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A VIDA ERA BELA / Heinz G. Konsalik
A VIDA ERA BELA / Heinz G. Konsalik

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A VIDA ERA BELA

 

Realmente, não se pode dizer que Leo Kochlowsky fosse querido pelos seus amigos. Porém, para ele isso não tinha muita importância. As pessoas que o conheciam melhor ‑ se é que se podia conhecê‑lo bem, já que Kochlowsky não tinha amigos, porque ninguém atura ser constantemente chamado de asno ‑ até diziam que ele precisava de uma certa tensão à sua volta, como o raio necessita de tensão para existir.

Quem já esteve na pequena povoação de Wurzen, à beira da linha ferroviária de Leipzig para Dresden, na Saxónia, sabe que lá todos se conhecem, sobretudo no ano de 1889, quando ainda era hábito as pessoas cumprimentarem‑se respeitosamente quando se encontravam na rua. Era natural que um homem como Kochlowsky desse nas vistas numa cidadezinha como esta. Sobretudo pela sua aparência imponente e pela sua elegância. A 5 de Maio de 1889 aparecera pela primeira vez na estação de Wurzen, desembarcando de uma carruagem de segunda classe, num fato talhado à medida e calçando botas de verniz. A sua barba preta estava minuciosamente aparada, o cabelo mostrava um risco perfeito e na mão direita segurava uma bengala de punho de marfim. Olhou para os três coches que esperavam por clientes, parados em frente da estação, e decidiu‑se pelo terceiro e último. Aproximou‑se da carruagem, mas o cocheiro, um homem de idade com um bigode branco como a neve, abanou a cabeça e apontou para o primeiro coche.

‑ O que é que está a tentar dizer? ‑ perguntou Kochlowsky com uma voz ameaçadora.

‑ É a vez do meu colega, senhor.

"Tens de manter a calma", pensou Kochlowsky. "Calma, Leo! Isto aqui é Wurzen, na Saxónia, e não Pless, na Silésia. Já não és o todo‑poderoso administrador da propriedade III do príncipe Pless, mas sim o futuro segundo gerente da fábrica de tijolos do conde Douglas. Estás aqui para te apresentares, para conheceres o teu novo local de trabalho e para inspeccionares a casa na qual tu, a tua pequena e frágil mulher Sofia e os teus futuros filhos viverão em paz."

Começara uma nova etapa na sua vida: depois dos tempos rebeldes em Pless, com as jovens camponesas polacas e as senhoras da alta sociedade ‑ que eram as piores ‑ vagueando pela escuridão da noite até à sua casa, como gatas depois da valeriana, iria agora fundar a família Kochlowsky, aqui em Wurzen, longe das mulheres que, desiludidas, tinham ameaçado arrancar‑lhe os olhos. Só os homens suspiravam de alívio: Kochlowsky desaparecera de Pless. Agora já não seria necessário acorrentar as mulheres. O temível senhor gerente, também chamado "o general" por montar como um comandante do exército, iria para a Saxónia e desapareceria para sempre, pois casara com a angélica cozinheira Sofia Rinne, que era tratada pela princesa Von Schaumburg‑Lippe por "sobrinha", o que, aliás, ninguém compreendia.

 

Desgraçada da rapariga! Todos a tinham avisado para não casar, mas ela amava esse bruto do Kochlowsky. Quando ainda por cima engravidou antes do casamento, o que tornou o caso mais desagradável, houve quem estivesse disposto a rachar o crânio de Leo Kochlowsky. Nesta situação, a decisão de Kochlowsky, de retomar o contacto com o conde Douglas e de se oferecer para um posto nas suas terras, fora muito acertada. Felizmente o conde necessitava de um segundo gerente para a sua fábrica de tijolos.

Agora, chegara a Wurzen, encontrava‑se em frente à estação e um cocheiro recusava‑se a transportá‑lo. Em Pless,

um refilão como este já estaria de joelhos com medo dos berros de Kochlowsky ou, mais provavelmente, nem teria ousado dar um pio.

‑ O senhor vai levar‑me, sim! ‑ disse Kochlowsky, decidido, aproximando‑se da carruagem. Mas o cocheiro voltou a abanar a cabeça num gesto negativo. Era um homem educado e sobretudo um bom colega. Quando havia pouco trabalho, seguiam sempre a ordem dos coches. Nenhum deles deveria passar fome.

‑ O primeiro coche está livre, meu senhor ‑ respondeu.

‑ Eu não me faço transportar por cavalos esclerosados que peidam a cada passo! ‑ gritou Kochlowsky, tão alto que era possível ouvi‑lo por toda a praça. Em Pless todos conheciam a sua voz grave e sonante ‑ aqui, em Wurzen, ainda se teriam de habituar a ela.

O condutor do primeiro coche estremeceu ao ouvir o berro. Puxou o chapéu para a testa e aproximou‑se devagar. O segundo cocheiro juntou‑se a ele. A solidariedade entre o proletariado era um termo recente, mas já bastante conhecido.

Kochlowsky esticou o queixo e a sua barba eriçou‑se. Pousou a mala de couro no chão e bateu com os dedos nas coxas. "Se tivesse aqui o meu belo chicote polaco... Sempre estas rebeliões! Eu quero o terceiro coche, com cavalos fortes e bem alimentados, e estes homens querem obrigar‑me a ir no primeiro. Querem obrigar Leo Kochlowsky... e isto na Saxónia! Estas pessoas têm que ser tratadas da maneira certa logo desde o princípio!"

‑ O que é que o senhor deseja? ‑ perguntou o primeiro cocheiro, educado.

‑ Eu quero este coche! ‑ Kochlowsky estava decidido a lutar até ao fim. Pegou na mala, atirou‑a para dentro da carruagem e subiu para o assento. Os três homens olharam para ele como se fosse um artista ambulante que tivesse acabado de dar um salto mortal.

‑ O senhor ofendeu o meu cavalo ‑ disse o cocheiro, sempre num tom educado. ‑ Há vinte anos que ele me presta serviço. O que é que o senhor entende de cavalos?

Kochlowsky inspirou fundo. "Deverei falar‑lhe das cavalariças do príncipe Pless?", pensou. "Já montei cavalos tão fortes e poderosos! Tinha sempre as botas de montar no vestíbulo, brilhantes como as dos soldados. E em ocasiões de festa, como o aniversário do imperador ou o dia da fundação do império, costumava aparelhar o cavalo com uma sela trabalhada a prata sobre uma manta branca mas agora tudo isso acabou! E vocês, desgraçados, não fazem ideia de quem foi Leo Kochlowsky!"

‑ Vamos então? ‑ perguntou com uma voz penetrante.

‑ Não! ‑ O terceiro cocheiro apontou com o seu chicote para o primeiro coche. ‑ Entre nós reina a ordem...

O cocheiro não o disse com má intenção, mas para Kochlowsky foi como uma punhalada no peito. Cerrou os dentes. Se havia uma coisa que odiava, era a desordem. Na propriedade III, em Pless, todos sabiam que a secretária do gerente estava sempre geometricamente ordenada. Cada objecto tinha o seu lugar fixo: os sete lápis no copo de vidro estavam sempre afiados, o tinteiro limpo e cheio, as três canetas de tinta permanente encontravam‑se nos estojos de marfim e todas as manhãs as penas estavam tão limpas que pareciam novas. E agora um cocheiro de Wurzen, na Saxónia, ousava falar de ordem a Kochlowsky! Era de fazer parar a respiração...

‑ Com o dinheiro que tenho posso escolher o cavalo que bem entender! ‑ exclamou Kochlowsky.

‑ O senhor não acabou de dizer que o meu cavalo peidava? ‑ perguntou o cocheiro apoiando‑se no seu chicote.

‑ Disse, sim!

‑ Vai ter que se desculpar por isso...

‑ Por que haveria de me desculpar? ‑ Kochlowsky endireitou‑se no banco do coche. Os seus olhos pretos faiscavam. ‑ Então, é assim que as coisas funcionam aqui? - A sua voz tinha agora um tom ameaçador e ecoava pela praça. Alguns viajantes que se dirigiam à estação voltaram a cabeça, assustados. ‑ Em Wurzen! Em Wurzen, onde os cavalos peidam... Fixe bem essa frase, lacaio!

Deve‑se salientar que os cocheiros pertencem a uma raça muito especial. O constante lidar com cavalos, coches e passageiros que sempre mudam, tal como a paisagem, influencia o seu carácter. Não se pode comparar um cocheiro de Viena com um de Berlim e um cocheiro taciturno, como os de Hamburgo, difere muito de um de Munique. Um cocheiro de Wurzen insultado por um estranho não é nada inferior a outro cocheiro qualquer. Mas antes mesmo de Leo Kochlowsky ter entendido isso, o cocheiro, ofendido, tossiu levemente e cuspiu para o chão mesmo em frente das botas de Kochlowsky. Depois, virou‑se e voltou para o coche.

O cocheiro da carruagem na qual se encontrava Kochlowsky sentou‑se na estribeira e pareceu não ter intenções de sair dali. Kochlowsky também estava decidido a permanecer no seu lugar e olhava de sobrolho carregado para o vazio. Sentia‑se furioso. "Ainda me vais conhecer melhor", pensou, vingativo. "Esperem até eu chegar à fábrica de tijolos! Meu Deus, o que teria acontecido a um cocheiro de Pless que ousasse cuspir aos meus pés?! Nem quero imaginar!"

Esperaram mais de uma hora, silenciosos, até o próximo comboio chegar à estação de Wurzen. Só depois de os dois outros colegas terem partido é que o terceiro cocheiro subiu para a boleia e se virou para Kochlowsky.

‑ Bom dia, meu senhor! ‑ cumprimentou‑o como se fosse a primeira vez que o visse e perguntou. ‑ Para onde quer que o leve?

‑ Para a casa do conde Douglas! ‑ resmungou Kochlowsky. Quase não conseguia falar, de tanta raiva.

O cocheiro encolheu os ombros, respirando pelo nariz, e fitou o seu passageiro.

‑ Para a casa do... conde?

‑ Um cocheiro não deveria ser surdo! ‑ berrou Kochlowsky.

‑ O senhor... o senhor é hóspede do conde Douglas?

‑ Sou amigo dele! ‑ gritou Kochlowsky, embora isso fosse uma mentira. Ficou contente por ver o efeito que esta frase teve no humilde cocheiro, que quase imediatamente ganhou uma postura militar. Um sentimento de superioridade apoderou‑se dele. ‑ Vamos, lacaio? Quando chegarmos, terá de explicar ao conde o motivo do nosso atraso!

Nisso, Kochlowsky estava a exagerar. Afinal, não marcara uma hora certa com o conde, que de certeza não estaria minimamente interessado em saber que o segundo gerente da fábrica de tijolos tivera um atrito com um cocheiro. Mas este acreditou em Kochlowsky. Tirou o chapéu da cabeça, encostou‑o ao peito e balbuciou assustado:

‑           Peço‑lhe perdão, senhor. Eu não podia saber que...

‑           Se soubesse alguma coisa, não seria cocheiro ‑ disse Kochlowsky com aquela voz grossa que os trabalhadores de Pless temiam mais do que os raios e a geada. ‑ Ponha a sua carripana a andar.

Qualquer pessoa, mesmo um simples pedinte, tem o seu orgulho. Quando o cocheiro ouviu a palavra carripana, estremeceu, colocou o chapéu na cabeça grisalha e estalou o chicote, fazendo o cavalo dar um salto para a frente. Kochlowsky foi projectado para trás e bateu com o cotovelo direito na parede da carruagem.

‑           Parece que os cocheiros aqui nem sequer sabem conduzir um coche! ‑ berrou. ‑ Meu Deus, onde é que eu vim parar?

Depois calou‑se e observou, pensativo, as pessoas lá fora. Comparava tudo com a sua tão querida aldeia de Pless. Estava de mau humor. Achava Wurzen horrível. "Tudo isto só por ti, minha querida", pensou, tentando consolar‑se. "É por ti e pela criança que carregas dentro de ti que eu deixo Pless, as maravilhosas terras, os cavalos, o meu pequeno reino, onde ninguém me podia impedir de nada, nem mesmo o príncipe. É por ti que estou a abandonar tudo isso... e as bonitas polacas que consideravam uma honra encontrarem‑se com o senhor gerente no celeiro, na cocheira, na floresta ou no campo de trigo. Enfim, é sobretudo por causa dessas jovens meninas que eu deixei Pless. Quero ser um bom marido, querida, um pai exemplar para os meus filhos. Aqui em Wurzen serei um novo Kochlowsky. Afinal, quem casa com um anjo está liberto de Satanás. a Sofia, minha querida mulher, se me visses aqui, calmamente sentado neste horrível coche, permitindo que um cocheiro me ofenda, sem eu me defender, quando na realidade o que ele merecia era um pontapé no traseiro... Como vês, estou completamente mudado.

‑           Lacaio ‑ berrou Kochlowsky para o cocheiro ‑, a sua besta sofre de esclerose?

O cocheiro encolheu os ombros. Lacaio, besta, esclerose... o que mais teria de suportar com boa cara?

‑           Ferdinand só tem sete anos ‑ respondeu.

‑           Isso é admirável, tendo em vista que rasteja como um velho cavalo esclerosado!

A viagem até à casa senhorial do conde Douglas levou mais de uma hora. Atravessaram densas florestas e campos de beterraba, passaram por uma aldeia aprumadinha e por barreiras de onde se extraía a matéria‑prima para a fábrica de tijolos. O barro era transportado em carros largos e rasos, com guarnições de latão, puxados por fortes cavalos. Atravessaram a estrada em direcção à fábrica, da qual à distância só se conseguiam distinguir duas enormes chaminés. Os edifícios em si encontravam‑se um pouco mais escondidos, por detrás de uma pequena lomba. A paisagem era bonita: amena, pacífica, longínqua, pacata, mimada pela Natureza, cuidada por pessoas trabalhadoras.

‑           Pare! ‑ disse Kochlowsky em voz alta. Era a primeira vez que falava depois de uma hora.

O cocheiro gritou: "Brr!" e o cavalo parou. "O que terá acontecido agora?", pensou o homem. "De que maldade se terá ele lembrado desta vez? Só por ser um senhor, amigo do conde, e eu um homem simples, é que tenho de suportar tudo isto."

Kochlowsky olhou para as duas enormes chaminés: um fumo claro e branco espalhava‑se pelo pálido azul do céu. Os pesados carros puxados pelos cavalos passavam pelo coche. "Esta é a minha nova vida", pensou. "Desci de senhor sobre grandes propriedades, incluindo três aldeias, para simples gerente de uma fábrica de tijolos! Mas por ti tudo vale a pena, querida. E de qualquer maneira, as mulheres de Pless nunca me teriam deixado em paz...

‑ Tudo isto pertence ao conde! ‑ disse o cocheiro, orgulhoso.

‑ Conhece Pless, cocheiro? ‑ perguntou Kochlowsky.

‑ Não, mas ouve‑se falar muito dessa zona. Do príncipe que é amigo do imperador e de Bismarck...

‑ Para o príncipe Pless os bens do conde Douglas não valem nada.

‑           Conhece Pless, meu senhor?

‑           Venho de lá! E agora siga!

"Que grande senhor", pensou o cocheiro, cada vez mais impressionado com Kochlowsky. "Os grandes senhores têm o direito de serem brutos, é assim mesmo. O conde Douglas, realmente, é uma grande excepção! Um homem fino, calado e discreto, sempre bem educado, até com o mais simples dos criados. Quando se desloca à barreira até aperta a mão aos trabalhadores e quando um deles faz anos manda‑lhe um presunto, cinquenta quilos de batatas e uma garrafa de aguardente da sua destilaria. E sempre que um deles morre, o caixão é fornecido pelo conde. Com uma grande cruz de ferro, como é hábito desde 1870/71. Todos veneram o conde Douglas."

Vinte minutos depois chegaram à alameda de choupos que levava ao palácio. Quando Kochlowsky viu a vasta casa senhorial pôs‑se a acariciar a barba e a alisá‑la. Verificou o seu penteado e o risco, passou as mãos pelo paletó e tirou uma pequena nódoa das botas de verniz.

O coche parou em frente ao enorme portão, o cocheiro saltou da boleia, abriu a porta da carruagem e tirou o chapéu. Kochlowsky desceu do coche com muita dignidade e observou pelo canto do olho o criado que aparecera à entrada da casa.

‑           Espere aqui! ‑ ordenou ao cocheiro.

‑           Por quanto tempo, meu senhor?

‑           Por quanto tempo?! ‑ Kochlowsky respirou fundo. ‑     Já me viu perguntar‑lhe quanto tempo fica sentado num certo sítio?

O cocheiro fechou os olhos, abalado, e calou‑se. Kochlowsky dirigiu‑se para as grandes escadarias, subiu os degraus e fitou o criado que o olhava de maneira impessoal e

fria. "Um tipo arrogante", pensou. "Já conheço isso de

Pless. Com estes tem que se marcar a posição, desde o

princípio. "

‑           O que deseja? ‑ perguntou o criado num tom muito educado.

‑           Quero falar com o conde Douglas ‑ resmungou Kochlowsky.

‑ O conde espera‑o?

‑ O conde sabe que eu chego hoje e se lhe disser quem eu sou ele receber‑me‑á. Leo Kochlowsky ‑ fixe bem esse nome! Quando o ouvir tem que correr! E não olhe para mim com esse ar de imbecil! Abra a porta e leve‑me até ao conde...

O criado, que se chamava Emil Luther e que ainda sofreria muito sob Kochlowsky, endireitou‑se ainda mais e deixou entrar o rude hóspede. Indicou‑lhe um canto com sofás numa sala em estilo barroco e afastou‑se sem dizer uma palavra.

Kochlowsky não se sentou... vagueou pela sala, com os braços cruzados atrás das costas, observando as esculturas e as talhas douradas. Estava satisfeito consigo próprio.

"Aqui estou eu em Wurzen", pensou. "E rapidamente todos ficarão a saber que Leo Kochlowsky é um homem respeitável! Wurzen na Saxónia! Uma lufada de ar silésico‑prussiano vai‑lhes fazer bem.

 

O conde Douglas era um homem de baixa estatura, um tanto corpulento e extremamente culto e letrado. Não era muito mais velho que Leo Kochlowsky: tinha quarenta e um anos. Adorava a vida no campo e só usava a sua farda de oficial quando realmente era necessário. Era amigo do rei da Saxónia e, tal como este, odiava tudo o que tivesse um ar prussiano e disciplinado. Apreciava a comida caseira e gostava de caçar. Não se envolvia com mulheres ‑ embora as mulheres da Saxónia fossem conhecidas pela sua beleza ‑ nem andava atrás das filhas dos criados e irradiava uma tal jovialidade que todos gostavam dele, sobretudo a população de Wurzen. Para ele um copo de vinho bebido em silêncio e acompanhado por um cachimbo eram sagrados. Vestia‑se de maneira simples: quem o visse na rua, tomá‑lo‑ia por um operário ou, no máximo, por um simples funcionário. O seu pessoal, porém, era exactamente o contrário: havia um mordomo tão elegante que quase se caía na tentação de tratá‑lo por Vossa Excelência, quatro criados todos tão finos como Emil Luther, e seis raparigas que tratavam da casa; duas cozinheiras, cuja especialidade eram bolinhos de batata com lombo de javali estufado ‑ caçado pelo próprio conde ‑, dois cocheiros e, finalmente, três rapazes que tratavam dos cavalos. O centro das atenções, no entanto, era o estribeiro e picador, o barão Von Uxdorf, antigo cavaleiro dos hussardos que fora obrigado a deixar a sua posição por ter engravidado a filha do comandante do regimento e se ter recusado a casar com ela. O barão Von Uxdorf nunca conseguira ultrapassar essa humilhação, retirando‑se para a casa do conde Douglas, em Wurzen, onde andava sempre com um uniforme preto, concebido por ele próprio, como sinal de um luto eterno. à noite, às vezes jogava xadrez com o conde, e quando ganhava punha‑se em posição de sentido e pedia desculpas. Mas montava a cavalo como um árabe.

Leo Kochlowsky esperou cerca de quinze minutos no vestíbulo até que alguém chegasse. Quem apareceu não foi Emil Luther, mas sim um mordomo que olhou para Kochlowsky como um negociante de gado olha para um boi e disse, enfadado:

‑           Então o senhor é o novo homem dos tijolos?

Kochlowsky virou‑se para trás, olhou à sua volta e encolheu os ombros. Os seus olhos pretos faiscavam. Em Pless, num caso destes, teria sido necessário o consolo de um padre.

‑           Está a falar comigo? ‑ perguntou.

‑ Com quem mais poderia eu estar a falar? O senhor é o Kochlowsky?

Foi nesse segundo que a nova vida de Leo se desviou ligeiramente do percurso previsto. Os seus pulmões encheram‑se, a sua longa e bem cuidada barba preta eriçou‑se e, de repente, ouviu‑se aquela voz que em tempos rugia sobre as cabeças dos trabalhadores polacos de Pless.

‑           Senhor Kochlowsky! ‑ berrou. ‑ Para si eu sou o senhor Kochlowsky, seu mordomo de pernas tortas...

Não houve mais discussões. O mordomo conduziu Kochlowsky até ao conde. Ambos sabiam que desde aquele instante um ódio profundo reinava entre eles.

Agora, Leo Kochlowsky estava sentado em frente do conde, num sofá de damasco vermelho de braços trabalhados. Emil Luther servira‑lhe um vinho do Porto numa garrafa de cristal, sempre silencioso, mas com um olhar penetrante, e o conde Douglas oferecera‑lhe um charuto, enquanto fumava o seu cachimbo.

‑           Então chegou, meu caro Kochlowsky ‑ disse Douglas com a sua maneira de falar afável e a pronúncia saxónica. ‑ Assim de repente, de um dia para o outro!

‑           Eu vou casar no dia vinte de Maio, senhor conde...

‑           Eu sei, eu sei! Com a querida cozinheira Sofia. Meteu‑se com a pequenina e inocente rapariga e agora tem de casar com ela.

‑           Eu teria casado com ela de qualquer maneira, senhor conde.

‑           E tem de fugir de Pless porque senão as outras mulheres arrancar‑lhe‑iam os olhos. Eu informei‑me junto dos príncipes Pless. Kochlowsky, o senhor é um bom gerente - é por isso que o aceito assim, sem hesitar ‑ mas de resto é um mulherengo e um bruto que devia ser acorrentado como um urso. A sua saída de Pless revestiu‑se antes do aspecto de uma fuga, não é verdade?

‑           Quero iniciar uma vida completamente nova com a minha mulher, aqui em Wurzen ‑ explicou Kochlowsky com uma humildade maior do que aquela que realmente sentia. ‑ Não se pode falar em fuga; foi mais um ponto final no passado.

‑           A princesa Pless decapitá‑lo‑ia, se pudesse! O senhor tirou‑lhe a sua "sobrinha"! Eu não estou ao corrente dos acontecimentos, só sei que a princesa me disse: "Esse Kochlowsky ainda lhe vai aprontar algumas!" Mas eu não vou permitir isso. Wurzen não é Pless. No dia em que começar a trabalhar aqui, também me sentirei responsável pela sua jovem mulher. Prometi isso à princesa. Compreende o que eu quero dizer?

‑           Eu tenho trinta e seis anos, senhor conde. ‑ Leo Kochlowsky esforçou‑se por conter a sua fúria. ‑ Isso deveria ser idade suficiente para se poder tomar conta de si próprio...

‑           Nos dez anos de vida que antecedem os quarenta e cinco, nós, os homens, desenvolvemos os nossos instintos selvagens. Deixemo‑nos de rodeios, Kochlowsky! Na propriedade de Amalienburg tenho seis empregadas, na fábrica trabalham cerca de vinte raparigas, na herdade há ainda mais mulheres a trabalhar e não esqueçamos as jovens mulheres dos meus empregados. Kochlowsky, se eu vier a saber que se meteu com uma delas, Deus o proteja! Veja se aprende a conter essa sua má queda.

‑           Não terá motivos de queixa, senhor conde ‑ respondeu Kochlowsky com um esforço. "Oh, querida, minha querida mulher", pensou, "olha só como eu te amo! Suporto tudo, deixo que me tratem desta maneira. Se não fosses tu, eu já teria atirado o charuto do conde para o chão e gritado: "Vá para o diabo com a sua fábrica e a sua propriedade de Amalienburg! Isto aqui é uma grande porcaria!" Mas não te preocupes, não direi nada disso. Vou ser gentil e obediente... só por tua causa, minha querida."

‑           Daqui a pouco iremos até à fábrica de tijolos. Aí, ficará a conhecer o seu colega, o primeiro gerente Leopold Langenbach. É um homem de grande categoria! Há quase trinta anos que trabalha ao meu serviço. E depois mostrar‑lhe‑ei a casa que previ para si e a sua família. Afinal, já pode chamar‑lhe a sua casa. Até agora era habitada pelo meu jardineiro principal. Só que, o ano passado, este enviuvou e a casa tornou‑se muito grande para ele. Agora mora na estufa e sente‑se feliz perto das plantas. É uma casinha bonita, com um grande jardim e árvores de fruto. Perfeita para muitas crianças...

‑ Obrigado, senhor conde ‑ disse Leo Kochlowsky com uma emoção sincera. ‑ Obrigado! Tentarei não trair a confiança que depositou em mim. Wurzen será a cidade dos meus filhos.

‑           Então vamos! ‑ O conde Douglas ergueu‑se, esvaziou o seu cachimbo e bebeu o vinho do Porto que restava no copo. Nunca deixar restos daquilo que é bom: essa era uma óptima filosofia. ‑ Parece que soube como lidar com o meu mordomo, Leo Kochlowsky. Ouvi os seus berros através de três portas. ‑ Sorriu com um ar cúmplice.

‑ Aqui entre nós: eu também o acho fino de mais! Mas alguém tem que representar Amalienburg.

No palácio tudo funcionava perfeitamente, sem que se desse por nada: em frente à casa já esperava um coche, e se havia alguém que exibisse a dignidade do conde, eram os criados: o cocheiro usava uma libré verde de botões dourados e um chapéu de três bicos na cabeça. Quando o conde saiu da casa, saudou‑o à maneira militar. Ao seu lado, o cocheiro de Wurzen estava sentado na estribeira. Pousara a cartola no chão e comia pão com chouriço de fígado. Ao lado do chapéu tinha uma garrafa de chá que a sua mulher enchia de manhã, mas que ele, mal saía de casa, esvaziava até metade e mandava encher com uma deliciosa aguardente de trigo na taberna "Maçã Dourada". Afinal, um cocheiro precisa de um certo equilíbrio interior, sobretudo quando tem clientes como Kochlowsky. "Espere aqui", dissera‑lhe o senhor, e agora ia‑se embora com o conde. O que significava isso? Que deveria continuar à espera? E, se não, quem é que lhe pagaria a viagem e a longa espera?

Bebeu mais um gole do seu "chá", arrotou baixinho, deixou o pão no banco e pôs a cartola na cabeça. O conde Douglas parou e Leo Kochlowsky passou a mão pela barba preta.

‑ É o seu cocheiro?

‑           Sim, é da estação.

‑           E não o mandou ir embora?

‑           Pensei que...

‑ Mas Kochlowsky! É claro que um dos meus cocheiros o levará de volta. Afinal, agora faz parte de Amalienburg. ‑ O conde fez um sinal ao cocheiro de Wurzen, que imediatamente se endireitou, como era obrigação de um homem simples como ele, e pôs‑se em sentido. Em tempos fora sargento, participara no assalto à baioneta em 1870, perto de Sedan, e ajudara na vitória contra o imperador Napoleão III.

‑           às suas ordens, senhor conde! ‑ gritou o cocheiro ainda antes de alguém ter falado.

‑           O meu tesoureiro pagar‑lhe‑á ‑ disse o conde num tom jovial. ‑ Pode ir. Kochlowsky, ficou satisfeito com o serviço prestado pelo cocheiro?

‑           O cavalo dele tem gota ‑ atirou Kochlowsky, triunfante.

O conde Douglas riu‑se alto, deu uma palmada no ombro de Leo e conduziu‑o ao seu coche.

O cocheiro de Wurzen esperou até o coche se ter afastado. Depois aproximou‑se de Emil Luther, que se encontrava à porta de casa, hirto, como era hábito.

‑           Quem era aquele senhor? ‑ perguntou.

‑           Chama‑se Leo Kochlowsky.

‑           Deve comer pregos ao pequeno‑almoço! É amigo do conde?

‑           Amigo? ‑ Emil Luther torceu a boca com desdém. ‑    É o novo gerente da fábrica de tijolos...

‑           Ah sim? ‑ O cocheiro olhou para a carruagem que já ia ao fundo da alameda. ‑ Então não passa de um simples empregado e anda por aí a cuspir para todos os lados como um grande senhor! Eu não vou esquecer esse homem, Emil. Espera até ele vir morar aqui em Wurzen...

Tudo indicava que Wurzen não iria ser aquele lugar calmo que Kochlowsky pretendia e pelo qual a sua mulher Sofia tanto ansiava. Mas isso também não era de admirar! Onde quer que um Kochlowsky aparecesse, deixava sempre um rasto bem vincado.

 

As duas fábricas de tijolos ficavam uma ao lado da outra e eram uma espécie de fábricas modelo. No pavilhão das formas trabalhavam trinta homens como cortadores de tijolos e algumas raparigas em batas azuis empilhavam as peças em bruto nos carros. Dois enormes carregadores passavam a argila dos carros para o moinho ‑ também chamado ganga - onde esta passava pelo laminador rangente e depois era trabalhada por um misturador de duas hélices numa prensa de extensão. Aqui, o barro saía em forma de salsicha através de um funil e passava para as mãos dos cortadores de tijolos.

‑ Dispomos das mais modernas máquinas que existem ‑ explicou o conde Douglas, orgulhoso. ‑ Rapidamente compreenderá a parte técnica, Kochlowsky. Além disso, o seu colega Langenbach aconselhá‑lo‑á. Ele trabalha aqui desde os catorze anos. Começou como aprendiz e agora é gerente. Trabalha muito!

‑ Eu, quando era miúdo, brincava em fábricas de tijolos. ‑ Kochlowsky lançou um olhar pelo enorme pavilhão. ‑     Passei a infância entre barro e fornos. O meu pai era contabilista da fábrica de tijolos Nikolai. Cresci rodeado de tijolos...

‑ Então este é o lugar perfeito para si! ‑ O conde Douglas despediu‑se de Kochlowsky quando o primeiro gerente Leopold Langenbach saiu do seu escritório, seguido por um homem pequeno e gordo, redondo como uma bola, que balançava uma luneta no nariz e sofria de uma constipação crónica. De dez em dez segundos fungava ‑ as pessoas com quem convivia já se tinham habituado a isso. Era o primeiro contabilista, Theodor Plumps, pai de dez filhos, o que prova que uma constipação crónica não é um impeditivo para nada.

Antes de o conde partir, Leo Kochlowsky ainda foi apresentado aos outros senhores.

‑           Fico muito contente por saber que trabalhará aqui connosco. Vai ser uma grande ajuda para mim ‑ disse Leopold Langenbach, num tom amigável, quando se cumprimentaram. ‑ Temos intenções de expandir a fábrica. O crescimento da economia do império é impressionante:

estão a ser construídos novos edifícios e novas fábricas com as mais avançadas tecnologias... As futuras gerações ainda lucrarão muito com a nossa vitória sobre os Franceses em mil oitocentos e setenta e um! E de que é que precisamos acima de tudo? De tijolos, tijolos e mais tijolos! Não há progresso sem tijolos! Realmente, fico muito contente por saber que o senhor nos vai ajudar...

Leo Kochlowsky permaneceu calado. "Deve haver aqui um mal‑entendido", pensou, e sentiu como o sangue lhe subia para a cabeça. "Calma, Leo, calma! Lembra‑te da Sofia, da tua querida mulher. Mas, querida, aqui terei de esclarecer uma coisa." Olhou para o pequeno e gordo senhor Plumps, que fungava com toda a força. Não entendia por que razão ninguém lhe dizia para se assoar.

‑ Vamos até aos fornos e às câmaras de secagem! Aí poder‑lhe‑ei explicar todo o processo, desde o barro até ao tijolo... ‑ disse Langenbach num tom simpático.

‑           Isso não será necessário! ‑ Kochlowsky alisou a sua barba e depois juntou as mãos atrás das costas. ‑ Eu já brincava com tijolos quando os outros ainda usavam fraldas. Qual é a sua função aqui, senhor Langenbach?

‑ Eu sou o primeiro gerente ‑ respondeu Langenbach, espantado.

‑           E eu?

‑           O senhor será o segundo gerente.

‑           Isso quer dizer que o senhor é meu superior?

‑           Claro que não, nós seremos colegas, senhor Kochlowsky ‑ respondeu Langenbach com jovialidade. ‑ Cada um de nós tem a sua área de trabalho: eu trato da parte técnica

e o senhor é responsável pela parte comercial. Ou, por outras palavras: eu fabrico tijolos e o senhor administra a venda. E o senhor Plumps é o seu primeiro contabilista.

‑           Ah! ‑ Kochlowsky olhou com um ar sério para o pequeno homem. ‑ O senhor é bem pago, não é?

‑           Sim, posso considerar‑me satisfeito ‑ respondeu Plumps sem compreender.

‑           Está a ver! Deveria pensar em comprar lenços para se assoar!

O pequeno homem fungou como se estivesse a sufocar,

a luneta vacilou no seu nariz, mas ficou calado ‑ não por

esperteza, mas porque simplesmente não soube o que dizer.

O sorriso nos lábios de Leopold Langenbach gelou.

‑ Vamos continuar a nossa visita às instalações? ‑ perguntou num tom um pouco mais formal.

‑           Faça favor.

Foram até aos fornos, onde trabalhavam também algumas raparigas. Eram mulheres bonitas, que observavam Leo Kochlowsky com curiosidade e riam à socapa quando ele as olhava com os seus olhos pretos e penetrantes. Os boatos que tinham ouvido nos últimos dias afinal pareciam ser verdadeiros: havia um novo gerente. Tratar‑se‑ia deste homem bonito, com a barba densa e o risco impecável no cabelo? Reparem só nos seus olhos! Parece que nos despe com o olhar. Mas que olhar! Penetra até aos ossos!

Kochlowsky observou desinteressado os fornos, as câmaras de secagem e as pilhas de tijolos armazenados que lhe mostravam. Explicaram‑lhe que aqui não só eram fabricados tijolos compactos, como também tijolos radiais, placas compactas e tijolos de forno e que estavam a pensar em aumentar a variedade de tijolos de furo alto e tijolos de rede. Os mais recentes estudos técnicos haviam provado que o ar nas cavidades era um óptimo isolamento. Aqui, na fábrica do conde Douglas, todas as inovações eram bem‑vindas.

‑           Como vê ‑ disse Leopold Langenbach ‑ introduziremos muitas coisas novas e ainda melhores. Novas máquinas, uma nova caldeira, novos empregados. Senhor Kochlowsky, o senhor chegou no momento certo.

Prosseguiram com a visita e Kochlowsky continuava com uma expressão impenetrável. Atrás dele ouvia constantemente o fungar de Theodor Plumps, que se repetia no ritmo regular de dez em dez segundos. Mostraram‑lhe o seu lugar de trabalho: uma larga mesa de escritório, de madeira maciça, colocada em frente à mesa de Langenbach, com um banquinho giratório e uma pequena mesa ao lado. Havia vários arquivos nas paredes. Pela janela via‑se o grande pátio de armazenagem, cheio de enormes pilhas de tijolos. Era um dia quente de Maio. Por entre as pilhas Kochlowsky reparou numa rapariga que estava deitada numa armação de madeira. Tinha os braços cruzados atrás da cabeça e puxara a saia para cima, pondo a descoberto coxas que brilhavam à luz do Sol.

Kochlowsky desviou o olhar, mas Langenbach tinha‑o observado e acenou afirmativamente.

‑ Já lhes chamei tantas vezes a atenção... ‑ comentou. ‑ Mas essas mulheres provocadoras, mal têm um minuto livre puxam logo as saias para cima. Bem, um dia ainda aprenderão.

Depois de terem terminado a visita à fábrica, Kochlowsky despediu‑se de uma maneira brusca e rápida. Um coche aguardava‑o em frente ao edifício da administração. O cocheiro, de farda verde, saudou‑o, hirto. Kochlowsky subiu para a carruagem e sentou‑se no banco. Passou a mão pela sua longa barba. Leopold Langenbach fez um gesto de despedida.

‑ Até quando? ‑ perguntou. ‑ Quando é que entra ao serviço?

"Serviço? Eu sou algum lacaio?", pensou Kochlowsky, profundamente ofendido. "Quem é que ele pensa que é, esse estúpido? A primeira coisa que farei é afastar a minha mesa da dele. Estou habituado a ter um gabinete só para mim."

‑ Veja no seu calendário ‑ replicou Kochlowsky. ‑ Aí encontrará a resposta. Vamos, cocheiro!

O cocheiro ficou um pouco baralhado com o tom rude de Kochlowsky, mas obedeceu. O coche afastou‑se, as rodas rangendo sobre a areia, e Kochlowsky encostou‑se para trás.

‑           Então é este o homem... ‑ disse Theodor Plumps, quase horrorizado, e fungou alto. ‑ Meu Deus...

‑           Ainda nos divertirá bastante! ‑ Leopold Langenbach levantou a mão, hesitante, e acenou. ‑ É a primeira vez que não compreendo uma decisão do conde...

Depois de alguns instantes, o cocheiro acalmara‑se. Adquiriu uma posição empertigada e dirigindo‑se a Kochlowsky disse num tom quase militar:

‑           O senhor conde destacou‑me para transportá‑lo. Primeira paragem: visita da casa; segunda paragem: visita de Wurzen; terceira paragem: estação de comboios.

‑           Esqueceu‑se da parte mais importante: tenho de comer qualquer coisa.

‑           Sim, senhor!

A conversa ficou por aí. "Que homem mais estranho", pensou o cocheiro, bem educado como todos os empregados do conde Douglas e ensinado a ser disciplinado pelo estríbeiro Von Uxdorf, que se dirigia às pessoas sempre na terceira pessoa do singular: "Venha cá... traga a aveia para a cocheira três...". Mas isso, Kochlowsky ainda não sabia. Ainda não conhecera o barão Von Uxdorf.

 

A casa destinada à família Kochlowsky situava‑se numa bonita floresta, pouco densa, entre Wurzen e a fábrica de tijolos. Parecia uma casa de bonecas, com um telhado de tijolos vermelhos, adufas verdes, caixilhos brancos, quartos soalheiros, um jardim com uma sebe de rosas, árvores de frutos e tudo isto cercado por uma sebe de estacas brancas. Era um pequeno reino à parte. Havia um canteiro com legumes, um banco de madeira e ao fundo do terreno um estábulo no qual se podiam manter pequenos animais domésticos e um porco.

Era a primeira vez desde que chegara a Wurzen que Kochlowsky sentiu uma espécie de alegria e de bem‑estar. Andou pela casa e pelo terreno, sentou‑se no banco e olhou para a relva entre o canteiro e a casa, imaginando que seria aí que os seus filhos um dia brincariam e que Sofia, a sua querida e amada mulher, estenderia a roupa.

"Era assim que eu sonhava que isto fosse", pensou. "E é assim que será. Esqueçamos Pless e aprendamos a amar Wurzen." Ao princípio ainda haveria algumas zangas, mas com isso Kochlowsky não tinha problemas. Só havia uma coisa que o inquietava e que decidiu não mencionar a Sofia: era o facto de a sua função ser apenas a de substituto. Um segundo gerente! Tinha um superior! Teria de aprender a suportá‑lo, mas nunca se habituaria a isso.

à noite, apanhou o comboio para Dresden, a partir de onde iria no rápido para GSrlitz e Breslau. Dormiu mal, no canto do compartimento. às três da manhã teve um pequeno atrito com um passageiro que se queixava por Leo Kochlowsky ressonar. Kochlowsky respondeu‑lhe com um berro:

‑           E nós temos de suportar o seu mau cheiro!

Sem dar muita importância a este episódio, sonhou com a sua mulher Sofia, a sua querida e amada mulher, e com o filho que ela carregava na barriga. O seu filho! Um novo Kochlowsky! Sorriu, enquanto dormia. Continuou a ressonar e por isso não ouviu o seu vizinho, furioso, a dizer:

‑           Realmente, este merecia um par de estalos!

 

Esta visita ocorreu em 5 de Maio de 1889 e para se compreender os acontecimentos que se seguiram é importante saber a impressão que Kochlowsky deixou em Wurzen.

No dia 20 de Maio a cozinheira Sofia Rinne e Leo Kochlowsky casaram‑se na igreja protestante de Pless. A 10 de Junho mudaram‑se para Wurzen, a sua nova aldeia, onde tiveram que ficar numa estalagem porque os móveis só chegaram no dia 15 de Junho, o que, naturalmente, deu motivo para uma enorme zanga. Os carregadores de móveis recusaram‑se a descarregar a carroça enquanto Kochlowsky não se desculpasse por lhes ter chamado burros malcheirosos, o que afinal era uma ofensa, mesmo para quem estava habituado a ouvir esse tipo de coisas. Foi preciso que Langenbach, sempre prestável, viesse correndo ‑ tinha que ser precisamente ele ‑ e com a ajuda de três garrafas da melhor aguardente convencesse os homens a carregar os móveis para dentro de casa.

No dia 21 de Novembro nasceu a criança. Era uma rapariga, que se iria chamar Vanda Eugenie Emma. Nasceu no quarto de dormir. Durante o parto, Kochlowsky conseguia ouvir o gemer e o gritar rouco de Sofia até no banco do jardim, para onde fugira e onde se sentara, tremendo de frio. Quando o gemer parecia não ter fim, precipitou‑se para dentro de casa e gritou com a parteira, perguntando‑lhe se era uma veterinária.

A parteira, que se chamava Ludwiga SSlle e que tinha à volta de setenta anos, era uma mulher corpulenta de mãos fortes, braços musculados e o cabelo preso num nó. Empurrou Kochlowsky para o lado e exclamou num tom rude:

‑ Vá para a cozinha! Preciso de água quente! Está quase! Já consigo ver a cabeça... ‑ Depois bateu com a porta na cara de Kochlowsky.

Alguns instantes mais tarde, Kochlowsky ouviu o primeiro grito da sua filha, viu Ludwiga sair do quarto com uns panos ensanguentados e de repente tapou a cara com as mãos e começou a chorar, balbuciando:

‑ Minha querida, coitada da minha querida... o que foi que eu lhe fiz...

Ludwiga olhou‑o com ar de desprezo, entregou‑lhe o alguidar com os panos cheios de sangue e disse:

‑           Cobarde! Todos os homens são uns cobardes! Os homens e as mulheres deviam ter os filhos alternadamente - primeiro ela, depois ele ‑, assim todos os casais teriam um só filho! Vá, preciso de mais água, Leo Kochlowsky...

 

No dia 1 de Dezembro de 1889 festejaram o baptizado de Vanda Kochlowsky. Foi um acontecimento extraordinário, como a cidade de Wurzen e o pastor evangélico Paulus Malitz nunca antes tinham visto e jamais voltariam a ver.

Os convidados, vindos de Pless, iam chegando aos poucos: a madrinha Vanda Reichert, nascida Lubkenski, primeira cozinheira do príncipe Pless, o marido Jakob Reichert, cocheiro do príncipe, e caçador pessoal do príncipe, Ewald Wuttke. Mas tudo isto não era nada em comparação com Eugen Kochlowsky, o padrinho e irmão de Leo e o pintor Louis Landauer, que trazia consigo dez membros da Sociedade Dramática de Pless. Eram cinco casais que proporcionariam o ponto alto da festa representando "pinturas vivas" e que iriam provocar uma espécie de terramoto moral em Wurzen.

Um baptizado é um acontecimento festivo e um passo importante na vida do jovem habitante da Terra. Não só por este se tornar cristão, mas também por adquirir o direito de, no dia em que começar a ganhar o seu próprio dinheiro, pagar o imposto à Igreja. Era natural que Leo Kochlowsky, na sua função de pai e em nome da sua filha Vanda, fosse falar com o pastor protestante, o ilustre senhor Paulus Maltitz, que em tempos fora pregador da corte de Dresden. Wurzen era, por volta de 1889, como já aqui foi referido, uma cidadezinha na qual todos sabiam exactamente o que se passava na casa ao lado. Nessa época havia ainda verdadeiros vizinhos, que partilhavam a alegria e a tristeza, a sorte e a inveja. Nada era mantido oculto, mesmo quando era suposto ser o maior dos segredos, e não há cidade, por mais pequena que seja, que não registe os seus pequenos escândalos.

Assim, havia cinco meses que se falava do novo gerente da fábrica de tijolos do conde Douglas, do tal Leo Kochlowsky, que montava como se fosse um conde e que - sobretudo aos domingos ‑ passeava a cavalo pelas florestas. Uma vez até já passeara pela estrada principal com um elegante fato de montar e calçando umas botas de couro da Rússia, brilhantes, feitas por sapateiros da Polónia, conhecidos por serem os melhores do mundo. E ainda por cima achara óbvio que as pessoas na rua o saudassem em primeiro lugar. As mulheres ficavam com o coração aos saltos quando Kochlowsky passava por elas, a barba preta a esvoaçar ao vento, examinando‑as sem pudor com o seu olhar penetrante. Sentiam‑se como que despidas, envolvidas por aquele olhar, o que para uma mulher da pequena burguesia de Wurzen era uma sensação inquietante, profunda e ardente, que ficava gravada na memória.

Também já era do conhecimento geral que Leo Kochlowsky tinha um mau relacionamento com quase todas as pessoas com quem entrava em contacto. Desde o padeiro, cujo pão Kochlowsky não achava suficientemente estaladiço, até ao merceeiro, Martin Lobsam, que lhe vendia os charutos e o tabaco. Leo chamava aos charutos esterco enrolado e ao tabaco urtigas secas. É claro que essa maneira de tratar as pessoas cria relações pouco harmoniosas. Porém, quem mais sofreu com Kochlowsky foi o primeiro contabilista da fábrica de tijolos, o pobre Theodor Plumps, com a sua constipação crónica. Um dia, Kochlowsky mandou levar uma infusão de menta fumegante para o seu escritório com instruções para Plumps a inalar e a seguir limpar o nariz. Plumps ficou doente durante três dias, sem sair de casa e a olhar para a parede, abstraído.

Assim, compreende‑se que a governanta do pastor Maltitz ‑ que ficara viúva muito jovem e não pretendia voltar a casar ‑ se tivesse precipitado, gritando, ofegante:

‑ O senhor Kochlowsky acabou de chegar. O que é que ele quererá, Paulus? ‑ Quando estavam a sós tratavam‑se por Paulus e Johanna, ou às vezes Hannerl. Para os estranhos a donzela Johanna K'affen, uma rapariga forte de trinta anos, dava a impressão de levar a vida de uma mulher bem protegida no seio da igreja.

O pastor ergueu‑se, foi até à janela e viu Kochlowsky descer do coche. Trazia um sobretudo comprido, preto e orlado de peles e um gorro preto. O cavalo fungava no ar frio de Novembro. Maltitz observou, admirado, como Kochlowsky acariciou as narinas do cavalo, dirigindo‑lhe algumas palavras, e como só depois se aproximou da casa. Isso não condizia com a imagem que tinha de Kochlowsky ‑ ou talvez condissesse? Alguém jamais se preocupara com o intimo de Kochlowsky?

‑Ele... ele está a tocar à campainha... ‑ balbuciou Johanna K'affen, quase aterrorizada.

‑           Então vá abrir a porta, Johanna ‑ disse Maltitz num tom solene. ‑ Um pastor recebe todos. Até mesmo Satanás.

Não havia ninguém que não ficasse impressionado com Kochlowsky logo à primeira vista. Assim, também Johanna Klaffen ficou encantada com o charme de Kochlowsky quando este entrou no vestíbulo, tirando bruscamente o gorro da cabeça e fazendo uma vénia.

‑ Senhora Maltitz?

Quem frequentava o palácio dos príncipes Pless, como

Kochlowsky, dominava perfeitamente a arte de ser cortês.

Johanna Klaffen corou ligeiramente e pegou no gorro de

Kochlowsky com as mãos trémulas.

‑ Eu sou a governanta ‑ murmurou Johanna. ‑ Quer dar‑me o seu paletó, senhor Kochlowsky?

Um olhar penetrante de Leo atingiu‑a, ardendo no seu corpo como se aí tivesse feito um furo.

‑ Ah! Então conhece‑me?

‑ Quem não o conhece, aqui em Wurzen? ‑ Johanna pegou no seu casaco preto, pendurou‑o num cabide e sentiu‑se aliviada por poder enfim virar‑lhe as costas. "Ele olhou para o meu peito", pensou, e sentiu um arrepio. "Como se eu não tivesse uma combinação, um vestido e um avental a tapá‑lo ‑ e ainda por cima o corpete. Que olhar!" A governanta sentiu‑se como que liberta pelo pastor quando este surgiu na porta da sala de estudo, aproximando‑se de Kochlowsky.

‑           Fico contente por vê‑lo aqui ‑ disse, estendendo a mão.

‑ Leo Kochlowsky! ‑ apresentou‑se Leo, empertigando‑se.

‑ Mas eu sei quem é o senhor. Entre...

Três das paredes da sala de estudo estavam ocupadas por prateleiras cheias de livros. Além disso, havia num canto alguns sofás com um aspecto acolhedor, uma mesa redonda com um cinzeiro de zinco e uma caixa de ébano trabalhado contendo charutos ‑ um missionário oferecera ao antigo pregador da corte esta preciosidade vinda de áfrica ‑, uma secretária repleta de papéis e um enorme quadro representando Lutero quando afixava as suas 95 teses na igreja de Vitemberga.

Kochlowsky sentou‑se num dos sofás e alisou a barba.

‑           Estou aqui por causa da minha filha Vanda ‑ começou sem rodeios.

‑           Eu sei. A sua mulher deu à luz uma criança sadia. Os meus parabéns.

‑           Já sabia disso?

‑ A parteira costuma contar essas coisas em primeiro lugar ao pastor.

‑ Ela é uma grande tagarela! E é muito rude.

‑           Então veio para tratar do baptizado da sua filha? - perguntou Maltitz rapidamente, para evitar que se gerasse uma discussão acerca de Ludwiga Solle. A parteira contara‑lhe que por um lado Kochlowsky chorava como uma criança, mas que por outro podia ser extremamente agressivo. Coitada da pequena Sofia, a quem calhara um bruto como este! Mas ainda há pouco, quando Kochlowsky estivera sozinho, acariciara o cavalo. "São dois seres num só corpo", pensou o padre, inclinando‑se sobre a mesa redonda para aproximar a caixa de charutos do seu convidado.

‑ São charutos de Martin Lobsam? ‑ perguntou chlowsky.

‑           Não, estes são de...

‑ Então pode‑se fumá‑los. Os charutos de Lobsam parecem esterco seco e ralado. Eu até já lho disse... desde então ele retira‑se da loja quando eu entro. Por que será que as pessoas não gostam de ouvir a verdade, senhor pastor? Esta questão dava para um sermão de domingo.

‑           Já ouviu algum dos meus sermões?

‑           Não. Eu entro numa igreja apenas quando é realmente necessário: quando era bebé em Nikolai, por exemplo, aí ainda não me podiam perguntar; aquando do meu crisma, quando o meu pai me levou à bofetada até à igreja, e para casar; aí foi a Sofia que o quis.

‑           E agora? ‑ perguntou Maltitz sem se sentir atingido ou ofendido com o discurso de Kochlowsky.

‑           Desta vez será de novo por Sofia. E para que a Vanda não seja encarada como uma pagã pela sociedade. - Kochlowsky retirou um charuto da caixa de ébano, acendeu‑o com a ajuda de um pauzinho que acendera numa vela e depois observou durante alguns instantes o denso fumo branco que se espalhava pelo quarto. ‑ Que bom charuto, senhor pastor. Gostaria de lhe pedir outro para soprar o fumo na cara de Lobsam... Pois é, a Vanda! Ela tem que ser baptizada. Vanda Eugenie Emma. Mas como é que decorre a cerimónia de um baptizado?

O pastor explicou‑lhe tudo. Kochlowsky escutou‑o com as sobrancelhas franzidas, sem no entanto interromper. Só quando o pastor acabou de falar é que disse:

‑           Então é num domingo! Na presença de toda a paróquia! Tem que ser mesmo assim?

‑           Costuma ser assim. E porque não?

‑           O que acha de um baptizado em minha casa?

‑           Eu sou da opinião que quem se professa deve fazê‑lo publicamente!

‑           Mas a Vanda nem saberá de que é que se trata.

‑           Mas os pais dela saberão, e serão os representantes da nova filha de Deus. A não ser que a sua mulher esteja tão doente que não possa comparecer na igreja.

Kochlowsky teve um rasgo de esperança.

‑           A Sofia tem uma saúde muito frágil. Até se tem receio de tocar nela por medo que se parta.

‑ É claro que irei ver a sua mulher ainda antes do baptizado ‑ disse Maltitz, tranquilo. ‑ Tenho a certeza de que ela irá à igreja.

‑           E há mais uma coisa... ‑ Kochlowsky aspirou o seu charuto. ‑ O senhor disse que os padrinhos seguram a criança sobre a pia baptismal...

‑           Exactamente.

‑ O padrinho, chamado Eugen, daí Eugenie, é o meu irmão. De certeza que ele deixará cair a minha Vanda. É um desastrado! Escreve romances, pelo que nada é de se admirar. E a madrinha, Vanda Lubkenski, que agora, desde que casou, se chama Reichert, sabe muito bem esquartejar porcos, mas não sei se será capaz de segurar um ser tão frágil como a minha Vanda...

‑ Tudo correrá bem, senhor Kochlowsky ‑ asseverou Maltitz com um sorriso animador e bondoso. ‑ Eu já celebrei tantos baptizados...

‑           E se ela cair para a pia baptismal, existe o perigo de se afogar?

‑ De modo nenhum. A pia baptismal contém muito pouca água.

‑           Mas então pode partir o pescoço! Não, quem vai segurar a minha filha sou eu ‑ ou então não será ninguém!

Este era o outro Kochlowsky, o homem meigo, preocupado e no fundo desamparado que vivia incógnito atrás de um canhão. Um homem que não queria ser reconhecido e compreendido e que se esforçava por não mostrar as suas fraquezas.

‑ Vai ser tudo muito bem preparado e se quiser até podemos ensaiar com uma boneca ‑ disse o pastor num tom paternal. ‑ Tem alguma frase preferida que pudesse servir de lema para o baptizado da Vanda?

‑           Desde que não seja uma citação bíblica! Nunca liguei muito à Bíblia.

‑ E a sua mulher?

‑           A Sofia conhece todos os cânticos da igreja de cor. E leu a Bíblia como se fosse um livro.

‑           Mas a Bíblia é o mais importante de todos os livros. ‑ Maltitz reflectiu durante alguns instantes. ‑ "Sê fiel até à morte e eu coroar‑te‑ei com a vida"? Revelação de João 11/10?

‑           Combine isso com a Sofia, senhor pastor. ‑ Kochlowsky ergueu‑se e apagou o charuto meio fumado no cinzeiro de zinco. ‑ A Igreja é realmente uma instituição muito estranha. Ao acolher um recém‑nascido fala da morte. Eu, pessoalmente, prefiro outros lemas, como por exemplo: "Que se danem todos aqueles que me aborrecem!" Isso faz parte da nossa vida real! Mas suponho que não serve para um baptizado.

‑ Não, não serve. ‑ Maltitz sorriu. Havia qualquer coisa que lhe agradava em Kochlowsky, mas não sabia o que era. ‑ O seu charuto! Não, não me estou a referir ao charuto meio fumado, mas ao outro, para a cara de Lobsam...

Kochlowsky sentiu‑se um pouco envergonhado. "Seu pregador de uma figa", pensou, tentanto reprimir esse sentimento. "Ah, malvado pregador da Bíblia! Se julgas que me vou embora envergonhado, estás muito enganado!"

Kochlowsky voltou, tirou um charuto da caixa e meteu‑o no bolso, olhando para Maltitz com ar provocador.

‑ Obrigado, senhor Maltitz! O senhor, como pastor, conhece bem as necessidades das suas ovelhas!

à noite já toda a cidade sabia o que se tinha passado. Johanna Klaffen contou o episódio ao pastor, agitando, exaltada, as mãos no ar.

‑ Ele fê‑lo! ‑ gemeu. ‑ Esse diabo! Atirou o teu charuto para a cara de Lobsam e... não, eu nem tenho coragem de dizê‑lo. A senhora Lobsam teve um ataque de choro...

‑ Faz cinco meses que ele está em Wurzen ‑ disse Maltitz, apesar de tudo um pouco chocado com a falta de controlo de Kochlowsky. ‑ Creio que não aguentará mais cinco meses em Wurzen. É uma pena, pela pequena senhora Sofia...

 

Maltitz e Johanna Klaffen observaram Kochlowsky pela janela quando este se afastava no seu coche. Começara a nevar ligeiramente. Grandes flocos de neve caíam silenciosos do céu. Mesmo assim, Kochlowsky não levantou a coberta do coche. Com o seu grosso sobretudo de pele, mais parecia uma estátua.

‑           Que homem mais horrível! ‑ disse Johanna baixinho, encostando‑se a Maltitz.

‑ É possível. Mas também ele tem uma alma.

‑           Onde?

‑           É isso que Deus nos vai ajudar a descobrir...

Por enquanto, porém, não era nada disso que parecia acontecer. Kochlowsky ainda decidiu passar pela cidade. Parou em frente à mercearia de Martin Lobsam e entrou rapidamente, de modo a que o merceeiro não tivesse tempo para se escapar para os fundos da loja. Havia mais seis clientes à espera de serem atendidos.

‑ Tome! ‑ trovejou Kochlowsky, deitando o charuto de Dresden para a cara de Lobsam, que empalideceu de raiva e vergonha. ‑ Pode meter isso no traseiro~.. afinal, é com ele que fuma os seus charutos!

O baptizado foi um grande acontecimento em Wurzen, não por causa da missa e do baptizado em si, mas pela festa na melhor casa de Wurzen, o Hotel Cidade de Leipzig. Kochlowsky alugara uma pequena sala que Louis Landauer escolhera por nela haver um palco, no qual a companhia de teatro apresentaria histórias de Natal, peças de teatro alemãs e até mesmo a peça de Schiller Bandidos.

Os familiares e amigos vindos de Pless chegaram todos juntos a Wurzen. Ocuparam três carruagens do comboio, encheram as redes para as bagagens com malas, sacos e caixas e era natural que também trouxessem consigo alguns animais. Vanda e Jakob Reichert transportavam um borrego numa caixa de madeira esburacada e o jovem caçador, Ewald Wuttke, trazia um peru num cesto. Foi um grunhir, guinchar e arrulhar geral, mas felizmente tinham três carruagens só para eles. Uma única vez houve uma briga: foi quando o borrego urinou pelos buracos da caixa para cima de Eugen Kochlowsky, que teve de lavar as calças na casa de banho e decidiu mudar‑se para outro compartimento.

Chegados à estação, dois grandes coches cobertos vieram buscá‑los. Estavam enfeitados com grinaldas de várias cores, mas que agora tinham um aspecto triste e desolador devido à neve que voltara a cair.

Quando chegaram, houve grandes saudações, beijaram e abraçaram‑se e Leo disse para o seu irmão Eugen:

‑ Meu Deus, ficaste ainda mais gordo!

Era, como sempre que Kochlowsky dizia alguma coisa, a verdade nua e crua. Eugen Kochlowsky vivia uma época de sucesso. Depois da publicação do seu primeiro romance no Jornal da Silésia Superior, tinha agora escrito o seu segundo livro. Havia três meses que se encontrava impresso e encadernado à venda nas livrarias e estava a fazer um enorme sucesso. Afinal, o tema era bem ao gosto das leitoras femininas: tratava de uma condessa que ama um simples camponês e que fica grávida dele. Quando o conde descobre, mata o camponês durante uma caçada e a condessa atira‑se de uma ponte com a criança no ventre. Era uma tragédia que provocava rios de lágrimas. E lágrimas vendem‑se muito bem.

Eugen Kochlowsky, que passara trinta anos de fome, alimentava‑se agora do bom e do melhor. Em pouco tempo engordara tanto que parecia insuflado e presentemente apenas conseguia andar de pernas abertas. E como coxeava, dava a impressão de arrastar com dificuldade um saco pesado à sua frente.

Porém, sentia‑se muito bem. As pessoas tinham enfim reconhecido o seu talento. Os habitantes de Pless e Nikolai ‑ para onde às vezes ia ‑ tiravam o chapéu quando o encontravam. E notava como era conhecido sobretudo quando lhe davam crédito sem hesitar, nos dias em que se esquecia da sua carteira. "Mas, senhor Kochlowsky, no seu caso...", diziam. Há um ano ainda lhe teriam exigido o sobretudo como fiança.

Também Louis Landauer, o pintor, que antigamente sobrevivera à custa de escritos e pintando tabuletas, ascendera à profissão de retratista da alta sociedade da Silésia Superior desde que realizara ‑ ele realmente dizia que tinha realizado ‑ o retrato de Sofia. Já fizera uma exposição em Breslau e chamava ao seu estilo a Escola de Pless. Isso, naturalmente, tornava‑o bem visto por todos. E quando fundou a Sociedade Dramática, cujo director artístico era Eugen, e representara a peça O Sacrifício de Lutero, na qual Eugen desempenhara grandiosamente o papel do papa Leão X, talvez por o papa ter o mesmo nome que o seu irmão, já não era possível imaginar Pless sem Louis Landauer. Só que ele, ao contrário de Eugen, estava a ficar cada vez mais magro e nervoso. A culpa era das mulheres, as filhas dos burgueses e as mulheres casadas, que o fatigavam. Corriam para os seus braços e Landauer esforçava‑se até ao limite das suas energias para não desiludir nenhuma delas. É cansativo ser‑se famoso.

Vanda Lubkenski estava a dar‑se bem no casamento com o cocheiro Reichert. Ficara ainda mais alegre e usava vestidos com grandes decotes que deixavam adivinhar o seu enorme peito, porém sempre cobrindo‑se com um fino véu. Eugen Kochlowsky dera‑lhe a ideia de escrever um livro de cozinha intitulado Os Segredos de Cozinha do Príncipe Pless e a condessa dera a sua bênção para a realização desse projecto.

‑ Não se deveria suprimir invejosamente uma arte de cozinhar como a tua, mas sim dar a todos a oportunidade de saboreá‑la ‑ dissera. ‑ Só não te podes esquecer de uma coisa: o assado de veado de que o conde tanto gosta. Era um prato que fora louvado até pelo imperador Guilherme II, que visitava Pless com alguma frequência.

Desde o momento em que Vanda chegara à estação notou‑se como se sentia bem. Quando Leo Kochlowsky a recebeu com as palavras: "então, ó velha cozinheira", e lhe beliscou o traseiro rijo, notando: "antigamente podia‑se espremer pulgas nele, agora dá para partir nozes!", ela riu‑se às gargalhadas e beijou‑o exaltada, o que fez com que os habitantes de Wurzen que assistiram a esta cena não tivessem simpatizado com ela logo desde o princípio.

A viagem no coche através da neve e do frio foi muito divertida. Um coro composto por dez membros da Sociedade Dramática cantou bonitas canções do Reno ‑ o que para Wurzen era pouco habitual ‑ e entre cada canção Eugen contava piadas obscenas que envergonharam sobretudo Kochlowsky, por achar que na presença de senhoras isso não ficava bem, pelo que acabou por dizer: "Eugen, cala o bico!", quando este ia a contar uma anedota em que se perguntava a um casal excepcionalmente gordo: "Os senhores têm filhos?" e o homem respondia, indignado: "Nós somos alguns acrobatas?" Mas a intervenção de Leo não perturbou a boa disposição que reinava entre eles e, assim, antes de chegarem à casa dos Kochlowsky já era possível ouvir as suas cantigas ao longe.

Quem abriu a porta foi Leopold Langenbach. O olhar de Kochlowsky tornou‑se imediatamente mais sombrio. Desde há dois meses que Langenbach se estava a tornar desagradável, com as suas visitas insistentes à casa dos Kochlowsky. Sempre que ia para Wurzen fazia um pequeno desvio até à casa deles, para conversar um pouco com Sofia. Depois, à noite, Sofia dizia com um ar ingénuo:

‑ O senhor Langenbach trouxe‑me uma caixa de chocolates.

Ou então:

‑ O senhor Langenbach ofereceu‑me estas flores. São bonitas, não achas?

Ou ainda:

‑ O senhor Langenbach esteve aqui. Deixou‑nos três garrafas de licor de framboesa caseiro.

Era sempre o mesmo: o senhor Langenbach isto, o senhor Langenbach aquilo, sobretudo nos dias em que Kochlowsky estivera na fábrica. Quando Kochlowsky estava em casa, como aos domingos, por exemplo, Langenbach nunca aparecia. E agora, lá estava ele. "abusador como uma criancinha ranhosa", pensou Kochlowsky. "E faz de conta que é a coisa mais natural do mundo estar aqui, como se fizesse parte da casa, como se fosse um amigo da casa!" Pouco antes de Vanda ter nascido, Langenbach tornara‑se tão insuportável como nunca. Trouxera um berço de madeira trabalhada para Sofia e Kochlowsky reagira imediatamente, deitando o berço pela janela, para um monte de estrume, gritando:

‑           Se alguém compra um berço para a minha filha, sou eu!

E Sofia, calma e paciente, respondera:

‑           Tens razão, Leo. Mas eu não queria ofender o senhor Langenbach. Afinal, é o teu superior... ‑ Esta frase foi como uma pancada que Kochlowsky encaixou, mas nunca realmente superou.

‑           Onde está a minha mulher? ‑ perguntava Kochlowsky agora, num tom seco, enquanto descia da carruagem. Atrás dele, Eugen fazia um grande esforço para conseguir sair do coche com todo o seu peso.

‑           Está na cozinha a fazer bolinhos para as visitas.

‑           E o senhor, o que faz aqui?

‑           Eu preparei a massa na grande tigela de madeira. Para a sua pequena mulher isso ainda é um pouco difícil. O parto enfraqueceu‑a muito. Mas o senhor não percebeu isso?

‑           Percebo isso e muito mais! ‑ resmungou Kochlowsky, olhando para Langenbach com um ar venexioso.

Depois foi empurrado para o lado por Eugen, que exclamou:

‑           Bom dia, eu sou Eugen Kochlowsky!

‑           O senhor é Eugen Kochlowsky? ‑ certificou‑se Langenbach, provando assim a sua diplomacia. ‑ Eu acabei de ler um romance seu...

Eugen parecia estar nas nuvens, de tanta alegria. Era um homem famoso! O que não adivinhava é que Langenbach apenas soubera através de Sofia que o cunhado dela escrevia romances.

‑           A criança ‑ perguntou Vanda, mal entraram na casa ‑, onde está a criança que terá o meu nome?

‑           E o meu também! ‑ reclamou Eugen num tom dramático. ‑ Que o meu génio seja herdado pelas gerações seguintes...

‑           Está a dormir... ‑ Sofia pegou Vanda pela mão e levou‑a até ao quarto de dormir. Leo segurou Eugen, que queria ir com elas e que protestou, enquanto Landauer anunciava que até ao baptizado teria feito um desenho a crayon da criança.

Vanda entrou no quarto na ponta dos pés e sem fazer barulho ‑ o que com o seu arcaboiço era admirável ‑ e aproximou‑se da caminha, na qual estava deitada uma pequena e frágil menina, a cabeça coberta por uma penugem de cabelos louros. Dormia e mexia a boca, mastigando no sono.

‑           É um milagre! ‑ balbuciou Vanda e começou a chorar. ‑ Sim, é um milagre! Como pode um homem como Leo gerar este anjo...

Depois, ajoelhou‑se em frente da caminha e começou a rezar, como era hábito no seu país, a Polónia.

 

O baptizado na igreja correu bem, sem qualquer contratempo.

Eugen ensaiara como segurar um recém‑nascido sobre a pia baptismal com a ajuda de uma boneca. Ficara profundamente ofendido por Kochlowsky o ter obrigado a fazê‑lo, porém, para não o enfurecer, submeteu‑se a esse ensaio humilhante. Mas quando Kochlowsky exigiu que Vanda também ensaiasse com a boneca, esta zangou‑se.

‑           Que parvoice! ‑ gritou Vanda, como gritara nos

seus melhores tempos. Kochlowsky sentiu‑se em casa. ‑ Eu já pegava em recém‑nascidos quando tu ainda usavas

fraldas! Eu era a mais velha de treze irmãos! Vê lá se calas

a boca, grandalhão!

O pastor Maltitz mostrou‑se de acordo. Começara a perdoar algumas coisas a Kochlowsky. Estava cada vez mais convencido de que lá em baixo, na Silésia Superior, houvera uma família muito especial, que fora habituada a defender‑se e a lutar por aquilo que queria.

Na igreja tudo correu como sobre rodas. Nunca estivera tão cheia como nesse domingo. As pessoas estavam comprimidas nos bancos e apinhadas por debaixo da tribuna do órgão e nos corredores: todos queriam assistir ao baptizado da filha de Kochlowsky, mas havia sobretudo muitas mulheres vindas por solidariedade para com a pequena, frágil e angélica Sofia, da qual sentiam tanta pena pelo marido que tinha.

O pastor Maltitz fez um sermão fabuloso sobre a bênção dos que transmitem a paz, o que Kochlowsky achou um descaramento. Durante o baptizado em si, Kochlowsky postou‑se ao lado de Eugen, pronto para intervir se fosse necessário, e retendo a respiração enquanto este segurava a pequena Vanda sobre a pia baptismal, com um grande sorriso. O vestido da criança era extremamente bonito, com rendinhas, um véu de seda e fitas de veludo cor‑de‑rosa entrelaçadas. Fora oferecido pela princesa Pless e Vanda Reichert trouxera‑o para Wurzen. O príncipe mandara um serviço de pratas para 24 pessoas, com o brasão de Pless, e juntara um abono para gravarem as letras VK em cada um dos talheres, dado que já não houvera tempo para fazê‑lo. O mais estranho, porém, era o presente da princesa Van Schaumburg‑Lippe: um sobrescrito fechado, para ser aberto só no 21.o aniversário de Vanda, ou seja, no dia 21 de Novembro de 1910. Por fora estava escrita, com a letra cuidada e bonita da princesa, a seguinte frase: "Deus te abençoe, minha querida sobrinha, a ti e a todos os teus filhos. Nós sabemos que os Seus olhos te protegem." Não mandava cumprimentos a Leo Kochlowsky, mas este também não se importava com isso. Só houvera uma coisa que o irritara: os pais de Sofia, tal como no dia do casamento, não compareceram. Nas cartas alegavam que o pai tinha gota, que o seu estado de saúde não lhe permitia fazer uma viagem tão longa e que a mãe não podia deixar o governo da casa durante tanto tempo. Mandaram um vestidinho de linho cortado à mão, que Vanda poderia usar quando tivesse um ano, e uma enorme boneca, cujo tamanho Vanda só alcançaria aos três anos.

Foi a única vez que Sofia se refugiou por alguns minutos num canto da casa, para chorar sozinha e silenciosa.

Após o baptizado, durante o qual Vanda Reichert chorara de emoção tão alto que só dificilmente se conseguiria entender as palavras do pastor, os convidados dirigiram‑se ao Hotel "Cidade de Leipzig", começando assim a parte festiva do dia. Pouco depois apareceram o conde Douglas, na companhia do seu mordomo, Emil Luther, sempre hirto, o contabilista Plumps com a sua mulher e sete filhos, os dois mestres dos fornos da fábrica de tijolos, o pastor Maltitz com a governanta Johanna K'affen, o médico dos Kochlowsky, senhor Brenneis, a parteira Ludwiga Solle, o guarda‑florestal Rechmann, acompanhado da sua atraente mulher, Blandine, originária da Lorena, o farmacêutico, alguns outros conhecidos e, naturalmente, Leopold Langenbach. Este último agia como se fosse o pai da criança, ajeitava a cadeira de Sofia, ia constantemente ao berço ver se Vanda estava bem, e baloiçava‑a quando ela chorava, enquanto Kochlowsky fazia um grande esforço para se conter e não lhe dar um pontapé. "Em breve isto mudará", pensou, com um semblante mal‑humorado, quando se sentou à mesa. Não dava a impressão de ser um pai feliz e orgulhoso. "Depois do Natal, no Ano Novo... meu caro Langenbach, serás expulso da minha casa." Sentiu como o ciúme se apoderava dele e isso irritou‑o ainda mais.

Não comeu quase nada e mal acompanhou o brinde de Eugen, que culminava com a frase: "O céu brilha dourado e Deus saúda‑te, Vanda, que estás aqui na Terra!" Enquanto isso, lá fora grossos flocos de neve caíam do céu cinzento. Mesmo assim, todos se emocionaram e bateram palmas, entusiasmados.

Aquilo que se seguiu foi tema de conversa em Wurzen durante muito tempo.

A Sociedade Dramática de Pless ‑ cinco casais sob a direcção de Louis Landauer ‑ apresentou os "desenhos vivos". E os actores vestiam apenas fatos de malha apertados, da cor da pele! Não havia forma do corpo que não se adivinhasse. O grupo de actores representava em posições imóveis conhecidos episódios da História ‑ desde o pecado original no paraíso até ao hino ao génio, que constituía o ponto alto do espectáculo e no qual as cinco mulheres cor de pele estendiam coroas de louros douradas a um homem bem constituído. Embora os corpos estivessem bem cobertos, alguns dos convidados, entre os quais Johanna K'affen, coraram e o director da escola começou a piscar os olhos, nervoso. A mulher do farmaceutico sussurrou:

‑ Isto é um escândalo! Actores nus! A malha é só para disfarçar! Consegue‑se ver tudo! Que pouca vergonha...

Depois do último "desenho vivo" foram sobretudo as pessoas de Pless que bateram palmas entusiasmadas, enquanto os habitantes de Wurzen se mostraram mais reservados.

‑ Isto nunca ninguém saberá fazer tão bem como nós - afirmou Eugen Kochlowsky e todos estavam de acordo. "Os Kochlowsky são todos iguais", pensavam. "Um berra como uma besta e o outro exibe ordinarices. Coitada da tão inocente e bonita Sofia. Como é que ela se pôde meter com esta gente...?"

Depois da primeira dança os convidados dispersaram‑se, sendo os mais íntegros os primeiros a sair. O último a deixar o hotel foi o pastor Maltitz. Sabia exactamente qual seria o principal tema de conversa nos próximos tempos em Wurzen. O conde Douglas deixara a festa logo a seguir aos "desenhos vivos", não por ter ficado escandalizado com a decadência moral, mas porque no dia seguinte logo de manhã cedo queria ir caçar javalis. Nas florestas à volta da propriedade de Amalienburg havia óptimos javalis e o conde andava atrás de um bom javali havia semanas.

Mais tarde, o caçador de Pless apareceu disfarçado de camponesa com o corpete preenchido por duas grandes couves. Os talos desenhavam‑se no tecido como dois enormes mamilos.

Os convidados de Pless rejubilaram, mas o proprietário do Hotel "Cidade de Leipzig" disse, aborrecido:

‑           Esta foi a primeira e a última vez que esse Kochlowsky deu uma festa aqui. Nunca se viu tamanha indecência em público. Não, eu não admito esse tipo de coisas!

Enquanto os membros da Sociedade Dramática que iriam dormir no hotel continuavam a festejar, Leo, Sofia, Eugen, Vanda, Jakob Reichert e Ewald Wuttke, que ainda vestia o seu disfarce com os peitos de couves, foram para casa num coche. Leo Kochlowsky segurava no colo a pequena Vanda, bem embrulhada, apertando‑a contra o peito para protegê‑la das correntes de ar. Langenbach tivera o tacto de partir no seu próprio coche. Louis Landauer, por seu lado, ficara com os "desenhos vivos", visto que uma das actrizes, a senhora Luise Lagwitz, lhe piscara o olho, com um ar insinuante.

Assim, muito mais tarde, Leo Kochlowsky sentou‑se na borda da cama e descalçou os sapatos de verniz. No quarto ao lado dormia a pequena Vanda. Sofia já estava deitada. Tinha‑se coberto com um edredão e usava rolos nos longos cabelos dourados. Parecia uma criança ‑ e no entanto já era mãe.

‑           Foi um bonito baptizado, não achas, querida? ‑ começou Kochlowsky, um pouco bêbado. Despiu as calças e esfregou os dedos dos pés uns contra os outros.

‑           Sim, foi muito bonito, Leo. Muito obrigada ‑ respondeu Sofia.

‑           Foi como antigamente, em Pless. Só faltaram os instrumentos de sopro dos caçadores. Mas, de resto, estavam lá todas as caras conhecidas e parvas.

‑           Leo... ‑ Sofia sorriu, meiga. Kochlowsky vestiu a sua comprida camisa de dormir e afagou a barba. ‑ O que será que contém o sobrescrito da princesa Von Schaumburg‑Lippe?

‑ Nós poderíamos abri‑lo...

‑ Não, isso seria trair a...

‑ Com vapor de água. Assim, mais tarde não se notará nada.

‑ Vou entregar o sobrescrito a um advogado, para não cairmos na tentação de abri‑lo. ‑ Cruzou os braços atrás da cabeça e enquanto observava Leo a lavar a boca e a gargarejar reparou que ele cambaleava ligeiramente. ‑ Estás bêbado, Leo?

‑ Um pouco. Estou alegre... ‑ respondeu, dirigindo‑se para a cama. Deitou‑se ao lado de Sofia e puxou‑a para perto de si. O pequeno e bonito corpo da sua mulher parecia procurar abrigo perto do seu. Kochlowsky beijou‑a na nuca. Estava muito feliz. ‑     Minha pequena mulher ‑ sussurrou ‑, tu nem imaginas como eu te amo. Não fazes ideia daquilo que significas para mim. És o céu e a terra...

‑ Isso são palavras de Eugen, o poeta? ‑ perguntou ela e riu‑se ao sentir a mão de Kochlowsky no seu decote.

‑           Ah, malandra! ‑ murmurou Kochlowsky deitando‑se de maneira que o seu corpo estivesse sobre o dela sem no entanto lhe pesar. Ela estava ainda muito fraca por causa do parto. ‑ Eu mataria qualquer homem que olhasse para ti mais do que três segundos...

 

Depois de três dias a vida voltou ao seu ritmo normal. Os visitantes de Pless tinham‑se ido embora, incluindo Eugen Kochlowsky que já não necessitava de ficar em casa do irmão para ter qualquer coisa para comer. Vanda Lubenski chorou copiosamente durante a despedida, na estação de comboios, e suplicou a Leo que tratasse bem de Sofia e a protegesse.

‑ Eu não preciso dos teus conselhos! ‑ resmungou Kochlowsky. Antigamente, em Pless, Vanda teria dado uma resposta ousada, mas agora apenas suspirou, limpando as lágrimas dos olhos. Como sentiam a falta de Leo em Pless! A vida, sem ele, tinha‑se tornado quase aborrecida.

‑ Boa viagem! Talvez nos vejamos para o ano...

‑           Porquê? ‑ perguntou Wuttke, sem compreender.

‑           Quando houver o próximo baptizado.

‑           Bárbaro! ‑ Vanda subiu para a carruagem. ‑ Tu devias ser amputado!

‑           Eu só não quero que a Sofia passe pelo mesmo que tu! ‑ gritou Kochlowsky e acenou enquanto o comboio se afastava lentamente. Jakob Reichert ameaçou‑o com o punho e riu‑se. ‑ Dizes isso por teres inveja!

Kochlowsky esperou até o comboio ter desaparecido atrás de uma curva e depois abandonou a estação. O proprietário do Hotel "Cidade de Leipzig" passou por ele desviando o olhar, sem o cumprimentar. Era uma clara demonstração de desprezo.

‑           Parvalhão! ‑ resmungou Kochlowsky, baixinho. Depois comprou o jornal e saiu para a praça. Do lado oposto havia uma loja de chapéus com uma placa que dizia: "Modes à la Paris." Nesse preciso instante Blandine Rechmann, a mulher francesa do guarda‑florestal, saiu da loja e cumprimentou Leo com um ligeiro movimento da cabeça. O seu maravilhoso cabelo ruivo jorrava sob o chapéu abado. Era uma mulher de uma beleza estonteante e em Wurzen todos se questionavam por que casara com um tipo antiquado como Rechmann e como é que aguentava viver no silêncio e na solidão da casa florestal. Contavam‑se histórias de que teria amantes em Leipzig, mas ninguém sabia nada de concreto.

Kochlowsky tirou o seu gorro de pele e fez uma pequena vénia. Ela sorriu. Depois, Leo observou‑a a afastar‑se, nas suas botas de salto alto. Andou ligeira pela neve até ao coche coberto, guiado por um ajudante florestal, e partiu. Passou por Kochlowsky, que continuava em frente à estação, acenou‑lhe e juntou os lábios, insinuando um beijo.

Kochlowsky ficou um pouco baralhado. Passou a mão pela barba, coçou o nariz, pensou nos cabelos ruivos e fogosos de Blandine e lembrou‑se que os serviços florestais tinham feito um pedido de dois mil tijolos. Decidiu dedicar‑se pessoalmente a essa entrega. De qualquer maneira, o atendimento individual aos clientes fora um pouco negligenciado nos últimos tempos e havia que alterar isso.

Kochlowsky chegou ao escritório com alguns pensamentos secretos acerca de Blandine Rechmann. Aqueceu‑se um pouco, aproximando‑se do forno, e esfregou as mãos e as restantes partes do corpo que tinham gelado apesar do casaco de peles. Leopold Langenbach estava a escrever uma carta a um cliente. Tinha uma letra bonita e sempre que terminava de escrever uma carta orgulhava‑se de ter criado uma pequena obra de arte. Achava essas coisas importantes para impressionar o cliente.

‑           Foram canceladas quatro encomendas de Wurzen - disse Langenbach quando Kochlowsky se sentou. ‑ A razão oficial é a interrupção das obras devido ao frio, mas eu

ouvi como eles disseram: "Nós não compramos mais nada a pessoas que exibem corpos nus em palco.

‑           Quem foi que disse isso? ‑ Kochlowsky fitou Langenbach.

‑           Isso não é relevante!

‑           Para mim é, senhor Langenbach. ‑ A voz de

Kochlowsky adquiriu aquele tom forte, como nos seus melhores tempos em Pless. ‑ Diga‑me imediatamente os nomes!

‑           Porquê? O que é que isso ajudaria? Quer ir gritar com eles?

‑ Eu responsabilizo‑me pelo que faço. Mas o senhor é cobarde de mais para isso, seu lambe‑botas!

‑ Vou fingir que não ouvi isso... ‑ disse Langenbach, num tom sério e controlado.

‑ Então eu não o disse suficientemente alto! ‑ berrou Kochlowsky. ‑ Seu lambe‑botas!

Leopold Langenbach fez o melhor que tinha a fazer: levantou‑se e saiu da sala.

Mas isso não bastava para travar um Kochlowsky. Leo esperou alguns instantes, depois foi até à contabilidade e abriu a porta num gesto brusco. O primeiro contabilista Plumps estava ocupado com a soma de uma longa coluna de números, mas ao ver Kochlowsky baralhou‑se nas contas e fungou alto.

‑           O senhor Langenbach esteve aqui, senhor Constipado? ‑ gritou Kochlowsky.

Plumps encolheu a cabeça e olhou à sua volta antes de ousar responder:

‑ Não, eu não vi nenhum senhor Constipado. Ele queria falar consigo?

‑           Eu estava à espera dessa resposta. ‑ Kochlowsky fitou o pobre Plumps com um olhar arrasador. ‑ Anda por aí como um lança‑bactérias e depois ainda por cima é insolente. Fixe bem uma coisa, senhor Constipado: a partir de agora só entra no meu escritório com uma protecção no nariz. Com uma máscara.

‑ Mas... mas eu não tenho uma constipação, senhor Kochlowsky ‑ balbuciou Plumps. A pena escorregou‑lhe da mão e caiu no chão. ‑ É... é dos nervos, não é contagioso, não é de modo algum contagioso...

Fungou de novo, como se quisesse sublinhar aquilo que dissera. Kochlowsky afastou‑se num gesto demonstrativo.

‑ Que nojento! ‑ berrou. ‑ E o senhor tem dez filhos. Parece que escorre por todas as aberturas...

Antes de o pobre Plumps conseguir reunir toda a sua coragem para se defender, já Kochlowsky desaparecera, a procura de Langenbach. Os outros três contabilistas olharam assustados para o seu superior.

Plumps fechou o grande livro, colocou a pena no lugar, pôs a tampa de zinco no tinteiro, despiu o casaco de trabalho cinzento e pegou no sobretudo que estava pendurado num cabide.

‑ Agora... agora pode denunciá‑lo, senhor Plumps - disse um dos contabilistas. ‑ Isso foi uma profunda ofensa.

‑ Devia‑se apanhá‑lo à noite e dar‑lhe uma sova ‑ exclamou outro.

‑ Vá falar com o conde e conte‑lhe o que se passou.

‑ Se ele me dissesse uma coisa dessas, atirava‑lhe com o tinteiro à cara!

Plumps ficou calado. Vestiu o seu sobretudo, pôs o chapéu e saiu do escritório. Ouviu a voz de Kochlowsky que vinha do armazém de tijolos através do ar leve e frio de Inverno. Continuava à procura de Langenbach.

Enterrou a cabeça na gola do sobretudo, o que fez com que se parecesse ainda mais com uma bola, da qual saíam duas perninhas que se movimentavam. Atravessou o grande pátio de armazenagem. Teria de caminhar durante meia hora para chegar a casa, dado que a essa hora não havia ninguém que lhe pudesse dar boleia. Mas até era melhor assim. Estava a precisar de um pouco de ar fresco, já que parecia arder por dentro e sentia‑se como se se estivesse a ressequir.

"Nunca mais voltarei para a fábrica de tijolos", pensou com amargura, andando com dificuldade nos largos sulcos que os carros tinham cavado na neve. "Vai ser muito duro. Tenho doze pessoas para alimentar. Mas não posso continuar a trabalhar nestas circunstâncias. Há‑de haver alguém em Wurzen que precise de um contabilista, talvez na serralharia ou na administração agrícola. O que importa é que eu esteja longe desse Kochlowsky! Bem longe!"

Encontrava‑se tão absorto nos seus pensamentos que não ouviu os gritos vindos da fábrica. Nem os gritos, nem o barulho abafado dos cascos, e quando se apercebeu daquilo que estava a acontecer já era tarde de mais.

Na fábrica, um cavalo soltara‑se quando era atrelado a um dos carros. Ninguém conseguia entender por que razão o animal entrara em pânico. Agora, saía pelo portão de entrada, galopando para a estrada, descendo o caminho que estava habituado a percorrer centenas de vezes por dia. Três operários corriam atrás dele, gritando "Brrr! Ai! Brrr! Quieto!" e estalavam os chicotes. Isso fez com que o cavalo ficasse ainda mais assustado: galopava, fora de si, e nem sequer tentou evitar o obstáculo redondo que se lhe deparou na estrada, atropelando‑o e projectando‑o para o lado. Relinchou alto, quase num lamento, e depois seguiu à desfilada.

Theodor Plumps só se apercebera do perigo no último momento, quando era tarde de mais para se desviar. O cavalo, enfurecido, colhera‑o e lançara‑o para o ar. Plumps ainda levara um coice, ficando depois estendido na neve, sem sentidos. Um fio de sangue escorria‑lhe do nariz.

Dois dos homens carregaram Plumps para a fábrica enquanto o outro continuou a correr atrás do cavalo. Entretanto, Langenbach também aparecera e Kochlowsky estava ao seu lado, calado e com um ar abalado.

Levaram Plumps para o vestíbulo do escritório, deitaram‑no na mesa e chamaram o enfermeiro da fábrica. No campo dos primeiros socorros o conde criara uma inovação:

dado que na fábrica ocorriam quase diariamente pequenos acidentes ‑ felizmente até então nada de muito grave - contratara um enfermeiro e instalara um quarto para os primeiros socorros, onde se tratavam contusões, pequenas queimaduras e outras feridas. Uma vez, o enfermeiro até tivera de tratar de sete caras arranhadas, quando houvera uma verdadeira batalha entre as mulheres, que tinham descoberto que um dos fogueiros mantinha relações amorosas com três delas ao mesmo tempo.

Kochlowsky murmurara:

‑           Afaste‑se, Langenbach, está a incomodar‑me! ‑ Depois abriu o sobretudo de Plumps, desabotoou‑lhe o casaco e a camisa e escutou o coração. A sua cara, normalmente sempre vermelha, estava agora branca, tinha os olhos no fundo das cavidades e o tórax gordo quase não se mexia quando respirava.

Kochlowsky estremeceu e virou‑se.

‑           Atrelar! ‑ gritou para as pessoas que estavam à volta. ‑ Atrelem imediatamente o meu coche. Com os dois cavalos castanhos.

‑           Já... já não há nada a fazer ‑ balbuciou o cocheiro.

‑           Para onde é que o quer levar?

‑           Atrela ou levas com o chicote! ‑ berrou Kochlowsky. O cocheiro parou e cerrou o punho, mas acabou por obedecer.

‑           O que pretende fazer? ‑ perguntou Langenbach depois de cobrir o senhor Plumps com o sobretudo.

‑           Vou levá‑lo para Wurzen. Para o hospital.

‑           Ele não sobreviverá...

‑           A sua conversa também não ajuda muito. Vocês todos estão aqui parados, cheios de medo, a deixarem‑no morrer! ‑ O enfermeiro apareceu a correr, inclinou‑se sobre Plumps e viu o sangue que escorria da boca e do nariz. Endireitou‑se e abanou a cabeça.

‑           É tudo o que tem a dizer? ‑ perguntou Kochlowsky.

‑           Não há nada a fazer. Suponho que seja uma fractura no crânio.

‑           Nunca dei importância a suposições. ‑ Kochlowsky aproximou‑se da janela. Lá fora os cavalos estavam a ser atrelados ao coche. ‑ Só me contento com factos. Preciso de dois grossos cobertores para agasalharmos Plumps. Despachem‑se, suas lesmas! Tragam os cobertores! E carreguem‑no com muito cuidado para o coche!

‑           Kochlowsky é um louco ‑ sussurrou alguém ao ouvido de Langenbach. ‑ É completamente doido! Não se pode fazer nada contra isto?

Mesmo assim, e embora renitentes, foram buscar os cobertores, embrulharam Plumps e levaram‑no para o coche. Kochlowsky vestiu o seu casaco de peles, subiu para o lugar do cocheiro e verificou se as portas e a cobertura do coche estavam bem fechados. Depois, estalou o chicote e desapareceu na neve em direcção da estrada.

‑ Ele é realmente louco ‑ confirmou Langenbach. ‑ Se não deu cabo do Plumps até hoje, agora dará. Ele não vai sobreviver! Vou falar com o conde e contar‑lhe o que se passou. Isto não pode continuar assim.

A viagem para Wurzen foi infernal. Os cavalos deram o seu máximo. O caminho que levava à fábrica era uma estrada larga, na qual Kochlowsky os deixou correr livremente. Ultrapassou três coches, que ficaram cobertos de lama. Os cocheiros praguejavam e tinham dificuldade em controlar os cavalos.

‑ Quem é aquele homem? ‑ perguntou um passageiro pela janela aberta.

‑ Um tal Leo Kochlowsky, meu senhor ‑ gritou o cocheiro, furioso. ‑ Nunca pronuncie esse nome em Wurzen. Senão ninguém o atenderá...

Quando chegou ao pequeno hospital de Wurzen, teve muita dificuldade em deter os cavalos, cobertos de espuma. Puxou as rédeas com toda a força e gritou alto. Uma enfermeira que vinha a sair do hospital viu‑o, e quando o reconheceu persignou‑se imediatamente.

‑ Enfermeira! ‑ gritou Kochlowsky. ‑ Sua noiva de Satanás, mexa esse traseiro. Preciso de uma maca e dois homens. Rápido!

Em menos de quinze minutos Theodor Plumps estava deitado na sala de operações. Um velho médico de barba branca e com um fato preto, assistido por um enfermeiro de bata branca, examinou Plumps. Apalpou‑o, levantou as pálpebras e depois, virando‑se para Kochlowsky, gritou:

‑ Fora! O senhor não tem nada a fazer aqui! Como foi que isto aconteceu?

‑ Foi atropelado por um cavalo.

‑ Isso é mau, muito mau... vá já para fora!

Era raro Kochlowsky não reagir a um tal tom de voz. Mas desta vez calou‑se, pegou no gorro e saiu. Lá fora, no corredor, sentou‑se num banco, pôs‑se a olhar para o chão e esperou.

Depois de algum tempo o médico finalmente saiu da sala de operações. Plumps fora levado por outra porta.

‑ Não lhe posso prometer nada ‑ disse o médico para Kochlowsky. ‑ As perspectivas são más: lesões pulmonares, três costelas partidas e talvez também tenha o fígado afectado. As coisas não estão nada bem. Agora só podemos aguardar... e pedir a Deus que nos ajude.

Kochlowsky ficou calado, embora não compreendesse por que era que estes tipos estudavam medicina para depois pedirem a ajuda de Deus. E como deveria Ele ajudar, se agora, nesse mesmo instante, em todo o mundo milhões de pessoas rogavam pela Sua ajuda? Ergueu‑se como se estivesse sob o efeito de uma anestesia. Saiu do hospital e quando se voltou a cruzar com a pequena enfermeira, à entrada, disse com uma voz quase triste:

‑ Suas lesmas! ‑ e foi para casa.

Três dias mais tarde soube‑se que Theodor Plumps estava melhor. Iria sobreviver. A sua respiração era mais regular, já tinha bebido alguns líquidos e no terceiro dia até comeu uma papa de cenoura.

Leopold Langenbach estendeu a mão a Kochlowsky.

‑ Parabéns ‑ disse. ‑ Foi uma grande acção!

‑ Eu não necessito dos seus louvores ‑ respondeu Kochlowsky. ‑ O senhor estava ao meu lado e achava‑se o melhor. Se fosse por si, Plumps teria morrido aqui, no quarto ao lado. E agora ousa louvar‑me?

Langenbach retirou a mão com uma cara impassível. Fizera mais uma tentativa, mas realmente, não havia maneira de se aproximar de Kochlowsky. Onde quer que estivesse, tinha‑se sempre que viver em confronto com ele.

Após uma semana, Plumps já conseguia sentar‑se na cama e recebia visitas da família. No domingo, depois do serviço dominical e de um bonito sermão do pastor Maltitz, em que este agradecera a Deus por ter salvo o Seu filho Plumps e até fizera uma alusão a Kochlowsky, a senhora Plumps e os seus sete filhos mais velhos reuniram‑se no jardim de Kochlowsky. O Sol brilhava e fazia muito frio. As crianças cobriam‑se com cobertores e usavam gorros por cima dos protectores de orelhas, mas apesar do frio estavam alegres. Formaram um meio círculo à volta da mãe e esperaram pelo seu sinal.

E depois começaram a cantar. A sua respiração formava nuvens brancas, as suas vozes quase se quebravam no ar gélido, mas cantavam com o entusiasmo de quem está muito agradecido. Cantavam hinos religiosos e Kochlowsky, que estava à janela, ao lado de Sofia, olhou estupefacto para as crianças e a mãe que as dirigia e passou a mão pela barba.

"Oh, se eu possuísse mil línguas e uma boca mil vezes maior entoaria cânticos de louvor sem fim, vindos do fundo do coração, para agradecer a Deus. Quero louvar a tua bondade enquando a minha respiração durar; quero oferecer‑te sacrifícios de alegria enquanto o meu coração bater, e quando a minha voz fracassar, suspiros entoarei.

Kochlowsky afastou‑se da janela e virou as costas a Sofia, para evitar que esta visse a sua cara.

‑ Trá‑los para dentro ‑ disse e a sua voz era agora suave, completamente diferente da sua voz habitual. ‑ Lá fora ainda morrem de frio. Prepara a grande panela com café e serve o bolo de domingo.

Depois saiu e foi buscar a senhora Plumps e as sete crianças, levando‑as para dentro de casa. Colocou o braço à volta do ombro da mãe, que estremecia em soluços.

 

Entretanto já se anunciava a festa de Natal com todo o seu brilho. No caso de Kochlowsky, porém, talvez fosse apropriado falar‑se mais de sombra do que festa. Para ele, todos os dias de festa eram um horror. Tanto na Páscoa como no dia de Pentecostes, no Natal como na passagem de ano, no aniversário do imperador ou no dia da fundação do império ‑ sempre que se festejava alguma coisa ele apresentava‑se de um mau humor intragável.

Mas Kochlowsky não era uma pessoa triste, antes pelo contrário: gostava de tudo o que estivesse relacionado com o vinho, mulheres e música, e em Pless fora conhecido por isso. Não, o que se passava com Kochlowsky era que um sentimento de vazio se apoderava dele quando via os outros festejar com alegria. Todos tinham alguém: amigos, noivas, mulheres ou familiares com os quais podiam partilhar a alegria, mas ele não tinha nada nem ninguém. Afinal, quem queria ser seu amigo? As inúmeras mulheres que passavam pela sua cama, à noite, vinham ter com ele, mas de dia nenhuma queria ser vista com Kochlowsky, pelo simples facto de na maioria serem casadas ou noivas. E as restantes sentiam mais vergonha ainda; afinal, uma filha de burgueses honrados não tinha nada que se meter com alguém tão mal afamado como Kochlowsky.

Assim, nos dias de festa, normalmente ficava sozinho no seu escritório, perto do palácio de Pless, com azedume e com raiva dos outros, que gozavam dias de festa tão felizes. Embebedava‑se com um bom vinho tinto, o que, no dia seguinte, tinha consequências terríveis, dado que acordava com uma cabeça que parecia querer explodir e ficava extremamente mal‑humorado.

Mas agora tudo mudara. Agora tinha Sofia, a sua querida mulher, Vanda, a sua filha, o seu anjo, o seu raio de luz, e a sua própria casa. Era a primeira vez que festejava o Natal casado, por isso teria de ser uma noite muito especial na sua pequena família.

Ninguém sabia ainda o que isso significava. Sofia não disse nada quando Kochlowsky anunciou:

‑ Eu arranjo o ganso para a noite de Natal, minha querida.

Só acenou afirmativamente com a cabeça, porque estava ocupada a dar de mamar a Vanda. Pensou como deveria preparar o recheio do ganso. à maneira alsaciana, com carne picada e choucroute, à maneira de Mecklenburg, com maçãs, coríntias e passas, acompanhado de couve roxa, ou se deveria fazer um ganso à Louis Ville, que era a maneira preferida da corte de Búckeburg, com castanhas e um molho de murtinhos? Na noite da passagem de ano prepararia uma carpa polaca, como em casa do príncipe de Pless, com um molho feito a partir de um caldo de cerveja de malte, com o sangue da carpa, pão de pimenta desfeito e alhos franceses. Quando Vanda Lubenski preparara pela primeira vez uma carpa dessa maneira, o príncipe oferecera‑lhe uma rosa vermelha do bouquet da mesa. Vanda guardava‑a até hoje numa caixa, murcha e ressequida, como se fosse uma relíquia. Afinal, qual é a cozinheira que recebe uma rosa vermelha de um príncipe?

Kochlowsky informou‑se na fábrica de tijolos onde se podiam comprar os melhores gansos e ficou a saber que havia duas criações recomendáveis: a quinta condal, atrás do palácio Douglas, e a casa florestal do conde. Mas quanto a esta avisaram‑no logo que ali nem valia a pena perguntar, porque o guarda‑florestal Ferdinand Rechmann era um homem de nariz empinado e para a sua mulher francesa, a ruiva, chamada Blandine, para essa, um empregado do conde não era gente.

Nada era mais seguro que a decisão de Kochlowsky de ir a casa do guarda‑florestal Rechmann comprar um belo ganso. Atrelou o seu trenó com os varais de aço, tapou‑se com um cobertor de pêlo de cão e partiu com o seu forte cavalo castanho.

A casa florestal situava‑se num lugar romântico, mas um pouco solitário, no meio da floresta e o único acesso era um simples caminho. Era uma casa florestal como nos contos de fadas, com uma chaminé que deitava fumo, um telhado rebaixado, madeira empilhada contra as paredes da casa, batentes verdes, uma casinha com um forno, cavalariças e celeiros.

Kochlowsky parou em frente da entrada, tirou o cobertor dos ombros e bateu à porta. Uma empregada abriu.

Quando reconheceu o mal‑afamado gerente da fábrica de tijolos, corou e fez uma ligeira vénia.

‑ Está alguém em casa? ‑ perguntou Kochlowsky. Deitou um olhar ao peito firme da mulher e pensou: "Aquilo é que eram bons tempos, em Pless. Aí não se deixava escapar uma coisinha destas." Passou a língua pelos lábios e, sem dar importância à empregada, entrou no vestíbulo. A mulher fechou rapidamente a porta atrás dele, para que a neve não entrasse na casa.

‑ Só a senhora, senhor gerente ‑ balbuciou a empregada.

‑           Isso basta.

Olhou à sua volta, contou quatro portas no vestíbulo e, sem sequer perguntar para onde deveria ir e se não convinha anunciar‑se, optou pela segunda porta da esquerda. Antes mesmo de a empregada poder dizer qualquer coisa, abriu‑a bruscamente e entrou no quarto. Mal entrou parou imóvel, visto que não é habitual encontrar‑se numa casa florestal, no meio de uma floresta, um autêntico boudoir francês, com um cheiro a perfume no ar, elegantes móveis brancos, cortinados de tule e um tapete branco e macio. Em frente a um grande espelho com uma moldura dourada estava sentada Blandine Rechmann, num banquinho forrado de seda, a pentear o seu cabelo ruivo e fogoso. Era uma imagem que fazia prender a respiração.

‑ Oh, perdão ‑ disse Kochlowsky num tom educado. ‑ Mas a sua empregada é de uma tal lentidão que tive de agir. Odeio esperar.

‑ Nota‑se! ‑ Blandine Rechmann não parecia nada chocada, nem mesmo ofendida. Continuou a pentear‑se, alisando madeixa por madeixa do seu cabelo ruivo. Observava Kochlowsky pelo espelho. ‑ O senhor é Leo Kochlowsky, não é?

‑Sim...

‑ O mal‑afamado.

Kochlowsky encolheu o queixo. Até uma mulher bonita podia atingir os limites da sua paciência.

‑ Porquê? ‑ perguntou secamente.

‑ Quem representa "desenhos vivos" com pessoas num baptizado... Realmente...

‑ Todos eles vestiam fatos de malha.

‑ Diz‑se que eram transparentes!

‑ Isso é uma infâmia! Eram da cor da pele!

‑ Mesmo assim... ‑ Ela mostrou um largo sorriso. ‑ Dava para imaginar muita coisa palpável.

‑ Contente‑se com as suas fantasias, minha senhora! - respondeu Kochlowsky.

Blandine Rechmann franziu as sobrancelhas e parou de se pentear. A conversa estava a tornar‑se perturbante e isso atraía‑a.

‑ Isso interessa‑lhe, senhor Kochlowsky? ‑ perguntou, pondo parte do cabelo sobre o seu peito num gesto de coqueta.

‑ A mim só me interessa o ganso ‑ disse Kochlowsky abruptamente.

‑ Interessa‑lhe o quê? ‑ Blandine Rechmann olhou‑o, incrédula. ‑ Mas está bem, se quiser, chamemos‑lhe assim. O seu ganso...

‑ Acho que não me está a compreender. ‑ Kochlowsky tinha agora um tom de voz muito formal. ‑ Vim aqui à procura de um bom ganso para a ceia de Natal. Isto, claro, se a senhora estiver disposta a vender‑me um.

‑ E é por isso que entra de rompante no meu boudoir?

‑ Já lhe pedi desculpas por isso, minha senhora... a quem devo dirigir‑me por causa do ganso?

‑ O aviário e toda a restante criação são geridos por um aprendiz. O meu marido... ‑ pronunciou a palavra "marido" quase como se fosse um palavrão ‑ é um tolo. Imagine só quantos animais nós temos: três veados, duas raposas domesticadas, faisões e abetardas, duas cabras leiteiras, catorze ovelhas e até mesmo um mufflon! E isto sem mencionar as vacas, os cavalos, os cães e os gatos. Eu estou rodeada de animais; e de vez em quando aparece alguém como o senhor para comprar um deles... um ganso...

Riu‑se numa voz estridente e aguda e com uma clara nota de histeria, inclinando‑se para trás no banco de seda. Kochlowsky observou‑a... era de uma beleza selvagem e indescritível, que cativava, embora se soubesse o perigo que representava.

‑           Um ganso para a ceia de Natal! ‑ disse, rindo‑se, e

saltou do banco. ‑ Eu mostrar‑lhe‑ei onde estão os gansos. O senhor também o mata? Como é que faz isso? Torce‑lhes

o pescoço ou estrangula‑os? Sabe fazê‑lo? Decapitar um ser

vivo? Isso eu gostaria de ver.

‑           Os gansos levam primeiro uma pancada na cabeça e depois são mortos ‑ disse Kochlowsky, contido.

‑           E o senhor faz isso? ‑ Os olhos de Blandine cintilavam. ‑ Mata‑os? E a sua mão, não treme?

‑           Onde é que fica o estábulo? ‑ perguntou Kochlowsky em voz alta.

‑           Ofereço‑lhe o melhor ganso se o matar à minha frente ‑ disse Blandine. Os seus lábios estremeceram, a sua boca estava entreaberta e a língua deslizava sobre os dentes como uma cobra. O cintilar nos seus olhos, que agora brilhavam num verde profundo, transformara‑se num chamejar.

‑           Nunca deixei que me oferecessem uma coisa que queria comprar ‑ disse Kochlowsky num tom seco. ‑ Suponho que lá fora encontrarei alguém que me indicará onde fica o estábulo.

‑           Eu ainda não disse que lhe queria vender um ganso.

‑           Parto do princípio...

‑           E se eu disser que não?

‑           Então tomo conhecimento disso e escolho o melhor ganso que tiver.

‑           O senhor é muito abusador.

‑           A senhora não disse que eu era mal‑afamado? - Kochlowsky sorriu. ‑ Uma pessoa tem que fazer jus à sua fama.

Depois quis sair, mas Blandine impediu‑o.

‑ Espere um momento... ‑ disse e foi até à porta. Fechou‑a e trancou‑a. Encostou‑se à parede e começou a brincar com os seus longos cabelos.

Kochlowsky olhou para ela durante alguns instantes, silencioso. Depois perguntou:

‑           O que quer isto dizer?

‑           Beije‑me, Leo! Mon Dieu, não fique aí parado! O senhor quer beijar‑me...

‑           O seu marido, minha senhora...

- foi para Leipzig e não volta antes do anoitecer. Tem medo do meu marido? O senhor, que é forte como um urso, tem medo de um coelho? Ou será a obrigação de ter que ser um fiel pai de família que o impede? Um jovem pai... ‑ Sublinhou a palavra "jovem" e pronunciou‑a devagar. Kochlowsky sentiu um arrepio. Esse arrepio repetiu‑se quando Blandine se aproximou dele e ele aspirou o seu doce perfume. A respiração dela aflorou o seu rosto.

‑           Eu estou interessada em si, Leo ‑ disse, baixinho, sabendo que ele não iria resistir àquela voz e ao seu sorriso. ‑ É raro aqui em Wurzen aparecer um homem como o senhor. Um homem que se está nas tintas para as convenções, que vive da maneira que bem entende, para o qual a sociedade é absolutamente indiferente e que tem orgulho em ser chamado de monstro. Essas coisas atraem‑me como um íman atrai a limalha de ferro. Em Pless, lá em baixo, na longínqua Silésia Superior, chamavam‑lhe "general". Os homens temiam‑no e as mulheres corriam atrás de si como as abelhas atrás do mel.

‑           Quem foi que lhe contou isso? ‑ resmungou Kochlowsky.

‑           Durante a festa, no hotel, falei com algumas das mulheres do grupo de teatro de Pless. ‑ Blandine sorriu com um ar ameaçador. ‑ As coisas que elas sabiam de si, Leo! Havia pelo menos dez maridos que teriam razão suficiente para darem cabo de si! Realmente, teve muita sorte em ter casado com a pequena Sofia... assim não teve de fugir aos maridos vingativos e às mulheres ciumentas.

‑           O que tem isso a ver com o meu ganso de Natal? - perguntou Kochlowsky, hirto.

‑           Tem muito a ver! Eu só lho darei se me der um beijo!

‑           E se eu, sob essas circunstâncias, desistir do ganso?

‑           Isso não mudará quase nada. ‑ O sorriso dela era como uma força invisível que o puxava. ‑ A porta está trancada e eu tenho a chave no meu decote.. ‑ Colocou a chave no decote e depois estendeu os braços. ‑ Ou a tira daqui ou então terá que arrombar a porta. O que iria pensar a criada? Leo, o senhor não tem muitas hipóteses!

‑           A senhora também não. Aquilo que está aqui a fazer é indigno de si.

‑           Dignidade? Nós ainda devemos falar em dignidade quando olhamos um para o outro e sabemos o que queremos? Leo, desde quando é que o senhor é hipócrita? Mon Dieu, o que foi que o casamento lhe fez...

Kochlowsky fixou‑a com os seus olhos negros. Era aquele olhar penetrante ao qual nenhuma mulher escapava ilesa. Até Blandine, com toda a sua experiência, sentiu como o seu coração parou durante um breve instante. E foi nesse instante que Leo a puxou para si e lhe deu um beijo duro nos lábios entreabertos. Ao mesmo tempo meteu a mão no seu decote e antes de ela poder gemer de prazer retirou a chave e empurrou a jovem para trás. Depois, foi destrancar a porta.

‑           E agora quero o ganso! ‑ disse como se fosse uma ordem. ‑ Não se preocupe, minha senhora, que eu encontro o caminho.

Na capoeira, que lhe foi indicada pela criada, Kochlowsky encontrou um trabalhador florestal, que estava a remendar uma parede de madeira. Também ele conhecia Kochlowsky e quando o viu, olhou‑o incrédulo, esquecendo‑se do seu trabalho.

‑           Só há esses gansos? ‑ perguntou Kochlowsky num tom seco.

‑           Sim, lá fora na neve já não há mais.

‑           Isto não são gansos, são andorinhas tísicas! Não têm nada no peito! Comparados com estes, os gansos de Pless eram uns verdadeiros monstros. ‑ Kochlowsky virou‑se. Vira Blandine entrar na capoeira, envolta num casaco de peles de raposa branca, como Kochlowsky até então só vira nos grão‑duques russos quando estes visitavam Pless. ‑ Isto são gansos? ‑ perguntou ele num tom rude.

‑           Como é hábito, o senhor é que tem a escolha ‑ disse Blandine, insinuante.

‑           Obrigado! ‑ Kochlowsky virou‑se. ‑ Eu teria vergonha de aparecer com um animal destes lá em casa.

‑ Disse‑me que mataria um à minha frente...

‑ Para quê? Estes gansos caem para o lado só de se assoprar neles! Minha senhora, tenho imensa pena, mas aquilo que tem para oferecer não corresponde às minhas exigências...

Kochlowsky saiu da capoeira e Blandine seguiu‑o. Apesar do espesso casaco de peles o seu corpo tremia. Era uma fúria incontrolável que a dominava.

‑ Seu bruto ‑ sibilou. ‑ Seu monstro! Seu animal! Ousas dizer‑me essas coisas! Sabes o que isso significa? Que me tratas como uma prostituta...

‑ Eu não quero discutir isso agora.

‑ O que é que eu sou para ti? O quê?

‑           Uma mulher que não se deveria deixar escapar da cama!

‑ Então faze isso! Fá‑lo!

‑ Nem pelo preço de um ganso. ‑ Kochlowsky fez uma pequena vénia, como depois de uma dança. ‑ Minha senhora, eu voltarei...

‑           Quando?

‑ Aparecerei inesperadamente.

‑ És o maior canalha que eu jamais conheci ‑ exclamou Blandine com uma voz de choro, virando‑lhe as costas e correndo para a casa.

Kochlowsky viu‑a partir, limpou os cristais de gelo da sua barba e dirigiu‑se para o seu grande trenó de madeira. Mas, de repente, deu meia volta, voltou para a capoeira e apontando para um ganso bem gordo, disse:

‑ Eu levo este.

O homem foi buscar o ganso à grade e meteu‑o num saco. Kochlowsky pôs no ombro o saco, em que o ganso se debatia furiosamente, dirigiu‑se para o trenó e foi‑se embora. Atrás dele a neve formou uma nuvem branca no céu frio.

Mas tudo isto Blandine já não viu. Tinha voltado para o seu boudoir e estava sentada de novo em frente ao enorme espelho. Olhou para a sua cara lacrimosa e disse em voz alta:

‑           Quando tu vieres, Leo... eu mato‑te! Sim, é isso que vou fazer! Um homem como tu não pode continuar a viver!

Mas no instante em que dizia estas palavras, sabia muito bem que quando ele viesse, faria tudo menos isso.

 

A casa cheirava a maçãs assadas, biscoitos e ao assado de ganso. Era um cheiro que apenas existia no Natal, um cheiro aliciante e divinal que por si só fazia com que as pessoas ficassem envoltas num espírito festivo.

Na fábrica de tijolos também se sentira nos últimos dias a alegria da chegada da mais alemã das festas. O conde Douglas reunira o pessoal no grande armazém e fizera um discurso, no qual exprimira a sua gratidão pelo trabalho feito e pela fidelidade à empresa. Como isto se repetia todos os anos, Leopold Langenbach dirigira‑se a Kochlowsky alguns dias antes e perguntara‑lhe:

‑ Este ano não quer fazer o discurso em nome dos trabalhadores?

‑           Porquê eu? ‑ perguntara Kochlowsky.

‑ Na sua função de segundo gerente...

A palavra "segundo" bastou para que Kochlowsky começasse a ferver de raiva.

‑ Quem o costuma fazer que continue a fazê-lo! ‑ exclamou. ‑ Eu não tenho experiência em ser um lambe‑botas!

‑           O discurso é proferido por educação e em sinal de agradecimento ‑ disse Langenbach, sério. ‑ Então não quer pelo menos participar na festa?

‑           Essa é uma decisão que só a mim diz respeito.

 

A pequena festa de Natal na fábrica decorreu sem problemas. Como todos os anos, Langenbach proferiu o discurso de agradecimento. A seguir distribuíram‑se pequenos cestos com doces, bolos e frutas a todos os empregados. Além disso, foi oferecido um grande lenço de linho estampado a cada um dos homens e xailes de lã às mulheres. Os empregados da administração receberam um bónus de dez marcos em ouro e os dois gerentes até foram premiados com vinte. Foi um gesto muito generoso de Douglas e Kochlowsky viu‑se obrigado a agradecer‑lhe.

‑           Estou muito satisfeito por tê‑lo aqui connosco, Kochlowsky ‑ disse Douglas num tom simpático, dando‑lhe a mão. ‑ Não importa as coisas que dizem de si em Wurzen... eu estou satisfeito consigo. De qualquer maneira, eu sabia quem é que mandei vir de Pless. Já se acostumou à sua nova terra?

‑ A minha mulher está muito contente aqui ‑ respondeu Kochlowsky, tentando esquivar‑se. ‑ E para a minha pequena Vanda, o jardim da casa será um paraíso.

‑ Mas por que é que o senhor anda sempre à procura de brigas?

‑ Eu não as procuro, senhor conde, elas perseguem‑me.

‑ Porque o senhor diz sempre aquilo que pensa. Tente engolir metade da verdade.

‑ Isso asfixiar‑me‑ia, senhor conde.

‑ Mas desta maneira só tem inimigos. Todos nós temos os nossos defeitos, sobretudo o senhor. Se fôssemos perfeitos, aí sim, morríamos asfixiados de aborrecimento.

Estavam sozinhos no escritório, na porta do qual se lia a palavra "Comptoir". Langenbach ainda se encontrava na festa com os trabalhadores. Já se esperava que Kochlowsky não participasse. Não era seu hábito sentar‑se ao lado de um cocheiro e beber uma aguardente e por isso Douglas teve a oportunidade de falar com ele a sós.

‑ Sinto que alguma coisa o preocupa, Kochlowsky - Comentou o conde. ‑ Falta‑lhe algo?

‑ Eu gostaria muito de comprar um cavalo, senhor conde.

O olhar de Kochlowsky parecia distante, como se à sua frente estivessem os extensos campos de Pless, as florestas que atravessara com o seu cavalo, os lagos à beira dos quais costumava descansar e onde os cavalos bebiam a água límpida e clara.

‑           Mas o senhor tem a fama de andar a cavalo em Wurzen.

‑ Eu monto um cavalo emprestado, que ainda por cima é péssimo.

‑           Em Pless tinha um cavalo?

‑ O estribeiro e o cocheiro do príncipe eram meus amigos. O príncipe de Pless possuía cavalos maravilhosos que precisavam de ser montados...

‑ Eu também tenho bons cavalos.

‑           Com os quais o barão Von Uxdorf adoraria ir para a cama...

‑           Lá está o senhor outra vez, Kochlowsky. ‑ O conde sorriu, condescendente. ‑ Podia dizer isso por outras palavras. A vida de Von Uxdorf gira à volta dos cavalos. Eles são o centro do seu mundo, desde que saiu dos hussardos. Falarei com ele sobre o seu caso, Kochlowsky.

O conde não adivinhava as consequências que esta promessa acarretaria. Se adivinhasse, teria preferido morder a língua.

Depois, chegou o Natal com uma noite santa, como convém: grandes flocos de neve que caíam lentamente do céu, o repicar dos sinos, os fachos que iluminavam a noite, o sermão e os cânticos. Sofia insistira em assistirem à missa do galo. De qualquer maneira, argumentou, teriam que sair de casa para que Leo não visse o seu presente de Natal antes da hora, dado que era impossível escondê‑lo.

Antes do início da missa, a governanta veio ter com o pastor Maltitz, aflita:

‑           Ele está lá, na segunda fila... ‑ disse, sem fôlego. ‑ Com a mulher e a filha!

‑           Quem?

Maltitz estava ocupado a envergar os paramentos.

‑           O Diabo!

‑ O Diabo não tem mulher nem filhos, Hanna.

‑ O Kochlowsky...

‑ Não estejas sempre a chamar‑lhe Diabo. ‑ O pastor Maltitz ajeitou o seu hábito preto e olhou para o relógio. Dentro de dez minutos o organista Hermann Mampe começaria a primeira canção: "Alegrem‑se cristãos, alegrem‑se do coração..." A grande árvore de Natal, ao lado do altar, já reluzia com centenas de velas. ‑ No fundo, ele é um coitado.

‑           Mas ofendeu‑me... ‑ disse Johanna Klaffen respirando com dificuldade. ‑ Ele ofendeu‑nos a nós, a ti e a mim!

‑           O que é que ele fez? ‑ Maltitz meteu debaixo do braço o Evangelho e o esboço do seu sermão natalício.

‑           Na loja de ferramentas do senhor Brenner disse:

"A Hanna tagarela que não empine o nariz dessa maneira, que ela também sabe o que é um pastor sem calças." ‑ Johanna soluçou, passando a mão pelos olhos. ‑ Ele disse "tagarela" para me ofender...

Para Maltitz a palavra "tagarela" tinha menos importância do que a observação sobre as suas calças. Já se ouviam os primeiros acordes que dariam início à missa do galo. Seria necessário todo o amor pastoral ao próximo para, de cima do púlpito, suportar a presença de Kochlowsky na segunda fila.

‑ Brevemente isso mudará, Hanna ‑ disse o pastor, impávido. ‑ Como é que diz a Bíblia? Os homens justos terão que sofrer...

Mesmo assim, quando Maltitz reparou que Kochlowsky se encontrava mesmo à frente do púlpito, decidiu mudar o sermão e falar de improviso. Durante o sermão, olhava só para Leo e quando exclamou "Cristo nasceu para trazer paz aos homens e para que perdoemos àqueles que semeiam a discórdia entre nós..." até apontou para ele.

‑ Foi um sermão muito bonito ‑ comentou Sofia depois da missa, enquanto cantavam "Noite Feliz". Kochlowsky murmurou qualquer coisa incompreensível, ajudou a mulher e a filha a subirem para o trenó e voltou para a sua casa à beira da cidade.

‑ E agora, presta atenção, Leo... ‑ disse Sofia com um ar misterioso. ‑ Vais ver o teu presente de Natal.

Entregou‑lhe Vanda, destrancou a porta de casa e abriu‑a. No mesmo instante apareceu no vestíbulo uma bola de pêlo branca que olhou para Kochlowsky e saltou para cima dele. Antes mesmo que este pudesse reagir, a bola de pêlo já o tinha mordido na perna e estava pendurada nas suas calças.

‑ Maldito animal! ‑ berrou Kochlowsky, sacudindo a perna. ‑ Que fera!

‑ Tem cuidado com a criança! ‑ exclamou Sofia, aflita. ‑ Não a deixes cair...

‑ De onde veio este animal? ‑ berrou Leo. ‑ Quem é que o trancou em casa? Sofia, pega na criança. Vou estrangular este cão! ‑ Mas de repente foi como se o cão tivesse entendido Kochlowsky. Largou as calças, recuou e ficou parado, com a cabeça inclinada e abanando a cauda peluda. Tinha um ar maroto e desafiador, uns olhinhos pequenos e inteligentes e uns dentes afiados que mostrava sempre que abria a boca.

‑ Ele não é querido? ‑ perguntou Sofia agachando‑se ao lado do cão. ‑ É um lulu. Um grande lulu... com pêlo branco como a neve... e tem só cinco meses. Ainda crescerá muito.

‑           Pega na criança! ‑ gritou Kochlowsky, cheio de raiva. ‑ Vou partir o pescoço a este cão. Mordeu‑me! Mas se calhar nem reparaste nisso! Mordeu‑me na perna!

‑ É o teu presente de Natal... ‑ disse Sofia acariciando o cão, que rosnava baixinho de prazer. Kochlowsky apertou Vanda contra si. A pequena dormia profundamente, embora o pai tivesse gritado muito. Parecia estar a tornar‑se numa verdadeira Kochlowsky.

‑           Que cão é esse? ‑ perguntou Leo.

‑           É o meu presente de Natal para ti, meu querido... - Sofia voltou a pôr‑se em pé. ‑ Gostas?

‑ Adoro! ‑ Kochlowsky passou por Sofia e pelo cão, deitou Vanda na mesa ao lado da árvore enfeitada, apalpou a sua perna, arregaçou as calças e viu que não estava a sangrar. Os dentes do cão só tinham deixado leves marcas vermelhas. Depois, olhou para o cão que entrara em casa abanando a cauda e se sentara à sua frente, ao lado da árvore de Natal, como quem diz: "Olha para mim, eu sou o teu presente de Natal! Como é que querias que eu soubesse que eras o meu dono? Agora já não existem dúvidas."

Kochlowsky fitou o cão e franziu as sobrancelhas. Observaram‑se um ao outro, olhos nos olhos, e Leo disse num tom abafado:

‑ Ainda vais pagar por esta, bastardo! Anda cá!

Apontou para os seus sapatos e o cão obedeceu: aproximou‑se e deitou‑se aos seus pés.

‑           Ele gostou logo de ti ‑ disse Sofia, contente, quando entrou na sala. ‑ Olha só, Leo, como o cão sabe exactamente que é a ti que pertence.

Levou Vanda para o quarto de dormir e depois de pôr o avental dos dias de festa correu para a cozinha. O ganso, preparado à maneira de Mecklenburg, como Leo pedira, recheado com maçãs, coríntias e passas, já estava no forno.

Kochlowsky esperou até que Sofia tivesse desaparecido na cozinha, fechou a porta e sentou‑se no sofá forrado de pelúcia vermelha. Depois olhou para o cão, apontou para o lugar ao seu lado e chamou com uma voz abafada:

‑ Vem para aqui! Senta‑te, maldito cão! Anda...

O lulu arrebitou as orelhas e fitou Kochlowsky com um ar hesitante, mas depois saltou para o sofá. Deitou‑se, pousou o pequeno focinho nas pernas de Leo e soltou um suspiro. Foi um suspiro profundo e comovedor.

Kochlowsky pousou uma mão na cabeça do cão, acariciando o seu pêlo branco, denso e macio e passou a outra pela sua barba preta. A sua raiva, essa maldita raiva que surgia constantemente, que era incontrolável e que o possuía por completo, desaparecera no momento em que o cão olhara para ele. Na vida de Leo Kochlowsky havia três seres que eram capazes de quebrar a sua dureza e que o faziam derreter como manteiga: um cavalo, um cão e um gato. Mas nunca um ser humano! Tirando algumas excepções, como a sua pequena mulher Sofia e, naturalmente, a sua filha Vanda.... Nenhuma das mulheres bonitas que possuíra até aí haviam tido essa capacidade; elas só confirmavam que a fidelidade de um cão tinha mais valor do que a promessa de uma mulher. Blandine Rechmann, a ruiva da casa florestal, tinha voltado a provar isso.

‑ Nós vamos dar‑nos bem ‑ disse Kochlowsky acariciando a cabeça do cão. ‑ Estamos sempre a morder as pessoas à nossa volta... assim todos sabem que devem respeitar‑nos. Comigo estás bem guardado, meu pequeno.

Quando alguém aprendeu a cozinhar na cozinha dos príncipes de Schaumburg‑Lippe e foi louvada por Bismarck na cozinha do palácio de Pless, - então pode‑se confiar na sua capacidade de preparar um ganso assado que faça a alegria da alma e do paladar. Kochlowsky sabia que a sua mulher era uma óptima cozinheira, mas era a primeira vez que comia um ganso assado preparado por ela. Comeu tanto que a seguir à refeição foi‑lhe impossível levantar‑se da mesa.

‑ Já não me consigo mexer ‑ disse, rindo‑se alto. ‑ Minha querida, acho que comi demais.

Não havia maior louvor que este saído da boca de um Kochlowsky.

Mais tarde, acenderam as velas da árvore de Natal e cantaram juntos antigas canções natalícias... Leo com a sua voz baixa e sonante, Sofia com o seu soprano claro e meigo mas determinado. Cantavam tão bem que, se estivessem em público, de certeza teriam recebido um aplauso frenético.

A noite terminou com a distribuição dos presentes. A princesa Pless mandava um pacote com salsichas da Silésia, presunto e bolos com especiarias. Vanda e Jakob Reichert ofereciam um bolo que pesava dois quilos. Era enorme, cheio de passas, limão cristalizado, amêndoas e com recheio de massa‑pão. Ewald Wuttke, o caçador do conde, mandava o que devia ter roubado das reservas do castelo: um grande pedaço de lombo de javali. Também havia um quadro da parte de Louis Landauer ‑ que mais poderia ele mandar? Mas era um quadro muito especial, pintado a crayon, que representava Sofia e Vanda durante o baptizado. Era tão bonito que os olhos de Kochlowsky se encheram de lágrimas. Mesmo assim, resmungou:

‑ A minha filha parece um macaco. Vamos deitar isto fora já amanhã! ‑ Mas logo depois do Natal o quadro estava pendurado no quarto, por cima da cómoda do bebé.

Eugen Kochlowsky oferecia uma poesia de dezanove versos e um exemplar provisório do seu novo romance, intitulado A Pinha Dourada. Já haviam sido encomendados quinhentos exemplares de antecedência e Eugen juntou uma pequena nota em que dizia: "Entretanto, o meu editor até já me abraça quando me vê. Há dois anos ainda me expulsava do seu escritório. Mas agora sou intransigente. Quando ele me beija as faces, limpo a cara com um grande lenço e perfumo‑me. Perfume francês! É extremamente caro, mas a minha posição de escritor conhecido obriga‑me a isso..."

O presente mais bonito, porém, vinha de Búckeburg. "Minha querida sobrinha", escrevia a princesa, "que Deus te proteja a ti e à tua filha...". Nem sequer mencionava Leo Kochlowsky. Para Vanda enviava um grande pacote com um vestidinho e um sobretudo, debruado a peles, e um gorro e luvas de pele. No Inverno seguinte estas peças ajustar‑se‑iam muito bem ao tamanho de Vanda. Numa bolsinha de couro tilintavam cinquenta marcos em ouro. Sofia despejou a pequena fortuna na mesa e abraçou Leo:

‑ Agora podemos comprá‑lo... ‑ disse, chorando, e beijou‑o. ‑ Agora sim...

‑ Comprar o quê?

‑ Agora podes comprar um cavalo, um cavalo bonito e forte...

‑ Não! ‑ Kochlowsky juntou as moedas e voltou a pô‑las na bolsinha. ‑ Não permito que me ofereçam um cavalo. Eu próprio trabalharei para comprá‑lo. Sou eu que pago aquilo que quero! Este dinheiro é para a Vanda! E não se fala mais nisso! Mas, por que razão a princesa Von Schaumburg‑Lippe te oferece estas coisas e te trata por "sobrinha"?

‑ Não sei. ‑ Sofia pegou na bolsinha e meteu‑a no avental. ‑ Perguntei isso algumas vezes à minha mãe, mas ela sempre respondia: "Isso é um segredo que nunca revelarei.."

Foi uma noite de Natal maravilhosa. Antes de irem para a cama ainda estiveram de mãos dadas ao lado do berço de Vanda e beijaram‑se.

‑           Eu amo‑te ‑ declarou Kochlowsky de repente. Depois virou‑se e foi para o quarto, como se tivesse vergonha.

Para Sofia esse foi o seu mais bonito presente de Natal.

 

Na manhã do dia de Natal, às onze horas, como convinha, alguém tocou à porta dos Kochlowsky. Sofia estava na cozinha, a preparar o almoço, língua de vaca com feijão verde e bolinhos de batata. Assim, Leo foi abrir a porta e deparou‑se‑lhe Leopold Langenbach, que vinha muito bem trajado. Viera num coche da fábrica de tijolos e trazia um ramo de flores na mão e uma caixinha debaixo do braço.

‑           Bom Natal! ‑ exclamou com uma alegria sincera. ‑ E paz na Terra...

‑           O que é que quer? ‑ Kochlowsky não se desviou nem um centímetro da entrada e fitou‑o com um olhar furioso.

‑           Eu queria desejar a si, à sua mulher e à criança...

‑           Por acaso não se enganou na porta? ‑ interrompeu‑o Kochlowsky de maneira brusca. ‑ Ou será que foi convidado sem que eu tivesse conhecimento disso?

‑           Senti a necessidade de desejar a si, à sua mulher e à criança...

‑           Guarde as suas necessidades para outras ocasiões - disse Kochlowsky num tom rude. ‑ Proíbo‑o de continuar a molestar‑nos e falo também em nome da minha mulher! Aliás, nem pense em deixar aqui esse ramo de flores ridiculo ou a caixa, senão atiro‑lhos à cara. Fui suficientemente claro? Ou será que o seu cérebro é tão pegajoso como os seus intestinos? Feliz Natal!

Kochlowsky recuou um pouco, bateu a porta com força e olhou para o cão.

‑ A esse devias ter‑lhe mordido, estúpido! ‑ murmurou. ‑ Em vez disso, ficas aí parado a abanar a cauda. Ainda tens de aprender muito comigo...

Sofia espreitou para a sala, onde Leo se encontrava no sofá. Ao seu lado tinha Vanda, de fraldas e macacão, e o cão deitara‑se aos seus pés. Estava a ler a edição de Natal do Jornal de Wurzen, onde descobrira um artigo do seu irmão Eugen com o título "Somos todos irmãos". Eugen, com o seu espírito de negócio, vendera o artigo ao jornal quando viera a Wurzen para o baptizado de Vanda.

‑           Quem era? ‑ perguntou Sofia. Cheirava a bolo de especiarias. Nos dias de festa não havia molho polaco sem bolo de especiarias.

‑           De quem é que estás a falar? ‑ perguntou Leo.

‑           Pensei que tivessem batido à porta...

‑           Ah, estás a referir‑te a isso! Era um vagabundo, um mendigo. No Natal querem receber algo de especial.

‑           Deste‑lhe alguma coisa?

‑           Sim, três moedinhas e um pontapé no traseiro. Ofereci‑lhe um marco se estivesse disposto a cortar madeira. E o que é que ele responde? "No dia do nascimento de Cristo eu não trabalho!" Aí, dei‑lhe um pontapé no traseiro. Isso é um aleluia muito especial...

Sofia ficou calada e voltou para a cozinha. "Terei de me desculpar pelo comportamento do Leo ao senhor Langenbach", pensou. Claro que vira quem batera à porta. Quase que tinha estado à espera dele. Mas não dissera nada, para não tornar o dia de Natal numa tragédia.

Mexeu um pouco a sopa, provou‑a com a ponta do dedo e adicionou mais alguma raspa de casca de limão. Enquanto isso, pensava, e o seu coração batia com tanta força que parecia subir até ao pescoço: "Ainda bem que Leo não sabe e nunca saberá quem me arranjou o lulu. E que eu dei uma chave a essa pessoa para trazer o cão para cá enquanto estávamos na missa. Deus queira que ele jamais fique a saber. ~."

 

No segundo dia de Natal o pastor Paulus Maltitz veio visitá‑los. Trazia uma versão de bolso de um livro de cânticos para Sofia.

Ela agradeceu com lágrimas nos olhos, quando o pastor disse:

‑ Isto é apenas um pequeno apoio para a sua memória, já que sabe todos os cânticos de cor.

Depois, Maltitz e Kochlowsky retiraram‑se para uma salinha, chamada o "quarto dos senhores" por nela haver uma secretária e uma estante com livros. Além disso, era aí que Kochlowsky fumava os seus charutos, para poupar as cortinas da sala.

O pastor Maltitz sentou‑se numa poltrona e esperou que Kochlowsky tivesse aberto a garrafa de vinho tinto e lhe tivesse oferecido um charuto. Só depois disse, sem levantar a voz:

‑ Se eu fosse igual a si atiraria o copo de vinho à sua cara e desfaria os charutos... Mas eu vivo segundo as palavras de Jesus: "Ama o teu próximo"...

‑ Isto começa bem! ‑ Kochlowsky sentou‑se em frente de Maltitz e acendeu um charuto. ‑ Está mesmo zangado. O que foi que lhe aconteceu?

‑           O senhor...

‑           Fiz algo de errado na igreja?

‑           O senhor está constantemente a cometer erros.

‑           Nem todos são perfeitos.

‑           O senhor afirmou em público que eu mantinha uma relação amorosa com a minha governanta Johanna Klaffeu ‑ disse Maltitz sem rodeios.

‑           Seria uma pena se assim não fosse, senhor pastor.

‑           Senhor Kochlowsky!

‑           A Johanna é uma rapariga bem feita e não tem ar de quem não repare na braguilha de um homem...

‑           Que revoltante, senhor Kochlowsky!

‑           O que é revoltante, é o senhor achar isso revoltante! ‑ Kochlowsky inclinou‑se sobre a mesa e cerrou os punhos. ‑ Essa maldita hipocrisia! Está em todo o lado! Tanto no trabalho como na igreja ‑ sempre só hipocrisia! O senhor é um homem como eu ‑ espero ‑ e se eu vivesse com essa Johanna K'affen não aguentaria um dia sem tocar nela! Vê‑se que ela o quer! O senhor seria um imbecil se não o aproveitasse.

‑ A minha profissão proíbe‑me de lhe responder.

‑ Então esqueça a sua profissão e seja um ser humano.

‑ Nesse caso, chamar‑lhe‑ia porco!

‑ Ah, assim já nos estamos a entender. ‑ Kochlowsky encostou‑se para trás, passou a mão pela sua longa barba e bebeu um gole de vinho tinto. ‑ Há pessoas que me ofendem só pela aparência e há outras que nem sequer me conseguem ofender. O senhor pastor faz parte do segundo tipo. Quem supostamente só fala com o Céu tem toda a liberdade do mundo. Tanto mais humano eu o considero quando está na cama com a bela Klaffen...

‑ Eu devia dar‑lhe um estalo! ‑ O pastor Maltitz ergueu‑se repentinamente. ‑ Tenho pena da sua mulher. Ela ainda terá que passar por muita coisa.

‑ E a Igreja há‑de consolá‑la... ‑ Kochlowsky também se ergueu e soprou o fumo do seu charuto para o tecto. ‑ Não preciso da sua compaixão, senhor pastor. O que é que o senhor quer de mim? Que eu aprenda a mentir como a maioria das pessoas que me rodeiam?

‑ Já alguma vez esteve no meu quarto de dormir para provar as suas malditas acusações?

‑ E o senhor, pode jurar o contrário perante o seu Jesus Cristo?

‑ Eu não tenho de me submeter a isto! ‑ exclamou Maltitz, irritado. ‑ Sobretudo não perante o senhor.

‑ Uma resposta tipicamente eclesiástica! - Kochlowsky voltou a pôr o seu charuto no cinzeiro de zinco. ‑ Como é que ficamos? Inimigos?

‑           Tristes, senhor Kochlowsky. Mesmo que Nosso Senhor perdoe tudo... estou triste, por estar tão amargurado interiormente. Até apetece chorar...

‑           Então chore! ‑ disse Kochlowsky com prazer. ‑ O que o senhor deita cá para fora a chorar não precisa de despejar a mijar...

Durante alguns instantes o pastor ficou estarrecido; depois virou‑se sem pronunciar uma palavra e saiu do "quarto dos senhores".

Na sala, Sofia estava sentada em frente à árvore de Natal. Tinha as mãos pousadas no colo. Não precisou de perguntar nada: a cara de Maltitz dizia tudo.

‑           Eu amo‑o na mesma ‑ disse ela baixinho. Era fácil adivinhar os pensamentos do pastor.

Maltitz ficou parado.

‑           Sofia, quando o sofrimento for grande de mais, pode sempre vir ter comigo. Deus deve gostar muito de si.

‑           Eu rezo todos os dias. ‑ Sofia juntou as mãos no colo como se quisesse rezar. ‑ Também rezo por ele. ‑ Fez um movimento de cabeça em direcção ao "quarto dos senhores". ‑ Sobretudo por ele.

‑           Esperemos que isso ajude ‑ disse Maltitz hesitante.

‑ A força de Deus não reside unicamente na sua bondade, mas também na sua paciência.

Kochlowsky só saiu do quarto depois de ter visto o pastor Maltitz partir. Tinha a cara vermelha; bebera três copos do vinho tinto e forte.

‑           Aquilo é um homem! ‑ exclamou. Sentiu o cheiro a repolho e a miudezas de ganso. ‑ Ofende‑me e eu não digo nada! Esse tipo podia vir a tornar‑se meu amigo...

 

à tarde, Kochlowsky visitou o contabilista Theodor Plumps.

Levou um grande bolo de passas que Sofia fizera segundo uma receita da Silésia e biscoitos de canela para cada uma das dez crianças. A senhora Plumps recebeu um casaco de lá de ovelha e o senhor Plumps uma caixa com vinte e cinco charutos.

A família Plumps já ouvira falar nesses charutos. Aliás,

todos os habitantes de Wurzen os comentavam, escandalizados.

É que Kochlowsky mudara de fornecedor de charutos seguindo o conselho do estribeiro do conde, o barão Von Uxdorf. Agora comprava‑os a Felix Berntitz, o pequeno comerciante que além de charutos vendia artigos de escritório, livros e revistas. Numa loja ao lado também tinha papel de parede, tintas e carpetes. Quem geria essa loja era o filho mais velho, mas o proprietário era o velho Berntitz.

Depois de ter observado a montra da loja de charutos durante alguns instantes, Kochlowsky decidiu entrar. Felix Berntitz, atrás do balcão, dissera uma rápida oração: "Senhor, fazei com que ele não entre!", mas o Senhor não parecia estar em Wurzen nesse dia. Kochlowsky entrou na loja.

‑           Quero uma caixa de charutos que se possam fumar - declarou, deitando um olhar fulminante a Berntitz. Mas o velho comerciante não era o tipo de homem que fugia ao perigo. Encolheu os ombros e devolveu o olhar com um ar espantado.

‑           O senhor é a primeira pessoa a querer fumar uma caixa. Infelizmente, não sei se a madeira sabe bem.

Kochlowsky franziu as sobrancelhas. A situação era clara, podia‑se estar à vontade. Força, camarada, entremos em combate.

‑           Até pode custar três tostões! ‑ disse Kochlowsky, com cuidado.

‑           A caixa?

‑           O charuto. ‑ Leo aparentava tranquilidade. O velho Berntitz não fazia ideia de como isso podia ser perigoso. Uma calma dessas normalmente acabava por se transformar num furacão.

Berntitz dirigiu‑se para uma das estantes, escolheu uma caixa com charutos a três tostões, abriu a tampa e colocou‑a no balcão em frente a Kochlowsky. Era hábito proceder‑se assim. O cliente podia apreciar a forma, a cor e o cheiro, antes de se decidir por um charuto.

Kochlowsky pegou na primeira caixa, levou‑a ao nariz, cheirou e voltou a pousá‑la no balcão com um ar enojado. O velho Berntitz olhou para ele, surpreso.

‑           O que é isto? ‑ perguntou Kochlowsky, falando um pouco mais alto. ‑ O senhor ousa oferecer‑me palha enrolada?

‑           Estes charutos são provenientes de uma das nossas melhores fábricas...

‑           Mesmo assim, cheira a palha! ‑ Kochlowsky tentou a caixa seguinte e quase a deixou cair. ‑ Hen! ‑ exclamou.

‑           O que foi que aconteceu agora? ‑ admirou‑se Bemtitz.

‑ Este charuto foi tratado com esterco?

‑           É do melhor fabrico manual ‑ retorquiu Berntitz, indignado.

‑           Então é por isso que cheira tão mal! Os operários deviam aprender a lavar as mãos. Cheiram a urina!

Antes de Berntitz ‑ que entretanto tremia de raiva - ter arrumado as caixas, Kochlowsky já retirara uma terceira. Fez uma careta quando cheirou os charutos que continha.

‑           Cheiram a peido! ‑ exclamou. ‑ O seu armazém fica na casa de banho? Mas, também, isso seria de admirar? Afinal, estamos em Wurzen, onde os cavalos peidam!

Esta cena rapidamente se espalharia pela cidade, ofendendo profundamente a população de Wurzen. O velho Berntitz arrancou a caixa de charutos da mão de Kochlowsky, tremendo de fúria.

‑           Rua! ‑ ordenou. ‑ Rua, seu... seu...

Não continuou a frase por não encontrar uma palavra apropriada.

‑           Levo uma caixa a cinco tostões ‑ anunciou Kochlowsky, pouco impressionado. ‑ Daqueles lá em cima. Aqueles eu conheço. Também os fumo!

‑           Não lhe vendo nada ‑ retrucou Berntitz. ‑ Saia da minha loja! Já!

Kochlowsky acenou afirmativamente, pôs o dinheiro certo no balcão, tirou uma caixa e saiu da loja. O velho seguiu‑o com o olhar, petrificado. Em sessenta anos nunca lhe acontecera coisa parecida. Meteu o dinheiro na gaveta, contornou o balcão, fechou a loja e sentou‑se no seu sofá, num quarto nas traseiras da loja.

"O que é que eu faço se ele voltar?", pensou, transtornado. "Só há uma solução: pedir ajuda! Como é que se pode deixar um homem daqueles andar à solta?"

 

E agora essa caixa de charutos fora parar às mãos do contabilista Theodor Plumps.

Quando Berta Plumps abriu a porta e viu Kochlowsky com um cesto cheio de presentes debaixo do braço, corou e começou a tremer de emoção.

‑ Não é possível! ‑ balbuciou, sem saber o que dizer. ‑ Não é possível! O senhor vem visitar‑nos. O senhor

Kochlowsky em pessoa! Entre... Meu Deus, o meu avental está todo sujo. Não repare nisso... Por favor, não repare.

Os dez filhos estavam sentados na sala, hirtos como numa parada, fitando Kochlowsky a medo. Só a mais nova se aproximou dele e perguntou desembaraçada:

‑           Tio Leo! Trouxeste alguma coisa para mim?

‑           Trouxe presentes para todos! ‑ disse Kochlowsky, pousando o cesto na mesa e começando a esvaziá‑lo. Sem reparar em Berta Plumps, que começara a chorar, distribuiu os presentes, pôs o casaco de lá à volta dos ombros dela e pegou na caixa de charutos. ‑ Onde está o seu marido?

‑ No quarto ao lado. Ainda está de cama. Só pôde vir para casa por ser Natal.

Theodor Plumps encontrava‑se deitado na cama, apoiado num monte de travesseiros, quando Leo entrou no quarto. Quando viu Kochlowsky ficou surpreendido como a sua mulher. Começou logo a fungar de emoção. Tinha ainda uma grossa ligadura no peito, mas de resto sentia‑se bem.

‑           Cá está o senhor Constipado ‑ disse Kochlowsky, alto. ‑ Feliz Natal, senhor Constipado!

Plumps sorriu levemente e juntou as mãos.

‑           Agora pode chamar‑me o que quiser, senhor Kochlowsky ‑ disse num tom quase solene. ‑ Não só me salvou a vida, como também devolveu o pai a dez crianças e o marido a uma mulher. Sou‑lhe eternamente grato. Pode chamar‑me o que quiser...

‑           Não é bem assim, meu caro Plumps! ‑ Kochlowsky sentou‑se na beira da cama e pousou a famosa caixa de charutos no edredão. ‑ O senhor não me interessa. O que me irritou foi a molenguice dos outros. Foi só por isso que o salvei!

‑           Eu sei. ‑ Plumps sorriu. "Ele não consegue confessar que tem um coração", pensou. "Mas já que é assim que quer as coisas, então entremos na jogada. Façamos‑lhe o favor de o fazer sentir‑se odiado por todos. Nós, os Plumps, conhecemos agora a sua outra faceta. E que ninguém ouse dizer uma palavra contra Leo Kochlowsky na minha presença!". ‑ O senhor não gosta de mim.

‑           Pois não.

‑           Obrigado pelos charutos.

‑ Isso foi só por ser Natal... ‑ Kochlowsky olhou para a porta, onde estava Berta Plumps. Tinha vestido o novo casaco. Ficava‑lhe bem e via‑se que se sentia orgulhosa.

‑ Isso também foi só por ser Natal... ‑ disse Plumps com uma voz insegura.

‑           Claro, por que mais haveria de oferecer um casaco à sua mulher? ‑ Kochlowsky sentiu um certo desconforto. Não gostava de receber tantos agradecimentos. Se, pelo contrário, Plumps tivesse atirado a caixa de charutos contra a parede, ao menos teriam um tema de conversa. Mas como nada disso aconteceu, mantiveram‑se calados. ‑ Quando é que volta a trabalhar?

‑           De certeza que no ano novo já poderei começar. Logo no dia dois de Janeiro...

‑           Descanse o tempo que quiser, senhor Constipado. - Kochlowsky ergueu‑se da borda da cama. E quando disse: ‑        Não importa se continuar mais tempo em casa, afinal, na fábrica ninguém sente a sua falta... ‑ já se começou a sentir muito melhor.

‑ Se o senhor acha que assim é, senhor Kochlowsky - Plumps voltou a fungar alto. ‑ Mas eu tenho de alimentar dez crianças.

‑ Agora já é tarde para pensar nisso. Devia ter feito um nó quando ainda era tempo...

Lá estava ele outra vez, o odiável Kochlowsky! Plumps fez um sorriso cúmplice e Kochlowsky saiu do quarto. Na sala, as dez crianças estavam sentadas à mesa com um ar feliz enquanto comiam os chocolates e as bolachas feitas por Sofia. Era uma imagem tão comovente que Kochlowsky se foi embora apressadamente e sem se despedir.

No caminho de regresso passou pela igreja. Na verdade, a igreja ficava um pouco afastada do seu caminho, mas Kochlowsky fez um pequeno desvio. Quando parou em frente à casa paroquial, Johanna K'affen entrou em pânico.

‑           Paulus! Ele parou em frente à nossa casa! Eu não o deixo entrar! Não! Eu não abro a porta!

O pastor Maltitz foi até à janela e viu Kochlowsky descer do coche e dirigir‑se para a porta de casa.

‑           Quem vem visitar o pastor a esta hora, está com um grande peso na consciência, Hanna! A minha função é ouvi-lo. Abre‑lhe a porta.

‑ Não! Vou trancar‑me no meu quarto!

Johanna fugiu a correr e bateu com a porta do seu quarto. Maltitz foi até ao vestíbulo e abriu a porta. Kochlowsky tirou o gorro de pele num gesto respeitoso.

‑ Posso entrar ou levo um pontapé?

‑           O senhor é algum cão vadio? E até a esse eu daria um pedaço de pão. Entre, Leo... Está perdido?

‑ Vi logo que íamos desentender‑nos. ‑ Kochlowsky tirou alguns flocos de neve do seu sobretudo e entrou. A casa estava bem aquecida. Kochlowsky desabotoou o sobretudo, mas não o despiu. ‑ Não, obrigado ‑ respondeu quando Maltitz lho quis tirar. ‑ Não aguento estar muito tempo num ar empestado pela oração. Só tenho um pedido a fazer‑lhe...

‑           O senhor sabe pedir? ‑ perguntou Maltitz, malicioso.

‑           Sim: quero que o senhor minta.

‑ Que eu o quê?

‑ Venho de casa do Theodor Plumps. Sabe que o ordenado de contabilista que ele recebe mal chega para alimentar os dez filhos e a mulher?

‑ Eles vivem mal ‑ confirmou Maltitz. "E Plumps não é o único", pensou, amargurado. "Há muitos trabalhadores que não ganham o suficiente. As crianças mais velhas têm de ir trabalhar nas fábricas, de manhã à noite, como se fossem adultos." Depois de 1871, o império alemão transformou‑se numa nação industrial, mas os salários não acompanharam esse desenvolvimento. O trabalho infantil tornou‑se um grande problema. Não para os proprietários das fábricas, que deste modo obtêm mão‑de‑obra barata, mas para os médicos, os psicólogos, os sociólogos e os defensores dos direitos humanos, que, todos eles, lançam alertas. Chamam a este fenómeno de exploração a escravatura moderna, um crime contra a criança, e têm razão. As famílias dos trabalhadores morrem de tuberculose e os ricos de obesidade; uns subsistem em casas escuras e apertadas, sem luz do Sol, enquanto os outros constroem palácios e vão para as termas de Bad Pyrmont, San Remo ou Marienbad. O caso de Plumps não é diferente: no próximo ano o filho mais velho completará catorze anos e seguramente começará a trabalhar como ajudante na fábrica de tijolos. E no ano seguinte será a vez do próximo filho... Todas as mãos são valiosas na luta pela sobrevivência. E o trabalhador que ousar abrir a boca é posto no olho da rua. Ninguém o protege! Quem perde o trabalho por ter exigido justiça fica marcado. Ficará desempregado. Qual é o empresário que emprega um trabalhador rebelde? É assim que as coisas funcionam no ano de 1889.

‑ Mas Deus deu a Plumps uma mulher que sabe fazer contas ‑ disse o pastor Maltitz, deprimido. Sabia que era fraca consolação.

Kochlowsky retorquiu logo com prazer:

‑ Só falta aconselhar‑lhes a rezarem para ficarem de barriga cheia. Em vez de uma fatia de pão, a terceira estrofe do hino número duzentos e setenta e quatro...

‑ Perfeito! ‑ O pastor voltou a sorrir. ‑ Acertou em cheio, Leo! O hino só tem duas estrofes, mas o texto é o

seguinte: "Louvamos a Deus por tudo o que nos deu e rogamos‑lhe que mais nos conceda; que as suas palavras nos alimentem, para não termos mais fome..." e assim por diante!

‑ Isto é horrível! Em qualquer situação a Igreja tem sempre uma frase à mão! ‑ Kochlowsky meteu a mão no bolso, voltou a tirá‑la de punho cerrado, abriu‑a e despejou algum dinheiro na mesa. Maltitz olhou para as moedas, sem compreender. ‑ São vinte e cinco marcos ‑ disse Kochlowsky.

‑ Isso vejo eu. É algum donativo especial para a igreja?

‑ Pode chamar‑me o que quiser, mas não me chame parvo! ‑ Kochlowsky apontou para o dinheiro. ‑ Isto será o fundamento da sua mentira. A partir de agora, trar‑lhe‑ei vinte e cinco marcos por mês e o senhor dará o dinheiro à família Plumps, com instruções para o gastarem em comida e em mais nada. De onde o dinheiro vem... isso o senhor não sabe. Simplesmente dirá que o encontra todos os meses num envelope na sua caixa de correio. É esta a mentira que eu lhe peço. Uma mentira religiosa e cristã na luta contra a fome e a miséria.

‑ E por que motivo ninguém deve saber que o senhor é o benfeitor? ‑ perguntou Maltitz. A emoção apoderara‑se dele e sentiu‑se tentado a abraçar Kochlowsky. Por outro lado, sabia que essa era a pior coisa que poderia fazer nesse momento.

‑ Benfeitor! Não diga essa palavra, que eu fico mal disposto! Se souber que o senhor deixou escapar a mais pequena insinuação, paro de pagar. E ponto final. ‑ Kochlowsky voltou a abotoar o sobretudo e dirigiu‑se para a entrada. Johanna K'affen observava‑os do fundo do corredor. Claro que Kochlowsky reparou logo nela e assim, quando chegou à porta de entrada, disse em voz alta: ‑ E isso também é válido para a senhora tagarela, senhor pastor. Uma tagarela é uma tagarela, mesmo que seja untada de mel!

Satisfeito, saiu da casa do pastor, subiu para o coche e partiu. Johanna K'affen abandonou imediatamente o seu esconderijo e cerrou os punhos.

‑           Ouviste isso, Paulus? ‑ gritou com uma voz aguda. ‑  Não podes negar: ele é um demónio!

‑           Ao qual hoje nasceram umas asinhas... são os milagres do quotidiano em que ninguém repara. ‑ O pastor Maltitz voltou para o seu escritório, pegou no dinheiro e guardou‑o numa gaveta, que fechou à chave. No dia seguinte entregá‑lo‑ia à família Plumps, que merecia um bom ano novo!

"Quem é que consegue compreender Leo Kochlowsky?" pensou, sentando‑se na sua poltrona de couro, onde costumava elaborar os sermões. "Como pode uma pessoa ser tão ambígua?" Nunca tinha conhecido ninguém assim.

 

No dia a seguir ao Natal, Kochlowsky encontrou o guarda‑florestal Rechmann.

Cruzaram‑se na estrada. Rechmann dirigia‑se para a cidade e Kochlowsky vinha de Wurzen, a caminho da fábrica de tijolos. Pararam, coche ao lado de coche, e cumprimentaram‑se educadamente. Ferdinand Rechmann, um homem de boa aparência, tinha porém uma cara crispada, como se sofresse continuamente de fortes dores de barriga. "E é verdade", diziam as pessoas de Wurzen. "A mulher dele, Blandine, a ruiva, essa francesinha, é que lhe causa as dores de barriga. Mas, realmente, como é possível um alemão respeitável casar com uma francesa depois de 1871! Agora, Rechmann que não se queixe! Não são os seus veados que têm os cornos, mas sim ele próprio! Devia‑se proibir essa francesa de passear por Wurzen, abanando o rabo para provocar os homens!"

‑           Embora atrasado, desejo‑lhe um Bom Natal! ‑ disse Rechmann num tom simpático.

‑           Obrigado, igualmente! ‑ murmurou Kochlowsky. "O que será que ele quer?", pensava ao mesmo tempo. "Será que a bruxa da ruiva lhe falou de mim? Mas o que quer que ela tenha dito, Rechmann, é tudo mentira! Eu só precisava de erguer o polegar e a saia dela tinha‑se levantado!"

‑           O que achou do meu ganso? ‑ perguntou Rechmann, despreocupadamente.

Kochlowsky franziu as suas espessas sobrancelhas. "Ah, afinal sim!" Pegou no chicote, lembrando‑se de Pless, onde as discussões eram normalmente resolvidas a chicote, sobretudo quando se tratava de polacos. Kochlowsky ficara famoso por não admitir outra opinião que não a sua, a não ser que se quisesse chegar a casa com a marca de uma vergastada.

‑           O que quer dizer com isso?

‑           O ganso não estava amargo?

‑           Porquê?

‑           Porque se esqueceu de pagá‑lo.

Não havia nada que mais ofendesse Kochlowsky do que uma advertência por não ter pago uma dívida. O seu rigor nesses assuntos tinha fama em Pless, e já também em Wurzen, e não havia uma única pessoa a quem Kochlowsky devesse um centavo. E agora tinha de ser exactamente o guarda‑florestal Rechmann a chamar‑lhe a atenção, em plena estrada, como se tivesse surpreendido um salteador, lembrando‑lhe num tom cínico que não pagara o ganso.

Kochlowsky respirou fundo. Rechmann, que ainda não o conhecia muito bem, esperou, em vez de fugir o mais rapidamente possível. Em Pless qualquer pessoa teria fugido numa situação destas.

‑           Quer dinheiro? ‑ berrou Kochlowsky com uma voz terrível perante a qual Rechmann quase se agachou.

‑           Dinheiro para pagar esse pássaro duro? Essa múmia de ganso?

‑ Era o melhor animal de toda a minha capoeira - retorquiu Rechmann, corajoso. Sabia muito bem o que se contava sobre Kochlowsky e até dissera a Blandine: "Comigo não fará esse tipo de coisas!" Ela sorrira com compaixão. E agora chegara a hora de mostrar a esse Kochlowsky que o guarda‑florestal Rechmann estava à sua altura. ‑ Nós próprios queríamos comê‑lo no Natal!

‑ E bem que o teriam merecido! Mas como os seus dentes já estão quase todos a cair...

‑ Senhor Kochlowsky! ‑ Rechmann insuflou‑se no seu grosso sobretudo. "Agora não posso recuar nem um milímetro", pensou. "Ele se quiser pode ser malcriado com as outras pessoas, mas comigo não!" Estendeu a mão. ‑ O ganso custa...

Mas mal estendera a mão, já a tinha retirado. Kochlowsky cuspira‑lhe imediatamente para a palma da mão. Rechmann ficou tão indignado que durante alguns instantes não soube o que dizer.

‑ Quem é que quer dinheiro? ‑ berrou Kochlowsky, e os seus olhos faiscavam. ‑ Eu é que devia receber dinheiro! Comer aquele ganso foi um atentado à minha integridade física. O senhor tem que me pagar uma indemnização! Na noite de Natal não pude cortar normalmente o ganso, tive que mandar destroçá‑lo! Com martelo e picareta!

Foi aí que Rechmann deu uma resposta imperdoável.

‑ Então aconselho‑o a mandar a sua mulher para um curso de culinária...

Nesse preciso instante, Kochlowsky aprontou‑se para utilizar o chicote. Como podia um marido frouxo e cornudo aconselhar à sua mulher, Sofia Kochlowsky, cozinheira dos príncipes Schaumburg‑Lippe e Pless, um curso de culinária! Este homenzinho tinha a coragem de ofender Sofia, a sua querida mulher!

‑ Seu imbecil! ‑ trovejou Kochlowsky. ‑ Em vez de estar aqui a dar‑me conselhos estúpidos, devia pensar um pouco mais nos desejos da sua mulher...

Deu uma forte chicotada no cavalo de Rechmann, que com um salto puxou bruscamente o coche. Rechmann teve dificuldade em agarrar‑se e manter o equilíbrio, tentando ao mesmo tempo acalmar o animal.

"Blandine", pensou entontecido. "O que foi que aconteceu? O que tem Kochlowsky a ver com Blandine? Eles estavam sozinhos em casa quando Kochlowsky simplesmente levou o ganso."

Blandine...

Kochlowsky...

Parou o cavalo, olhou para o vazio e sentiu uma dor no coração. "Se isso for verdade", pensou, cheio de amargura, "tornarei verdadeiras as minhas ameaças: matarei o amante de Blandine! Matarei Kochlowsky!"

"As pessoas de Wurzen compreender‑me‑ão."

 

Como já era tradição, uma semana depois da passagem de ano o conde Douglas deu uma festa no palácio Amalienburg, para a qual convidou toda a nobreza e os grandes senhores das redondezas.

Era uma festa grandiosa e muito importante. Receber um convite para essa festa era considerado uma grande honra e só se faltava em casos excepcionais. O conde Douglas, embora fosse um homem muito rico, era conhecido por ser pouco gastador. Este ano, porém, decidira ser extremamente pródigo. Mandara vir uma orquestra de Leipzig, assim como quatro cantores de ópera. Dois actores do teatro da corte de Dresden declamariam poemas e baladas e durante o jantar uma orquestra de câmara trajada ao estilo do século anterior tocaria peças de Mozart, Hãndel e Scarlatti.

Era um acontecimento pouco vulgar, sobretudo na pequena cidade de Wurzen. Leo Kochlowsky também fora convidado, embora o mordomo do conde tivesse mostrado uma certa renitência, lembrando educadamente que poderiam ocorrer episódios desagradáveis. Emil Luther, o primeiro camareiro, também tinha as suas dúvidas em relação a esse convite. Só de imaginar que teria de servir Kochlowsky sentia‑se mal disposto. O conde Douglas, porém, insistiu em que Kochlowsky fosse convidado. Se todos os outros homens importantes das fábricas Douglas iriam estar presentes, seria quase uma ofensa não o convidar. Afinal, a fábrica de tijolos era uma das fábricas que melhor estava a funcionar. Leopold Langenbach sempre fizera um excelente trabalho, mas desde que Kochlowsky tomara a chefia da fábrica ‑ e realmente era uma chefia ‑ e Langenbach se ocupava mais com as vendas, a produção subira catorze por cento. Havia uma frase de Kochlowsky que rapidamente se espalhara pela fábrica: "quem permanece mais de sete minutos na casa de banho tem um problema com os intestinos e deve ficar em casa!" Agora já não era possível desaparecer na casa de banho e fumar um cigarrilha, como até aí fora hábito. Ninguém sabia muito bem por que razão Kochlowsky fixara o limite de sete minutos. Um dos trabalhadores decidiu medir o tempo e quando saiu da casa de banho aparentava um ar contente. Afinal, em sete minutos era possível fazer‑se muita coisa, e até dava para fumar rapidamente uma cigarrilha. Pensando bem, sete minutos podiam ser considerados um intervalo generoso... Por isso não houve grandes protestos. E a produção aumentou bastante.

Assim, Kochlowsky recebeu o seu convite. Experimentou o seu paletó e constatou que este ainda lhe ficava tão bem como em Pless.

‑           Esse Moshe Abramski de Radom era mesmo um bom alfaiate ‑ comentou, observando‑se ao espelho com ar satisfeito e um pouco presunçoso. ‑ Alfaiates desses fazem falta aqui! Um alfaiate judaico‑polaco. Ah, como nós éramos elegantes em Pless, a comparar com estes campónios de Wurzen! Este paletó assenta‑me perfeitamente!

‑ Não seria melhor usares um fraque para uma ocasião destas, Leo? ‑ perguntou Sofia.

‑ Se o paletó era suficientemente bom para o príncipe, então também servirá para o conde. E tu, o que é que vais vestir, querida?

‑ Eu fico aqui.

Kochlowsky olhou‑a pelo espelho, perplexo.

‑ Mas isso é impossível! Foste expressamente convidada!

‑ Inventa uma desculpa qualquer. Diz que estou com dores de cabeça, gripe ou febre... Eu fico com a Vanda. O que é que eu tenho a ver com o palácio? Já conheci esse tipo de festas em Búckeburg e Pless. Por favor, Leo, deixa‑me ficar em casa.

‑ Tens medo daquela gente fina?

Isso, Sofia não queria confessar, portanto abanou a cabeça numa negativa. Lembrou‑se da festa da colheita em Pless. Alguns dias antes haviam contado ao gerente, Leo Kochlowsky, que na altura andava a namorá‑la, que o jovem tenente Eberhard Von Seynck dançara com ela numa nova dança popular americana, o Hilijebjilie, no fim da qual se soltava um grito estridente e dava‑se um beijo. Essa dança não largara a cabeça de Kochlowsky, que a meio da festa se precipitou, bêbado, para a mesa de Sofia, arrastando‑a para a pista de dança. Dançara o Hilijebilije com ela, como um urso, e no fim beijara‑a.

‑ Beijar também eu sei, mesmo sem ser nobre ou tenente! ‑ berrara e Sofia corara de vergonha quando todos bateram palmas entusiasmados.

Quem é que lhe garantia que Kochlowsky não faria um escândalo parecido na festa do conde Douglas? Não, definitivamente, preferia ficar em casa, com Vanda.

Depois de durante um quarto de hora ter tentado convencer Sofia a acompanhá‑lo, Kochlowsky desistiu. Ela era pequena e frágil, mas tinha uma vontade férrea, como ele bem sabia. Não valia a pena tentar fazê‑la mudar de opinião.

Na noite da festa, Kochlowsky examinou‑se ao espelho e sentiu‑se como se ainda estivesse em Pless. Desde o risco perfeito no cabelo preto até às pontas brilhantes das suas botas de verniz, era uma figura cheia de elegância masculina. Antigamente não havia mulher, tanto burguesa como nobre, que não reparasse nele. Qualquer que fosse a mulher atingida pelo olhar de Leo Kochlowsky, sentia o coração a saltar. Ninguém compreendia como é que justamente a pequena cozinheira Sofia Rinne conseguira conquistar Kochlowsky para sempre.

‑ Seu vaidoso, estás muito bem assim! ‑ disse Sofia, batendo com o seu pequeno punho nas costas dele. ‑ É melhor ires andando!

‑ Devias vir comigo, querida... ‑ Kochlowsky envergou um sobretudo grosso e pôs a sua cartola impecavelmente limpa. ‑ A festa será aborrecida sem ti...

‑ De certeza que não, Leo.

Acompanhou‑o até à porta. Lá fora esperava‑o um coche com um cocheiro da fábrica de tijolos. Kochlowsky participava no baile na sua posição de gerente.

No grande vestíbulo do palácio Amalienburg o camareiro Martin Luther pegou no sobretudo e no chapéu de Kochlowsky com uma cara impassível. Ouviam‑se vozes e musica vindos do salão de festas.

‑           Ah! O nosso querido Luther! ‑ exclamou Kochlowsky. ‑ O cara de cavalo! Se o verdadeiro Lutero o visse, voltava a ser monge!

O criado corou de raiva e Kochlowsky deu‑lhe umas moedas, o que este encarou como uma grande ofensa. Por isso virou a mão e abriu‑a, deixando cair o dinheiro no chão. Kochlowsky, satisfeito, dirigiu‑se para a entrada do salão, onde o mordomo o deveria anunciar ao conde.

O conde, no entanto, dispensou‑o dessa tarefa, aproximando‑se ele próprio de Kochlowsky e dando‑lhe as duas mãos.

‑           Onde está a sua maravilhosa mulher? ‑ perguntou logo.

‑           Na cama, senhor conde. Tem uma constipação e está com febre. Com este tempo...

‑           Chamou um médico? Quer que o meu médico vá vê‑la?

‑ O médico já esteve em nossa casa ‑ mentiu Kochlowsky. ‑ Aconselhou‑a a ficar na cama e transpirar.

Depois, Kochlowsky desapareceu na multidão dos convidados e depressa se lhe deparou a mulher que todos admiravam. Trazia um vestido verde com um enorme decote, muito justo, que tapava tudo mas ao mesmo tempo deixava adivinhar as curvas do corpo. Tinha uma enorme cabeleira ruiva e um rosto de uma beleza estonteante.

Era Blandine Rechmann.

Estacando bruscamente, ficou parada em frente a Leo Kochlowsky, fitando‑o com os seus olhos verdes desafiadores. As pessoas à volta, curiosas, tentavam observar discretamente a cena que se desenrolava entre os dois. Formavam um casal de uma beleza invulgar. A beldade de França e o brigão vindo do longinquo Pless.

‑ Então sempre é verdade que o senhor está aqui... - sussurrou ela com um sorriso. ‑ Foi por isso que o meu marido não quis vir! Quer substitui‑lo? Uma mulher sozinha é tão indefesa na sociedade...

Sem aguardar uma resposta deu simplesmente o braço a Kochlowsky. Um surdo suspiro correu a multidão. Então era mesmo verdade!

Era quase inevitável, quase uma fatalidade: tinham que encontrar‑se. Wurzen desfrutava assim do seu próprio pequeno espectáculo.

‑           O que vamos tomar? ‑ perguntou Kochlowsky, um pouco constrangido pela emoção.

‑           Champanhe, naturalmente! ‑ O riso de Blandine rasgou a música, como se fosse um estranho instrumento. ‑           Gosta de champanhe, Leo?

‑           Até um certo ponto, sim, depois fico selvagem!

Blandine riu‑se de novo, com uma voz sonante, que cobria várias oitavas. O seu corpo atraente aproximou‑se e ela agarrou‑se com uma força ainda maior ao braço de Kochlowsky.

‑           Isso quero eu ver! ‑ sussurrou ao seu ouvido. ‑ Imagino que seja uma força da Natureza...

 

Durante toda a noite foi impossível para Kochlowsky livrar‑se das garras de Blandine Rechmann. Durante a primeira hora os outros convidados ainda os observavam, e sobretudo as senhoras juntavam‑se e tagarelavam, enquanto os homens olhavam cheios de inveja para Kochlowsky.

Mais tarde, porém, sobretudo depois do bailado e da ária cantada pelo solista da Real ópera da Corte de Dresden, os convidados já se haviam habituado ao comportamento provocador de Blandine: agarrava‑se ao pescoço de Kochlowsky, lançando a cabeça para trás, sacudia a sua cabeleira ruiva e realçava o peito. As mulheres ‑ sobretudo as menos bonitas ‑ classificavam‑na de repugnante e ordinária. "Pobre Ferdinand Rechmann", sussurrava‑se. "Mas talvez até mereça isto: quem é que o mandou casar com uma francesa? Não havia suficientes mulheres alemãs bonitas e fiéis? Esperava‑se um certo patriotismo de um guarda‑florestal, sobretudo depois de 1871". No caso Kochlowsky, porém, ninguém ficou surpreendido, esse era capaz de tudo. Em Wurzen já lhe chamavam "o polaco", e o que se podia esperar de um homem desses? Apenas a sua mulher Sofia metia pena ‑ ou talvez não? Por que seria que casara com um homem tão horrível como Kochlowsky? Qualquer pessoa que o conhecesse havia dez minutos compreendia logo o tipo de pessoa que era. Será que ela ainda não percebera isso? Seria assim tão ingénua? Afinal, era ainda quase uma criança. Mal havia completado os dezoito anos! Esse animal do Kochlowsky devia tê‑la simplesmente apanhado de surpresa!

Depois das árias, Blandine e Leo sentaram‑se num canto do salão de festas, numa pequena mesa redonda, e beberam champanhe. A orquestra de Leipzig tocava melodias das óperas de Verdi.

‑           Quando é que o senhor fica selvagem? ‑ perguntou Blandine, debruçando‑se sobre Kochlowsky. O que se conseguia ver no decote dela era arrebatador. Tinha um peito perfeito, com uma pele branca como só as ruivas têm. Nem era preciso pó‑de‑arroz para torná‑la mais branca. ‑ Leo, não tente escapar! Afinal, prometeu‑mo.

‑           Prometi o quê? ‑ O brilho nos seus olhos começava a irritar Kochlowsky.

‑ Disse que depois de algumas taças de champanhe explodiria! Entretanto já bebeu sete e continua aí sentado como um rapazinho da escola! Quando é que vem a explosão?

‑           Se eu estivesse no seu lugar, não a desejava, Blandine...

‑ Mas eu desejo‑a ardentemente, Leo! Até que enfim acontecerá alguma coisa! Não acha tudo isto sufocante? Até parece que aqui toda a gente usa cuecas de lã, tanto os homens como as mulheres. ‑ Voltou a rir‑se com a sua voz sonora. ‑ Eu uso roupa interior de seda, quase transparente e com rendinhas.

‑ Para quem é que a usa?

‑ Boa pergunta, Leo! Sim, para quem? O meu marido nem repara nessas coisas.. no entanto, quando descobre um carneiro doente no seu rebanho, fica irrequieto. Quando um carvalho centenário adoece, quase que chora. Ou então no Natal! Não imagina o escândalo que fez por causa do ganso que o senhor levou! Foi como se a casa tivesse ardido! Porém, quando me apresento em camisa de noite olha para mim como se eu fosse um tronco de árvore ao qual se tem que dar um número. Ai, Leo, é uma vida tão triste! Mas, respondendo à sua pergunta: em princípio eu só uso esta roupa interior para mim. às vezes sento‑me em frente ao espelho, olho para o meu corpo, admiro‑o e apaixono‑me por mim mesma. Nesses instantes sinto falta de um homem como o senhor, Leo! Far‑me‑ia explodir... Mas em vez disso, o que vejo? Só o meu próprio reflexo!

A maneira aberta de Blandine dizer as coisas, sem nenhuma vergonha, chocou Kochlowsky, mas ao mesmo tempo entusiasmou‑o. Imaginou as ancas e as coxas de Blandine na roupa interior fina e transparente e bebeu mais um gole de champanhe. "Rechmann é realmente estúpido", pensou. "Traz uma mulher de sonhos como esta de França e depois prende‑a num couto! Que idiota! É inacreditável como Blandine suportou esta situação até hoje."

‑ Como é que acha que se poderia alterar isso? ‑ perguntou Kochlowsky. Era uma pergunta um pouco ridícula.

Blandine fitou‑o como se ele lhe tivesse cuspido na cara. Essa pergunta não tinha nada a ver com o Kochlowsky que imaginara. Só um estúpido faria essa pergunta!

‑ Ainda me pergunta isso? ‑ murmurou, inclinando‑se sobre a mesa. O decote abriu‑se. Kochlowsky quase Conseguiu ver a totalidade do seu peito. O perfume dela envolveu‑o como uma nuvem. ‑ Desejava ardentemente que o senhor fosse meu amante...

A franqueza de Blandine foi como um ferrão para Kochlowsky. O seu olhar provocante ardia‑lhe na pele. "Meu Deus", pensou, "a que é que isto vai levar? Será que afinal a vida aqui vai ser igual à de Pless? Por que é que as mulheres não me deixam em paz...?"

‑ Eu sou casado ‑ lembrou, com um ar imbecil. ‑ Casado e feliz.

‑ E então?

‑           Tenho uma filha e amo a minha mulher e a minha filha.

‑ Também não é suposto casar comigo, Leo. - Blandine encostou‑se para trás e começou a brincar com os seus caracóis ruivos. ‑ Quando na sua fábrica uma caldeira está quase a explodir, o que é que faz? Tira‑lhe a pressão! Eu estou como uma dessas caldeiras, mas ninguém se preocupa comigo!

‑ Então está à procura de um fogueiro que trate da sua pressão?

‑ Leo, o que eu quis dizer...

‑ Quando eu amo uma mulher apaixonadamente, então amo‑a mesmo!

‑ Foi isso que eu quis dizer! É isso que eu procuro... - Voltou a mostrar aquele sorriso sedutor. ‑ Eu quero perder a consciência envolvida pela sua paixão, Leo!

‑           Isso seria um duplo adultério...

‑ Adultério! O que disse Napoleão, que era conhecido por ser tão prudente? "O adultério não é um fenómeno raro. Está sempre a acontecer. É uma questão de sofá."

‑ Eu respondo‑lhe citando Goethe: "agradas à primeira vista, feres à segunda."

‑ Bravo, Leo! ‑ Blandine riu‑se alto e bateu palmas. ‑  Dome essa fera! Afinal o senhor é um homem corajoso! Ela render‑se‑á quando o senhor a domar!

"Realmente, eu mudei muito", disse Kochlowsky para consigo, admirado. Antigamente, em Pless, nem sequer seria necessária esta conversa para satisfazer os desejos de Blandine. Tudo teria corrido com a maior das naturalidades, sem nenhum palavreado. As pessoas até teriam ficado admiradas por uma bruxa ruiva como esta ter vivido durante oito meses perto de Kochlowsky sem ser importunada. Agora, tudo havia mudado: ela oferecia‑se e ele falava tentando escapar‑lhe. Escondia‑se atrás de Sofia e, tal como se estende a cruz a Satanás para o afugentar, assim ele estendia o seu amor por Sofia a Blandine. Mas esta continuava a sorrir. Era mais insistente do que o Diabo!

‑ Como foi que a senhora veio parar a Wurzen? - perguntou Kochlowsky para fugir ao tema.

‑ Como vim aqui parar? Se lhe contar isso, Leo, terá motivo de riso. Foi o poder do uniforme. Ferdinand fazia parte de uma delegação que estava de visita a uma grande empresa florestal perto do rio Loire. Nessa época eu era a amante de um proprietário de vinhas, um homem gordo que suava imenso e parecia uma medusa, mas que tinha muito dinheiro! Foi aí que vi Rechmann, trajando o seu lindo uniforme verde e o chapéu com uma enorme pena branca... Garanto‑lhe que ele parecia muito melhor do que realmente é. Os uniformes têm esse efeito: fazem de um simples homenzinho um herói! Imagine um respeitável general todo nu, com umas pernas magrinhas e a barriga descaída: uma mulher que assista a uma cena dessas teria de ter óptimos nervos ou então uma necessidade imperiosa de garantir o futuro. Fiquei deslumbrada com o uniforme verde, embora Rechmann até fizesse uma boa figura sem o uniforme. Na cama não era mau de todo, só que antigamente eu não sabia que o caso dele é como na artilharia: depois de a munição ter sido disparada, nem o melhor canhão ajuda! E Rechmann tinha um arsenal fraquinho. Leo, por que é que está a olhar assim para mim?

‑ Admiro a sua franqueza, Blandine. Nunca ouvi uma mulher bonita falar dessa maneira.

‑ Esse é um dos erros que as mulheres cometeram desde sempre. Não chamam as coisas pelo nome. Quem o faz vive muito melhor. Não há nada pior do que a hipocrisia. Olhe só para as mulheres que se encontram nesta sala: comportam‑se como se o senhor cheirasse mal. No entanto, todas gostariam de ir para a cama consigo! Odeiam‑me por eu estar aqui sentada, a rir, a beber champanhe e a mostrar o meu corpo; adorariam fazer tudo isso, mas não são capazes. às vezes penso: como serão elas em casa, com os maridos? Será que também são assim tão hipócritas, tão mentirosas, sempre a fingirem‑se inocentes? Serão daquelas que pensam: "apaguem a luz, vem aí o meu marido!" Como é consigo, Leo?

‑ Está mesmo à espera que eu lhe responda, Pois digo‑lhe que Sofia é uma esposa maravilhosa. Tal como o sol é necessário à vida, eu preciso dela para viver!

‑ Muito bonito, Leo. A sua Sofia deve ser uma mulher extremamente feliz. E mesmo assim o senhor engana‑a...

‑ Até agora, não a enganei nem por um minuto!

‑ Até agora, não! Mas vai enganá‑la comigo...

A franqueza de Blandine assustou‑o de novo. A sua garganta secou ao imaginar como seria segurar esta mulher nos braços. Tinha experiência com as ruivas. Das seis amantes ruivas que tivera, quatro quase se tinham tornado uma fatalidade. Duas delas quiseram enforcar‑se por sua causa, uma ameaçara‑o com uma faca e a quarta contratara um brutamontes para espancá‑lo. Leo só conseguira escapar a graves ferimentos negociando com o homem e oferecendo‑lhe o dobro daquilo que a ruiva lhe pagara.

Não era difícil prever como acabaria uma relação com Blandine ‑ se é que chegariam a ter uma relação. Era previsível que ela superasse todas as suas predecessoras!

‑ Isso não vai ser fácil ‑ disse Kochlowsky, tentando escapar à conversa. ‑ Haverá centenas de olhos a vigiarem‑nos.

‑ Nós torná‑los‑emos cegos! Eu tomo o comboio para Leipzig à noite e desço na estação de Borsdorf. O senhor segue na manhã seguinte para Leipzig e eu vou buscá‑lo a Borsdorf, onde existe um pequeno hotel, uma estalagem que é um verdadeiro paraíso.

‑ E quantas vezes já esteve em...

‑ Que horror, Leo!

‑ Eu não me deito em camas onde ainda se vêem marcas de quem lá esteve antes de mim.

‑ Mas quem é que acha que eu sou, Leo?

‑ Isso dir‑lhe‑ei em...

‑ Quer dizer que vem? ‑ exclamou Blandine, quase gritando. Alguns convidados olharam para eles, aparentemente consternados, mas Blandine não se importou. Pousou as mãos nas de Kochlowsky. ‑ Quando? Oh, Leo, quando? O meu corpo está a tremer! Quando!

‑           Dar‑lhe‑ei notícias minhas.

‑ Seu malvado! "Dar‑lhe‑ei notícias minhas!" Até parece que se trata de um negócio! Apetecia‑me arranhar‑lhe a cara...

‑ É que isto tem a ver com negócios. Terei de ver se há um assunto que me obrigue a ir a Leipzig. Senão, que justificação teria eu para viajar?

‑ Blandine, que o espera de braços abertos...

‑ Isso eu não posso dizer ao conde. E não se esqueça que também existe o patife do Leopold Langenbach!

‑ Não gosta dele?

‑           Está prestes a apanhar um grande sopapo! Anda atrás da Sofia...

‑ Mas isso é perfeito! ‑ Blandine bateu palmas. - Langenbach vai ter com a sua mulher e nós desaparecemos em Borsdorf... Haverá melhor solução para os nossos problemas? Assim, cada um tem aquilo que quer...

‑ Caramba, eu amo Sofia! ‑ disse Kochlowsky. ‑ Qualquer homem que toque nela será rachado de alto a baixo!

‑           E diz‑me isso a mim?

‑           Nada de hipocrisias, foi o que disse há pouco. Ora então, afirmo‑lhe: não a amo a si, Blandine... consigo só tiro a pressão da caldeira!

‑ Seu animal! ‑ balbuciou ela, mordendo o lábio inferior.

‑ Pensava que a senhora seria capaz de suportar a realidade!

‑ No seu caso tudo é diferente. No seu caso, só quero acreditar em mentiras. Quero ouvir da sua boca que nunca amou ninguém como me ama a mim...

"As coisas realmente não mudam", pensou Kochlowsky, bebendo um gole de champanhe. "Tanto em Pless como em outro sítio qualquer... as mulheres são todas iguais. Não importa se têm o cabelo preto ou louro, se são morenas ou ruivas, todas querem sentir‑se as únicas e as melhores. Blandine não é nenhuma excepção. Só que ela di‑lo abertamente."

‑ Quer dançar? ‑ perguntou Kochlowsky.

‑ Não.

‑ Porque não?

‑ Seria incapaz. Só de sentir o seu corpo a roçar no meu, ficaria doida.

‑ Controle‑se.

‑Não! Porquê?

‑ Temos pelo menos cento e cinquenta pessoas à nossa volta.

‑ Não vejo ninguém. Só o vejo a si! Onde estão os outros? ‑ Voltou a debruçar‑se sobre a mesa e o seu decote abriu‑se. ‑ Quando é que vamos para Borsdorf? Mesmo se agora estiver a pensar que eu sou uma prostituta, isso é‑me indiferente. Quero‑o, Leo! Suportarei tudo para tê‑lo...

‑ Até mesmo um escândalo?

‑ Até isso! Quando eu amo, amo a sério...

"Céus, que mulher", pensou Kochlowsky. "E uma mulher destas a viver numa província saxónica." Mas para além de admiração, Kochlowsky sentia também o perigo que Blandine representava, caso se envolvesse com ela.

‑ Leo, tenho uma pergunta! ‑ Os olhos verdes de Blandine tinham agora um ar desafiador. ‑ Seria capaz de me beijar aqui, em frente de todos os convidados?

‑ Não!

‑ Mas eu seria! Meu Deus, o senhor é como todos os homens: fala imenso, mas no fundo é um cobarde! Quem diria isso de um Kochlowsky?

‑ A senhora nunca pensa no futuro, pois não?

‑ Não, nunca! Para quê? Nós vivemos hoje! Para que me interessa o mundo daqui a vinte ou trinta anos?

‑ Um dia também envelhecerá, Blandine ‑ lembrou Kochlowsky de uma forma pouco galante. Mas isso não a atingiu.

‑Claro. E então?

‑ O que acha que acontecerá?

‑ Sei lá! Talvez seja a mulher de um homem rico ou

então uma simples velha num lar de idosos. Talvez habite uma mansão na margem do rio Elba, perto de Sassnitz, ou então numa barraca nos montes Metalíferos. Isso é algum impedimento para que hoje viva como quero? E mesmo que um dia esteja sentada ao sol, num canto, cheia de rugas, pelo menos poderei dizer: vivi a minha vida, tenho essa vantagem em relação a vocês, mulheres que ficaram sempre sentadas num canto...

‑ Eu não sou dessa opinião. ‑ Kochlowsky estava aliviado por ter conseguido desviar a conversa. ‑ As recordações não enchem a barriga. Blandine, quer alguma coisa do buffet?

‑ Como pode o senhor ser tão cruel e falar de comida agora?

‑ É que tenho fome. ‑ Kochlowsky ergueu‑se. ‑ Se quiser mortificar‑se, faça‑o à vontade. Eu estou com fome e vou buscar um pedaço de lombo com compota de murtinhos!

‑ Assim é que eu gosto de si, Leo! ‑ Blandine soltou uma gargalhada, inclinando‑se para trás. ‑ Sempre teimoso. Quando é que nos encontramos em Borsdorf?

Ela não parou de rir enquanto Kochlowsky se dirigia ao buffet, e os presentes repararam que a ruiva escandalosa e o antipático homem da fábrica de tijolos se estavam a entender esplendorosamente. Duas pessoas que todos desejavam ver nas profundezas do Inferno haviam‑se enfim encontrado.

 

O que mais se poderia esperar? O baile de Ano Novo do conde Douglas deu muito que falar.

Quando Sofia ia às compras em Wurzen, era atendida com uma delicadeza que exprimia compaixão. E com o guarda‑florestal Rechmann acontecia o mesmo, só que no seu caso as coisas eram mais explícitas, como é habitual entre os homens. Assim, o droguista Manfred Schwinge declarou, na cervejaria:

‑           Se eu tivesse uma mulher que serve o seu peito numa salva de prata, publicamente, largá‑la‑ia na floresta, no meio de raposas! ‑ Era uma insinuação sobre o decote escandaloso de Blandine e aquilo que se conseguira ver quando ela se inclinara para a frente.

‑           E há mulheres que só de estarmos sentados à sua frente provocam em nós a sensação de estarmos na cama com elas! ‑ acrescentou o fabricante de papel de parede, Louis Krachner, passando a língua pelos seus enormes lábios.

‑ Pois é, realmente existem mulheres espantosas! - acrescentou o fabricante de biscoitos, Fabricius BShlen.

‑ Tão apetitosas, que até apetece dar‑lhes uma mordidela; e de repente uma pessoa apercebe‑se de que comeu veneno...

Nessa noite o guarda‑florestal Rechmann deixou a cervejaria muito cedo. Tudo isto não era nada de novo para ele; Blandine já lhe relatara os acontecimentos com muito prazer. O sadismo dela ia ao ponto de descrever a forma das mãos de Kochlowsky e de afirmar que sonhava que essas mãos a acariciassem.

‑           E quem paga o ganso do Natal sou eu ‑ dissera no fim. ‑ Quanto é que queres? Cinco marcos ou uma noite comigo?

‑           Se és assim tão barata... ‑ foi tudo o que Rechmann conseguiu responder. O seu riso desafiador ofendia‑o. Correu para fora e dirigiu‑se aos comedouros dos seus veados. Trazia consigo a ideia de matar Kochlowsky. Só a ideia bastou para sossegar o seu interior transtornado.

Quatro dias depois do baile do Ano Novo, Leopold Langenbach voltou a visitar Sofia quando ia a caminho de Wurzen. Era a primeira vez que a via desde que fora expulso por Kochlowsky no dia de Natal.

Como era hábito, Sofia serviu‑lhe café e uma fatia daquele bolo de passas que tinha sempre pronto, e desta vez

até havia um bolo especial, feito segundo uma receita secreta de Vanda Lubenski de Pless. Para terminar serviu uma aguardente, um bagaço da destilaria do conde.

‑ Tenho de me desculpar em nome do Leo ‑ disse Sofia. Estava sentada numa cadeira de vime em frente de Langenbach e fazia croché. Era um casaquinho de lá para Vanda em tons de cinzento e cor‑de‑rosa. ‑ Mas o senhor sabe como ele é.

‑           E a senhora, também o sabe? ‑ perguntou Langenbach com cuidado.

‑ Imagine só que ele tem ciúmes seus, Leopold!

‑ Mas não tem razões para ter ciúmes!

‑ Pois é! Realmente, é ridículo.

‑ Eu não diria isso, Sofia.

‑ Mas é ridículo...

‑           Estamos a falar de duas coisas diferentes, Sofia. Está a pensar na sua fidelidade e eu naquilo que o Leo faz, ao contrário da senhora...

Sofia pousou o croché no colo e olhou para Langenbach com um ar interrogativo. Durante alguns instantes, os seus enormes olhos azuis e a sua cara estreita e pálida, emoldurada pelos cabelos louros, pareceram como que petrificados. "Meu Deus, ela ainda é uma criança", pensou Langenbach, assustado. "Talvez nem se devesse dizer‑lhe este tipo de coisas. Como é que o parvo do Kochlowsky pode tornar este anjo tão infeliz? Merecia ser expulso a pontapé e levar uma tareia. Devia ser perseguido de aldeia em aldeia até ao fim do mundo...

‑           O que está a tentar dizer acerca do Leo, senhor Langenbach? ‑ perguntou Sofia com uma voz admiravelmente calma.

‑ É melhor que o fique a saber através de mim do que de alguém mal intencionado. Sofia, custa‑me dizer‑lhe isto... ‑ Langenbach passou a mão pela cara, num gesto nervoso, e notou que estava a suar. ‑ Leo portou‑se muito mal no baile de Ano Novo...

‑ Já estava à espera disso. ‑ Sofia sorriu, triste. - Quem foi que ele ofendeu? Entornou vinho em alguém? Qual foi a mulher a quem chamou cabra convencida?

‑           Meu Deus, a senhora aceitaria isso como se nada tivesse acontecido?

‑           Posso mudar alguma coisa?

‑           Que vida é esta, Sofia! ‑ Langenbach suspirou, abalado. ‑ Não, mas não foi nada disso que aconteceu.

‑           Então ele portou‑se bem...

‑           A senhora realmente é um anjo! O seu marido teve um comportamento escandaloso.

‑           Leo? Não acredito! ‑ Sofia abanou a cabeça. ‑ Leo é capaz de tudo, mas nunca cria escândalos. O que foi que ele fez?

‑           Durante toda a noite não se afastou por um segundo de Blandine Rechmann.

Sem que Langenbach desse por isso, os dedos de Sofia crisparam‑se no croché. A sua cara, porém, esboçou apenas um leve sorriso.

‑           O que há de escandaloso nisso? ‑ perguntou.

‑           A maneira como eles agiam, como se riam, como se comportavam, como dançavam...

‑           Mas o baile não era animado? Leo estava simplesmente alegre.

‑           Todos nós achámos o comportamento deles escandaloso. Aquilo já não era alegria, aquilo era... era... uma exibição erótica... perdoe‑me a expressão, Sofia.

Ela fitou Langenbach, incrédula, e quando ele viu os seus enormes olhos azuis voltou a pensar, com uma dor no peito: "Como ela é inocente! Como é ignorante! E fica agarrada a um homem como Kochlowsky. Será que em Pless ninguém a avisou? Que pessoas são essas que consentem uma situação destas sem nada dizerem?

‑           Ele beijou‑a? ‑ perguntou Sofia baixinho.

‑Não...

‑           Afastou‑se com ela?

‑Não...

‑           Estiveram sempre juntos no salão de festas?

‑           Sim.

‑           Mas então o que é que o senhor exige do Leo? A imaginação que esta sociedade tem não será muito mais escandalosa? Que perversidades se atribuem ao meu marido? É ele responsável pela maneira como a senhora Rechmann se veste? Se ela exibe o peito, então é o marido quem se devia preocupar com isso? E o senhor, não me diga que não olhou para o peito dela! E os outros homens? Imagine só os pensamentos deles... Como vê, Leo é muito menos hipócrita ou mentiroso do que todos eles: ao menos confessa que gosta do peito da senhora Rechmann! Não me diga que o senhor não gosta de apreciar um quadro de Rubens, em que um peito quase lhe enche os olhos? Ou será que exclama: que horror, que porcaria! Então, porquê fazê-lo no caso de Leo?

‑           Sofia, estou escandalizado com a sua maneira de ver as coisas... ‑ Langenbach voltou a passar a mão pela cara húmida de suor. Claro, quando se via as coisas daquela perspectiva, a moral ficava muito mais restringida e pouco restava. ‑ Se a senhora soubesse da fama que Blandine Rechmann tem em Wurzen...

‑           Mas isso é um problema do marido dela, não é?

‑           O Ferdinand é um homem meigo e sincero de mais...

‑           Então Blandine não é a mulher certa para ele.

‑           Isso é verdade.

‑           E toda a cidade está à espera que surja o homem certo para Blandine...

‑           A senhora fala com uma franqueza desarmante, Sofia.

‑           Só por eles terem rido juntos durante uma noite... - Sofia abanou a cabeça. ‑ Aos poucos começo a compreender o Leo, quando diz: "se algum dia te apetecer vomitar a sério, então olha para as pessoas à tua volta". Ele tem razão.

Langenbach ergueu‑se contraído e um pouco deprimido. Não fazia sentido expor a Sofia a suspeita que ele e a população de Wurzen partilhavam. Ela não acreditava, não queria encarar a realidade. Protegeria Kochlowsky contra tudo e contra todos. Obedecia‑lhe... sim, no fundo era isso. A sua vontade falhava perante Leo Kochlowsky. O seu mundo era só ele. Que tristeza, para uma mulher que ainda era uma criança. Que devastador, para uma mulher tão jovem!

‑           Tenho que ir‑me embora ‑ disse Langenbach.

‑           Sem ter comido o bolo? E falta a aguardente.

‑           Se isso ainda me for permitido, depois de tudo o que disse...

‑           Mas o que foi que aconteceu, Leopold? O senhor só me contou os disparates da sociedade de Wurzen...

Langenbach voltou a sentar‑se e, num gesto hesitante, pegou na fatia de bolo. Sofia encheu‑lhe a chávena de café fumegante e aromático. Depois dirigiu‑se à cómoda e trouxe a garrafa de aguardente e dois copos. Era a primeira vez que o acompanhava a beber, mas nesse dia sentia que precisava de um gole.

"Leo e Blandine Rechmann ‑ porque não? Corresponde exactamente ao tipo de mulheres que ele antigamente escolhia. E as coisas que Vanda Lubenski contou sobre Kochlowsky nos seus tempos de loucura! Se houvesse um concurso de garanhões humanos, de certeza que ele ganharia todos os prémios. Mas isto não é Pless... e, acima de tudo, aqui ele tem mulher e filha e talvez em breve mais filhos. Sempre quisemos ter uma grande família, com muitos filhos. Por isso vale a pena lutar contra Blandine Rechmann. à minha maneira, calma e discreta, mas eficiente." O que dissera Vanda Lubenski? "Com barulho não consegues alcançar nada perto do Leo. Ele até gosta disso, fica contente! Mas quando o deixam sem ar, sente‑se perdido. Quando não há um eco que lhe responda. Não suporta que os outros não lhe prestem atenção. Se quiseres alcançar alguma coisa com ele, ignora‑o como se fosse ar!" Isso era muito difícil: Kochlowsky era uma pessoa na qual não se podia deixar de reparar. Mas logo quando o tentara pela primeira vez, resultara. Naquela época tratava‑se do nome Vanda, que Kochlowsky recusava. E o que fizera Sofia? Durante três dias não lhe dirigira a palavra, ficara deitada ao lado dele, na cama, sem dizer uma palavra, simplesmente não lhe dera importância, até que no quarto dia ele gritara:

‑ Raios te partam! Ela chamar‑se‑á Vanda! ‑ A recompensa fora uma noite cheia de carinhos. Essas coisas um Leo Kochlowsky não esquece...

Sofia bebeu o seu copinho de aguardente, mas isso não a fez sentir‑se melhor, e ficou aliviada quando Leopold Langenbach se foi embora. Passou o resto do dia a pensar como iria falar com Leo sobre Blandine Rechmann. Se o interrogar directamente ele responderia com desculpas. Assim, Sofia não chegou a nenhuma conclusão.

 

à noite Kochlowsky chegou a casa com frio, como era hábito, com a barba e o sobretudo cobertos de cristais de gelo. Deu um beijo a Sofia e depois cheirou o ar.

‑           Ah ‑ exclamou satisfeito ‑, cheira‑me a caça.

‑           Guisado de veado com natas... ‑ Sofia foi para a cozinha ver a carne. ‑ Imagina, esta carne foi entregue por um ajudante do guarda‑florestal, com os melhores cumprimentos do senhor Rechmann...

Era uma grande mentira, mas muito bem pensada e que alcançou o seu objectivo. Kochlowsky nunca verificaria se era verdade. Hesitou alguns segundos, foi para a sala e esfregou as mãos perto do fogão.

‑           Primeiro deixa Jacky prová‑la ‑ disse. Jacky era o cão, o presente de Natal. Tinham‑lhe dado o nome de Jacky por num dos romances de Eugen Kochlowsky aparecer um imitador de vozes de animais que sabia ladrar como um lulu.

‑           Tens medo que esteja envenenada?

‑           Rechmann é capaz de tudo.

‑           Porquê? Estás zangado com ele? Ainda há pouco tempo te ofereceu aquele lindo ganso...

Sofia conseguira chegar ao assunto... agora só teria que se referir discretamente a Blandine. Mas Kochlowsky pôs fim à conversa de uma maneira brusca. Simplesmente explicou:

‑ Rechmann é um impertinente. Disse que os últimos tijolos que recebeu eram moles de mais! Eu mandei responder que não se destinavam a serem mastigados, mas a serem cimentados. ‑ Enquanto dizia isto, Kochlowsky entrou na cozinha, colocou‑se atrás de Sofia, acariciou o seu cabelo longo e louro e cheirou por cima do seu ombro, perto da panela. ‑ Não existe outra cozinheira como tu - afirmou, acariciando‑lhe as faces. ‑ Se não te tivesse a ti...

‑           Houve problemas na fábrica?

‑           Sim, muitos! O Langenbach está cada vez mais preguiçoso! Agora até tenho de viajar no lugar dele. Na próxima terça‑feira terei que ir a Leipzig...

Sofia acenou afirmativamente e continuou a tratar da carne. "Como ele mente! Leopold não falou em Leipzig esta tarde. Então é aí que eles se encontram, na grande cidade, onde ninguém os conhece, onde é fácil alugar um quarto por algumas horas... oh, Leo, antigamente fazias essas coisas de maneira mais esperta."

‑           Que bom ‑ disse ela, ocupando‑se do molho. ‑ Eu nunca estive em Leipzig. Sempre quis conhecer essa cidade. Vou contigo...

Um Kochlowsky sem resposta é uma coisa rara.

É claro que Leo acabou por não ir a Leipzig na terça‑feira seguinte. Mentiu a Sofia, dizendo que afinal o assunto se resolvera, dado que o cliente mandara a encomenda por escrito.

‑           Que pena ‑ lamentou‑se Sofia, meiga como sempre, embora no fundo lhe apetecesse dar uma bofetada a Kochlowsky com a sua mão pequena mas forte. Não sabia como é que ele reagiria a isso. ‑ Nunca estive numa cidade tão grande. Deve haver lojas muito bonitas...

‑           Na Primavera iremos a Leipzig, minha querida - disse Leo, tentando esquivar‑se. ‑ Mas não penses que aquilo é uma maravilha! O trânsito é insuportável! Há coches particulares, coches de aluguer, carruagens sobre trilhos e, no meio disso tudo, aqueles veículos com um motor barulhento que se chamam automóveis! Uma invenção horrível, sem qualquer futuro.

‑           Um dia gostava de ver um desses automóveis, Leo.

‑           Para quê? Em dois anos, o mais tardar, serão todos deitados fora! Uma coisa tão malcheirosa nunca pode substituir um bom cavalo. Foram alguns engenheiros que ficaram doidos...

Quem não mostrou compreensão nenhuma pelo adiamento da viagem a Leipzig foi Blandine. Arranjou as coisas de maneira a encontrar Kochlowsky na serralharia de Fritz Habermann. Kochlowsky precisava de madeira para a fábrica e a divisão florestal do conde fornecia a matéria‑prima, os grandes troncos das florestas do conde. Fingiram que o encontro era um mero acaso, mas mal se acharam sozinhos, Blandine sibilou, furiosa, os olhos verdes a faiscar:

‑           O que está a acontecer? Estás a dizer que não podes ir?

‑           Sim, Sofia quis acompanhar‑me a Leipzig.

‑           E tu não pudeste evitar isso?

‑Não; como?

‑           Mas afinal és um homem ou um cãozinho que anda à trela?

‑           Nós tínhamos concordado em evitar um escândalo, Blandine...

‑           Tu é que querias! A mim tanto me dá!

‑           Isso custar‑me‑ia o emprego.

‑           Então vamos embora daqui... O mundo é grande. E um homem como tu, com as tuas capacidades, encontra emprego em toda a parte. Podíamos ir para França...

‑           Teria de deixar a minha mulher e a minha filha...

‑           Essas de certeza não poderias levar contigo ‑ disse Blandine com ar trocista. ‑ Mas eu não valho isso?

‑           Não! ‑ Kochlowsky olhou‑a com os seus olhos negros e penetrantes de tal forma que ela se sentiu como se tivesse levado uma bofetada. ‑ Não vales isso, panela de alta pressão...

‑           És um porco ‑ sussurrou ela, tremendo de excitação. ‑ Não se deveria deixar‑te viver. Mas não fazes ideia do que é ter‑me como inimiga! Ainda uivarás como um cão maltratado! ‑ Barrou‑lhe o caminho quando Leo se virou para ir‑se embora e agarrou‑o pelas lapelas do sobretudo.

‑ Vou contar a Ferdinand que tocaste em mim... já antes do Natal, quando foste buscar o ganso. Que meteste a tua mão no meu decote, levantaste a minha saia e me arrastaste até ao sofá... Quem é que se pode defender contra um homem como tu? E no sofá fizeste‑o pela primeira vez. Eu estava desmaiada quando te foste embora... Como será que Ferdinand vai reagir? Eu sei que ele acreditará em mim.

‑           Ele é um fraco, mas não um idiota! ‑ Kochlowsky pegou nas mãos dela, arrancou‑as do seu sobretudo e afastou‑a. Blandine desferiu um pontapé, mas só lhe acertou na barriga da perna. ‑ Dize ao teu marido que estou à espera dele...

‑           Patife! Animal!

Kochlowsky saiu do armazém e dirigiu‑se ao escritório, pois sabia que ali estaria livre de Blandine. Tinha a certeza de que Rechmann não viria falar com ele. O maior perigo, porém, era que Sofia ficasse a saber das mentiras de Blandine.

E realmente nada aconteceu.

Rechmann nunca veio falar com ele, Sofia não parecia saber de nada e a população de Wurzen, entretanto, encontrara outros temas escandalosos para comentar. Assim, entre outras coisas, ficara‑se a saber que a filha mais nova do senhor Heymaier, que tinha uma fábrica de artigos de couro, iria ter um filho sem ser casada, um bastardo do tenente Julius von Orthfurth. Este, no entanto, negava tudo e até se sabia de mais três camaradas com os quais a senhorita tinha... Não era possível, um escândalo desses em Wurzen! Juliane Heymaier decidiu viajar por algum tempo e foi para Uberlingen, perto do Bodensee, onde permaneceu numa pensão dirigida por uma tia.

Leo Kochlowsky ficou aliviado. Afinal, tinha corrido tudo bem.

 

Mas enganava‑se!

No dia 1 de Fevereiro, Theodor Plumps voltou para a fábrica. Foi bem acolhido por todos e Kochlowsky até lhe deu a mão, o que rapidamente se espalhou pela fábrica. Nesse dia, Leopold Langenbach não estava em Wurzen. Viajara para a zona de Torgau, onde fora visitar novos clientes. A grande obra de alargamento da fábrica deveria começar logo que o tempo melhorasse. A área de distribuição estava a ficar cada vez maior.

‑           É bom voltar à fábrica ‑ disse Plumps, e fungou alto. ‑ Sem trabalho não há nada, senhor Kochlowsky. - A sua cara de bolacha brilhava. ‑ O médico disse que já estou completamente recuperado. Posso suportar tudo.

Enquanto brincava com a pena na mão murmurou baixinho, e notava‑se que havia algo que queria dizer, mas não sabia como. Kochlowsky aproximou‑se.

‑           Há qualquer coisa que o importuna, senhor Constipado...

Plumps sorriu. Começou a sentir um certo medo.

‑ Eu não sei, senhor Kochlowsky...

‑Diga!

‑ O senhor vai gritar.

O coração de Kochlowsky ficou pesado. Tinha uma vaga noção daquilo que ia ouvir.

‑ Prometo‑lhe ficar calmo, senhor Constipado...

‑ Eu também só o soube através da minha mulher, e ela acha que eu devo contar‑lho a si. As pessoas da cidade dizem certas coisas...

‑ Sobre mim?

‑Sim... e sobre a senhora Rechmann... ‑ Plumps empalideceu de medo, mas Kochlowsky não gritou. Apenas mordeu os lábios.

‑ O que é que se diz de nós?

‑ Coisas horríveis...

‑ Isso são conversas estúpidas, Plumps!

‑ É o que também digo, mas o senhor conhece as pessoas de Wurzen! É como se fosse uma avalancha: quanto maior o caminho percorrido, maior se torna! E a minha mulher só diz: "coitada da pequena senhora Kochlowsky... agora que tem a criança... numa situação destas...

Kochlowsky sentiu que os seus cabelos se eriçavam. Passou as mãos pela barba, mas a sensação ficou.

‑ O que há com a minha mulher? ‑ perguntou num tom ameaçador.

‑Ela... ela sabe de tudo ‑ Plumps engoliu em seco. ‑ Contaram‑lhe tudo. Logo depois do baile de Ano Novo...

‑ Quem foi que lhe contou?

‑           Por favor, não me denuncie. ‑ Plumps começou a tremer e agarrou‑se ao seu enorme livro de contabilidade. ‑ O senhor salvou‑me a vida, só por isso é que lhe estou a revelar isto...

‑           Quem foi?

‑           O senhor Langenbach...

Kochlowsky reagiu com uma calma invulgar. Abandonou o escritório sem dizer uma palavra, foi até ao pavilhão ao lado e olhou para os enormes fornos. "Foi logo contar tudo a Sofia! Fê‑lo para me liquidar! Quer roubar‑me Sofia e a criança. Agora tenho que defender‑me. Afinal, trata‑se da minha vida."

"Leopold Langenbach, volte depressa..."

 

Kochlowsky esperou pacientemente durante uma semana que Sofia lhe falasse em Blandine. Preparara várias respostas e frases para um assunto que não poderia evitar. Estivera disposto a encontrar‑se com Blandine em Borsdorf, aí não havia desculpas, nem explicações. Apenas era humilhante para ele como homem ter que admitir uma culpa sem atenuantes.

Mas Sofia era mais esperta do que ele pensava: ficou calada. Em segredo, dava‑lhe prazer observar como Leo a rodeava a ela e à filha, sempre à espera de ser confrontado com perguntas. Para ele esta situação era bem pior do que uma discussão aberta, que provavelmente teria ganho graças aos seus berros. Mas não acontecia nada, a sua mulher era boazinha como sempre, pelo menos durante o dia... à noite, na cama, queixava‑se de dores de cabeça e de problemas com a barriga e enrolava‑se nos cobertores. Kochlowsky ficava acordado, olhando para o tecto, onde se via o reflexo das luzes pálidas da noite de Inverno, e perguntava a si próprio, inseguro, se aquilo que Plumps dissera não teria sido um simples boato e se na verdade Sofia não sabia de nada. Por outro lado, era bem possível que Langenbach tivesse imediatamente corrido para Sofia para lhe falar de Blandine... pois é, tudo se esclareceria quando Langenbach voltasse de Torgau.

 

Depois de uma longa semana de espera, Kochlowsky já se sentia melhor. A grande disputa com Langenbach ficara adiada, dado que este seguira de Torgau ao longo do rio Elba até Risa e depois ainda queria visitar Meissen. Também tencionava ir a Dresden, para tratar da expansão da fábrica de tijolos, que deveria passar a fornecer objectos de barro para decoração, como vasos de flores, cântaros, canecos e jarros esmaltados, pratos e tigelas. Até já tinham encontrado um novo nome para a fábrica: cerâmica de Lúbschútz. Lúbschútz era uma pequena aldeia rodeada de florestas que não ficava muito longe de Wurzen. A fábrica de tijolos situava‑se exactamente entre Wurzen e Lúbschutz.

Quando se soube deste novo nome em Wurzen, Leo Kochlowsky foi imediatamente responsabilizado por se ter escolhido o nome de Lúbschutz e não de Wurzen. Houve uma frase que rapidamente se espalhou pela aldeia. Embora não fosse da autoria de Kochlowsky, realmente parecia ser dele: "Não quero que as pessoas se enganem e digam cerâmica de Peidos..."~. Na cidade acreditava‑se nestes boatos, esquecendo‑se que o nome fora escolhido pelo próprio conde Douglas.

Numa fria terça‑feira do ano de 1890, Kochlowsky estava na fábrica de tijolos quando decidiu ir até à aldeia examinar alguns novos cavalos de transporte. Teria de atravessar uma zona de florestas e arbustos, quase desconhecida, com grandes espaços arenosos e de estepe, chamada deserto de Faz Pouco. Era uma zona da qual o povo contava histórias de fantasmas, feiticeiros e bruxas. Na verdade, porém, não passava de uma paisagem selvagem, que representava um autêntico paraíso para faisões, coelhos, lebres, perdizes e raposas.

Fazia muito frio e Kochlowsky encontrava‑se já mais ou menos a meio do caminho. Como também tencionava ir visitar o presidente da junta de freguesia de Lúbschútz, pusera a sua cartola. Enrolara‑se numa capa para proteger as orelhas e a cara do frio e a cartola era o único indício de que aquilo, no coche, era um homem ‑ mais parecia uma bola envolta em pele e tecido. O cavalo fungava puxando o coche num leve trote pela solidão silenciosa, coberta de neve.

Kochlowsky não ouviu nem viu nada, mas de repente a sua cartola caiu ao chão. Foi como se alguém lha tivesse arrancado, e a capa com um nó sob o queixo desprendeu‑se, deslizando‑lhe para o ombro.

Leo deteve o cavalo puxando as rédeas e gritando "Brrr!", saltou da boleia e caminhou em direcção à sua cartola, caída à beira do caminho. Quando se baixou para apanhá‑la, hesitou durante um instante, um único segundo, e depois atirou‑se bruscamente para a neve, estendido ao comprido. Kochlowsky não cumprira o serviço militar. Não aprendera a rastejar pelo chão de um quartel, nem a procurar abrigo num terreno, o que na Prússia era considerado um defeito grave, dado que sempre que dois homens se encontravam, uma das primeiras perguntas que faziam era: "onde foi que o senhor fez o serviço militar?". Mas apesar de nunca ter obtido essa "formação de homem", a sua reacção nesse instante foi exemplar e teria satisfeito plenamente um oficial prussiano.

A cartola tinha um buraco. Não havia dúvida: alguém disparara contra Kochlowsky! E essa pessoa falhara por apenas alguns centímetros. Ou ter‑se‑ia Kochlowsky inclinado um pouco para a frente no preciso momento do disparo?

Kochlowsky manteve‑se deitado na neve, imóvel à espera que algo acontecesse. Mas à sua volta nada se mexia. Apenas se ouvia o fungar do cavalo. A ideia de que alguém lhe armara uma cilada paralisou‑o por algum tempo. Reflectiu rapidamente: quem o odiava a ponto de querer matá‑lo? Não achou resposta a esta pergunta. Nesses poucos meses em Wurzen fizera suficientes inimigos. Quase não havia ninguém que gostasse de Kochlowsky, salvo raras excepções, como o conde Douglas, o senhor Plumps ou talvez o pastor Maltitz, mas esses eram realmente os únicos. Porém, para alguém pretender assassinar uma pessoa é preciso muito mais do que uma simples antipatia ‑ é preciso ódio!

Kochlowsky permaneceu deitado na neve durante mais alguns minutos, depois levantou‑se, olhou em redor e voltou para o coche. Decidiu não ir a Lúbschútz. Em vez disso, afastou‑se da estrada principal e foi em direcção ao palácio Amalienburg.

Quando chegou, o camareiro Emil Luther ‑ quem mais havia de ser? ‑ vedou‑lhe o caminho.

‑ Anunciou a sua vinda, senhor Kochlowsky? ‑ perguntou atrevido como era seu hábito e com as sobrancelhas e o nariz franzidos.

‑ Saia da frente, seu parvalhão ‑ sussurrou Kochlowsky com uma voz perigosa ‑ ou então será o primeiro homem a voar sozinho!

‑ O senhor conde mandou...

‑ Emil Luther, afaste‑se... ‑ Kochlowsky empurrou‑o para o lado, entrou no palácio a passo rápido e ouviu como atrás dele o camareiro avisava os outros empregados da sua presença. Mas antes que estes pudessem agir já Kochlowsky abrira bruscamente a porta que dava para a biblioteca. O conde Douglas estava sentado na sua grande secretária de madeira lavrada, a folhear relatórios e outros papéis referentes às suas propriedades. Quando Kochlowsky entrou de rompante, levantou o olhar, surpreso. Ouviu os gritos de Emil Luther vindos do vestíbulo.

‑ Então, Kochlowsky ‑ disse, num tom simpático ‑, deu um pontapé no Emil?

‑ Ainda não, senhor conde, talvez o faça quando me for embora... Peço perdão...

‑ Qual o motivo da sua pressa?

‑           Isto! ‑ Kochlowsky pousou a cartola na secretária, mesmo em frente do conde Douglas, de maneira que este pudesse ver o buraco feito pela bala. Douglas franziu as sobrancelhas e encostou‑se para trás.

‑           Um tiro, sem dúvida, Kochlowsky. Quando foi que isto aconteceu?

‑           Há uma meia hora, senhor conde. No deserto de Faz Pouco.

‑           Dez centímetros mais abaixo, e o senhor já não estaria vivo...

‑           Exactamente, senhor conde.

‑           Quem foi?

‑           Eu não vi nem ouvi nada...

‑           Isto é uma situação muito desagradável, Kochlowsky! ‑ O conde Douglas pegou na cartola, virou‑a, examinou atentamente o buraco e voltou a pousá‑la na secretária.

‑ Alguém tentou matá‑lo! Fez bem em vir directamente falar comigo. Sempre me senti responsável pelos meus colaboradores. Devia‑se informar a Polícia.

Kochlowsky fez um gesto de recusa.

‑           Eles não podem fazer nada.

‑           Podem procurar pistas no terreno.

‑           Essas já desapareceram com o vento e a neve, senhor conde.

‑           Mas o atentado irá constar dos registos.

‑           Isso ajudar‑nos‑á a encontrar o culpado? Não!

Douglas ergueu‑se, preocupado, e começou a andar pela biblioteca. De repente parou em frente às enormes janelas que davam para o jardim do palácio.

‑           Este atentado contra si é preocupante, Kochlowsky! Nunca tal coisa aconteceu em Wurzen! Tirando as vigarices na área dos negócios, esta zona costuma ser absolutamente calma. Um assassínio, aqui? Em cem anos ocorreram apenas três casos: um camponês que matou o criado por este ter engravidado a sua mulher, uma mulher de negócios que envenenou o marido, o pai e o sogro para poder ficar com o amante, e um soldado que há nove anos apunhalou com uma baioneta um segundo‑sargento que encontrara na cama com a sua mulher. ‑ Douglas franziu o sobrolho. ‑ É sempre o mesmo motivo: as mulheres! A cama! Mas o seu caso é diferente, não é? Alguém arma uma cilada e quer matá‑lo! Ou haverá alguma mulher em jogo?

‑           Não, senhor conde.

‑           Pense bem, Kochlowsky...

‑           Em tempos já se contaram histórias sobre mim e a mulher do guarda‑florestal...

‑           Eu sei. Conheço‑as! ‑ Douglas esticou o queixo e tornou‑se mais sério. ‑ Acha que Rechmann seria capaz de fazer uma coisa destas?

‑           Não, dado que ele não tem razão para isso!

‑           Não tem mesmo?

‑           Palavra de honra, senhor conde. Ainda não aconteceu nada entre Blandine e mim...

‑           O que quer dizer com "ainda não"?

‑           Esteve quase para acontecer...

‑           Seu maldito conquistador! Tem uma mulher jovem e bonita em casa e quer ir para a cama com uma bruxa ruiva! Mas, mesmo assim, fico satisfeito por ser sincero comigo. ‑ O conde Douglas voltou a sentar‑se à secretária. ‑ Alguém disparou contra si! Aqui, na pacífica cidade de Wurzen, alguém tentou matá‑lo! As pessoas vêem em si uma ameaça à paz da cidade de Wurzen. Isso é horrível, Kochlowsky! As coisas estão a tomar um rumo assustador. Eu estava à espera de tudo, pois, afinal, conheço‑o de Pless, mas não de que alguém tentasse assassiná‑lo! Gostaria de ser muito franco consigo: não posso protegê‑lo desse assassino! Como poderia eu fazer isso? O atirador pode estar em qualquer lado!

‑           O senhor... o senhor quer‑se separar de mim, senhor conde? ‑ disse Kochlowsky com voz rouca. ‑ É isso que está a tentar dizer?

‑           Kochlowsky, aqui mais ninguém pode ajudá‑lo!

‑           O senhor quer dar‑se como vencido na sua luta contra Wurzen, senhor conde?

‑ Não. Mas tenho medo que lhe aconteça alguma coisa. E tenho mais medo ainda que aconteça algo à sua mulher e à sua filha! O senhor, antes de tudo, devia pensar nisso! Se não acertaram em si, será muito mais fácil atingirem Sofia ou Vanda...

‑           Não acredito que exista gente com tanta maldade!

‑           As pessoas são capazes de tudo. Infelizmente! Um animal selvagem só mata quando tem fome. Um homem, porém, às vezes mata por mero prazer! Não existe monstro pior do que o homem.

‑           Então acha que devo fugir desse misterioso atirador, levando a minha mulher e a minha filha?

‑           Repito: ninguém pode protegê‑lo. Se alguém o quiser matar então consegui‑lo‑á de certeza. Mais cedo ou mais tarde matá‑lo‑á... os assassinos também têm paciencia e esperam. Esta é a situação tal como ela é, Kochlowsky. Eu não quero perdê‑lo...

‑E... e se eu esperasse para ver o que acontece?

‑           Quer prestar‑se a ser um alvo?

‑           Talvez tenha sido apenas um atentado solitário.

‑           Hoje foi uma bala. ‑ Douglas apontou para o buraco no chapéu. ‑ Quem sabe se amanhã não será chumbo? Aí acertarão de certeza e o senhor esvair‑se‑á em sangue, crivado de grãos de chumbo. Aqui muita gente possui espingardas... e a caça aos faisões está aberta! Nem é preciso cheirar os canos... andam todos a disparar. E para um deles o senhor é um faisão gigante.

‑           Vou correr o risco, senhor conde. Vou esperar...

‑           Sem Polícia?

‑           Sim, por favor, senhor conde. Quer que Wurzen rejubile quando souber do atentado? Eu sei que muitas pessoas ficariam contentes.

‑           Kochlowsky, por que razão o senhor tem que ser uma pessoa tão odiada por todos?

‑           Porque não sei calar a boca, senhor conde.

‑           Então por que é que a abre?

‑           Porque gosto de dizer a verdade. ‑ Kochlowsky voltou a pegar na cartola e encostou‑a ao peito. ‑ Mas então deixe‑me fazer‑lhe uma pergunta: porque é que as pessoas não suportam a verdade?

‑ Porque todas elas mentem, e a vida sem mentira seria quase insuportável! Entre cegos, quem tem um olho é rei... neste caso é diferente: entre mentiras, a verdade é um perigo! ‑ O conde Douglas sentou‑se à sua mesa, o que significava que a conversa estava terminada.

Kochlowsky dirigiu‑se para a porta em passos lentos.

‑ Eu próprio ocupar‑me‑ei de Rechmann, senhor conde ‑ disse.

‑ Por amor de Deus, não faça isso, Kochlowsky! - Douglas levantou as duas mãos. ‑ Por favor, não faça nada... limite‑se a manter os olhos abertos. Observe tudo à sua volta! Também é possível que não haja um segundo tiro, que este tenha sido de aviso. Kochlowsky, o senhor conseguiu a proeza de em apenas oito meses pôr uma cidade inteira contra si.

‑ Isso também é uma obra, senhor conde! ‑ disse Kochlowsky, fazendo uma vénia e saindo da biblioteca.

Douglas abanou a cabeça. "Um homem cheio de capacidades e arruina‑se devido à sua teimosia", pensou.

No vestíbulo, para além do camareiro e do mordomo havia mais cinco empregados à espera de Leo. A sua intenção era clara. Formaram uma barreira antes da porta pela qual Kochlowsky teria de passar se quisesse deixar o palácio de Amalienburg. Quando este ficou parado à porta da biblioteca, o sorriso nas suas caras tornou‑se trocista. "Aproxima‑te, cobarde", diziam os seus olhares. "Falar todos nós sabemos!"

Kochlowsky reflectiu. Sete contra um, isso era impossível. Não tinha hipótese. Deveria voltar para trás e informar o conde do que se estava a passar no vestíbulo? Ou, simplesmente, ficar parado e ver o que acontecia?

O barão Von Uxdorf foi a salvação. Entrara no palácio sem saber o que acontecia e ficou admirado com a aglomeraÇão~ de empregados.

‑ O conde espera alguma visita especial?

A sua voz tinha um tom levemente ofendido. Desde o seu afastamento do serviço militar que o barão Von U~xdorf sofria de um complexo: sentia‑se sempre prejudicado. Quando o conde recebia visitas importantes, era hábito que o estribeiro‑mor fosse informado, dado que qualquer visitante era levado a admirar os estábulos. Como estes caíam sob a responsabilidade do barão Von Uxdorf, não informá‑lo sobre as visitas constituía uma grande ofensa!

‑           Não! Sou só eu! ‑ Kochlowsky fez um movimento de cabeça em direcção aos criados. ‑ Devem ter ficado a saber que eu vinha. Realmente, acho excelente que a partir de agora abram alas em minha honra; afinal, o senhor conde louvou‑me muito e propôs‑me a direcção da cerâmica de Lúbschútz.

‑           Parabéns ‑ disse o barão Von Uxdorf, contraído. Também ele não gostava muito de Kochlowsky.

‑           Obrigado!

Kochlowsky passou de cabeça erguida por entre os criados, agora impotentes, e com desdém piscou o olho a Emil Luther, que espumava de raiva.

Saiu do palácio e o mordomo correu atrás dele, apanhando‑o perto do coche.

‑           Vai ver que não perde pela demora ‑ gritou.

Kochlowsky subiu para a boleia e berrou:

‑           Seu miserável lambe‑botas! Se quiserem pôr‑me de joelhos, terão primeiro de aprender a mijar convenientemente...

Com um estalido alegre, pôs o cavalo a trotar e voltou para a fábrica de tijolos.

Plumps veio ao seu encontro com uma notícia triste: Leopold Langenbach mandara um recado de Meissen, dizendo que adoecera. Estava no Hotel "Cidade de Leipzig", com muita febre, e talvez até tivesse que ser internado. Se assim fosse, desejava que o transferissem para Dresden. O médico não conseguia fazer um diagnóstico e falava em tifóide. Mas como era possível apanhar‑se tifóide em Wurzen ou Torgau, ainda por cima com o frio do mês de Fevereiro?

‑           Então nós vamos tomar conta disto sozinhos, não é, senhor Constipado? ‑ disse Kochlowsky dando uma palmada no ombro de Plumps, que fungava alto. ‑ Vamos

mostrar que não sentimos falta nenhuma de Langenbach e provaremos que ele é perfeitamente supérfluo.

‑           Acha que consegue, senhor Kochlowsky?

‑           Acha que eu tenho medo, senhor Constipado?

‑           O senhor não conhece os clientes, nunca participou em reuniões, limitava‑se a gerir...

‑           Acha que não tenho as mesmas capacidades que Langenbach, seu anão?

‑           É preciso ser muito cuidadoso e bem educado com os clientes, senhor Kochlowsky. Cada um deles é uma personalidade e gosta de receber um tratamento individual. Não acha que esse tipo de trabalho é pouco adequado para si?

Era uma maneira muito educada e cuidadosa de expriniir as coisas, mas Kochlowsky compreendeu imediatamente o que o pequeno e gordo Plumps quis dizer. Respirou fundo, mas depois lembrou‑se que nunca mais queria gritar com Plumps e por isso disse:

‑           Senhor Constipado, se conseguiu fazer dez crianças com essa enorme barriga, então também vai compreender que sou capaz de ser bem educado!

‑           O senhor acabou de o demonstrar, senhor Kochlowsky ‑ respondeu Plumps sorrindo.

‑           Está a ver! ‑ Kochlowsky dirigiu‑se para o seu escritório e pôs a cartola, pensativo. Plumps seguiu‑o com um olhar pasmado. "O chapéu tem dois buracos! Parecem buracos de bala! Não é possível..."

 

Os receios de Langenbach tornaram‑se verdade: foi levado para o hospital Neustãdter, em Dresden, onde o isolaram dos outros doentes. Os médicos continuavam perante um mistério: diagnosticaram "febre alta". Isso soava sempre bem... e deixava todas as hipóteses em aberto. Provocaram‑lhe vómitos, esvaziaram‑lhe os intestinos com clister, envolveram‑lhe as pernas em panos frios e molhados, tiraram‑lhe sangue e observaram ansiosos como o seu corpo reagia. Continuavam sem conhecer a causa da febre. A única certeza que tinham era que, felizmente, não se tratava de tifóide.

Como a expansão da fábrica de tijolos não podia ser retardada, alguém teria que visitar os clientes no lugar de Langenbach. O conde Douglas hesitou bastante antes de decidir enviar Leo Kochlowsky para Dúben, na Prússia, onde se pretendia ampliar uma fábrica. O fabricante com quem Leo teria que negociar era uma pessoa extremamente antipática e Langenbach não se dava nada bem com ele. Além disso, insistia em baixar o preço dos tijolos de tal modo que no fim não teriam lucro nenhum. Se Kochlowsky afugentasse este cliente, isso não representaria uma grande perda. Tratava‑se, portanto, de um verdadeiro teste!

Kochlowsky partiu numa terça‑feira para Dúben. Foi uma viagem agradável. Havia uma linha férrea que ia de Wurzen para Eilenburg e Duben. Assim, pôde apreciar a paisagem coberta de neve do aconchego de um compartimento de comboio quente e confortável, matutando na melhor maneira de convencer aquele fabricante teimoso.

Nunca se soube exactamente como Leo Kochlowsky conduziu as negociações em Dresden. Ninguém sabia o que acontecera, nem o que ele dissera, dado que não havia testemunhas. Mas uma coisa era certa: Kochlowsky trouxe o pedido para Wurzen. A um preço aceitável. E para todas as ampliações seguintes da fábrica em Dúben.

O conde Douglas não mencionou o assunto e sobretudo teve a esperteza de não fazer perguntas. Só muito mais tarde, quando numa festa encontrou o fabricante de Dúben e conseguiu falar com ele a sós, é que ficou a saber como Kochlowsky conseguira fechar o contrato.

‑ Quando ele apareceu ‑ contou o fabricante sem demonstrar aborrecimento ‑ eu já decidira assinar um contrato com o seu concorrente de Dahlenberg. Mas Kochlowsky foi tão convincente que eu decidi tornar‑me seu cliente. E até hoje não me arrependi dessa decisão... só que a maioria das pessoas não são como eu e Kochlowsky, senhor conde.

‑ Como foi que ele o convenceu da boa qualidade dos nossos produtos? ‑ perguntou Douglas, já com uma vaga ideia.

‑ Oh, isso não é muito relevante. ‑ O fabricante parecia não querer falar disso. ‑ A nossa conversa foi muito longa. Começou quando Kochlowsky viu o contrato com Dahlenberg e disse: "Pendure esse papel no sítio adequado...". A partir daí entendemo‑nos muito bem.

O fabricante de Duben não quis contar mais nada, mas aquilo que Douglas soube foi o suficiente. De qualquer modo tudo isso já não tinha importância, dado que Leopold Langenbach voltara a trabalhar e a viajar pelo país.

 

Em princípios de Maio, quando Wurzen ainda se encontrava coberta de neve, a paz da cidade foi repentinamente perturbada: Blandine Rechmann desaparecera durante a noite.

Kochlowsky, que depois de muito ter reflectido chegara à conclusão que quem disparara sobre ele apenas podia ter sido Rechmann, dirigira‑se alguns dias depois do atentado a casa do guarda‑florestal. Porém, apenas o fez depois de se ter assegurado de que Blandine se encontrava numa daquelas suas viagens para Leipzig.

Quando Kochlowsky entrou no escritório da casa florestal, sem bater à porta, Ferdinand Rechmann ergueu‑se bissicamente da sua secretária, onde se ocupava em anotar o balanço diário das suas actividades. O gorro de peles de Kochlowsky estava gelado e a barba cheia de cristais de gelo ‑ parecia um camponês russo acabado de sair da palha quente e que viera no seu trenó de madeira. Rechmann largou a pena e constatou que a sua espingarda se encontrava pendurada na parede do outro quarto. Assim, estava indefeso.

‑ O que... o que faz aqui? ‑ perguntou com uma voz hesitante. ‑ Não aprendeu a bater à porta?

‑ Eu tenho uma exigência a fazer! ‑ exclamou Kochlowsky. ‑ E se tiver que bater em qualquer coisa será na sua cabeça!

‑ Rua! ‑ berrou Rechmann, corajoso.

‑ O senhor está a dever‑me uma nova cartola! E eu estou a dever‑lhe um ganso. O preço das duas coisas deve ser sensivelmente o mesmo... Assim estamos quites. Está de acordo?

‑ Eu estou de acordo com tudo desde que abandone imediatamente a minha casa!

‑           Obrigado! ‑ Kochlowsky sorriu, lúgubre,. ‑ Assim as contas estão acertadas. Eu sempre gostei de ter tudo bem esclarecido. Como pode um guarda‑florestal disparar tão mal? Mas afinal o senhor sempre foi um cobardolas...

Kochlowsky fez um gesto de despedida com a cabeça, virou‑se e saiu do escritório. O facto de Rechmann aceitar passivamente as contas que fizera com a cartola e o ganso provavam que fora ele quem disparara. Agora já não tentaria uma segunda vez.

Blandine desaparecera, mas aparentemente não se tratava de um rapto, dado que o filho do fabricante de sapatos Gúldenschutz fizera uma viagem para um lugar desconhecido no mesmo dia. A família Gúldenschutz espalhou imediatamente que o seu filho Harald fora estudar para Londres, mas ninguém acreditava nisso. Blandine fora vista algumas vezes no café com o jovem Gúldenschútz e até haviam feito uma viagem de trenó juntos, durante a qual se tinham comportado como se já se conhecessem melhor.

Os habitantes de Wurzen sentiam pena de Rechmann. Por outro lado, estavam desiludidos por não verem confirmadas as suas expectativas em relação a Blandine e Leo Kochlowsky. Tinham aguardado ansiosamente um verdadeiro escândalo, que tornaria a permanência de Kochlowsky em Wurzen impossível. Mas agora tudo mudara... Afinal, não se veriam livres de Kochlowsky assim tão rapidamente.

Leo esperou dois dias por um comentário de Sofia sobre a fuga de Blandine com o jovem Gúldenschutz, mas ela ficou calada. Por fim, Kochlowsky disse, como que por acaso, durante o jantar:

‑           Que história esquisita, não achas? A senhora Rechmann desaparecer assim de repente, durante a noite, com o jovem Gúldenschutz...

‑ Mais vale esse que outro ‑ respondeu Sofia calmamente.

A partir daí Kochlowsky não voltou a tocar no assunto. Esta curta frase de Sofia serviu‑lhe de aviso.

 

Quatro dias depois de Blandine ter fugido para a tão desejada imensidão do mundo, o ajudante do guarda‑florestal, Fritz Grimm, encontrou Rechmann no recinto dos veados. Estava sentado no chão, encostado à parede da casa de madeira, perto dos seus queridos veados, mas já não falava com eles, como sempre fizera... na mão direita segurava um revólver e na testa ostentava um horrível buraco preto aureolado por uma queimadura de pólvora.

Primeiro Fritz Grimm ficou paralisado, mas depois avisou a Polícia e o conde Douglas. Quando chegaram ajudou a colocar o seu patrão no caixão. O motivo deste suicídio, à primeira vista incompreensível ‑ já que a fuga de Blandine não o podia ter abalado ao ponto de se suicidar ‑, foi encontrado pela Policia entre os papéis na secretária de Rechmann. Além de outras coisas, havia uma carta que Rechmann escrevera no dia seguinte à fuga de Blandine.

Era uma carta terrível. Rechmann descrevia até ao mais infimo pormenor a sua vida e o casamento com Blandine. Nas últimas frases escrevia:

 

Agora ela deixou‑me definitivamente, e eu devia alegrar‑me com isso. Mas não consigo; amava‑a de verdade. Contudo, o que mais me arrasou foi o diário que ela deixou em cima da minha mesa e que contém os nomes de todos os amantes que teve durante o nosso casamento. São nomes conhecidos de Leipzig e Dresden, de Chemnitz e Wurzen, e eu não consigo ultrapassar a dor causada por essa lista. Só os homens de Wurzen que tiveram um caso com Blandine!... Como poderei eu jamais suportar esta situação? Encontro‑os todos os dias; falam comigo como se nada tivesse acontecido, porque pensam que não sei de nada, mas olho para eles e penso: "tu também o fizeste!" Isto é insuportável! Parto desta vida para ter calma, para já não ter que ouvir nem ver nada. Estou arrasado... o que ando a fazer neste mundo? Peço perdão ao senhor Kochlowsky por ter disparado contra ele... Graças a Deus, falhei o tiro! Ele nunca teve nada com Blandine. Mas se fosse matar todos aqueles com quem Blandine me enganou, os coveiros de Wurzen estariam ocupados dia e noite. É por isso que me vou embora... que Deus me perdoe...

Ferdinand Rechmann

 

Embora a Polícia tivesse incluido a carta nas actas para que ninguém a pudesse ler e o procurador da República tivesse permitido a remoção do cadáver por obviamente se tratar de um suicídio, o boato de que se encontrara um diário de Blandine no qual estariam enumerados nomes de todos os seus amantes rapidamente se espalhou por Wurzen... Apesar de realizar buscas intensivas, a Policia não encontrou esse tal livro, mas todos sabiam que quando um dia fosse descoberto provocaria uma catástrofe sem precedentes.

Sem que se desse por isso, Wurzen vivia tempos irrequietos. Ninguém duvidava da existência dessa lista escandalosa, mas Rechmann escondera‑a tão bem que a Policia não a encontrava. Mesmo que se confiasse na discrição da Lei, a rapidez com que todos ficaram a saber que Rechmann deixara uma carta provava o perigo latente. Aqueles cujos nomes constavam da lista encontravam‑se num estado de pânico silencioso.

Onde estaria a maldita lista de Blandine?

Três dias após o enterro de Rechmann ‑ que quase se assemelhara a uma festa patriótica, com porta‑bandeiras, salvas à beira do túmulo, uma banda e vários discursos ‑ a Polícia teve que regressar ao local do suicídio: a casa florestal fora assaltada!

O assaltante ‑ caso não tivessem sido vários ‑ havia vasculhado a casa toda, abrira as gavetas, arrancara os painéis da parede, levantara as tábuas do soalho e devastara o sótão. Não se tinha a certeza se encontrara alguma coisa. Só se sabia o que procurara.

‑ Parece que há quem esteja muito aflito! ‑ comentou Kochlowsky, malicioso. ‑ Os finos habitantes de Wurzen! Alguns ainda se vão queimar...

Alguns dos cidadãos e maridos começaram a fazer pesquisas por conta própria e no maior dos sigilos. Faziam perguntas, falavam com os trabalhadores florestais e os seus ajudantes, com o contabilista da casa florestal, os camponeses das aldeias da redondeza e ficaram a saber de um facto importante: uma das últimas pessoas que Rechmann recebera em sua casa e com quem falara fora Leo Kochlowsky. Quatro testemunhas oculares e o facto de Rechmann ter andado um pouco perturbado após essa visita confirmavam‑no.

Esta noticia fez com que todos os que estavam em pânico se juntassem. Assim, doze respeitáveis senhores, cujos nomes eram conhecidos em toda a parte, encontraram‑se na sala de reuniões da fábrica de móveis "Scumsky & Filho". Após terem trocado cumprimentos como velhos amigos, fumaram grossos charutos, beberam um bom vinho do Porto e conhaque francês e finalmente ouviram aquilo que o proprietário da empresa de lavagem de cilindros a vapor, Lohrrnann, tinha a dizer. Este, depois de longas divagações, chegou a uma conclusão:

‑ Não podemos tentar ignorar o facto de que se a maldita lista se tornar conhecida isso significará o nosso fim. Os divórcios que daí resultarão seriam um mal menor. Se partirmos do pressuposto que Kochlowsky recebeu a lista como contrapartida pelo atentado, então ele tem‑nos a todos nas mãos. Por favor, encarem esta realidade; isto é um facto. Creio que não preciso de explicar o que isso significaria para nós. Ele pode arruinar‑nos com uma incrível facilidade.

‑ O que podemos fazer contra isso? ‑ perguntou o fabricante de cartões. Era dos que se encontravam especialmente ameaçado, dado que obtivera a fábrica por via do casamento. Se a sua mulher se quisesse divorciar (o que faria de certeza) tornar‑se‑ia um mendigo. No seu caso tratava‑se de tudo ou de nada. ‑ Talvez devêssemos disparar de novo, mas desta vez sem falhar?

‑           E isso ajudaria? O diário com a lista continuaria a existir. O que nós precisamos é de tentar obter a lista!

‑           O senhor é tão ingénuo a ponto de pensar que Kochlowsky a entregaria voluntariamente?

‑           Devia‑se tentar descobrir o que ele pretende fazer com a lista.

‑           Sabe o que lhe responderá? "Agora vocês vão saltar como uns coelhinhos !"

‑           Mas alguma coisa terá de acontecer. Senão, viveremos numa angústia permanente.

‑           Podíamos tratar Kochlowsky de outra maneira - propôs o fabricante de objectos de coiro num tom filosófico. ‑ Integrando‑o, por exemplo, no nosso Círculo da Sociedade.

‑           Isso é simplesmente impossível! O Círculo da Sociedade de Wurzen é o círculo mais prestigiado da cidade. As nossas mulheres desmaiariam.

‑           Elas desmaiarão com uma certeza maior ainda quando tomarem conhecimento dos nomes da lista.

‑           Antes de mais, seria conveniente verificarmos se Kochlowsky está realmente de posse da lista e qual a sua opinião em relação a este assunto. ‑ O fabricante de móveis Scumsky voltou a encher os copos de conhaque. ‑ Disponho‑me a falar com o homem. Estão de acordo, meus senhores?

Os outros anuiram em silêncio. O que mais haviam de fazer? Uma vida inteira podia ser destruida por apenas uma vez não se terem comportado como maridos fiéis. O facto de Kochlowsky não fazer parte da lista aumentava o rancor desses senhores. Isso teria facilitado bastante as coisas, talvez até resolvesse tudo.

Mas que estavam para ali a dizer? Quem garantira que Kochlowsky não estava incluido na lista? Quem conhecia a tal lista? Só Rechmann! E por que motivo Rechmann supostamente entregara a lista a Kochlowsky? Para remediar o atentado e se calhar só por isso, dado que Kochlowsky constava igualmente da lista dos nomes! Até podia ser que para Rechmann tivesse sido uma espécie de último triunfo, como se quisesse dizer: "vês, Kochlowsky, não estás sozinho. Toda a fina sociedade de Wurzen encontra‑se ao teu lado e atrás de ti. A tua querida Blandine era uma dessas". Teria sido esta a última vingança de Rechmann? Teria feito aquilo para ferir o orgulho de Kochlowsky?

Todas estas perguntas preocupavam Scumsky quando foi falar com Kochlowsky no escritório da gerência da fábrica de tijolos.

Kochlowsky estava sozinho e ficou admirado com a visita de Scumsky. Ofereceu‑lhe uma cadeira.

‑           Aceita um charuto e vinho do Porto? ‑ perguntou.

‑           Não, muito obrigado. ‑ Scumsky sentou‑se com um suspiro. A tarefa de falar com Kochlowsky pesava‑lhe muito. "Devia ir directamente ao assunto", pensou. "É a melhor maneira de falar com Kochlowsky". ‑ O senhor ouviu falar na lista?

‑           Que lista? ‑ Kochlowsky sentou‑se em frente a Scumsky. ‑ A nossa nova lista de ofertas? Ficou admirado com ela? Pois é, vamos ampliar bastante as nossas instalações e a escolha vai aumentar significativamente.

Scumsky passou a mão pela cara.

‑           Estou a referir‑me à lista que estava incluída no diário de Blandine Rechmann. Uma lista com nomes...

‑           Ah, essa. ‑ Kochlowsky sorriu, aparentando uma certa reserva. De repente percebeu o porquê daquela visita, mas ainda não compreendia o que poderia ter ele a ver com a lista. Até então só ouvira falar nela. E agora Scumsky encontrava‑se sentado à sua frente e tudo indicava que o seu nome fazia parte da lista. Pelo menos, parecia ter razões para supô‑lo. ‑ Sim, conheço‑a...

Scumsky suspirou, aliviado. "Ele confessa que a tem. Disse: conheço‑a." Um perigo para a sua vida estava sentado mesmo ali, diante de si. As suas suposições ficavam confirmadas.

‑ Podemos conversar sobre essa lista diabólica, senhor Kochlowsky? ‑ perguntou com uma voz nervosa. Tinha a garganta seca.

- Claro, porque não? Porque não haveríamos nós de falar dessa lista? Ela ainda dará muito que falar...

‑ Dará... ‑ Scumsky empalideceu e foi invadido por um suor frio. ‑ Isso quer dizer que poderá ser feito uso dela?

‑ Ela vale mais do que ouro! ‑ Kochlowsky acendeu um charuto. "Que burro que este Scumsky é!"

‑ Se é esse o seu problema... ‑ disse Scumsky cheio de esperanças. ‑ A questão financeira pode ser discutida... Se for só isso... ‑ Inclinou‑se para a frente e olhando para Kochlowsky pensou: "Maldito chantagista!". Sorriu, constrangido. Estava realmente disposto a dar muito, muito mesmo, para salvar a sua honra e a sua fábrica.

 

Foi uma conversa desagradável, no fim da qual Scumsky já não sabia bem o que afinal fora dito. Não haviam chegado a nenhum consenso, tudo o que Scumsky ficara a saber era que não poderia comprar Kochlowsky nem por todo o dinheiro do mundo. A sua frase, "a lista vale mais que ouro", fora mera retórica. Para Kochlowsky tratava‑se apenas ‑ e Scumsky apercebeu‑se disso com horror ‑ do poder que a partir de então teria sobre os envolvidos. Estavam todos nas suas mãos e não havia nada a fazer. Algumas indicações dadas ao acaso podiam ser fatais! E não havia nada que se pudesse fazer contra ele ‑ isso era o pior de tudo!

Passada uma hora Scumsky despediu‑se, deprimido, mas sempre tentando parecer muito seguro de si, e regressou a Wurzen. Os seus companheiros de sofrimento ficaram horrorizados com o resultado da conversa, mas no fundo já o esperavam. Esse Kochlowsky era um demónio. Agora compreendiam por que o pobre guarda‑florestal Rechmann disparara contra ele, mas continuavam sem entender por que razão lhe dera a lista fatal. Na brasa da raiva a razão queima‑se com facilidade.

à noite, Kochlowsky jantou bolinhos de batata à maneira saxónica, com costeletas de porco fritas. Realmente é bom ter uma mulher que é cozinheira, sobretudo quando foi cozinheira de príncipes. Kochlowsky comeu com grande apetite, bebeu uma cerveja que Sofia trouxera numa caneca

de vidro e depois sentou‑se satisfeito numa poltrona e abriu o Jornal de Wurzen.

‑ Já ouviste o mais recente boato? ‑ perguntou a Sofia, em jeito de quem quer conversar e sem olhar para ela.

‑ Em Wurzen correm tantos boatos ‑ respondeu Sofia, sentando‑se no banco em frente ao fogão de sala e começando a tricotar. Estava a fazer um casaquinho para Vanda poder ir passear na Primavera. Jacky, o lulu branco, deitara‑se aos pés de Leo: um quadro de harmonia familiar, como se tivesse sido pintado por Richter. ‑ Wurzen sem boatos seria quase insuportável. Os boatos são o tempero de WuGrzemn! ‑ Kochlowsky olhou para a mulher com um ar entusiasmado.

‑ Tenho de fixar bem essa frase: o tempero de Wurzen. Eu estava a referir‑me ao boato sobre o diário...

‑ Ah! ‑ Sofia voltou a concentrar‑se no seu tricot.

‑           O diário de Blandine Rechmann...

‑ Sim; sabes dessa história?

‑ Não, nada. E tu, o que é que sabes?

‑ Hoje fiquei a saber mais!

‑ Viste o diário?

‑ Não, falei com alguém que teme que o seu nome esteja lá incluído. Diz‑se que o diário contém uma lista de todos os homens que...

‑ Isso diz‑se. ‑ Sofia olhou rapidamente para Leo. ‑     O que é que tu tens a ver com a lista?

‑ É exactamente isso. ‑ Kochlowsky riu‑se levemente. - Supõe‑se que eu tenho o diário...

‑ Tu? Porquê tu? Por que motivo haveria a senhora Rechmann de te dar o diário dela...?

- É o que eu digo, a suposição é absolutamente ridícula. E, de qualquer maneira, deve ter sido Ferdinand Rechmann e não a própria Blandine quem entregou o diário a alguém, como herança vingativa.

‑ Ah, sim. E tu tens o diário?

- Não! Mas as pessoas pensam que o tenho!

- Com que justificação?

‑ Justificação! ‑ Kochlowsky percebeu que a sua mulher cuidadosa e inteligente estava a tentar colocá‑lo entre a espada e a parede e que teria que se defender. Com toda a sua inocência Sofia fora muito esperta. As suas perguntas estavam a tornar‑se incomodativas. ‑ O que queres dizer? Os boatos costumam ter uma justificação?

‑ Um boato tem sempre uma pequena parte de verdade, Leo. Onde existe fumo também há fogo.

‑ Tu e as tuas estúpidas frases dos tempos da avó! - resmungou Kochlowsky. ‑ Durante a conversa cheguei à conclusão que todos pensam que Rechmann me deu o diário com a lista.

‑ Mas por que haveria ele de dá-lo exactamente a ti? - repetiu Sofia com ar ingénuo.

‑ Não faço a mínima ideia! ‑ Sofia nunca soubera do atentado de Rechmann... Kochlowsky queimara a cartola na fábrica e dissera‑lhe que uma lufada de vento a deitara ao chão e um cavalo a pisara. Kochlowsky tinha a certeza que ela acreditara. ‑ Também fiquei muito surpreso ao ouvir isso!

‑ E o que foi que lhes disseste?

‑ Fi‑los acreditar que era verdade.

‑ Leo!

‑ Agora não desmaies só por isso. Deixa‑os ficar assim, aflitos.

‑ Mas por que motivo tens que te dar mal com todas as pessoas?

‑ Dar‑me mal? Mas é exactamente isso que vai acabar! ‑ Kochlowsky bebeu um grande gole de cerveja e sentiu‑se muito bem. ‑ Vão todos encolher‑se na minha presença. Esses burros convencidos!

‑ Aquilo que tu estás a fazer não é nada justo ‑ disse Sofia com calma, continuando a tricotar o casaquinho para Vanda. ‑ Qualquer dia ficarão a saber da verdade... e depois, o que te acontecerá? Com mentiras consegues ir a todo o lado, mas não voltar.

‑ Outra daquelas velhas frases da avó! ‑ Kochlowsky afastou o jornal. ‑ Esses ditados também eu sei: quando o

sol brilha no pino o estrume fede! E estas pessoas são um grande monte de esterco! A partir de agora já não responderão com maus cheiros.

‑ Tu é que sabes o que fazes, Leo. ‑ Sofia abanou a cabeça. ‑ Afinal, sabes sempre tudo melhor do que os outros.

‑ Pois sei! ‑ Kochlowsky esticou as pernas, passou a mão pela barba e continuou a ler o jornal.

Não reparou que Sofia o observava com um olhar que dizia: "Tu és igual aos outros, és um fariseu... mas eu amo‑te na mesma."

 

A Primavera chegou rapidamente, trazendo o derreter da neve, os ventos quentes de Thúringen e caminhos enlameados e amolecidos durante semanas.

Leopold Langenbach voltou para a fábrica depois de um longo período de doença que ninguém soube explicar. Louvou Kochlowsky, por na sua ausência tudo ter corrido tão bem.

‑ Eu não necessito dos seus elogios ‑ retrucou Kochlowsky, como era de esperar. ‑ Só pode julgar o meu trabalho quem o faz melhor do que eu!

Como Langenbach conhecia Kochlowsky apenas havia um ano, aceitou a resposta calmamente e voltou às suas viagens, que ele designava de atendimento a clientes.

Com o início do degelo começaram também os trabalhos de ampliação da fábrica. A nova tabuleta com a inscrição Cerâmica de Lúbschútz já se encontrava pendurada na entrada. O próprio conde Douglas pregara o último prego e oferecera cerveja a todos para comemorar o dia. Nessa ocasião o senhor Fleckhaus, proprietário da cervejaria, aproximou‑se de Kochlowsky e perguntou‑lhe se não estaria interessado em tornar‑se membro do Círculo da Sociedade. Com que então, Fleckmann também estava incluído na lista! Oh, Blandine, sua mulher ordinária!

‑ Terei que falar sobre isso com a minha mulher - respondeu Kochlowsky, tentando escapar‑se. ‑ Nós, no Círculo da Sociedade? O que está a acontecer em Wurzen? Será que lhe falta o tempero? ‑ rematou Kochlowsky, agradecendo em silêncio a Sofia pela frase.

Fleckhaus despediu‑se e sentiu‑se reforçado na sua opinião de que Kochlowsky era um malcriado.

A Primavera do ano de 1890 foi significativa.

Uma noite, quando Kochlowsky voltou da fábrica e se sentou na sua grande poltrona fatigado, Sofia disse:

‑ Hoje fui à cidade ver o doutor Brenneis.

‑ O quê? ‑ Kochlowsky ergueu‑se repentinamente. ‑ A Vanda está doente?

‑ Não, está tudo muito bem... vou ter outro filho.

‑ Sofia! ‑ Kochlowsky saltou da poltrona, abraçou a sua pequena mulher e beijou‑lhe o rosto infantil. Nesse instante ninguém o teria reconhecido. Havia‑se tornado um homem extremamente carinhoso ‑ Para quando é que está previsto?

‑ O doutor Brenneis diz que será a dezasseis de Fevereiro do ano que vem.

‑ Ele é algum vidente?

‑ Não, o doutor Brenneis tem um esquema de cálculos. De qualquer maneira, será em Fevereiro. ‑ Sofia libertou‑se do abraço e afastou os cabelos louros da cara. ‑ Agora temos muito tempo para nos zangarmos com a escolha do nome...

‑ Isso não será necessário! ‑ Kochlowsky esfregou as mãos. ‑ O nome Vanda já está dado! Graças a Deus, a gorda Vetel Lubenski não tem um segundo nome! E se for um rapaz chamar‑se‑á Leo...

‑ Isso não! Um Leo Kochlowsky para mim já basta.

‑ Lá estamos nós! ‑ Kochlowsky deu uma palmada no traseiro de Sofia e riu‑se alto. ‑ Serve‑me o vinho, minha querida... sempre desejei ter uma grande família. Só pelo simples facto de ninguém me imaginar capaz disso! Mas afinal, quem tem a sorte de ser casado com um anjo?

 

Quem não estava de acordo com isto era Leopold Langenbach. Soube através do senhor Plumps que os Kochlowsky iriam ter o segundo filho e mais tarde, durante uma conversa, o próprio Kochlowsky transmitiu‑lhe a notícia.

‑ E o senhor fica contente? ‑ perguntou Langenbach, amargurado.

‑ Claro que sim!

‑ A sua pequena e frágil mulher é fraca de mais para poder aguentar essa carga.

‑ O senhor não pode avaliar isso e, de qualquer maneira, não é da sua conta!

‑ Além disso, é uma irresponsabilidade perante a Humanidade pôr mais Kochlowskys no mundo...

A partir desse momento, ocorreu um corte definitivo nas relações entre Langenbach e Kochlowsky. Estavam frente a frente, à espera que acontecesse algo de imperdoável. Kochlowsky desejou ter consigo um daqueles chicotes com os quais atravessara os campos de Pless a cavalo e Langenbach agradecia o facto de ter treinado os músculos desde a juventude.

‑ Seu canalha! ‑ lançou Kochlowsky, cheio de desprezo.

‑ Seu irresponsável! ‑ retorquiu Langenbach. ‑ Quando é que se vai embora de Wurzen?

‑ Quando tiverem afogado o senhor em esterco.

Já não havia nada a dizer entre os dois. Langenbach dirigiu‑se para a porta a passos rápidos.

‑ A partir deste momento, proíbo‑lhe a entrada no meu escritório ‑ disse. ‑ Se tiver qualquer coisa a comunicar‑me, faça‑o por escrito.

‑ Era exactamente isso que eu ia dizer! ‑ berrou Kochlowsky. ‑ Se voltar a meter o seu crânio aqui dentro, leva com um banquinho na nuca!

‑ Não se esqueça de quem é o patrão aqui!

‑ É o conde Douglas! ‑ gritou Kochlowsky. Langenbach atingira‑o no seu ponto mais fraco. ‑ Desde quando a cauda é a parte mais importante do cão?

Langenbach bateu a porta com uma raiva incontrolável. Com Kochlowsky não se podia discutir. Para voltar a ter paz só havia uma solução. Teria de se propor ao conde que fosse ele a tomar uma decisão: escolher entre Kochlowsky e Langenbach ‑ não havia lugar para os dois na Cerâmica de Lúbschútz.

 

O "Clube da Lista de Blandine", como o fabricante de tecidos chamava aos amantes que se tinham unido amigavelmente, acalmara‑se um pouco. Entretanto, haviam compreendido que Kochlowsky permanecia silencioso e não fazia uso daquilo que sabia. Supunha‑se que não era por motivos de amizade, mas porque o seu próprio nome estava incluído na lista e tinha todo o interesse em permanecer calado. Kochlowsky não reagira à proposta do Círculo da Sociedade feita pelo proprietário da cervejaria, Fleckmann. Parecia não tê‑la levado a sério. Dir‑se‑ia ter julgado que a proposta fora consequência de uma bebedeira.

Em fins de Maio, porém, surgiu uma oportunidade de demonstrar a Kochlowsky que se estava realmente disposto a incluí‑lo na vida social de Wurzen: Eugen Kochlowsky, o famoso autor de romances, veio visitar o seu irmão em Wurzen.

Apareceu inesperadamente. Um dia surgiu no vestíbulo, de repente, de braços abertos, quando Sofia vinha a sair da cozinha com Vanda.

‑ Aproxima‑te do meu coração, minha cunhada de caracóis dourados! ‑ exclamou Eugen num tom dramático, como era seu hábito. Jacky, o cão, que se aproximara dele a correr e a ladrar, parou de repente, farejou as suas calças e correu para a porta a ganir. ‑ O vosso cão cheirou logo que eu não vim sozinho. Trouxe César comigo. Ele quis vir à força visitar o seu antigo dono. Será que reconhecerá Leo? Em Pless ainda lhe chamam a besta do gerente. Oh, encantadora cunhada, que Primavera!

Beijou Sofia e Vanda, voltou para o coche e soltou César, o enorme doberman. Este atirou‑se de imediato para cima de Jacky, que se deitou de costas e lhe deu uma dentada na barriga. O doberman, apanhado de surpresa, ladrou assustado, afastando‑se, e depois agachou‑se para voltar a saltar. Mas ficou‑se por aí. Aproximou‑se devagar, farejou Jacky, sentiu o cheiro de Leo Kochlowsky e começou a abanar a cauda. Eugen riu‑se às gargalhadas.

‑ Eles parecem dar‑se bem... Sofia, meu anjo, o que achas de saborearmos um vinho? Se bem conheço o meu irmão, deve ter excelentes vinhos na cave.

‑ O Leo sabia da tua vinda? ‑ perguntou Sofia enquanto estavam sentados na sala a beber um leve vinho do Mosela. Eugen devorava ‑ e realmente devorava ‑ metade do bolo que Sofia preparara para o sábado seguinte. Grunhia de prazer enquanto comia. Teve que se sentar na borda da cadeira, porque o seu traseiro ocupava o assento por completo.

‑ Quanto é que tu pesas? ‑ perguntou Sofia, abanando a cabeça.

‑ Eu sei lá! Deve ser mais de cem quilos.

‑ E não tens medo de explodir?

‑ Passei fome durante quarenta e um anos... agora há três anos seguidos que não paro de comer. Não é um bom método? Quando eu era magro ninguém lia os meus manuscritos, não liam sequer uma página. Mas se pareceres uma pessoa bem alimentada, sem preocupações e com ar de sucesso... então arrancam‑te as folhas das mãos. Há pouco fiz uma experiência. Mandei um conto a um famoso jornal berlinense. Era a história de uma meia que cheirava mal. Pensei: "Com esta, eles ficarão furiosos e enviar‑me‑ão uma carta muito dura!" E o que achas que aconteceu? O conto foi publicado e teve um enorme sucesso. Até houve um crítico que escreveu: "Isto são os primeiros sinais de um autor socialista! É disto que nós precisamos: nada de rosas e rosinhas, e sim o cheiro do mundo real do trabalho! Isto é a expressão da era industrial em que vivemos!" Será possível? Uma meia malcheirosa como nova literatura... Para onde estamos a caminhar? Por isso, bela cunhada, não fales mal da minha barriga. Ela é a expressão do meu sucesso.

à noite, Leo Kochlowsky teve uma grande surpresa.

Quando chegou ao seu jardim um enorme doberman veio ao seu encontro, apoiou as patas dianteiras no seu peito e lambeu‑lhe a cara.

‑ César... ‑ balbuciou Kochlowsky, profundamente emocionado. ‑ Meu gigante! Meu cão! Seu malvado! Como é que apareceste aqui?

Apertou o cão contra o seu corpo, olhou à volta e viu Eugen atrás da porta de entrada. Jacky passou por ele, ganindo como os lulus o fazem, e saltou para cima de Leo. Rodeado pelos dois cães, Kochlowsky entrou no vestíbulo e disse naquela sua maneira bem típica:

‑ Por que foi que não nos avisaste da tua vinda, Eugen? Vamos passar uma magnífica semana, porque pelo que te conheço deves permanecer aqui esse tempo. Meu Deus, como engordaste!

‑ Como pode um anjo como tu suportar um ferrabrás destes? ‑ ripostou Eugen, passando o braço pela cintura de Sofia. ‑ Volta para Pless... e no palácio içarão as bandeiras e os corneteiros tocarão para ti.

‑ Onde está o meu cacete de madeira? ‑ gritou Kochlowsky, embora os seus olhos brilhassem de alegria. ‑ Vou dar‑lhe uma sova tal que ele vai perder logo dez quilos de banha.

Foi uma noite agradável. Depois da ceia Eugen bebeu duas garrafas de vinho tinto sozinho, declamando a seguir os versos de um dos seus novos dramas, que tratava do rei dos Suecos, Gustavo Adolfo, e no qual o papel principal cabia a uma feirante que no seu carrinho de vendas levantava mais as saias do que vendia mercadoria.

‑ Seu porco! ‑ disse Sofia quando Eugen acabara de contar a história. ‑ E uma peça destas é representada em palco? Como a cultura alemã baixou de nível!

‑ Ela realmente tem que descer bastante... ‑ Kochlowsky sorriu. ‑ Um povo que imprime e lê Eugen Kochlowsky avançou o suficiente!

Eugen não conseguiu acabar a terceira garrafa de vinho. Leo levou‑o para a cama e constatou com admiração que César também saltava para os lençóis, deitando‑se aos pés dele.

‑ O que aconteceu contigo, César? ‑ disse Kochlowsky num tom de censura. ‑ Quando andavas comigo todos tinham medo de ti! E agora? Tornaste‑te um grande cobardolas, apenas com um grande focinho e completamente inofensivo. Que vergonha, César...

César olhou para Kochlowsky com os seus olhos castanhos e tristes, suspirou e começou a ressonar alto, como se quisesse calar definitivamente mais repreensões. Leo saiu do quarto de hóspedes abanando a cabeça.

‑ Quanto tempo é que ele vai ficar? ‑ perguntou Sofia enquanto arrumava os copos.

‑ Não sei. E também não lhe vou perguntar... Estou muito contente por ele ter vindo. Querida, amanhã prepara um ganso. Ele gosta tanto de ganso assado com repolho roxo...

Este era o outro lado de Leo Kochlowsky ‑ quase inacreditável!

 

Eugen permaneceu duas semanas em Wurzen. Achava a cidade muito agradável, o que o seu irmão estranhou.

A sua suspeita foi confirmada quando Fleckmann apareceu na fábrica de tijolos quatro dias após a chegada de Eugen. Vinha‑lhe participar que o Círculo da Sociedade estava interessado em organizar uma noite literária com o autor Eugen Kochlowsky.

‑ Querem que o meu irmão leia as suas próprias obras? ‑ perguntou Kochlowsky, horrorizado.

‑ Era isso que tínhamos em mente. ‑ Fleckmann sorriu, cheio de esperança. ‑ E essa leitura será completada com a actuação da orquestra de câmara de Wurzen. Além disso, a senhora Hille, um óptimo soprano, ofereceu‑se para cantar algumas canções de Schubert. Será uma noite muito agradável.

‑ Sabem em que é que se estão a meter? ‑ perguntou Kochlowsky.

‑ Claro; conhecemos alguns dos livros do seu irmão!

‑ Pelo que eu sei de Eugen, lerá passagens do seu novo drama.

‑ Maravilhoso!

‑ Trata da guerra dos Trinta Anos e de Gustavo Adollo.

‑ Excelente! ‑ O semblante de Fleckmann irradiava uma grande alegria. ‑ Esse é um tema que interessa a todos os habitantes de Wurzen.

‑ Estou a avisá‑lo, senhor Fleckmann! ‑ Kochlowsky afagou a sua longa barba. ‑ Então o senhor insiste nessa noite literária?

‑ Não necessariamente, mas seria um prazer para nós ouvirmos o autor Eugen Kochlowsky ler algumas das suas obras...

Fleckmann saiu da fábrica de tijolos com a certeza de ter dado a volta a Leo Kochlowsky, de modo a mais tarde ter oportunidade de falar com ele em detalhe sobre a maldita lista dos amantes de Blandine Rechmann.

Como era de esperar, Eugen mostrou‑se imediatamente de acordo quando lhe pediram esse favor durante uma conversa acompanhada de um copo de vinho. A direcção do Círculo da Sociedade ficou entusiasmada com a tarde passada na companhia de Eugen, embora o poeta tivesse recitado alguns dos seus versos ‑ dos mais inofensivos ‑ e uma balada dos Sudetas, na qual também aparecia o gigante lendário Rúbezahl. A noite literária teria lugar no sábado seguinte.

Começou‑se logo a enviar os convites e a imprimir os folhetos. A orquestra de câmara de Wurzen iniciou os ensaios enquanto a senhora Hille constituía uma constante irritação para a sua família ao repetir vezes sem fim as canções de Schubert, sobretudo a famosa "Truta".

Todos estavam bem dispostos, à excepção de Leo. Três dias antes da grande noite declarou ao irmão num tom ameaçador.

‑ Eu repito, ó gordo: mal tu comeces a recitar versos ordinários no palco, arrancar‑te‑ei de lá e dar‑te‑ei uma sova em frente de todos os presentes. Ficou bem claro?

‑ Como é hábito, exprimiste‑te de uma maneira muito clara, Leo!

‑ Os habitantes de Wurzen continuam chocados por causa dos vossos "desenhos vivos".

‑ Os actores vestiam fatos de malha! Não temos culpa de os habitantes de Wurzen terem uma fantasia tão hipócrita.

‑ Estou só a avisar‑te, Eugen! ‑ Kochlowsky encarou o seu irmão com ar ameaçador. ‑ Não me posso dar ao luxo de permitir um escândalo, irmão! Sobretudo agora.

‑ Voltaste a ofender as pessoas?

‑ Cortei relações com Leopold Langenbach.

‑ Ora bem!

‑ Ele anda atrás da Sofia ‑ gritou Kochlowsky.

‑ Mas ela também vale ouro!

‑ Ele censurou‑me por Sofia ter mais um filho e repreendeu‑me. Será que ele pretende que lhe pergunte se posso ir para a cama com a minha mulher? Terei de lhe perguntar isso quando sou casado com ela? Será que se quer deitar ao nosso lado e gritar: "alto, agora chega"?

‑ Que horror, Leo! ‑ Eugen uniu as mãos em frente da sua enorme barriga. ‑ As tuas eternas zangas não irão impedir‑me de desenvolver o meu carácter artístico. Agora tenho um nome a defender! Enfim, o nome Kochlowsky tornou‑se conhecido, mas só quando aparece com Eugen à frente! Devias orgulhar‑te disso!

‑ Estou a avisar‑te ‑ insistiu Kochlowsky. ‑ Eugen, repito: as coisas podem tornar‑se extremamente desagradáveis!

Na noite de sábado, às vinte horas, a sala de espectáculos do Hotel "Cidade de Leipzig", o lugar preferido do Círculo da Sociedade, encontrava‑se completamente repleta. Até trouxeram cadeiras suplementares que foram colocadas ao longo da parede. Dir‑se‑ia que metade de Wurzen queria assistir à noite literária de um Kochlowsky, para mais tarde poder relatar esse acontecimento às gerações seguintes.

Os membros da direcção do Círculo da Sociedade estavam à porta e cumprimentavam os convidados com um aperto de mão. Quando Leo Kochlowsky e Sofia apareceram, um rumor espalhou‑se pelo público. Foram recebidos de maneira muito amável. Fleckmann e Scumsky beijaram a mão a Sofia e Kochlowsky vingou‑se piscando o olho às senhoras Fleckmann e Scumsky, o que as fez corar intensamente. Apesar da sua má fama, Kochlowsky era um homem que provocava imediatamente desejos secretos nas mulheres.

Leo e Sofia~ foram acompanhados até à primeira fila, para um lugar de honra, e uma menina com um vestido branco com rendas entregou com uma mesura um ramo de flores a Sofia. Tudo para que Kochlowsky ficasse bem disposto.

Eugen encontrava‑se nos bastidores. Segurava os manuscritos e decorava a sua apresentação. A orquestra de câmara de Wurzen já estava no palco e afinava os instrumentos enquanto a senhora Hille se retirara para uma pequena sala nas traseiras, chamada a "sala dos artistas", onde preparava a sua actuação. "Tirilili... tralalala. . . " O velho professor de canto, antigo professor de música da escola de Wurzen, fez um gesto de cabeça aprovador.

Flúgge, o caixeiro do banco, e ao mesmo tempo director artístico dessa noite, observava o público e sobretudo Leo Kochlowsky através de um buraquinho na cortina.

‑ Parecem sardinhas em lata ‑ notou. ‑ Já não há espaço nem para um alfinete. Nunca vi nada assim. Vamos ganhar muito dinheiro! O senhor Eugen Kochlowsky está pronto?

‑Já está à espera.

‑ E a orquestra?

‑ Pronta.

‑ A senhora Hille?

‑ Preparada. Está a aquecer...

‑ Daqui a dez minutos abrimos as cortinas! ‑ Siegmar

Flúgge sentiu o nervosismo apoderar‑se dele e desejou uma cerveja fresca. Atrás dele havia um estrado, enfeitado com inúmeras flores, pronto para Kochlowsky.

Pouco antes de as cortinas se abrirem, Eugen apareceu no palco. Usava um fato de Verão de tons claros, como era moda em Londres nessa Primavera, mas obviamente fora o costureiro polaco de Pless quem o talhara, segundo os modelos da metrópole inglesa.

‑ O senhor ficar homem mais elegante do país! ‑ exclamara Moshe Abramski, entusiasmado, e batera palmas quando Eugen experimentara o novo fato. ‑ As mulheres olhar quando ver homem jeitoso...

Claro que o costureiro não dissera que a enorme barriga de Eugen não podia ser disfarçada, nem mesmo pela mais requintada elegância inglesa. Um bom costureiro fica sempre entusiasmado com a sua própria obra.

As luzes apagaram‑se. Um silêncio festivo desceu sobre os cidadãos de Wurzen: a grande noite estava prestes a começar. Leo Kochlowsky passou a mão pela barba num gesto nervoso e olhou pelo canto do olho para a sua pequena mulher. Sofia tinha repousado as mãos no colo, como era seu hábito, estava um pouco encolhida na sua cadeira e olhava para a cortina que continuava fechada. Era como se ninguém respirasse na sala. Quando alguém ousou tossir muito balxinho quase se sentiu a indignação do público.

Atrás da cortina soou o tambor emprestado pela orquestra dos bombeiros. A cortina abriu‑se devagar e de uma forma muito solene aos acordes do primeiro andamento da "Pequena Serenata Nocturna" de Mozart. O estrado no meio do palco causava arrepios de nervosismo nas costas dos membros da audiência.

Um escritor iria ler as suas obras...

Depois do primeiro andamento da "Pequena Serenata Nocturna" foi a vez da senhora Hille. Usava um vestido de noite azul com folhos e rendas e parecia um pouco pálida. O pianista que a acompanhava ao piano de cauda ‑ na realidade, o professor Ernst Hailer ‑ flectiu os dedos um a um, soprou nas mãos e esticou os braços. Um virtuoso precisa primeiro de se relaxar. Depois remexeu‑se por quatro vezes no seu banco, até ter encontrado a posição correcta, e fez um sinal à senhora Hille

‑ Eu talharia com gosto todos os troncos...

A voz da senhora Hille, ainda um pouco insegura e com um toque de nervosismo, encheu a sala. Era uma voz bonita e os cidadãos de Wurzen orgulhavam‑se muito dela. Não era nenhuma cantora da ópera Real da Corte de Dresden, mas levando em consideração que se estava na província, já podia ser considerada bastante boa.

Eugen Kochlowsky aguardava numa das alas com os manuscritos debaixo do braço. Flúgge, o director artístico, encontrava‑se ao seu lado, muito contente.

‑ Quanto tempo é que ela vai continuar a choramingar? ‑ perguntou Eugen de repente. Flúgge estremeceu.

‑ A senhora Hille interpreta três canções como introdução...

‑ Afinal, eu podia ter trazido o César.

‑ Eu pensava que o senhor iria ler as suas próprias obras...

‑ César é o meu cão. É um doberman. Quando lhe piso na cauda, uiva bem melhor do que aquela mulher aí em frente...

Flúgge calou‑se. "Eugen ou Leo... eram os dois Kochlowskys. Todos da mesma estirpe! O seu comportamento, a maneira de falar... eram iguais em tudo. Mas as coisas eram mesmo assim e tinha‑se que suportá‑los!"

Depois da terceira canção, um silêncio ansioso desceu sobre a sala. Leo Kochlowsky encolheu a cabeça. Pela primeira vez sentia uma certa vergonha daquilo que o seu irmão Eugen iria apresentar.

Um foco de luz muito intensa, vindo de uma potente lâmpada de gás munida de um reflector de prata, iluminou o estrado coberto de flores: Eugen Kochlowsky surgiu no palco, soberano e sorridente. Era gordo, tinha encaracolado os cabelos e com o seu fato de corte inglês parecia ainda mais redondo. Leo, que não o vira durante toda a tarde e por isso não sabia do penteado, conteve um pequeno suspiro.

Eugen subiu ao estrado e pousou as suas folhas na pequena plataforma de madeira diante de si. O seu olhar percorreu os espectadores. Reparou no seu irmão Leo na primeira fila e quando viu que este batia com o dedo na testa a sua cara franziu‑se.

Sentiu uma espécie de raiva. "O meu irmão mais novo está a fazer pouco de mim... Espera, Leo! A noite ainda mal começou!", pensou.

Eugen iniciou a sua actuação com uma ode que se assemelhava muito às obras de USlderlin. Descrevia a beleza de um dente‑de‑leão. É no facto de ter escolhido um dente‑de‑leão, e não uma rosa ou um lilás, que reside a liberdade do poeta. De qualquer maneira, soava bem, o público parecia entusiasmado. Nunca haviam imaginado um dente‑de‑leão desta perspectiva. Nas relvas de Wurzen era considerado apenas uma erva daninha.

O aplauso foi frenético. Eugen olhou para Leo com um ar triunfante. Também ele batia palmas, mas ao contrário: com as costas das mãos. Nas pálpebras de Eugen as veias começaram a inchar‑se de raiva. Sentiu‑se como antigamente, na sua infância em Nikolai. Naquela altura, quando ele, o irmão mais velho, dizia qualquer coisa a Leo ou quando o repreendia, Leo batia sempre palmas com as costas das mãos e gritava "coxo! coxo!". Eugen nunca conseguira bater‑lhe, pois coxeava desde nascença e nunca fora tão rápido como Leo.

E agora voltava a fazê‑lo. Só faltava gritar "coxo!". Mas hoje, Eugen era mais forte do que Leo e este ainda não se apercebera disso!

A segunda leitura era um capítulo do romance O Pai Empedernido, ainda não publicado. Contava a história de um homem extremamente mau, que ameaçava constantemente a família e as pessoas à sua volta. Dado que muitos ou quase todos os espectadores se lembraram logo de Leo Kochlowsky, o aplauso no final desta parte foi grande. Eugen fez uma vénia.

Leo Kochlowsky cerrou os punhos. Compreendeu o que Eugen quis dizer. "Espera até chegares a casa", pensou. "Arranco os teus caracóis um a um, canalha! E depois expulso‑te da minha casa com um pontapé nesse enorme traseiro."

A orquesta de câmara de Wurzen tocou um pequeno intermezzo, um extracto da Música Aquática de Hãendel. Eugen permaneceu no estrado, folheando os seus manuscritos e saboreando o prazer da vingança.

"Leo, meu irmão, agora é que vais ver! Agora nem o esfregar das costas das mãos te ajudará."

‑ A seguir vão ouvir ‑ anunciou com voz bem modulada ‑ o monólogo da feirante Julie àffchen, extraído do meu romance dramático sobre Gustavo Adolfo: O Acampamento à Beira do Rio. Terceiro acto. à noite. Julie àffchen está sentada no seu carro contando os lucros do dia. O seu cão Porquinho encontra‑se a seu lado a lamber‑se naquele sítio onde o homem não consegue chegar...

Leo Kochlowsky rolou os olhos. "Não", pensou aflito, "não, Eugen, não faças isso! Suplico‑te... cala a boca!"

As pessoas na sala ficaram inquietas. A referência à impossibilidade do homem indicava exactamente o sítio que o cão lambia. E o nome Porquinho para um cão era no mínimo pouco usual.

Através da postura e da mímica Eugen Kochlowsky transformou‑se na feirante Julie àffchen e declamou:

‑ Não olhes para mim com esse ar estúpido, Porquinho! Sim, hoje foi um dia mau. Quem é que passou por aqui? Os homens mais horríveis. Quase sem dinheiro nenhum! Seis homens estiveram aqui, comigo, na palha, e pagaram uns tostões. Mas nós não os podemos escolher, pois não, Porquinho? Nós temos que nos alimentar, por isso não olhes assim para mim! O meu corpo ainda é atraente, hen? O que é que tu queres? Quem toca uma harpa velha fica contente com cada som que consegue produzir...

A segunda fila ondulou. Entretanto, a mulher do farmacêutico desmaiara. Fleckmann, o dono da cervejaria, olhou para Leo Kochlowsky com o semblante escandalizado. Do fundo da sala ouviu‑se uma voz gritar:

‑ Que porcaria! Parem! Queremos outra coisa! Música!

Aos poucos a agitação generalizou‑se. Ouvia‑se a restolhada de pés a mexerem‑se e um sussurrar encheu a escuridão. Eugen Kochlowsky contornou o estrado, fingindo ser a feirante Julie àffchen, e coxeou até à borda do palco. Imitava tão bem a voz de uma mulher que quase poderia fazer parte da Companhia Real de Teatro da Corte de Dresden.

‑ Coitada de mim, que há dezassete anos viajo pelo mundo, percorrendo montes e vales, pântanos e florestas, sempre ao serviço dos homens, ontem do segundo‑sargento mosqueteiro, hoje do tenente cavaleiro, amanhã do pregador...

Nesse instante o pastor Maltitz, sentado a meio da sala, levantou‑se bruscamente e atravessou as filas dos convidados. Não protestou com palavras, mas a sua partida foi um claro sinal para o público presente. Subitamente, metade dos convidados ergueu‑se e dirigiu‑se para a saída. Os outros ainda hesitaram. A personagem de Julie àffchen até era divertida, mas as esposas presentes estavam indignadas e comentavam maldosamente.

‑ Com o que é que a vida me presenteia? ‑ declamava Eugen a plenos pulmões. ‑ Quando a hora da morte chegar, continuarei deitada na palha, e se um padre me perguntar:

"JUlie, como foi a tua vida?" apenas poderei responder:

"padre, até hoje tive quatro mil novecentos e oitenta e um homens. Não acha que foi uma vida miserável...?"

Os últimos convidados levantaram‑se e arrastaram as suas mulheres para fora da sala. Alguém gritou de perto da porta:

‑ Desaparece de Wurzen, porco Kochlowsky! ‑ E o confeiteiro Limperich, habitualmente um homem muito tímido, ameaçou Eugen com o punho. A sua mulher apoiava‑se nele, numa crise de choro.

Os únicos a ficar foram Leo Kochlowsky e Sofia. Agora que a sala estava vazia, Eugen inclinou‑se para a plateia e disse num tom vingativo:

‑ Então, irmãozinho, estás satisfeito comigo?

‑ Desce já daí! ‑ exclamou Leo, cheio de raiva. ‑ Vou-te matar! ‑ E depois berrou alto: ‑ Gordo castrado! Sabes o que fizeste? Acabaste definitivamente com a minha reputação e com a de Sofia em Wurzen! ‑ Colocando o braço à volta de Sofia, apertou‑a contra o seu corpo, como se quisesse protegê‑la. ‑ Não chores, minha mulher ‑ disse numa voz trémula. ‑ Não chores, tudo se resolverá...

‑ Chorar? Eu não estou a chorar. ‑ Sofia soltou‑se do seu abraço e afastou os cabelos louros da cara. ‑ Qual é o vosso problema? Eu achei a actuação de Eugen óptima! Afinal, era essa a vida das prostitutas na guerra dos Trinta Anos! Essas mulheres tinham uma vida muito dura! Porquê tanta indignação quando Eugen diz a verdade?

Leo Kochlowsky viu pasmado como Sofia subiu para o palco e abraçou Eugen, beijando‑o nas faces e gritando para a sala vazia:

‑ Vocês são todos uns burros e hipócritas! Idiotas!

‑ Viva! ‑ gritou Eugen, erguendo os dois braços. ‑ Ela tornou‑se numa verdadeira Kochlowsky! Leo, podes considerar‑te o homem mais feliz do mundo! Onde é que existe outra mulher que apoie sempre o seu marido, mesmo quando ele é um monstro?

Foi uma das poucas vezes em que Leo Kochlowsky se deu por vencido e se afastou sem dizer uma palavra. Sofia conseguiu apanhá‑lo na porta da sala e agarrou‑se a ele. Assim, atravessaram orgulhosos a multidão que se encontrava no exterior e cujo desprezo quase sentiram fisicamente, o que porém não os preocupou nada.

Eugen foi o último a deixar o Hotel "Cidade de Leipzig." Saiu por uma porta traseira, depois de Flúgge, o director artístico, o ter avisado de que em frente à porta principal aguardavam dez homens para lhe darem uma sova.

‑ A arte sempre teve as suas dificuldades e sempre as terá ‑ suspirou Eugen Kochlowsky. ‑ Isso jamais mudará. Coitados dos escritores que estão por vir...

Depois, quando imaginou o que iria ser o fim da noite e o dia seguinte, sentiu um grande mal‑estar.

 

A estada de Eugen em casa da sua bonita cunhada Sofia teve que ser interrompida. Não foi Leo que expulsou o seu irmão Eugen, indignado com a reacção da população de Wurzen, mas sim o próprio Eugen que anunciou, deprimido:

‑ Vou regressar a casa, meu caro. Vou por Leipzig para Berlim e depois para a Silésia. Vocês já têm preocupações suficientes, não precisam de mais problemas. Mesmo assim estou ansioso por saber quanto tempo é que vais aguentar isto. Fico admirado por ainda não ter ocorrido nada.

‑ Já dispararam contra mim, numa emboscada...

‑ Ah! Isso eu não sabia! Senão, teria recitado a balada do caçador furtivo adaptada a Wurzen! ‑ Eugen coxeou pela sala, com a respiração ofegante, e depois deixou‑se cair numa poltrona. Era uma poltrona feita de bom material que aguentava com o peso de Eugen. Da cozinha sentia‑se um cheiro a carne assada, o que, para Eugen, era como o cheiro do paraíso. ‑ Leo, tornaste‑te tão calmo. Ficaste tão bonzinho! Estarás doente?

‑ É que agora tenho uma família. Em breve seremos quatro. ‑ Kochlowsky observou o irmão pelo canto do olho. ‑ Se agora disseres: "coitada da Sofia!", dou cabo de ti!

‑ Não se deve dizer tudo o que se pensa.

Eugen olhou para o César. O doberman estava deitado num cobertor e roncava, olhos semi‑abertos, ao lado de Jacky, o lulu. Parecia sentir‑se muito bem naquela casa.

‑           Queres ficar com ele, Leo?

‑ César? Não! Ele está muito parecido contigo. Um dia também rebentará por ter comido demais. Quando é que te vais embora?

‑ Porquê? Vais mandar desinfectar a casa?

‑ Não! Quero acompanhar‑te à estação.

‑ Tu? Não faças isso, Leo.

‑ Mas é claro que o farei.

‑ Isso pode parecer uma provocação.

‑ Se quiserem podem lamber‑me o...

‑ Isso eles não farão... têm um gosto refinado de mais. Mas terás mais inimigos ainda.

‑ É‑me indiferente.

‑ Para ti talvez, mas não te esqueças de Sofia. Qualquer ida a Wurzen será para ela um martírio.

‑ A Sofia aguenta isso muito bem. Tornou‑se forte!

‑ Estás a esquecer‑te de que ela ainda é uma criança. Acabou de completar dezanove anos! E com essa idade já tem de aguentar a vida contigo...

‑ Daqui a pouco levas um bofetão! ‑ Kochlowsky aproximou‑se da janela e contemplou o jardim florido. Os grandes girassóis brilhavam ao sol e faziam‑lhe lembrar a Polónia e Pless. às vezes é difícil pôr um fim ao passado. ‑ Eu habituei‑me a Wurzen e à fábrica de Lúbschútz, que em breve liderará o mercado nesta zona. Dou‑me muito bem com o conde. Estaria disposto a envelhecer aqui.

‑ Uma vida sem amigos.

‑ Eu nunca tive amigos, Eugen. ‑ Kochlowsky encolheu a cabeça. ‑ Eram sempre uns aproveitadores, uns falsos, uns burros hipócritas e estúpidos!

‑ Tu é que vês o mundo dessa maneira!

‑ Hoje em dia uma pessoa sincera é desprezada e tem que se habituar a isso. Ninguém suporta a verdade. "Ah, senhora conselheira comercial! Como está bonita hoje! Que lindo vestido! É de Paris?" E a senhora conselheira comercial fica toda contente e vaidosa. Na verdade devia‑se dizer:

"Meu Deus, com esse vestido a senhora parece a sua avó! Devolva isso à costureira! E que exagero de pintura que a senhora tem na cara! É hábito encher‑se as rugas de maquilhagem?" Isso seria sinceridade.

‑ Mas uma sinceridade impossível, Leo!

‑ Porquê?

‑ Porque o ser humano é vaidoso, prepotente, invejoso e não tem escrúpulos. E como sabe disso, nunca quer ouvir a verdade, e sim sempre o oposto. ‑ Eugen levantou o nariz em direcção à cozinha, cheirou e suspirou ao pensar na carne que iria comer. ‑ Leo, tens de fazer compromissos no teu comportamento com os outros.

‑ Não sou capaz. ‑ Kochlowsky afastou‑se da janela. - Digo às pessoas aquilo que penso.

‑ Até um dia te matarem à pancada! Ou te eliminarem de outra maneira... Há vários métodos. A intriga maliciosa também pode matar.

‑ Ninguém chega para mim!

‑ Mas pensa na Sofia! Meu Deus, Leo, pensa na tua mulher! Tu és como uma rocha na maré, mas a Sofia será levada pela corrente... e os teus filhos! Quando forem mais velhos os outros pais proibirão os seus filhos de brincarem com os pequenos Kochlowskys. Serão crianças solitárias e desgraçadas. É essa a vida que queres para os teus filhos?

Como era de prever, a conversa acabou com um resmungo de Leo e um grito de alegria de Eugen quando Sofia serviu a comida. Era impossível mudar um homem como Kochlowsky...

 

No dia seguinte Eugen partiu. Leo levou o seu irmão à estação num coche aberto conduzido por um cocheiro da fábrica que, aparentemente, tinha vergonha desta sua tarefa. Tiveram que atravessar toda a cidade e foram vistos por todos. A cara gorda de Eugen estava vermelha de emoção. Admirava a coragem de Leo em fazer esta viagem. Subitamente alguém gritou:

‑ Fora com os Kochlowsky!

Leo mandou parar o coche e olhou para o seu relógio de bolso.

‑ Ainda temos muito tempo até à partida do comboio - disse num tom tão calmo que era inquietante. ‑ Cocheiro, dê meia volta, vamos repetir a travessia da cidade!

‑ Comigo não, senhor Kochlowsky ‑ disse o condutor com uma voz rouca. ‑ Os meus nervos não aguentam isto. Já tenho sessenta e quatro anos. Peço desculpa...

‑ Para onde quer que se olhe: cobardes! Dê‑me o chicote! ‑ Kochlowsky agarrou o chicote, arrancando‑o da mão do cocheiro, e sentou‑se na boleia. ‑ Desça! ‑ gritou. ‑ Vá para aquela tasca ali! ‑ Estalou com a língua, pegou nas rédeas e conduziu numa velocidade rápida através de atalhos de volta à entrada de Wurzen.

"Vamos repetir tudo isto!", pensou furioso. "E desta vez vou cumprimentar todas as pessoas que conheço. Que cuspam de raiva. Cuspam!"

Entrou na via principal, puxou as rédeas e deixou os cavalos avançarem lentamente pelo piso irregular. Eugen agachara‑se no banco, na medida em que isso era possível ao seu corpo volumoso.

‑ Temos mesmo que fazer isto, Leo? ‑ perguntou num tom sofredor.

‑ Sim! Tem que ser!

As pessoas de Wurzen entenderam imediatamente a provocação de Kochlowsky. Aqueles que ele cumprimentava não lhe respondiam, e, quando alguém desviava a cara, Kochlowsky chamava‑o com uma voz tão forte que ninguém o podia deixar de ouvir. Houve só uma pessoa que respondeu à sua saudação: o pastor Paulus Maltitz. Vinha de casa de um doente e quando Kochlowsky tirou o seu elegante chapéu cinzento o pastor respondeu imediatamente com o mesmo gesto. Disso, porém, Kochlowsky também não gostou. "Esses pastores", pensou, irritado, "sempre a perdoar, sentindo a piedade de Deus, aproximem‑se meus filhos... hossana e amén!

Deteve o cavalo e o pastor Maltitz também ficou parado. As pessoas no passeio passavam rapidamente. Os Kochlowsky eram capazes de tudo, todos sabiam.

‑ Posso dar‑lhe uma boleia, senhor pastor? ‑ perguntou Leo.

‑ Com certeza. ‑ Maltitz aproximou‑se do coche. ‑ Para onde vai?

‑ Para onde o senhor quiser! O destino final é a estação de comboios.

‑ Mas eu não quero ir à estação.

‑ Pode‑se sempre fazer um desvio. Suba, senhor pastor.

Maltitz entrou no coche, sentou‑se ao lado de Eugen e estendeu‑lhe a mão. Kochlowsky, sentado na boleia, acenou‑lhe. "Isto vai trazer‑lhe muitos problemas com os seus cordeirinhos", pensou. "E já sei o que ele responderá: Deus é bondade. Ele sabe perdoar. Sempre a mesma porcaria!"

‑           Leve‑me à Rua de Chemnitz, número catorze, meu caro ‑ pediu Maltitz esticando as pernas. ‑ Há um doente à beira da morte que se quer reconciliar com Deus.

Kochlowsky estalou o chicote e o coche avançou. O pastor virou‑se para Eugen, cuja cara se tornara mais vermelha ainda.

‑ O senhor é um bom declamador, senhor Kochlowsky ‑ disse. ‑ Estou a falar a sério. Soube muito bem exprimir a gravidade da situação daquela prostituta.

‑           Senhor pastor ‑ balbuciou Eugen ‑, eu...

‑ Em Berlim as pessoas tê‑lo‑iam aplaudido. Mas nós estamos em Wurzen, e ainda levará algum tempo até que as ideias modernas aqui cheguem. O senhor trouxe uma lufada de ar fresco e agora estão todos a tossir. A província está sempre um ano atrasada. Devia ter tido isso em consideração...

‑ Quem é que se lembra disso? ‑ gaguejou Eugen, um pouco embaraçado.

‑ Eu pelo menos gostei! ‑ O pastor Maltitz riu‑se da cara incrédula de Eugen. ‑ Pode saber‑se quais os seus planos para o futuro?

‑ Tenciono escrever uma peça sobre Lutero.

‑ Porquê exactamente sobre Lutero?

‑ É um homem com uma vida impressionante.

‑ Isso é verdade.

‑ Sobretudo a história com Catarina von Bora. Lutero casa com ela... mas antes! Esse é um assunto que me interessa.

‑ Aposto que a peça será proibida. Será confiscada pela Polícia e qualquer apresentação em palco será impedida.

‑           Porquê? ‑ exclamou Kochlowsky da boleia, virando‑se. ‑ Ele foi para a cama com ela ou não?

‑ Disso não se fala...

‑ Está a ver, senhor pastor, essa é a grande diferença. ‑ Kochlowsky voltou a estalar o chicote, sem tocar nos cavalos. ‑ Nós, os Kochlowsky, somos gente honesta, nós falamos dessas coisas...

Depois de terem deixado o pastor Maltitz em casa do doente moribundo, tiveram que se apressar para não perderem o comboio para Leipzig. Eugen beijou o irmão, desapareceu no compartimento e sentiu‑se contente por finalmente sair da cidade. Dois habitantes de Wurzen que também subiram para o comboio mudaram imediatamente de compartimento quando viram Eugen.

Leo esperou no cais até o comboio ter partido, depois acendeu um longo charuto e regressou ao coche a passos lentos. No átrio da estação deparou‑se‑lhe o fabricante de cerveja, Fleckmann, que viera trazer um amigo de negócios ao comboio. Quando Fleckmann reparou em Kochlowsky, fingiu ficar muito contente por vê‑lo e aproximou‑se apressadamente.

‑ Cuidado! ‑ exclamou Kochlowsky, alto. A sua voz forte ressoou pelo átrio. ‑ Não se aproxime, senhor Fleckmann! Perigo de contaminação!

O senhor Fleckmann riu‑se. O diário secreto de Blandine Rechmann ‑ que continuava desaparecido ‑ era um elo de ligação entre todos aqueles que constavam das suas páginas.

‑ Só lhe queria dizer, senhor Kochlowsky ‑ começou Fleckmann ‑ que aquela desastrada noite de leituras não terá qualquer influência na sua admissão no Círculo da Sociedade. O senhor e a sua prezada esposa são sempre bem‑vindos. Esta é também a opinião da direcção.

‑ Com que então... ‑ Kochlowsky dirigiu‑se para a saída e Fleckmann acompanhou‑o. ‑ Haverá uma excepção na sociedade.

‑ Ainda bem que as pessoas são todas diferentes.

‑ Prevalecendo, porém, a hipocrisia entre elas! Lembre‑se de Blandine, a ruiva...

O senhor Fleckmann empalideceu, mudou de conversa e nessa noite convocou uma reunião extraordinária dos envolvidos na história de Blandine Rechmann.

‑ Ele tem‑no ‑ afirmou com uma voz que tremia de exaltação. ‑ Kochlowsky tem o diário!

‑ Mas ele confessou‑o? ‑ exclamou o fabricante de cartolina.

‑ Não directamente! Mas fez uma clara insinuação! E olhou para mim como se quisesse dizer: "Meu amigo, lembra‑te..." Foi uma situação horrível. Esse monstro tem‑nos nas mãos... teremos de nos habituar a isso!

‑ Mas não podemos viver com esse medo até ao fim das nossas vidas! ‑ exclamou o fabricante de couros. Ao dizer isto exprimia os pensamentos de todos os presentes, mas não havia ninguém que conhecesse uma solução para a situação. ‑ É impensável estarmos constantemente expostos a eventuais chantagens de Kochlowsky!

‑ Eu não sei como poderíamos levar Kochlowsky a entregar o diário. ‑ Fleckmann bebeu um gole da sua cerveja com as mãos trémulas. ‑ Com a ajuda de dinheiro de certeza não o conseguiremos. E se lhe tentarmos explicar o factor moral, também não resultará. Dá‑lhe um prazer diabólico possuir o livro que contém todos os nossos pecados.

‑ Antigamente, um homem destes seria simplesmente morto.

Um pesado silêncio caiu sobre a sala. Foi como se esta frase ficasse a pairar no ar. Ninguém sabia exactamente quem a dissera.

Os honrados senhores olharam uns para os outros. O que estava em jogo era muito importante, importante de mais para se ficar escandalizado com esta ideia. Só que ninguém queria levar o pensamento até ao fim. Ninguém teria coragem de fazer o que quer que fosse contra Kochlowsky, mas seria fácil contratar alguém. Mas quem o faria? E qual seria o preço? Se todos colaborassem, o financiamento não seria problema.

Os pensamentos dos respeitáveis senhores eram tão assustadores que rapidamente se despediram e foram para casa, ter com as famílias. Aí, perto das suas fiéis esposas e das suas bem educadas crianças ficaram mais aliviados, beberam vinho do Porto e acalmaram os nervos. Depois olharam à sua volta: a maravilhosa casa, os bons móveis, os tapetes, as crianças felizes, a mulher meiga e ignorante ‑ iria tudo isto ser extinto por Kochlowsky?

"Antigamente, ele seria simplesmente morto..."

Porquê antigamente? Um verdadeiro Alemão é um homem com tradição, que vive segundo os seus ídolos! Não tinha Michael Kohlhaas também morto os seus verdugos?

Ora então...

Era só procurar na História e era‑se logo reabilitado.

 

O maior desejo de Kochlowsky seria enfim realizado: ia ter um bonito cavalo só para ele!

Depois de muitas hesitações e recusas, Kochlowsky aceitou enfim a proposta da mulher: gastarem o dinheiro oferecido a Vanda pelos príncipes Pless e Schaumburg

‑Lippe no seu aniversário e no Natal na compra de um cavalo.

‑ Receberás o dinheiro de volta! ‑ exclamou Kochlowsky num tom solene, levantando a mão direita para jurar. ‑ O conde prometeu que eu e o Langenbach participaríamos nos lucros da nova fábrica se o negócio continuasse a correr tão bem. Devolver‑te‑ei todo o dinheiro, até ao último tostão. Afinal, é para os nossos filhos. Eu só o peço emprestado. Oh, querida, foste enviada pelos céus. Essa é a única explicação para a tua existência!

Quando se tratava de cavalos não havia ninguém que soubesse mais do que o estribeiro do conde, o barão Voo Uxdorf. Kochlowsky teve de admiti‑lo, embora com alguma relutância. Realmente, em Sachen, Leo não conhecia nenhum bom criador de cavalos. Na Silésia, no entanto, sabia exactamente onde uma égua iria ter um poltro e quem era o pai. Conhecia inúmeros garanhões das coudelarias famosas, entre as quais a coudelaria de Pless estava entre as melhores, e quando ouvia um preço podia rir‑se às gargalhadas, levar a mão à cabeça e berrar: "Esse dinheiro todo por um cavalo com um corpo de pudim? Meta a cabeça num balde de água fria! O pai dele é Justus von Ahrfeld. Ele engendrou esse cavalo pouco antes de se tornar impotente! Dou‑lhe metade do preço e poderá considerar‑se satisfeito!"

Mas, aqui, na Saxónia... aqui só podia seguir os conselhos do barão Von Uxdorf. Depois ver‑se‑ia...

Uxdorf sorriu quando Leo Kochlowsky apareceu nos estábulos do conde Douglas pedindo ajuda. Era uma situação completamente nova: Kochlowsky à procura de conselho! Uxdorf lembrou‑se de imediato que Kochlowsky, logo no princípio da sua actividade em Lúbschútz, falara mal dos cavalos da fábrica de tijolos, e que quando soubera que Uxdorf era o responsável se dirigira imediatamente ao palácio e berrara: "Quem é que confunde cabras com cavalos, aqui?"

O barão Von Uxdorf ficara profundamente ofendido durante várias semanas, comunicando‑se com Kochlowsky apenas através de cartas e mensageiros.

‑ Existe uma famosa coudelaria na Prússia, perto de Torgau, na outra margem do rio Elba. É a propriedade Luisenhof. Conhece‑a?

Por vezes, Uxdorf falava de maneira tão abreviada como se ainda estivesse na cavalaria. Além disso, para ele civis eram apenas pessoas de segunda classe. Considerava o facto de ele próprio agora se vestir à civil como uma trapaça do destino. Tentava compensar essa circunstância usando um uniforme tipo fantasia e impondo nos estábulos uma disciplina militar. O conde Douglas concedia‑lhe esse prazer. Graças a ele, os cavalos brilhavam a qualquer altura do ano como cavalos de parada.

Kochlowsky abanou a cabeça.

‑ Aqui eu não conheço nada, senhor barão.

‑ A propriedade Luisenhol é tão conhecida como o soar do trovão...

‑ Então o trovão não deve ter soado perto de mim.

‑ Quando tenciona comprar o cavalo?

‑ O mais rapidamente possível.

‑           Amanhã?

‑ Se tiver tempo para tratar disso..

‑           Se eu não tivesse tempo, acha que teria proposto o dia de amanhã?!

Kochlowsky ficou calado. "Seu estúpido", pensou, furioso, "andas nessas tuas botas de abas como um couraceiro. É com isso que se monta bons cavalos? Amanhã verás as minhas botas, da melhor manufactura polaca, moles como luvas, com as quais podes apertar o cavalo sem que ninguém repare. E o cavalo move‑se como se fosse dirigido por uma mão mágica! Ficarás de boca aberta. É só levares‑me à propriedade Luisenhof..."

‑           Como vamos para lá?

‑           Com o coche até Eilenburg e depois de comboio até Torgau.

‑           E para voltar?

‑           Fazemos da mesma maneira. O cavalo virá na carruagem de mercadorias. ‑ Uxdorf esticou o queixo e olhou para Kochlowsky com a arrogância típica dos que usam um uniforme. ‑ A partir de Eilenburg, porém, terá de voltar a cavalo, sozinho. Acha que será capaz?

‑           Veremos! ‑ respondeu Kochlowsky, furioso.

‑           Leve banha para aplicar no traseiro, senão vai ficar bastante dorido. ‑ O barão Von Uxdorf ajeitou o boné, dirigiu um olhar condescendente a Kochlowsky e depois afastou‑se em direcção aos estábulos.

"Estúpido", pensou Kochlowsky. "Na propriedade Luisenhof verás como um homem de Pless monta a cavalo! Eu não me sento num cavalo, eu uno‑me ao cavalo! Cada músculo do animal é meu músculo também, tornamo‑nos num só... aprendemos isso com os cossacos."

Virou‑se, foi até ao cavalo que trouxera emprestado da fábrica de tijolos e montou‑o.

O barão Von Uxdorf observava‑o por uma das janelas do estábulo.

"Ele sobe para o cavalo como um tártaro", pensou. "Que mau aspecto para um oficial da cavalaria! Até parece que está atarraxado à sela! Qualquer soldado fica com vergonha ao ver isto..."

Era de prever que a viagem à propriedade Luisenhof fosse um acontecimento muito especial.

A princípio tudo correu muito bem. Os dois homens foram num coche até Eilenburg. Era o primeiro cocheiro do conde quem guiava o cavalo, sempre à espera que esse horrível Kochlowsky lhe dissesse alguma coisa. O camareiro Emil Luther avisara‑o:

‑ Vais levar o Kochlowsky? Ele devia ser deitado fora a meio da viagem, como se faz ao lixo! Controla‑te, quando ele te ofender. O conde gosta dele e ninguém compreende porquê. Todos nós odiamo‑lo.

Mas nada se passou. Leo Kochlowsky admirou a paisagem e discutiu com o barão Von Uxdorf sobre a caça aos veados a cavalo, que ele pessoalmente não aceitava e classificava como cruel desde que vira nas florestas de Wilczec como um veado fora perseguido até ao fim das suas forças e depois, trémulo, fora morto com lanças. O barão, naturalmente, era de outra opinião, já pelo simples facto de Kochlowsky ser contra esse tipo de caça, e assim gerou‑se uma discussão que se tornou cada vez mais acesa até que Kochlowsky disse:

‑ Vamos mudar de assunto, antes que eu me esqueça das minhas boas maneiras!

Isto, por seu lado, fez que o barão Von Uxdorf mostrasse surpresa ao saber que Kochlowsky afinal recebera uma educação.

Ao fim da tarde chegaram de comboio a Torgau, onde um coche da propriedade Luisenhof os esperava. Os cavalos atrelados a esse coche tinham um óptimo aspecto, bem cuidados, com o pêlo sedoso, os cascos limpos, as crinas entrançadas e um rabo limpo. Para constatar isto, Kochlowsky levantou a cauda do primeiro cavalo sem qualquer espécie de pudor.

‑ Está satisfeito? ‑ perguntou o barão Von Uxdorf num tom irónico.

‑ Sim, muito satisfeito ‑ retorquiu Kochlowsky. ‑ É raro o conde ver os seus cavalos desta maneira.

O barão Von Uxdorf susteve a respiração. Antigamente isto teria sido pretexto suficiente para um duelo de pistolas, mas estes já não eram os bons velhos tempos. Desde 1871 um espírito moderno apoderava‑se do império alemão. O proletariado, a plebe, erguia a voz. Uxdorf ajustou o seu monóculo e afastou‑se sem dizer uma palavra.

A propriedade Luisenhof era tal e qual Kochlowsky desejara, como as coudelarias de Pless, de que sentia tanta falta. Havia grades brancas, estábulos limpos e moços de estrebaria vestidos com libré. O estribeiro usava uma farda preta, os diferentes coches eram guardados numa grande cocheira, limpos, oleados e polidos, o estábulo do garanhão brilhava como uma sala de jantar e não havia nada que precisasse de ser consertado... era uma alegria ver uma coisa assim.

O barão apresentou Kochlowsky ao estribeiro, o senhor Okritz.

‑ Já ouvi falar de si ‑ disse Okritz, animado. ‑ O barão falou‑me de si e um senhor Langenbach, da sua fábrica de tijolos, também esteve aqui para entregar uma proposta para a construção de um pavilhão para montar. Nessa altura falou‑me de si.

‑           Ah, sim... ‑ Kochlowsky, que a princípio estivera disposto a achar Okritz simpático e a louvá‑lo, ficou visivelmente mais hirto. Aquilo que Langenbach lhe contara não podia ser nada de bom, portanto disse: ‑ Não percamos tempo com coisas sem importância... Quais são os cavalos que tem para me oferecer?

‑ Isso depende de quanto o senhor está disposto a investir.

‑           Eu não preciso de um cavalo de parada, e sim de um bom cavalo, forte e resistente. Um cavalo com carácter. Isso ainda existe?

‑           Por que não?

‑           Entre os homens o carácter está quase extinto.

O senhor Okritz lançou um olhar rápido ao barão Von

Uxdorf. "Afinal, realmente ele é assim", queria esse olhar dizer. "Sempre mal disposto. Não vamos dar importância a essas conversas... Fiquemo‑nos pelos cavalos."

‑ Nos estábulos da venda tenho nove cavalos ‑ disse Okritz. ‑ Quer que lhe indique o caminho?

‑ Certamente.

O estábulo com os cavalos para venda era tão limpo como tudo o mais na propriedade. Tratava‑se de um pequeno pavilhão com um pátio para a apresentação dos cavalos, de chão coberto de areia. Atrás de uma barreira havia algumas cadeiras, e daí era possível ver e julgar os animais com calma. Os moços de estrebaria traziam os cavalos, conduziam‑nos pelo pátio de modo a que se pudesse ver cada músculo e depois deixavam‑nos andar à solta. Os animais saltavam e trotavam pela areia exibindo toda a sua beleza e força.

Leo Kochlowsky sentou‑se atrás da barreira de madeira com cara sombria e olhos semicerrados, seguindo cada um dos cavalos. Eram muito bons, mas infelizmente só muito bons. Na coudelaria de Pless teriam sido apenas de segunda categoria. Além disso, Kochlowsky achava o comportamento do barão Von Uxdorf, sentado a seu lado, extremamente irritante. De vez em quando batia palmas e exclamava entusiasmado:

‑ Extraordinário! Isto é que é um cavalo! Simplesmente espantoso!

E entre estas exclamações repetia sempre a pergunta:

‑           Ainda não encontrou nada para si, senhor Kochlowsky?

Depois de o nono cavalo ter desfilado, Okritz também começou a insistir. Notou a cara sombria de Kochlowsky.

‑           Já se decidiu? ‑ perguntou.

‑           Sim ‑ respondeu Kochlowsky.

‑ Pela Lisa?

‑ Não.

‑ Pelo Ewald?

‑ Nem por um, nem por outro.

‑ Então, qual deles quer?

‑ Nenhum!

Uxdorf suspirou, decepcionado

‑           Nunca vi cavalos tão magníficos como estes ‑ afirmou.

‑           É possível que o senhor nunca tenha visto!

‑           E todos tão bem adestrados ‑ acrescentou Okritz.

‑ Isso teria que ser experimentado. ‑ Kochlowsky ergueu‑se. ‑ Onde posso mudar de roupa?

‑           Mudar de roupa para quê? ‑ perguntou Okritz, confundido.

‑ Acha que só trago comida na minha mala? Antes de comprar um cavalo gosto de montá‑lo. Onde posso vestir as roupas de montar?

‑           No escritório. ‑ Okritz fez sinal a um dos moços de estrebaria, que acompanhou Kochlowsky para o escritório atrás do pavilhão.

Okritz aguardou até que Kochlowsky se tivesse afastado.

‑           O que se pode fazer numa situação destas? ‑ perguntou com um ar perplexo.

‑           Não diga que não o avisei, Okritz! ‑ disse Uxdorf.

‑           Eu mostrei‑lhe três dos meus melhores cavalos.

‑           Mesmo que lhe apresentasse os cavalos de raça árabe do rei de Marrocos... Kochlowsky nunca confessaria que lhe agradam!

‑           Mas que diabo é que ele quer?

‑           Quem nos dera saber! Já veremos. Estou ansioso por saber qual o disfarce que vai vestir. Não se riam quando o virem...

Mas não houve nada para rir quando Kochlowsky voltou. Trazia um fato de montar, preto, talhado à sua medida e feito de um tecido nobre, suave e brilhante que revelava a sua proveniência inglesa. O que mais dava nas vistas, porém, eram as botas: uma obra‑prima polaca feita com um couro especial. Okritz, entendido na matéria, parecia impressionado. Uxdorf ajeitou o seu monóculo.

‑           Vamos a isto! ‑ exclamou Kochlowsky quando se aproximou.

‑ O senhor não tem esporas ‑ disse Okritz. ‑ Quer que lhe empreste as minhas?

‑           Eu não preciso de esporas, domino perfeitamente o cavalgar. Ou o cavalo me entende ou então separamo‑nos.

‑ Por qual deles vamos começar?

‑           Por nenhum dos nove que me apresentou! Seria possível visitar os seus estábulos, senhor Okritz?

‑           Claro que sim. Mas aí, os cavalos não estão à venda.

‑           Mesmo assim, interessam‑me. Se esses cavalos forem tão bons como a sua propriedade, então está de parabéns.

Ninguém esperava esta frase de Kochlowsky. Okritz ficou visivelmente perturbado, olhou para o barão Von Uxdorf com uma cara quase idiota e, sem saber o que dizer, fez um gesto com a mão.

‑           O senhor... o senhor ficará agradavelmente surpreso.

E realmente foi uma surpresa! Kochlowsky percorreu os estábulos com o prazer de um gourmet que saboreia uma boa comida. Acariciava as narinas inchadas dos cavalos e Okritz percebeu pela maneira como o fazia que Kochlowsky realmente era um conhecedor. Quando chegou às éguas ficou parado durante muito tempo, a admirá‑las com um ar quase apaixonado.

‑           Invejo a sua sorte, senhor Okritz ‑ disse. ‑ Este trabalho é muito diferente de vender tijolos...

O coração de Okritz começou a bater com mais força. De repente tinha perante si um Kochlowsky diferente. Aqui, entre os cavalos, era um homem suave com uma alma meiga.

Numa das cocheiras Kochlowsky deteve‑se diante de um cavalo que o fitava com uns olhos enormes. Era um cavalo maravilhoso, forte, com pêlo vermelho escuro e uma mancha pálida que marcava a sua testa como uma cruz. O seu corpo era de uma perfeição impressionante, os músculos deixavam adivinhar uma força incansável e as patas traseiras, com excelentes articulações e uma coxa poderosa, indicavam que saltava muito bem.

Kochlowsky entrou na cocheira.

‑ Cuidado! ‑ exclamou Okritz. ‑ Volte! Saia daí!

Kochlowsky ficou parado ao lado do cavalo, que o encarava com olhos frios.

‑           Que cavalo é este? ‑ perguntou.

‑           Este é Reckhardt von Luisenhof. ‑ Okritz transpirava de medo. ‑ Volte para aqui.

‑ Porquê?

‑ É uma fera! Já deitou abaixo quatro homens, sem falar das dentadas. Peço‑lhe...

Okritz ficou fora da cocheira. Uxdorf recuou uns passos.

‑ E por que razão ele é assim? ‑ quis saber Kochlowsky.

‑ Também nos perguntamos isso. Desde que foi castrado parece doido.

‑ Isso é compreensível. Eu também não gostaria de perder essas partes tão importantes! ‑ Kochlowsky sorriu, pôs a mão nas narinas do cavalo e assobiou. O animal mostrou os dentes, mas não mordeu. ‑ O que vai fazer com ele?

‑ Queríamos vendê‑lo, mas não encontrámos comprador. Não houve ninguém que se aguentasse mais do que cinco minutos na sua sela. ‑ Okritz encolheu os ombros. ‑   Ainda não decidi o que hei‑de fazer‑lhe.

‑ Este é o seu cavalo mais bonito! É um animal extraordinário!

‑ Eu sei; mas mesmo assim não deixa de dar coices e morder.

‑ Gosto dele! Senhor barão, não acha que ficaríamos bem um com o outro? ‑ Kochlowsky saiu da cocheira e encostou‑se a uma viga.

Uxdorf sorriu, azedo.

‑ Não me vai dizer que quer tentar montar esta besta...

‑ O senhor barão quer tentar? Como já foi oficial de cavalaria...

‑ Uxdorf, aviso‑o! ‑ interveio logo Okritz. ‑ Aqui não vale a pena arriscar o impossível.

‑ Eu já consegui dominar muitos cavalos destes! ‑ exclamou Uxdorf num tom duro.

‑ Faz favor! ‑ Kochlowsky fez um gesto de mão em direcção ao cavalo vermelho‑escuro. ‑ Ele está à sua espera.

Durante meia hora Okritz tentou convencer o barão a não cometer uma loucura. Este, porém, teimava em querer mostrar a um civil como Kochlowsky que um oficial prussiano é capaz de montar qualquer cavalo. Já não se tratava de uma questão de perigo, mas sim de honra. Pediu emprestadas umas calças de montar e umas botas, colocou as esporas e ordenou que se aparelhasse Reckhardt von Luisenhof. "Vou dar cabo de ti", pensou, quando o Reckhardt passou por ele para fora dos estábulos. O cavalo tinha um andar inofensivo, mas nos seus olhos cintilava a vontade de matar. "Eu era o melhor cavaleiro do regimento. Um Uxdorf não cai do cavalo!"

A partir daí tudo se passou rapidamente e Okritz começou a sentir‑se mais aliviado. Uxdorf montou o cavalo, puxou as rédeas, incitou‑o com as esporas, afrouxou as rédeas e sentiu a força do animal entre as coxas. Realmente, era uma montada maravilhosa!

O cavalo deu uma volta num passo majestoso, como se quisesse fazer um favor a Uxdorf. O barão já arvorava um ar triunfante quando Reckhardt de repente parou, curvou‑se e fez uma portentosa cabriola.

‑           Hei! ‑ gritou Uxdorf, tentando desesperadamente segurar‑se.

O cavalo projectou‑o para o chão, onde Uxdorf rolou na areia para escapar às patas de Reckhardt que tentavam atingi‑lo.

‑ Que fera! ‑ exclamou Uxdorf, procurando proteger‑se atrás da barreira. Três homens seguraram o cavalo, que tremia de raiva. ‑ Okritz, isto não é um cavalo, é um monstro!

‑ Eu avisei‑o. ‑ Okritz olhou para Kochlowsky. Este estava de frente para o cavalo e fitava‑o com olhos ardentes. ‑ O que diz agora, Kochlowsky?

‑           Mande os três rapazes embora. Quero ficar só com Reckhardt.

‑           Deixe‑se de brincadeiras!

‑ Quanto é que ele custa?

‑ Por quinhentos marcos pode levá‑lo e deixar‑se pisar por ele até à morte.

  ‑ Combinado. ‑ Kochlowsky aproximou‑se ainda mais de Reckhardt. ‑ Toma atenção, meu amiguinho - disse ao maravilhoso cavalo. ‑ Tu chamas‑te Reckhardt e eu chamo‑me Leo. Darás tudo o que tens para me venceres e eu farei o mesmo para que tu acabes por comer da minha mão. Entendido? És um teimoso, mas eu sou mais teimoso. Afinal, ficamos bem juntos, não achas?

O cavalo inflou as narinas e mostrou os dentes. Os músculos das pernas traseiras contraíram‑se.

‑ Cuidado! ‑ gritou Okritz. ‑ Ele vai saltar!

‑           E eu também!

Uxdorf viu de boca aberta como Leo Kochlowsky, num abrir e fechar de olhos, se postou ao lado do cavalo e saltou para cima dele. "Parece um tártaro", pensou. "Ou um cossaco." E realmente era verdade.

O cavalo ficou imóvel, como petrificado. Okritz não ousava respirar. O que iria acontecer agora? Como reagiria Reckhardt?

Porém, o cavalo não teve tempo de reagir, pois Kochlowsky desceu imediatamente. Reckhardt virou a cabeça e olhou‑o com um ar surpreso.

‑ Mudem a sela! ‑ ordenou Kochlowsky em voz alta. Era o seu tom de voz de Pless. ‑ Fora com estas rédeas sofisticadas. Eu só monto com rédeas simples! Não olhem assim para mim, seus imbecis! Mexam‑se!

‑ Isso é suicídio! ‑ gritou Okritz. ‑ O senhor ficou maluco?

‑ Peço que obedeçam às minhas ordens! ‑ berrou Kochlowsky.

Não valia a pena tentar fazê‑lo mudar de opinião. Trouxeram as rédeas enquanto o cavalo os observava calmamente. Kochlowsky voltou a aproximar‑se dele. Okritz limpou o suor da testa.

‑ Ele não sobreviverá ‑ sussurrou para o barão Von Uxdorf.

‑ Haverá muitas pessoas em Pless que ficarão contentes com essa notícia... Mesmo assim, é um homem corajoso. Isso é admirável num civil.

Com um salto, Kochlowsky montou o cavalo. Mas desta vez o animal reagiu de imediato: não saltou para o ar nem

se empinou, como qualquer outro cavalo teria feito, pelo contrário; encolheu‑se como se de repente não tivesse esqueleto, caiu para a areia e rebolou. Okritz gritou, assustado, mas Kochlowsky já pulara da sela para a areia, ao lado do cavalo. E nesse instante, quando estavam assim deitados, um ao lado do outro, Reckhardt mostrou o que valia: projectou os seus cascos contra Kochlowsky. Alguns centímetros a mais e o coice teria sido fatal.

Kochlowsky rolou para afastar‑se, pôs‑se de pé e voltou a aproximar‑se do cavalo. Este ficara parado e agora analisava Leo com olhos enormes.

‑ Maldita besta! ‑ disse Kochlowsky num tom de voz quase carinhoso. ‑ Ficámos empatados. Mas ainda nos habituaremos um ao outro... damo‑nos muito bem!

‑ O que acha? ‑ balbuciou Okritz, quando Kochlowsky se aproximou. ‑ Ninguém consegue montá‑lo!

‑ Eu vou viver com ele ‑ declarou Kochlowsky, calmo.

‑ O senhor vai o quê?

‑ Eu dar‑lhe‑ei de comer, limpá‑lo‑ei e à noite dormirei ao seu lado. De dia treinaremos no pavilhão. Reckhardt é um cavalo único. Barão, volte para Wurzen e peça desculpas em meu nome. Quando eu regressar, atravessarei Wurzen na sela de Reckhardt...

Ainda se falou muito da relação amor‑ódio entre o cavalo e Kochlowsky; disseram‑se muitas verdades e muitas mentiras. Na verdade, Kochlowsky permaneceu durante quatro dias e quatro noites ao lado de Reckhardt. Dormia a seu lado e o cavalo não lhe dava coices, nem o mordia. Kochlowsky falava com ele, chamava‑lhe besta e estúpido, falava‑lhe das terras de Pless e deixava‑o cheirar as suas botas de pele. Ninguém pode dizer que o cavalo o compreendia, mas Kochlowsky acariciava‑o e ele comia pão da sua mão e levantava as patas, deixando‑o limpar‑lhe os cascos. Até ao dia da sua morte Okritz ficou convencido de que neste caso dois diabos se tinham encontrado e reconhecido. Segundo ele, não havia outra explicação.

No quarto dia Kochlowsky atravessou as terras da propriedade a cavalo. Reckhardt galopava feliz e com uma força inacreditável. Okritz recebeu os quinhentos marcos e quando enfim Kochlowsky deixou a propriedade de Luisenhof, benzeu‑se três vezes.

Seis dias mais tarde, Kochlowsky chegou a cavalo ao palácio do conde, depois de ter atravessado Lúbschútz, vindo da estação de Eilenburg. Enquanto o conde Douglas lhe dava as duas mãos, o barão Von Uxdorf empalidecia de desilusão.

Era quase impossível livrar‑se de Leo Kochlowsky.

 

Tal como os homens, também os animais podem sofrer de ciúmes. Nesse aspecto têm um comportamento parecido com o dos humanos. Kochlowsky apercebeu‑se disso quando chegou a casa, montado em Reckhardt von Luisenhof, depois do seu longo passeio por Wurzen. Acenou à sua mulher Sofia e à pequena Vanda. O único que não parecia estar contente era Jacky, o cão.

Normalmente teria corrido ao encontro do seu dono, ladrando e saltando de alegria, mas naquele dia ficou sentado nas escadas da casa, quieto, cabisbaixo e observando como Kochlowsky desceu do cavalo, bateu alegremente com o chicote nas botas e pôs a mão nas narinas de Reckhardt. Ao ver isto, Jacky rosnou. Kochlowsky pegou em Vanda e quis sentá‑la na sela de Reckhardt. Mas isso Jacky já não permitiu: correu como uma bala branca até ao cavalo e ferrou‑lhe uma dentada na perna traseira. Com a mesma rapidez com que aparecera, voltou a desaparecer de modo a que o coice do cavalo já não o atingisse.

‑ Jacky! ‑ berrou Kochlowsky, apertando Vanda contra o seu peito e recuando três passos. ‑ Seu malvado! Já para dentro de casa!

O cão, profundamente ofendido, não obedeceu. Permanecendo a uma distância segura, agachou‑se, rosnou e olhou para o seu rival na disputa pelo amor do dono. Reckhardt von Luisenhof relinchou alto, olhou em redor à procura de um caminho para fugir e decidiu‑se pelo jardim. Atravessou os canteiros de flores num trote veloz, espezinhou os girassóis e parou apenas nos sulcos da hortaliça recém‑plantada, o corpo inteiro a tremer.

Kochlowsky entregou Vanda, que chorava de medo, a Sofia, estalou o chicote no ar e virou‑se para Jacky. O cão fitava‑o com os seus pequenos olhos escuros, esticava a cauda e rosnava com as orelhas arrebitadas.

‑ Chega aqui, seu malcriado! - ordenou Kochlowsky com voz severa. ‑ Para aqui! Não me ouviste? Aqui!

Jacky não se mexeu. No jardim, Reckhardt começara a comer os girassóis, e dentro de casa, à janela, Vanda chorava sem parar. Kochlowsky avançou outros dois passos e Jacky agachou‑se ainda mais. O seu olhar tornara‑se triste e humilde. E de repente o chicote estalou nas suas costas, cortante como uma faca.

O cão suportou a chicotada em silêncio, meteu o focinho entre as patas e ficou imóvel. "Agora, de repente, ele bate‑me", parecia pensar. "Pela primeira vez na vida o meu dono bate‑me... E bate‑me por causa de um outro ser ao qual dá carinho como a mim! Que mundo é este? Como pode ele amar esse outro ser tanto quanto me ama a mim?"

O cão permaneceu deitado, fechou os olhos e esperou por novas chicotadas. O seu mundo tornara‑se mais solitário.

‑ Não voltes a fazer isso, Jacky ‑ avisou‑o Kochlowsky com uma voz penetrante. ‑ Reckhardt faz parte de nós tal como tu fazes! Somos todos uma grande família... no próximo ano virá outra criança! E, além disso, tens uma vantagem sobre Reckhardt que ele nunca terá: podes dormir na minha cama! Que vergonha, teres mordido a perna de Reckhardt! Que vergonha!

Kochlowsky virou‑se, foi até ao jardim e afastou Reckhardt, que se mostrou algo renitente, do campo de hortaliça e dos girassóis. O cavalo parecia gostar dessas flores tenras.

‑           Cala‑te, malandro! ‑ disse Kochlowsky com uma voz suave. Quando se tratava de cavalos Kochlowsky derretia‑se tanto quanto se endurecia e fechava quando se tratava de pessoas. ‑ Aquele pequeno Satanás era Jacky. Terás de te habituar a ele. Mesmo se eu tiver que vos fechar no estábulo durante algumas noites...

 

O estábulo... isso era uma história à parte.

Quando Kochlowsky enfim realizou o seu sonho de ter um cavalo, um grupo de seis empregados da fábrica de tijolos construíra um estábulo ao lado da lavandaria. Leopold Langenbach vira esses seis trabalhadores partirem em direcção à casa de Kochlowsky e dirigira‑se imediatamente ao seu escritório.

Kochlowsky estava concentrado, a escrever uma carta para um bom cliente. As frases de cortesia necessárias a uma tal missiva irritavam‑no e quando viu Langenbach entrar no seu escritório ficou ainda mais enervado.

‑           Para onde vão aqueles seis homens? ‑ perguntou Langenbach, embora soubesse a resposta.

‑           Vão caçar borboletas ‑ retorquiu Kochlowsky, irritado.

‑           Que resposta mais estúpida!

‑ É a resposta certa para uma pergunta ainda mais estúpida!

‑ Acho que tenho o direito de saber...

‑ O senhor não tem direito a nada! ‑ gritou Kochlowsky, já congestionado. ‑ Mas já agora digo‑lhe: vão construir um estábulo!

‑ Um estábulo? Onde?

‑ Em minha casa.

‑ Quem foi que lhes deu ordens para isso?

‑Fui eu!

‑ Sem me consultar antes?

‑ Também tenho de perguntar‑lhe quando quero peidar?

‑ Seis trabalhadores a menos na nossa produção não são nenhum peido! ‑ retrucou Langenbach, gritando de

raiva. ‑ Eu quero que me consultem antes de darem uma ordem. Isso é o mínimo que se pode exigir! Afinal, qual de nós é o primeiro gerente?

Essa era a ferida de Kochlowsky que nunca sarava. Pousou a pena no tinteiro, passou as mãos pela longa barba e fitou Langenbach com olhos negros e ardentes. Era aquele olhar que em Pless todos temiam e perante o qual os trabalhadores polacos se benziam. Mas Wurzen não era Pless e Langenbach não tinha feitio de escravo.

‑ Quando mando seis homens construírem um estábulo para mim, assumo a responsabilidade ‑ disse Kochlowsky falando tão baixo que se mostrava perigoso. ‑ Se isso lhe agrada ou não, é‑me completamente igual! Preocupe‑se com as novas encomendas, que já causam suficiente aborrecimento! E não fique aí parado como se fosse Frederico o Grande: com esse nem teria tido o direito de lhe segurar o penico!

‑ O senhor é o maior malcriado que existe no mundo! ‑ rosnou Langenbach. ‑ Mas veremos! Um dia ainda darão cabo de si!

Saiu do escritório de Kochlowsky batendo com a porta e dirigiu‑se ao palácio de Amalienburg para falar com o conde Douglas. "Tem que ser ele ou eu", pensava, espumando de raiva. "Desta vez é definitivo! Isto não pode continuar assim. Esse homem devia ser metido num manicómio."

Mas Langenbach não pôde transmitir a sua decisão ao conde Douglas. Antes de ter oportunidade de fazê‑lo, soube que Kochlowsky pedira pessoalmente permissão ao conde para que seis homens da fábrica construíssem o estábulo. Nesse caso a sua queixa já não fazia sentido. Em vez disso, falou ao conde dos progressos dos seus testes que visavam encontrar um novo tipo de esmalte para a tijoleira que fosse cem por cento resistente à geada. Essa ideia fora dele e o conde louvara‑o por isso.

Depois desta conversa, Langenbach abandonou o palácio um pouco deprimido, dirigiu‑se a Wurzen e no Hotel "Cidade de Leipzig" bebeu três cervejas e três aguardentes.

"Se Kochlowsky ficar muito mais tempo em Wurzen, ainda me torno um bêbado", pensou. "Mas realmente, o álcool é a única maneira de o suportar."

 

Assim, depois de alguns dias Kochlowsky introduziu o seu maravilhoso cavalo no estábulo. O estábulo era muito bom. Fora construído à maneira da coudelaria de Pless: tinha duas cocheiras com portas rolantes, um armazém, um compartimento para as selas, uma manjedoura com ladrilhos, janelas grandes e altas, dois bebedouros forrados com azulejos e tudo estava impecavelmente limpo, mais limpo do que certas casas.

Reckhardt von Luisenhof parecia compreender isso. Entrou com cuidado na primeira cocheira, fungou na primeira manjedoura com o feno e no comedouro mais pequeno com a aveia, mergulhou as narinas no bebedouro e soprou. Depois virou‑se, ergueu a cabeça e de repente os seus olhos chamejaram. Kochlowsky, que conhecia os cavalos melhor do que os homens, apercebeu‑se disso imediatamente.

‑ O que foi, amigo? ‑ perguntou. ‑ O que é que te desagrada?

Seguiu o olhar do cavalo e viu que Jacky estava na entrada do estábulo. O cavalo e o cão entreolhavam‑se, imóveis, com as orelhas arrebitadas e olhares agressivos.

‑ Aviso‑vos! ‑ disse Kochlowsky com uma voz calma. ‑ Acredito que tenham a vossa própria vontade, mas aqui só conta a minha! Se compreenderem isso poderemos ser todos amigos...

Era uma frase típica de Kochlowsky. Ele é que era o senhor. Ali e em todo o lado. Duvidar disso era uma blasfémia.

Kochlowsky saiu do estábulo, deixou Jacky com o cavalo e trancou a porta. Ouviu Jacky a ganir e a arranhar a porta, e embora tivesse pena dele encolheu os ombros e dirigiu‑se a passos largos para a casa. "Na vida temos de nos habituar uns aos outros", pensou. Só para ele próprio este lema não tinha validade.

 

Depois do suicídio de Ferdinand Rechmann, o conde Douglas escolhera um novo guarda‑florestal. Vinha das propriedades do conde Von Kantitz. Tratava‑se de um homem novo com um aspecto determinado. Era alto, tinha olhos azuis e uma pêra loura, um corpo bem treinado e era magro ‑ o seu uniforme verde parecia talhado para ele - muito eloquente. O mais importante, porém, era o facto de ser solteiro, o que evitava que a tragédia que acontecera aos Rechmann se repetisse. Chamava‑se Willy Cranz e rapidamente todos ficaram a saber que era um óptimo atirador. Quando fora militar ganhara muitos prémios, destacando‑se entre os seus camaradas.

Como já era tradição, fez a sua apresentação na sociedade de Wurzen e causou a melhor das impressões nas boas famílias. As filhas dos burgueses ficaram encantadas. Fez também uma visita à casa dos Kochlowsky. Foi no coche de caça, trajando o seu melhor uniforme e meio acabrunhado com os avisos que lhe tinham dado sobre o horrível monstro da Silésia que era Kochlowsky. Para evitar problemas, escolheu um domingo de manhã, depois da igreja, para a visita.

Embora Kochlowsky fosse odiado por todos, tinha‑se que reconhecer um aspecto: acompanhava Sofia à igreja todos os domingos. Ela insistia nisso e Leo fazia‑lhe a vontade. Assim, todos os domingos encontrava‑se sentado ao lado da sua bonita mulher no banco da igreja, mas não cantava, nem rezava como os outros, nem dizia o Pai Nosso. Limitava‑se a estar presente para agradar a Sofia. O pastor Maltitz, que se apercebera dessa situação, de vez em quando inseria no seu sermão a seguinte frase: "Deus agradece a todos, incluindo os mudos e teimosos presentes... "

Kochlowsky, que gostava de beber um xerez antes da refeição de domingo, abriu a porta a Willy Cranz quando este bateu. Sofia vira‑o chegar pela janela da cozinha. Num gesto rápido tirou o avental, ajeitou o cabelo louro e o vestido e lavou as mãos. No fogão cozinhava um lombo de veado temperado com tomilho e outras ervas. Para o acompanhamento preparara hortaliça e batatas. O cheiro agradável da comida espalhara‑se por toda a casa. às vezes Kochlowsky exclamava: "Ter casado com uma cozinheira é realmente o paraíso na Terra! Até os reis me invejariam..."

Quando Leo abriu a porta de entrada, Cranz bateu com os calcanhares e fez uma pequena vénia. Um gesto militar causa sempre boa impressão, os Alemães são mesmo assim. A vitória de 1871 havia transformado um povo inteiro ‑ se para melhor, isso ainda não se sabia.

‑ Willy Cranz, o novo guarda‑florestal! ‑ A sua voz era grave e quente e muito agradável.

‑ Isso eu já percebi ‑ resmungou Kochlowsky. ‑ O senhor não tem cara de ser um pedinte. O que deseja?

‑           Queria apresentar‑me.

‑ Está feito. Suponho que sabe o meu nome e quem eu sou. Sendo assim, já nos conhecemos...

Antes de Kochlowsky poder fechar a porta, Sofia saiu da cozinha. Parecia um anjo e exclamou na sua voz clara:

‑ Oh, Leo, temos visitas? Que vejo, é o novo guarda‑florestal! Faça o favor de entrar, senhor...

‑           O meu nome é Willy Cranz...

‑           Senhor Cranz, entre...

Agora Kochlowsky não podia fechar a porta. Afastou‑se um pouco e deixou o jovem guarda‑florestal entrar, fechando bruscamente a porta atrás dele. O barulho foi um aviso: "Entraste em espaços perigosos e se agora te sentares naquele sofá ainda ficas com o traseiro a arder!"

Kochlowsky avançou até à sala, apontou para uma poltrona e esperou que Willy Cranz se sentasse. Este, porém, só se sentou depois de Sofia. Antes, no vestíbulo, beijara‑lhe a mão e Sofia pensara: "Ainda bem que acabei de lavar as mãos com água quente, senão ainda cheirariam a cebola. "

Kochlowsky observara esse beijo com a testa franzida...

Logo desde esse instante começara a não gostar de Cranz. "É um jovem palerma, mais nada! Um imbecil, um burro vaidoso! Sentado ali, no seu uniforme, até parece que está a posar para uma fotografia. Cabeça erguida, sorrir, ficar calminho, não se mexer... "

‑ O senhor aceita um xerez? ‑ perguntou Sofia com um sorriso encantador.

‑ Com todo o prazer, minha senhora. ‑ Cranz fez uma cara sorridente. "As pessoas têm razão", pensou. "Ela é uma mulher maravilhosa. E tem um homem destes, que parece um abutre!"

‑           O senhor também venderá gansos no Natal, como o seu antecessor, Rechmann? ‑ perguntou Kochlowsky, tentando iniciar uma conversa.

‑ Claro que sim. Seguirei em tudo o meu colega Rechmann.

‑ Isso quase parece uma ameaça! ‑ Kochlowsky recostou‑se na enorme poltrona. ‑ Rechmann era tão doido pelos seus gansos que até gostaria de levá‑los para a cama! De onde vem o senhor?

‑ Das propriedades do conde de Kanitz. .

‑ Kanitz! Ah! Esses não tinham terras na Silésia?

‑ Sim, eram quase tão grandes como as de Pless.

Kochlowsky franziu a testa.

‑ Comparados com Pless, os Kanitz não valiam nada! - resmungou. ‑ O senhor vem da Silésia?

‑ Não, sou da Vestfália.

Sofia regressou com um copo de xerez. Cranz brindou à saúde dela e a cara de Kochlowsky tornou‑se ainda mais sombria. Reparou no sorriso da sua mulher, completamente diferente daquele a que estava habituado ‑ pelo menos ele pensava ver uma diferença. Achou também que os seus olhos e o resto tinham um brilho diferente, um brilho infantil, que nunca antes fora tão visível. Naturalmente, tudo isso não era verdade, mas quando um Kochlowsky pensava ver qualquer coisa, então isso passava a ser a verdade e não era permitido negá‑lo.

‑           O senhor fica para o almoço? ‑ perguntou Sofia de repente. Kochlowsky esticou O queixo e passou a mão pela barba.

‑ Eu só tencionava ficar por alguns minutos ‑ respondeu Cranz muito educadamente. ‑ Vim apenas para apresentar‑me...

Kochlowsky tossiu levemente e ergueu‑se.

‑ Isso já foi feito e o senhor ainda tem uma bonita tarde de domingo pela frente. Tive muito gosto em conhecê‑lo...

‑ Temos carne suficiente. O senhor Cranz podia ficar para o almoço! - interrompeu Sofia ao notar que Leo se queria ver livre de Cranz. Este olhou para ela com olhos brilhantes.

‑ Não era essa a minha intenção...

‑ Pois então! ‑ Kochlowsky dirigiu‑se para a porta, mas Cranz não se mexeu.

‑ Mas se a senhora me faz esse convite com tanta delicadeza, como posso recusar? ‑ Virou‑se para Kochlowsky e reparou no seu olhar furioso. ‑ Eu não quero recusar um convite da sua mulher, senhor Kochlowsky...

O almoço foi notável.

Cranz serviu‑se três vezes, bebeu sozinho meia garrafa de vinho tinto e depois comeu uma enorme porção de pudim de amêndoa com molho de baunilha. Recusou um charuto para a digestão, mas ainda bebeu duas chávenas de café.

‑ Delicioso! ‑ disse quando enfim acabara de comer. ‑ Estava tudo delicioso, minha senhora. Nunca comi um carneiro tão bom! Tão bem temperado e mesmo no ponto. A senhora é uma artista na cozinha! ‑ Depois olhou para Kochlowsky, que tinha comido tudo sem uma palavra de louvor, e acrescentou: ‑ Considerar isto uma simples ingestão de comida seria bárbaro.

às três da tarde despediu‑se, de novo com um beijo na mão de Sofia. Entrou no seu coche, estalou com a língua e acenou a Sofia enquanto se afastava.

Kochlowsky observou‑o, zangado.

‑ Que pessoa tão agradável ‑ comentou Sofia com cuidado.

‑           Um comilão! Se é sempre assim, então em breve comerá tudo aquilo que Rechmann guardava como ouro. Acabará por devorar toda a casa florestal. Como pode uma pessoa comer tanto? Além disso, é um estúpido! Vaidoso como uma mulher!

‑ Então eu sou vaidosa, Leo? ‑ perguntou Sofia, ofendida, enquanto entravam em casa.

‑           Tu não és como as outras mulheres.

‑ Como é que sou, então?

‑           Como se viesses de outro planeta.

‑           Mas eu também dou à luz, como todas as outras mulheres.

‑ Essa é a tua vantagem!

Agarrou‑a pelas ancas, beijou‑a e sentiu uma grande vontade de levá‑la para o quarto de dormir.

 

Os dias e as semanas foram passando, preenchidos pelas tarefas do quotidiano. Aproximava‑se um Verão muito quente. Os trabalhadores da fábrica de tijolos que trabalhavam com os fornos e os que ficavam na barreira transpiravam como se os seus poros fossem pequenas fontes. Por isso Kochlowsky decidiu fechar um contrato com o proprietário de um poço vizinho, para que fosse fornecida diariamente uma carroça com baldes de água fresca.

Esse gesto foi considerado como excepcionalmente humano. Sobretudo porque houvera um conflito entre Leo e Langenbach, pois Leo voltara a tomar uma decisão sem consultá‑lo antes. O chefe da contabilidade, Plumps, que se esforçava por manter a paz no escritório, disse a verdade a

Langenbach:

‑           O senhor cometeu um erro...

‑           O quê?

‑ A discussão à volta da água vai prejudicá‑lo muito. Os trabalhadores estão todos do lado de Kochlowsky. "Ele apoia‑nos", dizem. "Tem coração para os trabalhadores! Isso é muito importante para nós.

‑ Mas eu não posso deixar que o Kochlowsky tome as rédeas ‑ exclamou Langenbach, indignado. ‑ Plumps, se nós não o travarmos ele acabará por governar a fábrica como um monarca! ‑ Olhou de lado para o pequeno contabilista, que fungava. ‑ O senhor gosta de Kochlowsky?

‑           Ele salvou‑me a vida. E eu tenho uma suspeita sobre quem me manda mensalmente uma ajuda financeira através do padre, embora este negue. Acho que todos nós, no fundo, não conhecemos Kochlowsky. Só vemos a sua casca dura, os espinhos que nos atingem ‑ quem tentou ver o que se esconde detrás disso tudo?

‑           O senhor tentou?

‑ Através de uma pequena fenda. Foi no Natal. Aquele era um Leo Kochlowsky completamente diferente.

‑ A mim chega‑me o Leo Kochlowsky que conheço! Leopold Langenbach coçou o nariz e olhou para Plumps, pensativo. ‑ O que é que se poderia fazer de vantajoso para os trabalhadores, além da água?

‑ Talvez... mudar os horários de trabalho ‑ disse Plumps com cuidado.

‑ Porquê?

‑           Claro que isso só abrangeria o período de grande calor. Os trabalhadores começariam às seis da manhã e trabalhariam até às onze. A seguir haveria um longo intervalo durante a hora do almoço e depois retomariam o trabalho às quatro da tarde, terminando às oito. Quem trabalha assim são os Italianos, por exemplo...

‑ Aqui não estamos em Itália, isto é Wurzen, Plumps!

‑ Mas o sol é o mesmo...

E foi assim que a fábrica de tijolos de Lúbschutz, em Wurzen, foi provavelmente a primeira e única empresa do império alemão a introduzir o "horário italiano" ‑ como o chamavam os trabalhadores ‑ durante o Verão. Quando Langenbach atravessou a fábrica depois de ter introduzido esta regra, todos bateram palmas.

Kochlowsky constatou essa situação com a testa franzida. Ele era contra a regra, claro!

‑           Considero isso um sinal de fraqueza ‑ disse para Plumps. ‑ Calor e suor o quê? Ao menos, aquilo que suam não precisam de mijar...

Plumps evitou espalhar essa frase. Mas nesse dia, Kochlowsky, muito embora fosse do sector administrativo, ficou a trabalhar como todos os outros até às oito da noite. Assim, ao fim do dia Kochlowsky era frequentemente uma das últimas pessoas a sair da fábrica.

Kochlowsky dirigia‑se todas as manhãs para a fábrica a cavalo e, em geral, quando não andava a pé, só se deslocava a cavalo. Até ia às compras a Wurzen montado no seu Reckhardt von Luisenhof, o que era considerado ridículo pela população.

Num dia quente de Agosto, decidiu não ficar no escritório durante a hora do almoço e ir a casa para dar um passeio com Vanda pela floresta.

Encontrou a casa vazia. Nem Sofia, nem a criança estavam em casa e não se ouvia o ladrar de Jacky.

Kochlowsky vagueou pela casa, um pouco preocupado, percorreu o jardim e não encontrou explicação para esta situação. Voltou a montar a cavalo e decidiu ir sozinho para a floresta.

Passou pelo lago da Forca e pelo lago de Salweiden e foi até à floresta de Tresen. Estava de tal maneira absorto nos seus pensamentos, tentando imaginar onde poderia estar a sua mulher, que só o ladrar de um cão o conseguiu distrair. "Esse é Jacky", pensou. "Só um lulu ladra assim! Não há dúvida! Mas como é que Jacky veio parar à floresta de Tresen?"

Encurtou o passo de Reckhardt e entrou num largo caminho de relva. De repente, deteve o cavalo com um forte puxão, ao que Reckhardt não estava habituado, pelo que respondeu com um fungar furioso. Pela estrada passou o guarda‑florestal, Cranz, no seu coche. Sentada a seu lado estava Sofia. Trazia um grande chapéu branco e levava Vanda ao colo. Jacky estava com eles e ladrava sempre que um pássaro voava baixo. Pareciam de tal maneira entretidos a conversar que nem deram pelo homem a cavalo atrás deles. Só Jacky reagiu imediatamente, reconheceu o seu dono e ladrou de alegria. Saltou do coche e correu até Kochlowsky.

‑ Jacky! O que foi? Volta para aqui! ‑ exclamou Sofia, virando‑se. Nesse instante viu Kochlowsky, que mostrava uma aparência sombria. Colocou a mão no braço de Cranz. O coche parou imediatamente.

Reckhardt aproximou‑se. Embora Jacky e o cavalo ainda não gostassem muito um do outro, pois o cão sentia muitos ciúmes, pelo menos toleravam‑se.

‑ Meu Deus... Leo! ‑ exclamou Sofia espontaneamente. Vanda, ao seu colo, começou a choramingar. Tocou na manga do uniforme verde de Cranz e quis passar para o seu colo. Kochlowsky sentiu como o seu coração ficou pesado. "Então as coisas já chegaram a esse ponto... a minha filha no colo dele..."

‑ Pois é, meu Deus! ‑ repetiu Kochlowsky, parando o cavalo ao lado do coche. ‑ Ainda bem que chamas por Ele. Ele que faça qualquer coisa para te ajudar; afinal, vais sempre à igreja!

‑ Bom dia! ‑ disse Willy Cranz, num tom amigável. ‑   Que dia maravilhoso, não acha?

Kochlowsky fitou Crauz como se este lhe tivesse cuspido. Jacky voltara a subir para o coche e abanava a cauda.

‑ Exijo uma explicação ‑ disse Kochlowsky, muito sério.

‑ O que há para explicar?

‑ Leo! ‑ Sofia apertou a pequena Vanda contra o seu corpo. Conhecia aquele tom de voz... era como o rugido abafado vindo do interior de um vulcão, antes de entrar em erupção. ‑ O senhor Cranz teve a gentileza de levar‑me, a mim e à Vanda...

‑ Mais tarde discutiremos isso! ‑ Com um gesto da mão Kochlowsky mandou calar Sofia. ‑ Desce do coche!

‑ Um momento! ‑ Sofia quis obedecer imediatamente a Kochlowsky, mas Cranz segurou‑a pelo vestido de Verão com flores brancas. ‑ É assim que o senhor trata a sua mulher?

‑ Isso não lhe diz respeito! Tire as patas da minha mulher! ‑ A voz de Kochlowsky tornou‑se mais ameaçadora e Jacky agachou‑se no banco. O seu instinto canino dizia‑lhe

que se aproximava uma tempestade. Cranz, porém, não teve essa sensibilidade. Continuou a segurar Sofia pela manga e franziu as sobrancelhas.

‑ O senhor deve‑se achar muito forte, Kochlowsky - disse com uma voz fria. ‑ Não estará enganado? Eu convidei a sua familia para dar um passeio. Há algum mal nisso?

‑ Quantas vezes já fez isto?

‑ Esta é a décima primeira vez.

‑ O consolador da pequena e solitária mulher...

‑ É realmente aborrecido ficar sempre fechada em casa quando o tempo está tão bom.

‑ Desça do coche! ‑ disse Kochlowsky bruscamente. ‑           Desça!

‑ Leo, sê sensato! ‑ exclamou Sofia, cheia de medo. Abraçou Vanda, que com os seus olhos cinzentos‑esverdeados fitava o seu pai, um pouco tímida, e colocara os bracinhos à volta do pescoço da mãe. ‑ Não faças nenhum disparate, Leo! O senhor Cranz mostrou‑nos lugares muito bonitos, comprou um sumo para a Vanda e vimos os animais da floresta: veados, faisões, raposas e texugos. Nunca tinha visto texugos... a Vanda até deu de comer aos veados... Leo, sê sensato, peço‑te...

Kochlowsky pulou da sela, atou as rédeas de Reckhardt von Luisenhof ao coche e aproximou‑se de Cranz, que continuava sentado na boleia.

‑ E ainda por cima é um cobarde! ‑ gritou. ‑ Um rapazinho que treme de medo!

Willy Crauz inspirou fundo. "O que é de mais, é de mais", pensou. "Suporto muita coisa, mesmo quando vem de um Kochlowsky, mas agora chega!"

Saltou do seu lugar, deu a volta ao coche e ficou parado em frente a Kochlowsky. Eram mais ou menos da mesma altura, embora Cranz, no seu uniforme verde, tivesse um ar mais desportivo que Kochlowsky, com o seu fato de montar.

- Então diga! ‑ exclamou Cranz, tenso. ‑ E agora?

‑ Eu já transformei um oficial da cavalaria num farrapo, em Pless.

‑ E quer fazer o mesmo comigo?

‑ Não, o senhor não é um oficial. Limita‑se a ser um reles.

‑ E o senhor, afinal, é mesmo maluco! ‑ exclamou Cranz, rouco. ‑ As pessoas têm razão quando o afirmam.

Permaneceram durante alguns instantes assim, frente a frente, cada um esperando que o outro começasse. Depois, de repente os seus corpos foram percorridos por um frémito e atacaram como se obedecessem ao mesmo comando interior.

Jacky enovelou‑se e fechou os olhos. Sofia soltou um grito desesperado, depois virou‑se e debruçou‑se sobre Vanda, como se a quisesse proteger com o seu corpo.

Cranz era mais forte, mas Kochlowsky conhecia muitos truques que o jovem guarda‑florestal não dominava. Aprendera‑os com os forasteiros polacos que vagueavam pelas florestas de Pless. As florestas não eram o território de Kochlowsky, mas estavam sob a alçada do guarda‑florestal, que Kochlowsky não suportava, pelo que, quando surpreendia caçadores furtivos em plena acção não os entregava; em vez disso, aprendia com eles às escondidas. Eram truques maldosos, como o golpe na carótida, o soco no fígado ou nos rins, assim como a chave de membros com a qual qualquer luta terminava numa vitória dos caçadores furtivos.

Logo com a primeira troca de murros Kochlowsky apercebeu‑se de que Cranz lhe era fisicamente superior. Por isso, desferiu‑lhe uma cabeçada no peito, atirando‑lhe ao mesmo tempo um murro ao fígado.

Cranz gemeu, recuou alguns passos, olhou para Kochlowsky, incrédulo, e nesse mesmo instante levou um golpe no pescoço. Era o famoso golpe à carótida. Cranz dobrou‑se e caiu.

‑ Isso acontece a todos aqueles que me tentam roubar a mulher ‑ berrou Kochlowsky. ‑ E mesmo que o mundo inteiro me amaldiçoe, não me arrependo de nada! Não deixo que me tirem nada do que é meu.

Pegou em Cranz, arrastou‑o para fora do caminho e arvorou um sorriso sinistro quando viu uma área de relva coberta de urtigas. Arrastou‑o para lá, colocou‑o de barriga para baixo e esfregou‑lhe a cara nas urtigas.

No coche esperava Sofia, hirta e branca como um lençol. Segurava nos seus braços Vanda, que entretanto adormecera. Kochlowsky sacudiu a poeira do fato de montar e alisou a barba.

‑ Tu... tu mataste‑o ‑ disse Sofia baixinho. ‑ E ele não teve culpa de nada...

‑ Ofendeu‑me!

‑ Ele não te fez mal nenhum.

‑ Foi passear com a minha mulher sem eu saber! Abraçou‑te? Beijou‑te? O que foi que te disse? Que eu não presto? Perguntou‑te como é que eras capaz de ser casada com um homem como eu? Mostrou‑te a casa florestal e disse que podias lá viver? Que aquilo é que era um mundo tranquilo? Disse‑te para me deixares? Foi isso que te disse?

‑Tu... tu estás com ciúmes, Leo ‑ disse Sofia, baixinho, numa voz quase infantil. ‑ Tens ciúmes, como Otelo...

‑ O que foi que ele disse? ‑ berrou Kochlowsky ‑ Quero saber!

‑ Chiu! A criança está a dormir...

‑ Não te escondas atrás da criança! Disse‑te para me deixares? Foi isso?

‑ Agora está morto! Leo, mataste um homem!

‑ Que disparate! Está apenas desmaiado, e quando acordar a sua cara terá o dobro do tamanho. E estará completamente vermelha! Há‑de ficar assim durante pelo menos uma semana! Benditas urtigas! Desce do coche!

Soltou Reckhardt von Luisenhof, ajudou a Sofia a montá‑lO~ atirou um pontapé a Jacky e resmungou:

‑ Maldito traidor!

Depois montou o cavalo e lançou um olhar para trás: Willy Cranz continuava com a cara nas urtigas.

‑ Vais ter que pagar pelo que fizeste, Leo ‑ disse Sofia. ‑ Se eu há uns tempos me tivesse comportado como tu agora...

‑ Nunca tiveste razão para isso!

‑ Não mintas! Achas que eu não sei que te encontraste às escondidas com aquela prostituta, a Blandine Rechmann? Querias ir para Leipzig com ela para a levares para a cama!

‑ Mas não fui! ‑ resmungou Kochlowsky.

‑ E porque não? Porque eu te impedi. Porque eu te quis acompanhar para Leipzig. Se eu não soubesse de nada, tu terias ido. Não negues! Mas por outro lado, és capaz de matar alguém por ciúmes!

‑ Sim, dou cabo de qualquer pessoa que tocar em ti! - Kochlowsky forçou o galope e segurou a sua pequena mulher pelos ombros. ‑ O que tenho eu no mundo a não ser tu e a Vanda? Para quem é que eu vivo e trabalho e em quem é que penso em cada minuto livre da minha vida? Não permito que mais ninguém entre no meu paraíso...

‑ E eu? Com dezanove anos vou ter o meu segundo filho! Queres que seja como os teus contabilistas e anote cada palavra simpática que me dizes? Haveria tantas páginas vazias ao fim do ano... e mesmo assim eu amo‑te!

 

Em casa, Kochlowsky lavou‑se de cima a baixo numa grande banheira de madeira, depois vestiu um fato de montar limpo e voltou para a fábrica. Não falou muito, permaneceu no seu escritório e quando Plumps apareceu com as listas do movimento, respondeu‑lhe de uma forma antipática:

‑ Hoje não me venha com essas coisas aborrecidas, senhor Constipado!

Ao fim da tarde o doutor Brenneis apareceu na fábrica. Dirigiu‑se directamente ao escritório de Kochlowsky e entrou sem bater à porta. Quando Kochlowsky o viu, gritou logo:

‑ Rua! Mesmo que o senhor seja um médico, tem que bater à porta!

‑ A única coisa em que vou bater é na sua cabeça ‑ retorquiu o doutor Brenneis, atirando com a porta. ‑ O senhor ficou doido?

‑ Se isso fosse o caso, o senhor já teria levado com o tinteiro na cabeça!

‑ Adivinhe onde foi que eu estive.

‑ A tratar um doente que durante cinco dias não conseguiu ir à casa de banho! Pelo seu cheiro, deve ter sido isso.

‑ Venho da casa do guarda‑florestal Cranz ‑ disse Brenneis, firme. ‑ A cara dele está num estado lastimável. Gastei uma bisnaga inteira de pomada. Como é que o senhor foi capaz de fazer uma coisa dessas?

‑ O que quer? Quer que eu pague a pomada?

‑ Só por eu ter compaixão da sua pequena mulher...

‑ Outro!

- digo‑lhe que o conde Douglas foi informado do incidente. Parece que foi a primeira vez que deu um murro na mesa. O senhor sabe o que é a última gota que faz transbordar o copo...

‑ Esse é um problema só meu. Trate de se preocupar com os seus pacientes, coitados, que estão nas suas mãos. É verdade que em Wurzen querem abrir um novo cemitério devido aos seus êxitos na medicina?

O doutor Brenneis fitou Kochlowsky com um semblante triste, abanou a cabeça e saiu do escritório. Leo seguiu‑o com o olhar pelo vidro da janela.

"O conde a dar um murro na mesa", pensou. "Alguém devia explicar‑lhe que o amor por uma mulher nos torna capazes de tudo! O guarda‑florestal Cranz feriu a minha alma. Estou a sangrar de ciúmes...

Plumps reparou com alguma surpresa que nesse dia KoChlowsky não foi o último a sair, como era normalmente o seu hábito.

"Aconteceu alguma coisa", pensou o pequeno Plumps. "por que será que o doutor Brenneis cá esteve? Será que a senhora Kochlowsky teve um aborto? Meu Deus, a Berta tem que ir imediatamente consolá‑la e ajudá‑la. Afinal, só temos dez crianças vivas, tivemos quatro abortos. Temos experiência... Agora, enfim, podemos mostrar‑nos agradecidos a Kochlowsky. Devemos mostrar‑lhe que nem todos o odeiam."

 

No portão do palácio de Amalienburg, Emil Luther, o camareiro, recebeu o seu maior inimigo, Kochlowsky. Quando vira Kochlowsky descer a alameda a cavalo, avisara logo o mordomo, que anunciou a visita ao conde. Douglas ordenou que o mandassem entrar.

‑ Quero falar com o conde! ‑ gritou Kochlowsky enquanto descia do cavalo. ‑ Lacaio, anuncia‑me!

‑ O conde já o espera ‑ respondeu Emil Luther, hirto.

‑ Como é que sabe que eu cheguei?

‑ Pessoas como o senhor emitem um certo fedor...

Luther abriu a porta e Kochlowsky entrou a passos largos no vestíbulo. O mordomo apontou para a biblioteca.

Kochlowsky tirou a cartola, bateu educadamente à porta e entrou. Como era hábito, o conde Douglas estava sentado à sua enorme secretária. Usava um fato de caça verde e encarou Kochlowsky com uma expressão muito séria.

‑           Ainda bem que o senhor apareceu voluntariamente, Kochlowsky ‑ disse com a sua voz calma. ‑ Assim não foi necessário mandá‑lo chamar! Vamos ser breves: eu não quero explicações. Tomei conhecimento do estado em que se encontra o meu guarda‑florestal e sei quem é o culpado. Agora não me interessa ouvir os motivos, Kochlowsky, mesmo que insista em contar‑mos. Divergências de opinião podem ser resolvidas de variadas formas, mas não desta. Já tentaram disparar sobre si... E agora, que vai acontecer quando em Wurzen souberem daquilo que fez a Cranz? Nem quero imaginar! Kochlowsky, vou ter que dispensar a sua colaboração, que, confesso, foi‑me muito valiosa.

‑ Está a despedir‑me, senhor conde? ‑ perguntou Kochlowsky, baixinho.

‑ Se quiser usar esse termo...

‑           No princípio do mês que vem?

‑           O senhor tem três meses para ir‑se embora...

‑           Não preciso disso. Vou‑me embora já.

‑ O orgulho kochlowskiano! ‑ O conde Douglas encostou‑se no espaldar da sua cadeira trabalhada. ‑ Para onde tenciona ir?

‑ Encontraremos um lugar para viver.

‑ Calculo que sim. Mas onde quer que vá, Kochlowsky, em todo o lado as coisas serão como aqui. O senhor atrai a inimizade dos outros como o néctar atrai as abelhas. Onde irá isto acabar?

‑ Em Wurzen de certeza não será! ‑ Kochlowsky bateu os calcanhares. ‑ Posso ir, senhor conde?

‑ Não. Conhece Herzogswalde?

‑ Creio que não, senhor conde.

‑ Herzogswalde fica a sudoeste de Dresden, entre Meissen e Freiberg. Aí, à beira da floresta de Tharandt, fica a propriedade do meu amigo barão Von Finck. É dono de uma grande fábrica de tijolos. Kochlowsky, vou recomendá‑lo a Finck.

‑ Os meus agradecimentos, senhor conde.

‑ Eu não o faço por si, mas sim pela sua pobre mulher, tão frágil e bonita. E pelos seus filhos, que não têm culpa de nada. Pronto, agora pode ir.

Kochlowsky deu meia volta e saiu da biblioteca. No vestíbulo esperava‑o o mordomo, arvorando um sorriso cínico. O camareiro Martin Luther também parecia bem disposto. As paredes do palácio não eram suficientemente grossas para impedirem o pessoal de ouvir as conversas.

‑ "O meu pai era um viandante" ‑ cantou Luther, malicioso ‑, "e herdei isso dele..."

Kochlowsky pegou na cartola e abriu bruscamente o portão, antes que o empregado o pudesse fazer.

‑ Que buraco nojento! ‑ exclamou, bem alto. ‑ Ah! Que bem faz apanhar ar fresco depois desse vosso mau cheiro...

Depois dirigiu‑se para casa a passo lento. Deu uma volta à casa e ao jardim e olhou para tudo com uma grande tristeza. As árvores de fruto tinham pegado bem, os girassóis ondulavam sob a brisa de fim de tarde, a hortaliça e as restantes verduras estavam viçosas, enquanto a outra parte do jardim era um colorido mar de flores.

"Tudo isto acabou", pensou. "Acabou para sempre. Fui eu que nos expulsei deste paraíso. Eu próprio! Como vou explicar isto à Sofia? Mas eu, Leo Kochlowsky, vou rastejar agora? Não, nunca! Onde quer que seja, ninguém consegue destruir um Kochlowsky!"

Inclinou‑se sobre o pescoço do cavalo e acariciou‑lhe a crina.

‑ Tu vens connosco ‑ afirmou.

Depois acenou à sua mulher que apareceu no jardim, com Vanda ao colo. Foi uma imagem que lhe encheu os olhos de lágrimas.

 

Depois do dia em que teve a conversa com o conde, Kochlowsky não voltou à fábrica, embora continuasse a receber o ordenado durante três meses. O conde Douglas insistira nesse prazo e Kochlowsky adivinhou que só o fazia por Sofia. Três meses sem ordenado e teriam gasto muito das suas poupanças.

Durante a maior parte desse tempo, Kochlowsky ficou sentado no jardim, no banco de verniz branco. Tinha o cão aos seus pés e olhava para a paisagem. Enquanto antigamente todos se descobriam na sua presença, mesmo que fosse de mau grado, agora em toda a cidade de Wurzen e redondezas só havia uma pessoa que o apoiava: o pequeno e gordo Theodor Plumps, que ele ofendera constantemente.

Dois dias depois do despedimento aparecera à noite em casa de Kochlowsky e oferecera a sua ajuda para trabalhar no jardim ou onde quer que fosse necessário. O jardineiro da fábrica nunca mais aparecera, nem a empregada. De um dia para o outro Kochlowsky tornara‑se um marginal. Em Wurzen contavam‑se as coisas mais incríveis sobre ele. Dizia‑se que obrigara o guarda‑florestal Cranz a comer urtigas, que lhe arrastara a cara e o peito pelas urtigas, até existia a versão de que o chicoteara com urtigas... "Coitado do Willy Cranz, tão novo e agora está emocionalmente destruído e marcado para toda a vida. Com essa idade já é um destroço. Por que é que a Polícia não faz nada? Por que não se acusa esse demónio? Devia ser metido na prisão. Sim, afinal foi só por acaso que não matou Cranz! Maldito assassino polaco!"

‑ Como posso ajudar? ‑ perguntou Plumps nessa noite.

‑ Não aparecendo na minha frente ‑ retrucou Kochlowsky. Plumps não esperara outra resposta. Falou com Sofia e depois começou a regar a horta e a podá‑la.

‑ O que o senhor está a fazer é uma estupidez! - gritou Kochlowsky. ‑ Há‑de vir um novo proprietário para colher esses frutos! Ou será que já trabalha para ele?

Quatro vezes por semana Berta Plumps ajudava Sofia... vinha de Wurzen a pé, pela estrada, o que levava quase duas horas, e depois do almoço fazia o mesmo caminho de regresso para à noite estar em casa e fazer o jantar para o marido. Aos domingos vinha com um dos filhos ‑ que era aprendiz de carpinteiro ‑ e com a filha mais velha, a única entre os irmãos a frequentar o liceu de Wurzen, por ser tão dotada e o pastor Maltitz a ter recomendado à direcção da escola.

‑ Tem que cuidar de si, senhora Kochlowsky! ‑ dizia Berta Plumps. ‑ É tão nova e frágil e já está à espera do segundo filho! Não se esforce muito, tenha cuidado!

Aliás, até então Sofia comportara‑se de uma maneira exemplar.

Quando Kochlowsky, no dia do despedimento, descera enfim do cavalo, o levara para o estábulo e o desarreara, a mesa estava posta, como sempre, com um ramo de flores no centro. Da cozinha vinha o cheiro de rolo de carne com recheio de cebola. Só as batatas ainda não estavam prontas, pois Leo chegara mais cedo.

- Pareces cansado, Leo ‑ disse Sofia, e pendurou o Casaco do marido no vestíbulo. ‑ Estava muito calor, hoje...

‑Sim!

Kochlowsky ficou‑se por esta resposta. Lavou as mãos e a cara e sentou‑se à mesa. A sopa de peixe já reluzia no prato, em tons vermelhos. "Uma refeição sem sopa é como um violino sem som", dissera Vanda Lubenski, a primeira cozinheira do príncipe de Pless, à pequena cozinheira Sofia, logo no primeiro dia.

Kochlowsky sentou‑se, mexeu na sopa e depois voltou a pousar a colher. Sofia olhou‑o com ar pensativo.

‑ Queres natas para acompanhar a sopa, Leo? ‑ perguntou.

‑ Muita coisa vai mudar de agora em diante. Comeremos muita papa polaca e couve. Só haverá carne nos dias de festa. ‑ Ergueu a cabeça. Tinha um olhar triste e parecia pedir a compreensão de Sofia. ‑ Papa é muito saudável, querida. Eu cresci com papa. Antigamente, em Nikolai, as salsichas eram muito caras para nós e a carne ficava bem era no talho... comíamos sopa de cerveja e nabos, choucroute e papa de trigo frita. Nunca passámos fome, as nossas barrigas estavam sempre cheias, mesmo que não fosse com gansos ou faisões, carne de vaca ou capão.

‑ Então aconteceu... ‑ murmurou Sofia, com calma~ ‑ Eu sabia.

‑ O quê?

‑ Vamos ter que deixar Wurzen...

‑ Nós não temos que fazer nada! ‑ disse Kochlowsky, alto. ‑ Eu não sou obrigado a nada! Eu vou de livre vontade!

Sofia acenou afirmativamente, embora soubesse que ele não estava a dizer a verdade. Pegou na colher e começou calmamente a comer a sopa. Na cozinha, a água com as batatas já fervia e de vez em quando ouvia‑se o fervilhar das gotas que caíam no fogão e se evaporavam.

‑ Quando é que vamos sair?

‑ O mais rapidamente possível.

‑ E para onde vamos?

‑ Ainda não sei. ‑ Kochlowsky olhou para os cabelos dourados da sua mulher. Ela debruçara‑se sobre o prato e comia a sopa com gestos lentos. ‑ Publicarei anúncios em vários jornais. Um homem capaz como eu sempre consegue trabalho. ‑ Comeu duas colheres de sopa, que, como sempre, estava deliciosa, mas que hoje lhe ardia no céu da boca. ‑ A Alemanha está a viver uma fase de prosperidade económica, Sofia. Temos uma grandiosa era industrial à nossa frente! Estão a surgir centenas de novas fábricas e em todo o lado são precisos especialistas. Homens que não tenham medo de conquistar novos mercados...

‑ Tu não és um empresário, Leo, és administrador de propriedades. A fábrica de tijolos foi o teu primeiro emprego que nada tinha a ver com agricultura!

‑ E como foi que me dei neste novo trabalho?

‑ Muito bem! Puseram‑te na rua!

‑ Mas não foi por ter falhado! ‑ gritou Kochlowsky, atirando a colher para a mesa. ‑ Aqui estou rodeado de inimigos! A inveja dos outros é como um castor que rói sem parar e no fim faz tombar a árvore.

Não fazia sentido continuar a falar. Sofia levantou‑se,

foi até à cozinha e tirou as batatas da panela. Depois serviu

o rolo de carne, o feijão e as batatas com cominho e voltou

a sentar‑se. Kochlowsky fitou‑a com ar interrogativo. Estava à espera que ela o acusasse de alguma coisa.

‑ Só isso? ‑ perguntou quando a viu começar a cortar o rolo de carne sem dizer nada. Espantada, Sofia levantou a cabeça.

‑ Tu não costumas comer mais do que quatro fatias...

‑ Mas quem está a falar dos malditos rolos de carne? Eu estou admirado por não dizeres mais nada?

- Dizer alguma coisa? Para quê?

‑ Eu estou desempregado! Fui despedido! Posto no olho da rua! Teremos que deixar a casa, o jardim, tudo! O nosso futuro é incerto...

‑ E isso pode ser alterado, Leo?

‑Não!

‑ Então para quê ralhar? Isso ajudar‑nos‑ia nalguma COisa? Melhoraríamos com palavras acusadoras? Temos que manter a cabeça fria e ver como é que isto vai continuar!

‑ És uma mulher fora de série ‑ disse Kochlowsky, baixinho.

‑ Não te iludas! ‑ Sofia voltou a dedicar‑se à comida. ‑           Se eu não tivesse as crianças.. ‑ disse "crianças" contando já com aquela que tinha dentro de si ‑ talvez as coisas fossem diferentes. Vá, come a tua carne. Está a ficar fria. E nunca gostaste do molho frio...

 

Desde aquela noite nunca mais se referiram ao fracasso de Kochlowsky em Wurzen.

No domingo o pastor Maltitz apareceu em casa dos Kochlowsky. Fora a primeira vez que Sofia não viera assistir à missa de domingo. Os outros membros da paróquia, todos bons cristãos, ficaram desiludidos... teriam gostado muito de ver como se comportava a mulher do brutamontes que enfim fora expulso. Ter‑lhe‑iam mostrado a maior das compaixões, com um ligeiro sorriso.

O pastor Maltitz contava com uma recepção pouco simpática, mas Kochlowsky surpreendeu‑o. Foi à porta enquanto ele ainda descia do coche.

‑ Por favor diga‑me se eu estiver a incomodar! ‑ exclamou o pastor. ‑ De certeza vão começar a comer daqui a pouco...

‑ Nunca vi nenhum pastor que se fosse embora por causa disso. O senhor está convidado.

‑ Obrigado. ‑ Maltitz deu a mão a Kochlowsky. ‑ O que foi que a nossa maravilhosa cozinheira preparou hoje?

‑ Papa de Rei...

‑ O que é isso?

‑ Sémola à maneira de Cracóvia, com baunilha, passas e claras batidas. Cozinhada no forno, untada com doce de cerejas e regada com sumo de cerejas. Anna Jagiellonka, a cozinheira da rainha da Polónia, servia esta sobremesa no palácio. Nós comemo‑la como prato principal. A papa é barata e enche a barriga.

‑ Também foi por isso que eu vim. ‑ Maltitz ficou parado perto da porta. ‑ Posso falar na presença da sua mulher, senhor Kochlowsky?

‑ Sofia é um anjo; não a mereço.

‑ Não vamos falar disso agora.

Entraram e Sofia cumprimentou o pastor Maltitz. Com

o seu avental branco de folhos parecia uma enorme boneca. Quando se quis desculpar pela sua ausência na missa o pastor fez logo um gesto compreensivo.

‑ Fez muito bem, Sofia! As pessoas já falam o suficiente nesta cidade.

‑ Deveriam todos ser cobertos de estrume! ‑ resmungou Kochlowsky. Esperou até que Sofia tivesse trazido copos e uma garrafa de xerez e encheu os copos. ‑ Mas só um copo, senhor pastor ‑ avisou. ‑ Temos de poupar. O xerez é um luxo do qual se pode prescindir.

Beberam um pequeno gole e depois sentaram‑se. Maltitz tossiu levemente; não sabia como começar.

‑ Quer que eu vá falar ao conde a seu favor, Leo? - achou melhor perguntar sem grandes rodeios.

‑ Não! ‑ respondeu Kochlowsky, decidido.

‑ E por que não?

‑ Primeiro, porque não vale a pena; depois, porque estou farto de Wurzen, e por fim porque ninguém pode exigir de mim que eu me arrependa do que quer que seja.

‑ Meu Deus, o senhor é mesmo teimoso! Perante Deus tem que se arrepender de tudo isto!

‑ É bem possível, mas Ele não me arranja emprego.

‑ Quando fez aquilo ao senhor Cranz, devia estar fora de si.

- Ele queria tirar‑me a Sofia, senhor pastor...

‑ Isso não é verdade!

- Foi onze vezes com ela para a floresta.

‑ Mas isso não é nenhum crime!

‑ Então por que é que foram às escondidas, quando toDdos sabiam que eu trabalho na fábrica até às nove da noite? Quem faz as coisas dessa maneira é porque tem algo para esconder!

‑ O senhor nunca teve pequenos segredos em frente da sua mulher? Segredos sem importância?

‑Não.

‑ E os donativos mensais, através de mim, para a família Plumps. . .?

- Isso é outra coisa.

‑ Porquê? O senhor prefere ficar anónimo porque tem vergonha de confessar que tem um coração mole

‑           Que disparate ‑ resmungou Kochlowsky.

‑           E Sofia não falou nesses passeios secretos porque temia a sua raiva. Com razão, como se vê depois de tudo o que se passou. - Maltitz voltou a beber um pequeno gole de xerez. ‑   Os donativos para a família Plumps irão então acabar.

‑ Não.

‑ De onde tenciona tirar o dinheiro? A partir de agora precisará de cada centavo para si. Se já chegou ao ponto de comer papa aos domingos...

‑           Não fale da Papa de Rei quando não sabe nada dela, afinal, eu também não falo de Deus. Plumps continuará a receber o seu pagamento mensal. Nesse aspecto nada mudará.

‑ E quando o senhor se for embora? Pois é o que vai acontecer, ou não?

‑ Existem sempre os correios, senhor pastor. Foi por isso que veio?

‑           Em parte, foi. Mas acima de tudo foi para lhe dizer que isto não precisava ter acontecido. Quero ajudá‑lo, Leo.

‑           Tente fazê‑lo com alguns salmos e hossanas... ‑ sugeriu Kochlowsky, amargurado. ‑ Talvez o céu saiba dizer‑lhe onde há um emprego para mim. Melhor ainda seria se o senhor me lesse o livro de Job... isso calhava‑me bem.

‑ Nem por isso! Job só não gostava de Deus... o senhor odeia toda a gente... ‑ Maltitz olhou Kochlowsky com uma expressão grave. ‑ Se qualquer dia precisar de um testemunho abonatório, estou ao seu dispor!

‑           O senhor?

‑           Isso admira‑o?

‑           Sim! É a frase "amem os vossos inimigos" posta em prática?

‑           Realmente, o senhor dificulta as coisas, Leo. O que mais posso fazer por si?

‑           Nada. Sou suficientemente capaz de alimentar a minha família. Espere, pode sim. Pode dizer que gosta da papa de Cracóvia. ‑ Kochlowsky pegou na garrafa de xerez. ‑ Mais meio copo, senhor pastor? Na Polónia fomos ensinados a partilhar tudo com os outros.

 

à tarde vieram mais visitas. O fabricante de móveis Amandus Weissig apareceu na sua elegante calêche com cocheiro. Fora escolhido à sorte pelo clube dos prejudicados por Blandine, que se reunira no domingo na cervejaria local. Tinham medo daquilo que poderia vir a acontecer. E Weissig fora sorteado para falar com Kochlowsky. Nesta altura já ninguém o faria de livre vontade.

Os móveis de Amandus Weissig eram famosos em todo o impériO Possuia uma enorme mansão com um parque, à beira de Wurzen, e costumava viajar duas vezes por ano: uma vez para Marienbad e outra para São Remo. A sua mulher insistia sempre em sublinhar que o seu dote fora a base do sucesso da fábrica de móveis. Amandus encontrava‑se assim na difícil situação de ver o seu mundo desmoronar‑se, caso a sua relação com Blandine Rechmann chegasse ao conhecimento público. O diário da pecadora ruiva nas mãos de Kochlowsky significava para Amandus Weissig o ser ou não ser.

Sofia estava no jardim a brincar com Vanda e Jacky, o cão, quando Kochlowsky mandou entrar Weissig, que era ligeiramente asmático. Não apertaram as mãos, pois não tinham suficiente intimidade.

Weissig olhou à sua volta, interessado. Comparada com a sua enorme mansão, esta era uma pequena casa de jardineiro. Até a sua estufa de plantas exóticas era três vezes maior... e os móveis... bem, os móveis eram próprios da boa burguesia, mas comparados com os seus tinham um ar pobre. Kochlowsky calculou logo o que Weissig estava a pensar.

- Faltam os tapetes persas e os cortinados de brocado - disse ‑, mas em contrapartida temos a consciência limpa. Por que veio?

- Dez mil marcos em ouro ‑ sussurrou Weissig, como se alguém estivesse à escuta. Os seus companheiros tinham‑no autorizado a subir até aos vinte mil. Mas depois de ver a casa... dez mil deveriam ser como um milagre para Kochlowsky.

Kochlowsky dirigiu‑se até à porta e voltou a abri‑la.

‑ Por favor, saia ‑ pediu, hirto.

‑ Feche a porta. ‑ Weissig abanou as mãos. ‑ Lembre‑se que na sua actual situação este dinheiro lhe permitirá, antes de mais, ser independente. Terá tempo para procurar com toda a calma um emprego que lhe agrade.

‑ Vá para o diabo! Oferecer‑me dez mil marcos é realmente ridículo!

Amandus Weissig não ficou nada ofendido. Como Kochlowsky não lhe pediu para se sentar, permaneceu de pé. Foi até à porta e fechou‑a.

‑ Doze mil ‑ disse rapidamente.

‑ Mas afinal, o que é que o senhor quer? ‑ exclamou Kochlowsky, exaltado.

‑ Dentro em breve o senhor deixará Wurzen ‑ disse Weissig. ‑ Suponho que com isso terminará definitivamente o seu contacto com esta cidade. Que interesse teria então em continuar na posse de certos... papéis? Nós, porém, estamos empenhados em eliminar esses documentos. Digamos então: quinze mil marcos em ouro...

‑ Eu não aceito nem um centavo! ‑ disse Kochlowsky, de repente divertido com a cena. Nas últimas semanas esquecera‑se completamente do misterioso diário de Blandine Rechmann. Com que então, o medo de um escândalo continuava a pairar sobre a população de Wurzen...

Weissig começou a suar.

‑ Para si, esses papéis não têm agora importância nenhuma...

‑ Isso é verdade.

‑ Então? Quinze mil...

Kochlowsky interrompeu‑o com um gesto da mão.

‑ No que se refere a este assunto, a ingenuidade dos cidadãos de Wurzen sempre me espantou. Quem espalhou essa mentira, que eu tenho o diário?

‑ Quem mais poderia tê‑lo? Tudo indica que é o senhor!

‑ E se eu afirmar claramente que não o tenho!?

‑ Isso seria inacreditável, senhor Kochlowsky.

‑ Mas é a verdade.

‑Não!

‑ Sim! Eu não faço a mínima ideia sobre o local onde pode estar esse misterioso diário. Aliás, nem sequer sei se realmente existe.

‑ Então por que razão Rechmann... pôs fim à vida?

‑ Estava farto de tudo e não tinha mais forças para continuar a conviver com pessoas como o senhor. É claro que Blandine o enganava constantemente; a má consciência de quase todos os senhores do Círculo da Sociedade é a prova! A direcção é quase uma comunidade de cunhados. ‑ Kochlowsky sorriu. ‑ Quase sinto uma certa admiração por Blandine. Ela tinha uma regra: amigos secretos por todo o lado. ‑ Kochlowsky abanou a cabeça. ‑ Porém, nunca vi o diário... por isso, no que diz respeito aos quinze mil marcos... esqueça‑os.

‑Mas... ‑ Weissig mal conseguia respirar. ‑ Durante todos estes meses o senhor nunca contradisse ninguém quando lhe falavam no assunto. Sempre deixou transparecer que o possuía... o senhor... o senhor divertiu‑se à nossa custa... não é possível!

‑ O medo torna‑nos cegos! ‑ Kochlowsky soltou uma gargalhada. ‑ Foi um prazer para mim ver como certas pessoas eram extremamente simpáticas comigo quando no fundo lhes apetecia dar‑me um pontapé. Como um pecado comum nos torna solidários!

‑ Se aquilo que está a dizer for verdade, todos o odiarão! O senhor fez‑nos sofrer bastante...

‑ Quem foi para a cama com Blandine, eu ou os membros desse nobre clube?!

- O senhor também... ‑ disse Weissig tossindo, vermelho de indignação. ‑ Houve quem tivesse visto...

- Fora! ‑ ordenou Kochlowsky numa voz autoritária. Dirigiu~se pela segunda vez à porta e abriu‑a. ‑ Já para fora, Senão ensino‑o a galopar com a ajuda do meu chicote!

Amandus Weissig cambaleou em direcção à porta. Quando saiu da casa respirou de alívio.

‑ Um último conselho, senhor Kochlowsky ‑ disse virando‑se para Leo. ‑ Saia o mais rapidamente possível de Wurzen. Antes hoje do que amanhã! Agindo assim fará um favor também à sua pobre mulher. Qualquer passagem pela cidade representará uma tortura para si. ‑ Weissig subiu para o seu coche e partiu sem se despedir.

Kochlowsky ficou com uma cara sombria... Quinze mil marcos em ouro ‑ a consciência desses honrados senhores devia estar mesmo podre!

Um pouco mais tarde, Sofia voltou do jardim para preparar o jantar. Deixara Vanda no jardim a brincar ao pôr do Sol, guardada por Jacky.

‑ Tivemos visitas?

Kochlowsky desviou o olhar do jornal.

‑ Era o senhor Weissig, o fabricante de móveis.

‑ O que queria?

‑ Tentou vender‑me móveis em saldo...

‑ E o que foi que respondeste?

‑ O que achas? Corri com ele!

Sofia foi para a cozinha. Para evitar que o domingo acabasse numa zanga, decidiu não fazer mais perguntas. Fechou a porta, sentou‑se numa cadeira ao lado do fogão e juntou as mãos no colo. Costumava ficar assim quando rezava às escondidas. "Meu Deus, ajudai‑nos na nossa aflição, Jesus, como é que isto vai ser...?"

Quando estava assim, sozinha, os seus joelhos tremiam de medo, ao pensar na manhã seguinte.

 

Na segunda‑feira, Kochlowsky atravessou Wurzen a cavalo para ir às compras. Todos o olhavam de soslaio, mas ninguém ousou provocá‑lo.

Bebeu duas cervejas no Hotel "Cidade de Leipzig" queixando‑se por não estarem suficientemente frias. Depois dirigiu‑se à loja de Felix Bernitz para comprar charutos. Conseguiu apanhá‑lo antes de ele se escapar para as traseiras da loja. Bernitz viu boquiaberto como Kochlowsky cheirava seis caixas e depois dizia:

‑ Todos muito bons, caro amigo. A escolha torna‑se difícil. O que me aconselha, como especialista?

Quando Kochlowsky se foi embora Bernitz estava quase tonto. Fechou a loja e correu para os seus amigos.

‑ Kochlowsky está doente! ‑ exclamou. ‑ Já não dura muito. Acabou de louvar os meus charutos e até pediu o meu conselho! É inacreditável!

‑ Deve estar a querer deixar uma boa impressão antes de abandonar Wurzen. ‑ Os outros mostraram‑se de acordo. ‑ Mas isso agora não o ajuda muito. Quando se for embora, lá estaremos, à beira do caminho, a tocar as cornetas e a gritar: rua!

Riram‑se alto e sentiram‑se muito fortes...

 

Na quinta‑feira da terceira semana de desemprego, o conde Douglas mandou um mensageiro chamar Kochlowsky urgentemente ao palácio. O barão Von Finck estava de visita em Wurzen e desejava falar com ele.

‑ Agora tem juízo ‑ pediu Sofia pela primeira vez. ‑ Pensa na criança e em mim...

Kochlowsky tirou a camisa e foi para o quarto de dormir. Quero a minha melhor roupa, querida... a camisa

com as pregas, as botas de pele pretas, as calças de montar Justas e o paletó cinzento. ‑ Olhou para o seu tronco nu ao espelho. ‑ Achas que devo tomar banho antes de ir?

‑ Está muito calor, e se chegares lá suado...

Assim, Kochlowsky tomou um banho, calçou as suas

 PIhores botas e depois montou Reckhardt von Luisenhof, que como era hábito, encontrava‑se no estábulo escovado e Com o pêlo brilhante.

Quando chegou ao palácio de Ainalienburg o camareiro ~inil Luther ‑ quem mais haveria de ser! ‑ abriu o portão e Mostrou‑se impávido, como se Kochlowsky fosse um criminoso que estava a ser entregue.

‑ Estão à minha espera, seu lambe‑botas! ‑ disse Kochlowsky, satisfeito.

‑ Eu sei. Faça o favor de aguardar...

‑ O quê? Esperar? ‑ Na testa de Kochlowsky as veias incharam‑se. ‑ Onde está o senhor conde?

‑ Os senhores estão a passear pelo parque. Espere por favor! O senhor será chamado...

‑ Querem que eu fique aqui fora, ao sol?

‑ Não recebi ordens para deixá‑lo entrar no palácio.

Ao dizer isto a alegria de Luther era visível. "Não o deixo entrar", pensou. "Ele que fique a torrar ao sol... que bem que sabe a vingança!"

‑ Pois bem, seu malcheiroso! ‑ disse Kochlowsky.

‑ Como quiser!

Voltou a montar a cavalo. Deu a volta aos estábulos do conde, passou pelos jardins e pela pequena orangerie e aproximou‑se do palácio pelas traseiras, vindo do lado do parque, do pavilhão ao estilo rococó. Desceu a grande alameda. De longe reconheceu o conde Douglas e um outro homem que devia ser o barão Von Finck. Passeavam pelo parque e pareciam muito entretidos na conversa. O barão usava um fato leve, cinza claro, tinha um aspecto muito elegante e aparentava ter menos que os sessenta anos que realmente contava. Os caracóis que mandara fazer nos seus cabelos brancos deixavam adivinhar bastante vaidade. Era mais alto do que Douglas, mas magro e muito nervoso, o que se tornava visível sobretudo na sua maneira de andar e falar. Quando viu o cavaleiro solitário aproximar‑se pela alameda parou de repente.

‑ Quem é aquele homem, caro amigo? ‑ perguntou surpreendido.

‑ É o Kochlowsky! ‑ Douglas sorriu. ‑ Ora aí está ele, em carne e osso..

‑ Aquele maravilhoso cavalo é dele?

‑ Sim, veio da propriedade de Luisenhof.

‑ Ele tem dinheiro para isso?

‑ Um Kochlowsky é capaz de tudo! Aliás, convencer‑te‑á de que a tua fábrica de tijolos é uma espelunca. o pior é que normalmente tem razão! Só que ninguém gosta de o confessar.

‑ E achas que ele é o homem que eu procuro?

‑ Se procuras um punho de ferro... Então é o homem certo para ti.

O cavalo trotou mais devagar, parando finalmente a uns dez metros dos dois aristocratas. Kochlowsky desceu da sela e aproximou‑se a pé. Reckhardt seguiu‑o, com as rédeas a arrastarem‑se pelo chão.

‑ Então, Kochlowsky ‑ cumprimentou Douglas, num tom jovial. ‑ Não o esperava tão cedo...

‑ O senhor conde sabe que eu obedeço aos seus apelos a qualquer hora do dia ou da noite.

‑ E por que motivo vem do lado do parque? ‑ perguntou Finck, um pouco maldoso.

‑ Só por que no portão se encontram lacaios que são extremamente arrogantes...

‑ E deixa o cavalo andar atrás de si, sem segurá‑lo pelas rédeas?

‑ Quem foi bem educado não precisa de andar à trela.

‑ Este é o Kochlowsky, querido Friedrich! ‑ Douglas

riu‑se. ‑ Acha que exagerei? Eis o temido Kochlowsky. - E depois, virando‑se para Leo, disse: ‑ Apresento‑lhe o

barão Von Finck.

Kochlowsky fez uma pequena vénia. Não tinha nada contra o barão, mas ao mesmo tempo não o achava muito simpático. As duas primeiras coisas que dissera não lhe tinham agradado nada.

O barão Von Finck olhou para Reckhardt von Luisenhof e admirou os seus músculos, a elegância do corpo e a cabeÇa estreita e nobre. O cavalo pousara as narinas no ombro de Kochlowsky e observava Finck.

- Este cavalo interessa‑me ‑ disse o barão Von Finck. - Quanto quer por ele?

- Não está à venda, senhor barão.

- Dou‑lhe o triplo daquilo que pagou!

- Eu não negoceio um amigo. Ele é meu amigo. O meu único amigo!

‑           Mas então, pelo menos permita‑me que o monte uma vez...

‑           Sinto muito, senhor barão, mas isso é impossível.

Finck franziu as sobrancelhas. Aos poucos, Kochlowsky começava a parecer‑lhe impertinente.

‑           Considera um sacrilégio eu montar o seu cavalo? - perguntou, irritado.

‑           Quero evitar que o senhor barão se magoe ao cair no chão.

‑           Até hoje não houve um único cavalo que me tivesse feito tal coisa! O senhor cumpriu o serviço militar?

‑           Não.

‑           Eu fui cavaleiro dos ulanos! E o senhor está a tentar dizer‑me que um cavalo me vai deitar ao chão? ‑ O barão Von Finck virou‑se para o conde Douglas. ‑ O que achas disto?

‑           Eu só sei que o meu estribeiro, o barão Von Uxdorf, caiu deste cavalo. E ele também foi cavaleiro...

‑           Então Kochlowsky é a única pessoa que consegue fi car em cima do cavalo? Isso eu quero ver! ‑ Finck despiu o casaco e entregou‑o ao conde Douglas. Kochlowsky olhou‑o com um ar um pouco aflito. ‑ Vou mostrar a este cavalo o que é um velho ulano!

‑           Depois não diga que não o avisei, senhor barão - disse Kochlowsky, hesitante.

‑           Avisar! Avisar do perigo de um cavalo me deitar ao chão? Isso é ridículo!

Kochlowsky recuou alguns passos e ficou ao lado de Douglas. Irrequieto, passou a mão pela barba. Aquilo que ia acontecer não era um bom prelúdio para uma conversa sobre emprego. As conversações corriam o risco de serem bastante prejudicadas pela vergonha que o barão ia passar. Esqueçamos Herzogswalde, Leo...

O barão Von Finck era um homem bem constituído, forte e hábil. Sentou‑se na sela com uma rapidez invulgar e puxou as rédeas de Reckhardt de maneira que este não pu desse levantar a cabeça. Ao mesmo tempo, apertou‑o com as coxas para dizer ao cavalo: sou o teu senhor!

Como no caso do barão Von Uxdorf, também aqui tudo se desenrolou rapidamente. Durante alguns segundos, Reckhardt von Luirenhof manteve‑se hirto como uma estátua. Não se via a respiração, não havia um inchar das narinas, um tremer das pernas ou um movimento de ouvidos. O cavalo dir‑se‑ia petrificado. Mas, de repente, quando o barão Von Finck já olhava para Kochlowsky com um ar triunfante, o maravilhoso corpo castanho‑avermelhado de Reckhardt levantou‑se como projectado por uma mola invisível: saltou com as quatro patas, curvando‑se ao mesmo tempo. Não havia maneira de um homem se segurar a ele. O barão Von Finck voou pelos ares. Kochlowsky agarrou‑se à barba com as duas mãos, o conde Douglas deixou escapar "Ai!", num tom de voz, quase divertido, e depois o barão aterrou num arbusto, destruindo‑o por completo. Kochlowsky correu logo para ele e ajudou‑o a desembaraçar‑se dos ramos. O cavalo, entretanto, acalmara‑se. Voltara para o caminho principal e só as suas narinas estavam ligeiramente inchadas.

- Que diabo! ‑ exclamou o barão Von Finck, ofegante, quando enfim conseguiu livrar‑se do arbusto. Apoiou‑se no ombro de Kochlowsky e ajeitou o fato. ‑ Este cavalo é um verdadeiro demónio...

‑           Por isso é que nos damos tão bem.

Finck olhou para Kochlowsky, largou‑o e afastou‑se um pouco.

‑           Quando pode começar a trabalhar, Kochlowsky?

‑           A qualquer hora, senhor barão.

‑           Pode ser no dia um de Novembro?

‑           Perfeitamente.

‑           Passe por lá um dia destes para conhecer a fábrica.

‑           Com todo o prazer.

‑           Tenho a certeza de que gostará daquilo. A bela cidade de Dresden fica logo ao lado. E o senhor terá uma casa com um estábulo. É claro que trará consigo esse diabo de Cavalo! É impressionante! Nunca antes um cavalo conseguiu deitar‑me para o chão

O barão Von Finck fez um gesto de despedida com a cabeça, coxeou para perto do conde Douglas, apoiou‑se a ele e voltaram para o palácio.

Kochlowsky esperou até que os dois estivessem na grande alameda, montou Reckhardt, acariciou‑lhe o pescoço e

depois disse:

‑           És mesmo um maldito demónio!

Depois voltou para a entrada do palácio. O camareiro, Luther, parecia estar à espera dele. Veio logo ao seu encontro.

‑           Ainda não! ‑ exclamou, malicioso. ‑ Terá que esperar mais! Ainda falta muito. A mesa para o almoço acabou de ser posta...

‑           Se a estupidez nos tornasse alegres, estavas a dançar! ‑ riu Kochlowsky, indo‑se embora.

Luther não soube o que dizer. "Ele ignora o conde... nunca minguém teve a coragem de fazer isso". Mesmo mais tarde o camareiro não compreendeu por que razão o conde não mandava entrar Kochlowsky. Parecia tê‑lo esquecido. Porém, quando Luther tentou lembrá‑lo disso, o conde mandou‑o calar com um gesto da mão.

 

Sofia correu ao encontro de Kochlowsky quando o viu aparecer ao longe. O seu cabelo louro esvoaçava ao vento. Jacky, o cão, seguiu‑a ladrando.

‑           O que se passou, Leo? ‑ gritou, ofegante; então parou e pôs as mãos na barriga. ‑ O que disse o barão? Leo...

‑           Consegui o emprego ‑ anunciou Kochlowsky, saltando do cavalo. ‑ Em fins de Outubro iremos para Herzogswalde...

‑           Oh, graças a Deus! ‑ Sofia encostou‑se a Kochlowsky e de repente as lágrimas corriam‑lhe pela cara pálida. ‑ Eu tinha tanto medo do futuro. Agora está tudo resolvido. Deus ouviu as minhas orações...

‑           Não sei bem... ‑ Kochlowsky colocou o braço à volta da sua pequena mulher, apertou a cabeça dela contra o seu corpo e olhou para Reckhardt von Luisenhof. ‑ Ainda não compreendi se ele me contratou a mim ou ao cavalo... afinal, nem me perguntou quanto é que eu ganhava...

 

Na fábrica de tijolos de Lúbschútz, Leopold Langenbach voltara a mandar sozinho. Mas mesmo assim as coisas não eram como dantes... Tudo estava calmo, não se ouvia a voz grossa de Kochlowsky, ninguém levava berros, ninguém chamava a Plumps, o gordo que fungava, senhor Constipado, e também ninguém beliscava os traseiros das trabalhadoras. Tanto os cocheiros como os mineiros sentiam a falta de Kochlowsky e os grossistas perguntavam, pasmados:

"~Onde está o senhor Kochlowsky? O quê, demitiu‑se? Não é possível! Estávamos ansiosos por discutir com ele. Os seus palavrões já eram quase uma tradição! Quem para além de Kochlowsky sabe, por exemplo, inventar uma palavra como "amostra de intestino grosso" para insultar alguém?"

 

O conde Douglas mandou chamar o guarda‑florestal Willy Cranz. Porém, a conversa que tiveram não adiantou muito. Não, Cranz não estava zangado com Kochlowsky, até estaria disposto a estender‑lhe a mão em público para fazerem as pazes. Afinal, os ciúmes perdoam‑se, mesmo que não tenham razão de ser. Os habitantes de Wurzen, porém, nunca mais tolerariam um Kochlowsky entre eles.

‑ Estou‑me nas tintas para as pessoas! ‑ disse o conde Douglas, à maneira de Kochlowsky. ‑ Não é com conversas que expando a minha fábrica!

Numa sexta-feira de manhã, um mensageiro a cavalo trouxe uma carta do conde para Kochlowsky. Este estava no estábulo a escovar Reckhardt. Espalhara serradura e limpara a cocheira.

‑ Podes levar já a resposta ‑ disse Kochlowsky quando o mensageiro se quis ir embora. ‑ Espera só um momento!

Voltou para o estábulo, sentou‑se na caixa da aveia, leu a carta, pegou num lápis e escreveu transversalmente por cima das palavras do conde: "Não!"

Mais nada. O mensageiro, um pouco baralhado, guardou a carta e partiu. Sofia aproximou‑se a correr, mas era tarde de mais.

- Aquele não era o mensageiro do conde? ‑ perguntou curiosa.

‑ Sim...

‑           O que queria?

‑           Trazia uma carta do conde!

‑           Meu Deus, fala, Leo! ‑ Sofia mexia as mãos, nervosa. ‑ Onde é que ela está?

‑           Na correspondência comercial diz‑se: original devolvido! O mensageiro voltou a levar a carta.

- o que foi que fizeste agora? ‑ Era a primeira vez desde que se conheciam que Sofia cerrava os punhos. - O que fizeste, Leo? O que era que o conde queria?

‑           Quis que eu voltasse para a fábrica... ofereceu‑me o dobro do salário. Eu seria o único gerente e Langenbach passaria a ser o representante para o exterior. ‑ Kochlowsky voltou a pegar na brossa e na escova. ‑ Escrevi um grande "não" na carta...

‑Não... ‑ Sofia respirou fundo e passou as mãos pelo cabelo. ‑ Tu escreveste "não"? Estás doido?

‑           Tenho o meu orgulho e não me vendo por umas moedas! Expulsaram‑me como um marginal... agora, se quiserem, podem dançar à minha porta que nem sequer vou olhar!

‑           Podíamos ter ficado com isto tudo, Leo. Com a casa, o jardim... a terra natal de Vanda! Não sabes fazer concessões... todos nós as fazemos de vez em quando! Ou será que te consideras o dono do mundo?

‑           Eu sou Leo Kochlowsky! ‑ gritou ele, batendo com a escova contra a brossa. ‑ O dia em que eu lamber as botas a alguém será o último dia da minha vida! Além disso, dizem que Herzogswalde é um lugar muito bonito... e a real cidade de Dresden fica logo ao lado.

 

No dia 2 de Outubro de 1890, Kochlowsky foi visitar o seu novo local de trabalho. Antes de partir, Sofia entregou-lhe um talismã. Era uma pequena imagem de Vanda, pintada por Louis Landauer.

‑           Pensa sempre em nós... ‑ disse ao entregar‑lho.

Kochlowsky ficou emocionado, deu um beijo na mulher e na filha e foi para a estação de Wurzen.

Na noite de 3 de Outubro, Jacky, o cão, começou de repente a ladrar e a ganir, saltou para a cama de Sofia e lambeu‑lhe a cara. Ela tentou afastá‑lo algumas vezes, mas quando viu que Jacky corria para a porta, ladrava e voltava sem fim, saltou da cama, vestiu o roupão e abriu‑lhe a porta.

Quando saiu da casa, soltou um grito. Na escuridão da noite viam‑se as labaredas da madeira a arder. Ouvia‑se um relinchar na escuridão e havia um forte cheiro a fumo. O estábulo de Reckhardt estava a arder.

 

Embora Kochlowsky tivesse ido para Herzogswalde com o firme propósito de nunca gostar da aldeia, simpatizou com ela logo à primeira vista. Ficava à beira da estrada e havia bonitas casas com jardins nas traseiras. Pelo centro da aldeia passava uma larga estrada que cruzava as aldeias de Grum, Kesseldorf e Gorbitz e que seguia directamente para Dresden. A zona era montanhosa, com muitas florestas e arvoredos, com campos e rios e a grande zona florestal de Tharandt logo ao lado... Tharandt, com o sanatório Hartha, era conhecida por ali os tísicos ganharem novas forças através do repouso absoluto.

            A partir da estação de Dresden Kochlowsky teve de mudar várias vezes de comboio até Herzogswalde. Quando finalmente chegou, ficou sozinho em frente ao edifício da estação. Mais quatro pessoas haviam descido do comboio, mas essas eram esperadas e partiram em coches. Agora, não se via um único coche. Em Herzogswalde n o estavam preparados para a chegada de estranhos. Quando alguém chegava era sempre esperado. Afinal, quem viria a Herzogswalde sem se anunciar?

Kochlowsky voltou a entrar na estação, dirigiu‑se à bilheteira e bateu no vidro. O funcionário, que estava a comer uma sanduíche ‑ o próximo comboio só chegaria dentro de três horas, pelo que esta era a hora certa para se descansar ‑ olhou para ele, fez um sinal afirmativo com a cabeça e continuou a comer. Kochlowsky rangeu os dentes. Bateu no vidro com tanta força que este quase se partiu.

O funcionário suspirou, pousou a enorme sanduíche, bebeu um gole de café da sua caneca e depois levantou o vidro.

‑           Bom proveito! ‑ berrou Kochlowsky.

‑           Obrigado. É fiambre do abate caseiro. O senhor não é daqui, pois não? Pelo menos eu não o conheço.

‑           Há‑de ficar a conhecer‑me ‑ prometeu Kochlowsky, sombrio. ‑ Aqui não há coches?

‑Não...

‑           Então como é que um viajante vai de Herzogswalde para Heizdorf, por exemplo?

‑De coche...

‑           Será que eu estou a ficar doido? ‑ gritou Kochlowsky. ‑ O senhor acabou de dizer...

‑           O coche tem que ser pedido!

‑           E onde se faz isso?

‑Aqui.

Kochlowsky respirou fundo. "Não faças o mesmo erro que em Wurzen", pensou, tentando acalmar‑se. "Não berres! Leo, tenta controlar‑te!"

‑           Então eu queria pedir um coche, por favor ‑ pediu, com esforço.

‑           Para onde?

‑           Para a propriedade do barão Von Finck...

‑           Para o solar? ‑ O funcionário fitou Kochlowsky com algum desprezo. Os convidados do barão que iam para o solar eram normalmente aguardados na estação. Simples comerciantes não iam para o solar, mas para a tesouraria ou para a fábrica de tijolos. ‑ Deseja falar com o senhor Hammerschlag?

‑           Quem é esse indivíduo?

‑           É o tesoureiro.

‑           Eu quero falar com o barão Von Finck! ‑ exclamou Kochlowsky.

‑           Tem a certeza?

Kochlowsky conteve‑se para não começar a gritar. Sem dizer uma palavra, fechou a janelinha e saiu da estação.

O funcionário seguiu‑o com o olhar, pasmado, pegou na sanduíche e continuou a comer.

‑           Que coisa! ‑ murmurou, mastigando. ‑ Existem pessoas tão impacientes...

Kochlowsky teve sorte. Um coche que transportava bilhas de leite vazias passou pela estação. Quando Leo lhe barrou o caminho, o cocheiro, grisalho e com ar cansado, teve de gritar alto ao cavalo para não o atropelar.

‑           O senhor quer morrer? ‑ exclamou com uma voz já enfraquecida pela idade.

‑           Tem tempo para mim? ‑ perguntou Kochlowsky aproximando‑se do coche.

‑           Para o transportar para o cemitério, não...

‑           Quero ir para a propriedade do barão Von Finck.

‑É para onde eu vou...

‑           Que sorte! Então leva‑me consigo?

‑Não!

‑           Por que não?

‑           Eu não o conheço de lado nenhum. Quem sabe se o senhor não me assalta no caminho...

‑           Para que havia eu de querer bilhas vazias?

‑           Podia estar interessado no cavalo.

‑           Esse tem vinte e três anos. Eu não sou dono de nenhum lar.

‑           Vinte e três... ‑ O cocheiro sorriu. ‑ O senhor parece entender de cavalos! Suba! Como é que se chama?

‑           Leo Kochlowsky.

‑           Muito prazer. Eu sou Fritze Blohme.

Kochlowsky subiu para o coche e colocou as suas malas atrás de si, entre as bilhas.

‑           Com essa idade o senhor ainda faz um trabalho tão duro?

‑Eu tenho setenta e cinco anos. ‑ Blohme estalou a língua e o cavalo começou a andar. ‑ Se não trabalhar, morro à fome. A minha mulher morreu há dez anos e o meu filho tombou em França, no ano de mil setecentos e oitenta. Estou só. E trabalhei durante toda a minha vida. Afinal, a comida não cai do céu. E o cavalo também tem que ser alimentado. Por isso trabalhamos até um de nós morrer...

Kochlowsky observou Blohme discretamente. Tinha uma cara coberta de rugas, marcada pelo tempo, cabelos brancos e ralos, um pescoço fino, braços e mãos delgadas e vestia um fato que lhe era grande de mais.

‑ De agora em diante ver‑nos‑emos mais frequentemente, Fritze ‑ disse Kochlowsky, tirando‑lhe as rédeas. ‑ Deixe‑me fazer isso.

‑ Mas sabes conduzir o cavalo, rapaz?

Fritz Blohme pousou as mãos no colo e deixou Kochlowsky fazer o seu trabalho. Notou imediatamente que Leo entendia de cavalos. Isso tornou‑o falador e durante toda a viagem não parou de contar histórias da sua vida. Disse que toda ela fora preenchida unicamente por esforço e trabalho, mas que não se queixava. Conseguira possuir uma casinha de madeira, um cavalo e um coche, tivera uma boa mulher e um filho corajoso ‑ que mais se podia desejar? Até mesmo os ricos, os muito ricos, quando morriam não levavam mais para o caixão do que ele. Sim, talvez usassem uma camisa de seda ou um bom fato e o caixão não era de pinho, mas sim de boa madeira de carvalho; porém, quando o senhor pastor deitava a terra nos caixões, eram todos iguais. Isso consolava‑o.

"Vou tratar de ti, Fritze", pensou Kochlowsky enquanto guiava o coche com as bilhas pela estrada bordejada por flores. "Quando eu vier viver para Herzogswalde terás comida com fartura. Ficarás com a cara e o traseiro bem redondos! "

Quando chegaram à alameda que dava para a propriedade do barão, Kochlowsky já ganhara um amigo em Herzogswalde.

Um amigo ‑ quando tivera jamais um amigo?

Dois dias mais tarde, um coche do barão levava um Kochlowsky satisfeito de volta à estação. Aceitara o emprego.

Este parecia‑lhe um lugar onde poderia vir a sentir‑se bem. A casa em que iria viver era grande, perfeita para uma família numerosa. Tinha um enorme jardim, um estábulo e uma cocheira. A floresta formava uma espécie de semicírculo à volta da casa. A única coisa que não agradava a Kochlowsky era a fábrica.

‑           Tenho que lhe dizer que a fábrica está ultrapassada, no que se refere às máquinas ‑ dissera ao barão Von Finck. ‑ Neste estado não é competitiva.

‑           Já estava à espera que me dissesse isso. Foi por essa razão que o contratei.

‑           Aquilo parece um curral, senhor barão.

‑           Então limpe‑o, Kochlowsky! Confio em si, embora tenha ouvido dizer coisas muito más a seu respeito. Estou ansioso por voltar a ver o seu cavalo.

‑           O senhor nunca se vai aguentar na sela de Reckhardt, senhor barão.

‑           Veremos, Kochlowsky!

‑           Se o conseguir, levo Reckhardt para o esfolador!

‑           Cuidado com o que diz, Kochlowsky! ‑ O barão Von Finck sorriu. ‑ Eu sou diferente do conde Douglas. Sou duro de roer. O senhor devia levar isso em consideração desde o princípio. Ficamos então combinados para um de Novembro?

‑           Sim, senhor barão.

No comboio para Dresden, Kochlowsky reviu a situação em Herzogswalde. Na fábrica iria ter toda a liberdade; isso era o mais importante. Além do barão não haveria ninguém acima de si.

Porém, nesses dois dias não encontrara o tesoureiro Wimbald Hammerschlag, que costumava dizer de si próprio:

‑           Eu é que mando aqui! E todos me obedecem. O barão é o vosso senhor, mas eu sou o polegar na vossa nuca...

Tudo indicava que a calma campestre de Herzogswalde em breve pertenceria ao passado.

 

O fogo subia pela porta, mais labaredas surgiram na parede de lado e subiam até ao telhado. Reckhardt relinchava, desesperado, escouceando a separação de madeira. Empinava‑se e tentava destruir a porta da cocheira com a sua força e o seu peso. Jacky corria de um lado para o outro latindo e gemendo. Ora se afastava das chamas, ora se aproximava, como se fosse capaz de salvar o seu amigo Reckhardt.

Durante alguns segundos Sofia ficou como que paralisada de susto. Depois correu para a bomba de água no jardim, onde havia dois baldes para regar as flores e as plantas, encheu‑os, levou‑os para o estábulo e atirou a água às chamas. Ouviu‑se uma espécie de silvo, seguindo‑se nuvens de vapor ‑ mas o que eram alguns litros de água contra um mar de chamas?

Sofia correu mais umas dez vezes da bomba para o estábulo com os baldes na mão, no fim quase a chorar, mas tudo o que conseguiu foi que a madeira queimasse com uma fumaça ardente que lhe dificultava a respiração.

De repente, sentiu uns braços fortes que a puxaram com violência para trás. Cambaleou na direcção de uma árvore, agarrou‑se a ela e viu um homem que corria para o fogo, abria a porta do estábulo e desaparecia atrás da cortina de chamas. Alguns segundos depois, Reckhardt saiu do estábulo a correr, galopou pelo jardim e só parou atrás da casa.

O homem voltou a aparecer, atravessando as chamas, passou por Sofia, correu até aos baldes e despejou toda a água sobre o seu corpo. Depois encostou‑se à bomba e passou a mão pela cara molhada. A sua roupa havia começado a arder, mas a água apagara as chamas. O seu cabelo louro estava chamuscado, mas de resto não tinha ferimentos. De súbito, parte do telhado ruiu, crepitando, para dentro do estábulo, lançando uma miríade de faúlhas... esse teria sido o fim de Reckhardt.

O homem virou‑se para Sofia e só então ela o reconheceu... soltou um grito e correu até ele, abraçando‑o ao mesmo tempo que chorava. Jacky também se aproximou, ladrando, e deitou‑se aos pés de Sofia.

‑ O senhor aqui?! ‑ balbuciou Sofia. ‑ Muito obrigado! De onde veio? Apareceu mesmo a tempo...

Willy Cranz colocou o braço à volta de Sofia, como se a quisesse proteger, e olhou para o estábulo, que agora se encontrava envolto em chamas.

‑ Eu vinha de Lúbschútz, onde estive na taberna - sorriu levemente. ‑ Fundámos um grupo cujo nome é "Os prejudicados por Kochlowsky". ‑ Sorriu, um pouco envergonhado. ‑ E agora, quando vinha de lá, vi que o estábulo dos Kochlowsky estava a arder!

‑ E não permitiu que ardesse...

‑ Acha que eu seria capaz de uma tal maldade? - Largou Sofia e fez um gesto de cabeça em direcção ao cavalo. ‑ Vamos ver se ele está ferido. Depois levá‑lo‑ei para minha casa, onde tenho o material de primeiros socorros.

Aproximou‑se de Reckhardt. O cavalo tremia, mas deixou que Cranz o examinasse. Baixara a cabeça até ao chão e Jacky lambeu‑lhe as narinas.

‑ à primeira vista não parece estar ferido ‑ disse Cranz, aliviado. ‑ Mesmo assim, prefiro levá‑lo comigo. Não pode ficar aqui, ao ar livre. Amanhã, à luz do dia, examiná‑lo‑ei de novo. ‑ Olhou para a casa. ‑ O seu marido não está?

‑ Foi para Dresden e dali seguiu para Herzogswalde... depois de amanhã estará de volta.

‑ É o novo emprego?

‑ Talvez... ‑ Sofia fitou‑o com uns olhos enormes.

‑ Ele tratou‑o tão mal e eu ainda nem me desculpei por isso...

‑ Isso já passou ‑ disse Cranz. ‑ Só há uma coisa que gostaria de esclarecer: eu nunca teria expulso o seu marido de Wurzen. Nunca exigi isso. Mas é o melhor que ele tem a fazer. ‑ Apontou para o estábulo que se desfazia aos poucos. ‑ Esta é a melhor prova. Um fogo desses não surge do nada... não irrompe por si só!

 

É difícil descrever a reacção de Kochlowsky quando voltou da estação de Wurzen. Já de longe sentiu o cheiro forte da madeira que continuava a arder sem chama. E depois viu os restos do fogo. Soltou um ruído quase selvático, saltou do coche e correu para o jardim. Sofia saiu da porta traseira da casa e correu atrás dele.

‑ Leo! ‑ chamou. ‑ Leo! Está tudo bem! Reckhardt está vivo... não lhe aconteceu nada. Está vivo...

Quando o alcançou e ele se virou, reparou que estava a chorar. Na pele da cara transtornada tinham‑se formado uma espécie de canais pelos quais corriam as lágrimas.

‑Sofia... ‑ balbuciou Kochlowsky, deitando a cabeça no seu ombro. ‑ Onde é que ele está? Como é que isto pôde acontecer?

‑ Não sei. ‑ Sofia respirou fundo. ‑ Reckhardt está com o senhor Cranz...

‑ Onde? ‑ Kochlowsky estremeceu.

‑ Cranz salvou‑o. Atravessou as chamas e entrou no estábulo para salvar Reckhardt. Arriscou a vida pelo cavalo.

‑ Então ele estava aqui, a meio da noite, por mero acaso... ‑ disse Kochlowsky, tentando conter‑se.

‑ Sim. Vinha de Lúbschútz, onde formaram o grupo dos "Prejudicados por Kochlowsky".

‑ Que bonito, que engenhoso! E depois passa por aqui e arma‑se em grande salvador... mesmo no momento certo! Que acaso...

‑ Ele salvou o teu querido cavalo! ‑ gritou Sofia de repente, afastando a cabeça de Kochlowsky do seu ombro. ‑ O teu terceiro raio de luz! Se eu estivesse aí deitada nas cinzas, não choravas!

‑Querida... ‑ Kochlowsky quis dizer qualquer coisa, mas Sofia virou‑lhe as costas e correu para dentro de casa. "O que foi que ela quis dizer com isso?", pensou, e sentiu o coração apertado. "Se estivesse ali deitada nas cinzas... Então é essa a imagem que ela tem de mim? Serei eu assim tão bruto?"

Deixou o jardim e foi ter com o cocheiro, que ainda não fora pago. Sentou‑se no coche e ordenou:

‑ Leve‑me para a casa florestal...

‑ Para onde?

‑ Cale‑se e vamos para a casa florestal!

Willy Cranz estava debruçado sobre os seus livros de contas quando o coche de Kochlowsky parou em frente da casa. Fechou imediatamente os livros, vestiu o seu paletó verde e preparou‑se para tudo. Kochlowsky bateu à porta, entrou sem esperar resposta e dirigiu‑se para o centro da sala.

‑ Obrigado! ‑ disse rapidamente.

‑ De nada.

‑ Onde é que ele está?

‑ No estábulo. Está muito bem. Não teve queimaduras. Examinei‑o com todo o cuidado.

‑ Então posso levá‑lo?

‑ Claro.

‑ O senhor entrou no estábulo em chamas e tirou Reckhart de lá...

‑ Não falemos nisso.

‑ Por que foi que o estábulo ardeu?

‑ Tinha dois pontos fracos: a porta e a parede da direita, que eram de madeira. Todo o resto era feito do melhor tijolo de Lúbschútz. Alguém colocou fardos de feno embebidos em óleo nas partes de madeira e salpicou‑os com petróleo.

‑ Fogo posto ‑ disse Kochlowsky, rouco.

‑ Sem dúvida nenhuma.

‑ Esses diabos! Transformam um pobre cavalo em vítima da sua vingança! ‑ Kochlowsky olhou em redor, viu uma cadeira e sentou‑se. ‑ Como podem os homens ser horríveis! ‑ Apalpou os bolsos, mas não encontrou aquilo que procurava. Por isso virou‑se para Cranz e perguntou: ‑ Tem um charuto?

‑ Não, só cigarros.

Tirou‑os de uma secretária, ofereceu um a Kochlowsky e foi até ao armário trazer o conhaque. Kochlowsky fez um gesto de cabeça afirmativo.

‑ No fundo, o senhor é boa pessoa, Cranz.

‑ Obrigado! ‑ O guarda‑florestal encheu dois copinhos e estendeu um a Kochlowsky. ‑ Saúde!

‑ Eu tinha ciúmes de si; era isso! Amo a minha mulher mais do que tudo neste mundo, mesmo que ela não acredite nisso. É jovem, bonita...

‑Linda...

‑ Sim, realmente é linda. E ao lado dela eu sou um velho. Existem dezoito anos de idade de diferença entre nós. Quando ela estiver no auge da vida eu já serei um homem idoso. Por isso fico sempre atento quando ela é galanteada por homens mais novos. Na altura apetecia‑me matá‑lo, Cranz, mas agora sei que estava errado. Ficar‑lhe‑ei eternamente grato por ter salvo Reckhardt! ‑ Ergueu o seu copo. ‑ Mais um, senhor florestal!

‑ Não quer contactar a Polícia, senhor Kochlowsky? - perguntou Cranz.

‑ Para quê?

‑ Obviamente foi fogo posto.

‑ A Polícia! Olharão para os restos do estábulo com um sorriso imbecil! E no fundo ficarão contentes com o que aconteceu. Farão um protocolo e é tudo. De certeza que não há pistas, mas existem motivos suficientes. E culpados? Metade da população de Wurzen é culpada! Por isso, para quê avisar a Polícia?

‑ Quando é que o senhor se vai embora?

‑ Em fins de Outubro. No dia um de Novembro começo a trabalhar em Herzogswalde. ‑ Kochlowsky ergueu‑se. ‑ Como posso demonstrar a minha gratidão?

‑ Montando o seu Reckhardt, cavalgando para a sua mulher e tendo a certeza de que não lhe guardo rancor. - Cranz hesitou um pouco e depois acrescentou: ‑ E dizendo uma coisa que se calhar nunca disse: "Eu enganei‑me"...

Kochlowsky hesitou, olhou para Cranz com um ar pensativo e afagou a barba com as mãos.

‑ Pela vida de Reckhardt, está bem, enganei‑me! - Depois os seus olhos negros voltaram a brilhar. ‑ Está satisfeito, senhor Cranz? O Kochlowsky já cumpriu a sua penitência?

‑ Não ‑ Cranz abanou a cabeça. ‑ O senhor só saltou uma vez por cima da sua sombra... mas isso fica entre nós!

 

Os móveis já estavam empacotados e a carruagem para Herzogswalde fora alugada. Além disso, Kochlowsky alugara uma cocheira num vagão especial com um ajudante que acompanharia Reckhardt até Herzogswalde e trataria dele.

Agora estavam a fazer a grande limpeza da casa. Naturalmente, Berta Plumps ajudava, sempre lamentando a perda que para eles representava a partida de Kochlowsky.

Este visitou a fábrica de tijolos por uma última vez, porém, fê‑lo num dia em que Leopold Langenbach estava fora, de visita a clientes.

Atravessou a fábrica a passos lentos, despedindo‑se dos empregados e trabalhadores. Estendeu a mão a cada um deles, até aos mais simples serventes, o que deixou uma boa impressão em Lúbschútz. Afinal, qual era o homem numa posição tão elevada que fazia isso?

‑ Pensando bem, as coisas não foram assim tão más - diziam os empregados. ‑ Ele estava sempre à disposição de todos e mesmo que berrasse de vez em quando, era sempre justo! Quem sabe como é a pessoa que se lhe seguir~? No caso de Kochlowsky, ao menos, sabia‑se como as coisas funcionavam. Ou se tentava fugir dele ou então tinha‑se a coragem de lhe apresentar os nossos problemas e desejos. Mesmo que na maior parte das vezes ele acabasse por nos expulsar do escritório, as queixas eram sempre aceites e Kochlowsky ouvia‑as. Era um bom patrão...

Quando Kochlowsky estendeu a mão ao pequeno e gordo Plumps, os olhos deste encheram‑se de lágrimas.

‑ Vou sentir a sua falta, senhor Constipado! ‑ disse Kochlowsky. ‑ Ninguém mais saberá inspirar assim o ranho...

- E aqui não haverá ninguém tão rude como o senhor - respondeu Plumps, sorrindo enquanto as lágrimas lhe corriam pela cara. ‑ Deus o abençoe. Desejo‑lhe muita sorte na nova aldeia...

‑ Se o senhor também se quiser ir embora daqui, venha ter comigo.

‑ Sair daqui, de Wurzen? Com dez filhos...

‑ Esse prazer foi todo seu! Mesmo assim, quis dizer‑lhe isso. Um bom contabilista encontra trabalho em toda a parte.

‑ Muito obrigado, senhor Kochlowsky. ‑ Plumps engoliu algumas vezes em seco. Apetecia‑lhe desatar a chorar.

‑ Não me esquecerei disso.

 

Na tarde desse dia de despedida, Kochlowsky dirigiu‑se pela última vez ao palácio de Amalienburg. O camareiro, Emil Luther, olhou‑o como se fosse um enorme insecto nojento.

‑ O senhor conde espera‑o... ‑ anunciou, de nariz empinado.

‑ Como é que ele sabe que eu cheguei?

‑ Suponho que o terá visto chegar pela alameda...

‑ Meu Deus, que maneira de falar! ‑ disse Kochlowsky com um ar enjoado. ‑ Lacaio, cale a boca, senão vou começar a sentir‑me mal...

Luther abriu a porta com a cara pálida de raiva e, rangendo os dentes, deixou entrar Kochlowsky. "Agora", pensou quando o viu de trás, "agora devia dar‑lhe um grande pontapé." Mas os sonhos mais simples são às vezes os mais difíceis de realizar.

Como era hábito, o conde Douglas recebeu Kochlowsky na biblioteca. Já tinha aberto uma garrafa de conhaque francês que agora estava na sua secretária, ao lado de dois copos meio cheios. Um triplo, como se costuma dizer.

‑ Então, Kochlowsky, decidiu‑se? ‑ perguntou o conde Douglas sem grandes rodeios.

‑ Sim, senhor conde.

‑ Bravo! Brindemos. ‑ Douglas ergueu o seu copo. Kochlowsky imitou‑o num gesto inseguro e bebeu um gole.

‑ Qual o salário que decidiu exigir?

‑ O barão Von Finck quer pagar‑me vinte por cento a mais do que eu ganhava aqui.

‑           O barão Von Finck! ‑ Douglas fez um gesto depreciativo. ‑ Um forreta! Quanto quer que eu lhe dê?

‑           O senhor? Nada!

‑           Como, nada? ‑ Douglas olhou para Leo com um ar surpreso. ‑ Será que não nos estamos a entender, Kochlowsky?

‑           Parece que nos estamos a referir a duas coisas diferentes...

‑           Pelo que eu compreendi, o senhor veio aqui para aceitar a minha oferta, o que fará de si o único gerente da fábrica de tijolos...

‑           Senhor conde, eu vim para me despedir...

‑           Deve estar a brincar!

‑           E queria agradecer‑lhe por tudo... pela bondade, pela paciência e pela confiança que demonstrou.

‑           Então realmente pretende deixar‑me, Kochlowsky?

‑           Foi o próprio senhor conde que me expulsou.

‑           Meu Deus, uma pessoa não tem o direito de se enganar? Vamos esquecer isso...

‑           Os móveis já estão empacotados, a carruagem do comboio já foi marcada e o contrato de Herzogswalde está assinado...

‑           Posso enviar um telegrama ao barão Von Finck e anular o contrato!

‑           Foi o senhor quem me arranjou esse lugar...

‑           Não falemos mais nisso! Quem tomará conta da fábrica de tijolos se o senhor se for embora?

‑ O senhor conde deve ter um substituto à disposição.

‑ Não tenho nada! Sempre pensei que o senhor, seu grande teimoso, viesse falar comigo sobre o assunto.

‑ Eu não posso ficar mais tempo em Wurzen. ‑ Kochlowsky abanou a cabeça. ‑ Primeiro disparam sobre mim, depois incendeiam o estábulo do meu cavalo. Agora só falta fazerem algo à minha mulher ou à minha filha! Pretende que eu espere que isso aconteça? Não quero mais viver nesta cidade!

‑ Em Herzogswalde vai ser o mesmo!

‑ Não, não. Aí começarei uma vida nova. Vou mudar a minha maneira de ser.

‑           Um Kochlowsky a mudar! É mais provável que o rio Elba corra em sentido contrário! ‑ O conde Douglas bebeu o conteúdo do seu copo de um só trago. ‑ O senhor está a cometer um erro irremediável, Kochlowsky! O barão Von Finck não está nada interessado em si. Continua a gerir a velha fábrica de tijolos só por fazer parte da sua herança. A única coisa que lhe interessa é o seu cavalo! Ele aceitou esse desafio. Finck é doido por cavalos! No dia em que conseguir montar o seu cavalo, o senhor terá perdido. Tornar‑se‑á dispensável...

Kochlowsky encolheu os ombros.

‑           Se isso realmente for verdade ‑ disse, e sorriu ligeiramente ‑, então tenho um emprego vitalício junto do barão Von Flinck. Nunca conseguirá montar Reckhardt. Nunca! Vou confiante para Herzogswalde...

Kochlowsky ainda ficou durante uma hora a conversar com o conde. Beberam metade da garrafa e depois separaram‑se como velhos amigos.

‑           Boa sorte, Kochlowsky ‑ disse Douglas enquanto o acompanhava até à porta. ‑ Aprenda com o passado. Teve de fugir de Pless por causa das mulheres. Foge de Wurzen por causa do seu mau feitio. Qual irá ser o motivo da sua fuga de Herzogswalde?

‑           Aí terão que me arrastar para fora de casa, senhor conde. Senão, não partirei!

‑           Deus oiça as suas palavras! Quando nasce o segundo filho?

‑           Em Fevereiro, senhor conde.

‑           Dê cumprimentos meus à sua mulher. Ela tem uma coragem invulgar. Afinal, é ela que arca com o maior peso, e o senhor sabe disso, não sabe?

‑           Muita coisa mudará, senhor conde. ‑ Kochlowsky uniu os calcanhares, fez uma vénia e saiu da biblioteca.

No vestíbulo deparou‑se‑lhe o mordomo e o camareiro.

‑           A única coisa de que sentirei falta será das vossas caras ‑ disse. ‑ O vosso aspecto sempre me ajudou em alturas em que me apetecia arrotar. Que pena, agora terei de recorrer aos sais...

Saiu do palácio de Amalienburg com a sensação de ter tido uma excelente despedida.

No dia seguinte, Wurzen assistiu a mais uma cena típica de Kochlowsky.

Leo passeava pela cidade, montando a cavalo. Parava aqui e acolá, nas lojas em que os Kochlowsky sempre tinham feito compras, e despedia‑se dos comerciantes, entre os quais se encontrava naturalmente o vendedor de charutos Felix Bernitz e o merceeiro Martin Lobsam. Bebeu uma última cerveja no Hotel "Cidade de Leipzig" e até comeu uma daquelas costeletas das quais afirmava que deveriam ser entregues ao sapateiro para serem transformadas em sola. Depois dirigiu‑se à estação onde estavam os eternos coches, os mesmos que encontrara no dia em que chegara a Wurzen e que ofendera.

‑           Venham cá! ‑ gritou, soltando um saco de linho da sela de Reckhardt. Abriu‑o e tirou quatro garrafas de Kulmmel. ‑ Fui injusto convosco... agora bebam à minha saúde!

‑Mas... senhor Kochlowsky, isso foi há quase dois anos! ‑ O cocheiro a cujo cavalo Kochlowsky chamara animal esclerosado apertou a garrafa de Kulmmel contra o peito. ‑ Já nem nos lembrávamos disso...

‑           O homem só se esquece do que é bom! Esqueçam o vosso rancor com esse Kulmmel... agora estão livres de mim!

Sem esperar por resposta, montou a cavalo e partiu.

Atravessou pela última vez os campos e as florestas que agora brilhavam em lindas cores de Outono. No entanto, não estava triste por deixar tudo para trás. A despedida de Pless fora muito mais difícil. Aí abandonara metade da sua vida e decidira dedicar toda a outra metade inteiramente a Sofia, a sua querida. E o que acontecera? Uma cidade inteira queria ver‑se livre dele.

Parou o cavalo, deixou o olhar vaguear pelos campos e disse em voz alta:

‑ Sê sincero, Leo! És realmente um sacana...

 

A mudança para Herzogswalde não se processou tão facilmente como pensara. Mas, afinal, não era de admirar.

A carruagem com os móveis ficara parada em alguma estação, provavelmente em Dresden. Reckhardt, por seu lado, chegou pontualmente com o seu acompanhante. Desceram‑no da carruagem e Kochlowsky levou‑o até ao estábulo da nova casa. Era a única parte da casa que, pelo menos para um cavalo, estava pronta a ser habitada... Os quartos. que haviam sido minuciosamente limpos por uma empregada, encontravam‑se completamente vazios, e as cortinas novas, feitas por uma costureira de Herzogswalde, baloiçavam ao vento quando os quartos eram arejados. Felizmente nesse ano o mês de Outubro mostrava‑se agradável.

Kochlowsky instalou‑se com Sofia e Vanda na única estalagem da zona, chamada "O Cisne". Receberam‑no

ainda sem saberem o que os esperava ‑ como um grande senhor, pois sabiam que se tratava do novo gerente da fábrica de tijolos. A afirmação de Kochlowsky: "o aluguer será pago pela companhia dos caminhos‑de‑ferro", foi considerada uma piada, mas ele estava demasiado preocupado para reparar nas caras simpáticas dos que o recebiam.

O pobre chefe da estação de Herzogswalde ficou a saber o que significa deixar um Kochlowsky à espera dos seus móveis. Ficou tão abalado com o acesso de raiva de Kochlowsky que mais tarde nem sabia reproduzir o que ouvira. Só se lembrava de uma frase: ‑ Sua glândula malcheirosa! ‑ e isso era o suficiente. Para que à noite Reckhardt não ficasse sozinho, Kochlowsky decidiu não dormir com a mulher e a filha, na estalagem, mas sim ao lado do cavalo, na palha. Naturalmente, Jacky acompanhou‑o... a sua amizade por Reckhardr tornara‑se entretanto sólida.

Na segunda noite, enquanto em Dresden se procurava a carruagem, que mudara de trilhos em Leipzig, como previsto, mas que provavelmente fora atrelada ao comboio errado, o barão Von Finck apareceu em casa de Kochlowsky.

‑           Mas isto é um absurdo! ‑ exclamou, os olhos a brilhar quando olhava para Reckhardt. ‑ Só agora é que fico a saber desta situação! Por que não vem para minha casa, Kochlowsky? Eu tenho um lugar nos estábulos e a sua família pode ficar em minha casa! Alugou um quarto na estalagem? Meu Deus! E dorme no chão, na palha! Quem sabe quando chegarão os seus móveis?! Venha comigo, vamos até à minha propriedade.

‑           Nós estamos muito bem aqui, senhor barão. ‑ Kochlowsky acariciou a garupa de Reckhardt. ‑ Além disso, a companhia dos caminhos‑de‑ferro há‑de pagar o quarto na estalagem.

‑           Tem a certeza disso?

‑           Lutarei por isso.

‑           Lutará contra uma entidade pública, Kochlowsky?

‑           Como cidadão livre, tenho os meus direitos! Uma entidade pública existe para servir o Estado e o cidadão. Afinal, quem é que a paga?

‑           Ah! ‑ O barão Von Finck olhou para Kochlowsky com um ar inquiridor. ‑ O senhor é socialista?

‑           Eu sou um opositor de todo o tipo de arbitrariedade do Estado.

‑           Então é um socialista! ‑ O barão Von Finck dirigiu‑se para a saída do estábulo, pôs a mão no bolso do seu paletó e tirou um charuto. Kochlowsky deu‑lhe lume com um pauzinho de madeira que acendera numa lâmpada de petróleo. ‑ Eu conheço esse tipo de discursos. São discursatas revolucionárias! Essas palavras lembram‑me o ano de oitenta e quatro! Kochlowsky, não me venha com coisas dessas! Desista dessa maneira de pensar... ou então nunca nos daremos bem!

Kochlowsky viu pasmado como o barão se dirigia para a estrada, montava o cavalo e partia.

Uma brisa completamente diferente da habitual soprou‑lhe na cara.

 

Tiveram que esperar uma semana até que a carruagem com os móveis chegasse à pequena estação de Herzogswalde. O chefe da estação mandou um mensageiro chamar Kochlowsky, que acorreu imediatamente.

Os lacres estavam intactos, pelo que as portas não haviam sido abertas. Pelos vistos, nada fora roubado.

‑           Foi um engano ‑ explicou o chefe da estação, que não tinha a culpa do sucedido. ‑ Em vez de vir para Herzogswalde a carruagem foi parar a Eberswalde.

‑           É natural! ‑ resmungou Kochlowsky, zangado. - Quando os empregados dos caminhos‑de‑ferro são todos

analfabetos...

‑           Mas uma coisa destas pode sempre acontecer! ‑ respondeu o chefe da estação, tentando defender‑se. ‑ Também não é o fim do mundo!

‑           Veremos! Esta semana que eu passei na estalagem será paga pelos caminhos‑de‑ferro.

‑           Não!

‑           Está a ver? O senhor vai perceber que o fim do mundo não está assim tão longe! ‑ Kochlowsky assinou os papéis necessários, chamou um coche para transportar os móveis para casa e depois foi até à estalagem.

‑           A carruagem chegou, querida ‑ disse à sua mulher ‑ Amanhã mobilaremos a casa. E depois de amanhã voltaremos à nossa vida normal. às oito da manhã começarei a trabalhar na fábrica de tijolos.

‑           Chegarás lá com três dias de atraso, Leo. Depois de amanhã já é o dia três de Novembro...

‑           E então?! Enquanto eu durmo ao lado de um cavalo na palha, considero‑me um cigano e não um gerente. O barão terá igualmente que fazer uma queixa contra os caminhos de ferro...

No dia seguinte, os móveis foram colocados nos seus lugares com a ajuda de duas raparigas e dois carpinteiros da fábrica de tijolos, tornando assim a casa habitável.

 

Na manhã do dia 3 de Novembro, o novo gerente chegou à fábrica de tijolos. Era esperado com grande curiosidade e todos o analisavam de cima a baixo. Pelo que se ouvia dizer, muito ou quase tudo iria mudar. Falava‑se em modernização! Isso significava mais ou menos mão‑de‑obra e mais desempregados? Iriam as máquinas substituir os homens? Traria o progresso pobreza a mais famílias? Quem seria o primeiro a ser atirado para a fome?

No grande escritório da fábrica, Leo já era esperado. Um homem gordo encontrava‑se sentado atrás da secretária destinada a Kochlowsky. Levantou‑se devagar quando Kochlowsky entrou e bateu com a porta atrás de si. Ao ver o seu lugar ocupado, ficou imediatamente com uma cara tenebrosa. Ninguém havia de sentar‑se atrás dessa secretária, mesmo se a cadeira estivesse vazia.

‑ Ora aí está o senhor ‑ disse o homem, que tinha uns ombros extremamente largos. ‑ Com três dias de atraso...

Se Kochlowsky tivesse sido recebido com as palavras:

-  Bom dia, seu bruto!", isso teria sido talvez pouco educado e ele teria respondido com uma grosseria suave. Mas o facto de um estranho, ainda por cima sentado no lugar que normalmente lhe pertencia, o criticasse num tom de voz repreensivo por causa da sua falta de pontualidade, enfureceu‑o.

‑ Isso não é da sua conta! ‑ gritou imediatamente.

‑ Duvido que assim seja! ‑ retrucou logo o homem forte.

‑ O que pensa que está a fazer na minha secretária? Saia daí.

‑ Isto é algum objecto sagrado?

‑ Quando eu me sentar nesse lugar, passará a sê‑lo! - berrou Kochlowsky. ‑ Mas afinal quem é o senhor?

‑ Willibald Hammerschlag! E o senhor não é nada convencido...

‑ Hammerschlag? ‑ Kochlowsky aproximou‑se. ‑ Ou seja, o tesoureiro...

‑ Exactamente.

‑           Então está mal aqui. Deveria estar a tratar dos porcos com disenteria...

‑           Eu também sei tratar de bois furiosos!

‑           É natural que tenha tendência para os castrados...

‑           Senhor Kochlowsky!

‑           Senhor Hammerschlag!

Estavam agora frente a frente, separados apenas pela secretária. Os seus olhos faiscavam.

‑           Como tesoureiro também sou responsável pelo seu pagamento!

‑           Eu não sou pago~, recebo um vencimento!

‑           É a mesma coisa...

‑           Na sua mente enrugada de contabilista talvez seja. Quando se compra um saco de sal paga‑se por ele, mas não se paga a um homem. É errado supor que todas as pessoas dominam a língua alemã.

‑           Pois é, sobretudo quando vêm da Polónia...

Para Kochlowsky não havia nada pior no mundo do que alguém atirar‑lhe isso à cara. Olhou fixamente para Hammerschlag durante alguns segundos, virou‑se, foi até à porta, abriu‑a bruscamente e depois voltou‑se para Hammerschlag, que continuava atrás da secretária, imóvel e com as pernas ligeiramente afastadas.

‑           Fora! ‑ berrou Kochlowsky.

‑           O senhor deve estar maluco! ‑ gritou Hammerschlag.

‑           Quando eu estiver no meu lugar verá como um polaco o faz voar...

‑           Para isso o senhor vai precisar de mais do que um grande focinho!

Hammerschlag contornou a secretária. A sua estatura deixava adivinhar o seu andar: lento, com os braços descaídos e quase sem levantar as grossas pernas do chão. A cabeça redonda assentava directamente entre os largos ombros. Dava a ideia de que seria difícil arrancá‑lo do seu lugar.

De repente, Kochlowsky meteu a mão na bota direita. retirou um chicote e zurziu o ar. Hammerschlag não se moveu.

‑           O senhor não ousará... ‑ disse com uma voz rouca.

‑           Quem é que me impede? ‑ perguntou Kochlowsky

‑           O senhor acabou de instalar a sua casa ontem! Nem vale a pena mandar a carruagem embora... voltará a precisar dela, já que não ficará aqui muito tempo.

‑           Isso não é o senhor quem decide, Martelinho..

Hammerschlag respirou fundo. O seu ponto fraco era o seu nome. Todos sabiam que despedira um jardineiro por este se ter enganado nele, sem intenção. Fora um erro inocente. Mas nunca ninguém ousara chamar‑lhe Martelinho. Achava isso insuportável.

‑           O senhor é um idiota! ‑ disse quase com compaixão. ‑ Aqui, na área da fábrica de tijolos, o homem mais importante não é o barão: sou eu. Eu é que mando. A sua função de gerente soa muito bem, mas no fundo o senhor não passa de um simples burocrata de escrivaninha! Com que então quer tentar modernizar tudo isto? E quem lhe dará o dinheiro necessário? Com certeza não o barão, dado que esse não tem qualquer visão das coisas. Passa a vida a caçar, a montar e a viajar pelo país, e enquanto tiver dinheiro para isso, ou seja, enquanto eu tiver dinheiro para isso, está satisfeito e feliz. ‑ Hammerschlag passou por Kochlowsky e deteve‑se ao lado da porta. ‑ Se o senhor tiver um mínimo de inteligência, fará imediatamente as malas e regressará a Herzogswalde. Enquanto eu aqui estiver terá que lutar contra mim, o que será como arremeter contra um muro de betão. E isso nem a sua cabeça dura aguentará.

‑           Veremos! ‑ Kochlowsky fitou‑o com um sorriso desafiador. ‑ Ainda não apareceu ninguém que conseguisse deitar‑me abaixo.

‑           Não, afinal o senhor só fugiu de Pless... de WurZeli... e brevemente também de Herzogswalde.

Hammerschlag afastou‑se com um sorriso macabro. KoChlowsky respirou fundo, aproximou‑se da cadeira em que Hammerschlag estivera sentado, levantou‑a e deitou‑a pela janela para o pátio da fábrica. Hammerschlag, que estava a caminho do seu coche, virou‑se como se tivesse ouvido uma explosão.

‑           O que é isto? ‑ berrou.

‑           Eu não me sento num móvel em que já esteve colado o seu traseiro! ‑ gritou Kochlowsky. ‑ Não quero ser infectado!

Hammerschlag foi‑se embora, remoendo‑se de raiva. Este episódio espalhou‑se imediatamente pela fábrica de tijolos: "O Kochlowsky mostrou‑as ao Hammerschlag! Foi o primeiro a atrever‑se a insultar Hammerschlag."

Isto tornou‑o imediatamente bem visto entre os empregados. Não importava a sua maneira de ser nem aquilo que se dizia dele ‑ Kochlowsky estava contra o horrível Hammerschlag, e por isso teria que receber todo o apoio.

Kochlowsky apercebeu‑se dessa atitude sobretudo quando mandou chamar os funcionários da contabilidade e da venda e os mestres para lhes explicar o novo rumo da fábrica.

Fizeram vénias profundas, com expressões de grande expectativa, e até aceitaram sem indignação a frase com que Kochlowsky iniciou a sua palestra:

‑           Até agora esta fábrica era uma espelunca... vamos transformá‑la numa fábrica exemplar, mesmo que para isso seja necessário que toda a vossa banha se evapore...

 

Dois meses são muito tempo quando se tem que lutar diariamente. Sofia não soube de nada, pois aqui não havia um senhor Plumps que lhe contasse as mais recentes novidades da fábrica. Willibald Hammerschlag nunca aparecera em casa dos Kochlowsky, provavelmente por saber que seria imediatamente expulso. Além disso, a mulher e a filha de Kochlowsky não o interessavam minimamente. Na sua perspectiva eram apenas o apêndice de um inimigo que tinha que ser exterminado.

Kochlowsky rapidamente se apercebeu de que era verdade que o barão Von Finck se preocupava muito pouco com a fábrica e que Willibald Hammerschlag era realmente a única pessoa com poder. Não havia nada que lhe escapasse; tudo passava necessariamente pela sua secretária. Até o pedido de uma nova cadeira para o escritório de Kochlowsky. Quando Hammerschlag recebeu o pedido, escreveu na margem: "Havia uma cadeira. Não tomei conhecimento do seu desgaste. Pedido rejeitado!"

Kochlowsky não se deixou impressionar. Mandou os seus empregados construírem um banco de tijolos, cobriu‑o com uma pele de vitela, trouxe uma almofada de casa e a partir daí sentava‑se como um rei num enorme e inamovível trono de tijolos. Quando Hammerschlag quis ripostar, enviando‑lhe a conta dos tijolos, sofreu mais uma derrota: os tijolos usados estavam danificados e não podiam ser vendidos, pelo que de qualquer maneira teriam sido deitados fora.

A resposta seguiu‑se imediatamente: Hammerschlag comprou um novo cadeirão na única loja de móveis de Herzogswalde e mandou a conta a Kochlowsky. Este devolveu à loja o cadeirão, a conta e uma nota: Eu não encomendei nada.

Até uma carta que Hammerschlag enviou a Kochlowsky e que culminava na frase: Proíbo-lhe um comportamento que prejudique o bom andamento da fábrica de tijolos... foi mandada de volta ao destinatário com uma nota de Kochlowsky: O senhor não tem o direito de me proibir nada, nem mesmo de o considerar um imbecil!

Willibald Hammerschlag rejubilou. Levou a carta para Dresden para a mostrar ao seu advogado com a certeza de que poderia processar Kochlowsky. O advogado, porém, explicou‑lhe que qualquer pessoa tem o direito de pensar o que quiser sobre outra, desde que não torne pública essa Opinião. Se Kochlowsky tivesse dito a palavra "imbecil" em frente a terceiros, então ter‑se‑ia uma razão de queixa, mas assim não havia hipótese nenhuma! Hammerschlag duvidaVa daquilo que o advogado lhe dizia, mas não quis arriscar.

Quanto mais feroz se tornava a disputa entre Kochlowsky e Hammerschlag, tanto mais popular se tornava Sofia em Herzogswalde. Os vendedores levavam‑lhe as mercadorias a casa e como ela já estava no sétimo mês da gravidez, o que se notava muito numa pessoa tão frágil e pequena como ela, a parteira preocupava‑se cada vez mais e não parava de lhe dar conselhos. O médico de Herzogswalde, um verdadeiro médico do campo, que ia a cavalo visitar os seus doentes, espalhados por uma vasta área, sempre com a sua maleta de médico amarrada à sela e sem temer o frio nem a intempérie, ficara muito contente ao saber que enfim aparecera um homem pronto a combater o horrível Hammerschlag.

Era impressionante e quase inacreditável que houvesse um homem no mundo que fosse considerado ainda mais detestável que Kochlowsky. Não se devia porém esquecer que Kochlowsky estava em Herzogswalde apenas havia sete semanas!

O barão Von Finck não fazia a mínima ideia de todas estas querelas. Duas vezes por semana visitava Sofia na nova casa. Não para conversar com ela, mas sim para ver e admirar Reckhardt von Lui'enhof. Agora, durante o Inverno, Kochlowsky não ia para a fábrica montado a cavalo; utilizava um coche fechado, com cocheiro, que lhe fora posto à disposição pela fábrica e que o vinha buscar de manhã e o trazia de volta à noite.

O belo Reckhardt observava o barão com olhos maus. Mesmo quando lhe punha aveia no comedouro, trazia água ou levava feno para a manjedoura, o barão tinha que ter muito cuidado para o cavalo não morder ou lhe dar um coice.

‑ Aquele é um animal malvado ‑ disse Finck para Sofia, admirado ‑, mas não existe cavalo que não possa ser montado! Afinal, o seu marido consegue montá‑lo! Eu também hei‑de conseguir.

Tentou‑o duas vezes, num domingo, na presença de Kochlowsky. Foi um pequeno divertimento. Desde o momento em que subiu para o cavalo até ser projectado para o chão não passaram mais de três minutos. Mais tarde, o barão sentou‑se na sala com um copo de vinho e contou histórias do seu tempo na cavalaria. Só uma vez perguntou, como por acaso:

‑ Quais são os problemas que tem com Hammerschlag, KOChlOwSky?

‑ Eu? Nenhuns, senhor barão. Ele é uma pessoa muito fechada.

‑ É o melhor contabilista que conheço!

‑ Acredito que sim...

‑ Vocês deviam ser amigos.

‑ Não me oponho a isso. ‑ Kochlowsky ficou admirado com a ignorância do barão e sentiu uma certa compaixão. Hammerschlag podia roubar somas muito elevadas sem que o barão desse por isso. Talvez até o fizesse e temesse agora que Kochlowsky o descobrisse. Seria esse o motivo de tanto ódio?

Num domingo à tarde, o pastor de Herzogswald veio visitar os Kochlowsky. Trouxe brinquedos de madeira colorida para Vanda, um novo livro de canto para Sofia e o jornal da igreja para Kochlowsky. Há muito que esperavam essa visita e Kochlowsky até se preparara para o caso de o pastor lhe pedir um donativo.

‑ Abençoar com a mão direita e cobrar com a esquerda faz parte da formação básica! ‑ resmungara, quando Sofia voltara da igreja e anunciara que o pastor viria visitá‑los à tarde. ‑ Um contributo para a reconstrução da igreja! E eu? Posso fazer um peditório para obras na minha sala?

O pastor de Herzogswalde era o oposto do pastor Maltitz, de Wurzen. Não era uma pessoa lutadora, mas sim um homem idoso e calmo, como normalmente se imaginaria de uma forma ingénua a figura de Deus, com cabelo branco e uma barba branca. Falava devagar, sempre reflectindo nas palavras que dizia, quase como se estivesse a pregar. Quando se estava ao seu lado tinha‑se a sensação de estar mais próximo do Céu.

            Kochlowsky sentia‑se inseguro na sua presença. Com

Maltitz, pelo menos, era capaz de discutir, mas com este pastor era simplesmente impossível. A primeira tentativa gurou‑se logo à partida. Quando Kochlowsky disse:

‑           A sua sacristia também necessita de ser pintada?

O homem de cabelo branco respondeu, prudente:

‑           A sacristia, não, mas o descimento da cruz precisa de uma nova pintura.

Agora Kochlowsky não podia falar da sua própria sala... contra o descimento da cruz não havia nada a dizer.

‑           O que me diz de Willibald Hammerschlag? ‑ perguntou o pastor depois de ter comido três fatias de bolo e bebido quatro chávenas de café. Kochlowsky, atento, tentou esquivar‑se ao assunto.

‑ O que poderei dizer?

‑           Este ano ele recusa‑se a fornecer a madeira para aquecer a igreja. Não sabia?

‑ Que madeira? ‑ perguntou Kochlowsky.

‑           Todos os anos, a igreja e a paróquia recebem vários metros cúbicos de madeira da floresta do barão para aquecerem a casa de Deus. ‑ O velho pastor suspirou profundamente e juntou as mãos. Parecia querer pregar sobre Sodoma e Gomorra. ‑ Todos os Invernos as carroças do barão vinham entregar a madeira. Porém, este ano não apareceram. Hammerschlag mandou dizer que não tinha nada para oferecer e que quem tivesse frio na igreja se agasalhasse melhor. Disse que a igreja também poderia ser aquecida com a ajuda de cânticos... ‑ O pastor respirou fundo. ‑ O senhor alguma vez ouviu uma coisa assim, Kochlowsky?

"Essas palavras bem que podiam ter sido minhas", pensou Kochlowsky, mas perante o pobre pastor abanou a cabeça. "Hammerschlag não é assim tão estúpido. Ele pretende simplesmente ser o único homem odiado em toda esta zona. Agora que eu apareci, está a tentar defender o seu território com toda a força. "

‑           E Hammerschlag é a única pessoa a poder decidir isso?

‑ O guarda‑florestal Ursprung está encarregue da gerência, mas Hammerschlag continua a ser o contabilista.

‑           Isso quer dizer que tudo o que se passa na propriedade Von Finck tem que ser necessariamente do conhecimento de Hammerschlag?

‑Sim.

"Exactamente como era comigo, em Pless", pensou Kochlowsky com saudades. "Aí também não havia nada que não fosse do conhecimento de Kochlowsky! E tudo tinha que obter a minha autorização!"

‑           Falou com Hammerschlag, senhor pastor?

‑           Quatro vezes! Foi uma situação degradante! Sentia‑me um pedinte! Quando, no fundo, tudo o que faço é pedir pelos filhos da minha paróquia...

Kochlowsky acenou afirmativamente.

‑ Então por que veio falar comigo?

‑           O senhor tem a fama de não se deixar abalar por nada. E em Herzogswalde todos sabem que Hammerschlag sofreu várias derrotas frente a si. Isso torna‑o amigo de muitas pessoas. A minha ideia era...

‑           Quer que eu o ajude! ‑ interrompeu bruscamente Kochlowsky.

‑ Exacto.

‑ Mas como?

‑ Tente falar com Hammerschlag.

‑           Acerca da madeira?

‑Sim.

‑Vai rir‑se de mim.

‑           Então parta‑lhe a cabeça!

‑           Um pastor, a dizer uma coisa dessas?

‑           É claro que o digo simbolicamente! Eu pensei que se duas pessoas como o senhor e Hammerschlag... é como se na Natureza duas frentes de tempestade se encontrassem: há raios e trovoadas e a seguir o ar volta a ser puro. ‑ O velho pastor revolvia os polegares; a situação parecia preocupá‑lo muito. ‑ O senhor estaria disposto a ajudar‑me?

‑ Como posso saber se serei capaz?

‑ Só o facto de não rejeitar o meu pedido logo de princípio já vale muito. - O pastor ergueu‑se e levantou a mão. ‑ Que Deus te acompanhe e te abençoe, meu filho. Vai ser uma situação difícil. Mas lembre‑se sempre de Martinho Lutero perante o Parlamento de Worms.

‑ Terei sempre isso em mente, senhor pastor ‑ disse Kochlowsky num tom sarcástico. ‑ Só que no fim Lutero foi banido... e eu não quero acabar assim!

Sofia acompanhou o pastor até ao seu coche e depois voltou rapidamente para dentro de casa.

‑ Tu realmente queres ajudá‑lo, Leo?

‑ Ainda não decidi nada. ‑ Kochlowsky acendeu o seu charuto de domingo. ‑ Primeiro tenho que me habituar à ideia que alguém quer a minha ajuda, para depois ficar a saber qual de nós é o maior demónio: Hammerschlag ou eu!

‑ Mas tu és um demónio, Leo?

‑ Isso é uma expressão estúpida. Eu só sei que assim sinto‑me muito melhor do que se tivesse que ser um anjo... às vezes, na vida, os desvios são melhores do que o caminho mais directo. Aproximar‑se devagar e às escondidas pode ser mais seguro do que um ataque frontal. Por isso, neste caso Kochlowsky decidiu ir falar primeiro com o guarda‑florestal Ludwig Ursprung.

Em princípio, todas as casas florestais são iguais: emanam a calma majestosa da Natureza. Tanto faz se a casa é grande ou pequena: fazem sempre sentir uma certa distância do mundo barulhento. No caso de Ursprung, porém, as coisas eram um pouco diferentes: além da proximidade da Natureza, sentia‑se uma grande pobreza. A casa e os outros edifícios estavam a precisar urgentemente de uma pintura, as ferramentas pareciam velhas, os coches encontravam‑se num estado lamentável; só os cavalos estavam bem cuidados, o que animou Kochlowsky.

Quando Leo chegou, o guarda‑florestal Ursprung veio à porta. Era um homem de uns cinquenta anos e de cabelo branco, que envergava um grosso casaco e fumava um grande cachimbo. Ainda não se conheciam, mas Ursprung acenou‑lhe como se fossem velhos amigos.

‑ Bem‑vindo, senhor Kochlowsky! ‑ exclamou. ‑ O senhor é o Kochlowsky, não é verdade? Só pode ser, se é capaz de montar um cavalo desses! Fico contente por conhecê‑lo.

Deram um aperto de mão. Kochlowsky entrou na casa e olhou para Ursprung com um ar espantado. De repente compreendera por que razão o guarda‑florestal usava um casaco tão grosso mesmo dentro de casa.

‑ Aqui dentro não está muito calor! O seu fogão não funciona?

‑ Não é isso! É Hammerschlag! ‑ Ursprung sorriu, irónico. ‑ De vez em quando aparece aqui inesperadamente, com um termómetro na mão, e quando estão mais de dezoito graus tem um ataque de raiva...

‑ Não é possível! ‑ disse Kochlowsky devagar.

‑ Por que haveria eu de mentir? Aquilo que o senhor conhece de Hammerschlag é só uma pequena parte. Quando souber das outras coisas que ele faz, ficará muito mais admirado...

‑ Ele é que ficará admirado! ‑ Kochlowsky olhou em redor, furioso. Tudo na casa tinha um aspecto pobre. Havia apenas o mínimo possível. Era a casa florestal mais miserável que Kochlowsky jamais vira. ‑ Vim apenas informar‑me acerca daquilo que se passa com a madeira para a igreja... mas depois de ter visto isto...

‑ A madeira para a igreja? ‑ Ursprung fez um gesto desesperado. ‑ Eu tenho tanta vergonha, mas o que é que isso ajuda? Hammerschlag deu ordens e pronto! Ele quer que o pastor morra congelado só porque uma vez pregou contra o matrimónio fora da Igreja.

‑ Hammerschlag tem alguma coisa a ver com isso?

‑ É do conhecimento geral que ele vive com a primeira governanta da baronesa Von Staltenhalten. Vivem juntos às escondidas, mas todos sabem! E só porque durante o sermão sobre o casamento o pastor olhou fixamente para Hammerschlag, agora tem que passar frio. É essa a história.

‑ Na quarta‑feira entregaremos a madeira na igreja - declarou Kochlowsky, decidido. ‑ Ursprung, quanto temPo é que o senhor leva a carregar uma carroça de madeira?

‑ Com a ajuda de três homens, precisamos de meio dia.

‑ óptimo; eu venho cá dar uma ajuda.

‑           Deve estar a brincar, senhor Kochlowsky!

‑           Se me conhecesse melhor, saberia que as minhas piadas são um pouco diferentes desta.

‑           Hammerschlag vai ficar furioso...

‑           Quero ver isso!

‑           Isto vai‑me custar o emprego de guarda‑florestal.

‑           O senhor não perderá nada enquanto eu estiver em Herzogswalde, senhor Ursprung! É uma promessa que lhe faço e que cumprirei!

‑           Até perante Hammerschlag?

‑           Especialmente perante Hammerschlag!

‑           Isso vai ser um duelo de gigantes! ‑ disse Ursprung, emocionado. ‑ Não subestime Hammerschlag!

‑           O maior erro que ele está a fazer é subestimar‑me a mim. E o senhor é um cobarde, Ursprung! Rebaixa‑se como um cão espancado.

‑           Eu não quero acabar à fome, na rua. ‑ Ursprung sentou‑se ao lado do fogão apenas ligeiramente aquecido. ‑ Eu tenho mais de cinquenta anos... quem me dará trabalho se eu for expulso daqui? ‑ Olhou para Kochlowsky com um ar quase suplicante. ‑ O senhor tem a certeza daquilo que está a fazer?

‑           Aquilo que eu digo é sempre válido, nunca se esqueça! Na quarta‑feira, às sete da manhã, estarei aqui... isso chega para entregarmos a madeira na igreja por volta do meio‑dia?

‑           Acho que sim. ‑ Ursprung engoliu várias vezes em seco. ‑ E se por acaso Hammerschlag passar por aqui?

‑           O senhor não precisa de ter medo... eu estarei aqui!

‑           Mas não se esqueça de que a lei está do lado dele.

‑           A lei será combinada entre mim e Hammerschlag - corrigiu Kochlowsky, decidido.

E assim chegou a quarta‑feira. Antes do nascer do Sol Kochlowsky já estava a cavalo e galopava em direcção à casa florestal, indiferente ao frio matinal. Ursprung já o aguardava. Havia mais três ajudantes que esperavam e que fitaram Kochlowsky como se este fosse um duende da floresta. Então era este o homem que estava disposto a lutar contra Hammerschlag! Será que existia realmente?

Ninguém interrompeu o trabalho. Duas carroças foram carregadas com madeira e por volta do meio‑dia levaram‑nas para a igreja de Herzogswalde. Enquanto a madeira era descarregada, o pastor rezava com lágrimas nos olhos e tocava órgão.

Mas até em Herzogswalde havia pessoas que achavam que a melhor maneira de subir na vida é lamber as botas dos superiores. Ninguém soube como, nem através de quem, mas uma hora mais tarde Hammerschlag foi informado de que a igreja recebera madeira proveniente da casa florestal. Recebeu essa notícia com um grande ataque de raiva.

Por volta das duas horas da tarde, decidiu ir à igreja no seu coche. Quando lá chegou, parou durante alguns instantes e depois fez meia volta. O senhor Ursprung, que o vira, precipitou‑se para dentro da igreja, onde Kochlowsky escutava a maravilhosa música que o pastor tocava no órgão.

‑ Ele está cá! ‑ exclamou o guarda‑florestal, ofegante.

‑ Quem?

‑Hammerschlag...

‑ Mande‑o entrar! ‑ ordenou Kochlowsky, contente, cerrando os punhos. ‑ Senhor pastor, quando ele aparecer, toque o hino Jesus, continua em frente. Ele vai precisar!

‑ Mas ele já partiu! ‑ exclamou Ursprung, sentando‑se num dos bancos e limpando o suor da cara. ‑ Parou, olhou à volta e depois foi‑se embora...

‑ Não se coaduna nada com o carácter dele. ‑ O pastor parou de tocar órgão. ‑ Ele está a tramar qualquer coisa muito perigosa! Estejam preparados para tudo!

‑ Amanhã serei despedido... ‑ lamentou Ursprung. ‑   E depois?! O que poderá fazer por mim, senhor Kochlowsky? Serei um homem acabado!

‑ Hoje ainda não é amanhã. ‑ Kochlowsky deu uma palmada no ombro do pobre Ursprung. ‑ O mundo está Constantemente a mudar, até em Herzogswalde. Mesmo que ninguém dê por isso. Espere para ver.

Kochlowsky aguardou até que toda a madeira tivesse sido descarregada e as carroças tivessem partido. Depois galopou até à propriedade do barão Von Finck, amarrou o cavalo e entrou. Abriu a porta do escritório de Hammerschlag num gesto brusco e sem bater. Teve sorte. Hammerschlag estava presente.

‑ Saia e bata à porta! ‑ berrou este imediatamente. Era igual a Kochlowsky: tinha a mesma reacção e o mesmo tom de voz. Kochlowsky sentiu‑se em casa. Deu um pontapé na porta, que se fechou com um grande estrondo, e Hammerschlag levantou‑se bruscamente da cadeira.

‑ Claro que tinha que ser o senhor! ‑ gritou com a cara vermelha de raiva. ‑ Para quem cresceu com bebedeiras de aguardente polaca...

‑ Mais vale isso do que ser um burro ignorante! ‑ Kochlowsky esticou o queixo e a sua barba preta eriçou‑se. Para Hammerschlag isso devia ter constituído um sinal de alarme, mas eles ainda não se conheciam suficientemente bem para saberem desses pormenores. ‑ O senhor devia consultar um médico, Hammerschlag.

‑ Porquê? ‑ perguntou o outro, espantado e sem compreender.

‑ O senhor não tem intestinos! A sua merda está toda na cabeça!

O duelo de gigantes começara.

Por enquanto, Hammerschlag sentia tanta raiva que nem sabia o que dizer. Observou silenciosamente como Kochlowsky despiu o casaco, retirou um termómetro, estendeu‑o para o ar e abanando a cabeça foi até ao fogão e baixou o calor.

‑ Vinte e três graus! Isso é deitar fora o dinheiro pela chaminé! Dezoito graus e nem mais um! Afinal, o senhor também deve ter um casaco bem grosso...

‑ O senhor é doido! ‑ disse Hammerschlag, rouco. ‑ Agora já sei a quem hei‑de cobrar a madeira que foi para a igreja...

‑ Em todo o lado existem lambe‑botas! O que quer dizer com cobrar?

‑ Pensei que tivesse cá vindo para pagar a madeira.

‑ Ora aí temos outra prova de que a sua cabeça está repleta de estrume!

‑ Os custos da madeira serão debitados do seu salário! Portanto, não sei o que está aqui a fazer. Saia imediatamente!

‑ Como é que uma pessoa pode ser tão estúpida?! Será que tenho de lhe dizer claramente que a mim não me pode chicanar como às outras pessoas? Como contabilista subalterno, o senhor paga o meu salário, mas isso é tudo! E agora preste bem atenção ao que eu digo, seu nojento: a igreja continuará a receber a madeira da casa florestal do barão...

‑           Quem decide isso? ‑ berrou Hammerschlag. ‑ Cuide de tratar da sua degradada fábrica de tijolos...

‑           O senhor ainda vai ter uma grande surpresa... ‑ Kochlowsky atreveu‑se a um golpe. Tocou no ponto fraco de Hammerschlag. ‑ Sabia que uma nova prensa é quase tão cara como o colar que Ermengarda, a selvagem, usa?

Hammerschlag empalideceu. Agora era a sua vez de esticar o queixo... parecia um touro prestes a atacar.

‑ Está a referir‑se à governanta da baronesa Von Staltenhalten?

‑ O senhor já nem consegue dizer o nome dela correctamente. Ela não se chama senhora Amante?

‑ Seu atrevido! ‑ Hammerschlag pegou num objecto da secretária e lançou‑o contra Kochlowsky. Era um cinzeiro de barro, que se despedaçou na~parede.

‑ Que pena! ‑ disse Kochlowsky, agarrando numa cadeira e desfazendo‑a no chão. ‑ Agora é a sua vez! Daqui a um quarto de hora tudo isto será um monte de destroços!

- Eu mando arrastá‑lo daqui para fora! ‑ gritou Hammerschlag.

- Estava à espera que dissesse isso. ‑ Kochlowsky aprozimou-se de um relógio de parede, pegou nele e atirou-o contra a parede, fazendo‑o rebentar. ‑ Quer pedir ajuda! Com que então não tem coragem para resolver os problemas sozinho!

- Não quero sujar as mãos consigo!

‑ Essa é a diferença entre nós. Eu aprendi a lidar com touros enfurecidos, Willibald Hammerschlag.

‑ Fique parado aí onde está! ‑ berrou Hammerschlag. Agachou‑se e pegou numa perna da cadeira desfeita. ‑ Vou partir‑lhe os ossos!

‑ Nós devíamos habituar‑nos à ideia de que neste mundo existe lugar suficiente para os dois! ‑ disse Kochlowsky com a sua voz grave. Pegou numa parte do respaldo da cadeira, foi até à janela e partiu o vidro. Imediatamente um vento frio invadiu a sala. ‑ O seu escritório estava quente demais, Hammerschlag. Dezoito graus. O senhor devia dar um bom exemplo aos outros! Por amor de Deus! Não se aproxime! Eu sei exactamente como domar bois como o senhor! Pois sei! Aprendi na Polónia. E orgulho‑me disso! O senhor quer ser tratado como um animal?! Isso não me parece certo! Nós somos tão parecidos que isso me custaria muito! Se nos déssemos bem seríamos intocáveis para os outros. Será que não compreende isso, seu cabeça de estrume? Se lutar sozinho contra mim, perderá... eu tenho os nervos mais fortes! ‑ Kochlowsky voltou a olhar para o termómetro e pareceu mais satisfeito. ‑ Em breve estarão dezoito graus... é um bom começo.

‑ Onde quer chegar, Kochlowsky? ‑ rosnou Hammerschlag.

‑ Eu não tenho nada contra amantes...

Hammerschlag começou a tremer de raiva, mas ficou quieto, com a perna da cadeira na mão.

‑ Porém, não suporto a ideia de que um guarda‑florestal morra gelado na sua casa, que está a cair aos bocados. que tudo esteja a apodrecer, que mantenha pequenas guerras pessoais com todos...

‑ Até parece que o senhor é melhor! ‑ berrou Hammerschlag.

- e que se conte ao ingénuo e desinteressado barão que tudo corre lindamente! Eu nunca menti dessa maneira. Sempre cumpri as minhas tarefas e às vezes não foi nada fácil...

‑ Estou tremendamente comovido!

‑ O senhor devia reflectir sobre isso. ‑ Kochlowsky

voltou para perto da janela, largou o respaldo da cadeira e olhou em redor. Numa das paredes havia um antigo armário com a data de 1712. Uma obra‑prima. Hammerschlag que seguira o olhar de Kochlowsky, agachou‑se como se' quisesse saltar.

‑ Não toque nesse armário! ‑ exclamou com uma voz trémula. ‑ Eu juro que se tocar nele, mesmo que seja só com a ponta dos dedos, mato‑o! Se não for hoje, será nos próximos tempos! Esse armário é parte da herança que a minha mãe me deixou... Kochlowsky, por favor, não mexa nele! Esse armário para mim é uma relíquia...

‑ É dentro dele que guarda os livros com a falsa contabilidade?!

‑Eu... eu recebi‑o da minha mãe...

‑ Meu Deus, o senhor está a demonstrar sentimentos, Hammerschlag! ‑ Kochlowsky desviou os olhos do armário e fitou Hammerschlag. ‑ Eu também tive uma mãe que amava mais que tudo, só que ela morreu muito cedo. Pela altura em que comecei a pensar como um adulto, ela deixou‑nos. Desde então, bato em qualquer pessoa que ofenda a minha mãe. Não tocarei no seu armário, Hammerschlag...

‑ Obrigado! ‑ Hammerschlag olhou para a perna da cadeira, que ainda segurava na mão, e depois deixou‑a cair ao chão. ‑ O senhor nem calcula como eu era afeiçoado à minha mãe...

- Nesse aspecto, podíamos ser irmãos.

- O que propõe, Kochlowsky? ‑ Hammerschlag foi para trás da secretária e encostou‑se à parede. De repente fechou os olhos. ‑ É possível conversar comigo...

- A madeira para a igreja continua a ser fornecida pela casa florestal do barão.

‑De acordo

- A casa florestal vai ser renovada.

‑ Terei que fazer alguns cálculos...

- Faça os cálculos da mesma maneira que os fez quando se tratava das jóias de Ermengarda Amante.

Hammerschlag estremeceu, mas permaneceu de olhos fechados.

‑ Mais alguma coisa?

‑ Sobre a modernização da fábrica de tijolos falaremos mais tarde. Entregar‑lhe‑ei planos rigorosos.

Kochlowsky encolheu os ombros. A sala estava a ficar cada vez mais fria devido ao ar gelado que entrava pela janela partida. Reparou que Hammerschlag também sentia frio.

‑           Como se chamava a sua mãe?

Hammerschlag abriu os olhos. O seu olhar parecia triste.

‑ Emma, e a sua?

‑ Emma.

‑ Meu Deus, o senhor tem algum quadro da sua mãe?

‑ Tenho um daguerreótipo bastante desbotado.

‑           E eu tenho uma pintura a crayon da minha. ‑ Hammerschlag afastou‑se da parede. ‑ Por que não me vem visitar um destes dias, Kochlowsky? O senhor traz a sua fotografia e eu mostro‑lhe a pintura. As nossas mães chamam‑se as duas Emma... Isso tinha de acontecer!

‑           Quando?

‑           No sábado. E traga a sua mulher.

‑           Está bem. à hora do jantar?

‑ Fico à vossa espera.

Kochlowsky acenou afirmativamente, saiu da tesouraria sem dizer mais nada e dirigiu‑se para casa. à noite disse à sua pequena mulher, Sofia:

‑ Hoje não ganhei uma batalha, mas sim uma guerra.

Como não falou mais do assunto, Sofia decidiu não perguntar. De qualquer maneira, mais tarde contar‑lhe‑iam tudo na cidade.

 

O jantar em casa de Willibald Hammerschlag deu muito que falar entre a população de Herzogswalde.

Numa aldeia tão pequena não havia nada que se mantivesse em segredo e quando um casal como os Kochlowsky sai à noite e vai de coche para a tesouraria, e o tão temido ~ammerschlag vem à porta e quase que carrega a pequena Sofia para dentro de casa, isso é muito mais significativo do que um assado na mesa e vinho nos copos.

Kochlowsky preparara‑se muito bem para esta noite. Enquanto Sofia mandara chamar a cabeleireira da cidade, que viera no coche do velho Fritze Blohme para lhe lavar o cabelo e penteá‑lo em leves ondas que lhe caíam nos ombros e a faziam parecer um anjo de Botticelli, Leo procurou a imagem da sua mãe. Depois de um longo praguejar e de inúmeros insultos sobre a desordem na casa, encontrou‑a enfim no sótão, numa pequena caixa com coisas sem importância.

‑ Com que então, a minha mãe é uma coisa sem importância?! ‑ berrou pela casa, assustando a cabeleireira de tal maneira que deixou cair a tesoura de frisar no tapete, queimando‑o.

Ao ver aquilo que acontecera, Kochlowsky berrou com ela, chamando‑lhe trapalhona e pondo‑a a chorar. Continuou a trabalhar sempre a chorar, enquanto Sofia tentava consolá‑la.

‑ Tenho medo do seu marido ‑ balbuciava, encolhendo‑se sempre que Kochlowsky aparecia no quarto de dormir. ‑ Ele tem uma voz que faz parar o coração. É capaz de matar com os seus berros...

Kochlowsky apresentou‑se no seu melhor fato: um paletó que o costureiro Moshe Abramski, um Judeu, costurara e acerca do qual exclamara:

‑ Meu Deus... que fato! O senhor gerente será o homem mais elegante de Pless!

Kochlowsky entrou no quarto de dormir, onde a cabeleireira acabara de frisar o cabelo de Sofia. Fitou Kochlowsky com uns olhos arregalados. Este sentou‑se numa Cadeira, pôs uma toalha à volta dos ombros e ordenou num tom rude:

‑ Apare o meu cabelo, sua trapalhona!

A cabeleireira encostou‑se à parede. Sentiu as pernas a fraquejarem e o seu coração de facto batia mais devagar.

‑ Eu... eu não sei fazer isso... ‑ balbuciou.

‑ Uma cabeleireira que não sabe cortar cabelo? ‑ gritou Kochlowsky.

‑ Só cabelo de senhora...

‑ Cabelo é cabelo, tal como merda é merda quando se pisa nela! Percebeste?

‑ Não...

‑ Corta as pontas que estão irregulares, mais nada! às vezes custa acreditar na burrice das pessoas!

E realmente a mulher conseguiu. No fim, o cabelo estava bem cortado na nuca, a barba de que Kochlowsky tanto se orgulhava fora aparada e não havia um milímetro de cabelo que sobressaísse. Quando Kochlowsky se viu ao espelho, ficou satisfeito e deu uma moeda à cabeleireira, que a pesou na palma da mão, incrédula, e ainda mandou limparem‑lhe o fato com uma escova.

Willibald Hammerschlag era um homem de tipo mais rústico. Para receber os Kochlowsky não usou o seu melhor fato, e sim um casaco com bordados, calças castanhas e pantufas de pele.

‑ O senhor ainda vai a algum lado a seguir? ‑ perguntou quando viu Kochlowsky descer do coche no seu traje elegante. Sofia, no seu conjunto de peles, estava de uma beleza deslumbrante. O conjunto ainda lhe servia e cobria a sua barriga.

‑ Porquê? ‑ perguntou Kochlowsky.

‑ Está com um ar tão solene...

‑ Eu só quero conceder à sua mãe a honra que ela merece...

Hammerschlag ficou emocionado e surpreendido ao mesmo tempo. Acompanhou Sofia para dentro de casa e enquanto isso pensou se haveria de mudar de roupa rapidamente, mas decidiu que seria melhor ficar como estava. Kochlowsky vestia um paletó, mostrando‑se um homem do mundo desde o risco no cabelo até aos sapatos envernizados, mas Hammerschlag também tinha uma surpresa que restabeleceria o equilíbrio.

A casa era grande e bem decorada. Uma lareira de ladrilhos com lindos azulejos cuidadosamente pintados tornavam‑na quente e acolhedora. Uma jovem menina apareceu no vestíbulo. Pegou na cartola de Kochlowsky e na sua bengala com cabo de prata, 'pendurou os casacos de pele num cabide e desapareceu discretamente na cozinha. Uma bonita mulher ‑ Kochlowsky tinha um olhar para essas coisas. Piscou o olho a Hammerschlag. Quando alguém empregava uma menina destas em casa não era só para tratar da limpeza. Só de se lembrar como era em Pless...

‑ Bem‑vindos a minha casa! ‑ disse Hammerschlag e com um grande esforço recebeu Sofia como um verdadeiro cavalheiro, beijando‑lhe a mão. ‑ Não se esqueça de que sou solteiro e, provavelmente, aos olhos de uma mulher, muita coisa deveria ser diferente nesta casa. Mas achei simplesmente insuportável a ideia de me ligar a uma mulher. Eu sei como sou! Tanto mais a admiro a si, bonita como é, pelo facto de aguentar esse cabeça de nabo todos os dias...

‑ Se continuarmos com esse tipo de conversas durante toda a noite, ainda cuspo no chão e vou‑me embora! ‑ resmungou Kochlowsky.

‑ Mas Leo... ‑ disse Sofia num tom de voz duro e com um olhar cintilante.

‑ Deixe‑o! ‑ interveio Hammerschlag. ‑ Durante alguns momentos deixei‑me impressionar pela sua roupa e pelos sapatos de verniz! Mas afinal, do que ele gosta é de comer no chão! Isso tranquiliza‑me. Receava que ele mudasse de carácter sempre que muda de roupa. Aceitam um vinho do Porto para começar?

- Lá fora estava um frio de rachar. ‑ Kochlowsky esfregou as mãos. ‑ Acho que preferia um vinho quente. Mas calculo que não tem nada disso.

‑Engana‑se! ‑ Hammerschlag exibiu um grande sorriso. ‑ Temos tudo isso! Se quiser também pode beber um

grogue, um ponche ou conhaque... Mas se o frio realmente

for insuportável, então pode‑se deitar ao lado de Matilde. A Pequena de há bocado era a Matilde...

‑ Seu porco! ‑ exclamou Kochlowsky, alto. ‑ Não quero Ouvir mais coisas dessas na presença da minha mulher! Querida, vamos embora... isto aqui fede a estábulo!

Hammerschlag riu‑se, abriu a porta para a sala e fez uma pequena vénia.

‑ Façam o favor de entrar. A propósito, "querida" é um nome perfeito. A senhora realmente é um tesouro inestimável, senhora Kochlowsky.

Na grande sala, um criado trajando uma espécie de libré já os esperava. Era fácil notar que se sentia mal nesse uniforme. Depois seguiu‑se a primeira surpresa de Hammerschlag: o criado parecia ter sido instruído para escutar atrás da porta. Preparara três copos numa bandeja de prata: um com vinho do Porto, um com conhaque e outro com vinho quente, fumegante e aromático.

Kochlowsky serviu‑se sem dizer uma palavra. Então era mesmo verdade aquilo que se contava em Herzogswalde: sem Hammerschlag, nada acontecia. Tudo pertencia ao barão Von Finck, mas o verdadeiro senhor destas terras era Hammerschlag. Aqui ninguém lhe podia dizer nada; ele é que mandava.

"Somos mesmo parecidos", pensou Kochlowsky, e de repente sentiu inveja. "Eu também era assim, em Pless. Na Propriedade III era o único a mandar. Era senhor de três aldeias e de um pequeno grupo de trabalhadores polacos, com as suas mulheres e as suas filhas. Sobretudo as filhas... meu Deus, aquilo é que eram bons tempos!"

Depois de terem tomado as bebidas, que os aqueceram Hammerschlag mostrou a casa. Quando chegaram à porta do quarto de dormir, estacou. Olhou para Kochlowsky com uma expressão séria, quase solene.

‑ Onde está a imagem da sua mãe? ‑ perguntou, contido.

‑ Aqui. ‑ Kochlowsky meteu a mão no bolso interior do seu casaco e retirou um velho e desbotado daguerreótipo. Estendeu‑o a Hammerschlag. Este inclinou‑se para a frente para vê‑lo mais de perto.

‑ Então esta é Emma ‑ disse.

‑ Sim.

‑ Elas até são parecidas. ‑ Hammerschlag abriu a porta do quarto. Na parede do lado oposto à sua cama estava pendurado um quadro com uma pintura a crayon da sua mãe. Assim, quando estava deitado na cama tinha sempre o quadro à sua frente. ‑ A minha Emma...

Kochlowsky endireitou‑se, entrou no quarto, aproximou‑se do quadro e chegou à conclusão que esta Emma não era nada parecida com a sua mãe. Mas por delicadeza não disse nada, juntou os calcanhares e fez uma pequena vénia em frente ao quadro.

Hammerschlag sentiu a emoção apoderar‑se dele. Até julgou ter lágrimas nos olhos. Balbuciou alguma coisa, depois controlou a emoção e falou com uma voz dura, mas mesmo assim um pouco insegura:

‑ As nossas mães... se elas nos pudessem ver agora!

‑ A sua dar‑lhe‑ia uma tareia todos os dias...

‑ E a sua já o teria envenenado há muito tempo! - Hammerschlag meteu as mãos nos bolsos do casaco. ‑ Vamos para a mesa. A comida está pronta...

Kochlowsky desviou o olhar do quadro da mãe de Hammerschlag. Dizer que era parecida com a sua mãe quase podia ser considerado uma ofensa. Emma Kochlowsky fora uma mulher alta e magra, com os olhos e o cabelo preto, o que o seu filho Leo herdara dela. Emma Krystalsciek fora uma das raparigas mais bonitas de Kochlowitz. O facto de ela amar Kochlowsky, o contabilista da fábrica de tijolos, era incompreensível para todos. Este quadro, porém, representava uma mulher gorda, com um sorriso ligeiramente imbecil, como Kochlowsky julgou em segredo. As duas mulheres só tinham uma coisa em comum: eram ambas mães de brutamontes.

‑ Comer é uma palavra excelente! ‑ disse Kochlowsky. ‑ Hammerschlag, o senhor está a entrar num território perigoso. Muito perigoso! Sabia que a minha mulher foi cozinheira do príncipe de Pless? Os pratos que ela cria são obras de arte. Aprendeu a cozinhar com a princesa SChaumburg~Lippe, em Búckeburg!

- Já tinha ouvido falar nisso.

- Uma vez, depois do almoço, Bismarck exclamou: "Esta foi a melhor sopa de ervilhas que jamais comi na vida!"

‑ Sopa de lentilhas... ‑ corrigiu Sofia, sorrindo.

‑ Ouviu? Sopa de lentilhas! Centenas de mulheres sabem cozinhar sopa de lentilhas, mas nenhuma a faz tão bem a ponto de Bismarck exclamar... "Quem me dera jamais ter comido em casa de Hammerschlag...!"

‑           Seu ignorante! O que está a estufar nas suas panelas?

‑ Deixe‑se surpreender. Os seus olhos ficarão do dobro do tamanho e os seus nervos vibrarão!

O criado de libré e Matilde serviram a comida. Primeiro havia uma sopa. Kochlowsky cheirou‑a e olhou para Hammerschlag, admirado.

‑ Mas isto é uma sopa de vinho ‑ disse, devagar. ‑ Com natas e todos os condimentos.

‑ à maneira polaca ‑ confirmou Hammerschlag. ‑Bom proveito!

A sopa estava excelente, mas Kochlowsky tentou à força encontrar algum ponto fraco nela:

‑ Falta um pouco de limão ‑ disse. ‑ E talvez uma pitada de canela... mas de resto está comestível.

‑ Fico muito satisfeito. ‑ Hamme~schlag serviu o vinho.

Era vinho branco, o que chamou a atenção de Kochlowsky. Iria seguir‑se algum prato de peixe? Satisfeito com a ideia, aguardou. "Há sempre algo a criticar num prato de peixe. Se for frito, pode estar cru, ou então queimado. Se for cozido, diz‑se que está seco ou então muito mole e escorregadio... Quando se quer, um peixe nunca está bem preparado."

Mas não se seguiu peixe nenhum. Matilde entrou na sala trazendo uma bandeja que cheirava tão bem que Kochlowsky até estremeceu.

‑ O que é isto? ‑ exclamou quando ela pousou o prato na mesa. ‑ Mas é impossível...

‑ Pois é, não estava à espera de uma coisa destas, pois não? E tudo em sua honra! Isto é uma verdadeira zwazig zarschwinga...

‑ Zrazy zawilane!... nem sequer sabe pronunciar correctamente o nome! Céus, se isto souber tão mal como o senhor lhe chama...

Zrazy zawilane é um rolo de carne polaco muito especial. A receita é passada de geração em geração dentro de uma família e uma cozinheira honrada nunca desvenda o segredo deste prato, especialmente do seu recheio, que é a parte mais importante. Este rolo, ainda por cima, fora enrolado em finas fatias de toucinho fumado e guarnecido com tiras de aipo.

‑ Com recheio de cogumelos ‑ notou Hammerschlag, orgulhoso. ‑ Como se faz em Pless...

‑ O senhor envergonha‑me. ‑ Kochlowsky cortou uma fatia do rolo de carne, provou‑o e virou‑se para o lado, para a sua pequena mulher. ‑ Excelente! O que dizes, Sofia?

‑ O senhor Hammerschlag conseguiu mesmo surpreender‑nos... ‑ Sofia provou mais um pouco, deixando a carne derreter na boca. ‑ Como em nossa casa... ‑ disse, impressionada. ‑ Eu não seria capaz de fazer melhor, Leo.

‑ Nada de delicadezas exageradas, querida! Quando tu fazes rolos de carne, ficam muito diferentes! Mais temperados e mais suculentos! ‑ Kochlowsky olhou para Hammerschlag, que mostrava um sorriso impertinente. ‑ Quem preparou esta comida?

‑ Uma cozinheira muito experiente. Afinal, Herzogswalde não fica na selva.

‑ Apesar de tudo, é comestível. ‑ Kochlowsky comeu três rolos de carne, bebeu uma garrafa de vinho quase sozinho e ficou de boca aberta quando lhe serviram um bolo de açafrão como sobremesa. Este não permitia qualquer crítica, mas o charuto que lhe foi oferecido ao mesmo tempo deu‑lhe a oportunidade de fazer um comentário:

‑ O senhor devia dar um pontapé ao seu vendedor de tabaco, Hammerschlag. Isto é feno enrolado! Provoca doenças nos pulmões.

Mesmo assim, fumou dois charutos, bebeu um conhaque e depois ficou tão bem disposto que começou a contar histórias dos seus tempos em Pless, tratando Hammerschlag Várias vezes por "meu caro amigo".

Só bem mais tarde Hammerschlag mandou levar o casal Kochlowsky para casa, num coche da tesouraria aquecido com pedras quentes. Enquanto Kochlowsky, cansado, já se encostara nos estofos do coche, Hammerschlag ainda dava um abraço a Sofia.

‑ Ele não deu por nada ‑ murmurou ela, contente.

‑ Ficar‑lhe‑ei eternamente grato. ‑ Hammerschlag beijou a mão a Sofia. ‑ Tive medo que a minha cozinheira fizesse algo errado ao cozinhar as coisas que a senhora nos mandava. Mas acho que tudo correu bem. Meu Deus, como ele se esforçou por encontrar algo para criticar.

‑ O Leo nunca pode vir a saber disto, senhor Hammerschlag.

‑ Palavra de honra! Será o nosso segredo. Sofia, admiro‑a. Leo é de invejar pela mulher que tem...

Na viagem de volta, pelos caminhos acidentados e gelados, Kochlowsky perguntou numa voz ensonada:

‑ O que achas de Hammerschlag, querida?

‑ É um homem inteligente, Leo. Vocês deviam ser amigos.

‑ Nunca! Hammerschlag tem a coragem de dizer que a sua mãe tem semelhanças com a minha. Que atrevido! A minha mãe era única, incomparável...

Encostou a cabeça ao ombro de Sofia e adormeceu. E também foi quase a dormir que mais tarde entrou em casa.

 

Nascera a segunda criança. Era outra rapariga e Sofia exigiu que se chamasse Jenny.

‑ Jenny é o nome da personagem principal de um dos romances do teu irmão ‑ argumentou. ‑ Tu não o leste?

‑ Eu não leio os disparates que Eugen escreve! - resmungou Kochlowsky. ‑ Além disso, há tantos outros nomes!

‑ Mas nessa história Jenny é uma rapariga muito bonita que tem que superar inúmeras contrariedades do destino... A nossa filha chamar‑se‑á Jenny.

E assim foi.

Tal como acontecera depois do nascimento de Vanda, desta vez os amigos de Pless também vieram visitá‑los. Vanda Lubenski, agora com o apelido de casada, Reichert, estava ainda mais gorda. Jakob, o seu marido e cocheiro do príncipe de Pless, perdera uma perna quando um cavalo lhe dera um coice e agora só podia andar com a ajuda de uma bengala. Ewald Wuttke, o caçador do príncipe, tinha cada vez mais varizes, que lhe causavam muitas dores nas caminhadas durante as caçadas. Louis Landauer não veio, dado que de momento os seus quadros estavam expostos em Berlim, mas Eugen Kochlowsky apareceu. Ficara gordo e convencido, habituado ao sucesso e explorado por uma amante, do que naturalmente não se dava conta. Tinha dinheiro suficiente para se vestir conforme a mais recente moda inglesa e trouxe consigo os seus dois novos livros.

‑ Chamaram Jenny à vossa segunda filha! ‑ exclamou, entusiasmado, apertando Sofia contra a sua enorme barriga. ‑ Segundo a heroína do meu romance! Naturalmente, serei eu o padrinho dela! É uma questão de honra!

Comparado com o baptizado turbulento de Wurzen, este foi muito calmo.

‑ Se um de vocês chamar a atenção, mesmo que seja só por dar um peido, nunca mais lhe falo! ‑ ameaçara Kochlowsky. ‑ Sinto‑me bem nesta cidade e tenciono ficar aqui.

Só houve alguma agitação devido a um facto que a todos parecia incompreensível: Willibald Hammerschlag tamera padrinho. Parecia que a grande guerra entre os dois, tão aspirada por todos, não iria ter lugar e aos poucos a população de Herzogswalde começava a compreender que as suas vidas seriam comandadas por aqueles dois brutamontes.

 

A casa de Kochlowsky era suficientemente grande para receber todos os amigos. Houve um reencontro barulhento entre Jacky, o lulu, e César, o doberman, que ficara gordo e lento como o seu dono Eugen Kochlowsky. Criara um hábito invulgar num cão: depois de comer arrotava, como se fosse Um ser humano. Quando o fez pela primeira vez, Kochlowsky apanhou um susto, saltou da cadeira e olhou furioso para o seu irmão, mas Eugen apontou com o garfo para o lado e disse:

‑ Foi o meu César. Parece que está a gostar da comida.

 

No dia a seguir ao baptizado, quando Kochlowsky estava sozinho no estábulo a tratar de Reckhardt von Luisenhof, Eugen aproveitou a oportunidade para falar com ele a sós. Sentou‑se num banquinho e pôs‑se a observar Kochlowsky, que enchia o comedouro do cavalo com aveia e melaço.

‑ Já agora, podias mexer o teu enorme traseiro ‑ disse Kochlowsky. ‑ Pega na forquilha e ajuda‑me a limpar isto!

‑ Eu sou um poeta! ‑ retorquiu Eugen com dignidade. ‑ Não limpo, mas sou capaz de descrever o acto de limpar em mil páginas. Algo de que tu não és capaz. Cada qual tem as suas habilidades.

‑ Então sai daqui! Não suporto que me observem enquanto estou a trabalhar!

Eugen permaneceu sentado.

‑ Tu és amigo desse Hammerschlag?

Kochlowsky virou‑se para ele com ar irritado.

‑ Depende daquilo que entenderes por amigo...

‑ Quando alguém é escolhido para ser padrinho, então é por ser próximo da família! Consideras Hammerschlag um amigo?

‑ Sim.

‑ Então esta foi a primeira vez que alguém te conseguiu enganar, meu irmão. Talvez a teus olhos eu seja doido, mas a minha profissão ensinou‑me a observar a alma das pessoas. Hammerschlag é um intrujão.

‑ Nisso estamos de acordo, irmão.

‑ Tem um feitio torpe...

‑ Vais ter que me explicar isso.

‑ Qual de vocês lucra mais com esta amizade? Tu ou ele?

‑ Não estou a compreender.

‑ Ele está a aproveitar‑se de ti, Leo. Por fora és sempre o duro, mas todos sabemos que tens uma alma que se derrete como manteiga. E Hammerschlag também se apercebeu disso. Eu só não sei como!

‑ Através de Emma... ‑ disse Kochlowsky, devagar. Saiu do estábulo e encostou‑se à parede.

‑ Quem é Emma?

‑ A nossa mãe, estúpido!

‑ O que tem Hammerschlag a ver com a nossa mãe?

‑ A mãe dele também se chama Emma...

‑ E isso levou‑vos a chorar juntos. O meu pequeno irmão Leo voltou a agarrar‑se às saias da mãe. Realmente, a vida é um tremendo círculo. Ainda bem que Hammerschlag de vez em quando bebe. É que no outro dia, quando ele estava bêbado, na roda dos amigos, declarou: "O Kochlowsky agora come da minha mão!" Tu achas que um bom amigo diz uma coisa dessas?

‑ Como foi que soubeste? ‑ Kochlowsky esticou o queixo, a sua barba eriçou‑se e a sua voz tornou‑se mais grave. Quem o conhecia saberia que era preciso ter cautela. ‑           Onde foi que ouviste isso, seu mijador de tinta?

‑ Eu estava lá! Onde quer que eu vá, misturo‑me com as pessoas e faço as minhas observações. Isso permite‑me ouvir e ver e há certas coisas que até nos vêm dizer.

‑ E tens a certeza de que isso que estás a contar é verdade?

‑ Que eu emagreça vinte quilos se for mentira!

‑ Eugen! ‑ Kochlowsky respirou fundo. ‑ Espero que estejas consciente daquilo que estás a dizer sobre Hammerschlag.

‑ Como teu irmão, só quero o melhor para ti, Leo. Hammerschlag conseguiu enganar‑te com muita perspicácia. chego a duvidar que a mãe dele se chame Emma...

‑ Mas foi ele quem disse o nome primeiro, mesmo antes de saber que a nossa mãe também...

‑ Pode ter‑se informado com antecedência.

‑ Mas junto a quem? ‑ Kochlowsky olhou fixamente para o seu irmão e depois voltou a respirar fundo. ‑ Sofia... Se isso for verdade, Eugen... ‑ Kochlowsky pôs as mãos na barba. Costumava fazer isso em situações muito excepcionais, como se lhe desse força.

‑ Pergunta‑lhe. Ela deve ter falado em ti a Hammerschlag, sem a menor das intenções, e deve ter mencionado o nome de Emma. De certeza que foi ao referir‑se a Vanda. E Hammerschlag, que é um grande espertalhão, rapidamente mudou o nome da sua própria mãe para Emma. Suspeitou que esse seria um dos teus pontos fracos. A maioria dos homens fica mole como a cera quando lhe falam da mãe. Tal com a folha de tília nas costas de Siegfried...

‑ Cala a boca! ‑ gritou Kochlowsky de súbito. ‑ Eu vou mostrar a esse Hammerschlag quem come da mão de quem...

à noite, quando Leo e Sofia estavam deitados e Leo folheava um dos novos romances de Eugen à luz de uma lâmpada de gás, perguntou como por acaso:

‑ Hammerschlag esteve cá muitas vezes?

‑ Não. Foram umas três... ‑ respondeu Sofia sem reflectir muito. ‑ Quando passava por cá, parava para me cumprimentar.

‑ Chegaram a falar de Pless?

‑ Sim.

‑ E da minha mãe?

‑ Também. Ele quis saber de onde vinha o nome Vanda Eugenie Emma. Da última vez trouxe uma tablete de chocolate para Vanda. Há algum mal nisso? ‑ Sofia endireitou‑se e olhou para ele. ‑ Não me digas que estás de novo com ciúmes, Leo! E ainda por cima de Hammerschlag?

‑ Mas é claro que não, querida. ‑ Kochlowsky virou‑se para ela e acariciou‑lhe os ombros. A fragilidade da sua mulher surpreendia‑o sempre. Nem o segundo filho lhe conseguira tirar esse ar de menina. ‑ Fizeste bem. Podes perfeitamente contar a razão pela qual demos esse nome à nossa filha...

 

Kochlowsky esperou uma semana antes de tratar do problema "Emma". Esperou que os amigos de Pless tivessem partido e no dia seguinte levou Eugen à estação, pois este ia para Dresden. Ficou calado quando Eugen lhe pediu:

‑ Promete‑me que não arrancas a cabeça a Hammerschlag, Leo. Pensa em Sofia, Vanda e Jenny. Tens a oportunidade de ficar para sempre aqui em Herzogswalde. Agora que sabes que Hammerschlag é um intrujão, habitua‑te a essa ideia, mas não lhe partas o crânio. Como és um artista a inventar maldades, tenho a certeza de que conseguirás tornar a vida dele num inferno...

‑ a pulga gorda! ‑ disse Kochlowsky num tom a fingir desprezo. ‑ Leva sempre contigo o meu endereço, para que eu fique a saber quando explodires! Como é que o teu coração aguenta tanta gordura?

‑ É um coração Kochlowsky. Esses resistem a tudo! Leo, meu irmãozinho, esquece esse assunto com o Hammerschlag. Assim será melhor.

Agora todos tinham partido. A vida voltara ao ritmo normal. A nova empregada começou a trabalhar em casa dos Kochlowsky. Fora indicada por Hammerschlag e Kochlowsky apenas não a despediu por ser uma rapariga bonita e alegre, de olhos castanhos, com cerca de vinte anos e uma presença muito agradável. Só por isso não custou muito a Kochlowsky ficar com ela em casa.

No dia planeado, Kochlowsky foi a Herzogswalde e comprou uma tablete de chocolate na mercearia. Era o dobro da quantidade que Hammerschlag oferecera a Vanda. A seguir não foi para a fábrica de tijolos, mas sim para casa do tesoureiro do barão Von Finck. Hammerschlag não estava e Matilde explicou com uma voz sonante que o senhor voltaria dali a uma hora. Perguntou se até lá não lhe poderia ser útil em alguma coisa...

- Sim! ‑ resmungou Kochlowsky. ‑ Desaparece e pára de te mexer dessa maneira.

Esperou até que Matilde, ofendida, tivesse batido com a porta. Depois desembrulhou o chocolate, partiu‑o em pedaços e a seguir voltou a juntá‑los de modo a que a tablete voltasse a parecer inteira. Feito isto, foi até ao armário buscar uma garrafa de aguardente. Bebeu um gole e esperou com a paciência de um caçador.

Hammerschlag voltou bastante bem disposto do seu passeio. Durante o controlo da criação de bezerros do barão descobrira que as peles de dois vitelos nascidos mortos não haviam sido entregues. Tinham simplesmente desaparecido e ninguém parecia saber do seu paradeiro. Isso foi um bom motivo para Hammerschlag demonstrar mais uma vez o seu poder: cortou a todos os empregados da criação a oferta de leite e o direito de uma vez ao mês fazerem manteiga.

‑ Vejam o que conseguem extrair das peles roubadas! ‑ gritara. ‑ O que querem dizer com isso, peles inúteis? Para mim nada é inútil. Só vocês!

Transtornados, mas sem se poderem defender, os trabalhadores aceitaram o castigo. Protestar significava perder o emprego, e embora o império estivesse a viver um período de auge sem precedentes desde 1871, em Herzogswalde as coisas andavam mais devagar. E só andavam para a frente devido ao barão Von Finck. Isto queria dizer que a vida sem Hammerschlag seria ainda mais dura. Ou então teriam que mudar‑se para uma das novas zonas industriais, trabalhar nas minas de carvão, numa fábrica de máquinas ou numa fundição. Deixar a cidade natal por causa de Hammerschlag? Mais valia agachar‑se e ficar calado.

‑ Ah, veio visitar‑me! ‑ exclamou Hammerschlag quando se lhe deparou Kochlowsky sentado na sala. ‑ Como vejo, já se serviu. Muito bem, Leo... sinta‑se em casa...

‑ Gosta de chocolate, Willibald? ‑ perguntou Kochlowsky com uma voz séria.

‑ De vez em quando, sim. Quando me apetece. Mas agora tenho vontade de beber um bom uísque.

‑ O senhor vai comer chocolate...

‑Hoje não.

‑           Daqui a alguns segundos.

‑           O que tem, Leo? ‑ Hammerschlag aproximou‑se e só então reparou na tablete de chocolate que se encontrava

na mesa, partida em pedaços e depois recomposta. ‑ O senhor trouxe um chocolate? Então está bem, faço‑lhe o gosto de comer um bocadinho.

‑ É verdade que o senhor levou chocolate à minha filha...?

‑ Sim. É uma menina muito bonita e muito esperta para a idade que tem.

‑ E também é verdade que soube o nome completo dela: Vanda Eugenie Emma?

‑ Onde quer chegar, Leo?! ‑ Hammerschlag encolheu os seus ombros largos.

‑ Eu vim devolver‑lhe o chocolate. Trago o dobro da quantidade para pagar os juros. Eu não preciso do seu chocolate...

‑ O que está a dizer, Leo?

‑ Qual é o verdadeiro nome da sua mãe?

De repente, Hammerschlag percebeu que a situação se estava a tornar perigosa e endireitou‑se. Parecia a personificação da força e da resistência.

- Emma ‑ disse em voz alta.

‑ O senhor está a mentir! ‑ Kochlowsky levantou‑se da cadeira. Hammerschlag encolheu a cabeça entre os seus largos ombros. Os seus olhos semicerraram‑se.

‑ Leo, não faça nenhum disparate ‑ pediu, contraído. ‑           E retire aquilo que disse acerca de eu mentir...

‑ Nem pensar nisso! O senhor está a mentir... a mentir! ‑ A voz de Kochlowsky engrossou de tal modo que já não havia mais defesa. ‑ Como se chamava realmente a sua mãe?

‑ Seu idiota! Chama‑se Emma! ‑ berrou Hammerschlag.

A partir daí foi tudo muito rápido. Tão rápido que Hammerschlag não teve qualquer hipótese de se defender. Com Um golpe no pescoço que impediu a circulação do sangue para o cérebro, Kochlowsky obrigou o seu adversário a cair. ofegante e de boca aberta, Hammerschlag ajoelhou‑se em frente à mesa e quando quis levantar os braços a pressão exercida na sua carótida pela mão de Kochlowsky tornou‑Se mais forte.

‑ Com este golpe costumávamos defender‑nos dos lobos no Inverno, quando não tínhamos armas à mão ‑ rugiu Kochlowsky. ‑ Andaram a contar em Herzogswalde que eu era capaz de comer da mão de alguém. Ainda não experimentei, mas gostava de saber se isso é possível.

Deitou a mão ao chocolate, tirou uma mão‑cheia de pedaços e aproximou‑os da boca de Hammerschlag.

‑ Come!

Os olhos de Hammerschlag incharam‑se. Com um gesto brusco tentou libertar‑se da mão de Kochlowsky, mas os dedos de Leo estavam agarrados à sua carótida como garras de gelo.

‑ Come! ‑ repetiu Kochlowsky. ‑ Hoje é o meu dia do chocolate. ‑ Esfregou o chocolate nos lábios de Hammerschlag. Este teve que abrir a boca para não sufocar. permitindo assim que Kochlowsky aí enfiasse os pedaços ligeiramente derretidos pelo calor da sua mão. Porém, mal os teve dentro da boca cuspiu‑os para o chão.

‑ Não faz mal... ‑ disse Kochlowsky com calma. Esfregou a mão lambuzada de chocolate na cara de Hammerschlag, até este ficar coberto de manchas castanhas e pegajosas. Só depois o largou e recuou um pouco. Hammerschlag, que sentia dificuldade em respirar, ficou ajoelhado no chão, enquanto Kochlowsky limpava as mãos à toalha de mesa. ‑ Estamos sós, Hammerschlag. Nenhum de nós tem testemunhas. Posso negar tudo. Só que o senhor devia fixar uma coisa: não se engana um Kochlowsky. Como se chama a sua mãe?

‑Emma... ‑ balbuciou Hammerschlag. ‑ Vá ao quarto de dormir... há uma certidão de casamento na parede.

Kochlowsky olhou para Hammerschlag, perplexo, precipitou‑se para o quarto de dormir e viu a certidão emoldurada, que dizia que a honrada Emma Schultheiss casara com o comerciante Frauz Hammerschlag.

Voltou para a sala a passos lentos. Hammerschlag sentara‑se numa cadeira. Tinha os olhos vítreos e todo o seu corpo tremia. Kochlowsky parou à sua frente, juntou os calcanhares e fez uma pequena vénia.

‑ Peço‑lhe perdão ‑ disse com uma voz rouca. ‑ Estou à sua disposição para qualquer tipo de satisfação...

‑ Saia daqui! ‑ gemeu Hammerschlag, virando a cabeça para o lado. ‑ Vá‑se embora. Nunca mais quero voltar a vê‑lo...

E assim foi. Parece impossível, mas a verdade é que durante seis anos não se viram. De vez em quando um mensageiro levava recados de um para o outro. Em Herzogswalde havia uma grande tranquilidade.

 

Cinco anos são tempo suficiente para que o mundo e as pessoas mudem. Já houve inúmeros casos de autênticas revoluções que se deram em cinco anos ou menos, desde guerras e genocídios até importantes descobertas medicinais ou invenções. A era industrial começara em todo o mundo, mas sobretudo na Europa a Humanidade avançava rapidamente por diversas fases de desenvolvimento, proporcionando riqueza a uns e pobreza a outros. A distinção entre ricos e pobres adquiria proporções que nem os sonhadores mais utópicos haviam previsto. Ao mesmo tempo ocorria uma grande mudança estrutural nas classes sociais: cristalizavam‑se os ricos, os burgueses e o proletariado. As diferenças sociais tornavam‑se cada vez maiores. O que em 1848 desencadeara uma revolução, era agora um lema do dia‑a‑dia, só que entretanto dizia‑se: "Quem trabalha vale alguma coisa e só não trabalha quem não quer". Tão fácil e tão cruel!

Nesses cinco anos Leo Kochlowsky modernizara por completo a fábrica do barão Von Finck, aumentando o lucro para o dobro. E durante todo esse tempo o barão ainda não conseguira montar Reckhardt durante mais do que três minutos e dezanove segundos ‑ Kochlowsky ficava sempre ao lado com um relógio na mão. Quando o barão conseguira permanecer durante três minutos na sela e já se aprontava para gritar "Vitória!", seguiram‑se os enervantes e humilhantes dezanove segundos.

‑ Por que é que ele não gosta de mim? ‑ perguntou o barão Von Finck depois da última tentativa. ‑ Nem parece ser um cavalo normal! Depois de cinco anos continua a não me aceitar!

‑ É um cavalo muito inteligente, senhor barão ‑ respondeu Kochlowsky.

‑ O que quer isso dizer?

‑ Ele não se esqueceu de que um dia eu lhe disse que se ele jamais deixasse alguém montá‑lo, levá-lo‑ia para o matadouro, onde o transformariam em sabão. Ele compreendeu‑me.

‑ O senhor disse isso, Kochlowsky?

‑ Exactamente.

‑ Mas isso é incrível! Então o senhor está há anos a sabotar um dos meus maiores desejos?

‑ Eu não diria isso. Reckhardt é o único, para além da minha mulher e dos meus filhos, que nunca me trairia, nem me abandonaria. Faz parte do meu próprio pequeno mundo. Se ele obedecesse a outra pessoa, parte desse mundo desmoronar‑se‑ia. O senhor compreende?

‑ Não. Um cavalo é uma criatura, um animal... o senhor quer humanizá‑lo?

‑ Não serão certos animais muito mais decentes do que um ser humano? Mais afeiçoados, mais fiéis, sem perfídia nem maldade, inveja ou ciúmes? Quando eu vejo como algumas pessoas tratam os seus cães, lhes deitam a comida e lhes dão pontapés... se eu pudesse tratava essas pessoas da mesma maneira!

‑ Quase que o faz ‑ disse o barão, seco. ‑ Como estão as coisas com Hammerschlag?

‑ Contactamos por escrito, através de um mensageiro e ele só vai à fábrica quando eu não estou lá. Tudo está a correr muito bem e é isso que interessa. A sua fábrica de tijolos faz agora parte das mais modernas empresas de toda a Saxónia.

‑ Isso realmente é um grande sucesso, mas no fundo não me interessa muito.

‑ Eu sei. Porém, só se pode dar ao luxo de pensar assim quem tem dinheiro suficiente para isso. ‑ Kochlowsky pegou Reckhardt pelos arreios, puxou‑o para perto de si e beijou‑lhe as narinas. O barão Von Finck observou este gesto carinhoso e comentou num tom sarcástico: ‑ Pergunto-me como é que o senhor, com tanto amor pelos animais, conseguiu procriar quatro crianças. Ou será que considera a sua querida mulher uma jumenta?

Kochlowsky largou Reckhardt e virou‑se devagar.

‑ Senhor barão, mesmo que seja nobre e meu senhor - respondeu com uma voz perigosamente grave ‑, isso não me impede de lhe dar uma bofetada.

‑ Então eu teria uma justificação para despedi‑lo imediatamente!

‑ Tomei conhecimento disso. ‑ Kochlowsky deixou o barão e levou Reckhardt para o estábulo. Este tipo de episódios não eram nada de novo. Nos últimos anos tinham‑se repetido tantas vezes que Kochlowsky já nem se lembrava de quantas vezes fora despedido. Na maioria dos casos, à noite aparecia um mensageiro do barão com um papelinho que dizia: Seu teimoso! Continue a trabalhar! Kochlowsky costumava amarrotar o papel, formar uma bolinha e dá‑la ao cão para brincar.

Porém, desta vez foi diferente. Depois de ter respirado fundo, o barão Von Finck chamou:

‑ Espere, seu malcriado! No domingo vem cá o conde Douglas.

Kochlowsky deteve‑se à entrada do estábulo e olhou para trás.

‑ O senhor conde? Que pena eu não poder cumprimEntá-lo.

- É exactamente isso que terá de fazer! E mostrar‑lhe-á a nossa nova fábrica! Desde há um ano que Douglas está COm dificuldades com a fábrica dele... diz que isso se deve ao facto de nos últimos tempos se estar a construir cada vez mais com betão. Por que é que nós não notamos as consequências disso?

‑           Porque o senhor não se preocupa com esse tipo de coisas, senhor barão.

‑           Não seja insolente, Kochlowsky!

‑           Os tijolos já só constituem metade da nossa produção. A maior parte do dinheiro é proveniente da venda de placas esmaltadas, ladrilhos e azulejos decorativos. Estamos a acompanhar o desenvolvimento do betão: este faz as paredes e nós decoramo‑las. O senhor nem deu por essa reestruturação do negócio. Mas, em contrapartida, conhece cada um dos veados das suas florestas.

‑           No fundo, o senhor é um génio, Kochlowsky. - O barão já não parecia estar tão zangado. ‑ Qual é a percentagem do meu rendimento que provém da fábrica de tijolos?

‑           Creio que no mínimo sessenta por cento. Se quiser saber o número exacto, terá que perguntar a Hammerschlag.

‑           E o que diz ele acerca deste assunto?

‑           A mim, nada. Mas há três anos que está a tentar reestruturar a agricultura. Quer desistir da lavoura para passar a concentrar‑se na produção de fruta. Até já fala de uma destilaria para a fruta.

‑           Isso soa‑me bem.

‑           Mas pode correr mal! A dependência do estado do tempo torna‑se muito grande. Eu faria as coisas de outra maneira.

‑ Claro! Um Kochlowsky sempre faz as coisas de maneira diferente de todas as outras pessoas. Só na sanita também dobra as pernas...

Kochlowsky largou Reckhardt, dando‑lhe uma palmadinha na garupa. O cavalo trotou sozinho para a cocheira, enquanto Kochlowsky se aproximou alguns passos do barão.

‑ Estamos no nível certo para continuarmos a Conversar.

‑ Depois de cinco anos, consigo adaptar‑me perfeitamente ao "estilo Kochlowsky". Então, o que faria o senhor no lugar de Hammerschlag?

‑ Reestruturar, concentrando‑me na criação de gado. No futuro próximo, as pessoas consumirão mais carne e produtos lácteos. E o preço da pele e do couro também subirãi. Quanto mais se desenvolver a indústria à volta das cidades, mais aumentará o consumo. Estamos a assistir a uma significativa mudança dos costumes de vida. O agricultor deixou de ser a pessoa central. Agora é o trabalhador que conta. Mas para que ele tenha forças para trabalhar, o agricultor tem que abastecê‑lo. Senhor barão, eu mudaria para a criação de gado. Que os outros tenham os seus celeiros, nós teremos o matadouro. Um boi sempre vale mais do que uma leva de trigo.

‑ Direi tudo isso a Hammerschlag. Exactamente como o senhor o disse!

‑ Ele vai olhar para si sem compreender, senhor barão. ‑ Kochlowsky riu‑se. ‑ E não mencione que fui eu quem disse isso tudo. Hammerschlag preferiria cobrir os seus campos de pedras a aceitar um conselho meu!

 

Eram assim as coisas em Herzogswalde no ano de 1896. Vanda, a filha mais velha de Kochlowsky, completara entretanto sete anos e frequentava a escola. Era uma criança magra, com um corpo frágil como o da mãe, cabelo escuro e os olhos pretos do pai. Parecia‑se com o pai em muitas coisas e isso notava‑se sobretudo quando chorava de raiva ou quando chamava parvas e lesmas às suas amigas. Preferia brincar com os rapazes. Com eles trepava às árvores, caçava coelhos, nadava nos lagos e ia para os riachos apanhar trutas com as mãos.

Kochlowsky orgulhava‑se da sua filha e costumava tratá‑la por "meu rapaz", embora Sofia protestasse. Quando nasceu a segunda filha passou a tratar Vanda assim com mais frequência. Levava‑a consigo para a roda da cerveja, em Herzogswalde, onde recebia uma cerveja de malte e fiCava sentada no banco de madeira ao lado do professor, do pastor, do ferreiro, do farmaceuta e do pintor, a ouvir o seu pai sempre a contrariar a opinião dos outros. E o pai tinha sempre razão ‑ Isso ficou‑lhe gravado na memória. Aquilo que o pai diz é sempre verdade! Normalmente, Jacky, o cão, acompanhava‑os e quando caminhavam para casa, nas solarentas tardes de domingo, atravessando a linda paisagem, com o cão à frente, Vanda no meio sempre agitada e Kochlowsky no fim, com a sua postura digna, representavam a imagem de burgueses extremamente satisfeitos.

Vanda era a única pessoa que tinha permissão para se sentar na sela de Reckhardt. Quando se aproximara do cavalo pela primeira vez ‑ na altura tinha ainda cinco anos ‑ este cheirara‑a, deixando que Kochlowsky a sentasse na sela, ficando imóvel, mexendo apenas as orelhas. Depois deu algumas voltas em frente ao estábulo, guiado pelo dono, e fungou quando Vanda gritou de alegria. Era como se o cavalo notasse a ligação entre o pai e a filha.

Porém, tudo isso mudou no ano de 1894: nasceu um rapaz. Foi um parto muito difícil; Sofia teve contracções durante 20 horas e o velho médico de Herzogswalde repetiu sem fim:

‑ Eu não compreendo isto. Eu realmente não compreendo isto. Tantas dificuldades durante o terceiro parto! O que se pode fazer?!

‑ Cagar nas calças é que não! ‑ berrou Kochlowsky. ‑ O meu médico veterinário de Pless era um gigante comparado consigo! O que foi que estudou? Meter supositórios no rabo, é só isso que sabe?

Em Herzogswalde já ninguém se irritava com a maneira de falar de Kochlowsky, nem mesmo o velho médico. Havia alguns anos que conheciam Kochlowsky e devido ao facto de ele ter parcialmente conseguido chamar Hammerschlag à razão perdoava‑se‑lhe muita coisa. Ao contrário da população de Wurzen, os habitantes de Herzogswalde rapidamente compreenderam que ele tanto podia estar a berrar num instante... como dali a dez minutos, se lhe contassem que uma avó estava a morrer, ele, no dia seguinte, iria Visitá‑la, e a avó viveria os últimos momentos com honra.

Quando o rapaz enfim veio ao mundo ‑ chamar‑se‑ia LeO, iSSO estava decidido ‑ pensaram que Sofia iria deixá‑los. Estava branca, como se não tivesse sangue no corpo. A sua pequena cabeça quase não era visível entre as enormes almofadas. Parecia uma boneca e assim ficou durante algunas horas, imóvel e com a respiração muito fraca. Kochlowsky sentara‑se à borda da cama, segurando a sua pequena mão pálida e fria e chorando baixinho.

‑ Chorar agora também não ajuda nada! ‑ exclamou o médico quando a parteira conseguiu enfim arrancá‑lo do quarto de dormir. Kochlowsky sentou‑se na sua poltrona, bebeu uma cerveja e fitou o médico, que o avisou: ‑ Desta vez é melhor fixar uma coisa: acabou! Na próxima gravidez acuso‑o de assassínio. Afinal, agora já tem o seu rapaz.

‑ A Sofia vai... vai sobreviver? ‑ balbuciou Kochlowsky.

‑ Não sei.

‑ Claro. Como é que fui capaz de lhe fazer uma pergunta dessas? Afinal, o senhor não sabe nada.

‑ Caso ela sobreviva, o senhor devia ir para a clínica de Dresden.

‑ Porquê?

‑ Para se mandar castrar.

Kochlowsky suspirou, bebeu um gole de cerveja e pôs‑se a olhar para o vazio.

‑ Estou fraco de mais para lhe dar um pontapé ‑ disse, cansado. ‑ Tente aproveitar‑se disso, porque esta situação não voltará a repetir‑se tão depressa.

‑ Tem um carácter suficientemente forte para não voltar a tocar na sua mulher, Kochlowsky?

‑ O senhor não tem nada a ver com isso, seu indiscreto!

‑ Quando estiver mesmo a precisar de uma mulher, vá para Dresden. Ali existem vários estabelecimentos onde lhe será satisfeito qualquer desejo.

‑ Seu porco! ‑ resmungou Kochlowsky. ‑ Um velho esclerosado a aconselhar‑me uma prostituta! Céus, por que não lhe atiro com a caneca de cerveja à cabeça?

‑ Porque eu tenho razão. O senhor sabe exactamente que de vez em quando não se consegue travar. Quando lida com as pessoas é assim e suponho que na cama será igual! Fique sentado, Kochlowsky. Eu sei que chama a isso carícias... mas as suas carícias são destruidoras. Olhe para a sua pequena mulher! Está um frangalho... mas o senhor lá conseguiu ter o seu rapaz! Se fosse um verdadeiro homem, iria lá para fora e dava uma tareia a si próprio...

‑ Isso é mesmo seu. Mas o que está aqui a fazer? Já não pode ajudar. Rezar eu sei sozinho e essas afirmações estúpidas que está aí a fazer, também eu sei fazê‑las. O senhor não faz cá falta, seu enfia‑supositórios.

‑ Quantas crianças ilegítimas deixou você em Pless?

‑ Pelo que eu saiba, nenhuma. Não houve uma única mãe que me tivesse avisado.

‑ Como conseguiu isso?

‑ É a arte de amar. ‑ Kochlowsky endireitou‑se. - Se agora não for embora, senhor doutor, garanto‑lhe

que sairá daqui a voar!

Foi assim que nasceu Leo, e desde então, Vanda, por ser a mais velha, teve a ingrata tarefa de tratar do bebé. Levava‑o para o jardim, brincava com ele e ainda por cima tinha que olhar por Jenny, que com os seus três anos tentava sempre escapar‑lhe. Normalmente acabava por se sentar num canto do jardim onde brincava com as suas bonecas. Vestia e despia‑as, punha‑as uma ao lado da outra, como na escola, e pregava‑lhes sermões sobre o que era permitido e o que não. Nessas situações estava bem guardada e Vanda, que raramente brincara com bonecas, preferindo em vez disso montar ratoeiras com os rapazes da vizinhança, dizia à mãe:

‑ A parva está outra vez a dar banho às bonecas!

‑ Tu não devias dizer essas coisas!

Sofia olhava para a sua filha mais velha com um ar de censura. "Ela é como o pai", pensava às vezes, assustada. "Tem os mesmos olhos, os mesmos lábios contraídos, até a posição da cabeça é igual, essa nuca contraída e direita. Ela é uma verdadeira Kochlowsky... não tem nada da família

Rinfle de Bu~ckeburg. Jenny, ao contrário, é uma criança sonhadora, calada e tolerante mas, quando quer, guarda rancor e torna‑se inacessível. Só falta saber como será o pequeno Leo. Porém, há uma coisa que já se pode dizer: ele é completamente diferente. É um Rinne. Tem a cara redonda e o cabelo louro, está sempre bem disposto, à noite dorme e nunca é impaciente. Só uma vez, quando a Vanda lhe cuspiu para a cara por ele estar constantemente a espernear e a afastar os cobertores, no seu carrinho, berrou durante uma hora."

Foi essa também a primeira vez, nos seus sete anos de vida, que Vanda levou uma tareia do pai. "Ele está a bater‑me", pensou. "Já não gosta de mim. Agora já não sou o "rapaz" dele, agora tem um verdadeiro rapaz. Passei a ser só uma rapariga." E foi a partir daí que começou a odiar o seu irmão Leo.

 

Pouco antes do natal, Kochlowsky foi buscar um ganso à casa florestal, onde entretanto muita coisa mudara. A casa que antigamente estava tão mal cuidada transformara‑se num estabelecimento exemplar, mas Ursprung não compreendia nada. Sempre que Kochlowsky o visitava, abanava a cabeça, mostrando‑lhe as últimas inovações.

‑ Acha isto compreensível? ‑ perguntou. ‑ Hammerschlag autoriza tudo! É só eu exprimir um desejo e ele manda logo comprar aquilo que eu pedi. O homem deve estar mesmo doente. É impossível alguém mudar tanto... No próximo ano receberei uma serra a vapor, uma verdadeira máquina. A minha proposta de utilizarmos o terreno para serração também foi autorizada. Além disso, dar‑me‑ão seis cavalos belgas e uma forja e uma selaria especialmente para eles. Tudo isto parece um sonho. Desde que o senhor cá está, Leo.

‑ Isso não tem nada a ver comigo, Ludwig.

‑ Há seis anos, quando o senhor chegou, isto parecia Uma selva. Nós éramos os macacos e Hammerschlag tinha o chicote e punha‑nos a dançar. Muita coisa mudou em HerZO~walde desde então!

Nesse instante, alguém bateu à porta e abriu‑a bruscamente. Era Hammerschlag. Pela primeira vez desde havia cinco anos, os dois homens voltaram a ver‑se. Ficaram tão surpreendidos que durante alguns instantes permaneceram imóveis, sem saberem o que dizer. O senhor Ursprung vi rou‑se e olhou pela janela para o pátio.

‑ Bravo! ‑ exclamou Kochlowsky, interrompendo o silêncio. ‑ Até que enfim aprendeu a bater à porta.

‑ Eu não sabia que o senhor cá estava ‑ resmungou Hammerschlag.

‑ Vim buscar um ganso para a noite de Natal.

‑Aqui?

‑ Os seus gansos são tísicos de mais para mim.

‑ Seu espertalhão! Pensa que sabe tudo! ‑ Hammerschlag encheu os pulmões. Nesses cinco anos quase não mudara. Só o seu cabelo ficara grisalho, o que, porém, não lhe ficava mal. ‑ Como está a correr o assunto da criação de gado?

‑ Plantações de fruta requerem muita dedicação e dependem do tempo. Vacas, vacas resistentes, pelo contrário quase não precisam de cuidados nenhuns. O senhor devia optar pelo gado polaco, bastante resistente ao mau tempo.

‑ Preferia morrer!

‑ Isso seria um prazer todo seu. Eu sempre teria que sacrificar vinte marcos por uma coroa de flores.

‑ Quem é que o senhor pensa que é? Considera‑se um enviado de Deus... e todos os outros são uns idiotas?! Eu trabalho na agricultura há quase quarenta anos...

‑ E desses quarenta anos esteve os últimos seis ou sete a dormir. Um novo século começou e traz consigo novas ideias. Certas coisas que antigamente eram impensáveis tornam‑se agora possíveis! Na propriedade do barão Von Finck, porém, continua‑se a plantar batatas como nos tempos de Frederico, o Grande. Mas isso é um problema seu. Ludwig, vamos escolher o ganso.

Kochlowsky passou por Hammerschlag e saiu da casa sem lhe prestar mais atenção. O guarda‑florestal seguiu‑o. murmurando, atrapalhado:

‑ Só um momento, senhor Hammerschlag. Só um momento. Eu volto já...

Mais tarde, quando Kochlowsky percorria o caminho coberto de neve, de volta à fábrica de tijolos, teve que parar numa curva. Havia um trenó atravessado no caminho. Era Hammerschlag que esperava por ele, enrolado numa grossa pele.

Kochlowsky desceu do seu coche, pegou no chicote e aproximou‑se do trenó. Hammerschlag puxara o gorro de peles para a cara, mas ainda era possível ver‑lhe os olhos.

‑ Escolhi este lugar por aqui estarmos sozinhos e ninguém nos poder observar ‑ começou.

‑ O que prefere? Punhos ou chicote? Hoje não trago pistola.

‑ Tu és, e sempre serás, um idiota, Leo. Onde é que eu posso comprar gado polaco?

‑ Conheço uma criação muito boa ‑ Kochlowsky aproximou‑se do trenó, tirou o gorro da cabeça de Hammerschlag e bateu‑lhe com ele duas vezes na cara. E de repente começaram a rir‑se e deram as mãos. Havia uma alegria tão grande entre eles que o riso mal chegava para exprimi‑la.

‑ Como é que vamos explicar isto às pessoas? ‑ perguntou Hammerschlag, voltando a enfiar o gorro na cabeça. ‑ Vão pensar que ficámos doidos.

‑ No domingo de manhã apareceremos os dois na roda da cerveja e beberemos juntos, como irmãos. Desse modo não haverá perguntas.

E assim foi. Por algum tempo os habitantes de Herzogswalde ficaram estupefactos. Sofia também não soube o que pensar... Ficara à espera de Kochlowsky para o almoço até às três da tarde, hora em que apareceu um coche desconhecido. Vanda e Jacky, o cão, saíram de casa a correr, e Vanda exclamou:

‑ Mãe! Mãe! O papá está bêbado... ‑ Hammerschlag ajudou Kochlowsky a entrar em casa. Deitou‑o no sofá e Sofia olhou para os dois, sem compreender.

- O senhor aqui... ‑ começou, devagar. ‑ O que foi que aconteceu?

‑ O que havia de ter acontecido? Apanhámos uma pequena bebedeira de domingo. Perdão, minha senhora; os homens às vezes precisam dessas coisas.

‑ Alguma vez se lembrou de olhar para o relógio?

‑ Não. Porquê?

‑ São três horas. E o Leo está completamente bêbado! O meu belo almoço...

‑ O que foi que preparou para o almoço, afeiçoada senhora?

‑ Leitão cozido no forno com cerveja... e...

‑ Aceito. Maravilhoso! Sirva‑me, que eu como a parte do Leo...

O mundo podia ter mudado... porém, para Sofia continuava igual.

 

Um ano mais tarde, o velho médico veio visitar Kochlowsky à fábrica, acompanhado por um homem jovem e enérgico com um bom físico.

Durante esse ano, Herzogswalde sentira a renovada amizade entre Hammerschlag e Kochlowsky. A serralharia fora montada, na fábrica de tijolos faziam‑se agora telhas, no sector da agricultura construíram‑se estábulos, os campos tinham sido arados e semeara‑se alimento para gado. Grandes áreas haviam sido cercadas com uma sebe e vinte vacas e um touro foram trazidos de comboio da Polónia. Ao descerem o touro do comboio, este soltara‑se, correra pela estrada principal e só parara em frente à drogaria, onde comera um chapéu de palha exposto.

Fora Kochlowsky quem agarrara na argola do nariz do touro e o levara de volta à estação. Viera ajudar o seu amigo Hammerschlag e quase fora esmagado pelo touro.

O médico envelhecera muito durante este ano. Sofria de reumatismo e artrite, e a única coisa que se podia fazer para combater estas doenças era tomar banhos com extracto~ de ervas ou ir para uma estância termal, o que infelizmente, por razões financeiras, não estava ao seu alcance. Mas, de qualquer modo, tudo isso só servia para atenuar as dores, e nunca curava a doença... a artrose era um destino ao qual não se podia escapar e que havia que suportar com muita coragem.

Com um grande esforço, o médico desceu do coche, apoiando‑se no jovem que o acompanhava. Dirigiram‑se para o escritório de Kochlowsky e entraram.

‑ Então? ‑ inquiriu Kochlowsky, puxando uma cadeira para o médico. ‑ Está alguém doente? Não me disseram nada.

‑ Sim. ‑ O velho médico sentou‑se com um suspiro e apontou para o seu jovem acompanhante. ‑ Este é o doutor Jochen Kreuzer. A partir do próximo mês tomará conta do meu consultório. Eu vou‑me retirar.

‑ Seja bem‑vindo, doutor. ‑ Kochlowsky e Kreuzer apertaram as mãos. ‑ Talvez a partir de agora não se seja mais. tratado como nos tempos de Paracelso, aqui, em Herzogoalde.

‑ Paracelso será sempre um modelo da medicina. - O doutor Kreuzer sorriu. A advertência do seu colega fora justificada. Este Kochlowsky tinha que ser aceite tal como era... sentir‑se ofendido com aquilo que dizia seria um desperdício de sentimentos. ‑ Hoje em dia, infelizmente, as pessoas não lhe dão a devida importância.

‑ A apresentação do meu jovem colega, porém, foi só uma desculpa para eu vir à fábrica falar consigo. ‑ O velho fitou Kochlowsky com um ar zangado. ‑ É verdade aquilo que se anda a contar em Herzogswalde? A sua pequena mulher está grávida de novo?

- Pergunte aos seus agentes de informação, doutor - respondeu Kochlowsky num tom de voz frio.

- Estou a perguntar à pessoa que o fez, raios! A sua mulher vai ter mais um filho?

- Sim.

- O que foi que eu lhe disse?

‑ Muita coisa. Desde a castração até ao bordel, mencionou tudo! ‑ Kochlowsky juntou as mãos. ‑ O que é que os senhores pretendem?

‑ Eu quero que o meu jovem colega o esclareça sobre os perigos deste parto, já que não acredita em mim. O doutor Kreuzer está a par das mais recentes descobertas da medicina. Trabalhou em várias clínicas de Leipzig e Dresden e o único motivo que o fez vir para esta cidadezinha foi uma rapariga de Herzogswalde que conheceu em Dresden. - O velho médico respirou fundo. ‑ Ora bem, esta gravidez da sua mulher é um crime...

‑ Seria aconselhável saírem o mais rapidamente possível do meu escritório ‑ disse Kochlowsky baixinho.

‑           Como médico eu não tenho só o dever de curar doenças, como também de evitar problemas. Se a sua mulher der à luz, a sua vida correrá perigo.

‑ O que quer dizer com "se"?

O doutor Kreuzer avançou com cuidado:

‑ Em casos excepcionais, quando a vida da mãe está em perigo, é legítimo do ponto de vista médico recorrer a um aborto.

‑ Fora! ‑ exclamou Kochlowsky. ‑ Já para fora!

‑ A sua mulher não vai sobreviver ao parto.

‑ Isso está nas mãos de Deus, não nas suas!

‑ Ah! De repente fala em Deus! ‑ O velho médico bateu com os pés no soalho. ‑ O senhor está a desiludir‑me, Kochlowsky. Agora deposita toda a responsabilidade noutra pessoa, incapaz de se defender. Será que o senhor mudou tanto assim?

‑ Adianta alguma coisa se lhe disser que eu próprio fiquei extremamente surpreendido, quando Sofia me disse que estava grávida? Tive vergonha... mas isso não ajuda. Agora teremos que passar por isso.

‑ Não será o senhor, mas sim a sua pequena mulher que terá que passar por isso! O senhor voltará a chorar pelos cantos, gemendo "a minha pobre querida"! E aposto que quando não houver mais nada a fazer, até rezará! O pobre viúvo com quatro filhos! Vejam só como ele é infeliz! Não, o senhor deveria ser atado a um pelourinho e todas as pessoas que passassem cuspiriam em si ou dar‑lhe‑iam uma bofetada.

‑ Era só isso que tinha a dizer‑me? ‑ perguntou Kochlowsky com os olhos semicerrados.

O doutor Kreuzer parecia querer intervir. O seu colega estava sem fôlego.

‑ Nesta situação, de facto, deveríamos conversar sobre um aborto.

‑ Realmente acha que a minha Sofia faria isso?

‑ Se a vida dela estiver em jogo...

‑ Ela é uma heroína! Sim, uma heroína, daquelas que vêm nos livros de História. Há oito anos que me suporta...

‑ Isso realmente requer muita coragem ‑ interrompeu o médico.

‑ Por que motivo será que as crianças e os velhos não sabem calar a boca? ‑ Kochlowsky encarou o doutor Kreuzer com um ar desafiador. ‑ O senhor quer dizer pessoalmente à minha mulher que ela deverá desistir do filho? E quer que eu lhe dê a resposta neste momento?

‑ Permite‑me que eu examine a sua mulher?

‑ E se eu disser que não...

‑ Então só nos resta perguntar‑lhe a ela.

‑ O senhor vai ficar admirado, mas não o impedirei de examiná‑la. Quero que oiça o que ela pensa sobre uma interrupção da gravidez. Nem lhe falarei da sua visita de hoje.

‑ E se ela estiver de acordo com uma interrupção da gravidez?

‑ Então essa será a decisão certa. Bom dia, senhores doutores..

Kochlowsky esperou quase quatro dias que Sofia mencionasse o assunto. Por fim, no quinto dia, quando se sentou à mesa para jantar, Vanda à sua direita, depois de ter ajudado a descascar as batatas, a lavar a verdura e a serVir a comida, Leo júnior à sua esquerda na cadeirinha e à sua frente, ao lado da mãe, Jenny, séria e calma como sempre, Sofia comentou, depois de uma curta oração dita por Vanda:

‑ Hoje de manhã estiveram cá os dois médicos. O senhor Kreuzer é um homem muito simpático. Já o conheces?

‑           Não... ‑ Kochlowsky não sabia se esta pequena mentira ainda valia a pena. As frases seguintes iriam comprová‑lo.

‑           Eles examinaram‑me...

‑ Que indecente! Passam por cá e examinam‑te, sem mais nada...

‑           O nosso velho médico está com medo.

‑           Isso era o que faltava. O velho anda por aí a lamentar‑se de que está completamente incapaz...

‑           Leo, as crianças!

‑           Elas não percebem.

‑           Percebemos, sim! ‑ Vanda endireitou‑se, orgulhosa. ‑           O doutor já não consegue fazer chichi...

‑           Estás a ver, Leo!

‑           Devíamos ficar satisfeitos por termos filhos tão inteligentes.

‑           O velhadas também disse: "Minha senhora, estou muito preocupado". Depois mandaram‑me sair do quarto e trancaram a porta ‑ acrescentou Vanda, entusiasmada.

‑ Quem?

‑ O velhadas...

Vanda apanhou uma leve bofetada, o que era completamente errado, dado que ela era uma verdadeira Kochlowsky. Não chorou; ficou calada, mas arreliada. Jenny, que lhe endereçou um risinho, foi fulminada por um olhar da irmã.

‑           E depois, o que aconteceu? ‑ perguntou Kochlowsky enquanto cortava o rolo de couve no seu prato.

‑ O doutor Kreuzer examinou‑me cuidadosamente e depois encorajou‑me.

‑           Fez o quê? ‑ Kochlowsky deixou cair a faca no prato.

‑           Ele disse: "pode aguardar o parto com alegria! Está tudo bem. E eu estou sempre ao seu dispor, dia e noite". Isso encorajou‑me.

‑           Mas querida, tu tinhas medo?

Sofia acenou afirmativamente e confessou, baixinho:

‑           Tenho muito medo. Eu sempre tive medo... cada vez que estava grávida... entrava em pânico.

‑ E... e nunca me falaste nisso?

‑ Para quê, Leo? O que terias respondido? "Milhões de mulheres têm filhos, não estás só." Isso teria sido algum consolo?

‑ Vem aí a cegonha! ‑ interrompeu Jenny, batendo palmas.

‑ Papá, ela é mesmo burrinha! ‑ reclamou Vanda com ar superior. ‑ Todos sabem que é Deus que faz crescer o bebé na barriga da mamã.

Kochlowsky estava abalado, perdera o apetite. "Ela sempre teve medo... pânico... antes de cada um deles nascer. E eu nunca dei por nada. Têm todos razão: sou um brutamontes. Nunca mereci este anjo. Arranquei‑a do seu lugar acolhedor, levei‑a para longe, fiz‑lhe quatro filhos e ela nunca disse nada, porque me ama. Como sou pobre, comparado com ela! Se as crianças não estivessem aqui, ajoelhar‑me‑ia e choraria no seu colo. Sinto‑me tão mal...

‑ E agora... agora não tens medo? ‑ perguntou devagar.

‑ Tenho, sim... até a criança ter nascido. Mas... não estou só... milhões de mulheres no mundo...

Kochlowsky levantou‑se da mesa e saiu. Foi para a sala, sentou‑se na sua poltrona e tapou a cara com um jornal. E depois as lágrimas correram‑lhe silenciosamente pelas faces.

 

Outra rapariga nasceu e foi baptizada de Sofia, por ter nascido sob tanto medo. Embora, afinal, tivesse sido o parto mais fácil de todos. O doutor Kreuzer injectara a Sofia um medicamente novo, que fora experimentado em Leipzig e que a pôs a dormitar. Os seus músculos não se contraíram, as contracções perderam o medo que as acompanhara e depois de duas horas a criança nasceu. Kochlowsky nem teve tempo para se irritar.

Willibald Hammerschlag, que durante o parto estava em casa de Kochlowsky, para apoiar o seu amigo, abriu uma garrafa de conhaque. E enquanto no quarto ao lado a parteira tratava do recém‑nascido e da mãe, que exausta mas infinitamente feliz escutava o choro suave da menina, na sala começavam a soar as canções dos quatro homens aliviados. O velho médico também viera, cheio de preocupação. Ao erguer o primeiro copo, exclamou:

‑           Brindemos à misteriosa força do homem que ama. Sinto‑me com vontade de lhe despejar o copo na cara, Kochlowsky.

‑ É livre de fazê‑lo! ‑ replicou Kochlowsky, inclinando a cabeça para a frente. ‑ Hoje até estou na disposição de lamber o conhaque do chão... céus, que mulher que eu tenho!

‑           Ele sempre diz isso a seguir! ‑ O velho médico fez um gesto depreciativo. ‑ Não lhe dêem ouvidos, amigos. Brindemos à mãe e à criança.

 

Aconteceu no fim do Outono de 1896, mais exactamente numa quarta‑feira, quando Kochlowsky ia no seu coche à casa florestal e decidiu fazer um pequeno desvio para ir beber uma cerveja gelada a casa.

Aproximou‑se da casa pelas traseiras, parou em frente ao portão do jardim e desceu. Mas deteve‑se de imediato. como petrificado, e abriu a boca para soltar um grito. Porém, aquilo que viu cortara‑lhe a voz e o grito ficou‑lhe preso na garganta.

Na relva em frente ao estábulo, Reckhardt trotava em círculos... e nas suas costas estava sentada, sem sela, Vanda, a pequena atrevida, segurando entre os braços o pequeno Leo, que guinchava de alegria. Reckhardt, com plena consciência da sua tarefa, andava devagar e com muito cuidado. Mas de repente hesitou; parecia adivinhar que algo ia acontecer e parou.

‑ Continua! ‑ incitou~ Vanda com a sua voz clara. ‑ Recki, continua!

‑ Brrrrr! ‑ berrou Kochlowsky, precipitando‑se para o cavalo. ‑ Fica quieta, Vanda! Não te mexas. Será que ficaste completamente doida?!

Mas Reckhardt não obedeceu: começou a mover‑se lentamente, em direcção ao banco de jardim, e só parou quando lá chegou. Vanda escorregou para o chão e depois ajudou o seu irmão Leo a descer. Via‑se que não era a primeira vez que o fazia.

Kochlowsky alcançou‑os, quase sem fôlego, estreitou contra si Leo, que agora chorava, e olhou alternadamente para a filha e para o seu maravilhoso cavalo. Reckhardt mexia as orelhas e tinha as narinas abertas.

‑ Há quanto tempo andas a fazer isto? ‑ perguntou Kochlowsky num tom de voz severo. O seu medo transformava‑se em exasperação. ‑ Há quanto tempo?

‑ Há muito tempo, papá...

‑ Com o Leo?

‑ Primeiro, sozinha...

‑ Tu montaste assim o Reckhardt? Sem sela?

‑ Eu fui ter com ele ao estábulo e disse: Recki, vais comigo para o jardim. E vais portar‑te bem! O papá disse que só um Kochlowsky te podia montar. Eu sou Vanda Kochlowsky, por isso posso montar‑te...

‑ E então? ‑ Kochlowsky fitou Reckhardt. ‑ O que foi que aconteceu?

‑ Trouxe‑o aqui, até ao banco do jardim, e montei‑o.

‑ E depois?

‑ Andámos sempre às voltas, papá.

‑E o Leo?

- Só o trouxe mais tarde, e disse ao Recki: este é o Leo Kochlowsky. Ele também te pode montar! E o Recki fungou, como se quisesse dizer que sim. ‑ Vanda inclinou‑se para a frente e acariciou a garupa de Reckhardt, mas Kochlowsky bateu‑lhe na mão. Ela olhou para o pai com espanto, quase perplexa. Por que era que batia nela, em vez de a elogiar? Ficara tão orgulhosa por conseguir montar Reckhardt...

‑ Onde está a mãe? ‑ perguntou Kochlowsky, severo.

‑ Em Herzogswalde. Foi às compras.

‑ Ela nunca estava em casa quando tu montavas?

‑Não.

‑ Então ela não sabe de nada?

‑ De nada, papá...

‑ E tu, grande malvada, aproveitaste a oportunidade e... e... ‑ Kochlowsky conteve a respiração. Estava tão irritado que parecia que ia explodir. Sentou o Leo no banco e puxou Vanda para a relva e começou a bater‑lhe. Vanda deixou‑se cair, enterrou a cabeça entre os braços e enrolou‑se como um ouriço. Não chorou; só pensava, com a teimosia de uma Kochlowsky: "Não te vou perdoar. Não vou esquecer isto nunca. "

‑           Levanta‑te! ‑ berrou Kochlowsky. Quando ela não se mexeu, Kochlowsky baixou‑se para levantá‑la à força.

Mas nesse instante sentiu alguém atrás de si. Virou‑se bruscamente e deparou‑se‑lhe Reckhardt. Os olhos castanhos do cavalo tinham uma expressão perigosa.

‑ Estúpido! ‑ rugiu Kochlowsky. ‑ Seu traidor! Não passas de um animal parvo e inútil! Vai‑te embora, estúpido!

Deu um soco no cavalo, mesmo entre os olhos. Ouviu‑se um barulho surdo, mas no mesmo instante o animal atirou a cabeça para a frente, acertando em cheio na cara de Kochlowsky. Leo cambaleou para trás, abalado, abriu a boca para dar um berro, mas o cavalo voltou a atacar, projectando Kochlowsky contra a porta do estábulo. Depois bateu duas ou três vezes com a cabeça na testa de Leo, que ficou como pregado à porta. Só quando caiu para o chão deitando sangue pela boca e pelo nariz, é que o cavalo parou. Recuou três passos, relinchou e depois voltou para a cocheira.

 

Uma hora depois, Sofia regressou de Herzogswalde. Kochlowsky estava deitado de costas ao lado do estábulo, a cara coberta de sangue. Vanda encontrava‑se ao seu lado com uma toalha cheia de sangue e parecia petrificada. Não muito longe, o pequeno Leo brincava na areia, fazendo tortas com forminhas. Era uma imagem de rasgar o coração.

‑ O papá ainda respira ‑ disse Vanda, calmamente. ‑  Mãe, eu acho que ele me queria matar.

O hospital mais próximo ficava em Tharandt.

O doutor Kreuzer veio examinar Kochlowsky, lavou‑o, colocou‑lhe um penso na cabeça e deu‑lhe uma injecção. Ele respirava com dificuldade e continuava inconsciente.

‑ Isto não me agrada nada ‑ disse o médico com cuidado. Sofia estava sentada na borda da cama, segurando a mão do marido. ‑ Trata‑se no mínimo de um traumatismo craniano. E provavelmente também tem uma fractura do crânio. O cavalo deve ter‑lhe acertado com muita força. Vou levar o seu marido para o hospital...

‑ Ele vai sobreviver? ‑ perguntou Sofia com uma voz infantil. ‑ Seja sincero, senhor doutor...

‑ A respiração é relativamente boa...

‑ Mas a fractura do crânio...

‑ Só podemos aguardar.

‑ Eu também vou; quero acompanhá‑lo.

‑ Mas as crianças...

‑ Há três senhoras na vizinhança que podem tratar delas alternadamente.

‑ E a recém‑nascida?

‑ Levo‑a comigo. ‑ Sofia inclinou‑se sobre o seu marido inconsciente e beijou‑o na testa. ‑ Numa situação destas, não o quero deixar sozinho.

‑ Mas afinal, como é que isto foi possível? O seu próprio cavalo, o seu querido cavalo a fazer‑lhe uma coisa destas...

‑ Não sei. ‑ Sofia pensou em Vanda e naquilo que ela dissera: "o papá já não era o mesmo. Parecia um fantasma!" Se as coisas realmente haviam sido como Vanda as descrevera, então Kochlowsky estava a ser derrotado pelo próprio Kochlowsky. Que destino incrível!

‑ O que vai acontecer ao cavalo?

- Vou mandá‑lo para os estábulos do barão.

O coche para o transporte de doentes tinha suspensão macia e era puxado por um cavalo forte. Estava equipado com um grosso colchão e um banco para os acompanhantes. Kochlowsky foi cuidadosamente deitado no colchão. Cobriram‑no e partiram, andando sempre a uma velocidade reduzida para evitar grandes solavancos. Tiveram que passar pela floresta de Tharandt para chegarem ao hospital. Foi uma viagem extremamente longa, durante a qual Kochlowsky gemia e mexia‑se de vez em quando, sem porém recuperar a consciência.

O doutor Kreuzer controlava‑lhe regularmente o pulso. escutava‑lhe o coração, ouvia‑lhe a respiração e observava Sofia. Esta estava sentada no banco e durante a maior parte do tempo rezava. Quando fazia uma pequena pausa, inclinava‑se sobre Leo, acariciava‑lhe a cabeça ligada ou molhava as pontas dos dedos com saliva, passando‑os de seguida pelos seus lábios.

Num segundo coche seguia Hammerschlag, com a pequena Sofia ao seu lado num cesto. O mais recente acontecimento, porém, não era do conhecimento de nenhum deles: quando os estribeiros do barão tinham vindo levar Reckhardt, este soltara‑se e fugira a galope, atropelando dois homens. Depois desaparecera na floresta e agora caçavam‑no como a um animal selvagem.

‑ Em que está a pensar, senhor doutor? ‑ perguntou Sofia a certa altura da viagem.

‑ O que será dele se sobreviver. ‑ O doutor Kreuzer disse isto sem hesitar. Era um daqueles jovens médicos que não escondem nada, ao contrário do que é habitual. ‑ Este acidente vai deixar marcas.

‑ Acha que nunca mais ficará completamente bom?

‑ Temos que contar com lesões duradouras. ‑ O doutor Kreuzer pôs a mão no braço de Sofia. ‑ Por enquanto, o cérebro e o coração ainda são os sacrários da medicina Mas isso em breve mudará. Há um homem chamado RSntgen que há dois anos descobriu uns raios que permitem olhar para dentro do corpo.

‑ Isso são sonhos, senhor doutor.

‑ Não, não são. Será possível ver os ossos e todas as outras partes sólidas do corpo, como os pulmões e o coração, numa espécie de imagem baça. Eu também não lhe sei explicar muito bem como é que isso funciona, só li acerca do assunto, mas daqui a alguns anos o corpo será transparente como vidro para os médicos. Haverá uma explosão do conhecimento da medicina e no âmbito da terapia e do diagnóstico. Imagine só se submetêssemos o seu marido a esses tais raios X! Veríamos o sítio onde o crânio está partido e poderíamos verificar se tem um coágulo ou se há esqufrolas que entraram no cérebro... poderíamos ajudá‑lo de uma maneira muito mais eficiente.

‑ Isso será um mundo completamente novo ‑ disse Sofia baixinho, inclinando‑se sobre o seu marido ‑ Mas para Leo virá tarde de mais...

 

Como era de prever, no hospital não havia nenhuma cama vaga, mas por fim foi possível encontrar um lugar num quarto de roupa, onde meteram uma cama. Era um quarto sem janelas e que cheirava a mofo.

‑ Isso não faz mal ‑ disse o médico chefe. Como quase todos os médicos das clínicas, era um cínico. ‑ De qualquer modo, com a ferida que ele tem na cabeça é aconselhável proteger‑se da luz... sempre podemos deixar a porta entreaberta.

 

Durante quatro dias não houve a certeza se Kochlowsky iria sobreviver. Aplicaram‑lhe compressas e fizeram‑lhe uma sangria para baixar a tensão, deram‑lhe medicamentos para o coração e esperaram que tivesse febre. Depois de tudo isso, só restava rezar.

Mas Kochlowsky não teve febre. No quinto dia abriu os olhos. Só conseguiu vislumbrar uma semi‑escuridão à sua volta e depois a cabeça de um anjo, uma cara estreita e pálida enquadrada por longos caracóis dourados.

‑ O que foi... o que foi que aconteceu? ‑ perguntou com Um grande esforço e uma voz fraca. ‑ Estou tão cansado... querida... estive a beber com Hammerschlag...?

- Não, Leo. ‑ Sofia passou as suas mãos frias pelas faces de Kochlowsky e sorriu. ‑ Fica quieto, não te mexas...

‑ Por que é que está tudo tão escuro?

‑ Tem que ser, por causa da tua cabeça...

‑ Eu caí? Foi assim tão grave? Meu Deus, como o Hammerschlag é capaz de beber!

A sua cara contraiu‑se ‑ devia ser um sorriso ‑ e depois voltou a adormecer.

‑ Acho que conseguimos! ‑ declarou o médico chefe mais tarde, depois de ter observado os reflexos de Kochlowsky e de ter feito outros exames. ‑ A partir de agora, é a sua força de ferro que tem que ajudá‑lo a continuar... e nós temos que ter muita paciência.

No décimo dia, Kochlowsky teve permissão para se levantar e andar um pouco pelo quarto. Mas logo de seguida sentou‑se na borda da cama, exausto e coberto de suor. Segurou a mão de Sofia e pela primeira vez perguntou:

‑           Como está o Reckhardt?

Sofia virou‑lhe as costas e ajeitou a almofada em silêncio. Kochlowsky olhou‑a, perplexo.

‑ Levaram‑no para os estábulos do barão?

‑Não, Leo.

‑           Graças a Deus! Ele está bem?

‑Sim...

‑ Quem está a tratar dele? O Hammerschlag?

‑Não... Deus...

‑ Quem?

‑ Deita‑te, Leo. Tens que ficar quieto. ‑ Sofia forçou‑o a deitar‑se, cobriu‑o e pegou‑lhe nas mãos. Ele tremia ligeiramente. Era um tremor contínuo e o médico dissera que esta situação não se alteraria. ‑ Vou contar‑te o que aconteceu... Reckhardt suicidou‑se...

 

O que se passara nas florestas de Herzogswalde era tão incrível que só quem tivesse presenciado a cena podia acreditar.

Depois de o bonito e forte Reckhardt ter atropelado os dois estribeiros e ter galopado para a floresta, um grupo de vinte homens, sob o comando do guarda‑florestal Ursprung, partiu à sua captura.

‑ Não lhe façam mal ‑ avisara o barão Von Finck com muita insistência. ‑ Sei que é um verdadeiro demónio, mas é por isso mesmo que não quero que lhe aconteça nada. Cerquem‑no, estendam as redes e depois amarrem‑no. Cada um de vós receberá dez marcos em ouro de recompensa!

Levaram dois dias para encontrar Reckhardt. Estava na paisagem ondulada entre o monte dos Forcados e o monte do Campo e o seu instinto parecia levá‑lo directamente para a floresta de Tharandt, onde estaria seguro e onde havia áreas suficientemente selvagens para que não o descobrissem. Aí poderia viver livre até ao fim da vida.

Mas agora tinham‑no encontrado no seu caminho para a liberdade absoluta. Reckhardt sentiu logo o perigo, levantou a cabeça e avistou os cavaleiros que surgiam entre os dois montes.

‑ Aí está ele! ‑ exclamou o guarda‑florestal Ursprung, louco de emoção. ‑ Agora temos que cercá‑lo como se fosse um veado ou um javali. Seis de nós vão dar uma grande volta e cortar‑lhe o caminho e outros seis aproximam‑se pelos lados. Os restantes ficam comigo e vão esperar que ele se aproxime. Não terá outra alternativa.

‑ Vai tentar atropelar‑nos ‑ disse o primeiro picador do barão, que era um velho guarda da cavalaria... ‑ Pelo

que eu conheço dessa fera, derruba tudo o que lhe aparecer

pel~o caminho.

- Mas nós temos uma rede e cordas.

- Ele é mais forte que tudo isso.

- Querem que eu tente atraí‑lo com torrões de açúcar? - berrou Ursprung, zangado. ‑ Falar todos nós sabemos! Alguém tem uma proposta melhor?

- Podíamos persegui‑lo até ficar cansado..

‑ Não vale a pena. Muito antes de Reckhardt desistir Já os nossos cavalos estarão exaustos. ‑ Ursprung fez um gesto de mão. ‑ Temos de apanhá‑lo como se estivéssemos no faroeste.

‑ Se conseguirmos isso, ofereço um barril de cerveja!

O primeiro picador bateu com o chicote na sela.

‑ Se continuarmos a conversar é que não o apanhamos de certeza. Ah! Ele avistou‑nos. Está a fugir. Sigam‑no. Esta zona não tem muita visibilidade. Temos de levá‑lo para um descampado...

O cavalo começara a galopar de cabeça erguida em direcção à floresta. Era uma imagem de beleza aliada à força. Ainda tinha as rédeas que Vanda lhe pusera quando o montara com Leo e nas narinas sentia o cheiro do sangue do seu dono.

 

Durante os últimos dois dias, enquanto andara pela região, triste, com a cabeça caída, sem comer e só cheirando a relva, o sentimento de que não voltaria a ver o seu dono Leo tornara‑se cada vez mais forte. A imagem de Kochlowsky a cair para o chão ao lado do estábulo, coberto de sangue, e de Vanda calada e séria a ir buscar uma toalha ao estendal, tentando limpar a cabeça ensanguentada do pai e apenas espalhando mais o sangue, enquanto o pequeno Leo fazia pequenos bolos na areia, ficara‑lhe gravada na memória e repetia‑lhe: "Nunca mais voltarás para o teu dono. Podes ir para onde quiseres. Procura um lugar onde possas viver sozinho."

E assim continuara o seu caminho, seguindo um instinto misterioso que lhe prometia a vastidão da floresta, segurança, comida e, sobretudo, a liberdade total. Já não seria obrigado a nada, mesmo que lhe custasse separar‑se de Vanda e não voltar a ouvir o seu riso sonante ou a sua voz severa, tão parecida com a do pai quando dava ordens. Também se tornara amigo do pequeno Leo, o que demonstrara deixando‑o puxar as suas narinas sem se defender. Tudo isto acabara ‑ o que se seguiria seria a solidão e uma vida sossegada.

Porém, agora que o tinham encontrado ‑ e isso Reckhardt compreendeu imediatamente ‑ tudo mudara. Queriam apanhá‑lo. Os homens que ele ‑ para além de algumas raras excepções ‑ tanto odiava queriam apanhá‑lo e fechá‑lo num estábulo. Quereriam montá‑lo novamente e tentariam obrigá‑lo a ser como os outros cavalos, com a ajuda de açúcar e pancadas, jejuns ou uma bela aveia. Dia após dia teria que ver, ouvir, cheirar e sentir essas pessoas. Seriam elas que mandariam na sua vida e que exigiriam dele que se comportasse como seu súbdito.

Olhou mais uma vez à sua volta, notou que o grupo de homens começara a mover‑se, espalhando‑se e perseguindo‑o num semicírculo. Relinchou, furioso, contraiu os seus maravilhosos músculos e começou a galopar en direcção à muralha verde no horizonte.

‑ Ele está a fugir! ‑ gritou o guarda‑florestal, cravando as esporas no seu cavalo. ‑ Eu bem dizia: é um tipo inteligente! Sabe exactamente o que o espera! Tenham atenção, não pode de maneira alguma escapar para a floresta de Tharandt... se isso acontecer as nossas redes não servirão de nada. Vamos!

No fundo, era uma perseguição completamente inútil. Afinal, quem era capaz de vencer a força de Reckhardt? Ele não carregava qualquer peso, enquanto os cavalos que o perseguiam carregavam os seus cavaleiros. Era uma corrida desesperada, sobretudo se Reckhardt conseguisse alcançar a floresta.

O cavalo aproximava‑se dela a passos largos. A sua cauda esvoaçava ao vento,tinha a cabeça e o pescoço esticados para a frente e o seu corpo era um jogo de músculos a ondular ‑ que maravilhosa imagem! O seu galope soava por toda a paisagem. A floresta aproximava‑se e com um relinchar triunfante o cavalo corria cada vez mais rápido em direcção à liberdade.

Os seus perseguidores não abrandavam. Uma parte desviara‑se para o lado, saíra dos montes e conseguira alcançar o descampado, podendo assim avançar mais rapidamente. Além disso, tinham começado a disparar tiros para o ar, chamando a atenção da vizinhança e incitando‑os a ajudarem‑nos.

O cavalo arrebitou as orelhas, abriu as narinas e redobrou a sua velocidade. Previu o perigo e preparou‑se para a hipótese de encontrar uma nova barreira. Não hesitaria, continuaria sempre em frente, passando por cima de tudo e de todos.

Reckhardt chegou à beira da floresta, mas aí encontrou o primeiro obstáculo. Alarmado pelos tiros, um coche de caça parara no caminho. Era um hóspede da estância termal de Hartha, que alugara o coche com um cocheiro para fazer uma excursão pela floresta de Tharandt. A meta final do seu passeio, porém, era a aldeia de Herrndorf, onde ficava a Estalagem "águia", cujo restaurante era conhecido pela excelente cozinha e pela maravilhosa carta de vinhos. Os hóspedes da estância constituíam a maior parte da clientela do restaurante "águia". Na maioria dos casos eram hóspedes que para conseguirem eliminar a gota das articulações eram submetidos a uma rigorosa dieta em Hartha ou Tharandt, mas que de vez em quando viajavam às escondidas para Herrndorf, onde podiam escapar à dieta. Normalmente, encontrava‑se alguém conhecido, hospedado na mesma estância, mas ficava‑se calado. Afinal, pertenciam todos à sociedade secreta dos pecadores.

O conselheiro comercial Wilhelmõen também fazia parte desses pecadores. Estava sentado no coche, a imaginar com prazer o vinho tinto que iria beber dali a pouco, quando de repente se assustou ao ouvir tiros que vinham de bem perto. O cocheiro deteve o coche imediatamente e levantou o nariz como um veado que fareja.

‑           A caçarem nesta época? ‑ perguntou Wilhelmõen, irritado. ‑ E estão a aproximar‑se! Que estranho!

‑           Parece uma perseguição...

‑           Com armas? ‑ O conselheiro comercial encolheu a cabeça. ‑ Devíamos ir‑nos embora daqui, o mais rapidamente possível! Dê meia volta...

Mas era tarde de mais. De repente, um cavalo irrompeu dos arbustos. Era enorme, fungava e suava e por mais bonito que fosse tinha um aspecto perigoso. Esticou a cabeça para a frente, mas, como já não se podia desviar, preparou‑se para dar um grande salto.

‑ Deite‑se! ‑ berrou o cocheiro, tentando saltar da boleia, o que porém não conseguiu. O cavalo saltou por cima do coche e dois dos seus cascos bateram nos ombros do cocheiro fazendo‑o voar pelos ares. O homem soltou um grito agudo e caiu de braços abertos sobre o conselheiro comercial Wilhelmõen.

O toque dos cascos de Reckhardt no cocheiro foi fatídico para o cavalo: o impulso que ganhara foi travado, o salto tornou‑se mais curto do que o planeado, perdeu o balanço e caiu mal, pouco atrás do coche, torcendo a pata dianteira esquerda. Ouviu‑se um barulho horrível, um ranger e estalar, e o cavalo sentiu uma forte dor que se lhe espalhou pelo corpo inteiro até ao cérebro.

Com um relincho, que mais parecia um grito, o cavalo tentou continuar a fuga, mas a dor era tão grande que parou, tremendo e levantando a pata esquerda. Os gritos e os tiros dos perseguidores estavam cada vez mais perto.

Enquanto o cocheiro estava inconsciente, deitado sobre o conselheiro comercial, que berrava por ajuda, Reckhardt coxeava pela floresta, com a força desesperada de quem sabe que já perdeu.

Chegou a uma pequena ravina, sulcada ao longo de milénios por um regato, e que agora lhe cortava o caminho. Na margem havia uma fila de abetos altos pelos quais era impossível uma carruagem passar. E a pequena ravina com o riacho tinha um declive bastante acentuado e entrecortado por raizes, que só dificilmente poderia ser ultrapassado a pé.

Reckhardt von Luisenhof virou a cabeça para trás e escutou. Os seus flancos cobertos de suor brilhavam e tremiam e a sua boca espumava. Os perseguidores estavam muito perto. Conseguiu ouvir como falavam com o homem do Coche e depois viu que se aproximavam, devagar. Eram dez cavaleiros, munidos de cordas e redes. A respiração dos seus cavalos sobrepunha‑se a todos os outros ruídos, incluindo o seu próprio relinchar contido de dor.

- Aí está ele! ‑ exclamou o guarda‑florestal Ursprung, rouco. ‑ Meu Deus, que cavalo! Por que não foge? Por que espera por nós aqui? O que ganha com isso? Tenham cuidado, estou a avisar‑vos! O tipo está a armar alguma! Reparem só nos seus olhos! Está a armar alguma...

O cavalo baixou a cabeça, olhou para a ravina e pela última vez pensou no seu dono. Fora a única pessoa que amara, até ao nascimento de Vanda e mais tarde do pequeno Leo. Depois levantou a cabeça e respirou fundo.

‑           Estendam a rede! ‑ ordenou o primeiro picador do barão Von Finck. ‑ Ele não pode avançar. Ali há uma ravina! Conseguimos apanhá‑lo!

Nesse segundo Reckhardt saltou para o ar. Ursprung observou de boca aberta e com os dedos cravados no arção da sela como o maravilhoso animal se contorceu no ar, voltando‑se de costas para o precipício e batendo no fundo com um barulho surdo. Ainda rolou para o lado e depois ficou imóvel, com a cabeça num ângulo pouco natural.

‑ O que foi isso? ‑ balbuciou o primeiro picador, olhando para baixo, para o riacho. ‑ Isto é inacreditável!

‑           Ele partiu a nuca. Foi um verdadeiro suicídio! ‑ O guarda‑florestal passou as mãos pela cara coberta de suor. ‑ Ninguém vai acreditar nisto. Meu Deus, que cavalo! O seu nome devia ser gravado em pedra...

Juntou as mãos, mas não rezou ‑ afinal, tratava‑se só de um cavalo. No fundo, estava contente por tudo ter acabado assim.

 

Leo Kochlowsky chorou durante um dia. Sofia tentou falar com ele, mas era impossível acalmá‑lo. Sobretudo, era importante nunca dizer: "Era só um cavalo." Isso teria provocado uma tempestade. Ao anoitecer, Kochlowsky deitou‑se na cama, apático, olhando para o tecto com as mãos a tremer mais do que o habitual.

Nessa noite, Willibald Hammerschlag fez‑lhe uma visita. Vinha de Dresden e trazia boas notícias.

O médico‑chefe do hospital de Tharandt não deixara dúvidas: Kochlowsky voltaria a andar, mas ainda não ousava dizer se havia lesões irreparáveis no cérebro. O constante tremer de Kochlowsky e o piscar nervoso no canto dos olhos não lhe agradavam nada.

‑ Que idade tem o seu marido? ‑ perguntara a Sofia. ‑ Quarenta e três? Ainda é muito novo para se retirar da vida activa. Infelizmente, nós, aqui, só o podemos tratar até recuperar a saúde. Mais tarde seria aconselhável levá‑lo para uma clínica especial.

‑ Leo vai para onde for preciso, mesmo que sejam necessários os melhores especialistas... o que importa é que recupere - disse Sofia juntando as mãos.

O médico chefe olhou para ela e engoliu em seco. "É uma criança", pensou. "Tão frágil! E na verdade tem quatro filhos... só quem os viu é que consegue acreditar. Quatro filhos e um marido que talvez nunca mais seja capaz de levar uma vida normal. Tanta coisa que esta pequena e bonita mulher ainda terá que enfrentar..."

‑ Mas o tratamento vai custar muito dinheiro, senhora Kochlowsky. E é impossível dizer quanto tempo demorará.

‑ Eu trabalharei na cozinha da clínica onde Leo for internado. Aprendi a ser cozinheira. Trabalharei para pagar o tratamento.

‑ Duvido que isso chegue. Os especialistas são muito caros e as clínicas especializadas também.

‑ O barão Von Finck apoiar‑nos‑á. E também escreverei aos príncipes Pless, à princesa Schaumburg‑Lippe e ao conde Douglas a pedir pelo Leo. Tenho a certeza de que todos ajudarão.

- A senhora conhece essas personalidades todas? - Perguntou o médico, admirado.

- Conheço. A princesa Schaumburg‑Lippe trata‑me por "sobrinha".

- Ah! São parentes?

- Que eu saiba, não! Fui cozinheira da princesa. - Olhou para o médico com um ar suplicante. ‑ Por favor, escolha o melhor médico do mundo para o Leo. Nós pagaremos tudo...

A conversa entre Hammerschlag e o médico foi similar. Porém, desta vez o médico foi mais explícito.

‑ Pois bem ‑ disse, num tom sério ‑, do ponto de vista financeiro isto de momento parece bastante seguro. De momento... mas durante quanto tempo? É impossível prevermos o fim do tratamento, senhor Hammerschlag. Pode até vir a tornar‑se numa estada prolongada. E depois? Essas personalidades que a senhora Kochlowsky referiu estariam dispostas a pagar o tratamento durante anos e talvez mesmo décadas?

‑ Não posso falar pelos príncipes Pless, nem pela princesa Schaumburg‑Lippe ‑ disse Hammerschlag num tom seguro. ‑ Mas sei que o barão Von Finck estaria disposto a ajudar... e eu também!

‑ O senhor?

‑ Eu ganho bem, sou solteiro, não faço intenções de me lançar na aventura de um casamento e não tenho herdeiros. Além disso, não consigo comer mais do que duas costeletas por refeição e depois de duas garrafas de vinho estou bêbado... de resto, o que hei‑de fazer com o dinheiro que ganho? Não sou suficientemente parvo para o oferecer às mulheres. Decididamente, o Leo pode contar comigo...

‑ Isso é que é uma verdadeira amizade ‑ disse o médico, visivelmente comovido.

‑ Não. ‑ Hammerschlag abanou a cabeça negativamente. ‑ Se pudéssemos, matávamo‑nos um ao outro.

‑ Então por que motivo faz tudo isto por Kochlowsky?

‑ A mãe dele chamava‑se Emma... mas isso o senhor doutor não compreende. Diga‑me o nome de alguns médicos famosos que possam tratar do Leo...

E agora Hammerschlag voltara de Dresden e trazia boas notícias: conseguira arranjar um lugar numa clínica. Leo poderia partir logo que os médicos de Tharandt o considerassem em condições de ser transportado.

‑ A clínica é de primeira! ‑ declarou Hammerschlag a Sofia, bebendo um gole de aguardente de zimbro da sua

garrafa de bolso. ‑ E muito cara. É uma grande mansão com anexos, um enorme jardim, enfermeiras com batas azuis e toucas com rendinhas e quartos que parecem salões. Todas as semanas organizam um evento cultural: um concerto, um quarteto, música de câmara, até os famosos cantores da Real ópera cantam para os doentes. Além disso, há palestras e sessões de leitura. Os médicos parecem vir dos contos de fadas. O médico‑chefe é um tipo muito especial. Quando entrei no seu escritório, levantou‑se, veio ao meu encontro e disse: "Bem‑vindo, barão Lebkowitz!" Eu respondi‑lhe logo! "Há aqui um equívoco, doutor. Eu sou Wil'jbald Hammerschlag!" Ele exibiu um largo sorriso e disse: "Eu sei, eu sei. Incógnito. Mas agora estamos entre nós, barão... " Levei quase dez minutos a convencê‑lo de que realmente sou o Hammerschlag de Herzogswalde. Mas depois demo‑nos muito bem. Digo‑lhe, Sofia, naquela clínica Leo estará em boas mãos. Tem fama internacional. Fica na zona mais nobre da cidade de Dresden, no Veado Branco. Só não me agrada o nome do chefe.

‑ Porquê? ‑ Sofia olhou para ele com os seus grandes olhos azuis, mostrando‑se assustada.

‑ Clinica privada "Doutor Fritz Zemiter"... O "z" também não ajuda... Cemitério é cemitério. Isso importunará Leo. "Ah, sim, foi aqui que eu vim parar", berrará...

‑ O Leo já não berra... ‑ disse Sofia, baixinho. ‑ Oh, meu Deus, se ele voltasse a gritar como antigamente pelo menos uma vez! Mas não, fica calado a olhar para o vazio e nada o consegue irritar. Já nem as enfermeiras ofende... ‑ Olhou para Hammerschlag com um ar interrogativo. ‑ Quanto custa a clínica?

‑ Isso é secundário ‑ esquivou‑se Hammerschlag, tentando escapar à pergunta.

‑ Para mim não é. Eu posso trabalhar na cozinha?

‑ Trabalhar? ‑ Hammerschlag bateu com os punhos nos joelhos. ‑ Que ideia é essa? A respeitável senhora não se vai rebaixar. As contas serão pagas pontualmente, tanto faz se o doente se chama barão Lebkowitz ou Leo Koch'owsky, são todos iguais. Trabalhar na cozinha: que ideia! Ninguém tem nada que saber de onde vem o dinheiro. Ele existe e pronto!

‑ Mas as crianças e eu também temos que viver...

‑ Meu Deus, que pensamentos! Deixe isso connosco.

‑ Não, eu não quero que me ofereçam nada. Não quero viver de esmolas. Eu posso trabalhar... ‑ Os seus olhos faiscavam de raiva. ‑ Sou eu quem alimento os meus filhos e mais ninguém!

‑ Calma, calma... ‑ Hammerschlag pôs o braço à volta dos ombros magros de Sofia num gesto bondoso. - As coisas resolver‑se‑ão. O mais importante é que tenhamos encontrado um bom especialista para o Leo.

 

Oito dias depois, Leo foi levado para a clínica de Dresden. Na semana anterior, Sofia deixara as três crianças mais velhas na vizinhança, falara com o barão, que lhe garantira todo o apoio necessário e agora estava pronta para acompanhar o seu marido junto com a pequena Sofia. Jacky. o cão, ficava com Hammerschlag, não muito longe de Vanda que ia ficar em casa de uma colega da escola. Fora difícil convencê‑la a lá ficar; queria à força ir para Dresden com a mãe.

‑ Em Dresden também há escolas! ‑ retorquiu, fulminante, quando recorreram à escola como argumento.

‑ E onde vais dormir?

‑ Ao lado do papá, no sofá. Eles podem colocar um sofá no quarto, ou não? Já que são tão famosos, também devem ter um sofá a mais...

‑ Uma verdadeira Kochlowsky! ‑ disse Hammerschlag, reconhecido, puxando Vanda para perto de si. ‑ Realmente, não precisamos de nos preocupar com a continuidade do espírito Kochlowsky...

Por fim, foi possível convencer Vanda a ficar em casa da colega.

‑ É só por uma semana, querida Vanda ‑ disse Sofia tentando acalmá‑la. ‑ Depois eu volto. Só quero estar com o papá enquanto ele se instala. Tu sabes como ele é~.

Mas Leo Kochlowsky mudara. Quando já estava no hospital de Tharandt disse a Sofia:

‑ Aquela enfermeira com a borbulha na cara, essa Erna, é uma malvada!

Porém, não o disse à própria enfermeira, como teria feito antigamente. Suportou tudo sem se queixar: exames, injecções, as técnicas modernas com a excitação eléctrica de nervos, a ginástica e os testes de reflexo. Só quando estava sozinho, à noite, ficava sentado na cama, a olhar para as suas mãos trémulas.

"Nunca mais poderei segurar uma caneta na mão. Já não terei forças para conduzir um cavalo", pensava. "Com estas mãos não sou capaz de fazer nada... nem mesmo de acariciar uma mulher. Os meus dedos limitam‑se a ser dez extremidades que tremem, mais nada. Como é que isto vai ser? Tenho quatro filhos para alimentar. O que farei eu sem as minhas mãos?"

O médico‑chefe dava respostas pouco elucidativas a estas perguntas, como os médicos sempre fazem quando estão inseguros. "Tenha paciência!", "tudo se resolverá!" ou "quando se espera por milagres eles não vêm!". Frases estúpidas a que Kochlowsky respondia com "seu estúpido!*; porém, só depois de o médico ter saído do quarto.

O transporte para Dresden causou alguns problemas. Estavam indecisos entre um coche com boas suspensões ou o comboio. O comboio era mais rápido. A partir da estação de Dresden apanhariam um coche que os levaria por Bíasewitz e a ponte de Elba, para o Veado Branco. A clínica privada "Doutor Fritz Zemiter" ficava perto do monte do Lobo, ao lado de uma boa estrada... portanto, a melhor escolha parecia ser o comboio.

Hammerschlag, naturalmente, dispôs‑se a acompanhá-los. Alugaram um compartimento e correram as cortinas. O cobrador cumprimentou Kochlowsky respeitosamente - quem alugava um compartimento inteiro tinha que ser uma pessoa importante ‑ e depois deixou‑os. A pequena Sofia dormia nUm cestinho. Era Hammerschlag quem a carregava, como se fosse o pai.

A meio da viagem Kochlowsky falou de repente:

- Vocês estão a transportar‑me como se eu fosse um perigoso que é levado para o jardim zoológico...

‑ Se quiseres, podemos levar‑te de volta para Herzogswalde e sentar‑te num canto até teres mirrado completamente ‑ retorquiu Hammerschlag de uma maneira brusca. ‑ O que preferes?

‑ Tenho hipóteses de recuperar?

‑ Se assim não fosse, pouparíamos muito dinheiro.

‑ O barão... tu...

‑ Eu não tenho nada. Tu continuas a receber o teu salário. Além disso, tens um seguro. O barão fez um seguro para todos os trabalhadores.

‑ Não sabia nada disso.

‑ Então ficas a saber! Também não é necessário andares a contar isso por aí. ‑ Hammerschlag mentia sem hesitar ou gaguejar. Quando dizia as coisas assim, pareciam ser mesmo verdade. ‑ Encosta‑te para trás, Leo, e dorme um pouco...

Kochlowsky procurou a mão de Sofia, agarrou‑a com as suas mãos trémulas, encostou a cabeça para trás e fechou os olhos.

‑ Fico contente por estares aqui comigo ‑ confessou, feliz. ‑ Eu falei com o médico, querida; daqui a algumas semanas já estarei bom. Sobretudo se estiveres comigo e esse horrível Hammerschlag desaparecer da minha frente!

‑ De facto, ele está melhor. ‑ Hammerschlag esfregou as mãos. ‑ Só falta expulsar o médico‑chefe do quarto e poderemos levá‑lo para casa.

 

Chegaram à clínica no Veado Branco ao princípio da noite. Uma jovem e bonita enfermeira, que com a sua touca de rendinhas parecia uma boneca, recebeu‑os e sabia do que se tratava. Pouco depois apareceu um enfermeiro que conduziu Kochlowsky, Sofia e Hammerschlag para o quarto n.o 14, um quarto com muita luz e uma grande janela que dava para o jardim. Estava decorado como um salão.' só a cama encostada à parede não combinava muito bem. E Hammerschlag reparou num detalhe, que porém não comentou: a porta do quarto não tinha puxador, nem a janela tinha manípulo. Era uma luxuosa reclusão!

‑ Então é isto ‑ disse Kochlowsky, sentando‑se numa

grande poltrona. ‑ Nunca vivi assim tão bem. Não acham estranho? É preciso tornar‑se um aleijado para se poder gozar disto.

Nesse instante Sofia teve que se esforçar para não desatar a chorar. Começou a desfazer a mala de Leo e ficou agradecida quando Hammerschlag começou a conversar.

‑ Porta‑te bem quando vier o médico chefe... é pequeno e gordo, mas isso não é motivo para o tratares mal.

‑ Animal!

‑ Se alguém te conseguir pôr bom, então será ele.

‑ Ele também tratará das minhas mãos trémulas? - perguntou Kochlowsky, baixinho.

‑ Sim. Só não podes perder a paciência. Essas coisas levam tempo. E tu tens tempo.

‑ Quem é que tratará da fábrica de tijolos?

‑ O teu primeiro contabilista, o senhor Kieselbach.

‑ Aquele palerma? Meu Deus! Manda‑me um relatório exaustivo todas as semanas, estás a ouvir? Um relatório que descreva a verdade... ou então quando eu voltar podes emigrar.

‑ Escrever‑te‑ei tudo, Leo.

Nesse instante a pequena Sofia começou a chorar. Kochlowsky foi ter com ela, tirou‑a do cestinho e andou pelo quarto, apertando‑a contra o seu corpo e falando com ela. Foi assim que o doutor Zemiter o encontrou quando o veio cumprimentar. O médico era realmente pequeno e redondo como uma bola e era difícil imaginar que fosse assim tão famoso. Mas não fora Napoleão também um homem pequeno?

‑ Zemiter ‑ apresentou‑se o chefe da clínica com uma curta mas correcta vénia. Beijou a mão a Sofia, fez um gesto de cabeça em direcção a Hammerschlag e depois voltou a dirigir‑se a Kochlowsky. ‑ O quarto é do agrado do senhor conselheiro comercial?

‑ O senhor conselheiro comercial está plenamente satisfeito ‑ interveio Hammerschlag rapidamente. ‑ De facto, é Um quarto muito bonito.

- O que está a acontecer aqui? ‑ Kochlowsky devolveu a pequena Sofia ao cesto e encheu os pulmões. - Isto é alguma companhia de teatro?!

O doutor Zemiter sorriu ligeiramente e piscou o olho a Hammerschlag. Havia pacientes piores naquela casa.

‑           Qual é o jornal preferido do senhor conselheiro comercial? ‑ perguntou. ‑ Ser‑lhe‑á entregue todas as manhãs.

‑           Eu não sou nenhum conselheiro comercial!

‑           Claro que não! Qual o jornal?

‑           As Notícias de Criadores de Porcos da Silésia Superior! ‑ gritou Kochlowsky.

Era a primeira vez havia mais de vinte dias que gritava. Sofia juntou as mãos, feliz, e a cara de Hammerschlag brilhava como se tivesse bebido duas garrafas de vinho tinto. O doutor Zemiter parecia achar este acesso de raiva absolutamente normal; não lhe deu a menor importância.

‑           Então deseja o Diário da Saxónia ‑ disse num tom de voz simpático. ‑ Daqui a uma meia hora vemo‑nos nos exames médicos. Senhora conselheira comercial, os meus cumprimentos.

Voltou a fazer uma curta e correcta vénia e saiu do quarto, depois de ter aberto a porta com uma chave especial. Kochlowsky respirava pelo nariz, nervoso.

‑ O homem é doido! ‑ exclamou.

‑ Aquele era o chefe da clínica, Leo. ‑ Hammerschlag teve vontade de beber uma aguardente. A sua garrafa de bolso estava vazia havia muito.

‑           Querem que eu me cure aqui? Sofia, podes fazer as malas! Vamos voltar para Herzogswalde! Por favor, despache‑se, senhora conselheira comercial...

‑Leo... ‑ Sofia ergueu as mãos num gesto desesperado, mas Kochlowsky só abanava a cabeça. ‑ Tu aqui és o conselheiro comercial Leo Kochlowsky...

‑           Sou o quê?

‑           Ou achas que eles aceitariam uma reserva de quarto para o responsável pelos tijolos, o senhor Kochlowsky? Esta clínica tem longas listas de espera. Foi só por o barão ter telefonado pessoalmente ‑ a clínica até tem um telefone ‑ e por ter dito que eras o conselheiro comercial Kochlowsky, seu grande amigo, que eles reservaram um quarto...

‑ Ah, quer dizer que aqui as coisas funcionam assim.

‑Sim.

‑ Então eles que vão para o Inferno! Se para esta gente as pessoas só contam a partir do conselheiro comercial para cima... Ah! Ainda verão! Daqui a pouco, durante os exames médicos, vou tratar daquele gordo!

Ainda proferiu alguns impropérios até finalmente aparecer uma bonita enfermeira para o levar aos exames.

‑ Leo, pensa em nós, na tua família, não estragues tudo... ‑ suplicou Sofia com uma voz penetrante e com lágrimas nos olhos.

Kochlowsky acenou afirmativamente, olhou para o peito da simpática enfermeira e seguiu‑a em silêncio.

A porta fechou‑se atrás dele. Hammerschlag respirou fundo, aliviado.

‑ Não se preocupe! ‑ disse para Sofia que andava pelo quarto, nervosa. ‑ Mesmo que ele seja um bruto, aqui perdoam‑lhe tudo.

‑ Eu não sei se esta clínica é indicada para o Leo.

Sofia foi até à janela e olhou para o parque, mergulhado na escuridão. ‑ Afinal, ele não é louco!

‑ Esta clínica não trata só de doentes mentais, é também um hospital especializado em neurologia. Aqui até são feitas operações ao cérebro. Vamos esperar para ouvir o que o doutor Zemiter diz. Podemos sempre levar o Leo de volta...

Sofia fez um gesto afirmativo e sentou‑se ao lado do bebé. Era tão frágil que Hammerschlag voltou a pensar: "Como é que ela aguenta tudo isto? De onde retira toda essa força? Esta mulher é um milagre!"

Esperaram que Kochlowsky regressasse do exame. Quando apareceu, Sofia saltou da poltrona e Hammerschlag precipitou‑se para ele.

- Como é que foi, Leo? ‑ exclamou Sofia. Se tivesse reparado na cara da enfermeira, já saberia a resposta. Hammerschlag olhou para ela e engoliu em seco. ‑ Querido, o que disse o médico chefe?

‑ Pouco! ‑ Kochlowsky sentou‑se na sua poltrona ‑ Quando me perguntou se Bismarck era um homem de Estado ou um arenque, atirei a lâmpada da secretária dele contra a parede. A partir daí passou a fazer perguntas menos estúpidas. E quando eu lhe disse que tu tinhas preparado a melhor sopa de lentilhas do mundo para Bismarck, no palácio de Pless, deu‑me os parabéns e disse: "o senhor realmente tem a melhor mulher do mundo!" Isso fez com que eu lhe perdoasse... Tu és mesmo a melhor mulher do mundo...

Ao saírem da clínica ‑ Hammerschlag alugara dois quartos num pequeno, mas elegante hotel ‑ cruzaram‑se com o doutor Zemiter.

‑ Sinto muito pelo que o meu marido fez à sua lâmpada ‑ disse Sofia, cheia de vergonha. ‑ É claro que nós pagaremos uma nova.

‑ Mas isso não tem importância, senhora conselheira comercial. ‑ O doutor Zemiter sorriu ligeiramente. Pequenos incidentes como este apareciam mais tarde na conta, discretamente enumerados como medicamentos extra. ‑ Isso faz parte do nosso quotidiano. Pelo que posso dizer até ao momento, pode ter grandes esperanças de ver o seu marido recuperado. Os meus cumprimentos, senhora conselheira comercial.

‑ Quando é que lhe dizemos? ‑ perguntou Sofia no coche a caminho do hotel.

‑ Dizemos o quê a quem? ‑ Hammerschlag fitou‑a com um ar interrogativo.

‑ Ao médico‑chefe... quando é que lhe dizemos que eu não sou nenhuma conselheira comercial...

‑ Nunca!

‑ Mas isso não pode ser.

‑ Essa pequena mentira vai ajudar imenso o Leo. E então quando o conde Hardenfeld o vier visitar...

‑ Quem é esse conde?

‑ Peter Helms, o estribeiro do barão. Eu digo‑lhe

ele sabe agir como um conde, melhor do que qualquer conde verdadeiro...

‑ Willibald, o senhor é incrível!

‑ Sim; e o conde Von Hemming também virá visitar o Leo...

‑ Esse é o seu contabilista?

‑ Não. É o segundo picador do barão! Com estas visitas todas, o doutor Zemiter fará certamente um grande esforço para curar o tão influente conselheiro comercial Kochlowsky.

‑ Acha que isso será possível.

‑ Se não acreditamos nisso, Sofia, então podemos levar o Leo já de volta para Herzogswalde. Temos que ter paciência, muita paciência...

Ela acenou afirmativamente, encostando a cabeça ao seu ombro, cansada, e depois adormeceu. Hammerschlag manteve‑se hirto, sentado no banco... à sua esquerda a pequena Sofia dormia no cesto e à direita a grande Sofia dormia encostada ao seu ombro.

Sentiu‑se extremamente feliz.

 

Leo Kochlowsky permaneceu três meses na clínica privada "Doutor Fritz Zemiter", em Dresden.

Enquanto isso, em Herzogswalde a vida continuava no seu ritmo habitual. Sofia voltara para as crianças e a fábrica de tijolos era gerida pelo contabista Kieselbach. Todas as semanas Hammerschlag escrevia um relatório a Kochlowsky, que lhe respondia imediatamente com novas ordens. Vanda e Jenny foram visitar o pai duas vezes.

Kochlowsky estava com bom aspecto, bastante recuperado e com forças. Como era seu hábito, tinha a barba minuciosamente aparada e o cabelo preto bem penteado e com um risco perfeito. Vestia os seus fatos de tecido inglês e botas brilhantes, como um verdadeiro conselheiro comercial. Depois de uma semana desistira de tentar explicar ao doutor Zemiter e ao pessoal da clínica que não era conselheiro comercial, pois estes apenas sorriam e continuavam a tratá‑lo pelo título. Com as bonitas e jeitosas enfermeiras Leo mantinha uma boa relação. A relação era tão boa que duas delas pediram para serem dispensadas de tratarem dele.

‑           O senhor conselheiro comercial tenta sempre apalpar‑nos ‑ explicaram, envergonhadas, e o doutor Zemiter obrigou‑as a jurarem que nunca contariam isso a ninguém. Depois escolheu uma enfermeira velha e mal‑humorada para se ocupar de Kochlowsky, e esta, mal começara o seu novo trabalho, foi apresentar queixa, profundamente ofendida, dizendo que ele a tratava por coruja e outras coisas piores.

Depois de quatro semanas, leeo Kochlowsky foi a Berlim, ao famoso Hospital da charité, acompanhado por um jovem médico. Ali haviam recebido um novo aparelho de raios X, por se tratar do "melhor hospital da Alemanha". Com a ajuda deste aparelho foi possível verificar que um pequeno coágulo do tamanho de uma avelã endurecera e se havia encapsulado no cérebro de Kochlowsky.

O doutor Zemiter reuniu‑se com os seus médicos e chegaram à conclusão que uma operação ao cérebro não seria necessária. O risco que se correria ao submetê‑lo a uma operação tão melindrosa era maior do que deixar o coágulo onde estava.

Kochlowsky não tinha contacto com os outros doentes. Ia passear sozinho no enorme jardim e evitava cruzar‑se com quem quer que fosse, desde que uma ilustre senhora ficara parada, como petrificada, à sua frente. Fitara‑o de cima a baixo e depois perguntara:

‑           O senhor não é Carlos, o Grande?

‑           Não ‑ respondera Kochlowsky. ‑ Eu sou Pepino o Pequeno...

‑           Seu nojento! ‑ exclamou a senhora, e desmaiara, caindo no canteiro.

Desde então Kochlowsky procurava recantos do parque onde não se encontrava com ninguém. Fora aqui que se refugiara com Vanda e Jenny, quando estas o tinham vindo visitar, enquanto Sofia conversava com a enfermeira chefe.

‑           As pessoas aqui são todas loucas? ‑ perguntou Vanda. Estavam sentados num banco pintado de branco, ao lado de uma sebe de buchos, e olhavam para o caminho principal do parque. Jenny, calada como sempre, sentara‑se com eles.

‑ Quase todas. Quem foi que te disse isso?

‑ O tio Willibald.

‑ Ele deve saber.

‑ E por que é que tu estás aqui? Tu também estás louco, papá?

‑ Isso, a própria pessoa nunca sabe. Todos nós temos as nossas manias.

‑ Eu também, papá?

‑ Claro que sim.

‑ E a mamã?

‑ Ela também, senão não teria casado comigo.

‑ Quem é o mais louco aqui, papá?

‑ O médico‑chefe. Mas não digas issO a ninguém...

Porém, durante a despedida Vanda disparou ao doutor

Zemiter:

‑ O senhor é mesmo um grande doido!

E o doutor Zemiter, mais tarde, pós‑se a pensar onde era que uma criança tão pequena podia ter aprendido uma coisa dessas. Pelos vistos, nem os filhos dos conselheiros comerciais gozavam de uma educação perfeita.

No fim da terceira semana, Eugen Kochlowsky apareceu na clínica. Veio sem se anunciar. De repente estava no quarto de Kochlowsky e exclamava:

‑ Meu pequeno irmãozinho! Como estás? Meu Deus, as coisas que se ouvem dizer de ti...

‑ Enfermeira! ‑ berrou logo Kochlowsky, correndo em direcção à porta. ‑ Fora com este homem! Ou ele faz parte da terapia de choque?

Eugen, que entretanto ficara quase tão redondo Como o doutor Zemiter, o que pelo menos tornava o seu corpo um pouco mais proporcional, sentou‑se numa poltrona com Um gemido e tocou com a bengala na barriga do irnão

- Ninguém enviou notícias para Pless. Nada! Só quando Cheguei a Herzogswalde é que a Sofia me contou tudo. Dei logo meia volta e vim ter contigo. Como é que te posso ajudar?

‑           Desaparecendo imediatamente daqui. ‑ Kochlowsky olhou para Eugen com um ar inquiridor. ‑ Tu também és conselheiro comercial?

‑           Não, sou dramaturgo chefe do teatro de Breslau, Mestre em Ciências Literárias. Hammerschlag e eu combinámos isso. Leo, se tiveres problemas financeiros... eu, entretanto, ganho muito bem como escritor, os meus livros vendem‑se como pão quente; consegui...

‑           As minhas poupanças chegam. Isto dura no máximo mais algumas semanas, depois volto a trabalhar. Olha para as minhas mãos: quase já não tremem! ‑ Estendeu os braços. As suas mãos ainda tremiam ligeiramente, mas já não parecia ter calafrios. Eugen fez um sinal de concordância com a cabeça. ‑ O que te traz para estes lados?

‑           Estou a caminho de Radebeul.

‑           O que vais lá fazer?

‑           Vou visitar o meu colega Karl May. Ele construiu uma grande casa em Radebeul. Baptizou‑a de "Casa Shatterhand" E quero felicitá‑lo.

‑           Karl May? Nunca ouvi esse nome. Ele também escreve romances?

‑           Como havias tu de conhecê‑lo, se nem sequer conheces os romances do teu irmão!?

‑           Isso seria exigir de mais!

‑           O mundo não é só feito de fábricas de tijolos ‑ retorquiu Eugen, irritado. ‑ Ainda virão os tempos em que cada alemão terá lido um livro de Karl May.

‑           E um de Eugen Kochlowsky!

‑           Isso seria bom de mais!

‑           O mundo vai embrutecer. ‑ Kochlowsky sentou‑se em frente do irmão. ‑ E o que se conta lá fora sobre mim?

‑Nada.

‑           Mentira! Claro que as pessoas falam! Já não contam comigo, pois não? Para eles, sou um inválido! A porta foi fechada e estou atrás dela... e como vês, é uma porta sem puxador. Mas será que todos me consideram louco? Aqui.

sou tratado como uma espécie rara. Acho que se cagasse contra a parede até aplaudiam...

‑ Como o senhor conselheiro comercial pagaria os danos, creio que realmente aplaudiriam.

‑ Eugen. ‑ Kochlowsky inclinou‑se para a frente ‑, como bom e simpático irmão, por favor sê sincero: eu estou realmente louco?

‑Não.

‑ O que sou eu, então?

‑ Um monstro!

‑ Isso tranquiliza‑me. ‑ Kochlowsky encostou‑se para trás. ‑ O Reckhardt deu‑me um grande abanão, mas com cada dia que passa sinto‑me melhor. As minhas mãos também não tremem tanto. Até me sinto capaz de arrancar árvores!

‑ É melhor começares a treinar com a relva...

‑ Quando te vejo a ti, assim obeso, sinto‑me um atleta. Como é que se chama o teu novo livro?

‑ Um Olhar Fiel...

‑ Que horror! E as pessoas lêem isso?

‑ Devoram o livro.

‑ Se eu fosse Karl May, dava‑te um tiro em frente à nova casa. Isso torná‑lo‑ia realmente eterno. Quando é que continuas a tua viagem?

‑ Amanhã de manhã. Hoje à noite vamos jantar juntos. O médico chefe deu‑me permissão para te levar. Vamos para a pequena aldeia italiana à beira do rio Elba e aí comemos até não conseguirmos dizer um pio. De acordo, irmãozinho?

 

Foi uma noite plena de harmonia. Voltaram para a clínica só perto da meia‑noite. Kochlowsky estava bêbado, o que se notou sobretudo quando disse à enfermeira do turno da noite:

‑ Não olhes para mim com esse olhar de vaca! Se tiveres algo para me dizer, vem comigo para a cama...

A enfermeira riu‑se, respondeu educadamente:

- Boa noite, senhor conselheiro comercial! ‑ e depois abanou a cabeça.

Quando Kochlowsky acordou na manhã seguinte, já Eugen estava a caminho de Radebeul para visitar o seu colega Karl May.

 

Como foi mencionado, Kochlowsky permaneceu três meses na clínica do doutor Zemiter, em Dresden. O barão Von Finck dava o dinheiro e Hammerschlag transferia‑o num envelope com o remetente: secretariado privado do conselheiro comercial Kochlowsky. Para um cidadão normal a soma era monstruosa, sobretudo aquilo que se enumerava como "despesas extra". Só a viagem para Berlim para fazer os raios X equivaliam a dois salários de Hammerschlag.

‑ Trabalharei em casa do barão para lhe pagar tudo de volta ‑ declarou Sofia, decidida. ‑ Mesmo que leve um ano...

Mas não foi necessário tanto tempo. No final do terceiro mês o tratamento de Kochlowsky teoricamente acabara, o que porém não queria dizer que o doutor Zemiter desse alta ao tão rico conselheiro comercial, declarando‑o curado ou pelo menos recuperado. Não, as coisas passaram‑se de uma maneira um pouco diferente: num dia de Outono, cheio de sol, Kochlowsky vestiu o seu paletó e foi dar um passeio pelo parque. Como era hábito, procurou os caminhos mais solitários. Quando chegou a um portão rodeado de arbustos, abriu a fechadura usando um método de ladrões, com um prego dobrado, e saiu do recinto da clínica.

Desceu a pé até ao rio Elba, sempre a passos largos, atravessou‑o pela ponte, perguntou a um polícia onde ficava a casa de penhores, encontrou a loja, que ficava numa travessa da rua de Praga, e penhorou o seu paletó. Com o dinheiro comprou um bilhete de comboio para Herzogswalde e quando deram pela sua falta na clínica já ele se encontrava sentado no comboio.

Na clínica estava‑se perante um mistério. O conselheiro comercial não podia ter escapado pela entrada principal, dado que esta era constantemente controlada por um guarda. Como o portão do jardim estava trancado, também não

podia ter sido por ali, pelo que restava só a hipótese de ele se encontrar dentro do recinto da clínica. Começaram a procurar discretamente por todos os cantos. Era admirável como uma casa tão grande proporcionava tantos esconderij os.

Quando Kochlowsky desceu do comboio em Herzogswalde já era noite. O chefe da estação ficou boquiaberto e começou a transpirar de agitação.

‑Senhor... Senhor Kochlowsky... ‑ balbuciou enfim. ‑   O senhor está de volta?

‑ Não; sou um peido visível!

‑ Realmente é o senhor! Bem‑vindo! ‑ exclamou o chefe da estação, quase alegre. ‑ Assim, inesperadamente! Vou já mandar atrelar um coche!

‑ Quero um cavalo! ‑ disse Kochlowsky, quase como se fosse uma ordem.

‑ Como?

‑ Um cavalo, seu imbecil! Eu quero ir para casa a cavalo!

‑ Assim como está? Nesse fato tão elegante?

‑ Posso também despir as calças e montar de rabo nu! Dê‑me um cavalo, seu idiota!

Vinte minutos depois, Kochlowsky cavalgava sozinho pela noite em direcção a casa. O cavalo arfava penosamente... normalmente só puxava carroças e agora estava muito ofendido por alguém ter ousado montá‑lo. O máximo que fazia era andar a trote, não estava disposto a mais. Quando se pensava em Reckhardt, esta cavalgada era uma verdadeira vergonha.

A casa e o grande jardim estavam mergulhados na escuridão, emanando uma grande calma, quando Kochlowsky chegou. Desceu do cavalo, levou‑o para trás da casa, para o estábulo onde em tempos estivera Reckhardt, tirou‑lhe os arreios e pó‑lo na cocheira. Olhou em redor com uma grande saudade. Tudo estava como se dali a pouco Reckhardt voltasse. Sim, até era possível sentir o seu cheiro. Mas agora, só havia esse cavalinho, com a cabeça pendurada e os flancos a tremer. Era como uma profanação.

Quando Kochlowsky saiu do estábulo ouviu Jacky, o cão, a ladrar e a uivar dentro de casa. Acendeu‑se uma luz; era uma lâmpada de petróleo que se movimentava ao longo da janela. Estava muito baixa ‑ devia ser Vanda que a segurava.

E de repente ouviu a voz de Sofia, essa voz tão bonita e tão amada que agora parecia muito corajosa, quando exclamava:

‑ Está aí alguém? Não se aproxime, que eu tenho uma espingarda! Cuidado que eu disparo!

‑ E eu solto o Jacky! ‑ Era a voz de Vanda, um pouco histérica. ‑ Jacky, tem cuidado!

"Claro que ela não tem nenhuma espingarda", pensou Kochlowsky. "Nunca teve uma espingarda. Mas isso até soa bem. Se eu fosse um ladrão pensaria duas vezes. A minha pequena e corajosa mulher... não há melhor no mundo."

Aproximou‑se um pouco mais e entrou no pátio da casa. Era uma sombra contra o céu pálido.

Nesse instante fez‑se um clarão na janela, seguindo‑se um disparo. Uma bala silvou perto da cabeça de Kochlowsky. Embora não tivesse cumprido o serviço militar, Leo reagiu logo, saltando para o lado e atirando‑se para o chão. Fê‑lo no momento certo, dado que logo depois soou o segundo tiro. Ficou deitado na sua pequena horta de couves.

Depois apareceu Jacky, rosnando de raiva e correndo na sua direcção, mas de repente travou, quando ia saltar. Agachou‑se, cheirou o homem e depois começou a uivar de uma maneira completamente diferente. Era um uivar que exprimia uma grande alegria. Debruçou‑se sobre Leo, lambendo‑o. Saltava para cima dele e corria à sua volta, fazendo barulhos pouco habituais para um cão. Parecia chorar de alegria.

‑ Jacky, meu querido ‑ balbuciou Kochlowsky. ‑ Sim. sim, sou eu! Jacky! Oh, meu pequeno. Meu malandro! A dona afinal tem mesmo uma espingarda! Quase matou o dono. Vai ter com ela... vai... corre... dize‑lhe quem está aqui, deitado nas couves. Se eu levantar a cabeça ela dispara outra vez... vai, Jacky...

Será que o cão o compreendia? De qualquer maneira, parou de saltar e de lamber Kochlowsky, correu para a casa e desapareceu pela porta entreaberta. Pouco depois regressava, acompanhado por alguém, e vinda da casa ouvia‑se a voz desesperada e cheia de medo de Sofia:

‑Vanda! Fica aqui! Estás doida? Fica aqui! Vanda...

Lá dentro a lâmpada de petróleo vacilava de um lado para o outro. Adivinhava‑se um vulto frágil em camisa de dormir e com o cabelo solto.

Leo Kochlowsky pôs‑se de joelhos devagar, recebeu Jacky que saltou para cima dele e disse para o pequeno vulto que se aproximava a correr:

‑ Vanda, minha querida... por que é que vocês me querem matar?

Como se fosse absolutamente normal o pai aparecer a meio da noite deitado na horta, Vanda ficou parada em frente a Kochlowsky, olhou‑o com a cabeça inclinada e por fim virou‑se e avisou com uma voz clara:

‑ Podes guardar a espingarda, mamã... é só o papá...

Ao pé da porta ouviu‑se o barulho da lâmpada de petróleo a estatelar‑se no chão de pedra.

 

No dia seguinte, a clínica do doutor Zemiter foi avisada de que o senhor conselheiro comercial chegara a casa e que o seu secretariado privado solicitava a conta.

Hammerschlag enviou o telegrama, devolveu o cavalo à estação e depois dirigiu‑se a casa de Kochlowsky. Encontrou‑o sentado na cama a ler o jornal, depois de ter tomado um bom pequeno‑almoço. Hammerschlag sentou‑se na borda da cama.

‑ De tudo aquilo que já fizeste, isto foi o cúmulo - disse.

‑ Estou muito orgulhoso ‑ murmurou Kochlowsky.

‑ E como é que isto vai continuar?

‑ Vou voltar a tomar conta da fábrica de tijolos.

‑ Só com a permissão do médico!

‑ Estou farto de médicos. Eles que vão para o Inferno... Eu já estou bom! E consegui‑o fazendo exactamente o contrário daquilo que eles mandavam, sempre que podia. As pilulas e os comprimidos que me davam deitava‑os pela janela ou então enterrava‑os no jardim durante o passeio. E os supositórios ‑ Kochlowsky sorriu, malicioso ‑ mal os tinham posto eu ia à casa de banho e eles voltavam a sair! E o que diziam os médicos, aqueles estúpidos? "Excelente! O senhor não está a notar como reage bem aos medicamentos? Agora está tudo sob controlo." Se eu tivesse engolido aquilo tudo, a esta hora estaria doido! Mas assim sinto‑me bem como os porcos! Não foi Goethe quem o disse?

‑ Mais ou menos. ‑ Hammerschlag abanou a cabeça. ‑ E agora, o que vamos fazer contigo?

‑ Deixem‑me trabalhar em paz.

‑           Primeiro terás que conseguir convencer o barão.

‑ Quando na próxima segunda‑feira ele me vir sentado no meu escritório ficará logo convencido.

‑           Por enquanto é o Kieselbach quem ocupa esse lugar.

‑           Nunca ninguém saiu tão rapidamente de um sítio como ele sairá daí! ‑ retrucou Kochlowsky, dobrando o jornal.

Sofia entrou no quarto. Ouvira aquilo que Leo dissera e encolheu os ombros num gesto mudo, como se quisesse dizer: "O que se pode fazer? Todos sabemos como ele é... acaba sempre por conseguir aquilo que quer."

‑ Foste tu quem deste a espingarda à Sofia? ‑ perguntou Leo desviando o olhar da sua mulher para Hammerschlag.

‑ Sim! Como ela estava sozinha... sem vizinhos e eu não podia vir morar para aqui... ‑ resmungou Willibald Hammerschlag.

‑ Por que não?

‑           Só de pensar no que isso teria dado! Tu, que és ciumento como Otelo. Imagina‑me a morar na mesma casa que Sofia: isso teria acabado em assassínio!

Kochlowsky ficou calado, encostou‑se às almofadas e olhou para o tecto.

‑ O que teria acontecido se Reckhardt me tivesse morto? Pensei muito acerca disso. Eu deixaria uma mulher e

quatro crianças sem nada. As poupanças foram todas gastas e até hoje eu nem sequer consegui ter uma casa própria... tudo o que possuía era um maravilhoso cavalo. E as cinco pessoas que eu mais amo teriam ficado na rua, como pedintes. Foi para isso que estive a trabalhar durante quase vinte e cinCo anos, que são um terço de uma vida? Não acham que é uma loucura?

‑ Eu teria conseguido arranjar‑me com as crianças - consolou-o Sofia, acariciando‑lhe a mão. ‑ Teria voltado para a cozinha do palácio de Búckebúrg. Eles têm sempre um lugar para nós.

‑ E mais tarde as crianças teriam dito: nós tivémos um pai   que só tinha uma grande boca, mais nada...

‑ E seria verdade ‑ interveio Hammerschlag.

‑ Porém, as coisas não vão continuar assim! ‑ Kochlowsky juntou as mãos. ‑ Estes três meses serviram de algo. O destino às vezes dá‑nos lições muito duras. Muita coisa terá que mudar.

‑ Em que estás a pensar, Leo? ‑ Sofia parecia preocupada.

‑ Eu estive a falar com o meu irmão Eugen. É a pessoa mais doida que eu jamais vi, é completamente maluco... mas está rico, ele conseguiu. E deixa qualquer coisa para trás, mesmo que sejam só romances, que se lêem tal como se comem rebuçados. Vai construir uma mansão em Pless e um mausoléu para os restos da sua obesa figura.

‑ Não me digas que também queres escrever livros! - exclamou Hammerschlag, assustado.

‑ Que disparate! Eu quero tornar‑me independente

‑Como quê?

‑ Fundarei uma fábrica de louça. Farei pratos, chávenas, jarros, tigelas, vasos, canecas, baixelas... tudo o que se possa fabricar a partir do barro, com ou sem caolino. Desde o penico até ao azulejo decorativo para a lareira.

‑ E onde tencionas fazer isso?

- Aqui, em Herzogswalde. Em colaboração com a fábrica de tijolos do barão. Ele participará na minha fábrica.

- Que honra para ele ‑ disse Hammerschlag num tom

irónico. ‑ E onde vais buscar o capital de investimento?

‑ Pedi‑lo‑ei emprestado ao barão.

Hammerschlag suspirou e olhou para Sofia com um ar desesperado.

‑ Afinal ele ficou mesmo com lesões permanentes. Quer simplesmente ir ter com o barão e dizer: "preciso de uma fortuna para fundar uma fábrica de porcelana. E o senhor até pode ser o meu sócio."

‑ Vocês não compreendem nada dessas coisas! ‑ disse Kochlowsky, brusco. ‑ Tanta estupidez junta até me impressiona. ‑ Deu uma cotovelada a Hammerschlag. ‑ Então eu não tinha razão em relação à plantação de árvores de fruta? A criação de gado afinal não é mesmo melhor? Está‑se a aproximar uma era industrial. As pessoas querem comer mais e melhor e querem viver em melhores condições e com mais conforto. Isso é lógico, seus ignorantes! E nas alturas em que o mundo dá estas voltas, temos que estar no lugar certo, cada um na área de que mais entende.

 

Kochlowsky levou três semanas para conseguir falar com o barão, que desde que Leo fugira da clínica ficara profundamente ofendido. Só o facto de fazê‑lo esperar durante duas horas antes de o receber era um indício da sua fúria.

‑ Ah! ‑ disse quando Kochlowsky entrou na biblioteca. ‑ O nosso trepador de muros...

‑           Eu não saltei o muro... saí pelo portão do jardim.

‑           Mas esse estava fechado!

‑           Com alguma habilidade e um prego torto é possível abrir e fechar qualquer portão.

‑ Como os ladrões fazem!

‑           O senhor está a ver as coisas da perspectiva errada: eu era um fugitivo.

‑ O que quer de mim?

‑ Dinheiro.

‑ Mais nada?

‑ Muito dinheiro. Quero fundar a minha própria fábrica. A fábrica de louça fina Herzogswalde Finck‑Kochlowsky.

‑ Estou consciente da honra que é ter o meu nome em primeiro lugar.

‑ Confesso que Kochlowsky‑Finck soaria melhor.

O barão Von Finck encostou‑se para trás na sua grande poltrona e fitou Kochlowsky. "É possível habituar‑me a ele", pensou. "O horrível acidente que sofreu abalou‑me profundamente. Ele deve ser das pessoas mais brutas que conheço, mas há uma coisa que é de certeza: profundamente sincero. É de confiança. Em princípio, eu devia considerar‑me feliz por ter o Kochlowsky e o Harnmerschlag ao meu serviço. "

‑ De quanto capital dispõe o senhor, Leo? - perguntou o barão.

‑ De somas incalculáveis, senhor barão...

‑ O que quer dizer com isso? ‑ O barão franziu as sobrancelhas.

‑ Tenho a minha cabeça, as minhas mãos, ideias e a minha força de vontade.

‑ E dinheiro líquido?

- Nada. Isso é o senhor que tem.

‑ Então quer que eu lhe monte a fábrica toda e depois seja o seu sócio?

‑ Com cinquenta por cento.

‑ Extremamente generoso...

‑ Queria pedir‑lhe que considerasse os restantes cinquenta por cento como um crédito que eu mais tarde lhe pagarei de volta.

‑ Acho que nunca ninguém recebeu uma proposta destas, Leo!

‑ Mas também nunca houve ninguém que tivesse um Kochlowsky como sócio. ‑ Kochlowsky pousou uma pasta na secretária do barão e encarou‑o com um ar ansioso. ‑ Posso mostrar‑lhe os meus planos e as contas? Nos próximos anos a Alemanha viverá uma explosão industrial. Nós devíamos participar activamente nela e não perder esta grande oportunidade...

A conversa durou cinco horas. Cinco horas que mudaram completamente a vida de Leo Kochlowsky e da sua família. Depois desta longa conversa, o barão Von Finck fechou a pasta, exausto, e estendeu a mão a Kochlowsky.

‑           Se tudo correr como o senhor o descreveu no papel, então parabéns, Leo! Aproxima‑se um grande futuro. A minha única preocupação é a sua saúde.

‑           Não há motivo de preocupação. Para mim a melhor maneira de recuperar é trabalhando. Ficar por aí sentado a tomar medicamentos só me torna mais doente ainda! Sinto‑me com uma saúde canina... perdão, senhor barão.

‑ Afinal, está mesmo doente, Leo.

‑           Não, não estou. Por que diz isso?

‑           Antigamente nunca se teria desculpado por ter dito "saúde canina"... ‑ O barão levantou‑se e estendeu a mão a Kochlowsky. ‑ Leo, dê cá um aperto de mão... vamos montar a fábrica de porcelana. ‑ Deu a mão a Kochlowsky e depois disse num tom solene: ‑ Que a nossa colaboração seja frutuosa, senhor industrial...

No caminho de volta para casa, Kochlowsky passou por Herzogswalde e entrou na loja do senhor Over'nann.

‑           Quero uma garrafa de champanhe! ‑ disse. ‑ Champanhe francês.

‑ Não tenho champanhe! ‑ Overmann olhou para Kochlowsky com ar de quem lamenta. ‑ Afinal, quem é que bebe champanhe em Herzogswalde?

‑ Eu!

‑           Mas isso eu não podia saber...

‑           Então, o que é que tem?

‑           Vinho tinto, vinho branco, vinho do Porto, xerez, Madeira, licor, conhaque, até mesmo uísque... de tudo.

‑           As pessoas em Herzogswalde bebem isso tudo, mas não bebem champanhe? Isto é mesmo um ninho de atrasados! ‑ Kochlowsky examinou as estantes. ‑ O que é aquilo? Parece uma garrafa de champanhe.

‑           É um espumante alemão. ‑ Overmann tirou‑o da estante. ‑ Vem da zona do Reno. Tem o aspecto de champanhe, sabe a champanhe, faz bolinhas como o champanhe. só não tem o direito de se chamar champanhe. Por isso, chama‑se espumante. Não conhece?

- Não.

‑ Como vê, existem atrasados em todo o lado ‑ disse Overmann, corajoso.

Kochlowsky ficou surpreendido, olhou para Overmano e depois riu‑se alto.

‑ Passe para cá esse espumante! ‑ exclamou. ‑ Quantas garrafas tem?

‑ Mais dez!

‑ Levo‑as todas! Mas se isto não for bom, leva com a rolha no rabo...

 

à noite Kochlowsky andava muito misterioso. De vez em quando corria para o jardim. Ouvia‑se a bomba de água a funcionar, água a cair para um alguidar de zinco e quando Sofia aparecia à porta para ver de que se tratava, Kochlowsky apontava para a casa e dizia:

‑ Tu ficas lá dentro! Vá, desaparece! Para dentro! Isto é uma coisa de homens...

Afinal, o que tinha uma mulher a ver com duas garrafas de espumante que estão num alguidar de zinco para ficarem bem frias? Não as podia pôr no frigorífico, na cozinha, senão não seria uma surpresa.

O jantar decorreu como sempre... à mesa estavam sentados Vanda, Jenny e o pequeno Leo na sua cadeirinha. Ao seu lado num cestinho dormia a pequena Sofia. Kochlowsky presidia, como um perfeito patriarca, e a pequena e frágil Sofia corria num vaivém incessante entre a cozinha e a sala de jantar. Sempre de um lado para o outro. Trazia a comida para a mesa, servia‑a, comia rapidamente alguma coisa e voltava a levantar‑se da mesa. Mas depois, a seguir ao pudim de chocolate, Leo levantou‑se da mesa, desapareceu no jardim, entrou na cozinha, onde proibira Sofia de entrar, e voltou com uma taça de espumante em cada mão. Ficou parado na porta e ergueu as duas taças.

‑ O que vês, querida? ‑ exclamou. ‑ Vanda, cala‑te, deixa a mãe responder...

‑ Antes de mais um esbanjador! Champanhe... e nós com dívidas até ao pescoço! ‑ Abanou a cabeça. ‑ Tu és incrível, Leo.

‑ E mais o quê? ‑ Kochlowsky balançou as taças de um lado para o outro. ‑ O que mais vês?

‑ Um homem que me parece inexplicavelmente feliz.

‑ Mais...

‑ O meu querido marido... Era isso que tu querias ouvir, não era?

 

‑Mais... ‑ O pequeno Leo na cadeirinha começou a chorar.

‑ Um pai que assusta os seus próprios filhos.

‑Mais...

‑ Tudo de que eu me lembre a partir de agora não é para as crianças ouvirem.

‑ Que mulher estranha! ‑ Kochlowsky soltou uma gargalhada de júbilo que até fez Vanda estremecer. Agora também a pequena Sofia chorava. Jenny ficou calada, como era hábito, e observava tudo com os seus enormes olhos castanhos.

‑ Tens à tua frente o industrial Leo Kochlowsky, da fábrica de louça fina Finck‑Kochlowsky. Desde a baixela ao penico, qualquer desejo será satisfeito!

‑ Leo! ‑ Sofia tirou o avental. O seu coração batia com força. ‑ Tu realmente conseguiste? Conseguiste...

‑ Vocês é que ainda não compreenderam o que é um Kochlowsky. Querida, a tua taça... É um brinde pelo nosso futuro!

Brindaram, Leo deu um beijo à sua mulher e Vanda protestou:

‑ E eu, não recebo uma taça? Já sou suficientemente grande...

à noite estavam sentados sozinhos no quarto, enquanto bebiam a segunda garrafa de espumante. Tinham diminuído a luz ao mínimo.

‑ As coisas podiam ter corrido de outra maneira ‑ comentou Kochlowsky, devagar. ‑ Se Reckhardt me tivesse morto...

‑ Não penses mais nisso, Leo.

‑ O que teria restado de mim? A lembrança de um ser nojento, de um homem com o qual não se pode viver, um monstro... E tu suportas tudo isso.

‑ Porque te amo.

‑ Isso será o eterno mistério.

‑ E porque eu sempre direi: às vezes foi duro viver com ele; e, apesar de tudo, a vida era bela...

‑ A vida é bela e será bela, Sofia... - Kochlowsky pôs o braço nos ombros de Sofia e aproximou‑se dela. ‑ Perdoa‑me por tudo o que te fiz. Vou tentar ser uma pessoa completamente diferente.

‑ Nunca conseguirás mudar.

‑ Juro que sim!

‑ Meu Deus, perdoa‑lhe ‑ disse Sofia com um sorriso. ‑         Não oiças este juramento. O que hei‑de fazer com um Leo Kochlowsky diferente deste, ao qual primeiro me terei que habituar? Deixa‑o ser como ele é...

 

                                                                                            Heinz G. Konsalik

 

 

                      

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