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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A ÚLTIMA CHANCE / Violet Winspear
A ÚLTIMA CHANCE / Violet Winspear

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A ÚLTIMA CHANCE

 

A paisagem daquela altura era deslumbrante. A estrada sinuosa contornava o morro e subia até o alto da montanha, de onde se tinha uma vista prodigiosa do mar. Donna Lovelace nunca estivera antes num local tão belo quanto aquele. O motorista do táxi, no entanto, parecia inteiramente alheio ao cenário majestoso. Buzinava em cada curva e lançava observações que Donna fingia compreender. O pouco italiano que ela sabia fora aprendido alguns dias antes, num curso intensivo, e não era suficiente para entender a linguagem do povo.

As encostas íngremes do morro estavam banhadas pelo sol da manhã e a impressão que se tinha era a de que os aspectos mais avançados da civilização haviam ficado para trás, juntamente com as terras cultivadas, vinhedos e plantações de oliveiras. Ali era o sul da Itália e a grandiosidade do espetáculo era ao mesmo tempo excitante e ligeiramente assustadora.

— Chegamos! — exclamou o motorista em dado momento. — Lá está a Villa Imperatore.

Era naquele fim de mundo que morava Serafina Neri, a célebre atriz de cinema? Donna imaginava que ela residisse num dos bairros estritamente privados de Roma, num palacete luxuoso, cercado por um belo jardim, com estátuas e fontes de mármore. Não havia dúvida, porém, que uma casa naquela região agreste era mais primitiva e mais romântica. De certa forma, condizia com as personagens que a ex-atriz interpretara nas telas do cinema.

O taxi contornou uma última curva no caminho e, logo adiante, Donna avistou um portão alto de ferro com um cadeado passado em volta. O motorista tocou levemente a buzina. Segundos depois o ca­seiro, vestido num uniforme cinza, saiu de uma pequena guarita e dirigiu-se ao portão, onde trocou algumas palavras em voz baixa com o motorista.

— Ele deseja ver seu passaporte, moça — disse o motorista, apro­ximando-se do carro.

— Ah, ele quer saber se eu sou eu mesma! — exclamou Donna, bem-humorada, retirando o passaporte da bolsa a tiracolo que levava consigo. A bagagem grande estava no porta-malas do táxi.

O caseiro examinou o passaporte com atenção e pediu a Donna para descer do táxi, a fim de poder comparar os dados que lá consta­vam com sua pessoa física. O exame era levado a sério, pelo visto. Não era qualquer um que entrava na mansão de Serafina Neri, pen­sou Donna com um risinho disfarçado.

Tinha a impressão de ter chegado a um castelo medieval, situado no alto de uma montanha desolada, onde residia a famosa princesa Serafina, que se afastara da sociedade e vivia num isolamento com­pleto, protegida por guardas particulares dos curiosos — e também dos sequestradores, uma ameaça constante para os milionários ita­lianos.

Terminado o exame, Donna atravessou o portão de ferro na com­panhia do caseiro de uniforme cinza. Permaneceu alguns instantes ali, parada, enquanto o caseiro revistava rapidamente sua bagagem para ver se ela não estava transportando nenhum artigo proibido — no pre­sente caso, máquinas fotográficas e gravadores de som.

O trabalho de secretária naquela casa isolada tinha certos aspectos insólitos, como podia observar. Ela cedera ao convite levada pela curiosidade de conhecer o sul da Itália. Além disso, seu pai trabalhara com Serafina em diversos filmes, na função de diretor de fotografia.

A atriz de cinema sempre demonstrara uma gratidão especial ao cineasta que a tornara tão bela e sedutora nos seus filmes, e ficou contente quando teve oportunidade de retribuir seu reconhecimento, escolhendo a filha de Richard Lovelace para sua secretária particular. Serafina tinha a intenção de escrever suas memórias sobre Hollywood e de publicá-las nos Estados Unidos. Por isso ela precisava de uma secretária que tivesse uma excelente redação em língua inglesa.

— Grazie — disse Donna quando o caseiro devolveu a bolsa a tiracolo.

O homem apontou em direção a um caminho arborizado que levava diretamente à casa, localizada um pouco mais acima, no alto da pe­quena ladeira. A alameda de pedras era encantadora. Os pássaros pulavam alegremente de galho em galho, as cigarras cantavam a ple­nos pulmões, as borboletas descreviam vôos rasantes sob os raios quentes do sol.

Pouco adiante, Donna avistou um pátio espaçoso, cercado de can­teiros e de uma profusão de plantas e trepadeiras. A casa não podia ser mais acolhedora, embora não seguisse o estilo tradicional italiano. As paredes de pedras estavam praticamente cobertas por heras e tre­padeiras. No centro da casa havia uma passagem em forma de arco que conduzia a um pátio interno, onde Donna tornou a avistar uma profusão de plantas raras e de flores de todas as cores. Havia azuis, roxas, lilás, amarelas, vermelhas muito vivas — enfim, uma infini­dade de tons. Bem no meio do pátio interno estava uma linda fonte de mármore com três bacias de pedra, onde a água que jorrava das bicas de bronze caía aos borbotões.

— Ah, que lindo! — exclamou Donna, deslumbrada com o espetáculo. — Che bello!

— Si, si — concordou o caseiro, balançando a cabeça com viva­cidade. No fundo, era um homem de bom coração, pensou Donna, mais tranquila. Apesar do revólver que carregava na cintura. — Andiamo, signorina.

O homem atravessou o pátio e foi dar numa porta de grade que havia no fundo de uma passagem. Puxou o cordão da campainha e, minutos depois, apareceu um criado de uniforme branco com botões dourados.

— Eu sou a nova secretária — explicou Donna. — A senhora está me esperando.

— Pois não, pode entrar — disse o criado, com um gesto de copeiro educado, habituado a receber convidados. — Vou levá-la a sua presença.

Ele apanhou as malas que o caseiro deixara na passagem e conduziu Donna por um corredor sombrio em direção à sala de estar onde Serafina costumava passar as manhãs.

A decoração não podia ser mais original e vistosa. Parecia a cópia exata de um cenário de filme. Os sofás e cadeiras de braços estavam cobertos de almofadas coloridas de seda e de veludo, e em toda parte havia peles de animais estendidas em cima do assoalho de tábuas largas.

— A srta. Donna Lovelace — anunciou da porta o copeiro para a mulher morena que estava reclinada num dos sofás da sala. As duas mulheres se observaram um instante em silêncio. A moça inglesa tinha cabelos louros e bem curtos; a italiana possuía formas opulentas, cabelos negros que caíam sobre os ombros, olhos verdes luminosos como os de um felino, a boca e o nariz perfeitos. Estava envolta num robe de chambre verde-jade de seda pura, na pose de uma odalisca.

Sem dúvida alguma, a ex-atriz italiana continuava sendo uma mu­lher belíssima e era muito natural que exercesse um grande fascínio sobre homens e mulheres, indistintamente. Reclinada no sofá de veludo grená, de costas para a janela, ela fumava um cigarro na ponta de uma piteira, com a serenidade de uma mulher que não se assusta dian­te de nada.

— Muito prazer em conhecê-la, minha querida — disse Serafina, com a voz melodiosa, a mesma voz rouca e acariciante que sussurrava palavras de amor nas telas dos cinemas do mundo inteiro. — Seu pai foi um grande amigo meu. Ele era um excelente diretor de foto­grafia e nós trabalhamos juntos em muitos filmes. Eu fazia questão de ser retratada por ele.

— Ele também era um grande admirador seu — disse Donna, com um sorriso de gratidão, notando que Serafina era muito mais humana do que parecia à primeira vista. Havia um calor nos olhos dela que conquistava imediatamente a simpatia. — Ele dizia sempre que você tinha mais classe. . . mais raça. . . que as outras atrizes com quem trabalhava.

As maçãs do rosto de Serafina incharam de alegria.

— Muito obrigada, querida. Fiquei muito abalada quando soube que seu pai morreu naquele horrível incêndio em Los Angeles. . . e imagino que foi uma perda muito grande e muito triste para você, sobretudo depois de perder a mãe quando criança. Mas o que se há de fazer? A vida é assim. As coisas acontecem quando a gente menos espera. . .

— É o destino — disse Donna, com um suspiro.

— Pois é. — Serafina ajeitou-se no sofá como uma gata que pro­cura uma posição mais confortável para ronronar. — Eu já expliquei na carta que lhe mandei qual será seu trabalho aqui. Não tenho muito conhecimento da língua inglesa e conto com sua colaboração na redação das minhas memórias. Este será um papel novo para mim e me ajudará a passar o tempo.

Donna sorriu ao se lembrar da enorme propriedade que Serafina possuía e de todas as coisas que ela podia fazer em suas horas livres Conhecer cada planta que nascia no bosque, cada ave que cantava nas árvores, todos os caminhos que cortavam a mata em diversas direções. Serafina porém só se sentia bem cercada dos objetos familiares, no conforto da sala de estar decorada com peles de animais selvagens e com almofadas estofadas de veludo. Provavelmente nunca lhe ocorrera que havia satisfação nas coisas simples da vida. Vivera tantos mos sob a luz dos refletores que perdera o sentido das coisas humil­des do cotidiano. Era por isso que desejava recordar minuciosamente as mil e uma noites do seu período de sucesso. . . os amores, os triunfos, as lágrimas.

— Sente-se ali, querida — disse Serafina, apontando para uma cadeira de braços. Donna sentou-se obedientemente e cruzou as pernas compridas e bem-feitas. — Você acha que vamos nos entender?

— Espero que sim. Confesso que simpatizei muito com sua ma­neira de ser e creio que vou me dar muito bem aqui.

— Em geral, as pessoas sensíveis se dão bem no sul da Itália. Há um clima de evocação romântica aqui, você não notou?

— Foi a primeira coisa que eu observei — disse Donna, com um sorriso.

— Por falar nisso, você deixou algum namorado na Inglaterra? Estou perguntando isso porque tenho a impressão de que nosso trabalho vai levar algum tempo. Tenho tanta coisa para contar, você nem faz ideia. . . Os anos passados em Hollywood, as pessoas interessantes que conheci, as histórias que ouvi. . . É um mundo de recordações que não termina mais. Infelizmente, você não poderá receber visitas enquanto estiver morando aqui. Faz parte do regulamento — concluiu Serafina, com um sorriso cativante.

— Entendo. No momento, não tenho nenhum namorado fixo. Mi­nha atenção está voltada exclusivamente para meu trabalho. A coisa que mais desejo é ganhar a vida num bom emprego.

— Ótimo. É exatamente disso que eu preciso. Uma jovem decidida a fazer carreira.

Serafina alisou as dobras do robe de chambre em cima das pernas com uma elegância estudada. Ela podia passar perfeitamente por uma mulher de trinta anos. Donna sabia, no entanto, por intermédio do pai, que Serafina já tinha passado dos quarenta. Era incrível, de qualquer forma, que continuasse tão conservada. A pele do rosto era lisa, esticada, e não desfazia em nada a boca sensual e deliciosa que os homens desejavam tanto beijar. . .

— Você sabia que eu tenho um filho de quase vinte e cinco anos? —perguntou Serafina em dado momento.

— Meu pai me falou a respeito do seu filho. Aliás, ele disse também que você era muito bonita, mas eu não fazia ideia de que fosse uma moça.

— Grazie. Quando a mulher nasce bonita, tem obrigação de cuidar de sua beleza, da mesma forma que cuida de um jardim ou de uma jóia preciosa. Eu raramente saio sem chapéu quando há sol, o que pode parecer inacreditável para uma moça ativa e enérgica como você. Além disso, não como nada que engorde, e não bebo nem mesmo um copo de vinho às refeições, embora às vezes prove um golezinho de licor. A comida italiana engorda muito. Evito por isso todas as massas e folheados e limito minha dieta a um regime de carne gre­lhada e verduras frescas. Eu passo por uma mulher muito vaidosa aos olhos dos outros, mas isso é exagero, se bem que eu seja às vezes caprichosa e cruel, quando estou de lua. Você acha que se dará bem comigo? Você não tem receio das pessoas temperamentais?

— Muitas vezes as pessoas de temperamentos diferentes se dão melhor do que as de personalidades semelhantes. Eu só lhe peço que você tenha um pouco de paciência comigo no início. Afinal, é a pri­meira vez que moro numa casa luxuosa como a sua, Serafina,

Donna ficou ligeiramente encabulada ao pronunciar em voz alta o nome da atriz famosa, considerada por muitos uma mulher divina, que nascera num bairro miserável da Sicília e que fora desejada e cobiçada pelos homens mais ricos do mundo.

Aos dezoito anos, Serafina casou-se com um homem que tinha o dobro de sua idade, com quem teve um filho. Após alguns anos de um relacionamento difícil, separou-se fisicamente do marido e dedi­cou-se de corpo e alma ao cinema. Na realidade, ela preferia receber a adoração dos homens e mulheres a distância, como uma verdadeira deusa da mitologia.

— Eu também simpatizei muito com você — disse Serafina, per­correndo-a de alto a baixo, sem cerimônia. — Você tem uma tona­lidade de cabelo muito bonita, uma pele maravilhosa e uma certa pos­tura da cabeça que me agrada. Você não é submissa. Eu detesto as pessoas que se inclinam diante de mim. Claro, gosto de ser admirada; contanto que seja uma admiração sincera, não uma simples bajulação. Eu tenho um guarda que toma conta da casa dia e noite, como você teve ocasião de ver. Sou uma mulher rica e os ladrões só pensam em roubar o que a gente custou tanto a ganhar. Sem falar nos outros, os mais audaciosos, que sequestram os milionários. Certa vez eles tenta­ram me sequestrar. Eu estava viajando de carro para Nápoles, onde ia fazer uma visita a minha irmã. Numa curva do caminho um bando de motociclistas cercou nosso carro. Felizmente, eu estava com meu guarda-costas, que me defendeu com unhas e dentes. Esses bandidos odeiam o trabalho honesto e roubam sem o menor escrúpulo aqueles que suaram para ganhar o que possuem.

— Que horror! Mas tudo terminou bem?

— Felizmente. Só meu guarda-costas recebeu um ferimento no braço.

Serafina reclinou-se no sofá forrado de pele de zebra e permaneceu um instante em silêncio, com os olhos cerrados.

— Ainda bem que não houve nenhum acidente mais grave — co­mentou Donna em voz baixa, na dúvida se devia guardar silêncio ou dizer alguma coisa.

— Graças a Deus. Eu trabalhei como uma escrava, a vida inteira, para ganhar tudo isso que você está vendo. É esse o suor do meu rosto, é isso que vou narrar nas minhas memórias. Vou falar também dos atores interessantes que conheci nos estúdios de Hollywood. Tenho certeza de que você vai gostar do trabalho, querida. Você vai ficar admirada com as aventuras que me aconteceram quando eu tinha sua idade. Uma pergunta. Você tem um amante?

— Não, não tenho — respondeu Donna, corando com a fran­queza da pergunta. — Tive alguns namorados, mas nunca chegamos às últimas consequências. . .

— Entendo o que você quer dizer! — exclamou Serafina, com uma risada divertida. — Pensei que as inglesas fossem mais livres que as italianas. Ou é você a diferente?

— Pode ser.

— Você não encontrou ainda nenhum homem que mexesse com seu coração? Ou você possui princípios morais como as moças de antigamente?

— Olhe, para falar a verdade, eu não encontrei até hoje nenhum homem que me fizesse perder a cabeça — confessou Donna. — Além disso, trabalho como uma doida desde que terminei os estudos e não tenho muito tempo para fazer programas com rapazes.

Donna não apreciava especialmente este tipo de conversa, mas lem­brou que Serafina era uma mulher solitária que tinha necessidade de abordar assuntos íntimos com outra mulher, especialmente com uma inglesa que pertencia a uma cultura bem diferente da sua. O sul da Itália, pelo que ouvira dizer, era uma região extremamente conservadora em questões sexuais.

— Você é graciosa e tem tudo para agradar aos homens — comen­tou Serafina, examinando-a atentamente. — Eu não diria que você é exatamente uma beleza, mas há alguma coisa em sua personalidade que chama imediatamente a atenção. Seus cabelos louros são naturais? Eu pergunto isso porque estou vendo que você tem as pestanas cas­tanhas.

— Eu nunca tingi os cabelos.

— Isso é sinal de franqueza. Acho que vou me dar bem com você. Eu me entendia às mil maravilhas com seu pai. Nós costumá­vamos lanchar juntos nos intervalos das filmagens. Naquela época eu não corria tanto perigo quanto hoje de adquirir uns quilinhos extras. Imagine você que eu comia cachorro quente com mostarda! Você não faz ideia de como eram gostosos aqueles sanduíches. O pão vinha quentinho da padaria. Seu pai ia buscar para mim. Ele era um anjo. Fazia todas as minhas vontades.

— Papai era um amor. Acho que é por isso que eu custo tanto a aceitar os outros homens.

— Isso é inevitável. Eu também gostava muito do meu pai. Por sinal, vou contar tudo isso na minha autobiografia. Ele morreu quando eu era criança e fui criada por minha mãe. Como era uma garotinha muito sapeca, os meninos não me deixavam em paz. As meninas sicilianas se desenvolvem cedo, devido ao clima quente do Mediterrâneo, e algumas se casam no fim da adolescência, como eu, por exemplo. Meu marido tinha um coração de ouro, mas a vida que levava era muito parada para o meu gosto. Na primeira oportunidade, resolvi sair de casa. — Serafina estendeu a mão aberta em cima do sofá e os anéis cintilaram nos dedos roliços. — Esse foi o início de minha carreira. Eu me candidatei a um concurso de beleza, tirei o primeiro lugar e fui convidada para trabalhar num filme rodado no interior da Itália, numa plantação de arroz. Ah, foi tão divertido! Tão diferente da vida miserável que eu levava na Sicília. Apostei toda a minha exis­tência naquele filme. . . e ganhei!

— Você teve muita coragem!

Não fora somente a beleza que seduziu o público. Serafina tinha uma personalidade fascinante que conquistava homens e mulheres, indistintamente.

— Pois é — murmurou Serafina, com um suspiro de saudade. — E você, Donna, tem outros irmãos? Seu pai e eu nunca abordamos a vida de família.

— Eu sou filha única. Gostaria muito de ter uma irmã, mas papai não tornou a casar depois que mamãe morreu.

— É pena, porque é bom ter uma irmã da mesma idade para se trocar confidências. — Serafina levantou-se do sofá com um gesto lânguido. — Venha comigo, querida, vou lhe mostrar a casa. Depois o criado vai acompanhá-la até seu quarto. Você deve estar exausta da viagem. Você veio de avião ou de trem?

— De trem. Tomei o expresso Paris-Roma e atravessei os Alpes. A paisagem é deslumbrante. Fantástica! Nunca vi nada igual na mi­nha vida. Os picos cobertos de neve... os lagos muito azuis. . .

— Como você aguenta viajar de trem, Virgem Santa? Os trens andam apinhados de gente, como sardinhas em lata. O que você fez em Roma? Foi ao teatro?

— Visitei alguns lugares antigos. Depois fui à Fonte de Trevi e atirei uma moeda na água.

— E fez um pedido?

— Fiz.

— Ah, você também é supersticiosa! Eu também fiz um pedido quando fui a Roma pela primeira vez. E meu pedido foi atendido.

— Que bom!

— E o seu, se não for indiscrição perguntar?

— Não sei ainda — disse Donna, com uma risada.

— Aposto que você pediu para encontrar um homem rico e bonito, por quem se apaixonasse à primeira vista!

— Quem sabe!

— Roma, non basta una vita — disse Serafina. — É a cidade mais fascinante do mundo, onde a felicidade consiste em sentar-se à mesa de um bar, beber um vinho branco e observar as pessoas que passam na calçada. Você viu o pôr-do-sol na Basílica de São Pedro?

— Não deu tempo. Eu só fiquei um dia e uma noite.

Donna não podia contar a Serafina a aventura fascinante que fora a noite passada em Roma. O céu parecia um imenso lago azul no momento em que o sol mergulhou no horizonte. Ela jantara no hotel e fora tomar café na piazza, perto da fonte Bernini. Mais tarde, tomou uma charrete e foi ao Coliseu admirar a arena iluminada pela lua cheia. Ali, muitos e muitos anos atrás, os cristãos eram devorados cruelmente pelos leões, para divertimento do público romano.

Donna estava distraída, admirando as ruínas da imponente construção romana, quando ouviu passos atrás de si. Alarmada com a presença de um desconhecido naquele local deserto, seu primeiro im­pulso foi fazer meia-volta e descer correndo a escadaria. No instante seguinte, porém, antes que levasse a cabo seu intento, foi abordada gentilmente por um homem alto, de bela aparência, que segurava o casaco em cima dos ombros. Ele estava ofegante, como se tivesse subido correndo os degraus da escada. Sua pele era morena e seus olhos pretos brilhavam na escuridão como ônix.

— O que você está fazendo aí sozinha, a uma hora dessas? Não tem medo de ser assaltada?

Donna estava muito assustada para responder. Lembrou-se vaga­mente de ter visto aquele homem no dia anterior, no hotel onde estava hospedada. Ele estava sentado numa mesa próxima à sua e o que chamou sua atenção foi o brinco de ouro que usava na orelha, por baixo dos cabelos negros.

— O que você veio fazer aqui? Ouvir a gritaria da multidão quan­do os leões são soltos na arena?

Donna sorriu sem querer. Era exatamente isso que ela tinha evo­cado alguns minutos antes.

— Como você adivinhou?

— Feche os olhos e você vai ouvir os rugidos dos leões no ins­tante em que saltam sobre as vítimas.

— Ah, você está querendo me assustar!

Havia alguma coisa na presença do desconhecido que a atraía mes­mo contra a sua vontade. Ele era o exemplo mais perfeito do italiano que já tivera ocasião de ver durante sua viagem. O rosto másculo parecia ter saído diretamente de uma pintura do Renascimento. Os traços puros, nitidamente iluminados pelo luar, eram bem definidos e regulares. A despeito do temor inicial, ela continuou observando-o, fascinada, sem se mover dali. Uma sensação esquisita percorreu seu corpo inteiro, fazendo-a tremer de frio. Havia uma qualidade mag­nética nos olhos escuros, no nariz reto, afilado, na curva sensual da boca.

— Só as pessoas sensíveis têm consciência do passado. Você veio aqui pela mesma razão que eu. Para ouvir os ecos do passado.

Donna estremeceu ao escutar aquelas palavras, que correspondiam exatamente à sua intenção. Ela subira ao alto do Coliseu para prestar uma homenagem póstuma aos cristãos, homens e mulheres, que ha­viam perecido na arena, devorados pelos leões. Tudo era possível nu­ma noite como aquela. O luar banhava a arena que fora manchada numa outra época pelo sangue dos inocentes.

— Como você se chama?

— Meu nome é segredo.

— Mas você é romano?

— Não, sou siciliano. Você acredita na ressurreição dos mortos? Ou acha que isso é uma ideia puramente pagã?

— Eu nunca pensei seriamente nisso — disse Donna, descendo os degraus da escada em direção à charrete que estava parada na praça.

Havia um baile a fantasia naquela noite no salão do hotel. Donna ficou animada com a ideia de ir à festa, sobretudo porque era a única noite que passaria em Roma. Mas como faria para arrumar um acom­panhante àquela hora? Ela estava indecisa, na porta do salão, quando foi abordada por um homem.

— Você me dá o prazer de sua companhia?

Donna voltou-se, surpresa, e reconheceu no mesmo instante o homem alto, de pele morena, que encontrara no alto do Coliseu. Ele estava com uma fantasia de Arlequim e uma máscara de seda pas­sada em cima dos olhos.

— Você, de novo?

Ele segurou-a pelo pulso com firmeza.

— Venha comigo. A noite está no início. Vamos dançar esta mú­sica em homenagem a Rodolfo Valentino.

No instante seguinte, Donna estava abraçada ao homem moreno, de máscara no rosto, rodopiando no meio do salão ao som de uma valsa romântica. Ela perdeu completamente a noção das horas. Quan­do voltou a si do seu devaneio, a orquestra estava se preparando para descer do tablado.

— Vamos ao terraço respirar o ar puro da noite — disse o homem, puxando-a pela mão em direção à porta alta que conduzia a um ter­raço espaçoso, repleto de vasos de plantas.

Apoiada ao parapeito de pedra, Donna ouviu fascinada as histó­rias que o desconhecido contou sobre o sul da Itália, como se estivesse vivendo um sonho interminável, que se prolongava há horas. Não ficou sabendo, porém, como o desconhecido se chamava. Antes de se des­pedirem, contudo, ele convidou-a para tomarem café juntos na manhã seguinte. Em seguida, beijou cerimoniosamente sua mão, agradeceu as horas agradáveis passadas em sua companhia e afastou-se a passos rápidos.

Na manhã seguinte, no entanto, o desconhecido não apareceu à hora marcada. Ela encontrou apenas uma rosa branca e um bilhete em cima da mesa.

"Na Itália, é costume a gente dizer: Che será, será. Um dia voltare­mos a dançar novamente, sem as máscaras. Adeus."

O bilhete não tinha assinatura, mas a rosa era absolutamente branca, um botão que estava começando a abrir. Donna sabia o que isso sim­bolizava para o italiano que entrara na sua vida de uma maneira tão estranha e que se afastara dela sem dizer ao menos seu nome.

— Você gostou de Roma? — perguntou Serafina.

— Adorei. É belíssima, se bem que seja um pouco triste também.

— Ah, você é igualzinha a seu pai! Ele também achava Roma um pouco triste para seu gosto. — Serafina fez sinal para o copeiro que estava no hall da frente, espanando os móveis. — Até mais tarde, querida. Enrico vai acompanhá-la até seu apartamento. O jantar é às oito.

Donna despediu-se de Serafina e acompanhou o copeiro até o andar de cima. O filho de Serafina morava naquela casa ou na cidade? Pelo que entendera, havia mais pessoas para o jantar. Talvez houvesse ou­tros hóspedes na casa, hóspedes latinos que costumavam descansar à tarde, ao contrário dos ingleses, que aproveitavam os dias de sol para jogar tênis e nadar na piscina.

Ao entrar no quarto, Donna tirou os sapatos e pisou no tapete macio que cobria as tábuas largas do assoalho. Os móveis do quarto eram de uma madeira escura, que lembrava jacarandá, inclusive o estrado da cama de casal. As cortinas e a roupa de cama eram de tecidos estampados, ao gosto vistoso dos italianos. Na parede havia lâmpadas de cobre, em lugar das arandelas habituais de metal amarelo. Era a primeira vez que Donna morava num casarão perdido no meio do mato e ela se sentiu ligeiramente apreensiva, como se aquilo fosse uma aventura excitante e perigosa ao mesmo tempo.

Da sacada do quarto tinha uma vista panorâmica das montanhas azuladas no horizonte. Serafina escolhera um local inteiramente iso­lado para defender-se das agressões do mundo. Vivia ali como uma princesa árabe, cercada de conforto e de pessoas amigas. Tinha inclu­sive uma milícia particular para protegê-la dos intrusos. Não havia dúvida de que a ex-atriz era uma figura fascinante, como também prometia ser seu livro de memórias.

Donna sentiu uma alegria antecipada com a perspectiva de colabo­rar na redação da obra e chegou à conclusão de que ia adorar a estada no sul da Itália. O episódio ocorrido no alto do Coliseu voltou a povoar sua imaginação de ideias românticas sobre a Itália e os italianos. Levou a mão à garganta e sentiu a veia pulsar com rapidez ao lembrar-se do homem alto e moreno que conhecera em Roma.

No salão de baile, sob os lustres de cristal, o brinco de ouro que o homem usava na orelha, por baixo dos cabelos negros, lembrava a aliança que cintilava no dedo de uma mulher.

Quem era ele? Ela o encontraria de novo? A única coisa que sabia a seu respeito é que era originário da Sicília, a ilha encantada dos limoeiros e das laranjeiras em flor. . . e da vingança implacável.

 

Donna conheceu os outros membros da casa naquela noite. Era como tinha imaginado: havia diversos hóspedes na Villa Imperatore, homens e mulheres, de diversas idades e classes sociais. Estavam porém tão entretidos na conversa que não prestaram muita atenção na secretária inglesa quando ela entrou no salão. Embora Donna conhecesse um pouco o italiano, sentiu-se meio perdida entre os con­vidados da casa.

No momento, em que um rapaz dirigiu-se a ela, Donna adivinhou imediatamente que devia ser Adone, o filho único de Serafina. Adone tinha olhos verdes, cabelos castanhos e um feitio de rosto admiravel­mente bonito, embora fosse marcado por pequeninas rugas que de­viam ser causadas mais pelos prazeres do que pelo trabalho. Ele lançou a Donna um sorriso cativante e ela teve uma reação de curio­sidade ao conhecer a filho único de Serafina, que ela deixara aos cuidados do pai quando partira de casa para tentar a sorte em Hol­lywood. Agora que a mãe era uma mulher rica e famosa, Adone preferia a companhia dela à do pai.

Donna não devolveu o sorriso que Adone lhe dirigiu de longe. Em vez disso, examinou-o com atenção, friamente. O rapaz sabia natural­mente que ela era a secretária da mãe e imaginava que uma parte de suas obrigações era ser agradável a ele.

Adone fitou-a de relance e percebeu sem muita dificuldade que Donna era inexperiente em questões de etiqueta, apesar de seus vinte e poucos anos. Comparada com as outras mulheres da sala, que estavam vestidas na última moda, os trajes de Donna eram de uma terrí­vel simplicidade. Não usava jóias nem acessórios caros.

— Como são bonitos os seus cabelos — disse Adone com natura­lidade. — Sua pele é macia e lisa como um pêssego. Posso beijá-la?

— Não!

— Por quê? Aqui todo mundo se beija.

— Se você me beijar, não me responsabilizo pelo que possa acon­tecer.

— Nossa, quanta violência! Pelo jeito, você não é uma lourinha água-com-açúcar, apesar dos seus olhos azuis. O que você vai tomar?

— Estou percebendo que os rapazes italianos são tremendamente seguros de si mesmos. Isso é devido à educação?

— Talvez.

— Ou ao fato de que os meninos são muito mimados pela mãe c pelas tias quando pequenos?

— Você não gosta de criança?

— Gosto muito, só que na Inglaterra os meninos e as meninas são tratados da mesma maneira. Os meninos não crescem com a ideia de que as meninas estão sempre caidinhas por eles e que de­vem ser suas escravas o resto da vida.

— Você não acredita no amor à primeira vista?

— Não muito.

— Em geral, as inglesas que vêm à Itália estão loucas para encon­trar um namorado italiano.

— Pois eu vim aqui para trabalhar. E aceitaria de boa vontade uma bebida gelada. Estou morta de sede. De preferência um suco de laranja.

— Está vendo? Você é inocente de coração. Todas as mulheres na sala estão bebendo uísque ou campari. Só você pede um suco de laranja. Quais são os ingredientes, exatamente?

— Só laranja. Mais nada. Como você pensava que era feito? Com alguma bebida exótica?

— Quem sabe? Talvez uma gotinha de marasquino. . .

— Nem isso. Como lhe disse antes, sou uma secretária eficiente, que gosta do seu trabalho.

— Estou vendo. Talvez nosso clima latino vá derreter o gelo do seu coração. Enquanto isso, vou buscar sua bebida. Não saia daqui!

— Prometo que não vou fugir por sua causa. Você não me assusta N esse ponto.

Adone afastou-se em direção ao bar com a elegância dos italianos, convencido de sua beleza. Donna, porém, não tinha a intenção de perder seu belo emprego por causa de um flerte inoportuno. Serafina era uma mulher possessiva e ciumenta, a quem não devia agradar a ideia de que o filho namorasse sua secretária.

Por falar nisso, Serafina não estava na sala. Talvez aguardasse a chegada dos outros convidados para fazer uma entrada espetacular. Afinal, ela tinha sempre que brilhar, mesmo na sua própria casa.

De fato, minutos depois Serafina entrou no salão com um vestido de tafetá em diversas tonalidades de cinza-prata, que mudava de cor quando ela caminhava. Tinha um colar de diamantes no pescoço, acompanhado de brincos e pulseira do mesmo desenho. Um suspiro de admiração percorreu a sala quando ela cumprimentou os convidados. Donna no entanto deu uma exclamação abafada por uma razão bem diferente.

Ela reconheceu imediatamente o acompanhante da dona da casa, que estava vestido a rigor, com uma camisa cor de vinho no lugar da camisa branca tradicional de peito duro. Identificou-o no mesmo instante pela fisionomia máscula, o porte ereto, a vitalidade que irra­diava de sua pessoa.

Ela experimentou a mesma reação inquietante do primeiro encon­tro, quando cruzou com ele na escadaria do Coliseu, em Roma, e pensou sair rapidamente da sala, antes que o homem a reconhecesse. Ia pôr em prática seu plano de fuga quando um copo gelado foi colo­cado gentilmente em sua mão.

— Seu suco de laranja.

— Ah, muito obrigada.

— A beleza de mamãe sempre me surpreende. Afinal, ela está com mais de quarenta anos.

— O que é isso!

— Claro. Eu sou filho dela. Que idade você acha que eu tenho?

— Uns vinte e dois.

— Eu tenho vinte e quatro anos. Você quer mais açúcar?

— Não, obrigada. Está ótimo assim.

Ao partir de Roma, Donna tinha a impressão de que nunca mais encontraria o italiano alto e moreno que lhe dirigira palavras tão evocadoras no alto do Coliseu. De repente, quando menos esperava, tor­nava a encontrá-lo em casa de Serafina, na condição de seu acom­panhante! De novo ela sentiu um arrepio esquisito ao avistar o brinco de ouro que o homem usava na orelha, por baixo dos cabelos negros.

— Quem é? — perguntou, sem conter por mais tempo a curiosi­dade.

Adone acompanhou a direção do olhar dela e avistou o italiano que olhava em volta de si e cumprimentava um a um os convidados da casa. Muito em breve os olhos dele encontrariam os dela e Donna tremia só de pensar nessa possibilidade.

— Aquele homem alto com brinco na orelha?

— É.

— Rick Lordetti. É o guarda-costas de Serafina e um dos homens mais invejados da Itália. Ela confia mais nele do que no seu confessor.

— Guarda-costas? — repetiu Donna, perplexa. — Ele mora aqui?

— No melhor quarto da casa. Ele passou a semana em Roma, numa viagem de negócios. Durante sua ausência, mamãe não dorme à noite, com medo de ser assaltada. Aliás, ela só se sente segura na companhia de Rick. Eu já me ofereci para lhe fazer companhia, mas ela achou graça. Evidentemente, eu não sou campeão de tiro, muito menos um assassino.

— Assassino?

No momento em que Donna fez a pergunta, boquiaberta, Rick vol­tou a cabeça na sua direção. Entretanto, o olhar de reconhecimento que ela aguardava com ansiedade transformou-se num mero aceno educado. Rick percorreu-a rapidamente com a vista e passou adiante.

— É, isso mesmo. Assassino. Por que você ficou branca de repente?

— Não é possível. Rick Lordetti. . .

— Você não precisa ter medo dele, garota. Basta ignorar sua pre­sença na casa. Ele janta conosco porque mamãe se sente mais tran­quila quando ele está por perto. Ela tem um pavor mórbido de ser sequestrada, ou de cair nas mãos de um tarado sexual que poderá abusar dela. E como ela não confia em mais ninguém a não ser no seu guarda-costas, Rick está sempre por perto. Aliás, verdade seja dita, Rick é estupidamente corajoso. Há alguns meses recebeu uma tacada no braço e nem gemeu. E olhe que a dor deve ter sido terrível. Mesmo assim, fugiu dos assaltantes dirigindo o carro a toda velocidade pelas estradas do litoral, que são cheias de curvas, e salvou minha mãe das mãos de um bando de sequestradores, que estavam armados até os dentes. Uma coisa é verdade: Rick é absolutamente fiel, como um cão de estimação.

Donna apertou com força o copo de laranjada que segurava. Ela desconfiara na primeira noite em Roma que Rick tinha algo de sinistro na personalidade. Mas nunca podia imaginar que fosse um mar­ginal, aceito na sociedade por uma das atrizes mais famosas do cine­ma. Um homem que vivia perigosamente e que prezava acima de tudo a lealdade que dedicava à sua protegida.

— É estranha a atração que mamãe exerce sobre os marginais — comentou Adone com uma entonação divertida da voz. — Eles não resistem ao seu fascínio de estrela...

— Como esse mundo é pequeno! — murmurou Donna, como se pensasse em voz alta.

— O que você disse?

— Nada. Bobagem.

No outro lado da sala, Rick parecia indiferente a todos os pre­sentes, com exceção da mulher elegante que se voltou nesse instante para fazer um comentário. Rick respondeu com um sorriso educado. Embora Serafina estivesse de sapatos de salto alto, Rick era bem mais alto que ela. Na realidade, ele era surpreendentemente alto para a média dos italianos, além de ter ombros largos e o pescoço musculoso de um touro.

— Rick é regiamente pago para proteger mamãe — comentou Adone, com um leve despeito. — Mas eu o mataria sem dó nem piedade se os boatos que correm a seu respeito fossem confirmados.

— Que boatos?

— Dizem que ele é o amante de Serafina.

O jantar foi servido numa sala repleta de obras antigas que deviam valer uma fortuna. Um lustre de cristal estava preso no teto por uma corrente de prata e os suportes das lâmpadas eram rendilhados como peças de colecionador. Em cima da mesa de mogno estavam arranjos belíssimos de flores, garrafas de vinho de diversas marcas e procedências, talheres de prata e louças de porcelana francesa. Ao lado de tantos homens e mulheres morenas, Donna parecia muito branca e muito loura. E também muito pouco à vontade.

Adone fez-lhe companhia durante o jantar. Ela tinha que tomar muito cuidado para não dar liberdades excessivas ao dono da casa. Uma ou duas vezes, Donna surpreendeu o olhar frio que Serafina lançou aos dois da outra extremidade da mesa.

Donna, por seu lado, volta e meia dirigia o olhar para o homem que estava sentado na cabeceira da mesa, ao lado de Serafina. Ele raramente tomava parte na conversa. Limitava-se a sorrir de tempos em tempos, quando ouvia algum comentário divertido, e parecia atento às suas obrigações profissionais, que eram proteger a mulher que lhe fazia esquecer as demais mulheres presentes na sala. Os olhos dele atravessavam Donna de lado a lado, sem se demorar; ela se sentia magoada e, ao mesmo tempo, indignada com a atitude insolente do italiano. Afinal, os dois tinham conversado intimamente nas duas vezes que se encontraram em Roma. Como ele podia ignorá-la a esse ponto na presença dos outros?

A verdade, porém, é que o olhar carinhoso de antes se transfor­mara num relance breve e insolente, como se ele nunca houvesse estreitado nos braços a moça inglesa, de cabelos louros, que conhe­cera no alto do Coliseu. A rosa branca que ele lhe dera, na manhã seguinte, continuava guardada nas páginas de um livro.

Serafina sabia que Rick namorava outras mulheres quando ela virava as costas? Ou será que ele fingia ignorar a presença de Donna para não despertar ciúmes em Serafina? Donna ouvira contar que Serafina arruinara a carreira de muitas rivais que ousavam disputar um homem com ela — isso quando ela estava no auge da fama.

Donna finalmente afastou o olhar do rosto indiferente do italiano. Embora a comida estivesse maravilhosamente preparada e servida, ela mal provou o que lhe puseram no prato. Preferiu conversar com Adone. Entretanto, durante todo o jantar, uma dúvida torturou sua imaginação: Rick era de fato o amante de Serafina, como diziam as más-línguas?

Levou um susto quando alguém se inclinou sobre a mesa, na sua frente, e lhe dirigiu uma pergunta com a voz clara:

— Você também trabalha no cinema, bionda bella, ou faz apenas comerciais para a televisão?

Seu interlocutor tinha um jeito de falar que correspondia exata-mente à sua aparência afetada. Estava vestido a rigor, com uma gra­vata borboleta de seda e uma camisa rendada cor-de-rosa.

— Não, eu não sou atriz de cinema nem de televisão — respon­deu Donna, com um sorriso sem graça. — Sou a secretária de língua Inglesa que Serafina contratou.

— Não me diga! — exclamou o homem, com um risinho, olhando em volta de si. — Que atitude democrática a de Serafina! Convidar uma secretária para jantar na mesma mesa que os hóspedes da casa. Será que a influência dos comunistas chegou até aqui? Ou tem algum Mafioso envolvido nisso?

As pessoas que estavam em volta riram educadamente com o co­mentário irônico do homem afetado. Na cabeceira da mesa, contudo, seu rosto moreno voltou-se subitamente naquela direção e Donna estremeceu de prazer quando Rick encarou severamente o homem de camisa cor-de-rosa. Nenhuma palavra foi dita, nenhum gesto foi feito, mas Donna percebeu que o homem foi atingido em cheio pelo olhar severo de Rick.

Ele largou o guardanapo engomado que segurava na mão, de uma maneira efeminada, e apanhou com nervosismo o copo de vinho que estava à sua frente. O copo escorregou por entre os dedos trêmulos e o líquido vermelho respingou sobre a toalha rendada. Um criado acudiu às pressas e enxugou a toalha com um pano. Trocou em se­guida o copo de vinho e pôs a mesa em ordem. Tudo isso não levou mais que alguns segundos.

Entretanto, por baixo das pestanas compridas, Donna viu Serafina inclinar-se para o lado e murmurar alguma coisa no ouvido de Rick. Os lábios dele se moveram num sorriso sardônico e Donna compreen­deu naquele instante que Serafina era bem capaz de despedir todos os seus convidados de uma hora para a outra se lhe desse na telha. Com exceção do homem moreno que estava ao seu lado, todos os demais eram meras distrações de suas horas de ócio.

— Meu caro conde, preste atenção ao que você diz diante de Rick. A avó dele era uma bruxa siciliana e ensinou ao neto alguns passes de magia. Recomendo também que você não pronuncie o nome da Máfia diante de Rick. Ele e a Máfia são inimigos mortais. Rick pode perder a paciência se suspeitar que alguém o está acusando de ser membro dessa organização criminosa.

O conde corou até as orelhas com as palavras de Serafina. A boca pequena tremeu como se ele fosse explodir numa crise de choro. Não era de admirar que Serafina preferisse ter como guarda-costas um siciliano do calibre de Rick a um nobre efeminado da velha gera­ção. De certa forma, Serafina e Rick eram as duas faces da mesma moeda. Os dois tinham a personalidade exuberante e bem definida dos antigos imperadores romanos. Donna engasgou quando viu Sera­fina colocar possessivamente a mão em cima do braço de Rick, como se dissesse: -"Este homem é meu. Ele é meu criado e meu amo".

As fruteiras de prata foram trazidas à mesa nesse momento, junta­mente com uma jarra de creme fresco que acompanhava os moran­gos vermelhos e deliciosos, colhidos na horta.

— Você não tem medo de engordar? — perguntou Adone, com uma expressão divertida ao ver Donna servir-se generosamente de morango com creme de leite e açúcar.

— Não, nem um pouco — respondeu Donna, com um sorriso de gula.

— As italianas são insuportáveis com a mania que têm de emagre­cer. Você, felizmente, é magra por natureza.

— Você não ouviu dizer que as secretárias passam fome? Eu aproveito para comer o que gosto quando posso. Aliás, eu adoro creme fresco.

— Esse creme é batido aqui em casa. O leite gordo é de nossas vacas estabuladas. Mamãe tem um sítio perto daqui. Um dia eu vou levar você lá para conhecer nossa criação. Temos vacas, cavalos, patos, gansos, galinhas. . . Você gosta de andar a cavalo?

Adone, pelo visto, vivia no mesmo mundo irreal que Serafina. Não parecia lhe ocorrer que Donna era uma empregada da casa que tinha uma obrigação a cumprir.

— Escute, meu bem, eu vim aqui para trabalhar. Não sou uma hóspede da casa, para passar o dia na piscina, tostando ao sol. Além disso, sua mãe não veria com bons olhos uma amizade entre você e eu. Nós somos de mundos diferentes. Está claro agora? Num certo sentido, eu concordo com a opinião do conde. . . eu devia comer na copa, com os demais criados da casa.

— Neste caso, com quem eu conversaria? — perguntou Adone, com expressão divertida. — Você já reparou nas pessoas que estão na mesa? Somente mulheres casadas, chatíssimas por sinal, que só pensam em encontrar um amante para se distrair do marido e dos filhos.

— Está bem. Você tem toda razão, mas eu não sou a pessoa indicada para acompanhá-lo nos seus programas. Notei que sua mãe é uma mulher ciumenta e ela pode muito bem achar que eu estou querendo namorar você.

— E daí?

— E daí que eu perco meu emprego, bolas!

— Se mamãe não queria que isso acontecesse, devia ter contratado uma secretária velha e feia, e não alguém com essa pele macia de pêssego.

Quando Adone se inclinou para o lado, a fim de roçar os lábios na boca dela, Donna afastou bruscamente a cabeça e lançou um olhar de relance para a cabeceira da mesa, onde estavam Serafina e seu guarda-costas. Notou que Rick observava atentamente os dois por baixo das sobrancelhas espessas que faziam sombra em redor dos olhos negros. Pelo visto, ele não se esqueceu de mim!, pensou Donna, com o coração batendo a toda. Ela abaixou a cabeça sem jeito e teve a sensação de que os dois eram cúmplices de uma conspiração. Serafina não podia saber, em hipótese alguma, que eles se conheciam!

Era isso o que Rick desejava? Ter uma aventura clandestina com a secretária inglesa que fingia ignorar na frente dos outros? Indignada e decepcionada com esse pensamento, Donna dirigiu a Rick um olhar de desprezo. Ele porém limitou-se a encostar as costas na cadeira e a franzir os lábios com um sorriso imperceptível de ironia. Quando Serafina voltou a cabeça para o lado e comentou alguma coisa em voz baixa, a atenção dele tornou a se dirigir exclusivamente para ela.

Ah, ele que vá para o inferno!, pensou Donna, furiosa. Como ele ousava piscar o olho quando Serafina virava as costas? Tomada subi­tamente de raiva, Donna voltou-se completamente para Adone e, du­rante o resto da noite, não dirigiu mais uma só vez o olhar para Rick e Serafina. Adone recebeu com alegria sua atenção e seus sorrisos.

No salão, os tapetes foram enrolados; os hóspedes e convidados dançaram até tarde ao som do equipamento estereofônico. Donna estava tão animada quanto os demais convidados. Dançou várias vezes com Adone e com os outros rapazes a quem foi apresentada. As músicas mais tocadas eram recordações da época em que Serafina brilhava como estrela nos estúdios de Hollywood. Uma delas, em particular, agradava muito a Donna por sua melodia lenta e nostálgica. Em dado momento, porém, um dos seus pares tentou beijá-la na boca e Donna sentiu-se na obrigação de pisar com força no pé do italiano atrevido, a fim de deixar bem claro que ela não era nenhuma boboca que estava à disposição de qualquer um. O rapaz resmungou uma desculpa em voz baixa e saiu à procura de uma outra jovem mais acessível. Donna aproveitou para respirar o ar fresco da noite no terraço descoberto que dava para o jardim. Estava cansada e zonza com a atmosfera, esfumaçada do salão. Tanto mais que tinha dançado a noite inteira sem parar e que quebrara a cabeça para conversar com os rapazes que não falavam inglês. Era gostoso estar sozinha durante alguns minutos. Com um suspiro de alívio, apoiou-se no parapeito do terraço e aspirou o ar perfumado da noite.

Levou alguns segundos para notar que havia outro aroma por perto, além do perfume dos jasmins e das damas-da-noite que vinha do jardim. Era o cheiro penetrante e adocicado de fumo turco. Instin­tivamente, voltou a cabeça na direção onde as sombras eram mais espessas. E ali, entre as lufadas de fumaça, avistou um vulto alto e o brilho da ponta do cigarro aceso.

Rick, pelo visto, refugiara-se ali para fumar tranquilamente e ia pensar que ela estava correndo atrás dele quando, na realidade, Donna procurava evitá-lo a todo custo.

Ela fez menção de voltar para o salão, quando a voz dele a deteve.

— Não vá embora. Eu preciso falar com você.

— Você só pode conversar comigo no escuro?

— Não seja agressiva! Vou lhe explicar por que é preferível man­ter em sigilo nossa amizade. Sei que você precisa desse trabalho e, para conservá-lo sem problema, é melhor que ninguém saiba que somos conhecidos de outra parte.

— Por quê? Por que temos que manter esse clima de mistério? Serafina ignora por acaso seus namoros?

— Não é isso! Como eu lhe disse antes, há uma certa afinidade misteriosa entre você e eu. Eu não a segui em Roma. Fui ao Coliseu por acaso, levado pelo destino, se você quiser, porque estava decidido que nós haveríamos de nos encontrar um dia.

— Ah, pare com essa conversa! Você me assusta falando assim. Eu sei que você anda com um revólver na cintura e que é pago para matar. É preferível que a gente evite um ao outro. Você não é o tipo de pessoa que me convém como amigo.

— Não mesmo? Você acha que pode dispor dos seus sentimentos assim, sem mais nem menos? O coração tem vontade própria, minha querida. Matar o amor, mesmo no início, dói terrivelmente!

— Como você tem coragem de falar em amor? Você é o último homem na terra que respeita o sentimento humano. Um guarda-costas!

— Eu sou homem como qualquer outro. Também conheço a ter­nura e a necessidade de afundar a cabeça num ombro amigo.

— Com um revólver na cintura?

— Era uma espada, antigamente.

— Não diga! Você se julga porventura o cavaleiro andante de Serafina?

— A imagem pelo menos é romântica. . .

— Romântica como a vida de um bandido! Você já esteve em Chicago?

— Ah, as mulheres são criaturas fabulosas! Como você adivinhou? Sim, eu já estive nos Estados Unidos. Conheci Serafina em Las Vegas, num dos cabarés da cidade.

— Ah, não me diga que além de bandido você é jogador profissional!

— Sua peste!

No mesmo instante, os dois ouviram passos no terraço. Rick tornou a refugiar-se nas sombras quando Adone se aproximou de Donna.

— Ah, você está aí! Eu estava à sua procura. Que noite maravi­lhosa, não? A lua está triste porque o sol se escondeu no horizonte. . .

Perturbada com a conversa com Rick e consciente de que ele estava ouvindo o que os dois diziam, Donna deu o braço a Adone e pediu-lhe que a levasse de volta para o salão.

— Está bom, vamos entrar. Mas primeiro eu quero que você me dê um beijo. Lá dentro você tem vergonha.

— Você está sonhando!

— O que tem de mais? Um beijo não faz mal a ninguém. Pelo contrário!

— Pode ser, mas não é meu gênero beijar o primeiro homem que encontro — disse Donna com firmeza, tentando soltar-se dos braços de Adone. — Por favor, Adone, comporte-se! Não vamos brigar no primeiro dia que nos conhecemos.

— Ouviu o que ela disse? Deixe-a em paz. Adone voltou-se assustado na direção da voz.

— Quem está aí?

— Você não me reconhece?

Rick deu um passo à frente e um raio de luz bateu em cheio no rosto moreno. Os dentes estavam descobertos num sorriso perigoso.

— Ah, é você! — exclamou Adone, trêmulo de susto e de raiva.

— Você está sempre se escondendo pelos cantos para me espionar! Quer um conselho de amigo? Suma da minha frente! Por mim você seria mandado embora hoje mesmo. Eu não entendo como mamãe pode aturá-lo.

— Chega de conversa fiada! — disse Rick, acendendo o cigarro.

— Desde quando um pirralho ousa falar comigo nesses termos? Você não faz nada o dia inteiro e não tem ideia do que é ganhar a vida com uma profissão honesta. Deixe os outros trabalharem em paz.

— Vá para o inferno! — exclamou Adone, furioso. — Eu devia lhe dar um murro na cara. No fundo, você não passa de um gigolô!

Rick deu uma tragada comprida no cigarro e a brasa iluminou o rosto moreno. Em seguida, deu um passo à frente e estalou os dedos no nariz de Adone.

— Que papelão você está fazendo na frente dessa moça! Ela vai pensar que os italianos são uns galinhas. Por que você não volta para o salão antes que seu rosto de bebê vire uma papa?

— Galinha é você!

No instante em que Adone desferiu o soco, Rick esquivou-se com um movimento rápido do tronco e acertou um direto em cheio no nariz do seu adversário. Adone recuou um passo com as pernas vaci­lantes, apanhou o lenço no bolso e enxugou o sangue que escorria pelo rosto. Ele olhou para Rick como se fosse matá-lo.

— Isso não vai ficar assim! Você vai me pagar. Eu vou despedi-lo desta casa! — exclamou Adone, dirigindo-se ao salão.

— Boa ideia. Faça isso — comentou Rick, com voz tranquila. Em seguida, voltou-se casualmente para Donna, que assistia à briga entre os dois com uma mistura de medo e de fascinação. — Vamos entrar? Está frio aqui fora.

Ela abaixou a cabeça num gesto de submissão.

— Você não devia ter brigado por minha causa. Isso pode criar problemas entre você e Serafina.

— Deixe isso por minha conta. Se houver algum problema nesse sentido, não será por causa de Adone.

— Por quem, então?

— Por sua causa.

— Por minha causa? Não entendo. . .

— Serafina tem ciúmes de você.

Às vezes basta uma única palavra para dizer tudo. Donna voltou-se, surpresa, para Rick e avistou um sorriso enigmático nos lábios dele. Rick era um homem duro, impiedoso, acostumado a tratar com mar­ginais. Entretanto, no fundo do coração, havia uma ternura latente, pronta a surgir na primeira oportunidade. Ela se afastou alguns pas­sos, perturbada com a proximidade que havia entre os dois. Rick segurou-a pelo pulso, com delicadeza.

— Eu não contava revê-lo tão cedo. . .

— Você pensava que eu fosse sumir para sempre de sua vida?

— Claro.

— Eu sabia que tornaria a vê-la. Senti isso desde o primeiro momento.

— Talvez fosse preferível eu ir embora. Vou criar problemas entre você e Adone.

— A vida é cheia de problemas.

O pulso dela batia rapidamente sob os dedos dele. Era loucura sentir-se tão perturbada assim na presença de um homem que mal conhecia.

— Eu bebi demais no jantar — balbuciou sem jeito, procurando soltar-se das mãos dele. — Foram muitas emoções juntas no mesmo dia. . . Amanhã vou achar graça em tudo isso. Afinal, não sou mais criança para me assustar à toa.

— Você acha?

— Tenho certeza. Amanhã vou estar curada.

Pode ser. Tudo volta às proporções normais durante o dia. Mas quando a noite cai e as estrelas voltam a cintilar no firmamento, esquecemos as resoluções da véspera. Buona notte, cara.

— Boa noite, Rick

Donna afastou-se do terraço sombrio, consciente de que os dois tornariam a se encontrar no dia seguinte e que, mesmo a luz do dia, Rick continuaria a perturbá-la mais do que qualquer outro homem que conhecera na vida.

 

Nos dias seguintes, Donna entregou-se de corpo e alma ao trabalho na sala mais encantadora que já ocupara em sua carreira profissional. A mesa era do estilo renascença e a máquina de escrever, com sua capa de plástico, estava completamente desambientada no meio dos móveis antigos. Os afrescos do teto eram da mesma época que a mobília antiga e representavam cenas mitológicas. A de que Donna gostava mais era uma comitiva de jovens com vestes transparentes e flores nos cabelos. O grupo estava descansando à beira de um riacho e as figuras se refletiam na água parada como se fosse um espelho polido.

As paredes da sala eram revestidas de madeira escura e o assoalho estava coberto por pequenos tapetes persas. Pela janela envidraçada que dava para o pátio avistava-se um árvore coberta de flores ver­melhas que Donna identificou à primeira vista com um magnífico flamboyant. Entretanto, o que lhe causou maior surpresa foi a estátua equestre do cavaleiro que montava sentinela junto à fonte do pátio interno. Com a cabeça ligeiramente inclinada, ele segurava na mão uma colossal espada de pedra. Donna se lembrou das palavras que dissera a Rick alguns dias antes: "Você é uma espécie de cavaleiro andante de Serafina".

Era uma ideia romântica, evidentemente. No fundo, ela queria dourar a função verdadeira de Rick na casa. A realidade era outra: Rick estava ali na função de guarda-costas e seu principal objetivo era proteger uma mulher riquíssima dos assaltantes e sequestradores. Fazia quantos anos que Rick levava essa existência de cão de guarda?

Esses anos tinham sido suficientes para fazê-lo perder os sentimentos humanos?

Desde a noite do episódio desagradável no terraço da casa, Rick procurara conservar uma certa distância de Donna e não demons­trava, nem mesmo por uma piscadela, que nutria o mais leve interesse pela secretária inglesa. Donna não sabia se devia sentir-se contente ou despeitada com essa atitude. A verdade é que havia algo perigo­samente excitante no comportamento do homem que correra em sua defesa no terraço, um homem maduro e vivido que não tinha nada dos jovens impetuosos que conhecia. Rick parecia mais um personagem saído das páginas de um romance antigo, em que os homens duelavam e se matavam por causa do amor de uma mulher.

De qualquer maneira, ela estava contente com o fato de Adone ter se retirado momentaneamente de sua presença. Não ficou sabendo ao certo se Serafina tomou conhecimento do episódio e da causa que o motivara. Era provável que não. Caso contrário, Donna teria rece­bido um convite polido para fazer as malas e partir rapidamente da Villa Imperatore.

Adone, por sua vez, devia estar muito bêbado naquela noite, uma vez que não tinha uma lembrança exata dos fatos.

— Eu importunei você, querida? — perguntou ele um dia.

— Não, de forma alguma — respondeu Donna, omitindo a pequena cena desagradável que ocorrera entre os dois.

— O italiano deve beber somente vinho — comentou Adone. — Ele fica alegre com vinho, mas se torna agressivo e violento quando bebe uísque. O que foi que eu fiz, exatamente?

— Você disse uma coisa de que Rick não gostou.

— Ah, foi por isso então que recebi aquele murro na cara? Eu não brigo com Rick quando estou sóbrio. Ele é forte demais para mim, além de ser frio como um lutador profissional. É essa frieza por sinal que Serafina mais aprecia nele. Ele não perde a cabeça nunca, aconteça o que acontecer.

— Felizmente tudo terminou bem — comentou Donna, procu­rando dar por encerrada a conversa.

Adone debruçou-se sobre a mesa onde ela estava sentada.

— Nossa, como está tudo tão arrumado! Você é de fato uma secre­tária tremendamente organizada e eficiente.

— Eu fui educada num colégio de freiras.

— Estou vendo. Você não gostaria de sair um pouco para se dis­trair? Podíamos aproveitar a hora do almoço e ir a um restaurante maravilhoso que conheço, onde fazem uma lasanha divina. Vamos?

— Infelizmente, eu não posso sair — disse Donna. — Eu só tenho uma hora para almoçar, e se sair com você nós vamos voltar no meio da tarde. Sua mãe é muito generosa, mas não admite atrasos no tra­balho. Além disso, eu prezo demais meu emprego para perdê-lo por causa de um almoço na praia, por mais delicioso que seja.

— Você é incorrigivelmente séria — disse Adone, andando de um lado para o outro da sala, com a testa franzida.

Adone estava de roupa esporte, e os cabelos compridos, ondulados e macios, davam-lhe realmente um aspecto muito atraente. Era uma pena que Serafina não fizesse uma forcinha para o filho trabalhar e ganhar a vida honestamente. Ele passava os dias numa ociosidade total. À tarde flertava com mulheres casadas e afogava as mágoas nos copos de uísque à noite. Essa rotina não fazia nenhum bem a seu temperamento ardente. Ele vivia numa frustração permanente.

— Você não tem vontade de trabalhar? Não sente que está des­perdiçando a energia e a saúde numa rotina monótona de prazeres que o deixam insatisfeito, tanto física quanto espiritualmente?

Adone apoiou-se na mesa de trabalho com a expressão de alguém que estava farto de tudo, inclusive dos conselhos que podiam lhe dar.

— O que você sugere?

— Você joga tênis como poucos. Por que não se dedica seria­mente a isso? Você pode dar aulas. . .

— Ah, já sei! Manter o corpo ativo e em forma. Eu tenho a impressão de que você é meio careta, garota. Você está querendo salvar minha alma?

— Eu estou falando sério, Adone. Você tem condição para dirigir um clube, com quadras de tênis e de squash, piscinas, raia de compe­tição. . . Por que não aproveita seu talento, bolas? Claro, se você deseja jogar a vida fora, ninguém tem nada a ver com isso. A vida é sua.

O sorriso de zombaria que havia nos olhos de Adone desapareceu momentaneamente. Donna estava com os óculos de aros redondos que usava quando trabalhava. Os óculos e os cabelos curtos davam à fisionomia inocente o ar de uma jovem bem-comportada e cumpri­dora de seus deveres. Provavelmente era essa aparência que exercia um fascínio tão grande sobre Adone.

— Sabe o que eu gostaria de fazer com você?

— Não, não tenho ideia — disse Donna, impassível, fitando-o no fundo dos olhos.

— Gostaria de botar você num sanduíche e comê-la.

— Cretino!

Com um gesto rápido da mão, Adone retirou os óculos que estavam caídos na ponta do nariz e lhe deu um beijo estalado na boca.

— Você é adorável, deliciosa, um poço de virtudes! Você tem toda razão, amor, eu estou jogando fora minha vida, como se fosse um milionário que tivesse muitas outras existências guardadas num cofre. Mas eu vou tomar jeito. Você quer casar comigo para me endireitar?

Donna deu uma gargalhada e arrancou os óculos da mão dele.

— Você morreria de medo se eu dissesse sim. Vamos procurar o padre e nos casar naquela capelinha que tem lá no alto do morro.

— Você está redondamente enganada! Eu ficaria feliz da vida se você aceitasse meu pedido — disse Adone, tocando na pequena cruz de ouro que Donna tinha no pescoço. — Você, sim, é que teria medo que eu fosse um marido infiel e corresse atrás das outras mulheres.

— Quem sabe? Olhe, o papo está muito gostoso, mas eu tenho trabalho à minha espera. Sua mãe ficaria uma fera se soubesse que estou perdendo meu precioso tempo com conversas fiadas, em vez de bater o capítulo que ela ditou ontem à noite. E vou ter que prestar conta do meu trabalho hoje à tarde.

— Se você casar comigo, não terá mais que trabalhar como uma escrava.

— E nós vamos viver do quê? Da mesada que sua mãe dá?

— Não seja agressiva, amor! Eu pensei que seu coração fosse macio como sua pele. Aliás, você é toda fofa. Aveludada, deliciosa, apetitosa. . .

— Por favor, chega de conversa mole! — exclamou Donna, impa­ciente. — Por que você não procura um trabalho para fazer em vez de me atrapalhar com essa conversa fiada? Olhe só o que eu fiz! Bati uma frase inteira errada. Vou ter que começar tudo de novo. Por favor, Adone, deixe-me trabalhar em paz!

Donna arrancou com raiva as folhas da máquina e atirou-as na cesta de papel.

— Eu vou embora se você prometer sair comigo.

— Eu não prometo coisa nenhuma! Deixe-me em paz!

— Neste caso, vou continuar aqui, infernizando sua paciência.

— Ah, você é realmente um garotão insuportável! Você precisa realmente aprender um pouco de bons modos.

— Que culpa eu tenho de me sentir atraído por você? Você é desejável, gostosa, atraente... Se você for jantar comigo, eu deixo você bater em paz essas memórias escandalosas da minha querida mãe.

— Elas não são escandalosas, para início de conversa!

— Claro que são! Eu as conheço de cor. Mamãe sente a neces­sidade incontrolável de estar na primeira página dos jornais. Ela faz questão absoluta de que o livro seja um best-seller. E, hoje em dia, você só escreve um livro de sucesso se botar os podres para fora. Ela está guardando as confissões escandalosas para o fim! E você, com esse seu ar de freira carmelita, vai ficar chocada quando ela contar os casos íntimos das pessoas com quem conviveu em Hollywood. Quer fazer uma aposta?

— Antes de mais nada, eu não tenho cara de freira carmelita. Segundo, não vim aqui imaginando que ia bater à máquina as me­mórias de uma santa. Terceiro, meu pai trabalhou com Serafina e me contou como era a vida dos atores em Hollywood. Eu estou sa­bendo das coisas. . .

— Ah, é? Você concorda então com o que Hitchcock disse das lourinhas ingênuas?

— O que foi que ele disse?

— Que por dentro elas são um vulcão.

Donna sorriu sem querer.

— Está bom, eu concordo. Agora vá embora e me deixe terminar esse capítulo.

— Quer dizer que você aceita meu convite para jantar? — Adone inclinou-se e tocou no queixo dela com a ponta do dedo. — Não seja desmancha-prazeres. Ceda uma vez na vida. Eu conheço um restaurante divino, de frente para o mar. . .

— Você se julga irresistível, não é mesmo?

— O que eu posso fazer? — disse Adone, com um sorriso mali­cioso nos olhos verdes. — É minha sina. Qual é a moça que não gosta de jantar fora depois de um dia exaustivo de trabalho? Espe­cialmente na companhia de um rapaz simpático que possui um carro esporte.

— Depende da cor — disse Donna, impassível.

— O meu é azul-metálico. Conversível. Estofamento de couro legítimo. Ar condicionado para os dias quentes.

Donna refletiu rapidamente e chegou à conclusão de que o convite era de fato sedutor. Entretanto, não podia esquecer as maneiras livres de Adone e não tinha a menor vontade de terminar a noite no pico descampado de um morro, defendendo-se de uma tarado sexual.

— Você não desiste, hein?

— Não, não desisto.

Donna olhou em volta para a bela sala onde estava instalada. Em seguida, para o pátio interno, onde estava a estátua do cavaleiro medieval, de espada em punho. Afinal, por que teria medo de Adone? Ele era um garoto, no fundo. A única coisa que importava era con­servar o emprego na Villa Imperatore. Tudo o mais era secundário.

— Está bom. Você ganhou. A que horas você quer sair?

— Às sete e meia. Assim teremos tempo para passear à vontade. Há muita coisa interessante para se ver. — Adone deu um sorriso de triunfo e dirigiu-se à porta da sala. — Arrivederci, cara.

— Ciao, bambino.

Donna voltou a bater à máquina e procurou esquecer o programa da noite. Ela só tinha um receio. . . Nas estradas do litoral não havia nenhum cavaleiro andante que acudisse ao seu grito de socorro.

Sorriu com esse pensamento. Rick não era absolutamente um cavaleiro andante. Muito pelo contrário, era mais perigoso que Ado­ne. Nenhuma mulher na posição de Serafina empregaria um guarda-costas que não fosse capaz de agir impiedosamente com aqueles que ameaçavam sua segurança. Aliás, segundo o que Adone contara, Rick salvara a vida de Serafina de um bando de sequestradores que estavam armados até os dentes.

Era muita ingenuidade de sua parte imaginar que um homem como Rick podia ter algum interesse nela. Serafina era a mulher de sua vida. Todas as outras não eram mais que simples distrações. Sera­fina atraía Rick com sua beleza e sensualidade como se fosse um bichinho de estimação.

Donna apertou o botão do gravador e escutou Serafina relatar os incidentes de sua infância miserável, passada na Sicília. Tanto ela quanto Rick eram originários do mesmo meio social. Os dois sabiam o que era crescer rodeado de miséria por todos os lados e aceitar essa realidade com uma coragem indomável. As ruas estreitas e insa­lubres dos bairros pobres estavam sempre apinhadas de gente. As roupas eram penduradas em varais improvisados nas janelas das casas. O barulho durante o dia era ensurdecedor. Gritarias, vendedores ambu­lantes, brigas, gente que berrava de uma janela para a outra, verdureiros com alto-falantes improvisados de lata ou papelão. Além de tudo isso, havia o aspecto terrivelmente sórdido das ruas, cobertas de lixo pelas calçadas, a falta dos recursos básicos, as filas de mu­lheres que transportavam latas de água nas cabeças.

Serafina fugira desse ambiente triste e miserável graças à sua beleza incomparável. Rick, por sua vez, usara a coragem e a força física com o mesmo objetivo. Ele não temia as ruas mal frequentadas da cidade depois que a noite descia. Sabia defender-se sozinho dos assal­tos, das brigas à mão armada, das rondas policiais.

Donna estremeceu ao pensar nessas coisas e desejou de todo o coração poder afastar da imaginação a imagem de Rick, da mesma forma que afastara a do belo Adone, que a pedira em casamento com a mesma naturalidade com que alguém oferece um doce a uma criança.

Rick, porém, não tinha sido um menino mimado como Adone. Suas lembranças da infância estavam marcadas a ferro na memória, como cicatrizes indeléveis. Aliás, foram esses acontecimentos terríveis do passado que o transformaram no homem duro e impiedoso que era hoje. Os sentimentos ternos e bondosos foram relegados ao fundo do coração, até que um dia deixariam completamente de existir. Aí então, ele seria frio e inflexível como a estátua equestre no pátio da casa. Mais tarde, se transformaria finalmente numa estátua de pedra e nunca mais as chamas do amor brilhariam nos olhos negros de siciliano, lançando mensagens para a jovem inglesa que cruzara seu caminho numa noite em Roma.

— Ah, que horror! — Donna murmurou em voz alta, levando a mão aos olhos como se quisesse afastar da vista a imagem do cava­leiro de pedra.

Ela estava se deixando contaminar pela atmosfera romântica do sul da Itália. Rick a fascinava porque não se parecia com nenhum homem que conhecia. Entretanto, ele não era um cavaleiro andante que se orgulhava da armadura brilhante e imaculada. Rick era um mero guarda-costas, um bandido, no fundo, contratado por Serafina para defendê-la de outros bandidos. Adone contara que Rick entrava e saía do quarto de Serafina com a maior liberdade do mundo e so­mente alguém muito inocente podia ignorar a intimidade que havia entre os dois.

Donna deu um suspiro quando ouviu a porta da sala abrir-se e um criado entrar com o bule de café e uns bolinhos de minuto que a cozinheira fazia todas as manhãs. Desta vez, porém, havia também algumas frutas colhidas no pomar da casa e um queijo fresco, de leite de cabra, uma especialidade do sul da Itália.

— Ah, que maravilha! — exclamou Donna, com um sorriso para o criado. — Tudo isso é para mim?

— Foi o signore quem arrumou pessoalmente a bandeja do café.

— O signore. . . Que signore?

— O signore Neri.

— Ah, sim! Agradeça a ele por mim.

Donna comeu os pêssegos que Adone escolhera para ela, os boli­nhos de minuto e, por último, levantou-se com a xícara de café na mão e foi admirar mais uma vez a bela estátua de pedra que havia no pátio.

Ela nunca se considerara antes uma criatura especialmente român­tica. Entretanto, depois que chegara ao sul da Itália, conduzia-se como a mais romântica das românticas. . . No fundo, estava se compor­tando exatamente como as heroínas dos romances que se sentem atraídas à primeira vista pelo belo desconhecido que encontraram por acaso num passeio. . . o italiano alto e moreno que perturbou sua mente desde o primeiro olhar que trocaram.

Como se sentisse falta de ar, Donna levou instintivamente a mão à garganta e murmurou:

— Ah, deixe de me perseguir!

Ela atravessou o pátio interno e agora estava parada defronte da está­tua do negro cavaleiro andante. Ele estava com a cabeça inclinada sob o capacete que encobria praticamente todo o rosto e segurava com firmeza o punho da espada. Alguns pássaros cantavam e saltavam de galho em galho na tranquilidade do pátio que lembrava o claustro de um convento. Indiferente a tudo, o belo cavaleiro continuava mergu­lhado no mais profundo silêncio, atento somente à sua eterna vigília.

Donna vestiu-se cuidadosamente para o jantar com Adone. Passou colônia no pescoço, nos braços, na nuca e penteou os cabelos até ficarem brilhantes. Apanhou no guarda-roupa o vestido verde de meia-estação que usava com um casaquinho em cima dos ombros. O efeito agradou-a quando se mirou no espelho da penteadeira. Fal­tava apenas uma jóia, e Donna colocou brincos de pérolas nas orelhas.

Adone estava pronto quando ela desceu a escada.

— Che bella! — exclamou ao vê-la. Estendeu a mão e segurou-a delicadamente pelo pulso. — Você está irresistível, querida. Simples­mente adorável com esse vestido verde que lembra a primavera!

— Você também está muito elegante.

Adone estava vestido a rigor com uma camisa azul-clara imacula­damente passada e abotoaduras de safira nos punhos rendados.

— Grazie, carina. É assim que deve ser. Um casal combinando em tudo, em elegância e beleza. Imagine só como seriam nossos filhos.

— Uns amores, sem dúvida alguma! — exclamou Donna, com uma risada.

Adone segurou-a pelo braço e conduziu-a em direção à sala de estar.

— Nós vamos jantar fora, mãe! — disse da porta para Serafina, que estava reclinada no sofá, à meia-luz.

Rick estava sentado ao lado dela, com o cigarro aceso nos lábios, e Donna teve a impressão de que ele franziu imperceptivelmente a testa quando a viu na companhia de Adone.

— Juízo, filho! Não dirija como um louco, como se você esti­vesse disputando uma competição.

— Falou, mãe.

— Olhe que Donna não está acostumada com essas correrias. Eu conheci o pai dela e sei como ela foi educada. . .

— Pode deixar. Eu vou tomar conta dela, mãe, como Rick toma conta de você — disse Adone, com um sorriso irônico em direção a Rick, que se limitou a soltar uma baforada de fumo pelo nariz. — Você está tranquila agora?

— Está ouvindo, Rick? — perguntou Serafina, com um gesto lân­guido de mulher amada, dirigindo o olhar sensual dos olhos verdes para a figura impassível do guarda-costas siciliano. Quando Rick voltou a cabeça na sua direção, Serafina piscou os cílios compridos, como se não pudesse fitá-lo sem pestanejar. — Há poucos homens como Rick neste mundo, filho, e eu gostaria muito que você se pare­cesse com ele. Mas você saiu a seu pai. Você tem a natureza ardente e impetuosa dos latinos. Divirta-se, querido, mas não volte muito tarde para casa.

— Pode ficar tranquila, mamãe.

Adone aproximou-se do sofá onde Serafina estava reclinada e bei­jou-a de leve no rosto.

Donna aproveitou que os dois estavam entretidos na despedida para lançar um olhar de relance para Rick. Por que eles não se casavam?, pensou. O divórcio era aceito na Itália e Donna tinha certeza agora de que os dois eram amantes. Como era possível um homem passar tantas horas na companhia de uma mulher atraente como Serafina e não fazer amor com ela?

Os olhos de Rick estavam sombrios como na primeira vez que Donna os viu no alto do Coliseu. Ela teve a sensação exata de ser tocada fisicamente por seu olhar. Estremeceu como se o contato fosse verdadeiro. Olhou para ele e seus olhos diziam: "Não toque em mim! Eu não quero saber o que Serafina sente quando você a estreita nos braços!"

Levou um susto quando Adone a puxou pela mão.

— Vamos, querida, antes que fique tarde.

Ela saiu da sala com a impressão de que uma parte vital de si ficara ali, presa naquelas quatro paredes. Era loucura sentir-se atraída da­quele jeito por um homem que pertencia a outra mulher. . . uma mulher possessiva, ciumenta ao extremo, dotada de um temperamento terrível, cujas unhas compridas arranhariam seu rosto sem piedade se a surpreendesse nos braços de Rick.

Adone evidentemente notou a reação que ocorrera com ela diante de Rick. Ao pararem ao lado do pequeno carro esporte, ele se voltou e fixou-a com atenção.

— Você não precisa ter medo de Rick, amor.

— Mas eu morro de medo, mesmo assim. Não foi você quem disse que ele matou certa vez um homem a sangue-frio?

— Ah, isso foi há muito tempo. No meio de uma briga. Rick acertou um soco em cheio no queixo do seu adversário. O homem perdeu o equilíbrio, bateu com a cabeça no meio-fio e apagou na hora. Rick fugiu, naturalmente. Mais tarde ele foi absolvido, quando ficou provado que seu adversário era um membro da Máfia, acusado de ter matado um parente de Rick.

— Um parente? Você não sabe os detalhes?

— Contam que a mãe de Rick foi assassinada misteriosamente. Ela morava com o marido num sítio no sul da Itália. Quando o marido morreu, ela acusou publicamente a Máfia pelo ocorrido. Disse que o marido fora assassinado porque se recusara a pagar uma deter­minada quantia à organização para obter a proteção de sua vida. Um belo dia ela foi encontrada morta em casa. Rick era um garoto nessa época. Mesmo assim, jurou que ia encontrar o assassino da mãe e tirar vingança do crime.

— Que horror!

— Pois é. Rick cumpriu a palavra. Se o homem não tivesse batido com a cabeça no meio-fio, provavelmente seria morto pelas mãos dele.

— Que drama!

— É uma história chocante, sem dúvida, mas Serafina se sente segura na companhia de Rick. Ele não tem medo de nada nem de ninguém. Quantas vezes for preciso, ele arriscará a vida para prote­gê-la. É por isso que ela confia cegamente nele e não vive o tempo todo apavorada com a ideia de ser sequestrada. Mas você não precisa ter medo dele, amor. Rick é de toda confiança. Além disso, ele não se interessa por nenhuma outra mulher, a não ser por Serafina.

— E quando ele viaja sozinho? — perguntou Donna impulsivamente, lembrando da maneira como fora abordada por Rick no alto do Coliseu.

— Isso eu não sei — disse Adone, abrindo a porta do carro. — Ouvi contar que ele é sócio de um clube em Roma, onde costuma ir nos fins de semana. Mas, se encontra outras mulheres lá, com o conhecimento ou não de Serafina, isso eu não posso afirmar. Seja como for, minha mãe confia cegamente nele, como você mesma obser­vou. Rick é inteiramente dedicado a ela. As outras mulheres não passam de uma distração. Até hoje não ouvi um boato de que Rick tivesse um caso com uma mulher em Roma. Aliás, por estranho que pareça, Rick é de uma discrição absoluta nesses assuntos. Ele é mais frio que um lagarto. Pelo visto, é inteiramente insensível ao encanto feminino.

No instante em que Adone segurou nas mãos o volante do pequeno carro esporte, sua atenção voltou-se exclusivamente para a estrada. Donna sentia a mão dele roçar na sua perna toda vez que trocava as marchas do carro. Com um gesto discreto, ela afastou a perna para o lado.

— O que foi, querida? Você sente cócegas nas pernas?

— Morro de cócegas. Aliás, eu morro de medo também da veloci­dade. Você não se importa de ir um pouco mais devagar?

— Medrosa! Eu conheço mulheres que adoram a velocidade.

— Acredito, há gosto para tudo. Você deve ter uma grande expe­riência nesse campo.

— Você tem alguma coisa contra os homens experientes?

— Gosto da boa companhia, mas não aprecio especialmente os exibicionistas.

— Você está me chamando de exibicionista, amor?

— Não sei, mas tenho a impressão de que você está tentando provar alguma coisa, talvez a si mesmo. Um homem seguro não sente necessidade de proclamar sua virilidade.

— Não diga!

— Sabe qual é o seu problema? Você é bonito demais, além de ser mimado pela mãe, que faz todas as suas vontades.

— O que mais?

— Você tem consciência, ao mesmo tempo, de que está desperdi­çando a vida com frivolidades. As mulheres não respeitam os homens irrealizados, que só se sentem seguros quando estão fazendo amor ou dirigindo um carro a toda velocidade.

— Que juízo você faz de mim! Quer dizer que você prefere os homens esforçados aos indivíduos da minha espécie?

— Lógico. Os primeiros, pelo menos, estão fazendo força para alcançar um objetivo. Os outros se contentam apenas com o que lhes passa pelas mãos.

— É um homem assim que você deseja encontrar? Um verdadeiro cavaleiro andante, de espada em punho, que preza a honra acima de tudo?

— Quem sabe. . .

— Você acha realmente que vai descobrir um homem assim hoje em dia?

— Por que não?

— Nós vivemos no mundo do capital, meu bem, e os ideais român­ticos estão completamente superados.

— Que pena! Seria maravilhoso viver numa época em que os homens prezavam a virtude e a honra acima de tudo, como essas está­tuas de pedra que nos ficaram do passado.

— Você é uma romântica incurável! — exclamou Adone, com uma risada divertida. — É a santa perdida no mundo dos pecadores. Você acredita realmente na virtude ou está falando apenas da boca para fora?

— Claro que acredito! Meu pai me levou certa vez para ver uma dessas imagens esculpidas na pedra. Eu me lembro até hoje das palavras que estavam gravadas no pedestal: "A coragem é a alma do homem e a honra é a espada imaculada que segura na mão".

— Que pensamento sublime! — exclamou Adone, com ironia. — Neste caso, o que vai ser de mim, menina?

Donna sorriu sem querer. Adone era realmente divertido com seu exagero tipicamente italiano, sem falar na gesticulação expressiva e fascinante que acompanhava cada uma de suas palavras.

— Eu não sou ingênua a esse ponto. É claro que não vou topar pela frente com um cavaleiro andante, muito menos com um Príncipe Valente. Como você disse, nós vivemos num mundo tremendamente materialista, que só valoriza o dinheiro e o sucesso. Os sentimentos humanos foram relegados a um segundo plano. O homem que eu mais odeio é o magnata sem coração, que adora o dinheiro acima de tudo. Não sei como alguém pode gostar de um homem assim. É o mesmo que amar um criminoso de guerra, como Adolf Hitler!

— Ah, você é uma graça, querida! Eu morro de rir com suas teorias. E eu pensava que a secretária inglesa de mamãe seria uma mulher velha e feia, com um coque no alto da cabeça! Que surpresa deliciosa foi encontrá-la na sala! Eu fiquei bobo com minha sorte. . .

— Não se esqueça de que eu sou a secretária inglesa de sua mãe e que não vim aqui para namorar você. Por falar nisso, Serafina não está vendo com bons olhos nossa camaradagem.

— Quem disse?

— Está na cara.

— Vai ver que ela tem medo que eu a corrompa com minhas ideias.

— Pode ser.

— Mal sabe ela que é você quem vai acabar me convertendo. . .

Neste momento, a baía surgiu ao longe, salpicada pelas luzes dos barcos de pesca que estavam ancorados no canal. Mais adiante, avis­tava-se um farol antigo construído no alto de uma rocha, cuja luz piscava a intervalos regulares.

Adone estacionou o carro no pátio do pequeno restaurante de frente para o mar. A música fluía pelas janelas abertas e dava ao local um encanto particular. O restaurante rústico não podia ser mais sossegado e era o lugar ideal para conversas íntimas.

Adone desligou a chave e voltou-se no banco. O rosto dele era belo e perfeito como o de uma moeda antiga.

— Eu sonho todas as noites com você. Eu a desejo mais que tudo no mundo. Quero estreitá-la nos braços, beijá-la, acariciá-la. Nunca conheci ninguém como você antes. Você é inteligente, desem­baraçada, temperamental, ingênua. . .

— Adone, você prometeu que não ia me namorar mais! Foi isso o que combinamos antes de sair. Você está jogando todo seu charme em cima de mim, como os italianos costumam fazer quando convidam uma mulher para jantar fora. Isso não vale! Você é um rapaz rico que está querendo se distrair às minhas custas. Não adianta a gente se iludir. Eu sou uma criatura simples e você é um homem sofisti­cado, experiente. . . Nossos mundos não combinam.

— Você está inteiramente equivocada, amor. Eu não sou a pessoa que você imagina. Há muitas coisas que gostaria de lhe dar, de cora­ção aberto, sem nenhuma malícia. Antes de mais nada, quero me dar a você, completamente.

— Por favor, Adone, vamos mudar de conversa. Estou morrendo de fome. Vamos entrar e beliscar alguma coisa?

— Está bom, vou fazer sua vontade.

Donna estava sentada na mesa do restaurante, diante de Adone, quando a ideia lhe ocorreu pela primeira vez. Era possível que a beleza máscula e a sedução de Adone fossem herdadas de Rick? Ela fez os cálculos rapidamente e suas suspeitas foram em parte confir­madas. Serafina e Rick eram quase da mesma idade e podiam perfeitamente ter um filho de vinte e poucos anos — bastava terem sido amantes desde a juventude.

— O que foi? — perguntou Adone, fitando-a atentamente. — Por que você está me olhando com essa cara?

— Não foi nada! — murmurou Donna, com os olhos esbugalhados. Era verdade! Isso explicava tudo, se bem que a explicação fosse amarga como fel! Adone era o filho ilegítimo de Rick! Ela notara a semelhança entre os dois desde a primeira vez que os vira juntos. Tinham a mesma estrutura dos ossos da face, o mesmo perfil afilado da estatuária antiga.

Ela sabia desde o início. Seu instinto feminino lhe dissera que havia algo profundo na união entre Rick e Serafina. Há vinte e poucos anos, Serafina ficara grávida de Rick, e, de lá para cá, os dois man­tinham um relacionamento que era fruto do amor e da maternidade.

Era horrível, porém, que não houvesse amor entre o pai e o filho, pensou Donna, profundamente abalada com sua descoberta. Rick não fizera o menor gesto para se aproximar do filho. Adone dirigira todo o seu afeto exclusivamente para a mãe. Ou fora Serafina quem dese­jara possuir egoisticamente o amor do filho e relegara o pai à condição de simples guarda-costas?

Enquanto Adone escolhia o vinho na lista que o garçom lhe esten­deu, Donna dirigiu, sua atenção para a torre distante do farol. Visto daquela distância, o farol antigo parecia muito triste e solitário, batido incessantemente pelas vagas.

— As pessoas estão pensando que nós somos namorados — co­mentou Adone, colocando a mão em cima da dela. — O que você vai querer, amor? Que tal pedir um presunto cru com melão? Ou você prefere uma, salada de abacate?

— Escolha você.

— Você confia em mim?

— Em questões de culinária, sim.

— Ótimo. Já é alguma coisa. Eu gosto de tudo em você inclusive desse ar distante com que você me olha. É excitante, como se fosse um desafio. . .

— Como se chama essa praia? — perguntou Donna, procurando desviar a atenção de Adone para outros assuntos.

— Praia da Enseada.

— Que bonito nome!

— Está vendo aquele farol no alto da pedra?

— Estou. Foi a primeira coisa que eu vi quando me sentei aqui.

— Há muitos anos, servia de mirante para localizar os barcos dos piratas sarracenos. Quando um deles se aproximava da costa, a população escondia os objetos preciosos e as filhas solteiras no alto do morro. O mais engraçado é que as moças faziam tudo para serem capturadas pelos piratas e levadas para os navios. Só assim não tinham que casar com os noivos escolhidos pelos pais!

— Não diga!

— Em geral, somente os velhos podiam pagar o preço exigido pelos pais como dote das filhas solteiras. E elas, naturalmente, fugiam dos velhos como o diabo da cruz!

— Pois olhe, meu pai tinha mais de cinquenta anos quando mor­reu e muitas mulheres o consideravam extremamente desejável. . .

— Foi seu pai quem instilou em você o amor pela virtude?

— Foi, por quê?

— Porque só os pais desejam o impossível para os filhos. Há outras virtudes, além da honra e da coragem. . .

— Quais, por exemplo?

— A tolerância é uma delas. Não há nada pior que ser intransi­gente e condenar as fraquezas dos outros. Felizmente você é uma criatura generosa e apaixonada por natureza, que tem horror das atitudes mesquinhas.

— Como você pode saber como eu sou? Você mal me conhece!

— Eu vejo isso escrito em seus olhos.

— Acredito realmente na dedicação a um ideal e penso que as pessoas idealistas tornam a existência digna de ser vivida pelos outros.

— O que não deixa de ser uma atitude irrealista — disse Adone, com um sorriso irônico. — O que você prefere? Um homem idea­lista, mas insuportável, ou um outro cheio de defeitos que é uma simpatia?

— Eu não disse isso — confessou Donna, forçada a reconhecer que havia muita verdade nas palavras de Adone. Um relacionamento distante não satisfaria nunca seu coração de mulher.

Ela corou repentinamente ao se lembrar do encontro que tivera com Rick no alto do Coliseu, na primeira noite em que os dois se encontraram. Adone julgou que a transformação na fisionomia dela era o sinal de que estava cedendo ao seu argumento e deu um sor­riso de triunfo.

—Confesse que você só se casará com alguém quando estiver perdidamente apaixonada. . . Isso, sim, é uma atitude realista que merece todo o meu respeito. Você gostou da salada de abacate?

— Gostei muito. Você quer que lhe sirva um pouco mais?

— Não, muito obrigado.

O charme de Adone podia ser herdado de Serafina, pensou Donna, mas seu raciocínio lógico vinha diretamente de Rick. Isso estava evidente agora. Ela lembrou do Rick que conhecera em Roma, na noite em que dançaram até de madrugada no baile à fantasia. Ele tinha a mesma maneira de argumentar, de convencer, de persuadir. . . Só que por Rick ela sentia um desejo intenso, que estava presente nos menores gestos, na palpitação das veias, nos olhos brilhantes de excitação que acompanhavam cada palavra que ouvia.

Ela sabia, porém, que era extremamente perigoso amar alguém cujas raízes e lealdades estavam irremediavelmente associadas às de outra mulher. Sobretudo em se tratando de uma mulher bela e fasci­nante, incomparavelmente mais experiente e vivida do que ela, que só tinha dos homens um conhecimento vago e imperfeito.

— Você gostou do jantar?

— Estava uma delícia.

— Onde vamos agora?

— Onde você quiser, só que não posso voltar muito tarde para casa.

— Combinado.

Eles deram um passeio de carro e, à meia-noite em ponto, Adone estacionou o carro diante da entrada imponente da Villa Imperatore.

 

Havia sempre um capítulo novo no gravador para ser batido à máquina. Serafina não dormia bem à noite e aproveitava essas horas para ditar as recordações de sua vida. Como a narração era interes­sante, repleta de episódios dramáticos, Donna encontrava sempre um estímulo novo no trabalho.

Foi ao ouvir essas narrativas no gravador que Donna compreendeu a verdadeira razão pela qual os homens se apaixonavam pela ex-atriz. A voz de Serafina era quente, comunicativa, acariciante e tinha um timbre envolvente. Segundo contavam, muitos atores e produtores de cinema tinham tentado obter seus favores. Sem falar em políticos influentes, magnatas, banqueiros poderosos.

Serafina mencionava na autobiografia as jóias que ganhara de presente dos seus admiradores, os casacos de peles que recusava sistematicamente, porque não admitia que animais belos como a marta fossem sacrificados por razões tão frívolas. Poucas mulheres, na opi­nião dela, podiam rivalizar em elegância com o leopardo, em beleza com o tigre, em graça com o filhote da foca. Se bem que alguns homens, especialmente os italianos que ela conhecera na Sicília, tinham a agilidade do leopardo. Segundo Serafina, os atores italianos em geral tinham mais sedução, cortesia, sensualidade e bravura do que os outros. Não era de admirar que um dos astros mais conhecidos de todos os tempos, Rodolfo Valentino, fosse natural da Itália.

Donna sorriu ao ouvir as confissões da ex-atriz. Não havia dúvida alguma de que Serafina era franca em suas opiniões. Entretanto, havia intervalos inexplicáveis em algumas seções da narrativa, sobretudo nas que se referiam às primeiras partes do livro.

Por exemplo, Serafina não mencionava nunca a existência de Rick. Qual era a razão desse sigilo? Ela temia por acaso que Adone lesse suas memórias e descobrisse os fatos verdadeiros de sua paternidade? Ninguém, a não ser Rick, tinha consciência desse segredo. Se Donna suspeitara de alguma coisa, foi devido à semelhança incrível que havia entre os dois homens. De certa forma, era um segredo explosivo. Os comentários maldosos não terminariam tão cedo se os conhecidos descobrissem que Adone era filho ilegítimo de Rick.

Em dado momento, os dedos hábeis de Donna pararam sobre o teclado da máquina de escrever. Lembrou-se repentinamente do baile à fantasia em Roma, quando dançara de rosto colado com Rick, sob os lustres esplêndidos de cristal que refletiam milhares de facetas lumi­nosas no teto. Recordou a emoção que experimentou ao ser enlaçada por Rick, a conversa interminável que tiveram no terraço do hotel. Ele desempenhara provavelmente um papel romântico naquela ocasião. Deixara-a entrever o fatalismo que aproximava duas pessoas e que as separa em seguida para sempre.

Rick não devia ter representado esse joguinho, pensou Donna, repentina-mente furiosa, sobretudo porque sabia perfeitamente que ela fora contratada por Serafina como secretária de língua inglesa e que os dois voltariam a se encontrar muitas e muitas vezes no futuro, pelo menos durante o período em que durasse a elaboração do livro. Rick derrubara impiedosamente suas defesas naquela noite. Ela abandonara a cautela que mantinha habitualmente nos encontros com desconhecidos. Rick a seduzira de uma forma traiçoeira e Donna sentia-se agora triste e magoada com seu comportamento. De repente, não suportou mais ouvir a voz melodiosa de Serafina no gravador. Desligou o aparelho com um gesto brusco, atravessou a sala e dirigiu-se ao pátio interno, onde estava a estátua equestre do cavaleiro negro. Estava a meio caminho do seu destino quando pressentiu a presença de alguém apoiado ao tronco do abacateiro, semi-escondido pelas folhagens dos arbustos. Do lugar onde estava, podia avistar apenas a fumaça azulada que subia por entre os ramos baixos da árvore.

Sua primeira reação foi voltar à sala. Entretanto, estava muito perto dele para recuar. Após vencer o primeiro movimento de indecisão e de pânico, continuou a caminhar lentamente em direção ao banco de pedra que havia perto da estátua e sentou-se ali com toda a natu­ralidade, como se estivesse descansando alguns minutos do trabalho ininterrupto.

— Senti sua falta ontem à noite. Onde você estava?

— Trabalhei até tarde. Havia um problema no quinto capítulo e fui obrigada a rebatê-lo.

— Você está trabalhando demais! Olhe lá, não vá cair doente.

— Não tem perigo. Eu estou gostando muito do trabalho e o livro está progredindo rapidamente.

— Você está abatida.

Donna voltou-se na direção da voz é avistou o brinco de ouro na orelha, por baixo dos cabelos negros. Notou também que Rick estava usando uma camisa de seda preta, justa no corpo, e botas de cano alto. Ela estremeceu quando seu olhar esbarrou no dele.

— Acordei com um pouco de dor de cabeça esta manhã. Mas não é nada, logo vai passar.

— Você não quer tomar um copinho de vinho rose? Os sicilianos costumam dizer que o vinho rosado cura todos os males da alma e do corpo.

— É mesmo? É bom eu saber. . . Mudando de assunto, por que esse cavaleiro de pedra está aqui no pátio? Por alguma razão especial?

— Você conhece a história da estátua que ressuscitou numa noite de luar?

— Conheço. A estátua se aproximou da janela de um chalé, onde morava uma rapariga de cabelos louros, e deixou de lembrança com a moça um dedo de mármore.

— Ah, os romances góticos são terríveis! Eles marcam a memória da gente. — Rick replicou, zombando.

— Todas as histórias românticas deviam ser confinadas na nossa imaginação.

— O que você diria se esse valente cavaleiro de pedra subisse um dia na janela do seu quarto? Você gritaria? Chamaria por socorro?

— Não sei o que eu faria.

Embora Donna percebesse que havia nos olhos de Rick uma ex­pressão visível de ironia, a pergunta não deixava de ter seu lado sério. Assustada com a possibilidade de que o sonho se concretizasse um dia, ela se levantou do banco com um movimento brusco e voltou à sala de trabalho. No instante seguinte, porém, ouviu os passos mar­telados das botas nas pedras miúdas do pátio. Tensa e assustada, apoiou-se na mesa de trabalho e fixou de olhos arregalados a figura alta e morena que estava na sua frente.

— Por que você está fugindo de mim ultimamente? Pensei muito em nós dois desde aquela noite em Roma.

— Por favor, vá embora. Você não pode ser visto aqui.

— Não precisa ter medo. Eu não vou pular a janela do seu quarto à noite. Vim aqui apenas para ver como está o trabalho. Afinal, eu também sou personagem do livro. Ou será que meu nome foi omitido?

— Até agora você não apareceu nenhuma vez.

Donna esforçou-se para manter a calma e comportar-se com natu­ralidade, na presença de Rick, mas era impossível. Seu coração dispa­rava toda vez que se encontrava a sós com ele.

— Que curioso! Quer dizer que Serafina preferiu silenciar sobre minha existência?

— Talvez.

— Se você escrevesse um livro de memórias, o que você diria de mim?

Donna encarou-o no fundo dos olhos, sem pestanejar.

— Eu diria que você é o tipo de homem que vai para a cadeira elétrica com um cigarro na boca.

— Errou! Eles não deixam ninguém fumar nessa hora. Eles amar­ram o pobre coitado na cadeira e põem uma venda nos olhos.

Donna tremeu ao ouvir a descrição realista de Rick e esfregou os braços, como se estivesse com um arrepio de frio. No mesmo ins­tante, ele apanhou o telefone em cima da mesa e discou o número da copa. Em lugar do cafezinho habitual, pediu ao copeiro que arru­masse uma bandeja com os bolinhos de minuto, alguns sanduíches de queijo e um copo de vinho rose.

— O vinho rose de nossa colheita — repetiu.

— Por que você fez isso? — indagou Donna, sem jeito, ligeira­mente corada. — Eu não devo beber quando estou trabalhando.

— Hoje é uma exceção. Você está muito pálida e um copo de vinho lhe fará bem. Infelizmente eu não posso lhe fazer companhia porque Serafina está me esperando.

Donna ouviu a desculpa com a sensação exata de ter raspado o rosto numa cerca de arame farpado. Era natural que Serafina gozasse de prioridade. Rick podia flertar com a secretária para se distrair, mas não se atrasava um minuto no seu dever — que era acompanhar Serafina a toda parte, como um fiel guarda-costas.

— Não se atrase por minha causa. Vá embora antes que ela fique impaciente.

— Não há pressa.

— Depois não vá botar a culpa em mim.

— Não tem perigo. Por falar nisso, você está gostando daqui ou está se sentindo muita sozinha neste mato?

— Estou gostando muito. Não fazia ideia de que a costa italiana fosse tão bela.

— Há alguns lugares realmente lindos. Você gostaria de conhecê-los?

— Quando?

— Depois do almoço. Durante suas horas livres.

Donna lembrou-se de que Serafina costumava descansar no início da tarde, da uma às três, regularmente, não apenas para manter a aparência jovem como também porque dormia mal à noite.

— Eu não posso.

— Por quê? Você tem alguma coisa contra os encontros secretos?

— Não, nada, a não ser que são muito arriscados, especialmente no meu caso.

— Escute, minha querida, vamos deixar as decisões sensatas para as pessoas de mais idade. Nenhum de nós dois está nesse caso. Você quer tomar parte numa conspiração?

Donna sentiu o impulso de recusar e, ao mesmo tempo, de aceitar a proposta estranha.

— Não, de jeito nenhum! — exclamou por fim, seguindo a adver­tência de seu bom senso de que havia um perigo enorme em aliar-se a Rick numa conspiração contra Serafina.

— Você não refletiu suficientemente sobre o assunto.

— Não é preciso refletir duas vezes para saber que esse joguinho é perigoso.

— Tudo é perigoso — comentou Rick, com um sorriso irônico no canto dos lábios, que lembrava incrivelmente o de Adone em certas ocasiões. — Você tem medo de arriscar a pele, é isso?

— Eu não quero perder meu emprego.

— Prometo que tudo será feito com extrema discrição. Você não confia em mim?

— As moças que confiam nos homens sempre saem perdendo.

— Você diz isso por experiência própria?

— É. Eu não quero me envolver com você. Está claro agora? Por que você não me deixa em paz no meu cantinho? Você disse certa vez que devíamos manter distância um do outro, como se fôs­semos estranhos.

— Isso diante dos outros. Mas não na intimidade.

— E quem disse que eu desejo manter intimidade com você? Você pertence a Serafina, é seu escravo dedicado e fiel.

— Eu não sou escravo de ninguém, bella.

— Como não? Você faz tudo o que ela manda.

— Há coisas na minha vida que não quero mencionar. De qual­quer maneira, a decisão é sua. Podemos nos encontrar em segredo, sem ninguém saber. Se você não tem coragem ou não quer correr o risco, tudo bem...

— Eu nunca mantive uma relação clandestina com ninguém e não vai ser agora que vou fazer uma exceção.

— Sei perfeitamente que você nunca manteve. Você acha que eu, um siciliano, não perceberia isso? Por acaso eu dei algum dia essa impressão?

O rosto dele tornou-se frio como pedra, mas Donna não queria que Rick fosse de pedra. Desejava passar algumas horas furtivas com ele, vê-lo sorrir, ouvi-lo falar, fingir que ele era dela e não de Serafina. Notou que havia uma grande solidão na vida dele, a despeito do relacionamento que mantinha com Serafina, mulher possessiva, egoísta, a quem faltava o verdadeiro calor humano.

— E não é isso que você quer ter comigo? Uma simples aventura?

— Não, juro que não! — exclamou Rick, impaciente, correndo os dedos entre os cabelos negros. — Você lembra daquela noite em Roma? É só isso o que quero, juro!

— Ah, eu conheço você. . .

O desejo de se atirar nos braços dele era incontrolável. Desde a primeira noite em, Roma algo se acendera dentro dela e o fogo ardia em surdina desde então. Toda vez, porém, que se encontrava a sós com ele, a chama ardia com mais intensidade e Donna lutava para se controlar. Se fossem surpreendidos por Serafina nos braços um do outro, haveria uma cena terrivelmente desagradável. Rick pertencia a ela e nada podia alterar essa fatalidade, nada.

— Você aceita minha sugestão? — insistiu Rick, dando um passo à frente.

No instante seguinte, como se ele também tivesse perdido o controle da situação, Donna foi enlaçada pelos braços fortes e estreitada con­tra seu peito. Imediatamente ela teve a impressão de ser uma massa informe nos braços dele. Era a sensação mais assustadora e excitante que já experimentara na vida. Parecia que estava se derretendo, que ia desfalecer de um momento para o outro, que não havia uma união mais total que aquela. E era inevitável que isso sucedesse, mais dia menos dia... Os lábios se encontraram e se derreteram um no outro, até o instante em que Donna sentiu falta de ar e afastou a cabeça, de olhos arregalados, com uma expressão de pânico.

— Não, por favor, não!

— Fale baixo — murmurou Rick, segurando-a pelos cabelos e fitando-a no fundo dos olhos, a porta está aberta e se ouve tudo do corredor.

— Isso não está certo!

— Nada está certo.

Rick estreitou-a nos braços e afundou a cabeça nos seus cabelos. Após uma breve tentativa para se soltar, Donna abandonou-se final­mente ao prazer do momento. Que importância tinha tudo o mais? Era sua fome de amor que precisava ser saciada.

— Isso tinha que acontecer, mais cedo ou mais tarde — sussur­rou Rick junto ao seu ouvido. — Como é possível morar na mesma casa, comer na mesma mesa e evitar as ocasiões de cair em tentação? Você é a minha sina e eu perco a cabeça. Eu não posso deixar de querê-la.

Ela estava trêmula e lânguida quando Rick a beijou no rosto, nos ouvidos, no pescoço, no colo descoberto, segurando-a pelos cabelos e virando a cabeça dela de um lado para o outro, segundo ditava seu desejo do momento, como se ela fosse uma boneca em suas mãos, fazendo-a desfalecer de prazer quando a beijava na nuca — um beijo úmido que parecia entrar pele adentro —, ou mordia os lóbulos de suas orelhas com dentes de animal feroz.

— Você me mata!

— Juro que não é só desejo que existe em mim! Você acredita?

— Acredito, Rick!

Ele deu um suspiro fundo e passou a palma da mão sobre o rosto molhado e vermelho de prazer.

— Você gosta de mim?

— Eu adoro você. E você sabe disso e se aproveita de mim. Ele sorriu e encarou-a no fundo dos olhos.

— Você não tem medo de mim? Eu viro bicho quando perco a cabeça.

— Ah, Rick, não diga essas coisas. Você me assusta!

Ele afastou a mecha de cabelos louros que caía sobre a testa suada de Donna.

— Passe um pente nos cabelos antes que alguém entre na sala e suspeite de alguma coisa. Você está com cara de quem andou fazendo o que não deve...

— A culpa é sua.

Donna abriu a gaveta da escrivaninha e apanhou o pente e o estojinho de maquilagem. Sentou-se na cadeira e penteou os cabelos com as mãos trêmulas. No fundo do seu coração havia um leve senti­mento de culpa pelo que tinha acontecido. Rick não era livre para fazer o que bem entendia e não podia jamais esperar o perdão de Serafina por ter beijado uma outra mulher nas suas costas.

Ela tinha acabado de guardar o pente ê o estojinho de maquilagem na gaveta quando ouviram passos no corredor. Os dois se voltaram ao mesmo tempo e avistaram Serafina parada no meio da soleira, como se estivesse emoldurada pela porta, com um vestido longo cinza-prata, de mangas amplas e um decote fundo que descobria os seios bem-feitos.

Os cabelos soltos batiam em cima dos ombros e um colar de péro­las brilhava no colo roliço. Quando ela deu um passo à frente, Donna avistou alguns fios prateados entre a massa negra de cabelos lisos. Rick continuou apoiado na beira da mesa, como se estivesse absorto na leitura de uma página datilografada do livro de memórias. Com a mão livre, acendeu o cigarro que estava apagado entre os lábios.

— Ah, você está aqui! — exclamou Serafina, dirigindo-lhe um olhar severo por baixo das pestanas compridas que acentuavam o ar sombrio dos olhos. — Eu o procurei pela casa inteira. O que você está fazendo aqui?

— Vim ver como está indo o livro. Fiquei curioso em conhecer o conteúdo.

— O que você deseja saber?

— Muitas coisas.

— Quais, por exemplo?

— Por que você silenciou sobre minha existência?

Serafina balançou os ombros com petulância e voltou a cabeça na direção de Donna, os olhos duros e frios como pedras verdes. Ela percorreu a secretária com a vista de alto a baixo, sem cerimônia. Exteriormente, Donna estava perfeitamente apresentável; por dentro, no entanto, o tumulto e a desordem tomavam conta de sua mente. Seus nervos estremeceram de susto ao imaginar a cena que Serafina faria se houvesse surpreendido os dois alguns minutos antes.

— Você não usa óculos para trabalhar?

— Uso — respondeu Donna, sem jeito.

— Por que você os tirou? Para ficar mais bonita diante das visitas?

— Não, não foi por isso! — respondeu Donna, com vivacidade. Os óculos estavam ao lado do bloco de anotações, no mesmo lugar onde Donna os colocara quando se dirigira ao pátio, a fim de descan­sar alguns minutos de um trabalho ininterrupto. Teria sido mil vezes preferível não ter saído da sala e não ter encontrado Rick lá fora.

Agora, pelo menos, não estaria morrendo de vergonha diante da figu­ra severa de Serafina.

— A culpa é minha — disse Rick, com indolência, ainda segu­rando a folha batida à máquina. — Fui eu que vim aqui perturbar o trabalho de sua secretária.

Havia um ar de insolência tão grande na sua postura que não condizia em absoluto com sua função de guarda-costas. Era evidente que Rick não vivia sob as asas de Serafina e que punha as manguinhas de fora toda vez que julgava necessário.

Donna apanhou os óculos em cima da mesa e apertou-os com força na palma da mão. Era ridículo pensar que um homem com as qualidades de Rick sacrificaria todos os seus desejos e ambições a fim de dedicar-se exclusivamente a uma mulher como Serafina — apenas por uma questão de lealdade profissional. Donna compreen­deu pela primeira vez que Rick era o verdadeiro senhor da casa. Além de proteger Serafina e sua fortuna, impunha o regime do patriarcado. Como ela não percebera isso desde o primeiro momento? Rick não afirmara certa vez que não se considerava escravo de mulher alguma?

— Eu já estou atrasada — disse Serafina, estendendo a mão para Rick. — Você podia ter me avisado ao menos que ia passar aqui primeiro.

— Desculpe. Eu me esqueci — disse Rick, beijando a mão que Serafina lhe estendeu.

Donna sentiu uma pontada de ciúme ao presenciar a intimidade que havia entre os dois e desejou de todo coração poder odiá-lo e não ser sujeita às oscilações de humor que experimentava na presença dele.

Agora a verdade estava clara como o dia! Serafina é que era a escrava de Rick, e não o inverso, como havia pensado inicialmente. Donna estava com as mãos trêmulas quando colocou as folhas de carbono na máquina, entre as cópias que ia bater.

— O que você achou das páginas que leu? — perguntou Serafina. A curiosidade em ouvir a opinião de Rick foi mais forte que sua pres­sa em sair da sala. — Você gostou?

— Gostei muito. Tenho certeza de que o livro será um sucesso.

— Eu me limitei a contar os fatos interessantes de minha carreira no cinema.

— Você fez bem. Esta é a maneira mais viva de narrar uma história.

— Você acha que os leitores vão entender?

— Claro que sim! Você tem alguma dúvida?

— Deus o ouça, meu querido! — exclamou Serafina, com um sorriso de felicidade. — Eu quero ter muitos leitores. . .

Serafina e Rick estavam de saída quando o criado entrou na sala com a bandeja do café. No instante em que Serafina avistou o copo de vinho rose, franziu a testa com uma expressão de contrarie­dade.

— O que é isso? Quem mandou você trazer esse copo de vinho?

— Fui eu que mandei — interveio Rick, com vivacidade. — Sua secretária não estava passando muito bem e eu pensei que um copo de vinho rose lhe faria bem.

— O que ela tem? — perguntou Serafina, com voz gelada, sem se voltar para Donna.

— Você tem que reconhecer, querida, que Donna está traba­lhando demais e que ontem ela ficou acordada até tarde para rebater um capítulo.

Serafina voltou-se para Donna com a fisionomia fechada.

— Você se queixou com alguém de que eu estou lhe dando tra­balho demais?

— Não, claro que não! — respondeu Donna, controlando com dificuldade sua indignação. — Não fui eu que pedi esse copo de vinho. Se eu estou meio pálida esta manhã é porque não tenho tomado sol nestes últimos dias.

— Coitadinha! Você não tem tempo para vestir seu biquini e expor-se seminua aos olhares dos empregados da casa. . .

— Eu não uso biquini — disse Donna, vermelha como um pimentão.

— Como você toma banho de sol, então? Nua em pêlo?

— Eu não tenho esse hábito. Reconheço que vim aqui para tra­balhar e não para tomar banho de piscina. Sei que não sou uma convidada da casa, muito menos uma hóspede. Gosto do meu trabalho e não estou me queixando de nada.

— Ainda bem. Eu estou lhe pagando um excelente ordenado e não vejo motivo para você se queixar de excesso de trabalho. Outra coisa... No futuro, prefiro que você não beba vinho nem outras bebidas alcoólicas durante o trabalho.

Donna sentiu uma onda de calor lhe subir à cabeça. Sua primeira reação foi atirar o copo de vinho na cara de Serafina. Controlou-se com dificuldade e ouviu em silêncio a repreensão que não merecia. Sua raiva deve ter transparecido no rosto, pois Rick conduziu mais do que depressa Serafina para fora da sala.

— Vamos, querida. Por que fazer uma cena por causa de uma bobagem insignificante? Há mais vinho na adega da casa do que podemos beber a vida inteira. . .

Donna respirou aliviada quando os dois saíram finalmente da sala. Voltou a sentar-se diante da máquina e afundou a cabeça entre as mãos. Tudo saíra errado naquela manhã. Ela se sentiu completamente confusa e desorientada. Não sabia o que pensar de Rick. Estava sendo honesto com ela ou se aproveitava de sua inexperiência? Era terrível estar tão apaixonada assim por um homem, especialmente por um homem maduro e vivido que pertencia de corpo e alma a outra mulher.

Lembrou-se da conversa que tivera com Adone no carro. Rick se vingara a sangue-frio do assassino de sua mãe. Era provável que essa tragédia da infância o houvesse transformado no homem que era atualmente. Não apenas tinha endurecido seu coração como mar­cado sua mente.

Serafina era bela, fascinante como poucas e tinha o talento da representação dramática. Mas será que sabia confortá-lo nos momen­tos de tristeza? Na única noite em que passaram juntos em Roma, Donna notou que Rick sentia falta de calor humano e era essa quali­dade provavelmente que Serafina não tinha para lhe dar.

Ou será que ela estava sendo de novo terrivelmente ingênua na sua opinião sobre Rick? Assassino, jogador, amante de uma milionária que vivia apavorada com a ideia de ser sequestrada. . . Rick era tudo isso, no fundo.

Donna estendeu a mão e passou a ponta do dedo na beira do copo de cristal. Rick dissera que o vinho rose aquecia o coração até de uma estátua de pedra. Era isso que ela desejava no íntimo — que alguém aquecesse seu coração. Sentiu um calafrio e, sem pensar duas vezes, levou o copo de vinho aos lábios.

No mesmo instante o vinho correu pelas veias, provocando uma sensação deliciosa de calor. Era inegável que havia um prazer doce-amargo nos momentos que passava na companhia de Rick. De agora em diante, no entanto, estava decidida a manter distância dele, pelo menos enquanto estivesse sujeita a essas flutuações de humor na sua presença. Acima de tudo, não podia correr mais o risco de ser nova­mente beijada por ele.

O olhar que Serafina lhe lançou da porta, antes de sair da sala na companhia de Rick, era cortante e gelado como o fio de uma navalha. Serafina faria qualquer coisa para impedir que uma outra mulher lhe roubasse o amante. O laço entre os dois estava cimentado há muitos anos e não podia ser desfeito de uma hora para a outra, muito menos por alguém inexperiente como ela. A verdade indiscutível, contra a qual era inútil se revoltar, era que Rick pertencia de corpo e alma a Serafina. Nenhum dos dois era livre para romper o laço forte que os unia.

 

A manhã estava radiante. Os raios dourados do sol teciam desenhos em cima da cama no momento em que Donna acordou e espreguiçou os braços, vestida com uma camisola leve de náilon. Viu as manchas claras de luz que se moviam sobre os afrescos do teto e douravam os rostos dos anjos gorduchos, como se estivessem flutuando no alto das nuvens. Após cinco semanas na Villa Imperatore, Donna estava perfeitamente ambientada ao pequeno quarto confortável com corti­nas grossas, tecidas à mão, e móveis de vime. Da sacada do quarto ela avistava as cocheiras da casa. Até então não tivera tempo para andar a cavalo, mas Serafina insistia sempre para ela dar uma volta pelos arredores.

Muito frequentemente havia convidados na casa, que trotavam em cavalos bem tratados pelas alamedas de cascalhos miúdos que leva­vam ao pé do morro. Serafina costumava acompanhar seus amigos em um arreio de mulher, no qual as duas pernas caíam para o mesmo lado. Envolta numa manta verde e com um chapéu de abas largas encobrindo os olhos, ela parecia uma dama do início do século. Serafina usara esse traje num dos seus filmes favoritos e, como era atriz e fazia o que bem entendia, podia dar-se ao luxo de andar com essa indumentária sem parecer ridícula.

Serafina passeava em geral a cavalo na companhia de Rick, muito bonito usando culote e botas de cano alto. Será que Rick se lembrava durante esses passeios da fazenda dos pais na Sicília? Tinha sonhos e ambições que não confiava a ninguém, nem mesmo a Serafina?

Os dois faziam um par invejável, pensava Donna, observando-os de trás da cortina do seu quarto. Um dia ela ouviu uma voz alta chamá-la do pátio.

— Donna, chegue na sacada!

Ela fingiu que não estava no quarto e permaneceu imóvel onde estava, certa de que Rick não podia vê-la atrás da cortina.

— Eu sei que você está no quarto! Se você não aparecer na janela, eu vou subir aí!

— Não, não faça isso! — exclamou Donna, aparecendo na sacada. — O que você quer?

— Quero pedir desculpa pelo que aconteceu.

— Não foi nada.

— Serafina ficou com ciúme de você.

— Eu percebi. A reação dela foi perfeitamente natural. Ela gosta de você e não quer dividi-lo com mais ninguém. Eu não quero ser motivo de briga entre vocês dois. Prefiro ficar no meu canto. . .

— Isso inclui Adone também?

— Claro.

— Pois não parece. Vocês dois estão muito amigos de uns tempos para cá. Outra noite ouvi as músicas que vocês tocaram no piano. Por sinal, você toca muito bem. O que você vai fazer hoje à noite? Tem algum programa?

— Adone vai me levar a uma festa no iate de uns amigos — disse Donna, procurando aparentar naturalidade; na realidade, estava tensa com a presença de Rick embaixo da sacada.

Só o fato de falar em festa trazia à lembrança a noite passada em Roma, quando os dois dançaram até de madrugada. Ela tentara transferir para Adone o que sentia por Rick, mas era impossível. Desejava ardentemente o contato físico de seus braços e a distância que mantinha dele era mais dolorosa do que uma separação definitiva. A dor física podia ser suportada com paciência, mas o sofrimento da frustração era insuportável. — Ele não disse nada a você?

— Não. Tenha juízo — acrescentou Rick, com a fisionomia repen­tinamente dura. — Adone é muito insinuante e obtém tudo o que deseja. Eu preferia que você não fosse a essa festa. Adone tem alguns amigos que não são absolutamente do meu agrado.

— Você não manda na minha vida! — exclamou Donna, com um risinho nervoso. — Desde quando você toma conta de mim? Aliás, para início de conversa, você é muito mais perigoso do que Adone.

— Ouça o que eu estou dizendo. Eu conheço Adone como a palma da minha mão. Ele possui um temperamento ardente e não admite ser contrariado em nada. E já observei a maneira como ele olha para você. Vi o desejo nos olhos dele.

De fato, havia um aspecto perigoso em Adone, um traço que ele herdara, por sinal, de Rick.

— Não tem perigo — disse Donna, com a voz aparentemente segu­ra. — Eu sei tomar conta de mim mesma e Adone respeita meus sentimentos.

— Que sentimentos? Para que dar esperanças quando você sabe que não pretende satisfazê-las?

— O que você quer dizer com isso?

— Meu pensamento está bem claro. Você não é mais criança. Ouça o que lhe digo: mantenha distância de Adone e dos amigos dele. Para o seu próprio bem.

— Chega de conselhos! — exclamou Donna, furiosa com a atitude paternalista de Rick. — Não banque meu pai. Eu vou aonde eu bem entendo no meu tempo livre. Guarde seus conselhos para Serafina.

— Seja razoável. Eu estou dizendo isso para não acontecer alguma coisa desagradável com vocês dois.

— Eu corro um risco maior quando me encontro com você nas costas de Serafina! Você pode estar acostumado a esse joguinho clan­destino, mas ele não me agrada nem um pouco. Eu gosto de agir às claras!

— E com Adone, você age às claras?

— Claro! Serafina finge que não sabe de nada.

— Foi sempre assim. Ela faz todas as vontades do filho. É por isso que as namoradas que Adone teve até hoje não foram mais que simples distrações. Ele nunca se prendeu a nenhuma delas.

— E o que são as namoradas para você?

Rick guardou silêncio durante alguns segundos, como se não sou­besse o que responder.

—Eu só não quero que você se arrependa mais tarde... Quem avisa, amigo é.

— Eu me arrependo mais quando me encontro às escondidas com você. Por que você está tão preocupado comigo? Será que está com ciúme de Adone?

— Não seja boba! — respondeu Rick, impaciente.

No silêncio que se seguiu, ouvia-se apenas o canto das cigarras e os ruídos metálicos que o cavalo fazia quando balançava a cabeça e sacudia as argolas do freio.

— No fundo, você é igualzinho a Adone — disse Donna após um momento. Ela estava com os lábios tão secos que tinha dificuldade de falar claramente. — Você nunca percebeu a semelhança que existe entre vocês dois?

De novo houve um intervalo de silêncio. Somente o canto estri­dente das cigarras feria o ar quente da manhã.

— Já, já percebi — disse Rick por fim, com a testa franzida. — Mas isso não vem ao caso no momento. Se você tem juízo na cabeça, eu lhe peço de todo o coração que mantenha distância de Adone. Claro, você é livre para fazer o que bem entender. Tome cuidado, porém! Quando menos esperar poderá suceder um imprevisto de que você não vai gostar.

Rick deu um puxão na rédea e dirigiu o cavalo para a cocheira. Donna afastou-se da sacada e voltou ao quarto. Por que Rick não sentia nenhuma afeição por Adone e só via no rapaz os defeitos de sua própria juventude? Ele não aceitava por acaso a paternidade do filho? E o marido real de Serafina, onde morava atualmente? O que fazia? Existiria em carne e osso ou fora inventado apenas para justi­ficar a existência do filho ilegítimo?

Donna sentou-se no sofá e colocou a almofada atrás das costas. Em dado momento, ocorreu-lhe que Serafina nunca fora casada e que ela contava essa história só para salvar as aparências. Alguém cui­dara de Adone durante os anos que passara em Hollywood, pelo menos até ela estar em condição de ter uma casa onde pudesse viver tranquilamente com Rick, o único homem de sua vida.

Fora assim desde o início, quando os dois criaram essa lenda para afastar as suspeitas.

Serafina escolhera essa solução deliberadamente, como se sua exis­tência privada fosse um. filme dramático, repleto de mistérios e de subentendidos. Tanto ela quanto Rick gostavam de viver à margem da sociedade, numa espécie de conspiração particular. Sem falar que esse clima de mistério tinha a vantagem de manter os importunos à distância, intimidados com a publicidade que havia em torno do guarda-costas temível e do sistema de segurança montado na casa para impedir a aproximação dos estranhos e dos indesejados. Todos os marginais sabiam que Rick havia matado um membro da poderosa Máfia.

Donna deu um suspiro e correu a mão pelos cabelos curtos. Talvez fosse preferível seguir a sugestão de Rick e desmarcar a ida à festa naquela noite com Adone. Aliás, para falar a verdade, não estava com a menor vontade de sair. Além disso, os amigos de Adone não eram pessoas de seu nível social. Eram todos filhinhos de papai, uma raça privilegiada que nunca soubera o que era ganhar a vida e que só tinha uma ideia na cabeça: divertir-se a qualquer preço.

Donna acendeu a luz do quarto de vestir, passou os dedos pelo vestido de crepe indiano que tinha separado para usar naquela noite. Podia dar a desculpa de que estava com dor de cabeça, se bem que, ao agir assim, seguindo a sugestão de Rick, estava obedecendo ao ho­mem que não tinha o direito de mandar na sua vida.

Inquieta, agitada pelas dúvidas, Donna andou de um lado para o outro do quarto e levou um susto quando o belo relógio de porcelana bateu as horas em cima da cômoda. Adone combinara encontrar-se com ela às sete e meia no hall da entrada. Tinha apenas meia hora para tomar banho, escovar os cabelos e vestir-se... a menos que encontrasse nesse meio tempo uma desculpa para não ir à festa no veleiro.

Por outro lado, se não fosse à festa, era bem provável que Adone bebesse demais, jogasse cartas até tarde e acabasse aprontando uma das suas. Donna não tinha ilusões a respeito de Adone, mas notara que ele levava uma existência mais comportada depois que começara a sair com ela. Num certo sentido, gostava dele, de sua conversa franca e divertida, embora não pudesse fingir por um só momento que Adone era Rick. Ah, que Rick fosse para o inferno! Por que tinha que se meter na sua vida?

Mais por rebeldia do que por vontade, Donna apanhou o robe de chambre e dirigiu-se ao banheiro que ficava no corredor. Tomou um banho rápido de chuveiro e protegeu a cabeça com a touca, porque, não tinha tempo para secar os cabelos. Passou talco no corpo e saiu às pressas do banheiro com a toalha molhada na mão. No momento em que ia entrar no quarto, esbarrou em alguém que estava passando naquele momento pelo corredor sombrio.

Procurou se apoiar na parede para não cair quando duas mãos a seguraram com força e praticamente a levantaram do chão. Voltou a cabeça, assustada, e encontrou os olhos de Rick fixos nos seus. O tempo parou repentinamente quando os dois se encararam fixamente, abraçados no meio do corredor. Por entre as pestanas compridas, Donna avistou as pálpebras entreabertas, no fundo das quais brilha­vam dois olhos negros. Ela continuou deitada nos braços dele, com os olhos lânguidos, como se tivesse acabado de acordar naquele instante. Rick fitou-a atentamente, como se quisesse memorizar cada detalhe do seu rosto, inclusive as manchas rosadas que avivavam a cor da face. O coração dela disparou como se fosse sair pela boca.

— Sabe o que eu devia fazer com você?

— O quê?

— Devia trancá-la no quarto e não deixar você sair hoje à noite. Meu conselho entrou por um ouvido e saiu pelo outro. Você vai à festa?

— O que você tem contra isso? Afinal, não é a primeira vez que saio à noite com Adone e nunca aconteceu nada demais.

— Eu não simpatizo nada com o dono do iate. Ouvi dizer que ele é desonesto no jogo. Adone pode ser um malandro com as mu­lheres dos outros, mas é de uma honestidade total no jogo. Se souber que o dono do iate é um jogador profissional que vive disso, certa­mente haverá uma briga séria entre os dois. É isso o que eu receio.

— Mais uma razão para eu ir à festa! Adone se comporta me­lhor quando está comigo.

— E como ele se comporta quando vocês estão sozinhos? — per­guntou Rick, segurando-a pelos cabelos e afastando a cabeça para trás, de modo a observá-la fixamente no fundo dos olhos.

— Melhor do que você, isso eu garanto.

Ela tinha que se defender de Rick e o ataque era a melhor saída neste caso. Rick, porém, não se deu por vencido. Puxou-a para si com um gesto brusco e beijou-a nos lábios com tal intensidade que ela teve a sensação exata de que ia desfalecer nos braços dele.

— Divirta-se — disse Rick, soltando-a por fim. — Talvez você esteja mais segura com Adone do que comigo.

Donna entrou correndo no quarto, fechou rapidamente a porta atrás de si e apoiou-se no batente com as pernas bambas. Estava ofegante e com a pele toda arrepiada quando tirou o robe de chambre e enfiou o vestido pela cabeça. Ouvira falar num tipo de percepção física superaguçada, numa espécie de alquimia que une dois corpos que se dese­jam intensamente. Era isso o que estava ocorrendo entre Rick e ela.

Instintivamente, levou as mãos aos quadris e teve consciência do próprio corpo como um homem teria naquelas circunstâncias. Sentiu a pele macia, a forma dos seios, a carne jovem e palpitante sob os dedos. Rick a desejava ardentemente, isso estava claro como o dia. Ela também o desejava de todo o coração, mas algo lhe dizia que essa união era maldita e que terminaria mal para os dois.

Mesmo assim, não podia esquecer a sensação do beijo trocado no corredor. No fundo, Rick a castigava sexualmente por suas pequenas agressões. O que podia fazer? Ela era forçada a dizer coisas grosseiras porque não podia ser carinhosa com ele. Se fosse terna e meiga, como desejava, essa atitude levaria a complicações ainda maiores.

Ao se mirar no espelho, Donna ficou perplexa com a excitação que havia em seus olhos. O rosto, inclusive, parecia estar inchado de pra­zer e até mesmo os cabelos estavam mais sedosos e macios. Sentou-se na beira da cama, calçou os sapatos pretos de salto alto e colocou os brincos de topázio nas orelhas. Seu pai costumava dizer que ela se parecia com a mãe e que as duas tinham muita classe. Donna sorriu ao se lembrar desse comentário e apanhou o casaquinho de veludo que combinava com o vestido. No momento em que desceu a escada, rezou para que Adone já tivesse se despedido de Serafina e estivesse aguardando por ela no hall de entrada, como estava combinado. Ela não queria entrar na sala e encontrar Rick na companhia de Serafina. Ao descer o último degrau, ouviu vozes que vinham da sala.

— Não se meta na minha vida! Eu só devo contas à minha mãe e a mais ninguém! Não se esqueça de que você é apenas um empre­gado da casa. Apesar desse seu porte imponente, você não passa de um mero guarda-costas. Faça o favor de calar essa boca!

— Calma, meu filho — disse Serafina, procurando dominar a fúria de Adone com sua voz melodiosa. — Rick tem razão nesse caso. Você andou perdendo muito dinheiro no jogo ultimamente e isso não está certo. Você precisa dar um jeito, filho. Você já gastou toda a mesada que lhe dei?

— Eu tenho uma dívida que deve ser paga sem falta! — exclamou Adone, com voz de desespero. — E não posso passar por caloteiro!

— Você devia ter pensado nisso antes.

— Cale essa boca, seu! Não foi com você que eu falei!

— Não lhe dê mais nenhum dinheiro, Serafina — disse Rick, com voz impassível. — Se ele deseja jogar pôquer, que trabalhe primeiro para ganhar o dinheiro.

— Eu já disse que tenho uma dívida! — exclamou Adone, louco de raiva. — Não se meta na minha vida, Rick! Você não manda nada aqui! E não pense que eu tenha medo de sua carranca de bandido siciliano. Sei que você é faixa preta de karatê e que matou um homem a sangue-frio. Mas nem por isso vou tremer de medo diante de você!

— Silenzio! — gritou Serafina, com a voz alterada. — Não fale nesses termos com Rick, filho! Eu não admito que você use essa lin­guagem insolente nem que faça referência a coisas que são do pas­sado. Por favor, Rick, não leve a mal o que ele disse. Ele não sabe o que diz. . .

— Não foi nada — disse Rick, com a mesma voz impassível de antes. — Eu só desejo esclarecer um assunto. Você vai à festa para dançar ou para jogar cartas?

— Para dançar, é lógico! — respondeu Adone de má vontade. — Foi por isso que eu convidei Donna para ir comigo. É isso que está preocupando você?

— Onde você está querendo chegar?

— Não sei. . . Percebi que ultimamente você está dirigindo uma atenção muito especial a ela. Reconheço que Donna é uma garota atraente, tem cabelos cor de mel e um corpo que deixa qualquer um com água na boca. . .

— Chega de conversa! — explodiu Rick, impaciente. — Se eu me preocupo com ela é porque sei na companhia de quem você anda. Ela não está habituada a se misturar com parasitas sociais, muito menos com mulheres que trocam de marido como quem troca de roupa. . .

Foi nesse ponto da conversa que Donna decidiu entrar na sala e tirar Adone de uma situação embaraçosa, antes que os dois se atra­cassem numa luta corporal por sua causa. Com ar casual e um sorriso no rosto, ela entrou na sala como se não tivesse ouvido uma única palavra da discussão anterior.

— Ah, desculpe meu atraso, Adone. Eu me demorei um pouco mais do que contava porque sequei os cabelos. . .

— Não tem nada, querida — disse Adone, beijando-a no rosto. — Você está cheirosa como se saísse de um canteiro de papoulas!

Adone segurou-a pelo braço, despediu-se da mãe e saiu da sala sem olhar para Rick.

— Ah, como eu odeio esse cara! — murmurou no pátio, ao abrir a porta do carro para Donna entrar. — Eu não entendo como mamãe suporta a presença desse cretino. Ela acha que o mundo vai desabar no dia em que botar Rick na rua!

— Não se aborreça à toa — disse Donna. — Sua mãe provavel­mente tem necessidade dele.

— Eu sei disso. Mas por que ele tem que meter o nariz onde não é chamado? Ah, ele que vá para o inferno!

No instante em que o pequeno carro esporte partiu a toda veloci­dade pela estrada estreita, Donna apertou instintivamente as mãos em cima do colo. Adone, pelo visto, estava de péssimo humor e ela se arrependeu amargamente por não ter ouvido o conselho de Rick.

— Adone. . .

— O quê?

— Eu estou com um pouco de dor de cabeça. Você não se importa de me deixar em casa? Eu não estou realmente com disposição para ir a essa festa.

— Você diz isso agora?

— Desculpe. . .

— Você se pintou e se vestiu toda para ficar em casa? Não seja desmancha-prazeres, querida! Você vai ser o sucesso da festa. As ou­tras mulheres podem estar cobertas de jóias, mas elas não têm essa pele macia nem esses cabelos dourados que você tem. Até Rick ficou com ciúme de mim. . .

— Eu sei que você está morrendo de vontade de ir a essa festa. . .

— Você também estava quando eu sugeri! — interrompeu Adone com vivacidade. — Você disse que seria gostoso dançar no deck iluminado, vendo as marolas quebrarem no casco, lembra? O que aconteceu de lá para cá? Por que você mudou de ideia de repente? Você ouviu por acaso nossa conversa na sala? Você tem medo que aconteça alguma coisa?

— Não, não é isso. . .

— É de Rick que você devia ter medo, querida, não de mim! É ele quem convive com marginais e não eu! Ele sabe mais coisas sobre os sindicatos de crime e sobre os mafiosos que andam pelas ruas da cidade do que eu poderia saber na minha vida inteira! Foi ele quem perseguiu um homem anos a fio pelos bares mal frequen­tados do cais. Não fui eu! Você precisa ver como ele embaralha as cartas do baralho, como um jogador profissional, sem mais nem me­nos! Não há marginal ou delinquente que não conheça Rick de vista. Ele é o "homem com o brinco de ouro na orelha". Pergunte a quem você quiser.

— De quem é aquele brinco?

— É a aliança que a mãe usava. Rick retirou-a do seu dedo antes dela ser sepultada. Os sicilianos são dramáticos por natureza. São tão severos em questões de honra quanto os córsicos. É por isso que Serafina é tão ligada nele. Ela interpretou tantas vezes esses dramas român­ticos no cinema que considera Rick um grande personagem do pas­sado. Rick, por sua vez, aceitou o papel na hora. Afinal, não é todos os dias que você encontra uma mulher bela e rica como madrinha!

— Eu não creio que seja só por isso — observou Donna, tomando veladamente a defesa de Rick.

— Por que mais, então?

— Qualquer pessoa percebe imediatamente que os dois se amam sinceramente.

— Amor físico, você quer dizer?

— Talvez.

— É isso que nunca pude entender! Quando se trata de mamãe, eu sou terrivelmente moralista. Se um dia eu apanhar os dois em fla­grante, vou fazer o maior bafafá deste mundo! Rick porém é muito vivo, é esperto como o diabo e até hoje eu não pude surpreendê-lo. Ele tem um faro tremendo...

No momento em que Adone acelerou o carro e os pneus guincha­ram no asfalto molhado, Donna teve o nítido pressentimento de que naquela noite sucederia um desastre. Minutos depois, numa das cur­vas do caminho, Adone foi obrigado a brecar bruscamente, a fim de evitar a colisão com uma barreira que desabara na noite anterior e que obstruía uma parte da pista. O carro esporte rodopiou alguns metros no asfalto molhado antes de parar completamente. No instante em que estacou, Adone foi jogado para a frente pela força da freada e bateu com o rosto no volante. Donna ouviu o gemido de dor e, no instante seguinte, viu o sangue jorrar da boca ferida.

Ela soltou rapidamente seu cinto de segurança — Adone não estava usando o dele — e deitou com todo o cuidado a cabeça de Adone no banco.

— Você se feriu? — perguntou com voz ansiosa.

— Ah, está doendo terrivelmente!

— Não se mexa! Eu vou limpar seu rosto.

Donna enxugou o sangue com o lenço e avistou o corte fundo no lábio inferior. Alguns dentes da frente também estavam abalados em consequência da batida. Adone teria que ser medicado imediatamente.

— Vou chamar o médico! — exclamou Donna, alarmada.

— Um médico não, um dentista! — disse Adone, com o lenço na boca. — Eu não posso perder um dente da frente!

Durante o trajeto até o dentista, Adone comportou-se com uma bravura incrível. Não gemeu nem se queixou uma só vez, aguentou firme até o final com uma coragem admirável.

Donna passou as duas horas seguintes na sala de visitas com a mulher do dentista. As duas tomaram café e conversaram até tarde, enquanto Adone estava sendo medicado. Embora ele fosse em parte responsável pelo acidente, devido à maneira alucinada como dirigia, Donna admirou sua paciência na adversidade. Adone manteve a calma e não perdeu a cabeça um só momento durante o acidente. Pouco antes de sentar-se na cadeira do dentista, Adone pediu a Donna que não comunicasse nada a Serafina.

— Ela é muito nervosa e vai se assustar à toa.

— Está bom, eu não vou falar nada. Você precisa de alguma coisa?

— Não, obrigado. Eu estou bem.

Donna despediu-se de Adone e voltou para a sala de visitas, onde a mulher do dentista havia preparado um pequeno lanche para as duas.

A angústia da expectativa terminou algumas horas depois, quando o dentista deu por encerrada a intervenção cirúrgica.

— Ele tem dentes muito fortes e bonitos — comentou o dentista, chegando à porta da sala. — Seria uma lástima perder um dente da frente. Ele ficará com uma cicatriz no lábio inferior, mas não será muito visível. Felizmente correu tudo bem. Logo ele estará bom de novo.

— Ele pode voltar para casa? — perguntou Donna.

— Eu acho preferível ele passar a noite aqui. Ele perdeu muito sangue e está um pouco abatido. Eu fiz um raio X do maxilar e não há sinal de fratura. Mesmo assim, seria conveniente ele ficar algumas horas em observação. Nós temos um quarto de hóspedes onde ele poderá passar a noite.

Donna concordou com a sugestão do dentista.

— Neste caso eu vou me despedir dele — disse ela, dirigindo-se à saleta onde Adone estava deitado no sofá, com o rosto muito pálido e desfeito.

Ele estendeu a mão para ela e deu a entender que não podia falar devido ao curativo que tinha no lábio.

— Então, está mais calmo agora?

Adone balançou a cabeça e deu um sorriso triste.

— O dentista me contou como foi a operação. Deve ter doído terri-velmente. Ainda está doendo muito?

Adone tornou a sacudir a cabeça, dando a entender que esta­va bem.

— Procure descansar bastante. Eu vou voltar para casa e amanhã venho buscar você aqui.

Adone segurou a mão dela com força.

— Eu preciso ir, Adone. Eu volto amanhã. Talvez sua mãe queira vir comigo. Adeus, querido.

Ao entrar na sala de visitas, Donna avistou o telefone e ficou na dúvida se devia comunicar o ocorrido a Rick. Após um instante de indecisão, acabou desistindo da ideia. Era preferível deixar Adone descansar a noite toda em paz na casa do dentista do que tentar removê-lo para casa.

— Muito obrigada por tudo — disse ela ao despedir-se do dentista.

— Você vai voltar sozinha?

— Que remédio? — disse Donna com um sorriso, dirigindo-se ao carro que estava estacionado no portão.

Ela tomou a mesma estrada que tinham usado na ida. Como estava nervosa em consequência dos acontecimentos recentes, procurou dirigir com todo o cuidado, a fim de evitar algum problema imprevisto que agravaria ainda mais a situação.

Estava a meio caminho de casa, após ter deixado para trás a bar­reira caída no lado da estrada, que fora a responsável pelo acidente, quando o motor do carro morreu repentinamente. Ela só teve tempo para manobrá-lo em direção ao acostamento.

Após dar a partida diversas vezes, sem o menor sucesso, desligou a chave do contato com um gesto de impaciência.

— Logo agora! — exclamou em voz alta, louca de raiva e de frustração.

Felizmente, ela tinha parado numa reta e o farol alto do carro ilu­minava até uns cinquenta metros adiante. De qualquer maneira, estava no meio de uma estrada que tinha pouco movimento à noite, sem saber o que fazer e sem nenhuma disposição para andar a pé o resto do trajeto. O melhor jeito era continuar dentro do carro, trancar as portas e deitar-se no banco de trás, embrulhada na manta que havia ali. Na manhã seguinte, bem cedo, partiria a pé para casa. Era prefe­rível isso do que andar por uma estrada deserta no escuro, vendo as sombras que se formavam na beira do caminho e que causavam uma impressão desagradável.

A fim de confirmar a escuridão da noite, ela apagou os faróis du­rante alguns segundos. A noite estava negra, sem a menor claridade. A lua estava encoberta pelas nuvens, pelo visto. Ela sentiu um arrepio de medo e tornou a acender os faróis do carro.

Tremendo de frio, encolheu-se toda no banco de trás, cobriu-se com a manta de lã e fechou os olhos. No mesmo instante, lembrou-se das palavras de Rick, do conselho que lhe dera para não ir à festa no iate. A noite inteira fora um desastre, do começo ao fim. Em vez de estar deitada confortavelmente na sua cama, lendo um livro, estava perdida no meio de uma estrada deserta, sem ninguém para lhe fazer companhia. Se Rick ao menos estivesse ali para conversar com ela. . .

Bem ao longe podia avistar as luzes dos barcos de pesca que esta­vam ancorados no canal, aguardando a madrugada para saírem em direção ao mar alto. O céu estava negro como piche e algumas estrelas brilhavam como faróis. Somente uma jovem apaixonada podia esca­lar o céu, como dissera Rick, com as asas brilhantes da inocência. Somente alguém que não jogasse o amor fora, como se fosse um sentimento sem valor. Alguém que guardava o corpo e o coração puros para o homem que amava.

Esse homem, porém, não poderia nunca ser Rick. . . Rick andara muito tempo pelos antros do crime e do vício. Era preciso encontrar alguém que tivesse os olhos puros.Mesmo porque a vida dele estava definitivamente ligada á Serafina.

Era loucura pensar que podia tomar o lugar dela. Depois que terminasse o trabalho na casa de Serafina, partiria dali e apagaria da memória todas as recordações dos últimos meses.

Um dia, muitos anos depois, esqueceria ate mesmo que conhecera certa vez, no alto do Coliseu, um homem belo e moreno que a fascinara com suas palavras misteriosas.

 

Foi o toque de uma mão que a acordou na manhã seguinte. Ela sentou-se no banco com um grito de susto, tonta e com frio, o pescoço dolorido em consequência da posição em que dormira no interior do carro.

A porta da frente estava aberta e havia alguém inclinado sobre seu rosto. Instintivamente, ela fez um gesto com a mão para afas­tá-lo dali.

— Sou eu, Donna. Não se assuste.

— Rick! Ah, que susto você me deu!

— O que aconteceu? Por que você não trancou as portas por dentro? É perigoso dormir no meio de uma estrada deserta com as portas abertas.

— Ah, eu me esqueci — balbuciou Donna, esfregando os olhos. A escuridão da noite dera lugar aos primeiros clarões da madru­gada. — Que horas são? O que você está fazendo aqui tão cedo?

— São cinco horas.

— Nossa, tão cedo assim?

— E você, o que está fazendo aí dentro do carro? Você teve algum problema? Adone ainda continua na festa?

— Ah, você nem sabe o que aconteceu. . .

— Eu faço ideia.

— Diga primeiro o que você veio fazer aqui.

— Serafina perdeu o sono e eu fui fazer um café para ela na copa. Aproveitei que estava de pé para dar uma espiada no seu quarto. Quando vi a cama vazia, resolvi dar um pulo até o iate para saber se estava tudo bem e se você queria voltar para casa.

— Nós nem chegamos à festa!

— Não diga! O que aconteceu?

Antes de responder à pergunta que lhe foi feita, Donna refletiu sobre as palavras que ouviu. Serafina tinha perdido o sono e Rick fora fazer uma xícara de café na copa. Isso queria dizer que os dois dormiam no mesmo quarto. Ela sentiu uma pontada no coração e voltou a cabeça para a frente, longe dos olhos dele.

— Ela estava com você?

— Quem?

— Serafina.

— Deixe Serafina em paz! Eu quero saber o que aconteceu com você.

Donna contou em detalhes o que acontecera na noite anterior.

— Adone pediu para não dizer nada a Serafina, a fim de não assustá-la à toa — terminou Donna.

— Qual! Só mesmo Adone para aprontar uma dessas. . . Ele podia ter provocado um acidente mais sério. Você não sofreu nada?

— Não, nem um arranhão. Eu estava com o cinto de segurança e não fui atirada para a frente, quando Adone brecou bruscamente. Com ele também não teria acontecido nada se estivesse com o cinto de segurança. Estava dirigindo como um doido por causa da discussão que vocês tiveram ontem à noite.

— Ah, você ouviu?

— Eu estava no corredor.

— Adone se aproveita da generosidade de Serafina para explo­rá-la vergonhosamente. Você sabe como Serafina suou para ganhar o dinheiro que ela tem hoje. Você acha justo que um homem da idade de Adone explore a mãe dessa maneira e não faça o menor esforço para encontrar um trabalho?

— Ele foi muito corajoso durante o acidente. Não se queixou uma só vez dos ferimentos que recebeu.

— E daí? Isso prova por acaso que ele é um homem? Ele tem um defeito que eu sempre detestei. . .

— Qual é?

— Ele se aproveita das mulheres, no amor, no dinheiro, em tudo. Elas fazem todas as suas vontades.

— Coitado! Ele está ferido. Será que você não sente nem um pouco de compaixão?

Era terrível que um pai pudesse falar assim do filho.

— É Serafina quem vai necessitar de compaixão quando souber o que aconteceu. Ela adora o filho e tinha esperança de que Adone entrasse um dia para o cinema e fosse um ator tão idolatrado quanto Rodolfo Valentino. Em vez disso, ele prefere correr atrás das mulheres casadas. Ele não tem juízo. Afinal, ele tem idade para ganhar a vida honestamente, sem depender da mãe!

— Como você pode falar assim dele? Afinal, ele é o filho único de Serafina e vocês dois se amam, que eu sei.

— A afeição não deve nos cegar para os defeitos — disse Rick, com o rosto sério. — Você, por exemplo, merece o amor de um homem maduro e não o de um maricas que não larga a saia da mãe.

Rick voltou-se ao dizer isso, endireitou o tronco e levantou a cabeça para o céu, que estava começando a receber as primeiras tintas avermelhadas da manhã.

Donna fixou atentamente a face morena, o rosto sombrio de um anjo das trevas que não tinha encontrado o verdadeiro céu. Devia ser terrível sujeitar-se aos caprichos de Serafina, amá-la, protegê-la e, ao mesmo tempo, receber suas carícias e repreensões!

— O dia está nascendo — murmurou Rick. — Estamos sozinhos aqui como dois náufragos da estrada. Somente as andorinhas e as lebres são testemunhas de nossa presença.

— E os grilos também — disse Donna, com um sorriso.

— Você não quer sair do carro para esticar as pernas?

— Boa ideia.

— Podemos dar um passeio a pé antes de voltar para casa.

O coração dela pulsou num ritmo mais acelerado. Rick era o amante oficial de Serafina e q bom senso lhe dizia que devia manter distância dele. Ao mesmo tempo, o impulso para prolongar por mais alguns minutos a doce intimidade foi mais forte.

Rick estendeu a mão ao notar sua indecisão momentânea.

— Vamos. A manhã está linda. É um pecado voltar para casa num dia desse.

Pecado é namorar o amante de outra, pensou Donna enquanto caminhava ao lado dele pela estrada deserta. Pouco adiante, subiram no barranco e tomaram uma trilha que atravessava o campo coberto de orvalho. Caminharam em silêncio alguns minutos, conscientes da atração física que os aproximava irresistível-mente um do outro. Era uma sensação estranha, contagiante. Passaram por baixo das árvores copadas onde as cigarras cantavam e as borboletas voavam de um lado para o outro, afoitamente, à procura dos primeiros raios de sol. De quando em quando Rick voltava a cabeça com um sorriso no canto dos lábios, como se os dois fossem cúmplices de uma cons­piração.

Donna, porém, estava arrependida de ter aceitado o convite. A presença de Rick tinha o poder de perturbá-la completamente. Ela tinha a impressão de que uma chama ardia em seu corpo.

— É assim que duas pessoas devem passear. Desfrutando o silên­cio e o prazer da companhia. Você quer voltar? — perguntou Rick em dado momento.

— Vamos um pouquinho mais adiante. Quero ver onde termina esta mata.

Era agradável saber que Rick apreciava sua companhia mas, como sempre, havia uma outra realidade que prejudicava o prazer do momento: Rick não fazia segredo da afeição que Serafina nutria por ele, nem da dedicação total que dirigia a ela.

Havia no entanto um aspecto na personalidade dele que só se revelava completamente na companhia de Donna. A frieza dava lugar à ternura, a dureza do rosto cedia a vez a uma expressão de carinho. Era como se Rick revivesse na presença dela a juventude perdida. Era um fiapo de inocência que surgia do passado, inocência que estava em geral asfixiada pela presença absorvente de Serafina, pela sofisticação de sua atitude, pela pose estudada de seus menores gestos.

Pouco adiante, havia uma clareira no meio da mata e, bem no centro, estava a construção mais estranha que Donna já tinha visto na vida, estranha e deliciosa ao mesmo tempo, como a choupana de um conto de fadas, as paredes de pedras cobertas de trepadeiras que subiam até o telhado de abas caídas.

— Essa construção no meio do bosque chama-se trullo sovrano — explicou Rick. — Em geral, não são encontradas nesta região da Itália, mas eu mandei construí-la aqui, no meio desta mata, e fiz questão absoluta de que fosse uma cópia exata das casas rústicas que encontramos normalmente no meio das florestas. É um abrigo, no fundo, só que com todas as comodidades de uma casa. É aqui o meu refúgio, o meu santuário, onde venho quando desejo desfrutar um pouco de paz e de tranquilidade.

— Que linda! — exclamou .Donna, fascinada, admirando deslum­brada a casinha de pedras saída diretamente das páginas de um livro de histórias infantis. O telhado era bem caído e coberto com pequenas telhas de ardósia cuidadosamente colocadas umas sobre as outras. A casa era um sobradinho de formato retangular, com janelas estreitas e altas, e a porta da frente oval, exatamente como num conto de fadas. — Eu jamais podia imaginar que encontraria uma casinha dessas no meio da mata!

— Quer ver por dentro?

Se passasse por aquela porta oval, pensou Donna com um senti­mento de ansiedade, o mundo lá fora seria definitivamente fechado. Rick observou-a com a expressão divertida, como se tivesse consciên­cia do desejo e do receio que lutavam no coração dela.

— Acho melhor deixar para outra vez. Podemos voltar aqui com mais calma — disse Donna por fim.

Rick era um homem primitivo que não se comportava segundo os moldes convencionais a que estava habituada. Não podia arriscar encontrar-se sozinha com ele no interior de uma casa perdida no meio do mato.

— Você não precisa ter medo, eu não vou tocá-la. Pensei apenas que podíamos tomar um café.

Donna deu um sorriso de alívio.

— Só um café?

— Só um café. Dou minha palavra. Está mais calma agora?

— Estou. Você costuma vir sempre aqui?

— Toda vez que tenho um tempo livre. Se pudesse, viria aqui todos os dias. Eu adoro esta casa, a mata em volta, o sossego, o canto dos pássaros.

Rick abriu a porta da frente com uma chave que levava no bolso do casaco, separada do molho de chaves, que estava presa numa correntinha de prata.

— Está vendo este chaveiro?

Donna examinou-o com atenção e viu a figura de um pequeno camelo esculpido numa peça de marfim.

— Sim. O que tem?

— Eu o ganhei de uma siciliana, há muitos anos. Ela me disse que o camelo é o símbolo da paciência e da resistência, razão pela qual é o único pagão admitido no paraíso de Maomé. Eu ando sempre com esse chaveiro no bolso e ele tem me dado sorte até hoje.

— Ele é muito bonito, realmente.

— Quer para você?

— Muito obrigada, mas você não pode se desfazer de um objeto que uma mulher lhe deu. Isso dá azar.

— Você não gosta de possuir as coisas que deseja?

— Nem sempre. Sobretudo quando pertencem aos outros.

Rick deu um sorriso e tornou a colocar o chaveiro no bolso do casaco. Em seguida, abriu a porta com um gesto firme da mão. Donna entrou na frente e parou no meio da peça, procurando acostumar a vista à penumbra.

As paredes eram pintadas de branco e as janelas de verde-garrafa. Embaixo de uma delas havia um sofá coberto de almofadas. As esquadrias das janelas eram esculpidas com figuras de aves e de animais selvagens. No peitoril de uma janela estava um vaso grande de cerâmica esmaltada a fogo. No centro da sala havia uma mesa larga com quatro cadeiras. Um tapete estampado cobria em parte o piso de lajotas. No fundo da peça, uma escada em caracol conduzia ao andar de cima.

— Gostou? — perguntou Rick, pendurando a capa impermeável atrás da porta. — Era assim que você imaginava?

— É linda, linda, linda — murmurou Donna, fascinada com a aparência rústica da casa. — É muito diferente do palacete onde vocês moram. Eu nunca imaginei que um homem como você gostasse das coisas simples.

— É minha outra personalidade — disse Rick com um sorriso, abrindo a porta de um pequeno armário onde estavam os mantimentos e algumas panelas. Ele apanhou um pacote de espaguete, uma lata de molho de tomate e uma panela grande de alumínio. — Eu aprecio o conforto da casa grande, mas gosto também de cozinhar de vez em quando.

— Você costuma trazer convidados aqui? — perguntou Donna, percorrendo com a vista os títulos dos livros que estavam na estante.

— Mulheres?

— Homens, mulheres, não importa o sexo!

— Raramente.

Rick abriu a torneira da pia e encheu a panela com água.

— Nossa água vem de uma nascente no morro.

— Que delícia!

— Voltando à sua pergunta anterior. Esta casinha não é um ninho de amor, como você está pensando.

— Eu não disse que era!

— Pois foi essa a impressão que eu tive. — Rick acendeu o fogão e uma chama azul brilhou embaixo da panela. — É uma reação natural, no fundo. Que motivo alguém tem para construir uma casa como essa no meio do mato a não ser para manter relações clan­destinas?

— Tem gente que aprecia a solidão. . . Nem que seja de tempos em tempos

— Talvez.

Donna apanhou um livro na estante e sentou-se no sofá.

— Foi você pessoalmente quem construiu esta casa?

— Foi.

— Não diga! Foi você quem fez o telhado de abas caídas?

— Lógico.

— Foi você quem esculpiu esses animais nas janelas? — insistiu Donna, sem esconder sua surpresa. — Foi você, Rick?

— Eu fui educado na Sicília, minha querida. Lá os meninos apren­dem desde cedo diversos ofícios. Meu pai me ensinou os rudimentos da carpintaria. Minha mãe me ensinou a usar uma goiva para talhar madeira. Ela era uma excelente escultora, por sinal. Comparado a ela, eu sou um reles aprendiz de marceneiro. Aliás, minha mãe foi assassinada com o mesmo instrumento que usava para esculpir a madeira.

— Que horror!

Rick abriu a lata de molho de tomate.

— Eu tinha quinze anos quando mamãe morreu. Parei de brincar depois desse dia. Eles a mataram por simples maldade, a troco de nada.

— Adone me contou.

— Como você prefere o espaguete? Bem cozido ou ai dente?

— Al dente, por favor.

— Adone contou alguma coisa a meu respeito?

— Mais ou menos.

— Eu adivinhei pela maneira como você passou a olhar para mim.

— Como foi que eu passei a olhar para você?

— Como se tivesse pena de mim.

— Você viu isso no meu olhar?

Rick deu um sorriso e jogou o espaguete no escorredor. Em segui­da, colocou a massa numa travessa e serviu o molho de tomate. Donna acompanhava atentamente cada um dos seus gestos. Era gostoso estar sentada na sala rústica, com um livro de ilustrações no colo e saber que Rick encontrava tranquilidade na sua companhia. Serafina, provavelmente, não comeria um espaguete na parte da manhã, muito menos feito com molho de tomate em lata!

Ela se enroscou no sofá com as pernas cruzadas e deu um suspiro de felicidade. Sabia que estava participando de uma refeição especial, muito diferente dos almoços e jantares que o copeiro servia na casa grande, para os hóspedes e os convidados de Serafina. Ali tudo era íntimo, acolhedor.

— Posso fazer seu prato?

— Por favor.

No momento em que Rick despejou o molho de tomate em cima da massa quente, ela sentiu o cheiro penetrante das ervas aromáticas. Ah, gostaria que aquela refeição se prolongasse pela tarde toda, que pudesse passar todos os dias algumas horas com Rick na casa de pedras e que, quando a tarde caísse e o orvalho borrifasse as pétalas das flores de gotinhas miúdas, Rick a estreitasse nos braços e os dois contemplassem em silêncio o anoitecer.

— O almoço está pronto! — exclamou Rick, esfregando as mãos.

— Que cheiro gostoso.

Rick abriu uma garrafa de vinho tinto e apanhou dois copos no armário da sala. — Está bom?

— Está divino! Você devia abrir um restaurante.

— Eu pensei nisso.

— Posso trabalhar com você?

Rick jogou a cabeça para trás e deu uma gargalhada alta.

— Imagine se um siciliano deixa a mulher servir os estranhos!

— Por que não?

— A mulher fica em casa, trancada a sete chaves!

— Você adora a Sicília, não é verdade?

— O que você quer? Foi lá que eu nasci.

— Você vai muito lá?

— Eu estou proibido — disse Rick, com um risinho de zombaria. — Eles me comeriam vivo se me apanhassem.

— Eles quem?

— A Máfia.

— Não brinque!

— Há uma pedra na Sicília, pichada com meu nome. Eles me odeiam mortalmente. Eu desobedeci aos regulamentos da confraria. Mais de uma vez, por sinal. . .

— E aqui? Você está seguro?

— Pelo menos mais seguro que lá, tenho certeza. Mas você não precisa se assustar. Ninguém vai nos surpreender no meio do almoço. Eles me odeiam mas respeitam minha privacidade. Sem contar que hoje em dia ninguém mata o outro impunemente. A polícia está de olho nas organizações clandestinas. Mesmo assim, ainda há muita selvageria na Sicília.

— E nos sicilianos também — disse Donna, levantando-se da mesa.

— O que você vai fazer?

— Vou lavar os pratos. Onde você guarda o sabão e a esponja de limpeza?

— Deixe isso para depois — disse Rick, levantando-se da cadeira. — Vamos conversar no sofá antes disso. Não é sempre que a gente tem a oportunidade de ficar a sós, sem ser interrompido.

— Você prometeu que ia se comportar.

— Mas eu não resisto. Vamos fingir só hoje que você é minha. Ela viu os olhos negros pairarem tentadoramente em cima de sua cabeça.

A mão dele pousou no seu pescoço como se fosse o caule de uma flor que ele podia partir com um gesto do dedo. . . Ela não ousou se mexer.

No momento em que Rick a enlaçou pela cintura, ela segurou a cabeça dele com as mãos e puxou-a na sua direção. Ele beijou-a com paixão, sorvendo as exclamações de prazer que ela dava de olhos fechados.

Donna abandonou-se nos braços dele como nunca se permitira antes com nenhum outro homem. Rick dizia palavras ternas no seu ouvido, palavras cujo significado muitas vezes ela não entendia, mas que sabia serem originárias da Sicília.

— É assim que você beija seus namorados?

— Eu nunca beijei ninguém assim antes.

Ela estava tão colada pele que o calor do corpo dele se difundia pela pele e lhe dava uma sensação deliciosa de bem-estar.

— Você fez bem. Eu; quero que você continue sempre assim. A moça pura, jovem, inocente que eu encontrei um dia no alto do Coli­seu. Se eu pudesse, trançaria você num convento. Lá pelo menos você estaria protegida. . .

Donna apertou os dedos na carne macia da nuca e lembrou-se que no andar de cima havia um quarto. Para ir até lá, bastava apenas subir alguns degraus da escada em caracol. Seu coração começou a bater rapidamente com esse pensamento e ela estava prestes a sugerir esse desejo quando a mão dele cobriu gentilmente sua boca.

— Não adianta a gente querer o impossível. — Ele segurou o rosto dela entre as mãos e fitou-a no fundo dos olhos. — Nem todos os sonhos podem ser realizados. Eu não quero perdê-la para sempre por causa de uma hora de prazer. Você entende?

— A lealdade significa mais para você que o amor?

— O amor passa com os anos.

— Não, não passa nunca!

— Eu sei que passa. Depois que o desejo é satisfeito, sobra apenas a amargura.

— Não é verdade!

— Eu não posso ferir a confiança que Serafina deposita em mim. Está acima das minhas forças.

— Isso não impede que sejamos amantes. Afinal, não estamos fazendo mal a ninguém. Eu só quero penetrar na sua intimidade, só uma vez!

— Como se fosse possível!

— Por que não?

— Se fosse algo tão simples assim, eu teria levado você para o quarto uma hora atrás. Eu sou humano, amor. Sinto prazer em ter uma mulher nos meus braços, principalmente você. Não me faça perder a cabeça e tratá-la desse modo! Você é algo muito especial para mim. Eu quero que você se lembre desse dia como de uma data importante em nossas vidas, e não como uma hora de prazer que deixa um gosto amargo na boca.

— Mas é triste a gente ser inocente a vida inteira — disse Donna, correndo os dedos sobre os botões de sua camisa. — Lembra o que você me perguntou uma vez?

— Quando?

— Quando você estava a cavalo embaixo da sacada.

— Ah, sim... O que foi?

— Você perguntou se eu gritaria por socorro se você pulasse a janela do meu quarto, no meio da noite.

— Eu estava brincando. . .

— Estava mesmo? — Ela pousou a mão sobre o peito dele. — Por que você está com a respiração ofegante? Foi o cigarro que deixou você assim?

— Não me tente, amor. Eu não sou de pedra.

— Eu sei que você é forte como um touro. Você tem ombros lar­gos, o pescoço grosso. . . Quando eu toco em você, minhas pernas amolecem. Eu fico toda arrepiada quando você me abraça. Se você me puser em cima de um pedestal, eu vou descer na hora. Eu não sou a imagem da virtude, como você está pensando. . .

— Chega, amor! — exclamou Rick, segurando-a pelos cabelos e fitando-a no fundo dos olhos. — Você faria isso com um rapaz de sua idade?

— Por que não? Ele pelo menos não teria seu controle de ferro. — Ela se afastou dele e foi até a janela. — Desculpe eu ter me atirado nos seus braços. Eu não sabia que você era tão honesto assim. . .

— Eu sou mais velho e mais experiente que você. Esse tipo de relacionamento nunca termina bem. Se eu a levasse agora para o quarto no andar de cima, que está escuro porque as janelas estão fechadas, a gente ia querer mais, sempre mais! Eu me recuso a fazer sua vontade.

— Você é quem sabe — disse Donna com um sorriso, ocultando a dor que sentia pela rejeição. — No fundo, talvez você tenha razão. Para que arriscar à toa sua amizade por Serafina? Eu aprendi a lição. No futuro, vou ser mais precavida e não vou interpretar alguns beijos trocados de passagem como se fossem sinal de algo mais profundo. Estou pagando por ser inexperiente nesse assunto.

— Um dia você vai me dar razão.

— Pode ser.

Rick apanhou a capa impermeável que estava pendurada atrás da porta e atirou-a em cima dos ombros. Com os olhos cerrados, o cigar­ro no canto da boca, voltou-se para Donna e encarou-a fixa­mente.

— Adeus, querida. Eu vou passar no dentista e ver se Adone já está em condição de ir para casa.

— Como é que eu faço para voltar?

— Há uma trilha na mata que leva diretamente à casa. Em questão de minutos você estará lá. Não se esqueça de fechar a porta quando sair.

Depois de lavar os pratos e os talheres na pia, Donna sentiu curiosidade de conhecer o quarto que havia no andar de cima. Subiu a escada em caracol e foi dar numa peça minúscula, cujas paredes eram caiadas de branco, como a cela de um monge. A cama estreita e dura estava coberta com uma manta xadrez. Na cabeceira da cama havia a reprodução de um castelo em ruínas no alto de um morro. Urzes e flores silvestres brotavam entre as paredes rachadas. Em cima da mesinha que havia ao lado da cama estava o retrato de uma mulher de meia-idade, numa moldura dourada.

Donna segurou o porta-retrato e examinou atentamente a fotografia. A mulher tinha cabelos negros e feições serenas. Ela tinha os mesmos olhos fundos e sombrios de Rick, a mesma boca grande e sensual.

Era a mãe dele, evidentemente, pensou Donna, colocando o porta-retrato em cima da mesinha. Foi somente então que ela avistou uma caixinha de madeira, trabalhada à mão, que estava atrás do abajur. Não resistiu à curiosidade e levantou a tampa para ver o que havia no interior.

No fundo da caixinha de madeira estava um par de máscaras de seda, urna preta, a outra prateada. As mesmas que os dois tinham usado no baile à fantasia em Roma. Ela se lembrou nitidamente do instante em que Rick estendeu a mão e retirou a máscara do seu rosto, no terraço do hotel, onde tinham saído para respirar o ar fresco da noite.

Rick guardou as máscaras do baile à fantasia da mesma forma que ela havia conservado o botão de rosa que encontrou na manhã seguinte na mesa do café. Era a única lembrança que tinham do en­contro furtivo, a recordação de uma aventura breve que tivera apenas a duração de uma noite.

Fechou cuidadosamente a caixa de madeira e tornou a descer a escada em caracol. Minutos depois, estava a caminho da Villa Imperatore pela trilha aberta na mata. Ao chegar lá, tudo voltaria a ser como antes. Ninguém ficaria sabendo que estivera durante algumas horas na intimidade de Rick, que partilhara alguns segredos que ele não revelava a ninguém, nem mesmo a Serafina.

 

Pela décima vez, Serafina segurou a fotografia do filho e exami­nou-a com atenção.

— Ele era tão bonito quando esta fotografia foi tirada, um ano atrás — murmurou, inconformada. — Essa cicatriz no lábio alterou completamente sua fisionomia. Ele adquiriu uma expressão amarga. . .

— Eu não acho — disse Donna, sentada na cadeira ao lado do sofá onde Serafina estava reclinada no robe amplo de seda grená. Donna estava com o bloco aberto no colo, pronta para anotar pacien­temente as palavras que ela ditava. Naquela manhã, contudo, a nar­rativa não estava progredindo rapidamente.

— Como não? Basta olhar para um e para outro. Eu conheço meu filho melhor do que você, cara.

— Disso eu, não duvido. Eu disse apenas que Adone tinha um lábio mais cheio antes do acidente e que a cicatriz alterou ligeira­mente essa característica. Mesmo assim, Adone continua sendo um rapaz extraordinariamente belo.

— Você acha mesmo? — disse Serafina, com um sorriso de falsa modéstia. — De qualquer maneira, esse acidente o amadureceu. Ele perdeu o ar infantil de antes. Ele sofreu muito com o corte, cara?

— Sofreu terrivelmente.

— E suportou com coragem a operação?

— Ele se comportou com uma coragem admirável. O dentista não deu anestesia para não haver relaxamento dos músculos da face. Adone aguentou tudo sem gemer uma vez.

— Fico contente em saber disso. E você acha mesmo que ele con­tinua belo como antes?

— Mais. Ele adquiriu uma expressão de homem maduro. . .

— Ainda bem — disse Serafina, pensativa. — Depois do acidente, há alguma coisa de semelhante entre Rick e Adone.

Donna também havia percebido isso. Quando Adone sorria, a boca assumia uma ligeira alteração muscular que acentuava a seme­lhança entre os dois.

Serafina recostou a cabeça na almofada e observou sua secretária com atenção. Os olhos verdes estavam muito brilhantes naquela ma­nhã e a pele do rosto estava esticada e macia.

— Você simpatiza com meu filho? — perguntou Serafina por fim, a entonação da voz cuidadosamente estudada, os olhos claros per­correndo os traços delicados de sua secretária inglesa que usava naquela manhã um vestido simples de trabalho, com mangas curtas e saia rodada.

Depois que chegara à Itália, a pele clara assumira uma tonalidade dourada, que combinava maravilhosamente com os cabelos louros. Por sinal, Donna passara a usá-los mais curtos que antes, com uma franja em cima dos olhos.

— Não sou só eu — respondeu Donna, com um sorriso. — Todas as moças que eu conheço simpatizam muito com Adone.

Serafina sabia que os dois faziam muitos programas juntos, toma­vam banho de piscina todas as manhãs, passavam algumas horas con­versando e tomando sol no gramado em frente à casa. Depois do acidente, Adone tomara mais juízo e não corria como antes quando dirigia o carro esporte. Deixara também de jogar cartas, como era seu hábito, e passava mais horas em casa, na companhia da mãe e de Donna. Além da piscina, a casa tinha um grande salão de jogos, onde havia uma mesa grande de snooker, impecavelmente cuidada, uma outra de pingue-pongue, um alvo de cortiça para o lançamento de pequenos dardos de metal e até mesmo um brinquedo eletrônico que Rick levara para casa porque Serafina achava divertido apertar os botões e ver as luzes se acenderem.

Havia também uma sala especialmente montada para projeção de filmes. Era muito divertido assistir às fitas antigas em que Serafina fazia o papel principal, bem como algumas comédias hilariantes da época áurea de Hollywood. Sentada na poltrona macia de couro, Donna era forçada a reconhecer que a Villa Imperatore oferecia todo o conforto de um hotel de luxo. Entretanto, o tormento de estar constantemente ao lado de Rick — e ser obrigada a manter uma distân­cia respeitável — não compensava o prazer das pequenas distrações.

Ela passou a sofrer de insônia. Ficava horas acordada na cama, rolando de um lado para o outro, pensando obsessivamente em Rick que, àquela hora, estava dormindo nos braços de Serafina.

Todas as manhãs, quando não havia material novo ditado no gra­vador, Donna sofria os tormentos do ciúme. Se Serafina não tivera tempo livre para continuar sua narração é porque se entregara a uma ocupação mais divertida e absorvente na companhia de Rick. Ah, maldita a hora em que fora amar um homem que estava preso de corpo e alma a outra mulher!

Naquela manhã Serafina chamou-a ao seu quarto para ditar algu­mas anotações porque o gravador não fora usado na noite anterior. Donna sentiu uma pontada de ciúme ao avistar as olheiras azuladas que Serafina tinha no rosto.

— Adone e eu conversamos ontem à noite sobre você — disse Serafina após um momento, acompanhando com a unha o desenho da almofada.

— Ah, sim? Falaram muito mal de mim?

— Pelo contrário. Adone simpatiza muito com você.

— Ah, é porque eu sou novidade — disse Donna, procurando colo­car-se na defensiva. — Isso vai passar com o tempo. Por falar nisso, eu queria agradecer a você por poder usar todas as comodidades da casa, como a piscina, o salão de jogos, a sala de cinema. . .

— A casa é sua, cara — disse Serafina, com um sorriso de satis­fação, feliz com o elogio que era feito à sua generosidade. — Não faça cerimônia.

— Muito obrigada.

— Quanto a Adone, eu só queria preveni-la de que ele é muito volúvel, como sempre foi, aliás, desde pequeno. Eu não quero que você sofra mais tarde com isso. Ele já magoou outras moças com esse comportamento leviano. Pelo que observei, você é uma jovem de princípios. . . Rick observou a mesma coisa.

— Eu não gosto de brincar com os sentimentos — disse Donna, corando ligeiramente ao ouvir a menção de Serafina à opinião de Rick.

Pelo visto, os dois haviam discutido a presença de Donna na casa e Rick deu a entender provavelmente que Adone estava tomando certas liberdades que não lhe agradavam.

Serafina percebeu o embaraço dela e procurou esclarecer o assunto segundo seu sistema habitual, que consistia em fazer perguntas dis­cretas, sem deixar transparecer que estava interessada em ouvir uma confidência.

— Você deixou algum namorado na Inglaterra?

— Não, por quê?

— Porque você corou quando mencionei a simpatia que Adone nutre por você.

— Eu corei? Não percebi.

— Agora estou começando a entender as coisas! Meu filho é real­mente irresistível e você se deixou seduzir completamente por suas palavras doces como mel. . .

— Juro que não há nada entre nós — murmurou Donna, procuran­do tirar partido da confusão que Serafina fazia sobre a situação.

— Eu sei que Adone está acostumado com moças livres, que fazem o que bem entendem. Você, porém, é reservada e bem-comportada. Só isso já é uma qualidade aos olhos de um homem exigente. Além disso, vocês dois são opostos em tudo, tanto física quanto moralmente. Adone saiu a mim. É extrovertido e sociável. Você é introvertida e reservada. Adone é impulsivo. Você é controlada.

— Concordo plenamente. Nós dois somos muito diferentes.

— Por falar nisso, Adone mencionou alguma coisa a respeito da noiva que tem em Florença?

— Não, não falou nada — disse Donna, procurando mostrar-se atônita com a revelação de Serafina. Na realidade, porém, a notícia não despertou nenhuma surpresa especial nela. Que diferença fazia se Adone casasse com uma italiana ou com uma francesa?

— É estranho que ele não tenha comentado nada com você. Vai fazer um ano que os dois estão praticamente noivos. Ela se chama Isabela e estuda num colégio de freiras em Florença.

— Provavelmente ele pensou que esse assunto não me dizia respeito.

— Isabela vai terminar os estudos no ano que vem e aí os dois vão marcar a data do casamento. Eu sou francamente favorável ao casamento, por sinal.

— Faço votos de que os dois sejam muito felizes.

— Queira Deus! Isabela é uma moça muito bem-educada e eu me dou muito bem com os pais dela. Ela tem tudo para ser uma esposa fiel e dedicada ao meu filho.

— E será, com certeza.

Serafina pelo visto desejava dirigir a vida de Adone da mesma forma que governava a vida na casa. Seu sentido de propriedade esten­dia-se igualmente a Rick e ao filho.

— Você entende a situação, querida?

— Entendo perfeitamente.

— Eu estou falando isso porque queria preveni-la.

— Muito obrigada por sua atenção.

— Sou eu quem lhe agradeço, cara, por sua compreensão.

Donna entendia claramente a razão pela qual Serafina escolhera Isabela para ser a esposa do filho único. Uma jovem submissa e obe­diente, recém-saída de um colégio de freiras, não criaria nenhum pro­blema na casa. Ela se deixaria levar pela mão como um cordeirinho. Os dois, evidentemente, iam morar na Villa Imperatore, na compa­nhia de Rick e de Serafina. Desta forma, Adone estaria sempre sob a dependência da mãe e continuaria a levar a existência submissa de filho único, até perder completamente as reservas de energia e de vitalidade que poderiam ajudá-lo a vencer sozinho na vida, por conta própria.

— Que idade ela tem?

— Ela vai fazer dezoito anos em junho.

— Ela é bem jovem.

— As moças na Itália amadurecem cedo.

Serafina recostou-se na almofada e apoiou a cabeça nas mãos, de maneira que as mangas amplas do robe deixaram os braços pratica­mente descobertos. Ela estava com uma pulseira de ouro no pulso, a insígnia das mulheres escravas na cultura islamita. Serafina porém não era escrava de ninguém. Pelo contrário, era ela que tiranizava os outros com seu temperamento possessivo. Mas que homem podia resistir ao encanto da ex-atriz? Apesar das mechas mais claras nos cabelos, Serafina continuava sendo uma mulher extremamente bela e desejável. A cabeleira negra que caía em ondulações sobre o pescoço e os ombros lhe dava um aspecto de mulher fatal.

Ela se espreguiçou com a graça de um felino e deu um pequeno bocejo de cansaço, sinal de que a conversa estava no fim.

É insuportável pensar que Rick pertence a essa mulher, pensou Donna, sentindo uma pontada no coração. Ela só tinha um objetivo na vida: satisfazer seu egoísmo. O amor-próprio estava visível nas me­nores linhas do rosto. A pele esticada e macia era a da mulher que encontrou uma satisfação completa nos braços do amante.

— Estamos entendidas?

— Perfeitamente.

— Você é uma moça sensata e não se deixará seduzir pela lábia do meu filho. Claro, eu não posso impedir que vocês dois namo­rem. . . Afinal, vocês são maiores e têm a liberdade de fazer o que bem entenderem. Por falar nisso, imagino que Adone seja um espe­cialista neste assunto. O pai dele é macho até a raiz dos cabelos. . .

Serafina, evidentemente, estava dando a entender de uma forma sutil que se orgulhava da paternidade de Adone, e Donna foi forçada a reconhecer que, de fato, Adone tinha muitos traços em comum com Rick, especialmente a virilidade exacerbada. Fez um gesto mais brusco e o caderno de anotações caiu no chão. Ela se inclinou para apanhá-lo e evitou encarar Serafina, com receio de que ela percebesse seu em­baraço.

— Meu Deus, já são quase onze horas e ainda não tomei meu banho! — exclamou Serafina, com um gesto estudado de espanto. — Até mais tarde, cara. Vamos terminar esse capítulo numa outra hora. Aproveite que o sol está quente para tomar um banho de pis­cina. Adone deve estar à sua espera no jardim. Não se esqueça de passar o creme no rosto, e tome cuidado com o sol na cabeça.

— Vou tomar — disse Donna, levantando-se do banquinho. — Até mais tarde.

Ela estava tensa, irritável, mas não era devido ao noivado de Adone. Conhecia muito bem a razão do seu mau humor — Rick tinha pas­sado aquela noite com Serafina! As olheiras fundas dela eram uma prova evidente. Embora não pudesse impedi-lo de agir assim, doía saber que ele saía dos braços de uma para atirar-se nos braços da outra!

Com suas maneiras sensuais e sedutoras, Serafina levava-o a esque­cer as horas que passara com Donna na casinha rústica no meio do bosque, quando tinham trocado tantos beijos e abraços, que só de lembrar a deixavam toda arrepiada.

O dia estava belo e ensolarado, mas Donna não tinha a menor von­tade de tomar banho de piscina com Adone, muito menos ficar sozi­nha na companhia do cavaleiro de pedra no pátio interno da casa. Dirigiu-se por isso ao jardim da frente, que era mais alegre e arejado que o dos fundos.

Ela desejava estar sozinha para refletir sobre tudo o que conver­sara com Serafina, mas seu desejo não foi atendido. Mal deu alguns passos embaixo dos galhos frondosos de uma árvore, avistou Adone e Rick sentados numa mesa do jardim.

Adone voltou-se ao ouvir seus passos e cumprimentou-a com um sorriso alegre.

— Que bom você ter aparecido, querida! Eu queria mesmo conversar com você.

Os dois homens estavam bebendo vinho tinto e beliscando uns peda­cinhos de queijo com azeitonas. Havia também fatias de pão integral, presunto cru e bolachas de água e sal.

Rick estava com uma camisa esporte aberta casualmente no peito. Donna gostaria de poder dizer que estava profundamente magoada com seu comportamento leviano, que era uma traição aos beijos e abraços que os dois haviam trocado no dia anterior. A presença de Adone, porém, impedia qualquer confissão íntima.

— Eu estou sem trabalho — disse Donna, lançando um olhar de relance para Rick. — Serafina está com preguiça de terminar o capí­tulo do livro. Parece que ela dormiu muito bem ontem à noite. . .

— Tome um vinho conosco — disse Rick, sem manifestar o menor sinal de que ouvira a indireta de Donna. — Adone, por favor, apanhe mais um copo e outra garrafa de vinho na copa.

— Pois não — disse Adone, levantando-se da mesa e acariciando o braço de Donna com os dedos. — Há um momento atrás, quando você entrou no jardim, eu tive a impressão exata de que você estava no claustro de um convento. Não sei se foi devido ao seu vestido claro ou à expressão de tristeza no seu olhar. Você dormiu bem à noite?

— Dormi como uma pedra.

— Você não se importa de ficar um minuto sozinha com Rick?

— Não, de jeito nenhum! — exclamou Donna, com uma risada. — Eu me sinto perfeitamente à vontade na companhia dele. Ele não me assusta mais como antes. Afinal, Rick é apenas um homem como outro qualquer. Ele também tem seus furos na armadura, a despeito da aparência de homem inacessível.

— Ah, finalmente encontrei alguém que não se intimida diante da aparência severa de Rick. Eu volto num minuto, querida.

Adone dirigiu-se à porta da frente e Donna acompanhou-o um ins­tante com a vista. Ao voltar a cabeça, encontrou o olhar de Rick fixo no seu. Ele estendeu a mão e segurou-a pelo pulso. Um tremor per­correu-lhe o corpo inteiro, como uma corrente elétrica. Ela retirou a mão de cima da mesa e afundou as unhas na palma, para desfazer a impressão que a presença dele produzia.

— Adone está certo de que você quer namorar com ele — disse Rick em voz baixa.

— E daí? Que mal há nisso? Você se julga porventura o único homem desejável nesta casa? Eu sou inglesa, meu caro. Não se esqueça de que somos uma raça emancipada e voamos de flor em flor, como as abelhas, provando o sabor de cada uma.

— Essa atitude cínica não faz seu gênero — disse Rick com o rosto sério, inclinando-se para trás na cadeira de braços, com o copo de vinho tinto na mão. — Eu preferia como você era antes.

— Eu também não gosto quando você assume esse ar de superio­ridade — retrucou Donna, encarando-o no fundo dos olhos. — Não sou sua criada para você me tratar desse jeito.

— Por que você acordou tão agressiva? Já tomou café? Não quer provar um pedacinho desse queijo gorgonzola com presunto cru? É uma especialidade da casa. Prove uma fatia.

— Muito obrigada, não estou com fome. — Ela afastou a cabeça e observou uma trepadeira coberta de flores brancas e amarelas.

— Os machos das borboletas atraem as fêmeas levando o perfu­me nas asas — comentou Rick, acompanhando o olhar dela. — O sistema é inverso entre os seres humanos.

— Não sei. . . O aroma do fumo e do creme de barbear é muito excitante. Felizmente, não são todas as mulheres que se deixam sedu­zir por essas ninharias. Algumas têm a cabeça no lugar. .

— Ah, sim?

— Ontem eu estava sonhando. . . delirando.

— E agora você acordou?

— Exatamente. Acordei para a realidade. Eu devia estar fora do meu juízo normal quando permiti que você me beijasse.

— Pelo que me lembro, você estava perfeitamente sóbria. O que aconteceu nesse meio tempo? Por que essa amargura repentina?

— Você não adivinha?

Donna lembrou-se de Serafina, reclinada languidamente no sofá, as pálpebras pesadas de langor sensual.

— Não t&iiho ideia.

— Sua amante está sabendo que você pula a cerca quando ela vira as costas?

— Minha amante? Que amante?

— Ah, não se faça de sonso! Você sabe muito bem de quem estou falando.

— Você se refere a Serafina?

— É, ela mesma.

Donna lembrou-se da sensação que experimentara no dia anterior. Rick conhecia a arte de excitar e satisfazer uma mulher. Só que para ela não podia haver satisfação duradoura. A amargura acompanhava sempre os momentos privilegiados de volúpia. Era insuportável mo­rar na mesma casa que a mulher que possuía o coração de Rick. A rejeição dele estava presente na sua lembrança como um espinho na pele.

— Você aprova agora a minha decisão de não dar um passo pre­cipitado? Está contente com isso?

— Contentíssima! — exclamou Donna, com insolência. — Sua honestidade me deixa comovida.

— O que você quer? Eu sou honesto por natureza — disse Rick com um risinho irônico. — Se bem que eu também caia em tentação, às vezes.

— Coitadinho! Você é tão frágil.. .

— Eu tenho um coração sensível, querida. Também sofro, como os outros.

— Pois não parece! — retrucou Donna, furiosa. — Por que você não me deixou em paz como eu pedi? Por que você tinha que me beijar e fingir que gostava de mim?

— Fingir? — exclamou Rick sem se conter, apertando o copo de vinho na mão. — Quem disse que eu fingi?

— Você não estava fingindo, por acaso? Você brincou de apai­xonado com a coitadinha da secretária inglesa. . . como nessas comé­dias antigas que agradam tanto a Serafina! Você se divertiu às minhas custas! Quando Serafina o solta da coleira, você dá suas fugidinhas em Roma e aborda as moças desacompanhadas que estão admirando as ruínas da cidade. . .

— Fale baixo! Adone vai voltar de um momento para o outro e ele não precisa saber que estamos discutindo.

— Desculpe. Eu não vou falar mais nada.

De fato, no instante seguinte Adone voltou com a garrafa e o copo na mão.

— Aqui está seu vinho, querida — disse Adone, servindo o vinho. — Rick, Serafina perguntou por você. Ela quer que você confira umas contas atrasadas. Ela diz que já pagou uma delas. . .

— Eu vou ver do que se trata — disse Rick.

Ele virou o resto do vinho e levantou-se da mesa. Donna voltou deliberadamente a cabeça na outra direção. Adone sentou-se ao lado dela com um sorriso de alegria.

— À sua saúde, querida!

— À nossa — disse Donna, encostando de leve no copo dele.

— O que vocês estavam conversando?

— Nada de muito importante.

— Você está uma tentação esta manhã, carina. Seus cabelos pare­cem um cálice de champanhe cheio até a borda e sua pele é da cor de mel. Sua boca é grande, sensual. . . Posso provar o gosto que ela tem?

— Não! Lembre-se de que você tem uma noiva em Florença. Adone arregalou os olhos.

— Ah, era isso que vocês estavam conversando na minha ausên­cia? Foi por isso que vocês se calaram de repente quando eu cheguei!

— Os olhos dele tornaram-se repentinamente frios, como duas con­tas verdes. A cicatriz no lábio transformou-se numa careta de raiva.

— Foi Rick quem contou isso a você?

— Não, foi sua mãe. Ela está preocupada com a nossa intimi­dade. Eu expliquei a ela que nós dois somos apenas bons amigos e que não passava disso.

— O que mais ela falou?

— Ela disse que Isabela é um doce de garota, que foi criada num colégio de freiras e que fará você muito feliz.

— Feliz uma ova! — exclamou Adone, furioso. — Você acha mesmo que eu vou me casar com essa guria?

— Você não sente amor por ela? — perguntou Donna, com um risinho. — Sua mãe pelo menos está felicíssima com o casamento.

— Imagine! Na última vez que eu vi essa garota ela estava com um chapeuzinho vermelho afundado na cabeça e duas tranças caindo sobre os ombros.

— Você não gosta de crianças?

— Eu aceitei o noivado na brincadeira, certo de que mamãe ia se esquecer disso daí a uma semana.

— Mas ela não esqueceu. Pelo contrário, está fazendo muitos planos. Já marcou até a data do casamento.

— Eu vou conversar com ela hoje mesmo e desmarcar esse casa­mento ridículo. Era só o que faltava. . . eu me casar com uma garota educada num colégio de freiras! Eu não sinto a menor atração por essa guria. Aliás, para falar a verdade, eu já tinha me esquecido completamente dessa história. Que situação absurda! O amor é desejo, é fome. . . e não isso!

— Pelo jeito, você não tem outra saída.

— Quem disse? Vou anunciar a Serafina que vou me casar com você.

A notícia inesperada deixou-a muda de espanto.

— Comigo? Você está sonhando!

— Com você eu me sinto homem... O desejo arde em mim quan­do eu toco em você, querida.

— Isso não é amor nem aqui nem na China!

— Lógico que é! Você não é mais criança, Donna. Você sabe tão bem quanto eu que o amor é desejo físico, mesclado de tolerân­cia e de ternura, sem falar nos conflitos habituais que ocorrem na vida do casal. Na minha noite de núpcias eu quero ter nos braços uma mulher ardente, e não uma guria trêmula e assustada, que não tem ideia do que deve fazer para agradar ao marido. Eu quero cabelos louros como champanhe sobre o travesseiro, uma boca de lábios rosados colada à minha. Quero sentir a mulher desfalecer nos meus braços. . .

Os olhos dele estavam brilhantes de excitação e havia uma seme­lhança incrível com o olhar que Rick dirigia a Donna quando estavam a sós, como sucedera no dia anterior.

— Você está delirando!

— Juro que estou falando sério.

— Vamos mudar de assunto, por favor! Toda essa história de amor e de casamento é pura conversa fiada. Você não quer provar uma fatia desse presunto cru? Rick disse que é uma especialidade da casa.

— Rick, Rick. . . Que me importa a opinião de Rick? Você só pensa nele?

— Desculpe.

Adone ajeitou-se na cadeira e bebeu um gole de vinho.

— Por falar nisso, você já reparou que Serafina tem uma cicatriz no pulso?

— Já. O que foi?

— Ela cortou o pulso um dia.

— Que horror! A troco de quê?

— Rick tem um clube em Roma, que atualmente está sob a su­pervisão de um gerente. Ele queria tomar conta do clube pessoal­mente, mas Serafina não lhe deu autorização para se afastar daqui. Ele insistiu, porém, e ela, só de raiva, cortou o pulso. . .

— Que horror!

— Terrível, não? Algumas mulheres são capazes de tudo para conservar o homem de quem gostam.

— Ela deve gostar, muito dele, nesse caso.

— Você faria isso por um homem?

— Quem, eu? Nunca! Preferiria sofrer as piores privações, mas não faria nunca uma coisa dessas.

— Você é boa. Eu vejo isso nos seus olhos. Você é igual por fora e por dentro. Ê por isso que eu gosto tanto de você!

Adone segurou-a pelas mãos e puxou-a na sua direção.

— Juízo, Adone! Você prometeu que ia se comportar bem.

— Eu quero você para mim, Donna. Seja minha mulher, minha amiga, minha irmã!

— Não! — exclamou Donna com um gesto brusco, levantando-se da cadeira. — Você não pode romper o noivado e deixar Isabela de coração partido. Você tem que manter a palavra que deu. Você sabe como essas coisas são levadas a sério na Itália.

— Mas nós podemos fugir para longe, você e eu! Ninguém vai nos encontrar.

— E nós vamos viver de quê? De brisa? Você nunca trabalhou na vida, Adone. Você dependeu sempre da mesada de sua mãe. . .

Adone virou uma fera ao ouvir aquelas palavras. Os olhos verdes estavam brilhantes de ódio. Donna ficou tão assustada que saiu cor­rendo por entre as árvores em direção à sua sala de trabalho, que ficava nos fundos da casa. Ouviu Adone correr ao seu encalço. Ofe­gante, morta de medo, ela entrou precipitadamente na sala e tentou fechar a porta atrás de si.

Adone, porém, foi mais rápido. Ele a segurou pelos ombros com violência e rodou-a na sua direção, de modo a encará-la de frente. Os olhos dele estavam injetados e brilhantes como os de um felino. Donna ficou aterrorizada com a expressão primitiva e cruel que havia na fisionomia dele.

— Solte-me! — berrou, transida de medo, tentando libertar-se das mãos dele. — Você está me machucando, seu bruto!

Os dedos dele afundaram sem piedade na carne macia dos seus ombros.

— Diga outra vez que eu vivo às custas de uma mulher!

Antes que Donna pudesse se defender, Adone a levantou nos braços e atirou-a no chão. Sem perda de tempo, saltou sobre ela e rasgou o vestido até a cintura, com a brutalidade de um selvagem. Donna debateu-se e deu pontapés, desesperadamente. Adone no en­tanto possuía uma força incrível, que parecia triplicada pela fúria que o assaltava naquele momento. Donna lembrou, horrorizada, da histó­ria que ouvira contar certa vez. Um homem furioso matou uma mu­lher sem querer, ao possuí-la à força.

— Por que você me rejeita? — Adone rosnou, puxando-a pelos cabelos. — Você tem nojo de mim?

Era um verdadeiro pesadelo. Quanto mais força ela fazia para se libertar das mãos dele, mais resistência encontrava.

— Pelo amor de Deus, Adone! Você está me sufocando!

— Pode rogar por todos os santos do céu! — exclamou Adone, desferindo um tapa com a mão-aberta na boca dela, que arrancou sangue dos lábios. — Você vai aprender o que é se meter comigo!

— Pare com isso! Pare! Socorro!

Donna continuou gritando sob as mãos fortes que a seguravam pelos cabelos. Adone parecia realmente um animal selvagem que era impossível dominar. Até mesmo a voz estava alterada pelo desejo e pelo ódio. Além disso, estava com os olhos injetados, vermelhos e um fio de baba escorria de sua boca entreaberta. Era esse o belo Adone que Serafina desejava transformar num ídolo do cinema? No momento ele não tinha nenhuma semelhança com Rick. Ele pare­cia simplesmente uma figura odiosa.

Donna enterrou os dedos no tapete da sala e aguardou com an­siedade o momento em que Adone se distraísse para derrubá-lo no chão com uma pernada. Ao notar que havia chegado o momento oportuno, ela levantou o joelho na altura da virilha e golpeou-o sem piedade no seu ponto sensível. Adone deu um berro de dor e caiu para trás, contorcendo-se em cima do tapete.

Donna não perdeu um segundo. Pulou de pé e saiu correndo pela porta da sala, com um desespero que nunca experimentara antes na vida. Estava ofegante e com o coração batendo alucinadamente quan­do chegou ao hall da frente.

Mirou-se rapidamente no espelho que havia ao pé da escada e viu que o vestido estava rasgado até a cintura. Além disso, uma alça do sutiã tinha se partido durante a luta corporal. Ela apertou os panos rasgados do vestido contra o peito e subiu as escadas de dois em dois degraus, tremendo dos pés à cabeça e procurando apoiar-se no corrimão para não escorregar.

Por que Adone se comportara daquela forma alucinada, como se tivesse duas personalidades distintas, uma delicada e carinhosa, a outra selvagem e primitiva? Donna lembrou-se da luta travada no tapete da sala e estremeceu ao pensar que podia ter sido possuída brutalmente por um homem que estava fora do juízo normal. Era verdade então o que diziam nos tribunais. . . Muitas vezes um homem furioso perdia a cabeça é brutalizava a mulher que conhecia na inti­midade e com quem convivia na mais perfeita harmonia.

Ao chegar ao último degrau da escada, ela se dirigiu rapidamente para seus aposentos no fim do corredor. No mesmo instante, porém, avistou Rick parado diante da porta do quarto de Serafina. A perple­xidade estava estampada em sua fisionomia. A visão que tinha diante dos olhos era tão surpreendente e inesperada que ele ficou mudo durante alguns segundos, com a boca aberta e os olhos arregalados.

 

— O que aconteceu com você? — perguntou Rick por fim, a testa franzida, a voz alterada pela emoção. — Você está toda rasgada, seus lábios estão sangrando. . .

— Eu caí — disse Donna, apertando o vestido contra o peito. A alça do sutiã estava solta em cima do busto.

— Deve ter sido uma grande queda — murmurou Rick, dando um passo na sua direção, como se fosse segurá-la nos braços.

Donna recuou instintivamente, os olhos arregalados de susto e de medo.

— Você estava com Adone até alguns minutos atrás. . .

— Por favor, Rick, deixe-me passar. Eu vou me trocar no quarto. De repente os olhos dele se iluminaram, como se lhe ocorresse finalmente a explicação da imagem que tinha na sua frente.

— Ah, já sei! Foi Adone quem fez isso com você. . .

— Nós tivemos uma briga. Ele rasgou sem querer meu vestido. . .

— E sua boca, por que está sangrando desse jeito?

— Eu caí e bati com o rosto na quina. Por favor, Rick, vamos conversar mais tarde com calma. Eu preciso tomar um banho e me trocar.

— Primeiro quero saber o que aconteceu.

Rick, pelo visto, não suportava Adone, como estava visível na expressão de sua fisionomia, embora os dois fossem ligados pelo parentesco mais estreito. Ele dissera certa vez que havia um traço perverso em Adone e fora provavelmente essa índole perversa que transparecera na luta com Donna.

— Eu já contei como foi — murmurou, sem jeito.

— Ele abusou de você? — insistiu Rick. — Não precisa ter medo, pequena, eu não vou tocar em você. Mas se Adone abusou de você, eu juro pelo que há de mais sagrado que ele vai acertar contas comigo. Diga-me a verdade, Donna. Adone fez mal a você?

— Não! Juro que não!

— O que aconteceu, então?

— Eu fiz um comentário de que ele não gostou, foi só isso! Ele perdeu a cabeça e correu atrás de mim. Por favor, Rick, deixe pra lá. Vamos esquecer o que aconteceu. Eu vou explicar a situação a Serafina e dizer que não posso continuar mais aqui. É a melhor solução para todos.

— De jeito nenhum! — exclamou Rick, impaciente. — Você não vai fugir como se fosse culpada pelo que aconteceu. Eu vou defen­dê-la como se você fosse minha filha!

— Não adianta, Rick. Eu vou embora de qualquer maneira. Só tenho causado transtorno aqui.

— Eu não quero que você vá embora! — exclamou Rick. Antes que ela pudesse impedi-lo, Rick segurou-a nos braços e levou-a no colo em direção ao quarto de dormir. Fechou a porta com um pontapé e deitou-a com cuidado na cama.

— Pronto, agora nós podemos conversar com calma. Aqui ninguém vai nos interromper. Eu preciso saber exatamente o que aconteceu entre vocês dois.

— Eu já disse, não houve nada. Adone ficou uma fera quando eu falei no noivado dele com Isabela. Foi Serafina quem me contou isso, mas eu nunca imaginei, que Adone fosse ficar tão furioso com essa conversa. Ele não quer casar com Isabela de jeito nenhum, pelo visto.

— Eu sei disso. Ele quer você! — murmurou Rick, com os braços passados em volta de sua cintura. — Você é ò brinquedo novo que ele deseja quebrar nas suas mãos destrutivas, mas sou eu que vou quebrá-lo inteiro se ele ousar tocá-la novamente.. .

— Rick, por favor, vamos esquecer o que aconteceu. Eu não posso ficar mais aqui. Eu tenho que ir embora. Você entende por quê.. .

— Eu entendo mas não posso aceitar.

— Não seja cabeçudo. Pense em Serafina. Não há maneira de contornar esse problema. Ela possui seu corpo e sua alma.

— Não é verdade! — exclamou Rick, exasperado. — Eu não sou como Adone, que deseja sua companhia apenas para se divertir. Eu entendo o que ele sente por você. Ele quer arrastá-la para sua própria lama. É um impulso primitivo que ele não pode controlar. Ele se sente atraído por sua inocência. A coisa mais rara hoje em dia é encontrar uma moça que tenha respeito próprio. Mas agora eu estou prevenido. Eu não vou mais permitir que Adone saia sozinho com você!

— Eu vou embora daqui, Rick. Para sempre.

Em vez de negar suas palavras. Rick cobriu sua boca de beijos apaixonados. O lábio machucado doeu sob a pressão, mas ela se esqueceu de tudo e abandonou-se ao desejo que a consumia. A cabeça caiu para trás, apoiada nos braços dele, e ela mergulhou de olhos fechados no ardor do desejo reprimido. A única coisa de que tinha consciência no momento era do calor que se comunicava de um corpo ao outro. Ela amava a sensação do contato íntimo com Rick. Não havia nenhuma parte do corpo dele que a rejeitava.

— Não me deixe agora — sussurrou Rick em seu ouvido. — Eu preciso de você aqui.

— Você já tem Serafina.

— Isso não importa! É você que eu quero. Fique mais um pouco. Eu prometo que Adone não irá importuná-la de novo.

Ela cedeu finalmente ao pedido. Não havia a menor esperança para os dois, mas era impossível negar o pedido. Ela tinha que seguir o coração, mesmo que agisse contra seus princípios. As noites de Rick pertenciam a Serafina, mas ela ia se contentar com os breves instantes que passava na companhia dele.

Abriu os olhos e encarou-o com atenção. No meio da pupila havia um brilho de ternura.

— Se eu ficar, você promete que vai perdoar Adone pelo que aconteceu?

— Prometo. Prometo tudo o que você pedir. Contanto que você fique mais alguns dias aqui.

— Ele não teve culpa. Foi a história do noivado que o deixou fora de si.

— Eu vou fazer sua vontade desta vez. Mas se ele tornar a impor­tuná-la, vai ajustar contas comigo.

— Eu já me vinguei — disse Donna, com um sorriso malicioso. — Dei uma joelhada naquele lugar, e o coitado gritou como uma criança.

Rick jogou a cabeça para trás e caiu na gargalhada.

— Não diga! Você acertou uma joelhada nele? Bella, você está me saindo melhor do que a encomenda!

— Pois é. Mas se eu tivesse um pouco de juízo na cabeça, faria as malas e partiria hoje mesmo. Já imaginou o que aconteceria se Serafina nos surpreendesse juntos no meu quarto?

— Che disastro! — exclamou Rick, afastando-se dela. — Seu quarto é muito gostoso e não tem uma dezena de potes de perfumes de cosméticos que empestam o ar.

— Em compensação, tem cheiro de cavalo — disse Donna, com uma risada. — Ele dá diretamente para as cocheiras.

— Você se importa com isso?

— Não, nem um pouco. Gosto do barulho que os cavalos fazem quando estão comendo no cocho.

— Por falar nisso, você não quer dar uma volta a cavalo? Nós temos alguns animais esplêndidos. Uma das éguas, por sinal, vai dar cria por esses dias.

— Ah, que lindo! Quero ver o potrinho quando ele nascer.

— Vou levar você lá. Enquanto isso, vou dar um jeito em Adone. A melhor solução, a meu ver, é apressar esse casamento, embora eu tenha pena da noiva. Coitada, ela vai padecer nas mãos dele.

Rick dirigiu-se à porta e voltou-se de lá com um sorriso nos lábios.

— Até mais tarde, carina.

Ao ficar sozinha no quarto, Donna trocou de roupa, passou uma pomada no lábio ferido e penteou os cabelos. Cansada com todas as peripécias da manhã, deitou-se na cama e afundou a cabeça no travesseiro. O corpo estava moído da luta com Adone, mas era o coração que a incomodava mais. Deitada ao comprido na cama, o braço direito passado em volta do travesseiro, ela pensou em Rick e nos beijos que tinham trocado alguns minutos antes.

Ela atendera o pedido dele e prometera continuar na casa até completar o trabalho com Serafina. Entretanto, não seria nada fácil continuar ali depois do incidente da manhã. Aquela casa estava povoada de recordações trágicas, como a cicatriz que havia no pulso de Serafina, a marca evidente da vingança que Rick expiara por ter querido obter sua liberdade.

Qual seria a reação de Serafina se ela os encontrasse juntos um dia, na maior intimidade? Até então Rick soubera se controlar, mas estava evidente que, mais dia menos dia, esse controle iria ruir por terra. Todas as vezes que Rick a estreitava nos braços Donna tinha a impressão de que chegara o momento da verdade, do amor defini­tivo, total, sem meias medidas. Apesar de sua disciplina férrea, Rick não podia dissimular que nutria um desejo violento por ela. Donna sorriu ao pensar que nem mesmo Rick estava imune aos caprichos do instinto.

Ela desejava estar de novo nos braços de Rick, ouvir sua voz sus­surrante, sentir-se segura na proteção de sua presença. Sem isso, não encontrava tranquilidade nem satisfação. Apertou com força o traves­seiro e sentiu um arrepio de ansiedade ao pensar no que o futuro reservava para ela. O amor só era uma fonte de energia e de força se pudesse ser satisfeito. Caso contrário, era a terrível solidão.

Com os olhos banhados de lágrimas, Donna abandonou-se livre­mente à compaixão que sentia por si mesma. Mais tarde, após enxugar a última lágrima, parecia mais conformada com a situação. Não adiantava torturar-se antes do tempo. Quando chegasse o momento oportuno, saberia tomar uma decisão. Consolada com esse pensamento, adormeceu quase sem perceber.

Ao acordar, uma hora depois, avistou a bandeja do almoço em cima da mesinha-de-cabeceira.

Donna serviu-se de algumas fatias de carne assada com legumes e tomou o suco de laranja que estava no copo. Como sobremesa, havia torta de maçã com creme fresco.

Rick adivinhara seu desejo de permanecer mais algumas horas no quarto e inventara uma desculpa qualquer para mandar o copeiro levar seu almoço, sem despertar as suspeitas de Serafina.

Na tarde daquele mesmo dia, ela recebeu o bilhete que Rick passou por baixo da porta. Adone ia passar alguns dias na casa da família da noiva em Florença. Isabela faria dezoito anos no mês seguinte, ocasião em que Adone seria apresentado à família inteira como o noivo oficial. Ele teria permissão, após essa cerimônia íntima, para acompanhá-la nas festas e nos bailes de fim de ano.

Donna sorriu ao ler o bilhete em que Rick lhe anunciava as novi­dades. Por outro lado, lastimou sinceramente o casamento entre os dois. Era muito provável que Isabela, sem nenhuma experiência da vida, ficasse deslumbrada com a beleza de Adone e esquecesse as outras qualidades mais importantes para um casamento feliz. Adone, por sua vez, dificilmente seria um marido fiel, uma vez que casaria contra sua vontade.

Os dias seguintes foram marcados, por uma grande atividade. Sera­fina estava bem-disposta e recordava com entusiasmo a época em que trabalhara nos Estados Unidos. Tinha muitas histórias interes­santes para contar a respeito dos atores e atrizes que conhecera nos dias dourados de Hollywood, quando a cidade do cinema estava no auge de seu esplendor.

Ao narrar os episódios dessa época memorável, Serafina não usava o gravador. Ditava diretamente as recordações, acompanhadas de muitos gestos e entonações de voz, como se estivesse revivendo as cenas que recordava. Ela tinha um talento especial para realçar os aspectos cômicos da vida em Hollywood, bem como as lutas travadas com as produtoras cinematográficas para obter melhores contratos.

Vez por outra Rick aparecia na sala. Ele se sentava no sofá e ouvia em silêncio, com a expressão divertida, as recordações de um período feliz na vida dos dois.

Às vezes, sem querer, os olhares dos dois se encontravam. Donna voltava rapidamente a cabeça, sem jeito, procurando disfarçar o ciúme que sentia pela intimidade evidente que havia entre Rick e Serafina.

Outros dias, ela desejava que Rick passasse um bilhete embaixo da porta e marcasse um encontro com ela na casinha no meio da floresta. Ou então um passeio a cavalo, quando pudessem se aban­donar livremente ao idílio do amor proibido.

Pensava também em fugir de casa e nunca mais voltar. O que mais a torturava era saber que Rick passava normalmente as noites no quarto de Serafina. Por sinal, havia manhãs em que Serafina estava tão cansada que não podia nem mesmo se concentrar no trabalho. Permanecia horas debruçada na sacada do quarto, olhando distraidamente para as montanhas e os vales que se perdiam no hori­zonte.

As manhãs de animação, em que Serafina recordava com entu­siasmo a época vivida em Hollywood, eram bem menos frequentes que as outras de apatia, em que ficava sentada na cadeira de braços polindo as unhas compridas.

— Por que você não aproveita para dar um passeio a cavalo? A manhã está linda e Rick me disse que você tem uma bela postura na sela.

— Mas nós vamos atrasar a redação do livro — protestava Don­na. — Eu vim aqui para trabalhar, Serafina, e não para passear a cavalo.

— Eu sei, cara. Mas hoje eu não tenho vontade para nada. Vamos deixar esse capítulo para amanhã.

— Ah, eu fico sem jeito de não fazer nada!

— Tanto faz se você trabalhar ou passear a cavalo. Você recebe seu ordenado no fim do mês do mesmo jeito.

— Eu sei, mas. . .

— Você está cansada daqui? Quer voltar para casa?

— Não, não é isso.

— Então por que está se queixando?

— Eu não estou me queixando, Serafina. Apenas não gosto de ficar à toa. Eu me sinto sem jeito de receber o ordenado sem fazer nada. Eu sou sua secretária, e não uma hóspede da casa.

Serafina deu um bocejo e a pulseira de ouro correu pelo braço roliço.

— Amanhã nós terminamos esse capítulo. Até mais tarde, querida.

Os dias estavam sempre ensolarados naquela época do ano no sul da Itália. Com uma calça comprida bem justa e uma blusa leve de verão, de mangas curtas, Donna saía a cavalo pelos campos abertos. Alguns colonos lhe ofereciam cachos de uvas tão grandes e pesados que ela mal podia segurá-los na mão. Agradecia o presente com um sorriso e murmurava alguma palavra que sabia em italiano. Depois saía a passo, mordendo uma uva sob o sol ardente que lhe queimava os braços nus.

Fez amizade com algumas raparigas que trabalhavam no campo e ajudavam os homens a colher as uvas na época da safra. Uma delas, bem jovem ainda, chamada Assunta, estava com casamento marcado para dali a alguns dias e convidou Donna para assistir à cerimônia. Como estava curiosa para presenciar um casamento segundo a tradi­ção autêntica do país, sem nenhuma influência estrangeira, Donna aceitou o convite na hora.

Na manhã seguinte, porém, indagou casualmente a Serafina se havia algum problema em ir ao casamento desacompanhada.

— É preferível você ir com Rick.

— Com Rick? — exclamou Donna, sem conter sua surpresa. Serafina deu uma risada bem-humorada.

— Você tem medo de ir com ele?

— Não, de jeito nenhum.

— Então por que fez essa cara?

— Porque nunca me passou pela cabeça ir a um casamento na companhia de Rick.

— Eu poderia ir com você, mas não tenho a menor disposição de ir até a cidade com esse calor que tem feito nos últimos dias. Além disso, não sou muito ligada nessas festas populares. As famílias dos noivos servem grandes travessas de comida aos convidados, porco assado, pastéis de carne, pizzas de todos os tamanhos e espécies, sem falar nos garrafões de vinho que os homens não param de beber. Depois são os cantos e as danças que acompanham habitualmente esses festejos. Ah, eu não tenho mais saúde para essas coisas. Vá com Rick. Ele é quem gosta disso...

— Mas será que ele não se importa de me levar?

— Não, que nada! Rick adora essas festas populares.

Serafina estava especialmente bela naquela noite à mesa do jantar. O vestido preto de seda, com tiras prateadas nas mangas compridas, acentuava a linha impecável do corpo elegante. O perfume que usava, provavelmente indiano, difundia uma atmosfera de oriente em torno de sua pessoa. Os brincos eram de jade, incrustados num suporte de ouro e o broche espetado no alto do peito tinha o mesmo desenho rendilhado dos brincos. Diante da elegância impecável da ex-atriz, Donna parecia uma figura muito simples no salão de jantar. Feliz­mente não havia outros convidados naquela noite.

Depois do jantar, no momento em que se dirigiram à sala de estar para tomar café e alguns cálices de licor, Rick voltou a cabeça na sua direção com o cálice nos lábios. Donna ficou sem jeito com o gesto. Ela sabia que Rick estava beijando-a em pensamento e seu único desejo era abandonar-se inteiramente nos seus braços. A pre­sença de Serafina, porém, mantinha os dois a uma distância respei­tável.

— Ah, Rick, antes que me esqueça. . . Você pode acompanhar Donna a um casamento?

— Com muito prazer.

— Está vendo, Donna, eu não disse que ele adora essas festas?

— Você tem certeza de que não será um incômodo? — insistiu Donna, voltando-se para Rick.

— De jeito nenhum. Pode contar comigo.

Rick dirigiu-se ao piano que havia na sala, sentou-se no banquinho e percorreu o teclado com os dedos.

— Você vai tocar alguma coisa para a gente ouvir? Donna não conhece ainda seu repertório de músicas sicilianas. . .

— Pois é. Eu ouvi dizer que Rick toca com muito sentimento. Ele sorriu e voltou-se para Serafina.

— Você se lembra daquelas canções que minha mãe cantava?

— Claro que lembro. São muito bonitas, se bem que um pouco tristes.

Rick solfejou algumas notas em voz baixa e começou a cantar uma tarantela, a dança regional da Sicília. Donna levantou-se do sofá, animada pelo ritmo vibrante da melodia, e deu alguns passos no meio da sala. Serafina continuou reclinada no seu lugar, a cabeça apoiada na almofada, observando a cena em silêncio. Em dado momento, o cálice que segurava na mão escorregou de seus dedos e caiu sobre seu colo. Ela deu uma exclamação de espanto e levou as mãos à cabeça, com um gesto de surpresa. Donna aproximou-se dela e aju­dou-a a enxugar a saia. Ao observá-la de perto, notou que Serafina estava com os olhos úmidos.

— Não foi nada — disse Donna, procurando tranquilizá-la. — Logo essa mancha vai sumir.

Rick levantou-se do piano e aproximou-se de Serafina, que esfre­gava com nervosismo o lencinho na saia.

— O que foi?

— Serafina derramou sem querer o licor no vestido.

Rick inclinou-se e murmurou algumas palavras no ouvido de Sera­fina. Em seguida, estendeu a mão e ajudou-a a levantar-se do sofá.

— Fique à vontade, Donna. Eu vou acompanhar Serafina até o quarto.

Donna não sabia o que pensar do ocorrido. Serafina certamente não estava chorando por ter derramado o licor em cima do vestido. Era mais provável que estivesse comovida com a música que Rick tocara no piano. A que estava associada a melodia? A um passado maravilhoso, impossível de ser revivido por duas pessoas adultas?

Absorta nesses pensamentos, Donna dirigiu-se ao terraço, onde o ar da noite estava impregnado com o perfume das flores. O céu estava coalhado de estrelas e os grilos cantavam em coro no meio da grama. Donna lembrou-se da maneira carinhosa como Rick saíra da sala na companhia de Serafina, o braço passado em volta da cin­tura, a cabeça dela apoiada em seu ombro, com um abandono que os dois raramente se permitiam na presença de estranhos.

Donna debruçou-se no parapeito do terraço, enquanto a melodia da tarantela ecoava em sua cabeça, de uma forma obsessiva. A que estava associada aquela música que causara uma impressão tão pro­funda em Serafina? Eram os anos da juventude, dos primeiros beijos apaixonados que os dois trocaram no solo da Sicília?

Tomada de remorso, ela decidiu que não daria nenhum passo no sentido de causar um conflito, por menor que fosse, entre Rick e Serafina. Havia uma afinidade misteriosa entre os dois que ninguém podia destruir e da qual ela estava excluída para sempre.

O fato de Rick desejá-la fisicamente não era um motivo suficiente para causar um transtorno na vida do casal. A fome sensual era ape­nas uma pequena parte do amor. Ela não se comparava com os anos de intimidade que tinham criado laços poderosos entre os dois.

Donna arrependeu-se por ter aceitado o convite para ir ao casa­mento de Assunta. Ela estaria abusando da generosidade de Serafina se aproveitasse sua autorização para namorar Rick durante algumas horas. Não era justo que traísse a confiança que Serafina depositava nela. Teria que encontrar uma maneira de desmarcar a ida à festa sem despertar suspeitas.

No momento em que Donna decidiu voltar à sala e refletir com mais calma sobre os acontecimentos da noite, Rick entrou no terraço.

— Serafina está passando bem?

— Está. Ela tomou um comprimido para dormir e deitou-se mais cedo.

— O que foi que aconteceu? Por que ela ficou tão comovida de repente?

— Ela é sujeita a esses saltos de humor, especialmente depois que se afastou do cinema e que passa os dias numa completa ociosidade. Foi por isso, aliás, que eu sugeri a ela escrever esse livro de memórias.

— Ah, foi você quem deu a ideia?

— Foi. Serafina teve uma carreira admirável. . . Sob muitos aspec­tos, ela é um tipo raro de mulher, corajosa, decidida, que lutou para se impor. Não foi só pela beleza que ela venceu na vida, como as pessoas geralmente pensam. Serafina lutou com unhas e dentes para manter seu prestígio inalterado durante muitos anos. Agora, no en­tanto, ela está; cansada e é sujeita, de tempos em tempos, a essas crises de depressão.

— Mas ela tem você, Rick.

— Mas isso não basta — disse Rick, puxando uma tragada com­prida no cigarro. — Ela é a primeira a reconhecer que há certos aspectos em nosso relacionamento que deixam a desejar. Eu dou o que posso. Entretanto, há partes de mim que não posso dar. Ah, essa situação está s,e tornando cada dia mais difícil. . .

Rick estava com uma expressão dura nos olhos quando voltou a cabeça e examinou-a com atenção. Donna ficou tensa e rezou para que Rick não a tocasse. Ela estava com os nervos à flor da pele e se jogaria nos braços dele ao menor estímulo que recebesse.

— Eu não imaginava antes que a vida fosse tão complicada. . .

— Mas é — disse Rick, com uma entonação de fatalidade na voz. — Eu vou acompanhá-la ao casamento, se você está realmente deci­dida a ir. Serafina insistiu para eu levá-la.

— Mesmo?

— Sim. Ela disse que seria muito interessante você assistir a um casamento tipicamente popular antes de voltar para a Inglaterra. De fato, é uma festa muito bonita, alegre e espontânea. O amor também deveria ser sempre assim, natural como as frutas que dão no tempo certo, cada qual na sua época, como os pintinhos que nascem dos ovos ou como a chuva que cai sobre a terra seca. Na realidade, os homens e as mulheres são fundamentalmente diferentes e cada qual é importante para o outro à sua maneira. Nisso está o mistério e o fas­cínio da vida.

— Concordo plenamente. Você, por exemplo, não ficaria bem como mulher — disse Donna, com uma risada.

— Você acha que minhas ideias são antiquadas e não correspon­dem aos ideais modernos?

— Falando sério, eu aprovo sua teoria. Ela corresponde ao pensa­mento lógico do homem. Você pelo menos não é o macho que deseja a fêmea a seus pés, fazendo todas as suas vontades.

— Você já conheceu algum homem assim?

— Deus me livre!

— Pois parece. Você fala com a convicção de quem tem expe­riência própria do assunto.

Donna notou a entonação de ciúme na voz dele e, mais uma vez, excitou-se com a ideia de que Rick a desejava fisicamente como mulher e que não queria dividi-la com mais ninguém. Ela sentiu um arrepio de prazer.

— Vamos entrar? Você está com frio.

— Vamos ficar mais um pouquinho aqui fora. A noite está tão gostosa.

— Conte-me então qual foi o tirano que você conheceu — disse Rick em seu ouvido e o sopro do seu hálito mexeu os fios de cabelos que caíam em cima da orelha. — Eu faço questão de saber.

— Foi meu pai — disse Donna, com um risinho. — Quem mais podia ser? Depois que mamãe morreu, nós ficamos muito amigos, como se fôssemos um casal de namorados. Aliás, você e eu temos isso em comum.

— Nós temos muitas outras coisas em comum, amor. Nós avis­tamos as estrelas no alto do céu e sabemos que elas são os olhos de Deus. Nós temos afinidades. . .

Rick tinha afinidades também com Serafina, mas seriam as mes­mas? Ele estivera alguma vez tão perto de Serafina quanto dela? Ele lhe dizia coisas profundas, cheias de significado? Donna levantou a cabeça e avistou o perfil de Rick recortado contra o céu escuro. Quem sabe se durante todos aqueles anos ele enxergara apenas o aspecto físico de Serafina, sem penetrar nunca no santuário da verda­deira comunicação?

— Naquela noite em Roma nós estivemos muito perto um do outro, lembra? No dia em que dançamos na festa à fantasia, de máscara no rosto. No íntimo, porém, estávamos com o rosto descoberto.

Rick voltou-se para ela com um sorriso cheio de ternura. Donna sentiu-se derretida de amor, trêmula e sem força, como se fosse desfa­lecer. Bastava uma palavra de Rick para deixá-la num estado de completa dormência, de êxtase.

— Eu estou tão feliz — murmurou ela. — Foi tão bom a gente ter se conhecido, Rick. Você corresponde exatamente à ideia que eu fazia de um homem, no sentido autêntico da palavra.

— Pois eu tenho a fama de ser um cara terrível, impiedoso com meus inimigos. Eu matei certa vez um homem, embora tenha sido em legítima defesa. É isso que você considera um homem autên­tico?

— A opinião dos outros não interessa. É de você que eu gosto e não do que os outros digam ou pensem de você.

Donna encarou-o no fundo dos olhos e avistou o rosto sofrido do homem que passara maus momentos na sua adolescência. Estava tudo escrito ali, a fome, a amargura, o ressentimento. Havia cicatrizes emocionais que nenhuma mulher podia apagar. Ela podia quando muito sensibilizá-lo com sua juventude, com sua franqueza, e ficava profundamente comovida ao perceber que Rick tremia dos pés à cabeça e perdia sua severidade habitual quando a estreitava nos braços.

Eles estavam perdidos num beijo interminável quando ouviram pas­sos no terraço, subindo os degraus da escada que conduzia ao jardim. Apanhados de surpresa, levaram alguns segundos para reagir. Rick continuou estreitando-a nos braços, como se fosse mais forte do que sua vontade soltá-la repentinamente. Donna estremeceu ao reco­nhecer a voz que os interpelava na escuridão do terraço. Rick vol­tou-se enfim com um movimento brusco e protegeu Donna com o corpo, como se quisesse ocultá-la dos olhares curiosos. Havia alguém em pé no alto da escada que levava ao jardim.

— O que foi? — perguntou ele, com a respiração ofegante. — O que você quer? — Rick parecia impaciente e furioso por ter sido acordado de repente de um sonho delicioso.

— Eu vim dizer que a égua baia vai ter cria esta noite — balbuciou o menino que tomava conta das cocheiras.

 

— Eu não imaginava que você fazia as vezes de parteira! — exclamou Donna com uma risada, depois que o menino foi embora. — Essa é novidade. . .

— Minhas habilidades são muitas — concordou Rick, com um sorriso.

— Posso ajudar? Prometo que não vou atrapalhar.

— Você já viu alguma vez um parto?

— Não, nunca. Essa será a primeira vez. Estou morrendo de curiosidade. . .

— Como se trata da primeira cria, a égua vai ficar nervosa. Por isso é preciso tomar muito cuidado para não levar um coice ou uma mordida.

— Prometo que tomarei todo o cuidado.

— Os animais são como os seres humanos. 3erram e se agitam quando a dor aperta.

— Ah, deixe-me ir com você, Rick! Eu vou fazer festa na cabeça dela e acalmá-la com palavras temas... Além disso, queria muito ser útil em algo importante. Logo nós vamos nos separar e não haverá outra oportunidade como esta. Diga que sim!

— Está bom. Mas nada de gritar nem de desmaiar, está certo? __ Pode ficar tranquilo. Eu vou me comportar como uma camponesa.

Como era de se esperar, o parto teve seus momentos de angústia. O instante mais dramático, porém, foi quando a égua se agitou e deu um coice sem querer. Rick não se afastou a tempo e recebeu uma patada no ombro. Donna mordeu o lábio para abafar o grito de susto quando viu o sangue manchar a camisa branca.

— Segure a cabeça dela pelo cabresto! — exclamou Rick. Donna obedeceu prontamente e afagou a testa do animal, o que serviu para acalmá-lo momentaneamente. A égua contorceu-se nos últimos instantes do parto e os olhos suplicantes pareciam estar im­plorando um pouco de compreensão por parte dos dois.

No instante seguinte, Rick deu um puxão mais forte e o potrinho soltou-se completamente do corpo da mãe. Donna estava com o cora­ção batendo a toda quando o cavalinho de pernas desajeitadas enga­tinhou no chão e tentou levantar-se nas patas de trás.

— Belo animal — disse Rick, com os dentes cerrados e o suor escorrendo pela testa.

Depois que o potrinho foi enxugado com um pano, Donna perce­beu que o pêlo do animal era castanho-claro como o da mãe. Ao sentir o cheiro do filho, a égua voltou a cabeça para trás e balançou o rabo.

— Seu bebê está aqui — disse Rick, colocando o potrinho junto da mãe. — Agora você pode beijá-lo e lambê-lo à vontade.

A égua deu um pequeno empurrão com a testa no cavalinho de pernas compridas e começou a esfregar a língua comprida no pêlo úmido. Donna observou a cena de amor maternal com lágrimas nos olhos. Quando se voltou, Rick estava lavando as mãos, o rosto e os braços num balde com água. De novo ela mordeu o lábio ao avistar a mancha vermelha que formava um círculo no alto do braço.

As lâmpadas amarelas da cocheira projetavam sombras estranhas no chão coberto de feno, de onde vinha o cheiro forte de suor e de urina. O menino que tomava conta dos animais estendeu a moringa e a caneca com água para Rick, que se serviu duas vezes, tão grande era a sua sede. Estava realmente quente ali dentro e o cheiro do feno espalhado pelo chão produzia uma sensação de secura na garganta.

— Tome conta da égua. Polo — disse Rick ao terminar de se lavar. — Você viu? O potrinho tem pernas compridas e finas. Isso é sinal de que será um excelente corredor.

— A mãe também corre bem — confirmou o menino. Donna apontou para o ombro ferido.

— Não seria bom fazer um curativo no machucado? Está sangrando..

— Mais tarde. Primeiro vamos dar um nome ao cavalinho. Você tem alguma sugestão?

— Eu? — perguntou Donna, de olhos arregalados. Ela balançou pensativamente a cabeça e olhou com o canto dos olhos para a égua, que parecia indiferente a tudo ao lado de seu filhote. — Que tal Dominó? Você gosta?

Rick observou-a um instante em silêncio, com a veia do pescoço saliente por baixo da camisa aberta no peito. Ele estendeu o braço como se fosse tocá-la; arrependeu-se porém no último instante e colo­cou a mão espalmada em cima da própria perna. Rick provavelmen­te estava se lembrando da noite em que os dois tinham dançado juntos até de madrugada na sala decorada com quadrados brancos e pretos, como um dominó. Naquela época, Donna não sabia ainda que Rick pertencia a outra mulher.

— Dominó está ótimo — disse Rick por fim, aproximando-se da égua e fazendo festa na garupa luzidia. — Ouviu, beleza? Seu filho vai se chamar Dominó, em homenagem a uma noite inesquecível pas­sada em Roma.

Donna sentiu os olhos arderem. Não era possível amar tanto alguém quanto amava Rick naquele instante.

— Escute, vamos fazer o curativo nesse ombro — disse com deci­são no momento em que saíram da cocheira. — Está sangrando de novo.

Rick assentiu com a cabeça e despediu-se do menino, que se ajeitou num monte de feno para passar a noite ao lado da égua e de sua cria.

O ar lá fora estava frio, seco e as estrelas brilhavam feericamente no céu negro como breu. Quando entraram em casa, Rick retirou a jaqueta de couro que passara em cima dos ombros de Donna alguns minutos antes.

— Vá diretamente para a cama, querida. Você está morrendo de sono e eu posso fazer o curativo sozinho.

— Nem sonhando! Eu não vou dormir antes de examinar essa ferida. Afinal, você merece mais do que isso pelo trabalho que teve esta noite.

— Não é a primeira vez que eu sirvo de parteira. . . e não será a última — disse Rick, com um sorriso nos lábios. — Quer dizer então que você se lembrou do baile à fantasia? Dominó é um bonito nome. Quando esse potro crescer, vou me lembrar sempre do nosso encontro em Roma.

— Hoje foi uma noite muito especial para mim — murmurou Donna, com o rosto compenetrado. — Eu gostei muito de assistir ao parto da égua. Foi uma tremenda experiência. . .

— Parto, fecundação e morte, como todos os fenômenos naturais, têm uma grande beleza. Você foi boa para a égua, calma e terna. Os animais são muito sensíveis aos bons tratos.

— As pessoas também.

Ela sabia o que se ocultava por trás das palavras de Rick e con­trolou-se para não se atirar nos braços dele. Rick a desejava tanto quanto ela. O calor que emanava da pele morena chegava até ela em ondas de desejo, um sentimento sensual como nunca experimentara antes.

— Eu sei no que você está pensando, querida. Nós participamos nesta noite de algo muito íntimo. A conclusão lógica seria levá-la para o quarto — disse Rick com um suspiro profundo, como se o coração lhe pesasse no peito. — Mas isso não é possível nem acon­selhável. Uma outra vez, quem sabe. . .

— Deixe-me ao menos fazer o curativo em seu braço.

— Está bom. Vamos lá em cima.

Subiram a escada lado a lado e, quando chegaram no último degrau Donna voltou-se instintivamente para o lado esquerdo, em direção ao seu quarto.

— No meu quarto há uma pia. Vamos lá. Eu tenho também um; caixa de curativos.

Ela abriu a porta e acendeu a luz da cabeceira. Seu coração disparou quando ouviu Rick fechar a porta atrás de si. Os dois estavam sozinhos como da primeira vez num quarto sombrio.

Rick sentou-se no banquinho que estava ao pé da cama enquanto ela foi buscar a caixa de curativos e uma bacia de louça para lavar a ferida.

— Acho melhor você tirar a camisa. Vou aproveitar e lavá-la na pia.

— Pois não, enfermeira.

Rick retirou a camisa e deu um gemido de dor quando o sangue coagulado foi arrancado da pele. Os ombros grandes e fortes estavam completamente descobertos no instante em que Donna se sentou na beira da cama e examinou detidamente o ferimento. O corte fundo já tinha cicatrizado, mas era preciso lavar a ferida e passar um anti-séptico. Ela mergulhou o lenço na água morna e passou-o sobre a ferida, retirando o sangue coagulado que estava grudado na pele.

— Você devia ser enfermeira, amor. Você tem os dedos firmes e delicados.

— O corte foi muito fundo. Mas espero que não haja nenhuma infecção.

— Eu tenho o couro duro — disse Rick, com um sorriso. — Ainda bem que a égua não mordeu você. . .

— Está doendo? — perguntou Donna, arrepiando-se toda ao ouvir as palavras de Rick. A ideia de ser mordida pelos dentes fortes da égua lhe pareceu terrível naquele instante.

— Dá pra aguentar.

Os músculos do ombro, porém, estavam tensos no momento em que Donna esfregou o lenço sobre a ferida, a fim de retirar os últi­mos detritos de sangue coagulado. Os olhares dos dois se encontra­ram subitamente e o desejo brotou no coração de ambos como uma chama.

— Ah, meu Deus, você me bota louco!

Ela engoliu em seco e voltou-se na direção da caixinha de curati­vos que estava em cima da cama.

— Que tal fazer um café depois de terminar o curativo?

— Boa ideia.

Ela sentiu uma contração na boca do estômago quando colocou o último esparadrapo em cima da gase.

— Pronto. Está melhor agora?

— Estou novo.

De peito descoberto, os cabelos negros e o brinco de ouro na orelha, Rick parecia um homem primitivo, alheio aos requintes da civilização. Donna sentiu-se ao mesmo tempo atraída e assustada com aquela imagem.

— Você está parecendo um pirata com esse brinco na orelha. . .

— É assim que me sinto esta noite! Um pirata que não respeita nenhuma lei humana. Estou quase mandando às favas minhas boas intenções e partindo para a ignorância! Quem foi que disse que o inferno está povoado de boas intenções?

— Deve ter sido algum padre.

— Ah, por que eu não sou um homem livre? Eu podia agora fazer o que bem entendesse!

Donna despejou a bacia na pia e tornou a enchê-la com água limpa, a fim de. lavar a manga da camisa que estava manchada de sangue. Feito isso, limpou a pia e enxugou as mãos na toalha.

— Bem, está na hora do cafezinho. Você quer tomar aqui ou prefere que eu leve ao seu quarto?

— Aqui! — exclamou Rick, com vivacidade.

Donna mordeu o lábio, com despeito. Não podia pelo visto ir ao quarto dele, onde Serafina tinha acesso a qualquer hora do dia ou da noite.

— Eu volto num minuto.

Dirigiu-se à copa, no andar de baixo, e enquanto a água esquen­tava na chaleira, preparou alguns sanduíches de peito de galinha com maionese. Ao voltar ao quarto com a bandeja, Rick estava deitado ao comprido na cama, dormindo profundamente.

Ela colocou a bandeja em cima da mesa e ficou um instante parada no meio do quarto, sem saber o que fazer. As feições dele estavam serenas e descontraídas e Donna sorriu sem querer. Seria uma mal­dade acordá-lo apenas para lhe servir o café e lhe oferecer os san­duíches que tinha preparado com tanto cuidado na cozinha.

Tinha vontade de mergulhar a cabeça no peito descoberto, aninhar-se nos braços dele e desfrutar por algumas horas o contato íntimo da­quele corpo. Em vez disso, porém, afastou-se da cama e levou a bandeja para o quarto de vestir, onde tomou sozinha o café que tinha feito. Deixaria que Rick dormisse no seu quarto até de madrugada. Assim, ninguém ficaria sabendo que ele passara uma parte da noite na sua cama.

Essa pelo menos era a sua intenção. Entretanto, ela não estava com a menor disposição de dormir sozinha no sofá inconfortável do quar­tinho de vestir. Por isso retirou os sapatos dos pés, voltou ao quarto e enfiou-se embaixo da coberta ao lado de Rick. No momento em que afundou a cabeça no travesseiro, sorriu consigo mesma ao pensar na cara que Rick faria na manhã seguinte quando a encontrasse na mesma cama, colada a seu corpo. . .

Donna acordou sobressaltada no meio da noite e percebeu no mes­mo instante que um braço musculoso estava passado em volta de seu corpo. Continuou alguns instantes de olhos fechados, saboreando a intimidade do contato. Foi só então que uma voz ao pé da cama despertou-a completamente do seu devaneio:

— Vocês dois formam um belo par! Cabelos louros em cima de ombros morenos. . . até parece uma cena de amor nos mares do sul!

Ela ia se levantar quando Rick a forçou a continuar deitada. Evi­dentemente, ele ouvira o comentário de Serafina, que estava ao pé da cama, os cabelos soltos caindo em cima do robe de chambre grená, o cinto passado frouxamente na cintura.

Rick afastou o braço que estava passado em cima do corpo de Donna e levantou-se da cama com um gesto lento.

— Eu sei o que você está pensando. . . Mas nós dormimos jun­tos da maneira mais inocente do mundo. Aliás, você me conhece o suficiente para saber que eu não seduziria uma moça na sua casa.

— Eu não falei nada — disse Serafina, com a expressão séria. Donna levantou-se nesse instante e afastou-se deliberadamente de

Rick, que pertencia de fato à mulher que viera buscá-lo no seu quarto. Era inútil iludir-se sobre isso. Um tremor percorreu seu corpo no instante em que Serafina a observou, com um olhar severo.

— Rick não tem culpa — disse em voz baixa. — Ele estava exausto depois do trabalho que teve com a égua e pegou no sono na minha cama. . .

— Você gosta de Rick? — Serafina perguntou, com voz impas­sível, como se não tivesse ouvido a explicação anterior.

A reação dela foi tão inesperada que deixou Donna desorientada no primeiro instante. Ela imaginava que Serafina faria uma cena ter­rível quando encontrasse os dois juntos. Em vez disso, havia apenas uma nota de resignação na voz dela.

— Gosto — disse Donna, com sinceridade. De que adiantava ocultar a verdade? — Eu amo Rick de todo o coração, mas sei que ele pertence a você. Nunca houve absolutamente nada entre nós. . .

— É verdade — Rick confirmou, de cabeça baixa.

Serafina deu um suspiro e aproximou-se da beira da cama, onde Rick estava sentado. Ela estendeu os braços e segurou o rosto dele com as duas mãos, como se fosse uma criança. Em seguida, inclinou-se e beijou-o com ternura na testa.

— Rick sempre foi um irmão amado para mim. Se não fosse por ele, eu teria posto um fim à vida há muitos anos. Cristo Dio, o que eu fiz com você, mio? Eu o prendi egoisticamente nesta casa e passei todos os meus interesses na frente dos seus. No fundo eu jul­gava que você era um cavaleiro de pedra como o que está no pátio da casa, que não precisa de ninguém para lhe fazer companhia nas horas frias da noite. Meu querido Ricardo, como você me suportou durante todos estes anos?

Donna deu uma exclamação de espanto ao entender as palavras veladas que Serafina havia dito. Rick estendeu o braço e puxou Donna na sua direção, afagando-a com carinho.

— É verdade, amor. Serafina é minha irmã.

— Mas por que vocês guardaram esse segredo durante tanto tempo? Eu não entendo. . .

— Ninguém pode entender! — exclamou Serafina, andando de um lado para o outro do quarto, os cabelos soltos caindo sobre os ombros, com uma expressão de angústia nos olhos. — Ah, você não faz ideia do tormento, do terror por que eu passei! Rick me levou para o convento das freiras e elas tomaram conta de mim, até meu filho nascer. Ah, Donna, você não imagina o que foi quando aqueles homens invadiram nossa casa, mataram minha mãe e me violentaram brutalmente.

— Serafina foi violentada pelos homens da Máfia há muitos anos, quando nós dois éramos adolescentes e morávamos numa fazenda da Sicília — explicou Rick, aproximando-se da irmã e abraçando-a com ternura. — Nós ocultamos esse passado triste a fim de que Serafina pudesse ser a atriz idolatrada pelo público, sem nada que maculasse sua imagem. Algumas pessoas pensavam que eu vivia às custas de uma mulher, que eu era seu guarda-costas. . . Outras diziam que eu era seu gigolô. Essas opiniões me deixavam indiferente. Nenhuma menina era mais bela que Serafina na vila onde morávamos. Um belo dia, porém, de volta de uma caçada, eu encontrei minha mãe morta na sala e minha irmã brutalizada por quatro homens que tinham inva­dido a casa na minha ausência. Serafina estava tão desesperada que eu a levei para o convento das freiras. Ela ficou lá até o dia em que o filho nasceu.

— Que horror! — exclamou Donna, atordoada com a revelação inesperada. — Que sofrimento terrível deve ter sido!

— Adone nunca ficou sabendo que seu pai era um membro da Máfia — continuou Rick, correndo os dedos pelos cabelos. — Três dos assaltantes foram apanhados pela polícia. O quarto, porém, con­seguiu fugir, mas eu jurei a mim mesmo que ia matá-lo um dia, custasse o que custasse. E foi isso o que aconteceu. Eu o matei com as minhas mãos, por que na Itália a vingança é uma obrigação moral.

— Que tragédia! Adone nunca desconfiou de nada?

— Não, nunca, mas nós sabíamos que ele herdaria traços do pai. O que podíamos fazer? Afinal, Adone é o filho único de Serafina, e meu sobrinho. . .

Era por isso que havia uma semelhança tão grande entre os dois, pensou Donna. Rick era o tio de Adone, o irmão de Serafina. . . Durante todos aqueles anos ela fora perseguida por uma lembrança terrível e agarrava-se a ele como a única pessoa que lhe dava coragem para continuar viva.

Ela percebeu que Serafina a observava com a expressão triste de alguém que nunca conheceu o verdadeiro amor, desde o dia em que fora cruelmente brutalizada por quatro homens e deixada semimorta no quintal de casa, onde Rick a encontrou, caída no chão, soluçando de dor e de humilhação.

— Depois do nascimento de Adone, inventamos o casamento de Serafina com um homem mais velho, a fim de afastar as suspeitas.

Isso condizia, aliás, com a imagem da jovem atriz que começava a carreira no cinema. Era isso que Serafina desejava: ser uma estrela do cinema. E foi isso que conseguiu, graças ao seu esforço pessoal. Uma coisa no fundo compensou a outra.

— E você, meu querido? Que compensação você teve durante todos estes anos? — perguntou Serafina, examinando com atenção o rosto magro e sofrido que nunca fora consolado pelas mãos carinhosas de uma mulher. — Eu fui insuportavelmente egoísta, Ricardo. Julguei que nós dois podíamos viver sem amor, como se fôssemos os monges de um convento. Agora, porém, estou vendo que você encontrou a mulher dos seus sonhos.

— Donna entende a situação, querida.

— Eu suspeitei há algum tempo que vocês se sentiam atraídos um pelo outro, mas pensei que fosse um namoro passageiro que morreria com o tempo. Eu me enganei, porém. Desta vez vocês encontraram o verdadeiro amor, que se fortalece com os anos. Quando eu avistei vocês dois, abraçados na cama como um casal de namorados, fiquei muito comovida. Percebi imediatamente que havia algo especial. Donna estava aninhada nos seus braços como se você fosse a coisa mais preciosa de sua vida. Você merece um amor muito grande, meu que­rido irmão. Você sempre foi o melhor amigo que eu tive e eu já tomei muitos anos de sua vida. Agora chegou a vez de ter tudo o que deseja e eu faço votos de que vocês dois sejam muito felizes juntos e tenham muitos filhos.

Serafina fez um sinal com a cabeça para Donna, que se levantou da cama e caminhou na sua direção.

— Eu lhe dou meu irmão, querida. Ame-o, ame-o de todo o coração, porque ele é o melhor homem que já nasceu na Sicília.

— E você? — perguntou Rick, preocupado mais com o bem-estar da irmã do que com o seu próprio. — O que você vai fazer?

— Eu vou para Roma — disse Serafina, tirando do bolso do robe de chambre um telegrama que recebera no dia anterior. — Rece­bi este telegrama de Elio Renaldo, meu último diretor. O filme que rodamos juntos foi um sucesso e ele me convidou para trabalhar num outro, onde vou fazer o papel de mãe. Afinal, eu sou mãe e logo serei avó...

Os dedos de Rick estavam machucando os de Donna, mas ela aguentou a dor com o coração leve. Tudo terminara muito melhor do que esperava. Serafina seria de novo aplaudida pelo público e esqueceria durante algum tempo a tragédia de sua adolescência.

— Eu prometo que vou me comportar com juízo desta vez, Rick — disse ela, fitando o irmão no fundo dos olhos. — Não posso viver mais tempo sem trabalho. Esta vida de lazer não me convém. Eu ando muito nervosa ultimamente e tenho dormido mal à noite, ape­sar dos comprimidos que tomo. Eu não precisava de nada disso quan­do levava uma vida ativa e, se o filme for bem recebido pelo público, vamos começar outro logo em seguida.

Serafina, pelo visto, estava sinceramente entusiasmada com a opor­tunidade de voltar aos estúdios e ser de novo a atriz famosa de outros tempos.

— Você me tirou um peso da consciência. Eu vinha pensando em casar com Donna há algum tempo, mas não queria decidir nada antes de ter certeza de que você estava em condições de viver sozinha.

— Ah, você é um amor de irmão! — exclamou Serafina, com um sorriso. — Eu vou telefonar hoje mesmo para Elio Renaldo e dizer que aceito o papel que me ofereceu. Depois vou fazer uma massagem no rosto e. . . voltar a ser bonita como antes. Adeus, meus queridos, divirtam-se. . .

Depois que Serafina saiu do quarto, Donna voltou-se para Rick com os olhos brilhantes.

— Você ouviu? Ela me deu você de presente!

— Não é possível! — disse Rick, com o rosto sério. — Ela vai acabar desistindo da ideia, como das outras vezes. . . Eu preciso ter certeza de que ela não estava apenas representando mais um papel. Eu não posso ser feliz sabendo que minha irmã está sofrendo. . . Certa vez ela tentou se matar com uma gilete. . .

— Eu sei, Rick. Eu vi a cicatriz no pulso dela.

— Eu vou ter uma conversa com Serafina e ver se está tudo em ordem. Volto num minuto.

Rick saiu do quarto e Donna deitou-se na cama. Sentiu o perfume dele no lençol e abraçou o travesseiro com força. Serafina voltaria atrás no último minuto? Nem mesmo Adone tinha consciência do verdadeiro relacionamento que existia entre os dois. Eles foram tão discretos que somente as freiras do convento, onde Serafina se refu­giara durante a crise, sabiam que ela e Rick eram irmãos. Após se vingar do assassino da mãe, Rick foi morar com a irmã nos Estados Unidos e, a partir de então, nunca mais se separaram. E agora? Ele conseguiria a liberdade? Seria a separação definitiva? Serafina man­teria sua promessa ou recuaria no último minuto?

Nervosa e agitada com a espera, Donna levantou-se da cama e foi tomar um banho quente de imersão para acalmar os nervos. Ao sair do banheiro, tocou a campainha e pediu ao copeiro para lhe trazer uma xícara de café. Sentou-se na sacada do quarto com um livro aberto no colo, mas estava muito ansiosa para se concentrar na leitura. Foi então que se lembrou da cocheira. Daria um pulo até lá para ver como estava a égua baia que tivera cria na noite anterior.

Dominó estava mamando na mãe quando ela entrou na cocheira. A égua baia sacudiu a cabeça quando ela chegou perto e aceitou de bom grado o torrão de açúcar que Donna lhe deu. Era gostoso sentir o beiço mole do animal abocanhando o torrão na palma da mão.

Não fazia cinco minutos que estava ali, entretida com a égua e o potrinho, quando ouviu passos que vinham do quintal. Voltou-se ime­diatamente, como se tivesse a intuição de quem era. No instante seguinte, Rick aproximou-se dela de braços abertos. Ela correu para ele com os olhos radiantes de alegria.

— Serafina está fazendo as malas. Ela vai viajar hoje à noite para Roma. Está animadíssima com a perspectiva de voltar ao trabalho.

— Ah, Rick, que maravilha! Eu estou tão feliz que tudo tenha terminado bem!

— Agora só falta providenciarmos nosso casamento. Podíamos ser os padrinhos de Assunta, já casados e de aliança no dedo. O que você acha da ideia?

— Esplêndida! Precisamos comprar um presente bem bonito para os noivos.

— Isso fica por sua conta, amor — disse Rick, beijando-a com ternura. — Eu agora só quero pensar numa coisa... na hora em que iremos para a cama!

Donna sorriu e lembrou-se da primeira noite no alto do Coliseu, quando conhecera o homem alto e moreno que usava um brinco de ouro na orelha. Tocou na aliança com a ponta do dedo e prometeu a si mesma que tornaria Rick o homem mais feliz da terra, mesmo que fosse impossível fazê-lo esquecer completamente os trágicos incidentes que marcaram sua adolescência.

 

                                                                                Violet Winspear  

 

                      

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