgis não lhe proporcionara muito tempo para pensar. Na Calla, como num livro de histórias, a vida tinha sido a porra de uma correria atrás da outra.

Agora, contudo, estava bem claro, não era? O povo baixo só podia ser taheen; bichos-papões das crianças, se você preferir. Os que estavam atrás da tapeçaria eram o que Callahan havia chamado vampiros Tipo Um e o que o próprio Roland conhecia como os Avós, talvez os mais horripilantes e poderosos sobreviventes do recuo do primal, muito tempo atrás. E embora criaturas como os taheens pudessem se contentar em permanecer onde estavam, abrindo a boca para o sigul que Callahan levantava, os Avós não gastariam um segundo olhar com ele.

Agora insetos barulhentos saíam em ondas de baixo da mesa. Eram de um tipo que Roland tinha visto antes e quaisquer dúvidas que pudesse ter tido sobre o que estava atrás daquela tapeçaria desapareceu à visão deles. Eram parasitas, bebedores de sangue, serviçais para ações de campo: pulgas dos Avós. Provavelmente não perigosos enquanto houvesse um trapalhão presente, mas quando se via um número tão grande de tais insetos (que eram chamados doutores), sem dúvida os Avós estavam logo atrás.

Enquanto Oi investia contra os insetos, Roland de Gilead fez a única coisa em que pôde pensar: mergulhou para Callahan.

Para dentro de Callahan.

 

Père, estou aqui.

Sim, Roland. O que...

Não dá tempo. TIRE-O DAQUI. Tem de fazer isso. Tire-o daqui enquanto ainda há tempo!

 

E Callahan tentou. O garoto, é claro, não queria ir. Observando-o através dos olhos do Père, Roland pensou com certa amargura: Eu devia tê-lo instruído melhor sobre a necessidade de obedecer. Se bem que todos os deuses sabem que fiz o melhor que pude.

— Vá enquanto pode — Callahan disse a Jake, lutando para manter o controle. — Vá pegá-la se puder. Esta é a ordem de seu dinh. Esta é também a vontade do Branco.

Isto o devia ter convencido, mas não, ele ainda resistia (deuses, era quase tão ruinzinho quanto Eddie!), e Roland não podia mais esperar.

Père, deixe comigo.

Roland assumiu o controle sem esperar por uma resposta. Já podia sentir a onda, a aven kal, começando a recuar. E os Avós viriam a qualquer momento.

— Vá, Jake! — ele gritou, usando a boca e as cordas vocais do Père como alto-falante. Se Roland tivesse pensado em como era possível fazer uma coisa como aquela, teria ficado completamente tonto, mas pensar em coisas nunca fora o seu forte; ele apenas se sentiu aliviado ao ver o brilho nos olhos do garoto aumentar. — Esta é a única oportunidade que você tem e não pode perdê-la! Encontre Susannah! Como dinh eu ordeno!

Então, como acontecera na ala do hospital onde Susannah estava, Roland se sentiu novamente arremessado para cima como uma coisa sem peso, soprado do corpo e da mente de Callahan como um fragmento de teia de aranha ou paina de dente-de-leão. Por um momento deu golpes no ar tentando voltar atrás, como nadador querendo enfrentar uma corrente poderosa pelo tempo suficiente para alcançar a costa, mas era impossível.

Roland! Essa era a voz de Eddie, cheia de desânimo. Jesus, Roland, o que em nome de Deus são essas coisas?

A tapeçaria tinha sido puxada para um lado com violência. As criaturas que saíram de trás dela eram arcaicas e de aspecto bizarro, as faces anormais deformadas com dentes em crescimento selvagem, as bocas mantidas abertas por presas grossas como os pulsos do pistoleiro, os queixos enrugados e peludos brilhando de sangue e pedaços de carne.

E no entanto — deuses, ó deuses — o garoto continuava lá!

— Vão matar primeiro Oi! — Callahan gritou, só que Roland não achou que fosse Callahan. Pensou que fosse Eddie, usando como Roland a voz de Callahan. De algum jeito, Eddie tinha encontrado correntes mais brandas ou mais vigor. Vigor suficiente para entrar após Roland ter sido soprado para fora. — Vão matá-lo na sua frente e beber o sangue dele!

Isto finalmente bastou. O garoto se virou e fugiu com Oi correndo a seu lado. Cruzou bem na frente do taheen-abutre e passou entre dois representantes do folken baixo, mas ninguém fez qualquer esforço para agarrá-lo. Continuavam contemplando a Tartaruga erguida pela palma de Callahan, hipnotizados.

Os Avós não deram absolutamente atenção ao garoto que fugia, como Roland tivera certeza que ia acontecer. Ele sabia, pela história de Père Callahan, que um dos Avós chegara à cidadezinha de ’Salem’s Lot onde durante algum tempo o Père fora padre. O Père tinha sobrevivido à experiência (fato não comum para quem se defrontava com tais monstros após perder suas armas e siguls de resistência), mas aquela coisa forçara Callahan a beber de seu sangue contaminado antes de deixá-lo partir. Isto o marcara para esses outros.

Callahan estava segurando sua cruz-sigul na direção deles, mas Roland não viu mais nada. Foi soprado de volta para a escuridão. Os sinos então começaram de novo, quase o deixando maluco com seu terrível repicar. Podia ouvir Eddie gritando, ao longe, um som fraco. Roland se aproximou dele no escuro, tentou pegar seu braço, o braço escapou, encontrou a mão e segurou-a. Rolaram várias vezes, agarrados um no outro, tentando não se separarem, esperando não se perderem na escuridão sem portas entre os mundos.

 

EDDIE DÁ UM TELEFONEMA

Eddie retornou ao velho carro de John Cullum do mesmo jeito que às vezes saía dos pesadelos quando era adolescente: atônito e arfando de medo, totalmente desorientado, sem ter certeza de quem era, muito menos de onde estava.

Teve um segundo para perceber que, por incrível que pudesse parecer, ele e Roland estavam flutuando nos braços um do outro como gêmeos ainda não nascidos num útero. Uma caneta e um prendedor de papel passaram na frente de seus olhos. Assim como um estojo de plástico amarelo que ele identificou como uma fita de oito canais. Não perca tempo, John, ele pensou. Nenhuma utilidade aqui. Essa bugiganga de fita não tem futuro, pode crer.

Alguma coisa arranhava sua nuca. Seria a luzinha áspera no teto do Galaxie velho e sujo de John Cullum? Por Deus ele achou que p...

Então a gravidade retornou e os dois caíram no meio dos mais insignificantes objetos que choviam ao redor. O tapete que estivera flutuando na cabine do Ford aterrissou dobrado no eixo do volante. A barriga de Eddie bateu no alto do banco da frente e o ar saiu de seus pulmões numa rude golfada. Roland pousou ao lado dele, sobre o quadril dolorido. Deu uma espécie de latido e começou a recuar para o banco da frente.

Eddie abriu a boca para falar. Antes que conseguisse, a voz de Callahan encheu sua cabeça: Salve, Roland! Salve, pistoleiro!

Quanto esforço psíquico custara ao Père falar daquele outro mundo? E atrás dele, débil mas ali, o som de gritos bestiais, triunfantes. Uivos que não eram de todo palavras.

Os olhos arregalados e assustados de Eddie encontraram o olhar azul-claro de Roland. Eddie estendeu a mão para a mão esquerda do pistoleiro, pensando: Ele está indo. Poderoso Deus, acho que o Père está indo.

Que você consiga encontrar sua Torre, Roland, e nela penetrar...

— ...e que consiga chegar ao alto — Eddie soprou.

Estavam de volta ao carro de John Cullum, estacionado (sem dúvida torto, mas sem nenhum outro problema) na margem da estrada do Kansas, nas primeiras horas do crepúsculo de um dia de verão. O que Eddie via, no entanto, era o tremendo brilho alaranjado das luzes naquele restaurante que não era absolutamente um restaurante, mas um covil de canibais. Terrível pensar que podia haver coisas assim, e que as pessoas passavam dia e noite diante daquele esconderijo sem ter a menor noção do que havia lá dentro, sem ao menos perceber que talvez estivessem sendo marcadas e avaliadas por olhos ávidos...

Então, antes que pudesse pensar mais alguma coisa, Eddie gritou de dor quando dentes fantasmas agarraram seu pescoço, faces e diafragma; quando sua boca foi violentamente beijada por pêlos e os testículos foram espetados. Gritou de novo, agarrando o ar com a mão livre até que Roland o segurou, obrigando-o a se acalmar.

— Pare, Eddie. Pare. Eles se foram. — Uma pausa. A conexão foi quebrada e a dor se extinguiu. Roland tinha razão, é claro. Ao contrário do Père, eles tinham escapado. Eddie viu que os olhos de Roland estavam brilhantes de lágrimas. — Ele também foi embora. O Père.

— Os vampiros? Você sabe, os canibais? Será... Será que eles...? — Eddie não pôde concluir o pensamento. A idéia de Père Callahan como um deles era terrível demais para ser levantada em voz alta.

— Não, Eddie. Absolutamente não. Ele... — Roland puxou o revólver que ainda usava. Os relevos de ferro do cabo brilhavam na última luz do dia. Por um momento enfiou o cano do revólver bem sob o queixo sem parar de olhar para Eddie.

— O Père escapou deles assim — disse Eddie.

— Foi, e eles devem ter ficado realmente furiosos.

Eddie abanou a cabeça, subitamente exausto. E os ferimentos estavam doendo de novo. Ou melhor, soluçando.

— Deus — disse ele. — Agora ponha essa coisa no lugar antes que acabe se baleando. — E depois que Roland guardou a arma: — E isso que acabou de nos acontecer? Entramos em todash ou terá sido outro feixemoto?

— Acho que foi um pouco de ambos — disse Roland. — Existe uma coisa chamada aven kal, que é como uma onda de maré que corre ao longo do Caminho do Feixe. Fomos erguidos nela.

— E nos foi permitido ver o que queríamos ver.

Depois de pensar um instante, Roland balançou a cabeça com grande firmeza:

— Vimos o que o Feixe quis que víssemos. O lugar para onde ele quer nos levar.

— Roland, você estudou esta coisa quando era garoto? Será que seu velho parceiro Vannay deu aulas de... não sei, Anatomia dos Feixes e Curvas do Arco-íris?

Roland estava sorrindo.

— Sim, acho que nos ensinaram essas coisas em História e Summa Logicales.

— Lógica-o quê?

Roland não respondeu. Olhava pela janela do carro de Cullum, ainda tentando recuperar o fôlego e se recompor — no sentido físico e figurado. Isso não era assim tão fácil ali; estar naquela parte de Bridgton era como estar nos arredores de um certo terreno baldio em Manhattan. Porque havia uma força criadora ali por perto. Não sai King, como Roland a princípio acreditara, mas o potencial de sai King... aquilo que sai King podia ser capaz de criar no tempo certo e no mundo certo. Não estava King sendo também levado em aven kal, talvez engendrando a própria onda que o erguia?

Um homem não pode se fazer sozinho, Cort ensinara, quando Roland, Cuthbert, Alain e Jamie eram pouco mais que crianças pequenas. Cort falando no severo tom de auto-segurança que aos poucos foi se transformando em aspereza, à medida que seu último grupo de rapazes se aproximava dos testes de maturidade. Mas talvez acerca de se fazer sozinho Cort não tivesse razão. Talvez, sob certas circunstâncias, um homem pudesse se fazer sozinho. Ou dar nascimento ao universo a partir do umbigo, como diziam que Gan tinha feito. Como escritor, King não era um criador? E no fundo, não era criação tirar alguma coisa do nada... vendo o mundo num grão de areia ou se fazer sozinho?

E o que ele estava fazendo, sentado ali e pensando em complicados temas filosóficos enquanto dois membros de seu tet continuavam perdidos?

— Faça esta carruagem andar — disse Roland, procurando ignorar o leve rumor que ouvia, não sabia se a Voz do Feixe ou a Voz de Gan, o Criador. — Temos de chegar à Via do Casco da Tartaruga nessa cidade de Lovell e ver se podemos encontrar o caminho para onde Susannah está.

E não apenas Susannah. Se Jake tivesse conseguido se esquivar dos monstros no Dixie Pig, também teria se encaminhado para onde ela estava. Roland não tinha dúvida disso.

Eddie estendeu a mão para o câmbio (apesar de todos os seus giros, o velho Galaxie de Cullum não havia parado de funcionar), mas a mão caiu. Ele se virou e olhou para Roland com uma expressão desolada.

— O que há com você, Eddie? Seja o que for, desembuche logo. O bebê está vindo... Talvez já tenha vindo. Logo Susannah não terá mais utilidade para Mia!

— Eu sei — disse Eddie. — Mas não podemos ir para Lovell. — Fez uma careta como se o que estava dizendo lhe causasse uma dor física. Roland desconfiou que provavelmente era isso mesmo. — Ainda não.

 

Ficaram um momento em silêncio, ouvindo o zumbido da suave melodia do Feixe, um rumor que às vezes se transformava em vozes de contentamento. Ficaram observando as sombras se adensando nas árvores, onde um milhão de faces e um milhão de histórias se emboscavam, oh, quem vai me dizer porta não-encontrada, quem vai me dizer perdida!

Eddie ficou numa certa expectativa de que Roland gritasse com ele — não seria a primeira vez — ou talvez lhe desse um cascudo na cabeça, como Cort, o velho mestre do pistoleiro, costumava fazer quando os alunos eram lentos para raciocinar ou rebeldes. Eddie quase queria que ele o fizesse. Um bom golpe na mandíbula será um jeito de clarear as idéias, segundo Shardik.

Só que um pensamento barrento não é o problema e você sabe disso, ele pensou. Sua cabeça está mais clara que a dele. Se não estivesse, você seria o primeiro a querer sair deste mundo e continuar a procurar sua esposa perdida.

Por fim Roland falou:

— Qual é o problema, então? Isto?

Ele se curvou e pegou a folha dobrada de papel com a apurada letra de mão de Aaron Deepneau. Roland deu uma rápida olhada, depois a jogou no colo de Eddie com uma careta de aversão.

— Você sabe como gosto dela — disse Eddie num tom baixo, tenso. — Você sabe disso!

Roland abanou a cabeça, mas sem olhar para Eddie. Parecia estar contemplando as botas rachadas, empoeiradas, e a sujeira do piso no lado do carona. Aqueles olhos baixos, aquele olhar que não se virava para ele, ele que chegara quase a idolatrar Roland de Gilead, não deixaram de quebrar o coração de Eddie Dean. Mas continuou firme. Agora não havia mais lugar para erros. Era final de jogo.

— Eu iria até ela neste minuto se achasse que era a coisa certa a fazer. Neste segundo, Roland! Mas temos de concluir nossa tarefa neste mundo. Porque este mundo é de mão única. Se partirmos hoje, 9 de julho de 1977, talvez jamais possamos voltar para cá. Nós...

— Eddie, já conversamos tudo isso. — Ainda sem olhar para ele.

— Sim, mas você não entende? Só temos uma bala para atirar, um Oriza para jogar. Inclusive foi por isso que viemos a Bridgton! Deus sabe como eu quis ir para a Via do Casco da Tartaruga depois que conversamos com John Cullum, mas achei que tínhamos de ver o escritor e conversar com ele. E eu estava certo, não estava? — Agora quase num tom de súplica: — Não estava?

Roland finalmente o olhou e Eddie se deu por satisfeito. Tudo aquilo já era bem duro, bem miserável, sem ser preciso suportar o olhar esquivo, abatido de seu dinh.

— E talvez não faça mal se ficarmos um pouco mais. Se nos concentrarmos naquelas duas mulheres deitadas uma ao lado da outra naquelas duas camas, Roland... se nos concentrarmos em Suze e Mia como as vimos pela última vez... é possível que consigamos cortar para dentro nesse ponto da história delas. Não é?

Após um longo momento de consideração durante o qual Eddie não teve consciência de respirar uma única vez, o pistoleiro abanou afirmativamente a cabeça. A coisa podia não acontecer se eles encontrassem na Via do Casco da Tartaruga o que o pistoleiro passara a chamar de “porta dos antigos”, pois tais portas eram dedicadas e saíam sempre no mesmo ponto. Mas se encontrassem uma porta mágica em algum lugar ao longo da Via do Casco da Tartaruga em Lovell, uma que tivesse ficado para trás quando o primal retrocedeu, então sim, talvez conseguissem penetrar onde quisessem. Mas tais portas também podiam ser traiçoeiras; já tinham descoberto isso por experiência própria na Gruta das Vozes, quando a porta que havia lá mandara Jake e Callahan para Nova York em vez de Roland e Eddie, desmontando assim todos os planos que tinham feito para a Terra do Dezenove.

— O que mais temos a fazer? — disse Roland. Não havia raiva na voz dele, mas Eddie achou que soava cansada e insegura.

— Seja o que for, vai ser difícil. Isso eu garanto.

Eddie pegou o recibo de venda e atirou-lhe o olhar sombrio que qualquer Hamlet da história do drama dispensaria ao crânio do pobre Yorick. Depois voltou a olhar para Roland.

— Isto nos dá direito ao terreno baldio com a rosa. Precisamos levá-lo para Moses Carver, da Holmes Dental Industries. E onde ele está? Não sabemos.

— E inclusive, Eddie, não sabemos sequer se ainda está vivo.

Eddie deixou escapar um riso selvagem.

— Você diz a verdade, eu digo obrigado! Por que não faço a volta aqui, Roland? Dirijo de volta para a casa de Stephen King. Podemos filar uns vinte ou trinta paus dele... porque, irmão, não sei se você reparou, mas não temos uma mísera moedinha no bolso somado dos dois... e, mais importante, podemos conseguir que King escreva nos mandando um detetive particular realmente tarimbado, alguém que se pareça com Bogart e mande ver como Clint Eastwood. Que ele siga o rastro deste tal de Carver para nós!

Balançou a cabeça como se quisesse clarear as idéias. O rumor das vozes soava doce em seus ouvidos, antídoto perfeito para os feios sinos todash.

— Bem, minha esposa está em maus lençóis em algum lugar lá adiante, pois pode estar sendo comida viva por vampiros ou insetos-vampiros e eu estou aqui, numa estradinha de terra, com um sujeito que tem como aptidão fundamental atirar nas pessoas enquanto eu tento descobrir como vou começar a porra de uma corporação!

— Calma — disse Roland, já conformado a se demorar um pouco mais naquele mundo, aparentemente bastante calmo. — Me diga o que acha que precisamos fazer antes de sacudirmos a poeira deste onde e quando para sempre de nossos calcanhares.

Então Eddie falou.

 

Roland já tinha ouvido muita coisa sobre o assunto, mas ainda não entendera plenamente a posição difícil em que estavam. Possuíam o terreno baldio na Segunda Avenida, sem dúvida, mas a base de sua propriedade era um documento holográfico que pareceria extremamente frágil num tribunal, principalmente se a Sombra Corporation, com todo o seu poderio, começasse a jogar advogados contra eles.

Se possível, Eddie queria entregar a Moses Carver o documento. Também queria lhe passar a informação de que sua afilhada, Odetta Holmes (que, no verão de 1977, já estava perdida havia 13 anos), continuava viva, bem e muitíssimo interessada em que Carver assumisse a tutela, não apenas do terreno baldio, mas de uma certa rosa que crescia selvagem dentro de seus limites.

Moses Carver — se ainda vivo — tinha de ser convencido a integrar a autodenominada Tet Corporation à Holmes Industries (ou vice-versa). Mais! Tinha de dedicar o que restasse de sua vida (e Eddie desconfiava que Carver tivesse àquela altura a idade de Aaron Deepneau) a construir uma empresa gigante cujo verdadeiro e único propósito era ir criando, a cada passo, obstáculos ao crescimento de duas outras corporações gigantescas, Sombra e North Central Positronics. Se possível, estrangulá-las, impedir que se transformassem num monstro que estendesse sua trilha de destruição por toda a moribunda extensão do Mundo Médio, ferindo mortalmente a própria Torre Negra.

— Talvez devêssemos ter deixado o documento de venda com sai Deepneau — disse Roland pensativamente depois de ouvir Eddie até o fim. — Pelo menos ele podia ter localizado esse Carver, procurado o homem e contado nossa história.

— Não. Fizemos bem em ficar com isso. — Era uma das poucas coisas de que Eddie tinha certeza absoluta. — Se tivéssemos deixado essa folha de papel com Aaron Deepneau, a essa altura ele já teria virado cinzas no vento.

— Acha que Tower teria se arrependido do negócio, e mandado o amigo destruir o papel?

— Tenho certeza — disse Eddie. — E mesmo que Deepneau resistisse à matraca do velho amigo batendo horas e horas no ouvido, “queime o papel, Aaron, eles me coagiram e agora pretendem continuar me ferrando, você sabe disso tão bem quanto eu, queime o papel e mandaremos a polícia pegar os salafrários”, mesmo assim você acha que Moses Carver ia acreditar numa história tão louca?

Roland deu um sorriso abatido.

— Acho, Eddie, que não importa no que ele ia ou não acreditar. E pense um momento, quanto de nossa história louca Aaron Deepneau realmente ouviu?

— Não tanta coisa assim — Eddie concordou fechando os olhos, apertando as costas das mãos contra eles, com força. — Só me vem à cabeça uma pessoa que pode realmente convencer Moses Carver a fazer as coisas que teríamos a lhe pedir e ela está muito ocupada. Está no ano de 1999. E nessa época, Carver já está tão morto quanto Deepneau. O próprio Tower pode já ter morrido.

— Bem, o que podemos fazer sem ela? Que saída você acha que temos?

Eddie estava pensando que talvez Susannah pudesse voltar a 1977 sem eles, desde que pelo menos ela ainda não tivesse visitado essa época. Bem... Susannah fora até lá em todash, mas Eddie achava que isso não chegava exatamente a valer. Talvez só pudesse ser barrada de 1977 sob o pretexto de que formava um ka-tet com ele e Roland. Ou talvez houvesse outros pretextos. Eddie não sabia. Ler as letrinhas miúdas nunca fora o seu forte. Ele se virou para perguntar o que Roland pensava, mas Roland falou antes que tivesse essa chance.

— E quanto a nosso dan-tete? — ele perguntou.

Embora Eddie compreendesse o termo — significava deus-criança ou pequeno salvador —, ele a princípio não entendeu o que Roland pretendia dizer. Então descobriu. O próprio carro onde estavam sentados não fora emprestado pelo dan-tete de Waterford dos dois, diga obrigado?

— Cullum? É desta pessoa que está falando, Roland? O sujeito que tem uma vitrine de bolas de beisebol autografadas?

— Você diz a verdade — Roland respondeu. Falava naquele tom seco que não indicava satisfação, mas uma leve exasperação. — Não me sobrecarregue com seu entusiasmo pela idéia.

— Mas... você o mandou embora! E ele concordou em ir!

— Mas você achou que estava muito entusiasmado para visitar algum amigo em Vermong?

— Mont — disse Eddie, incapaz de suprimir um sorriso. Contudo, sorrindo ou não, o que ele sentia mais fortemente era desânimo. Achava que o feio som de raspar que ouvia em sua imaginação eram os dois únicos dedos da mão direita de Roland, mexendo pela ponta do próprio cano do revólver.

Roland deu de ombros como se quisesse dizer que pouco se importava se Cullum tinha falado que ia para Vermont ou para o Baronato de Garlan.

— Responda à minha pergunta.

— Bem...

Cullum na realidade não expressara absolutamente grande entusiasmo pela idéia. Desde o início reagira mais como um deles que como um dos comedores de erva entre os quais vivia (Eddie reconhecia comedores de erva muito facilmente, ele próprio tinha sido um deles até Roland seqüestrá-lo e passar a lhe ministrar suas lições homicidas). Cullum estava sem dúvida intrigado com os pistoleiros, curioso para saber o que de fato estavam fazendo em sua cidadezinha. Mas Roland fora muito enfático acerca do que queria e as pessoas tinham a mania de acabar seguindo suas ordens.

Agora ele fazia um movimento circular com a mão direita, seu velho gesto de impaciência. Ande, pelo amor de Deus. Cague ou desocupe a moita.

— Acho que ele realmente não queria ir — disse Eddie. — Mas isso não significa que ainda esteja em sua casa em East Stoneham.

— Mas está. Ele não foi.

Só com algum esforço, Eddie conseguiu impedir que seu queixo caísse.

— Como sabe? Consegue tocá-lo, é isso?

Roland balançou negativamente a cabeça.

— Então como...

— Ka.

— Ka? Ka? Exatamente o quê está querendo dizer com essa porra?

Roland tinha um ar abatido, cansado, a pele pálida apesar do bronzeado.

— Quem mais conhecemos nesta parte do mundo?

— Ninguém, mas...

— Então é ele. — Roland falou sem inflexão, como se mencionasse a alguma criança um fato óbvio da vida: em cima fica depois da sua cabeça, embaixo fica onde seus pés encostam no chão.

Eddie estava pronto a dizer que certas coisas não passavam de estupidez, superstição grosseira, mas não o fez. Além de Deepneau, Tower, Stephen King e o hediondo Jack Andolini, John Cullum era a única pessoa que conheciam naquela parte do mundo (ou naquele nível da Torre, se preferirmos pensar assim). E depois do que tinha visto nos últimos meses — diabo, na última semana —, quem era Eddie para fazer pouco caso de superstições?

— Tudo bem — disse Eddie. — Acho que é melhor tentarmos.

— Como entramos em contato?

— Podemos telefonar para ele de Bridgton. Mas numa história, Roland, um personagem como John Cullum nunca iria sair do banco para salvar a pátria. Não seria considerado realista.

— Na vida real — disse Roland —, tenho certeza que isso não pára de acontecer.

E Eddie riu. O que mais poderia fazer? Combinava tão perfeitamente com Roland.

 

BRIDGTON HIGH STREET 1

HIGHLAND LAKE 2

HARRISON 3

WATERFORD 6

SWEDEN 9

LOVELL 18

FRYEBURG 24

Tinham acabado de passar por esta placa quando Eddie disse:

— Dê uma mexida no porta-luvas, Roland. Veja se o ka, o Feixe ou seja lá quem for nos deixou alguma moeda para o telefone público.

— Porta...? Está se referindo a este painel aqui?

— Sim.

Primeiro Roland tentou girar o botão cromado na frente, depois sacou o jeitão e empurrou. O interior era um ninho de cobra que não fora melhorado pelo breve período de ausência de peso do Galaxie. Havia recibos de cartão de crédito, um tubo muito velho do que Eddie identificou como “creme dental” (Roland leu com toda a clareza as palavras HOLMESDENTALescritas no tubo), uma fotografia mostrando uma menina sorridente — talvez sobrinha de Cullum — num pônei, um bastão do que Roland tomou inicialmente como explosivo (Eddie disse que era um sinalizador de estrada, para emergências), uma revista que parecia se chamar YANKME... e uma caixa de charutos. Roland não conseguiu entender de todo qual era a palavra escrita nele, embora achasse que podia ser treco. Mostrou a caixa a Eddie, cujos olhos se iluminaram.

— O que está escrito é TROCO — disse ele. — Talvez você tenha razão sobre Cullum e ka. Abra, Roland, faça isso por favor.

A criança que tinha dado aquela caixa como presente havia lhe acrescentado um simpático trinco (um pouco tosco) para mantê-la fechada. Roland fez o trinco deslizar, abriu a caixa e mostrou a Eddie um grande número de moedas prateadas.

— Isso dá para ligar para a casa de sai Cullum?

— Dá — disse Eddie. — Parece que dá até para falar com Fairbanks, no Alasca. Mas não nos ajudará em nada se Cullum estiver na estrada, a caminho de Vermont.

 

Bridgton, cidadezinha de uma rua, era limitada por uma drogaria e uma pizzaria numa extremidade; um cine-teatro (A Lanterna Mágica) e uma loja de departamentos (Reny’s) na outra. Entre o teatro e a loja de departamentos havia uma pequena praça equipada com bancos e três telefones públicos. Eddie vasculhou a caixa de moedas de Cullum e deu a Roland seis dólares em moedas de 25 cents.

— Quero que vá até lá — disse ele apontando para a drogaria — e me pegue uma caixa de aspirina. Será que vai reconhecer o remédio quando o vir?

— Asmina. Vou reconhecer.

— Quero o menor tamanho que eles tiverem, porque seis dólares realmente não é muito dinheiro. Depois vá até a loja que fica do lado, aquele lugar que diz Bridgton Pizza e Sanduíches. Se ainda tiver pelo menos 16 moedas, diga a eles que quer um submarino.

Roland abanou a cabeça, o que não bastou para Eddie.

— Fale a palavra para eu ouvir.

— Sumarino.

— Submarino.

— SUU-marino.

— Sub... — Eddie desistiu. — Roland me deixe ouvir você falar “poor boy”.

— Poor boy.

— Bom. Se tiver sobrado pelo menos 16 moedas de 25 cents, peça um poorboy. É capaz de dizer “um monte de maionese”?

— Um monte de maionese.

— Bom. Se tiver menos de 16 moedas, peça um sanduíche com salame e queijo. Sanduíche, não popquim.

— Sandiche salome.

— É quase. E não fale nada a não ser que seja absolutamente necessário.

Roland abanou a cabeça. Eddie tinha razão. Seria melhor não falar. As pessoas só precisavam olhá-lo uma vez para descobrir, mesmo que não em nível de todo consciente, que ele não era da região. As pessoas também tinham a tendência a se esquivar dele. Melhor não exacerbar a coisa.

Ao se virar para a rua, o pistoleiro deixou a mão cair para o quadril esquerdo, um velho hábito que, desta vez, não trouxe segurança; ambos os revólveres estavam na mala do Galaxie de Cullum, enrolados nos cinturões de munição.

Antes que ele continuasse avançando, Eddie o agarrou pelo ombro. O pistoleiro se virou de sobrancelhas erguidas, os olhos sem brilho pousados no amigo.

— Temos um ditado em nosso mundo, Roland: dizemos que alguém joga todas as fichas.

— O que isso quer dizer?

— Isto. O que estamos fazendo — disse Eddie secamente. — Me deseje boa sorte, parceiro.

Roland abanou a cabeça.

— Ié, é o que desejo. A nós dois.

Ele começou a se virar e Eddie chamou-o de volta. Desta vez Roland mostrou uma expressão de ligeira impaciência.

— Não vá morrer atravessando a rua — disse Eddie, fazendo uma breve imitação do modo de Cullum falar. — Tem mais veranistas aqui do que carrapatos num cachorro. E elas não estão guiando cavalos.

— Dê seu telefonema, Eddie — disse Roland, começando a atravessar a rua Alta de Bridgton com vagarosa confiança, andando com o mesmo balanço que o conduzira através de mil outras ruas principais de mil outras pequenas cidades.

Depois de ficar algum tempo a observá-lo, Eddie se virou para o telefone e consultou os números afixados no aparelho. Então pegou o fone e discou o número de Auxílio à Lista.

 

Ele não estava ligando para John Cullum com muita convicção. Então por que ligava? Porque Cullum era o final da linha, não havia mais ninguém para quem pudessem telefonar. Em outras palavras, o maldito e velho ka de Roland de Gilead.

Após uma breve espera, a operadora do Auxílio à Lista entregou o número de Cullum. Eddie tentou decorá-lo (sempre fora bom para guardar números, Henry às vezes o chamava de Pequeno Einstein), mas daquela vez não estava confiando em sua habilidade. Algo podia ter acontecido a seus processos de pensamento em geral (mas não acreditava nisso) ou à sua capacidade de recordar certos artefatos daquele mundo (sem dúvida era mais ou menos o que acontecia). Ao pedir o número pela segunda vez — e anotá-lo na poeira acumulada na pequena prateleira do quiosque de telefone —, Eddie começou a se indagar se ainda seria capaz de ler um livro ou descobrir a trama de um filme entre a sucessão de imagens numa tela. Tinha as suas dúvidas. Mas qual era a importância disso? O Lanterna Mágica ao lado estava exibindo Guerra nas Estrelas e Eddie achou que, se chegasse ao fim do caminho de sua vida e penetrasse na clareira sem olhar de novo para Luke Skywalker e ouvir de novo o barulho de Darth Vader respirando, não ia ser muito grave.

— Obrigado, senhora — disse à telefonista e estava prestes a discar o número quando ouviu uma série de explosões atrás dele. Eddie girou, o batimento do coração disparando, a mão direita mergulhando para a cintura, esperando ver Lobos, capangas ou talvez aquele filho-da-puta do Flagg...

O que viu foi um conversível cheio de garotos de colégio rindo e fazendo galhofa com caras queimadas de sol. Um deles acabara de disparar alguns fogos de artifício que tinham sobrado do Quatro de Julho — o que os garotos da idade deles em Calla Bryn Sturgis chamariam de rojões.

Se eu tivesse um revólver na cintura, podia ter acertado alguns desses bodes, Eddie pensou. Querem fazer os outros de bobo? Bem, vamos começar. Sim. Bem. E talvez não fizesse nada disso. Mas de um modo ou de outro, tinha de admitir a possibilidade de não estar mais seguro numa área mais civilizada como aquela.

— Tem de conviver com isso — Eddie murmurou, logo acrescentando o conselho favorito do grande sábio e eminente viciado para os pequenos problemas da vida: — Leve na boa.

Discou o número de John Cullum no antiquado telefone de disco e quando uma voz de robô — talvez a tatara-tatara-tatara-tatara-tatara-avó de Blaine, o Mono — pediu-lhe para depositar noventa cents, Eddie colocou um dólar. Que diabo, estava salvando o mundo.

O telefone tocou uma... tocou duas vezes... e foi atendido!

— John! — Eddie quase gritou. — Legal! John, aqui é...

Mas a voz do outro lado já estava falando. Como criança irritada, Eddie achou que aquilo não era um bom presságio.

— ...fala John Cullum, da Sala da Guarda e Controle de Camping — disse a voz de Cullum naquela familiar fala arrastada do norte. — Fui chamado meio de repente, você entende, e não posso dizer com qualquer grau de certeza quando vou estar de volta. Se isto lhe traz inconveniente, peço que me perdoe, mas pode entrar em contato com Gary Crowell era 926-5555 ou Júnior Barker em 929-4211.

O desânimo inicial de Eddie desapareceu — desapaa-aareceu, Cullum teria dito — mais ou menos quando a trêmula voz gravada do homem estava dizendo a Eddie que ele, Cullum, não podia dizer com qualquer grau de certeza quando ia voltar. Mas Cullum estava bem ali, em seu pequeno chalé hobbitiano na costa oeste do lago Keywadin, ou sentado em seu supermacio sofá hobbitiano ou numa das duas similarmente supermacias cadeiras hobbitianas. Sentado ali e monitorando mensagens em sua secretária eletrônica sem-dúvida-gigantesca de meados dos anos setenta. E Eddie soube disso porque... bem...

Porque simplesmente soube.

A gravação primitiva não conseguia esconder de todo o humor zombeteiro que, mais ou menos no final da mensagem, aparecia na voz de Cullum.

— Bem, se ainda está determinado a não falar com mais ninguém além de mim mesmo, pode me deixar uma mensagem depois do bipe. Uma mensagem breve. — A última palavra saiu como brouve.

Eddie esperou o bipe e disse:

— É Eddie Dean, John. Sei que está aí e acho que estava esperando a minha ligação. Não me pergunte por que acho isso, porque eu realmente não sei, mas...

Houve um alto estalido no ouvido de Eddie e então a voz de Cullum — a voz ao vivo — entrou:

— Alô, filho, está cuidando bem do meu carro?

Por um momento, Eddie ficou atônito demais para responder, pois o sotaque downeast de Cullum tinha transformado a pergunta numa coisa bastante diferente: está cuidando bem do meu ka?

— Garoto? — Cullum perguntou, de repente preocupado. — Continua na linha?

— Sim — disse Eddie —, e então você está aí. Pensei que estivesse a caminho de Vermont, John.

— Bem, lhe digo uma coisa. Provavelmente este lugar não viveu um dia tão empolgante desde que a South Stoneham Shoe pegou fogo em 1923. Os tiras bloquearam todas as estradas nos arredores da cidade.

Eddie tinha certeza de que estavam deixando as pessoas passarem pelas barreiras desde que mostrassem os documentos necessários, mas ignorou a questão em favor de outra coisa.

— Está querendo me dizer que, se quisesse, você não conseguiria achar um jeito de sair dessa cidade sem ver um policial?

Houve uma breve pausa. Nela, Eddie se tornou consciente de alguém perto de seu cotovelo. Ele não se virou para olhar; era Roland. Quem mais neste mundo teria aquele cheiro — discreto, mas indiscutível — de outro mundo?

— Oh, bem — disse Cullum por fim. — Talvez eu realmente conheça uma ou duas estradas pelos bosques que desembocam em Lovell. Não choveu muito no verão e acho que meu caminhão conseguiria passar.

— Uma ou duas?

— Bem, digamos três ou quatro. — Uma pausa, que Eddie não quebrou. Estava se divertindo bastante. — Cinco ou seis — Cullum emendou e Eddie preferiu também não responder a isto. — Oito — Cullum disse por fim e, quando Eddie riu, Cullum se juntou a ele. — O que você tem na cabeça, filho?

Eddie olhou de relance para Roland, que estava segurando um frasco de aspirina entre os dois dedos restantes da mão direita. Eddie pegou-o com ar agradecido.

— Quero que venha até Lovell — ele disse a Cullum. — Parece que temos realmente de palestrar mais um pouco.

— Iá, acho que eu também já sabia disto — disse Cullum —, embora a coisa nunca tenha chegado a ser uma prioridade na minha cabeça; meu primeiro pensamento continuou sendo pegar o mais breve possível a estrada para Montpelier, mas eu ficava sempre achando mais uma coisa e mais outra para fazer aqui. Se você tivesse ligado cinco minutos antes, o telefone tava ocupado... Estava falando com Charlie Beemer. Foi a mulher e a sogra dele que morreram no mercado, não sabia? Depois pensei: diabo, acho que vou dar uma boa varrida na casa antes de pôr minha tralha na traseira do caminhão e seguir em frente. Nada de prioridade, é o que estou lhe dizendo, mas bem lá no fundo acho que estava esperando por seu telefonema desde que voltei para cá. Onde está? Na Via do Casco da Tartaruga?

Eddie abriu o frasco de aspirina e contemplou avidamente a fileira de pequenos comprimidos. Uma vez viciado em drogas, sempre viciado, ele admitiu. Nem que seja uma coisa daquelas.

— Iá — disse ele com a língua só parcialmente na bochecha; não parava de reproduzir dialetos locais desde que encontrara Roland num jato da Delta que aterrissava no aeroporto Kennedy. — Você disse que essa via não passava de uma estrada distrital de 3 quilômetros, saindo da rota 7 e a ela voltando, verdade?

— Foi isso. Há umas casas muito bonitas na Casco da Tartaruga. — Pausa breve, pensativa. — E muitas estão à venda. Ultimamente, tem surgido um número muito grande de aparecidos naquela parte do mundo. Acho que eu já tinha mencionado isso. Essas coisas deixam as pessoas nervosas e pelo menos quem é rico pode se dar ao luxo de escapar do que não ajuda a dormir à noite.

Eddie não pôde mais esperar; pegou três aspirinas e atirou-as na boca, apreciando o gosto amargo quando elas se dissolveram na língua. Por pior que fosse a dor naquele momento, ele a suportaria tranqüilamente se conseguisse alguma notícia de Susannah. Mas ela estava silenciosa. Imaginava que a linha de comunicação entre os dois, sem dúvida já bastante incerta, deixara completamente de existir com a chegada do maldito bebê de Mia.

— Acho melhor, garotos — disse Cullum —, que mantenham seus ferros à mão se forem mesmo para o Casco da Tartaruga em Lovell. Quanto a mim, acho que também vou jogar a espingarda no caminhão antes de levantar as velas.

— Por que não? — Eddie concordou. — Procure seu carro ao longo da estradinha, combinado? Vai encontrá-lo.

— Ié, não posso perder esse velho Galaxie — Cullum concordou. — Me diga uma coisa, filho. Não estou indo para Vermont, mas tenho a impressão de que você pretende me mandar para um lugar remoto, se eu estiver de acordo. Se incomoda de me dizer para onde?

Eddie achou que Mark Twain bem podia decidir chamar o próximo capítulo da vida (sem dúvida colorida) de John Cullum, Um Ianque do Maine na Corte do Rei Rubro, mas era melhor não dizer isso.*

— Já esteve em Nova York?

— Deus, claro! Passei 48 horas de licença lá, quando servi o exército. — A última palavra saiu num tom ridiculamente arrastado. — Visitei o Radio City Music Hall e o Empire State, pelo menos disso eu me lembro. E sem dúvida visitei outros pontos turísticos porque fiquei sem trinta dólares na carteira e dois meses depois me diagnosticaram um belíssimo caso de gonorréia.

— Desta vez vai estar ocupado demais para pegar gonorréia. E leve seus cartões de crédito. Sei que tem alguns porque dei uma olhada nos recibos do porta-luvas. — Experimentou uma necessidade quase insana de arrastar a última palavra, luu-uuuuvas.

— Meio desarrumado, né? — Cullum perguntou sem grande inflexão.

— Ié, parece o que sobrou quando o cachorro mastigou o sapato. Te vejo em Lovell, John! — Eddie desligou. Viu o saquinho que Roland estava segurando e ergueu as sobrancelhas.

— É um sanduíche poorboy — disse Roland. — Com montes de maionese, sei lá o quê. Por mim, não ia querer um molho tão parecido com porra, mas quem sabe é o que você goste.

Eddie virou os olhos.

— Cara, isso me dá uma fome...

— Acha mesmo?

Eddie teve de se lembrar mais uma vez que Roland não tinha quase nenhum senso de humor.

— Sim, acho. Vamos. Posso comer meu sanduíche de porra e queijo enquanto dirijo. E também precisamos conversar sobre o que vamos fazer agora.

 

O modo de levar a coisa, ambos concordavam, era contar a John Cullum tanto da história dos dois quanto achassem que a credulidade (e sanidade) do homem podia suportar. Então, se tudo corresse bem, iam passar-lhe o importantíssimo recibo de compra e venda e mandar que procurasse Aaron Deepneau. Com ordens estritas para que falasse a Deepneau em particular, longe do não inteiramente confiável Calvin Tower.

— Cullum e Deepneau podem trabalhar em conjunto para encontrar Moses Carver — disse Eddie —, e acho que posso dar a Cullum suficiente informação sobre Suze... coisas particulares... para convencer Carver de que ela ainda está viva. Depois disso, porém... bem, tudo depende do grau de convencimento que os dois consigam. E da vontade deles de trabalhar para a Tet Corporation em seus últimos anos de vida. Ei, eles podem nos surpreender! Não consigo ver Cullum de terno e gravata, mas viajar pelo país metendo o bedelho nos negócios da Sombra? — Inclinou a cabeça e refletiu, daí sorriu com convicção. — É. Posso ver isso muito bem.

— O padrinho de Susannah é capaz de ser outro velho meio esquisitão — Roland observou. — Só de uma cor diferente. Caras como eles freqüentemente falam a mesma língua quando estão an-tet. E talvez eu possa dar a John Cullum alguma coisa que ajudará a convencer Carver a se juntar a nós.

— Um sigul?

— Sim.

— De que tipo? — Eddie estava intrigado.

Mas, antes que Roland pudesse responder, viram uma coisa que fez Eddie socar o pedal do freio. Estavam em Lovell agora, e na rota 7. A frente deles, andando sem firmeza ao longo do acostamento havia um homem velho, o cabelo branco emaranhado, espigado. Usava uma roupa tosca, o tecido sujo, algo que de nenhuma forma poderia ser chamado de manto. Os braços e pernas esquálidos estavam marcados de arranhões. Também tinham feridas, numa vermelhidão mortiça. Os pés estavam descalços e, em vez de dedos, eram equipados com garras amarelas, feias, de aspecto perigoso. Preso debaixo de um dos braços ia um objeto de madeira, lascado, parecendo uma lira quebrada. Eddie achou que ninguém podia parecer mais deslocado naquela estrada, onde os únicos pedestres que até então tinham visto eram corredores de ar sério, obviamente moradores “de fora”, parecendo sempre muito distintos nas bermudas de náilon para cooper, chapéus de beisebol e camisetas (a camiseta de um deles trazia a inscrição NÃO ATIRE NOS TURISTAS).

A coisa que caminhava penosamente pelo acostamento da rota 7 se virou para eles, e Eddie deixou escapar um involuntário grito de horror. Os olhos se uniam sobre a ponte do nariz, lembrando um ovo de gema dupla numa frigideira. Um canino pendia de uma narina como uma meleca de osso. De alguma forma, no entanto, o pior de tudo era o mortiço brilho esverdeado que se irradiava da face da criatura. Era como se tivessem passado alguma pasta rala e fosforescente na pele.

A coisa os viu e imediatamente correu para a mata, deixando cair a lira lascada.

— Cristo! — Eddie gritou. Se aquilo fosse um aparecido, esperava jamais se encontrar com outro.

— Pare, Eddie! — Roland gritou, se apoiando com a palma de uma das mãos contra o painel quando o velho Ford de Cullum guinou para o lado levantando poeira e parou no ponto onde a coisa desaparecera. — Abra o porão de trás — disse Roland, abrindo a porta do seu lado. — Pegue meu fazedor de viúva.

— Roland, estamos com uma certa pressa e a Via do Casco da Tartaruga ainda está a 5 quilômetros daqui. Realmente acho que devíamos...

— Cale sua boca de tolo e vá pegar a coisa! — Roland berrou, correndo para a orla da mata. Respirou fundo e, quando gritou para a tosca criatura, seu tom fez um arrepio subir pelos braços de Eddie. Só ouvira Roland falar assim uma ou duas vezes, mas no meio-tempo fora fácil esquecer que o sangue de um rei corria nas veias dele.

Roland falou várias frases que Eddie não compreendeu, mas entendeu uma delas:

— Então apareça, Filho de Roderick, criança mimada e perdida, e curve sua cabeça diante de mim, Roland, filho de Steven, da Linhagem do Eld!

Por um momento nada aconteceu. Eddie abriu a mala do Ford e entregou o revólver a Roland. Roland o colocou na cintura sem olhar uma só vez para Eddie, muito menos lhe dispensar alguma palavra de agradecimento.

Decorreram talvez uns trinta segundos. Eddie abriu a boca para falar. Antes que pudesse, a barrenta folhagem na margem da estrada começou a se agitar. Daí a um momento, a coisa bizarra reapareceu. Cambaleava de cabeça baixa. Na frente de seu manto havia uma grande área molhada. Eddie pôde sentir o fedor da urina daquela coisa tão mórbida, um cheiro áspero e muito forte.

Então a criatura arriou um joelho e levou a mão deformada até a testa, um resignado gesto de fidelidade que deixou Eddie com vontade de chorar.

— Salve, Roland de Gilead, Roland do Eld! Quer me mostrar algum sigul, meu caro?

Numa cidade chamada River Crossing, uma velha mulher que se chamava tia Talitha dera a Roland uma cruz de prata num fino colar de prata. Desde então ele a usava no pescoço. Ele pôs a mão dentro da camisa e mostrou a cruz para a criatura que se ajoelhava (um Vago Mutante morrendo das seqüelas da radiação, Eddie estava bem certo), e a coisa deu um entrecortado grito de admiração.

— Gostaria de encontrar a paz no fim de seu trajeto, Filho de Roderick? Gostaria de encontrar a paz da clareira?

— Ié, meu caro — disse a coisa soluçando e logo acrescentando um monte de outras palavras. Um tom de algaravia que Eddie não foi capaz de entender. Ele olhava para ambos os lados da rota 7, esperando ver carros passando (afinal, estavam no apogeu do verão), mas nada viu em qualquer direção. Ao menos por ora continuavam a ter sorte.

— Quantos de vocês existem por aqui? — Roland perguntou, interrompendo o penado, puxando o revólver e erguendo a velha e fatal engenhoca até apoiá-la na camisa.

O Filho de Roderick atirou a mão para o horizonte sem erguer os olhos.

— Para lá, pistoleiro — disse ele —, pois aqui os bosques são ralos, digo anro con fa; sei-sei desene fanno bilhete cober can. Eu Chevin devar dan do. Porque sinto tristeza por eles. Can-toi, can-tah, can Discórdia, aven la cam mah can. Mai-mi? Iffin lah vainen, eth...

— Quantos dan devar?

Ele pensou sobre a pergunta de Roland, depois estendeu os dedos (havia dez dedos, Eddie reparou) cinco vezes. Cinqüenta. Embora Eddie não soubesse cinqüenta de quê.

— E Discórdia? — Roland perguntou num tom vigoroso. — Disse realmente isso?

— Oh, ié, foi o que eu disse, Chevin de Chayven, filho de Hamil, menestrel das Campinas do Sul que foram um dia meu lar.

— Diga o nome da cidade que fica perto do Castelo Discórdia e eu o libertarei.

— Ah, pistoleiro, todos ali estão mortos.

— Acho que não. Diga.

— Fedic! — gritou Chevin de Chayven, um músico errante que jamais teria suspeitado que sua vida acabaria num lugar tão estranho e distante... não nas campinas do Mundo Médio, mas nas montanhas do Maine ocidental. Subitamente ele ergueu o rosto horrendo e brilhante para Roland. Abria bem os braços, como alguém que tivesse sido crucificado. — Fedic na extremidade de Trovoada, no Caminho do Feixe Luminoso! Em Shardik V, em Maturin V, na estrada para a Torre N...

O revólver de Roland detonou uma única vez. A bala acertou a coisa ajoelhada no centro da testa, completando a ruína da face já arruinada. Quando a criatura voou para trás, Eddie viu sua carne se transformar numa fumaça esverdeada tão efêmera quanto as asas de um vespão. Por um momento Eddie viu os dentes de Chevin de Chayven flutuarem como um fantasmagórico anel de coral, mas logo eles desapareceram.

Roland voltou a pôr o revólver no coldre, depois esticou os dois dedos que sobravam em sua mão direita e virou-os para baixo na frente do rosto, um gesto de bênção, Eddie não teve nenhuma dúvida.

— Tenha a paz — disse Roland. Então desafivelou o cinturão e novamente começou a enrolar a arma nele.

— Roland, isso era... era um vago mutante?

— Sim, acho que o chamaria assim, pobre coitado. Mas os Rodericks são de além de quaisquer terras que eu já tenha conhecido, embora antes de o mundo seguir adiante tenham jurado fidelidade a Arthur Eld. — Ele se virou para Eddie, os olhos azuis queimando no rosto cansado. — Fedic é o lugar para onde Mia foi para ter o bebê, não tenho dúvida. Para onde levou Susannah. Junto ao último castelo. Teremos de acabar voltando a Trovoada, mas é para Fedic que devemos ir primeiro. É bom saber.

— Ele disse que sentia tristeza por alguém. Quem?

Roland só balançou a cabeça, sem responder à pergunta de Eddie. Um caminhão da Coca-Cola passou com estrondo e, para os lados do oeste, ecoou um trovão.

— Fedic da Discórdia — o pistoleiro murmurou. — Fedic da Morte Rubra. Se conseguirmos salvar Susannah... e Jake... voltaremos para as Callas. Mas retornaremos quando nosso assunto aqui estiver resolvido. E quando virarmos de novo para sudeste...

— O quê? — Eddie perguntou nervoso. — O que vai acontecer, Roland?

— Aí não haverá mais parada até atingirmos a Torre. — Ele estendeu as mãos, viu-as tremer ligeiramente, e ergueu os olhos para Eddie. O rosto mostrava cansaço, mas nenhum medo. — Nunca estive tão perto. Ouço todos os meus amigos perdidos e seus pais perdidos murmurando para mim. Murmuram junto ao próprio respirar da Torre.

Eddie ficou um minuto observando Roland, fascinado e assustado, e então quebrou o clima com um esforço quase físico.

— Bem — disse ele, recuando para a porta do motorista do Ford —, se alguma dessas vozes lhe disser como falar com Cullum... qual seria o melhor meio de convencê-lo a fazer o que queremos... não deixe de me informar.

Eddie entrou no carro e fechou a porta antes que Roland pudesse responder. Mentalmente, continuou vendo Roland apontando o grande revólver. Viu-o fazer mira contra a figura ajoelhada e apertar o gatilho. Aquele era o homem que chamava ao mesmo tempo de dinh e amigo. Mas quem podia garantir, com qualquer grau de precisão, que Roland não faria a mesma coisa com ele... ou Suze... ou Jake... se acreditasse de coração que isso o colocaria mais próximo de sua Torre? Ninguém podia. E no entanto continuaria com ele. Teria continuado mesmo se estivesse convencido — oh, que Deus não permita! — de que Susannah morrera. Porque tinha de continuar. Porque Roland tinha se tornado muito mais que um mero dinh ou amigo.

— Meu pai — Eddie murmurou a meia-voz pouco antes de Roland abrir a porta do carona e entrar.

— Falou alguma coisa, Eddie? — Roland perguntou.

— Sim — disse Eddie. — “Rodamos um pouco mais.” Foi o que eu disse.

Roland abanou a cabeça. Eddie engatou a primeira marcha e pôs o Ford rolando para a Via do Casco da Tartaruga. Ainda ao longe — mas um pouco mais perto que antes — ecoou de novo o trovão.

 

DAN-TETE

Quando a hora de o bebê nascer se aproximou, Susannah Dean olhou ao redor, mais uma vez contando seus inimigos como Roland havia ensinado. Nunca deve sacar, ele tinha dito, antes de saber quantos há contra você ou até se certificar de que jamais poderá saber ou até concluir que é seu dia de morrer. Queria pelo menos não ter sido obrigada a lidar com aquele terrível capacete que tinha na cabeça, invadindo seus pensamentos, mas fosse o que fosse aquela coisa, ela pareceu alheia ao esforço de Susannah para contar quem estava presente à chegada do chapinha de Mia. E isso era bom.

Lá estava Sayre, o encarregado. O homem baixo, com uma daquelas manchas vermelhas pulsando no centro da testa. Do outro lado Scowther, o médico entre as pernas de Mia, preparando-se para oficiar o parto. Sayre fora duro com o médico quando Scowther deu mostras de uma arrogância um tanto exagerada, mas provavelmente não o bastante para interferir com sua eficiência. Havia mais cinco homens baixos além de Sayre, mas ela só pegara dois nomes. O sujeito com a papada de buldogue e a barriga pesada e caída era o Haber. Ao lado de Haber havia uma coisa-pássaro com uma cabeça marrom cheia de penas e os maldosos olhos fixos de um falcão. O nome desta criatura parecia ser Jey, ou possivelmente Gee. Eram sete, todos armados, em cinturões atravessados no peito, com algo parecido com metralhadoras. A arma de Scowther saía do jaleco branco sempre que ele se curvava. Susannah já tinha marcado aquela como sua.

Havia também três coisas humanóides, vigilantes e pálidas, paradas atrás de Mia. Essas, envoltas por auras azul-escuras, eram vampiros, Susannah tinha certeza absoluta. Provavelmente do gênero que Callahan havia chamado Tipo Três (o Père uma vez se referira a eles como pilotos tubarão). Somavam dez. Dois dos vampiros carregavam bahs, o terceiro uma espécie de espada elétrica, por enquanto reduzida a mero cetro irradiador de luz. Talvez conseguisse pegar a arma de Scowther (o problema era quando pegá-la, querida, ela acrescentou — tinha lido O Poder do Pensamento Positivo e ainda acreditava em cada palavra que o rev. Peale havia escrito). Primeiro iria virá-la contra o homem com a espada elétrica. Só Deus sabia quanto dano uma arma daquelas podia causar, mas Susannah Dean não queria descobrir.

Havia também uma enfermeira com a cabeça de um grande rato marrom. O olho vermelho e pulsante no centro da testa fez Susannah acreditar que a maior parte do folken baixo estaria usando máscaras que os humanizavam, provavelmente para não complicar o jogo quando andassem lá fora, pelas calçadas de Nova York. Talvez não tivessem uma aparência exata de ratos por baixo, mas tinha certeza de que nenhum deles se parecia com Robert Goulet.* A enfermeira com cabeça de rato era a única criatura presente que não trazia arma, pelo menos nenhuma que Susannah pudesse ver.

Onze ao todo. Onze naquela enfermaria vasta e quase inteiramente deserta que não ficava, estava realmente certa, sob o distrito de Manhattan. E se ia acabar com eles, teria de fazê-lo enquanto estavam ocupados com o bebê de Mia — o precioso chapinha.

— Está vindo, doutor! — a enfermeira gritou num êxtase nervoso.

Estava. A contagem de Susannah parou enquanto o apogeu da dor ainda rolava sobre ela. Sobre as duas. Soterrando-as. Gritavam uma atrás da outra. Scowther mandava Mia fazer força, fazer força AGORA!

Susannah fechou os olhos e também fez força, pois o bebê também era... ou fora... dela. Então, ao sentir a dor escorrer como um redemoinho descendo por um ralo escuro, experimentou uma profunda tristeza, como jamais sentira. Pois era para Mia que o bebê estava fluindo; aquelas eram as últimas poucas linhas da mensagem viva que, de alguma forma, o corpo de Susannah tinha sido feito para transmitir. Era o fim. Não importava o que acontecesse depois, aquela parte estava encerrada e Susannah Dean deixou escapar um grito onde se misturava alívio e pesar; um grito que era em si mesmo como uma canção.

E nesse momento, antes que o horror começasse (algo tão terrível de que ela se lembraria até o dia de sua entrada na clareira, cada detalhe surgindo sempre sob o clarão de uma luz brilhante), sentiu uma pequena mão quente agarrar seu pulso. Susannah virou a cabeça, que levava o desagradável peso do capacete. Sentiu sua respiração ofegante. Seus olhos encontraram os de Mia. Mia abriu os lábios e falou uma única palavra. Susannah não conseguiu ouvi-la por causa do resmungar de Scowther (ele estava se curvando, espreitando entre as pernas de Mia e erguendo o fórceps diante da testa). Mas conseguiu entender, ver que Mia tentava cumprir sua promessa.

Eu te soltava, se a sorte permitir, dissera sua seqüestradora e a palavra que Susannah agora ouvia em sua mente e via nos lábios da mulher em trabalho de parto era chassit.

Susannah, está me ouvindo?

Estou ouvindo muito bem, disse Susannah.

E compreende nosso pacto?

Sim. Vou ajudá-la a escapar disso com seu chapinha, se eu puder. E...

E se não puder é para nos matar!, concluiu ferozmente a voz. Nunca fora tão alta. Isso era parcialmente obra do cabo de conexão, Susannah tinha certeza. Diga, Susannah, filha de Dan!

Vou matar os dois se você...

Ela parou aí. Mia pareceu satisfeita e isso era bom, porque Susannah não poderia ter continuado mesmo que a vida das duas dependesse disso. Por acaso seu olho tinha batido no alto daquele enorme salão, no teto sobre as alas de camas. E ali ela viu Eddie e Roland. Estavam nevoentos, flutuando de um lado para o outro, observando-a lá embaixo como peixes num aquário.

Outra dor, mas esta não tão severa. Ainda podia sentir as coxas se endurecendo, empurrando, mas isso já parecia muito distante. E sem importância. O que importava era saber se estava ou não realmente vendo o que achava que estava vendo. Será que sua mente extremamente estressada, ansiosa por socorro, tinha criado aquela alucinação para confortá-la?

Ela podia quase acreditar. Teria, muito provavelmente, acreditado se os dois não estivessem nus e cercados por uma estranha coleção de tralhas flutuantes: uma caixa de fósforo, um amendoim, cinzas, uma moeda. E um tapete de carro, por Deus! Um tapete de carro com a palavra FORD impressa.

— Doutor, posso ver a ca...

Ouviu-se um gritinho sufocado quando o dr. Scowther, que não era exatamente um cavalheiro, deu, sem nenhuma cerimônia, uma cotovelada na enfermeira Ratona, colocando-a de lado e se curvando ainda mais para a junção das coxas de Mia. Como se pretendesse puxar o chapinha com os próprios dentes. A coisa-falcão, Jey ou Gee, falava com o sujeito chamado Haber num dialeto nervoso, cheio de zumbidos.

Estão realmente ali, Susannah pensou. O tapete prova isso. Não sabia muito bem como o tapete provava, só que era assim. E murmurou a palavra que Mia lhe dera: chassit. Era uma senha. Abriria pelo menos uma porta e talvez muitas. Perguntar se Mia dissera a verdade não passou sequer pela mente de Susannah. Estavam amarradas uma na outra, não apenas pelo cabo e os capacetes, mas pelo mais primitivo (e muito mais poderoso) ato de dar à luz. Não, Mia não havia mentido.

— Força, maldita puta preguiçosa! — Scowther quase uivou, e Roland e Eddie desapareceram do teto para sempre, como se soprados pela força da respiração do homem. Pelo que Susannah percebera, fora isso mesmo.

Ela se virou para o lado, sentindo o cabelo se grudar em mexas na cabeça, consciente de que seu corpo estava derramando galões de suor. Arrastou-se para um pouco mais perto de Mia, um pouco mais perto de Scowther, um pouco mais perto do relevo da coronha da pistola automática de Scowther, que balançava.

— Fique quieta, meu bem, me escute por favor — disse um dos homens baixos, tocando no braço de Susannah. A mão era fria e flácida, coberta com anéis de gordura. A carícia lhe dava asco. — Tudo estará acabado num minuto e então todos os mundos mudam. Quando isto aqui se juntar aos Sapadores em Trovoada...

— Cale a boca, Straw! — Haber berrou, empurrando o pretenso consolador de Susannah para trás. Depois tornou a se virar avidamente para o parto.

Mia arqueou as costas, gemendo. A enfermeira com cabeça de rato pôs as mãos nos quadris de Mia e empurrou-os suavemente de volta para a cama.

— Não faça isso, não faça. Força na barriga.

— Vá à merda, sua puta! — Mia gritou e, embora Susannah sentisse uma débil pontada de sua dor, isso foi tudo. A conexão entre as duas estava se desfazendo.

Usando toda a sua concentração, Susannah gritou para o poço da própria mente. Ei! Ei dona Positronics! Ainda está aí?

— O link... caiu — disse a agradável voz feminina. Como antes, falava no meio da cabeça de Susannah, mas ao contrário de antes, parecia longínqua, não mais perigosa que uma voz no rádio que vem de muito longe devido a algum problema atmosférico. — Repito: o link... caiu. Esperamos que se lembre da North Central Positronics para todas as suas necessidades de reforço mental. E da Sombra Corporation! Um líder na comunicação mente a mente desde os dez mil!

No fundo da cabeça de Susannah, houve um BII-IIIIP de fazer bater os dentes e a conexão cessou. Não era apenas a ausência da horrivelmente agradável voz feminina; era tudo. Teve a impressão de ter sido liberta de alguma dolorosa armadilha que apertava seu corpo.

Mia tornou a gritar e Susannah também deixou escapar um grito. Parte dele pelo fato de Susannah não querer que Sayre e os comparsas percebessem que o laço entre ela e Mia fora rompido; em parte por autêntico pesar. Perdera uma mulher que, em certo sentido, se transformara em sua verdadeira irmã.

Susannah! Suze, você está aí?

Ela se apoiou nos cotovelos ao ouvir aquela nova voz, por um momento quase se esquecendo da mulher a seu lado. Aquilo fora...

Jake? É você, querido? É, não é? Está me ouvindo?

SIM!, ele gritou. Finalmente! Deus, com quem você esteve falando? Continue gritando para que eu possa localizá-la no...

A voz se interrompeu, mas não antes de ela ouvir o fantasmagórico ruído de um tiroteio distante. Jake atirando em alguém? Achava que não. Achava que alguém estava atirando nele.

 

— Agora! — Scowther gritou. — Agora, Mia! Força! Por sua vida! Dê o máximo que puder! FORÇA!

Susannah tentou rolar para mais perto da outra mulher (oh, estou preocupada e querendo consolo, veja como estou preocupada, preocupada e querendo consolo é isso é), mas o tipo que se chamava Straw puxou-a para trás. O segmentado cabo de ferro se agitou e se esticou entre elas.

— Mantenha distância, puta — disse Straw e, pela primeira vez, Susannah se defrontou com a possibilidade de não a deixarem se apoderar do revólver de Scowther. Ou de qualquer outro revólver.

Mia tornou a gritar, rezando a um estranho deus numa estranha língua. Quando tentou erguer o tórax da mesa, a enfermeira (Alia — Susannah achou que o nome da enfermeira era Alia) forçou-a a se deitar de novo e Scowther deu um breve e áspero grito, aparentemente de satisfação. Atirou para o lado o fórceps que estivera segurando.

— Por que fez isso? — Sayre perguntou. Os lençóis embaixo das pernas abertas de Mia estavam agora molhados de sangue e o chefe Sayre parecia perturbado.

— Não vamos precisar do fórceps! — Scowther retornou num tom jovial. — Ela foi feita para ter bebês, poderia ter mais de uma dúzia num campo de arroz e não perder uma fileira da colheita. Aí vem ele, em forma, claro que sim!

Scowther fez um gesto de quem ia agarrar a bacia grande posta na cama do lado, mas concluiu que não tinha tempo e deslizou as mãos rosadas e sem luvas entre as coxas de Mia. Desta vez, quando Susannah fez um esforço para chegar mais perto de Mia, Straw não a deteve. Todos eles, homens baixos e também vampiros, observavam o último estágio do nascimento com absoluta fascinação, a maioria deles aglomerados na frente das duas camas que, postas uma ao lado da outra, formavam uma só. Apenas Straw continuava perto de Susannah. O vampiro com a espada de fogo acabara de perder seu lugar; ela concluiu que agora Straw seria o primeiro a morrer.

— Mais uma vez! — Scowther gritou. — Pelo seu bebê!

Assim como os homens baixos e os vampiros, também Mia se esquecera de Susannah. Os olhos feridos, cheios de dor, se fixaram em Sayre.

— Posso ficar um pouco com ele, senhor? Por favor diga que posso ficar um pouco com ele, mesmo que por um tempo mínimo!

Sayre pegou a mão dela. A máscara que cobria sua verdadeira face sorriu.

— Sim, minha querida — disse ele. — O chapinha será seu durante muitos anos. Mas faça força pelo menos mais uma vez.

Mia, não acredite nas mentiras dele!, Susannah gritou, mas o grito não chegou a lugar algum. Provavelmente isso era ótimo. Era ótimo estar passando inteiramente despercebida.

Susannah voltou os pensamentos numa nova direção. Jake! Jake, onde você está?

Nenhuma resposta. Nada bom. Por favor, Deus queira que ele ainda esteja vivo.

Talvez só esteja ocupado. Correndo... se escondendo... lutando. O silêncio não significa necessariamente que ele...

Mia gritou o que parecia ser uma série de obscenidades, mas sem parar de fazer força. Os lábios de sua já distendida vagina se abriram ainda mais. Um jorro de sangue escorreu, ampliando a turva forma de delta no lençol embaixo dela. E então, entre as ondas de rubro, Susannah viu uma coroa de branco e preto. O branco era pele. O preto era cabelo.

O mosqueado de branco e preto começou a se fundir no vermelho e Susannah achou que o bebê recuara, ainda não pronto de todo para o mundo, mas Mia estava cansada de esperar. Ela empurrou com toda a sua considerável força, as mãos erguidas diante dos olhos em punhos fechados e trêmulos, os olhos semicerrados, os dentes arreganhados. Uma veia pulsava de modo alarmante no centro de sua testa; outra despontava no meio da garganta.

— EEEIÁÁÁÁ! — ela gritou. — COMMALA, SEU GRANDE FILHO-DA-PUTA! COMMALA-VENHA-VENHA!

— Dan-tete — murmurou Jey, a coisa-falcão, e os outros continuaram numa espécie de murmúrio reverente: Dan-tete... dan-tete... commala dan-tete. A chegada do pequeno deus.

Desta vez a cabeça do bebê não apenas despontou, mas avançou para a frente. Susannah viu as mãos dele em frente ao peito salpicado de sangue, pequenos punhos que tremiam com vida. Viu olhos azuis, muito arregalados e assustadores por sua consciência e sua semelhança com os de Roland. Viu pestanas pretas, úmidas, marcadas com gotinhas de sangue, como um bárbaro enfeite de natal. Susannah viu (e jamais esqueceria) como o lábio inferior do bebê se agarrou momentaneamente no lábio interior da vulva da mãe. A boca do bebê, algum tempo aberta, revelou uma perfeita fileira de dentinhos no maxilar inferior. Eram dentes — não presas mas dentinhos perfeitos. Mesmo assim, vê-los na boca de um recém-nascido fez Susannah ter um calafrio. O mesmo aconteceu com a visão do pênis do chapinha, desproporcionalmente grande e plenamente ereto. Susannah achou mais comprido que seu dedo mínimo.

Gemendo de dor e triunfo, Mia se apoiou nos cotovelos, olhos saltando das órbitas e lágrimas caindo. Estendeu o braço e agarrou a mão de Sayre com uma força de garra de ferro quando Scowther puxou habilmente o bebê. Sayre resmungou e tentou se esquivar, mas seria como tentar... bem, tentar se esquivar de um guarda do xerife em Oxford, Mississippi. O canto tinha cessado e houve um momento de chocado silêncio. Nele, os ouvidos extremamente atentos de Susannah perceberam claramente o som de ossos roçando no pulso de Sayre.

— ELE VIVE? — Mia gritou para o rosto sobressaltado de Sayre. Cuspe voou de seus lábios. — DIGA, SEU VARIOLENTO FILHO-DA-PUTA, SE MEU CHAPINHA VIVE!

Scowther ergueu o chapinha, ficando cara a cara com a criança. Os olhos castanhos do médico encontraram os olhos azuis do bebê. E enquanto o chapinha permanecia ali, nos braços de Scowther, o pênis saltando desafiante para cima, Susannah viu claramente a marca rubra no calcanhar esquerdo. Era como se o pé do bebê tivesse sido mergulhado em sangue pouco antes de ele deixar o útero de Mia.

Em vez de bater nas nádegas do bebê, Scowther respirou fundo e soprou rajadas de ar diretamente nos olhos do chapinha. O chapinha de Mia piscou numa surpresa cômica (e inegavelmente humana). O chapinha também respirou fundo, segurou o ar por um momento e deixou-o sair. Talvez fosse o Rei dos Reis ou o destruidor de mundos, mas entrou na vida como tantos antes dele, gritando contra a violência. Mia explodiu em lágrimas de contentamento quando ouviu o som daquele grito. As maléficas criaturas reunidas em volta da nova mãe eram servos do Rei Rubro, mas isso não as tornava imunes ao que tinham acabado de presenciar. Irromperam em aplausos e risos. Susannah estava quase satisfeita por juntar-se a eles. Com o barulho, o bebê olhou em volta com uma nítida expressão de espanto.

Chorando, com lágrimas escorrendo pelas faces e o nariz pingando muito, Mia estendeu os braços.

— Dêem pra mim! — ela chorou; assim chorou Mia, filha de ninguém e mãe de um. — Deixem-me segurá-lo, por favor, me deixem segurar meu filho! Me deixem segurar meu chapinha! Me deixem segurar meu precioso garoto!

E o bebê virou a cabeça ao som da voz de sua mãe. Susannah teria dito que tal coisa era impossível, mas sem dúvida também teria dito que um bebê nascer de olhos bem abertos, com a boca cheia de dentes e um pênis ereto também era impossível. Contudo, sob todos os outros aspectos, o bebê parecia completamente normal: gordinho e bem formado, humano e com ar engraçadinho. Tinha a marca vermelha no calcanhar, sim, mas quantas crianças, normais sob todos os outros aspectos, não nasciam com algum tipo de marca de nascença? Não tinha o próprio pai de Susannah nascido de mãos vermelhas, segundo uma lenda de família? Aquela marca sequer apareceria, a não ser quando o menino estivesse na praia.

Ainda segurando o recém-nascido próximo ao rosto, Scowther olhou para Sayre. Houve uma pausa momentânea durante a qual Susannah podia ter se apoderado facilmente do automático de Scowther. Mas ela nem sequer pensou nisso. Esquecera o grito telepático de Jake; tinha igualmente esquecido a estranha visita que recebera de Roland e do marido. Estava tão arrebatada quanto Jey, Straw, Jaber e todos os outros, arrebatada por aquele momento de entrada de uma criança num mundo exausto.

Sayre abanou a cabeça, quase imperceptivelmente, e Scowther entregou o bebê Mordred, ainda chorando (e ainda olhando pelo ombro, aparentemente para a mãe), aos braços ansiosos de Mia.

Mia virou-o de imediato para poder olhá-lo e o coração de Susannah teve um baque de aflição e horror. Pois Mia tinha ficado louca. A coisa brilhava em seus olhos; estava no modo como a boca conseguia mostrar repugnância, sorrir e babar, tudo ao mesmo tempo, uma boca que ia ficando vermelha e grossa com o sangue da língua mordida, escorrendo pelos lados do queixo. Mais que tudo, no entanto, a loucura estava no riso triunfante. Talvez Mia recuperasse a sanidade daí a alguns dias, mas...

Puta nunca vai voltá, disse Detta, não sem compaixão. Tê ido assim tão longe e daí se livrar dele acabou quebrando a cachola. Ela rebentou, e você sabe disso tão bem quanto eu...

— Oh, quanta beleza! — Mia cantarolou. — Oh, ver teus olhos azuis, tua pele branca como o céu antes da primeira neve da Terra Chave! Ver teus mamilos, frutinhas tão perfeitas que são, ver teu pau e tuas bolas macias como pêssegos novos! — Olhou para o lado, primeiro para Susannah (mas os olhos deslizaram pela face de Susannah sem absolutamente qualquer reconhecimento) e depois para os outros. — Estão vendo meu chapinha, seus infelizes, seus vermes, meu precioso filho, meu bebê, meu garoto! — Gritava para eles, cobrava deles, ria com os olhos loucos e chorava com a boca torta. — Vejam o que me fez abrir mão da eternidade! Vejam meu Mordred, olhem com muito cuidado, pois nunca mais verão alguém como ele!

Extremamente ofegante, cobriu a face atenta e ensangüentada do bebê com beijos, manchando ainda mais a boca, ficando parecida com uma bêbada que tivesse tentado passar batom nos lábios. Rindo, ela beijou a aba gorducha da papada da criança, seus mamilos, seu umbigo, a ponta empinada do pênis. Depois segurou bem alto, com braços trêmulos, a criança que pretendia chamar de Mordred e beijou seus joelhos e cada pezinho. A criança virava os olhos para Mia com uma cômica expressão de assombro, e Susannah ouviu a primeira sucção daquela sala: não o bebê no seio da mãe, mas a boca de Mia em cada dedo do pé perfeitamente formado.

 

A criança é a perdição de meu dinh, Susannah pensou friamente. Se eu não fizer nada mais, posso pelo menos me apoderar da arma de Scowther e atirar. Seria obra de dois segundos.

Com sua velocidade — a fantástica velocidade de um pistoleiro — isto provavelmente poderia ser feito. Mas de repente ela se sentiu incapaz de se mexer. Tinha previsto muitos desfechos para aquele ato da peça, mas não a loucura de Mia, nunca isso, a coisa a pegara inteiramente de surpresa. Passou pela mente de Susannah que ela tivera muita sorte pelo fato de o link da Positronics ter se rompido mais cedo. Se tivesse demorado mais, ela poderia estar maluca como Mia.

Só que este link pode dar uma retornada, irmã... Não seria melhor entrar em ação enquanto pode?

Mas não podia, o detalhe era esse. Estava paralisada de admiração, presa de encantamento.

— Pare com isso! — Sayre gritou com Mia. — Sua tarefa não é brincar com ele, mas alimentá-lo! Se pretende conservá-lo, mexa-se! Dê-lhe de mamar! Ou prefere que eu chame uma ama-de-leite? Há muitas que dariam os olhos pela oportunidade!

— Nunca mais... repita... ISSO! — Mia gritou, rindo, mas levou a criança ao peito e, impaciente, puxou para o lado o corpete da camisola toda branca que usava, desnudando o seio direito. Susannah pôde ver por que os homens eram seduzidos por ela; aquele seio continuava sendo um perfeito globo com ponta de coral, mais adequado à mão de um homem, um homem com desejo, que à nutrição de um bebê. Mia baixou o chapinha para o seio. Por um momento, ele procurou do mesmo jeito cômico com que havia arregalado os olhos para a mãe, o rosto batendo no mamilo e ricocheteando. Quando ele tornou a descer, no entanto, o rosado da boca se fechou na ponta rosada e ereta do seio, começando a sugar.

Sempre rindo, Mia alisou os anéis pretos e ensopados de sangue do cabelo emaranhado do chapinha. Para Susannah, aquele riso soava como gritos.

Ouviram-se pancadas no assoalho quando um robô se aproximou. Sem dúvida era um pouco parecido com Andy, o Robô Mensageiro — a mesma figura magrela com dois metros a dois metros e meio de altura, os mesmos eletrizados olhos azuis, o mesmo corpo brilhante, repleto de juntas. Levava nos braços uma grande caixa de vidro com uma luz verde.

— O que a porra deste robô veio fazer aqui? — Sayre berrou. Parecia simultaneamente irritado e perplexo.

— É uma incubadora — disse Scowther. — Achei que era melhor prevenir do que remediar.

Quando ele se virou para olhar, o coldre com o revólver, preso no ombro, virou em direção de Susannah. Era uma ótima chance, a melhor que Susannah já tivera, e ela sabia disso, mas antes que pudesse pegar a arma, o chapinha de Mia se alterou.

 

Susannah viu a luz vermelha deslizando na pele suave da criança, do alto da cabeça para o calcanhar manchado no pé direito. Não era um feixe, mas um clarão, iluminando a criança de fora: Susannah teria jurado que era assim. E então, quando a luz atingiu a barriga esvaziada de Mia, onde a criança fechava os lábios ao redor de um mamilo, o clarão vermelho foi seguido por uma escuridão que se ergueu no ar e se espalhou, transformando a criança num gnomo escuro, um negativo do bebê rosado que escapara do útero de Mia. Ao mesmo tempo o pequeno corpo começou a se atrofiar, as pernas se derretendo na barriga, a cabeça escorregando para baixo (e puxando o seio de Mia com ela), caindo sobre o pescoço, que inchou como a garganta de um sapo. Os olhos azuis ficaram escuros como breu, depois voltaram a ficar azuis.

Susannah tentou gritar e não conseguiu.

Tumores incharam ao longo dos lados da coisa negra, depois explodiram e expeliram pernas. A mancha vermelha que marcava o calcanhar ainda era visível, mas se tornara um inchaço, como a marca rubra na barriga de uma aranha viúva-negra. Pois era isso que era aquela coisa: uma aranha. O bebê, contudo, não se fora de todo. Uma excrescência branca brotou das costas da aranha. Nela Susannah pôde ver uma face minúscula, deformada, e centelhas azuis que eram olhos.

— O quê...? — Mia perguntou e de novo se apoiou sobre os cotovelos. O sangue tinha começado a escorrer de seu seio. O bebê o tomava como leite, sem perder uma só gota. Ao lado de Mia, Sayre permanecia imóvel como uma estátua, a boca aberta e os olhos saltando das órbitas. Seja lá o que tivesse esperado daquele nascimento, o que quer que o tivessem mandado esperar, não era aquilo. A parte Detta de Susannah teve prazer em fazer uma comparação maldosa e infantil ao ver a expressão chocada do homem: parecia o comediante Jack Benny fazendo de tudo para estender a risada do público.

Por um momento, Mia pareceu perceber o que tinha acontecido, pois sua face começou a se alongar com uma espécie bem justificada de horror — e talvez mágoa. Então o sorriso dela voltou, aquele angélico sorriso de madona. Ela estendeu o braço e alisou a anomalia em seu seio, ainda completando a metamorfose, a aranha negra com a minúscula cabeça humana e a marca vermelha na barriga peluda.

— Não é bonito? — ela gritou. — Meu filho não é bonito, não é belo como o sol de verão?

Foram essas suas últimas palavras.

 

Sua face não pareceu exatamente paralisada, mas aplacada. As bochechas, testa e pescoço, muito coradas pelo esforço do nascimento um momento atrás, esmaeceram para a brancura de cera de pétalas de orquídea. Os olhos brilhantes ficaram quietos e fixos nas órbitas. E de repente foi como se Susannah estivesse olhando não para uma mulher deitada na cama, mas para a gravura de uma mulher. Uma gravura extraordinariamente boa, mas ainda assim algo que tivesse sido criado no papel com os movimentos de um lápis de desenho e algumas cores pálidas.

Susannah lembrou como voltara ao Plaza-Park Hyatt Hotel após sua primeira visita ao torreão do Castelo Discórdia e como chegara lá, em Fedic, após sua última palestra com Mia, no abrigo das ameias. Lembrou como o céu, o castelo e cada pedra das ameias tinham se rasgado. E então, como se seu pensamento tivesse provocado isso, a face de Mia foi rasgada do queixo ao contorno do cabelo. Os olhos fixos, vidrados, caíram (olhando de soslaio) para os lados. Os lábios se fenderam num sorriso dentuço e enlouquecido. E não foi sangue o que vazou da brecha que se abria em seu rosto, mas um pó branco com cheiro rançoso. Susannah teve uma lembrança fragmentada de T. S. Eliot

(homens ocos homens empalhados elmos cheios de palha)

e Lewis Carroll

(mas você não passa de um baralho de cartas)

antes do dan-tete de Mia erguer sua indescritível cabeça após a primeira refeição. A boca manchada de sangue se abriu e ele se levantou, as pernas inferiores se debatendo em busca de apoio na esvaziada barriga da mãe, as superiores quase parecendo fazer um treino de boxe com Susannah.

A coisa deu um grito de triunfo e, se nesse momento tivesse realmente atacado a outra mulher que a trouxera ao mundo, Susannah Dean teria sem dúvida morrido ao lado de Mia. Em vez disso, a coisa voltou ao esvaziado volume do seio onde havia sugado e o rasgou. Mastigando, fez um barulho frouxo e molhado. Um momento mais tarde, a coisa se entocou no buraco que tinha feito, a face humana branca desaparecendo enquanto a de Mia era destruída pela poeira que saía fervendo de dentro de sua cabeça agora murcha. Houve um barulho de sugar muito áspero, quase mecânico, e Susannah pensou: Está tirando todo líquido que há dentro dela, toda umidade que sobrou. E olhem ali! Olhem para o inchaço! Como sanguessuga no pescoço de um cavalo!

Nesse momento uma voz ridiculamente inglesa (era a afetada inflexão do eterno cavalheiro dos cavalheiros) disse:

— Perdão, senhores, mas irão querer esta incubadora? Pois a situação parece ter se modificado um pouco, se me permitem a observação.

Isto rompeu a paralisia de Susannah. Ela se ergueu com uma das mãos enquanto a outra se apoderava da pistola automática de Scowther. Puxou, mas a arma estava presa na coronha e não queria se soltar. Seu indicador, no entanto, encontrou o pequeno puxador deslizante que era o dispositivo de segurança e empurrou. Logo virava a pistola, com coldre e tudo, para a costela de Scowther.

— Que diab... — ele começou e então Susannah puxou o gatilho com o dedo médio, ao mesmo tempo usando toda a sua força para dar um puxão na correia presa no ombro. As correias prendiam o coldre ao corpo de Scowther; a mais fina, no entanto, que mantinha a pistola automática no lugar, arrebentou e, quando Scowther caiu para o lado, tentando olhar para o fumegante buraco negro no jaleco branco, Susannah adquiriu plena posse da arma. Atirou em Straw e no vampiro ao lado dele, aquele que tinha a espada elétrica. Por um momento o vampiro ficou lá, ainda contemplando a aranha-deus que, no início, fora tão parecida com um bebê. Então sua aura se extinguiu. A carne da coisa sumiu com ela. Por um momento não houve mais nada onde o vampiro tinha estado, só uma camisa vazia enfiada numa calça jeans vazia. Aí as roupas murcharam.

— Matem-na! — Sayre gritou, estendendo a mão para sua própria arma. — Matem essa puta!

Susannah rolou para longe da aranha agachada no corpo da mãe, que rapidamente desinchara, puxando o capacete que ainda estava usando, enquanto saía da cama. Houve um momento de aflição martirizante quando achou que o capacete não ia sair, mas então ela caiu no assoalho, livre da coisa. Ficou pendurado ao lado da cama, emoldurada por seu cabelo. A coisa-aranha, momentaneamente afastada de seu poleiro quando o corpo da mãe mexeu, piou irritada.

Susannah rolou para baixo da cama quando uma série de tiros passaram sobre ela. Ouviu um alto SPROINK quando uma bala atingiu a mola de uma cama. Viu os pés e a parte de baixo das pernas peludas da enfermeira com cabeça de rato e pôs uma bala num de seus joelhos. A enfermeira deu um grito, se virou e começou a se afastar mancando, chorando muito.

Sayre se inclinou, apontando o revólver para a improvisada cama dupla, pouco além do corpo murcho de Mia. Já havia três buracos fumegantes, chamejantes no lençol. Antes que ele pudesse adicionar um quarto, uma das pernas da aranha acariciou sua bochecha, rasgando a máscara que ele usava e revelando a bochecha peluda que havia por baixo. Sayre recuou, gritando. A aranha se virou para ele e produziu uma espécie de miado. A coisa branca no alto de suas costas — um nódulo com face humana — olhou fixamente, como se mandasse Sayre se afastar de sua refeição. Então a coisa voltou a prestar atenção na mulher — que na realidade nem era mais reconhecível como mulher; lembrava antes os restos de alguma múmia incrivelmente antiga, reduzida a trapos e poeira.

— Digo, isto é mesmo um pouco confuso — comentou o robô com a incubadora. — Será que me retiro? Talvez possa voltar quando as coisas estiverem um pouco mais claras.

Susannah rolou para o outro lado, saindo de baixo da cama. Viu que dois dos homens baixos haviam fugido. Jey, o homem-falcão, parecia incapaz de tomar uma decisão. Ir ou ficar ali? Susannah resolveu a coisa por ele, dando um único tiro na cabeça lisa e marrom. Sangue e penas esvoaçaram.

Susannah levantou-se do jeito que pôde, agarrando o lado da cama para manter o equilíbrio, mantendo a pistola de Scowther apontada na sua frente. Já pegara quatro. A enfermeira com cabeça de rato e uma outra tinham conseguido fugir. Sayre largara o revólver e agora tentava se esconder atrás do robô com a incubadora.

Susannah atirou nos dois vampiros restantes e no homem baixo com a cara de buldogue. Este — Haber — não tinha esquecido Susannah; segurava-se e esperava ter ângulo para o tiro. Ela obteve o ângulo primeiro e viu-o cair para trás com profunda satisfação. Haber, ela pensou, fora o mais perigoso.

— Senhora, será que poderia me dizer... — começou o robô e Susannah plantou dois rápidos tiros em sua face de aço, apagando os olhos elétricos e azuis. Um truque que aprendera com Eddie. O toque de uma gigantesca sirene irrompeu de imediato. Susannah sentiu que, se ficasse ouvindo aquilo muito tempo, ficaria surda.

— FIQUEI CEGO POR TIROS! — o robô gritou, sempre naquele tom absurdo do gostaria-madame-de-mais-uma-xícara-de-chá? — VISÃO ZERO, PRECISO DE AJUDA, CÓDIGO 7, DIGO, SOCORRO!

Sayre começou a se afastar, mãos no alto. Susannah não podia ouvi-lo com a sirene e o alvoroço do robô, mas conseguiu ler as palavras que saíram dos lábios do puto: Eu me rendo, vai aceitar minha palavra?

Ela sorriu achando a idéia divertida, mas inconsciente de que sorriu. Na realidade um sorriso sem humor, sem misericórdia e significando uma única coisa: teve vontade de vê-lo lamber os cotos de suas pernas, assim como ele obrigara Mia a lamber suas botas. Mas não houve tempo. Ele viu o destino que o esperava no sorriso dela, virou-se para fugir e Susannah acertou-o duas vezes atrás da cabeça: uma por Mia, uma por Père Callahan. O crânio de Sayre se despedaçou num festival de sangue e massa cerebral. Ele chegou até a parede, lutou para se agarrar a uma prateleira cheia de equipamentos e suprimentos médicos e caiu morto no chão.

Susannah, então, fez mira no deus-aranha. A minúscula cabeça humana branca no lombo preto e peludo da coisa virou-se para ela. Os olhos azuis, tão incomodamente parecidos com os de Roland, se inflamaram.

Não, não pode fazer isso! Não há de fazer! Pois sou o único filho do Rei!

Não posso?, ela respondeu, nivelando a pistola automática. Oh, docinho, você está simplesmente... tão... ERRADO!

Mas antes que Susannah pudesse puxar o gatilho, houve um tiro atrás dela. Uma bala passou raspando pelo seu pescoço. Susannah reagiu instantaneamente, virando e se atirando para o lado no corredor. Um dos homens baixos que haviam corrido tinha mudado de opinião e voltado. Susannah pôs duas balas em seu peito e o fez lamentar mortalmente a nova decisão.

Ela se virou, ávida por mais (sim, era isto o que ela queria, era para aquilo que tinha sido feita e iria sempre reverenciar Roland, por ter lhe ensinado isto), mas os outros ou estavam mortos ou já tinham fugido. Com suas muitas pernas, a aranha desceu correndo pelo lado da cama onde nascera, deixando para trás o cadáver papier-maché da mãe. Por um instante virou para ela a cabeça branca e infantil.

Vai ser melhor me deixar passar, Negra, ou...

Ela atirou na coisa, mas ao fazê-lo tropeçou na mão estendida do Homem-Falcão. A bala que devia ter matado a abominação seguiu um tanto torta, só conseguindo arrancar uma das oito pernas cabeludas. Um líquido rubro-amarelado, mais semelhante a pus que a sangue, jorrou do lugar onde a perna estivera unida ao corpo. A coisa gritou de dor e susto. A parte audível do grito foi percebida com dificuldade por causa do interminável ciclo de barulho da sirene do robô, mas ela acabou conseguindo ouvi-lo alto e claro dentro da cabeça.

Vou lhe dar o troco por isso! Eu e meu pai, nós vamos lhe dar o troco! Fazê-la implorar pela morte, é o que faremos!

Não vai ter essa oportunidade, docinho, Susannah respondeu, tentando irradiar toda a confiança que conseguisse reunir, não querendo que a coisa percebesse no que ela acreditava: que a munição da arma automática de Scowther estava esgotada. Fez pontaria com uma ênfase desnecessária e a aranha fugiu a toda pressa, atirando-se primeiro atrás do robô cuja sirene não parava de tocar e depois se arremessando por uma porta escura.

Tudo bem. Nada maravilhoso, não a melhor solução por qualquer medida, mas ela continuava viva e isso já era muito importante.

E o fato de toda a equipe de sai Sayre estar morta ou correndo dali? Isso também não era mau.

Susannah atirou o revólver de Scowther para o lado e selecionou outro, agora uma Walther PPK. Tirou-a do coldre que Straw usara no peito, depois remexeu em seus bolsos, onde encontrou meia dúzia de pentes adicionais de balas. Por um instante pensou em adicionar a espada elétrica do vampiro a seu arsenal, mas acabou deixando-a onde estava. Melhor contar com as ferramentas conhecidas, não com as desconhecidas.

Tentou entrar em contato com Jake e, ao não conseguir ouvir o próprio pensamento, virou-se para o robô.

— Ei, garotão! Que tal parar com a porra dessa sirene?

Não fazia a menor idéia se ia funcionar, mas funcionou. O silêncio foi imediato e esplêndido, com a textura sensual de uma seda muito brilhante. O silêncio podia ser útil. Se houvesse um contra-ataque, ela os ouviria chegar. E a terrível verdade! Esperava um contra-ataque, queria que voltassem e pouco importava se isso fazia sentido ou não. Tinha uma pistola e o sangue estava quente. Era só o que importava.

(Jake! Jake, está me ouvindo, garoto? Se está, responda a sua irmãzona!)

Nada. Nem mesmo o matraquear de algum tiroteio distante. Ele estava fora de...

Então, uma única palavra... era uma palavra?

(wimeweh)

Mais importante, era Jake?

Não tinha certeza, mas achava que sim. E a palavra, de alguma forma, lhe parecia familiar.

Susannah reuniu toda a sua concentração, pretendendo desta vez chamar mais alto, e então uma estranha idéia lhe ocorreu, uma idéia forte demais para ser chamada de intuição. Jake estava tentando ficar em silêncio. Será que estava... se escondendo? Quem sabe se preparando para dar início a alguma emboscada? A idéia parecia louca, mas talvez o sangue dele também estivesse fervendo. Não sabia, mas achava que, se Jake não havia lhe mandado aquela única e curiosa palavra

(wimeweh)

de propósito, ela escapulira. De um modo ou de outro, talvez por enquanto fosse melhor deixá-lo agir a seu modo.

— Eu digo, fiquei cego por causa de tiros! — o robô insistia. Sua voz, embora ainda alta, caíra para um nível pelo menos próximo do normal. — Não consigo ver nadica e tenho esta incubadora...

— Largue-a — disse Susannah.

— Mas...

— Largue-a, Chumley.

— Peço perdão, senhora, mas meu nome é Nigel, o Mordomo, e realmente não posso...

Susannah estivera se arrastando para mais perto dele durante aquele breve diálogo (você não esquece os velhos meios de locomoção só porque desfrutou de um breve período de férias com pernas, foi o que ela estava descobrindo) e leu o nome e o número de série estampados na placa de cromo da barriga do robô.

— Nigel DNK 45932, largue a porra dessa caixa de vidro, muito obrigada!

O robô (DOMÉSTICO, era o que estava estampado logo abaixo do número de série) soltou a incubadora e choramingou quando ela se espatifou junto a seus pés de aço.

Susannah continuou a avançar para Nigel e teve de dominar um momento de medo antes de esticar o braço e pegar aquela mão de aço com apenas três dedos. Precisou se lembrar que aquele não era o Andy, de Calla Bryn Sturgis, nem poderia Nigel saber algo de Andy. Não sabia se o robô-mordomo era ou não suficientemente sofisticado para ansiar por vingança (Andy certamente fora), mas antes ele teria de ser capaz de entender o que acontecera.

Torcia para que fosse assim.

— Nigel, me levante do chão.

Houve um guincho de servomecanismos quando o robô se curvou.

— Não, querido, vai ter de chegar um pouquinho à frente. Há vidro quebrado no lugar onde está.

— Perdão, senhora, mas estou cego. Acredito que foi a senhora quem atirou nos meus olhos.

Oh. Isso.

— Bem — disse ela, esperando que o tom de irritação disfarçasse o medo que havia por baixo —, acho que não vou poder lhe conseguir novos olhos se não me tirar do chão, certo? Agora depressa, faça isso. Estamos perdendo tempo.

Nigel deu um passo à frente, esmagando vidro quebrado com os pés, mas se mantendo firme na direção da voz dela. Susannah controlou o ímpeto de se encolher, mas, quando o robô doméstico pôs os braços nela, o toque foi extremamente gentil. Ele a ergueu.

— Agora me leve até a porta.

— Senhora, peço perdão, mas há muitas portas na enfermaria 16. Um número ainda maior sob o castelo.

Susannah não pôde conter a curiosidade.

— Quantas?

Uma breve pausa.

— Eu diria que 595 estão atualmente em operação. — Ela notou de imediato que cinco mais nove mais cinco davam 19. Davam chassit.

— Se importa de me dar uma carona para aquela que atravessei antes de o tiroteio começar? — Susannah apontou para a extremidade da sala.

— Não, senhora, eu não me importo absolutamente, mas sinto dizer que isso de nada lhe servirá — disse Nigel com sua voz afetada. — Aquela porta, NOVA YORK #7/ FEDIC só conduz numa direção. — Uma pausa. Relês clicando no domo de aço de sua cabeça. — Além disso, incendiou-se após seu último uso. Foi, podia se dizer, para a clareira no final do caminho.

— Oh, isso é simplesmente maravilhoso! — Susannah gritou, mas percebeu que não ficara exatamente surpresa com a notícia que Nigel lhe dava. Lembrava-se do áspero rumor que ouvira a porta fazer pouco antes de Sayre empurrá-la brutalmente através dela, lembrava-se de ter pensado, mesmo em sua aflição, que era uma porta com os dias contados. E sim, a porta morrera. — Simplesmente maravilhoso!

— Sinto que está perturbada, madame.

— Tem toda a razão, estou perturbada! Então a maldita porta só funcionava num sentido! E agora está completamente trancada!

— Exceto para a default — Nigel concordou.

— Default? O que está querendo dizer com isso, default?

— Seria a NOVA YORK # 9 / FEDIC — respondeu Nigel. — Em certa época, houve mais de trinta portas de sentido único Nova York a Fedic, mas acredito que a # 9 seja a única que sobrou. Todos os comandos pertinentes à NOVA YORK # 7 / FEDIC terão sido passados à # 9.

Chassit, ela pensou... quase implorando que fosse mesmo aquilo. Está falando sobre chassit, eu acho. Ó Deus, espero que sim.

— Está se referindo a coisas como senha, Nigel?

— Ora, sim senhora.

— Leve-me até a porta # 9.

— Como quiser.

Nigel começou a subir rapidamente o corredor entre as centenas de camas vazias, os lençóis esticados e brancos reluzindo sob as brilhantes lâmpadas do teto. A imaginação de Susannah povoou momentaneamente aquela sala com crianças assustadas, gritando, recentemente chegadas de Calla Bryn Sturgis, talvez também das Callas vizinhas. Viu não uma única enfermeira com cabeça de rato, mas batalhões delas, ávidas para prender os capacetes nas cabeças das crianças seqüestradas e dar início ao processo que... que fazia o quê? Que de alguma forma conseguia arruiná-las. Sugava a inteligência de suas cabeças, colocava seus hormônios de crescimento fora de ordem e as destruía para sempre. Susannah supôs que, a princípio, as crianças ficariam encorajadas ouvindo uma voz tão agradável em suas cabeças, uma voz lhes dando as boas-vindas ao maravilhoso mundo da North Central Positronics e do Grupo Sombra. Parariam de chorar, os olhos se enchendo de esperança. Talvez pensassem que as enfermeiras naqueles uniformes brancos seriam boazinhas, apesar dos rostos peludos, assustadores, e das garras amarelas. Boazinhas como a voz da simpática senhora.

Então o zumbido teria começado, aumentando rapidamente de volume enquanto ia atingindo o centro de suas cabeças e de novo a sala se enchia de seus gritos de pavor...

— Madame? A senhora está bem?

— Sim. Por que pergunta, Nigel?

— Creio que a senhora tremeu.

— Não importa. Me leve até a porta para Nova York, aquela que ainda funciona.

 

Assim que deixaram a enfermaria, Nigel atravessou rapidamente um corredor com ela, depois outro. Chegaram a escadas rolantes que pareciam estar há séculos imobilizadas. Na metade da descida de uma delas, uma bola de aço com pernas piscou seus olhos cor de âmbar para Nigel e gritou: “houp! houp!”, e Nigel respondeu: “houp! houp!”; depois disse a Susannah (no tom confidencial que certa gente tagarela adota quando fala sobre a vida Daqueles que lhes Dão Pena):

— É um contramestre mecânico que se prendeu aqui há mais de oitocentos anos... placas fritas, imagino. Pobre alma! Mas ainda tenta fazer o melhor que pode.

Nigel perguntou duas vezes se ela achava que seus olhos poderiam ser substituídos. Da primeira vez, Susannah disse que não sabia. Da segunda — com um pouco de pena dele (agora definitivamente dele, não da coisa) — perguntou o que ele pensava.

— Penso que meus dias de serviço estão quase encerrados — disse Nigel, acrescentando depois uma coisa que fez os braços de Susannah formigarem num arrepio: — Oh, Discórdia!

Os Irmãos Diem estão mortos, ela pensou, recordando (fora um sonho?, uma visão?, um relance da Torre, dela?) alguma coisa de seu período com Mia. Ou fora o tempo que passara em Oxford, Mississippi? Ou as duas coisas? Papa Doc Duvalier está morto. Christa McAuliffe está morta. Stephen King está morto, o popular escritor morrera durante um passeio à tarde, oh, Discórdia, oh, perdido!

Mas quem era Stephen King? E aliás, quem era Christa McAuliffe?

A certa altura passaram por um homem baixo que estivera presente ao nascimento do monstro de Mia. Ele se achava enrascado no chão empoeirado de um corredor como um camarão humano. Tinha o revólver numa das mãos e um buraco na cabeça. Susannah achou que cometera suicídio. Supunha que, de certa forma, fazia sentido. Porque as coisas tinham dado errado, não era? E se o bebê de Mia não achasse o caminho para o lugar que era seu de direito, o Grande Papai Rubro ia ficar furioso. Aliás podia ficar furioso mesmo se Mordred conseguisse achar o caminho de casa.

O outro pai dele. Pois aquele era um mundo de duplos, imagens no espelho, e Susannah agora compreendia mais sobre o que tinha visto do que queria compreender. Mordred também era um duplo, uma criatura tipo o-médico-e-o-monstro com dois egos, e ele — ou ele, a coisa — tinha as faces de dois pais para lembrar.

Depararam-se com alguns outros cadáveres; todos pareciam suicidas aos olhos de Susannah. Ela perguntou se Nigel poderia confirmar (pelos cheiros, ou algo parecido), mas ele respondeu que não.

— Quantos ainda estão por aqui, tem idéia? — ela perguntou. Seu sangue tivera tempo de esfriar um pouco e agora se sentia nervosa.

— Não muitos, senhora. Creio que a maioria seguiu adiante. Muito provavelmente para a Derva.

— O que é a Derva?

Nigel disse que lamentava terrivelmente, mas essa informação era reservada e só poderia ser acessada com a devida senha. Susannah tentou chassit, mas não deu certo. Nem dezenove ou, sua última tentativa, noventa e nove. Achou que devia se contentar com o fato de saber que a maioria deles haviam sumido.

Nigel virou à esquerda, pegando um novo corredor com portas de ambos os lados. Ela o fez parar pelo tempo suficiente para tentar abrir uma delas, mas do outro lado não havia nada digno de nota. Era um escritório, há muito abandonado a julgar pela grossa camada de pó. Achou interessante ver, numa das paredes, um pôster com adolescentes envolvidos em alguma dança frenética. Mais embaixo, em grandes letras azuis, havia isto:

 

OLHEM SÓ, GATOS LEGAIS E GATINHAS CHOCANTES!

EU ENTREI NO ROCK NA FESTINHA COM ALAN FREED!

CLEVELAND, OHIO, OUTUBRO 1954

 

Susannah estava bem certa que o cantor no palco era Richard Penniman. Freqüentadores de clubes como ela, fãs de folk, tentavam mostrar desprezo por todos que gostavam de um rock mais duro que o de Phil Ochs, mas o coração de Suze sempre cultivara uma fraqueza por Little Richard; Good Golly /Miss Molly /you sure like to ball.* Ela achava que era uma coisa de Detta.

Será que essas pessoas algum dia usaram suas portas para passar férias em inúmeros ondes e quandos de sua escolha? Será que usaram o poder dos Feixes para converter certos andares da Torre em atração turística?

Perguntou a Nigel, que lhe disse ter certeza de que não sabia. Nigel ainda parecia triste por causa da perda dos olhos.

Finalmente chegaram a uma rotunda cheia de ecos e com portas enfileiradas por toda a volta de sua enorme circunferência. Os ladrilhos de mármore no chão estavam dispostos num padrão em xadrez preto-e-bran-co, que Susannah lembrava de certos sonhos conturbados onde Mia alimentava o chapinha. Acima, bem lá no alto, constelações de estrelas elétricas cintilavam num firmamento azul que agora se mostrava cheio de rachaduras. Aquele lugar a fez se lembrar do Berço de Lud e ainda mais fortemente da Grande Estação Central. Em algum lugar nas paredes, aparelhos de ar condicionado ou exaustores funcionavam cheios de ferrugem. O cheiro no ar era estranhamente familiar e, após um breve esforço, Susannah o identificou: Purificador Comet. O fabricante patrocinava O Preço Certo, que ela às vezes assistia na televisão quando passava uma manhã em casa. “Sou Don Pardo, agora por favor vamos aplaudir nosso apresentador, sr. Bill Cullen!” Susannah experimentou um momento de vertigem e fechou os olhos.

Bill Cullen está morto. Don Pardo está morto. Martin Luther King está morto, baleado em Memphis. Governa a Discórdia!

O Cristo, essas vozes, será que nunca vão parar?

Ela abriu os olhos e viu portas com as inscrições XANGAI / FEDIC, BOMBAIM / FEDIC e uma indicando DALLAS (NOVEMBRO 1963) / FEDIC. Em outras havia runas que nada significavam para ela. Por fim Nigel parou na frente de uma que ela reconheceu.

 

NORTH CENTRAL POSITRONICS LTDA.

Nova York / Fedic

Segurança MÁxima

 

Susannah já vira tudo isto do outro lado, mas embaixo de CÓDIGO VERBAL DE ACESSO REQUERIDO, brilhando num vermelho sinistro, havia a seguinte mensagem:

 

#9 DEFAULT

 

O que gostaria de fazer agora, madame? — Nigel perguntou.

— Me coloque no chão, docinho.

Ela teve tempo de se perguntar qual seria sua reação se Nigel se recusasse a fazer isso, mas ele nem hesitou. Susannah caminhou-saltitou-se arrastou para a porta no seu estilo antigo e encostou as mãos nela. Sentiu embaixo das mãos uma textura que não era nem madeira nem metal. Achou que estava ouvindo um zumbido muito baixo. Pensou em tentar chassit (sua versão do abre-te, sésamo de Ali Babá), mas não valia a pena. Não havia sequer uma maçaneta. Sentido único significava sentido único, ela admitiu; sem brincadeiras.

(JAKE!)

Mandou o pensamento com toda a sua força.

Nenhuma resposta. Nem mesmo aquela fraca

(wimeweh)

palavra sem sentido. Esperou mais um momento, depois se virou e sentou-se com as costas apoiadas na porta. Deixou cair os pentes adicionais de balas entre os joelhos abertos e segurou a PPK de Walther com a mão direita. Uma boa arma para se ter com as costas para uma porta fechada, pensou; gostava do peso dela. Era uma vez, ela e alguns outros tinham sido treinados numa técnica de protesto chamada resistência passiva. Deite-se no chão do refeitório, proteja a barriga mole e as partes íntimas mais moles ainda. Não responda aos que a golpeiam, a insultam, amaldiçoam seus pais. Cante em suas correntes, como o mar. O que seus velhos amigos achariam do que ela tinha se tornado?

— Sabe de uma coisa? — disse Susannah. — Estou cagando pra isso. Resistência passiva também é uma coisa morta.

— Madame?

— Não é nada, Nigel.

— Madame, posso perguntar...

— O que estou fazendo?

— Exatamente, madame.

— Esperando um amigo, Chumley. Só esperando um amigo.

Ela achou que o DNK 45932 iria lembrar a ela que se chamava Nigel, mas não o fez. Em vez disso, perguntou quanto tempo ela ia esperar pelo amigo. Susannah disse que até o inferno congelar. Isto provocou um longo silêncio. Finalmente Nigel perguntou:

— Então posso ir, madame?

— Ir para onde?

— Mudei para infravermelho. É menos satisfatório que a macrovisão em três dimensões, mas será suficiente para que eu chegue às baias de manutenção.

— Há alguém nas baias de manutenção que possa repará-lo? — Susannah perguntou com discreta curiosidade. Pressionou o botão que soltava o pente de balas da coronha da Walther, depois tornou a encaixá-la, desfrutando um certo prazer elementar ao ouvir o CLAQUE! metálico, oleoso, que ela produziu.

— Não sei bem dizer, madame — Nigel respondeu —, embora a probabilidade de haver seja muito baixa, certamente menos de um por cento. Se ninguém aparecer, eu, como a senhora, ficarei esperando.

Ela abanou a cabeça, subitamente cansada e muito convencida de que a grande busca havia terminado — lá, contra aquela porta. Mas você ainda não desistiu, não é? Desistir era para os covardes, não para pistoleiros.

— Que você tenha sorte, Nigel... e obrigada pela carona. Longos dias e belas noites. Espero que consiga seus olhos de volta. Lamento ter atirado neles, mas eu me senti num certo aperto e não sabia de que lado você estava.

— E felicidades para a senhora, madame.

Susannah abanou a cabeça. Nigel se afastou caminhando pesado e logo ela estava sozinha, apoiada na porta para Nova York. Esperando por Jake. Pronta para ouvir Jake.

Tudo que ouvia era o chiado enferrujado, agonizante, da maquinaria nas paredes.

 

NA SELVA, A SELVA ENORME

A ameaça de que os homens baixos e os vampiros pudessem matar Oi foi a única coisa que impediu que Jake morresse ao lado do Père. Não houve agonia para tomar a decisão; Jake gritou (OI, AQUI!) com toda a força mental que pôde reunir, e Oi correu rapidamente para seu calcanhar. Jake passou pelos homens baixos hipnotizados pela tartaruga e empurrou brutalmente uma porta com a inscrição USO EXCLUSIVO DOS FUNCIONÁRIOS. Do apagado clarão vermelho-alaranjado do restaurante, ele e Oi passaram a uma zona de brilhante luz branca, culinária pungente e carbonizada. Quentes e úmidas, ondas de vapor se lançavam contra seu rosto (a selva) talvez preparando o cenário do que se seguiu, (a selva possante) talvez não. A visão de Jake melhorou quando as pupilas se contraíram e ele viu que estava na cozinha do Dixie Pig. Aliás, não pela primeira vez. Um dia, não muito antes da chegada dos Lobos a Calla Bryn Sturgis, Jake tinha seguido Susannah (só que então Susannah teria sido Mia) num sonho onde ela revirava uma grande cozinha deserta em busca de comida. Aquela cozinha, só que agora o lugar estava cheio de vida. Um enorme porco assava num espeto de ferro sobre um fogaréu, as chamas saltando por uma grelha de ferro, encardida de restos de comida, a cada gota de gordura caída. De ambos os lados do porco havia gigantescos fogões com coifas de cobre sobre as quais fumegavam panelas quase da altura de Jake. Mexendo uma havia uma criatura de pele cinzenta, tão hedionda que os olhos de Jake só a custo conseguiam olhar para ela. Presas se erguiam de ambos os lados da boca escura, de lábios grossos. As bochechas tinham grandes abas de pele caída, cheia de verrugas. O fato de a criatura estar usando um avental e um grande chapéu de cozinheiro, cheio de pontas, abrandava, de certa forma, o pesadelo, ocultando-o sob um certo verniz. Atrás desta aparição, quase perdidas no vapor, duas outras criaturas, uma ao lado da outra e também com aventais brancos, lavavam pratos numa pia dupla. Ambas usavam lenços de pescoço. Uma era humana, um garoto de talvez uns 17 anos. A outra parecia uma espécie de monstruoso gato sobre duas pernas.

— Vai, vai, los monstros pubes, três cannits en founs! — o chefe de presas gritou para os garotos na pia. Ele não reparou em Jake. Um dos garotos (o gato) reparou, estendendo as orelhas para trás e bufando. Sem pensar duas vezes, Jake atirou o Oriza que segurava com a mão direita. O prato cantou pelo ar enfumaçado e cortou o pescoço do gato com a suavidade de uma faca num pedaço de banha. A cabeça caiu na pia com um barulho de espuma de sabão, os olhos verdes ainda brilhando.

— San fai, can dit los!— gritou o chefe. Parecia inconsciente do que tinha acontecido ou incapaz de apreender a imagem da coisa. Virou-se para Jake. Os olhos sob a testa inclinada, coberta de gomos, eram de um mortiço cinza-azulado, os olhos de um ser provido de consciência. Olhando de frente, Jake percebeu o que era: uma espécie de javali inteligente e deformado. O que significava que estavam cozinhando criaturas de sua própria espécie. O que, aliás, parecia perfeitamente adequado ao Dixie Pig.

— Pode foh pentelho ain-tet pode fah! Ela-tão pan! Vai! — Isto foi dirigido a Jake, E então, só para tornar a insensatez completa: — E eef cê num esfregar, num siquer comece!

O outro rapaz na pia, o de aparência humana, estava gritando uma espécie de advertência, mas o chefe não lhe deu atenção. O chefe parecia acreditar que Jake estaria dando o dever por cumprido e a honra defendida ao matar o gato.

Jake atirou o outro prato, que atravessou o pescoço do javali, pondo fim à sua tagarelice. Talvez um galão de sangue tenha fluído para o topo do fogão à direita da coisa, espirrando e provocando um horrível cheiro de queimado. A cabeça do javali caiu à esquerda do pescoço, meio inclinada para trás, mas não chegou a ser decepada. O ser (que tinha pelo menos uns dois metros e dez de altura) deu dois passos trôpegos para a esquerda, abraçou o porco que assava e acabou enterrado no espeto. A cabeça foi puxada um pouco mais, caindo agora sobre o ombro direito do chef Javali, e um olho se arregalou para a fileira de enfumaçadas lâmpadas fluorescentes. O calor colou as mãos do cozinheiro no assado e elas começaram a derreter. Então a coisa caiu sobre o fogaréu e sua túnica pegou fogo.

Jake se afastou a tempo de ver o outro auxiliar de cozinha avançar para ele com uma faca de carne numa das mãos e uma machadinha na outra. Jake tirou outro ’Riza da sacola mas segurou-o um pouco, a despeito da voz em sua cabeça que o instava a seguir em frente, seguir em frente, atirar a coisa, dar ao bastardo o que um dia ouvira Margaret Eisenhart chamar de “corte fundo de cabelo”. A expressão fizera as outras Irmãs do Prato rirem muito. Contudo, por mais que ele quisesse atirar, a mão continuou imóvel.

O que via era um rapaz cuja pele ganhara um pálido tom cinza-amarelado sob as brilhantes luzes da cozinha. Parecia ao mesmo tempo apavorado e subnutrido. Jake ergueu mais o prato num sinal de advertência e o jovem parou. Não era, porém, o ’Riza que ele estava olhando, mas Oi, que permanecia entre os pés de Jake. O pêlo do trapalhão, arrepiado em volta do corpo, parecia ter dobrado de tamanho, e os dentes estavam à mostra.

— Você... — Jake começou, e então a porta do restaurante se escancarou. Um dos homens baixos precipitou-se por ela. Jake atirou o prato sem hesitar. O prato gemeu pelo ar brilhante, enfumaçado, e decepou a cabeça do intruso com precisão e muito sangue, logo acima do pomo-de-adão. O corpo sem cabeça oscilou primeiro para a esquerda, depois para a direita, como um comediante em cima de um palco aceitando uma chuva de aplausos com mesuras extravagantes. Então o corpo desabou.

Jake pôs quase de imediato um prato em cada mão, os braços mais uma vez cruzados sobre o peito na posição que sai Eisenhart chamava “a carga”. Encarava o lavador de pratos, que continuava segurando a faca e a machadinha. Mas não numa atitude muito ameaçadora, Jake pensou. Tentou de novo e, desta vez, conseguiu soltar a pergunta inteira:

— Fala a minha língua?

— Ié — disse o rapaz. Ele deixou cair a machadinha para poder mostrar o polegar avermelhado pela água e o indicador com menos de um centímetro de distância entre eles. — Mas só um polco. Aprendo quando cheguei aqui. — Abriu sua outra mão e a faca se juntou à machadinha no chão da cozinha.

— Você vem do Mundo Médio? — Jake perguntou. — Vem, não é?

Achava que o rapaz da pia não era dos mais brilhantes (“talvez não um geniozinho”, Elmer Chambers teria dito em tom de zombaria), mas pelo menos era suficientemente esperto para ter saudades de casa; a despeito do terror, Jake reparou que havia um certo lampejo inconfundível nos olhos do garoto.

— Ié — disse ele. — Veio de Ludweg, eu.

— Fica perto da cidade de Lud?

— Ao norte de lá, gostemos disso ou não — respondeu o lavador de pratos. — Vai me matar, rapaz? Não quero morrer, por triste que viva.

— Não sou eu quem irá matá-lo se me disser a verdade. Passou alguma mulher por aqui?

O lavador de pratos hesitou, depois disse:

— Sim. Sayre e seus pares vinham com ela. Ela vinha suspensa, assim foi, cabeça toda caída... — E ele demonstrou, deixando a cabeça cair para o pescoço e ficando ainda mais parecido com o bobo da corte. Jake pensou no Sheemie da história que Roland contou de seus dias em Mejis.

— Mas não morta...

— Naum. Ouvi seu respiro, eu.

Jake se virou para a porta, mas não vinha ninguém. Ainda. Tinha de sair dali, mas...

— Qual é seu nome, guri?

— Jochabim, esse sou eu, filho de Hossa.

— Bem, escute, Jochabim, há um mundo fora desta cozinha chamado Cidade de Nova York, onde pentelhos como você vivem livres. Sugiro que saia enquanto tem oportunidade.

— Eles simplesmente vão me trazer de volta e me dar chicotadas.

— Não, você não imagina como o lugar é grande. É como Lud quando Lud era...

Contemplou a expressão de olhos mortos de Jochabim e pensou: Não, eu é que não estou entendendo. E se continuar aqui tentando convencê-lo a desertar, vou sem dúvida conseguir exatamente o que...

A porta levando ao restaurante tornou a se escancarar. Desta vez os dois homens baixos tentaram atravessar ao mesmo tempo e, por um momento, ficaram imprensados, ombro a ombro. Jake atirou seus dois pratos e viu como se entrecruzaram no ar enfumaçado, decapitando ambos os recém-chegados, exatamente quando ficaram entalados. Eles caíram para trás e, mais uma vez, a porta se fechou com estrondo. Na escola Piper, Jake tinha aprendido alguma coisa sobre a Batalha das Termópilas, onde os gregos haviam contido um exército persa dez vezes mais numeroso que o deles. Os gregos haviam atraído os persas para um estreito passo de montanha; ele tinha a porta daquela cozinha. Desde que continuassem a chegar individualmente ou em grupo de dois (como certamente ia acontecer, a não ser que descobrissem algum meio de cercá-lo), poderia pegar a todos.

Pelo menos até acabarem os Orizas.

— Armas? — perguntou a Jochabim. — Existem armas aqui?

Jochabim balançou negativamente a cabeça, mas dado o irritante olhar fixo do rapaz ficou difícil dizer se o balanço significava “nenhuma arma na cozinha” ou “eu não conheço você”.

— Tudo bem, vou embora — disse Jake. — E se você não sair daqui enquanto ainda tem chance, Jochabim, é porque é mais tolo do que parece. Bem, isso já é dizer muito. Há videogames lá fora, garoto... pense nisso.

Jochabim, no entanto, continuou dispensando a Jake o olhar bobão e Jake desistiu. Estava prestes a falar com Oi quando alguém se dirigiu a ele através da porta.

— Ei, garoto. — Voz áspera. Confidencial. Autoconfiante. A voz de um homem que poderia colocá-lo a nocaute no primeiro round ou dormir com sua namorada quando muito bem entendesse, Jake pensou. — Seu amigo padreco morreu. Na realidade o padreco virou jantar. Se você sair agora, sem fazer mais nenhuma bobagem, talvez não acabe como sobremesa.

— Vire-o para o lado e enfia-o no cu — Jake gritou. Isto atravessou até mesmo o muro de estupidez de Jochabim; ele pareceu chocado.

— Última chance — disse a voz áspera e autoconfiante. — Saia daí.

— Entre aqui! — Jake revidou. — Tenho um bom número de pratos! — Na realidade, sentiu um impulso enlouquecido de sair em disparada, se arremessar pela porta e levar a batalha aos homens e mulheres baixos no salão de jantar do restaurante. E a idéia não era assim tão louca, como o próprio Roland teria admitido; era a última coisa que esperavam e havia pelo menos uma chance razoável de conseguir colocá-los em pânico com meia dúzia de pratos rapidamente atirados e provocar uma debandada.

O problema eram os monstros que tinham se banqueteado atrás da tapeçaria. Os vampiros. Eles não entrariam em pânico e Jake sabia disso. Ele desconfiava que, se os Avós tivessem conseguido entrar na cozinha (talvez fosse apenas falta de interesse o que os mantinha no salão de jantar — isso e os últimos pedaços do cadáver do Père), ele já estaria morto. Jochabim também, muito provavelmente.

Ajoelhou-se e murmurou:

— Oi, encontre Susannah! — e reforçou o comando com uma rápida imagem mental.

O trapalhão dispensou a Jochabim um último olhar desconfiado e começou a farejar no chão. Os ladrilhos estavam úmidos de uma recente passada de pano e Jake temeu que o trapalhão não fosse capaz de encontrar o rastro. Então Oi emitiu um som agudo (mais latido de cachorro que grito humano) e começou a correr pelo centro da cozinha entre os fogões e as mesas de banho-maria, nariz encostando no piso, só se afastando brevemente de seu caminho para contornar o corpo carbonizado do chef Espírito de Porco.

— Escute, venha cá, seu merdinha! — gritou o homem baixo diante da porta. — Estou perdendo a paciência com você!

— Ótimo! — Jake gritou. — Entre! Vamos ver se consegue sair de novo!

Olhando para Jochabim, pôs os dedos nos lábios num gesto que pedia silêncio. Estava à beira de se virar e correr (não fazia idéia de quanto tempo o auxiliar de cozinha ia demorar para gritar através da porta que o guri e seu zé-trapalhão já não estavam controlando o Passo das Termópilas), quando Jochabim dirigiu-se a ele num tom baixo, pouco mais que um sussurro.

— O que é? — Jake perguntou, olhando-o com ar de dúvida. Era como se o garoto tivesse dito cuidado com a armação mental, mas isso não fazia sentido. Fazia?

— Cuidado com a armação mental — disse Jochabim, desta vez muito mais claramente. Depois se afastou para cuidar de suas panelas e espuma de sabão.

— Que armação mental? — Jake perguntou, mas Jochabim fingiu não ouvir e Jake não podia ficar ali a interrogá-lo. Correu para alcançar Oi, olhando sempre para trás. Se mais uma dupla de homens baixos irrompesse na cozinha, Jake queria ser o primeiro a saber.

Mas nenhum entrou, pelo menos não antes de ele atravessar outra porta com Oi e entrar com o trapalhão na despensa do restaurante, um cômodo escuro entulhado até o alto de caixas, cheirando a temperos e café. Era como o depósito atrás do mercado de East Stoneham, só que mais limpo.

 

Havia uma porta fechada no canto da despensa do Dixie Pig. Atrás dela havia uma escada de azulejos descendo só Deus sabia para onde. Era iluminada por lâmpadas de baixa voltagem atrás de redomas de vidro turvas, com sujeira de insetos. Oi avançou sem hesitação, descendo com um movimento de caça, regular e sincopado, pata-da-frente-pata-de-trás, que era bastante engraçado. Mantinha o nariz pressionado contra os degraus e Jake sabia que ele de fato localizara Susannah; podia captar isto da mente de seu amiguinho.

Jake tentou contar os degraus, e conseguiu chegar a 120, depois perdeu o controle sobre os números. Ele se perguntou se ainda estavam em Nova York (ou debaixo dela). A certa altura pensou ter ouvido um leve estrondo familiar e, se fosse mesmo um trem de metrô, estavam sob a cidade.

Finalmente alcançaram o fim da escada. Ali havia uma área ampla, abobadada, que lembrava um gigantesco saguão de hotel, só que sem o hotel. Oi foi atravessando, o focinho ainda baixo no chão, a caudazinha balançando de um lado para o outro. Jake tinha que correr para acompanhá-lo. Agora que já não enchiam a bolsa, os ’Rizas batiam de um lado para o outro. Havia um quiosque na ponta do saguão abobadado. No vidro empoeirado, uma placa dizia: ÚLTIMA CHANCE PARA LEMBRANÇAS DE NOVA YORK. E outra dizia: VISITE 11 DE SETEMBRO DE 2001! ÚLTIMAS ENTRADAS PARA ESTE MARAVILHOSO EVENTO! ACESSO DE ASMÁTICOS SÓ COM ATESTADO MÉDICO! Jake se perguntou o que havia de tão fabuloso em torno de 11 de setembro de 2001, mas logo concluiu que talvez fosse melhor ele não saber.

De súbito, alto em sua cabeça como uma voz falando diretamente no ouvido: Ei! Ei dona Positrônica! Ainda está aí?

Jake não fazia idéia de quem podia ser a tal dona Positrônica, mas reconheceu a voz que fazia a pergunta.

Susannah!, ele exclamou mentalmente, parando perto do quiosque turístico. Um riso espantado, alegre, tornou a vincar seu rosto tenso, transformando-o de novo num garoto. Suze, você está aí?

E ouviu um grito de feliz surpresa.

Oi, percebendo que Jake não estava mais seguindo atrás dele, virou-se e deu um brado de impaciência: Ake-Ake! Ao menos por um instante, Jake o ignorou.

— Estou ouvindo, Susannah! — ele gritou. — Finalmente! Deus, com quem você estava falando? Continue para que eu possa localizar o pon...

Atrás dele (talvez no alto da escada comprida, talvez já ali) alguém gritou: “É ele!” Houve tiros, mas Jake mal os ouviu. Para seu intenso horror, algotinha entrado dentro de sua cabeça. Uma espécie de mão mental. Achouque fosse provavelmente o homem baixo que tinha lhe falado através da porta. A mão do homem baixo tinha encontrado painéis de controle numaespécie de Dogan de Jake Chambers e estava mexendo neles. Tentando

(me paralisar me paralisar aqui paralisar meus pés aqui neste chão)

detê-lo. E essa voz entrara porque enquanto transmitia e recebia, tinha ficado aberto...

Jake! Jake, onde está você?

Não havia como responder a Susannah. Certa vez, enquanto tentava abrir a porta não-encontrada na Gruta das Vozes, Jake convocara uma visão de um milhão de portas se escancarando. Agora imaginou uma visão delas se fechando de vez, criando um som como o próprio estrondo sônico de Deus.

Bem na hora. Por mais um momento seus pés continuaram paralisados na poeira do chão, mas logo alguma coisa gritou agoniada e recuou dele. Soltou-o.

Jake começou a andar, a princípio aos solavancos, depois ganhando vigor. Deus, que aperto! Muito baixo, ouviu Susannah chamando de novo seu nome, mas não se atreveu a se abrir suficientemente para responder. Agora era torcer para que Oi conservasse o rastro dela e que ela continuasse transmitindo.

 

Ele concluiu mais tarde que devia ter começado a cantar a canção do rádio da sra. Shaw logo após o último e fraco grito de Susannah, mas não havia como ter certeza. Era como tentar apontar com precisão a gênese de uma dor de cabeça ou o momento exato em que uma pessoa se dá conta de que está pegando um resfriado. Certeza Jake tinha de que houve mais tiroteios e, a certa altura, o zumbido de um tiro ricocheteando, só que tudo já ficara bem para trás e ele nem se preocupou mais em se esquivar (ou mesmo em se virar). Além disso, Oi começara a andar bem rápido, realmente sacudindo seu traseiro peludo. O maquinário embaixo dava pancadas e chiava. Trilhos de ferro emergiam no piso da galeria, fazendo Jake presumir que antigamente um bonde ou algum outro tipo de transporte passava por ali. A intervalos regulares, comunicados oficiais (PATRÍCIA À FRENTE; FEDIC; TEM SEU PASSE AZUL?) apareciam impressos nas paredes. Em alguns pontos os azulejos tinham caído, em outros já não havia trilhos e, em diversos pontos, poças de água antiga, cheia de vermes, enchia o que tinha toda a cara de buraco de rua comum. Jake e Oi passaram por dois ou três veículos inertes, que lembravam uma mistura entre carros de golfe e vagões-plataformas. Também ultrapassaram um robô com cabeça de nabo que piscava as mortiças lâmpadas vermelhas dos olhos e que, de repente, produziu um grasnido curioso, que podia ter significado alto. Jake ergueu um dos Orizas, sem saber se seria de alguma utilidade contra aquela coisa, se ela viesse atrás, mas o robô não se moveu. O singular clarão mortiço das piscadas parecia ter drenado os últimos e poucos volts de suas baterias, células de energia, cartuchos atômicos ou fosse lá o que o sustentara. Aqui e ali surgiam inscrições em grafite. A primeira era SAUDAÇÕES AO REI RUBRO, com o olho vermelho sobre o I da mensagem. A outra dizia BANGO SKANK, ’84. Cara, Jake pensou distraído, esse tal de Bango circula! E então, pela primeira vez, se ouviu claramente a si próprio, cantando a meia-voz. Na realidade, sem palavras, apenas um velho, semi-esquecido refrão de uma das músicas no rádio da cozinha da sra. Shaw: “A-wimeweh, a-wimeweh, a-weee-ummm-immm-oweh...”

Ele parou, grilado pela murmurante, talismânica qualidade do cântico, e mandou que Oi parasse.

— Preciso mijar, garotão.

— Tão! — Orelhas em pé e olhos brilhantes forneceram o resto da mensagem: Não demore muito.

Jake espalhou urina numa das paredes de azulejos. Entre os quadrados se destilava uma sujeira esverdeada. Também tentou escutar o barulho de perseguição e não ficou desapontado. Muito lá atrás? Que tipo de pelotão? Roland provavelmente teria sabido, mas Jake não fazia idéia. Os ecos lembravam os de um regimento.

Quando estava dando uma balançadinha, ocorreu a Jake Chambers que o Père nunca mais ia dar uma balançadinha, nem sorrir para ele e apontar o dedo, nem se benzer antes da comida. Eles o haviam matado. Roubado sua vida. Interrompido sua respiração e sua pulsação. Salvo talvez para sonhos, o Père estava agora fora da história. Jake começou a chorar. Como acontecera com o sorriso, agora eram as lágrimas que o faziam parecer uma criança. Oi tinha se virado, ansioso para não perder o rastro, mas agora olhava pelo ombro com um ar inequivocamente preocupado.

— Está tudo bem — disse Jake, abotoando a braguilha e logo enxugando as faces com as costas de uma das mãos. Só que não estava tudo bem.Ele estava mais do que triste, mais do que irritado, mais do que assustado com os homens baixos correndo sem cessar atrás de suas pegadas. Agora que a adrenalina tinha diminuído em seu sistema, ele percebia que, além de triste, estava faminto. Cansado também. Cansado? À beira da exaustão. Nem conseguia lembrar quando tinha dormido pela última vez. Lembrava-se de ser sugado por uma porta em direção a Nova York, lembrava-se de Oi quase sendo atropelado por um táxi e do pastor do Deus-bomba com um nome que lhe trouxe à memória Jimmy Cagney fazendo o papel de George M. Cohan* naquele velho filme em preto e branco a que assistira na TV de seu quarto, quando era pequeno. Pois no filme, ele agora percebia, havia uma canção sobre um cara chamado Harrigan: H-A-duplo R-I; Harrigan, esse sou eu. Podia lembrar essas coisas, mas não quando comera pela última vez uma boa...

— Ake! — Oi latiu, implacável como um destino. Mas se trapalhões tivessem um limite de resistência, Jake pensou cansado, Oi ainda estava bem longe do seu. — Ake-Ake!

— Claro-claro — ele concordou, se afastando da parede. — Ake-Ake entra agora no corre-corre. Vá! Encontre Susannah.

Teve vontade de andar bem devagar, mas com toda a certeza essa não seria uma boa idéia. Nem andar normalmente. Ele açoitou as pernas para correr e começou de novo a cantar a meia-voz, desta vez as palavras da canção: “Na selva, na enorme selva, o leão dorme esta noite... Na selva, silenciosa selva, o leão dorme esta noite... ohhh...” E de repente entrava de novo no ar wimeweh, wimeweh, wimeweh, palavras sem sentido do rádio da cozinha que estava sempre sintonizado em velharias na WCBS... Mas não haveria memórias de algum filme entrelaçadas na cabeça dele, com a memória daquela canção em particular? Não alguma coisa do Yankee Doodle Dandy,** mas de algum outro filme? Um com monstros apavorantes? Algo que tinha visto quando era apenas um garotinho, talvez até sem ter largado (as calças curtas) as fraldas?

“Perto da aldeia, da quieta aldeia, o leão dorme esta noite... Perto da aldeia, da tranqüila aldeia, o leão dorme esta noite... HUH-oh, a-wimeweh, a-wimeweh...”

Ele parou, respirando fundo, esfregando a barriga pelo lado. Sentira uma pontada ali, mas não era braba, pelo menos ainda não, a coisa ainda não mergulhara o bastante para detê-lo. Mas aquela sujeira... aquela sujeira esverdeada gotejando entre os azulejos... vazava do velho reboco e fazia inchar a cerâmica porque aquilo era (a selva) bem embaixo da cidade, fundo como catacumba (wimeweh) ou como...

— Oi — disse ele, falando através de seus lábios. Cristo, ele estava com tanta sede! — Oi, isto não é meleca, isto é mato. Ou erva... ou...

Oi latiu o nome de seu amigo, mas Jake mal reparou. O eco da barulheira de seus perseguidores continuava (tinha chegado um pouco mais perto, de fato), mas por ora ele também a ignorava.

Mato, crescendo pela parede de azulejos.

Tomando conta da parede.

Olhou para baixo e viu mais mato brotando do chão, um esverdeado brilhante, que ficava quase roxo sob as luzes fluorescentes. E pedaços de azulejo quebrado se esfacelavam em lascas e fragmentos como restos do Povo Antigo, os ancestrais que tinham vivido e construído antes que os Feixes começassem a ser rompidos e o mundo começasse a seguir adiante.

Ele se curvou. Estendeu a mão para o mato. Ergueu pedaços afiados de azulejo, sim, mas também terra, a terra de (da selva) alguma catacumba profunda, algum túmulo ou talvez...

Havia um besouro rastejando pela terra que pegou com a mão, um besouro com uma marca vermelha nas costas — como um sorriso sangrento —, e Jake jogou-o para longe com uma exclamação de repugnância. A marca do Rei! Diga-o! Voltou a si e se deu conta de que estava com um joelho no chão, praticando arqueologia como o herói de algum filme antigo, enquanto os cães farejadores se aproximavam cada vez mais. E Oi estava olhando para ele, olhos brilhando de ansiedade.

— Ake! Ake-Ake!

— É — disse ele, se levantando. — Estou indo. Mas Oi... que lugar é este?

Oi não sabia por que ouvia ansiedade na voz de seu ka-dinh; o que ele via era o mesmo que antes e o que cheirava era o mesmo que antes: o cheiro dela, o faro que o rapaz lhe pedira para encontrar e seguir. E que agora estava mais fresco. Ele se precipitou atrás de seu vigoroso sabor.

 

Jake parou de novo cinco minutos mais tarde, gritando:

— Oi! Espere um minuto!

A fisgada na barriga estava de volta e era mais profunda, mas ainda não era a fisgada que o detera. Tudo tinha mudado. Ou estava mudando. E, Deus o ajudasse, ele achava que sabia o que estava mudando.

No alto, as luzes fluorescentes ainda brilhavam, mas os azulejos das paredes estavam desgrenhados com folhagem. O ar se tornara abafado e úmido, ensopando sua camisa e grudando-a contra o corpo. Uma bela borboleta alaranjada, de tamanho impressionante, passou voando ante seus olhos arregalados. Jake tentou agarrá-la, mas a borboleta se esquivou com facilidade. Quase se divertindo, ele achou.

O corredor azulejado tinha se tornado uma trilha na selva. À frente deles, subia para uma abertura irregular na vegetação, provavelmente algum tipo de clareira na floresta. Mais além, Jake podia ver grandes e velhas árvores crescendo na neblina, os troncos engrossados pelo musgo, os galhos vergados por trepadeiras. Podia ver samambaias gigantescas, e através do verde entrelaçar das folhas, um ardente céu de selva. Sabia que estava sob Nova York, tinha de estar sob Nova York, mas...

O que parecia um macaco piou, tão perto que Jake deu uma guinada com o corpo e olhou para o alto, certo de que ia vê-lo logo acima, sorrindo atrás de uma fileira de luzes. E então, congelando seu sangue, veio o forte ronco de um leão. Um que, com toda a certeza, não estava dormindo.

Estava à beira de recuar, e a toda velocidade, quando percebeu que não podia; os homens baixos (provavelmente levados por aquele que falara que o padreco tinha virado jantar) também estavam atrás. E Oi olhava com olhos brilhando de impaciência, querendo sem a menor dúvida ir em frente. Oi não era um idiota, mas não parecia estar alarmado, pelo menos não parecia preocupado com o que estava à frente.

Por seu lado, Oi ainda não podia entender o problema do garoto. Sabia que ele estava cansado — sentia o cheiro disso —, mas também sabia que estava com medo. Por quê? Porque havia cheiros desagradáveis naquele lugar, principalmente o cheiro de muitos homens, embora para Oi não sugerissem perigo imediato. Mas o cheiro dela estava lá. Agora muito fresco. Quase novo.

— Ake! — ele tornou a latir.

Jake conseguira recuperar o fôlego.

— Tudo bem — disse olhando em volta. — Está certo. Mas devagar.

— Vagá — Oi respondeu, mas mesmo Jake pôde detectar a impressionante falta de aprovação na resposta do trapalhão.

Jake só andou porque não tinha outras opções. Subiu a encosta da trilha mal conservada (na percepção de Oi, o caminho era perfeitamente reto, e fora assim desde que deixaram a escada) para a abertura emoldurada por samambaias-trepadeiras, na direção do piado lunático do macaco e do ronco congelador de testículos do leão caçador. A canção girava sem parar em sua mente

(na aldeia... na selva... silêncio querida, não se mexa minha querida...)

e agora ele sabia o nome dela, inclusive o nome da banda

(são os Tokens com “O Leão Dorme Esta Noite”, saído das paradas mas não de nossos corações)

que cantava, mas que filme era? Qual era o nome da porra do fil...

Jake atingiu o alto da subida e a borda da clareira. Contemplou um entrelaçamento de grandes folhas verdes e brilhantes flores roxas (um pequeno verme esverdeado transitava ao centro de uma flor) e, enquanto olhava, o nome do filme lhe ocorreu e sua pele começou a ficar arrepiada da nuca até os pés. Um momento depois o primeiro dinossauro saiu da selva (a possante selva) e entrou na clareira.

 

Era uma vez muito tempo atrás

(longe e pequenino) quando ele era apenas um rapazinho;

(há um pra você e um pra mim)

era uma vez quando a mãe foi para Montreal com seu clube de arte e o pai foi para Vegas para a abertura anual dos shows do outono; (geléia de amoras e chá de amoras) era uma vez, quando ‘Bama tinha quatro...

 

‘Bama como o único bonzinho

(a sra. Shaw a sra. Greta Shaw)

o chamava. Ela tirava as cascas de seus sanduíches, punha os desenhos da sua petiscola com ímãs parecidos com frutinhas de plástico na geladeira, ela o chamava ‘Bama, e isso é um nome especial para ele

(para eles)

porque seu pai, na tarde de um sábado de embriaguez, o ensinou a cantar “Go wide / go wide / roll you Tide / we don’t run and we don’t hide / we’re the ‘Bama Crimson Tide!”* e então ela o chama de ‘Bama, é um nome secreto e como eles sabem o que significa e ninguém mais sabe é como ter uma casa onde você pode entrar, uma casa segura no bosque assustador onde do lado de fora todas as sombras parecem monstros, ogros e tigres.

(“Tyger Tyger burning bright”,** a mãe canta para ele, pois essa é a idéia que ela tem de uma cantiga de ninar, juntamente com “I heard a fly buzz... when I died”,*** o que provoca em ‘Bama Chambers uma terrível série de calafrios, embora ele jamais conte isso a ela; deitado na cama, às vezes à noite, às vezes durante a soneca da tarde, fica pensando vou ouvir uma mosca voando e será a mosca de minha morte, meu coração vai parar e a língua vai cair pela minha garganta como pedra caindo num poço e essas são as lembranças que ele nega)

É bom ter um nome secreto e, quando ele fica sabendo que a mãe está indo para Montreal por amor à arte e o pai está indo para Vegas para ajudar a apresentar os novos programas da Rede para a pré-venda aos anunciantes, ele implora que a mãe peça à sra. Greta Shaw para ficar com ele e finalmente a mãe cede. Como o pequeno Jake sabe a sra. Shaw não é sua mãe e em mais de uma ocasião a própria sra. Greta Shaw contou a ele que não é sua mãe

(“Espero que saiba que não sou sua mãe, ‘Bama”, diz ela, dando-lhe um prato e no prato há um sanduíche de manteiga de amendoim, bacon e banana com as cascas tiradas como só Greta Shaw sabe cortar, “porque isso não está em minhas obrigações de trabalho”

(E o pequeno Jake — só que aqui ele é ‘Bama, é ‘Bama entre os dois — não sabe exatamente como dizer a ela que sabe disso, sabe disso, sabe disso, mas ele vai ficar com ela até a coisa verdadeira aparecer ou até ficar velho o suficiente para superar seu medo da mosca da Morte)

E o pequeno Jake diz não se preocupe, tudo bem comigo, mas continua feliz vendo que é a sra. Shaw que concorda em ficar em vez de a baby-sitter estrangeira que usa saia curta e está sempre brincando com o cabelo, passando batom e cagando para ele, e nem sabia que lá no fundo do coração ele é ‘Bama, e rapaz que aquela pequena Pérola da Casa

(que era como o pai chamava todas as baby-sitters estrangeiras)

é burra burra burra. A sra. Shaw não é burra. A sra. Shaw lhe dá um lanche que às vezes chama de Chá da Tarde ou mesmo Grande Chá, e não importa o que sirva — queijo cottage e fruta, um sanduíche com a casca cortada, pudim de leite e bolo, os canapés que sobraram de algum coquetel na noite passada —, ela canta a mesma musiquinha quando põe a mesa: “Um lanchinho que está longe e pequeno, um pouco pra você e um pouco pra mim, geléia de amora e chá de amora.”

Há uma televisão no quarto dele, e todo dia enquanto seus pais estão fora ele leva para lá o lanche pós-aula e assiste assiste assiste e ouve o rádio dela na cozinha, sempre as músicas velhas, sempre a WCBS, e às vezes ouve a própria, ouve a sra. Greta Shaw cantando com as Four Seasons* Wanda Jackson Lee “Iá-Iá” Dorsey, e às vezes finge que os pais morreram num desastre de avião e ela de certa forma se torna mesmo mãe dele e o chama de pobre rapazinho e pobre garotinho perdido e então por alguma transformação mágica ela o ama em vez de apenas tomar conta dele, o ama o ama o ama assim como ele a ama, ela é sua mãe (ou talvez sua esposa, ele se confunde sobre a diferença entre as duas), mas ela o chama de ‘Bama em vez de doce-de-coco (sua mãe de verdade) ou craque (seu pai) e embora ele saiba que é uma idéia estúpida, pensar nela na cama é engraçado, pensar nela melhora pra cacete a chatura de pensar na mosca da Morte que viria zumbir sobre seu cadáver quando ele morresse com a língua no fundo da garganta como pedra num poço. À tarde, quando chega da petiscola (quando já tem a idade para entender que na verdade se chama pré-escola já terá saído dela), assiste ao Filme de Um Milhão de Dólares em seu quarto. No programa Filme de Um Milhão de Dólares mostravam exatamente o mesmo filme exatamente na mesma hora — quatro horas — todo dia, durante uma semana. Na semana antes de os pais viajarem e a sra. Greta Shaw passar a noite lá em vez de ir para casa (oh, que felicidade, pois a sra. Greta Shaw nega a Discórdia, pode dizer amém) todo dia havia música vinda de duas direções, havia as antigas na cozinha

(WCBS pode dizer Deus-bomba)

e na TV James Cagney andando por aí de chapéu derby e cantando Harrigan-H-A-duplo R-I, Harrigan, sou eu! Também aquela sobre ser um verdadeiro sobrinho de meu tio Sam.

Então é uma nova semana, a semana em que seus pais viajam, e um novo filme, e da primeira vez que ele o vê é apavorante e tira a porra da sua respiração. O filme se chama O Continente Perdido e apresenta o sr. César Romero, e quando Jake torna a vê-lo (com a avançada idade de 10 anos) se perguntará como pode ter sentido medo de um filme tão estúpido. Porque é sobre exploradores que ficam perdidos na selva, claro, e há dinossauros na selva, e aos quatro anos de idade ele não percebeu que os dinossauros não passavam de uma merda de DESENHO ANIMADO, em nada diferente de Tweety e Sylvester e O Marinheiro Popeye, ach-ach-ach, pode dizer Ula-Ula, pode me dar Olívia Palito. O primeiro dinossauro que ele vê ê um triceratopus que sai desnorteado da selva, e a garota exploradora

(Enlouquecedoras te-tas, sem a menor dúvida o pai teria dito, era o que o pai sempre dizia sobre o que a mãe de Jake chamava Um Certo Tipo de Garota)

gritava a plenos pulmões, e Jake também gritaria se pudesse mas seu peito está paralisado de terror, ah, cá está a Discórdia encarnada! Nos olhos do monstro ele vê o completo nada, que significa o fim de tudo, pois súplicas não vão funcionar com um monstro daqueles e gritos não vão funcionar com um monstro daqueles, isso é tolice demais, tudo que a gritaria faz é atrair a atenção do monstro, e assim acontece, ele se vira para a Pérola da Casa com as enlouquecedoras te-tas e então ele ataca a Pérola da Casa com as enlouquecedoras te-tas, e na cozinha (a enorme cozinha) ele ouve os Tokens, saídos das paradas mas não dos corações, eles estão cantando sobre a selva, a tranqüila selva, e ali na frente dos enormes olhos apavorados do garotinho está uma selva que é tudo menos tranqüila, e não tem um leão mas uma coisa que anda pesado que parece mais ou menos com um rinoceronte só que maior, e tem uma espécie de colar de osso em volta do pescoço, e mais tarde Jake descobrirá que aquele tipo de monstro se chama triceratopus, mas por enquanto ele não tem nome, o que o torna ainda pior, sem nome é pior. “Wimeweh”, cantam os Tokens, “wee-ummm-a-weh”, e é claro César Romero baleia o monstro pouco antes de ele conseguir rasgar a garota com as enlouquecedoras te-tas de cima a baixo, o que resolve o problema daquela vez, mas naquela noite o monstro retorna, o triceratopus retorna, está no armário dele, porque mesmo aos quatro anos ele compreende que às vezes seu armário não é um armário, que sua porta pode se abrir em diferentes lugares onde há coisas ainda mais brabas esperando.

Ele começa a gritar, à noite ele pode gritar e a sra. Greta Shaw entra no quarto. Senta-se na beira da cama dele, o rosto fantasmagórico com uma lama de beleza cinza-azulada e pergunta qual é o problema ‘Bama e ele é realmente capaz de contar a ela. Nunca podia ter dito ao pai ou a mãe, mesmo que um deles tivesse estado ali, e claro que não estão, mas ele pode contar a sra. Shaw porque embora ela não seja muito diferente das outras auxiliares — as baby-sitters estrangeiras, as babás, as moças que andam até o colégio — é um pouco diferente, o bastante para pôr seus desenhos na geladeira com os pequenos ímãs, o bastante para fazer toda a diferença, para sustentar a torre da sanidade de um menininho tolo, digam aleluia, digam achado não perdido, digam amém.

Ela escuta tudo que ele tem a dizer, assentiu com a cabeça e o faz repetir tri-CER-a-TOPUS até ele conseguir dizer direito. Dizer direito é melhor. E então ela diz: “Essas coisas já foram reais, mas morreram há cem milhões de anos ‘Bama. Talvez até mais. Então não me chame de novo porque preciso dormir.”

Jake assiste a O Continente Perdido no Filme de Um Milhão de Dólares todos os dias daquela semana. Cada vez que assiste a ele, fica com um pouco menos de medo. Um dia, a sra. Greta Shaw entra e vê parte do filme com ele. Depois lhe traz o lanche, com uma boa tigela de Flocos Havaianos (uma também para ela) e canta a maravilhosa musiquinha: “Um lanchinho está frio e não demora, um pouco pra você e um pouco pra mim, geléia de amora e chá de amora.” Não existem amoras nos Flocos Havaianos, é claro, e eles tomam o resto do suco de fruta Welch’s, em vez de chá, para acompanhar, mas a sra. Greta Shaw diz que é o pensamento que conta. Ela o ensinou a dizer um-brinde-à-saúde-de-todos antes de beber e a tilintar os copos. Jake pensa que isto é muito legal, o máximo.

Muito em breve os dinossauros chegam. ‘Bama e a sra. Greta Shaw estão sentados lado a lado, comendo Flocos Havaianos e vendo quando um dos grandes (a sra. Greta Shaw diz que aquela espécie é chamada de Tiranorrex sauros) come o explorador mau. “Dinossauros de desenho animado”, diz entre duas fungadas a sra. Greta Shaw. “Que pobreza.” Pelo que Jake podia se lembrar, é a crítica de cinema mais brilhante que jamais ouviu em sua vida. Brilhante e útil.

Finalmente os pais voltam. Top Hat é agora o filme que é exibido durante uma semana no programa Filme de Um Milhão de Dólares e os terrores noturnos do pequeno Jake não são sequer mencionados. Finalmente ele perde o medo do triceratopus e do tiranorrex.

 

Agora, deitado na grama verde e alta e observando a clareira enevoada por entre as folhas de uma samambaia, Jake descobriu que certas coisas a pessoa nunca esquece.

Cuidado com a armação mental, tinha dito Jochabim e, olhando para o desajeitado dinossauro — um triceratopus de desenho animado numa selva real como um sapo imaginário num verdadeiro jardim —, Jake percebeu que era aquilo. Aquela era a armação mental. O triceratopus não era real por mais assustador que fosse seu ronco, por mais que Jake pudesse realmente sentir o cheiro dele — a exuberante vegetação apodrecendo nas dobras macias onde suas pernas curtas encontravam o estômago, a merda embolada em sua vasta couraça traseira, o interminável bolo alimentar escorrendo entre a mandíbula ornada de presas — e ouvir a respiração ofegante. Não podia ser real, era um desenho, pelo amor de Deus!

E no entanto sabia que era real o bastante para matá-lo. Se caísse ali, o triceratopus de desenho animado ia despedaçá-lo exatamente como teria despedaçado a Pérola da Casa com as enlouquecedoras te-tas se César Romero não tivesse aparecido a tempo de pôr uma bala no Único Ponto Vulnerável da coisa com seu rifle de grande safári. Jake conseguira se livrar da mão que tentara mexer com os controles do seu motor — batera todas aquelas portas com tanta força que tinha sem dúvida cortado os dedos intrusos da mão —, mas aquilo era diferente. Não podia fechar os olhos e meramente caminhar; aquele era um verdadeiro monstro que sua mente traidora havia criado e que realmente poderia despedaçá-lo.

Ali não havia nenhum César Romero para impedir que isso acontecesse. E nenhum Roland.

Havia apenas os homens baixos, correndo atrás de seu rastro e chegando sempre mais perto.

Como se para enfatizar este ponto, Oi olhou para trás, para o caminho por onde tinham vindo, e latiu uma vez, perfurantemente alto.

O triceratopus ouviu e respondeu com um rugido. Jake achou que Oi ia se encolher contra a sua perna ante a força daquele som, mas Oi continuou a olhar para trás pelo ombro de Jake. Era com os homens baixos que Oi estava preocupado, não com o triceratopus abaixo deles ou o Tiranorrex sauros que talvez viesse a seguir, ou...

Porque Oi não o vê, ele pensou.

Ficou mexendo com esta idéia sem conseguir afastá-la. Oi não o cheirara nem ouvira. A conclusão era inevitável: para Oi o terrível triceratopus na enorme selva lá embaixo não existia.

O que não muda o fato que ele existe para mim. É uma armação que foi deixada para mim ou para qualquer outra pessoa equipada com uma imaginação que pudesse acreditar nela. Alguma engenhoca do Povo Antigo, sem dúvida. Muito mau não estar quebrada como a maioria das outras coisas deles, mas não está. Vejo o que vejo e não há nada que eu possa fazer...

Não, espere.

Espere só um segundo.

Jake não sabia até que ponto sua conexão mental com Oi era boa, mas achou que não tardaria a descobrir.

— Oi!

As vozes dos homens baixos estavam agora terrivelmente próximas. Logo veriam o garoto e o trapalhão parados ali e partiriam para o ataque. Oi podia cheirá-los vindo, mas mesmo assim olhava para Jake bastante calmo. Para seu bem-amado Jake, por quem morreria se fosse preciso.

— Oi, pode trocar de lugar comigo?

Oi sem dúvida podia.

 

Oi balançava ereto com Ake nos braços, indo de um lado para o outro, horrorizado em descobrir como era estreita a escala de equilíbrio do garoto. A idéia de andar mesmo uma curta distância apenas em duas pernas era terrivelmente assustadora; isso, contudo, teria de ser feito imediatamente. Foi o que disse Ake.

Por seu lado, Jake sabia que teria de fechar os olhos emprestados pelos quais estava olhando. Estava na cabeça de Oi mas ainda podia ver o triceratopus; de repente viu também um pterodáctilo cruzando o ar quente sobre a clareira, as asas rijas estendidas ao máximo para captar as correntes quentes sopradas pelos exaustores de ar.

Oi! Você tem de fazer isto sozinho. E se queremos continuar na frente deles tem de fazer isto agora.

Ake!, Oi respondeu, dando um cauteloso passo à frente. O corpo do garoto oscilava de um lado para o outro, atingindo o limite máximo de equilíbrio e quase caindo depois. O corpo bobão de duas pernas de Ake tombava para os lados. Oi tentava salvá-lo e só piorava o movimento, caindo pelo lado direito do garoto e batendo nos pêlos da cabeça de Ake.

Oi tentou expressar com um latido sua frustração. O que saiu da boca de Ake foi uma coisa estúpida, que era antes palavra que som:

— Lat! Lat! Porra-lat!

— Estou ouvindo o garoto! — alguém gritou. — Corram! Vamos lá, força nos pés, seus molengas de merda! Antes que o filho-da-puta alcance a porta!

As orelhas de Ake não eram afiadas, mas como as paredes de azulejos amplificavam os sons, isso não era problema. Oi pôde ouvir as pisadas dos homens correndo.

— Você precisa se levantar e seguir! — Jake tentou gritar, mas o que saiu foi uma frase truncada, com algo de latido: — Ake-Ake, affa! Lev e seg! — Sob outras circunstâncias a coisa podia ter sido engraçada, não naquelas.

Oi se levantou pondo as costas de Ake contra a parede e empurrando com as pernas de Ake. Por fim estava entendendo os controles do motor; ficavam num lugar que Ake chamava Dogan e eram razoavelmente simples. À esquerda, um corredor em arco levava a uma sala enorme repleta de um maquinário que brilhava como espelho. Oi sabia que se entrasse naquele lugar (a câmara onde Ake guardava todos os seus maravilhosos pensamentos e seu estoque de palavras) ficaria perdido para sempre.

Felizmente não foi preciso entrar. Tudo que queria estava no Dogan. Pé esquerdo... para a frente. (E pausa.) Pé direito... para a frente. (E pausa.) Segurar a coisa que parece um zé-trapalhão mas que é realmente seu amigo e usar o outro braço para equilibrar-se. Resistir ao impulso de cair de quatro e rastejar. Os perseguidores vão alcançá-lo se fizer isso; já não consegue sentir o cheiro deles (não com aquele narizinho de nada, impressionantemente estúpido, de Ake), mas tem certeza disso.

Por seu lado, Jake podia sentir nitidamente o cheiro deles; pelo menos uma dúzia, chegando talvez a 16. Seus corpos eram perfeitos mecanismos de mau cheiro e emitiam o aroma numa nuvem suja que seguia à frente deles. Jake podia cheirar o aspargo que um deles tinha comido no jantar; sentia o aroma carnudo, maléfico, do câncer que se desenvolvia em outro, provavelmente em sua cabeça ou talvez na garganta.

Então ouviu o triceratopus rugir outra vez. Foi respondido pela coisa-pássaro cortando o ar acima dele.

Jake fechou os olhos — bem, os olhos de Oi. No escuro, o movimento de um lado para o outro do trapalhão ficou ainda pior. Preocupado, Jake estimou que, se tivesse de continuar suportando aquilo (especialmente de olhos fechados), acabaria vomitando as próprias tripas. Iam chamá-lo de ‘Bama, o Marinheiro com Enjôo.

Vamos, Oi, ele pensou. O mais depressa que puder. Não torne a cair, mas... vá o mais rápido que puder!

 

Se Eddie estivesse ali, talvez se lembrasse da sra. Mislaburski que morava no quarteirão: a sra. Mislaburski em fevereiro, após uma tempestade de neve, quando a calçada estava coberta de gelo e ninguém havia jogado sal ainda. Mas, gelo ou não, ela não se sentiu impedida de comprar a costeleta de sempre ou uma posta de peixe no mercado Castle Avenue (ou de ir à missa dominical, pois a sra. Mislaburski era talvez a católica mais devota da Co-Op City). E assim lá ia ela, pernas grossas e muito abertas, meias Kendall cor-de-rosa, um braço agarrando a bolsa contra seu imenso busto, o outro meio estendido para manter o equilíbrio; cabeça baixa, olhos procurando as ilhas de cinzas que algum zelador responsável já tivesse espalhado (Jesus e Santa Maria abençoem esses bons homens), também pelos pedaços traiçoeiros que a derrotariam, que fariam ecoar seu grito e onde seus grandes joelhos cor-de-rosa voariam um para cada lado e então ela acabaria caindo sentada ou talvez de costas, uma mulher podia quebrar a espinha, uma mulher podia ficar paralisada como a pobre filha da sra. Bernstein depois do acidente de carro em Mamaroneck, essas coisas aconteciam. E assim, ignorando os assobios das crianças (Henry Dean e seu pequeno irmão com freqüência entre elas), ela seguiu seu caminho, cabeça baixa, braço estendido em busca de equilíbrio, a bolsa da vigorosa senhora negra atravessada no meio do peito, certa de que, se fosse realmente agarrada por trombadinhas, protegeria custe o que custasse a bolsa e o que ela continha; cairia sobre ela como Joe Namath caindo sobre a bola de futebol após um ataque.

Assim, Oi do Mundo Médio conduziu o corpo de Jake por uma extensão de corredor subterrâneo que pareceu (pelo menos a ele) muito parecida com todo o resto. A única diferença que conseguiu notar foram os três buracos de cada lado, com grandes olhos de vidro olhando para eles, olhos que produziam um zumbido baixo e contínuo.

Em seus braços havia algo parecido com um trapalhão, os olhos fechados, muito apertados. Se estivessem abertos, Jake poderia ter identificado aquelas coisas como dispositivos de projeção. Ou mais provavelmente nem as teria visto.

Caminhando devagar (Oi sabia que os outros se aproximavam, mas também sabia que caminhar devagar era melhor do que cair), pernas esparramadas, avançando de forma arrastada, levando Ake enroscado em seu peito exatamente como a sra. Mislaburski carregava sua bolsa naqueles dias de neve, ele foi passando pelos olhos de vidro. O zumbido foi sumindo. Já estava longe o suficiente? Esperava que sim. Andar como um ser humano era de fato muito difícil, deixava seus nervos em frangalhos. Assim como ficar perto de toda a maquinaria pensante de Ake. Sentiu uma enorme vontade de se virar e olhar — olhar para aquelas brilhantes superfícies espelhadas! —, mas não o fez. Olhar podia muito bem resultar em hipnose. Ou em alguma coisa pior.

Parou.

— Jake! Olhe! Veja!

Jake tentou responder tudo bem, mas em vez disso latiu. Muito engraçado. Ele abriu cuidadosamente os olhos e viu paredes azulejadas dos dois lados. Mato e pequenos pés de samambaia ainda cresciam na frente delas, é verdade, mas o forte era o azulejo. Era um corredor. Olhou para trás e viu a clareira. O triceratopus os esquecera. Estava envolvido numa batalha de morte com o Tiranorrex, uma cena do Continente Perdido de que Jake se lembrava com absoluta clareza. A moça com as enlouquecedoras te-tas tinha assistido à batalha na segurança dos braços de César Romero e, quando o Tiranorrex de desenho animado cravou sua enorme boca na cara do triceratopus numa mordida fatal, a moça enterrara o rosto no peito másculo de César Romero.

— Oi! — Jake latiu, mas latir era pouco convincente e ele então resolveu pensar.

Torne a trocar comigo!

Oi estava ávido para obedecer — nunca quisera tanto uma coisa —, mas antes que pudessem efetuar a alteração, seus perseguidores tiveram a primeira visão dos dois.

— Ihhh! — gritou o que tinha sotaque de Boston (fora ele quem proclamara que o padreco era jantar). — Ihhh taum eles! Peguem! Atirem!

E enquanto Jake e Oi mandavam as mentes de volta aos respectivos corpos, as primeiras balas começaram a cortar o ar em volta deles como dedos estalando.

 

O sujeito que liderava os perseguidores era um homem chamado Flaherty. Dos 17, era o único humano. Os demais, salvo um, eram homens baixos e vampiros. A exceção era um taheen com a cabeça de um furão inteligente e um par de enormes pernas peludas saindo de bermudas. Embaixo das pernas havia pés estreitos que terminavam em espinhos brutalmente afiados. Um único chute de um dos pés de Lamla poderia cortar um homem plenamente adulto em duas partes.

Flaherty — criado em Boston, pelos últimos vinte anos um dos homens do Rei em umas vinte Nova Yorks de fins do século XX — tinha reunido seu pelotão com a maior rapidez, na mais enervante agonia de medo e fúria. Nada entra no Pig. Fora isso que Sayre havia dito a Meiman. Qualquer coisa que conseguisse entrar não devia, em hipótese alguma, conseguir sair. Isso valia em dobro para o pistoleiro ou qualquer membro de seu ka-tet. Suas intromissões tinham há muito ultrapassado o estágio da mera irritação e ninguém precisava ser da elite para saber disso. Mas agora Meiman, chamado de Canário por seus poucos amigos, estava morto e o garoto tinha de alguma forma conseguido passar adiante. Um garoto, pelo amor de Deus! A porra de um garoto! Mas como iam saber que os dois tinham um totem tão poderoso quanto aquela tartaruga? Se a maldita coisa não tivesse rolado por acaso para baixo de uma das mesas, talvez ainda estivessem paralisados no salão.

Flaherty sabia que isso era verdade, mas também sabia que Sayre jamais aceitaria este fato como argumento válido. Nem mesmo daria a ele, Flaherty, a chance de defender-se. Não, ele estaria morto muito antes disso, e os outros também. Esparramados no chão com os insetos-médicos se empanturrando do sangue deles.

Era fácil dizer que o garoto seria detido na porta, que não ia saber — não poderia saber — de nenhuma da frases de autorização que a abriam, mas Flaherty não confiava mais nessas certezas, por mais tentadoras que pudessem ser. Todas as apostas estavam suspensas e Flaherty experimentou uma poderosa sensação de alívio quando viu o garoto e seu pequeno companheiro peludo parados à frente. Muitos elementos do grupo atiraram, mas não acertaram. Flaherty não estava espantado. Havia uma espécie de área verde entre eles e o garoto, que parecia uma porra de trecho de selva sob a cidade, e uma névoa estava se erguendo, tornando difícil fazer pontaria. Fora uma espécie de ridículos desenhos de dinossauros! Um deles ergueu a cabeça manchada de sangue e roncou para eles, mantendo as pequenas patas dianteiras contra o peito escamoso.

Parece um dragão, Flaherty pensou, e diante de seus olhos o dinossauro de desenho animado virou um dragão. Rugiu e jorrou um jato de fogo que colocou em chamas várias trepadeiras e um tapete de musgo. Enquanto isso o garoto entrara de novo em movimento.

Lamla, o taheen com cabeça de furão, forçou caminho para a frente e levou à testa um punho peludo. Flaherty retornou o cumprimento com impaciência.

— Que tem ali embaixo, Lam? Você sabe?

O próprio Flaherty jamais estivera embaixo do Pig. Quando viajava a negócios, era sempre entre Nova Yorks, o que significava usar ou a porta na rua 47, entre a Primeira e a Segunda avenidas, ou a que ficava no depósito sempre vazio da rua Bleecker (em alguns mundos o depósito era um prédio eternamente construído pela metade) ou a porta na subida da rua 94 (esta última ficava fora de serviço boa parte do tempo e ninguém, é claro, sabia consertá-la). Havia outras portas na cidade — Nova York estava entulhada de portais para outros ondes e quandos —, mas aqueles eram os únicos que ainda funcionavam.

E havia o portal de Fedic, é claro. Aquele bem à frente.

— Um construtor de miragem — disse a coisa-furão. A voz estava melosa, rouca e muito diferente de uma voz humana. — A máquina pesca o que você tem medo e transforma em coisa real. Sayre deve ter ligado a coisa quando ele e seu tet passaram com a garota de pele negra. Para defender a retaguarda, você entende.

Flaherty abanou a cabeça. Uma armadilha mental. Muito esperto. Mas até que ponto a coisa era realmente boa? De alguma forma a maldita porra do garoto tinha passado, não era?

— O que o garoto viu se transformará no que nós tememos — disse o taheen. — Funciona à base da imaginação.

Imaginação. Flaherty se agarrou à palavra.

— Ótimo. Seja o que for que vejam lá embaixo, peça que apenas ignorem.

Ergueu um braço para fazer os homens avançarem, grandemente aliviado pelo que Lam tinha dito. Tinham de apertar a caçada, não é? Sayre (ou Walter das Sombras, que era ainda pior) muito provavelmente mataria todos eles se não conseguissem deter aquele melequento bebê. Mas Flaherty tinha realmente medo da imagem de dragões, isso era outro detalhe; tinha medo desde que o pai lera para ele uma história de dragões quando era criança.

O taheen parou na sua frente antes que pudesse completar o gesto de vamos.

— O que foi agora, Lam? — Flaherty rosnou.

— Não está entendendo. O que está ali é suficientemente real para matá-lo. Para matar a todos nós.

— Mas o que você está vendo? — Não era hora de ser curioso, mas essa sempre fora a maldição de Conor Flaherty.

Lamla baixou a cabeça.

— Prefiro não dizer. É bastante mau. O que importa, sai, é que vamos morrer se não tivermos cuidado. O que vier a acontecer vai ficar parecendo para um contador de corpos uma parada respiratória, um ataque do coração ou um colapso qualquer, mas terá sido provocado pelo que virmos lá embaixo. Quem acha que a imaginação não pode matar é um bobo.

Os demais já tinham se agrupado atrás do taheen. Alternavam olhadelas para a clareira enevoada com olhadas para Lamla. Flaherty não gostou nem um pouco do que viu em seus rostos. Matar um ou dois daqueles menos dispostos a disfarçar a angústia nos olhos poderia restaurar o entusiasmo dos demais, mas de que isto ia servir se Lamla tivesse razão? Malditos velhacos, sempre deixando os brinquedos para trás! Brinquedos perigosos! Como eles complicavam a vida de um homem! Uma praga a cada um!

— Então como vamos passar? — Flaherty gritou. — E vamos lá, como o pirralho passou?

— Sobre o pirralho não sei — disse Lamla —, mas nós só precisamos atirar nos projetores.

— Que porra de projetores são esses?

Lamla apontou para baixo... ou ao longo do corredor, se era verdade o que o puto feioso havia dito.

— Ali — disse Lam. — Sei que não pode vê-los, mas aceite minha palavra, estão lá. De um lado e de outro.

Com um certo fascínio, Flaherty contemplava a clareira na selva enevoada de Jake, que continuava, diante de seus olhos, a se transformar numa densa e escura floresta, como em... Era uma vez, quando todo mundo morava na densa floresta negra e ninguém morava em nenhum outro lugar, um dragão veio destruir...

Flaherty não sabia o que Lamla e os demais estavam vendo, mas diante de seus olhos o dragão (que não muito tempo atrás fora um Tiranorrex sauro) obedientemente atacou, incendiando as árvores e procurando rapazinhos católicos para comer.

— Não estou vendo NADA! — ele gritou para Lamla. — Acho que você está fora da porra de seu JUÍZO perfeito!

— Já vi os projetores desligarem — disse Lamla em voz baixa — e posso fazer uma idéia de onde eles se encontram. Se deixar trazer quatro homens e botá-los a atirar em cada lado, acho que não vamos demorar muito para apagá-los de vez.

E o que Sayre vai dizer quando eu contar a ele que liquidamos com sua preciosa armadilha mental?, Flaherty podia ter dito. O que, por favor me digam, Walter das Sombras vai achar? Porque o que está arruinado jamais pode se consertar, não por gente como nós, que sabemos esfregar duas varas e fazer fogo, mas não muito mais isso.

É o que podia ter falado, mas não falou. Porque pegar o garoto era mais importante que qualquer velha engenhoca do Povo Antigo, mesmo uma tão incrível como aquela armadilha mental. E foi Sayre quem a colocara funcionando, não foi? Claro que sim! Se houvesse explicações a dar, que isto ficasse por conta de Sayre! Que ele se ajoelhasse diante dos figuraços e falasse até ser silenciado!

E nesse meio-tempo, o garotinho sórdido, amaldiçoado pelos deuses, ia recuperando a vantagem que Flaherty (com visões de ser glorificado por partir de forma tão decidida contra o inimigo) e seus homens tinham tão drasticamente reduzido. Se ao menos um deles tivesse tido a sorte de acertar o garoto quando ele e o amiguinho peludo foram avistados! Ah, faz um desejo em uma mão, caga na outra! Veja qual enche primeiro.

— Tragam nossos melhores atiradores — disse Flaherty com seu sotaque Back Bay*/ John F. Kennedy. — Façam isso.

Lamla ordenou que três homens baixos e um dos vampiros avançassem, pôs dois de cada lado e falou rapidamente com eles em outra língua. Flaherty achou que alguns deles já tinham estado lá e, como Lam, não teriam esquecido os projetores escondidos nas paredes.

Enquanto isso, o dragão de Flaherty — ou mais propriamente falando, o dragão de seu papai — continuava a incursão na densa e escura floresta (a selva anterior desaparecera por completo) e punha fogo nas coisas.

Por fim — embora parecesse um tempo muito longo a Flaherty, provavelmente teriam se passado menos de trinta segundos — franco-atiradores começaram a atirar. Quase de imediato a floresta e o dragão esmaeceram diante dos olhos de Flaherty, transformando-se em algo que parecia filme fotográfico superexposto.

— Lá está um deles, caras! — Lamla gritou numa voz que se tornava desagradavelmente ovina quando se elevava. — Acertem! Acertem pelo amor de seus pais!

Metade do grupo de homens de Lamla provavelmente jamais tivera tal coisa, Flaherty pensou triste. Então veio o barulho bem nítido de vidro estilhaçado e o dragão ficou congelado no lugar com ondas de chama saindo da boca, das narinas e das guelras nos lados encouraçados da garganta.

Encorajados, os franco-atiradores começaram a disparar mais depressa e, poucos momentos depois, tanto a clareira quanto o dragão paralisado desapareceram por completo. Onde eles haviam estado sobrara apenas uma continuação do corredor azulejado com o rastro de poeira dos que tinham recentemente passado por ali. De um lado e de outro, viam-se as lentes despedaçadas dos projetores.

— Tudo bem! — Flaherty gritou após transmitir a Lamla um aceno de aprovação. — Vamos atrás do garoto, agora duas vezes mais rápido, e vamos pegá-lo. Vamos trazê-lo com a cabeça numa estaca! Estão comigo?

Rosnaram um acordo selvagem, nenhum rosnado mais alto que o de Lamla, cujos olhos mostravam o mesmo e funesto brilho amarelo-alaranjado da respiração do dragão.

— Bom, então! — Flaherty se afastou resmungando uma cantoria que qualquer turma de ordem unida da marinha teria reconhecido: Não importa até onde você corra...

— NÃO IMPORTA ATÉ ONDE VOCÊ CORRA! — gritaram de volta enquanto aceleravam ombro a ombro, cruzando o lugar onde estivera a selva de Jake. Os pés faziam barulho ao esmagar os estilhaços de vidro.

— Vamos trazê-lo de volta antes do fim do dia!

— VAMOS TRAZÊ-LO DE VOLTA ANTES DO FIM DO DIA!

— Pode correr pra Lud ou Cain...

— PODE CORRER PRA LUD OU CAIN!

— Vamos te comer as bolas e beber teu sangue!

Eles gritavam sempre em retorno, e Flaherty foi acelerando um pouco mais.

 

Jake ouviu-os chegando de novo, venha-venha-commala. Ouviu-os prometendo comer suas bolas e beber seu sangue.

Bravata, bravata, bravata, ele pensou, mas mesmo assim tentou correr mais rápido. Ficou assustado ao descobrir que não podia. Fazer a troca mental com Oi o deixara cansado além da conta...

Não.

Roland lhe ensinara que a auto-ilusão não passava de orgulho disfarçado, uma indulgência a ser negada. Jake se esforçara ao máximo para seguir este conselho, e o resultado era que “estar cansado” não parecia mais descrever sua situação. A pontada do lado ganhara dentes, que tinham mergulhado a fundo na axila. Jake sabia que levava vantagem sobre seus perseguidores; também sabia dos gritos em cadência de marcha que compensaram a distância que haviam perdido. Logo estariam atirando nele e também em Oi e, embora ninguém conseguisse ter boa pontaria enquanto estivesse correndo, era sempre possível que alguém desse sorte.

Agora via alguma coisa à frente, bloqueando o corredor. Uma porta. E enquanto se aproximava, Jake se permitiu perguntar o que faria se Susannah não estivesse do outro lado. Ou se estivesse mas não soubesse como ajudá-lo.

Bem, ele e Oi iriam batalhar, só isso. Sem cobertura, sem possibilidade de reencenar o Passo das Termópilas desta vez, mas atiraria pratos e cortaria cabeças até ser abatido.

Se fosse preciso, é claro.

Talvez não fosse.

Jake avançou determinado em direção à porta, a respiração agora quente na garganta — quase queimando — e pensou: Tinha de ser assim. Sem dúvida eu não ia agüentar correr por muito mais tempo.

Oi chegou primeiro. Pôs as patas da frente na madeira reciclada e ergueu os olhos como se estivesse vendo as palavras estampadas na porta e lendo a mensagem piscando embaixo delas. Então se virou para Jake, que vinha arfando com uma das mãos pressionada contra a axila e os Orizas restantes tilintando alto ao baterem de um lado para o outro na bolsa.

 

NORTH CENTRAL POSITRONICS, LTDA.

Nova York/Fedic

 

SEGURANÇA MÁXIMA

ENTRADA VERBAL CÓDIGO REQUERIDO

#9 PADRÃO FINAL

 

Mexeu na maçaneta, mas foi apenas uma formalidade. Quando o metal gelado se recusou a obedecer a seu aperto e girar, Jake nem se preocupou em tentar outra vez. Em vez disso, bateu com as costas de ambas as mãos na madeira:

— Susannah! — gritou. — Se está aí, me deixe entrar!

Você pode soprar e bufar, mas aqui não vai entrar, ouviu o pai dizer, e ouviu também a mãe, num tom muito mais grave, como se ela soubesse que contar uma história era assunto sério: I heard a fly buzz... when I died.

De trás da porta não vinha nada. Atrás de Jake, as vozes que cantarolavam no pelotão do Rei Rubro chegavam mais perto.

— Susannah! — ele berrou, e quando desta vez não houve resposta ele se virou, apoiou as costas na porta (afinal não soubera sempre que acabaria daquele jeito, encurralado diante de uma porta trancada?) e segurou um Oriza em cada mão. Oi permanecia entre seus pés, o pêlo arrepiado, a pele aveludada do focinho se contraindo para mostrar os dentes.

Jake cruzou os braços, assumindo a postura de “carga”.

— Venham então, seus putos! — disse ele. — Para Gilead e o Eld. Para Roland, filho de Steven. Para mim e Oi!

A princípio continuou febrilmente concentrado em morrer bem, levando pelo menos um deles consigo (o sujeito que disse que o Père era jantar seria sua preferência pessoal) e mais de um se conseguisse. Então percebeu que estava escutando uma voz vinda do outro lado da porta, não de sua própria mente.

— Jake! É você mesmo, docinho?

Seus olhos se arregalaram. Oh, por favor, que aquilo não fosse um truque. Se fosse, Jake achava que jamais veria outro.

— Susannah, eles estão vindo! Você sabe como...

— Sim! Ainda deve ser chassit, está me ouvindo? Se Nigel estiver certo, a palavra ainda deve ser cha...

Jake não lhe deu oportunidade para acabar de repeti-la. Agora podia ver o regimento acercando-se dele, correndo a pleno vapor. Alguns brandiam revólveres e já atiravam para o alto.

— Chassit! — ele berrou. — Chassit pela Torre! Abra! Abra, sua filha-da-puta!

Atrás de suas costas, a porta entre Nova York e Fedic estalou e abriu. E Flaherty, à frente da força atacante, viu aquilo acontecer, soltou o pior palavrão de seu léxico e disparou uma bala. Ele tinha boa pontaria e toda a força da vontade nada desprezível de Flaherty acompanhou o disparo, tentando guiá-lo. Sem dúvida a bala teria perfurado a testa de Jake acima do olho esquerdo, entrando em seu cérebro e dando fim à sua vida, se, neste exato momento, uma forte mão de dedos marrons não o tivesse pegado pelo colarinho e o puxado para trás através do agudo zumbido de poço de elevador que soa interminavelmente entre os níveis da Torre Negra. A bala passou raspando pela cabeça de Jake, mas nela não entrou.

Oi foi junto, latindo com estridência o nome do amigo (Ake-Ake, Ake-Ake!), e a porta bateu atrás deles. Flaherty alcançou-a vinte segundos depois e esmurrou-a até os punhos ficarem sangrando (quando Lamla tentou contê-lo, Flaherty o empurrou com tanta ferocidade que o taheen se estatelou no chão), mas não havia nada que pudesse fazer. Dar murros não adiantava; dizer palavrões não adiantava; nada adiantava mais.

No último exato minuto, o garoto e o trapalhão tinham passado a perna neles. E por um tempinho a mais, o coração do ka-tet de Roland permaneceu intacto.

 

NA VIA DO CASCO DA TARTARUGA

Veja isso, é o que estou lhe pedindo, e veja muito bem, pois é um dos mais belos lugares que ainda existem na América.

Veja a tosca estradinha de terra correndo ao longo do ziguezague no cumede um monte, todo coberto de bosques, no oeste do Maine. As pontas nortee sul da estrada desembocam na mesma rota 7, a 3 quilômetros uma daoutra. Bem a oeste desta crista, como pedra posta numa jóia, há uma fundacovinha verde de paisagem. Em seu fundo — no fundo da pedra na jóia— fica o lago Kezar. Como todos os lagos de montanha, pode mudar de aparência meia dúzia de vezes no decorrer de um mesmo dia, pois ali o tempoé mais que apenas caprichoso; você pode chamá-lo de meio maluco e estarsendo perfeitamente preciso. Os habitantes locais ficarão felizes em lhecontar sobre as nevascas de sorvete, que atingiram aquela parte do mundo numcerto final de agosto (foi em 1948) e apareceram de novo sobre ela numglorioso 4 de julho (de 1959). Ficarão ainda mais deliciados ao falar sobreotornado que veio chicoteando pela superfície congelada do lago em janeirode 1971, sugando a neve, criando uma tempestade rodopiante de nevecom o trovão ecoando no meio. Difícil de acreditar que possa haver umtempo tão destrambelhado, mas pode falar com Gary Barker, se não estiver acreditando em mim; ele tem as fotos para provar.

Hoje o lago no fundo da cova está mais escuro que um pecado mortal, não apenas refletindo as nuvens de tempestade tomando forma no céu, mas intensificando seu negrume. De vez em quando um traço prateado risca o espelho-d’água muito liso. É como um punhal luminoso saindo das nuvens. O som do trovão rola da esquerda para a direita pelo céu congestionado. Assim como as rodas de uma grande carroça, carregada de pedras, descendo uma aléia no céu. Os pinheiros, carvalhos e bétulas ficam parados lá, e todo mundo prende a respiração. Todas as sombras desapareceram. Os pássaros caíram em silêncio. Lá no alto, outra daquelas grandes carroças prossegue em seu curso solene e em seu rastro — ouça! — ouvimos um motor. Bem depressa o empoeirado Ford Galaxie de John Cullum aparece, a expressão ansiosa de Eddie Dean atrás do volante, os faróis brilhando na prematura e crescente escuridão.

 

Eddie abriu a boca para perguntar a Roland até onde eles iam, mas evidentemente Eddie sabia. Na saída sul da Via do Casco da Tartaruga havia uma placa com um grande e negro número 1 e cada um dos acessos de garagem que se sucediam ao lado do lago, à esquerda, trazia outro número mais alto. Viam de relance a água através das árvores, mas as casas estavam na encosta abaixo deles e fora de vista. Eddie achou que estava sentindo um gosto de ozônio e graxa eletrificada a cada respiração e passou duas vezes a mão nos pêlos da nuca, certo de que estavam ficando de pé. Não estavam, mas saber disso não diminuía a sensação nervosa, aquela sensação enfeitiçada de exaltação que continuava tomando conta dele, ligando seu plexo solar como um disjuntor sobrecarregado e espalhando a coisa a partir daí. Era a tempestade, é claro; simplesmente ele era uma daquelas pessoas que sentem a aproximação das tempestades na raiz dos nervos. Mas nunca uma coisa assim tão forte.

Não é somente a tempestade, e você sabe disso.

Não, claro que não era. Mas ele pensou que aqueles volts selvagens talvez tivessem facilitado de alguma forma seu contato com Susannah. Iam e vinham como a recepção que a pessoa às vezes obtém, à noite, de estações de rádio distantes, mas desde o encontro deles com

(Você Filho de Roderick, você criança mimada, criança perdida)

Chevin de Chayven, tinha se tornado muito mais forte. Porque toda aquela parte do Maine, Eddie suspeitava, era rala e ficava próxima de muitos mundos. Bem quando o ka-tet deles estava de novo perto de ficar novamente inteiro. Pois Jake já estava com Susannah e, por ora, os dois pareciam estarbastante seguros, com uma sólida porta a separá-los de seus perseguidores. Contudo, havia alguma coisa na frente dos dois — algo de que Susannah ou não queria falar ou não conseguia encontrar formas de expressar. Mesmo assim, Eddie sentia o pavor de Susannah, o horror de que pudesse voltar e ele achou que sabia o que era: o bebê de Mia. Um bebê que tambémfora de Susannah de um modo que ele ainda não entendia plenamente. Eddie não sabia por que uma mulher armada teria medo de um bebê, mas se Susannah tinha medo seria, sem dúvida, por um bom motivo.

Passaram por uma placa que dizia FENN, 11, e outra que dizia ISRAEL, 12. Então completaram uma curva e Eddie pisou no freio do Galaxie, levando o veículo a uma parada brusca e empoeirada. Estacionada ao lado da estrada, juntoa uma placa indicando BECKHARDT, 13, havia uma picape Ford que lhes era familiar e um homem ainda mais familiar apoiado com ar descontraído no pára-choque manchado de ferrugem. Ele usava um jeans com a bainha dobrada para cima e a camisa engomada de cambraia azul fora abotoada até o pescoço enrugado, muito bem barbeado. Também usava um bonécom os dizeres Boston Red Sox. O boné se inclinava um pouco para um dos lados, como a dizer: Estou te sacando! O sujeito estava fumando cachimbo, a fumaça azul subindo, parecendo flutuar em volta do rosto marcado e bem-humorado na atmosfera abafada de pré-temporal.

Tudo isto foi visto por Eddie com a claridade dos nervos à flor da pele. E ele tinha consciência de que estava sorrindo, como faz a pessoa quando, numa tarde tempestuosa do verão de 1977, encontra um velho amigo num lugar estranho — as pirâmides do Egito, o mercado da velhaTânger, talvez uma ilha ao largo da costa de Formosa ou a Via do Casco da Tartaruga em Lovell. Roland também sorria. O velho parceiro, alto e feio — sorrindo! Ao que parecia, milagres estavam sempreacontecendo.

Eles saltaram do carro, se aproximaram de John Cullum e Roland levouum punho à testa, curvando um pouco o joelho.

— Salve, John! Eu te vejo muito bem.

— Hã, também vejo você muito bem — disse John Cullum. — Clarocomo o dia. — Ele esboçou uma continência embaixo da beirada do boné e sobre o emaranhado das sobrancelhas. Depois virou o queixo na direção de Eddie. — Meu jovem?

— Longos dias e belas noites — disse Eddie, tocando a testa com os nós dos dedos. Não era daquele mundo, não era mais, e foi um alívio desistir da pretensão.

— Isso é uma bela coisa para se dizer — John observou. E depois: — Cheguei primeiro. Achei que ia.

Roland deu uma olhada nos bosques de ambos os lados da estrada e na faixa de escuridão que avançava pelo céu.

— Não acho que este seja bem o lugar...? — Na voz dele havia a óbvia sugestão de uma pergunta.

— Não, não é bem o lugar onde se quer acabar — John concordou, dando uma baforada no cachimbo. — Passei por onde você quer acabar em meu caminho para cá, e lhe digo o seguinte: se pretende palestrar, é melhor fazermos isso aqui. Se for para lá não será capaz de fazer nada a não ser ficar de boca aberta. Um risco que não podemos aceitar. — Por um momento seu rosto brilhou como a cara de uma criança que acabou de prender o primeiro vaga-lume num vidro. Eddie achou que o homem estava sendo realmente sincero.

— Por quê? — ele perguntou. — O que tem lá? Há aparecidos? Ou é uma porta? — A idéia lhe ocorreu... e logo se apoderou dele. — É uma porta, não é? E está aberta!

John começou a balançar a cabeça, depois pareceu reconsiderar.

— Pode ser uma porta — disse, esticando o nome até ele se transformar em algo suntuoso, como um suspiro no final de um dia longo e difícil: porr-rtahah. — Não parece exatamente uma porta, mas... hã, hã. Pode ser. Algum lugar naquela luz? — Pareceu refletir. — Hã, hã. Mas acho que vocês, rapazes, querem palestrar e se subirmos para Cara Ri, não haverá nenhum palestrar; só vocês parados aí com o queixo caído. — Cullum atirou a cabeça para trás e riu. — E eu também!

— O que é Cara Ri? — Eddie perguntou.

John deu de ombros.

— Um monte de gente com propriedades de frente para o lago dá nome a suas casas. Acho que pagaram muito por elas e querem ter uma grife particular. Seja como for, Cara está deserta agora. É de uma família chamada McCray, de Washington, que já a colocou à venda. Deram azar. homem teve um acidente vascular e a mulher... — O polegar fez um gesto em direção à boca sugerindo bebida.

Eddie abanou a cabeça. Havia muita coisa em torno daquela caçada da Torre que não compreendia, mas também havia coisas que percebia sem precisar perguntar. Uma era que o centro da atividade dos aparecidos naquela parte do mundo era a casa na Via do Casco da Tartaruga que John Cullum identificava como Cara Ri. E ao chegarem lá iam descobrir que o número da casa, o número que estava na frente da entrada da garagem, era 19.

Eddie ergueu os olhos e viu nuvens de tempestade se movendo com disposição sobre o lago Kezar. Para oeste, na direção das montanhas Brancas (um lugar quase certamente chamado de Discórdia num mundo não muito longe dali), ao longo do Caminho do Feixe Luminoso.

Sempre ao longo do Caminho do Feixe Luminoso.

— O que você sugere, John? — Roland perguntou.

Cullum apontou a cabeça para a placa indicando BECKHARDT.

— Sou caseiro de Dick Beckhardt desde o final dos anos 50 — ele disse. — Um homem bom. Agora está em Washington, fazendo alguma coisa para o governo Carter. — Caaa-tah. — Tenho uma chave da casa. Acho que devíamos ir para lá. É quente e seco, e aqui fora o clima não vai continuar assim por muito tempo. Vocês, caras, podem contar a história de vocês e eu vou ficar na escuta... que é uma coisa que sei fazer muito bem... Depois podemos dar uma corrida até Cara. Eu... bem, eu simplesmente nunca... — Cullum balançou a cabeça, tirou o cachimbo da boca e olhou para eles com ostensiva admiração. — Nunca vi nada igual, é o que estou dizendo. Era como se eu nem soubesse olhar aquilo.

— Vamos — disse Roland. — Vamos todos no seu cartomóbile, é claro.

— Para mim está ótimo — disse John, entrando atrás.

 

O chalé de Dick Beckhardt ficava 800 metros mais abaixo, paredes de pinho, aconchegante. Havia uma estufa no living e um tapete trançado no chão. A parede dando para oeste era de vidro de ponta a ponta e Eddie, apesar da tarefa urgente que tinham pela frente, teve que parar em frente, um pouco contemplando a vista. O lago havia se transformado numa sombra muito carregada de ébano, que não deixava de ser assustadora — assustadora como o olho de um zumbi, ele pensou, mas sem a menor idéia de por que essa comparação lhe ocorrera. Imaginava que se o vento aumentasse (como certamente ia acontecer quando a chuva caísse), pequenas ondas iam encrespar a superfície do lago e torná-la mais fácil de olhar. Dissipando aquela impressão de alguma coisa olhando para você.

John Cullum sentou-se à mesa de pinho polido de Dick Beckhardt, tirou o chapéu e prendeu-o no punhado de dedos da mão direita. Olhou gravemente para Roland e Eddie.

— Já nos conhecemos muitíssimo bem apesar de nos termos encontrado há tão pouco tempo — disse ele. — Não concordam comigo?

Eles assentiram com a cabeça. Eddie continuou à espera de que o vento começasse lá fora, mas o mundo continuava a prender a respiração. Apostaria com qualquer um que a tempestade que estava se aproximando ia ser infernal.

— Era assim que as pessoas se entrosavam no exército — disse John. — Na guerra. — Exééér-cito. E guerra num sotaque demasiado ianque para permitir representação. — E como sempre acontece quando as coisas desandam, imagino.

— Ié — Roland concordou. — Tiroteios estreitam os laços entre as pessoas, costumamos dizer.

— Costumam? Tudo bem, sei que têm coisas a me dizer, mas antes que comecem, tenho algo para dizer a vocês. E dou um beijo num porco se não agradá-los em cheio.

— O que é? — Eddie perguntou.

— O xerife do condado, Eldon Royster, levou quatro sujeitos para a cadeia em Auburn duas horas atrás. Parece que tentaram escapar da barreira policial numa estrada que corta o bosque e por isso foram apanhados. — John pôs o cachimbo na boca, tirou um fósforo de madeira do bolso do paletó e passou o polegar na ponta. Durante algum tempo, no entanto, não acendeu; só manteve o fósforo ali. — A razão de tentarem escapar da barreira é que pareciam estar levando um bom potencial de fogo naquele carro. — Fooogo. — Metralhadoras, granadas e um pouco daquela coisa que chamam C-4. Um dos detidos era um sujeito que, se não me engano, você já mencionou... Jack Andolini. — E com isso ele acendeu o Diamond Bluetip.

Eddie caiu para trás numa das duras cadeiras Shaker de sai Beckhardt. Depois virou a cabeça para o teto e berrou uma risada para os caibros. Quando Eddie Dean realmente achava graça, Roland ponderou, ninguém conseguia rir como ele. Pelo menos não depois que Cuthbert Allgood fora para a clareira.

— O elegante Jack Andolini sentado num xadrez do estado do Maine! — disse ele. — Não acredito, é incrível essa porra, pode me chamar de cachorro louco! Se ao menos meu irmão Henry estivesse vivo para ver isso!

Então Eddie percebeu que Henry provavelmente estava vivo naquele momento... pelo menos alguma versão dele. Presumindo, é claro, que os irmãos Dean existissem naquele mundo.

— Hã, hã, achei que ia gostar — disse John, levando a chama do fósforo, que ia queimando rápido, ao fornilho do cachimbo. Aquilo, sem dúvida, também lhe agradava. Seu sorriso foi quase largo demais para deixá-lo acender o fumo.

— Oh, meus caros! — disse Eddie enxugando os olhos. — Isso valeu o dia! Quase valeu o ano!

— Tenho mais alguma coisa para você — disse John —, mas vamos deixá-la em paz por enquanto. — O cachimbo finalmente estava ganhando força e começando a satisfazê-lo. John se recostou, os olhos se deslocando entre os dois estranhos, homens errantes que ainda na véspera não conhecia, mas homens cujo ka estava agora entrelaçado com o dele, para o melhor ou para o pior, para maior riqueza ou maior pobreza. — Agora eu gostaria de ouvir a história de vocês. E descobrir o que vão querer de mim.

— Quantos anos tem, John? — Roland perguntou.

— Não tão velho que já não tenha mais gás — John respondeu um tanto friamente. — O que me diz de você, parceiro? Quantas primaveras você já completou?

Roland dispensou-lhe um sorriso... do tipo que dizia ponto seu, agora vamos mudar de assunto.

— Eddie vai falar por nós dois — disse Roland. Tinham decidido isso durante a vinda de Bridgton. — Minha história é comprida demais.

— Se você está dizendo... — John comentou.

— Estou — disse Roland. — Que Eddie conte a sua história, desde que tenha tempo para isso. Depois nós dois vamos dizer o que queríamos que fizesse. Se estiver de acordo, Eddie lhe dará uma coisa para ser levada a um homem chamado Moses Carver... e eu darei outra.

John Cullum pensou no assunto e abanou afirmativamente a cabeça. Virou-se para Eddie.

Eddie respirou fundo e começou:

— Antes de mais nada você devia saber que conheci este sujeito aqui do meu lado no meio de um vôo de Nassau, nas Bahamas, ao aeroporto Kennedy, em Nova York. Na época eu era dependente de heroína, assim como meu irmão. E estava carregando cocaína.

— E mais ou menos quando foi isso, filho? — John Cullum perguntou.

— No verão de 1987.

Viram o espanto na cara de Cullum, mas nenhuma sombra de descrença.

— Então vocês vieram mesmo do futuro! Incrível! — Ele se inclinou por entre a fumaça cheirosa do cachimbo. — Filho — continuou —, conte sua história. E não deixe passar uma só palavrinha.

 

Eddie levou quase uma hora e meia — e, por amor à brevidade, acabou pulando algumas das coisas que tinham acontecido aos dois. No momento em que concluiu, uma noite prematura caíra sobre o lago lá embaixo. A tempestade ameaçadora, no entanto, não chegou nem foi embora. Sobre o chalé de Dick Beckhardt, o trovão às vezes roncava e às vezes explodia com tanta força que os três estremeciam. Uma risca de relâmpago atacou bem no centro do lago estreito e, por um momento, toda a superfície ficou iluminada por um roxo delicado e cintilante. Assim que o vento aumentou, fazendo vozes se moverem por entre as árvores, Eddie pensou: Agora ela está vindo, certamente está vindo, mas não estava. Contudo, a atmosfera de tormenta iminente também não se afastou e a estranha suspensão, como espada segura por um fio dos mais finos, lhe trouxe à memória a longa e estranha gravidez de Susannah, agora concluída. Por volta das sete, faltou energia e John foi procurar uma caixa de velas nos armários da cozinha. Eddie continuava a falar: do Povo Antigo de River Crossing, do povo enlouquecido da cidade de Lud, do povo aterrorizado de Calla Biyn Sturgis, onde conheceram o ex-padre que parecia ter saído diretamente de um livro. John pôs as velas na mesa, juntamente com cream crackers, queijo e uma garrafa (Red Zinger) de chá gelado. Eddie concluiu com a visita dos dois a Stephen King, contando como o pistoleiro havia hipnotizado o escritor e mandado que esquecesse aquela visita, como tinham visto brevemente a amiga Susannah, como tinham chamado John Cullum porque, como disse Roland, não havia mais ninguém naquela parte do mundo que pudessem chamar. Quando Eddie calou, Roland contou sobre o encontro com Chevin de Chayven quando passavam pela Via do Casco da Tartaruga. O pistoleiro tirou a corrente com a cruz de prata que mostrara a Chevin, pôs a cruz na mesa ao lado do prato de queijo e John empurrou a fina corrente com a unha grossa do polegar.

Então, por um bom tempo, ficaram em silêncio.

Quando não pôde mais suportar aquilo, Eddie perguntou ao velho caseiro até que ponto ele acreditava na história.

— Acredito em toda ela — disse John sem hesitar. — E tem que cuidar desta rosa em Nova York, não foi?

— Sim — disse Roland.

— Porque era preciso manter um daqueles Feixes a salvo, pois a maioria dos outros fora quebrado por esses... como-é-mesmo-que-vocês-os-chamam, telepáticos... Sapadores.

Eddie estava assombrado ao ver com que rapidez e facilidade Cullum apreendera a coisa, mas talvez não houvesse motivo para assombro. Olhos novos vêem longe, Susannah gostava de dizer. E Cullum era sem dúvida o que os grays de Lud teriam chamado de “sujeito matreiro”.

— Sim — disse Roland. — Você diz a verdade.

— A rosa está tomando conta de um Feixe. Stephen King está encarregado do outro. Pelo menos é o que vocês acham.

— Ele — disse Eddie — precisava de vigilância, John... Fora qualquer outra coisa, King teve alguns maus hábitos... mas assim que deixarmos o 1977 deste mundo, jamais poderemos voltar para ver o que ele faz.

— King não existe em nenhum desses outros mundos? — John perguntou.

— Quase certamente não — disse Roland.

— Mesmo se existir — Eddie interveio —, o que ele faz neles não importa. Este aqui é o mundo-chave. Este e aquele de onde veio Roland. Este mundo e o dele são gêmeos.

Olhou para Roland em busca de confirmação. Roland abanou afirmativamente a cabeça e acendeu o último dos cigarros que John lhe dera.

— Posso ficar de olho em Stephen King — disse John. — E ele nem precisa saber que estou fazendo isso. Isto é, se eu voltar vivo depois de fazer a merda do negócio que vão querer que eu faça em Nova York. Tenho uma idéia bastante boa do que possa ser o negócio, mas talvez seja melhor vocês soletrarem para mim. — Tirou do bolso de trás um bloquinho amassado com as palavras Mead Memo escritas na capa verde. Depois de folhear quase todo o bloco, encontrou uma folha em branco, tirou um lápis do bolso da frente da camisa, lambeu a ponta (Eddie conteve um tremor) e olhou para os dois com a ansiedade de um calouro no primeiro dia do colégio.

— Agora, meus caros — disse —, por que não contam o resto ao tio John...

 

Desta vez foi principalmente Roland quem falou e, embora tivesse menos a dizer do que Eddie, demorou meia hora, pois falava com grande cuidado, de vez em quando se virando para Eddie em busca de ajuda numa palavra ou frase. Eddie já identificara o matador e o diplomata que conviviam dentro de Roland de Gilead, mas aquela foi sua primeira olhada clara no Roland emissário, no mensageiro que pretendia transmitir cada palavra com exatidão. Lá fora, a tempestade ainda se recusava a cair ou a se dissipar.

Por fim o pistoleiro sentou. No clarão amarelo das velas, seu rosto pareceu ao mesmo tempo muito velho e estranhamente bonito. Ao observá-lo, Eddie desconfiou, pela primeira vez, de que talvez houvesse mais coisa errada em Roland do que aquilo que Rosalita Munoz chamara de “a virada seca”. Roland perdera peso e as olheiras sob os olhos sugeriam enfermidade. Depois de tomar um copo inteiro do chá vermelho num único gole, Roland perguntou:

— Compreende as coisas que eu disse?

— Hã, hã. — A resposta não foi mais que isto.

— Entende muito bem, então? — Roland pressionou. — Sem perguntas?

— Acho que nenhuma.

— Repita então para nós.

John enchera duas páginas de anotações com sua letra de mão cheia de curvas. Agora, passando de uma folha para outra, abanou duas vezes a cabeça para si mesmo. Então resmungou e devolveu o bloco ao bolso de seu jeans. Pode ser um caipirão, mas está muito longe de ser burro, Eddie pensou. E encontrá-lo foi muito mais que apenas sorte; foi o próprio ka tendo um dia muito bom.

— Vá para Nova York — disse John. — Encontre o tal de Aaron Deepneau. Deixe o companheiro dele fora da coisa. Convença Deepneau de que tomar conta da rosa naquele terreno baldio é praticamente a tarefa mais importante do mundo.

— Pode cortar o praticamente — disse Eddie.

John abanou a cabeça como se fosse dispensável adverti-lo. Pegou a folha de papel com o desenho do castor em cima e enfiou-o na volumosa carteira. Entregar a ele o recibo de compra e venda foi, para Eddie Dean, uma das coisas mais difíceis que tivera de fazer desde que fora sugado pela porta não-encontrada e entrara em East Stoneham. Por pouco o pegou de volta antes que pudesse desaparecer na amassada e velha carteira Lord Buxton do caseiro. Achou que estava compreendendo muito melhor como Calvin Tower havia se sentido.

— Como agora, caras, você são donos do terreno, são donos também da rosa — disse John.

— Agora a Tet Corporation é a dona da rosa — disse Eddie. — Uma corporação da qual você está à beira de se tornar vice-presidente executivo.

John Cullum olhou para ele, mas nada impressionado com aquele novo e duvidoso título. Ele disse:

— Deepneau deve fazer um contrato de incorporação e garantir a legalidade da Tet. Depois vamos visitar o tal de Moses Carver para conseguir que ele suba a bordo. Essa é capaz de ser a parte difícil — “paaarr-rte difiíí-cil”—, mas vamos fazer o melhor que pudermos.

— Ponha a cruz da titia em volta do pescoço — disse Roland — e quando se encontrar com sai Carver, mostre a ele. Pode ser uma grande ajuda para convencê-lo de que está falando a verdade.

Na vinda de Bridgton, Roland tinha perguntado se Eddie se lembrava de algum segredo (não importava quão banal ou grande) que Susannah pudesse ter compartilhado com o padrinho. Na realidade Eddie conhecia tal segredo e ficou estarrecido quando Susannah começou a falá-lo da cruz pousada na mesa de pinho de Dick Beckhardt:

— Enterramos Pimsy sob a macieira, onde pudesse contemplar as flores caírem na primavera — disse a voz dela. — E Papai Mose me disse para não chorar mais, porque Deus acha que lamentar demais um animal de estimação...

Aqui as palavras foram sumindo, primeiro se reduzindo a um murmúrio, depois a mais nada. Eddie, no entanto, se lembrou do resto e arrematou:

— ...que lamentar demais um animal de estimação é pecado. Papai Mose tinha dito a Susannah que, de vez em quando, ela poderia ir ao túmulo de Pimsy e murmurar:      “Seja feliz no céu”, mas nunca devia contar aquilo a ninguém, porque os pregadores não simpatizam muito com a idéia de animais indo para o céu. E ela guardou o segredo. Fui eu a única pessoa a quem contou.

Talvez se lembrando dessa confidencia pós-transa, no escuro da noite, Eddie sorriu dolorosamente.

John Cullum olhou para a cruz, depois se virou para Roland de olhos arregalados.

— O que é isso? Alguma espécie de gravador? Não é, estou certo?

— É um sigul — disse Roland pacientemente. — Que pode ajudá-lo com esse tal de Carver, se ele se mostrar um “pentelho”, como diz Eddie. — O pistoleiro sorriu ligeiramente. Pentelho era um termo de que gostava. Um termo que John compreendia. — Ponha no pescoço.

Mas Cullum não pôs, pelo menos não de imediato. Pela primeira vez desde que o velho entrara em seu círculo de relações (incluindo aquele período em que tinham estado sob fogo no mercadinho), parecia genuinamente incomodado.

— É mágico? — John perguntou.

Roland abanou os ombros com impaciência, como para dizer a John que a palavra não tinha qualquer significado útil naquele contexto. Meramente repetiu:

— Ponha no pescoço.

Cautelosamente, como se a cruz de tia Talitha pudesse a qualquer momento ficar incandescente e provocar uma queimadura séria, John Cullum fez o que lhe era pedido. Curvou a cabeça para observar a cruz (dando momentaneamente à sua comprida face ianque uma divertida papada de burguês), depois enfiou a corrente dentro da camisa.

— Nossa — ele tornou a dizer, muito baixo.

 

Consciente de que agora estava falando como já tinham falado com ele, disse Eddie Dean:

— Diga o resto de sua lição, John de East Stoneham, e seja honesto.

Naquela manhã Cullum tinha saído da cama apenas como caseiro rural, um dos tantos caseiros invisíveis e desconhecidos que existem no mundo. Naquela noite, porém, ia para a cama com a perspectiva de se transformar numa das pessoas mais importantes da Terra, um verdadeiro príncipe do planeta. Se tinha medo da idéia, não deixava transparecer. Talvez ainda não tivesse conseguido apreendê-la de todo.

Mas Eddie não acreditava no acaso. Aquele era o homem que o ka tinha posto no caminho deles, um homem esperto e valente. Se Eddie fosse Walter (ou Flagg, como Walter às vezes se autodenominava), talvez estivesse tremendo.

— Bem — disse John —, pouco importa a vocês quem vai dirigir a companhia, mas vocês querem que a Tet engula Holmes, porque de agora em diante a tarefa não tem nada a ver com fabricar creme dental e jaqueta de dente, embora a coisa possa continuar aparentando ser isso durante algum tempo.

— E o que...

Eddie não foi mais longe. John ergueu a mão cheia de nódulos para detê-lo. Eddie tentou imaginar uma calculadora da Texas Instruments naquela mão e descobriu que podia, e bem facilmente. Estranho.

— Me dê uma chance, jovem, e eu continuo.

Eddie se recostou, fazendo um movimento como se fechasse um zíper nos lábios.

— Manter a rosa segura — continuou John —, essa é a primeira coisa. Manter o escriiitorrr seguro, essa é a segunda. Mas além disso, eu, esse tal de Deepneau e aquele outro sujeito, Carver, devemos colocar de pé uma das mais poderosas corporações do mundo. Vamos negociar com imóveis, vamos trabalhar com... hã... — Puxou o amassado bloquinho verde, consultou-o rapidamente e guardou-o. — Vamos trabalhar com “desenvolvedores de software”, não importa o que isto seja, porque será deles a próxima onda tecnológica. Devemos nos lembrar de três palavras. — Contou-as nos dedos: — Microsoft. Microchips. Intel. E por maiores que venhamos a nos tornar... e por mais rápido que isto ocorra... nossas três tarefas reais continuarão sendo as mesmas: proteger a rosa, proteger Stephen King e aproveitar toda e qualquer oportunidade para complicar a vida de duas outras companhias. Uma chamada Sombra. A outra... — Houve uma hesitação muito breve. — A outra é a North Central Positronics. Segundo vocês, caras, a Sombra está interessada principalmente em beinnns imóveis. A Positronics... bem, lida com ciência e bugigangas, até para mim isso é evidente. Se a Sombra quiser um pedaço de terra, a Tet tentará pegá-lo primeiro. Se a North Central quiser uma patente, tentaremos obtê-la na frente ou pelo menos armar uma tremenda encrenca para ela. Por exemplo, jogá-la para um terceiro grupo, se for preciso.

Eddie balançava aprovadoramente a cabeça. Não tinha falado a John essa última, o velho inventara a coisa por conta própria.

— Vamos ser os Três Mosqueteiros Desdentados, os Velhos Peidos do Apocalipse e impedir que aquelas duas turmas consigam o que querem, por meios legais ou não. Golpes sujos ficam definitivamente autorizados. — John sorriu. — Nunca estive na Harvard Business School — Haa-vid Bi’ess School —, mas acho que posso chutar um sujeito no meio das pernas tão bem como qualquer um.

— Bom — disse Roland, começando a se levantar. — Acho que está na hora de...

Eddie ergueu a mão para detê-lo. Sim, queria chegar até Susannah e Jake; não podia esperar a hora de pegar a amada nos braços e cobrir seu rosto de beijos. Anos pareciam ter passado desde que a vira pela última vez na estrada do Leste, em Calla Bryn Sturgis. Não podia, no entanto, encarar certas coisas com a mesma facilidade de Roland, que passara a vida sendo obedecido e considerava a fidelidade até a morte de pessoas completamente estranhas como algo normal. O que Eddie via do outro lado da mesa de Dick Beckhardt não era mais um instrumento manipulável; era um ianque independente, determinado e vigoroso como chicote... mas realmente velho demais para o que estavam lhe pedindo. E falando em velho demais, o que dizer de Aaron Deepneau, o Garoto da Quimioterapia?

— Meu amigo quer partir agora e eu também — Eddie começou. — Temos ainda muitos quilômetros pela frente...

— Sei disso. Está na sua cara, filho. Como cicatriz.

Eddie estava fascinado pela idéia de fidelidade a um dever e do ka como algo que deixava uma marca, embora ela pudesse parecer como decoração para alguns e desfiguramento para outros. Lá fora o trovão ribombava e o relâmpago piscava.

— Mas por que você faria isto? — Eddie finalmente perguntou. — Tenho de saber. Por que assumiria tudo isto para ajudar dois homens que acabou de conhecer?

John refletiu. Tocou a cruz que estava usando e que usaria até sua morte, no ano de 1989 — a cruz dada a Roland por uma velha mulher numa cidade esquecida. Ele a tocaria exatamente daquele jeito nos anos que tinha pela frente quando tivesse de tomar alguma resolução importante (talvez a maior tenha sido romper o contato da Tet com a IBM, uma companhia que mostrara crescente disposição de negociar com a North Central Positronics) ou se preparar para uma missão secreta (por exemplo o ataque a bomba das empresas Sombra em Nova Délhi, um ano antes de sua morte). A cruz falou de Moses Carver e nunca mais falou na presença de Cullum, por mais que ele soprasse nela, mas às vezes, mergulhando no sono com a mão fechada na cruz, Cullum pensaria: Isto é um sigul. Isto é um sigul, meu caro... algo que veio de outro mundo.

Se tivesse algo a lamentar no final da vida (fora lamentar certos golpes, os realmente sujos, que custaram a vida de mais de um homem), era o fato de nunca ter tido a chance de visitar o mundo do outro lado, aquele que havia visto de relance num final de tarde tempestuoso na Via do Casco da Tartaruga, na cidade de Lovell. De vez em quando o sigul de Roland enviava sonhos de um campo cheio de rosas e de uma torre negra de fuligem. Às vezes seria visitado pelas visões terríveis de dois olhos rubros, pairando sem ligação com nenhum corpo e esquadrinhando sem cessar o horizonte. Às vezes havia sonhos nos quais ouvia o barulho de um homem soprando sem parar um berrante. Acordaria desses últimos sonhos com lágrimas no rosto, aquelas lágrimas de saudade, de perda e de amor. Acordaria com a mão fechada na cruz, pensando: Neguei a Discórdia e não lamento nada; tenho cuspido nos olhos desencarnados do Rei Rubro e me alegro com isso; juntei minha sorte à do ka-tet do pistoleiro e ao Branco, e nem uma só vez questionei a opção.

Apesar de tudo isso, tinha a vontade de ter saído, só uma vez, para aquela outra terra: a que ficava do outro lado da porta.

— Vocês, caras — dizia ele agora —, querem todas as coisas certas. Não consigo pôr as coisas mais claras que isso. Acredito em vocês. — Hesitou. — Tenho fé em vocês. O que vejo nos olhos dos dois é verdadeiro.

Eddie achou que Cullum havia acabado, e daí Cullum sorriu como um menino. E continuou:

— Também parece que estão me oferecendo as chaves de uma máquina tremendamente grande. — Graaande. — Quem não ia querer dar a partida e ver o que acontece?

— Não está com medo? — Roland perguntou.

John Cullum pensou na pergunta e abanou afirmativamente a cabeça.

— É, tô — disse.

— Bom — disse Roland, também assentindo com a cabeça.

 

Sob um céu escuro, fervilhante, rumaram de novo para a Via do Casco da Tartaruga no carro de Cullum. Embora fosse o apogeu da temporada de verão e a maior parte dos chalés no Kezar estivessem provavelmente ocupados, não viram um só carro passar numa direção ou noutra. E todos os barcos no lago tinham há muito zarpado para terra firme.

— Falei que tinha mais alguma coisa para vocês — disse John, subindo na traseira do pequeno caminhão, onde havia uma caixa de ferro encostada na cabine. Agora o vento começara a soprar, fazendo a escassa penugem de cabelos brancos rodopiar em volta da cabeça de John Cullum. Ele abriu um cadeado com combinação e empurrou para trás a tampa da caixa. Tirou de lá duas bolsas empoeiradas que os errantes conheciam bem. Uma parecia quase nova comparada com a outra, que perdera toda a sua cor na poeira do deserto e estava enrolada em toda a sua extensão por um cordão de couro cru.

— Nossa tralha! — bradou Eddie, tão deliciado... e tão impressionado... que as palavras foram quase um grito. — Como, em nome dos infernos...?

John ofereceu-lhes um sorriso que podia servir de bom agouro para seu futuro como um malandro: distraído na superfície, esperto por baixo.

— Bela surpresa, não é? Também achei que sim. Voltei para dar uma olhada no mercado de Chop... no que sobrou dele... e ainda havia muita confusão. Gente correndo de um lado para o outro, para cima e para baixo é o que eu quero dizer. Cobriam os corpos, esticavam aquela fita amarela, tiravam fotos. Alguém pôs aquelas bolsas de lado e elas ficaram com uma cara solitária. Então eu... — Sacudiu um ombro ossudo. — Eu rapidamente peguei.

— Deve ter acontecido enquanto estávamos visitando Calvin Tower e Aaron Deepneau naquele chalé alugado — disse Eddie. — Depois de você voltar para casa, supostamente para tomar um banho e ir para Vermont. Não foi isso? — Eddie alisava a superfície de sua bolsa. Conhecia muito bem aquela superfície suave. Afinal, não tinha matado o cervo de onde viera, raspado o pêlo com a faca de Roland, costurado ele próprio o couro, com a ajuda de Susannah? Acontecera não muito depois do grande urso robô Shardik quase ter aberto a sua barriga. Certamente em algum momento do século anterior parecia.

— Hã, hã — disse Cullum e, quando o sorriso do velho se abrandou, as últimas dúvidas de Eddie desapareceram. Tinham encontrado o homem certo para se virar naquele mundo. Diga a verdade e agradeça ao grande-grande Gan!

— Ponha seu revólver na cinta, Eddie — disse Roland, estendendo a arma com o velho cabo de sândalo.

Meu. Agora ele diz que é meu. Eddie sentiu um pequeno calafrio.

— Achei que íamos até Susannah e Jake. — Mas ele pegou o revólver e colocou a cinta com bastante disposição.

Roland abanou a cabeça.

— Acredito que primeiro temos um trabalhinho a fazer contra aqueles que mataram Callahan e depois tentaram matar o Jake. — Seu rosto não se alterou quando ele falou, mas tanto Eddie Dean quanto John Cullum sentiram um calafrio. Por um momento foi quase impossível olhar para o pistoleiro.

Assim foi pronunciada — embora eles não soubessem disso, o que era provavelmente mais misericordioso do que mereciam — a sentença de morte contra Flaherty, o taheen Lamla e o ka-tet deles.

 

Ó meu Deus, Eddie tentou dizer, mas não saiu nenhum som.

Vira um brilho crescendo na frente deles quando se dirigiam para o norte ao longo da Via do Casco da Tartaruga, seguindo a única lanterna traseira funcionando do caminhão de Cullum. A princípio achou que pudesse ser lampiões guardando a entrada da garagem de algum homem rico, depois pensou em holofotes. Mas o brilho continuou ficando forte, um clarão dourado e azul, à esquerda, onde a crista do morrote descia para o lago. Quando se aproximaram da fonte da luz (a picape de Cullum agora mal andando), Eddie arfou e apontou para um círculo de radiância que soltou-se do corpo principal e voou para eles, sempre mudando de cor: do azul para dourado, depois vermelho, do vermelho para verde, depois dourado e de volta para o azul. No centro havia algo que parecia um inseto com quatro asas. Então aquilo passou sobre a cabine do caminhão de Cullum, entrou na escuridão dos bosques no lado leste da estrada e se virou para eles. Foi então que Eddie viu que o inseto tinha um rosto humano.

— O que... meu Deus, Roland, o que...

— Taheen — disse Roland e mais não falou. Seu rosto aparecia calmo e cansado sob a luminosidade crescente.

Novos círculos de luz se soltavam do corpo principal e corriam pela estrada num esplendor de cometa. Eddie viu moscas, minúsculos beija-flores que cintilavam e uma espécie de rã com asas. Atrás deles...

A lanterna do freio do caminhão de Cullum acendeu de repente, mas Eddie estava tão ocupado arregalando os olhos que teria batido se Roland não falasse áspero com ele. Eddie colocou o Galaxie em ponto morto sem se preocupar em puxar o freio de mão ou desligar o motor. Saltou e caminhou para o acesso pavimentado de garagem que descia pela encosta íngreme, arborizada. Seus olhos pareciam enormes sob a luz suave, a boca continuava aberta. Cullum juntou-se a ele e parou olhando para baixo. A entrada tinha duas placas, uma de cada lado: CARA RI à esquerda e 19 à direita.

— Incrível, não é? — Cullum perguntou em voz baixa.

Mais que incrível, Eddie tentou responder, mas nenhuma palavra saiu de sua boca, só um chiado ofegante.

A maior parte da luz estava vindo dos bosques a leste da estrada e à esquerda do acesso para Cara Ri. Ali as árvores — principalmente pinheiros, espruces e bétulas curvadas por causa de uma tempestade de neve naquele final de inverno — estavam muito espalhadas e centenas de figuras caminhavam solenemente entre elas, os pés descalços roçando as folhas, como se estivessem num rústico salão de baile. Alguns eram sem a menor dúvida Filhos de Roderick, tão acabados como Chevin de Chayven. As peles estavam cobertas com as chagas da enfermidade da radiação e pouquíssimos tinham mais que um tufo de cabelo. No entanto, a luz em que caminhavam lhes concedia uma beleza quase excessiva para ser contemplada. Eddie viu uma mulher de um só olho carregando o que parecia ser uma criança morta. Ela o encarou com uma expressão de pesar e a boca se moveu, mas Eddie não pôde ouvir nada. Levou o punho à testa e dobrou a perna. Depois tocou o canto de um olho e apontou para ela. Estou vendo você, o gesto dizia... ou pelo menos era o que queria que dissesse. Eu a vejo muito bem. A mulher segurando a criança morta ou adormecida respondeu com o mesmo gesto e logo saiu de vista.

Lá no alto, o trovão estourou com força e o relâmpago brilhou no centro de toda aquela luz. Um antigo abeto, com o tronco resistente rodeado de musgo, levou o raio e se dividiu ao meio, caindo metade para um lado, metade para o outro. O interior estava em chamas. E uma grande lufada de faíscas — não fogo, não isto, mas algo que lembrava a natureza etérea do fogo fátuo — subiu em redemoinho para a pendente grinalda das nuvens. Eddie viu naquelas faíscas pequenos corpos dançantes e, por um momento, não conseguia respirar. Era como ver um esquadrão de Sininhos surgir de repente diante dele e logo desaparecer.

— Olhe pra eles — disse John num tom reverente. — Aparecidos! Deus, são centena! Queria que meu amigo Donnie estivesse aqui para ver.

Eddie achou que provavelmente John tinha razão: centenas de homens, mulheres e crianças estavam andando pelos bosques lá embaixo, cruzando a luz, aparecendo, sumindo, aparecendo de novo. Enquanto assistia àquilo, Eddie sentiu uma gota de água fria cair no pescoço, seguida por uma segunda e uma terceira gotas. O vento girava pelas árvores, provocando outro jorro ascendente daquelas delicadas criaturas e transformando a árvore que fora dividida ao meio pelo relâmpago num par de grandes tochas onde o fogo estalava.

— Vamos — disse Roland, agarrando o braço de Eddie. — Vai cair um aguaceiro e tudo isto vai apagar como uma vela. Se ainda estivermos deste lado quando a chuva cair, ficaremos presos aqui.

— Onde... — Eddie começou e então ele viu. Perto do início do acesso à garagem, onde a vegetação da floresta dava lugar a um amontoado de rochas que se debruçavam sobre o lago, ficava o centro do clarão, por enquanto brilhante demais para ser olhado. Roland arrastou-o naquela direção. John Cullum permaneceu mais um instante hipnotizado pelos aparecidos, depois tentou ir atrás deles.

— Não! — Roland gritou pelo ombro. A chuva estava caindo mais forte agora, as gotas frias eram do tamanho de moedas. — Você já tem o que fazer, John! Adeus!

— Vocês também fiquem com Deus, caras! — John respondeu parando de imediato e erguendo a mão num aceno. Uma flecha de eletricidade cortou o céu, deixando o rosto dele momentaneamente iluminado por um azul brilhante seguido de um negrume muito carregado. — Vocês também!

— Eddie, vamos correr para dentro do núcleo da luz — disse Roland. — Não é uma porta do Povo Antigo, mas do Prim... e isso é magia, tenha certeza. Se nos concentrarmos bastante, ela vai nos levar para onde quisermos.

— Onde...

— Não há tempo! Jake me disse para onde. Pelo toque! Apenas segure minha mão e deixe a mente vazia! Posso levar nós dois!

Eddie teve vontade de perguntar se ele tinha certeza absoluta disso, masnão deu tempo. Roland começou a correr. Eddie emparelhou com ele. Dispararam encosta abaixo e entraram na luz. Eddie sentiu-a respirando em sua pele como um milhão de pequenas bocas. Suas botas estalavam na densa cobertura de folhas. À direita a árvore queimava. Ele pôde sentira seiva e o chiado da casca cozinhando. Os dois iam se aproximando do centro da luz. A princípio Eddie podia ver o lago Kezar através da luz, edaí sentiu uma enorme força tomando conta dele, puxando-o para a frenteatravés da chuva fria, impelindo-o para o interior daquele brilhante clarãoque murmurava. Por um breve instante vislumbrou o contorno de umaporta. Depois segurou com duas vezes mais força a mão de Roland e fechouos olhos. O solo forrado de folhas sumiu debaixo de seus pés e logo os dois estavam voando.

 

REUNIÃO

Flaherty parou na porta Nova York/Fedic, que fora marcada por vários tiros mas, a não ser isso, continuava inteira, barreira intransitável que a porra do garoto tinha de alguma forma ultrapassado. Lamla permanecia em silêncio ao lado dele, esperando que a raiva de Flaherty se esgotasse. Os outros também esperavam, mantendo o mesmo silêncio prudente.

Finalmente os golpes que Flaherty aplicava na porta começaram a ficar mais lentos. Ele desferiu o último golpe com as costas da mão e Lamla estremeceu vendo o sangue do humano voar do meio dos nós dos dedos.

— E então? — Flaherty perguntou, vendo sua careta. — E então? O que que você tem a dizer?

Lamla não gostou muito dos círculos brancos em volta dos olhos de Flaherty nem das duras rosas vermelhas em suas bochechas. Menos ainda do modo como a mão de Flaherty subiu para a coronha da Glock automática que balançava sob sua axila.

— Nada — ele disse. — Nada, sai.

— Vá lá, diga o que tem na cabeça, por favor diga! — Flaherty insistiu. Tentou sorrir, mas só conseguiu mostrar um horrível esgar... o trejeito malicioso de um louco. Discretamente, com um leve sussurro, o resto do grupo recuou. — Outros terão muita coisa a dizer; por que não começar comvocê, meu parceiro? Eu o perdi! Seja o primeiro a me criticar, seu tremendofilho-da-puta!

Estou morto, Lamla pensou. Após uma vida de serviço ao Rei, uma expressãoimprudente na presença de um homem que precisa de um bode expiatório, e estou morto.

Olhou para o lado, confirmando que nenhum dos outros entraria na conversapara ajudá-lo e disse:

— Flaherty, se de alguma maneira o ofendi, sinto m...

— Ah, você me ofendeu, sem a menor dúvida! — Flaherty gritou, o sotaquede Boston ficando mais pesado à medida que a raiva ascendia. — Tenhocerteza de que vou pagar pelo trabalho desta noite, pois é, mas achoque você vai pagar pri...

Houve uma espécie de arfada no ar em volta deles, como se o próprio corredortivesse inalado fortemente. O cabelo de Flaherty e o pêlo de Lamla se mexeram. O destacamento de homens baixos e vampiros de Flaherty começou a dar meia-volta. De repente um deles, um vampiro chamado Albrecht, gritou e desviou o corpo, permitindo que Flaherty tivesse uma visãodos dois recém-chegados, homens com gotas de chuva ainda frescas eescuras nas calças jeans, botas e camisas. Havia tralha poeirenta aos pés e revólverespendurados nos quadris. Flaherty viu os cabos de sândalo um instanteantes de o mais novo sacar, mais rápido que o brotar de uma labareda, e compreendeu de imediato por que Albrecht havia corrido. Só um tipode homem carregava revólveres parecidos com aqueles.

O jovem deu um único tiro. O cabelo louro de Albrecht pulou como se golpeado por uma mão invisível e logo o vampiro caiu para a frente, murchando dentro de suas roupas.

— Salve, servos do Rei — disse o forasteiro mais velho, falando num tomde conversa descontraída. Flaherty, as mãos ainda sangrando por causa dasextravagantes batidas na porta através da qual o pirralho melequento haviadesaparecido, parecia não estar entendendo o sentido daquilo. Era o homemde quem tinham sido advertidos, certamente era Roland de Gilead, mascomo havia chegado lá, e sem ser visto? Como?

Os frios olhos azuis de Roland os observavam.

— Quem neste lamentável rebanho responde como dinh? Não vai querernos dar a honra de dar um passo à frente? Não? — Seus olhos observavam o grupo; a mão esquerda abandonou o entorno da arma e viajou para o canto da boca, onde havia florescido um sorrisinho sarcástico. — Não? Que pena. Cês são covardes afinal, lamento perceber. Mataram um padre e caçaram um menino, mas não são capazes de dar as caras para ganhar o dia de trabalho. São covardes e filhos de cov...

Flaherty deu um passo à frente. A mão direita, sangrando, encostava na coronha do revólver pendurado sob a axila esquerda num coldre estreito.

— Está querendo falar comigo, Roland-de-Steven?

— Então sabe meu nome, verdade?

— Ié! Conheço seu nome por sua face e sua face por sua boca. É a mesma boca de sua mãe, que chupou John Farson com tamanha vontade até que ele goz...

Enquanto falava, Flaherty sacou o revólver, um truque de guerrilheiro que sem dúvida já praticara e usara com bons resultados. Mas embora Flaherty fosse rápido e o indicador da mão esquerda de Roland ainda estivesse tocando o lado da boca, o pistoleiro superou-o com facilidade. A primeira bala passou entre os lábios do principal perseguidor de Jake, reduzindo os dentes na frente do maxilar superior a fragmentos de osso que Flaherty sugou com sua última respiração. A segunda bala perfurou a testa de Flaherty entre as sobrancelhas e ele foi atirado contra a porta Nova York/Fedic. Ainda sem disparar, a Glock caiu de sua mão detonando, pela última vez, no piso do corredor.

A maioria dos outros sacaram uma fração de segundo mais tarde. Eddie matou os seis da frente, tendo tido tempo para recarregar o tambor que usara contra Albrecht. Quando o revólver ficou vazio, ele rolou para trás de seu dinh para recarregar, como tinham lhe ensinado. Roland acertou os próximos cinco, depois rolou suavemente para trás de Eddie, que acertou os que sobraram, menos um.

Lamla fora esperto demais para tentar e assim apenas ele ficara de pé erguendo as mãos vazias, os dedos peludos e as palmas suaves.

— Vai ter misericórdia de mim, pistoleiro, se eu lhe prometer paz?

— De jeito nenhum — disse Roland e empinou o revólver.

— Que a maldição caia sobre seu zeloso ka — disse o taheen. Roland de Gilead acertou-o ali mesmo, e Lamla de Galee caiu morto.

 

O pelotão de Flaherty estava empilhado diante da porta como toras de madeira, Lamla na frente, de bruços. Nem um só deles tivera a oportunidade de atirar. O corredor forrado de azulejos cheirava à fumaça de revólver que pairava numa camada azul. Então os exaustores começaram a funcionar, motores cansados, roncando na parede. Os pistoleiros sentiram o ar se agitando e logo passando em seus rostos num movimento de sugar. Eddie recarregou o revólver (agora dele, pelo que lhe tinham dito) e deixou-o cair outra vez no coldre. Depois se aproximou dos mortos e empurrou quatro deles distraidamente para o lado, para poder alcançar a porta.

— Susannah! — chamou. — Suze, você está aí?

Será que algum de nós, exceto nos sonhos, espera voltar de fato a estar junto de seus amores mais profundos quando eles se afastam, mesmo que só por alguns minutos, para cumprir uma tarefa das mais banais? Não, de jeito nenhum. Cada vez que saem de nossas vistas, nossos corações os dão como mortos. Tendo recebido tanto, é o nosso raciocínio, como poderíamos esperar não sermos levados tão baixo quanto Lúcifer, pela tremenda presunção de nosso amor?

Por isso Eddie não esperava que ela respondesse, mas ela o fez... De outro mundo e através de uma simples espessura de madeira.

— Eddie? Docinho, é você?

A cabeça de Eddie, que segundos atrás parecia perfeitamente normal, ficara de repente pesada demais para segurar. Ele inclinou a cabeça contra a porta. Seus olhos também estavam pesados demais para se manterem abertos e ele os fechou. O peso deve ter sido por causa das lágrimas, pois de repente Eddie estava nadando nelas. Podia senti-las rolando pelas faces, quentes como sangue. E pôde sentir a mão de Roland, tocando nas suas costas.

— Susannah — disse Eddie, com os olhos ainda fechados. Tinha os dedos chapados na porta. — Pode abri-la?

Jake respondeu:

— Não, mas você pode.

— Qual é a senha? — Roland perguntou. Ele estivera alternando olhares para a porta com olhares para trás, quase esperando que o inimigo trouxesse reforços (pois seu sangue estava quente), mas o corredor azulejado continuou vazio. — Qual é a senha, Jake?

Houve uma pausa — breve, mas que pareceu muito longa a Eddie — e então ambos falaram juntos.

— Chassit — eles disseram.

Eddie não tinha forças para dizer aquilo; a garganta estava cheia demais de lágrimas. Roland não tinha esse problema. Tirou vários outros corpos da frente da porta (incluindo o de Flaherty, cujo rosto fixava no seu último rosnado) e falou a palavra. Mais uma vez a porta entre os mundos clicava e abria. Foi Eddie quem acabou por escancará-la e logo os quatro estavam de novo frente a frente, Susannah e Jake num mundo, Roland e Eddie em outro — entre eles uma membrana brilhantemente transparente, como mica. Susannah estendeu as mãos, que mergulharam entre a membrana. Foi como as mãos de alguém emergindo de uma vasilha d’água que tivesse sido magicamente virada de lado.

Eddie as pegou. Deixou os dedos de Susannah se fecharem nos seus e puxarem-no para Fedic.

 

No momento em que Roland atravessou, Eddie já tinha erguido Susannah e a segurava nos braços. Jake olhou para o pistoleiro. Nenhum deles sorriu. Oi sentou-se aos pés do garoto e sorriu pelos dois.

— Salve, Jake — disse Roland.

— Salve, pai.

— Vai querer me chamar assim?

Jake abanou a cabeça.

— Sim, se eu puder.

— Vou sempre gostar — disse Roland. E então, devagar... como alguém executando uma ação com a qual não está familiarizado... ele estendeu os braços. Olhando solenemente para Roland, jamais tirando os olhos do rosto dele, o menino Jake entrou no espaço entre as mãos do matador e esperou que elas se entrelaçassem em suas costas. Tivera sonhos com aquilo, sonhos que jamais se atrevera a contar.

Nesse meio-tempo, Susannah ia cobrindo de beijos o rosto de Eddie.

— Quase pegaram Jake — ela estava dizendo. — Sentei-me do meu ladoda porta... e estava tão cansada que cochilei. Ele deve ter me chamado três, quatro vezes antes que eu...

Mais tarde Eddie ouviria a história, cada palavra, até o fim. Mais tardehaveria tempo para palestrar. Por agora ele apenas lhe pôs a mão debaixodo seio — o esquerdo, para que pudesse sentir a batida forte, firmedo coração — e deteve sua fala com a boca.

Jake não dizia nada. Permanecia com a cabeça virada para que o rosto pudesse descansar contra o peito de Roland. Tinha os olhos fechados. Podiafarejar a chuva, a poeira e o sangue na camisa do pistoleiro. Pensou nospais, que estavam perdidos; no amigo Benny, que estava morto; no Père, que fora dominado por aqueles de quem, por tanto tempo, havia fugido. O homem que abraçava o traíra uma vez pela Torre, o deixara cair, eJake não poderia garantir que aquilo não ia acontecer de novo. Certamente havia quilômetros à frente e seriam difíceis. Por ora, no entanto, estava contente. A mente estava tranqüila e o coração magoado em paz. Era suficiente abraçar e ser abraçado.

Suficiente ficar ali com os olhos fechados, pensando: Meu pai veio me buscar.



* Referência ao livro de Twain A Connecticut Yankee in King Arthur’s Court (Um ianque do Connecticut no reino do rei Artur). (N. da E.)

*Crooner norte-americano, famoso nos anos 60. (N. da E.)

* Letra de uma famosa música de Little Richard, roqueiro dos anos 50. (N. da E.)

** O filme A canção da vitória. (N. da E.)

* Refere-se ao grito de guerra da torcida do time de futebol americano da Universidade de Alabama, Crimson Tide (Maré Rubra). (N. da E.)

* Conjunto musical norte-americano dos anos 60.

  

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