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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A VAGABUNDA / Gabrielle S. Colette
A VAGABUNDA / Gabrielle S. Colette

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

   

Dez e meia... Estou pronta cedo demais outra vez. Não é sem razão que o meu colega Brague, que foi quem me ajudou a estrear na pantomima, me censura em ter­mos pitorescos:

— Maldita raça de amadores; é o cúmulo! Você de­ve ter o diabo no corpo. Se fôssemos atrás do que dita a sua cabeça, começaríamos a sapecar a pintura na cara já às 7 e meia, ainda engolindo o aperitivo...

Três anos de music hall e de teatro não conseguiram que eu mudasse; fico pronta sempre cedo demais.

Dez e trinta e cinco... Se não recorrer a este livro já lido e relido, que anda jogado por entre meus apetrechos de pintura, ou ao Paris-Sport, todo marcado pela camareira com meu lápis de sobrancelha, encontrar-me-ei só, comigo mesma, diante de uma conselheira maquilada, que do outro lado do espelho me encara, pro­fundos olhos, de pálpebras imersas numa gordurosa e arroxeada massa. Ela tem as maçãs do rosto vivas, na mesma cor das esponjinhas dos jardins, e os lábios de um vermelho negro, brilhante, e como que envernizados. . . Contempla-me demoradamente, e sei que fala­rá... Dirá:

"É você que está aí? Aí, sozinha, dentro dessa jaula de paredes brancas, que mãos ociosas, impacientes, pri­sioneiras, esfolaram com iniciais entrelaçadas, bordadas de figuras indecentes e ingênuas? Por sobre estas pare­des caiadas, unhas escarlates como as suas escreveram o apelo inconsciente dos abandonados. .. Atrás de você uma mão feminina gravou: Marie. .. e o fim do nome lança-se num traço arrojado, como rubrica ardente, algo que sobe como um grito... É você mesma que se en­contra assim sozinha, debaixo desse teto que trepida e que os pés dos dançarinos fazem tremer como o assoalho de um moinho em movimento? Por que está aí tão só? Por que não noutro lugar?"

Sim, é a hora lúcida e perigosa... Quem virá bater à porta do meu camarim, que rosto se interporá entre o meu e o que me olha do outro lado do espelho?... É possível que o acaso, meu amigo e meu dono, consinta em enviar-me por uma vez mais os gênios do seu desor­denado reino. É a fé que me resta: nele e em mim. Nele sobretudo, que me socorre quando soçobro, que me agar­ra e me sacode à maneira de um cão salvador, cujos den­tes fossem, a cada vez, deixando marcas na minha pe­le... Se bem que agora, a cada ataque de desespero, eu já não fique à espera do meu fim, mas da aventura, do pequeno milagre banal que reate, como um elo refulgente, o colar dos meus dias.

 

 

 

 

 

 

É a fé, é a fé indubitavelmente, com sua cegueira por vezes dissimulada, com o jesuitismo de suas renúncias, a teimosia em esperar, mesmo na hora em que se grita: "Tudo me abandona!..." No dia em que esse meu se­nhor, o acaso, tivesse em meu coração um outro nome, eu daria, sinceramente, uma excelente, uma excelente católica...

Como o assoalho treme esta noite! Bem se vê que faz frio: os dançarinos russos procuram aquecer-se. Quando eles gritarem em coro: "You!", com aquela voz aguda e esganiçada dos porcos ainda novos, serão 11h10. Meu relógio é infalível; em um mês, varia cinco minutos so­mente. Dez horas: chego; a Sra. Cavallier canta Les Petits Chemineux, Le Baiser d'Adieu, Le Petit Quelqu' Chose, três canções. Dez e dez: Antoniev e seus cães. Dez e vinte e dois: tiros de fuzil, latidos, fim do número dos cães. A escada de ferro range e alguém tosse: é Jadin que desce. Pragueja enquanto tosse, pois não há vez em que não pise na barra da saia, é um rito... Dez e trinta e cinco: o fantasista Bouty. Dez e quarenta e sete: os dançarinos russos, e finalmente onze e dez: eu! Eu... ao pensar nesta palavra, olho involuntariamen­te para o espelho. Sim, sou eu mesma quem está aí em frente, sob a máscara vermelho-malva, olhos cingidos por um halo azul gorduroso que já começa a derreter-se... Esperarei que o resto do rosto também se dilua? Que de todo o meu brilho, fique apenas uma barrela co­lorida, colada ao espelho como uma longa lágrima lo­dosa?

Mas gela-se aqui! O frio acinzentou-me as mãos. Es­frego-as uma na outra e a pintura branca que as cobre vai-se rachando. Deus meu! O cano do aquecedor está congelado: é sábado, e, aos sábados, deixamos que o próprio público, o público popular, o público alegre, irrequieto e um tanto tocado se encarregue de aquecer a sala. Mas não pensaram no camarim dos artistas.

Um soco sacode a porta e até minhas orelhas estreme­cem ... Faço entrar meu colega Brague, trigueiro e consciencioso, vestido de bandido romano.

— Sabe que é a nossa vez?

— Sei. Não é sem tempo. Um pouco mais e acaba­ríamos batendo as botas.

No alto da escada de ferro que dá -para o palco, um gostoso calor seco, poeirento, envolve-me como uma manta confortável e suja. Enquanto Brague, sempre me­ticuloso, inspeciona a instalação e manda subir o refle­tor que ilumina o fundo do cenário — um sol poente —, vem-me o gesto maquinai de pregar o olho ao orifício da cortina.

Aí está a estupenda platéia dos sábados, fazendo jus ao querido café-concerto do seu bairro. É uma sala penumbrosa, pois a iluminação é insuficiente, e eu daria um prêmio a quem, da décima fileira de poltronas, até a segunda galeria, conseguisse avistar um colarinho!... Uma fumaça sarrenta paira sobre tudo, conservando o odor terrível de cigarro apagado e de charuto barato que devem estar fumando lá adiante... Em compensação, as quatro primeiras frisas têm o aspecto de quatro jardineiras. .. É uma bela noitada, sem dúvida. Mas, consi­derando a forte expressão da pequena Jadin:

— Pouco me importa! Não ganho nada com isso!

Depois dos primeiros compassos do nosso número, sinto-me reconfortada, entrosada, torno-me leve e irres­ponsável. Debruçando-me no balcão de tela, observo se­renamente a camada de sujeira — lama de sapatos, pó, pêlos de cachorro, parafina esmagada — que cobre o piso por onde, daqui a pouquinho, se arrastarão meus joelhos nus, até o momento em que devo aspirar um ru­bro gerânio artificial. Depois disto, não me pertenço mais, e sei que tudo correrá bem! Sei que não cairei quando dançar, que o meu salto não se enganchará na bainha da minha saia, que desabarei, agredida por Brague, sem que sequer esfole os cotovelos ou achate o na­riz. Sei que esperarei despreocupadamente, sem perder a seriedade, o momento mais dramático, em que, Rara nos fazer rir, o diabo dum pequeno maquinista, por de­trás do cenário, se põe a imitar o barulho de peidos. .. Um brutal foco de luz me guia, a música rege meus ges­tos, uma misteriosa disciplina subjuga-me e protege-me... Tudo vai bem.

Tudo às maravilhas! E esse escuro público dos sába­dos já nos recompensou com um tumulto de aplausos, de assobios, de gritos, de cordiais obscenidades; recebi, em cheio, no canto da boca, um ramalhete de cravos de dois tostões, desses cravos brancos e anêmicos que a florista ambulante tinge em água carminada... Po­nho-os na pala do casaquinho; cheiram a pimenta e a cachorro molhado.

Desço ao meu camarim, levando também uma carta que acabaram de entregar-me:

Minha senhora, quem lhe escreve, estava na primeira fila da platéia; seu talento de mimóloga convida-me a crer que deve possuir outros, ainda mais especiais e mais cativantes; conceda-me o prazer de cear esta noite em minha companhia. ..

Está assinado "Marquês de Fontanges", meu Deus, sim, e escrito do Café Delta... Imaginem, descendentes de famílias nobres que pensamos extintas, quantos deles são assíduos freqüentadores do Café Delta?... Contra toda a verossimilhança, pressinto que esse Marquês de Fontanges tem um parentesco muito próximo com um tal Conde de Lavallière, aquele mesmo que me ofereceu, na semana passada, um five o' clock no seu apartamento. Pretensões banais, mas que deixam entrever o amor ro­manesco pela alta roda, o culto ao brasão, que neste bairro de malandros está latente, sob tantos bonés dis­formes.

É sempre com um grande suspiro que fecho a porta de casa. Suspiro de fadiga, de tédio, de alívio, ou de angustiosa solidão? É melhor nem procurar saber, é bem melhor!

Esta noite, não sei o que se passa comigo... Deve ser este glacial nevoeiro de dezembro, com suas lantejoulas de gelo boiando no ar, com seus halos irisados vibrando em torno dos bicos de gás, derretendo-se sobre os lábios num gosto de creosoto... É também este novo bairro em que habito, todo branco atrás dos Ternes, que desencoraja o olhar e o espírito.

A esta hora então, sob o gás esverdeado, minha rua é uma argamassa cremosa, como amêndoa confeitada, marrom-café e caramelo amarelado, uma sobremesa des­moronada, derretida, onde sobrenadam os torrões das pedras de alvenaria. Minha própria casa, isolada dentro da rua, dá a "impressão de não existir". No entanto, suas paredes novas e seus tabiques esguios oferecem, por um preço muito conveniente, abrigo bastante confortá­vel para "damas solitárias" como eu.

Quando se é "dama solitária", isto é, ao mesmo tem­po a velha ranhosa e o paria, o terror dos proprietários, pega-se o que se acha, mora-se onde se pode, e agüenta-se o frio que este tipo de construção deixa passar...

A casa onde vivo, albergue misericordioso, abriga to­da uma colônia de "damas solitárias". No apartamen­to de cima, está instalada a amante oficial de Young, Young-Automóveis; acima desta, a mui distinta amiga do Conde de Bravailles; mais no alto, duas irmãs loiras, que recebem, todo dia, a visita de um único Cavalheiro-bem-que-é-industrial; mais no alto ainda, uma pequena terrível, muito pândega, que leva, noite e dia, o gênero de vida de um fox-terrier desembestado: gritos, piano, cantorias, garrafas vazias atiradas janela abaixo:

— É a vergonha da casa — disse um dia a senhora Young-Automóveis.

Por fim, no andar térreo, eu, que nunca grito nem toco piano, jamais recebo senhores e ainda menos senhoras. A espevitada do quarto andar faz barulho demais, e eu de menos; a zeladora não pede licença para dizer-mo:

— É engraçado, nunca se sabe quando a senhora está ou não em casa. Custa a crer que seja uma artista!

Ah! que feia noite de dezembro! O aquecedor cheira a iodofórmio. Blandine esqueceu-se de pôr a botija de água quente na cama e a minha cachorra, até ela, mal-humorada, rabugenta e cheia de frio, lança-me, sem sair do cesto, um perfeito olhar em preto e branco. Meu Deus! Não aspiro a arcos de triunfo, nem a pompas feéri­cas, e no entanto...

Oh! Poderei procurar por toda parte, por todos os cantos, debaixo da cama; não há vivalma aqui, ninguém a não ser eu. O grande espelho do meu quarto já não devolve a imagem maquilada de uma boêmia de music hall, reflete apenas... apenas eu.

Eis-me aí tal como sou! Não, esta noite não escapa­rei deste grande espelho, do solilóquio cem vezes evi­tado, aceito, evadido, recapturado e rompido... Ai de mim! Sinto já a inutilidade de qualquer distração. Esta noite não terei sono e o encanto de um livro — oh! o livro novo, o livro fresco, cujo perfume de tinta ainda úmida, de papel virgem, evoca a hulha, as locomotivas, as partidas! — o encanto do livro não logrará arran­car-me a mim mesma...

E aí estou eu, tal como sou! Só, só, pela vida inteira só, sem dúvida. Muito cedo! Fiquei só muito cedo. E penetrei na casa dos trinta, sem que por isso me sentisse humilhada; o que vale neste rosto é a expressão que o anima, a cor do seu olhar, o sorriso desconfiado, zombeteiro que nele brinca, que faz Marinetti chamar-me mi­nha gaiezza volpina... Raposa sem malícia, que até uma galinha saberia apanhar! Raposa sem concupiscência, cujos olhos estão sempre voltados para a armadilha e para a jaula... Raposa alegre, sim, mas porque são os cantos de sua boca e de seus olhos que desenham o sor­riso involuntário... Raposa cansada por ter dançado, cativa, ao som da música...

Pareço-me com uma raposa, é verdade. Mas uma ra­posa bonita e esbelta deixa de ser uma coisa feia, não é mesmo?. .. Brague diz também que tenho o ar de rato, quando faço um bico com a boca e começo a piscar pa­ra enxergar melhor... Não há por que me zangar.

Ah! Não gosto de ver-me com essa boca desanimada, com esses ombros pendidos, todo o corpo abatido, a des­cansar oblíqua sobre uma das pernas!... Veja: cabelos chorosos, escorridos, que dentro em breve terei de esco­var demoradamente para restituir-lhes a cor de castor brilhante. Veja: olhos que conservam vestígios do lápis azul, unhas em que o vermelho deixou resíduos duvido­sos... Precisarei de uns bons cinqüenta minutos pelo menos, para tomar banho e cuidar de tudo isso...

Já é 1 hora.. . Que estou esperando? Uma chico­tada, bem impiedosa, para pôr em marcha o animal em­pacado ... Mas quem a dará, se... se estou totalmente só? Dentro deste longo quadro que abarca a minha ima­gem, vê-se bem que já tenho o hábito de viver só!

Para uma visita qualquer, para um fornecedor, para Blandine mesmo, minha criada de quarto, eu ergueria esta nuca que descai, esta anca que repousa enviesada, uniria uma à outra minhas mãos vazias... Esta noite, porém, estou tão só...

Sozinha! Na verdade, parece que tirei o dia para la­mentar-me!

— Se você vive assim sozinha — disse-me Brague certa vez —, é porque quer, é ou não é?

Exato, quero, porque quero, e está acabado. Contu­do... dias há em que a solidão, para um ser na minha idade, é o vinho capitoso que traz a embriaguez da liber­dade, como outros há em que ela não passa de um tô­nico amargo, como há ainda aqueles em que ela tem o poder de um veneno que faz com que atiremos a cabeça de encontro às paredes.

Esta noite, porém, quisera ignorar de que modo ela me invade. Oxalá me contentasse em hesitar, não dis­tinguir se o arrepio que me percorrerá, ao contato frio dos meus lençóis, será de medo ou prazer.

Só... há muito que estou só. Há tanto, que já cedo ao hábito do solilóquio, das conversas com a minha ca­chorra, com o fogo, com a minha imagem... É uma mania adquirida pelos reclusos, pelos velhos prisionei­ros; mas sou livre... E, se vivo a dialogar com o meu eu, trata-se de uma espécie de necessidade literária de coordenar, de redigir meu pensamento.

À minha frente, do outro lado do espelho, na miste­riosa câmara de reflexos, está o retrato de uma "literata fracassada". E aliás, sempre que se referem à minha pes­soa, apontam-na como "pessoa de teatro", mas nunca lhe atribuem qualidades de atriz. Por quê? É um matiz sutil, uma delicada recusa, por parte do público e dos meus próprios amigos, em conceder-me alguma projeção numa carreira que, afinal, foi da minha escolha... Uma literata mal sucedida: eis o que devo representar para to­dos, eu, que não escrevo mais, que me nego a alegria, o luxo de escrever...

Escrever! Poder escrever! Isto significa o longo deva­neio diante da folha em branco, o rabiscar inconsciente, o brincar da pena que gira em torno do borrão de tinta, que mordisca a palavra imperfeita, enche de garras, de flechazinhas, orna-a de antenas, de patas, até que ela ve­nha a perder a sua figura legível de palavra, metamorfoseada que foi em fantástico inseto, borboleta-fada que alçou seu vôo.

Escrever. .. É o olhar fixo, hipnotizado pelo reflexo da janela sobre o tinteiro de prata, é a divina febre que assoma às faces, à fronte, enquanto uma bem-aventura­da morte gela sobre o papel a mão que escreve. É tam­bém o pleno olvido da hora, a indolência no macio diva, essas bacanais do espírito inventivo donde saímos curva­dos, embrutecidos, mas já recompensados, mensagei­ros dos tesouros que, sob o pequeno círculo de luz que a lâmpada descreve, serão entornados na página vir­gem ...

Escrever! Tentação de purgar raivosamente tudo de mais sincero que nos vai pela alma adentro, e rápido, com aquela rapidez que faz a mão relutar e protestar contra o deus impaciente que a guia. .. depois encon­trar, no dia seguinte, em vez do ramo de ouro, miraculosamente desabrochado na hora flamejante, um espinheiro seco, uma flor abortada. ..

Escrever! Gozo e sofrimento dos ociosos! Escre­ver! . . . Bem que experimento, de tempos em tempos, essa necessidade, intensa como a sede no verão, de anotar, de exprimir... E pego então da pena, para dar início àquele jogo perigoso e traiçoeiro que, através do bico duplo e flexível, apanha e fixa o mutável, o fugaz, o apaixonante adjetivo... Mas não passa de uma curta crise, prurido de uma velha cicatriz. ..

Para escrever, é preciso ter tempo de sobra! Além do mais, não sou um Balzac, sou apenas. .. O frágil conto que começo a edificar lá se vai por terra quando o fornecedor bate à porta, quando o sapateiro vem tra­zer a conta, quando o procurador e o advogado me tele­fonam, quando o agente teatral chama-me ao seu escritório para anunciar que "vamos exibir-nos na cidade, numa casa muito conceituada, mas que não tem por hábito pagar bons preços. .."

Ora, desde que me encontro só, foi preciso, em pri­meiro lugar, viver, depois divorciar-me e, finalmente, continuar a viver. . . Tudo isso reclama uma energia, uma pertinácia inacreditável. E a troco de quê? Será que este quarto banal, estilo Luís XVI, ordinário, é o único porto, e este espelho intransponível onde me es­coro, fronte contra fronte, será o esteio que me resta?

Amanhã é domingo: vesperal e sarau no Empyrée-Clichy. Duas horas, já!... Para uma intelectual fra­cassada, é hora de dormir.

— Mexa-se! santo Deus, mexa-se! Jadin não veio.

— Como, não veio? Ela está doente?

— Doente? Pois sim! Em plena gandaia!. .. E nós é que agüentamos com o baque: vamos entrar em fun­ção vinte minutos mais cedo!

É Brague, o mímico, que acaba de sair do seu cama­rim, já na sua aterrada pintura caqui; eu corro ao meu, alarmada com a idéia de que, pela primeira vez, possa atrasar-me...

Jadin não veio! Apresso-me, trêmula de aflição. Esse público não é brinquedo, sobretudo nas vesperais de domingo! E se, como diz o nosso administrador-beluário, o deixarmos "faminto", cinco minutos que seja, entre um número e outro, os uivos, as pontas de cigar­ro, as cascas de laranja irão chover de tudo quanto é lado...

Jadin não veio. . . Era de esperar, mais dia me­nos dia.

Jadin é uma pequena cantora, tão novata no café-concerto, que ainda não arranjou tempo para oxigenar os seus cabelos castanhos. Passou, de um pulo, dos su­búrbios ao palco, espantada ainda com o ordenado de 210 francos mensais para cantar. Tem dezoito anos. A sorte (?) colheu-a de imprevisto; agora os coto­velos sempre na defensiva e toda a sua pessoa obstina­da, que se inclina como uma gárgula, parecem aparar os golpes de um destino mentiroso e brutal. Canta como uma costureirinha, como uma boêmia trocista, sem se­quer imaginar que há outras maneiras de cantar. Força ingenuamente seu contralto gutural e arrebatado, contralto áspero que tão bem se enquadra à sua jovem, rosada e suscetível figura de apache. Tal como é naquele vestido comprido demais, comprado Deus sabe onde, cabelos castanhos nem sequer frisados, ombro torto, dando impressão de arrastar ainda o cesto de roupa, e buço manchado de um branco pó de arroz ordinário, assim mesmo o público a adora. Para a estação vindou­ra, a direção prometeu-lhe o nome em letras luminosas, com o que, então, teremos uma segunda vedeta. Quanto ao aumento, ver-se-á mais tarde. Jadin, em cena, res­plandece e exulta! É rara a noite em que não descobre, entre o público das segundas galerias, um companheiro de infantis peraltices; nessa ocasião não vacila em in­terromper sua cantilena sentimental para saudá-lo com um eufórico berro, uma estridente risada de colegial ou, mesmo, um "tabefe" bem estalado na coxa. . .

É ela que falta hoje no programa. Daqui a meia hora, a sala em peso começará a esbravejar e a gritar: "Jadin! Jadin!", e baterá os pés no chão, e tilintará nos copos com as longas colheres utilizadas para servir o mazagrã.

Isto tinha de acontecer. Jadin, ao que parece, não está doente, e o nosso dirigente resmunga:

— Pensam que ela está gripada? Vai ver, está é deitada com um tipo qualquer. Algum que lhe rendesse algo!. .. Pois, do contrário, nos teria prevenido...

Decerto encontrou um gastrônomo doutras redonde­zas. É preciso viver. .. Ela já vivia, entretanto, com um, com outro, com todo mundo. .. Será que tornarei a ver sua pequena silhueta de gárgula, metida até as sobrancelhas num desses gorros "modernos" que ela mesma fazia? Ainda ontem, à noite, focinho mal empoado, varava meu camarim adentro para mostrar-me sua última criação: uma espécie de touca de pele de coelho "tipo raposa branca", bem justa, comprimindo-lhe, de cada lado, as rosadas orelhas...

— O tipo escarrado de Átila — disse-lhe Brague, muito sério.

Jadin foi-se... No comprido corredor marginado de cubículos quadrados, murmura-se, comenta-se: parece que, a não ser eu, todos farejavam essa fuga... Bouty, o pequeno cômico que canta as canções de Dranem, passeia em frente ao meu camarim, caracterizado de antropóide, copo de leite na mão, profetizando:

— Era matemático! Eu previa isto para daqui a uns cinco, seis dias, um mês, vá lá! A manda-chuva vai fa­zer uma cara... Bom, mas nem por isso se decidirá a aumentar os artistas que movimentam a sua casa... É o que estou dizendo. Jadin voltará: é apenas uma ex­cursão, nada mais. É uma pequena que tem a sua ma­neira de viver e jamais saberá pegar uma trouxa...

Abro a porta para falar com Bouty e, enquanto isso, vou untando as mãos com alvaiade.

— Ela lhe falara em partir, Bouty?

Ele sacode os ombros e, voltando para mim a caraça de gorila vermelho, olho rodeado de branco:

— A troco de quê? Não sou sua mãe...

Assim dizendo, emborca aos golinhos seu copo de leite, um leite azulado como amido.

Pobre Bouty, leva por toda parte a sua enterite crô­nica, sua garrafa de leite especial! Despido da máscara vermelhona e branca, é uma figura franzina e doce, delicada, inteligente, de bonitos olhos meigos, um cora­ção de cachorro sem dono, pronto a afeiçoar-se ao pri­meiro que o adote. Corroído pela doença e pelo trabalho puxado, alimenta-se de leite e de macarrão fervido e não sei como arranja forças para cantar e interpretar danças negras por um espaço de vinte minutos. Ao sair de cena, cai sobre o palco, esfalfado, incapaz de descer direto ao seu camarim... O corpo mirrado, estendido ali como o de um morto, quantas vezes fica obstruindo a passagem. .. Ah! como procuro conter-me, refreando o impulso de debruçar-me sobre ele, de erguê-lo, de pedir socorro. Os colegas e o velho maquinista limitam-se a abanar a cabeça, e a dizer com ares doutorais:

— Bouty é um artista que cansa muito.

— Vamos, vamos! Fogo na canjica! Já que não pu­seram a sala a pique por causa de Jadin, aproveitemos a maré!

E Brague empurra-me pela escada de ferro acima; o calor poeirento e a luminosidade dos holofotes dei­xam-me aturdida; esta tarde passou como um sonho agitado, metade do dia evaporou-se nem sei como; lembro-me apenas do frio nervoso, das contrações de estômago, iguais àquelas que se seguem ao despertar súbito, o despertar súbito quando ainda é alta noite. Daqui a uma hora, estarei jantando, depois pego o táxi para casa, e assim vai...

Um mês todo nisso! O espetáculo atual está agra­dando suficientemente; é preciso, além do mais, susten­tá-lo até a revista:

— Aí sim — diz Brague. — Teremos quarenta dias sem ter no que pensar!

E esfrega as mãos satisfeito.

Sem ter no que pensar... Se eu pudesse dizer o mesmo! Tenho quarenta dias, tenho o ano todo, a vida inteira para pensar... Por quanto tempo ainda terei que arrastar, de music hall para teatro, de teatro para cassino, os meus "dons" artísticos que todos, polida­mente, acham interessantes? Reconhecem-me, além do mais, "uma mímica precisa", "uma dicção clara" e "uma plástica perfeita". É muita amabilidade. É mes­mo exagerada. Porém. .. que futuro isto me trará?

Pronto! Aí vem uma negra crise de pessimismo... Esperá-la-ei calma, com este coração calejado, na cer­teza de saber distinguir suas fases normais e de ven­cê-las uma vez mais. Ninguém suspeitará de nada. Mas Brague anda espreitando-me esta noite, com seu olhinho penetrante, e, como se não achasse outra coisa para dizer, pergunta:

— Você está na lua, não está?

De volta ao camarim, começo a limpar o sangue cor de groselha que me empasta as mãos; diante do espe­lho nos defrontamos ambas, a conselheira maquilada e eu, como adversárias dignas uma da outra.

Sofrer... sentir.. . prolongar, pela insônia, pela divagação contínua, as horas mais abismais da noite: qual, não há escapatória. Vejo-me marchando à frente disto tudo, com uma espécie de alegria fúnebre, com toda a serenidade de um ser ainda jovem e resistente, que conhece bem o inimigo. . . Dois hábitos meus de­ram-me o poder de estancar o pranto: o de ocultar o pensamento e o de escurecer os cílios com rimei. ..

— Pode entrar!

Acabaram de bater e a minha resposta foi maquinai, absorta. ..

Não é Brague, não é a velha camareira: é um des­conhecido, grande, seco, escuro, que inclina a cabeça descoberta e discursa tudo de uma vez:

— Há uma semana, minha senhora, que venho aplaudi-la, na Emprise. Perdoe o que a minha visita possa ter de. .. inconveniente, mas quero crer que a admiração que tenho pelo seu talento e. .. pela sua plástica... justifiquem, em parte, uma apresentação assim. .. incorreta, e. ..

Nada respondo a esse imbecil. Transpirando ainda, ofegante, o vestido meio aberto, enxugo as mãos, olhando-o com uma ferocidade tão notória que a sua bela frase morre de súbito, como que cortada...

Será preciso que eu o esbofeteie? Que deixe impres­sos, em suas faces, meus dedos ainda úmidos de água carminada? Será preciso que eu tenha de elevar a voz e atirar a esta figura angulosa, toda marcada de um negro bigode, aqueles nomes que aprendi nos basti­dores e na rua?...

Esse invasor tem uns olhos de carvoeiro triste...

Não avalio o que lhe dizem meu olhar e meu silên­cio, mas sua figura muda de aspecto num abrir e fechar de olhos:

— Valha-me Deus, minha senhora, percebo agora que não passo de um tolo, de um indivíduo indelicado... e percebo-o tarde demais. É bem o caso de pôr-me porta afora, e eu o mereço, mas permita-me que, antes, deponha a seus pés as minhas respeitosas homenagens.

E faz uma reverência, como alguém que vai embora mesmo... mas não vai. Com aquela sorrateira astúcia masculina, espera, durante meio segundo, um louvor para a sua metamorfose, e — como eu não sou, Deus meu, assim tão terrível! — ele o obtém:

— Bem, senhor, eu vou então dizer-lhe, com boas maneiras, o que tive vontade de dizer sem elas: retire-se!

E sorrio, boa moça, apontando-lhe a porta. Mas ele não sorri. Imóvel, cabeça para frente, o punho livre pendendo, crispado. Esta atitude torna-o quase ameaça­dor, desajeitado, pesado, a estampa de um lenhador honesto. A lâmpada do alto reflete-se em seus cabelos negros, repartidos de lado, lisos e como que esmalta­dos; mas os olhos escapam-me, retraídos que estão nas fundas órbitas...

Ele não sorri, porque me deseja.

Este homem que ali está não me quer bem algum, mas apenas me deseja. Não é espirituoso, nem cínico. Francamente, isto constrange-me, e eu acho que prefe­riria que ele estivesse... inflamado, que estivesse re­presentando desembaraçadamente o papel do homem que teve um ótimo jantar e que veio deleitar os olhos na primeira fila da platéia...

Este desejo ardente incomoda-o, como se guardasse uma arma muito pesada.

— Então, senhor, vai ou não embora?

Responde precipitadamente, como se eu o acordasse:

— Vou, vou, minha senhora! Vou, sim. Peço-lhe que receba as minhas desculpas e. ..

— . . .e a expressão da minha mais alta estima! — Eis que, sem querer, completei sua frase.

Não há nada de muito engraçado nisso, mas ele ri, ri finalmente, deixando aquela atitude teimosa que me embaraçava...

— Foi gentil de sua parte, minha senhora, vir em meu socorro! E há ainda algo que gostaria de per­guntar-lhe ...

— Ah! não! O senhor vai embora agora mesmo! Já lhe dei provas de grande indulgência, e devo tirar esta roupa imediatamente, se não quiser expor-me a uma bronquite, pois dentro dela transpirei como três carregadores!

Com a ponta do indicador toco-o para fora, pois, no momento em que falei em tirar o vestido, voltou-lhe aquela expressão sombria e fixa. .. Porta fechada e trancada, ainda ouço, através dela, a voz abafada que insiste:

— Minha senhora! minha senhora!. .. Queria saber se gosta de flores e quais as de sua preferência.

— Ó senhor, deixe-me em paz! Não lhe estou per­guntando quais os seus poetas preferidos, nem se prefere o mar à montanha! Retire-se!

— Sim, eu vou, minha senhora! Boa noite, minha senhora!

Arre! Este tonto acabou dispersando as minhas idéias negras; afinal, sempre valeu para alguma coisa.

De três anos para cá, eis de que espécie têm sido as minhas conquistas amorosas... O cavalheiro da pol­trona onze, o cavalheiro da frisa quatro, o gigolô das segundas galerias... Uma carta, duas cartas, flores, outra carta. .. e é tudo! O silêncio desencoraja-os logo

e devo confessar que todos eles dão provas de pouca persistência.

Além de controlar-me as reações, parece que 6 des­tino se empenha em afastar-me destes Romeus impulsi­vos, destes caçadores que não hesitam em encurralar uma mulher, em levar seus propósitos à mais inescrupulosa ousadia... Aqueles que me desejam não me escrevem bilhetes ternos, mas cartas apressadas, brutais e deselegantes, que traduzem não o pensamento, e sim a concupiscência. .. O rapaz que transbordava, por doze páginas completas, um amor tagarela e humilde, esse foi uma exceção. Devia ser muito jovem. Era um pobre criançola que sonhava ser um príncipe encantado, rico e poderoso: "Escrevo-lhe tudo isso da mesa da taberna, sobre a qual almoço; e, a cada vez que ergo a cabeça, vejo, no espelho em frente, meu focinho sujo..."

Mas, enfim, o meu enamorado de "focinho sujo" ainda tinha com quem sonhar, tinha quem pôr entre os palácios azuis e as florestas encantadas dos seus sonhos.

Eu não tenho ninguém. Ninguém à minha espera, sobre esta estrada que não conduz à glória, nem à rique­za, nem ao amor.

Não há o que nos conduza ao amor — sei bem disso. É ele que de um bote costuma atravessar-se em nosso caminho. E ali fica, para sempre, ou dali parte, dei­xando atrás de si a ruína e a destruição.

O que resta da minha vida faz-me pensar nestes puzzles de 250 pedaços de madeira desiguais e multicores. Ser-me-ia de algum proveito reconstruir, peça por peça, aquele cenário primitivo: uma casinha tranqüila no meio dos bosques? Não, não, alguém embaralhou todas as linhas da doce paisagem; não encontraria mais nem mesmo os destroços do telhado azul enfeitado de liquens amarelos, nem a vinha virgem, nem a densa floresta sem pássaros. ..

Oito anos de casamento, três de separação: aí está o que preenche um terço da minha existência.

Meu ex-marido? Vocês todos devem conhecê-lo. É Adolphe Taillandy, o pintor. Há vinte anos faz um mes­mo retrato de mulher sobre um fundo brumoso e dou­rado, copiado de Lévy-Dhurmer: uma mulher decotada, a cabeleira fofa e preciosa nimbando o semblante aveludado. Pelas têmporas, na sombra do pescoço, sobre o arredondado dos seios, a mesma carne macia e impalpável, azul como as belas uvas que tentam os lábios.

— Potel e Chabot não fazem melhor! — foi o que disse Forain diante de um quadro de meu marido.

Mas, afora esse famoso "aveludado", não creio que Adolphe Taillandy tenha talento. Sou a primeira a reco­nhecer, entretanto, que seus quadros, para as mulhe­res, sobretudo, têm um encanto irresistível.

Decididamente e antes de mais nada, ele vê em loiro. A própria cabeleira da Sra. de Guimont-Fautru, uma morena seca, foi adornada de reflexos sanguíneo-dourados, vindos não sei de onde, que fazem dela — entornados que estão sobre a figura mate e sobre o na­riz — uma verdadeira orgíaca veneziana. ,—

Tempos atrás, Taillandy fez também o meu retra­to. .. Custa a crer que a bacante de nariz luminoso, com o centro do rosto manchado de sol, como que re­coberto de nácar, seja eu. Lembro-me ainda de minha surpresa, quando me vi assim, tão loira. .. Lembro-me também do êxito que obteve esse pastel e dos demais que o seguiram. O retrato da Sra. de Guimont-Fautru, da Baronesa Avelot, da Sra. de Chalis, da Sra. Robert-Durand, da cantora Jane Doré, e depois os menos ilustres, de nomes menos famosos, como o da Sra. J. R., Srta. S. S., Sra. U.., Sra. Van O... Sra. F. W. ..

Era a época em que Adolphe Taillandy, com aquele cinismo de belo homem que lhe vai tão bem, declarava:

— Para modelos, só as minhas amantes, e, para amantes, só os meus modelos!

Quanto a mim, não lhe descobri outro gênio, além do da mentira. Nenhuma outra mulher, nenhuma das suas outras mulheres deve ter apreciado, admirado, temido e amaldiçoado tanto como eu a sua fúria de mentir. Adolphe Taillandy mentia com febre, com volúpia, contínua, quase involuntariamente. Para ele, o adultério não era mais do que uma das formas — e não a mais deleitável — da mentira.

Desabrochava em mentiras com tal força, com tal variedade, e tão pròdigamente, que nem o passar dos anos conseguia esgotar seu repertório... Ao mesmo tempo que cinzelava a traição engenhosa, engendrada com mil cuidados, munida de todos os requisitos da trapaça magistral, via-o desperdiçar o seu entusiasmo em imposturas grosseiras, supérfluas, ordinárias, com histórias infantis e quase idiotas...

Conheci-o, casei-me e vivi com ele durante mais de oito anos... que sei a seu respeito? Que pinta quadros e que tem amantes. Que realiza diariamente o prodígio desconcertante de ser, para este, um "laborioso" que só se interessa pelo seu trabalho; para aquela, o rufião se­dutor e sem princípios; para uma, um amante paternal, que a uma inclinação passageira mistura um belo gosto de incesto; para a outra, o artista cansado, cínico e de­cadente, que trata de embelezar seu outono com o perfume de um idílio delicado; há mesmo uma, para quem é simplesmente um perfeito libertino, ainda só­lido, devasso a mais não poder; enfim, há a tola grã-fina, apaixonada, que Adolphe Taillandy pisa, atormenta, despreza e retoma, com a crueldade literá­ria de um "artista" de romance mundano.

O próprio Taillandy insinua-se, sem transições, na pele do "artista" não menos convencional, porém mais fora da moda, o qual, para vencer as últimas resistências de uma jovem senhora casada e mãe de duas crianças, joga fora seus apetrechos de pintura, rasga seu esboço, chora lágrimas visíveis que caem sobre seu bigode à Guilherme II, e pega o chapéu espanhol para correr em direção ao Sena.

Deve haver ainda outras inumeráveis facetas nesse Taillandy, facetas que escapam ao meu conhecimento, e que talvez sejam tão terríveis quanto esta: o Taillandy homem de negócios, manipulador e escamoteador de dinheiro, cínico e brutal, sonso e esquivo, segundo as conveniências...

Dentre todos esses homens que aí estão, onde o ver­dadeiro? Não sei, sinceramente, confesso que não sei. O verdadeiro Taillandy, creio que não existe. .. Che­gou um dia em que este balzaquiano gênio da mentira cessou de desesperar-me, e até mesmo de intrigar-me. O que outrora se me afigurava um Maquiavel mons­truoso . .. talvez nem passasse de um Fregoli.

E, aliás, continua o mesmo. Às vezes, não sem uma certa comiseração, ponho-me a pensar na sua segunda mulher... Estará ainda exultante, crédula e apaixo­nada, proclamando aos quatro ventos aquilo que deno­mina sua vitória sobre mim? Não, a esta hora, ela já começou a descobrir, aterrada, impotente, a criatura com quem se casou.

Meu Deus! Como eu era jovem e como o amava, como amava aquele homem! E como vim a sofrer!... O que aqui fica não é um grito de dor, nem uma lamú­ria vingativa. Não: é um suspiro que assoma de vez em quando, como se eu apenas quisesse dizer: "Se soubes­sem como estive doente, há quatro anos atrás!" E quando confesso: "Tive ciúmes a ponto de querer matar e morrer", faço-o como as pessoas que evocam fatos vividos: "Comi rato em 1870..." É certo que se lem­bram disso, mas têm dentro de si tão somente a lem­brança. Sabem que comeram rato, mas não mais as assalta o arrepio de horror, a febre da fome.

Após as primeiras traições, após essa fase em que me submetia, movida pelo amor jovem que teimava em esperar e em viver, pus-me a sofrer com um orgulho e uma resolução intratáveis. Foi quando comecei a fazer literatura.

Pelo único prazer de ir buscar refúgio num passado bem próximo, escrevi um pequeno romance de caráter provinciano, Le Lierre sur le Mur, uma história risonha, leve e clara como as lagoas do lugar em que nasci, um casto romance de amor e casamento, um tanto tolo, muito delicado, e que obteve um inesperado, um estron­doso êxito. Encontrava a minha fotografia em todas as revistas, a Vie Moderne concedeu-me seu prêmio anual e, tornamo-nos, Adolphe e eu, "o casal mais comentado de Paris", aquele que abrilhanta um jantar, que se aponta aos estrangeiros de destaque... "Então, não conhece os Taillandy? Renée Taillandy tem um grande talento! — Ah! E ele? — Ele... oh! é irresistível!"

Meu segundo livro, A Côté de l’Amour, vendeu-se menos. Entretanto, dando-o ao mundo, permiti-me sa­borear a volúpia de escrever, a luta paciente contra a frase, que acaba por submeter-se, por sentar em círculo como o animal amansado, a espera imóvel, a tocaia que acaba por atrair a palavra cobiçada... Meu segundo volume foi pouco vendido. Mas soube granjear-me — como se diz isso? ah! sim! — "a estima das pessoas le­tradas". Quanto ao terceiro, La Forêt sans Oiseaux, foi por terra e não logrou reabilitar-se. Esse último é o meu predileto, minha "obra-prima desconhecida" e muito minha... Acharam-no difuso e confuso, incompreen­sível, longo... Ainda agora, quando o abro, amo-o, amo-me de todo o coração. Incompreensível? Para vocês, talvez. Mas, para mim, sua quente obscuridade ilumina-se; para mim, a mais insignificante palavra é suficiente para reviver o aroma, a cor das horas vividas; é sonoro e tão cheio de mistérios como um búzio onde o mar canta — e creio que o amaria menos, se vocês também o amassem. .. Mas estejam tranqüilos! Não escreveria outro como este, não poderia fazê-lo.

Outros trabalhos, outras preocupações reclamam-me atualmente, e sobretudo aquela de ter que ganhar o meu sustento, de ter que trocar os meus gestos, as minhas danças, o som da minha voz pelo metal sonante. .. Aquele apetite tão feminino pelo dinheiro fez com que logo me habituasse a isto e até lhe tomasse gosto. O fato é que ganho a minha vida. Em minhas boas horas, digo-me e repito-me, com alegria, que ganho a minha vida! O music hall, onde me tornei mimóloga, dança­rina e até comediante quando preciso, fez-me também uma pequena negociante honesta e firme, ainda sur­presa de calcular, discutir e comerciar. É um mister que até a mulher menos dotada aprende depressa, quan­do dele dependem sua liberdade e sua vida. ..

Nunca puderam compreender a nossa separação. Mas, antes, porventura, souberam compreender algo de minha paciência, da minha longa, covarde e com­pleta condescendência? Apenas o primeiro perdão é que custa a dar!... Adolphe viu logo que eu pertencia à melhor, à genuína raça das fêmeas: a que perdoara uma vez transforma-se, através de uma progressão habil­mente conduzida, na que suporta, e que depois acei­ta. .. Ah! que esplêndido mestre tive nele! Como sabia dosar a tolerância e a exigência!. .. Quando me mostrava muito rebelde, ocorria-lhe bater-me, mas não creio que tivesse grande vontade de fazê-lo. Um homem exaltado não bate como se deve bater, e se este, de tempos em tempos, me batia, era apenas para manter ò seu prestígio. Com a notícia do divórcio, então, pouco faltou para me culparem por tudo, para inocentar o "belo Taillandy", cujo único crime era o de agradar e trair. Quase conseguiram que eu cedesse, intimidada; o zunzum que levantaram à nossa volta reconduziu-me ao meu habitual estado de submissão. ..

— Mas como? Há oito anos que ele a engana, e só

agora ela inventa de queixar-se!...

Recebi visitas de amigos autoritários, superiores, que "sabiam o que era a vida"; vieram também parentes ido­sos, cujo principal argumento consistia:

— Minha filha, que quer você afinal?

O que eu queria? No fundo, bem sabia o que dese­java, sabia de sobra. O que eu queria? Antes morrer, sim, do que tornar a arrastar a vida humilhada de uma mulher "que tem tudo para ser feliz"; morrer, sim, ten­tar a miséria ainda antes que o suicídio, porém nunca mais rever Adolphe Taillandy, esse Adolphe Taillandy reservado à nossa intimidade conjugai, esse mesmo que tão bem sabia advertir-me, sem elevar a voz, inves­tindo contra mim aquele terrível maxilar.

— Começo amanhã o retrato da Sra. Mothier; acho que você vai ter a bondade de não lhe fazer mais aquela cara, não é?

Antes morrer, antes as piores derrocadas, a tornar a surpreender-lhe o gesto brusco de quem esconde uma carta amassada, ou a conversa dissimuladamente banal ao telefone, ou o olhar cúmplice do seu criado de quar­to, ou ouvi-lo dizer-me com toda a displicência:

— Você não acha que, esta semana, deveria passar dois dias em casa de sua mãe?. ..

Partir, não me rebaixar mais, pajeando por um dia inteiro uma das amantes de meu marido, enquanto ele, confiante, protegido por mim, abraçava outra! Partir e morrer, mas não mais afetar ignorância, não mais agüentar aquela vigília noturna, aquela espera, os pés congelados no leito imenso, arquitetando planos de vingança que nascem no escuro, que aceleram as ba­tidas de um coração irritado, envenenado pelo ciúme, depois se desfazem ao rumor de uma chave na fechadura — para covardemente se aplacarem em seguida, diante da voz familiar que exclama:

— Que é isso? Ainda acordada?

Tinha motivos de sobra.

Habituamo-nos a não comer, a ter dor de dentes ou de estômago, habituamo-nos mesmo à ausência de um ente amado, porém ciúme não é hábito que se adquira. E aconteceu o que Adolphe Taillandy, que prevê tudo, não supunha que aconteceria: no dia em que, para me­lhor receber a Sra. Mothier no grande diva do atelier, enxotou-me da minha casa sem a menor cerimônia, não voltei mais.

Não voltei naquela noite, não voltei na outra, nem nas que se seguiram. É aí que acaba — ou começa — a minha história.

Não insistirei sobre um moroso e curto período de transição, em que acolhi, com o mesmo humor irascível, as censuras, os conselhos, as palavras de conforto, e até as felicitações.

Desencorajava os raros amigos tenazes que vinham bater à porta de um minúsculo apartamento alugado às cegas. Revoltada com o fato de assumir ares de quem afronta, para me ver, a opinião pública, a sacrossanta, a soberana e ignóbil opinião pública, cortei, num gesto raivoso, tudo o que ainda me pudesse ligar ao passado.

E daí? O isolamento? Sim, o isolamento, com exce­ção de três ou quatro amigos. Eram os cabeçudos, os apegados, resolvidos a aturar todas as minhas grosse­rias. Como os acolhia mal, mas como os amava, e como temia, ao vê-los afastar-se, que nunca mais vol­tassem!...

O isolamento, sim. Amedrontava-me, como se fosse um remédio que poderia matar-me. Depois, descobri que. . . não fazia mais do que continuar a viver soli­tária. E que essa prática datava de há muito, da minha infância; os primeiros anos do meu casamento foram apenas uma ligeira interrupção; desde as primeiras traições conjugais, que são, aliás, o capítulo mais banal da minha história, ela voltara austera, dura, arrancando lágrimas. . . Quantas mulheres não conheceram o re­fúgio interior, o retraimento obstinado que se sucede ao pranto revoltado? Pois é uma justiça que lhes faço ao gabar a mim própria: tão somente através da dor, pode uma mulher ultrapassar a sua mediocridade, des­cobrir que é resistente, que tem forças infinitas das quais pode usar e abusar sem temer a morte, se alguma covardia física ou alguma esperança religiosa a tiverem desviado do suicídio simplificador.

"Está morrendo de tristeza... A tristeza está matando-a..." Se você ouvir um dia frases como estas, não se embeba de piedade, encare-as com ceticismo: mulher alguma jamais morrerá de tristeza. É um animal muito sólido, muito difícil de matar! Acredita, porven­tura, que a tristeza possa roê-la? Absolutamente. Na maior parte das vezes, mesmo que tenha nascido débil e doente, adquire, com isso, nervos inquebrantáveis, um orgulho inflexível, uma faculdade de esperar e dissi­mular que a engrandece, e até de um desprezo pela felicidade, pelos que são felizes. É através do sofrimento e da dissimulação que ela se exercita, se distende, como numa arriscada ginástica diária. ., Porque está a esbarrar constantemente na mais pungente tentação, no mais suave, no mais garrido dos atrativos: o da vingança.

Por vezes, fraca demais, demasiado vibrante, ela é mesmo capaz de matar. . . Para espanto do mundo in­teiro, poderá oferecer o exemplo desta perturbadora resistência feminina. E há de fatigar seus juizes, e, ao longo das intermináveis audiências, desbaratá-los e deixá-los exaustos, como faz a presa ladina que se di­verte com cães novatos. .. Estejam certos de que foi uma quase infindável paciência, mágoas sofregamente escondidas, que formaram, enrijeceram e apuraram esta mulher diante da qual se exclama:

— Ela é de aço!

Ela é "mulher", é simplesmente isso.

A solidão... a liberdade... o trabalho agradável e penoso de mimóloga e dançarina... os músculos felizes e lassos, a nova preocupação de ganhar a própria co­mida, a própria roupa, o próprio aluguel, que me faz descansar da outra preocupação. . . eis qual foi, logo em seguida, o meu fado, acrescido, porém, de uma desconfiança selvagem, de uma aversão pelo meio em que vivera, de um estúpido medo do homem, dos homens e das mulheres também. . . Possuía-me uma necessidade doentia de ignorar o que se passava à minha volta, de não ter a meu lado senão esses seres rudimen­tares, quase impensantes. . . E esta extravagância ainda, que logo se arraigou em mim, de só me sentir isolada e protegida dos meus semelhantes quando em cena — barreira de fogo que me defende contra todos...

Mais um domingo!... E, como os dias límpidos de inverno passaram a ser enfarruscados, minha cachorra e eu fizemos a nossa recreação higiênica pelo Bosque, das onze horas ao meio-dia — depois do almoço, tenho a vesperal. . . Esse bicho é a minha ruína. Sem ela, poderia ir muito bem de metrô até o Bosque, economi­zando os 3 francos do táxi. No entanto, o prazer que ela me dá compensa-me desse gasto. Negra como uma trufa, lustrada com a escova e com o trapo de flanela, ela rebrilha ao sol, dona completa do Bosque, que possui por meio de uma infernal barulheira, de roncos porcinos, de latidos, de correrias que revolvem as folhas secas...

Que belo domingo e como está lindo este Bosque de Bolonha! É a nossa floresta, o nosso parque, meu e de Fossette, errantes cidadãs que não conhecem nada do campo. . . Fossette ganha-me na corrida, mas, em com­pensação, quem anda mais depressa sou eu, e, quando não brinca de corrupio à minha roda, olhos salientes e aloucados, língua de fora, segue-me numa marcha traquinas, num pequeno trote galopado e desordenado que faz rir os transeuntes.

O fino e róseo nevoeiro filtra o sol, um sol opaco, que se pode encarar sem ferir a vista.. . Dos gramados descobertos desprende-se um incenso trêmulo e pratea­do, recendendo a cogumelo. Essa fina gaze adere ao meu nariz, e todo o meu corpo, aquecido pela caminha­da e sacudido pelo frio, dinamiza-se... Na verdade, o que mudou em mim desde meus vinte anos? Quantas foram as manhãs de inverno, mesmo na plenitude da minha adolescência, em que já me encontrei tão sólida, tão elástica, e tão fogosamente feliz como agora?

Posso acreditar nisto, enquanto dura minha caminha­da através do Bosque. . . Mas este cansaço da volta desengana-me. Não é aquele mesmo cansaço. Aos vinte anos, não me preocuparia, era fácil aproveitar a fadiga passageira numa espécie de devaneio entorpecido. Hoje, ele começa a ser amargo, uma espécie de tristeza física...

Fossette nasceu cachorra de luxo, uma cabotina: o palco apaixona-a e adora subir em todos os automóveis de classe... Entretanto, quem ma vendeu foi Stéphane, o dançarino, e Fossette, como se vê, não fez estágio na casa de uma atriz afortunada. Stéphane, o dançarino, é meu colega. Trabalha atualmente na mesma casa que eu, no Empyrée-Clichy. É um gaulês claro, cada vez mais carcomido pela tuberculose, que vê minguar seus bíceps, suas coxas rosas, irisadas de uma penugem muito doirada, e os belos peitorais que eram para ele um justo motivo de orgulho. Já teve que trocar o boxe pela dan­ça e pelo patim de rodas. .. Patina aqui sobre o palco inclinado; e além disso "transforma-se" em professor de dança e amestrador de buldogues de apartamento. Tem tossido muito este inverno. Geralmente, à noite, vem ao meu camarim, tosse, senta-se, e propõe-me a compra de "uma cachorra buli cinzenta, que é uma beleza, que só não tirou o primeiro prêmio este ano por uma pura questão de despeito..."

Por coincidência, chego hoje ao corredor que conduz ao meu camarim, no momento em que Stéphane, o dan­çarino, deixa o palco. Esguio de cintura, largo de om­bros, apertado num dólmã polonês verde-mirta, borda­do com falsa chinchila, touca de pele até as orelhas, este rapaz de olhos azuis e faces coloridas é ainda um belo chamariz para fêmeas... No entanto, emagrece, emagrece cada vez mais, e seus êxitos amorosos apres­sam o seu mal. . .

— Olá!

— Olá, Stéphane! Muita gente?

— E como! O que eu canso de perguntar-me é por

que, em vez de aproveitar esse belo dia no campo, vêm esses cretinos se encafurnar aqui dentro. .. Ah! espere um pouco, você não quer ficar com uma cachorra shipperke? Pesa 600 gramas. .. é um negócio de ocasião, oferecido por uma pessoa que conheço...

— Seiscentas gramas!.. . obrigado, meu apartamen­to é pequeno demais.

Ele esboça um sorriso e não insiste. Já conheço esse tipo de cachorra shipperke que Stéphane vende! Pesam mais ou menos 3 quilos. Não é desonestidade, trata-se de comércio.

Que fará Stéphane, o dançarino, quando só lhe res­tar o último pulmão, quando não puder mais dançar, nem dar amor às boas mulherzinhas que lhe pagam os cigarros, as gravatas e os aperitivos?... Que hospital, que asilo irá recolher a sua bela carcaça murcha?... Ah! nada disto é prazenteiro, e a miséria humana é tan­ta, que chega a ser insuportável...

— Alô, Bouty!... Alô, Brague!... Alguma notícia de Jadin?

Brague dá de ombros sem responder, absorvido que está em retocar as sobrancelhas, que ele carrega de um roxo pesado para "ficar mais feroz". Emprega um azul especial para as rugas, um vermelho-alaranjado espe­cial para a parte interior dos lábios, um ocre especial como cor básica, um vermelho de xarope para o san­gue que corre e um branco muito especial para as más­caras de Pierrô, "do qual não daria a receita", assegu­ra ele, "nem ao meu próprio irmão!" Aliás, sabe dosar muito habilmente essa quase mania policroma, que constitui a única excentricidade que conheço nesse mí­mico inteligente e quase exageradamente consciencioso. Bouty, muito magro dentro da sua esvoaçante vesti­menta de quadrados, faz-me um sinal misterioso.

— Vi-a com estes olhos, vi aquela fingida da Jadin. Vi-a nos bulevares, com um tipo. Estava com cada pluma deste tamanho! E com um regalo todo assim! E com uma cara de quem se chateia a 100 francos à hora!

— Se ela os receber, esses 100 francos à hora, não tem do que se queixar — conclui Brague, com sua ló­gica.

— Não lhe conto nada, meu velho. Não sei se ela continuará por lá; é uma moça que não tem a mínima noção de dinheiro. Há tempo que venho observando Jadin; ela e a mãe eram minhas vizinhas...

Como a porta do meu camarim esteja aberta, e por ser fronteiro ao de Brague, posso ver Bouty, que se ca­lou bruscamente, deixando no ar a frase inacabada. A fim de aquecer o seu meio litro de leite, foi pô-lo sobre o cano do aquecedor, que atravessa os camarins ao nível do chão. Sua figura em vermelho-tijolo e branco-giz não deixa adivinhar a verdadeira expressão do seu rosto; entretanto, parece-me que, após a partida de Jadin, Bouty deprime-se mais...

Para branquear e empoar meus ombros, meus joe­lhos cheios de nódoas negras — pois Brague não tem a mão muito leve quando me atira ao chão! —, fecho a porta, na certeza aliás de que Bouty não dirá mais nada. Como os outros, como eu, é raro tocar em sua vida privada. Nos primeiros tempos de music hall, foi este silêncio, este pudor obstinado que fez que eu tivesse uma outra idéia a respeito destes meus companheiros. Os mais expansivos, os mais vaidosos falam dos seus êxitos, de suas ambições artísticas, com a ênfase e a circunspecção devidas; os mais malévolos chegam a di­famar a "casa" e os colegas; os mais tagarelas vivem repisando anedotas de palco e de salão, e um dentre dez sente necessidade de apregoar: "Tenho uma mulher, tenho duas garotas, minha mãe está doente, não agüen­to mais a minha namorada..."

Mas o silêncio que fazem em torno da sua vida ínti­ma equivale a uma maneira delicada de dizer: "O resto não lhe diz respeito". Espetáculo findo, rosto limpo, chapéu na cabeça e lenço no pescoço, separam-se, so­mem com uma presteza onde quero entrever tanto de altivez quanto de discrição. Ativos, quase todos o são, e pobres também: "colega que pede dinheiro emprestado" é coisa rara no music hall. Minha muda simpatia, que há três anos se vem esclarecendo e consolidando, agora abrange-os a todos, sem dar preferência a ne­nhum.

Os artistas do café-concerto... Como são mal conhe­cidos, orgulhosos, cheios de tão absurda, de tão cadu­ca fé na arte; somente eles, os últimos que ainda ousam declarar, tomados de uma febre sagrada:

— Um artista não deve... um artista não pode acei­tar... um artista não consente...

Altivos, é certo, porque, muito embora lhes venham sempre aos lábios coisas como "Porcaria de trabalho!" ou "Droga de vida", minto se disser que alguma vez ouvi um deles suspirar: "Sou infeliz..."

Altivos e resignados a viver apenas uma hora, den­tre as 24 de cada dia! Porque o público injusto, após aplaudi-los, esquece-os logo. Um jornal poderá ocupar-se, com indiscreta solicitude, de como emprega o seu tempo a senhorita... cujas opiniões sobre moda, polí­tica, cozinha e amor entreterão por semanas a ociosida­de de toda gente; porém, pobre Bouty, inteligente e ter­no, quem se daria ao trabalho de perguntar o que você faz ou pensa ou o que você cala quando volta à obscuridade e vai deslizando, lá pela meia-noite, ao longo do Bulevar Rochechouart, quase transparente e mais mirrado do que nunca, dentro daquele imenso paletó "tipo inglês" que veio de Samaritaine?

É a vigésima vez que rememoro estas coisas tristes. E os meus dedos, enquanto isso, executam destra, in­conscientemente, sua habitual tarefa: branco-gordura, rosa-gordura, pó, rosa-sêco, marrom, vermelho, pre­to... e, mal termino, uma garra dura arranha a porta. Abro-a o mais depressa que posso, porque se trata da pata insistente de uma podenga brabançã que "traba­lha" na primeira parte do espetáculo.

— Você por aqui, Nelle!

Ela entra, desenvolta, séria como uma empregada de confiança, e, enquanto seus dentes, um tanto amarelecidos pela idade, começam a trincar um bolo seco, deixa que eu lhe friccione docemente os rins agitados pelo exercício.

Nelle tem um pêlo ruivo, luzidio, e uma máscara de sagüi onde brilham dois bonitos olhos de esquilo.

— Quer mais bolo, Nelle?

Bem-educada, aceita-o, sem sorrir. Logo adiante, no corredor, sua família espera-a. Sua família é um homem grande e seco, silencioso, impenetrável, que não se diri­ge a ninguém, e mais dois colhes brancos, corteses, pa­recidos com o dono. De onde surgiria tal homem? Que ventos o trouxeram até aqui, ele e seus colhes, seme­lhantes a príncipes destronados? A sua maneira de ti­rar o chapéu, seus gestos, a esgalga figura cortante são de um homem de berço... Meus colegas, adivinhos talvez, batizaram-no "Grão-Duque".

E, ali no corredor, o "Grão-Duque" espera que Nelle acabe seu bolo. Não há nada mais triste, mais digno, mais desdenhoso do que este homem com seus três animais, orgulhosamente resignados ao seu destino de vagabundos.

— Adeus, Nelle.

Fecho a porta. Os guizos da cachorrinha afastam-se... Revê-la-ei? É a última noite da quinzena, talvez o fim de um estágio para "Antoniev e seus cães". .. Para onde irão eles? Sob que outras luzes brilharão os belos olhos castanhos de Nelle, os mesmos que me pareciam falar tão claramente: "Sim, você me acari­cia. .. sim, você gosta de mim... guardou-me uma caixa de doces secos... mas amanhã, ou depois, par­tiremos. Não queira pedir-me algo mais do que a docilidade de cadelinha gentil, que sabe andar nas patas traseiras e executar um salto perigoso. Assim como a paz e a segurança, a ternura é também para nós um luxo inacessível..."

Das 8 horas da manhã até as 2 da tarde, com o tempo claro, meu apartamento térreo ainda pode gozar, colocado que está entre os penhascos de duas casas no­vas, a graça de uma nesga de sol. Um feixe refulgente incide primeiramente sobre a cama, vai-se alargando num guardanapo quadrado, até que o rosa do acolchoado se reflita no teto...

Modorrenta, fico à espera de que o sol me alcance o rosto, que, através das pálpebras fechadas, me faça toda resplandecente, e que a sombra dos transeuntes passe sobre mim rápida, como uma asa sombria e azul... Ou então pulo da cama, galvanizada, e atiro-me a alguma febril faxina: as orelhas de Fossette, por exemplo, so­frem uma delicada pesquisa, e o seu pêlo fica bri­lhante com uma enérgica escovada. .. Ou então quedo-me a examinar, sob a grande luz implacável, o que já indica o prenuncio do meu outono: a seda frágil das pálpebras, o canto da boca em que o sulco tristonho do sorriso se acentua, e, envolvendo meu pescoço, esse tríplice colar de Vênus que mão invisível, dia a dia, mais introduz na minha carne.

Este severo exame foi, hoje, perturbado pela visita do meu colega Brague, o sempre vivo, circunspecto e lépi­do Brague. Recebo-o como no camarim, com um quimono de crepom, onde as patas de Fossette, num dia de chuva, estamparam uma porção de florezinhas cin­zentas de quatro pétalas...

Para Brague, não preciso empoar o nariz, muito me­nos prolongar o corte dos olhos com um traço azul...

Brague olha-me apenas nos ensaios para dizer: "Não faça assim, é feio.. . Não abra a boca na vertical: pa­rece um peixe. .. Não pisque tanto, parece um rato branco. .. Não rebole o traseiro ao andar: dá a im­pressão de uma égua..:"

Foi Brague quem guiou, se não os meus primeiros passos, pelo menos os meus primeiros gestos em cena, e, ainda que lhe dedique a cega confiança de aluna, quando alguma discussão o faz perder a paciência e tentar impor a última palavra, não vacila em tratar-me como "amadora inteligente".. .

Ei-lo esta manhã: entra, ajusta os cabelos na nuca como se enfiasse uma peruca e, como sua figura catalã, barbeada, conserva sempre essa sisudez altiva que a torna tão característica, fico a imaginar que espécie de notícia terá para dar-me... Observa o meu raio de sol, como se avaliasse um objeto de valor, e, olhando para as duas janelas:

— Quanto paga por isto aqui?

— Já lhe disse: 1 700.

— E com direito ao elevador ainda!... Que sol gostoso! Até parece que estamos em Nice!. .. Bom, ao que interessa: temos um sarau.

— Quando?

— Quando? Ora, hoje à noite.

— Oh!

— Por que "oh!" Que há de mais?

— Nada. O que vão levar, a pantomima?

— Qual pantomima, é coisa séria. Você vai dançar. Eu farei o Pierrô Neurastênico.

Levanto-me, completamente assustada.

— Dançar? Mas não posso! Perdi minha música em Aix! Além disso, a moça que me acompanha mudou de endereço. . . Se ao menos tivéssemos dois dias de prazo...

— Não pode ser — diz Brague, impassível. — Pu­seram Badet no programa, mas ela adoeceu.

— Ah! é isso então! Era o que faltava! Servir de remendo! Pois faça o seu Pierrô se quiser, eu não dan­ço!

Brague acende um cigarro e deixa escorregar apenas uma palavra:

— Quinhentos.

— Para nós dois?

— Para você. Eu recebo outro tanto. Quinhentos!... A quarta parte do meu aluguel. . .

Brague fuma sem me olhar:' tem a certeza de que acei­tarei.

— Positivamente, 500... A que horas?

— Meia-noite, é claro... Dê um jeito na sua mú­sica e em tudo o mais, feito? Boa sorte. Esta noite... Ah! ia-me esquecendo, Jadin voltou!

Reabro a porta que ele ia puxando atrás de si:

— Não diga! Quando?

— Ontem à meia-noite, logo depois que você saiu... E com que cara! Você a verá com seus próprios olhos: está cantando outra vez no programa... Você disse 1 700 por isto?... É assombroso. E há mulheres em todos os andares!

E lá se vai ele, circunspecto e lépido.

Um sarau... Um espetáculo fora... Essas pala­vras têm o dom de abater-me. Não ouso dizê-lo a Bra­gue, mas, quando vejo no espelho esta cara de enterro, e ao sentir este tremor covarde que põe arrepios pelas minhas costas, confesso-o a mim mesma...

Ter que revê-los, àqueles... a quem deixei raivosa­mente, que outrora chamavam-me "Senhora Renée" com o desplante de nunca me chamarem pelo nome de casada... Eles — e elas! Elas, que me traíam com meu marido, eles, que me sabiam traída...

Vai longe o tempo em que eu via em toda mulher uma atual ou provável amante de Adolphe. Os homens nunca intimidaram muito a esposa fiel que eu era. Mas ainda guardo comigo um terror imbecil e supersticioso dos salões onde possa vislumbrar testemunhas, cúmpli­ces da minha passada desventura...

E além disso, este espetáculo vem estragar meu cos­tumeiro almoço com Hamond, um pintor que já caiu da moda, um velho, fiel e débil amigo, que de vez em quan­do vem à minha casa comer suas massas fervidas... Falamos pouco, ele deixa que a sua cabeça de Dom Quixote doente repouse sobre o encosto da poltrona, e, após a refeição, brincamos de entristecer-nos. Fala-me de Adolphe Taillandy, não para fazer-me sofrer, mas para evocar tempos em que ele, Hamond, era feliz. E eu, por meu turno, rememoro sua jovem e maligna es­posa, com quem se casou num momento de loucura, e que o abandonou quatro meses depois, para fugir sei lá com quem...

Vingamo-nos desses momentos de melancolia, que tanto nos derreiam, que nos deixam envelhecidos, amar­gos, a boca seca por ter revolvido tanta coisa desoladora e nas quais sempre juramos nunca mais tocar... O sá­bado seguinte nos reúne à minha mesa, contentes por rever-nos, incorrigíveis: Hamond traz uma anedo­ta inédita sobre Adolphe, e eu, como se quisesse ver meu melhor amigo soltar lágrimas, desenterro de uma gaveta um instantâneo de amador, onde estou de braço dado com a pequena Sra. Ha­mond, muito loira, agressiva, empinada como uma serpente sobre a cauda.. .

Hoje, gorou o nosso almoço. Hamond, entretanto, gaiato e gelado, trouxe-me esplêndidas uvas pretas de dezembro, daquelas azuladas como ameixas e cujos bagos se assemelham a pequenos balões cheios de uma água insípida e doce — mas esse maldito espetáculo estragou-me o dia.

À meia-noite e um quarto, chegamos, Brague e eu, à Avenida do Bosque. Que bela casa! Aí até o tédio deve ser suntuoso... O criado empertigado que nos con­duz ao "salão reservado dos artistas" faz menção de auxiliar-me a tirar o casaco de peles; recuso com azedume: no mínimo está pensando que vou ficar, vestida como estou, quatro colares azuis, um escaravelho ala­do e alguns metros de gaze, à disposição destes cava­lheiros e destas damas?

Muito mais bem-educado do que eu, o importante criado não insiste e deixa-nos a sós. Brague recompõe-se diante do espelho; com essa máscara branca e essa indumentária de Pierrô, torna-se de uma esbeltez imaterial... Sei que também não é do seu agrado repre­sentar na cidade. Não que a "barreira de fogo" entre ele e os outros lhe faça a mesma falta que a mim, mas porque pouco preza o que chama de "freguês" da alta roda; chega mesmo a acumular o espectador grã-fino de uma mal-intencionada indiferença, de que já tive provas:

— Veja você — diz Brague, mostrando-me um car­tão —, esses trouxas nem se dão ao trabalho de escrever meu nome direito. Olhe esse programa: Bragne!

Intimamente muito agastado, lá se vai ele, crispando a fina boca sangüínea, até desaparecer sob um gradil de folhagens, pois um outro criado empoado acaba de cha­má-lo, muito afável, pelo seu nome estropiado.

Dentro de um quarto de hora será a minha vez... Contemplo-me e acho-me feia, sinto a falta daquela ilu­minação crua que, no meu camarim, cobre as paredes brancas, inunda os espelhos, penetra e aveluda a maquilagem... Será que puseram um tapete sobre o es­trado? Será que se deram ao trabalho de desembolsar um pouco mais, como diz Brague, para provê-lo de um pequeno jogo de luzes? Esta cabeleira de Salomé comprimindo-me as têmporas vai aumentar a minha dor de cabeça. .. Que frio.. .

— A postos, minha velha. Vá vender-lhes o seu tra­balho!

já de volta, Brague enxuga o rosto branco estriado pelo suor e, pondo o casaco nos ombros, continua fa­lando:

— É gente fina, vê-se logo. Não fazem muito estar­dalhaço e nem gracejam muito. Mas conversam, já viu coisa igual?. .. Pronto, aqui está a minha parte do táxi: 2 francos e 15.. . Vou-me embora.

— Você não me espera?

— Para quê? Você vai para os Ternes e eu para Montmartre: não adianta. E, além disso, tenho uma aula amanhã pela manhã, às 9 horas. .. Boa noite e até amanhã.

Coragem! É a minha vez. Minha raquítica pianista já me espera. Com a mão trêmula de nervoso, envol­vo-me num véu redondo, roxo e azul, de 15 metros de roda, que constitui quase tudo o que trago no corpo...

A princípio, nada distingo através da fina gaze que me encasula. Meus pés nus, conscientes, tateiam a lã rasa e dura de um belo tapete persa. .. Claro! nada de iluminação extra.. .

Um breve prelúdio desperta e retorce a crisálida azu­lada que encarno e lhe vai lentamente libertando os membros. Pouco a pouco o véu se descerra, enfuna-se, voa e cai, revelando-me aos olhos dos presentes, os quais, para fitar-me, interrompem a animada prosa em que se acham.. .

Vejo-os. Sem querer vê-los, vejo-os. Dançando, rodo­piando, curvando-me, vejo-os, e reconheço-os!...

Lá na primeira fila, há uma mulher ainda jovem que foi, por longo tempo, amante de meu ex-marido. Creio que não esperava ver-me esta noite, mas eu também não operava vê-la. . . Nos seus dolorosos olhos azuis, único traço de beleza que possui, misturam-se o estupor e o medo. .. Não é a mim que teme; mas a minha ines­perada aparição vai repô-la repentinamente face a face a uma lembrança, ela, a que sofreu por Adolphe, ela, que por ele teria deixado tudo, ela, que queria, numa explosão de berros e de choros, matar seu marido, ma­tar-me também e fugir com seu ídolo. Mas ele já não a amava, achava-a até um empecilho. Confiava-ma du­rante dias inteiros, e eu tinha a missão — que digo? a ordem! — de não a trazer de volta antes das 7 horas; e nunca houve colóquios tão cruciantes como os destas duas mulheres traídas que se odiavam mutuamente. Às vezes, numa crise de exaustão, a pobre criatura sentia-se esgotada e rompia num choro humilde, e eu olhava-a chorar, insensível às suas lágrimas, orgulhosa, por que as minhas eu sabia reter. . .

Lá está na primeira fila. Utilizaram todo o espaço disponível, e sua cadeira está tão próxima do estrado, que eu poderia, numa carícia irônica, tocar-lhe os cabe­los, cabelos que ela está tingindo de loiro porque co­meçam a encanecer. Envelheceu nestes quatro anos. .. e olha-me com terror. Vê em mim o seu pecado, o seu desespero, o seu amor, talvez já morto. ..

A outra, atrás dela, conheço-a também. .. e mais atrás, aquela ainda. . . Quando era casada, vinham to­mar chá em casa toda semana. É bem possível que te­nham dormido com meu marido. Isto, enfim, não im­porta. .. Nenhuma aparenta reconhecer-me, porém algo diz que não é assim, pois uma afeta um ar por demais distraído e fala muito baixinho e animadamente à vizinha, a outra exagera a sua miopia, e a terceira, que está abanando-se e balançando a cabeça, murmura obstinada:

— Que calor! Mas que calor! Mudaram de penteado. Já não é o mesmo daquela época em que deixei de vez todos aqueles falsos amigos... Trazem a obrigatória coifa de cabelos, cobrin­do as orelhas, atada por uma fita ou faixa de metal, e que lhes empresta um ar convalescente e pouco limpo. . . Não se vêem mais nucas tentadoras nem fron­tes vaporosas, vêem-se, sim, pequenos focinhos — maxi­lares, queixos, bocas, narizes — que adquirem, este ano, um verídico e chocante caráter de bestialidade... Pelos lados e ao fundo, a linha escura dos homens em pé. Aglomeram-se, atentos, com aquela curiosidade, aquela amabilidade frívola do homem de sociedade para com a mulher "desclassificada", aquela a quem se beijou as pontas dos dedos no próprio salão, e que está dançando agora, seminua, sobre um estrado.

Vamos, vamos! Esta noite sinto-me lúcida demais, e, se não me acautelo, era uma vez um bailado. . . Danço, danço. . . Uma bela cobra serpenteia sobre o tapete persa, uma ânfora do Egito é entornada, donde sai uma cascata de cabelos perfumados, uma nuvem eleva-se e voa, tempestuosa e azul, um felino salta e se retrai, uma esfinge, cor de areia clara, se alonga, cotovelos no côncavo dos rins, seios eretos... Nada me escapa, estou outra vez em plena forma... Vamos, vamos! Essa gente que aí está não existe... Não, não, de real, só a dança, só a luz, a liberdade, a música... Só o pen­samento feito cadência traduzido em belos gestos. Um simples requebro desta cintura, livre de qualquer aper­to, já não seria o suficiente para insultar esses corpos sufocados pelo espartilho, esses corpos empobrecidos por uma moda que os exige magros?

Mas há coisa mais saborosa que humilhá-los; por um instante ao menos, quero seduzi-los! Vamos, capri­cho, assim: já vejo que esses pescoços, carregados de jóias e de cabelos, seguem-me com um vago balouçar obediente... Já se apaga nesses olhares a malévola luz, já cedem, e sorriem juntos, qual bando de animais hipnotizados. . .

Finda a dança, o ruído dos aplausos, discreto, que­brando o encantamento. Saio, torno a entrar para sau­dá-los, com um sorriso circular. . . Do fundo da sala, uma silhueta masculina gesticula e grita "Bravo!". Re­conheço essa voz, esse alto manequim preto. . .

Parece-me o idiota do outro dia! É aquele tolo, não há dúvida! E, com efeito, lá vem ele, cabeça baixa, en­trando pela saleta onde estamos, minha pianista e eu. Não vem só, acompanha-o outro manequim preto, e que tem todo o jeito de ser o dono deste lugar.

— Minha senhora... — reverencia o último.

— Senhor...

— Permita-me que lhe agradeça o haver abrilhanta­do, com tão eficiente improviso, este sarau. . . e que lhe testemunhe a minha admiração.. .

— Ora essa, senhor...

— Eu sou Henri Dufferein-Chautel.

— Ah! perfeitamente...

— E este é o meu irmão Maxime Dufferein-Chautel, que deseja vivamente ser-lhe apresentado...

O meu tolo do outro dia torna a saudar-me, e não sei como consegue alcançar e beijar uma mão que se ocupava de recolher o véu azul. .. Depois, continua imóvel, sem nada dizer, ainda menos à vontade do que no meu camarim.. .

Entrementes, Dufferein-Chautel n.° 1, embaraçado, mal sabe onde pôr o envelope que tem nas mãos:

— Eu... eu não sei se deva dar a Salomon, seu empresário:. . ou se à senhora mesma...

Dufferein-Chautel n.° 2 enrubesce subitamente, sob a sua tez morena, e, com um olhar furioso e insultado, fulmina Dufferein-Chautel n.° 1!

Mas para que tanto enleio? Corro a salvá-los da sua aflição:

— Ora — digo jovialmente —, mas é tão simples; a mim mesma, senhor. Dê-me o envelope ou ponha-o ali dentro da minha música, pois afianço-lhe, muito confidencialmente, que os meus trajes de dança não costu­mam ter bolsos!...

Caem ambos na risada, um riso aliviado e polido. Fazendo-me de desentendida quanto à insinuação de Dufferein-Chautel n.° 2, "o perigo que podiam consti­tuir para mim os vadios noturnos que rondam o bairro de Temes", consigo chegar a casa sozinha, apalpar ra­pidamente a grande nota de 500 francos, deitar-me e dormir.

Para verificar a caixa onde o correio deposita a cor­respondência — afixada ao lado do balcão de controle —, tenho que desalojar, nesta noite de sexta-feira, um belo "rufião" de boné, um dos tipos clássicos de que este bairro está cheio.

Ainda que popularizado pelas estampas, pela cari­catura, pelo teatro e pelos cafés-concerto, o "rufião" continua fiel à malha ou camisa sem colarinho, ao boné, ao paletó, que as mãos afundadas nos bolsos colam aos rins, acentuando-os, ao cigarro apagado nos lábios, e aos sapatos que não fazem ruído...

No sábado e no domingo, estes senhores lotam a me­tade do nosso Empyrée-Clichy, enchem a galeria e de­sembolsam 2 francos e 25 a mais para a reserva das pol­tronas de palha que ficam próximas ao palco. São os aficionados, os apaixonados, que dialogam com os artis­tas, que os vaiam, que os aclamam, que soltam oportu­namente apartes picantes e exclamações escatológicas que provocam a hilaridade da sala inteira.

Acontece, porém, que o seu êxito os entusiasma, os acalora, e a proeza vai acabar em arruaça. De uma ga­leria a outra, trocam-se, em saborosa gíria, diálogos estu­dados, depois gritos e, em seguida, projéteis precurso­res da pronta chegada da polícia. . . A essa altura, é prudente, por parte do artista, esperar, cara neutra e atitude modesta, que se amaine a tempestade, pois, do contrário, a trajetória das laranjas, níqueis e bolotas de papel desvia-se para o lado dele; desta forma, é aconselhável aguardar o momento propício para prosseguir com a canção interrompida.

Mas estas, repito, não passam de curtas tempestades, escaramuças reservadas para os sábados e domingos. De resto, a ordem é severamente mantida no Empyrée-Clichy, onde se sente bem o pulso enérgico da senho­ra diretora — a manda-chuva!

Morena e viva, coberta de jóias, lá está ela hoje à noite, sempre rainha do controle. Sagazes e brilhantes, seus olhos descobrem tudo, e os garçons, que pela ma­nhã fazem a limpeza, não se atreveriam a esquecer nem mesmo a poeira do mais longínquo canto escuro. Neste momento, por exemplo, esses terríveis olhos fulminam um autêntico, reforçado e considerável apache, que veio comprar o direito a uma das melhores poltronas de pa­lha da primeira fila ao pé do palco, daquelas onde o pessoal se encarapita como um sapo: braços sobre o balcão, queixo sobre as mãos cruzadas.

A manda-chuva dirige-se-lhe sem tumulto, mas com que ar de domadora!

— Recolha seus 45 níqueis e suma-se!

O reforçado, braços desengonçados, balança-se como um urso:

— Mas por que, Sra. Barnet? Que fiz eu?

— Pois sim, pois sim, "que fiz eu"? Pensa que esti­ve dormindo sábado passado? Quem é que estava na poltrona 1 da galeria, era você não era?

— Quem pode afirmar?

— Foi você quem se levantou durante a pantomima, não foi? E para dizer: "Ela mostrou apenas uma teta! Quero ver as duas! Paguei 2 mangos, um para cada teta!"

O reforçado, ruborizado, tenta defender-se, e, levan­do a mão ao peito, dramatiza:

— Eu, eu! Ora, Sra. Barnet, sei como portar-me, sei muito bem que isso não são coisas que se façam. Ju­ro-lhe, Sra. Barnet, não fui eu que.. .

A rainha do Empyrée estende uma destra irrevogá­vel.

— Nada de fantasias. Eu vi, pois não vi? É quan­to basta. Antes de oito dias o senhor não terá o direito de pisar aqui. E que eu não o pilhe antes de sábado ou domingo próximo! E agora, raspe-se!

A saída do reforçado, suspenso por oito dias, vale a pena que eu perca ainda uns bons minutos. Lá vai ele, passo silencioso, costas abauladas; chega à rua, retoma seu ar insolente. No entanto, essa pose é insincera, aliás forçada, e, durante uns momentos, não há grande di­ferença entre este bicho perigoso e um pequeno traquinas a quem se acabou de tirar a sobremesa.. .

Na escada de ferro, vêm-me ao mesmo tempo o bafo do aquecedor que cheira a cal, carvão e amoníaco e uma lufada da voz de Jadin... Ah! pequena crápula! Ali o tem em peso, reconquistado, todo o seu público. Cobrindo qualquer outro ruído, posso ouvir o estrépito das gargalhadas e aquele vociferar que a acompanha e apóia. Este contralto áspero e quente, já bem enfra­quecido pelas farras, e, muito provavelmente, por um princípio de tuberculose, ganhando corações, pelos ca­minhos mais baixos e, também, pelos mais seguros. . . Se um diretor "experiente e artista" viesse um dia até aqui, exclamaria, certamente, ouvindo Jadin:

— Vou contratá-la e lançá-la, e daqui a três me­ses vocês vão ver quem ela será!

Uma fracassada orgulhosa e ácida, eis no que ele a transformaria. As experiências deste gênero não encora­jam: em que outro lugar poderia essa Jadin mal pen­teada brilhar melhor do que aqui?

Ei-la na escada, exatamente — valha-me Deus! — como quando se foi, vestido imenso, as pontas desfia­das pelos saltos, xale à Maria Antonieta, amarelecido pela fumaça da sala, que não consegue sequer escon­der a magreza esquelética e moça, os ombros caídos, a boca petulante, o buço sujo de pó de arroz, um ver­dadeiro bigode branco.

Mas não sei que vivo e sincero prazer assalta-me ao avistar de novo essa criançola desmiolada: e ela, por sua vez, atira-se pelos últimos degraus abaixo, para cair em meus braços, apertar-me as mãos no calor das suas: aquela "bombástica escapulida", não sei por que motivo, aproximou-nos mais uma da outra...

Segue-me até o camarim, e aí arrisco uma repreen­são discreta:

— Jadin, isto não fica bem, você deveria saber! Não se abandonam as pessoas dessa maneira!

— Fui ver mamãe — diz Jadin, seriíssima.

Mas seus olhos encontram o espelho, onde se vê mentindo, e toda a sua figura infantil abre-se num riso e avoluma-se eriçada, como a de um angorá muito novo...

— Imagine, não?. . . Devem ter-se chateado aqui, sem mim!

E esplende num orgulho confiante, creio que intima­mente surpresa de que o Empyrée-Clichy, durante a sua ausência, não tenha fechado as portas...

— Não mudei, hein?. .. Oh! que belas flores! Você me perdoa?

E já a mão rápida de batedora, hábil outrora em sur­rupiar laranjas das bancas das mercearias, tem entre os dedos uma rosa púrpura, antes mesmo que eu tivesse tempo de abrir o envelope que acompanhava o grande ramo de flores:

 

Maxime Dufferein-Chautel

com respeitosas homenagens.

 

Dufferein-Chautel! Ah! aí está. É esse o nome do tonto. Desde a noite passada que tento lembrar, e, na preguiça de abrir um Tout-Paris, desfilaram-me vários pela cabeça: parecia-me Thureau-Dangin, ou Dujardin-Beaumetz, Duguay-Trouin.. .

— São flores de raça — diz Jadin, enquanto me dis­po. — Foi algum namorado que mandou?

Nego-o com uma sinceridade inútil:

— Não, não! é uma pessoa que agradece. . . um sarau.. .

— Que pena — declara Jadin, com ar competente. — São flores de muito gosto, de um homem de classe. O tipo com quem fugi outro dia deu-me umas iguaizinhas. . .

Caio na risada: Jadin a discorrer sobre qualidade de flores e de "tipos" é irresistível. . . Sob o pó farinhoso seu rosto se avermelha, e ela rebate:

— Ora! então! Você não acredita que possa ser um homem distinto? Pois pergunte a Canut, o chefe maquinista, a bolada que recebi ontem à noite, logo depois que você saiu!

— De quanto?

— Mil e seiscentos francos, minha cara! Canut viu, não é mentira!

Pareço muito compenetrada? Duvido. ..

— E o que vai fazer com isso, Jadin? Despreocupadamente, tirando os fios do seu velho vestido branco e azul:

— De molho é que não vou deixá-los! Já paguei uma chopada aos maquinistas. E depois, emprestei — diz ela que foi empréstimo! — 50 pacotes a Myriame para pagar uma roupa, e, você sabe, há sempre uma que pede, que diz estar sem nenhum... Sei lá! Olha! É Bouty! Olá, Bouty.

— Salve a foliona!

Bouty, depois de verificar, discretamente, que tenho meu quimono por cima do deshabillé, empurra a porta do meu camarim e sacode a mão que Jadin estende, re­petindo "Olá" com um gesto arrogante e uma voz ter­na. .. Mas Jadin esquece-o logo em seguida, e continua, de pé atrás de mim, dirigindo-se à minha imagem no espelho:

— Sabe, ter tanto dinheiro assim até me faz mal ao estômago!

— Mas. . . por que não compra uns vestidos... que fosse ao menos um... para substituir esse aí?

Com um trejeito de mão, ela joga para trás os cabe­los finos e lisos, desfeitos em ralas mechas:

— Você acha? Este vestido pode servir muito bem até a revista! E o que diriam eles, pense um pouco, se souberem que pesco dinheiro na lama para aparecer aqui, coberta de roupas janotas!. . .

Tem razão. Quando diz eles, refere-se ao seu famoso público suburbano, exigente, ciumento, que foi um pou­co enganado por ela, mas que a perdoa, uma vez que reapareça diante dele tal qual era antes da fuga, antes do erro: mal enjambrada, mal calçada, quase maltra­pilha. . .

Depois de uma pausa, Jadin continua ainda, muito à vontade, alheia ao silêncio incômodo de Bouty:

— Mas já comprei o que mais necessitava: um cha­péu! Daqui a pouco lhe mostro. Até logo. Fica aqui, Bouty?. . . Bouty, você sabe que estou rica? Dou-lhe o que você quiser!

— Basta-me o que tenho, obrigado.

Bouty revela-se singularmente frio e desaprovador. Eu ficaria coberta de ridículo, se dissesse em voz alta que ele ama Jadin. Devo, portanto, contentar-me em pensá-lo.

O cômico vai-se logo depois, e fico só com o meu ra­mo de rosas, um grande ramo comum atado com um laço de fita verde-pálido... Só mesmo um tolo como é esse meu novo enamorado poderia enviar semelhan­te ramo!

"Com suas respeitosas homenagens..." Há três anos que presencio tais homenagens, se é que assim posso chamá-las, homenagens estas que nada possuem de res­peitoso. Mas o meu velho burguesismo que espreita vai desabrochando em segredo, como se não soubesse que essas mesmas — ainda que mascaradas de um aparente respeito — pedem uma só coisa, sempre uma eterna coisa. ..

Na primeira fila da platéia, minha miopia não impe­de que o veja, ereto e sério, cabelos negros, brilhantes, como seda de cartola, o Sr. Dufferein-Chautel caçula. Feliz porque se viu reconhecido, sua cabeça acompa­nha-me os movimentos, as idas e vindas pelo palco, do mesmo modo que a da minha cachorra Fossette, quan­do me visto para sair. ..

Os dias passam. Nada de novo em minha vida, a não ser aquele homem que me continua espionando.

O Natal já passou, assim como o primeiro de janeiro. A noitada do Natal foi delirante, um louco frenesi sa­cudiu todo o café. O público, quase todo bem tocado, berrava em uníssono; das primeiras frisas, vistosamen­te enfeitadas, atiravam-se tangerinas e charutos de 20 níqueis, que iam parar nas segundas galerias; Jadin, meio bêbada após o almoço, perdeu o fio da sua can­ção e pôs-se a dançar uma terrível "barcarola", saia le­vantada, mostrando as meias desfiadas, um grande ra­bicho de cabelo a descer-lhe pelas costas. .. Nessa noi­te, a manda-chuva reinava em seu camarote, calculando a suculenta féria, controlando os copos engordurados que sobrecarregavam os aparadores fixos às costas das poltronas. . .

Brague, também meio alcoolizado após o jantar, pavoneava-se numa lúbrica fantasia de bode preto. Sozi­nho em seu camarim, improvisou um extraordinário monólogo de um alucinado que se defende de espectros, e era um tal de "Oh! não; é demais... deixem-me!", e "Isto não! Isto não! uma vez chega..." e mais uns tais suspiros e mais uns tais queixumes que se diria um homem supliciado por diabólica volúpia.. .

Bouty, sob as eólicas da enterite, bebericava seu lei­te opalescente...

Fossette trincava os bombons que o meu tolo manda­ra, e eu, a sós com ela, fiz de umas belas uvas da serra que me trouxera Hamond a minha consoada. Caçoando de mim mesma, lutei contra uma inveja tristonha que me invadia; inveja de criança a quem se esqueceram de convidar. ..

Mas, afinal, que mais desejaria eu? Cear com Brague, com Hamond, com Dufferein-Chautel? Nada disso, é claro! O que, então? Não, não sou melhor nem pior do que o resto do mundo; ocasiões há em que, ao sen­tir-me isolada e entediada, desejaria proibir aos outros que se divertissem...

Meus amigos, os verdadeiros, os fiéis, como Hamond, são, é interessante notá-lo, os desesperançados, os irre­mediavelmente tristes. Será a "solidariedade da desven­tura" que nos liga? Não o quero crer.

Parece-me antes que atraio e retenho os melancólicos, os solitários votados à reclusão ou à vida errante como é a minha. . . Quem se assemelha.. .

De volta da casa de Margot, vou remoendo estes tresloucados pensamentos.

Margot é a irmã mais nova de meu ex-marido. Des­de a infância é lúgubre portadora desse pequeno nome jovial, nome que, diga-se de passagem, fica tão bem quanto uma argola que se lhe pendure ao nariz. Vive só e seus cabelos cortados rentes à orelha, mais a blu­sa de bordados russos e a comprida veste preta, fazem-na o retrato de uma Rosa Bonheur niilista.

Espoliada pelo marido, tapeada pelo irmão, roubada pelo procurador-judicial, explorada pelos criados, Mar­got fechou-se numa serenidade fúnebre, feita de uma incurável bondade e de um mudo desprezo. O velho há­bito da exploração humana mantém-nos à sua volta, desfalcando suas rendas vitalícias, ao que ela não se furta; às vezes explode em raivas súbitas, quando põe, por exemplo, a cozinheira na rua, pelo motivo de um descarado roubo de 10 francos.

— Que me roubem — grita Margot —, mas com decência!

Depois recai, por longos dias, em seu desprezo uni­versal.

Durante o tempo em que estive casada, pouco co­nheci Margot, sempre fria, doce e pouco loquaz. Re­servada por excelência, também nunca procurou sus­citar confidencias. Somente naquele dia em que a minha ruptura com Adolphe se fez definitiva foi que ela, poli­damente, sem mais rodeios, e para surpresa minha, en­xotou meu marido de sua casa e nunca mais tornou a vê-lo. Percebi então que tinha em Margot uma aliada, uma amiga e um apoio, pois dela é que me vêm os 15 luíses mensais que me poupam da miséria.

— Aceite-os, vamos — disse-me Margot. — Não há nada de extraordinário nisso. São os 10 francos diários que Adolphe me tirava!

É bem verdade que, em Margot, não encontro pala­vras de conforto, nem a higiênica alegria que me reco­mendam como medida salutar. Mas, pelo menos, Mar­got estima-me à sua moda, à sua desencorajada e desencorajadora maneira, prognosticando-me o mais deplo­rável dos fins:

— Minha filha — disse-me ainda —, queira Deus você não caia noutra esparrela, gênero Adolphe. Você é feita para ser comida, como eu. Abro-lhe os olhos porque sou sua amiga. Gata escaldada voltará à caldei­ra, eu que o diga! Você é daquelas para quem um só Adolphe não bastaria como experiência!

— Com tudo isso, Margot, você é extraordinária! E sempre o mesmo requisitório! — repreendo-a rindo: — "Você é assim, você é assado, você é daquelas que, você é daquelas tais..." Espere ao menos que eu pe­que, depois, sim, poderá vir contra mim!

Margot teve um desses olhares que a faz parecer muito grande, um desses olhares que parecem vir de muito alto!

— Mas nada tenho contra você, minha filha. E nem, como acaba de dizer, me insurgiria contra sua pessoa caso pecasse um dia. Estou somente tentando recordar-lhe que não é fácil evitar a asneira, pois na verdade há apenas uma: recomeçar... E devo dizer-lhe que o assunto não me é estranho... e eu nem sentidos tinha — acrescentou com um singular sorriso. ..

— Então, que fazer, Margot? Que acha de conde­nável na minha vida atual? Acha que, como você, devo enclausurar-me no temor de uma desgraça maior e amar somente, como você, os pequenos terriers brabançãos de pêlo curto?

— Salve-se deles! — exclamou Margot com uma vivacidade infantil. — Os pequenos brabançãos! Não há piores marotos do que eles! Ali está um — diz mos­trando uma cachorrinha fulva, parecida com um es­quilo tosquiado. — Cuidei da bronquite desse animal durante quinze noites. E hoje, se dou-me ao luxo de deixá-la, uma hora que seja, sozinha em casa, a monstrinha finge não me reconhecer, e põe-se a ladrar ao barulho das minhas chaves e põe-se a rosnar como se pressentisse um estranho qualquer!... Mas, mudando de assunto, você como vai indo, minha filha?

— Vou indo, Margot, obrigada.

— E a língua?... o branco do olho?... o pul­so?. . .

E põe-se a inspecionar-me as pálpebras, avaliar-me a pressão, com gestos lestos, profissionais, como faria com um cãozinho brabanção. É que sabemos, Margot e eu, o preço da saúde, e a angústia de perdê-la. Viver só, a gente se arranja, a gente vive; porém, definhar só, só e febril, tossindo pela interminável noite adentro, alcançando a custo, sobre pernas trêmulas, a janela que a chuva golpeia, para voltar, depois à cama amas­sada e mole — só, só, só!...

No ano passado, eu soube por alguns dias do hor­ror que se apodera de quem se encolhe, num delírio vago, e teme, em sua semilucidez, morrer lentamente, longe de todos, esquecida. .. Desde então, a exemplo de Margot, cuido-me, preocupo-me com meu intestino, com a garganta, com o estômago e com a pele, com a severidade quase maníaca de proprietário agarrado a seus bens...

Hoje, as palavras bizarras de Margot fazem-me di­vagar. Ela, que não fazia uso dos "sentidos", ela que. .. E, eu?

Sentidos. É fato. Há muito tempo que não penso nos meus. . .

A "questão sentidos". . . Margot parece achá-la de grande importância. A melhor e a pior literatura têm-se encarregado de ensinar-me que todas as vozes se calam quando fala a dos sentidos. Em que acreditar?

Certa vez, Brague disse-me, com ares de médico:

— Escute, essa sua maneira de viver não é sadia! E acrescentou, como Margot:

— Além do mais, você acabará do mesmo modo que os colegas. Ouça o que lhe digo!

Não gosto de pensar nisso. Brague se autoriza de­cisões e gosta de bancar o infalível... Isto nada signi­fica .. . É-me indiferente e não gosto de pensar nisso.

Quantas vezes, no music hall, tenho assistido, sem afetar falso pudor, a conversas em que se expõe a "ques­tão sentidos" com uma precisão estatística e cirúrgi­ca. .. Dispenso-lhes o mesmo interesse, desprendido e respeitoso, que teria ao ler num jornal os danos causa­dos pela peste na Ásia. Poderia pôr-me a tremer, mas prefiro ficar assim, meio incrédula. É-me indiferente e, decididamente, não gosto de pensar nisso. . .

E depois, há aquele homem — o Grande-Tolo — que me segue por toda parte, como uma sombra, como um cão obstinado. . .

Encontro flores no meu camarim, Fossette recebe uma pequena vasilha niquelada para sua comida; três minúsculos amuletos confabulam, face a face, sobre a minha escrivaninha: um gato de ametista, um elefante calcedônio, um sapo de turquesa. .. Uma argola de jade, verde como uma rã, cinge as hastes do ramalhete de lírios esverdeados que me mandaram no primeiro de janeiro. .. Quantas vezes tenho cruzado, na rua, com o mesmo Dufferein-Chautel, que me saúda com uma dis­simulada surpresa...

Quantas vezes é ele quem me obriga a lembrar que o desejo existe, semideus imperioso, fauno solto que cambalhoteia em torno do amor sem obedecer-lhe, a lembrar que sou sozinha, e ainda jovem, refeita pela lon­ga convalescença moral. . .

Os sentidos! Sim, bem que os tenho.. . E tinha-os na época em que Adolphe Taillandy dignava-se entretê-los. Sentidos tímidos, rotineiros, felizes com a carícia habitual que os satisfazia, temerosos de qualquer ou­tra busca ou complicação libertina... e morosos para se inflamarem, mais morosos ainda para se apagarem, sentidos saudáveis, em suma. . .

A traição, o grande período de dor, os anestesia­ram .. . quem sabe até quando? A lembrança daqueles dias de satisfação, de alegria física, traz-me aos lábios, quando me sinto cândida e amputada de tudo o que me fazia uma mulher igual às outras, essa exclamação: "Para sempre!..."

Mas há também dias lúcidos em que argumento du­ramente em meu desfavor: "Acautele-se, não se descui­de um minuto que seja! Todos os que tentam aproxi­mar-se de você são suspeitos e, no entanto, seu pior inimigo está dentro de si mesma! Não me venha dizer que está extinta, vazia e leve: o animal de que você se julga livre hiberna, e fortifica-se nesse longo sono..."

E em seguida torno a perder a noção do que fui, no medo de sentir-me, outra vez, um ser vivo; nada cobiço, nada lastimo... até o próximo naufrágio da minha confiança, até a inevitável crise, da qual sinto já, aterrori­zada, a aproximação, a tristeza de doces mãos possan­tes, guia e companheira de todas as volúpias. ..

Há vários dias, Brague e eu ensaiamos uma nova pantomima, onde haverá uma floresta, uma gruta, um antigo troglodita, uma jovem hamadríade e um fauno na flor dos anos.

O fauno é Brague, a ninfa dos bosques sou eu e, quan­to ao antigo troglodita, não há problema. Seu papel é episódico, e, para ele, diz Brague, "tenho um moleque de dezoito anos, um dos meus alunos, que dará o protó­tipo do pré-histórico!"

Pela manhã, entre 10 e 11 horas, concedem-nos para os ensaios a cena das Folies. Desimpedida das telas de fundo, temos a cena em toda a sua profundidade, o palco inteiramente nu. Que tempo triste, que tempo nublado quando chego, sem espartilho, malha fechada em vez de blusa, calças de cetim preto sob a saia curta!. ..

Gostaria de ser como Brague. A qualquer hora do dia tão parecido consigo próprio, tão ativo, morenão, autoritário. .. Luto tibiamente contra o frio, contra o torpor que me invade, contra o fastio desta atmosfera ainda impregnada do bafo noturno, onde se confundem o cheiro de humanidade e de ponche azedo... O vagabundíssimo piano dos ensaios soletra a nova música. Minhas mãos se aferram uma à outra e é-me difícil apar­tá-las, meu gesto é curto, próximo do corpo, a cabeça encolhe-se friorentamente entre os ombros, sinto-me me­díocre, desajeitada, perdida. . .

Brague, sabedor da minha inércia matinal, aprofun­dou-se também no segredo de curá-la..Persegue-me sem cessar, corre ao meu redor como um caçador de ratos, pródigo em palavras encorajadoras, em exclamações ruidosas que me sacodem. ..

Da sala sobe uma nuvem de poeira: é a hora em que os garçons varrem para fora, além da lama que secou sobre os tapetes, os restos mortais da noitada anterior: papéis, caroços de cereja, pontas de cigarro, sujeira de sapatos. Em terceiro plano — pois cedem-nos apenas uma parte da cena, uma passagem com seus 2 metros de largura — um grupo de acrobatas exercita-se sobre um espesso tapete: são uns bonitos alemães de tez rosa, loiros, atentos, severamente entretidos no trabalho. Ves­tem sórdidos calções de ensaio e, durante os intervalos do seu número, seu repouso, sua distração é ainda o exercício; dois deles, entre risos sonolentos, procuram um milagre de equilíbrio, que parece praticamente irrealizável... mas que, talvez no próximo mês, conseguirão atingir. No fim do intervalo, então, mais concentrados os vejo, controlando e seguindo o perigoso treino do mais jovem do grupo, um garoto que mais parece uma moça, com seus compridos caracóis loiros, e que é lan­çado ao ar, recebido sobre um pé, sobre uma mão — um pequeno ser quase aéreo que se diria voar com os cachos lançados horizontalmente para trás, ou para cima, como uma chama a sair-lhe da cabeça, até o mo­mento em que cai, na ponta dos pés muito unidos, bra­ços colados ao corpo. ..

— Fora de tempo! — grita Brague. — Você tor­nou a errar o movimento. Eis o tipo do ensaio para estourar-me a paciência! Será que você não pode prestar um pouco de atenção ao que está fazendo?

É difícil, confesso. Acima de nós voltejam agora, em três trapézios, uns ginastas que trocam entre si silvos agudos, pios de andorinhas... O brilho niquelado dos trapézios de metal, o ranger das mãos untadas de pez sobre as barras polidas, toda essa atividade que me cerca, essa energia elegante e ágil, esse desprezo pelo perigo exaltam-me e finalmente me aquecem, num con­tagioso estímulo. .. E é quando então nos dispensam, justamente quando eu começava a encontrar, como uma jóia subitamente engastada, a beleza do gesto aprimo­rado, a precisa expressão de espanto ou de desejo. ..

Galvanizada tarde demais, gasto o resto do meu ar­dor voltando para casa a pé com Fossette, na qual os ensaios vão acumulando uma raiva muda, raiva essa que é descarregada fora, nos cachorros maiores do que ela. É preciso ver com que genial mímica ela os aterro­riza, com convulsões de sua máscara de dragão japo­nês, com abomináveis caretas que fazem saltar os olhos,, arreganhar os beiços, e mostrar, entre tantas sangüíneas dobras, a dentuça branca, tão tortuosamente plantada como as ripas de uma paliçada atingida pelo vento.

Criada nesse meio, Fossette conhece o music hall me­lhor do que eu. Mete-se pelos porões escuros, passeia pelos corredores, orienta-se pelo odor familiar de água de sabão, pó de arroz e amoníaco... Seu corpo lanudo conhece bem o amplexo dos braços sempre empastados de branco; e consente em lamber o açúcar que os figu­rantes roubam nos pires, no café embaixo. Caprichosa, há vezes em que exige que à noite a leve comigo, como há outras em que apenas me olha sair, enrolada no seu cesto, desdenhosa, ar de capitalista que goza interminá­vel sesta.

— É sábado, Fossette! Vamos! Senão Hamond ainda chegará antes de nós!

Ao invés de tomar um carro de praça, corremos como duas loucas: é que, esta manhã, existe já no ar a tão sur­preendente e macia doçura que prenuncia a primave­ra... e alcançamos Hamond, justamente no momento em que está para chegar à minha casa branca, cor de manteiga bem batida.

Mas, Hamond não está só na calçada: conversa com. . . com Dufferein-Chautel caçula, que atende por Maxime, e que eu chamo de Grande-Tolo. ..

— Como! O senhor outra vez!

Sem lhe dar ao menos o tempo de protestar, interrogo severamente Hamond:

— Você conhece o Senhor Dufferein-Chautel?

— Mas claro! — diz Hamond, calmamente. — E você também, pelo que vejo. Porém, eu conheço-o desde criança. Deve haver pelas minhas gavetas a fotografia de um garoto com uma fita branca no braço: "Lem­brança da primeira comunhão de Maxime Dufferein-Chautel, 15 de Maio de 18..."

— É isso mesmo — exclama o Grande-Tolo. — Foi mamãe quem lha enviou, ela me achava tão bonito na­quela fotografia!

Não rio com eles. Não me agrada o fato de se conhe­cerem. E essa luz do meio-dia humilha-me, pois tenho os cabelos desarranjados, o nariz brilhante e sem pó de arroz, a boca seca de sede e de fome. ..

Procuro esconder sob a saia meus sapatos de traba­lho, sapatos já largos, disformes, e cujo couro esfolado está até azul, mas que se ajustam perfeitamente aos tor­nozelos, e possuem uma tão adelgada e flexível sola que se diria um sapato de dança... E o Grande-Tolo exa­mina-me como se nunca me houvesse visto antes.

Como se o fosse morder, para livrar-me de súbita e pueril vontade de chorar, pergunto-lhe:

— O que há? Meu nariz está manchado? Ele não se apressa em responder:

— Não... mas... é curioso... quem nunca a viu à luz do dia, não julgaria que tivesse olhos cinza. .. No palco, eles parecem escuros.

— Sim, eu sei. Já me disseram isso. Hamond, a ome­lete vai esfriar. Adeus, senhor.

Eu também, aliás, nunca o vira à luz do dia. E seus olhos profundos não são negros como os imaginara, mas de um castanho meio avermelhado, como os de cães pastores...

Os dois não acabam mais de se despedir! E até Fossette, essa pequena patifa, dá "um bom dia ao senhor", com um vasto sorriso de comilona! E o Grande-Tolo faz, porque falei em omelete, uma cara de mendigo diante do assado! Se espera que vá convidá-lo. ..

Irritei-me injustamente com Hamond. Sim, enquanto lavo rapidamente as mãos e o rosto, acuso-me em silên­cio. Vou encontrar meu velho amigo na sala de estar, onde Blandine põe a mesa, pois suprimi, de uma vez por todas, o cômodo triste e inútil que se chama sala de jantar e que se usa uma hora dentre as 24 do dia. É preciso dizer que Blandine dorme no apartamento e que uma peça a mais me sairia bem mais caro...

— Ah! ah! Você então conhece o Maxime! — ex­clama Hamond, desdobrando o guardanapo.

Era de esperar!

— Eu? Em absoluto. Não o conheço! Dancei na ci­dade, na casa do seu irmão, onde lhe fui apresentada. É tudo!

Deixei — por quê? — de mencionar aquela primeira entrevista, o Grande-Tolo como intruso, inflamado, no meu camarim. ..

— Pois ele a conhece. E sente por si grande admira­ção. E acho até que está apaixonado!

Sutil Hamond! Contemplo-o, com este sentimento fe­lino, hilariante e sorrateiro que a ingenuidade masculina nos inspira. ..

— Ele sabe que você gosta de rosas, de bombons de amendoim. E encomendou uma coleira para Fossette...

Dou um salto da cadeira:

— Uma coleira para Fossette!... Bom, afinal, isso não me diz respeito — digo já rindo.;— Fossette é uma criatura sem moral: ela a aceitará, sei que é capaz disso!

— Falamos de você, naturalmente. .. Julgava-os muito amigos. . .

— Oh!... se assim fosse, Hamond, você o saberia.

Meu velho amigo baixa os olhos, lisonjeado no seu ciúme amical.

— É um bom rapaz, asseguro-lhe.

— Quem?

— Maxime. Conheci sua mãe, que é viúva, em.. . Vejamos, isto há trinta. . . não, 35. ..

Vejam que coisa! Tenho que suportar a história de Dufferein-Chautel, mãe e filhos. .. Mulher de pulso, é ela que dirige tudo... serrarias nas Ardenas... hecta­res de florestas... Maxime, um tanto preguiçoso, é o mais jovem e o mais mimado dos filhos... e muito mais inteligente do que parece. . . 33 anos e meio...

— Veja! a minha idade!

Hamond encara-me por sobre a mesa, com uma aten­ção de miniaturista:

— Você tem 33 anos, Renée?

— Não comente. Ninguém precisa saber.

— Ora!

— Oh! sei bem que, em cena...

— E mesmo na cidade.

Hamond não leva muito mais longe o elogio e volta à história dos Dufferein-Chautel. Chupo as minhas uvas, descontente. O Grande-Tolo começa a insinuar-se pela minha casa adentro, mais do que eu lhe permiti. A esta hora, por exemplo, deveríamos, Hamond e eu, estar, como de costume, a remoer velhas lembranças fatídicas, aquelas que ressuscitam semanalmente sob o amargo aroma das nossas chávenas fumegantes. . .

Pobre Hamond! É por mim que renuncia ao seu fú­nebre e querido passatempo. É evidente que meu isola­mento fá-lo tremer; se fosse um pouco mais ousado, dir-me-ia, como um paternal intermediário:

— Minha cara, eis o amante de que você necessitava! Boa saúde, não joga, não bebe, tem fortuna bastante... Você ainda me agradecerá!

Mais quatro dias e deixarei o Empyrée-Clichy.

Ao chegar ao término das temporadas, mais ou menos longas, no café-concerto, experimento, sobretudo nos últimos dias, a bizarra impressão de uma liberdade que não almejara. Contudo, demoro a deliciar-me com essa sensação de desencargo, a gozar das noites no lar, e o suspiro de desafogo: "Finalmente!" não é espontâneo.

Mas creio que, desta vez, vai ser sincero este prazer e, sentada no camarim de Brague, vou enumerando ao meu companheiro, que caçoa de mim, todas as ocupações urgentes que me entreterão durante as férias:

— Você sabe, tenho que renovar as almofadas, o diva inteiro. E depois, vou colocá-lo a um canto, munido de um quebra-luz. ..

— Êta, casa suspeita! — diz Brague, gravemente.

— Deixe de ser bobo!. . . E além disso tenho uma porção de coisas a fazer. Há muito tempo que não me ocupo de minha casa. ..

— Sim, acredito — concorda Brague, muito cínico. — E para quem, tudo isso?

— Como, para quem? Para mim, ora essa! Brague desvia-se um instante do espelho, com o olho direito pintado de azul, como se tivesse levado um grande murro:

— Para você, unicamente?... Desculpe-me, mas acho que isso é uma boa. . . asneira! E depois, você pensa que vou deixar morrer a Emprise? Esteja certa de que a qualquer hora estaremos de partida, para atuar no interior ou no estrangeiro, e em estabelecimentos de primeira ordem. . . Ah! Salomon, o agente, pediu-me que lhe dissesse para passar pela casa dele.

— Oh! Já?

Peremptório, Brague sacode os ombros:

— Sim, sim, conheço-a! "Oh! Já?" Mas se eu lhe dissesse que não havia nada a fazer, aí você ficaria atrás de mim como um mosquito: "Quando partiremos? Quando partiremos?" Vocês, mulheres, são todas iguais!

— É, assim parece — concorda a melancólica voz de Bouty atrás de nós.

Ainda mais magro do que no mês passado, Bouty se torna cada vez mais "esgotado". Olho-o de esguelha, te­mendo magoá-lo; como seria possível adivinhar o que se passa sob essa máscara vermelha e branca?. .. Calados, escutamos os três a voz de Jadin que vem lá de cima:

Ah! ah! petite Muguet-et-te,

Ah! ah! viens donc, s'il te plaît,

Que j’te 1'mette,

Mon p'tit bouquet de muguet!

O compositor da Valse du Muguet, homem traquejado e experiente, soube dar uma hábil e picante censura aos últimos versos do refrão. . .

— Então, dentro de quatro dias vão-nos deixar? — pergunta bruscamente o pequeno cômico, levantando a cabeça.

— Sim, dentro de quatro dias... Eu me sentia bem aqui. .. Sentia-me tranqüila. ..

— Oh! tranqüila, aqui? — protesta Bouty, cético. — Olhe que há lugares bem mais tranqüilos. E não se­ria nada difícil encontrá-los. Não que eu queira falar mal deste público, mas ele é um tanto cafajeste... Sei bem — diz Bouty, respondendo ao meu gesto de indife­rença — que em qualquer lugar a gente pode se impor, é claro. Mas mesmo assim... Veja, ouve como berram? Você acredita que uma mulher, digo uma mulher jovem, sem opinião, que se deixa levar pela chacota e pela farra, pode dar-se ao luxo de impor-se?. . . Assim, por exemplo: uma desequilibrada, uma doidivanas como Jadin, você acredita?

Ah! Bouty, em quem o amor sufocado desperta uma

súbita aristocracia e um desdém pelo público que o feste­ja — você procura e acha uma desculpa para Jadin, você ajeita, à sua moda, a teoria da influência do meio. . . na qual não acredito!

Os dançarinos russos foram-se embora, Antoniev, o "Grão-Duque", e seus cães também. Para onde? Não se sabe. Nenhum de nós teve a curiosidade de informar-se a respeito. Outros' figurantes vieram substituí-los, contra­tados por sete dias, ou por quatro dias apenas, porque a revista está prestes a ser lançada. No palco, no corredor, tenho cruzado com essa gente nova, com quem troco meios sorrisos, cumprimentos familiares e discretos. ..

Do antigo elenco, só nós e Jadin, que terá — Senhor! — seus papéis na revista, e Bouty. .. À noite, conversa­mos melancòlicamente, veteranos do Empyrée-Clichy, e como que esquecidos, abandonados por um jovem regi­mento ao partir. . .

Onde tornarei a encontrar aqueles que conheci aqui? Em Paris, em Lião, em Viena, em Berlim?. . . Em ne­nhum desses lugares talvez, talvez nunca mais. Dentro de cinco minutos, estaremos no escritório de Salomon, o agente, que se dará ao trabalho de, entre brados e cabotinos apertos de mão, trazer-nos à realidade, lan­çando o indispensável "que estão fazendo?" ou pondo-nos a par de que "a coisa vai de vento em popa" ou de que " a coisa não dá futuro".

"A coisa não dá futuro", esta é a perífrase vaga com que os companheiros errantes disfarçam a pane, a para­da forçada, a crise monetária, a miséria, enfim. . . Sim, alimentados, apoiados pela vaidade heróica que os torna tão queridos para mim, jamais chegam a confessá-la. ..

Alguns, exasperados, arranjam forma de preencher um pequeno papel num verdadeiro teatro, mas, coisa singular, não se gabam disto. Aí esperam, pacientemen­te, o retorno da oportunidade, um contrato no music hall, a hora abençoada em que envergarão novamente a saia de lantejoulas, ou o fraque cheirando a benzina, para enfrentar de novo o halo daquele projetor, vazan­do, vertendo o seu repertório!

"Não, não dá futuro", dir-me-ão outros como argu­mento:

— Retorno ao cine.

O cinema, que ameaçou arruinar os humildes artistas de café-concerto, agora vem salvá-los. Submetem-se a um labor anônimo, sem glória, de que não gostam, e que altera seus hábitos, mudando-lhes as horas de refei­ção, de trabalho e de recreio. Centenas vivem disso, nas épocas de desemprego,, e não poucos acabam por fixar-se. Mas, se o cine regurgita de figurantes e de vedetes, que fazer?

— Qual, isto não dá futuro. . . não dá futuro. ..

A frase é atirada duma forma ao mesmo tempo séria e displicente, sem insistência, sem choramingos, acom­panhada de um gesto da mão que balança o chapéu ou um par de luvas velhas. E assim vão mantendo as apa­rências, com a cintura apertada num sobretudo da penúl­tima moda, pois o essencial, o indispensável não é ter um terno conveniente, mas possuir um sobretudo que cubra o colete já puído, o paletó surrado, as calças amarelecidas nos joelhos, um sobretudo vistoso, berrante, que cause impressão ao diretor ou ao agente, que per­mita, afinal, que se lance ousadamente, como capita­lista, a deixa: "Isto não dá futuro!"

Onde estaremos no mês que vem?. .. À noite, sinto que Bouty perambula pelo corredor dos camarins, de­samparado, pigarreando até que eu lhe abra a porta do meu e convide-o a sentar-se um pouco. Dirige-se, então, a uma frágil cadeira branca, cuja pintura já está saindo, e nela insinua seu corpo de cachorro magro, e sob ela recolhe os pés a fim de não estorvar meus movimentos. Brague vem juntar-se a nós e encarapita-se com um cigarro sobre o cano do aquecedor. De pé, entre os dois, acabo de arrumar-me, e minha saia vermelha bordada de amarelo espana-os à minha passagem. Não temos von­tade de falar, mas conversamos, lutando contra o surdo ímpeto de calar, de ampararmo-nos, comovidamente, uns nos outros ...

É Brague quem melhor conserva a atividade curiosa e lúcida, o apetite comercial do futuro. O futuro, para mim, aqui ou lá. . . O gosto tardio — adquirido, um tanto artificial — pelas mudanças, pelas viagens, coa­duna-se muito bem com esse meu pacífico e consumado fatalismo de pequena burguesa. Boêmia de uns tempos para cá, levada pela profissão de cidade em cidade, boê­mia, sim, porém boêmia organizada, zelosa em tratar e escovar suas próprias roupas; boêmia que quase sempre leva consigo a carteirinha de pele de gamo, os níqueis de um lado, as moedas de outro, e o ouro cuidadosa­mente oculto num dispositivo secreto. ..

Vagabunda, seja, mas resignada, resignada como estes que aqui estão, companheiros, irmãos, ao círculo vicioso do destino. .. Verdadeiramente, as partidas me entristecem e me embriagam, e algo de mim vai ficando nesta interminável travessia — países novos, céus puros ou nublados, mares sob a chuva pérola-cinza —, pois apego-me tão apaixonadamente a tudo, que tenho a im­pressão de abandonar atrás de mim não sei quantos fan­tasmas à minha semelhança, embalados sobre as folhas, diluídos dentro das nuvens. .. Mas o último fantasma, o que mais se parece comigo, não será este que se queda agora, sentado ao lado do fogão, sonhador e calmo, de­bruçado sobre o livro que abriu e se esqueceu de ler?. ..

 

"Que recanto acolhedor! Quem a visse aqui, entre essa luz suave e este vaso de cravos, não compreenderia sua vida no music hall!"

Eis o que disse meu namorado ao ir-se embora, na primeira vez em que veio, com Hamond, o mediador, jantar na minha casa.

É verdade, tenho um namorado. E é esse nome fora de moda o único que encontro para dar-lhe: não é meu amante, nem meu flerte, nem meu gigolô... é o meu namorado.

"Que recanto acolhedor!". .. Aquela noite, depois que ele se foi, ri amargamente... Uma lâmpada velada, um vaso de cristal onde a água cintila, uma poltrona junto à mesa, o diva gasto, disfarçado por habilidosa desordem de almofadas — e o transeunte, maravilhado e superficial, imagina, entre as paredes de um verde desbotado, a vida retirada, meditativa e estudiosa de mulher superior. . . Ah! ah! não viu o tinteiro coberto de poeira, nem a pena seca, nem o livro que dorme fe­chado sobre a caixa de papéis de cartas vazia...

De um pote de grés, um velho ramo de azevinho pende encarquilhado, como se estivesse caindo sobre o fo­go... O vidro rachado de um pequeno pastel (um es­boço de Adolphe Taillandy) espera em vão que o substi­tuam . .. Em volta da lâmpada elétrica que ilumina o fogão, jaz um pedaço de papel negligentemente esque­cido. .. Uma pilha de uns quinhentos cartões-postais — cenas da Emprise —, com suas capas de papel cinza, cobre com risco de quebrá-lo, um marfim esculpido no século XV.

Tudo isso parece transpirar indiferença, abandono, inutilidade, quase ausência. . . Intimo? Que intimidade se aconchega, de noite, à volta dessa lâmpada cujo quebra-luz começa a fenecer?

Quando meus dois convidados saíram, pus-me a rir e suspirei de cansaço; tive uma noite longa, agitada por não sei que obscuro acanhamento, nascido da própria admiração que me vota o Grande-Tolo. Aquela fé ingê­nua de homem apaixonado esclareceu-me, aquela noite, sobre mim mesma, como essas autodescobertas que nos surpreendem ao nos depararmos com um espelho numa rua ou ao subir uma escada, o qual nos revela cruamen­te certas imperfeições, certos defeitos do rosto e da silhueta...

Mas depois, outras noites vieram, trazendo Hamond com meu namorado, ou meu namorado sem Hamond... Meu velho amigo faz conscientemente o que se chama de seu sujo trabalhinho. Às vezes, patrocina, com aque­le brilhante desembaraço de veterano homem de espíri­to, as visitas do seu pupilo, as quais, sem ele, confesso sinceramente, estariam além das minhas forças. Às ve­zes, eclipsa-se por algum tempo, faz-se esperado e ressur­ge, oportunamente, repondo em prática a sua diplomacia de salão, que se enferrujava...

Para estes dois não me enfeito, repito sempre a mes­ma blusinha de pregas, a saia escura e vulgar. Deixo mesmo que "toda a minha figura se relaxe", boca mole e muda, olhos voluntariamente embaçados, faço frente à pertinácia desse meu namorado ostentando a face passiva de moça que os outros querem casar contra a sua vontade. .. Preocupo-me tão-somente, e mais por mim do que por eles, com o decoro postiço e sumário do lugar onde vivo tão poucas horas; Blandine tem-se dignado visitar os cantos empoeirados da sala de estar, e as almofadas da poltrona, a que fica em frente à mesa, contam que tenho repousado...

Um namorado. . . Por'que este e não outro? Sei lá. Olho, cheia de espanto, para este homem que conseguiu penetrar em minha casa. Bem! ele o queria e conseguiu, com a ajuda do acaso e de Hamond. Certo dia fui aten­der a um tímido toque de campainha: de que jeito po­deria escorraçar este indivíduo desajeitado que esperava à porta, braços cheios de rosas, ao lado de Hamond, cujo olhar implorava que o recebesse? O fato é que conseguiu entrar aqui, e isto tinha que acontecer, sem dúvida alguma. ..

E, a cada vez que chega, olho-o como se nunca o tivesse visto. Tem um vinco bem acentuado de cada lado do nariz, meio escondido pelo bigode, os lábios vermelhos, daquele vermelho bistrado, comum às pes­soas muito morenas, e os cabelos, sobrancelhas e cílios, tudo negro como o diabo. Só com o auxílio de um puro raio de sol pude perceber um dia que, no meio de tanto negrume, brilhavam dois olhos, de um cinzento-fulvo bem pronunciado. . .

De pé, personifica realmente um grande tolo, duro, empinado, todo ossos. Sentado ou semi-alongado no diva, já parece outro como se, de repente, se afrouxasse, saboreando a graça de ser um outro homem, preguiçoso, fleumático, movendo as mãos em gestos felizes, ajeitan­do ociosamente a nuca sobre as almofadas. . .

Quando o pego distraído, fico a observá-lo, vagamen­te chocada ao pensar que ele me é quase estranho, que sua presença em minha casa é tão descabida quanto a de um piano numa cozinha.

Como pode acontecer que ele, tomado de amores por mim, mantenha-se absolutamente indiferente ao fato de conhecer-me tão pouco? A mim quer parecer que por ora isto não o preocupa, que procura antes ganhar-me a confiança, para depois entrar com o jogo da conquis­ta. Na verdade, se é certo que aprendeu rapidamente — e dou minha cabeça a cortar como é a tática de Hamond que põe em ação — a ocultar o desejo, a ado­cicar o olhar e a voz ao dirigir-se a mim, se, ladino como um animal, finge esquecer-se de que me cobiça, também não mostra apetite em descobrir-me, interrogar-me ou adivinhar-me, e vejo-o mais atento à luz que brinca em meus cabelos do que às minhas palavras. ..

Como tudo isso é fantástico!... Aqui está ele perto de mim, sentado: o mesmo raio de sol bate na sua face e na minha — e, se a narina deste homem parece carmi­nada, a minha deve estar da cor do coral vivo. .. Mas ele não está presente, está a léguas de distância! A cada instante vem-me o ímpeto de levantar-me, de dizer-lhe: "Que veio fazer aqui? Vá-se embora!" Porém, não faço coisa alguma.

Será que ele pensa? Lê? Trabalha?. .. Vai ver, per­tence à numerosa categoria, à comum categoria dos que se interessam por tudo mas que não tiram proveito de nada. Nada espirituoso, certa rapidez de compreensão, vocabulário suficientemente amplo para realçar sua be­la voz cheia e sonora, com essa facilidade para rir e uma alegria infantil que se encontra em tantos homens, assim é o meu namorado.

Para que eu não falte com a inteira verdade, veja­mos o que mais me agrada nele: é o olhar, algumas ve­zes ausente, inquiridor, aquela espécie de sorriso interior do olho, olhar dos sensitivos violentos e tímidos.

Viajou, mas como todo mundo viaja: de vez em quando, sem ir muito longe. Leituras, as que todos co­nhecem, e, dentre as relações que tem, limita-se a nomear, além do irmão mais velho, seus três amigos íntimos; perdôo-lhe este aspecto vulgar em favor de uma simplicidade que nada encerra de humilde, e pelo fato de nada encontrar para dizer de si mesmo.

Raramente nossos olhares se encontram, pois que o meu, trago-o sempre escondido. É-me impossível esque­cer o motivo de sua presença, de sua atitude paciente. E, no entanto, que diferença entre o homem que está calmamente sentado ali, naquele diva, e o animal dani­nho, cheio de selvagem desejo, que forçava a porta do meu camarim! Não há nada nesta casa que possa trazer-me alguma lembrança do nosso primeiro encontro, salvo o fato de eu quase não conversar com o Grande-Tolo. Às suas tentativas, retruco de maneira breve, ou então é a Hamond que dirijo a- resposta destinada a meu namorado. . . Esta espécie de prosa indireta em­presta às nossas reuniões um marasmo e uma falsa alegria inexprimíveis. . .

Continuo ensaiando a nova pantomima com Brague. Quando não é o Folies-Bergères que, pela manhã, nos dá asilo, é o Empyrée-Clichy que nos empresta seu palco por uma hora; ou então vamos acabar na sala de dança Cernuschi, ou na Cervejaria Gambrinus, habituada ao alvoroço que faz a Empresa Baret.

— Assim, sim... — diz Brague, avaro em elogios, tanto para outros quanto para si mesmo.

O Antigo Troglodita ensaia conosco: é um famélico rapazola dos seus dezoito anos que Brague sacode, atordoa, cobre de injúrias, a ponto de me fazer pena:

— É demais, Brague! Ele vai acabar chorando!

— Que chore, meto-lhe o pé nos fundilhos! Lágrimas não fazem parte do trabalho!

Talvez Brague tenha razão. . . O Antigo Troglodita engole as lágrimas, trata de estufar um costado "pré-histórico" e devota-se à guarda de uma Hamadríade que faz trejeitos, metida numa malha de lã branca...

Numa manhã da semana passada, Brague deu-se ao trabalho de vir, em pessoa, prevenir-me de que no dia seguinte não haveria ensaio.

Hamond, Dufferein-Chautel e eu acabávamos de al­moçar.

Vi-me na obrigação de fazer-lhe sala por alguns minu­tos, oferecer-lhe café, apresentar-lhe meus dois convida­dos. .. Enquanto isso, via que o olhinho negro e cinti­lante de Brague se detinha de esguelha em meu namora­do, com uma satisfação curiosa, com uma tal espécie de segurança, que me deixou tolamente constrangida. ..

Ao reconduzi-lo à porta, o fato de ele nada pergun­tar, abstendo-se mesmo de qualquer alusão familiar, ser­viu para redobrar meu embaraço. Recuei diante do ridí­culo de uma explicação: "Sabe, é um colega. Um amigo de Hamond que veio almoçar conosco..."

Fossette tem agora uma nova coleira de pele de cabra, uma coleira vermelha, cheia de tachas douradas, de um gosto esportivo e deplorável. É claro que não me atrevi a dizer que a achei feia...

Ela — ah! danada femeazinha servil! — é toda amabilidade com o senhor bem apessoado que cheira a ho­mem e a fumo, que lhe acaricia o lombo com safadas palmadinhas. . .

Blandine se multiplica, lustra as vidraças, e, quando meu namorado se acha presente, lá vem ela com a ban­deja de chá, sem que eu precise pedir... A exemplo de Hamond, parece que todos conspiram contra mim, que todos protegem Dufferein-Chautel.. . Que engraçado! devem pensar que me é um suplício continuar invulne­rável! . ..

Invulnerável, e pior que insensível: retrátil. Toda vez que estendo a mão ao meu namorado, o contato de sua longa mão, quente e seca, causa-me surpresa e desagrado. Basta roçar o pano de seu paletó, percorre-me um frêmito nervoso, e é involuntariamente que fujo, quando fala, de seu hálito, aliás, saudável. .. Sei que não con­sentiria em fazer-lhe o nó da gravata e que preferiria be­ber no copo de Hamond do que no dele. . . Por quê?

Porque. . . este rapaz é um homem, e sempre me vem à mente, sem querer, esta lembrança de que é um ho­mem. Hamond não é um homem, é um amigo. E Brague é um colega; Bouty, também. Os esbeltos e musculosos acrobatas que, sob o calção brilhante, revelam as mais lisonjeiras particularidades da sua anatomia. . . aí está! são acrobatas!

Já pensei alguma vez que Brague, quando me agarra na Emprise, a ponto de machucar-me as costelas, quan­do parece esmagar-me a boca com um fogoso beijo, tem por acaso um sexo?. .. Não. Aí está! O mais leve olhar, o mais correto aperto de mão do meu namorado repelem-me, porque ele está ali, à espera. . . Que belo passatempo para uma desocupada! Que namoro provo­cante e presunçoso!

A desgraça é que não sei namorar. Falta-me aptidão, experiência, graça e, sobretudo, oh! sobretudo, a lem­brança de meu marido!

Evocar, um instante que seja, Adolphe Taillandy tra­balhando, com aquela perícia, aquela tenacidade caçadora que todos conhecem, para seduzir uma mulher ou uma moça, é o suficiente para me pôr enregelada, tolhi­da, completamente hostil às "coisas do amor"... Tenho nítida na memória a sua pose de conquista, o olho vela­do, a boca infantil e manhosa, aquela afetação de palpi­tar as narinas à passagem de um perfume. .. Pat! toda essa manobra, toda essa manha em torno do amor — em torno de uma intenção que nem mesmo se pode cha­mar de amor —, irei eu favorecê-las e imitá-las? Pobre Dufferein-Chautel! Às vezes tenho a impressão de que aqui é você o ludibriado e que eu deveria dizer-lhe... dizer-lhe o quê? Que me tornei uma solteirona, sem tentações, enclausurada, à sua moda, entre as quatro paredes de um music hall?

Não, não lhe direi, porque, como na décima lição da Berlitz-School, só sabemos trocar frases elementares, em que as palavras pão, sal, janela, temperatura, teatro, família são bastante utilizadas. ..

Você é um homem, tanto pior! Todos aqui parecem lembrar-se disso, não como eu, mas para felicitá-lo, des­de Blandine, que o contempla com constante satisfação, até Fossette, cujo rasgado sorriso canino está a dizer: "Finalmente! temos um homem em casa — ali está o Homem!"

Pobre Dufferein-Chautel, não sei como deva falar... Hesito entre a minha própria linguagem, que sei um tanto brusca, que nem sempre cuida em completar as frases, mas que procura os termos técnicos — minha linguagem de ex-pedante literária —, e o idioma pobre e vivo, grosseiro, cheio de metáforas, que se aprende no music hall, entremeado de "Conversa fiada!", "Tua fuça!", "Vou dar o fora!". .., "Tá pouco me interessan­do!". ..

À força de hesitar, escolho o silêncio. ..

"Caro Hamond, não sabe quanto me alegro por almo­çar com você! Hoje não tenho ensaio, há sol, há você, tudo de bom!"

Meu velho amigo, que sofre de lancinantes dores reumáticas, sorri, lisonjeado. E nesse momento noto quan­to está magro, envelhecido, muito alto, nariz descarnado e adunco, uma fiel reprodução do Cavaleiro da Triste Figura...

— Creio que já tivemos o prazer de almoçar juntos esta semana. Que excesso de ternura para com a minha velha carcaça, Renée!

— Perfeitamente, hoje estou exuberante! O dia está lindo, estou contente, e... estamos à vontade!

— Que quer dizer com isso?

— Isso mesmo que você pensa: que o Grande-Tolo não está aqui!

Hamond meneia o longo rosto melancólico:

— Decididamente, isto já é aversão!

— Absolutamente, Hamond, absolutamente! Isto não é ter aversão, é ter justamente. .. nada!... E, escute aqui, há vários dias que venho pensando em ser franca com você: não tenho comigo sombra que seja de um sentimento qualquer por Dufferein-Chautel... exceto, talvez, o da desconfiança.

— Bem, já é alguma coisa.

— Nem sequer tenho opinião formada a seu res­peito.

— Nesse caso, terei o prazer de oferecer-lhe a minha. É um homem de bem, sem passado.

— Pois sim!

— Pois sim? Isso já é provocação! Encoraje-o então, contando-lhe o seu passado.

— Era o que faltava! Posso vê-lo, a mão sobre o peito: "Não sou um homem como os outros..." É o que me diria, não é? Sim, nesses momentos, homens e mu­lheres dizem sempre a mesma coisa.

Hamond envolve-me num olhar irônico:

— Não sabe como acho graça, Renée, quando você quer afetar uma experiência que — felizmente — não possui. "Os homens fazem isso... os homens dizem aquilo..." Onde foi arranjar tamanha segurança? Os homens! os homens! Você conheceu muitos deles?

— Um só. E que homem!. ..

— Justamente. Você acusa Maxime porque ele lhe faz lembrar Taillandy?

— Por Deus! Não! Ele não me faz lembrar nada, em absoluto. Nada, é o que lhe digo. Se ao menos fosse espirituoso...

— Bem, os apaixonados são um pouco idiotas. Eu também o era quando amava Jeanne. . .

— E eu também o fui, quando amava Adolphe! Mas era uma idiotice consciente, quase voluptuosa. Você se lembra das noites em que Adolphe e eu jantávamos na cidade e que eu assumia um ar humilde, um ar, como dizia Margot, de moça que se casou sem dote? Meu marido discursava, sorria, sobressaía, brilhava. .. Era absoluto, único. Se me dispensassem um minuto de aten­ção, creio que seria para lastimá-lo. Deram-me bem a entender que, sem ele, eu não era ninguém!

— Oh! ainda assim. . . Você está exagerando um pouco...

— Não é exagero, Hamond! Não proteste! Eu pro­curava, com toda a sinceridade, desaparecer o mais pos­sível. Amava-o tão imbecilmente!

- E eu, e eu! - - diz Hamond acalorando-se. —

Lembra-se de quando a bonequinha da minha Jeanne se punha a emitir a sua opinião sobre os meus quadros? "Henri nasceu consciencioso e fora de moda", declarava ela. E eu não abria o bico!

Rimos contentes — esse remoer de lembranças humi­lhantes e amargas tem o dom de revigorar-nos. . . Por que será preciso que o meu velho amigo estrague este sábado, tão de acordo com as nossas tradições, trazendo à baila o nome de Dufferein-Chautel?

Faço um muxoxo de zanga:

— Basta! Deixe que eu descanse deste senhor, Ha­mond! Que sei dele? Que é correto, muito bem educa­do, que se interessa por cachorros bulls e que fuma cigarros em vez de charutos. Além disso, o fato de estar entusiasmado por mim — sejamos modestos — não. é coisa do outro mundo.

— Sim, senhor, você faz todo o possível para igno­rá-lo!

— Estou no meu direito.

Num gesto de impaciência, Hamond estala a língua, desaprovador:

— Seu direito, seu direito. . . Minha cara amiga, você discute como uma criança, garanto-lhe.

Puxo a mão que ele retinha sob a sua, e, sem dar acor­do do que faço, desando a falar depressa:

— Garante-me o quê? Que o artigo em questão é coisa segura? Que pretende você afinal? Que eu me deite com este senhor?

— Renée!

— Ora! É preciso sermos claros! Você quer que eu faça como todo mundo? Que eu me decida? Este aqui, aquele lá, depois todos!. .. Quererá você turbar-me a paz reconquistada, orientar minha vida para outra preo­cupação que não seja esta áspera, fortalecedora, natu­ral, que é a de assegurar eu mesma a minha subsistên­cia? Ou então aconselha-me um amante, por princípio higiênico, como um depurativo? Por que isso? Sinto-me bem, graças a Deus! Não amo, não amo, não amarei mais ninguém, ninguém e ninguém!

Gritei tão alto essas palavras, que me calei de súbito, confusa. Hamond, menos emocionado, espera que eu me acalme, que o sangue, que me subira às faces, retor­ne lentamente ao coração. . .

— Não amará mais ninguém? Meu Deus! Pode ser verdade. Seria mais triste que tudo... Você, moça, for­te e afetiva... Sim, seria mais triste que tudo. ..

Indignada, quase em prantos, contemplo o amigo que ousa falar-me dessa maneira:

— Oh! Hamond... é você, é você quem me diz isso! Depois do que lhe aconte... do que nos aconteceu, você ainda acreditaria no amor?

Hamond desvia o olhar; fixa na claridade da janela aqueles olhos jovens, jovens dentro da sua figura enve­lhecida, e responde vagamente:

— Sim. . . na verdade, posso dizer que me sinto feliz como estou. Mas isto de andar afirmando, de decla­rar: "Não amarei mais ninguém!" Virgem Santa, não! Não me arriscaria a fazê-lo. ..

Essa estranha resposta de Hamond encerrou nossa dis­cussão, pois não gosto de falar de amor... A mais intencionada licenciosidade não me encabula, mas de amor não gosto de falar... Se perdesse um filho queri­do, creio que nunca mais poderia pronunciar-lhe o nome.

— Podemos jantar juntos hoje à noite, no Olympe

— disse-me Brague no ensaio. — Iremos depois ao Emp'-Clich’ conversar com o pessoal da revista.

Quanto a isso, não há do que desconfiar: não se trata do especial convite para jantar; somos dois colegas e entre colegas estabelece-se um único e perene protocolo

— camaradagem de artistas bane toda e qualquer inten­ção ambígua.

À noite encontro-me com Brague no Olymp's Bar, cuja fama é muito pouco recomendável. Recomendável, não recomendável? Pouco se me dá! Isenta de qualquer obrigação de zelar pelo meu nome, sem apreensão e sem prazer, transponho a porta desse pequeno restaurante montmartrense, calmo das 7 às 10, trepidante pelo resto da noite, numa algazarra que, à primeira vista, parece provir exclusivamente dos gritos, louças e violões. No mês passado, sozinha ou com Brague, jantava algumas vezes aqui antes de ir para o Empyrée-Clichy.

Uma empregada provinciana, calma e impermeável à assiduidade dos chamados, serve-nos esta noite presunto cozido com couves, comida saudável, carregada, forte para os estômagos debilitados das pequenas prostitutas do bairro que, à nossa volta, comem sozinhas, e com aquele ar feroz que os animais e as mulheres têm diante do prato cheio. Ah! nem sempre este recinto é muito alegre. ..

Malicioso, mas intimamente apiedado, Brague faz tro­ça de duas mulheres que acabam de entrar. São jovens, esbeltas, com uns chapéus imbecis oscilando sobre os cabelos frisados. Uma delas é atraente, seu porte de ca­beça é de uma insolência agressiva; metida num vestido de liberty rosa, muito justo, comprado a alguma "contra­bandista", sua magreza parece insurgir-se graciosamen­te. Traz como abrigo, nesta glacial noite de fevereiro, um casaco, que é mais uma espécie de capa azul, tam­bém de liberty, e com bordados de prata, bordados já estragados... Está gelada, doida de frio, os olhos cin­zentos exasperados, mas repelindo qualquer compaixão; está pronta a insultar, a unhar o primeiro que, entre afli­to e condoído, possa dizer: "Pobre menina!"

Não é nada raro, por estes domínios montmartrenses, tal tipo de moças, moças que definham pela miséria e pelo orgulho, que definham estòicamente belas dentro de sua berrante privação. Encontro-as por aqui e por ali, arrastando suas roupas leves de mesa em mesa, nas ceias da Butte, alegres, tocadas, suscetíveis, o dente pronto, nunca doces, nunca meigas, menosprezando o ofício, mas, apesar disso, "trabalhando"! Os homens chamam-nas "malditas carícias" com um riso de benevolente desdém, porque sabem que elas pertencem à raça das que não cedem, das que não confessam nem a fome, nem o frio, nem o amor, e que morrem dizendo: "Não estou doente" — são as que podem sangrar sob os golpes, mas que nem por isso deixam de revidá-los. ..

Sim, conheço-as um pouco e é nelas que penso ao olhar para essa mocinha gelada e altiva que acaba de entrar no Olympe.

Um semi-silêncio esfomeado reina dentro do bar. Dois homens equívocos trocam, de um canto a outro da sala, ditos ferinos, gratuitos. Uma rapariga de pernas curtas, que engole sua hortelã enquanto espera pela aleatória ceia, envia-lhes molemente o seu aparte. Uma cachorra buldogue, prestes a dar à luz, sofre penosamente sobre o tapete puído, o ventre como um balão, cravejado de mamas salientes. . .

Brague e eu tagarelamos, aquecidos pelo calor do gás. Penso em todos os restaurantes medíocres das muitas cidades que nos viram assim amesendados, frouxos, indi­ferentes e curiosos, diante de comidas estranhas. . . Bra­gue faz frente às grotescas vitualhas dos bufês das estra­das de ferro e dos hotéis com um estômago de bronze; quanto a mim, se a vitela burguesa ou a simples perna de carneiro resistem à minha investida, como couraças, recorro ao queijo e à omelete...

— Diga-me uma coisa, Brague, aquele homem que está ali, de costas para cá, não é Stéphane, o dançarino?

— Onde?. . . Sim, é ele. .. com uma "galinha".

E com efeito, é uma tal "galinha", uma tal morena cinqüentona de lábios escuros, que só de vê-la sinto-me escandalizada. .. e como se Stéphane, o dançarino, sen­tisse nosso olhar, vira-se na cadeira para lançar-nos uma dessas olhadelas significativas que, no teatro, servem para exprimir: "Psiu! segredo!", feita de uma maneira tão excessivamente discreta que é capaz de atrair a aten­ção de uma sala inteira.

— Pobre diabo! Está ganhando seu dinheirinho! — cochicha Brague. E chama pela garçonette, pedindo o café, pois "ficamos por aqui".

O café é uma tinta de um negro azeitonado, que deixa nas paredes das xícaras uma tenaz mancha. Mas, como café bom é coisa rara, acabei habituando-me a essas tisanas quentes, amargas, que cheiram a alcaçuz e a qui­na... Para as pessoas com o nosso gênero de vida, a carne é ainda dispensável, mas o café, nunca.. .

Assim que nos servem o nosso, Stéphane, o dançarino, levanta-se — ele patina na revista do Empyrée-Clichy —, imitando sua madura companheira. Sem o mínimo recato, enquanto ela caminha à sua frente, ele esboça o gesto do atleta que "ergue" um peso de 200 quilos, e nós, pusilânimes que somos, damos risada. .. Logo em seguida, deixamos esse lugar taciturno, que chamam, en­tretanto, "lugar de lazer", e onde, a esta hora, tudo cochila sob as luzes mortiças: a cachorra prenhe, as raparigas definhantes, a empregada campônia e o ge­rente de bigodes ensebados...

Fora, o vento glacial que sopra no parque e na Praça Blanche nos reanima e sinto-me maravilhosamente pos­suída daquela febre ativa, daquela necessidade de tra­balhar, uma necessidade misteriosa e indefinida que eu precisaria preencher não importa como: dançando ou então escrevendo, correndo, representando, ou puxando um carro à força de braço...

Como que tomado da mesma vida, Brague diz de repente:

— Sabe, tenho uma promessinha de Salomon, o agen­te... A viagem de que lhe falei acho que vai mesmo sair. Um dia ali, dois acolá, uma semana em Marselha: teremos mais do que isso... Você está pronta para partir a qualquer momento?

— Eu? Até agora, se fosse preciso! Por que não? Ele atira-me, de esguelha, uma rápida e viva olhada.

— Bom, não sei... por nada... Às vezes. . . Cada um sabe de sua vida...

Ah! Já sei! Meu colega lembrou-se de Dufferein-Chautel e acredita que. .. Rio inesperadamente e ele deve estar mais perdido e mais emaranhado, mas é que esta noite me tem tão travessa, tão alegre, leve, quase já em viagem. . . Oh! sim. Partir, partir outra vez, esque­cer quem sou, que cidade me abrigou ontem, pensando o menos possível, refletir e reter somente a beleza da paisagem que vai mudando, fugindo ao longo da linha, a laguna plúmbea onde o céu azul se reflete verde, a flecha recortada de um campanário coberto de ando­rinhas. ..

Um dia, lembro-me. .. deixava Rennes, era uma ma­nhã de maio... O trem seguia, muito lentamente, por uma via em reparo, ladeada de uma mata de espinheiros brancos, de macieiras róseas que projetavam no chão uma sombra azul, de ternos salgueiros com suas folhas de jade... De pé, à beira da mata, uma criança olhava-nos passar, uma mocinha dos seus doze anos e cuja figu­ra, tão semelhante à minha, não pôde deixar de causar-me espanto. Muito séria, sobrolho carregado, aquelas faces arredondadas, morenas — como foram as minhas —, os cabelos um pouco descorados pelo sol, segurava um ramo nas mãos bronzeadas e arranhadas — eram minhas aquelas mãos.. . E o ar insociável, e aqueles olhos sem idade, quase sem sexo, que pareciam levar tudo a sério — os meus, realmente os meus!... Sim, de pé à beira do espinheiral, resplandecendo ao sol levante, minha infância feroz olhava-me passar. ..

— Quando você quiser, já sabe!

A voz seca do meu colega acorda-me. Estamos diante do Emp'-Clich cuja fulgurante fachada em luzes malva dá para ferir, como diz Brague, até "os confins do olho". Ganhamos o porão e aquele odor conhecido, gesso, amo­níaco, creme Simon e pó-de-arroz, provoca-me uma náu­sea quase agradável... Mas hoje viemos para ver os colegas que trabalham na revista, e não a revista!

Encontro meu camarim ocupado por Bouty e o de Brague tomado pela ofuscante presença de Jadin, que desempenha agora três papéis na Revista do Emp'-Clich'.

— Em que boa hora — nos grita ela. — Vocês che­gam justamente para a minha canção Paris la Nuit!

Valha-me Deus! Vestiram Jadin de rameira!... Saia preta, corpete preto cavado, meias rendadas, fita verme­lha no pescoço, e, na cabeça, a tradicional peruca capa­cete, onde sangra uma camélia! Nada resta, com efeito, da graça plebéia e atraente desta mocinha de ombros caídos...

Era de esperar: transformam, rápida e seguramente, minha arrufada e fresca apache numa mulherzinha de café-concerto! Entre os "Como é?... Que há de no­vo?. . . Tudo bem?", vejo-a agitar-se pelo camarim, consternada ao observar que Jadin, como todo mundo, anda como uma "galinha", ventre para dentro e papo para fora, que "emposta" a voz quando fala e que, desde que chegamos, ainda não disse o seu palavrão predile­to: "Merda!"

Bouty, que irá dançar com ela a indispensável "bar-carola", exulta em silêncio debaixo do seu boné de seda. Imagino-o a ponto de dizer-nos: "Que tal?", apontando a pequena criatura com um gesto de proprietário... Já a teria conquistado? Adivinho que se preocupa bem menos com a vulgaridade de Jadin e ei-los agora, ambos, pensando em apresentar um "número sensacional" e òtimamente remunerado, no Crystal-Palace de Lon­dres!

Como tudo muda depressa! As mulheres sobretu­do... Esta que aqui está, dou-lhe alguns meses para que perca todo o seu apimentado, seu patético natural e in­consciente. Será que um sonso atavismo de zeladores, de pequenos comerciantes cúpidos, irá apoderar-se um dia desta louca Jadin de dezoito anos, tão pródiga de si pró­pria e do seu pobre dinheiro? Por que, diante dela, vêm-me à lembrança aqueles acrobatas alemães de nome inglês, os Bells, que Brague e eu conhecemos em Bruxe­las? Sim, eram incomparáveis em força e graça e seus calções cereja realçavam a pele clara... Habitavam, os cinco, dois quartos sem móveis, onde cozinhavam para si próprios sobre um tosco fogareiro... E não havia dia — segundo nos contou o empresário — em que não se dessem a confabulações misteriosas, a meditações so­bre os jornais financeiros, a discussões selvagens a pro­pósito de minas de ouro, de Sosnowice e do Crédito Pre­dial do Egito! Dinheiro, dinheiro, dinheiro...

Com sua oca tagarelice, Jadin anima a nossa visita que, aliás, precisa ser animada. Depois de Bouty, que está um pouco menos magro, nos ter posto a par de sua saúde e anunciado que "a coisa está embalada", para o próximo inverno, eis-nos mudos, constrangidos, amigos que o acaso juntou e torna a separar. Toco nas pastas e nos lápis de pintura que estão sobre a penteadeira, com uma excitação gulosa, comichão de maquilagem, conhe­cido por todos os que já enfrentaram o palco... A cam­painha soa, felizmente, e Jadin pula:

— Fora daqui! Subam! O operador lhes dará a frisa, e vocês vão ver se faço ou não êxito com a minha can­ção Paris la Nuit!

O sonolento operador cede-me, de fato, seu tamborete de palha e seu cubiculozinho. Sentada, nariz colado ao gradil, onde é colocado um quadro de luz quente e aver­melhada, posso, invisível, gozar a vista de duas meias fileiras da platéia, três camarotes e mais uma frisa. ..

Uma frisa onde distingo uma dama com um grande cha­péu, pérolas, anéis, lantejoulas, e dois homens que são Dufferein-Chautel mais velho e Dufferein-Chautel mais moço, ambos de preto e branco, escovados, brilhante­mente impecáveis. A luz alcança-os em cheio e, vistos de meu cubículo, adquirem uma extraordinária impor­tância.

A mulher não é uma mulher, é uma dama, a Senho­ra Dufferein-Chautel mais velho, suponho... Meu na­morado parece divertir-se muito mais com o desfile das trapeiras, das condutoras dos coches ambulantes que se sucedem e se vão, depois de uma pequena trova e de um negligente passinho de dança.

Por fim, Jadin, que se anuncia a si própria:

— "E eu sou a rainha do Paris noturno: eu sou a Borboleta das Ruas!"

Vejo meu namorado inclinar-se, muito vivamente, sobre o programa, depois levantar o nariz para esqua­drinhar minha pequena colega, desde a nuca até as meias rendadas. . .

Por singular inversão, é ele quem se torna para mim o centro do espetáculo, pois que de Jadin vejo somente o perfil, ao qual o colar fronteiro das lâmpadas empres­ta um nariz achatado, como que roído pela luz, uma narina negra, lábio superior cortado pela fileira brilhan­te dos dentes...

Com esse retesado pescoço de gárgula, atado com um trapo vermelho, essa fresca criança assemelha-se, de re­pente, a não sei que luxurioso espectro de Ropas.

Findo o seu refrão, os aplausos fazem-na voltar ao palco duas vezes, saltos unidos, dedos nos lábios, e meu namorado, com suas grandes mãos morenas, aplaude-a tão entusiàsticamente que, antes de sumir de vez, ela lhe atira, queixo para cima, um beijinho especial.

— Então, está dormindo? Já disse duas vezes que não

pode continuar aí: temos que colocar o quadro de Heliópolis!

— Sim, sim. .. Vou sair. ..

Parece-me, na verdade, que estava adormecida, que estou saindo de um desses minutos sem pensamento, desses minutos que precedem o desencadear de uma idéia penosa, que preludiam um ligeiro desabamento moral. ..

"Bom, é preciso que você tome uma decisão. Interes­sa ou não interessa?"

Aí estão os dois, Brague e Salomon, ambos a impe­lir-me com a voz e com o olhar. Um sorri, para tranqüi­lizar-me, o outro limita-se a rosnar. Uma pesada mão, a de Salomon, pousa no meu ombro:

— Creio que nada falta para que seja um contrato completo!

Tenho o contrato datilografado nas mãos e releio-o pela décima vez, receando descobrir, em suas breves quinze linhas, a emboscada disfarçada, a cláusula ambí­gua . . . Releio-o principalmente para ganhar tempo. De­pois olho as janelas, as cortinas de tule engomado e, atrás delas, o pátio triste e limpo. . .

Pareço refletir, mas não reflito. Hesitar nunca foi refletir. .. Distraidamente, faço um inventário deste es­critório onde já estive tantas vezes: estilo inglês, ornado com fotografias estrangeiras: bustos de damas decotadas, com os cabelos muito penteados, sorriso vienense; homens, em roupas tais, que é difícil depreender-se se são cantores ou acrobatas, mímicos ou escudeiros. . .

Quarenta dias de tournée, a 150 francos por dia, ao todo. . . seriam 6 000 francos. Bom negócio. Mas. ..

— Mas — digo finalmente a Salomon — não pense que vou fazer-lhe presente de 600 mangos. Dez por cen­to, no fim das contas, é puro assassínio!

Encontrei a palavra e a arte adequadas ao momento, o vocabulário que me convém. Salomon torna-se verme­lho, da cor dos seus cabelos: até seus olhos insondáveis

enrubescem; mas da sua grossa boca amena precipita-se uma torrente de súplicas quase amorosas:

— Minha querida! Minha flor! Não comece a dizer tolices!. .. Faz um mês, um mês, que venho trabalhan­do, idealizando o seu itinerário! Pergunte a Brague! Há um mês que luto feito doido, para conseguir para você um estabelecimento de primeira ordem, de primeiríssi­ma ordem!... um cartaz como. . . como o de Madame Otero, veja só!... E é assim que você me agradece! Você não tem coração? Dez por cento? Mas você devia dar-me doze, está ouvindo?

— Estou ouvindo, sim. Mas desista dos 600 mangos: não serão seus. Você não os vale.

Os olhinhos ruivos de Salomon amiúdam-se mais ain­da. Sinto a sua mão sobre o meu ombro acariciando-o pesadamente, num desejo de esganar-me:

— Ah! ingratidão humana! Está vendo, Brague? Uma criança a quem arranjei o primeiro contrato!

— Uma criança bem crescidinha, meu velho, e que precisa renovar seu guarda-roupa! Minha roupa de tra­balho que usei na Emprise está no fim, sabe disso? O vestuário para a mágica custa 30 luíses e mais os sapa­tos, o véu da dança, enfim, mais todos os acessórios ne­cessários. Bom, isso você me paga à parte, não é, raposa velha?

— Mas, Brague, você está vendo? — repete Salo­mon ... — Até faz com que, diante de você, eu me en­vergonhe por ela! Que conceito você irá fazer de sua pessoa?

— Conceito satisfatório — diz Brague tranqüilamen­te — se ela aceitar a tournée e negativo se ela lhe der os 600 francos.

— Está bem. Entreguem-me os papéis. Salomon tira a sua mão gorda de cima do meu ombro.

Contrariado e pálido, volta à escrivaninha de estilo in­glês, sem nos dirigir um olhar.

— Ouça, Salomon, entre nós não deve haver fitinhas ou cerimônias! Eu sou pior do que sarna quando enten­do que devo sê-lo, e se me aborrecem, então, sou capaz de mandar qualquer negócio às favas!

— Minha senhora — responde Salomon digno e glacial —, acaba de falar-me como a um homem despre­zível e isso me calou fundo!

— Ápice do drama — intervém Brague, sem elevar a voz. — Não perde a mania de gabolice! Seiscentos dela, 450 meus. .. está nos confundindo com os acro-. batas alemães! Dê-me as folhas: por enquanto nada assi­naremos. Peço 24 horas para consultar a família.

— Então, chega! E vão para o diabo! — lança Salo­mon com uma impetuosidade tartamudeada. — Com quem pensa que estamos lidando? São diretores de esta­belecimentos de alta classe, gente que não gosta de im­passes, gente que...

— ... que tem o fogo no traseiro, sei disso! — inter­rompe meu camarada. — Muito bem! Diga-lhes que amanhã tornarei a passar por aqui. .. Você vem comi­go, Renée?. .. Salomon, sete e meio por cento para nós dois. E acho que isto é ser grande e generoso.

Salomon enxuga os olhos secos e a fronte úmida:

— Sim, sim, vocês são dois bons malandros!

— Salomon, não se pode dizer que você seja lindo, lindo...

— Deixe-o em paz agora, Renée, que esse homem é um amor! Ele fará o que quisermos. Além do mais, ele gosta de você. Não é, Salomon?

Mas Salomon emburrou. Dá-nos as costas como um menino malcriado, e responde numa voz chorosa:

— Não. Vão embora. Não posso mais vê-los. Estou sinceramente magoado. Para ser franco, desde que me conheço por empresário, é a primeira vez que me infli­gem semelhante humilhação. Saiam, saiam! Preciso ficar sozinho, E não quero mais vê-los.

— Isso mesmo. Até amanhã!

— Não, não! Está tudo acabado entre nós três!

— Cinco horas?

Sentado à secretária, Salomon ergue o rosto róseo lacrimoso:

— Cinco horas? Isso, ainda por cima teria que faltar ao meu encontro no Alhambra, por causa de vocês dois! Não me apareçam antes das 6, estão ouvindo?

Desarmada, aperto a sua pata curta, e saímos.

Como o congestionamento da rua torna impossível qualquer troca de palavras, seguimos calados. Receio a relativa solidão do Bulevar de Malesherbes, onde Brague vai começar a discutir e a convencer-me. Mas co-vencida eu já estou, e até decidida a partir... Hamond não ficará contente. E Margot irá dizer-me: "Você tem toda razão, minha filha!", sem pensar muito no que está dizendo, mas dar-me-á excelentes conselhos e três ou quatro caixas de remédios contra dor de cabeça, prisão de ventre, febre...

É verdade; e Dufferein-Chautel, que me dirá a respei­to? Se há coisa que me diverte, é evocar a sua figura. Consolar-se-á com Jadin, pronto. .. Partir... Mas quando, então?

— A data, Brague? Não prestei atenção à data, ima­gine você!

Brague dá de ombros e coloca-se ao meu lado. Entre um enxame de transeuntes, esperamos, submissos, que o bastão branco corte a fila de automóveis e abra-nos uma passagem, do Passeio Haussmann até o abrigo da Praça Saint-Augustin.

— Se tivéssemos de contar só com você, minha cara amiga, para tratar dos contratos... A Senhora faz caradura, a Senhora encoleriza-se, a Senhora quer isso, a Senhora quer aquilo, e é a Senhora que depois me vem dizer: "Imagine! não prestei atenção à data!"

Deferente, deixo-o saborear sua superioridade. Tratar-me como a uma novata, como a uma aluna que co­mete ratas é, de fato, um dos maiores prazeres de Bra­gue. Sob a batuta do grilo, corremos até o Bulevar Ma­lesherbes . ..

— De 5 de abril a 15 de maio — finaliza Brague. — Algum senão? Algo que a impeça?

— Não, nada. ..

Subimos o bulevar, meio sufocados pelo tépido vapor que se levanta do calçamento molhado. Uma curta chu­va, quase tempestuosa, deu início ao degelo; nesse enegrecido calçamento as luzes se refletem, alongadas, ondulantes. O alto da avenida se perde numa fumaça indis­tinta, acobreada por um resto de crepúsculo... Invo­luntariamente, eu me detenho, volto-me, olho em torno, procurando... o quê? Nada, não há nada que me retenha aqui, ou alhures. Como uma flor clara que emergis­se da água obscura, nenhum rosto querido surgirá da bruma, para gritar ternamente: "Não se vá!"

Partirei portanto outra vez, outra vez mais. O dia 5 de abril está longe ainda — estamos a 15 de fevereiro —, no entanto, tenho a impressão de já haver partido. Ao meu ouvido desatento, soa a voz de Brague, enume­rando nomes de cidades, de hotéis, e cifras, cifras. ..

— Está-me ouvindo, pelo menos?

— Sim.

— Vai fazer alguma coisa até 5 de abril?

— Que eu saiba, não!

— Não tem em vista alguma pequena peça, uma patacoada qualquer, gênero mundano, que pudesse ocupá-la durante esse tempo?

— É, não tenho. ..

— Se você quiser, eu lhe arranjarei um trabalhozinho para a semana.

Agradeço-lhe e despeço-me comovida... Sei o que o companheiro está me ajudando a evitar: a pane, a ociosidade que desmoraliza, que empobrece e perturba os comediantes inativos. ..

Mal ponho os pés na sala de estar, três cabeças se le­vantam: a de Hamond, a de Fossette, a de Dufferein-Chautel. Muito juntinhos os três, sob a luz rosa, em vol­ta duma pequena mesa, jogavam o écarté enquanto es­peravam pela minha chegada. Fossette sabe jogar cartas à moda dos buldogues: trepada numa cadeira, vai se­guindo o vaivém das mãos, pronta a abocanhar no vôo a primeira carta atirada mais longe.

Hamond exclama: "Enfim!" Fossette: "Uah!" e Dufferein-Chautel não exclama nada, mas, em compensa­ção, pouco faltou para que latisse também.. .

O acolhimento cordial, a luz discreta, logo depois de haver saído daquele nevoeiro fétido, iluminam-me o co­ração, e é com um ímpeto de afetuosa alegria que co­munico:

— Boa noite! Minha gente, estou de partida.

— Vai embora? Mas como? Quando?

Sem titubear diante da entonação breve e inquisitória que o meu namorado toma involuntariamente, descalço as luvas e tiro o chapéu.

— Conto-lhes tudo enquanto jantamos. Fiquem am­bos: é quase um jantar de despedida, sim, já poderia ser um jantar de despedida. .. Estejam à vontade, conti­nuem o seu joguinho, vou mandar Blandine comprar costeletas e vou mudar de roupa: estou exausta!

Quando volto, perdida nas pregas de um quimono de flanela rosa, parece-me que tanto Hamond como Dufferein-Chautel têm um ar muito despreocupado, de quem já houvesse resolvido qualquer coisa. .. Que importa? O meu adorador desfruta do otimismo que esta noite abrange a natureza toda: convido-o a "brindar à tournée", oferecendo-nos o Saint-Marceaux do merceeiro vi­zinho. Ele corre, porta afora, sem chapéu mesmo, e logo volta, com duas garrafas sob os braços. ..

Febril, meio bêbada, deito ao meu namorado um olhar indefeso que, segundo creio, ele nunca viu antes. Rio muito alto, riso que ele não conhece, e atiro sobre o seu ombro a ampla manga do quimono, que nesse gesto descobre, como ele diz, um braço "cor de carne de bana­na" ... Sinto-me atenciosa, gentil, e por pouco seria ca­paz de oferecer-lhe a face: que mal pode haver nisso? Vou-me embora mesmo. .. Não verei mais esse ra­paz ... Daqui a quarenta dias? Mas, até lá, estaremos, sem dúvida todos mortos!

Pobre apaixonado, como tenho sido bem má para com ele, apesar de tudo!. .. Amável, correto, bem penteado, elegante. .. eis-me a considerá-lo. .. como alguém a quem estivesse vendo pela última vez. Sim, pois ao vol­tar, provavelmente, eu já o terei esquecido, e me terá esquecido, ele também... com Jadin, ou com qualquer outra... de preferência com a pequena Jadin.

— Ah! Aquela pequena Jadin, hein?

Lancei em altas vozes esta exclamação que me pare­ceu supremamente engraçada.

Meu namorado, que ri com dificuldade esta noite, olha-me, franzindo as suas sobrancelhas de carvoeiro:

— Que é que há com a pequena Jadin?

— Outro dia, no Emp'-Clich vi, pelos seus aplausos, que ela deve ter-lhe agradado bastante, hein?

Dufferein-Chautel inclina-se, intrigado. E em seu ros­to, que sai da zona de sombra, distingo o matiz de suas pupilas castanhas, fulvas e cambiantes como certas ága­tas do Dauphiné. ..

— Você estava na sala? Eu não vi!

Esvazio minha taça, antes de eu replicar, misteriosa:

— Ah! aí está. ..

— Ora veja! Você estava lá?. .. Sim, é muito gra­ciosa a pequena Jadin. Você a conhece? Sim, sim, é mes­mo muito graciosa.

— Mais do que eu?

Se, em vez de cair num silêncio estupefato, ele me houvesse dado uma bela resposta a esta pergunta impru­dente, imbecil e indigna de mim, não poderia dizer que não a houvesse merecido. Ah! tenho vontade de surrar-me!... Mas, refletindo melhor. . . que importância po­de ter? Vou-me embora mesmo. .. Ponho-me a contar o meu itinerário: volta completa à França, atuando nas grandes cidades, e um cartaz como. . . como o de Madame Otéro! E belos recantos que poderemos ver o lindo sol meridional, e. .. e. ..

O champanha — três taças, não é preciso mais — desnorteia finalmente minha tagarelice feliz. Falar, que gasto de energias para quem costuma ficar calada duran­te dias inteiros!. .. Agora, meus amigos fumam, e, atrás do véu de fumaça, recuam, recuam... Como já estou longe, afastada, dispersa, refugiada dentro da viagem... Suas vozes estão sumindo, perdendo-se, misturando-se ao resfolegar dos trens, aos apitos, à vaga embaladora de uma orquestra imaginária... Ah! a doce partida, o doce sono, que me leva a uma margem em que se aporta uma única vez. ..

— Como? Seis horas? Está bem, obrigada... Ah! é você?

Eu estava dormindo, sonhava com viagem: que o em­pregado do hotel batia à porta do meu sonho, gritando que eram seis horas... E eis que desperto sentada, ani­nhada no velho diva de casa, onde a fadiga e a leve be­bedeira deixaram-me largada. De pé à minha frente, o Grande-Tolo parece ter a altura do teto. Meus olhos, abertos num repente, piscam sob a lâmpada, e as bordas do quebra-luz e as arestas iluminadas da mesa ferem-me a vista como se fossem lâminas reluzentes...

— É você? E Hamond, onde está?

— Hamond acaba de sair.

— Que horas são, então?

— Meia-noite.

— Meia-noite!

Dormi mais de uma hora!

Num gesto maquinai, penteando-os com os dedos, procuro arrumar meus cabelos desalinhados; puxo até a ponta dos chinelos a barra da minha roupa. ..

— Meia-noite? Por que não foi com Hamond?

— Pensamos que, talvez, ao acordar se sentisse assus­tada ou precisasse de alguma coisa. . . e sozinha aqui. . . Então, resolvi ficar.

— Eu estava exausta, compreende. . .

— Compreendo muito bem.

Que tom seco é esse, de quem parece ralhar? Faz-me cair das nuvens! Sim, senhor, se eu fosse medrosa — a sós com esse indivíduo morenão, que me fala lá do alto —, aí estaria uma bela ocasião para gritar por socor­ro!... É possível que também ele tenha bebido, quem sabe...

— Diga-me uma coisa, Dufferein-Chautel, você não estará indisposto?

— Não, não estou indisposto.

Louvado seja Deus, até que enfim, ele põe-se a andar: não agüentaria muito vê-lo tão alto, tão perto de mim!

— Não estou indisposto, estou danado.

— Ah! ah!

Reflito por um momento e acrescento, muito sonsa:

— Porque vou embora? Dufferein-Chautel estaca:

— Porque vai embora? Não estava pensando nisso. Enquanto você ainda estiver por aqui, qual a necessida­de de pensar que irá partir? Ora, não é por isso. Aborre­ci-me. E estou zangado porque você dormiu.

— Ah!,é?

— É insensato adormecer dessa maneira, diante de Hamond e mesmo diante de mim! Vê-se bem que não sabe como fica quando dorme; ou, então, fê-lo de caso pensado, o que seria indigno da sua parte!

Senta-se bruscamente, como se se quebrasse em três, muito pertinho de mim, rosto à altura do meu:

— Quando você dorme, não parece que está dormin­do. Parece... é isso! parece haver fechado os olhos pa­ra esconder uma alegria mais forte do que você! Exa­tamente! Não tem o rosto de uma mulher adormeci­da... Enfim, bom Deus, creio que você compreende o que eu quero dizer. É revoltante. Quando penso que te­nha talvez podido dormir assim, e diante de uma pilha de gente, nem sei o que tenho vontade de fazer.

Todo oblíquo sobre a frágil cadeira, procura ocultar o rosto transtornado e sulcado, como se a explosão de cólera acabasse de fendê-lo, por duas grandes rugas, uma na testa, outra ao longo da face. Não me causa medo a sua atitude, pelo contrário: é-me grato reencontrá-lo sin­cero, aquele mesmo homem que, há dois meses atrás, entrou no meu camarim.

Ei-lo, diante de mim, com seu furor infantil, sua tei­mosia bestial, a sinceridade calculada, eis o inimigo que reaparece, tormento meu: o amor. Não há com que me enganar. Essa fronte, esses olhos, essas mãos convulsas que se apertam uma contra a outra, sim, já vi isso no tempo em que Taillandy me desejava.

Mas que fazer deste aqui? Não me ofende, e nem mes­mo — ou tão pouco — me comove. Que fazer? Que lhe responder? O consentimento seria menos difícil do que este silêncio intolerável. Se ele se levantasse para ir em­bora . .. mas nem se mexe. .. Mantenho-me imóvel, te­mo que o menor movimento, o mais leve suspiro, que a mais imperceptível ondulação da minha roupa seja o suficiente para instigar o meu adversário — não torna­rei a chamá-lo namorado, não, não, ele me quer demais!

— É tudo o que tem para dizer?

O som da sua voz, já mais doce, causa-me um tão vivo prazer que sorrio, livre do silêncio irrespirável.

— Céus! Na verdade, não vejo. ..

Ele volta-se para mim, com aquela graça estabanada dos grandes cachorros:

— É, na verdade, você não vê. .. Oh!, sim, você tem um especial talento para não me ver! Desde que se trate de mim, você não vê, não vê nada. Mesmo que eu esteja ao seu lado, você fala, olha, sorri sem me ver, como se eu fosse transparente, surdo e mudo. E eu faço de conta que não vejo que você não me vê. Como é perverso! Co­mo é digno de você e de mim!

— Mas, escute, Dufferein-Chautel...

— E você me chama Dufferein-Chautel! Sei muito bem que é um nome ridículo, nome de deputado, de in­dustrial ou de diretor de caixa de desconto. Não é culpa minha!... Sim, sim, ria à vontade... É mais uma opor­tunidade — ajunta ele mais baixo — que lhe dou para rir...

— Então, como quer você que eu lhe chame? Dufferein, Chautel, ou Duduffe? ou... Maxime simplesmen­te, ou Max?... Oh! quer dar-me, por favor, o espelho de mão, ali, na mesinha, e também a esponja de pó? De­vo estar com uma cara!... O champanha, o sono e sem pó no nariz!...

— Para que isso, agora? — pergunta ele com impa­ciência. — Para quem quer você empoar-se, a estas ho­ras da noite?

— Em primeiro lugar, para mim. E depois, para vo­cê.

— Para mim, não é preciso. Você me trata como um homem que lhe faz a corte, quando eu sou simplesmente o homem que a ama.

Olho-o mais desconfiada do que nunca, desconcerta­da, por encontrar neste homem, quando passou a tratar-se de amor entre nós, uma inteligência e uma desenvol­tura especiais, muito bem escondidas sob a sua aparên­cia de Grande-Tolo. Aptidão para o amor, sim, é o que adivinho nele, e razão pela qual ele me surpreende e me embaraça.

— Diga-me, Renée, diga-me francamente. .. saber que a amo lhe é odioso, indiferente, ou vagamente agra­dável?

Ele não é ultrajante, nem humilde, nem queixoso, na­da tímido e nada astuto. .. Encorajada, imitando a sua simplicidade, respondo-lhe:

— Nada lhe posso dizer a respeito; não tenho abso­lutamente noção alguma.

— É justamente o que eu pensava — diz gravemen­te. — Então. ..

— Então?

— O melhor que tenho a fazer é ir-me embora.

— É meia-noite e meia.

— Não, você não compreendeu o que eu quis dizer. Refiro-me à resolução de deixar Paris, não mais revê-la!

— Deixar Paris? Por quê? — pergunto-lhe honesta­mente. — Não é necessário. Não o proibi de vir cá, de continuar a ver-me.

Ele dá de ombros:

— Oh! Eu sei o que sinto. Quando a coisa não vai bem, quando tenho... aborrecimento, enfim, vou para minha casa.

Ele pronunciou "minha casa" de uma maneira provin­ciana, muito terna...

— É bonito, lá?

— Sim. É a floresta, muitos pinheiros, alguns carva­lhos. Gosto muito do corte fresco. Sabe, quando abatem os bosques e restam somente as árvores podadas, as grandes clareiras onde se fez o carvão e onde crescem morangos no verão seguinte...

— E junquilhos. ..

— E junquilhos. .. E dedaleiras também. Você as conhece? São assim altas, quando a gente é criança cos­tuma bolir nos seus sininhos...

— É, eu sei. ..

Ah! O meu lenhador das Ardenas não é um brilhante narrador, mas eu vejo tão bem o que ele conta!

— Costumo ir para lá no verão, de automóvel. No outono, vou para caçar um pouco. Na propriedade de minha mãe, naturalmente. A mãe Nunca Pára — diz rindo. — Corta, corta, serra e vende.

— Oh!

— Sim, mas não há perigo de estragar a floresta, isso não. Conhece madeira, sabe do assunto como um ho­mem, melhor do que um homem!

Aliviada, contente de que ele me tenha esquecido por instantes, ouço-o falar, como um digno lenhador que dis­corresse sobre a sua floresta material. Já não me lembra­va de que ele era de Ardenas, e ele não cuidava de intei­rar-me do amor que votava à sua terra. Explica-se agora o seu ar tolo. É porque suas roupas parecem sempre "trajes de festa", denotando aquela jequice indelével e simpática do belo camponês endomingado...

— ... E, se você me manda de volta, Renée, minha mãe compreenderá logo que vou à casa para "curar-me", e vai querer casar-me, outra vez. Veja a que me expõe!

— Pois deixe-se casar.

— Você não está falando sério, está?

— Por que não? Por ter sido vítima de uma experiên­cia nefasta? Que pode isso provar? Você deveria casar, assentar-lhe-ia muito bem. Aliás, já tem um ar de casa­do, leva o celibato dentro desses ternos de jovem pai de família — vê-se que adora a intimidade do lar, que é afetuoso, ciumento, cabeçudo, preguiçoso como um es­poso mimado, déspota no fundo e monógamo de nascença!

Estupefato, meu namorado encara-me sem nada di­zer, depois começa a saltitar.

— Sou tudo isso! — grita. — Sou tudo isso! Ela acertou! Tudo isso. Tudo isso!

Corto secamente seus gritos e seus gestos:

— Ora, fique quieto! Que é que lhe aconteceu? Ser egoísta e, em suma, preguiçoso e borralheiro dá-lhe von­tade de dançar?

Muito dócil, ele se aquieta, mas seus olhos de cão pas­tor fixam-se em mim com uma sagacidade vitoriosa.

— Não. É-me indiferente ser tudo o que você acaba de dizer: o que me dá vontade de dançar é que você o saiba!

Ah! que parva eu sou! Ei-lo triunfante, de posse da minha confissão, a confissão de minha curiosidade, se não de um interesse mais vivo. .. Ei-lo glorioso, trêmu­lo do desejo de abrir-se ainda mais. Se ousasse, gritaria sem dúvida: "Sim, sou isso tudo! Dignou-se notar a mi­nha presença, enquanto eu desesperava, ansiava por existir a seus olhos! Olha-me ainda? Pois descubra-me todo inteiro, invente-me fraquezas, ridículos, encha-me de vícios imaginários... O que me importa não é que me conheça, tal como sou: mas que crie seu apaixonado a seu bel-prazer, para que depois — como um mestre que retoca e refaz a obra medíocre de um aluno queri­do —, sorrateira e gradativamente, depois, colocarei aí minha aparência!"

Sinto-me tentada a anunciar em altas vozes o seu pen­samento. .. Não, atenção! Iria cometer mais um desati­no. Isto não iria confundi-lo, mas deleitá-lo, e escutaria maravilhado a sua adivinha, louvaria a segunda vista que o amor concede!. .. Que espera ele presentemente? Que eu caia em seus braços? É possível, nada causa sur­presa a um homem apaixonado. Ah! Oxalá estivesse lon­ge... Luto contra a necessidade de repousar, de distender-me, de levantar a mão, de rogar: "Entrego os pontos! Chega! Não conheço o jogo. Quando estiver mais disposta, recomeçá-lo-emos; não tenho forças para segui-lo, você está vendo que escorrego em todo barran­co, todo golpe me acerta..."

Seus olhos alertas vão e vêm ágeis, de minhas pálpebras à minha boca, de minha boca às minhas pálpebras, e parecem ler meu rosto. .. Súbito, ele levanta-se e des­via-se, com uma brusca discrição:

— Adeus, Renée... — diz numa voz sumida... — Peço-lhe perdão por ter ficado até tão tarde, mas Hamond havia-me recomendado que...

Protesto com um embaraço mundano...

— Ora, não há o que desculpar. .. pelo contrário...

— O zelador daqui tem o sono muito pesado?

— Espero que não...

Estamos ambos tão apreensivos com uma tal bagate­la, que retomo um pouco da minha alegria:

— Espere — digo de repente. — Prefiro que não acorde o zelador: você vai sair pela janela...

— Pela janela? Oh! Renée. ..

— É andar térreo.

— Sei disso. Mas você não tem medo de que. .. pos­sam ver-me? Um inquilino pode dar de entrar justamen­te nesse momento. ..

— E que me importa?

Pronto! Eis-me a dar respostas, a dar de ombros, a mostrar-me tão desdenhosa e tão indiferente, que ele nem chega a alegrar-se, a achar graça na proeza. Afinal, esse tipo de saída à 1 hora da madrugada pela janela do meu quarto de dormir — ora, faça-me o favor! — era caso para despertar-lhe um júbilo de estudante. Ah! esta mocidade. ..

— Salte! Isso! Adeus!

— Até amanhã, Renée?

— Como quiser, meu amigo. ..

... Esta mocidade... E, no entanto, este homem tem 33 anos!... E eu também... Trinta e quatro den­tro de seis meses...

Ouvi-o correr pela calçada, sob a chuva fina e penetrante que rega o pavimento e molha o peitoril da jane­la, onde me quedo debruçada, como uma amante... E, todavia, jaz intato, atrás de mim, o grande leito banal e fresco, coberto de um lençol sem uma ruga, que a mi­nha resignada insônia, por certo, nem chegará a amas­sar.

Ele se foi. Mas voltará amanhã, nos dias que se forem seguindo, pois dei-lhe a minha permissão. Virá quase feliz, acanhado, cheio de esperança, com o ar de quem diz: "Nada lhe peço", o que, ao fim de certo tempo, ser-me-ia tão exasperante quanto a cantilena de um mendi­go... Mas era agora, e sem que houvesse ainda nenhum perigo, a providencial ocasião para despachá-lo, ferindo-o com uma recusa, e que lá se fosse ele com seu talho fresco e bem curável!.. .

No quadrado iluminado da minha janela, a chuva como uma moldura úmida caía fina e branca sobre o fundo escuro da rua. ..

Fraquejei, confesso que fraquejei, permitindo que este homem viesse amanhã, cedendo ao desejo de ter nele, não um namorado, nem um amigo, mas um ávido espec­tador da minha vida e da minha pessoa. "É preciso", dis­se-me um dia Margot, "que se envelheça terrivelmente, para renunciar a essa vaidade de viver diante de al­guém!"

Estaria sendo sincera se porventura afirmasse que, há algumas semanas, não me tenho comprazido com a aten­ção que me dispensa esse espectador apaixonado? O meu mais vivo olhar, o meu mais franco sorriso, tenho-os re­cusado, como tenho velado, ao falar-lhe, o som da minha voz, como tenho fechado, ao olhá-lo, todo o meu rosto, mas. .. Mas eu não faria isto para que ele constatasse, triste e apático, que todas as minhas reticências lhe eram endereçadas e que, por sua causa, eu me obstinava em me pôr tão pouco em evidência? Não há dissimulação que não encerre a sua parcela de coquetismo e o enfearse requer a mesma precaução, a mesma vigilância que se dispensa ao enfeitar-se.

Se, oculto na sombra, meu apaixonado espia minha janela aberta, deve sentir-se orgulhoso, mas porque tem motivo para isso! Não o lastimo, em absoluto, não o de­sejo, em absoluto, mas penso nele. Penso nele, como se estivesse aquilatando a minha primeira derrota. ..

A primeira? Não, a segunda. Lembro-me de uma noi­te — ah! que recordação peçonhenta! e como maldigo ressuscitá-la a esta hora! —, noite em que me debruçava assim mesmo, em que me debruçava sobre um jardim invisível. Meus longos cabelos pendiam, como uma cor­da de seda, para fora do balcão. .. A certeza do amor acabava de revelar-se em mim, e, em vez de enfraque­cer-me, minha força adolescente carregava-a com orgu­lho... Nem a dúvida, nem mesmo a mais leve melan­colia empanaram aquela noite triunfal e solitária, coroa­da de glicínias e de rosas!. .. Aquela cega, aquela tão pura exaltação, que teria feito dela o homem que a sus­citou?

Fechemos a janela, fechemos a janela! Muito trêmu­la, vejo aproximar-se, por entre as franjas da chuva, um jardim provinciano, verde e negro, prateado pela lua crescente, por onde passa a sombra de uma jovem que, sonhadoramente, leva em seu pulso, como'caridosa ser­pente, a longa trança enrolada.

"Marselha, Nice, Cannes, Toulon..."

— Não, Menton antes de Toulon. ..

— E Grenoble! Temos Grenoble também!

Recenseamos as cidades da nossa tournée como garo­tos que estivessem contando suas bolinhas de gude. Bra­gue decidiu que levaremos duas "pantomimas": a Emprise e a Dríade.

— Para as terras maiores, onde estaremos quatro ou seis dias — afirma ele —, é prudente ter uma peça sobressalente.

De minha parte, estou de pleno acordo. De pleno acordo com tudo. Nesta manhã, não há criatura mais benévola e mais cordata. Na sala Cernuschi, onde en­saiamos, ressoam apenas os berros de Brague e as risa­das do Antigo Troglodita, que exulta com a idéia de fa­zer uma viagem ganhando 15 francos por dia: sua jo­vem figura esfaimada, de olhos azuis muito encavados, reflete uma alegria contínua, e só Deus sabe o quanto lhe custa contê-la!

— Pedaço de asno! — urra Brague. — Para que esses risinhos de bailarina? Até parece que nunca viu um troglodita! Põe a fuça torta, anda! Ainda mais! E o olho esbugalhado! E o tremor da queixada! Assim, à maneira de Chaliapine, qual!...

Enxuga a fronte e vira-se para mim, desacoroçoado:

— Não sei por que hei de matar-me atrás desta cavalgadura: falo-lhe em alhos, ele entende bugalhos!. .. E você? Que está fazendo aí, pensando na morte da be­zerra?

— Ah! é a minha vez, agora? Pois é, estava pensan­do mesmo, pensando que já fazia tempo que Brague não me sussurrava palavras de amor!

Meu colega professor mede-me de alto a baixo, com um desprezo teatral:

— Palavras de amor! Deixo isso para outros: de res­to, a você não lhe devem faltar! Vamos! A sessão está terminada. Amanhã, ensaio completo. Isso significa que você deve trazer o véu para a dança, e este senhor, aqui presente, terá que empunhar um caixote de velas para imitar a pedra que lançará sobre as nossas cabeças. Já estou farto de vê-los, você com esse lenço do tamanho da minha nádega e o outro com essa bola feita de Paris-Journal, em lugar da rocha. Amanhã, às 2 horas, aqui. Tenho dito.

Justamente no momento em que Brague acaba de fa­lar, um raio de sol doira o teto envidraçado e levanto a cabeça, como se houvesse sido repentinamente chamada lá de cima.

— Renée, você está me ouvindo, rapariga?

— Sim.

— Sim? Está bem. Pode ir. É hora de comer. Vá aproveitar o sol lá fora! Está sonhando com o campo, hein?

— Você descobre tudo. Até amanhã.

Sonho com o campo, sim. .. Mas não da maneira co­mo pensa o meu infalível colega. Nem o formigar alegre da Praça Clichy agora, em pleno meio-dia, consegue des­viar-me de uma lembrança excitante, fresca, viva...

Ontem, Hamond e Dufferein-Chautel convidaram-me para dar um passeio pelo Bosque de Meudon. Pareciam dois pintores pobres ao lado de uma costureira. Meu na­morado estreava um automóvel novo, que cheirava a marroquim e a terebintina: um magnífico brinquedo de adulto.

Sua sombria e jovem figura estava radiante por poder oferecer-me aquela bela peça envernizada e trepidante, mas pela qual, verdade seja dita, eu não tinha a menor cobiça. Mas eu ia risonha, porque tanto Hamond como Dufferein-Chautel envergavam, para esta fuga meudonesa, o mesmo tipo de chapéu, marrom, um chapéu vin­cado e de grandes abas, que me dava uma sensação de pequenez, entre aqueles dois diabos.

Sentado à minha frente, sobre um dos assentos mó­veis, meu apaixonado recolhera discretamente as pernas sob si próprio, para que os seus joelhos não tocassem os meus. O claro dia cinzento, muito doce, primaveril, mos­trava-me todos os pormenores do seu rosto, acentuada-mente moreno sob o feltro castanho, o matiz enfumaça­do das pálpebras, e a dupla franja dos cílios duros e abundantes, a boca meio dissimulada sob o bigode negro-fulvo, uma boca que me intrigava, e o imperceptível entrelaçado das pequenas rugas sob os olhos, e as so­brancelhas mais compridas do que as órbitas, umas so­brancelhas espessas, malfeitas, um tanto eriçadas, como as dos cães de caça... Com uma mão inquieta, dei de procurar o espelho da minha bolsinha...

— Perdeu alguma coisa, Renée? Mas eu já mudara de parecer:

— Não, nada. Obrigada.

De que serve mirar, e ainda mais diante dele, os estig­mas de um rosto que perdeu o hábito de ser contempla­do à luz do dia? Uma estudada maquilagem de lápis escuro, o rimei azulado e o vermelho-vinho não seriam suficientes, a qualquer hora, para chamar a atenção so­bre os olhos e a boca, que são as três luzes, os três atra­tivos da minha face? Nenhum tom rosa sobre essa face um pouco cavada, ou sob a pálpebra em que a fadiga e o piscar constante já andaram delicadamente pisan­do...

O júbilo de Fossette, sentada em meus joelhos e espi­chada em direção à portinhola, mais a doçura daquele bosque ainda hibernai, com os gravetos cinza contra o céu chinchila, forneciam-nos interminável assunto para conversação... Mas, desde o momento em que me in­clinei para haurir um pouco o vento fraco, senti o olhar do meu namorado pousar em toda a minha pessoa... De Paris até o Bosque de Meudon, não havíamos troca­do mais que cem frases. Aliás, o campo não tem o poder de tornar-me loquaz, e o velho Hamond, passadas as fortificações, começou a aborrecer-se. Nosso mutismo po­deria constranger qualquer outro que não fosse o meu namorado, egoisticamente recompensado por ter-me ali, sob seu olhar, prisioneira em seu carro, passiva, vaga­mente satisfeita com o passeio, sorrindo aos solavancos da estrada úmida e esburacada. ..

Lá pelas tantas, Fossette decidiu, num guincho breve, que não iríamos mais longe, pois uma tarefa urgente re­clamava-a para trás da galharia nua, ao fundo da senda florestal, onde brilhavam, em espelhos redondos, as po­ças de uma chuva recente. Seguimo-la os três, sem pro­testar, com aquele passo comprido das pessoas que têm o hábito de andar muito a pé...

— Cheira gostoso — disse de repente o Grande-Tolo, deliciado em aspirar aquele ar. — É o cheiro de casa.

Acenei com a cabeça:

— Não da sua: da minha! Hamond, isto cheira a quê?

— Cheira a outono — disse Hamond num tom can­sado.

Depois disso, estacamos sem mais palavras, levantan­do as cabeças em direção a uma nesga de céu apertada entre as árvores muito altas, para escutar, através do murmúrio vivo e cochichado que exala a floresta, a flau­ta molhada, clara e tiritante de um melro que desafiava o inverno. . .

Foi quando um animalzinho avermelhado, doninha ou lontra-do-norte, embarafustou-se pelos nossos pés, e Fossette pretendendo forçá-lo à corrida, fez-nos segui-la, embalada, obtusa, pretensiosa, ladrando numa pista imaginária: "Vejo-o! É meu!". ..

Estimulada enfim, lancei-me atrás dela pela alameda acima, com o prazer animal da corrida, boné de skungs enfiado sòlidamente até as orelhas, pernas livres sob a saia em cujos bolsos tinha enfiadas as duas mãos. ..

Ao deter-me, sem fôlego, percebi Maxime atrás de mim:

— Oh! você me seguiu? Como não o escutei correr? Ele ofegava, os olhos brilhantes sob as sobrancelhas

irregulares, os cabelos descompostos pela corrida, com um aspecto de perfeito carvoeiro amoroso, pouco pró­prio para me sossegar.

— Seguia-a, sim... Tive a idéia de correr no mes­mo passo que você para que não ouvisse os meus pés... É muito fácil.. .

Sim... é fácil. Não tinha pensado nisso. Arrogante, imprudente, e embriagada ainda por uma brutalidade de ninfa, ri-lhe em pleno rosto, provocantemente. Sentia o desejo, a tentação de reacender a luz amarela e maldosa no fundo de suas belas pupilas arejadas de cinza-bronze... E a ameaça não tardou, mas sustentei-a, descara­da como as crianças insolentes que esperam, que cha­mam a si a bofetada. E a punição veio. Um beijo colé­rico, mal dado, um beijo malogrado, enfim, que me dei­xou a boca castigada e desiludida. ..

... São aqueles instantes do dia de ontem que analiso escrupulosamente, enquanto caminho através do Bulevar Batignolles; não pelo prazer de revivê-los, nem para achar uma desculpa para eles; não há desculpa, salvo pa­ra o homem a quem provoquei. "Tudo isto está tão em desacordo comigo", era o que eu exclamava mentalmen­te ontem, enquanto voltávamos, ao encontro de Hamond, os dois descontentes um com o outro e desconfia­dos... Pois sim, conheço bem essa velha história! "Não tens pior, mais temível inimiga do que tu mesma!"... Falsa leviandade, falsa imprudência, aí está o que se en­contraria no fundo da pior das impulsivas, e. .. eu... estou bem longe de ser grandemente impulsiva! É pre­ciso severidade para com aquelas que gritam: "Ah! já não sei mais o que faço!", discernir dentro do seu des­controle uma boa dose de fina premeditação. ..

Não admito, em absoluto, a minha irresponsabilidade, mesmo parcial. Que irei dizer a este homem se, hoje à noite, ele entender de apertar-me em seus braços? Que não quero, que jamais me passou pela cabeça tentá-lo, que tudo o que houve não passou de uma brincadeira? Que lhe ofereço a minha amizade pelo espaço de um mês e dez dias, tempo que me separa da tournée... Não! preciso tomar uma decisão! Preciso tomar uma decisão!...

Estugo o passo. Sobretudo porque tento evitar os es­pelhos das vitrinas. Conheço essa máscara, essa expres­são fortemente teatral de vontade inquieta, com esses olhos incertos, o sobrolho carregado... Essa máscara de austeridade de renúncia, que visa a alcançar o peque­no milagre, o sinal do meu senhor, o acaso, a palavra fosforescente que ele irá escrever sobre a parede, quan­do, à noite, eu apagar a luz...

Que delicioso ar rodeia esses carrinhos cheios de vio­letas molhadas e junquilhos brancos! Um velho de lon­gas barbas, compridas como musgo, vende sempre-vivas, com os bulbos ainda sujos de terra, e as flores em pingentes que têm a forma de uma abelha. Seu perfume imi­ta o da laranjeira, mas é tão fraco, quase imperceptí­vel...

Vejamos, vejamos! Preciso tomar uma decisão! Vou andando, andando, como se já não soubesse que, a des­peito dos meus sobressaltos de energia, dos meus es­crúpulos e de toda a penitência que procuro infligir-me, como se já não soubesse que não iria optar por esta de­cisão, mas pela outra...

Uma fadiga!... Oh! mas que fadiga!... Adormeci após o almoço, como às vezes me acontece nos dias de ensaio, e acordei tão prostrada, como se chegasse dos confins do mundo, zonza, triste, atordoada, com um olhar hostil aos móveis familiares. Em verdade, um despertar semelhante aos mais medonhos dos tempos em que eu sofria. Por que seria, visto que já não sofro?

Não me posso mexer. Olho para a minha mão pen­dente, como se ela não me pertencesse. Não reconheço a fazenda do vestido. .. Meu diadema de cabelos enro­lados como as trancas de uma grave e jovem Ceres, quem mo tirou enquanto eu dormia?. .. Eu estava. . . estava. .. Um jardim. . . o céu poente cor de pêssego róseo. . . uma voz infantil, aguda, respondendo aos gri­tos das andorinhas. . . Sim, e um rumor de água ao longe, ora poderoso, ora atenuado; o hálito da flores­ta. .. Retornara ao começo de minha vida. Quanto caminho a percorrer, para chegar até aqui! Chamo pelo sono ausente, a sombria cortina que me abrigava e que acaba de fugir, deixando-me tiritante e como que nua... Os doentes que se imaginam curados conhecem essas recaídas, das quais se queixam ingenuamente: "E eu que pensei que estava livre!" Por pouco punha-me a gemer como eles, em altas vozes. ..

Sono funesto e doce demais, que aboliu em menos de uma hora a lembrança de mim mesma! De onde e sobre que asas volto eu, para que tão lentamente aceite, humi­lhada, exilada, ser eu própria?. .. Renée Néré, dançari­na e mimóloga. .. É então este o fim para o qual me prepararam uma infância orgulhosa e uma adolescência recolhida, apaixonada, que tão intrèpidamente acolheu o amor?

Ó Margot, minha desalentadora amiga, por que não terei forças para levantar-me, correr ao seu encontro e contar-lhe. .. Mas o que você aprecia é apenas a minha coragem e, à sua frente, eu não ousaria desfalecer. Pare­ce-me que o seu olhar viril, a pressão da sua pequena mão ressequida, gretada pela água fria e pelo sabão ordinário, sabem antes recompensar meu triunfo sobre mim mesma do que ajudar meu esforço diário.

Minha próxima partida? A liberdade?. . . Pois sim! A liberdade só é genuinamente deslumbrante no início do amor, do primeiro amor, dia em que se pode dizer a quem se ama: "Tome! mais quisera dar-lhe.. ."

Cidades novas, países novos, vislumbrados, roçados apenas, desfazendo-se na lembrança. .. Será que exis­tem países novos, para quem volteja como uma ave presa a um fio? Meu pobre vôo, reencetado cada ma­nhã, não irá acabar todas as noites, no fatal "estabeleci­mento de primeira ordem" do qual Salomon e Brague se vivem gabando?

Desses estabelecimentos de primeira ordem, quantos eu já vi! Para o público: uma sala cruelmente inundada de luz, onde uma densa fumaça mal amortece o ouro das molduras. Para os artistas: camarins sórdidos, sem ar, a escada de ferro desembocando em imundas latri­nas. ..

Durante quarenta dias, será preciso então sustentar essa luta contra a canseira, a má vontade trocista dos maquinistas, o orgulho irritadiço dos. chefes de orques­tra provincianos, a deficiente alimentação dos hotéis e das estações, será preciso que incessantemente eu en­contre em mim própria e renove este tesouro de energia que a vida dos errantes e dos solitários reclama? Será preciso lutar, enfim — ah! não poderia esquecer! —, contra a própria solidão. .. E para chegar a quê?

Quando eu era pequena, diziam-me: "O esforço traz sua recompensa", e eu esperava, de fato, após a grande prova, uma recompensa misteriosa, estafante, uma es­pécie de graça sob a qual sucumbiria. Espero-a ainda. . .

Um toque abafado de campainha, seguido do latir de minha cachorra, tira-me finalmente de um devaneio tão amargo. E eis-me de pé novamente, na surpresa de ter pulado tão ligeira, de recomeçar facilmente a viver. . .

— Senhora — diz Blandine a meia voz —, o Sr. Dufferein-Chautel pode entrar?

— Não. . . um momento. ..

Empoar as faces, pintar os lábios e dispersar com uma penteadela os cachos que me escondem a testa é uma tarefa maquinai, rápida e que nem mesmo pede o auxílio do espelho. Fazemos isso como limpamos as unhas, mais por decoro do que por faceirice.

— Você está aí, Dufferein-Chautel? Pode entrar. Es­pere, vou acender a luz...

Nenhum embaraço ao revê-lo. O fato de nossas duas bocas se haverem tocado ontem, infrutuosamente, não me constrange neste momento. Um beijo malogrado é muito menos grave do que uma cúmplice troca de olha­res... De modo que esse seu ar infeliz e frustrado che­ga quase a espantar-me. Chamei-o Dufferein-Chautel, como de costume, como se ele não tivesse nome... Trato-o sempre por "você" ou por "Dufferein-Chau­tel". .. Cabe a mim pô-lo à vontade? Pois seja.

— Então? Como vai? Vai bem?

— Vou bem, obrigado.

— Não parece.

— Porque sou infeliz! — não hesita em responder.

Grande-Tolo, ora!... Sorrio à sua desventura, peque­na desventura de homem que não soube beijar a mulher amada. .. Sorrio-lhe de muito longe, por cima do casto rio turvo onde há pouco me banhava. . . Ofereço-lhe uma caixa cheia dos seus cigarros favoritos, um fumo claro e açucarado que cheira a pão de mel.. .

— Não quer fumar hoje?

— Quero, mas nem por isso deixo de ser infeliz. Sentado sobre o diva, com as costas nas almofadas, vai lançando maquinalmente longos jatos de fumaça pelas narinas, quase dizia pelas ventas. Também fumo, por aprumo, para acompanhá-lo. Ele fica melhor de cabeça descoberta. A cartola enfeia-o, e o chapéu mole embelezado até o rastaqüerismo. . . Fuma, os olhos no teto, como se a gravidade das palavras que prepara anulasse a minha presença. Seus cílios longos e brilhan­tes — único toque feminino e sensual neste rosto que peca por excesso de virilidade — batem repetidamente, traindo a agitação, a hesitação. Ouço-o respirar. Ouço também o tique-taque do meu pequeno relógio de via­gem, e a cortina da chaminé que o vento sacode de vez em quando...

— Está chovendo lá fora?

— Não — sobressalta-se ele. — Por que me faz tal pergunta?

— À toa. Eu não saí mais depois do almoço, e não imagino como estava o tempo lá fora.

— Um tempo qualquer. .. Renée!...

Levantou-se bruscamente, atirando fora o cigarro. To­ma-me as mãos e olha-me bem de perto, tão de perto que seu rosto me parece demasiado grande, com as minúcias em evidência, os poros da pele, o canto palpitante e úmi­do dos seus grandes olhos. .. Quanto amor, sim, amor, naqueles olhos! Quão expressivos, e doces, e perdidamente enamorados! E estas mãos largas que as minhas apertam numa força igual e comunicativa, como as sinto persuadidas!...

É a primeira vez que deixo minhas mãos nas dele. A princípio suponho dominar minha repugnância, depois o seu calor tira-me esta ilusão, convence-me, e sinto que vou ceder ao fraternal, ao surpreendente prazer, há mui­to ignorado, de abrir-me, sem palavras, a um amigo, de apoiar-me nele por um instante, de reconfortar-me num ser imóvel e quente, afetuoso, silente... Oh! atirar-me ao pescoço de um ser, cão ou homem, de um ser que me estime!...

— Renée! Como, Renée, está chorando?

— Estou?

Mas o caso é que ele tem razão. Através de mil raios partidos e cruzados, a luz dança nas minhas lágrimas interrompidas. Com a ponta do lenço enxugo-as rapida­mente, sem contudo pensar em negá-las. E sorrio à idéia de que ia chorar... Há quanto tempo não chorava? Há. .. anos, anos!...

Meu amigo está transtornado, e atrai-me para si, e obriga-me — ao que não oponho grande resistência — a sentar-me a seu lado, no diva. Seus olhos também estão úmidos, porque não passa de um homem, sem dúvida capaz de fingir uma emoção; mas não de dissimulá-la...

— Minha criança querida, que tem você?

Poderá ele esquecer o grito abafado e o estremeci­mento que lhe respondem? Assim espero... "Minha criança querida!Y Suas primeiras palavras de ternura: "Minha criança querida!" As mesmas palavras, e quase no mesmo tom que o outro.

Um temor infantil arranca-me de seus braços, como se à porta acabasse de aparecer o outro, com seu bigode à Guilherme II, seu enganoso olhar velado, seus terrí­veis ombros, suas curtas coxas de camponês...

— Renée, minha querida! Se você quisesse dizer-me alguma coisa. ..

Meu amigo, pálido, nem tenta acercar-se de novo... Que, pelo menos, ignore o mal que, inocentemente, me acaba de fazer! Não tenho mais vontade de chorar. Mi­nhas frouxas e deliciosas lágrimas retornam à nascente, deixando-me queimados a garganta e os olhos. .. À espera de que a minha voz se firme, tranqüilizo meu amigo, fazendo-lhe um sinal.

— Você está zangada comigo, Renée?

— Não, meu amigo.

Sou eu que, espontaneamente, retomo meu lugar a seu lado, tímida, receando que minha atitude e minhas pala­vras venham a provocar outra exclamação carinhosa, familiar e detestada.

Seu instinto, porém, adverte-o de que não deve rego­zijar-se com tão pronta docilidade. O braço que me sus­tem não quer estreitar-me, e não encontro mais nele o calor comunicativo, perigoso, benfazejo... Quer-me demais, com certeza, para adivinhar que, se estou pou­sando uma cabeça submissa em seu ombro másculo, trata-se de uma tentativa, e não de uma dádiva...

Minha fronte sobre o ombro de um homem!... Esta­rei sonhando? Não sonho, nem divago. Minha cabeça, meus sentidos, tudo é tranqüilidade, lúgubre tranqüili­dade. Todavia, há algo mais e melhor do que indiferen­ça neste abandono que ali me retém e se, com distraída e casta mão, brinco com a corrente de ouro presa ao seu colete, é porque me sinto abrigada, defendida — como o gato perdido que a gente recolhe, e que só sabe brincar e dormir quando tem uma casa. . .

Pobre apaixonado... em que pensará, imóvel, respei­tando o meu silêncio? Volto a cabeça para vê-lo, mas, ofuscada, confusa com a expressão deste homem, baixo depressa os olhos. Ah! como o invejo por amar tão intensamente, por conseguir retirar de sua paixão uma tal beleza!

Ele encontrou meu olhar e sorri heroicamente.

— Renée... Acredita que me possa amar um dia, não importa quando?

— Amá-lo? Como o desejaria, meu amigo! Você não parece mau, você... será que não percebe que me estou prendendo a você?

— Prender-se a mim. .. É isto que eu temo, Renée. Não é este o caminho do amor. . .

Tem tanta razão que eu nem protesto.

— Mas... espere. . . não se sabe. . . Pode ser que, ao regressar da viagem. . . E depois, enfim, uma grande amizade...

Ele meneia a cabeça. .. Positivamente, de nada lhe serve minha amizade. Ao passo que eu, quanto daria para ter um amigo menos idoso, menos acabado do que Hamond, um verdadeiro amigo. . .

— Quando você voltar. .. Antes de mais nada, se é que você espera realmente amar-me um dia, Renée, não passaria pela sua cabeça afastar-se de mim. Daqui a dois meses, como agora, será a mesma Renée, de pequeninas mãos frias, de olhos impenetráveis, dona dessa boca que, mesmo quando se oferece, não se entrega...

— A culpa não é minha. .. Ei-la, no entanto, esta boca... Aí está. ..

Mais resignada do que curiosa, torno a deitar a cabe­ça em seu ombro, e fecho os olhos, mas, ao cabo de um segundo, abro-os de novo, pasmada de que ele não invis­ta contra mim, com a gulosa pressa de ontem.. . Vol­tou-se apenas levemente para o meu lado e, com seu braço direito, envolve-me comodamente. Depois, sua mão livre junta-me as mãos; inclina-se, e vejo aproximar-se, lentamente, esta grave figura estranha, de um homem que mal conheço. . .

Não há quase mais espaço, quase nenhum ar entre nossos rostos, e bruscamente respiro, como se me afo­gasse, com um sobressalto para desprender-me. Mas ele tem seguras as minhas mãos e seu braço estreita-me mais a cintura. No momento em que a boca de Maxime alcan­ça a minha, é em vão que tento esquivar-me...

Não fechei os olhos. Carrego o sobrolho numa ameaça àquelas pupilas que, acima das minhas, procuram re­duzi-las, apagá-las. Porque os lábios que me beijam, do­ces, frescos, impessoais, são exatamente os mesmos de ontem, e sua ineficácia irrita-me.. . De súbito, eles mudam, e não reconheço mais o beijo que se anima, insiste, se esmaga e recomeça, tornando-se móvel, ritma­do, para em seguida cessar, como à espera de uma res­posta que não vem. ..

Seus bigodes recendem a baunilha e a fumo adocica­do e, como me roçam as narinas, fazem-me mover imperceptivelmente a cabeça. . . Oh!... Mas eis que, de re­pente, num lapso, minha boca deixou-se entreabrir, abriu-se, tão irresistivelmente como uma ameixa madu­ra que se racha ao sol... De meus lábios até meus flancos, até os joelhos, eis que renasce e se propaga esta dor exigente, este inchaço de ferida que quer reabrir-se e expandir-se — a volúpia esquecida. ..

O homem que ma despertou, que a beba no fruto que espreme. Minhas mãos, até há pouco rígidas, abando­nam-se, quentes e moles, às suas, e meu corpo rendido procura unir-se ao seu. Inclinada sobre o braço que me ampara, arco-lhe um pouco mais o ombro, aperto-o con­tra mim, atenta a que nossos lábios não se desunam, atenta a que nada venha interromper nosso desejo.

Através de um breve murmúrio feliz, vejo que me aprova. Finalmente, certo de que não fugirei, é ele quem de mim se afasta, respira e contempla-me, mordiscando seus lábios molhados. Deixo cair as pálpebras, não pre­ciso mais vê-lo. Talvez me dispa e de mim se aposse in­teiramente . .. Não importa. Banha-me uma irresponsá­vel e preguiçosa alegria. .. Não há pressa de nada, salvo de que esse beijo recomece. O tempo é nosso. . . Ufano, com braços lestos, meu amigo levahta-me como um feixe, para colocar-me meio deitada sobre o diva, onde vem unir-se a mim. Agora, sua boca tem o mesmo gosto da minha; e o leve aroma de meu pó de arroz. . . Esta boca sabida quer fazer inovações e ainda variar a carícia, mas já ouso indicar minha preferência por um beijo quase imóvel, longo, adormentado — o lento esmagar, uma contra a outra, de duas flores, onde vibra apenas a palpitação de dois pistilos acasalados...

Agora, repousamos. Uma grande trégua, na qual reto­mamos fôlego. Desta vez fui eu quem o deixou, quem se levantou impelida pela necessidade de estirar os braços, de espreguiçar-me, de expandir-me. Peguei o espelho de mão para arranjar os cabelos e contemplar minha nova cara, e rio-me ao constatar que essas feições tresnoita-das, esses lábios trêmulos, brilhantes, um pouco incha­dos, são comuns a nós dois. Maxime deixou-se ficar no diva, e o seu apelo recebe a mais lisonjeira resposta: meu olhar de cadela submissa, um tanto envergonhada, um tanto ferida, muito mimada, e pronta a aceitar tudo: a trela, a coleira, o lugar aos pés do dono...

Ele já se foi. Jantamos juntos, não importa como: Blandine preparou-nos costeletas com molho e pepinos de conserva... Eu morria de fome. "E o amor suprindo tudo, exceto.. .", dizia ele, para mostrar que lera Verlaine.

O fim do jantar não nos atirou nos braços um do ou­tro, como era de esperar. Não somos amantes, pois ele é pudico, e o improviso me desagrada. . . Aconteceu, no entanto, que me comprometi até certo ponto, prometendo-me alegremente, e sem coquetismo:

— Temos muito tempo à nossa frente, não é, Max?

— Não muito, querida! De tanto esperá-la, sinto-me velho!

Velho. . . ele não sabe a minha idade. ..

Foi-se embora, voltará amanhã. . . Foi-lhe difícil dei­xar-me, e eu tive medo de fraquejar, tanto que o repeli a distância. .. Eu sentia calor, e ele farejava-me arrebatadamente, como se estivesse prestes a morder-me. .. Mas, finalmente, partiu. Digo "finalmente", porque ago­ra posso pensar nele, pensar em nós. ..

"É o amor. . .", disse ele. Será isto amor? Quisera sabê-lo ao certo. Será que o amo? Minha sensualidade me faz medo. Mas talvez isso seja apenas uma crise, um extravasar de forças há muito refreadas. .. ou talvez uma prova de amor que, com o tempo, se tornará inegá­vel. .. Se ele tornasse a bater à minha, persiana. . . Sim, creio que o amo. Emocionada, perco-me na recordação de certas entonações que hoje tinha a sua voz — o eco do seu pequeno rugido amoroso já é o suficiente para alterar-me a respiração — e daquele momento em que deitei a cabeça no seu ombro, como o sentia bom, e forte, como um balsâmico socorro à minha solidão. . . Sim, amo-o! Mas que me faz assim temerosa? Não poria tantos obstáculos se. . .

Sobre que campa meu pensamento vem imprudente­mente bater? É tarde demais para fugir, e, do outro lado do espelho, lá está ela outra vez, a conselheira impie­dosa que me fala:

"Não criaste tantos empecilhos, quando o amor, cain­do sobre ti, foi encontrar-te tão louca e tão corajosa! Não perguntaste então se era ou não amor! Não havia possibilidade de engano: era ele, o amor, o primeiro amor. Era ele, e aquele que não se repete! Tua simpli­cidade de mocinha não hesitou em reconhecê-lo, não lhe comerciou teu corpo, nem o coração infantil. Era ele, que nunca se anuncia, qüe não se escolhe, que não se discute. Esse, esse não voltará mais! E levou-te aquilo que só podes dar uma vez: a confiança, o espanto reli­gioso da primeira carícia, o inédito das lágrimas, a flor do primeiro padecer... Ama, se podes; isto te será, sem dúvida, concedido, para que, no meio da pobre felicida­de que puderes alcançar, te lembres ainda de que, em matéria de amor e fora do primeiro amor, nada existe — para que sofras, a cada instante, o castigo da tua lembrança, o horror de comparar! E, ainda assim, e mesmo que digas: 'Ah! este aqui é o melhor!', torturar-te-á a descoberta de que nada é bom, quando não é único! Há um Deus que diz ao pecador: 'Não me pro­curadas, se já não me tivesses encontrado', mas o Amor não tem tanta misericórdia: 'Tu, que me achaste uma vez, perdeste-me para sempre!' Acreditavas que, ao perdê-lo, já tinhas sofrido o que tinhas a sofrer? Não, não terminou! Procurando ressuscitar o que foste, sabo­reia a tua derrota; sacia-te, em cada festim da tua nova vida, do veneno que nela irá entornar o primeiro, o úni­co amor!..."

Precisarei falar a Margot, contar o acontecido, o raio de sol que está abrasando a minha vida. . . É indiscutí­vel, consumado, amamo-nos. Amamo-nos e, além do mais, estou resolvida a amar. Mandei ao diabo recorda­ções e lamentos, e a mania, como costumo dizer, da filigrana sentimental, dos meus se, dos meus pois, dos meus mas e dos meus entretanto. . .

Vemo-nos a toda hora, ele me arrasta, perturba-me, com sua presença, impede-me de pensar. É ele quem decide, quase ordena, enquanto eu lhe presto a dupla homenagem, a da minha liberdade e a do meu orgulho, pois permito que me chegue a casa um abundante des­perdício de flores, de frutos do verão próximo, de jóias: levo espetada em meu pescoço, como que cravada à gar­ganta, uma pequena flecha cintilante, toda sangüínea, de rubis.

E, no entanto, nem somos amantes! Paciente, contu­do, Max impõe-se e impõe-me propostas de casamento estranhamente deprimentes, propostas que, em menos de uma semana, já nos fizeram mais magros e enlanguescidos. Nele, não se trata de vício; é apenas vaidade de homem que quer fazer-se desejado, que procura pro­porcionar-me, ao mesmo tempo, um perene e fraudu­lento "livre arbítrio". ..

Apesar de tudo, não me resta grande coisa a alme­jar. .. O que me infunde temor, presentemente, é este fogo desconhecido, irrompido ao primeiro contato, este fogo selvagem sempre pronto a obedecer-lhe. . . Sim, há uma razão para retardar essa hora que nos unirá in­teiramente. Agora sei o que valho, a magnitude da dádi­va que ele irá receber... A sua esperança mais desespe­rada, eu saberei como superá-la, estou certa disso! Que ele tire, se quiser, algum proveito de seu pomar. .. E ele quer, muitas vezes. Para meu prazer e inquietude, o acaso pôs neste rapaz de beleza simples e simétrica um amante sutil, criado para a mulher, e tão intuitivo que seus oportunos carinhos dão-me a impressão de que adi­vinham os meus desejos. Ele faz-me lembrar — aqui enrubesço — das palavras de uma luxuriosa coleguinha de music hall, quando, certa vez, se gabava da habili­dade de um novo amante: "Minha cara, a gente mesmo não faria melhor!"

Mas. .. é preciso advertir Margot! Pobre Margot, que a tenho tão esquecida. . . Quanto a Hamond, anda sumido. Deve saber tudo, por intermédio de Max, e afas­ta-se da minha casa, como uma espécie de parente dis­creto. . .

E Brague? Oh! A cara de Brague no nosso último en­saio! Fez a sua mais bela careta de Pierrô, quando me viu chegar no carro de Max! Mas nada disse até agora. Foi mesmo de uma singular e imerecida cortesia, pois naquela manhã eu estava verdadeiramente tapada, au­sente, pronta a encalistrar e a pedir desculpas. Só no fim, esgotada a sua paciência, o estouro veio:

— Quer saber de uma coisa? Suma daqui. Volte para donde veio! Esbalde-se bem e apareça quando estiver um pouco melhor da bola. ..

Porém, mais ele se enfezava, mais eu tinha vontade de rir. Brague parecia um pequeno diabo asiático em pessoa:

— Ria bastante, ria, bobona! Se visse a sua fuça num espelho!

— Minha fu. . .!

— É o que está querendo, foi o que pediu, fuça, sim! Não levante esses olhos para mim, Messalina!. . . Estão a vê-la — gritava ele, tomando por testemunhas deuses invisíveis; — desvela seus olhos em pleno meio-dia! E quando peço que, na cena de amor da Dríade, ela os mostre tanto ou mais, que, enfim, dê um pouco mais de vida àquela droga, ela os cobre de um recato de primeira comungante!

— Mas é verdade, então? — pergunto a Max, que me leva para casa.

O mesmo espelho que na outra noite refletia minha gloriosa imagem de derrota, emoldura hoje um rosto afilado, o duvidoso sorriso de uma raposa amável. Não sei que chama, entretanto, passa por ele, repetidamente, camuflando-o, se assim posso explicar, de uma juventu­de extenuada.

Confessarei tudo a Margot: minha reincidência, mi­nha felicidade, o nome do homem que amo. . . Custa-me muito. Margot não é mulher do gênero "Não te dis­se?" Mas creio que, sem manifestá-lo, ficará triste e de­cepcionada comigo. "Gata escaldada voltará à caldei­ra." Volto, é verdade, e com que disposição!...

Invariavelmente parecida a ela mesma, encontro Mar­got no grande salão onde dorme, se alimenta e educa seus cães brabançãos. Grande, ereta, blusa moscovita, comprida veste preta, sua pálida figura, de faces roma­nas e ásperos cabelos grisalhos cortados rentes à orelha, curva-se sobre um cesto onde se remexe um pequeno aborto amarelo, um minúsculo cachorro enfiado nu­ma camisola de flanela e que levanta para ela uma proe­minente fronte de bonzo, uns lindos e implorantes olhos de esquilo. . . À minha volta, latem e agitam-se seis animaizinhos atrevidos que um estalido de chicote conduz a seus ninhos de palha.

— Como, Margot, mais um brabanção? Isso é que é amor por essa raça!

— Ah! Por Deus! que nada! — diz Margot, sentan­do-se à minha frente e embalando docemente sobre os joelhos o pequeno bicho enfermo. —"Não gosto dela, não gosto desta pobre coitada.

— Foi presente?

— Não, comprei-a, é claro. E vai servir-me de lição, pois não tornarei mais a passar por aquele trampolineiro, aquele traficante de cães que é Hartmann. Se você visse esta cadelinha na vitrina! Mais parecia um rato doente, espinha dorsal saliente como se tivesse um rosá­rio sob a pele, e os olhinhos, ah! sobretudo, que olhinhos!. .. Você quer saber? não há coisa que mexa mais comigo do que o olhar de um cachorro à venda. . . Com­prei-a, eis tudo. . . Está meio baqueada pela enterite; os comerciantes são espertos; eles sabem muito bem escon­der os podres das suas mercadorias: excitam os pobres bichinhos à força de cacodilato. .. Diga-me, meu bem, há tempo que não a vejo: você anda trabalhando?

— Sim, Margot, ando ensaiando. . . —s Nota-se, parece cansada.

E assim dizendo, toma-me o queixo, naquele gesto familiar de examinar e atrair para si o meu rosto. Con­fusa, fecho os olhos. . .

— Sim, é cansaço. . . Você tem envelhecido — diz-me ela num grave tom de voz.

— Envelheci!... Oh! Margot!. ..

Todo o meu segredo deixa-se escapar através desse grito de dor e duma torrente de lágrimas. Escoro-me contra a severa amiga, que me acaricia o ombro, balbuciando um "Pobre pequena!" do mesmo jeito que o fize­ra há pouco, ao considerar a cadelinha adoentada. ..

— Vamos, vamos menina, que é isso?. .. Enxugue essas lágrimas. Veja, ali em cima há água boricada para lavar esses olhos. Acabo de prepará-la para os olhos de Mirette. Com o lenço, não! Pegue algodão hidrófilo... Lá!... Então, tem tanta necessidade de beleza no mo­mento?

— Oh! sim. .. Oh! Margot!

— "Oh! Margot!" Quem a ouvisse iria pensar que lhe andei dando uma sova! Olhe para mim. Será que você está sentida comigo, será?

— Não, Margot. . .

— Você bem sabe — prossegue ela na sua voz igual e doce — que aqui terá sempre toda e qualquer espécie de socorro, inclusive aquele que é o mais causticante de todos: o da verdade. .. Que foi que eu lhe disse? Disse que você envelheceu. . .

— Sim. . . Oh! Margot. ..

— Vamos, não recomece! Mas envelheceu esta sema­na! Envelheceu hoje! Amanhã ou mesmo dentro de uma hora, terá cinco anos de menos, dez anos de menos. .. Se houvesse estado aqui ontem, ou se viesse amanhã, eu haveria de dizer-lhe, com certeza: "Ora veja, como você remoçou!"

— Pense um pouco, Margot, logo terei 34 anos!

— Console-se! Eu tenho 52.

— Não é a mesma coisa. Margot, tenho tanta neces­sidade de ser bonita, de ser jovem, de ser feliz. . . Eu tenho. . . Eu. . .

— Tem um amante?

Sua voz não se altera, mas a expressão do seu rosto muda ligeiramente.

— Não é amante, Margot! Contudo, é bem provável que. . . que venha a ser. Mas... eu o amo, essa é a verdade!

Essa tola forma de desculpa parece alegrar Margot.

— Ah! Você o ama?. .. E ele também a ama?

— Oh!

Com um gesto de orgulho, livro minha amiga de toda e qualquer suspeita.

— Então, está bem. E. . . que idade tem ele?

— A mesma que eu, Margot. Quase 34.

— É. .. está bem.

Não encontro mais nada a acrescentar. Sinto-me pa­vorosamente constrangida. Passado o primeiro momen­to de embaraço, poderia entornar toda a minha alegria, contar tudo a respeito do meu amigo, a cor dos seus olhos, a forma das suas mãos, o quanto é bondoso, o quanto é correto. . .

— Ele é. .. ele é muito gentil, sabe, Margot... — arrisco timidamente.

— Tanto melhor, minha filha. Vocês têm algum projeto em vista?

— Projeto? Não. .. ainda não pensamos em na­da... Temos tempo...

— É justo: há sempre muito tempo. . . E a sua via­gem, no que fica?

— A viagem? Ora! É coisa que em nada me atra­palha.

— Você leva o seu... o seu indivíduo?

Ainda meio lacrimosa, não posso esquivar-me ao ri­so: Margot refere-se ao meu amigo com uma discrição mesclada de asco, como se estivesse falando de alguma coisa suja!

— Levo-o, levo-o. .. Isto é... Para dizer a verdade, Margot, ainda não pensei no caso. Vamos ver. ..

Minha cunhada levanta as sobrancelhas:

— Você não sabe de nada! Você não tem projetos. Você vai ver!... Mas isso é espantoso, é o que é! Em que pensam vocês, então? E, no entanto, o que deveriam estar fazendo é justamente estar projetando, preparando um futuro!

— O futuro... Oh! Margot, não me fale nisso! Pre­parar o futuro! Mas se é ele que. . . Ora! o futuro se prepara sozinho, e chega tão depressa.. .

— Afinal, vocês vão casar-se, ou juntar-se? Demoro um pouco a responder, constrangida, pela

primeira vez, por esta linguagem, um pouco crua, na boca da casta Margot.

— Ora, é cedo para responder a essa pergunta.. . Estamos apenas procurando conhecer-nos melhor...

— Conhecer-nos!... — Margot observa-me, com um trejeito na boca e uma cruel alegria nos olhos. —

Conhecer-nos. . . Já estou sabendo: é o período então em que um gosta de pavonear-se diante do outro, não é isso?

— Ora, Margot, não nos pavoneamos nada — res­pondo-lhe, forçando um sorriso. — Essa é uma brin­cadeira própria dos amantes jovens, e tanto ele como eu estamos longe de sê-lo.

— Uma razão a mais — replica Margot, implacá­vel. — Neste caso, vocês têm mais o que esconder um do outro. . . Mas o melhor a fazer, minha cara — prossegue ela docemente —, é, sem dúvida, rir desta minha mania. O casamento se me afigura uma coisa monstruosa! E, aliás, creio que já a fiz dar muita risa­da quando lhe contei que, desde os meus primeiros dias de casada, recusei-me a compartilhar do mesmo quar­to do meu marido, pois achava imoral viver assim tão próxima a um rapaz estranho à família! Coisas que nascem conosco, que quer? Não chegarei a corrigir-me. .. Não trouxe Fossette hoje?

Faço, como Margot, um esforço para alegrar-me:

— Não, Margot. Na última vez em que a trouxe, sua matilha deu-lhe uma péssima recepção.

— É verdade. E por sinal, minha pequena matilha não está nada em forma neste momento. Venham cá, seus rebentados!

Não é preciso chamá-los duas vezes. De uma fila de ninhos logo surge um pequeno rebanho tiritante e mi­serável, uma meia dúzia de cães, sendo que o mais avantajado deve caber dentro de um chapéu. Estes, conheço-os quase todos, salvos por Margot do "trafi­cante de cães", arrancados a um comércio imbecil e desalmado de uma espécie de gente que não vacila em aprisionar numa vitrina bichos doentes, empanturrados, quando não mortos de fome ou, então, alcooliza­dos . .. Alguns deles, à custa do tratamento que ela lhes dispensou, tornaram-se sãos, vivos, robustos; outros, porém, não vingaram, conservarão para sempre um es­tômago desarranjado, uma pele sarnenta, uma histeria indelével. Margot trata-os desveladamente, desencora­jada ao pensar que sua caridade é inútil, que haverá sempre, eternamente, "cães de luxo" à venda. . .

A cadela doente acabou por adormecer. Nada en­contro para dizer.. . Olho este grande quarto que tem um certo ar de enfermaria, com suas janelas sem corti­nas. Sobre uma mesa alinham-se os frascos de remé­dio, mais as ataduras em rolo, um minúsculo termôme­tro, uma pequenina bisnaga de borracha para as lava­gens dos cães. Sente-se o cheiro de iodo e de desinfetante... Assalta-me uma vontade louca de ir embora, de voar ao encontro, oh! de voar ao encontro da mi­nha toca estreita e quente, do meu velho diva, das mi­nhas flores, do amigo muito amado. ..

— Adeus, Margot, já vou indo. ..

— Pois vá, minha filha.

— Você não está zangada comigo?

— Por quê?

— Por ser assim tão doida, ridícula e apaixonada. . . Fiz-me tantas promessas e. . .

— Zangada, eu! Pobrezinha, se assim fosse, seria bem mesquinho da minha parte!.. . Um novo amor. .. É coisa séria. .. Pobre pequena!...

Apresso-me em voltar para casa. Sinto-me gélida, contraída, acabrunhada!. .. Isto não importa, ufa! O principal está feito: contei tudo a Margot. Recebi a ducha que esperava, e eis-me correndo, correndo de en­contro à chama — quero secar-me, espojar-me no seu calor... O meu veuzinho, descido, esconde os vestígios da minha mágoa e corro — vôo! — para ele.

— O Sr. Maxime está esperando pela senhora.

Blandine, minha criada de quarto, deu agora de pro­nunciar "Sr. Maxime" com uma ternura muito especial, como se estivesse a dizer o nome de um filho de leite.

Ele está aqui!

Entro no quarto, tranco-me por dentro: que não veja este rosto! Rápido! pó de arroz, rimei, batom... Oh! ali, sob o olho, o sulco leve, nacarado... "Você envelheceu..." Tola, que te pões a chorar como uma meninota. Será que não aprendeste ainda a "sofrer em seco"? Que é feito daquelas lágrimas brilhantes, que desciam por uma veludosa face sem a molhar? Eu sou­be, outrora, como usá-las. Para reconquistar meu mari­do, chorava-as para ele, rosto erguido, os olhos total­mente abertos, sacudindo, sem enxugá-las, as pérolas que rolavam, lentas, e que me faziam mais bela. . . Co­mo sou frágil!

— Até que enfim, minha querida, minha perfumada, minha apetitosa, minha. . .

— Meus Deus! Como você está bobo!

— Oh! se estou! — suspira meu amigo com uma convicção extasiada.

E entrega-se ao seu prazer predileto, que consiste em levantar-me em seus braços até que eu toque o teto. Depois beija-me as faces, o queixo, as orelhas, a boca. Debato-me, o bastante para que ele seja obrigado a mostrar sua força. Nossa luta turbulenta acaba sem­pre com vantagem para ele, que me faz balançar so­bre seu braço como uma pluma, cabeça para baixo e pés no ar, até que eu grite: "Socorro", quando, então, torna a pôr-me de pé. Fossette precipita-se sempre em minha defesa e, à brincadeira rude que tanto me agra­da, mistura-se um alarido de latidos rouquenhos, de gritos e risadas. . .

Ah! como faz bem essa estupidez sã! Que alegre companheiro, tão ausente de querer acrescentar-se de uma aparência espiritual, de manter impecável o arran­jo da gravata!. . . Como está ameno aqui dentro! O riso dos adversários que se defrontam vai-se transfor­mando numa espécie de desafio voluptuoso. . . Ele a devora, devora a sua "apetitosa", saboreando-a vagaro­samente, como um gastrônomo.. .

— Gostaria de comê-la! Como você deve ser sabo­rosa, minha querida!... A boca é açucarada, mas os braços, quando os mordo, sinto que são salgados, salgadinhos como devem ser os ombros, os joelhos... Estou certo de que é salgada da cabeça aos pés, como uma concha fresca, verdade, meu bem?...

— Você logo saberá, Grande-Tolo!

Chamo-o ainda de Grande-Tolo, mas... agora é bem diferente a entonação que dou a esta palavra. . .

— Quando?. .. Esta noite? Hoje é quinta-feira, não é?

— Creio que. .. sim. Por quê?

— Quinta-feira. .. Não deixa de ser um dia sim­pático. ..

E ele vai dizendo coisas bobas, muito feliz, escarrapachado, misturado às almofadas. Uma mecha de ca­belos cai-lhe sobre os olhos, olhos vagos das grandes crises de desejo, boca entreaberta como se lhe fosse difícil respirar. Nessa atitude de abandono, parece-se — o que não me desagrada — a um rapagão do cam­po, a um lenhador que estivesse fazendo sua sesta so­bre a relva.

— Levante-se, Max. Temos que conversar seriamen­te. ..

— Não admito que me entristeçam — suspira ele chorosamente.

— Ora, Max, vamos com isso!

— Não! Sei o que significa essa história de conver­sar seriamente. Minha mãe usa dessa expressão toda vez que quer tratar de negócios, dinheiro, ou casamen­to. — E ele se afunda nas almofadas e fecha os olhos. Não é a primeira vez que dá mostra dessa frivolidade obstinada.

— Max! Você está lembrado de que devo partir de viagem no dia 5 de abril?

Ele levanta as pálpebras de longos cílios femininos e acaricia-me com um longo olhar:

— Você vai, querida? Quem tomou essa decisão?

— Salomon, o empresário, e eu.

— Bom. Mas ainda não dei o meu consentimento. . . Enfim, seja. Você vai. Está bem! Vai comigo.

— Com você? — digo surpresa.. . — Mas você não sabe então o que é uma tournée?

— Sei. É sinônimo de viagem. .. comigo! Insisto:

— Com você? Por 45 dias! Mas você não tem os seus compromissos? Não tem nada que fazer?

— Oh! sim! Desde que a conheci, não tenho mais um minuto que seja meu, Renée.

É uma resposta gentil, mas. . .

Desconcertada, contemplo esse homem que nada tem a fazer, que encontra sempre em seu bolso, que encon­tra sempre à mão todo o dinheiro de que bem necessi­tar. .. Não tem o que fazer.. . É verdade, nunca ha­via pensado nisso! Não tem obrigação: nenhuma sine-cura o desvia da liberdade ociosa. .. Como é estranho! É o primeiro homem desocupado que conheço. . . Po­de entregar-se dia e noite ao amor, como.. . como uma mundana. . .

Essa idéia estapafúrdia, de que, entre nós dois, é ele a cortesã, causa-me súbita vontade de rir, o que faz com que suas sobrancelhas suscetíveis se aproximem...

— O que é que há? Está rindo.. . Não vou então?

— Ora, essa é boa! E a multa?

— Eu pago.

— E a de Brague? E a do Antigo Troglodita?

— Eu pago todas.

Mesmo que se tratasse de uma brincadeira, agradar-me-ia apenas em parte. Não, não há dúvidas quanto ao nosso amor: eis-me em face da primeira discussão!... Não, equivoquei-me, pois aqui está o meu amigo per­to de mim, quase a meus pés:

— Minha Renée, você fará o que quiser, você sabe disso.

Mas ele pousou a mão sobre a minha testa, e os seus olhos sobre os meus olhos, para encontrar neles a obe­diência ... O que eu quiser? Se ele imaginasse. . . que, neste instante, é ele o que mais quero!

— É ainda a Emprise que vocês vão levar em tournée?

— Também a Dríade. . . Oh! mas que bonita gra­vata violeta! Ela o deixa todo amarelinho!

— Deixe a minha gravata em paz. A Emprise, a Dríade, sim, outros tantos pretextos para mostrar suas belas pernas e o resto!

— Do que se queixa? Não foi no palco que esse "resto" teve a honra de lhe ser apresentado?

Ele aperta-me contra si tão fortemente que chega a machucar-me:

— Cale-se! Bem que me lembro! Todas as noites, por um espaço de cinco dias, eu disse-me coisas peno­sas, coisas que pensava definitivas. Achava-me estúpi­do por ir ao Emp'Clich como você costuma dizer; quando você saía de cena, eu ia embora injuriando-me. . . decidido a não mais voltar. Mas, depois, no dia seguinte, acabava transigindo covardemente: "Esta é a última noite em que hão de ver-me nesta casa! Mas quero estar certo do matiz dos olhos de Renée Néré, e, além do mais, ontem não pude assistir ao começo do espetáculo". Enfim, já estava idiota!

— Já estava idiota! Você tem um saboroso eufe­mismo, Max! Parece-me extraordinário que um homem possa enamorar-se de uma mulher apenas por vê-la...

— Depende da mulher sobre a qual pomos os olhos.

Você não entende do assunto, Renée Néré... Imagine que, depois de tê-la visto mimologar a Emprise pela primeira vez, devo ter passado pelo menos uma hora na tentativa de esboçar as linhas do seu rosto. Logrei fazê-lo; então, nas margens de um livro, reconstituí não sei quantas vezes um pequeno desenho geométri­co que só eu mesmo seria capaz de ler. .. Havia um momento naquela peça em que você me proporcio­nava uma alegria insuportável: quando você lia, sen­tada sobre uma mesa, a carta ameaçadora do homem a quem enganava. Lembra-se? Dava uma palmada na coxa, torcendo-se de rir, e a gente sentia que aquela coxa estava nua sob o vestido justo. . . Seu gesto era um gesto robusto, o gesto de uma regateira, mas em seu rosto ardia uma perversidade aguda, fina e tão su­perior ao seu corpo acessível... Você se lembra, Re­née?

— Sim, sim. . . como não. . . Brague estava muito satisfeito comigo naquele trecho. . . Mas o que você sentia então, Max, era admiração, era desejo. Transformou-se em amor, depois?

Ele olha-me surpreso:

— Transformou-se? Nunca pensei nisso. Amava-a já, sem dúvida, desde aquela hora. Há muitas mulhe­res mais bonitas do que você, porém.. .

E ele traduz com um movimento de mão tudo o que há de incompreensível, de irremediável no amor...

— Suponhamos, Max, que, ao invés de se ter ena­morado de uma boa e pacata burguesinha como eu, houvesse caído nas garras de uma hábil e fria matrei­ra, um tipo maligno como a traça?. .. Nunca foi assaltado por esse receio?

— Nem por sombra — diz ele rindo. — Que idéia engraçada! Ora, minha querida, quando se ama não se tem tempo de pensar em tanta coisa!

Ele tem certas palavras que me punem, a mim que penso em tanta coisa!

— Benzinho — murmura ele —, por que razão você foi enfiar-se no café-concerto?

— Grande-Tolo, por que razão você não foi enfiar-se numa marcenaria? Se responder que tem outros meios de vida, para mim não é novidade. Mas eu, que quer você que eu faça? Que costure, que seja datilografa, ou então ave noturna? O music hall é a profissão dos que não aprenderam outra.

— Mas. . .

Percebo pela sua voz que ele vai dizer algo de grave e embaraçoso. Levanto a cabeça que estava deitada em seu ombro, e observo atentamente esse rosto de nariz reto e duro, de ferozes sobrancelhas e olhos muito ter­nos, onde a boca de lábios hábeis está semi-oculta pelo bigode cerrado. . .

— Mas, uma vez que estou ao seu lado, minha que­rida, que necessidade tem você do music hall?

— Psiu. . .

Sobressalto-me e, quase apavorada, obrigo-o a calar-se. Sim, ele está aqui ao meu lado, capaz das maiores generosidades. Mas isso é coisa que não me diz respei­to, não quero que concerna a mim. O fato de o meu amigo ser rico não me incita a planos pessoais. Não consigo conceder-lhe o lugar que ele ambiciona den­tro do meu futuro. Um dia, sem dúvida, esse momento chegará. E eu terei de enfrentá-lo. Não peço mais do que colar minha boca à sua, e sentir de antemão que lhe pertenço, muito embora saiba ser impossível associar sua vida à minha! Se, porventura, ele anunciasse: "Ca­so-me!", tenho a impressão de que lhe responderia po­lidamente: "Minhas sinceras felicitações!", pensando comigo mesma: "Isso não é da minha conta". Contudo, lembro-me bem de que, há quinze dias, desagradou-me o fato de ele olhar para Jadin com tanta complacên­cia...

Complicações sentimentais, fitinhas, remoer de situa­ções, solilóquios psicológicos.. . Deus! Como sou ridí­cula! Não seria cem por cento mais honesto, mais digno de uma mulher apaixonada, dizer-lhe: "Sim, como não, você está aqui, e, já que nos amamos, é a você que irei pedir tudo. É tão simples! Já que o amo sinceramen­te, você deve-me tudo: o pão impuro é apenas aquele que não vier da sua mão".

É muito justo isto que estou pensando. Deveria dizê-lo alto, ao invés de calar-me indolentemente, esfregan­do de leve minha face na doce face do meu amigo... face que me faz lembrar certa pedra-pome muito suave e agradável.

Já há muito que o velho Hamond não aparece. Obsti­na-se a ficar em casa, alegando reumatismo, gripe, tra­balhos urgentes e nem sei mais o quê. Como último re­curso, intimei-o a vir ver-me o mais depressa possível. Ele não se fez esperar. Aquele semblante discreto e de­sembaraçado, como o de um pai que visita seus jovens filhos recém casados, serviu para dobrar a alegria que senti ao revê-lo.

Eis-nos como antigamente, em afetuoso colóquio. ..

— Tal como antigamente, Hamond! E, entretanto, quanta coisa mudada!

— Graças a Deus, minha pequena! Vai, enfim, ser feliz?

— Feliz?

Olho-o com espanto, com sincero espanto.

— Não, não serei feliz. Aliás, não tenho mesmo essa pretensão. Por que haveria de sê-lo?

Hamond estala a língua: é uma das suas maneiras de censurar-me. Deve estar pensando que estou numa crise de neurastenia.

— Vamos, vamos, Renée. . . Então, a coisa não vai tão bem quanto eu imaginava?

— Vai, sim, Hamond, se vai! Vai até bem demais. Começamos, e é disso que tenho medo, a adorar-nos.

— E daí?

— E daí? Você crê, então, que isso me fará feliz? Hamond não pode conter um sorriso, e cabe-me a vez de melancolizar:

— Vê em que tormentos você me atirou de novo,

Hamond? Pois foi você, confesse-o, foi você... Tor­mentos — acrescento em voz mais baixa — que não trocaria pelas melhores alegrias.

— Eh! — faz Hamond consolado — pelo menos, ei-la salva daquele passado que a envenenava! Já esta­va farto, sinceramente, de vê-la sombria, desconfiada, mergulhada numa lembrança malsã, no terror de Taillandy! Perdoe-me, Renée, mas devo confessar-lhe que teria cometido coisas bem pouco recomendáveis para proporcionar-lhe um novo amor!

— Não me diga! Pensa você que "um novo amor", como diz, destrói a lembrança do primeiro ou. . . res­suscita-a?

Desorientado pela aspereza da minha pergunta, Ha­mond não sabe o que responder. Mas também, por que foi esbarrar tão desastrosamente na minha chaga?... E, além do mais, não passa de um homem! Que pode saber? Deve ter amado tantas vezes, que já nem. . . Sua consternação me enternece.

— Não, meu amigo, não sou feliz. Sinto-me. .. me­lhor. . . ou pior do que isso. Apenas. .. não sei abso­lutamente onde irei parar. É melhor que eu lhe fale tudo, antes de tornar-me, de uma vez para sempre, a amante de Maxime. . .

— Ou sua mulher!

— Sua mulher?

— E por que não?

— Por que não quero!

Minha resposta precipitada foi adiante do raciocí­nio; também os animais saltam para longe da armadilha, antes mesmo de tê-la visto. ..

—- Coisa sem importância, aliás — diz Hamond negligentemente. — Dá no mesmo.

— Você acha, então, que não há diferença? Para você, para muitos outros homens, talvez. Mas para mim! Lembre-se, Hamond, do que foi o casamento para mim.. . Não, não é às traições que me refiro, você se engana. Trata-se da domesticidade conjugai que conver­te a maior parte das esposas numa espécie de pajem de adultos... Ser casada é.. . como dizer? temer que a costeleta do Senhor esteja cozida demais, que a água de Vittel esteja muito fria, e a camisa mal engomada, recear que o colarinho esteja mole, e o banho, ferven­do; é assumir o extenuante papel de pára-choque en­tre o mau humor do Senhor, a avareza do Senhor, a preguiça e a gastronomia do Senhor...

— Você esqueceu-se de citar a luxúria — interrom­pe docemente Hamond.

— Não, meu amigo, não a esqueci, não!... Papel de medianeira entre o Senhor e o resto da humanida­de, aí está. Você não pode ter uma idéia completa, Hamond, você esteve casado tão pouco tempo! O casa­mento é. .. é: "Dê-me o nó na gravata!.. . Ponha a em­pregada no olho da rua!... Corte-me as unhas dos pés!... Levante-se: quero um chá de camomila... Prepare-me um clister!.. ." e mais quanta coisa: "Veja o meu terno novo, arrume a minha valise que vou cor­rendo ao encontro dela. ..." Intendente, enfermeira, pajem — enfim, é demais, é demais!

Acabo por rir de mim e do rosto comprido e escan­dalizado do meu velho amigo. . .

— Meu Deus, Renée, como você me aflige com essa mania de generalização! Recorda-se da conclusão a que chegou aquele viajante? "Neste país todas as emprega­das são ruivas!" E sou capaz de jurar-lhe que, quanto a mim, sentiria vergonha de pedir a uma mulher todos esses favores... Pelo contrário!. ..

Bato palmas:

— Viva! "Pelo contrário!" Conte-me, Hamond, con­te-me! Estou certa de que não tem rival para abotoar botinas ou prender os colchetes de uma saia feminina.

Que pena! Nem sempre podemos ter a felicidade de desposar um Hamond...

Depois de um silêncio, prossigo, presa de um verda­deiro cansaço:

— Deixe-me, como acaba de dizer, generalizar, em­bora tenha sido única a prova pela qual passei e da qual ainda me sinto cansada. Não sou mais tão jovem assim nem tão entusiasta, e nem muito generosa para sentir-me apta a recomeçar um casamento — a vida a dois, se assim prefere. Deixe-me esperar, faceira, ociosa, sozinha num quarto fechado, a vinda daquele que me escolheu para seu harém. Dele, gostaria de conhecer apenas a ternura e o calor. O que eu quero do amor é unicamente o amor.. .

— Conheço muita gente — diz Hamond, depois de uma pausa — que chamaria de libertinagem a esse tipo de amor. Dou de ombros, irritada por me fazer compreender tão mal:

— Sim — insiste Hamond —, libertinagem! Mas, para mim, que a conheço um pouco, diria que, no seu caso, trata-se de uma tendência à quimera, uma pueril paixão pelo irrealizável: o casal amoroso, isolado do resto do mundo por quatro paredes. . . é o sonho fami­liar das mocinhas que ignoram a vida. ..

— Ou das mulheres já maduras, Hamond!

Ele protesta, num gesto evasivo e polido, esquivando-se a uma resposta direta.

— Em ambos os casos, minha cara, tais mulheres não amam.

— Por quê?

Meu velho amigo atira fora o cigarro com um movi­mento quase arrebatado:

— Por quê! Mas se ainda há pouco você me disse: "O casamento é para a mulher uma domesticidade con­sentida, dolorosa, humilhada, o casamento é: 'aperta-me esta gravata, prepara-me um clister, olha essa costeleta, agüenta o meu mau humor, e atura as minhas trai­ções' "... Seria preciso dizer amor e não casamento. Pois é somente o amor que torna fácil, alegre e mesmo gloriosa a servidão da qual você tanto fala! Você detes­ta-a presentemente, renega-a, sente-lhe repugnância, porque já não ama Taillandy! Lembre-se do tempo em que, através do amor, gravata, escalda-pés, camomila, tudo se tornava um símbolo sagrado, venerado e terrível. Lembre-se do papel miserável que desem­penhava! Eu próprio tremia de indignação ao vê-la, usada como cúmplice, uma espécie de alcoviteira entre Taillandy e suas belas amigas.. . Mas naquele dia, Renée, em que você me respondeu: "Amar é obedecer", juro que perdi toda a discrição e toda a paciência... Seja franca, Renée, e diga-me se todas as suas imolações não vieram a adquirir maior preço depois que você re­cuperou seu livre arbítrio? Só agora, como está findo de vez aquele amor, você pode dar-lhe o devido valor! Antes — via-a no meio da situação, conheço-a, Renée! —, não venha dizer-me que não gozou, inconsciente­mente, da misericordiosa anestesia que proporciona o amor!.. .

De que serve responder?. .. De uma coisa estou certa, e pronta a discuti-la com a pior má fé do mundo: não seria capaz, hoje em dia, de tornar a enternecer-me, a não ser com este homem que aqui está, pormenorizando meus infortúnios conjugais e pensando nos seus. Como é jovem, e "melindroso", tão impregnado do vene­no do qual quis abster-se!. .. Eis-nos longe de minha aventura e de Maxime Dufferein-Chautel.. .

Quisera abrir-me com Hamond, pedir mesmo seus conselhos. .. Por que estrada voltamos invencivelmente ao passado, tão arranhados pelos espinhos mortos? Creio que, se Maxime entrasse de um momento para outro, Hamond e eu não teríamos tempo de recompor nossas caras, que apresentam agora um aspecto que ninguém deve ver: Hamond está amarelado pela bílis, sua face esquerda contrai-se num tique, e eu tenho as sobrancelhas muito aproximadas uma da outra, como se a enxaqueca me oprimisse a fronte, e empinado para a frente tenho meu robusto pescoço que já perde a ma­ciez, a embalagem da carne jovem. ..

— Hamond — digo muito meigamente e para mudar de assunto —, você se esqueceu de que devo partir em viagem?

— Partir. . . Sim — faz ele como um homem que acordasse subitamente. — E daí?

— E daí? E Maxime?

— Não vai levá-lo consigo?

— "Levá-lo comigo!" Não é tão simples como você pensa! É horrível a vida em tournée... a dois! O desper­tar, partidas pela madrugada ou então noite fechada, os saraus, intermináveis para quem espera, e depois os ho­téis!... Que belos prognósticos para uma lua-de-mel! . .. Nem uma mulher de vinte anos se arriscaria às surpresas da aurora, ao sono do vagão, àquele sono que vem no fim dos dias esfalfantes, e durante o qual a gente fica com o aspecto de um cadáver meio inchado. .. Não, não! É muito perigoso para mim! E creio que, afinal, ele e eu merecemos coisa melhor! Já tinha pen­sado, vagamente... em adiar a nossa. . .

— ... união. ..

— Justamente, obrigada. . . até o fim da tournée e depois, então, começar a vida nova. Oh! vida nova!... Não mais pensar, Hamond, enterrar-me com ele em qualquer canto, num lugar que pusesse ao alcance da minha boca e das minhas mãos tudo aquilo que aparece e desaparece pelas janelas do vagão: as folhas úmidas, as flores que o vento balouça, os frutos embaçados e sobretudo os regatos, a água livre, caprichosa, cantan­te •.. Você não pode imaginar, Hamond, que, quando se vive por mais de trinta dias dentro de um vagão, só o fato de avistar a água que corre por entre as mar­gens atapetadas de erva nova é suficiente para pôr arre­pios em toda a pele, como uma espécie de sede indefinível. .. Lembro-me de que, durante a minha última viagem, havia dias em que rodávamos a manhã toda e às vezes também à tarde. Ao meio-dia, víamos as mo­ças das fazendas andando pelos prados: era a hora de ordenhar as vacas. Eu via, por entre a erva densa, os baldes de cobre muito polido onde jorrava um leite espumante em jatos finos e retos. Que sede, que dolo­roso desejo vinha-me desse leite morno, coroado de espuma! Hamond, era uma espécie, juro-lhe, de verda­deiro supliciozinho cotidiano... Em resumo, queria haurir, de uma só vez, tudo o que me falta: ar puro, uma terra generosa onde tudo abunda, e o meu amigo. Num gesto involuntário, estendo os braços, com as mãos unidas, para melhor invocar o que desejo. Ha­mond mantém-se na posição de quem ainda escuta, co­mo se eu não houvesse acabado de falar:

— E depois, pequena, e depois?

— Como, "e depois?" — repito veementemente. ..

— Depois? Mas aí está tudo! Não peço mais nada.

— Que felicidade! — murmura ele consigo mesmo.

— Compreendo, mas pergunto: como viverá depois com Maxime? Renunciará às tournées? Continuará a traba­lhar no music hall?

Uma pergunta, e tão natural, é o suficiente para fazer-me estacar, de sopetão: desconfiada, inquieta, quase intimidada, olho para o meu velho amigo.

— Por que não? — digo tibiamente. Ele dá de ombros:

— Vejamos, Renée, seja um pouco razoável! Graças ao amparo de Maxime, você poderá desfrutar de um bom conforto, viver até luxuosamente e... retomar, que é o que todos nós esperamos, o domínio da pena, esse seu dom espiritual que está enferrujando. .. E, além do mais, talvez uma criança. .. Que bonito rapazinho não seria!

Imprudente Hamond! Será que ainda cede ao seu ins­tinto de ex-pintor de gênero? Esse esboço da minha vida futura, entre um amante fiel e um belo nenê, pro­duz em mim o mais inexplicável, o mais desastroso efei­to. . . E ele continua, o infeliz! E ele insiste, sem perce­ber que, diante dos meus olhos, que fogem aos seus, dança uma detestável alegria, e que da minha boca não obtém mais do que uns "sim", uns "sem dúvida" e uns "não sei" muito aborrecidos. . . tal como um discípulo interno que achasse a lição por demais longa. . .

Um lindo nenê... um marido fiel. . . não havia, en­tretanto, do que rir!

Ainda procuro atinar com o motivo que me levou àquela hilaridade. . . Uma bela criança. . . Confesso que jamais pensara nisso. Quando estava casada, não tinha tempo. Vivia tão absorvida pelo amor, ocupada com o ciúme, monopolizada por Taillandy, que não creio houvesse pensado na possibilidade de uma proge-nitura que lhe iria trazer preocupações e despesas...

Parece incrível que tenha passado 33 anos sem haver encarado a idéia de ser mãe. Uns olhos cinzentos, o pe­queno focinho afilado, a pequena raposa, miniatura da mãe, as mãos grandes e os ombros largos, como os de Maxime. .. Então! não, não. Por mais que me esfor­ce, não consigo ver, nem posso amar esse filho que pode­ria ter, que talvez venha a ter...

— Que pensa você disso, diga, Grande-Tolo, diga, meu querido?

Ele já está aqui. Chegou muito docemente. O meu coração, porém, já o tinha tão presente que prossigo com ele meu exame de consciência. ..

— Que pensa disso, Max, do filho que poderíamos ter? É Hamond, imagine você, quem o reclama!

Meu amigo abre uma boca de Pierrô, muito redonda e estupefata, e, com uns olhos muito arregalados, excla­ma:

— Que beleza! Viva Hamond! Ele terá o seu rapazi­nho! . .. e logo em seguida, se você quiser, Renée!

Tenho que defender-me, pois ele passa a atacar-me da melhor e da pior maneira, mordendo-me um pouco e beijando-me muito, com aquele ar esfaimado que tem o poder de causar-me um infundado medo. . .

— Um filho! — grita — um filho nosso! Não tinha pensado nisso, Renée! Como Hamond é inteligente! Que idéia genial!

— Você acha, meu querido? Que bruto egoísta você é! Vejo que pouco lhe importaria se eu ficasse toda deformada, e feia, e que eu sofresse, hein?

— Deformada? Feia? Pois é a senhora, o monstro! Porque a senhora ficará magnífica, o pequeno também, e todos vamos divertir-nos loucamente!

Bruscamente, porém, cessa de rir e franze suas fero­zes sobrancelhas, por cima dos olhos, tão meigos:

— Assim, pelo menos, você não poderia mais deixar-me nem correr sozinha por essas estradas, hein? Fica­ria presa!

Presa. . . Abandono-me molemente com os dedos que me seguram. .. Mas o abandono é também a arma do fraco... Presa... Ele disse a verdade no seu egoísmo exaltado... Não foi falho o meu juízo, quando, rindo, chamei-o certa vez de burguês monógamo, borralheiro pai de família.

Será que poderia, então, protegida pela sua sombra, esperar tranqüilamente o fim de meus dias? Estes seus olhos fiéis amar-me-ão ainda no tempo em que, um a um, forem-se apagando todos os meus encantos?. .. Ah! que diferença do... do outro!

Bem, mas o outro também falava como senhor... Parece que ainda lhe ouço a voz falando baixinho, apertando-me com um punho rude: "Vê se andas na linha! Do contrário, sei como te pegar. . ." Acaricio a fronte deste que aqui está, deste incauto, deste inocente, murmurando-lhe: "Meu molequinho. . . meu molequinho..."

— Não me chame de seu "molequinho", querida! Isto me torna ridículo!

— Fá-lo-ei ridículo quantas vezes quiser. Você é meu molequinho, porque é mais jovem do que. .. aparenta ser, porque você sofreu muito pouco, foi muito mimado, e porque você não é mau. . . Escute, meu molequinho: eu vou-me embora.

— Não sem mim, Renée!

Que grito! Estou arrepiada de tristeza e de prazer. ..

— Sem você, meu querido, sem você! É preciso. Ouça, Max. .. Não. .. Max. .. eu tenho que falar ain­da que depois.. . Ouça, Max! Você não quer, então, você não me pode esperar? Não gosta de mim o sufi­ciente para poder fazer isso?

Ele desvencilha-se das minhas mãos e afasta-se vio­lentamente.

— O suficiente! O suficiente! Oh! as primorosas de­duções femininas! Não a amaria o bastante se a seguis­se, não a amaria o bastante se ficasse! Diga-me, Renée, confesse-o; se eu lhe respondesse: "Bem, querida, eu a esperarei", que lhe passaria pela cabeça, hein? E agora diga-me: e você, que parte quando poderia deixar de fazê-lo, como quer que eu vá acreditar que me ama de verdade? Com efeito.. .

Ele se planta à minha frente, cabeça erguida, cheio de incerteza:

— Você o disse alguma vez?

— Mas o quê?

— Que me ama?

Sinto-me corar, como se me houvessem apanhado em flagrante. ..

— Você nunca o disse! — repete teimosamente.

— Oh! Max!

— O que me disse. .. o que diz: "Querido... Meu Grande-Tolo amado. . . Max. . . Meu caro amigo..." Você lamentou-se em altas vozes, como se estivesse can­tando, no dia em que. ..

— Max!...

— Sim, naquele dia em que você não conseguiu evi­tar chamar-me "Meu amor". .. Mas, mesmo assim, não disse: "Eu o amo!"

É verdade. É o que eu receava. Tinha um medo louco de que ele viesse a aperceber-se disso. Certo dia, foi sem dúvida um belo dia aquele. .. eu suspirava tão forte­mente entre seus braços que a frase "amo-o" escapou da minha boca, como um suspiro apenas, um suspiro, um pouco mais alto, que me tornou, logo em seguida, muda e fria. ..

"... Amo-o..." Não quero mais dizê-lo, não quero dizê-lo nunca mais! Não quero mais ouvir esta voz, que é minha própria voz de antigamente, entrecortada, bai­xa, murmurando sem resistência a mesma palavra de outrora... Só que, pobre coitada, não conheço ou­tra... Não há outra. . .

— Diga-me, diga-me, diga que me ama! Diga-me, suplico-lhe.

Meu amigo ajoelhou-se diante de mim. Essa sua im­periosa prece não me dará sossego. Sorrio-lhe de muito perto, como se lhe resistisse, como se estivesse a brincar com ele, e subitamente tenho vontade de fazer-lhe mal, para que ele também sofra um pouco. .. Mas vejo-o tão meigo, tão alheio ao meu pensar. .. Por que apoquentá-lo? Ele não o merece. ..

— Pobre querido. .. seja assim, não fique triste! Sim, eu o amo, amo-o, oh! se o amo!... Mas não quero dizer-lho. Se soubesse quanto orgulho levo dentro de mim!

Apoiado em meu peito, ele fecha os olhos, aceita mi­nha mentira com uma segurança muito terna e escuta-me dizer "amo-o", quando não se ouve mais minha voz...

Estranho fardo sobre estes braços, estes braços que tanto tempo estiveram vazios! Não sei embalar uma criança tão grande. Como pesa sua cabeça! Mas que repouse aí, confiante, confiante!

Confiante... já que uma aberração clássica o faz ter ciúmes de meu presente, de meu futuro, mas repousa confiante sobre este coração onde um outro habitou por tanto tempo! Ele não percebe, imprevidente, imprudente amante, que partilha meu coração com uma lembrança, e que não provará a glória, aquela glória, a melhor de todas, de poder dizer-me: "Trago-lhe uma alegria, uma dor que você nunca conheceu..."

Aí o tenho, sobre meu peito. . . Por que ele e não outro? Não sei. Inclino-me sobre sua fronte, num dese­jo de protegê-lo, de encontrar a mim, de pedir-lhe descul­pas por lhe estar dando apenas um coração desapropria­do, senão purificado. Quisera salvá-lo do mal que tal­vez venha a causar-lhe... Aí está! Margot havia previs­to: volto à caldeira. .. uma caldeira garantida, que nada tem de infernal: diria que se parece antes a um familiar caldeirão. ..

— Acorde, querido!

— Não estou dormindo — murmura ele sem mexer os belos cílios... — Respiro-a. ..

— Enquanto estiver viajando, você ficará à minha espera em Paris? Ou prefere ir para as Ardenas, para a casa de sua mãe?

Ele levanta-se sem responder, recompondo os cabe­los com a palma da mão.

— Falou alguma coisa?

Pega o chapéu de sobre a mesa, e vai-se indo, olhos baixos, sempre mudo. . . Num salto alcanço-o, agarro-me a seus ombros:

— Não vá, Max! Não vá! Faço o que você quiser! Volte! Não me deixe sozinha! Oh! não me deixe sozi­nha!

Deus meu! Que se passou comigo? Não sou mais do que um humilde trapo banhado em lágrimas.. . Ao afastar-se, vi que com ele se afastavam de mim o calor, a luz, e este segundo amor, todo misturado às cinzas ar­dentes do primeiro — mas tão caro, tão inesperado. .. Agarro-me ao meu amigo, com mãos de náufrago, ga­guejando obstinadamente, sem procurar escutá-lo:

— Todo mundo me abandona!.. . Estou sozi­nha! . . .

Ele bem sabe, ele que me ama, que, para acalmar-me, é dispensável o recurso das palavras, da lógica. Braços acalentadores, o quente murmúrio de vagos nomes cari­nhosos, e beijos, beijos. . .

— Não me olhe, querido! Devo estar muito feia, com os olhos inchados, com o nariz vermelho... Sinto-me envergonhada por ter sido tão boba!

— Minha Renée, minha bonequinha! Como fui gros­seiro! . .. Sim, sim, não passo de um grande bruto! Renée, você quer que a espere em Paris? Então vou esperá-la. Quer que vá para a casa de mamãe? Pois irei para a casa de mamãe!

Indecisa, embaraçada com minha vitória, já nem sei mais o que quero:

— Escute, Max querido, eis o que é preciso fazer: partirei sozinha, tão lesta como o cão que foge da chiba­ta. .. Vamos escrever-nos todos os dias. . . Seremos heróicos, não é? Saberemos corajosamente esperar pelo momento, pelo belo 15 de maio que nos unirá para sempre. Está bem assim?

Meio sucumbido, o herói acena com a cabeça, aquiesce resignadamente.

— Quinze de maio, Max!... Ah! eu tenho quase a certeza de que nesse dia — digo em tom mais baixo —, de que nesse dia jogar-me-ei em seus braços como aque­les que, irremediável e inconscientemente, se jogam ao mar...

Sob o abraço e o olhar que me respondem, perco um pouco a cabeça.

— E depois, escute... se nos for de todo impossível esperar, que fazer! Tanto pior... Você irá ao meu en­contro ... Eu o chamarei. .. Está contente? Pensando bem, heroísmo é idiotice. . . E a vida é curta. .. Está combinado! O mais infeliz partirá ao encontro do outro, ou escreverá marcando um encontro. .. Mas o mais conveniente, o mais sensato seria agüentar esta ausên­cia, pois uma lua-de-mel passada num vagão.. . Que tal? Está mais satisfeito? Que é que você está procu­rando?

— Tenho sede, Renée, imagine só! Morro de sede! Quer chamar Blandine?

— Não há necessidade! Espere um instante: vou buscar o que você quer.

Feliz, passivo, ele deixa-se servir, e eu olho-o beber, como se estivesse a fazer-me um grande favor. Se fosse do seu agrado, ainda lhe faria o nó da gravata e cuida­ria do jantar com especial cuidado. E havia ainda de trazer-lhe os chinelos. .. E ele não estaria fora do seu papel de dono, se me perguntasse autoritariamente: "Onde vai você?" Fêmea fui, fêmea volto a ser... para meu sofrimento e para meu prazer...

O crepúsculo esconde meu rosto retocado apressada­mente. Sentada em seus joelhos, tolerante, deixo que beba em meus lábios um hálito ainda alterado pelos so­luços de há pouco. Beijo, quando me passa pela boca, uma das mãos que desce da minha testa à garganta... Recaio em seus braços num estado de vítima mimada, e que a meia voz vai-se queixando do que não quer ser e nem pode impedir. . .

Mas eis que, de um salto, ponho-me subitamente em pé, lutando com ele, sem nada dizer, breves momentos ao cabo dos quais me desvencilho dos seus braços e grito:

— Não!

Foi bem feito, eu tinha que me deixar surpreender, e aí, nesse bendito canto de diva! Foi tão hábil e rápida a sua tentativa!. . . Posta a salvo, olho-o sem cólera, envio-lhe apenas uma censura:

— Por que tez isto? É lamentável, Max!

Como que rastejando, lá vem ele se achegando, obe­diente, arrependido, tropeçando nas cadeiras, na mesinha, e gaguejando: "Perdão!. .. não farei mais!... Querida, é tão duro esperar. . .", numa súplica infantil, quase exagerada. . .

Não posso distinguir bem os traços do seu rosto, pois é quase noite. Mas julguei adivinhar há pouco, através da rudeza da tentativa, tanto do cálculo quanto de en­tusiasmo. .. "Você está presa! Não poderá mais correr sozinha pelas estradas..."

— Pobre Max! — digo-lhe docemente.

— O quê? Você estará por acaso caçoando de mim? Fui ridículo, Renée?

Sua humilhação é suave, intencional. Quer atrair o meu pensamento sobre o seu gesto e assim impedir-me de ruminar, de encontrar os verdadeiros motivos que o moveram a um tal proceder... E eu minto um pouqui­nho, a fim de tranqüilizá-lo:

— Não. Não estou caçoando de você, Max. Nenhum homem, quer saber, se arriscaria a atirar-se assim, como você, grande diabo, sobre uma mulher. .. pois estaria certo de que com isso iria perder todo o prestígio! Sua simplicidade provinciana, seus olhos de lobo amoroso — é no que está a sua salvação! Você mais parecia um trabalhador que volta à noitinha do trabalho e que, à beira do caminho, se detém para atacar uma moça inde­fesa. ..

Deixei-o só. Diante do espelho, retoco o círculo azu­lado que me contorna os olhos, fazendo-os aveludados e como que ondulantes. Agora pego um sobretudo e um desses chapeuzinhos fundos que irei plantar na cabeça: um desses chapéus cuja forma e matizes fazem com que Max se recorde de Fleurs animées de Champfleury, des­sas pequenas fadas-flores cobertas de uma papoula em­borcada, de um sino de junquilho e de uma grande íris de pétalas recurvadas.

Vamos sair, os dois juntos, e rolar suavemente de automóvel pela obscuridade do Bosque. Como gosto desses passeios noturnos. . . durante o percurso, na sombra, vou segurando a mão do meu amigo para que sinta que estou junto dele, para sentir que ele está junto de mim. Fecho os olhos, sonho que estou partindo, com ele, para um lugar desconhecido, onde não terei passa­do, nem nome, onde vou renascer com um novo rosto e um coração ignorante. . .

Mais uma semana, e será chegada a hora. ..

Será que chegarei a partir? Há horas e dias em que tenho dúvidas a respeito. Principalmente naqueles dias de primavera precoce, em que meu amigo me leva para fora de Paris. Passeamos, então, por esses parques vul­gares, povoados de autos e de bicicletas, mas que a acre e fresca temperatura envolve num doce mistério. Ao cair da tarde, forma-se uma névoa malva, que adensa as avenidas, e o fortuito achado de um jacinto selvagem, com suas três campânulas franjadas de um azul puríssi­mo balouçando ao vento, tem o gosto de uma apropria­ção clandestina. ..

Na semana passada, caminhamos por longo tempo, sob o sol matinal, pelo Bosque adentro, onde galopavam os palafreneiros. Seguíamos, um apoiado no outro, os dois ativos, contentes, pouco falantes; eu cantarolava uma ariazinha daquelas que ajudam a gente a estugar o passo. . .

No desvio de uma alameda destinada aos cavalos, deserta naquela hora, estacamos, cara a cara com uma corça muito nova, dourada, que, atarantada com a nossa súbita presença, em vez de fugir, ficou como que prega­da ao chão.

Ela arfava de emoção e seus finos joelhos tremiam, mas seus olhos grandes, alongados por um traço escuro — como os meus —, expressavam mais embaraço do que medo propriamente. Ah! que vontade eu tinha de tocar suas orelhas, empinadas em nossa direção, cober­tas de uma sedosa e rasa pelúcia, como as folhas de certas plantas, e seu focinho suave como um veludo algodoado. Cheguei a estender a mão, mas, tão logo iniciei o gesto, ela virou-se num movimento selvagem, e desapareceu.

— Se estivesse caçando, Max, você a teria matado? — perguntei.

— Matar uma corça? Por que não uma mulher? — respondeu ele simplesmente.

Naquele mesmo dia, almoçamos em Ville-d'Avray, num restaurante que tem suspensos à beira da água uns terraços singulares destinados às refeições e outros ao repouso. Portamo-nos sòbriamente, como dois amantes já saciados... Foi-me agradável averiguar que, em Max, existe a mesma tranqüilidade apaixonada que en­contro no ar livre, no vento puro, nas árvores, tranqüi­lidade comunicativa da qual me sinto impregnada, to­mada . . . Debrucei-me no parapeito do terraço, olhando a água mansa e turva da laguna, oxidada em certos trechos, e as aveleiras com suas flores em penca. Mas depois, meus olhos voltaram-se outra vez para o bom companheiro de minha vida, com uma sólida esperança de edificar, para ele, uma felicidade que fosse tão longa quanto a própria existência...

Chegarei a partir? Há horas em que me ocupo, como se estivesse sonhando, com a minha viagem. O estojo de pintura, a manta que uso no trem, o impermeável, exu­mados dos armários, reapareceram, à luz do dia, defor­mados, remendados, saturados de viajar. Já andei esva­ziando, e com nojo, caixas de branco-gordura rançoso, e de vaselina amarelada, cheirando a petróleo. . .

Estes instrumentos de trabalho, como os manuseio agora sem amor. . . E Brague, que veio dar-me as últi­mas, foi recebido distraidamente, e de maneira tão pouco gentil, que se fez frio e, pior ainda, foi-se embora com um "até breve, minha cara amiga", dito no mais cortês dos tons. Ora! Terei muito tempo para vê-lo, são quarenta dias, quarenta dias para desopilá-lo!... Aliás, espe­ro-o a qualquer momento; virá dar-me as últimas instru­ções. Max chegará um pouco mais tarde. ..

— Bom dia, minha cara amiga.

Já contava com isso. Meu colega está ainda zangado.

— Chega, Brague, já é demais! Esse gênero fidalgo-aldeão é coisa que não encaixa com você! Estamos aqui para falar seriamente. Essa sua história de "cara ami­ga" faz-me pensar em Dranem como Rei-Sol!

Alegrando-se rapidamente, Brague pula:

— Gênero fidalgo-aldeão! E por que não? É só que­rer, ultrapasso Castellane. Nunca me viu de fraque?

— Não!

— Nem eu... Ouça, Renée, esta sua pequena alcova é escura! Que tal se fôssemos para o quarto? Lá con­versaríamos melhor, não?

— Vamos para o quarto. . .

Brague logo avista a fotografia de Max que tenho sobre a lareira: Max num terno novo, muito ereto, o negro dos cabelos muito negro, o branco dos olhos mui­to branco, bastante oficial e um tanto risível, mas assim mesmo bem guapo.

— Esse tipo deve ser o seu amigo, não é?

— É... é o meu amigo, sim.

E sorrio, toda gentil, com um ar idiota.

— É bem grã-fino, não há dúvida de que é bem grã-fino! Juraria ser alguém do governo. .. De que está rindo?

— De nada. .. dessa idéia de ser ele do governo! É uma idéia engraçada, mas infeliz, ele está bem longe disso.

Brague acende o cigarro, e observa-me com o rabo do olho:

— Ele vai com você? Dou de ombros.

— Não, ora! Não é possível. Como quer que o leve?

— Mas, aí está, justamente, eu não quero! — excla­ma Brague, já mais sereno. — Está bem, rapariga, você sabe o que faz! Tenho visto viagens azaradas, porque a Senhora não quer deixar o Senhor, ou o Senhor não dei­xa de vigiar a Senhora! E é discussão pra cá, é beijoca-gem pra lá, e mais briguinhas e reconciliações com rapa­pés, enfim, toda uma situação sem conserto, e o resulta­do: a cena é que paga, pois surgem as pernas moles, os tapa-olhos — o tipo da vida insuportável. Qual!... Via­gem agradável é aquela que se faz entre camaradas! Você me conhece, e quanto a isso fui sempre da mesma opinião: amor e negócios, eis duas coisas que não se casam. E depois, afinal, quarenta dias não são uma eter­nidade. Há o correio à disposição, e, por fim, o novo encontro, a nova junção. .. Tem escritório próprio, o seu amigo?

— Escritório? Não, não tem escritório.

— Tem... uma fábrica de carros? Ou... biscateia?

— Não.

— Não faz nada?

— Nada.

Brague assobia de uma forma que poderia ser dupla­mente interpretada. ..

— Nada de nada?

— É, nada. Isto é, ele tem terras.

— É espantoso.

— O que é que lhe faz espanto?

— Que seja possível viver-se assim. Não tem escri­tório. Nem fábrica. Não tem ensaios. Nem cavalos de corrida! E você não acha isto engraçado, diga?

Olho-o sem encará-lo, constrangida e um tanto cúm­plice:

— Sim.

Não teria outra resposta a dar. A ociosidade do meu amigo, aquela sua vadiagem de ginasiano em férias perpétuas, é fato que me assusta, que quase me escanda­liza. . .

— Eu, numa situação idêntica, definharia na certa — declara Brague, após um silêncio. — Questão de hábito!

— Sem dúvida. . .

— Agora — diz Brague, sentando —, falemos pouco e acertadamente. Tem tudo de que necessita?

— É lógico, ora! Minha roupa de Dríade, a nova, um sonho! Verdinho como um gafanhoto e sem pesar mais do que 500 gramas! A outra, mandei arranjar e bordar de novo, limpar também. Você juraria que é nova em folha! Creio que agüentará bem umas sessenta repre­sentações.

Brague franze a boca:

— Hum. .. tem certeza? Você poderia ter arranjado uma casca nova para a Emprise!

— Pois sim, e você a teria pago, não é? E o seu calção, diga-me só, e o seu calção da Emprise, aquele de pele de gamo e todo bordado: está lustroso de tão ense­bado que está! E, no entanto, nunca me pus a recrimi­ná-lo, aí está!

Meu colega levanta a mão num ar dogmático:

— Perdão, perdão! Não façamos confusões! Meu calção é magnífico! Como acontece com o bronze anti­go, criou uma crosta, uma patina, que lhe dá mais va­lor: fica com o aspecto de um grés artístico! Seria um crime substituí-lo!

— Você não passa de um unha-de-fome muito gran­de! — digo, dando de ombros.

— E você, de uma rabugenta!. ..

Ah! como faz bem uma ligeira altercação! Repousa. Estamos os dois por demais abespinhados para que o bate-boca se assemelhe a um caloroso ensaio. . .

— ... Chegou! — grita Brague. — Questão roupas está encerrada. Passemos à questão bagagens.

— Como se, para isso, eu tivesse necessidade de você! É por acaso a primeira vez que viajamos juntos, é? Você pretende ensinar-me o quê? A dobrar minhas blu­sas?

Por entre as pálpebras franzidas pelas caretas pro­fissionais, Brague deita-me um olhar esmagador:

— Pobre criatura! Cérebro opaco! Bestunto capenga! Papagueie, papagueie, faça barulho, veja se acorda o seu besouro! O que eu pretendo ensinar-lhe? Provavel­mente o que você não sabe! Por isso, escute o que eu vou dizer-lhe e trate de aprender: as bagagens, as exce­dentes, correm por nossa conta, está claro?

— Psiu!. ..

Calo-o com um sinal, agitada por ter ouvido na antecâmara dois discretos toques de campainha. .. É ele! E Brague ainda aqui!. .. Enfim, eles já se conhecem.

— Entre, Max, entre. .. É Brague. . . Estamos fa­lando sobre a tournée, isto não o aborrece?

Não, isto não o aborrece; mas a mim, constrange-me um pouco. Meus negócios de music hall são coisas sem importância, precisas, comerciais, e nas quais não gosta­ria de envolver meu amigo, meu querido e preguiçoso amigo. . .

Brague, que é muito gentil quando quer, sorri a Max.

— Permite-me, senhor? É do cardápio do ofício que estamos tratando, e aqui me vanglorio de ser um cozi­nheiro econômico, que não deixa que nada se perca, nem que as panelas se entornem.

— Ora, esteja à vontade! — protesta Max. — Muito ao contrário do que pensam, ser-me-á até interessante ouvi-los, pois que nada entendo do assunto e apresenta-se agora uma boa oportunidade para instruir-me um pouco a respeito. . .

Que mentiroso! Se lhe fosse assim tão interessante, não teria um ar tão maldoso e tão triste. ..

— Bem, recomecemos! — prossegue Brague. — Na última viagem, a de setembro, arcamos, não sei se você está lembrada, com 10 e 11 francos do excedente das bagagens por dia, como se fôssemos Carnegie.

— Todos os dias não, Brague!

— É. Houve dias em que demos 3 francos pelo exce­dente. O que já é muito. Quanto a mim, confesso que já estou farto dessa doação. Que é que você leva como bagagem, além da valise?

— Minha mala preta.

— A grande? É loucura. Daremos um fim nela. Max tosse. ..

— Você vai fazer o seguinte: vai-se arranjar com a minha. Em cima, poremos roupas de cena. No segundo compartimento a roupa branca, suas blusas, calças, meias, minhas camisas, cuecas, etc. . .

Max se mexe. ..

— ... e, no fundo, irão os sapatos, um vestido seu e um terno meu para termos o que trocar, e mais os en­feites e coisas pequenas. Entende?

— Sim, bem pensado.

— Entretanto. .. — diz Max.

— Dessa maneira — continua Brague —, teremos um só pacotão (o Troglodita que se arranje! Sua mãe, que é toda carinhos, ela que lhe empreste um cesto!), um só, compreende? Supressão do excedente, redução de gorjetas ao pessoal das estações e aos rapazes do teatro, etc. Macacos me lambam, se não conseguirmos tirar uns 100 níqueis por dia, cada um. Você troca roupa branca todos os dias, quando viaja?

Coro, por causa de Max.

— De dois em dois dias. . .

— Bom, isso é com você. Como nos grandes centros, como Lião, Marselha, Toulouse, Bordéus, a gente man­da lavar as roupas, calculo umas doze camisas, doze ceroulinhas e o resto em proporção. Não sou grande e generoso? Enfim, confio em você, sei que será razoável.

— Esteja descansado.

Brague levanta-se e aperta a mão de Max:

— Como vê, meu senhor, não há delongas, é tudo rápido. Quanto a você, encontro-a na estação, às 7 e um quarto, quarta-feira de manhã.

Acompanho-o até a antecâmara. Ao voltar, colhe-me uma tempestade de protestos, de queixas e censuras:

— Renée! É monstruoso! Não é possível! Você per­deu a cabeça! Suas blusas, as suas blusas, e as tão mi­mosas calcinhas, meu amor querido, misturadas às ceroulas desse indivíduo! E, pelo visto, mais as suas meias, meu bem, com as meias dele! E tudo isso para economi­zar 100 níqueis por dia! Que ridículo e que miséria!

— Como, que miséria? São 200 francos!

— Sim, bem sei disso! É uma mesquinharia! Contenho-me para não lhe dar uma resposta que iria feri-lo: ah! menino mimado, como poderia você ter aprendido que o dinheiro, esse dinheiro que se ganha, é uma coisa respeitável, séria, que se manuseia com cui­dado e da qual se fala gravemente?

Ele enxuga a fronte, com um belo lenço de seda vio­leta. De algum tempo para cá, meu amigo dá provas de uma extrema preocupação de elegância: veste magnífi­cas camisas, seus lenços combinam com suas gravatas, calça com polainas de pele de gamo. . . Tais pormenores não me passam despercebidos, pois adquirem, no conjunto, um tanto pesado, na aparência deste Grande-Tolo, uma importância quase chocante.

— Por que concorda com isso? — pergunta ele, nu­ma admoestação. — É odiosa, esta promiscuidade!

Promiscuidade! Esperava por essa palavra. É muito usada... A "promiscuidade dos bastidores".. .

— Diga-me, querido — com dois dedos ponho-me a separar as pontas dos seus bigodes negro-acobreados —, se se tratasse de suas camisas e de suas ceroulas, não se­ria também promiscuidade? Pense um pouco: não passo,

afinal, de uma rapariga de café-concerto, uma rapariga ajuizada que vive do seu trabalho. . .

Ele aperta-me, de súbito, contra seu peito, ciente de que está quase a me esmagar:

— Que vá para o diabo, esse seu trabalho. .. Ah! quando você for inteiramente minha, aí sim! vou ofere­cer-lhe viagens em vagões de luxo, e uma profusão de flores, de vestidos e mais vestidos, de tudo que encontrar de belo, de tudo que inventar de maravilhoso!

Sua bela voz sombria enobrece essa promessa tão co­mum. Nela ouço vibrar, como que valorizando as pala­vras, o desejo tão sincero que este homem tem de pôr todo o universo a meus pés. . .

Vestidos? Por certo, ele deve achar severa e bem monótona a crisálida neutra dos meus vestidos cinza, marrom, azul-escuro, que troco, sob as luzes da ribalta, pelas gazes coloridas e as saias irisadas, esvoaçantes, com grandes lantejoulas luminosas. .. Vagões de luxo? Mas que fazer com eles? Não vão mais longe do que os outros...

Fossette insinuou entre nós seu crânio de bonzo, tão reluzente como madeira de palissandra... Minha pe­quena companheira já pressente a partida. Reconheceu a valise de quinas machucadas, o impermeável, a caixa inglesa esmaltada de preto, a caixa de maquilagem. .. Sabe que não a levarei comigo, mas já está resignada a uma espécie de nova vida que não lhe será em nada cruel: passeatas pelas fortificações em companhia de Blandine, serões na casa da senhoria, jantares na cidade e merendas pelo Bosque. . . "Sei que voltarás", dizem-me os seus olhos mudos, "mas quando?"

— Max, Fossette adora-o: você tomará conta dela?

Pronto, mais esta! O simples fato de nos debruçar­mos ambos sobre este pequeno animal inquieto foi o bastante para que o pranto nos assomasse aos olhos. Com um esforço, que me faz doer a garganta e o nariz, procuro reter o meu. . . Como são belos os olhos do meu amigo, com os cílios molhados, aumentados por duas lágrimas luminosas! Ah! Por que me afastar dele?

— Vou buscar agora mesmo — murmura, com voz estrangulada — uma. . . uma bonita bolsa de mão que. .. que encomendei para você. .. muito sólida... boa para a viagem. . .

— É verdade, Max?

— De... pele de porco. ..

— Vamos, Max, ora meu amigo! Tenha um pouco mais de coragem!

Ele se assoa com revolta:

— Para quê? Não faço a mínima questão de ser corajoso! Pelo contrário. ..

— Somos ridículos. Nenhum de nós dois ter-se-ia entregado a esta comoção se Fossette não agisse como um excitante. É o caso da "mesinha" de Manon, e do regalo de Poliche, lembra-se?

Maxime enxuga os olhos, lenta e cuidadosamente, com aquela simplicidade com que faz todas as coisas e que o salva do ridículo.

— É bem possível, minha Renée... Aliás, se você quiser ver-me todo transformado em fonte, é só falar deste pequeno apartamento, de tudo o que a rodeia aqui, tudo o que não verei mais até que você esteja de volta. Este velho diva, a poltrona em que você costuma ler, os seus quadros, o raio de sol que caminha pelo tapete, do meio-dia às 2 horas...

Ele sorri, muito comovido:

— Não me fale da pá, da lareira, das tenazes, que eu não resistirei!. ..

Ele saiu. Foi buscar a linda bolsa de pele de porco.

— Quando vivermos juntos — disse-me meigamente antes de sair —, gostaria que me desse os móveis deste seu pequeno salão. . . Você concorda? Mandarei fazer outros para cá.

Sorri, para evitar uma recusa. Estes móveis, na casa de Max? Estes destroços de um mobiliário conjugai, abandonados por Taillandy, como uma irrisória compen­sação pelos direitos de autor que me roubou. Nem pensei em substituí-los, por falta de verba. Que bela estrofe da "mesinha" eu poderia entoar sobre esta madeira de car­valho com pretensões holandesas, sobre este velho diva sovado por brincadeiras. . . para as quais nunca fui con­vidada! Ah! entre esta mobília surrada, quanta vez des­pertei cheia de medo, com o louco pavor de que a minha liberdade não passasse de um sonho.. . Sim, singular presente de núpcias para um novo amante. Um lar, não... o que deixo atrás de mim é apenas um abrigo, uma toca: as carruagens, quer de segunda ou de primei­ra classe, os hotéis de todas as categorias, os sórdidos camarins dos music halls de Paris, do interior e do es­trangeiro, foram-me mais familiares, mais tutelares do que isto, a que meu amigo chamou "um recanto acolhedor"!

Quantas vezes fugi deste rés-do-chão, como se pro­curasse fugir de mim mesma? Hoje, que me vejo de partida, amada e amando, quereria ser mais amada e mais amante ainda, totalmente irreconhecível aos meus próprios olhos. . . E muito cedo, sem dúvida, e tal mo­mento chegará a seu tempo. . . Mas, pelo menos, parto agitada, transbordando tristeza e esperança, levando co­migo a pressa de voltar — sinto em mim o impulso bri­lhante da serpente que se solta da sua pele morta, e que oscila, atraída pelo seu novo rumo. . .

 

Adeus, amigo muito amado. Minha mala já está fe­chada. A bonita bolsa de "pele de porco", a roupa de viagem e a longa gaze com que irei envolver o chapéu, tudo pronto, à espera do despertador. Estão arrumadinhos, tristes e bem comportados, ali, sobre o nosso gran­de diva. Como já me sinto afastada, a salvo da minha fraqueza, dou-me a esta alegria de escrever-lhe a minha primeira carta de amor. . .

Você irá recebê-la amanhã de manhã, justamente na hora em que deixarei Paris. Não é mais do que um "até breve", escrito antes de dormir, quando estou sentindo que o amo muito, que lhe pertenço, que estou desolada por deixá-lo. . .

Não se esqueça de que prometeu escrever-me "a todo momento", de que prometeu consolar Fossette. Quanto a mim, o que prometo é trazer-lhe de volta uma Renée cansada de "girar", castigada pela solidão e livre de tu­do, menos de você.

Sua

Renée

... A sombra de uma ponte passa, rápida, pelas pálpebras que conservo fechadas. Reabro-as. Vejo fugir, à esquerda do trem, uma plantação de batatas bem juntinha à alta muralha das fortificações. ..

Sou a única pessoa que viaja nesse vagão. Severa­mente econômico, Brague vai de segunda, com o Antigo Troglodita. Um dia chuvoso, esmaecido como uma auro­ra cinza, pesa sobre o campo, por onde paira indecisa a fumaça das fábricas. São 8 horas, primeira manhã de viagem. Depois do breve abatimento que se seguiu à agitação da partida, caí numa imobilidade enfadonha, que me predispõe a esperar pelo sono.

Velha hóspeda das estradas de ferro, ergo-me e já maquinalmente me ponho em preparativos: desdobrar a manta de pêlo de camelo, encher as duas almofadas de borracha revestidas de seda — uma para os rins, outra para a nuca — e resguardar os cabelos desprotegidos sob um véu tão acastanhado quanto eles... É tarefa que executo metódica e cuidadosamente, enquanto uma inexplicável e súbita cólera faz-me tremer as mãos. .. um verdadeiro furor, sim um verdadeiro furor contra mim própria! Parto! E cada volta que essas rodas dão afasta-me mais de Paris. Parto, quando na ponta dos carvalhos uma primavera gelada está-se abrindo em du­ros brotos, quando tudo está frio, envolto num nevoeiro que cheira a inverno, parto quando, a esta hora, pode­ria estar gozando do aconchego, do calor de um aman­te! Ah! E parece que tal cólera me acende uma sede devoradora de tudo o que é bom, luxuoso, fácil, egoísta, uma necessidade de deixar-me rolar pela mais macia das encostas, de cingir com braços e lábios uma felicidade tardia, tangível, comum e deliciosa. ..

Tudo é fastidioso para mim, nestes arrabaldes conhe­cidos, nestes vilarejos insossos onde bocejam burgueses encamisolados, gente que se levanta tarde para encurtar o vazio dos dias. .. Mais valia não me ter separado de Brague, seguir com ele naquelas banquetas estofadas de um azul encardido, entre a tagarelice cordial, o odor hu­mano do vagão repleto, a fumaça dos cigarros bara­tos. . .

O ta-ta-tam do trem, que ouço sem querer, serve de acompanhamento ao motivo da dança da Dríade que estou cantarolando com uma obstinação maníaca. .. Quando tempo irá durar este estado de depressão? Ah! sinto-me oprimida, enfraquecida, exangue. Lembro-me de que, mesmo nos meus dias mais tristes, à simples vis­ta de uma paisagem, por medíocre que fosse, a escapar-se rápida pela esquerda e pela direita do trem, embaça­da, por momentos, por aquelas baforadas que se vão esgarçando, que se vão cardando pelas cercas de espinheiros, meu ânimo reagia, como sob o efeito de um tô­nico curativo. Tenho frio. A desagradável sonolência da manhã faz com que me encolha, com a sensação de quem, em vez de dormir, vai desmaiar, agitada por so­nhos aritméticos, infantis, onde baila esta pergunta fatigante: "Se atrás de ti deixas a metade de ti mesma, neste caso perdeste 50% do teu valor primitivo?"

Dijon, 3 de abril

Sim, sim, passo bem. Sim, encontrei a sua carta; sim, tive êxito. . . Ah! meu querido, quero que saiba da ver­dade toda! Ao deixá-lo, mergulhei no mais absurdo, no mais impaciente dos desesperos. Por que fui partir? Por que me fui separar de você? São quarenta! Quarenta dias, Max! Como poderei agora, diga-me, suportá-los? E dizer que estou apenas e ainda na terceira cidade!

A Ia troisième ville

En or, en argent. . .

Son amant 1'habille. *

 

*Canção popular francesa: Na terceira cidade/ Seu amante veste-a/ De ouro e de prata.

 

Não, bem-amado, não é de dinheiro, nem de ouro tampouco que esta coitada precisa: ela precisa apenas de você. Choveu, nas duas primeiras cidades da tournée, choveu o tempo todo em que lá estivemos, permitindo-me, assim, saborear melhor o abominável abandono em que me encontro, entre paredes de hotéis, paredes que dão para o chocolate, que dão para o bege, as destas sa­las de jantar em falso carvalho que a luz do gás torna ainda mais sombrias.

Você ignora o desconforto, filho mimado da Senhora Nunca-Pára. Quando estivermos de novo juntos, contar-Ihe-ei, para sua indignação e para meu proveito (pois irá querer-me ainda mais), o que é voltar à meia-noite para o hotel, com a pesada caixa de maquilagem sob o braço cansado, e esperar ainda, corpo rente à porta, sob a névoa fina da rua, que o moroso porteiro noturno de­cida levantar-se para abri-la. E depois vem o quarto pavoroso, com lençóis mal enxutos, mais o miserável jarro de água quente, que a gente já encontra fria. . . E por que haveria eu de obrigá-lo a partilhar destas ale­grias cotidianas? Não, meu querido, deixe que eu po­nha à prova minha resistência, antes de gritar-lhe: "Ve­nha, não agüento mais!"

Faz bom tempo aqui em Dijon. Este sol, acolho-o ti­midamente, como um presente que a qualquer momen­to me podem tirar. . .

Vá consolando Fossette. Ela é tão sua quanto minha. Não se esqueça, porém, de que ela não lhe perdoaria, estando eu ausente, um excesso de amabilidades. Tem o tipo de tato da cachorra buli. Quando a abandono, deixa-se levar ao ápice de uma delicada austeridade sen­timental, e ofende-se, quando um terceiro afetuoso, apercebendo-se da sua mágoa, cuida em distraí-la.

Adeus, adeus! Beijo-o com amor. Que frio crepúsculo! Se você pudesse imaginar!. . . O céu está verde e puro, como em janeiro, quando o frio é intenso. Escre­va-me, ame-me, aqueça a sua

Renée 10 de abril

Minha última carta deve ter-lhe causado preocupa­ção. Não estou contente comigo, nem com você. Sua be­la caligrafia ê. espessa e redonda, e todavia impulsiva, elegante, ondulada como aquela planta que na minha terra chamam de "vime florido"; enche quatro páginas com alguns "adoro-a", mais uma coleção de imprecações amorosas e de veementes queixumes. Isso se lê em vinte segundos! E, no entanto, estou certa de que você acredita piamente ter-me escrito uma longa carta. Car­ta, além do mais, em que você fala apenas da minha pessoa!. . .

Acabo de atravessar, meu querido, sem parar, o lugar onde nasci e onde passei a minha infância. Tive a im­pressão de que uma imensa carícia me enchia o cora­ção. . . Prometa-me, Max, que havemos de voltar aqui um dia, os dois juntos: prometido? Mas, não, não! Que estou eu a escrever? Não, não viremos, não! A mais leve lembrança das suas florestas das Ardenas seria o bas­tante para humilhar os meus bosques de carvalhos, de sarças, de agreiras. . . seus olhos não veriam, como os meus, tremer acima deles, ou por sobre a água tenebro­sa das nascentes, pela colina azul que as altas flores do cardo decoram, o fino arco-íris que reúne màgicamente todas as coisas do meu torrão natal!. . .

Nada mudou. A não ser o vermelho fresco de alguns telhados novos, tudo está como era antes. Nada mudou na minha terra, nada, exceto eu. Ah, meu querido ami­go, estou velha! Como pode você gostar tanto de uma maça velha? Aqui evoco, quase enrubescida pelo que sou agora, a menina alta que você poderia ter conhecido, que levava consigo uma coroa de trancas reais e um tem­peramento silencioso de ninfa dos bosques. E dizer que tudo aquilo que fui, dei-o a outro, a outro que não você! Perdoe-me este grito, Max: é o grito do meu tormento, grito que sufoco desde que passei a amá-lo! Excetuando o que me transforma, e o que lhe mente, excetuando estas madeixas abundantes como folhagem, excetuando estes olhos que o rimei azul alonga e umedece, excetuan­do a falsa tonalidade fosca que me empresta o pó de arroz, pergunto o que é que você pode amar em mim agora, que é tarde demais? Que iria você dizer, Max, se eu aparecesse ante os seus olhos com os cabelos lisos, desprovidos dos artifícios da ondulação, e com os cílios lavados, despidos de toda e qualquer tintura, com os olhos, enfim, que minha mãe me deu, estes olhos cinza, estreitos, horizontais, no fundo dos quais brilha um olhar duro e rápido que me lembra o de meu pai?

Mas não tenha medo, meu querido amigo! Voltarei como parti, só um pouco mais cansada, um pouco mais terna. . . Sempre que me acontece, ainda que com a ra­pidez de um vôo, passar pela minha terra, sinto-me mes­mo assim, como possuída de tristonha e passageira em­briaguez . .. Não ousaria, contudo, deter-me ali: talvez tudo me pareça tão belo porque o perdi. . .

Adeus, caro Max. Amanhã devemos partir muito ce­do para Lião, sem o que ficaríamos sem o ensaio local com a orquestra, ensaio este que estará aos meus cuida­dos, pois Brague, o incansável, tem a seu cargo a pre­paração dos programas, dos cartazes e da venda dos nos­sos cartões postais. . .

Ah! Sob a leve roupa da Emprise, que frio senti ainda ontem à noite! O frio foi sempre o meu grande inimigo: cloroformiza-me a vivacidade e o pensamento. Você bem

que o sabe, pois nas suas mãos tantas vezes já se refu­giaram as minhas, inanimadas e encarquilhadas como duas folhas sob a geada! Sinto a sua falta, querido calor meu, tanto como do sol.

Sua

Renée

E continuamos a rodar. Como, durmo, ando, repre­sento e danço. Nenhuma animação, mas também ne­nhum esforço. Um só instante de febre durante o dia inteiro: aquele em que pergunto à porteira do music hall se há correspondência para mim. E leio as minhas car­tas como uma faminta, encostada ali mesmo no batente sebento da entrada dos artistas, na fétida corrente de ar que cheira a porão, cheira a amoníaco... A hora que se segue é a mais dura, quando não há mais o que ler, quando já decifrei a data do carimbo, e sacudi o enve­lope, como se esperasse que dele ainda caísse uma flor, uma imagem...

Não presto atenção às cidades em que representamos. Conheço-as todas e não me dou ao trabalho de reve­las. Agarro-me a Brague, que se apossa de novo de suas "cidadezinhas familiares" — Reims, Nancy, Belfort, Besançon — como um conquistador complacente. ..

— Você viu? Ainda a mesma baiúca na esquina do cais. Iremos lá, hoje à noite, comer aquelas salsichas no vinho branco: aposto com você que aquela gente ainda me reconhece!

Brague respira amplamente e, com uma alegria de va­gabundo, percorre as ruas, entra nas lojas, sobe às ca­tedrais. Eu sigo-o, eu, que no ano passado o precedia. Ele arrasta-me à sua sombra e, às vezes, como um rebo­que, vai conosco o Troglodita, que habitualmente sai sozinho, esquálido, lastimável dentro de seu paletó es­treito, de sua calça muito curta. .. Onde dorme este coi­tado? Onde come? Não sei. Brague, inquirido a respeito, respondeu-me secamente:

— Onde ele entender. Não sou sua ama-seca! Uma noite destas, em Nancy, avistei o Troglodita em seu camarim. De pé mesmo, abocanhava um pão de 1 libra, e segurava delicadamente entre dois dedos uma fatia de presuntão. Aquela refeição de indigente, aquele voraz movimento de maxilares. .. Tudo aquilo confrangeu-me o coração e resolvi ir ter com Brague:

— Brague, o Troglodita tem com que viver em tournée? Ele tira seus 15 francos, não tira? Por que não se alimenta melhor?

— Faz economia — respondeu-me Brague. — Em tournée, todo mundo trata de economizar! Nem todos são Vanderbilt ou Renée Néré, que alugam quartos de 100 paus, com café na cama! O Troglodita deve-me a roupa de cena, dinheiro esse que lhe foi adiantado e que vai pagando aos poucos, 5 francos por dia. Dentro de vinte dias, ele poderá banquetear-se com ostras, lavar os pés em coquetéis, se quiser. Isso é lá com ele.

Repreendida dessa forma, calei-me... Mas eu tam­bém "faço economias", primeiro porque já é um hábito, depois para imitar os colegas, para não lhes excitar o desprezo. Será a amiga de Max esta mulher jantando, cuja imagem vejo refletida no embaçado espelho desta "cervejaria lorena", esta viajante de olhos pintados, com um grande véu atado sob o queixo, e inteirinha, desde o chapéu às botinas, cor de estrada, com um ar indife­rente, calmo e insociável, ar dos que não são daqui nem dali? Será a amante de Max, a clara amante que ele es­treitava, seminua, em seu quimono róseo, esta come­diante cansada, que é obrigada a ir à mala de Brague, em espartilho e anágua, procurar sua blusa, a roupa branca para o dia seguinte, e arrumar suas velharias cin­tilantes?

Espero cada dia por uma carta de meu amigo. Para cada dia que passa, elas trazem-me consolo, mas tam­bém decepção. Max escreve de maneira simples, mas percebe-se que sem facilidade. Sua bonita letra floreada atrasa o impulso da mão. Além disso, a ternura e a tristeza constrangem-no e ele se queixa ingenuamente. "Quando lhe houver dito cem vezes que a amo, e que me revolta terrivelmente o fato de me haver deixado, que mais me restará por dizer? Sei que a minha querida mu­lher, que a minha querida pedante mulherzinha irá ca­çoar de mim, mas isto pouco me importa. .. Meu irmão vai para as Ardenas, e eu vou acompanhá-lo: escreva para Salles-Neuves, para a casa de mamãe. Farei uma provisão de dinheiro, de dinheiro para nós dois, para o nosso casamento, queridinha!"

Sem comentários, sem fantasias, é desta maneira que me conta o que ocorre, o que faz, associando-me à sua vida, chamando-me de sua mulher. Toda a sua quente solicitude, traduzida através de tão bem equilibrada ca­ligrafia, chega-me, e ele o pressente, fria, fria sobre aque­le papel: tão longe um do outro, de que nos servem as palavras? Seria preciso... sei lá... seria preciso um desenho arrebatado, em cores chamejantes...

11 de abril

Mas é o cúmulo! Era só o que faltava! Fazer Blandine ler-lhe a sorte no baralho! Meu bem, você está per­dido! Basta que eu me ausente de casa, para essa rapa­riga profetizar as mais pitorescas catástrofes. Se parto em tournée, então imagina cobras e lagartos, água turva, roupa branca dobrada, enfim, lê nas cartas as mais trá­gicas aventuras de Renée Néré (a dama de paus) com um Moço Falso, um Militar, e um Homem do Campo! Não lhe dê ouvidos, Max: faça como eu, vá contando os dias, e sorria — oh! com aquele sorriso que lhe enru­ga imperceptivelmente as narinas! —, pensando que a primeira semana está quase no fim. . .

Dentro de um mês e quatro dias (agora sou eu quem profetiza) "porei o pé na estrada", para ir ao encontro do "homem que é o dono do meu coração" e que "gran­de alegria terá", e tanto o Moço Falso, quanto a miste­riosa "Mulher de má vida" (para mim a dama de espa­das) ficarão "danados" com isso.

Eis-nos por cinco dias em Lião. E você chama a isso descanso? Bem, sendo assim, que pensa você da delí­cia de quatro manhãs seguidas despertar sobressaltada quando o dia está nascendo, com o louco medo de per­der o trem, e depois deixar-se cair de novo sobre a cama, numa preguiça nauseabunda que espanta o sono e se põe a escutar, por muito tempo, tudo o que vai desper­tando ao redor, criados, campainhas, carros na rua? Isso, meu querido, é bem pior do que uma partida coti­diana de madrugada. E parece-me que, do fundo do meu leito, assisto a uma ressurreição da qual sou excluída, que o mundo começa a "girar" sem que eu o acompa­nhe . . . É também nesse fundo de leito que, indefesa pe­rante os ataques das recordações, e aterrada de enfado e de impotência, mais me crescem as saudades, sauda­des suas. . .

Ó caro inimigo, bem que poderíamos ter aqui passa­do juntos estes cinco dias. . . Não creio, no entanto, que com isso esteja insinuando qualquer coisa. Não quero que você venha!. . . E não irei morrer por causa disso, que diabo! Aliás, você parece acreditar que a sua ausên­cia me põe moribunda! Quando estou, meu belo provin­ciano, apenas adormentada, apenas hibernando. ..

Não chove. Tépido, suave, acinzentado, o tempo em Lião está esplêndido. São um tanto tolas essas informa­ções meteorológicas que seguem em todas as minhas car­tas, mas se você soubesse como, em tournée, a nossa sor­te e o nosso humor estão ligados à cor do céu! "Tempo úmido, bolso seco", diz Brague.

Há quatro anos, meu amigo, passei umas sete ou oito semanas em Lião. Lembro-me de que a primeira visita que fiz foi aos veados do Parque Saint-Jean e aos louros pavõezinhos de olhar míope e terno. São tão numerosos, e tão parecidos um com o outro, que não pude dar pre­ferência a nenhum deles. Seguiram-me, do outro lado da cercadura, num trotezinho que fustigava o solo, men­digando pão por meio de uns balidos límpidos, obstina­dos e tímidos. Sob o ar imóvel, é tão forte, à tardezinha, o odor de grama e de terra revolvida naquele jardim, que, caso eu estivesse tentada a escapar-me de você, ali encontraria o suficiente para ser-lhe outra vez devolvi­da...

Adeus, querido. Encontrei em Lião uns nômades da minha espécie, tipo de gente que acabamos encontran­do, se não aqui, mais além. Creio que, se eu lhe disser que um se chama Cavaillon, cantor cômico, e o outro, Amália Barally, atriz comediante, isso de nada lhe adianta! Barally, entretanto, é quase uma amiga, pois representamos juntas uma peça em três atos, com a qual, há dois anos, demos uma volta pela França. É uma mu­lher morena e espartilhada, uma ex-bela mulher, uma consumada viajante que conhece pelos nomes as hospe­dadas do mundo inteiro. Cantou opereta em Saigon, re­presentou comédias no Cairo, e abrilhantou as noites de não sei que quediva. . . Sente-se nela, além daquela ale­gria que afronta a miséria, a índole protetora, a tendên­cia para cuidar, e a delicada maternidade no gesto, apa­nágio das mulheres que amaram, sincera e apaixonada­mente, outras mulheres: do atrativo que daí advém, dês-

te indefinível atrativo, vocês homens jamais se aperce­bem. . .

Meu Deus, como fui longe! Acho que passaria todo o meu tempo a escrever-lhe — o que, aliás, acredito ser-me mais fácil do que falar. Beije-me! É quase noite, é a hora fatídica. Abrace-me bem apertado, bem apertado!

Sua

Renée

15 de abril

Meu querido, como você é gentil! Que idéia magní­fica! Obrigada, obrigada de todo o coração por este ins­tantâneo, mal revelado, amarelo de hipossulfato, onde estão os dois, meus caros, os dois maravilhosos! O que acontece agora, que já não posso mais ficar zangada com você pelo motivo de ter levado Fossette, sem a mi­nha permissão, para Salles-Neuves. Ela parece tão feliz nos seus braços! Arranjou uma bela pose para se deixar fotografar, uma carantonha de lutador truculento, de­tentor do Cinturão de Ouro.

E nota-se — constato-o com uma gratidão um tanto ciumenta — que, naquele momento, ela nem pensava em mim. Mas seus olhos, Max, que não os vejo, paternalmente baixados para Fossette, que pensares oculta­vam? Comove-me, alegra-me a ternura do seu braço, que, desajeitado, segura a cadelinha. Vou pôr este re­trato na minha velha carteira de couro, junto com aque­les dois outros seus, nos quais você está com um ar mis­terioso e mau. . .

Prometa que ainda me enviará mais algumas foto­grafias. Trouxe comigo quatro das suas. Vivo a compa­rá-las, examinando-as com uma lente, para ver se encon­tro, em cada uma delas, ainda que polidas pelo retoque

e trabalhadas pelas luzes, um pouco do seu eu secre­to. . . Secreto? Ora, ora, mas se nada em você é secreto, nada engana! Acredito mesmo que, com apenas uma olhada, qualquer patinha seria capaz de conhecê-lo tão bem como eu.

Estou a dizer coisas sem, na verdade, pensar em pa­lavra do que digo. O que há, sob esta forma de azucri­ná-lo, é um desejozinho de rebaixar, de humilhar em vo­cê o antigo adversário: é assim que passarei a chamar o homem destinado a possuir-me. . .

É verdade que há tantas anêmonas nos seus bosques, e também violetas? Violetas, vi tantas pelas bandas de Nancy, enquanto atravessávamos aquela região do leste, ondulada, azulada de pinheiros, cortada por regatos de águas negro-esverdeadas, vivas e faiscantes. Era você aquele rapaz alto que, de pé, pernas nuas, pescava tru­tas na água gelada?

Adeus. Amanhã partiremos para Saint-Etienne. Hamond quase não me escreve; portanto, é a você que apre­sento as minhas queixas. Trate de escrever-me muito, amor querido, para que eu não tenha que ir queixar-me a Hamond! Beijo-o. . .

Renée

Acabamos de jantar no Berthoux — restaurante de artistas —, Barally, Cavaillon, Brague, eu, e mais o Tro­glodita, que eu convidara. Este último não falou. Sua única preocupação foi comer. Um jantar de cabotinos, barulhento, animado de uma falsa alegria. Cavaillon pa­gou-nos uma garrafa de Moulin-à-Vent.

— Olhe que é preciso que você se tenha caceteado bastante por aqui — gracejava Brague — para se dar à despesa de uma negrinha de luxo!

— A quem você o diz! — respondeu Cavaillon. Jovem, e já célebre no music hall, Cavaillon goza de uma situação invejável. Diz-se que "Dranem o teme", que "ele ganha o que quer". Já é a segunda ou terceira vez que cruzamos com esse rapaz de 22 anos, que anda como um homem-serpente, como se fosse invertebrado, balançando seus punhos pesados presos por seus pulsos frágeis. Seu rosto é quase bonito sob os cabelos louros, cortados em franja, mas o olhar fosco e errante traduz uma neurastenia aguda, quase a demência. "Eu me aca­bo", é essa a frase que lhe vem sempre aos lábios. Espe­ra o dia todo pelo seu número, durante o qual esquece' tudo e, absorvido, diverte-se, rejuvenesce, conquista o público. Não bebe, não é de pândegas. Emprega bem o seu dinheiro e entedia-se.

Barally, que está fazendo uma temporada nos Célestins, falava sem parar, rindo, mostrando os belos'den­tes, contando as terríveis façanhas de sua mocidade. Pôs-se a evocar aqueles teatros coloniais de há vinte anos atrás, época em que cantava opereta em Saigon numa sala iluminada por oitocentas lâmpadas a petró­leo. .. Sem vintém, já velha, encarna agora o tipo da boêmia fora de moda, incorrigível e simpática. ..

Um jantar agradável, apesar de tudo: comprimidos em torno de uma minúscula mesa, aquecemo-nos um pouco, e depois nos dissemos adeus! Um adeus sem tris­tezas: amanhã, depois, ou mesmo daqui a pouco, já nos teremos esquecido uns dos outros. .. Vamos voltar à estrada, finalmente! Cinco dias em Lião é qualquer coi­sa de interminável. ..

Rumamos para o Kursaal, e Cavaillon vem conosco; é muito cedo para ele, que se prepara em dez minutos, porém, roído pela solidão, sombrio e tomado de nudez, vem-se escorando em nós... O Troglodita, encantado, um pouco bêbado, canta para as estrelas, enquanto eu sonho, ouvindo o vento lúgubre que se levanta e sobe do cais do Ródano, com um ronco marinho. Há algo den­tro da noite que me faz oscilar sobre um vagalhão invisível, como se fosse um navio que a maré desencalha. .. Seria uma noite propícia para navegar até o outro lado do mundo. Tenho as faces frias, as orelhas geladas, o nariz úmido: todo o meu organismo sente-se disposto, sólido, aventureiro... até as portas do Kursaal, onde a tepidez bolorenta do subsolo vem sufocar os meus pul­mões limpos.

Taciturnos como dois burocratas, ganhamos o corre­dor onde se acham singulares camarins para os artistas, uns quartos forrados de papel ordinário cinza e branco, que servem, ao mesmo tempo, de provincianos cômodos de despejo e de mansardas para empregados. . . Cavail­lon, que nos deixara na escada, já está a postos no seu, onde o avisto sentado diante do espelho, os cotovelos na penteadeira, a cabeça entre as mãos. Brague disse-me que é assim, prostrado e mudo, que o cômico passa suas noites de espetáculo. .. Estremeço. Quisera varrer da minha frente a imagem desse homem sentado que esconde o rosto. Receio parecer-me com ele, frustrado e miserável, perdido em meio a nós, consciente da sua solidão.. .

18 de abril

Você teme que eu o esqueça? Ora, meu amigo, outra vez com tais idéias? Max querido, não comece a criar casos, não dê tanta trela à sua imaginação! Tenho-o sempre tão presente, e daqui de longe contemplo-o com uma tão viva atenção que, nesses dados momentos, você deve ser misteriosamente avisado. Não é verdade? Obser­vo-o, através da distância, profundamente, sem me can­sar. Vejo-o tão bem! É agora que as horas da nossa rá­pida intimidade não têm mais segredos para mim, que todas as palavras que trocamos, que todos os nossos si­lêncios e os nossos gestos se desenrolam na minha men­te, registrados com seus valores pictóricos e musicais. ..

E, enquanto isso, você resolve fazer manha, um dedo no canto da boca: "Você está-me esquecendo! Sinto-a afastar-se de mim!" Oh! o sexto sentido dos amantes! Que me estou afastando é bem verdade, meu amigo. Acabamos de transpor Avinhão e tive a impressão de que, ao despertar no trem após um sono de duas horas, havia dormido pelo espaço de dois meses; cruzou meu caminho aquela primavera que imaginamos nos contos de fadas, exuberante, efêmera, aquela intensa, fresca e irresistível primavera meridional, irrompida em verdes bruscos, em ervas já bem crescidas que o vento balouça e ondula, em árvores-da-judéia todas malva, em paulóvnias de cor cinza-azulada, em falsos ébanos, em glicínias, em rosas!

As primeiras rosas, meu amado amigo! Comprei-as na estação de Avinhão, apenas entreabertas, amarelo-enxofre tisnado de carmesim, transparentes ao sol como uma orelha que o sangue cora, e adornadas de folhas tenras, de espinhos curvos e como que de coral polido. Estão aqui sobre a minha mesa. Têm não sei que per­fume de abricó, de baunilha, de charuto fino, daquela bruma cuidada — é aquele odor mesmo, Max, das suas mãos secas e escuras. . .

Oh! meu amigo, deixo-me deslumbrar e reanimar por esta nova estação, este céu vigoroso e o dourado espe­cial destas pedras que o sol acaricia o ano todo. .. Não, não me lamente pelo fato de ter que partir ao raiar da aurora, pois aqui ela filtra-se nua e purpureada por um céu leitoso, toda aureolada de sons de sinos e vôos de pombos brancos. . . Oh! quero pedir-lhe, Max, que não me escreva "cartas esmeradas". Compreenda que não deve pensar naquilo que está escrevendo! Escreva qual­quer coisa: a cor do tempo, por exemplo, a hora em que você acorda, seu azedume contra esta "cigana assala­riada"; encha páginas, sem escolher, só com uma pala­vra de carinho, repetida como um grito do pássaro amo-

roso que chama pela companheira! Ah! meu caro aman­te! Necessito de que a sua desordem corresponda à des­ta primavera que revolveu a terra, e se consome em vir­tude de sua própria pressa. . .

Por vezes, releio as cartas que envio. Li esta última e mandei-a com a estranha impressão de que estava co­metendo uma falta de tato, um erro, que ela iria ter às mãos de um homem que não deveria lê-la. .. Desde Avinhão já me sentia um pouco tonta. As regiões brumosas tinham ficado lá longe, por trás das cortinas de ciprestes que o mistral inclinava. O sedoso farfalhar dos longos canaviais entrava pela janela aberta do va­gão, juntamente com o odor de mel, de pinheiro, de brotos intumescidos, de lilases em botão, naquele per­fume amargo do lilás que vai dar flor, misto de terebintina e amêndoa. A sombra das cerejeiras é violeta so­bre a terra avermelhada, já crestada pela seca. Sobre as estradas brancas que o trem cortava ou acompanhava, rolava em turbilhões rasteiros uma poeira gredosa que cobria os silvados. . . O murmúrio de uma febre agra­dável zumbia sem cessar em meus ouvidos, qual lon­gínquo enxame. ..

Indefesa, permeável àquele excesso, entretanto pre­visto, de perfumes, de cores e de calor, fui-me deixan­do surpreender, levar, convencer. Será possível que tal doçura fosse inofensiva?

Ensurdecedora, febricitante, a Canebière encontra-se agora a meus pés. Aí está ela sob a minha sacada, a avenida que não descansa noite e dia, onde a vadiagem adquire a importância, a segurança de uma fun­ção. Se me debruçar um pouco mais, posso ver o cintilar, no fim da rua, atrás da renda geométrica dos ca­bos, da água do porto, um pedaço de mar, de um azul carregado, que dança em pequenas ondas curtas...

Sobre o peitoral, minha mão amassa o último bilhete do meu amigo, resposta à minha carta de Lião. Nele havia uma alusão, aliás inoportuna, ao fato de a minha amiga Amália Barally não gostar de homens. Normal e "bem equilibrado" que é, não deixou de aviltá-la um pouco, ridicularizando-a, e chamando de "vício" o que não compreende. De que serviria explicar-lhe?. . . A seus olhos, duas mulheres enlaçadas serão sempre e nada mais do que um grupo licencioso: nunca as admi­tiria como a imagem melancólica e tocante de duas fraquezas, que quiçá buscassem refúgio uma nos braços da outra, para assim poder dormir, chorar, esquecer o homem geralmente maligno, para saborear, melhor do que qualquer outro prazer, o amargo consolo de se sen­tirem ambas iguais, ínfimas, esquecidas. . . Para que escrever advogando, discutindo... A única coisa que o meu voluptuoso amigo compreende é o amor. ..

24 de abril

Não faça isso! Suplico-lhe que não faça isso! Desem­barcar por aqui sem aviso! Por favor, não me diga que está falando sério!

Que faria eu, se o visse entrar pelo meu camarim adentro, de um momento para outro, justamente como fez há cinco meses atrás, lá no Empyrée-Clichy? Max, por Deus, eu não o deixaria mais partir, essa é a ver­dade! É por isso que não deve vir! Eu o prenderia, meu querido, apertado contra este coração, contra esta gar­ganta que tanto você acariciou, contra esta boca que murcha com a falta dos seus beijos. . . Ah! como eu o guardaria. .. É por isso que você não deve, não pode vir. . . Cesse de invocar a nossa mútua necessidade de retomar coragem, de buscar um no outro a energia para uma nova separação. Deixe-me a sós com o meu trabalho, trabalho este que, aliás, você não encara com bons olhos. Pense que, mais vinte dias, estarei de volta,

e pronto! Deixe que eu leve a termo a minha tournée, com uma consciência vagamente militar, uma aplicação de honesta trabalhadora, sem ser preciso imiscuí-la em nossa felicidade. . . Confesso-lhe, meu querido, que sua carta me fez medo. . . Cuidava vê-lo surgir a qualquer momento. Trate de não alarmar esta sua amiga, não lhe prodigalize uma dor, ou uma alegria inesperada. . .

Renée

Acima de nossas cabeças, o toldo rufa ao vento, ma­lhando de luz e sombra o terraço do restaurante do por­to onde acabamos de almoçar. Brague lê os jornais e, de vez em quando, solta exclamações, fala consigo pró­prio. Não o escuto, mal o vejo. Uma convivência já longa encarregou-se de suprimir, entre nós dois, a polidez, a faceirice, o pudor e as mentiras. . . Comemos ouriços-do-mar, tomates, refogado de bacalhau. À nos­sa frente, entre o mar oleoso que lambe o flanco dos navios e a balaustrada de madeira trabalhada com aber­turas que contorna este terraço, temos um pedaço de rua por onde desfila uma gente ativa, que tem o ar ale­gre dos vagabundos; há flores frescas, conservadas em baldes verdes, e cravos aos molhos, tão fortemente ata­dos como se fossem maços de alho-porro; há um cesto cheio de bananas pretas, que cheiram a éter, e mais uma variada profusão de conchas ainda úmidas de água do mar, e ouriços-do-mar, e jantinas, e moluscos, mexi­lhões azuis, entre limões e garrafinhas de vinagre ro­sado. . .

Refresco minha mão no bojo da moringa branca, estriada como um melão, que transpira' sobre a mesa. Tudo o que aqui está me pertence e me possui. Amanhã não julgarei levar esta imagem, mas parece-me que uma sombra de mim, desligada do resto como uma folha, continuará aqui, um pouco curvada pela fadiga, com a

mão transparente estendida e pousada no bojo de uma moringa invisível. ..

Contemplo este meu reino cambiante, como se esti­vesse quase a perdê-lo. Nada, entretanto, ameaça esta fácil vida rolante. .. nada, exceto uma carta. E ela está aqui, dentro da minha pequena bolsa. Sim, senhor! Como escreve o meu amigo, quando quer! E de que maneira clara se dá a entender! Aqui está, em oito pá­ginas, o que se poderia finalmente chamar de uma car­ta de amor. Incoerência, lapso de ortografia, muita ter­nura e... autoridade. Uma soberba autoridade, que dispõe de mim, do meu futuro, de toda a minha curta vida. A minha ausência trouxe algum resultado: ele sofreu com ela, começou a refletir, a planejar cuidadosa­mente uma felicidade durável. Agora, oferece-me casamento, como se me oferecesse um sítio ensolarado, cercado de sólidos muros. . .

"Minha mãe gritou um pouco, mas eu deixei-a gritar. Ela sempre fez o que eu quis. A você caberá conquis­tá-la, muito embora seja mínimo o tempo que iremos passar ao lado dela! Você gosta de viagens, minha que­rida mulher? Pois as terá, até fartar-se delas. Toda a terra será sua, até o momento em que não mais a quei­ra, em que suspire unicamente por um cantinho só nos­so, onde já não será Renée Néré, mas a Senhora Mi­nha Mulher! É preciso que este título lhe baste. . . Já estou tratando de..."

De que estará ele tratando?. . . Desdobro as finas e transparentes folhas de papel, e o ruído que elas fazem lembra-me o dos cheques bancários: ele está tratando da sua mudança, pois o apartamento que ocupa, no se­gundo andar da casa do seu irmão, servia apenas para um rapaz solteiro. . . Tem em vista qualquer coisa do lado da Rua Pergolese...

Num movimento de brutal hilaridade, amasso a car­ta, exclamando:

— Ora essa! E eu, não sou consultada? Que papel tenho nisto tudo?

Brague levanta a cabeça, depois retorna ao seu jor­nal, sem nada dizer. Sua discrição, feita tanto de re­serva quanto de indiferença, não se abala por tão pouco.

Não menti quando, há dois dias atrás, escrevi a Max: "Vejo-o tão bem, agora que estou longe!" Oxalá, no entanto, não o visse bem demais!. . . Jovem, demasiado jovem para mim. Ocioso, livre, terno, é verdade, mas mimado: "Minha mãe fez sempre o que eu quis. . ." Posso ouvir sua voz pronunciando essas palavras, sua bela voz sombria, cheia de matizes, dominante, como que teatralmente trabalhada, sua voz que embeleza as palavras. .. e escuto, num eco diabólico, uma outra voz que sobe, abafada, do fundo das minhas recorda­ções: "Mulher que me engambele, essa ainda está para nascer!..." Coincidência, que seja... mas mesmo assim tenho a impressão de que acabo de engolir um pontudo pedaço de vidro. . .

Sim, qual é o meu papel em tudo isso? O de uma mulher feliz, porventura?. .. Este sol, que penetra im­perioso na intimidade da minha "câmara escura", des­barata-me o pensamento. . .

— Volto para o hotel, Brague: estou fatigada. Brague olha-me por cima do jornal, com a cabeça inclinada para evitar o fio de fumaça que sobe do ci­garro semi-apagado ao canto dos lábios:

— Cansada? Você não está doente, não? É sába­do, você sabe! O público do Eldo será grande: trate de manter-se em forma!

Nem me abalo em responder-lhe. Serei por acaso alguma estreante? Já o conheço, esse público de Marse­lha, irritável e bem comportado, que despreza a timidez e condena a presunção, e que não se conquista sem lhe darmos em troca todas as forças que possuímos...

Livrar-me da roupa e sentir sobre a pele a frescura do meu velho quimono de shantung azul-pálido dissipa-me a ameaça de uma enxaqueca. Não quero estirar-me sobre a cama, tenho medo de adormecer: não é para re­pousar que me acho aqui. De joelhos sobre uma pol­trona encostada à janela aberta, cotovelos no seu espaldar, tenho atrás de mim os meus pés nus, que se acari­ciam um ao outro. Alguns dias apenas foram o sufi­ciente para eu retomar o hábito de instalar-me à beira de uma mesa, de sentar-me atravessada no braço de uma poltrona, de conservar por longo tempo atitudes incô­modas em assentos pouco confortáveis, como se as bre­ves pausas que faço na minha rota não valessem a pena de uma acomodação, de um descanso ordenado. . . Os quartos em que durmo, dir-se-ia que entrei neles para ficar apenas quinze minutos, casaco jogado por aqui, o chapéu acolá... É dentro do vagão que me revelo ca­prichosa, e nesse sentido quase maníaca, metòdicamente rodeada de minha bolsa, da manta de viagem, dos jor­nais e livros, das almofadas de borracha que amparam um sono rígido, o sono rápido da viajante calejada, que nem sequer desmancha o véu atado à maneira de uma religiosa, nem desarranja a saia puxada até a altura dos tornozelos.

Não descanso. Esforço-me, procuro concentrar-me, refletir um pouco, mas o pensamento recalcitra, escapole, evade-se pelo caminho de luz que lhe abre um raio de sol caído na sacada. E aí vai ele lá embaixo, até o mosaico de um telhado de telhas verdes, onde pueril-mente estaca para brincar com um reflexo, uma som­bra de nuvens. . . Luto, fustigo-me. . . Depois cedo por um minuto, e recomeço em seguida. É tal espécie de contendas que dá, aos exilados como eu, uns olhos tão desmesuradamente abertos, tão lentos em despregar-se de um invisível ímã. Morosa ginástica de solitária...

Solitária! Por que esta palavra agora, quando o meu amante me chama, pronto a me amparar pela vida toda?...

Mas "pela vida toda", não concebo o que isso venha a ser. Há três meses atrás, pronunciava estas tremendas palavras "dez anos", "vinte anos", sem atinar com seu sentido. Presentemente é chegada a hora de compreen­dê-lo! Meu amante oferece-me sua vida imprevidente e generosa de homem jovem, de homem que, como eu, beira os seus 34 anos. Ele não duvida da minha juven­tude, não vê o fim — o meu fim. Sua cegueira recusa-me o direito de mudar, de envelhecer, enquanto cada instante, somado ao instante que passou, já me vai afas­tando dele.. .

Possuo ainda a melhor forma de contentá-lo, ou me­lhor, de deslumbrá-lo. Posso desfazer-me deste rosto, despi-lo, como se tirasse uma máscara; tenho outro mais belo, que ele já entreviu... Senhora do meu ato, desvisto-me tal como as outras se enfeitam — pois que, antes de ser dançarina, fui modelo de Taillandy —, su­perando os perigos da nudez, sabendo mover-me nua, tanto sob a luz como sob a roupa, por mais complica­da. Mas. . . por quantos anos ainda estarei assim armada?

Além do seu nome e da sua fortuna, meu amigo ofe­rece-me o seu amor. Decididamente, o meu senhor, o destino, sabe arrumar as coisas, e decidiu recompen­sar-me principalmente pelo carinhoso culto que lhe voto. .. É tão inesperado, é mesmo uma loucura. . . é. . . ora, passa um pouco da conta!

Ah! o meu bravo mancebo! Como deve estar impa­ciente esperando pela minha resposta, controlando a chegada do carteiro na rua, em companhia de Fossette, minha Fossette, que exulta em seu papel de castelã, que se sacia de rodar de automóvel, que cirandeia em torno dos cavalos arreados!. . . Com que ingênuo e legítimo orgulho ele deve saborear sua alegria. . . orgulho do cavalheiro elegante que pode permitir-se o luxo de içar até si, do subsolo do Emp'-Clich' ao terraço de Salles-Neuves, uma "mulherzinha do café-concerto"...

Ah! meu caro, meu caríssimo burguês heróico!. . . Por que não foi amar uma outra? Como uma outra o faria feliz! Parece-me que eu jamais poderei, que eu...

Se fosse preciso apenas dar-me! Mas há mais coisas além da volúpia. . . A volúpia ocupa, dentro do de­serto ilimitado do amor, um ardente e minúsculo lugar, de tal forma abrasante que, a princípio, é a única coisa que se enxerga: não sou nenhuma mocinha inexperiente, para deixar-me cegar pelo seu brilho. Em torno desta chama inconstante, está o desconhecido, está o peri­go... Que sei eu do homem que amo e que me quer? Logo que, unidos por um longo abraço, ou mesmo por uma longa noite, for necessário começar a viver um per­to do outro, um para o outro, ele esconderá corajosa­mente as primeiras desventuras que lhe vierem de mim, e eu calarei as minhas, por pudor, por piedade, e, sobre­tudo, porque as terei esperado, receado, porque as re­conhecerei . .. Eu, que me contraio toda quando o ouço chamar-me "minha criança querida", eu, que fico diante de determinados gestos seus, diante de certas entonações ressuscitadas, que exército de fantasmas me espia por trás das cortinas de uma cama ainda fechada?...

. .. Nenhum reflexo dança, lá embaixo, sobre o te­lhado das telhas verdes. O sol já deu a volta: um lago de céu, ainda há pouco muito azul, entre dois fusos de nuvens imóveis, empalidece suavemente, passa de tur­quesa a limão verdolengo. Meus braços e joelhos, do­brados pela posição em que me pus, estão adormecidos. Um infrutuoso dia vai-se acabar, e nada decidi, nada escrevi, não arranquei do coração um desses movimen­tos irreprimíveis de que antigamente aceitava sem con­trole — e pronta a chamá-lo de "divino" — o tempes­tuoso impulso.

Que fazer?... Por hoje, escrever qualquer coisa rá­pida, pois não há tempo para mais. . . e mentir. . .

Meu querido, são quase 6 horas, e passei o dia todo lutando contra uma terrível dor de cabeça. O calor é tal, e tão súbito, que me faz gemer, porém, como Fossette diante de um jogo muito vivo, sem rancor. Além disso, a sua carta, ainda por cima!. . . Ê sol em dema­sia, muita luz ao mesmo tempo: o céu e você fazem-me curvar sob vossas dádivas; hoje, restam-me apenas for­ças para suspirar: "É demais!..." Um amigo como você, Max, e muito amor, muita felicidade e muito di­nheiro. .. Você me crê assim tão sólida? Habitualmente costumo sê-lo, é verdade, mas hoje não. Dê-me tempo para. . .

Aqui segue uma fotografia minha. Recebi-a de Lião, pois foi lá que Barally bateu este instantâneo. Veja essas mãos cruzadas, o ar abatido, e como estou escura e mui­to pequena — não parece um perfeito cão perdido? Francamente, estimado amigo, esta humilde viandante mal pode levar consigo o excesso de honra e de bens que você lhe promete. Ela tem o olhar voltado em sua direção, e o seu desconfiado focinho de raposa parece que está a dizer-lhe: "Tem certeza de que tudo isso é para mim? Tem certeza?"

Adeus, querido amigo. Você é o melhor dos homens, e, como tal, mereceria a melhor das mulheres. Será que não lamenta ter escolhido apenas esta

Renée Néré?

Tenho 48 horas diante de mim... E agora, rápido! Arrumar-me, jantar no terraço do Basso sob o vento fresco, sob o odor de limão e dos mexilhões ainda molhados, correr para o Eldorado atra­vés das avenidas banhadas de eletricidade rósea, e a ruptura — por fim, pelo espaço de algumas horas ao me­nos — do fio que me puxa para baixo, para trás, sem repouso...

Nice, Cannes, Menton. . . Continuo meu giro, e persegue-me um tormento que se avulta: um tormento tão vivaz, tão constantemente presente que, às vezes, assal­ta-me o receio de ver a forma de sua sombra ao lado da minha, sobre o grés claro dos molhes que beiram o mar, ou sobre o calçamento quente onde fermentam as cas­cas de banana. . . E esse tormento me tiraniza, inter­põe-se entre mim e o prazer de viver, de contemplar, de respirar profundamente. .. Certa noite, sonhei que não amava. Nessa noite, consegui repousar, livre de tudo, como que mergulhada dentro de uma morte suave...

Max respondeu à minha ambígua carta de Marselha. A sua era feliz e tranqüila, um longo agradecimento sem rabiscos, o amor traduzido em forma amical, se­guro de si, orgulhoso por dar tudo e receber ainda mais, uma carta, enfim, que me deu a impressão de nela estar escrito: "Em tal dia, a tal hora, serei seu, e partiremos juntos".

Estarei exagerando? Estarei a tal ponto comprometi­da? Este mau humor, que me acompanha dia após dia, e de cidade em cidade, este tédio que me faz achar tão terrivelmente lentas as horas, será impaciência minha, será pressa da minha parte? Ontem, em Menton, hospe­dada numa pensão familiar, uma casa toda adormeci­da no meio de jardins, pus-me a escutar a alvorada dos pássaros, das moscas, do papagaio que havia no alpen­dre. O vento da madrugada castigava as palmeiras que chiavam como canas mortas — reconheci todos esses sons, toda a música de uma manhã em que ali estive, no ano passado. Agora, porém, o assobiar do papagaio, o zumbir das vespas ao sol levante, a aragem nas palmas vigorosas, tudo parecia recuar, afastando-se de mim, parecia-me um murmúrio, e nada mais do que um murmúrio que acompanhava a minha preocupação, que ser­via de pedal à minha idéia fixa — ao amor.

Sob a minha janela, no jardim, um canteiro oblongo de violetas, ainda não tocadas pelo sol, cruzava-se banhado de orvalho; mais altas do que elas havia mi­mosas, muitas, amarelo-pinto. Rente à parede, aquela mesma trepadeira de rosas que, pela cor, adivinhei não terem perfume, enxofradas, um tanto verdes, matiz inde­ciso do céu quando não está azul. As mesmas rosas, as mesmas violetas que no ano passado. . . Mas por que, ontem, não me foi possível saudá-las com um sor­riso espontâneo, reflexo da inofensiva felicidade meio física, dentro da qual se exalta a silenciosa ventura dos solitários?

Sofro. Não posso apegar-me ao que vejo. Fico sus­pensa, por um instante ainda, à maior loucura, à irreme­diável desgraça do resto da minha existência. Agarrada e pendente como a árvore que cresceu à beira do abis­mo, e cujo desenvolvimento cada vez mais a inclina em direção à sua perda, resisto ainda — quem poderá dizer se o conseguirei?. ..

Quando me acalmo um pouco e me abandono ao meu curto futuro, toda entregue àquele que por mim espera lá longe, uma pequena fotografia encarrega-se de devolver-me ao meu tormento, à clarividência. É um instantâneo, onde se vê Max jogando tênis com uma moça. Isso nada significa: a moça é uma visitante, uma vizinha que deve ter ido merendar em Salles-Neuves. Ao enviar este retrato, não deve ter sido nela que pen­sava. Mas eu penso nela, já o fazia antes de tê-la visto! Ignoro seu nome, aqui vejo-lhe apenas o rosto queima­do, que evita o sol numa careta alegre, onde se nota o brilho da linha branca dos dentes. Ah! se eu tivesse meu amante aqui, a meus pés, entre as minhas mãos, eu lhe diria. . .

Não, nada lhe diria. Mas escrever é tão fácil! Escre­ver, escrever, lançar por sobre as páginas brancas a ca­ligrafia rápida, desigual, caligrafia que ele compara ao meu rosto móvel, sobrecarregado pelo excesso de expres­são. Escrever sinceramente, quase sinceramente! Com isso me virá um alívio, aquele silêncio interior que se segue a um grito, a uma confissão. . .

Max, meu amado amigo, perguntei-lhe, ontem, o nome daquela moça da fotografia que está jogando tê­nis com você. Foi uma pergunta feita à toa. Para mim, ela se chama uma moça, todas as moças; todas as jovens, que são minhas rivais num futuro próximo ou longín­quo, ou ainda, quiçá, até mesmo amanhã, ou depois. Embora desconheça seu nome, ela é a minha caçula, aquela a quem serei cruel e lücidamente comparada, com menos crueza e clarividência do que eu própria, entretanto, o faria. . .

Triunfar sobre ela? Quantas vezes? De que serve o triunfo quando a luta é esfalfante e infindável? Com­preenda-me, compreenda-me! Não é um caso de des­confiança, não é a futura traição, ó meu amor, que me arruína, é a minha decadência. Temos os dois a mesma idade, não sou mais uma mulher jovem. Imagine, meu amor, como estaremos daqui a alguns anos, a sua ma­turidade ao lado da minha: você será ainda um belo homem. Imagine-me bela ainda e desesperada, enraive­cida dentro de uma armadura de espartilho e vestido, sob o fardo de pós e pinturas, sob as minhas frágeis e jovens cores. . . Imagine-me bela como uma rosa ma­dura em que se não deve tocar! E um seu olhar, um que seja, que se fixe sobre outra mulher, será o suficiente para ir prolongando em minha face o sulco triste que o sorriso deixou cavado. . . Mas a noite feliz que passe em seus braços, essa custará mais ainda à minha be­leza, que agora começa a apagar-se. . . Estou na idade — você sabe disso — na idade do ardor! É a idade das imprudências sinistras. . . Compreenda-me! Seu fervor, aquele que irá convencer-me, que irá tranqüilizar-me, não irá conduzir-me à imbecil segurança das mulheres amadas? Na amorosa satisfeita renasce, por breves e perigosos minutos, uma ingênua afetada, que se per­mite o luxo de atitudes de mocinha, fazendo fremir a sua carne pesada e saborosa. Já estremeci, um dia, diante da inconsciência de uma amiga quadragenária, que, toda despida e fremente de amor, se coroava com o quepe do seu amante, um tenente dos hussardos. ..

Sim, sim, eu faço divagações, eu o amedronto. Você não compreende. Falta a esta carta um longo preâmbu­lo, com todos os pensamentos que lhe escondo, que há já tantos dias me vêm envenenando. . . O amor, o amor é simples, não é? Você não lhe daria essa feição ambígua, atormentada, daria? Amamo-nos, entregamo-nos um ao outro, e eis-nos felizes por toda a vida: é isso, não é? Ah! como você é jovem. . . Pior do que jovem, seu único so­frimento é estar à minha espera! Não possuir o que de­seja, eis ao que se limita o seu inferno. . . E pensar que de situações idênticas muitos fazem seu eterno alimen­to. .. No entanto, possuir o objeto amado e sentir, e é fato, que a cada minuto o bem único se desagrega, se funde e se escapa como uma poeira de ouro por entre os dedos!... £ não ter a terrível coragem de abrir a mão, de abandonar o tesouro inteiro; cerrá-la, ao con­trário e cada vez com mais força, comprimindo os dedos, gritando e suplicando, numa tentativa de guardar. . . o quê? um pequeno vestígio de ouro, precioso vestígio na palma da mão. . .

Você não entende? Ah! meu bem, oxalá pudesse, Max, ser como você, e nunca ter sofrido, a não ser por sua causa; como gostaria de poder lançar para longe a mi­nha velha angústia experimentada. . . Ajude, meu amor, a sua Renée da maneira que lhe for possível. Não lhe parece, entretanto, que esta espera de auxílio só do seu lado já corresponde a meio desespero?. . .

Minha mão queda-se crispada sobre a caneta incômo­da, fina demais. As quatro folhas extensas que estão sobre a mesa, mais o desalinho do manuscrito, onde a letra sensível sobe e desce, se dilata e contrai, testemu­nham a minha pressa de escrever. . .

Irá ele reconhecer-me diante de tal desordem? Não. Dissimularei ainda. Dizer a verdade, está bem, mas toda, não podemos, não devemos.

À minha frente, ali na praça, na praça varrida por um vento ainda há pouco vivo, mas que enfraquece e cai como uma casa exaurida, a parede abobadada das arenas de Nimes ergue sua massa fulva picante contra um fundo de céu ardósia, opaco, que pressagia tempes­tade. Um ar abrasador move-se em meu quarto. Sob este céu carregado quero rever o meu refúgio elísio: os Jardins da Fonte.

Arrastado por um animal combalido, um carro sacolejante leva-me até a grade preta que circunda aquele parque que tem sempre o mesmo aspecto. Será que a primavera do ano passado se veio conservando, como por magia, até esta hora, para receber-me? E é tão maravilhosa esta primavera neste lugar, é tão imóvel e envolvente, que tremo à idéia de vê-la desmoronar-se, dissolver-se em nuvem. . .

Apalpo amorosamente a pedra quente do templo ar­ruinado, e a folha envernizada dos evônimos, que pare­cem úmidos. Os banhos de Diana, sobre os quais me inclino, espelham ainda e sempre as árvores da Judéia, os terebintos, pinheiros, paulóvnias, malvas e floridas e duplos espinheiros purpurinos. . . Todo um jardim de re­flexos inverte-se sob meus olhos, adquirindo, decom­posto na água, que tinha a cor azul-escura da água do mar, violeta do pêssego machucado, marrom do sangue seco. . . Que jardim divino, que divino silêncio, onde somente se debate surdamente a água imperiosa e transparente, sombria, azul e brilhante como um impetuoso dragão!...

Uma dupla alameda harmoniosa sobe em direção à Torre Magna, por entre as muralhas bordadas pelos teixos; encosto-me um minuto, à beira de um tanque de pedra dentro do qual a água turva toma o tom esverdeado do agrião fino e das rãzinhas tagarelas de pequenas mãos delicadas. . . Em cima, bem no alto, recebe-nos, a mim e ao meu tormento, um leito de caruma seca.

Embaixo, o belo jardim se nivela, geométrico nos lu­gares descobertos. A aproximação da tempestade espan­tou qualquer intruso, e o granizo, o furacão sobem len­tamente do horizonte, nos flancos intumescidos de uma espessa nuvem debruada de fogo branco. ..

Isso tudo é ainda meu reinado, partícula dos magní­ficos bens que Deus dispensa aos passantes, aos nôma­des, aos solitários. A terra pertence àquele que se detém um instante, contempla-a e prossegue; o sol todo inteiro é do lagarto que a ele se aquece. ..

No âmago da minha preocupação agita-se uma gran­de negociação, um espírito de troca que pesa valores obscuros, tesouros meio escondidos; é uma conspiração que tenta subir, que procura confusamente vir à tona... O tempo urge. Toda a verdade, que me esforcei para ocultar a Max, extraio-a por fim. Não é bela, é débil ainda, receosa e um tanto pérfida. Por enquanto, não me inspira mais do que suspiros lacônicos: "Não que­ro... não devo. .. tenho medo!"

Medo de envelhecer, de ser traída, medo de sofrer. .. Nas cartas que tenho escrito a Max, um sutil sentido de escolha tem guiado a minha parcial sinceridade. Esse medo é o cilício que adere à pele do Amor nascente, e que nela se vai entranhando à medida que ele cresce... Este cilício, já o levei comigo uma vez, e dele não se morre. Levá-lo-ia de novo, se... se não houvesse outra solução. . .

"Se não houvesse outra solução..." Desta vez a fór­mula é clara! Li-a, escrita no meu pensamento, e nele ainda a vejo impressa, como uma sentença em pequenas e espessas maiúsculas. .. Ah! Acabo de aquilatar meu mesquinho amor e de trazer à luz a minha verdadeira esperança, a evasão.

Como alcançá-la? Tudo está contra mim. O primeiro obstáculo que se me depara é este lânguido corpo de mulher que me barra o caminho, um voluptuoso corpo de olhos fechados e voluntariamente cego, estirado, antes disposto a perecer do que a abrir mão do seu gozo... Sou eu esta mulher, esta rude cabeçuda sequiosa de pra­zer. "Não tens pior inimiga do que tu mesma!" Ah! eu sei disso, meu Deus, se sei! Será que saberei vencer tam­bém, cem vezes mais perigosa do que o animal esfaimado, a criança abandonada que vibra em mim, a criança fraca e nervosa, pronta a estender os braços, a implorar: "Não me deixem só!"? Esta teme a noite, a solidão, a doença e a morte, quando desce as cortinas sobre a as­sustadora vidraça negra e sofre do seu único mal: não ser suficientemente querida... E você, meu Max, meu adversário bem-amado, como poderei vencê-lo, dilacerando-me a mim mesma? Seria o bastante que você apa­recesse e. . . Mas eu não o estou chamando!

Não, eu não o estou chamando! Essa é a minha pri­meira vitória. ..

A nuvem tempestuosa passa agora sobre a minha cabeça, entornando, gota a gota, uma água preguiçosa e perfumada. Uma estrela de chuva esmaga-se no canto do meu lábio. Bebo-a: é morna, açucarada por uma poeira com gosto de junquilho. . .

Nimes, Montpellier, Carcassone, Toulouse. . . quatro dias e quatro noites sem descanso! A gente chega, lava-se, come, dança ao som de uma orquestra insegura e balbuciante, a gente se deita — valerá a pena? —, e logo está de partida outra vez. Emagrecemos, devido ao

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cansaço. Ninguém, contudo, abre a boca para queixar-se: o orgulho acima de tudo! Trocamos de music hall, de camarim, de hotel, de quarto, com a mesma indife­rença dos soldados em manobras. O estojo de maquilagem lasca-se e põe à mostra sua armação de lata. As rou­pas enxovalham-se e exalam, limpas apressadamente antes do espetáculo, um odor ácido de pó-de-arroz e pe­tróleo. As minhas sandálias vermelhas da Emprise, es­tragadas que estão, obrigam-me a repintá-las; a túnica da Dríade perde o seu matiz picante de gafanhoto e de verde-prado. Brague está esplêndido com suas manchas coloridas; sua calça búlgara de couro bordado, endure­cida pelo sangue artificial que lhe é esguichado toda noite, assemelha-se à pele de um boi recentemente sacri­ficado. O Antigo Troglodita em cena, então, é de causar assombro, coberto pela sua peruca de estopa meio pela­da, mais as suas peles de lebre desbotadas, malcheirosas.

Dias duros, sim, em que arquejamos entre um céu azul, varrido por raras nuvens compridas e finas, como que cardadas pelo mistral, e uma terra que se resseca, se fende pela seca... Além do mais, eu tenho dupla carga. Meus dois companheiros, assim que desembarcam numa nova cidade, livram-se rapidamente das suas tra­lhas e, frescos e leves, lá se vão eles, diretos ao "meio-espumante", às passeatas errantes e despreocupadas. Mas eu, eu tenho a hora do carteiro... O carteiro! As cartas de Max. . .

Nas repartições envidraçadas ou dispostas sobre me­sas pouco limpas, onde a senhoria vai jogando os envelo­pes, reconheço imediatamente, elètricamente, aquela caligrafia redonda e enfeitada, o papel azulado: adeus, repouso!

—. Dê-ma! Aquela ali!. .. É para mim, sim, estou-lhe dizendo que é para mim!

Meu Deus! que haverá aqui dentro? Censuras, súpli­cas, ou talvez somente: "Irei. .."

Esperei quatro dias pela resposta de Max à minha carta de Nimes; e durante os quatro dias escrevi-lhe ternamente, escondendo a intensa agitação sob uma cor­dialidade verbosa, como se houvesse esquecido a carta em questão... De tão longe a gente se obriga a um diá­logo epistolar frouxo e melancólico ao extremo, quase piegas. .. Foram quatro dias de espera. A impaciência levou-me ao ponto de fazer-me ingrata, pois decepciona­va-me ao deparar-me com a letra de talho inglês, fora da moda mas gracioso, da minha amiga Margot, ou com o minúsculo garrancho do velho Hamond, com os car­tões-postais de Blandine.

Ah! mas ei-la enfim, a carta de Max. Leio-a cheia de uma palpitação que conheço bem, que uma recordação torna ainda mais dolorosa: houve tempo em que Taillandy, "o homem a quem mulher alguma jamais deu um fora", como ele dizia, encolerizou-se subitamente com a minha ausência e com o meu silêncio e se pôs a escrever-me cartas de amante! Bastava-me então ter diante dos olhos a sua cortante caligrafia para empalidecer e sentir o coração pequeno, redondo e rijo, pulando — como hoje, como hoje. . .

Amarrotar esta carta de Max sem mesmo lê-la, aspi­rar o ar como um enforcado que é salvo a tempo, e fu­gir!. .. Mas eu, eu não posso. . . Isto não passa de uma breve tentação. É preciso ler...

Abençoado seja o acaso! Meu amigo não entendeu. Pensou tratar-se de uma crise de ciúmes, um vaidoso alarma de mulher que quer receber do homem amado a mais lisonjeira, a mais formal das certezas. . . E esta certeza ele me dá; não posso deixar de sorrir, pois que se põe a louvar o seu "amor querido" ora como se fosse uma irmã altamente venerada, ora como se se tratasse de uma bela égua. .. "Você será sempre a mais bela!" Escreve o que pensa, não resta dúvida. .. Mas o que poderia responder-me? Quem sabe se, no momento em que escrevia tais palavras, não se deteve um pouco, não levantou a cabeça, e, abrangendo com o olhar a sua flo­resta densa, não teve um momento de hesitação, uma suspensão imperceptível do pensamento? Depois, sa­cudindo os ombros, como quando se tem frio, é capaz de ter continuado corajosa e lentamente: "Você será sem­pre a mais bela!"

Pobre Max! O que de melhor há em mim parece ago­ra conspirar contra ele. . . Anteontem, partimos pela madrugada, e ajeitei-me no vagão para continuar esse tipo de descanso a prestações, vinte vezes interrompido e recomeçado, quando uma lufada salgada, cheirando a alga fresca, reabriu os meus olhos: o mar! Sete, e o mar! Ali estava ele, ao longo do trem, reaparecido, quando já nem pensava nele. O sol das 7 horas, baixo ainda, não lograva alcançá-lo; o mar, então, recusava deixar-se possuir, e guardava, em seu estado de semi-sonolência, um matiz noturno de tinta azul, cristado de branco. . .

Desfilavam salinas, marginadas de uma grama de sal cintilante, e vivendas adormecidas, tão brancas quanto o sal e rodeadas dos seus loureiros sombrios, seus lilases, suas árvores da Judéia. . . Modorrenta, como o mar, abandonada ao embalo do trem, tinha a impressão de estar rasando, num vôo cortante de andorinha, as vagas próximas. . . Experimentava um desses momentos per­feitos, um desses êxtases de doente privado de consciên­cia, quando uma súbita memória, uma imagem, um no­me me fez voltar a ser a criatura habitual, a da véspera, a de todos os dias precedentes. . . Durante quanto tem­po, e pela primeira vez, conseguira esquecer Max? Sim, esquecê-lo, como se jamais houvesse conhecido seu olhar, a carícia da sua boca, esquecê-lo, como se a mais imperiosa preocupação da minha vida fosse procurar palavras, palavras para dizer o quanto o sol é amarelo, e azul o mar, e brilhante o sal em suas franjas de azeviche branco. .. Sim, esquecê-lo como se a necessidade mais urgente da minha vida fosse possuir com os olhos as maravilhas da terra!

Foi nessa mesma hora que um insidioso espírito me soprou: "E se, com efeito, houvesse de urgente tão-somente isso? Se tudo, fora disso, fosse apenas cinzas?..."

Vivo sob uma borrasca de pensamentos que não me deixam. Torno a encontrar, penosa e pacientemente, a minha vocação para o silêncio e para a dissimulação. É-me de novo fácil seguir Brague através de uma cida­de, para cima e para baixo, pelas praças, catedrais e museus, e pelas pequenas tascas enfumaçadas "onde se come assombrosamente!" Na nossa cordialidade, fala­mos pouco e raramente sorrimos, mas, às vezes, rimos às gargalhadas, como se a alegria nos fosse mais aces­sível do que a meiguice. Rio facilmente das histórias que Brague conta, e forço o meu riso ao agudo, da mesma maneira que ele afeta, ao falar-me, uma grosseria muito artificial.

Somos ambos sinceros, mas nem sempre muito sim­ples. . . Temos brincadeiras já tradicionais, que tradi­cionalmente nos alegram: a preferida de Brague — e que me exaspera — é o Jogo do Sátiro, que se repre­senta nos bondes, onde meu camarada elege para víti­ma uma jovem tímida, ou uma solteirona agressiva. Sentando-se frente a ela, e molemente recostado, Bra­gue põe-se a chocá-la com um olhar quente, até que a dita enrubesça, tussa, arranje o seu veuzinho e desvie a cabeça. O olhar do "sátiro" insiste, lúbrico, e toda a sua fisionomia, boca, narinas, sobrancelhas, tudo con­verge para exprimir a excitação especial de um eroto-maníaco. ..

— É um excelente exercício de fisionomia! — asse­gura Brague. — Quando for criada para mim uma aula de pantomima no Conservatório, hei de ensiná-lo a to­dos os meus alunos, em conjunto e em particular.

Caio sempre no riso, pois que as tais senhoras, estonteadas, acabam por saltar do veículo o mais depressa possível. A perfeição das contorções fisionômicas deste pérfido jogo, porém, torna-me rígida. Meu corpo, um tanto esgotado pelo trabalho, sofre, ilògicamente, crises de castidade intolerante, de onde caio dentro de um braseiro, aceso em menos de um segundo pela lembran­ça de um perfume, de um gesto, de um grito terno — um braseiro que clareia as delícias que não tive, e em cujas chamas me consumo imóvel, joelhos unidos, como se o menor movimento pudesse alastrar as minhas queimaduras.

Max. .. Escreve-me, espera-me. . . Como essa con­fiança me é cruel!. .. E é mais cruel alimentá-la do que seria traí-la, pois eu também escrevo, e escrevo com uma abundância e uma liberdade inexplicáveis. Escre­vo, só Deus sabe, não importa onde, não importa o jeito: sobre veladores trôpegos, sentada muito torta em cadeiras altas demais, escrevo, um pé calçado e o ou­tro nu, o papel colocado entre a bandeja e a valise de mão toda aberta, entre escovas, frasco de perfume e abotoadeira; escrevo diante da janela que enquadra um fundo de quintal, ou da que me oferece os mais delicio­sos jardins, ou as mais vaporosas montanhas. . . Entre essa desordem de alojamento, não importa onde e não importa como, sinto-me em casa, e mais à vontade do que entre aqueles meus móveis, aqueles móveis gastos...

— América do Sul, que é que você diz a isso?

Esta inesperada pergunta de Brague caiu, ontem, co­mo um seixo, na minha divagação, após o jantar, naque­le tão curto espaço de tempo em que luto contra o sono e a náusea de ir, em plena digestão, pintar-me, despir-me. ..

— América do Sul? É longe.

— É mesmo o tipo da molóide!

— Você não entendeu, Brague. Eu disse "é longe" como se dissesse "é maravilhoso!"

— Ah! bom.. . se é isso. . . É Salomon que anda sondando-me a respeito. E então?

— Então o quê?

— Podemos pensar no caso?

— Podemos pensar no caso.

Nem um nem outro nos tapeamos mediante essa si­mulada indiferença. Aprendi, e às minhas custas, a não "acender" um empresário para uma tournée, mostrando desejos de partir. Por outro lado, Brague evita, até nova ordem, apresentar-me o negócio sob um aspecto vanta­joso, receando provocar um aumento do "salário global".

América do Sul! Esse nome produz em mim um des­lumbramento de iletrado que visse o Novo Mundo atra­vés de uma magia de chuvas de estrelas, de flores gigan­tes, de pedras preciosas e de beija-flores.. . Brasil, Argentina. . . que nomes fulgurantes! Margot contou-me que esteve nestes países quando era pequena e a minha imaginação extasiada apega-se à pintura que ela fez de uma aranha de ventre prateado e de uma árvore coberta de pirilampos. . .

Brasil, Argentina, mas. . . E Max?

E Max?. . . Desde ontem giro em volta deste ponto de interrogação. E Max? E Max? Não se trata mais de um pensamento, mas de um refrão, de um barulho, um grasnar ritmado que fatalmente me levará a uma das minhas "crises de grosseria". Que antepassado malcria­do urra em mim, com essa virulência não só verbal, mas também sentimental? Praguejando a meia voz, acabo por amarrotar a carta que havia começado para o meu amigo.

"E Max! E Max!" Basta! Até quando vou encon­trá-lo no meu caminho? E Max! E Max! Será, então, que vim ao mundo só para ocupar-me deste "maçante capitalista?" Paz, senhor, paz! Chega de fitinhas, de idílios, de tempo perdido, de homens! Olha-te um pouco, minha pobre amiga, olha-te um pouco! Não és ainda, longe disso, uma caduca, mas acabaste sendo uma espé­cie de solteirona. Temperamento inacessível, sensibilida­de esmiuçada, manias — tudo, enfim, que te faz sofrer e que te torna insuportável. Quem te manda embarcar nessa galera... que nem é mesmo uma galera, mas um daqueles barcos que antigamente serviam de lavadouros, sòlidamente atracado, onde se branqueava uma lixívia patriarca? Se ao menos fosses capaz de namo­rar, apenas namorar esse rapagão durante quinze dias, três semanas, dois meses, e "Adeus! Divertimo-nos bem um com o outro, estamos quites..." Devias ter apren­dido, com Taillandy, como se dá o fora!. ..

E assim vou prosseguindo... Emprego, para insultar meu amigo e a mim própria, um talento cru e maldo­so: é uma espécie de jogo em que me excito dizendo coisas verdadeiras em que não penso, ou antes, em que não penso ainda. . . E isso dura até o momento em que me apercebo de que está caindo um aguaceiro: do outro lado da rua, os telhados jorram água, a enxurrada transborda. Uma gota comprida e fria rola ao longo da vidraça e vem cair sobre a minha mão. Atrás de mim, o quarto encontra-se na penumbra... Como seria bom sentir o ombro daquele que há pouco eu humilhava, chamando-o de "maçante capitalista"...

Acendo a lâmpada central, e, para fazer alguma coi­sa, ponho-me a dar um ligeiro arranjo na minha escriva­ninha improvisada. Abro a pasta de papéis, que está colocada entre o espelho de mesa e um ramo de nar­cisos, procuro construir uma espécie de lar... vem-me a saudade do chá quente, do pão dourado, da luz familiar, do quebra-luz rosa, do latido da minha cachorra, da voz do meu velho Hamond... Uma grande folha branca aqui está, tentadora; então, sento-me:

Sim, meu querido Max, estou de volta; estou de volta, um pouco mais cada dia. Será possível que somente doze noites nos separem? Não sei, não é assim tão certo, alguma coisa me diz que não devo revê-lo. .. Como se­ria terrível! Mas como seria sensato!. ..

Detenho-me: não será excessivamente claro?. . . Não. Aliás escrevi: "seria", e um amante jamais se deixará impressionar por um condicional. . . Posso continuar dessa mesma maneira livre de suspeitas, arriscando ge­neralidades melancólicas, restrições timoratas.. . E como, ainda assim, temo uma decisão brusca da parte de Max, uma decisão que mo traria aqui em menos de doze horas, não me esqueço de mergulhar tudo isso numa espuma de ternuras — ai de mim! — que me leva de roldão...

É um pouco desprezível o que estou fazendo...

Como o tempo passa! Onde estão os Pireneus flori­dos de cerejeiras, a grande montanha severa que pare­cia seguir-nos, a montanha coberta daquela neve ofuscante que dá sede, sulcada de sombras vertiginosas, la­vrada de abismos azuis e manchada de florestas de bronze? Onde os vales estreitos, a grama da Espanha, e as orquídeas selvagens, brancas como gardênias? E o refugiozinho basco onde fumegava o chocolate forte? O Gave gelado, cheio da sua graça agressiva, alterado pelo degelo, transparente, leitoso como olhos-de-peixe, como já está longínquo!

Deixamos Bordéus, agora, depois de cinco represen­tações feitas em três dias:

— Boa cidade! — suspirava Brague na estação. — Tinha arranjado uma pequena daqui... lá, onde se

comem cogumelos. Um desses pingos-de-gente como há milhões ali no Courss, dá para você ver daí onde está? Três palmos de altura, bom busto, perna curta, pezinho gordinho, com tanta pintura nos olhos, tanto pó na cara e tanto frisado no cabelo que duvido que você pudesse me dizer se são bonitas ou feias. Brilham, con­versam, remexem-se. . . são bem o meu tipo!

E transpirava uma felicidade serena, enquanto eu o olhava com uma hostilidade um pouco enojada, como costumo olhar as pessoas que comem quando já não tenho fome. . .

A temerosa primavera foge diante de nós. À medida que voltamos para o Norte, vemo-la abrir-se, de hora em hora, e, folha a folha, e flor a flor tornar a fechar-se. Na fina sombra das sebes reaparecem bem-me-queres de abril e as últimas violetas descoloridas. .. O azul mais pálido, a erva mais curta, a umidade ácida do ar criam a ilusão de que estão a renovar, a fazer voltar o tempo. . .

Se eu pudesse dobrar inversamente todos esses me­ses atrás até aquele dia em que Max entrou em meu ca­marim . . . Quando eu era pequena, e estava aprenden­do a tricotar, obrigavam-me, se cometesse um erro, a desfazer carreiras e carreiras de tricô, até que chegasse a falha despercebida, a malha escapada, o que na es­cola chamavam de "comer mosca". . . "Comer mos­ca"! Eis o que tenho feito em minha vida, com o meu pobre segundo amor, aquele a quem eu chamava de meu doce aconchego, de minha luz. .. Ele está perto, tão ao meu alcance, nas minhas mãos, e eu, em vez de pegá-lo, eis-me fugindo. . .

Sim, pois estou resolvida a fugir! Uma fuga preme­ditada organiza-se lá dentro, muito longe, nas profun­dezas do meu ser, sem que nela eu tome parte direta.. . No momento decisivo, quando só for preciso bradar, como uma louca: "Depressa, Blandine, minha mala e um táxi!", deixar-me-ei, talvez, enganar pela minha de­sorientação: ó caro Max, que eu quis amar, aqui o confesso, e com a mais sincera dor: a partir de agora, já está tudo resolvido.

Excetuando esta dor, não voltei a ser o que era, isto é, livre, terrivelmente só e livre? Retira-se de mim a graça passageira que me foi dada, de mim que recusei entregar-me a ela. Ao invés de dizer-lhe: "Toma-me!", pergunto-lhe: "Que me dás tu? Um outro eu? Não há outro eu. Dás-me um amigo jovem, ardente, ciumento e verdadeiramente apaixonado? Sim, eu sei o que é isso: é o mesmo que ter um dono e tal coisa não que­ro... Ele é bom, ele é simples, admira-me, é cons­tante? Nesse caso, é inferior a mim, e o casamento me é desvantajoso.. . Se ele me desperta com um simples olhar, se cesso de pertencer-me, quando a sua boca se cola à minha, então é meu inimigo, é um gatuno que me rouba a mim própria!.. . Dizes-me que terei tudo, tudo o que se possa comprar, que poderei debruçar-me num terraço branco, até onde chegue o extravasar das rosas dos meus jardins? Mas é dali que veria passar os donos da terra, os errantes!... — Volte!, suplica meu amigo, deixe esse seu emprego, a tristeza miserável do meio em que vive. Volte para os seus iguais. . . — Não tenho iguais, tenho apenas companheiros de jor­nada..."

Giram moinhos no horizonte. Nas pequenas estações que o trem atravessa, as toucas bretãs, as primeiras toucas brancas, florescem como margaridas. .. Eis-me chegando, maravilhada, ao reino das giestas e dos juncos-marinhos! Ouro, cobre, e vermelho também — pois que o colza pálido irrompe entre eles — inflamam es­sas charnecas com uma insopitável luminosidade. Apoio a minha face e ambas as mãos espalmadas à vidraça do vagão, surpresa por não senti-la morna. Atravessa­mos um incêndio, léguas e léguas de juncos em flor, riqueza desolada que repele até mesmo as cabras, e por onde as borboletas, amolecidas pelo ardente per­fume de pimenta e de pêssego, meio maduro, voejam inseguras. ..

É em Caen, na antevéspera do nosso retorno, que encontro esta carta de Max, uma linha, sem assinatura: "Será, minha Renée, que você já não me ama?"

É tudo. Não contava com esta doçura, com esta per­gunta tão simples que vem destruir toda a minha lite­ratura. Que foi que escrevi, da última vez?.. .

Pouco importa. Se ele me ama, não foi nas minhas cartas que leu a advertência. Se ele me ama, conhece aqueles choques misteriosos, aquele dedo leve e malfa­zejo que fere o coração, aquelas agudas descargas que caem de repente, imobilizando um gesto, cortando uma gargalhada. Sabe que a traição, que o abandono e que a mentira nos atingem e nos ferem através da distância. Ele conhece a brutalidade, a infalibilidade do pressenti­mento!

Pobre, pobre amigo, a quem eu quis amar! Poderia ter morrido, ou ter-me enganado, que eu nem suspeita­ria, eu, a quem, outrora, a mais secreta traição logra­va, telepàticamente, atingir. . .

"Será, minha Renée, que você já não me ama?. .." Não me entreguei a prantos apaixonados. Lancei, so­bre uma folha de papel, as abreviações de um telegrama vagamente tranqüilo:

"Depois de amanhã, 5 horas, estarei casa. Todo meu carinho".

Tenho ciúme, um sutil ciúme desse homem que so­fre. Releio a sua queixa, e falo à sua carta como se nela estivesse ele, a boca crispada, sobrancelhas ameaçado­ras:

"Você ama, você está sofrendo, você se lamenta! Ei-lo, tal como eu, quando tinha vinte anos. Abandono-o e, graças a mim, você irá talvez acrescer-se daquilo que lhe falta. Já aprendeu a ver através das muralhas: não se sente maravilhado, diga, macho obtuso? Nervos afi­nados, um sofrer inocente e inflamado, uma esperança que reverdece, vivaz, como um campo ceifado, era o meu quinhão. Agora ele será o seu. Não posso retomá-lo, mas quero que isso aconteça a você".

Um punhado de cartas acompanha a de Max. A própria Blandine escreve: "Senhora, o Sr. Maxime trou­xe Fossette de volta, e com uma nova coleira. Perguntou muito pela senhora. Ele não tem um ar muito satisfei­to, vê-se que a espera..."

Carta de Hamond, que conversa simplesmente, mas usa de uma cortesia quase cerimoniosa; carta de Margot, que nada tem a dizer-me, mas ainda assim arranja for­ma de preencher duas folhas com uma garrulice de re­ligiosa: apressam-se em escrever, todos eles, no mo­mento do meu regresso, como se em suas consciências lhes pesasse um pouco o fato de me haverem deixado tanto tempo só...

Em quem confiarei quando chegar? Em Hamond? Em Margot? Não, nem num nem noutro. Esqueço este pequeno senão, antes de deixar, para subir ao palco, esta tumba sufocante que chamam "camarim da estre­la" das "Folies-Caennaises". Estamos num café-cantante, estilo antigo: para ganhar a entrada do palco, é preciso atravessar boa parte da assistência — é o pior momento do sarau. Acotovelam-nos, barram-nos propositadamen­te a passagem, a fim de poderem examinar-nos por mais tempo; meu braço nu deixa seu pó sobre um dólmã, uma mão puxa sorrateiramente o meu xale bordado, e dedos furtivos tateiam a minha anca. . . Cabeça erguida, le­vamos conosco o desdém e a cobiça desta calorosa multidão, como altivos detentos...

Ao longe, um relógio bate meia-hora. O trem de Ca­lais, que deve levar-me para Paris, só irá passar daqui a cinqüenta minutos...

Regresso sozinha, de noite, sem prevenir ninguém. Despreocupados, Brague e o Antigo Troglodita devem estar dormindo, em Boulogne-sur-Mer. Matamos três quartos de hora entre contabilidade e palração, em pro­jetos para uma tournée sul-americana. E de lá vim pa­rar aqui, à estação de Tintelleries, que de tão deserta, a estas horas, dá a impressão de um lugar evacuado... Ninguém acendeu, só para mim, os globos elétricos do cais. .. Uma sineta rachada toca timidamente na som­bra, como se estivesse presa ao pescoço de um cão transido.

A noite está fria, sem lua. Há por perto, num jar­dim invisível, lilases cheirosos que o vento agita. Ouço, ao longe, o chamado das sirenas sobre o mar.. .

Quem poderia descobrir-me aqui, neste fim de cais, toda enrolada no meu casaco? E que bem camuflada! Nem mais escura, nem mais clara do que a sombra...

Pela manhãzinha, entrarei em casa, sem barulho, como uma ladra. Não creio que me esperem assim tão cedo. Acordarei Fossette, acordarei Blandine, e depois virá o momento mais difícil. ..

Intencionalmente ponho-me a imaginar os pormenores da minha chegada; evoco a lembrança do duplo perfu­me que já está entranhado nos cortinados: fumo inglês e jasmim um pouco doce demais; em pensamento aper­to contra o peito a almofada de cetim onde ficou, como duas pálidas manchas, o traço de duas lágrimas, roladas dos meus olhos num minuto de intensa felicidade. .. Paira em meu lábio o pequeno "ah!", a exclamação abafada do ferido que machuca seu ferimento. Faço-o de propósito. Doerá menos dentro em breve.

Daqui de longe, despeço-me de tudo o que me retinha lá, e daquele que nada mais terá de mim, exceto uma carta. Uma sensatez frouxa e lúcida afasta-me do intento de revê-lo: nada de "leais explicações" entre nós! Uma heroína como eu, feita de carne como sou,, não tem o poder de triunfar sobre todos os demônios. .. Que me despreze, que me maldiga um pouco: isto lhe seria até benéfico — pobre querido, curar-se-á mais depressa! Não, não, nada de muita honestidade! E nada de muito fraseado, pois que é calando que eu o poupo...

Num passo sonolento, puxando um carrinho com uma mala, um homem atravessa as vias. E logo em seguida acendem-se os globos elétricos da estação. Meio entorpecida, levanto-me. Não me havia apercebido de que tinha frio: estou gelada.. . No fim do cais, uma lanterna saltita, dentro do breu, no balanço de um braço que não se vê. Um silvo longínquo responde à voz rou­ca das sirenas: é o trem. Já é o trem.. .

Adeus, meu querido. Sigo para uma cidadezinha, não muito distante daqui; depois, com certeza, partirei para a América, com Brague. Isso quer dizer que não nos veremos mais, meu querido. Não creia tratar-se de uma brincadeira, uma cruel resposta ao que você me escreveu ontem: "Será, minha Renée, que já não me ama mais?"

Vou-me embora Max, e é esse o menor mal que lhe posso causar. Não se trata de uma perfídia da minha parte, não. A verdade é que me sinto gasta, e como que incapaz de retomar o hábito do amor — apavora-me a idéia de ter ainda que sofrer por causa dele.

Não me julgava assim tão covarde, não é, meu que­rido? Que exíguo coração eu devo ter! Sei que outrora, entretanto, ele seria mui digno do seu, que se oferece tão simplesmente. Mas, agora. . . que poderei dar-lhe agora, meu querido? O melhor que possuo, dentro de alguns anos, seria convertido naquela maternidade ma­lograda que uma mulher sem filhos costuma trasladar para o marido. Você não a aceitaria, e nem eu tam­pouco. É pena. . . Há dias, você sabe — eu, que me ve­jo envelhecer com um terror resignado —, em que vejo a velhice como uma recompensa. . .

Deixe que o tempo passe, meu querido, e compreen­derá o que estou dizendo. Compreenderá que eu não devia mesmo, não poderia ter sido sua, nem de nin­guém mais, e que, a despeito de um primeiro casamento e de um segundo amor, fiquei sendo uma espécie de solteirona.. . Solteirona, que, como algumas delas, é tão apaixonada pelo Amor que amor algum lhe pareceria suficientemente belo, e que recusa todos, sem qualquer explicação; são essas, que representam todas as ligações sentimentais imperfeitas e voltam a sentar-se à janela, de­bruçadas sobre a agulha, num eterno colóquio com a sua incomparável quimera. .. Como essas, eu quis tudo; e um erro lamentável puniu-me.

Não ouso mais, aí está, meu querido, não ouso mais. Não se revolte pelo fato de eu lhe ter escondido por tan­to tempo os esforços que fiz para ressuscitar em mim o entusiasmo, o fatalismo aventureiro, a esperança cega, toda a alegre escolta do amor. . . Não houve outro de­lírio, fora o dos meus sentidos. Mas, também, não hou­ve outro cujas trevas fossem mais lúcidas! E você, Max, havia de consumir-me em vão, você que, com o seu olhar, com os seus lábios, com suas pacientes carícias e seu comovente silêncio, logrou curar-me, ainda que por pouco tempo, de uma derrocada cuja culpa não lhe cabe. . .

Adeus, meu querido. Ê longe de mim que você deve procurar a juventude, a fresca beleza intata, a fé no futuro e em você mesmo, e o amor, enfim, tal como você o merece, tal como outrora eu poderia ter-lhe dado. Não me procure. As únicas forças que me restam, pou­pe-mas, preciso delas para fugir-lhe. Se você entrasse aqui, e eu o tivesse à minha frente, agora, enquanto lhe escrevo. . . não, mas você não entrará!

Adeus, meu,querido. Você é o único ser sobre a ter­ra a quem chamo "meu querido" — fora você, não te­nho outra pessoa a quem possa chamar assim. Envolva-me, pela última vez, como quando eu tinha frio, abrace-me bem apertado, bem apertado, bem apertado. . .

Renée

Escrevi lentamente, mui lentamente; antes de assi­nar, reli a carta, aperfeiçoei os traços da caligrafia, acrescentei pontos, acentos e pus a data: 15 de maio, 7 horas da manhã. . .

Mas, ainda que assinada, datada e finalmente fecha­da, não deixou de ser uma carta incompleta. .. Torna­rei a abri-la?.. . Eis-me subitamente tiritante, como se, ao fechar este envelope, houvesse vedado uma janela luminosa da qual me viesse ainda algum calor. . .

É uma manhã sem sol, e o frio do inverno parece haver-se refugiado neste pequeno salão atrás destas persianas trancadas há quarenta dias...

Sentada a meus pés, minha cachorra, muito quieta, fita a porta: espera. Espera alguém que não mais vi­rá... Ouço Blandine mexer com panelas, sinto o cheiro de café moído: a fome contrai-me desagradavelmente o estômago. Um pano gasto cobre o diva, uma umida­de azulada embaça o espelho. . . Não me esperavam tão cedo. Tudo está coberto pelas velhas capas, pelo bolor, pela poeira, tudo conserva ainda a aparência um tanto fúnebre da partida e da ausência. Atravesso furtivamente o "meu lar", sem mesmo tocar nas capas dos móveis, sem rabiscar, no veludo da poeira, um no­me que seja, sem deixar outro traço da minha passagem além'desta carta inacabada.

Inacabada... Caro intruso que eu quis amar, pou­po-o. Deixo-lhe a única oportunidade de crescer a meus olhos: afasto-me. A minha carta lhe causará tristeza, tristeza, nada mais. Não saberá a que humilhante con­frontação escapa, nem de que debate você foi a recom­pensa, recompensa que desdenho. ..

Sim, pois que o rejeito, e escolho... escolho tudo o que não seja você. Eu já o conhecia, e reconheço-o agora. Não será por acaso aquele que, acreditando dar, monopoliza? Você veio para compartilhar da minha vida. .. Compartilhar, sim: desfrutar do seu quinhão! Estar mais ou menos a par dos meus atos, introduzir-se a toda hora no pagode secreto dos meus pensamentos, não é isso? Por que você e não outro? Eu o fechei a todos.

Você é bom, e com a melhor boa-fé do mundo pre­tendia trazer-me felicidade, pois que me viu despojada e solitária. Mas, na verdade, você não contou com o meu orgulho de pobre: os mais belos lugares da terra, recuso-me a contemplá-los, tão pequenos me parecem no espelho amoroso do seu olhar...

A felicidade? Você está certo de que doravante a fe­licidade me bastará?... Não é só a felicidade que dá valor à vida. Você queria iluminar-me com esta auro­ra banal, pois lamentava a minha obscuridade. Obs­cura, se quiser: como um quarto visto de fora. Não: sou sombria, e não obscura. Sombria, e preparada pelos zelos de uma vigilante tristeza, crepuscular e prateada como a coruja, como o sedoso camundongo, como a asa da traça. Sombria, como o vermelho reflexo de uma pungente lembrança... Mas você é aquele diante do qual eu não teria mais o direito de ser triste. ..

Fujo, mas ainda não me libertei de si, sei bem. Va­gabunda, e livre, ainda hei de ansiar pela sombra das suas paredes... Por quantas vezes ainda, caro apoio que me repousa e me fere, quantas vezes ainda hei de procurá-lo? Quanto tempo levarei evocando o que você poderia ter-me dado, a longa volúpia, interrompida, atiçada, renovada. . . e a queda dulcíssima, e a vertigem em que as forças ressuscitam da própria morte. . . e o odor de sândalo queimado e de erva pisada. . . Ah! você será, por muito tempo, uma das sedes da minha estrada!

Desejá-lo-ei, ora como o fruto suspenso, ora como a água longínqua, ora como a casinha tranqüila e venturosa em que roço. . . Deixo, em cada lugar dos meus errantes desejos, milhares e milhares de sombras à mi­nha imagem e semelhança. Esta, aqui, sobre a pedra quente e azul dos despenhadeiros da minha terra; aque­la, lá, na cova úmida de um vale sem sol; esta outra vai seguindo o pássaro, a vela, o vento e a vaga. Você con­serva a mais tenaz: uma sombra nua, ondulante, que o prazer agita como uma erva num ribeiro. .. Mas nem ela escapará ao tempo: será dissolvida como as outras, e você nada mais saberá a meu respeito, até o dia em que cessem os meus passos, e em que, da sua Renée, se desprenda a última e a menor das sombras...

 

                                                                               Gabrielle S. Colette 

 

 

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