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A VIDA NOVA / Ornan Pamuk
A VIDA NOVA / Ornan Pamuk

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A VIDA NOVA

 

Um dia li um livro e toda a minha vida mudou. Desde a pri­meira página, sofri com tanta força o poder do livro que senti o meu corpo apartado da cadeira e da mesa a que me sentava. No entanto, ao mesmo tempo que experimentava a sensação de que o meu corpo se afastava de mim, todo o meu ser continuava, mais do que nunca, sentado na cadeira, à mesa, e o livro manifestava todo o seu poder não só na minha alma, mas em tudo o que com­punha a minha identidade. Era uma influência tão forte que me parecia que a luz emanada das páginas me atingia como um jorro: o seu brilho cegava toda a minha inteligência, mas, ao mesmo tempo, tornava-a mais cintilante. Fiquei com a certeza de que esta luz iria reconstruir-me, que graças a ela deixaria de percorrer os caminhos já trilhados. Vislumbrei as sombras de uma vida ainda por conhecer e por adoptar. Estava sentado à mesa e, num recanto do meu cérebro, sabia que estava sentado ali, que virava as páginas e que toda a minha vida mudava à medida que lia palavras novas, virando novas páginas; sentia-me tão pouco preparado para tudo o que iria acontecer-me, tão desarmado que, ao cabo de algum tempo, desviei os olhos, como para me proteger da força que jor­rava das páginas. Foi com terror que notei que o mundo à minha volta se transformara completamente, e invadiu-me um senti­mento de solidão que até então nunca experimentara - como se me achasse sozinho num país de que ignorava a língua, os costumes e a geografia.

Depressa a impotência nascida deste sentimento de solidão me levou a agarrar-me cada vez mais ao livro; era ele que iria ensinar-me o que fazer neste país desconhecido onde me achava perdido, dizer-me aquilo em que podia acreditar, o que nele podia observar, a direcção que a minha vida ia tomar. Conti­nuava a ler; página atrás de página, como se estudasse um guia que me orientaria através desta terra desconhecida e selvagem. Tinha vontade de lhe dizer: vem em meu socorro, ajuda-me a descobrir a vida nova sem muitos sofrimentos nem desgraças. Mas sabia também que esta vida nova se ia construindo a partir das palavras do guia. Li-o palavra por palavra e, ao mesmo tempo que procurava descobrir nele o meu caminho, imaginava, maravilhado, os prodígios que verdadeiramente me tresma­lhariam.

Durante todo este tempo, o livro estava ali, em cima da mesa, com a luz que dele emanava a bater-me na cara, e no entanto parecia-me tão familiar como os outros objectos que enchiam o meu quarto. Enquanto recebia com pasmo e alegria a possibilidade de uma vida nova neste mundo novo que se abria diante de mim, sentia que o livro, apesar de ter mudado a minha vida tão profundamente, era no fundo um objecto dos mais banais. Enquanto o meu espírito abria, uma após outra, as suas portas e janelas às maravilhas e aos medos do mundo novo que as palavras me prometiam, repensava no acaso que me tinha levado até este livro, mas tratava-se apenas de uma imagem superficial que não podia ir mais além, que se ficava pela superfície do meu espírito. Era como se o facto de eu voltar sempre a esta imagem, à medida que lia o livro, não fosse mais do que medo. O universo novo que o livro me abria era tão estranho, tão bizarro e tão surpreendente que, para não me perder nele completamente, eu procurava com desespero sensações ligadas ao presente. É que o medo ia-se instalando em mim, o medo de, ao levantar a cabeça para passar um olhar pelo meu quarto, pelo armário, pela cama, ou ao olhar pela janela, não encontrar o mundo tal como o havia deixado.

Sucediam-se os minutos e as páginas. Ao longe passavam comboios. Ouvi a minha mãe sair, depois voltar, o rumorinho habitual da cidade, a si neta do vendedor ambulante de iogurte que passava diante da nossa porta, o estrépito dos carros, e era como se estes barulhos, tão familiares para mim, me fossem todos desconhecidos. Primeiro pensei que estava a chover a bátegas, depois distingui os gritos das rapariguinhas que saltavam à corda. Julguei que o céu se clareava, mas logo ouvi as gotas de chuva a crepitarem nos vidros da janela. Li a página seguinte, depois outras, e outras ainda, vi a luz que se filtrava da soleira da outra vida; vi tudo o que conhecia e tudo o que ignorava; vi a minha própria vida e o caminho por onde me parecia que a minha vida nova devia seguir.

À medida que virava as páginas, penetrava na minha alma e apoderava-se dela um universo cuja existência ignorara até então, que nem sequer tinha alguma vez imaginado. Todas as coisas que eu tinha aprendido e em que acreditara até agora já não passavam de pormenores desprovidos de qualquer interesse, surgindo, dos recantos onde se tinham assolapado, coisas que eu desconhecia e que me faziam sinais. Se me perguntassem do que se tratava, parece-me que seria incapaz de responder, embora continuasse a ler; porque, quanto mais avançava na leitura, mais percebia que estava a avançar por um caminho sem regresso. Sentia que se esgotava em mim o interesse e a curiosidade pelas coisas que ia deixando para trás, mas estava animado por um tal entusiasmo, por uma tal curiosidade pela vida nova que se abria à minha frente, que tudo o que existia me parecia digno de interesse. Tre­mia de entusiasmo, baloiçava as pernas nervosamente, até que a profusão, a riqueza, a complexidade de todas as possibilidades se transformaram, dentro de mim, numa espécie de terror.

E, paralelamente a este terror, iluminados pela luz que o livro me lançava para a cara, vi quartos miseráveis, carros enlouque­cidos, pessoas estafadas, letras fanadas, lugarejos e vidas perdidas, fantasmas. E uma viagem, uma viagem sem princípio nem fim; tratava-se apenas de uma viagem. E nesta viagem vi um olhar que me seguia por todo o lado, que parecia surgir à minha frente nos lugares mais inesperados para logo desaparecer, e que tinha de se procurar incessantemente porque era muito fugaz, um doce olhar há muito lavado de todo o pecado. Eu gostaria de ser este olhar. Gostaria de viver no universo que este olhar contem­plava. Desejava-o com tanta intensidade que quase acreditei que vivia nesse universo; nem sequer era necessário convencer­-me disso, já lá vivia. E uma vez que já lá vivia, o livro, natural­mente, devia falar de mim. Era assim porque já alguém tinha imaginado os meus pensamentos e os tinha passado a escrito.

Assim, pude compreender que as palavras eram muito diferentes do que me exprimiam. Adivinhei desde o princípio que o livro tinha sido escrito para mim, e era por isso que cada palavra e cada expressão me tinham tocado tão profundamente. E isso acontecia porque eu tinha o sentimento de que o livro fora escrito precisamente para mim, e não porque as ideias nele contidas fossem extraordinárias e as palavras brilhantes. Não conseguia perceber como tal sentimento se apoderara de mim, ou talvez o tenha compreendido e logo esquecido quando procurava o meu caminho por entre assassínios, acidentes, mortos e sinais perdidos.

Assim, à força de ler e reler o livro, o meu ponto de vista foi transformado por ele, e o livro e as palavras que ele continha tor­naram-se o meu ponto de vista. Os meus olhos deslumbrados pela luz já não podiam separar o universo que existia no livro do livro que existia no universo. Era como se o único universo e tudo o que pudesse existir, todas as cores, todos os objectos pos­síveis se encontrassem no livro e nas palavras. De tal modo que, ao longo da minha leitura, o meu espírito, feliz e maravilhado, podia descobrir ali todas as possibilidades. Tudo o que o livro me tinha segredado ao princípio, e a seguir martelado e imposto com violência e audácia - compreendi isso no decurso da leitura -, sempre estivera enterrado no mais fundo da minha alma. O livro descobrira e trouxera à superfície um tesouro perdido, que dor­mia desde há séculos no fundo das águas, e eu tinha vontade de dizer acerca de tudo o que descobria nas palavras e nas frases: agora tudo isto é meu, tudo isto me pertence. Algures nas úl­timas páginas estive mesmo tentado a dizer que também eu já tinha pensado naquilo. Muito mais tarde, quando já estava com­pletamente possuído pelo universo que o livro descrevia, vi a morte a surgir na penumbra da alvorada, radiosa como um anjo: a minha própria morte.

Compreendi de chofre que nem sequer poderia ter imaginado como a minha vida se enriquecera. Nesse tempo, o meu único medo era poder vir a encontrar-me longe do livro; e, quando olhava para os objectos à minha volta, para o meu quarto ou para a rua, já não tinha medo de encontrar neles o que me contava o livro. Agarrando nele com as duas mãos, sorvia o cheiro da tinta e do papel que emanava das suas páginas, como fazia na infância quando acabava de ler um álbum de banda desenhada. Era exactamente o mesmo cheiro.

Levantei-me, como fazia quando era garoto, fui à janela olhar para a rua, com a testa encostada à vidraça fria. O camião que cinco horas antes, quando eu tinha posto o livro em cima da mesa e começado a ler, estava estacionado do outro lado da rua desapa­recera. A sua carga de armários, de mesas pesadas, de aparadores, de caixas de cartão e de candeeiros tinha sido descarregada. Uma família instalara-se no apartamento vago do prédio em frente ao nosso. Como ainda não havia cortinas nas janelas, pude ver, alumiados por uma lâmpada sem quebra-luz, um casal de certa idade - pai e mãe - e os filhos - um rapaz da minha idade e uma rapariga; estavam a jantar em frente da televisão. A rapariga tinha cabelos castanho-claros; o ecrã da televisão era verde.

Observei demoradamente os nossos novos vizinhos e senti um certo prazer, talvez por isso mesmo, por serem novos vizinhos; tinha a sensação de que isso me protegia de alguma coisa, nem eu sei de quê. Não queria enfrentar a transformação radical do meu universo familiar, e no entanto já percebera muito bem que as ruas já não eram as mesmas, que o meu quarto já não era o mesmo, que a minha mãe e os meus amigos já não eram os mesmos. Parecia haver em todos uma hostilidade latente, qualquer coisa de ameaçador, de terrificante que eu não podia identificar. Afastei-me da janela, mas não fui capaz de voltar ao livro que chamava por mim. A coisa que tinha produzido uma reviravolta na minha vida estava à espera em cima da mesa atrás de mim. Mas bem podia virar-lhe as costas - o princípio de tudo estava ali, entre mim e as linhas do livro; tinha de enveredar por este novo caminho.

Sem dúvida que, em certo momento, a ideia de ser arrancado da minha vida anterior se me afigurou aterradora, porque, à semelhança daqueles a quem uma catástrofe mudara irremedia­velmente a vida, eu tentava encontrar a paz, imaginando que a minha existência retomaria o seu curso, que o acidente ou a desgraça, a coisa terrível que estava a acontecer-me nada tinha a ver com a realidade. Porém sentia com tanta força a presença do livro, ainda aberto na mesa à minha frente, que nem sequer podia imaginar como seria possível a minha vida retomar o seu curso anterior.

Foi no mesmo estado de espírito que saí do quarto quando a minha mãe me chamou, que me sentei à mesa, com o embaraço do novato tentando habituar-se a um ambiente novo, e que me esforcei por fazer conversa. A televisão estava ligada. Na mesa havia carne picada com batatas, alho francês estufado, alface e maçãs. A minha mãe falou-me dos novos vizinhos, os que acabavam de se mudar para o outro lado da rua, felicitou-me por ter trabalhado tão bem toda a tarde, sim senhor! Falou-me também das compras que fizera debaixo de chuva, das notícias da televisão e do apresentador do noticiário. Eu gostava muito da minha mãe; era uma bela mulher, distinta, competente e com­preensiva, e eu sentia-me culpado porque lia esse livro e pene­trara num mundo que não era o dela.

Se o livro tivesse sido escrito para toda a gente, dizia para comigo, a vida não poderia continuar a correr assim, lenta e despreocupada. Por outro lado, a ideia de que o livro tinha sido escrito unicamente para mim não podia parecer lógica ao estu­dante racional do Instituto de Engenharia que eu era. Nestas condições, como poderia a vida continuar igual? Tinha medo de dizer a mim mesmo que o livro poderia ser um mistério imagi­nado tão-somente para a minha pessoa. Depois, quis ajudar a minha mãe a lavar a louça, para que o seu contacto pudesse trazer para o presente o mundo que eu transportava em mim.

- Não, deixa que eu lavo, meu querido! - disse-me ela.

Fiquei bastante tempo a ver televisão. Talvez conseguisse in­troduzir-me no universo do ecrã, mas também poderia pôr-me aos pontapés ao televisor. No entanto o que eu estava a ver era a nossa televisão, da nossa casa, uma espécie de lâmpada sagrada, uma espécie de divindade. Vesti o casaco, calcei os sapatos.

       - Vou sair por um bocado.

            - Quando voltas? - perguntou a minha mãe. – Espero por ti?

            - Não esperes. Ainda acabas por adormecer em frente da televisão.

            - Apagaste a luz do teu quarto?

            Saí e o meu bairro, onde vivia há vinte e dois anos, nas ruas da minha infância, via-o como se me aventurasse pelas artérias perigosas de uma cidade estranha. Senti na cara o frio húmido de Dezembro como se se tratasse de uma brisa ligeira, e disse para mim que talvez algumas coisas do mundo antigo tivessem passado para o novo e que talvez o pudesse verificar andando pelas ruas, pelos passeios que fizeram a minha vida. Tive vontade de correr.

Caminhava pelas ruas escuras, rente aos muros e em passo estu­gado, evitando os contentores do lixo e as poças de água, e"pude ver que a cada passo que dava se materializava um mundo novo. Os plá­tanos e os choupos eram, à primeira vista, os plátanos e os chou­pos da minha infância, mas a força das recordações e das associações de ideias que me ligavam a eles tinha desaparecido. Estas árvores exaustas, estas casas de dois pisos tão familiares, estes prédios de fachada enegrecida cuja construção tinha acompanhado na minha infância, desde os alicerces e os poços de cal até às telhas dos te­lhados, e onde tinha brincado mais tarde com novos amigos, olhava agora para elas, já não como pedaços inalienáveis da minha vida, mas como se se tratasse de fotografias de que esquecera o lugar e a data em que foram tiradas: reconhecia as suas silhuetas, as janelas iluminadas, as árvores dos jardins, as letras e os sinais nas portas de entrada, mas já não me inspiravam a força que as coisas conhecidas nos inspiram. O meu universo de outrora rodeava-me por todos os lados, em todas as ruas: as montras das familiares mercearias, as luzes ainda acesas na padaria da Praça da Estação de Erenkoy, as caixas diante do lugar da fruta e dos legumes, as carroças, a paste­laria «A Vida», os camiões desengonçados, os toldos e as caras sombrias e cansadas. Mas uma parte do meu coração - a parte em que trazia o livro, como quem dissimula um pecado - já sentia apenas indiferença por todas estas sombras que tremelicavam nas luzes nocturnas. Queria fugir de todas estas ruas familiares, da melancolia das árvores molhadas pela chuva, das letras de néon que se reflectiam nos charcos de água do asfalto e dos passeios, das luzes do talho e da mercearia. Soprou um vento ligeiro, caíram gotas de água das árvores, ouvi um estrondo e decidi que o livro era um mistério que me estava destinado. O medo apoderou-se de mim, tinha necessidade de falar com alguém.

Na Praça da Estação aproximei-me do Café dos Jovens onde alguns dos meus amigos do bairro se reuniam para jogarem às cartas ou verem um desafio de futebol pela televisão; marcavam ali encontro e durante horas não arredavam de lá. Numa mesa ao fundo da sala estavam à conversa, banhados pelas luzes brancas e pretas que saíam da televisão, um estudante, que trabalhava na sapataria do pai, e um amigo cá do bairro, que jogava futebol num clube amador. Diante deles podiam ver-se uns jornais que, de tanto serem manuseados, tinham as páginas meio rasgadas, dois copos de chá, cigarros e uma garrafa de cerveja que deviam ter comprado na mercearia e escondido debaixo de uma cadeira. Tinha necessidade de falar com alguém, demoradamente, talvez durante horas, mas percebi de imediato que não poderia fazê-lo com eles. Por um breve instante invadiu-me uma tristeza de me fazer vir as lágrimas aos olhos, mas recompus-me com orgulho: deveria abrir o meu coração, sim, mas àqueles que doravante escolhesse entre os que viviam já no universo do livro. 

Embora quase me convencesse de que era dono do meu futuro, sabia também que era o livro que me possuía. Não só entrara em todo o meu ser como um segredo e um pecado, mas também me reduzira àquela paralisia da fala que às vezes nos tolhe nos sonhos. Onde estavam os meus semelhantes, aqueles com quem poderia comunicar? Em que lugar poderia encontrar o sonho que me apelava ao coração, onde estavam aqueles que tinham lido o livro?

Atravessei a via férrea, entrei nas ruelas, esmaguei com os pés as folhas mortas coladas ao asfalto. Erguia-se de súbito em mim um profundo optimismo: se ao menos pudesse continuar a andar assim, rapidamente, sem parar, se ao menos pudesse viajar, então, parecia­-me, poderia atingir o universo do livro. A vida nova, com os seus débeis clarões tremeluzindo no meu coração, encontrava-se numa terra longínqua, talvez num lugar inacessível. Mas pressentia que, embora continuasse a mexer-me, me aproximaria, ou, pelo menos, deixaria para trás a minha vida antiga.

Quando cheguei à beira-mar espantou-me a negrura das águas. Por que não tinha reparado antes que, à noite, o mar se tornava tão escuro, tão rude, tão implacável? Era como se os objectos tivessem uma linguagem própria e eu começasse a ouvi­-la um pouquinho no silêncio provisório para onde me tinha arrastado o livro. Senti bruscamente em mim o peso do mar que se agitava suavemente, do mesmo modo que me invadira o sentimento da minha morte irrevogável quando lia o livro; mas não se tratava daquele sentimento do «acabou-se tudo» que a morte deve inspirar, mas antes da curiosidade, da comoção de quem envereda por um caminho novo.

Passeei demoradamente pela praia. Quando era miúdo, vinha para aqui com os meus companheiros do bairro, depois das tem­pestades de vento sul, esgravatar entre as latas de conservas vazias, as bolas, as garrafas, as sandálias desemparelhadas, as molas da roupa, as lâmpadas, as bonecas de plástico, tudo o que o mar lan­çava para a praia, à procura nem nós sabíamos bem de quê, de um indício que nos levasse até um tesouro, de um objecto desconhe­cido ou, simplesmente, novo e brilhante. Por um breve instante pareceu-me que se os meus olhos, iluminados pela luz do livro, pudessem encontrar um elemento qualquer pertencente ao meu antigo universo, o meu olhar poderia transformá-lo no objecto mágico que procurávamos nos meus tempos de infância. Mas, ao mesmo tempo, o sentimento de que o livro me tinha deixado sozinho no mundo apoderou-se de mim com tanta violência que eu pensei que o mar escuro ia inchar de repente e engolir-me.

Transtornado, recomecei a andar muito depressa, não para con­cretizar um mundo novo a cada passo que desse, mas para ficar sozinho no meu quarto com o livro. Quase corria, e começava a ver-me como um ser nascido da luz que emanava do livro. Isso tranquilizava-me.

O meu pai tinha um bom amigo da sua idade, tal como ele funcionário, durante muitos anos, na Companhia dos Caminhos­-de-Ferro do Estado e que chegara mesmo ao posto de inspector. Escrevia artigos, versando todos sobre a paixão do caminho-de­-ferro, para a revista publicada pela Companhia. Escrevia também livros para crianças que ele próprio ilustrava e que saíam na colecção «Novas Aventuras para Crianças». No tempo em que eu lia os livros que o Tio Rifki me oferecera, acontecia muitas vezes ir para casa a correr para voltar a mergulhar na leitura de Pertev e Peter ou Kamer na América. Mas estes livros para crianças tinham sempre uma última página onde se encontrava a palavra FIM, como no cinema, e quando lia estas três letras, não só chegara aos limites da terra onde tanto gostaria de ter ficado, como percebia com dor e tristeza que aquele universo mágico era fruto da imaginação do Tio Rifki, funcionário dos caminhos­-de-ferro. Ora, no livro que tinha pressa de ir reler, eu sabia que, pelo contrário, tudo era verdadeiro. Era por isso que transportava este livro dentro de mim, era por isso que as ruas molhadas pela chuva por onde seguia em passo de corrida não eram reais, eram tão-só uma parte de um trabalho de casa, um trabalho aborrecido que me tinham imposto por castigo. O livro - assim me pa­recia - fornecia a resposta à pergunta sobre a minha vida que eu fazia a mim próprio.

atravessara a via férrea e passava perto da mesquita quando quase caí numa poça de água; saltitei, tropecei, escorreguei e acabei por me espalhar ao comprido no asfalto lamacento.

            Já me tinha levantado e prosseguia o meu caminho quando um velhote barbudo se dirigiu a mim:

            - Ias caindo, rapaz! Está tudo bem?

- Não está nada bem - disse-lhe eu. - O meu pai morreu ontem. Foi hoje a enterrar. Era mau tipo, só bebia e batia na minha mãe. Não nos quis aqui ao pé dele. Durante vários anos vivi em Velha Vinha [N1].

Viran Bag! Velha Vinha! Aonde tinha ido eu buscar a ideia desta cidade? Talvez o velho percebesse que eu lhe estava a contar balelas, mas senti-me de repente muitíssimo esperto. Talvez por

 

1 Em turco: Viran Bag.

 

causa das mentiras que acabava de dizer, talvez por causa do livro ou, simplesmente, por causa da cara aturdida do homem, não sei. Mas disse para mim: «Nada receies, não tenhas medo, continua! Esse mundo, o do livro, é que é o mundo real.» E, no entanto, tinha medo...

Porquê?

            Porque tinha ouvido falar das desgraças que se abatiam sobre pessoas a quem bastou lerem um só livro para verem a sua vida de pernas para o ar. Conhecia histórias de fulanos que, depois de terem lido numa noite um livro intitulado Princípios Fundamen­tais da Filosofia e de concordarem com cada palavra deste livro, aderiam no dia seguinte à Vanguarda Proletária Revolucionária, eram caçados três dias depois durante um assalto em que participavam e passavam dez anos da sua vida na prisão. Ou, então, aqueles que, depois de terem lido um livro do género O Islão e a Nova Moral ou A Traição da Ocidentalização, esqueciam numa noite o caminho da taberna para enveredarem pelo da mesquita e, em cima de um tapete gélido e no meio dos eflúvios de água de rosas, se preparavam pacientemente para uma morte que lhes aconteceria cinquenta anos mais tarde. Conheci também pessoas que se deixavam seduzir por livros com títulos como A Liberdade de Amar ou Como Me Descobri a Mim Próprio. Estes saíam sobretudo das fileiras dos que acreditam nos signos do zodíaco, mas também eles afirmavam com toda a boa fé: «Este livro, numa noite, mudou toda a minha vida!»

Para falar verdade, não era no espectáculo aflitivo destas transformações que eu pensava; tinha medo da solidão. Medo de ter compreendido mal o livro, o que não era de estranhar num idiota como eu; medo de não aprofundar as coisas ou, pelo contrário, de as aprofundar demasiado; quero eu dizer: de não poder ser como toda a gente, de me tornar louco de amor, ou de descobrir os mistérios do universo e me tornar ridículo passando o tempo a contar a minha vida a pessoas sem qualquer desejo de a conhecerem, de ir parar à prisão, de dar a ideia de ter um parafuso a menos, de acabar por perceber que o mundo é definitivamente muito mais cruel do que eu imaginava e de não conseguir agradar às raparigas bonitas. É que, se o que vinha escrito nos livros era verdade, se a vida era como a descreviam num livro, se um mundo assim era possível, então por que seria que as pessoas ainda iam à mesquita, ou por que passavam o tempo na conversa ou a dormitar nos cafés, ou por que razão a esta hora, todas as noites, se insta­lavam diante da televisão para não morrerem de tédio? Era isto, precisamente, que se tornava incompreensível. E não fechavam completamente as cortinas, para o caso de se passar qualquer coisa na rua tão interessante como na televisão, sei lá, um carro que passasse a toda a velocidade, por exemplo, ou um cavalo que relinchasse, ou um bêbado que praguejasse.

Não sei quanto tempo se passou até eu reparar que este apartamento do segundo andar, para onde espreito há um bom bocado pelos cortinados entreabertos, era o do Tio Rifki, dos caminhos-de-ferro. Talvez eu até tenha reparado nisso sem me dar conta; no fim do dia em que a minha vida ia ser completa­mente mudada por causa de um livro, era talvez uma saudação que eu lhe enviava instintivamente. Viera-me à cabeça um es­tranho desejo, o de rever uma vez mais os objectos e os móveis que tinha visto nesta casa nas últimas vezes em que eu e o meu pai visitáramos o Tio Rifki: os canários na gaiola, o barómetro na parede, as gravuras de locomotivas preciosamente emoldu­radas, o aparador com os seus vidros, tendo de um lado um ser­viço de copos para licores, miniaturas de carruagens, um açucareiro de prata, um alicate de revisor, medalhas concedidas pelos bons e leais serviços nos caminhos-de-ferro; e, do outro lado, uns cinquenta livros bem arrumados e, em cima do apa­rador, um samovar nunca utilizado; na mesa, um baralho de cartas... Por entre as cortinas entreabertas não via a televisão, apenas os clarões que projectava.

Bruscamente, numa decisão de que eu próprio ignorava a origem, trepei para o muro que separava o prédio do passeio e pude ver a cabeça da Tia Ratibe, viúva do Tio Rifki, e o televisor para onde ela olhava. Sentada na poltrona do seu defunto marido, num ângulo de quarenta e cinco graus, com a cabeça metida entre os ombros encolhidos, a Tia Ratibe olhava fixamente para o ecrã mas, em vez de tricotar como fazia a minha mãe, sorvia com avidez um cigarro.

O Tio Rifki, dos caminhos-de-ferro, morrera um ano antes do meu pai, por sua vez falecido no ano passado de ataque cardíaco; mas a morte do Tio Rifki não tinha sido uma morte natural. Tinham-no alvejado a tiro uma noite, quando ele ia a caminho do café. O homicida não foi encontrado, falou-se de um drama de ciúmes, mas o meu pai nunca acreditou nisso até ao fim da sua vida. O Tio Rifki não deixara descendência.

 

Com a noite já avançada, muito depois de a minha mãe ter adormecido, estando eu sentado à mesa, com os olhos fixos no livro pousado entre os cotovelos, afastei do meu espírito tudo o que identificasse o bairro como sendo o meu: as luzes que se iam apagando umas atrás das outras na vizinhança e em toda a cidade, a melancolia das ruas desertas e molhadas da chuva, o pregão do vendedor de boza que fazia o seu último giro, gritos de corvos inesperados a esta hora da noite, os estalidos pacientes dos com­boios de mercadorias que começam a circular depois do último comboio de passageiros; a pouco e pouco ia esquecendo tudo isso com emoção, abandonando-me por completo à luz que jorrava do livro. Foi assim que tudo se apagou no meu espírito, tudo o que constituía a minha vida e os meus sonhos: as refeições, as portas das salas de cinema, os meus colegas de escola, os jornais, as gar­rafas de limonada, os desafios de futebol, as carteiras da escola, os barcos, as lindas raparigas, os sonhos de felicidade, aquela que amarei um dia e que será a minha mulher, a minha mesa de trabalho, as minhas manhãs, os meus pequenos-almoços, os meus bi­lhetes de autocarro, as minhas pequenas preocupações, os meus trabalhos de casa de Estática entregues sempre com muito atraso, as minhas calças velhas, os meus pijamas, a minha cara, as minhas noites, as revistas que me ajudam a masturbar-me, os meus cigarros e mesmo, atrás de mim, a fiel cama, para o mais seguro dos esquecimentos. E achei-me a pairar numa terra de luz.

 

No dia seguinte apaixonei-me. O amor era tão perturbante como a luz que jorrara do livro e me atingira no rosto, e, com todo o seu peso, provava que a minha vida já tinha saído dos eixos.

Ao acordar, analisei os acontecimentos da véspera e compre­endi que a nova região que se abria à minha frente não era um sonho de momento mas sim tão real como o meu corpo, os meus braços ou as minhas pernas. Para fugir do insuportável senti­mento de solidão deste novo universo em que estava mer­gulhado, ser-me-ia necessário descobrir os que se encontravam na mesma situação que eu.

Nevara durante a noite, a neve tinha-se acumulado nos para­peitos das janelas, nos passeios e nos telhados. O livro, que eu tinha deixado aberto em cima da mesa, envolvido por esta impres­sionante luz branca parecia ainda mais anódino, mais inocente; o que o tornava aterrador.

Consegui porém, como todas as manhãs, tomar o pequeno­-almoço com a minha mãe, aspirando com prazer o cheirinho do pão torrado, dando uma vista de olhos pelo Milliyet e lendo a crónica de Djélâl Salik. Servia-me do queijo, bebia o chá e sorria para a cara benevolente da minha mãe. A chávena, a chaleira, o tilintar das colheres, o barulho de um camião carregado de laran­jas na rua, tudo isso tentava convencer-me de que o curso da vida continuava igual, mas eu não me deixava enganar. Estava tão certo da transformação do mundo que, ao sair de casa, não senti qualquer embaraço em vestir o velho e pesadíssimo sobretudo do meu pai.

Dirigi-me à estação, entrei num comboio, saí na paragem, não perdi o meu barco; chegado ao cais de Karakoy, saltei do barco, rompi por entre os outros passageiros à cotovelada, subi as escadas, saltei para um autocarro e cheguei à Praça Taksim; no trajecto para a universidade Taksim, parei um momento a observar umas ciganas que vendiam flores no passeio. Como podia eu acreditar que a vida decorresse como dantes? Ou es­quecer que lera o livro? Por um breve instante, esta eventua­lidade pareceu-me tão terrível que tive vontade de deitar a correr.

Numa aula de Resistência de Materiais, copiei cuidadosamente para o meu caderno todas as figuras, números e fórmulas que estavam no quadro. E quando já não havia mais nada no quadro para copiar, pus-me a ouvir, de braços cruzados, a voz dulcíssima do professor careca. Estaria eu verdadeiramente a ouvi-lo ou, como os outros todos, apenas a fazer de conta que o ouvia, fa­zendo assim o papel de um estudante do Instituto de Engenha­ria da Universidade Técnica? Isso não sei dizer. Ao cabo de um momento, senti que o mundo antigo, o meu mundo familiar, era desprovido de toda e qualquer esperança, e essa ideia foi-me intolerável, e o meu coração pôs-se a bater com muita força, tive vertigens, como se uma droga me corresse nas veias, e senti, com um misto de medo e deleite, a força da luz que jorrara do livro e que, partindo da nuca, se me espalhava a pouco e pouco por todo o corpo. Um universo novo já tinha feito desaparecer tudo o que existira até então e transformara o presente em passado. As coisas que via, as coisas que tocava pareciam-me lastimosamente antiquadas.

Tinha visto esse livro pela primeira vez nas mãos de uma estudante da Escola de Arquitectura. Ela comprou umas coisas na cantina do rés-do-chão e estava à procura do porta-moedas, mas, como tinha qualquer coisa na outra mão, não conseguia procurar no saco. Por um momento, pousou então em cima da mesa onde eu estava o que trazia na mão, um livro, e eu pude deitar-lhe uma olhadela. Foi esse o acaso que mudou toda a minha vida. Depois a rapariga voltou a pegar no livro e meteu-o dentro do saco. À tar­de, quando regressava, vi um exemplar do mesmo livro num es­caparate, entre velhos alfarrábios encadernados, livros de poesia ou livros de interpretação dos sonhos, romances de amor ou livros de política, e comprei-o de imediato.

Mal tocou a campainha do meio-dia, a maior parte dos estu­dantes correu pelas escadas para tomar lugar na fila da cantina; quanto a mim, fiquei sentado no meu lugar. Depois vagueei ao acaso pelos corredores, desci à cantina, atravessei átrios, caminhei entre colunas, entrei em salas de aula vazias, olhei pelas janelas as árvores cobertas de neve do parque em frente; fui beber água aos lavabos e percorri assim todos os edifícios da Taksim. Da rapa­riga, nem o mínimo rasto, mas isso não me inquietava.

Depois da hora do almoço, o movimento nos corredores era ainda maior. Passei por todos os corredores da Escola de Arqui­tectura, entrei em todos os estúdios, interessei-me por um jogo das moedas que decorria nas mesas de desenho, instalei-me num canto e arrumei as páginas de um jornal para ali atirado de qualquer maneira, disposto a lê-lo. Depois meti de novo por corredores, desci escadas, subi escadas, ouvi estudantes discutindo futebol, política ou os programas de televisão da véspera. Juntei­-me a um grupo onde se zombava de determinada estrela de cinema que tinha decidido fazer um filho, dei cigarros e em­prestei o isqueiro a quem mo pediu; um estudante contou uma anedota, ouvi-o até ao fim e, durante todo esse tempo, respondi com toda a boa vontade do mundo às pessoas que andavam à procura de alguém e que me perguntavam se eu o tinha visto. Por vezes, quando não encontrava colegas com quem falar, ou quando não encontrava janelas para passar o tempo, ou ainda quando já não tinha qualquer destino preciso, fazia de conta que me lembrava de repente de qualquer coisa importante e que ficava logo com muita pressa, e arrancava num passo decidido. Mas como não levava qualquer direcção precisa, ia parar diante da porta da biblioteca ou a um patamar de escada, encontrava um colega que me pedia um cigarro e mudava logo de rumo, misturava-me com os magotes de estudantes ou acendia outro cigarro. Tinha parado de novo para ler um aviso preso a um painel quando o meu coração disparou, deixando-me desampa­rado. Lá estava ela, a rapariga que tinha visto com o livro na mão, avançando no meio da multidão, afastando-se, mas, não sei por­ quê, andava num passo tão lento, como num sonho, que parecia convidar-me a segui-la. Perdi o controlo, já não era eu próprio e sabia-o muito bem, mas não fui capaz de me conter e corri atrás dela.

Trazia um vestido que não era completamente branco, mas muito claro, de uma cor indefinida. Alcancei-a antes de ela ter chegado às escadas e, quando a olhei de perto, a luz que emanava do seu rosto era quase tão poderosa como a que jorrava do livro, mas tão doce! Eu ainda estava neste mundo, mas já tinha atingido o limiar da vida nova. Era ali mesmo que estava, ao fundo das escadas imundas, mas já tinha penetrado na vida do livro. Diante daquela luz, compreendi que o meu coração nunca mais voltaria a obedecer-me.

Disse-lhe que tinha lido o livro, expliquei-lhe que o tinha lido depois de a ter visto, a ela, com esse livro na mão. Antes de ler esse livro eu tinha um universo próprio, contei-lhe, mas agora, depois de o ter lido, o meu universo era outro, por isso tínhamos de falar imediatamente, porque eu me encontrava sozinho neste mundo novo.

- Tenho agora uma aula - disse-me ela.

            O meu coração batia duas vezes mais depressa. Ela adivinhou certamente a minha emoção porque, por um momento, ficou pensativa.

- Está bem - disse num tom decidido. - Vamos procurar uma sala vazia. Vamos falar.

Encontrámos uma sala de aula vazia no segundo piso. Quando entrei na sala, as minhas pernas tremiam. Não sabia muito bem como haveria de lhe explicar que tinha entrevisto o mundo prometido pelo livro: o livro tinha-me falado em sussurro, tinha­-me desvendado este mundo novo como quem revela um segredo. Ela disse-me que se chamava Janan. Eu disse-lhe o meu nome.

- O que encontraste de tão cativante nesse livro? - pergun­tou Janan.

Tinha vontade de lhe dizer: foi porque tu o leste, tu, meu anjo. Mas por que tinha eu pensado num anjo? A confusão reinava no meu espírito; acontecia-me muitas vezes ter assim a cabeça em desordem, mas alguém vinha em meu socorro, talvez um anjo.

- Toda a minha vida mudou depois de ter lido o livro - dis­se-lhe. - O quarto, a casa, o mundo em que eu vivia deixaram de ser o meu quarto, a minha casa, o meu universo; vi-me assim à toa, perdido num universo que me era estranho. É o livro que tu tinhas na mão da primeira vez que te vi, portanto tu também o deves ter lido. Fala-me do universo para onde foste e donde regressaste. Diz-me o que tenho de fazer para lá entrar. Explica­-me por que ainda estamos aqui. Diz-me por que é que este mundo novo me pode ser tão familiar como se fosse a minha pró­pria casa, enquanto a minha casa se me tornou tão estranha como se fosse esse mundo novo. Explica-me.

Sabe Deus o que mais lhe diria ainda assim quando, brusca­mente, fui como que encandeado. Lá fora, a luz cinzenta da tarde invernosa e nevada tornou-se tão nítida, tão brilhante que os vidros da pequena sala, que cheirava a giz, pareciam ser feitos de placas de gelo. Estava com medo de olhar para ela, mas no entanto olhei.

- O que serias capaz de fazer para entrares no mundo desse livro? - perguntou-me ela.

Estava pálida. Tinha cabelo e sobrancelhas castanho-claros e um olhar muito doce. Se de facto ela era deste mundo, parecia ter sido criada a partir de recordação. Se era do mundo futuro, trazia nela os medos e a tristeza do futuro. Eu contemplava-a sem ter a consciência de que estava a fazê-lo. Era como se tivesse medo de que se tornasse real se continuasse a olhar para ela.

- Para descobrir esse mundo, eu seria capaz de tudo - res­pondi-lhe.

Janan esboçou um sorriso furtivo e olhou-me com muita do­çura. Como havemos de nos comportar quando uma rapariga extraordinariamente bonita, uma rapariga encantadora nos olha deste modo? Como devemos riscar o fósforo, acender o cigarro, olhar pela janela e, sobretudo, de que jeito falar com ela, como estar, até mesmo como respirar diante dela? Nunca nos ensinam isso nos anfiteatros da Universidade. E tipos como eu debatem­-se com a sua inexperiência esforçando-se por dissimular a vio­lência das batidas do coração.

- O que queres dizer com isso? - perguntou-me ela.

- Tudo - respondi-lhe e calei-me, atento às batidas do meu coração.

Não sei porquê, tive de repente uma visão de viagens muito longas, intermináveis, debaixo de chuvas diluvianas, como nas len­das, em ruas sem saída, de árvores melancólicas, rios de lama, jardins, terras perdidas. Tinha de lá ir, a essas terras, se alguma vez a queria apertar nos meus braços.

- Estarias pronto a enfrentar a morte, por exemplo?

- Sim, estaria.

- Mesmo que soubesses que há pessoas que nos matam porque lemos o livro?

Tentei sorrir: «Ao fim e ao cabo, não passa de um livro!», dizia para si mesmo o futuro engenheiro que eu trazia dentro de mim. Mas Janan observava-me com extrema atenção.

Transtornado, dizia a mim mesmo que ao mínimo erro, à mais pequena falha, nunca mais poderia aproximar-me dela nem do mundo do livro.

- Não acho de modo algum que alguém queira matar-me - disse-lhe eu, interpretando um papel que não chegava a iden­tificar. - Mas, mesmo que fosse esse o caso, garanto-te que não teria medo da morte.

            Os seus olhos cor de mel cintilaram à luz do branco de giz que entrava pela janela.

            - Na tua opinião, esse mundo existe realmente, ou trata-se de uma fantasia, de um mundo descrito num livro?

            - Deve existir! - disse-lhe eu. - Tu és tão bela que deves vir de lá, tenho a certeza.

Ela deu dois passos para mim, pegou-me na cabeça com ambas as mãos e beijou-me na boca. Deixou a língua nos meus lábios por um instante. Depois recuou, antes que eu tivesse tempo de apertar o seu corpo leve nos meus braços.

- És muito corajoso! - disse-me ela.

Senti um perfume a lavanda. Aproximei-me dela a cambalear como um bêbado. Passaram diante da porta dois estudantes aos gritos.

- Espera, e ouve bem - disse-me ela. - Tens de repetir ao Mehmet tudo o que acabas de me dizer. Ele foi ao mundo descrito no livro e regressou. Ele vem de lá, percebes? Mas não acredita que outros possam fazer fé no livro e possam ir lá. Viveu coisas pavorosas e perdeu a fé. Vais falar com ele?

- Quem é ele, o Mehmet?

            - Vê se estás em frente da sala 201 dentro de dez minutos, antes de começar a aula - disse-me ela e logo correu na direcção da porta e saiu.

A sala ficou vazia, deserta, como se também eu já não estivesse lá; fiquei ali pregado ao chão. Ninguém me tinha beijado assim até então, ninguém me tinha olhado como ela me olhou. Agora, en­contrava-me de novo só, e fazia-me muito medo a ideia de não a voltar a ver, de já não poder entrar com firmeza nesse outro mundo.

Quis correr atrás dela, mas batia-me o coração com tanta força que tive medo de sufocar. Aquela luz branca, tão branca, cegava-me não só os olhos mas também o espírito. «Tudo isto por causa de um livro», disse para comigo, porém vi até que ponto amava esse livro e até que ponto desejava estar lá, nesse outro universo. E, por um breve momento, julguei que ia chorar, apenas a exis­tência do livro me permitiu aguentar o abalo. Além disso, tinha a certeza de que aquela rapariga voltaria a beijar-me. Mas senti que o mundo desaparecera completamente e me abandonara.

Ouvi gritos, fui ver à janela. Na orla do parque, vários estu­dantes de engenharia atiravam bolas de neve uns aos outros. Fiquei a vê-los brincar sem compreender muito bem o que via. Já não era uma criança, de modo algum. Tinha ido para muito longe.

Isso acontece a todos. Um belo dia, um dia normal, quando pensamos caminhar na vida com o mesmo passo rotineiro, com a cabeça cheia das notícias dos jornais, dos barulhos do trânsito, com bilhetes de cinema velhos e migalhas de tabaco nos bolsos, notamos de súbito que na realidade nos encontramos há muito tempo noutro lado e que de modo nenhum nos encontramos onde os nossos passos nos levaram. Sim, havia muito que eu já não estava ali, tinha desaparecido no meio de uma luz terrivelmente baça, achava-me do outro lado da vidraça de gelo. Em momentos assim, se quisermos assentar de novo os pés na terra, se quisermos voltar a um universo - seja ele qual for - teremos de abraçar uma rapariga, teremos de conquistar o seu amor. Com que rapidez o meu coração, que não parava de bater loucamente, tinha aprendido estas teorias pretensiosas! Era isso, estava apaixonado, abandonava-me aos movimentos desordenados do meu coração... Consultei o relógio. Faltavam oito minutos.

Como um fantasma, andei pelos corredores de tecto alto, es­tranhamente consciente do meu corpo, da minha vida, da minha cara, da minha história. Poderia encontrá-la no meio desta mul­tidão? Que lhe diria se a encontrasse? Como estava a minha cara, isso não sabia. Entrei nos lavabos do patamar, bebi água da tor­neira, examinei no espelho os meus lábios que tinham acabado de receber um beijo. Oh, minha mãe, estou apaixonado, mãezinha, já não me sinto, vou-me embora, mãezinha, tenho medo e ainda assim estou pronto a fazer tudo por ela... Quem será então esse Mehmet, vou perguntar à Janan, de que é que ela tem medo, quem são os homens que querem matar todos os que leram o livro? Não tenho medo de nada, eu; se leste esse livro, Janan, se acreditaste nesse livro, como eu acreditei, não vais ter medo, de certeza.

Vi-me na barafunda dos corredores, andando num passo rápido, como se tivesse qualquer coisa muito importante para resolver. Subi ao segundo andar, passei pelas janelas altas que da­vam para o pátio interior onde havia uma fonte, ao andar ia dei­xando para trás um pouco de mim mesmo, pensando em Janan a cada passo que dava. Passei pela sala onde tinha aula, abrindo caminho por entre os meus colegas. Uma rapariga muito, muito sedutora acabava de me beijar, ali, há pouco, sabíeis? As minhas pernas levavam-me estupidamente para o meu futuro. Um fu­turo onde havia florestas sombrias, quartos de hotéis, fantasmas cor de malva ou azulados, onde havia a vida, a serenidade e a morte.

Três minutos antes do início da aula, mal cheguei à entrada da sala 201, identifiquei Mehmet mesmo antes de ver Janan. Era grande e delgado como eu, pálido, tinha um ar sonhador e cansado. Lembrei-me então vagamente de o ter visto antes com Janan. Ele sabe muitas mais coisas do que eu, pensei, viveu muito mais do que eu, deve ter mais um ano, ou talvez dois, do que eu.

Como ele me reconheceu, isso é que não sei. Chamou-me à parte, para junto dos armários.

- Parece que leste o livro - disse-me ele. - O que desco­briste?

- Uma vida nova.

- Acreditas mesmo nisso?

- Acredito.

Tinha uma expressão tão abatida que eu tive medo de tudo o que ele tinha passado.

- Ouve, eu também acreditei - disse-me ele. - Acreditei que poderia descobrir esse mundo. Apanhei autocarros de longo curso para ir de umas cidades para outras, acreditava que poderia descobrir essa terra, essas ruas, essas pessoas... Mas podes ter a certeza, no fim, não há mais nada a não ser a morte. Eles matam implacavelmente. Agora mesmo podem estar a vigiar-nos.

- Não o assustes! - disse-lhe Janan.

Mehmet calou-se, a olhar para mim, como se me conhecesse há anos. Mais tarde diria a mim mesmo que o desiludi.

- Não tenho medo - disse eu, olhando para Janan. - Sou capaz de ir até ao fim - acrescentei, naquele tom firme e ousado dos heróis dos filmes.

            O incrível corpo de Janan estava a dois passos de mim. Ela estava entre nós dois, mas mais perto dele.

- Não se trata de ir até ao fim - respondeu Mehmet. - Tra­ta-se de um livro. Alguém o imaginou e o escreveu. Um sonho, um fantasma. Não tens que fazer mais nada senão lê-lo e relê-lo.

- Repete-lhe o que me disseste a mim - pediu Janan.

- Esse mundo existe - disse-lhe eu.

Apetecia-me pegar no gracioso braço de Janan e puxá-la para mim, mas contive-me.

- E hei-de encontrar esse mundo.

- Não há mundo nenhum a descobrir. São apenas histó­rias! Mete bem na cabeça que se trata de um jogo para crianças inventado por um velho cretino. O velho decidiu um dia escrever um livro para divertir os adultos, tal como fazia para os miúdos. Não tenho a certeza de que ele próprio soubesse o que queria dizer. É uma leitura divertida mas, se acreditares, a tua vida está tramada.

- Há todo um mundo neste livro - respondi-lhe no tom utilizado nos filmes pelos heróis decididos e idiotas. - E hei-de encontrar o meio de lá chegar, tenho a certeza.

- Nesse caso, boa viagem!

Voltou-se para Janan, como quem diz: eu bem te tinha dito; já se afastava de nós quando parou:

            - Como podes ter a certeza dessa vida nova? - perguntou­-me.

            - Porque tenho a sensação de que o livro conta a história da minha vida.

            Sorriu-me amistosamente e deixou-nos.

            - Espera, não vás ainda - pedi a Janan. - É o teu namorado? - Agradaste-lhe muito - disse Janan. - Ele não tem medo por ele, mas pelos outros, pelas pessoas como tu e eu.

            - É o teu namorado? Não te vás embora sem me dizeres tudo.

            - Ele precisa de mim - disse ela.

            Tinha ouvido tantas vezes esta frase no cinema que lhe dei a réplica automaticamente, e com convicção:

            «Se me abandonasses, morria.»

            Ela sorriu e entrou na sala 201 com os outros estudantes. Por um momento ainda pensei em entrar com eles. Pelas grandes janelas viradas para o corredor, vi-os sentarem-se na mesma carteira, entre estudantes iguais a eles, vestindo as mesmas jeans ou os mesmos vestidos cinzentos ou de um verde desbotado. Ficaram à espera do início da aula em silêncio. Com um gesto de extrema suavidade, Janan atirou o cabelo para trás das ore­lhas com os dedos e, de novo, uma parte do meu coração se der­reteu. Ao contrário de tudo o que se conta sobre o amor nos filmes, afastei-me sem pensar, sentindo-me extremamente mise­rável.

Que pensa ela de mim? De que cor são as paredes da casa dela? De que fala ela com o pai? A casa de banho deles brilha de asseio? Tem irmãos e irmãs? O que come ao pequeno-almoço? Se o Meh­met é amante dela, então por que me beijou?

A pequena sala de aulas onde ela me tinha beijado estava vazia. Entrei, como um exército em debandada que no entanto sonha em travar nova batalha. Os meus passos ressoavam na sala vazia, as mi­nhas mãos miseráveis e culpadas que abriam um maço de cigarros, o cheiro da tinta, a luz branca de gelo... Encostei a testa à vidraça. Era isto a vida nova cuja soleira transpusera esta mesma manhã? As reflexões que me atulhavam a cabeça esgotaram-me mas, num recanto do meu espírito, o embrião de engenheiro que eu era continuava a fazer os seus pequenos cálculos. Não me sentia com forças para ir assistir à minha aula, de maneira que decidi esperar pelo fim da aula deles. Duas horas!

Sabia lá há quanto tempo a minha testa continuava colada ao vidro sujo, cheio de pena de mim, e isso enchia-me de deleite. Já pensava que as lágrimas me iam subir aos olhos quando, tocados por um vento ligeiro, começaram a cair flocos de neve. Em baixo, na encosta da colina que desce para Dolmabahçe, estava tudo tão calmo entre os plátanos e os castanheiros! As ár­vores não sabem que são árvores, pensei. Uns corvos bateram as asas e levantaram voo de um ramo coberto de neve. Contemplei­-os com enlevo.

Observava também os farrapos de neve caindo e baloiçando docemente; chegados a certa altura, pareciam hesitar em seguir os outros e, quando soprava um vento fraco, hesitavam de novo. De quando em quando, depois de se balancear um pouco no vazio, havia um floco que se imobilizava, e de repente, como se tivesse mudado de opinião, voltava a subir lentamente para o céu. Vi um grande número de flocos a subirem assim para o céu sem se deixarem cair na lama, no asfalto ou nas árvores. Mas quem sabia disso? Quem alguma vez tinha reparado nisso?

Quem alguma vez reparou que a ponta do triângulo consti­tuído pelo parque, bordejado dos lados pelas estradas asfaltadas, aponta para a Torre de Leandro? Quem reparou que os pinheiros à beira dos passeios se inclinaram ao longo dos anos, numa sime­tria perfeita, pelo efeito do vento leste, formando um octógono por cima das paragens dos miniautocarros? Quem diria, ao ver um homem parado à beira do passeio com um saco de plástico cor-de-rosa na mão, que metade da população de Istambul cir­cula com um saco de plástico na mão? Quem, ao ver nos parques sem alma o rasto dos famélicos cães vadios e dos trapeiros que apanham as garrafas do chão coberto de neve e de cinzas, pensou em encontrar o teu rasto, meu Anjo, quando ignoro ainda a tua verdadeira identidade? Seria assim que eu ia descobrir esse mun­do novo revelado pelo livro comprado dois dias antes numa banca de livros velhos num passeio?

Foi o meu coração inquieto, e não os meus olhos, que primeiro notou a silhueta de Janan nesse mesmo passeio, na luz cada vez mais cinzenta e na neve cada vez mais abundante. Trazia um casaco comprido violeta - o meu coração, portanto, guardara a memória do casaco sem que eu me apercebesse disso. Ao lado dela, de jaquetão cinzento, caminhava Mehmet sem deixar ras­to na neve, como fazem os espíritos malignos. Pensei em correr atrás deles. Pararam precisamente no sítio onde estava a banca de livros dois dias antes. Falavam, ou antes, discutiam, e pelos seus gestos largos, e pela atitude um pouco contraída de Janan adivinhava-se que se envolviam numa daquelas discussões típicas de certos casais.

Voltaram a andar, voltaram a parar. Estavam muito longe de mim mas, pela atitude deles e pelos olhares que lhes deitavam os transeuntes, eu podia adivinhar, sem precisar de recorrer à imaginação, que a discussão se tornava cada vez mais violenta.

Aquilo não durou muito. Janan voltou para trás, na direcção da Escola, aproximando-se de mim; Mehmet seguiu-a com os olhos e, depois, retomou a direcção da Praça de Taksim. De novo o meu coração se pôs a bater descompassadamente.

Foi então que vi atravessar o homem do saco de plástico cor­-de-rosa, o mesmo que estava à espera na paragem dos mini­autocarros de Sariyer. Eu estava com a atenção tão concentrada no andar da elegante silhueta de casaco violeta que os meus olhos não repararam naquele peão que atravessava a avenida. Mas havia qualquer coisa de estranho, que não batia certo, na atitude do homem do saco cor-de-rosa que corria de um passeio para o ou­tro. A certa altura, a dois passos do passeio, o homem tirou um objecto do saco, uma arma, e apontou-a a Mehmet, que se deu conta disso no mesmo instante.

Primeiro vi Mehmet perder o equilíbrio com o impacte da bala, só depois é que ouvi o tiro. Ouvi um segundo tiro. Estava mesmo à espera de ouvir um terceiro. Mehmet vacilou, depois caiu. O homem deitou fora o saco de plástico e fugiu atraves­sando o parque.

Janan continuava a aproximar-se; a sua passada era tão elegante e melancólica como o saltitar de um pássaro. Não ouvira os tiros. Um camião carregado de laranjas brancas da neve de­sembocou no cruzamento com um barulho alegre. O mundo parecia reanimar-se.

Para os lados da paragem dos miniautocarros vi as pessoas agi­tarem-se em alvoroço. Mehmet levantava-se. Ao longe, o homem, já sem saco, galgava a encosta da colina na direcção do estádio de Inonü, dando grandes saltos na neve do parque, como um pa­lhaço que tentasse fazer rir as crianças; dois cães brincalhões per­seguiam-no.

Eu deveria ter-me mexido, ter corrido ao encontro de Janan para a avisar, mas fiquei pregado ao chão. Continuava a olhar fixamente para Mehmet que cambaleava e olhava à sua volta, como que espantado. Quanto tempo? Muito, muito tempo, até ao momento em que Janan virou a esquina do prédio e desapa­receu do meu campo visual.

Deitei então a correr, galguei a escada, passei entre os polícias à paisana, os estudantes e os contínuos. Quando cheguei à entrada principal, Janan tinha desaparecido sem deixar rasto. Subi a avenida em passo de corrida, sem voltar a vê-la. Cheguei ao cruzamento. Não vi ninguém, não encontrei o mínimo vestígio dos acontecimentos que tinham acabado de se passar ali. Também Mehmet tinha desaparecido, assim como o saco de plástico cor-de-rosa que o homem tinha deitado fora.

No sítio em que Mehmet tinha caído, no passeio, a neve derretera, transformara-se em lama. Um garotinho de dois ou três anos, com um gorro na cabeça, e a mãe, elegante e bonita, passavam por ali nesse momento.

- Para onde fugiu o coelho, para onde foi o coelho? - repe­tia a criança.

Atravessei a rua sempre a correr, na direcção da paragem dos miniautocarros de Sariyer. O mundo aconchegara-se de novo no silêncio da neve e na indiferença das árvores. Na paragem dos miniautocarros, dois motoristas, estranhamente parecidos, rea­giram com espanto às minhas perguntas; não, eles não estavam ao corrente de nada. O empregado do café com ar de bandido que lhes servia chá também não tinha ouvido tiros, mas não era homem para se espantar fosse com o que fosse. O funcionário que anunciava os autocarros, com o seu apito na mão, encarou­-me como se eu fosse o assassino que tinha puxado o gatilho. Uns corvos desabaram sobre um pinheiro, por cima da minha cabeça. Um miniautocarro arrancava. No último momento, assomei a cabeça pela porta e repeti precipitadamente as mesmas per­guntas.

- Um rapaz e uma rapariga apanharam agora mesmo um táxi que mandaram parar desse lado... - disse-me uma pas­sageira, boa mulher.

A mulher apontava com o dedo para a Praça de Taksim. Mes­mo sabendo que era uma estupidez, deitei a correr na direcção indicada. No meio da multidão que enchia a praça, entre as lojas, os carros, os vendedores ambulantes, senti-me sozinho no mun­do. Dirigi-me para a Avenida Beyoglu quando, de repente, me veio à cabeça o Hospital das Urgências, e desci a Avenida Sira­selviler. Entrei pela porta das Urgências e mergulhei no cheiro de éter e tintura de iodo como se eu próprio fosse um caso de urgência.

Vi senhores muito dignos com as calças rotas e arregaçadas, cobertos de sangue. Vi as caras violáceas das vítimas de envene­namento que, depois de terem passado por uma lavagem ao estômago, tinham sido largadas na neve, deitadas nas macas, entre os vasos de flores, para que apanhassem um pouco de ar fresco. Indiquei o caminho a um homenzito simpático e bem­-educado que segurava na corda de estender roupa com que tinha garrotado o braço para evitar a morte por hemorragia, e que andava de porta em porta à procura de um médico de serviço. Vi dois homens, velhos amigos, que depois de se terem ferido reciprocamente com a mesma faca, estavam sentados com muita sensatez diante do polícia que redigia o auto da ocorrência, e prestavam os seus depoimentos desculpando-se por se terem esquecido da faca em questão. Esperei pela minha vez de ser atendido, depois as enfermeiras e, a seguir, os polícias informa­ram-me de que não, nenhum estudante ferido por bala, acom­panhado por uma rapariga de cabelo castanho-claro, se tinha apresentado nesse dia nas Urgências.

Seguidamente passei pelo Hospital Municipal de Beyoglu e tive a impressão de ter encontrado ali os mesmos velhos amigos que se tinham ferido à facada, as mesmas raparigas suicidas que tinham ingerido tintura de iodo, os mesmos aprendizes que ti­nham deixado apanhar o braço por uma máquina ou deixado furar o dedo por uma agulha, os mesmos passageiros entalados entre um autocarro e o abrigo de uma paragem, ou entre um barco e o cais de embarque. Examinei cuidadosamente os registos, tive de fazer um depoimento - não registado - a um agente da polícia a quem as minhas diligências devem ter despertado suspeitas, e, depois de ter aspirado o perfume da água-de-colónia com que um pai feliz nos aspergiu a todos abundantemente antes de subir à Maternidade, no primeiro andar, tive medo de desatar a chorar.

A noite caía quando voltei ao local dos factos. Esgueirei-me por entre autocarros e miniautocarros para entrar no parquezi­nho. Primeiro, os corvos bateram as asas com cólera por cima da minha cabeça, depois instalaram-se nos ramos para me vigiarem melhor. Encontrava-me talvez no coração da balbúrdia da cidade, mas apenas ouvia um silêncio ensurdecedor como se fosse um assassino dissimulado num canto, depois de ter crivado a vítima à facada. Ao longe, os vidros da sala de aula onde a Janan me tinha beijado estavam iluminados por uma luz amarelo-pálida e, lá dentro, as aulas deviam por certo continuar a decorrer. As árvores, cujo desconcerto me tinha chocado ainda essa manhã, haviam-se transformado em massas de cascas disformes e impla­cáveis. Caminhava pisando a neve que repassava os sapatos e encontrei as pegadas do homem que, quatro horas antes, lar­gando o saco de plástico, tinha corrido por cima desta mesma neve aos saltos de palhaço feliz. Para me certificar da realidade destas pegadas, segui-as até à estrada em baixo, depois voltei para trás pelo mesmo caminho, até ao parque, e apercebi-me de que as minhas pegadas se tinham confundido há muito com as do homem do saco cor-de-rosa. Os dois cães escuros que, tal como eu, tinham sido testemunhas dos factos, surgiram de trás dos ar­bustos, mas logo fugiram, assustados. Parei um momento, olhei para o céu: estava tão escuro como os cães.

À noite, a minha mãe e eu jantámos enquanto víamos televisão. As pessoas e as notícias - assassínios, acidentes, atentados, incêndios - que se sucediam no ecrã pareciam-me longínquos e incompreensíveis, semelhantes às ondas levantadas pela tempes­tade num braço de mar que se avistam das montanhas. E no en­tanto subsistia em mim o desejo de me confundir com esse mar ao longe, de um cinzento de chumbo, de me encontrar «lá». Entre as imagens que se agitavam ligeiramente no ecrã a preto e branco da televisão, cuja antena não tinha sido bem fixada, ninguém aludiu a um estudante ferido.

Fechei-me de novo no meu quarto depois de jantar. O livro estava lá, aberto em cima da mesa, exactamente como o tinha deixado; metia-me medo. Pressentia uma violência brutal no desejo que crescia em mim de responder ao apelo do livro, de voltar para ele, de me entregar completamente a ele. Disse para mim mesmo que não poderia resistir-lhe e saí de casa. Caminhei até à beira-mar, atravessando ruas cobertas de neve e lama. A escuridão do mar devolveu-me a coragem.

Assim reconfortado, sentei-me à mesa e, como se consagrasse o meu corpo a um dever sagrado, ofereci o rosto à luz que jorrava do livro. A luz, pouco violenta a princípio, acabou por me invadir com tanta força ao longo das páginas, tão profundamente, que senti todo o meu ser a derreter. Presa de uma necessidade insu­portável de viver e correr, de um entusiasmo e de uma impa­ciência que me afligiam o ventre, fiquei a ler o livro até de manhã.

 

Passei os dias que se seguiram à procura de Janan. Não voltara a vê-la na Escola no dia seguinte; passaram-se mais dois dias e continuava a não a encontrar. A princípio, isso pareceu-me normal, convencido de que Janan voltaria com certeza às aulas, mas, a pouco e pouco, o mundo antigo fugia-me debaixo dos pés. Estava cansado de procurar, de esperar, de olhar incessantemente à minha volta, estava terrivelmente apaixonado e, além disso, sob a influência do livro que passava as noites a reler, sentia-me muito só. Sabia muito bem que este mundo era feito de uma su­cessão de imagens, de uma série de hábitos contraídos cegamente e de sinais mal interpretados, e que o mundo e a vida reais se encontravam algures no interior ou no exterior destes parâ­metros, mas muito perto. Compreendera que ninguém, a não ser Janan, poderia mostrar-me o caminho.

Li com atenção todos os jornais diários e respectivos suple­mentos, todos os semanários, em que os assassínios, os homi­cídios provocados pela embriaguez, os acidentes sangrentos, os incêndios, eram relatados com todos os pormenores, mas não descobri qualquer vestígio do incidente de que tinha sido testemunha. Depois de ter lido o livro durante toda a noite, fui à Escola de Arquitectura por volta do meio-dia, percorri todos os corredores tentando convencer-me de que ela estava ali ou que iria aparecer em breve, e eu a encontraria. De vez em quando passava pela cantina, subia escadas e voltava a descê-las, ia ver ao átrio, à biblioteca, passava mais uma vez pelas colunas, parava à porta da sala onde ela me tinha beijado, entrava numa sala qualquer para mudar de ideias assistindo à aula, quando tinha paciência para o fazer, saía da aula para voltar a fazer o mesmo percurso. Procurar, esperar, reler o livro durante roda a noite: não fazia outra coisa.

Uma semana mais tarde esforcei-me por me introduzir no círculo dos colegas de curso de Janan. Estava convencido de que ela, tal como Mehmet, não tinha muitos amigos entre os colegas. Dois ou três estudantes disseram-me que Mehmet vivia num hotel do bairro de Taksim e que trabalhava nesse hotel como recepcionista nocturno e secretário. Mas ninguém me soube explicar por que não ia à Escola. Uma estudante que terminara o liceu com Janan, mas que nunca fora sua amiga, segundo me referiu, e parecia mesmo ser bastante hostil em relação a ela, dis­se-me que ela morava em Nigantas1. Outra contou-me que tinha passado noites com ela a trabalhar em projectos da escola e adiantou-me que Janan tinha um irmão mais velho, um belo rapaz muito bem-educado, que trabalhava na empresa do pai; pareceu-me mais interessada no irmão do que em Janan. Não foi por ela que soube a morada de] Janan; consegui-a na secretaria explicando que tinha a intenção de enviar cartões de boas-festas a todos os estudantes da sua turma.

Passava as noites a ler o livro até de manhã, até à hora em que começavam a doer-me os olhos e a insónia me paralisava os bra­ços e as pernas. Durante as minhas leituras, a luz que jorrava do livro parecia-me por vezes tão violenta, tão intensa que não só sentia a alma e o corpo a derreterem, mas tinha também a sen­sação de que tudo aquilo que fazia de mim o que eu era desa­parecia sob esta luz. Imaginava então a luz que me invadia, cada vez mais forte, a princípio como um clarão pálido surgindo de uma fissura no solo, tornando-se de seguida cada vez mais intensa, invadindo o mundo, um mundo onde eu já tinha o meu lugar; sonhava que encontrava Janan nas ruas desse mundo que eu imaginava com homens novos muito corajosos, com árvores imortais e cidades desaparecidas, e sonhava que ela se lançava nos meus braços.

Uma noite, em finais de Dezembro, dirigi-me ao bairro de Nigantas, onde morava Janan. Calcorreei longamente e ao aca­so a avenida, hesitante, ao longo das montras iluminadas para o Ano Novo, por entre a multidão de senhoras elegantes que, acompanhadas pelos filhos, faziam as últimas compras. Vagueei diante das pastelarias e lojas de trapos ou sanduíches abertas recentemente. À hora do encerramento das lojas, quando as ruas começavam a esvaziar-se, toquei à porta de um aparta­mento, num prédio que se encontrava numa rua paralela à ave­nida. Abriu-me a porta uma criada: disse-lhe que era colega de turma de Janan; a criada desapareceu no interior. Tive tempo de ouvir um discurso político na televisão, depois as pessoas a cochicharem lá dentro. Apareceu o pai. Grande, com camisa branca, uma toalha de mesa imaculada na mão, convidou-me a entrar. A mãe, maquilhada e intrigada, o irmão, belo rapaz, estavam instalados numa mesa onde não tinha sido posto o quarto talher. Estavam a passar as notícias na televisão.

Expliquei-lhes que era estudante da Escola de Arquitectura, da mesma turma de Janan, que havia já vários dias que ela não aparecia nas aulas, que todos os colegas estavam inquietos, que alguns de nós tínhamos mesmo telefonado, sem obtermos uma resposta satisfatória. Além disso, ela não me tinha devolvido um trabalho de estática que eu tinha de terminar, por isso me vira obrigado a ir buscá-lo e pedia desculpa. Com o sobretudo velho do meu falecido pai no braço esquerdo, eu tinha decerto o ar de lobo mau escondido sob uma pele de ovelha que perdera todas as suas cores.

- Pareces bom rapaz - disse o pai de Janan; depois declarou que ia falar comigo com toda a franqueza e pediu-me que eu lhe respondesse também francamente: eu era simpatizante de qualquer corrente política, de esquerda ou de direita, fundamen­talista ou socialista? Não. Tinha contactos com associações políticas, dentro ou fora da Universidade? Não, não tinha qualquer contacto desse género...

Ficámos calados. As sobrancelhas da mãe levantaram-se com simpatia e aprovação. O olhar do pai - que tinha os olhos cor de mel, como os de Janan - aflorou as imagens furtivas da tele­visão, vagueou um longo momento por paragens que não exis­tiam, voltou a pousar-se em mim com segurança.

Janan tinha saído de casa, desaparecido. A palavra «desapa­recer» talvez não fosse a mais adequada, porque de dois em dois ou de três em três dias ela telefonava de uma cidade longínqua, como se percebia pelo ruído de fundo na linha telefónica, e pedia-lhes para não se inquietarem, que estava tudo bem com ela, e depois, não atendendo às perguntas do pai nem às súplicas da mãe, desligava sem dizer mais nada. Sendo assim, continuava o pai, não teriam eles razões para se inquietarem, para pensarem que a filha estava a ser manipulada, utilizada no trabalho sujo de uma qualquer organização política? Já tinham pensado avisar a polícia, mas acabaram por desistir porque sempre se fiaram no bom senso de Janan e tinham a certeza e a confiança de que ela acabaria por reagir e desenvencilhar-se sozinha de todos aqueles problemas. Quanto à súplica que a mãe me fez com voz chorosa - depois de ter escrutinado com olhos penetrantes o que me dizia respeito, desde a roupa ao cabelo, desde a herança paterna que eu tinha posto nas costas de uma poltrona até aos sapatos - consistia em que eu lhe dissesse tudo imediatamente, qualquer informação ou mesmo impressão que tivesse, suscep­tíveis de clarificar um pouco a situação.

Pus uma cara espantada e disse-lhes: não minha senhora, não faço a mínima ideia, a mínima ideia. Ficámos todos um bom momento a olhar para o prato de empadinhas e para a salada de cenouras que estavam na mesa. O belo rapaz, que tinha saído da sala e entrado várias vezes, voltou, pedindo des­culpa por não ter encontrado o meu trabalho inacabado. Insi­nuei que talvez pudesse procurá-lo eu próprio; mas, em vez de me permitirem a entrada no quarto da filha desaparecida, contentaram-se em convidar-me, sem insistirem muito, a sen­tar-me no lugar vago da mesa familiar. Embora estivesse apaixonado, tinha o meu orgulho, por isso recusei, mas logo lamentei a minha decisão quando vi, ao sair do quarto, uma fotografia emoldurada sobre o piano: Janan, com uns dez anos, com trancinhas, e umas asas de anjo - segundo um costume adoptado do Ocidente -, por ocasião de uma festa escolar, su­ponho, com um sorriso vago, com um olhar triste de criança, entre o pai e a mãe.

Como estava fria e hostil a noite, e que implacáveis eram as ruas escuras! Percebi então por que era que os cães vadios que assombram as ruas se apertam sempre uns contra os outros. Acordei com ternura a minha mãe que dormitava diante da televisão, pousei-lhe os dedos no pescoço pálido, aspirei o seu perfume; como gostaria que ela me apertasse nos braços! Mas quando fechei a porta do meu quarto, senti uma vez mais que a minha vida real estava prestes a começar.

Pus-me a reler o livro. Lia-o com submissão, com respeito, desejando que ele me levasse para longe deste universo. Paragens novas, homens novos, imagens novas surgiram diante dos meus olhos. Vi nuvens de fogo, mares escuros, árvores violáceas, ondas escarlates. Depois, como acontece em certas manhãs de Prima­vera em que o sol reaparece depois de uma chuvada e vejo os prédios sujos e tristes e as janelas cegas recuarem e iluminarem­-se bruscamente enquanto avanço com um passo de novo seguro e optimista, as imagens confusas que me assombravam o espírito desvaneceram-se lentamente, e o amor apareceu, diante de mim, aureolado de uma claridade de um branco cintilante. Trazia uma criança nos braços: a rapariguinha da fotografia emoldurada em cima do piano.

A miúda olhava para mim a sorrir, preparava-se talvez para me dizer qualquer coisa, e talvez ma tivesse dito, mas eu não fui capaz de a ouvir. Passei por um momento de desespero. Uma voz dentro de mim dizia-me que nunca mais poderia entrar nesta foto tão bela, e eu, com tristeza, dei-lhe razão. No mesmo instante, apoderou-se de mim uma saudade e, com o coração a arder de dor, vi as duas imagens desaparecerem numa estranha ascensão.

Estas visões despertaram de imediato em mim tanto pavor que, como fizera da primeira vez que tinha lido o livro, afastei­-o do rosto, como para me proteger da luz que jorrava das suas páginas. Pude ver com desespero que o meu corpo estava aban­donado ali, no silêncio do meu quarto e na serenidade que a minha mesa de trabalho garantia; vi a imobilidade dos meus bra­ços e das minhas mãos, e os móveis do quarto, e o maço de cigar­ros, a tesoura, os livros escolares, as cortinas e a cama.

Desejava que o meu corpo, de que sentia vivamente o calor e a pulsação, pudesse afastar-se deste mundo, mas, ao mesmo tempo, continuava consciente dos ruídos no interior do prédio, do pregão longínquo do vendedor de boza, e compreendia que a possibili­dade de ler um livro pela noite dentro, de me achar presente neste mundo e neste instante não eram coisas verdadeiramente into­leráveis. Durante um longo momento, escutei unicamente estes barulhos: o buzinar dos carros ao longe, o ladrar dos cães, um vento quase imperceptível, uma troca de palavras entre dois tran­seuntes (então até amanhã! - disse um) e, dominando todos os outros, o rugido de um comboio de mercadorias. Muito mais tarde, quando já tinha a impressão de que todos estes barulhos não tardariam a desaparecer num silêncio absoluto, surgiu-me de re­pente uma imagem diante dos olhos e percebi então como o livro me tinha penetrado na alma: quando expus de novo o rosto à luz que jorrava do livro, o meu espírito já não era senão uma página em branco num caderno aberto à minha frente. E era assim que todo o conteúdo do livro se imprimia na minha alma.

Inclinei-me para retirar de uma gaveta um caderno quadricula­do para «Mapas e Métodos» que comprara para a cadeira de Está­tica, algumas semanas antes de descobrir o livro e que nunca tinha utilizado. Abri-o na primeira página, respirei o cheirinho bom do papel em branco e, pegando na esferográfica, comecei a trans­crever, frase por frase, tudo o que me dizia o livro. Depois de ter anotado no caderno uma frase que o livro me segredava, passava à seguinte, e assim sucessivamente. Quando encontrava um parágrafo no livro, fazia um novo parágrafo no caderno e, ao cabo de algum tempo, pude verificar que tinha copiado exactamente as palavras desse parágrafo. De tal maneira que, parágrafo atrás de parágrafo, dei uma nova vida a tudo o que me dizia o livro. Mais tarde, endireitei a cabeça para consultar o livro, depois o caderno. Tinha sido mesmo eu a escrever tudo o que estava no caderno, mas tudo o que eu escrevera era a exacta reprodução do que estava escrito no livro. Fiquei muito satisfeito, e foi assim que, todas as noites, me dediquei a este trabalho, até de manhã.

Deixara de ir às aulas. Passava o tempo a calcorrear os corredo­res, como um homem que foge da sua própria alma, sem o menor interesse em saber que aula era dada em que sala; incansavelmente, sem me conceder tréguas, descia à cantina, subia ao último andar, voltava a descer até à biblioteca; dali passava para as salas de aulas, voltava à cantina, e, de cada vez que confirmava a ausência de Janan, um espasmo doloroso atravessava-me o ventre.

Os dias foram passando; habituei-me a este sofrimento e já con­seguia viver com ele e controlá-lo um pouco. Talvez aquele meu corrupio, de um lado para o outro, me ajudasse, assim como os cigarros, mas o mais importante era descobrir coisas para passar o tempo: uma história que ouvia contar, um lápis de desenho novo, um casaco comprido violeta, árvores entrevistas através de uma janela, uma cara nova detectada na rua, enfim, todas essas coisas me impediam, nem que fosse por pouco tempo, de tomar cons­ciência desta dor feita de impaciência e de solidão que me irradiava do ventre e se me espalhava por todo o corpo. Quando en­trava num sítio com a esperança de lá encontrar Janan, na cantina por exemplo, não esgotava de imediato todas as possibilidades que me oferecia esse lugar inspeccionando-o rapidamente, olhava primeiro para o canto onde as estudantes de jeans e cigarro na mão estavam à conversa, e imaginava que Janan estava sentada algures atrás de mim. Chegava a convencer-me disso de tal maneira que não me virava logo, querendo fazer durar essa sensação. Olhava demoradamente para os estudantes que faziam fila na caixa ou os que se sentavam na mesa em que Janan tinha pousado o livro duas semanas atrás, ganhando assim alguns segundos de felicidade ao imaginar o calor da presença de Janan atrás de mim e ao acreditar ainda com mais força nos meus fantasmas. Mas quando me virava e confirmava a sua ausência, e também a ausência de qualquer indício que pudesse levar-me até ela, a ilusão que por um momento me percorrera lentamente as veias como um suave elixir era substituída pelo veneno que me queimava o estômago.

Tinha lido e tinha ouvido dizer muitas vezes que o amor era uma dor benéfica. Foi durante este período que encontrei com muita frequência este cliché nos livros de astrologia ou nos horós­copos dos jornais, ou ainda nas secções de «Casa - Família - Feli­cidade» das revistas, entre fotografias de saladas mistas e fórmulas de cremes de beleza. A dor atroz que me apertava tão dolorosa­mente as entranhas, a solidão e também o ciúme mesquinho que não me largava afastavam-me de tal forma das pessoas e tornavam­-me tão infeliz que eu procurava a ajuda dos horóscopos dos jornais e revistas; também acreditava cegamente em toda a espécie de presságios: o número de degraus que levavam ao andar de cima era ímpar, logo, Janan estaria lá em cima. Se a primeira pessoa a passar pela porta fosse uma mulher, tal significava que nesse dia veria Janan. Contava até sete: se o comboio arrancasse antes de eu ter acabado de contar até sete, Janan apareceria e poderíamos final­mente falar! Se eu fosse o primeiro a saltar para o cais à saída do barco, ela apareceria nesse dia...

Eu era sempre o primeiro a saltar para o cais; nunca punha o pé entre duas lajes da calçada; gostava de adivinhar que o número de cápsulas de garrafas espalhadas pelo chão dos cafés era sempre um número ímpar e não me enganava. Bebi chá com um apren­diz de soldador que vestia uma camisola da mesma cor violeta do casaco de Janan. Tive até a sorte de poder escrever o seu nome com as letras das matrículas dos cinco primeiros táxis com que me cruzei. Consegui atravessar a passagem subterrânea de Kara­koy, de uma ponta à outra, sem respirar. Fui postar-me diante das janelas do seu apartamento em Nigantas e contei até nove mil sem me enganar. De entre os meus amigos, deixei de falar com aqueles que não sabiam que o seu nome significava ao mesmo tempo Deus, alma gémea, alma e bem-amada. Ao reparar que os nossos nomes rimavam - Janan, Osman -, compus uma pequena lengalenga melodiosa - do género das que podem ler-se nos papelinhos que embrulham os caramelos «Vida Nova» - destinada a embelezar o nosso convite de casamento já impresso na minha imaginação; durante uma semana inteira consegui, todas as noites, acertar no número de janelas ilumi­nadas que poderia ver da minha janela às três horas da manhã exactamente, sem nunca ter ultrapassado a margem de erro de cinco por cento. Declamei a trinta e nove pessoas o célebre verso de Fuzuli:Janan yok ise jan gerekmez?[N 2], invertendo a ordem das

 

2 «Para que serve uma alma sem a sua alma gémea?» (tur.).

 

palavras. Telefonei para casa de Janan vinte e oito vezes, disfar­çando sempre a voz, adaptando-a a vinte e oito identidades dife­rentes, e nunca voltava a casa sem ter invocado o seu nome trinta e nove vezes utilizando letras que ia buscar a cartazes e a reclamos luminosos que se acendiam e apagavam nas montras das churras­carias ou das farmácias, ou nos guichés de bilhetes de lotaria. E, no entanto, Janan não voltou.

Uma noite em que cheguei em casa muito tarde, depois de ter duplicado o número destes jogos, convencido de que, graças à minha paciência, tinha levado a melhor sobre os números e o acaso, notei que as luzes estavam acesas no meu quarto. Talvez a minha mãe estivesse preocupada por eu ainda não ter regres­sado, ou então procurava qualquer coisa no meu quarto, mas foi uma visão completamente outra que surgiu no meu espírito.

Imaginei que eu próprio estava sentado à minha secretária no quarto cuja janela iluminada estava a ver. Imaginei esta cena com tanto desejo e tanta paixão que, por um breve instante, me convenci mesmo de que estava a ver a minha cabeça ilumi­nada pela luz alaranjada do candeeiro de mesa, diante do pedaço de parede branco sujo que se vislumbrava por entre os cortinados meio corridos. No mesmo instante despertou em mim uma sen­sação de liberdade tão violenta como um choque eléctrico que me paralisou. Era tudo tão simples, pensei. O homem que estava no quarto, e que eu observava com o olhar de outro, devia neces­sariamente estar lá. Quanto a mim, deveria fugir desse quarto e dessa casa, fugir de tudo o que me rodeava, desde o perfume da minha mãe até à minha cama e ao meu passado de vinte e dois anos; a vida nova não poderia começar sem que eu abandonasse o meu quarto, porque nunca poderia juntar-me a Janan nem descobrir essas outras paragens se me limitasse a sair do quarto para lá voltar todas as noites.

Quando cheguei ao meu quarto examinei - como se per­tencessem a outro - a cama, os livros amontoados numa ponta da mesa, as revistas pornográficas que eu já não utilizava para me masturbar desde que conhecia Janan, o pacote de maços de cigar­ros que pusera a secar em cima do aquecedor, os trocos num pires, o meu porta-chaves, o armário cuja porta fechava mal, tudo o que me ligava ao meu antigo universo; compreendi que tinha de me ir embora, fugir.

Mais tarde, quando já estava a ler o livro e a copiá-lo, pressenti vagamente o sinal que me era enviado pelo que lia e escrevia: eu não devia estar num qualquer sítio determinado, mas em toda a parte ao mesmo tempo. O meu quarto era «um sítio deter­minado» e não «toda a parte». Por que haveria de ir à Escola no dia seguinte de manhã, pensei, se Janan não ia aparecer lá? Havia outros lugares onde Janan não apareceria, onde eu tinha ido em vão, mas não voltaria lá mais. Iria para onde me levasse o livro, para onde devia estar Janan e também a vida nova. Assim, ao escrever o que me contava o livro, tomei consciência dos lugares para onde deveria dirigir-me e senti a felicidade de me ir tor­nando lentamente outro homem. Bastante tempo depois, quando folheava as páginas que tinha preenchido, como um viajante satis­feito com o trajecto que percorrera, pude ver claramente que homem era esse em que estava a tornar-me.

O homem que transcrevia linha a linha o livro que estava a ler e que, à medida que escrevia, descobria a pouco e pouco o cami­nho a seguir para alcançar a vida nova que procurava - esse ho­mem era eu. O homem a quem a leitura de um livro mudara a vida toda, que se apaixonara, que descobrira que seguiria o rumo de uma vida nova - era eu. O homem cuja mãe, antes de se ir deitar, batia discretamente à porta do seu quarto para lhe di­zer: «Passas as noites a trabalhar, não fumes muito, ao menos»- era eu. O homem que só se levantava da mesa de trabalho à hora em que se calavam todos os barulhos da noite, em que, no bairro, já só se ouvia ao longe o ladrar das matilhas de cães; que examinava pela última vez o livro que andava a ler havia semanas e o caderno preenchido sob a inspiração livro - era eu. O homem que pegava nas suas economias guardadas no armário dentro de uma meia, que saía do quarto sem apagar as luzes, que parava diante da porta do quarto da mãe para escutar com amor o barulho da sua respiração - era eu. Era eu, meu Anjo, que me esgueirava da minha própria casa, muito depois da meia­-noite, com o ar de um estranho que, receoso, fugisse de uma casa que 'não era a sua e se perdesse nas trevas da rua. O homem que, do passeio, lançava um último olhar às janelas iluminadas do seu próprio quarto, com as lágrimas nos olhos, com a compai­xão e o sentimento de solidão que se tem perante o espectáculo de uma vida frágil e há muito acabada - era eu. Era eu quem corria com entusiasmo rumo a uma vida nova, de ouvido atento ao barulho dos meus passos resolutos.

No bairro apenas era visível ainda a claridade das luzes baças da casa do Tio Rifki, dos caminhos-de-ferro. Trepei para o muro do jardinzinho; pelas cortinas entreabertas pude ver a Tia Ratibe, sua mulher, envolvida numa luz mortiça, puxar o fumo do ci­garro. Num dos livros para crianças que o Tio Rifki escrevera, o jovem herói corajoso que se lança à conquista do Eldorado caminhava como eu, derramando lágrimas, pelas ruas tristes da sua infância, de ouvido atento ao apelo das vielas escuras, ao ruído das paragens longínquas, ao ramalhar das árvores ainda invisíveis. Com o sobretudo do meu pai, reformado dos cami­nhos-de-ferro sobre os ombros, com as lágrimas nos olhos, eu embrenhava-me no coração da noite escura.

A noite escondeu-me, a noite dissimulou-me, a noite indicou­-me o caminho. Alcancei o ventre da cidade que vibrava pesada­mente, as suas avenidas de betão petrificadas como paralíticos, os seus bulevares de néon que estremeciam a cada gemido dos camiões carregados de carne, de leite, de conservas ou de ban­didos. Rendi homenagem aos contentores que vomitavam o seu lixo nos passeios molhados em que se reflectiam os candeeiros; perguntei o meu caminho às árvores inquietantes, incapazes de se manterem sossegadas; lancei um olhar cúmplice aos bons cidadãos ainda mergulhados nas suas contas, atrás das caixas, em lojas mal iluminadas; evitei os polícias de plantão em frente das esquadras; sorri com melancolia aos bêbados, aos vagabundos, aos incréus, aos sem-abrigo que não faziam a mínima ideia da vida nova; troquei olhares sombrios com os motoristas dos táxis cingidos com as suas faixas enxadrezadas, que se aproximavam furtivamente de mim, como pecadores insones, no silêncio do vermelho dos semáforos; não me deixei seduzir pelas beldades aliciadoras que me sorriam dos cartazes de publicidade para sabonetes; também não me fiei nas imagens de rapazes elegantes que me sugeriam marcas de cigarros, nem mesmo nas estátuas de Atatürk; tal como não me fiei nas primeiras edições dos jornais disputadas pelos bêbados e pelos insones; nem no vendedor de cautelas de lotaria que bebia chá num café aberto toda a noite, nem no seu amigo que me fez sinal com a mão e me gritou: «Anda sentar-te aqui, jovem!» O fedor que se desprendia das entranhas da cidade em plena decomposição fez com que me des­viasse para a estação rodoviária que cheirava a mar, a carne gre­lhada, a retrete e a gases dos escapes, a gasolina e a gordura.

Para não me deixar intoxicar pelas letras multicores de plás­tico transparente que encimavam as agências de viagens, pro­pondo-me centenas de nomes de cidades ou de localidades e prometendo-me novos países, novas vidas, novos corações, entrei num pequeno restaurante. Sentei-me a uma mesa, de costas voltadas para as saladas, os leites-cremes, os bolos de sêmola expostos nas vitrinas de frigoríficos enormes dispostos em filas sucessivas como as letras de néon das cidades ou das empresas de camionagem, perguntando a mim mesmo em que estôma­gos e a quantas centenas de quilómetros de distância iriam ser digeridos. E acabei por esquecer aquilo de que estava à espera. Estava talvez à tua espera, Anjo, esperava que viesses tirar-me com gentileza dali, mostrar-me a direcção certa, prevenir-me com ternura dos perigos. Mas não havia ninguém no restaurante além de alguns passageiros que enfardavam comida e dormiam em pé, e uma mulher com o bebé ao colo. Quando procurava com os olhos quaisquer indícios que pudessem levar-me à minha nova vida, um cartaz na parede pôs-me de sobreaviso: «Não brinque com as luzes!» E ainda outro: «Os wc são pagos.» «O cliente não está autorizado a trazer bebidas alcoólicas», re­zava uma terceira, com letras mais severas e mais enérgicas. Julguei ver passar diante das janelas do meu espírito corvos ne­gros batendo as asas, depois tive a sensação de que este ponto de partida me levaria à morte. Gostaria de poder descrever-te, Anjo, a tristeza deste restaurante que se fechava lentamente sobre si mesmo, mas era tão terrível o meu cansaço que ouvia o gemido dos séculos, e o seu tumulto lembrava o das florestas que nunca conhecem o sono. Gostava do espírito turbulento que rugia nos motores dos autocarros de longo curso, cada um dos quais partia para uma terra diferente, sabia que Janan estava a chamar-me de muito longe, do limite onde ela procurava a en­trada para um outro universo, mas era-me inaudível a sua voz porque adormecera com a cabeça em cima da mesa, como o espectador dócil que se resigna a ver um filme sem som por razões de avaria técnica.

Não sei quanto tempo dormi. Quando acordei continuava no mesmo restaurante, mas com outros clientes, e senti que já poderia indicar ao Anjo o ponto de partida da longa viagem que deveria conduzir-me a instantes irrepetíveis. À minha frente estavam três rapazes que contavam ruidosamente o dinheiro e calculavam o preço dos bilhetes. Um velho extremamente soli­tário tinha pousado o paletó e o saco de plástico em cima da mesa, ao lado da tigela de sopa onde mergulhava a colher na esperança de ali encontrar o odor da sua triste vida, e um em­pregado bocejava lendo o jornal na penumbra onde se alinhavam as mesas vazias. Muito perto de mim estava uma vidraça emba­ciada que ia do chão sebento ao tecto e, para lá dela, havia uma dessas noites em azul marinho e, na noite, os autocarros com o roncar dos seus motores que me chamava para a outra terra.

A uma hora indeterminada, subi para um deles, ao acaso. Ain­da não era manhã, mas a pouco e pouco, à medida que avançá­vamos, rompeu a madrugada, nasceu o Sol, os meus olhos encheram-se de luz e sono.

Depois tomei outros autocarros, apeei-me deles, vagueei pelas estações rodoviárias, voltei a tomar outros autocarros, dormi no assento, as noites sucediam-se aos dias. Tomei ainda outros auto­carros, apeei-me deles em cidadezinhas; durante dias e dias viajei nas trevas e disse para mim mesmo que este jovem passageiro estava mesmo decidido a deixar-se levar pelas estradas que o leva­riam ao limiar desse outro universo.

 

Por uma noite fria de Inverno, meu Anjo - havia já vários dias que viajava -, estava eu dentro de um dos muitos auto­carros que tomava todos os dias, sem saber donde vinha, sem saber onde estava, sem saber para onde ia, sem mesmo reparar a que velocidade circulávamos. Estava sentado algures à direita, na traseira do autocarro barulhento e fatigado, com as luzes interiores havia muito apagadas; hesitava entre dormir e acor­dar, estava mais perto do sonho do que do sono, e mais perto ainda dos fantasmas que giravam no exterior do que do sonho. Via por entre as pálpebras semicerradas uma árvore solitária e raquítica numa estepe interminável, apenas iluminada pelos faróis do nosso carro, na iminência de ficar zarolho, um roche­do onde tinham pintado uma publicidade a uma água-de-coló­nia, os postes eléctricos, as luzes ameaçadoras dos raros camiões com que nos cruzávamos, e olhava ao mesmo tempo para o filme vídeo que passava no ecrã por cima do assento do condu­tor. De cada vez que a heroína tomava a palavra, o ecrã tingia­-se da mesma cor violácea do casaco de Janan, mas quando o seu interlocutor, que falava com muita rapidez e muito ím­peto, lhe dava a réplica, o ecrã coloria-se de um azul que talvez outrora me tivesse impressionado. E é assim que as coisas se passam sempre. Eu pensava em ti, lembrava-me de ti, quando o roxo e o azul se confundiam no ecrã. Mas não se beijaram, não...

N esse exacto momento, havendo já três semanas que eu viajava de autocarro, fui acometido, em pleno filme, por um sentimento fortíssimo de insuficiência, de apreensão e de expectativa. Tinha um cigarro na mão, sacudia nervosamente a cinza para o cinzeiro, a que fecharia a tampa um instante depois batendo-lhe violentamente com a testa. A impaciência colérica que fervia dentro de mim à vista da hesitação dos apaixo­nados que não havia meio de se beijarem transformou-se num mal-estar ainda mais nítido e mais profundo. Tive a sensação de que um acontecimento autêntico e grave se aproximava de mim, que estava prestes a surgir. Reinava o mesmo silêncio mágico que se apodera de todos os espectadores - incluindo os das salas de cinema - no momento que precede uma coroação nos filmes. No instante em que a coroa vai ser posta na cabeça do príncipe, o silêncio é tal que se consegue ouvir o bater das asas de um casal de pombos que atravessa de um lado ao outro a praça real. Ouvi gemer o velho sentado a meu lado, virei-me para ele. A sua cabeça calva balançava pacificamente no vidro escuro da janela coberta de gelo, essa cabeça cujos sofrimentos insuportáveis o velho me tinha descrito cem quilómetros e duas aldeolas miseráveis - invejosamente copiadas uma pela outra - atrás. Disse então para mim que, no hospital da cidade­zinha aonde deveríamos chegar de manhã, o médico faria bem em lhe aconselhar a apoiar assim a cabeça contra os vidros frios para acalmar as dores do seu tumor, e, voltando os olhos para a estrada escura, fui acometido por um pânico que já não sen­tia havia vários dias. O que significava aquela espera irresistível e fortíssima? Aquele sentimento de urgência e de impaciência que se apossara de mim momentos antes?

Fui bruscamente sacudido pelo barulho estridente de uma explosão, por um choque violento que me atingiu nas vísceras. Ejectado do meu assento, fui cair no da frente, batendo contra tudo o que me rodeava, crivado de bocados de ferros, alumínio e vidro, dobrado em dois. No mesmo instante, tombei para trás e achei-me no mesmo assento, já completamente outro homem.

O carro é que já não era o mesmo. Podia ver do meu lugar, ainda aturdido, por entre um nevoeiro esbranquiçado, que o assento do condutor e os bancos da primeira fila tinham desapa­recido, reduzidos a nada, evaporados!

Era então isso que eu esperara, o que eu adivinhara. Com que força senti tudo o que descobria em mim: a paz, o sono, a morte, o tempo! Estava ao mesmo tempo aqui e lá. Em paz, mas envolvido num combate sem tréguas, sem sono como um fantasma, mas também dormindo sem parar, presente em tudo ao mesmo tempo numa noite interminável e também que corria com rapidez. Foi assim que saí do meu lugar au ralenti, exacta­mente como nos filmes, e, sempre au ralenti, passei ao lado do jovem assistente do condutor, que já emigrara para o reino dos mortos sem largar da mão a garrafa. Saí pela porta de trás e pousei o pé no jardim escuro da noite.

Este jardim árido e sem limites era bordejado de um dos lados pela estrada asfaltada coberta de estilhaços de vidro e, do outro estendia-se, ainda invisível, rumo ao país sem regresso. Conven­cido de que se tratava do país silencioso e de uma tepidez paradi­síaca que, desde havia semanas, pairava vagamente na minha imaginação, avancei num passo decidido para a noite de veludo, caminhei como um sonâmbulo, mas estava bem acordado, os meus pés já não tocavam o chão. Talvez porque já não tinha pés, talvez porque já não me lembrava de nada, estava ali, pura e simplesmente, com o corpo e o espírito entorpecidos. Cheio de mim, unicamente de mim.

Sentei-me num sítio qualquer, perto de uma pedra na escuri­dão encantatória, depois estendi-me na terra. Lá em cima, algu­mas raras estrelas, aqui e ali. E, a meu lado, uma esquina do pedregulho bem real. Pousei a mão na pedra com nostalgia, sen­tindo o incrível prazer que o contacto com a realidade me dava. Houve um tempo em que o mundo era real, em que os contac­tos eram reais, em que os cheiros eram mesmo cheiros, em que os sons eram sons. Seriam esses tempos um aspecto do presente, Ó estrela? Via a minha própria vida no escuro. Li um livro, des­cobri-te, se isso é a morte é porque regressei à vida. Neste ins­tante estou aqui, neste mundo, sou um ser inteiramente novo, sem memória nem passado. Sou uma nova estrela revelada numa nova série televisiva, sinto o espanto infantil do prisioneiro eva­dido, que descobre as estrelas do céu pela primeira vez depois de muitos anos. Ouço o chamamento de um silêncio como nunca

vi igual, e faço incessantemente a mesma pergunta: porquê estes autocarros, estas noites, estas cidades? Porquê todas estas estra­das, todas estas pontes, estas caras? Porquê esta solidão que, ànoite, cai sobre mim como um falcão? Porquê estas palavras que se agarram às aparências? Porquê este tempo em que não há retorno? Eu podia ouvir o estalar da terra e o tiquetaque do meu relógio. Porque o tempo é um silêncio a três dimensões, dizia o livro. E eu pensava: portanto, vou morrer, sem te voltar a ver, sem compreender nada das três dimensões, sem conhecer o sen­tido da vida e do mundo e do livro, sem te voltar a ver, Janan. Era assim que eu falava às estrelas novíssimas, quando uma ideia infantil me atravessou o espírito, como se eu fosse ainda apenas um garoto: eu era ainda muito criança para morrer! E sentindo nas mãos frias o calor do sangue que me corria da testa, voltei a descobrir com alegria as propriedades tácteis, olfactivas e visuais dos objectos. Olhei para o mundo com felicidade, cheio de amor por ti, Janan!

Atrás de mim, onde eu o deixara, no sítio em que o nosso des­graçado autocarro tinha chocado de frente com um camião car­regado de cimento, erguia-se uma nuvem de poeira branca; estava suspensa no ar como um guarda-chuva milagroso, sobran­ceira aos mortos e aos moribundos. Um clarão azul obstinado jorrava ainda do autocarro. Os sobreviventes e os infelizes, que dentro em breve já não o seriam, arrancavam-se do carro pelas traseiras, com a prudência de quem pousa o pé num planeta des­conhecido, mãezinha, minha mãezinha, ficaste presa, e eu pude sair, mãezinha, o sangue enche-me os bolsos como moedas. Ten­tei falar com os outros, com o desgraçado que, de chapéu na cabeça e saco de plástico na mão rastejava pelo chão; com o sol­dado meticuloso que examinava o rasgão nas calças da farda; com a velha que se entregava à alegria de tagarelar, agora que tinha a oportunidade de se dirigir directamente a Deus... Queria expli­car o segredo deste tempo único e perfeito ao vendedor de segu­ros tão expedito, que contava as estrelas; à rapariga petrificada no lugar, como que atingida por um feitiço, enquanto a sua boa e santa mãe continuava a suplicar ao condutor morto; aos dois homens de bigodaça que, não se conhecendo de lado nenhum, se davam as mãos como se se tivessem apaixonado à primeira vista, baloiçando-se ligeiramente, e que pareciam dançar de ale­gria por estarem ainda vivos. Gostaria de lhes dizer que este ins­tante sem igual era uma felicidade raramente concedida às criaturas amadas pelos deuses como nós; explicar-lhes que tu, meu Anjo, apenas apareces uma vez na vida, sob o guarda-chuva milagroso de poeira de cimento, num instante excepcional como este, e queria perguntar-lhes por que nos sentíamos tão felizes naquele instante. Vós dois, mãe e filho, que vos abraçais com toda a força, como amantes impudicos e que chorais em completa liberdade pela primeira vez na vossa vida. E tu, minha linda, que descobriste que o sangue é mais vermelho do que o vermelho do bâton e que a morte é mais doce do que a vida; e a ti, rapari­guinha que nasceste sob uma boa estrela e que, especada junto do cadáver do teu pai, com a boneca na mão, contemplavas as estrelas, a todos vós gostaria de fazer esta pergunta: quem nos concedeu esta protecção, esta plenitude? Uma palavra, disse uma voz dentro de mim, uma só palavra: SAÍDA. Mas eu já tinha percebido que não ia morrer. Quanto à mulher de uma certa idade que ia morrer em breve, com a cara coberta de sangue, per­guntou-me onde estava o assistente do motorista: queria recuperar as bagagens imediatamente, para não perder o comboio da manhã na cidade seguinte. Vi-me com o seu bilhete de comboio vermelho de sangue na mão.

Voltei a entrar no autocarro pela porta de trás para não ter de encarar o olhar dos mortos da primeira fila, com as caras coladas ao pára-brisas. Tomei consciência do barulho do motor e recordei a balbúrdia terrível de todos os autocarros em que tinha viajado. O que eu descobria ali não era um silêncio de morte, porque havia pessoas que falavam debatendo-se contra as recordações, os desejos e os fantasmas. O assistente do motorista continuava com a garrafa na mão, e uma mãe com os olhos cheios de lágri­mas estava sentada, muito calma, com o filho tranquilamente adormecido nos braços. Porque, lá fora, estava um frio de rachar. Sentei-me também, acabara de sentir que me doíam muito as pernas. O meu vizinho, o que tinha aquelas dores tão fortes dentro dá cabeça, deixara este mundo no mesmo momento que os passageiros apressados da primeira fila, e continuava sentado pacientemente no seu lugar. Tinha os olhos fechados quando dormia, tinha-os abertos agora que estava morto. Dois homens saídos não sei donde extraíam um corpo coberto de sangue de qualquer parte lá na frente. Levaram-no para fora, sem dúvida para que apanhasse frio.

Foi então que me dei conta da mais milagrosa das coinci­dências, do mais típico capricho da sorte: o ecrã da televisão por cima do assento do condutor não sofrera qualquer dano, e os apaixonados do vídeo tinham acabado por se abraçar. Limpei com o lenço o sangue da minha fronte, da cara, do pescoço, abri o cinzeiro que havia pouco tinha fechado com a testa, acendi um cigarro e continuei a ver o filme.

Eles beijavam-se e voltavam a beijar-se, matando a sede de vida e devorando bâton. Perguntei a mim mesmo por que razão, quando era pequeno, no cinema, eu retinha sempre a respiração nas cenas do beijo, por que razão tinha o hábito de baloiçar as pernas e de fixar os olhos, não nos actores que se beijavam, mas num ponto do ecrã ligeiramente acima das cabeças deles. O beijo! Como recordava tão bem o gosto dos lábios que tinham tocado os meus, na luz branca que atravessava o vidro coberto de gelo. Um único beijo em toda a minha vida. Vertendo lágrimas, repeti e repeti o nome de Janan.

Quando o filme estava a chegar ao fim e o frio do exterior fazia tremer os cadáveres já frios, vi primeiro as luzes dos faróis de um camião, depois o camião que parou respeitosamente diante deste alegre espectáculo. No bolso do meu vizinho que continuava a fixar o ecrã já vazio, com um olhar desprovido de expressão, havia uma carteira a rebentar de cheia. O nome próprio era Mehmet, o apelido Mahler. Além do bilhete de identidade descobri a fotografia do seu filho que era soldado e que se parecia comigo. Havia também um recorte muito antigo do Correio de Denizli, 1966, sobre combates de galos. O dinheiro seria suficiente para as minhas necessidades durante várias semanas. A sua cédula de família poderia ser-me útil. Obrigado.

No camião que nos levou para a povoação, nós, os sãos e salvos tornados prudentes, estendemo-nos a todo o comprido, como mortos pacientes, para nos protegermos do frio e contar­mos as estrelas. Ficai calmos, diziam-nos as estrelas, como se não o estivéssemos, ponde os olhos em nós, olhai como sabemos dar tempo ao tempo, nós! Enquanto todo o meu corpo tremia ao ritmo do camião no sítio onde estava deitado de costas, enquanto nuvens apressadas e algumas árvores desnorteadas se inter­punham entre nós e a noite de veludo, pensei para comigo que esta orgia de prazer cheia de surpresas, em que os mortos jaziam à mistura com os vivos, constituía uma cena de cinemascópio perfeita para que o meu anjo bem-amado, que eu imaginava dotado de humor e de bom humor, descesse até ela do céu e me revelasse os segredos da minha vida e do meu coração. Mas a cena que eu fora buscar a um dos romances ilustrados do Tio Rifki não se materializou. De tal maneira que me vi sozinho com a estrela polar, a Ursa Maior e o símbolo Jt enquanto os ramos deslizavam por cima das nossas cabeças e desfilavam aos nossos olhos os postes escuros da electricidade. Depois reflecti, sentindo que, afinal, o instante não era perfeito, que faltava qualquer coisa. Mas uma vez que tinha uma alma nova no meu corpo, uma vida nova pela frente, um maço de notas no bolso, com todas as estrelas novas no céu, conseguiria descobrir o que lhe faltava.

O que poderá afinal tornar uma vida incompleta? Uma perna amputada, respondeu-me a enfermeira de olhos verdes que me suturava a ferida do joelho, há que ter calma; muito bem, disse­-lhe eu, quer-se casar comigo? Não fracturou nem feriu a perna ou o pé. Tanto melhor, quer fazer amor comigo? Alguns pontos de sutura também na testa, horríveis, até chorava com dores. Eu sabia o que faltava, devia tê-lo adivinhado pelo anel que a enfermeira trazia na mão direita: tinha com certeza um noivo que a esperava na Alemanha. Eu era um homem novo, mas não completamente. Deixei então o hospital e a enfermeira sonolenta. À hora da oração da manhã cheguei ao Hotel Nova Luz e pedi o melhor quarto ao recepcionista da noite. Masturbei-me olhando para um exemplar antigo do Hürriyet que tinha descoberto no armário cheio de pó do quarto. Na página a cores do suplemento de domingo, a proprietária de um restaurante do bairro de Nigantas em Istambul exibia todos os móveis que tinha mandado vir de Milão, os seus dois gatos castrados e uma parte da sua anatomia medianamente atraente. Adormeci.

A Cidade do Prazer [N3] onde passei perto de sessenta horas, trinta e três das quais a dormir no Hotel Nova Luz, era uma linda cidade, verdadeiramente prazerosa: 1. Cabeleireiro. Pode ver-se, no bal­cão, uma barra de sabão de barbear OP embrulhado em papel de alumínio. O cheiro insípido a mentol colou-se-me às bochechas todo o tempo que estive nesta cidade. 2. Café dos Jovens. Os reis de paus e de ouros, em cartas de pasta de papel, os velhos contemplando com ar pensativo o monumento de Atatürk na praça, vêem-me a coxear, deitam o rabo do olho para a televisão sempre ligada, olham para os futebolistas, para as mulheres, para os crimes, para a publicidade aos sabonetes e para pessoas que se beijam. 3. Na tabacaria com tabuleta Marlboro podem encontrar­-se, além de cigarros, velhas cassetes de karaté ou de filmes semipornográficos, bilhetes da Lotaria Nacional e boletins do Totobola, romances de amor ou romances policiais que se podem alugar, raticida e um calendário na parede; a beldade que nos sorri do calendário faz lembrar Janan. 4. Restaurante. Feijões, almôndegas. É bom. 5. Correios. Telefono para casa. Uma mãe chora sempre e não compreende. 6. Café do Prazer: sentado a uma mesa, quando relia uma vez mais com grande prazer, no exemplar do Hú'rriyet que trazia no bolso há quarenta e oito horas, uma curta notícia que tinha acabado por decorar, relatando o feliz acidente rodoviário - DOZE MORTOS! -, um homem dos seus trinta e cinco a quarenta anos, talvez mais para os quarenta, cujo ar tanto lembrava o de um assassino a soldo como o de um bófia à paisana, surgiu como uma sombra atrás de mim e, depois de me ter lido em voz alta a marca do relógio que tirou do bolso - Zenith -, ver­sejou deste modo:

 

Diz o poeta desta sorte:

O vinho é pretexto de amor e não de morte.

Diz o jornal: o vinho do acidente

Fez perder a cabeça a toda a gente.

 

3 Em turco é a cidade de Sirinver.

 

E, sem esperar pela minha reacção, saiu do café deixando atrás de si um cheiro forte a sabão de barbear OP.

Toda e qualquer encantadora cidadezinha tem o seu louco residente, disse de mim para mim, no decurso dos meus pas­seios que terminavam sempre na impaciência e nas estações rodo­viárias. Não encontrei o nosso amigo amador de vinho e de poesia nas duas tabernas da tão prazerosa cidade e, ao cabo de sessenta horas, comecei a sentir a necessidade de uma boa bebedeira, do género da evocada pelo poema, e comecei a senti­-lo com tanta intensidade que pensei em ti com amor, Janan..

Motoristas bêbados de sono, autocarros fatigados, assistentes mal barbeados! Levai-me então à terra das coisas desconhecidas a que aspiro com tanta força! Levai-me ao limiar da morte, para que eu, com a fronte em sangue, possa tornar-me outro homem! Foi assim que, uma bela noite, deixei a encantadora Cidade do Prazer sentado no banco de trás de um Magirus desengonçado, levando no bolso a carteira recheada de dinheiro de um combatente caído na frente de batalha, e, no corpo, dois pontos de sutura.

A noite! Uma longa, longuíssima noite, sacudida pelo vento. Do outro lado do espelho escuro da minha janela desfilavam aldeias escuras, currais ainda mais escuros, árvores imortais, estações de serviço melancólicas, tascas desertas, montanhas taciturnas, lebres ansiosas. Por vezes fixava os olhos demorada­mente numa claridade tremeluzente ao longe, na noite estrelada; imaginava os pormenores da vida que naquele mesmo momento estava a ser alumiada por aquela luz; via naquela vida feliz um lugar para Janan e para mim, e, quando o nosso carro se afastava a pouco e pouco desta luzinha, sonhava estar debaixo daquele tecto e não no meu banco de autocarro que tremia todo. Nas bombas de gasolina, nas áreas de serviço, nos cruzamentos onde os veículos paravam respeitosamente e cediam a passagem, nas pontes estreitas, o meu olhar pousava nos passageiros de um autocarro que passava lentamente ao pé de nós; imaginava que via de repente Janan entre eles e, convencendo-me da realidade deste sonho, já me via a subir para esse autocarro e a apertar Janan nos braços. Às vezes, porém, sentia-me tão cansado e desesperado que sonhava ser o desconhecido que apercebia por entre cortinas entreabertas, sentado a uma mesa, segurando um cigarro entre os dedos, no momento em que o nosso colérico autocarro passava nas ruas estreitas de uma cidadezinha deserta, em plena noite.

No entanto, sabia bem que o meu único desejo era estar noutro lado, noutro tempo, ali, no instante bem-aventurado da ligeireza do ser, quando a alma ainda não escolheu entre a vida e a morte, ali, entre os mortos e os agonizantes, logo após o acidente, ali onde se erguiam os gritos de desolação; antes de meter pelo caminho que me levará ao sétimo céu, esforçando­-me por habituar os olhos ao cenário sombrio das poças de sangue e de estilhaços de vidro, no limiar do mundo donde não se regressa, como seria agradável fazer a mim mesmo certas per­guntas: entrar nesse mundo ou não? Arrepiar caminho ou con­tinuar? Com que se parecem as manhãs desse outro mundo? E o que aconteceria se renunciasse definitivamente à minha viagem para mergulhar na noite sem fim? Estremecia quando pensava nessas paragens, quando pensava no instante único em que me libertava do meu velho ser e em que talvez pudesse encontrar Janan e apertá-la nos meus braços. Sentia nas pernas e na testa cosida a impaciência de alcançar a felicidade inesperada que se segura...

Ah, passageiros dos autocarros da noite, meus irmãos de infor­túnio! Também vós andais em busca do instante da gravidade zero. Não estar aqui nem ali! Tornar-se outro e passear no jardim tranquilo que se situa entre os dois universos! Sei que o adepto de blusão de couro não está à espera do jogo de amanhã de ma­nhã, mas da hora da coincidência que fará dele um herói coberto de sangue. Sei também que esta boa e nervosa mulher, que passa o tempo a empanzinar-se de comida que tira de um saco de plás­tico, não bate o pé pela impaciência de encontrar a irmã e os sobrinhos, mas sim pela ideia de atingir o limiar do outro uni­verso. Sei que o funcionário do cadastro, que viaja com um olho - o aberto - na estrada e outro - o fechado - nos seus so­nhos, não está a calcular o número de prédios da área da prefeitura, mas o ponto de intersecção que se situa para além de todas as prefeituras. Sei que o estudante do liceu apaixonado e pálido que vai a dormir na primeira fila sonha, não com a amada, mas com o choque terrível que vai colar-lhe a boca com paixão e raiva ao vidro da janela. Aliás, todos os que aqui vamos, mal o moto­rista trava um pouco mais bruscamente ou uma tempestade abana o nosso carro, abrimos os olhos para perscrutarmos as trevas e tentamos adivinhar se a hora mágica soou. Pois bem, não, ainda não! Passei oitenta e nove das minhas noites em bancos de autocarros de longo curso sem que soasse esta hora bem-aventurada. Uma ocasião, o nosso carro teve de travar com violência e bateu contra um camião carregado de frangos. E, à semelhança dos passageiros, os frangos aturdidos escaparam sem uma ar­ranhadela. Outra noite, quando o nosso carro derrapava suave­mente pelo piso gelado na direcção de um precipício, tive a ideia, numa breve iluminação, de que vi o olhar de Deus, do outro lado do vidro coberto de geada, e de que estava prestes a descobrir o segredo comum ao amor, à vida e ao tempo. Mas o brincalhão do autocarro ficou preso por cima das trevas do vazio.

Tinha lido em qualquer lado que a sorte não é cega, mas sim ignorante. Penso é que a sorte é o consolo dos que não sabem nada de estatísticas nem da teoria das probabilidades. Apeei-me pela porta das traseiras, regressei à vida pela porta das traseiras, e foi pela porta das traseiras que voltei ao mundo buliçoso das garagens e das estações rodoviárias. Salve!, vendedores de pevides de melancia, de cassetes, de bilhetes da lotaria, salve!, senhores idosos carregados de malas, olá minhas senhoras armadas de sacos de plástico, salve! Para não deixar as coisas ao acaso, pro­curava os autocarros mais desengonçados, escolhia as estradas de montanha mais sinuosas, os condutores mais sonolentos. Nos cafés para camionistas, os autocarros chamavam-se Rápido Provi­dência, Carro Voador, Original Expresso, Express Caro Os as­sistentes de bordo despejaram-me nas mãos frascos e frascos de «cheirinho», mas em nenhum destes perfumes eu pude encontrar o do rosto que procurava nas estradas. Nos planaltos prateados ofereceram-me os biscoitos da minha infância, mas não pude encontrar neles o gosto dos que a minha mãe servia nos seus «chás». Comi chocolates made in Turkey, nos quais não havia pura e simplesmente cacau e que me causavam cãibras nas pernas como quando era menino. Às vezes punham-nos à frente dos olhos uma cesta onde havia toda a espécie de caramelos e bom­bons, mas entre os Zambo, Mabel e Golden nunca encontrei os caramelos «Vida Nova», esses de que tanto gostava o Tio Rifki. Contava os quilómetros quando dormia e sonhava quando estava acordado. Encolhia-me no meu banco, fazia-me pequenino, encarquilhava-me, enrolava-me, com as pernas acomodadas sob o assento. Cheguei mesmo a sonhar que fazia amor com o meu vizinho. Quando acordei, estava ele com o crânio calvo encostado ao meu ombro e com a mão lamentável perdida no meu regaço.

É que, todas as noites, eu era vizinho de banco de outro des­graçado, um vizinho prudente e reservado, que depois se tornava meu companheiro de viagem com quem podia conversar; por úl­timo, pela manhã, éramos amigos inseparáveis: um cigarro? Então para onde é que vai? E o que faz na vida? Num autocarro eu era um jovem angariador de seguros que ia de cidade em cidade. Noutro, onde fazia um frio terrível, contei que me ia casar com a filha do meu tio, casamento com que eu sonhava desde sempre. Num terceiro, com ares de um pesquisador de ovnis, revelei a um velho avô que aguardava a aparição de um anjo. Noutra ocasião contei a um passageiro que eu e o meu patrão consertávamos relógios de qualquer marca. O meu é um Movado, replicou-me o homem, que usava dentadura, e um Movado não se atrasa nem se adianta um segundo. Quando o proprietário do relógio infalível adormeceu, de boca aberta, pareceu-me ouvir o tiquetaque desse instrumento tão rigoroso. O que é o tempo? Um acidente! O que é a vida? O tempo. O que é um acidente? Uma vida, uma vida nova! Conformado com esta lógica tão simples, espantando-me ao mesmo tempo de que ninguém se tenha lembrado dela antes de mim, decidi não ir mais às estações rodoviárias, mas directa­mente aos acidentes, ó meu Anjo!

Num autocarro vermelho que, intrépido e traidor, se tinha enfeixado nas traseiras de um camião, vi passageiros da primeira fila arpoados pelas barras de ferro que saíam do reboque. Vi o cadáver de um motorista que tinha lançado o decrépito auto­carro num precipício para não esmagar um gato, e que estava muito custoso de desencarcerar. Vi cabeças rebentadas, corpos retalhados, mãos arrancadas, condutores que tinham acolhido com ternura o volante nos intestinos, restos de miolos que ti­nham explodido como couves-flores, uma orelha sanguinolenta ainda com o brinco, óculos partidos ou ainda intactos, espelhos, intestinos irisados, cuidadosamente espalhados em jornais, den­tes, pentes, frutos esmagados, moedas, biberões, sapatos, objectos e coisas vivas, oferecidos voluntariamente em sacrifício.

Por uma noite fria de Primavera, algures no Lago Salgado, na sequência de informações obtidas junto da polícia de trânsito em Konya, fui examinar dois autocarros que tinham chocado de frente na estepe. A colisão, tão feliz quanto ardente, dera-se ha­via apenas meia hora, de maneira que a magia que dá sentido à vida e depois a torna mais suportável ainda pairava no ar. Pos­tado entre os veículos da polícia e os da guarda, olhava de longe para as rodas negras de um dos autocarros capotados quando senti o cheiro adocicado da vida nova e da morte. Puseram-se­-me as pernas a tremer, senti picadas nos pontos de sutura da testa, afastei-me de imediato da multidão dos basbaques e come­cei a andar com determinação pela penumbra do nevoeiro, como se me dirigisse para um encontro.

Trepei para um dos autocarros. O puxador da porta estava bloqueado e tive dificuldade em abri-la. Avancei entre os bancos, que estavam de pernas para o ar, pisando com prazer os óculos, os vidros partidos, as correntes, os fios colados ao que tinha sido o tecto, vencidos pelas leis da gravidade, quando tive a sensação de me lembrar de qualquer coisa. Eu tinha sido outro homem em qualquer parte, não sabia quando, e esse outro homem qui­sera tornar-se eu. Sonhara com uma vida em que o tempo seria mais intenso e concentrado e em que as cores correriam em cas­cata do meu espírito; não tinha sonhado isso? Pensei no livro que abandonara em cima da mesa e imaginei-o a contemplar ainda o tecto do meu quarto, tal como os mortos contemplavam o céu, de boca escancarada. Calculei que a minha mãe o deixara por certo em cima da mesa, como a todos os outros objectos que tinham feito parte da minha antiga vida bruscamente inter­rompida. Imaginei-me a dizer-lhe, olha, mãe, o que eu procuro entre os vidros esmigalhados, as poças de sangue e os mortos, é aqui que está a fronteira de outra vida, quando vi uma carteira. Antes de morrer, um quase cadáver conseguira içar-se até um banco e, dali, até uma janela com o vidro partido, e imobilizara­-se no ponto de equilíbrio, deixando à vista a sua carteira no bolso de trás.

Tinha pegado na carteira, tinha-a metido no meu bolso, mas não era essa a lembrança que me viera à cabeça no momento imediatamente anterior e que eu fazia de conta que esquecera. Não, o que eu tinha na mente era o outro autocarro, que estava a ver do meu lugar por entre os vidros partidos e as encantadoras cortininhas que se agitavam ligeiramente, eram as letras, em azul e vermelho Marlboro, que, num dos lados do outro aUtocarro, compunham as palavras SUPER SEGURO. Saltei de uma das janelas com o vidro esmigalhado e deitei a correr por cima dos vidros partidos cobertos de sangue, passando pelos guardas e pelos cadáveres que ainda não tinham sido removidos dali. Não, não estava enganado, era esse mesmo SUPER SEGURO que, seis semanas antes, me tinha transportado são e salvo de uma pequena cidade, que mais lembrava um brinquedo, até uma aldeola obscura. Icei-me pela porta despedaçada para o interior desse velho conhecido, instalei-me no mesmo assento que seis semanas antes me tinha calhado e fiquei à espera, qual passageiro paciente que se fia no mundo com optimismo. Mas do que estava à espera? De um bom vento, da hora certa, ou talvez de outro passageiro. A penumbra aclarava-se, senti a presença de outros seres humanos, mortos ou vivos, sentados como eu nos bancos; com estertores nas vozes, discutiam com as belíssimas criaturas dos seus pesadelos ou então com a morte dos seus sonhos paradisíacos. Ouvi-os clamar como se se dirigissem a espíritos misteriosos. Mais tarde, a minha alma atenta sentiu algo ainda mais profundo. Olhei para o assento do motorista, onde tudo desmaiara excepto a rádio, e entre os gritos, os estertores e as lamentações no exterior e os suspiros no interior, ouvi uma música, cavalgando nas asas de uma brisa delicada. Houve um silêncio, uma breve pausa, e notei que havia já mais claridade. Envoltos numa nuvem de poeira, vi fantasmas felizes, mortos e moribundos. Já percorreste um longo caminho, viajante, mas acho que podes ir ainda mais longe! Talvez estejas prestes a atin­gir esse instante, e já não sabes se há outra porta e um jardim secreto, e mais uma porta e, do lado de lá, outro jardim secreto onde se confundem a vida e a morte, o sentido e o movimento, o tempo e o acaso, a luz e a felicidade; és presa de uma doce hesi­tação! De súbito, o meu desejo impaciente tornou-se ainda mais profundo e invadiu-me o corpo todo, o meu desejo de estar aqui e de estar lá. Pareceu-me ouvir umas palavras, estremeci, e foi en­tão que tu passaste a porta, minha mais bela, minha Janan, com o mesmo vestido branco que trazias no dia em que te vi nos cor­redores da Escola. Tinhas a cara coberta de sangue. Aproximaste­-te de mim em passos lentos.

Não te perguntei o que fazias ali, e tu também não, Janan, não me fizeste essa pergunta, porque ambos sabíamos a resposta.

Peguei-te na mão, sentei-te no banco ao lado do meu, o nú­mero 38, e, com o lenço aos quadrados que tinha comprado na Cidade do Prazer, limpei com ternura o sangue do teu rosto. De­pois, meu amor, agarrei-te na mão e, durante um longo mo­mento, ficámos assim imóveis, silenciosos. O céu aclarava-se, as ambulâncias tinham chegado, e, do rádio do motorista morto, saía a nossa canção, como se costuma dizer.

 

Depois de uma passagem pelo hospital da Segurança Social onde Janan levou quatro pontos na testa, depois de termos caminhado ao longo de muros baixos, de edifícios sombrios, de ruas sem árvores, conscientes dos movimentos mecânicos dos nossos pés - acima, abaixo, acima, abaixo -, deixámos a cidade morta de Mevlâna [N4] no primeiro autocarro que partia. lembro­-me das três cidades seguintes: numa apenas se viam canos de fogões, noutra as pessoas gostavam de sopa de lentilhas, a terceira era a capital do mau gosto. O resto permanece muito confuso na minha memória, com certeza por dormirmos tantas noites nos autocarros, por estarmos sempre a mudar e sermos atirados de cidade em cidade. Vi paredes sem reboco, cartazes mostrando na sua juventude cantores que agora estão com um pé na velhice, uma ponte arrastada pelas inundações da Primavera e refugiados afegãos que vendiam Corões do tamanho de polegares. Além dos cabelos castanhos de Janan espalhados pelos ombros, vi muitas coisas mais: as multidões que enchiam as estações rodoviárias, os cartazes de plástico brilhante, os cães que perseguiam alegre­mente o nosso autocarro à saída das localidades, os vendedores ambulantes sem ilusões que entravam no autocarro por uma porta e saíam por outra. Nas pequenas áreas de serviço, nos dias em que Janan tinha perdido toda a esperança de encontrar uma pista do que ela chamava as suas «investigações», dispunha nas bandejas os ovos cozidos e os petiscos que comprara aos vende­dores ambulantes, os pepinos e essas estranhas garrafas de limonada que apenas se encontram na província e que eu via pela primeira vez na minha vida. Depois chegava a manhã, depois a noite, depois uma manhã enevoada, depois o condutor mudava de velocidade, depois caía uma noite do mais negro dos negros, e clarões vermelhos e alaranjados, que lembravam maquilhagem barata e jorravam do vídeo por cima do assento do condutor, batiam-lhe na cara e Janan contava a sua história.

As «relações» - era esta a palavra que ela utilizava – de Janan com Mehmet remontavam a pouco mais de um ano. Ela tinha a vaga ideia de, provavelmente, o ter visto pela primeira vez entre a multidão dos estudantes da Escola de Arquitectura e do Instituto de Engenharia, mas apenas lhe tinha prestado aten­ção a sério no dia em que o encontrara no átrio de um hotel em Taksim, onde ela se tinha ido encontrar com uns parentes chegados da Alemanha. Entrara no átrio do hotel na companhia do pai e da mãe, à noite, e o jovem alto, delgado e pálido que estava no balcão da recepção atraíra a sua atenção. «Com certeza porque não conseguia descobrir onde o tinha já visto», disse-me Janan com um sorriso afectuoso, mas eu sabia que não era nada disso.

Depois tinha voltado a vê-lo nos corredores da Escola, no iní­cio do ano. Pouco tempo depois «tinham-se apaixonado um pelo outro». Davam longos passeios nas ruas de Istambul, iam ao cinema, passavam horas sentados nos cafés ou nos restaurantes universitários. «A princípio, nem falávamos muito», disse-me Janan no tom de voz que ela reservava para as explicações sérias. Não porque Mehmet fosse muito tímido ou não gostasse de falar, não. Ao conhecê-lo melhor, partilhando mais a vida dele, ela verificara até como ele podia ser ousado, falador e mesmo agres­sivo. «Era calado porque era melancólico», disse-me ela uma noite, sem olhar para mim, com os olhos fixos na perseguição de carros que se desenrolava no ecrã da televisão. «Era por causa daquela sua tristeza», acrescentou mais tarde, e desenhou-se-lhe um sorriso vago nos lábios. Na televisão, os carros da polícia, lançados a alta velocidade, caíam das pontes para os rios, ­galgavam uns por cima dos outros e, naquele momento, tinham chocado todos e encontravam-se misturados numa molhada enorme.

Janan tivera muitas dificuldades em descobrir as razões daquela melancolia, em penetrar na vida que aquela melancolia ocultava, em tornar Mehmet mais confiante; e, até certo ponto, conseguira. Primeiro, Mehmet aludira a uma outra vida em que ele tinha sido outro homem; falara-lhe de uma moradia grande na província. Mais tarde, cada vez mais confiante, explicara-lhe que tinha deixado essa vida para trás, que queria começar uma vida nova, e que o seu passado já não representava nada para ele. Dantes tinha sido outro homem, depois quisera tornar-se um homem novo. Uma vez que tinha sido esse homem novo quem Janan conhecera, era com ele que devia seguir o seu caminho e não procurar entrar no seu passado; o terror com que ele se deparara na sua busca não fazia parte da sua vida anterior, mas da nova, à qual tanto aspirara em determinado momento. «Essa vida...», dissera-me Janan num dia em que discutíamos amigavelmente, e mesmo alegremente, sobre o próximo transporte a tomar, sentados na estação rodoviária, com uma lata de con­servas Vatan à nossa frente na mesa - uma lata cujo prazo de validade expirara havia dez anos -, maquinismos de relógio e revistas para crianças que Janan desencantara na rua principal de uma cidadezinha decrépita, numa mercearia infestada de ratos, em antigas oficinas de conserto de relógios ou nas estantes em­poeiradas das agências de Totobola. «Essa vida nova, encontrara­-a Mehmet no livro.»

Era a primeira vez que fazíamos alusão ao livro, dezanove dias depois do nosso encontro no autocarro acidentado. Janan contou­-me que lhe tinha sido tão difícil levar Mehmet a falar do livro como da sua vida passada ou das razões da sua melancolia. Quando eles caminhavam com tristeza pelas ruas de Istambul, ou quando tomavam chá num café do Bósforo, ou ainda quando faziam as revisões das aulas juntos, Janan pedira-lhe muitas vezes que falasse desse livro mágico, mas Mehmet sempre se recusara categoricamente. É que, dizia ele, nas terras descobertas à luz do livro, rondavam sem parar a morte, o amor e o terror, sob o as­pecto de personagens desesperadas, de pistola à cinta, semelhan­tes a fantasmas; e para uma rapariga como Janan, dizia ele, nem sequer era bom imaginar essas paragens povoadas de corações despedaçados, de assassinos e de homens perdidos.

Janan, porém, insistira; fizera compreender a Mehmet que a sua atitude era muito penosa para ela, que a afastava dele, con­seguindo deste modo, até certo ponto, convencê-lo. «Talvez ele, na altura, quisesse que eu lesse o livro, para o ajudar a libertar-se do seu encantamento e do seu veneno», disse-me ela. «Fosse como fosse, naquela altura eu tinha a certeza de que ele me amava.» De­pois, quando o nosso autocarro estava parado numa passagem de nível, esperando pacientemente a passagem de um comboio que não havia meio de aparecer, Janan disse: «Talvez ele quisesse, embora inconscientemente, que entrássemos juntos nessa vida escondida num recanto do seu espírito», acrescentou. Os vagões carregados de trigo, de máquinas e de vidro partido passaram diante das nossas janelas exactamente com o mesmo estrépito dos comboios de mercadorias que atravessavam ruidosamente o nosso bairro já muito depois da meia-noite; desfilaram um após outro como fantasmas culpados e dóceis vindos do além.         .

Quanto à influência que o livro exercia em nós, eu e Janan falámos muito pouco. O efeito era tão poderoso, tão indesmen­tível, tão inabalável, que falar sobre isso teria transformado o conteúdo do livro numa tagarelice fútil, num discurso oco. O livro era qualquer coisa de fundamental na nossa vida de que nem sequer podia discutir-se a necessidade, como o solou a água, sen­tíamos a sua presença constante no meio de nós. A luz que emanava dele e que nos tinha jorrado para os rostos levara-nos a tomar um caminho em que nos esforçávamos por avançar tão­-somente com as nossas intuições e não queríamos saber para onde íamos exactamente.

No entanto, tínhamos longas e frequentes discussões sobre os autocarros que devíamos apanhar. Numa sala de espera dema­siado grande para o tamanho da cidade que servia - um ver­dadeiro hangar - a voz metálica que jorrava dos altifalantes é que levou Janan a escolher o autocarro cuja partida estava a ser anunciada, o que fizemos, a despeito dos meus protestos. Noutra ocasião seguimos um rapaz que se dirigia para os autocarros com a maleta de plástico na mão, acompanhado pela mãe em pranto e pelo pai que puxava fortes fumaças do cigarro, pela única razão de que a sua estatura e as costas ligeiramente curvadas faziam lembrar Mehmet a Janan, e foi assim que seguimos num auto­carro que, a acreditar num cartaz, era o único concorrente sério das Linhas Aéreas Turcas. Após três localidades e dois rios poluídos, vimos o rapaz descer na estrada e dirigir-se para um quartel rodeado de arame farpado e guaritas de observação. Uma bandeirola desfraldada num dos muros lembrava-nos A FELI­CIDADE DE SER TURCO! Fizemos assim um incalculável número de percursos que nos levaram até ao coração da estepe só porque Janan gostara das cores vermelho tijolo ou verde-bilhar dos autocarros. Ou então: «Oh, olha», dizia-me ela, «a perninha dos R do autocarro dos Correios-Relâmpago parece que ficou mais comprida por causa da velocidade e das vibrações, faz mes­mo lembrar um relâmpago!» Quando as investigações levadas a cabo por Janan nas cidadezinhas cinzentas do pó, com os seus mercados sonolentos e as suas estações rodoviárias imundas onde depois nos encontrávamos, não davam qualquer resultado, eu perguntava-lhe para onde íamos e porquê; lembrava-lhe que já não havia muito dinheiro nas carteiras que eu roubara dos bolsos dos sinistrados da estrada e fazia de conta que me esforçava por compreender a ilógica lógica das nossas investigações.

Janan não parecera surpreendida quando lhe contei que, da janela da sala de aula da Escola, tinha visto Mehmet ser atingido por um tiro. Na sua opinião, a vida estava cheia de convergências evidentes, e mesmo intencionais, que alguns cretinos, despro­vidos de intuição, qualificavam de «coincidências». Logo a se­guir ao atentado, Janan adivinhara que se passara qualquer coisa de anormal pelos gestos de um vendedor de almôndegas que es­tava no outro passeio; então vieram-lhe à ideia os tiros que tinha a sensação de ter ouvido e voltou a correr para junto de Mehmet, que foi encontrar estendido no chão, ferido. Haveria quem qua­lificasse de coincidências os factos de terem encontrado logo um táxi no próprio local e de terem ido para o Hospital da Armada em Kasimpas porque o taxista tinha feito recentemente o seu serviço militar na Marinha. O ferimento no ombro de Mehmet não era muito grave, pelo que só deveria ficar internado dois ou três dias. Porém, quando Janan apareceu no dia seguinte de manhã no hospital, verificou que ele tinha fugido e desaparecido.

- Fui ao hotel, passei pela Escola, dei a volta por todos os cafés que ele frequentava, depois fiquei durante muito tempo à espera que me telefonasse, embora soubesse que esperava em vão - contou-me com um sangue-frio e uma lucidez que me espantaram. - Já tinha percebido havia muito que ele tinha voltado para lá, para essas paragens, que ele tinha voltado ao livro.

Nesta viagem que ela empreendia rumo a essas paragens, eu era o seu «companheiro de viagem», e tínhamos de «ajudar­-nos reciprocamente» nesta expedição. Não era errado dizer-se que seria mais «positivo» lançar-nos nesta vida nova a dois. Nós éramos não só companheiros de viagem, éramos também «com­panheiros de espírito», éramos parceiros incondicionais, éramos tão desembaraçados e espertos como Mary e Ali que conseguiram acender uma fogueira ao ar livre utilizando as lentes dos óculos. E assim, durante semanas, vivemos sentados lado a lado nos autocarros da noite, encostando-nos um ao outro.

Por vezes, à noite, muito depois de o segundo videofilme ter terminado numa alegre balbúrdia de tiros, de portas a baterem e de explosões de helicópteros, quando já nós, passageiros esta­fados e com as roupas amarrotadas, arrastados numa viagem des­confortável, estremecendo ao ritmo das rodas, vagueávamos no universo dos sonhos, um buraco no piso ou uma travagem brusca arrancavam-me ao sono e eu ficava a contemplar demoradamente Janan que dormia em sossego do lado da janela, com a cabeça apoiada na almofada que ela fazia com as cortinas; o seu cabelo castanho-claro formava uma massa encantadora nessa almofada e o resto espalhava-se-lhe pelos ombros. Por vezes ela esticava para os meus joelhos os seus braços compridos, tão belos, para­lelos como dois ramos frágeis; por vezes usava uma mão como segunda almofada e, com a outra, segurava o cotovelo num gesto cheio de graça. Quando lhe perscrutava assim o rosto, via nele, a maior parte das vezes, um sofrimento que lhe enrugava a testa, e, às vezes, as suas sobrancelhas castanhas franziam-se de tal ma­neira que pareciam colocar perguntas que me inquietavam. De­pois via a luz irradiada desse rosto pálido e sonhava com um paraíso de veludo em que floriam rosas e onde brincavam ao sol alegres e irrequietos esquilos convidando-me a juntar-me a eles no país maravilhoso, ali na curva onde o seu queixo se juntava ao pescoço, ou ainda, quando ela baixava a cabeça, no ponto inacessível em que o cabelo cai na nuca. Esse reino dourado podia eu descobri-lo no seu rosto quando acontecia ela esboçar um pequeno sorriso durante o sono, um sorriso que lhe animava os lábios cheios e pálidos, por vezes um pouco gretados porque ela tinha o hábito de os morder com frequência. E eu pensava então: nunca mo ensinaram na escola, nunca o li num livro, nunca o vi num filme, mas como é doce, ó meu Anjo, contemplar até querer o sono da bem-amada!

Falávamos do Anjo e também da Morte, que tinha para nós a aparência de um irmão mais velho sério e cheio de dignidade, mas utilizávamos palavras tão frágeis e irrisórias como o bricabraque que Janan gostava de comprar, depois de muito regateio, nos ser­ralheiros da terra, aos merceeiros sonolentos, nas retrosarias mise­ráveis, e que ela manejava com prazer, mas que esquecia muito fácil e rapidamente nas estações rodoviárias ou nos bancos dos autocarros. A Morte estava por todo lado, e estava sobretudo «lá», porque era de lá que ela se propagava para toda a parte. Andáva­mos à procura de pistas que nos levassem «lá» e nos permitissem encontrar Mehmet, depois abandonávamos essas pistas como que para deixarmos, também nós, o nosso rasto. Tínhamos aprendido tudo isso no livro. Tal como sabíamos desses momentos únicos em que se dava o acidente, do limiar a partir do qual o outro universo era visível, dos átrios de cinema, dos caramelos «Vida Nova», dos assassinos que podiam matar Mehmet e matar-nos talvez a nós, dos hotéis onde os meus pés hesitavam em entrar, dos silêncios prolongados, das noites e dos restaurantes mal ilu­minados. Na verdade, disséssemos o que disséssemos ou fizés­semos o que fizéssemos, apanhávamos o autocarro uma vez mais, fazíamo-nos de novo à estrada, e por vezes, antes do cair da noite, quando o ajudante do motorista nos pedia os bilhetes, quando os passageiros travavam conhecimento entre si, e quando as crian­ças e os passageiros mais ansiosos olhavam para a estrada asfaltada ou para o caminho de terra batida que subia a montanha, como se estivessem a ver televisão, os olhos de Janan iluminavam-se bruscamente e começava a falar.

- Quando era pequena - disse-me ela uma vez - acontecia acordar de noite, quando já toda a gente dormia, levantar-me, entreabrir as cortinas e olhar para a rua. Na rua passavam pessoas, um bêbado, um corcunda, um gordo, um guarda-nocturno... Isso metia-me medo, gostava muito da minha cama, mas também eu gostaria de estar lá fora.

«Aprendi coisas sobre os rapazes brincando às escondidas com os amigos do meu irmão, na nossa casa de campo. E também na escola, observava-os nas aulas quando eles examinavam um objecto qualquer que tiravam das carteiras. E também quando era ainda mais pequena e eles se punham a baloiçar as pernas, porque, de repente, tinham vontade de fazer chichi!

«Uma vez caí, tinha nove anos, foi à beira-mar, fiquei com o joelho a sangrar, a minha mãe pôs-se aos gritos. Fomos ao médico do hotel. Que linda menina, que amor de rapariguinha, dizia o médico enquanto me limpava o joelho com água oxige­nada, e que esperta e sossegada ela é! Pela maneira de ele olhar para o meu cabelo, senti que tinha prazer em olhar para mim. Era como se tivesse o olhar enfeitiçado, parecia observar-me de outro mundo, com as pálpebras um pouco pesadas que lhe davam um ar sonolento, mas via tudo e, a mim, via-me na totalidade.

«Os olhos do Anjo estão em todo o lado, estão sempre pre­sentes, pairam acima de todas as coisas. E no entanto, como pobres humanos que somos, sofremos a ausência desses olhos. É porque esquecemos? Por falta de vontade? Porque somos inca­pazes de amar a vida? Eu sei que, à força de andarmos de um lado para o outro, de cidade em cidade, um dia ou uma noite olharei pela janela de um autocarro e os meus olhos cruzar-se-ão com os olhos do Anjo, eu sei isso. Para os ver, é preciso saber olhar. Eu tenho confiança nestes autocarros, eles vão acabar por nos levar aonde queremos ir. Acredito também no Anjo, às vezes, não, sempre... Não, às vezes...

«O Anjo que eu procuro descobri-o no livro. Neste livro, o Anjo parecia ser a ideia de outro, uma espécie de visitante. Mas identifiquei-me com ele. Eu sei que, no exacto momento em que o vir, serei capaz de compreender todos os mistérios da vida. Sinto a presença dele nestes autocarros, e em todos os sítios em que houve um acidente. Tudo se passa como se Mehmet mo tivesse dito. Para onde quer que o Mehmet vá, a morte surge em volta dele; sabes, é talvez porque ele traz o livro consigo. Mas disseram-me que as pessoas falam deste Anjo nos autocarros, quando são vítimas de um acidente, apesar de nunca terem ouvido falar do livro nem da vida nova. Sigo o rasto dele. Recolho os indícios que ele deixou atrás de si.

«Numa noite de chuva o Mehmet disse-me que os que queriam atentar contra a sua vida tinham passado à acção. Podem estar onde quer que seja. Se calhar, neste preciso momento, estão a ouvir a nossa conversa. Não leves a mal o que te vou dizer, mas tu podes ser um deles. A maior parte das vezes fazemos precisamente o contrário do que pensamos, ou do que pensamos fazer... Avançamos na estrada que leva ao mundo novo, mas fechamo-nos em nós mesmos, acreditamos que estamos a ler o livro e no entanto estamos a escrevê-lo de novo. Queremos ajudar alguém, fazemos-lhe mal. A maioria das pessoas não quer uma vida nova nem um mundo novo. Foi por isso que mataram o autor do livro.

Foi assim que Janan me falou pela primeira vez do escritor, ou antes, do velho a quem ela chamava «o autor», numa lingua­gem a que me pareceu faltar clareza, mas num estilo que excitou a minha curiosidade, não por causa das palavras que ela utilizava, mas por causa da atmosfera misteriosa que se desprendia delas. Sentada num banco da primeira fila num autocarro bastante novo, Janan tinha os olhos fixos no traço branco que luzia na estrada asfaltada. E, por uma qualquer estranha razão, não se viam na noite roxa quaisquer luzes de faróis, nem autocarros, nem automóveis, nem camiões.

- Quando Mehmet e o velho escritor se encontraram, bastou­-lhes olharem um para o outro para se compreenderem. Quem quis vê-lo foi o Mehmet, por isso pôs-se à procura dele e encon­trou-o.

Quando se encontraram, não falaram muito, ao que pa­rece, preferiram o silêncio, discutiram apenas alguns pormenores, depois calaram-se de novo. O velho dizia que tinha escrito o livro na sua juventude, ou então considerava o tempo em que o es­creveu de verdes anos. Um livro de juventude, acho que foi o que ele disse com melancolia. Mais tarde, «eles» tinham-no ater­rorizado, «eles» tinham-no obrigado a renegar o que tinha sido escrito pela sua própria mão, o que ele tinha escrito com toda a sua alma. Não é de espantar. Também não é de espantar que «eles» tenham acabado por matá-lo. E também não é espanto nenhum que tenha chegado a vez de o Mehmet ser morto, agora que já mataram o velho... Mas vamos encontrar Mehmet antes dos assassinos. O mais importante é que há pessoas que leram o livro e que acreditam nele... Encontro-as nas cidades, nas estações rodoviárias, nas lojas, cruzo-me com elas nas ruas, conheço-as, reconheço-as pelos olhos. As caras das pessoas que leram o livro e que acreditam nele são diferentes, essas pessoas têm todas o mesmo desejo ardente nos olhos, tu um dia ainda vais com­preender isto. Talvez já te tenhas dado conta... Se conseguirmos penetrar no seu mistério e se enveredarmos pelo caminho que lá nos leva, então a vida será bela.

Janan contava-me tudo isto em plena noite quando, numa área de serviço, nos encontrávamos num restaurante sinistro infestado de moscas, fumando um cigarro e bebendo o copo de chá graciosamente oferecido pela direcção da companhia de via­ção e servido por um garoto sonolento, ou mergulhando a colher numa compota de morangos com sabor a plástico. Também me falava disto enquanto éramos violentamente sacudidos nos as­sentos da primeira fila de um velho autocarro desengonçado. E, no meio do barulho, não tirava os olhos da boca generosa, dos lábios cheios de Janan, que fixava os olhos nas luzes assimétri­cas dos raros camiões com que nos cruzávamos. E quando está­vamos num terminal a abarrotar de passageiros carregados de sacos de plástico, malas de cartão e trouxas, acontecia que Janan parava de falar bruscamente, se levantava de um salto e desapa­recia, ficando eu no meio daquela balbúrdia, entregue a uma soli­dão que me gelava a alma.

Por vezes, depois de minutos ou de horas intermináveis de espera, ia encontrá-la numa loja de velharias numa qualquer viela esconsa da cidade em que esperávamos o autocarro, mergulhada na contemplação de um moinho de café, de um ferro de engomar fora de uso ou de um desses fogões a carvão que já não eram fabri­cados havia muito. Por vezes ela voltava, de sorriso misterioso nos lábios, com um desses jornalecos regionais na mão e lia-me os despachos municipais que proibiam a passagem do gado pela rua principal da localidade na hora da recolha aos estábulos; ou ainda um anúncio publicitário do representante local da companhia Aygaz gabando os méritos dos novos modelos chegados de Istam­bul. A maior parte das vezes ia encontrá-la a tagarelar com fami­liaridade no meio da multidão, ou mergulhada numa longa conversa com alguma mulherzinha de lenço na cabeça, ou a cobrir de beijos uma qualquer rapariguinha horrível com cara de pato que segurava ao colo; ou ainda, utilizando os seus espantosos conheci­mentos dos trajectos e das estações rodoviárias, indicava o percurso a desconhecidos animados de más intenções e espalhando à sua volta eflúvios de loção OP. Quando, sem fôlego, me aproximava dela a medo, contava-me o que se passava, como se tivéssemos empreendido a nossa viagem unicamente para ajudar as pessoas a resolverem as suas dificuldades: «O filho desta senhora regressa do serviço militar, ficaram de se encontrar aqui mas ela não o encontra entre os passageiros que chegaram de Van!», dizia-me ela. Infor­mávamo-nos sobre os horários para dizermos aos outros, ajudá­vamo-los a trocar de bilhetes, tentávamos sossegar as crianças aos berros, guardávamos as malas ou as trouxas das pessoas quando elas tinham de ir aos wc. «Deus te abençoe!», dissera-lhe uma mu­lheraça gorda com dentes de ouro que depois se virou para mim de sobrolho erguido: «Sabes que tens uma mulher muito bonita, Deus a abençoe!»

 

Quando, depois da meia-noite, se apagavam as luzes no interior do autocarro, se apagava também o ecrã luminoso do vídeo, quando cessava todo o movimento a não ser as volutas de fumo dos cigarros dos passageiros mais insones ou mais melan­cólicos, os nossos dois corpos mexiam-se discretamente nos assentos e aproximavam-se a pouco e pouco um do outro. Sentia os cabelos dela a roçarem-me a cara, as suas mãos finas e compri­das de punhos frágeis a pousarem nos meus joelhos e, no meu pescoço arrepiado, sentia a sua respiração com hálito a sono. As rodas continuavam a girar, o motor a diesel gemia sem parar, o tempo invadia o espaço entre nós, como um líquido viscoso, escuro e quente, e, neste período novo, uma sensibilidade nova despertava entre as nossas pernas entorpecidas, rígidas, anquilo­sadas.

Por vezes, quando o meu braço se incendiava ao simples con­tacto com o seu braço, quando, durante horas, eu esperava supli­cando aos céus que ela deixasse descair a cabeça sobre o meu ombro, quando me imobilizava no assento para que os seus ca­belos continuassem no meu pescoço, vigiava-lhe a respiração com temor e veneração; perguntava a mim mesmo o que significava a tristeza que lhe enrugava a fronte durante o sono e, quando uma luz crua lhe batia na face e ela acordava, comigo a contem­plá-la, ficava tão feliz de a ver a emergir do sono, com o espírito ainda confuso, virando-se não para a janela para ver onde está­vamos, mas para o meu olhar reconhecido e sorrindo-me! Passava noites em branco para evitar que a sua cabeça se encostasse ao vidro gelado e assim apanhasse frio, tirava o meu casaco casta­nho-violáceo que comprara em Erzinjan para a cobrir, e quando, nas estradas de montanha, o condutor se lançava pelas descidas com o maior dos entusiasmos, velava para que o seu corpo enro­lado no sono não fosse projectado para fora do banco. E por vezes, nestas horas de vela, com o ouvido atento ao ruído do motor, aos suspiros e ao desejo de morrer dos passageiros, os meus olhos fixos entre um ponto do seu pescoço e as suaves sinuosidades da sua orelha, deixava-me levar por uma qualquer recordação de in­fância, por um passeio de barco, por uma batalha de bolas de neve, que vinham confundir-se com os sonhos de felicidade con­jugal que íamos viver um dia, Janan e eu. E quando, horas mais tarde, eu era acordado por um raio de sol brincalhão, tão frio e geométrico como o cristal, e dava-me conta de que o jardim quen­tinho e com perfume de lavanda em que se apoiava a minha ca­beça era o pescoço de Janan, evitava mexer-me durante um bom pedaço de tempo, a meio caminho entre o sono e a vigília, e, com um piscar de olho, saudava a manhã resplandecente, as monta­nhas roxas e os primeiros sinais dessa vida nova, para depois notar com tristeza como o olhar dela estava longe de mim.

- O amor... - Esta palavra, que me queimava os lábios e o coração porque não ousava pronunciá-la, ganhava em Janan todo o seu ardor com o talento da actriz que tem grande experiên­cia da dobragem. - O amor mostra-nos o caminho, desemba­raça-nos de toda a tralha da vida quotidiana e, percebo isso agora, acaba por nos conduzir rumo ao segredo da criação. É para lá que vamos agora.

«No momento em que vi Mehmet - dizia Janan, sem reparar sequer em Clint Eastwood que olhava para ela de uma velha revista abandonada em cima da mesa de uma sala de espera -, compreendi que toda a minha vida daria uma reviravolta. Antes de o conhecer, tinha uma vida, depois de o conhecer essa minha vida mudou completamente. Foi como se à minha volta tudo se tivesse transformado, tanto os seres humanos como os objectos. As camas, os candeeiros, os cinzeiros, as ruas, as nuvens, tudo mudou de forma e de cor. E foi com admiração que me lancei na descoberta deste mundo novo. Na altura em que comprei o livro, disse para mim que já não ia ter necessidade de ler histórias, ficção; que me bastaria olhar, ver bem o que se passava à minha volta para compreender o mundo novo que se abria diante de mim. Mas, à medida que lia o livro, compreendi que havia outra coisa para além do que via à minha volta. Devolvi o ânimo a Mehmet que tinha voltado muito infeliz das paragens aonde tinha ido procurar a vida nova, consegui convencê-lo de que poderíamos lá voltar, eu e ele. Nessa altura lemos e relemos o livro juntos. As vezes passávamos semanas num único capítulo, outras vezes, logo à primeira leitura, tudo nos parecia límpido e evidente, íamos ao cinema, líamos os jornais, líamos outros livros, dávamos grandes passeios pela cidade. Quando já tínhamos o livro bem metido na cabeça, quando já o sabíamos de cor, as ruas de Istambul resplandeciam de uma maneira completamente diferente, extraordinária, pertenciam-nos. Conseguíamos adivinhar que o velhote apoiando todo o seu peso na bengala com quem nos cruzávamos na rua ia passar primeiro pelo café antes de ir buscar o neto à escola. Sabíamos que a égua que puxava a última de três carroças em fila era a mãe das pilecas esgalgadas atreladas às duas primeiras. Sabíamos por que razão havia cada vez mais homens a usar camisas azuis; sabíamos decifrar os horários dos comboios lendo-os às avessas, adivinhá­vamos imediatamente que a mala que um homem gordo e suado levava estava cheia de objectos e de roupa interior provenientes da casa que acabara de assaltar. Depois entrávamos num café para relermos o livro, e passávamos lá horas inteiras a discutir. Tudo isso era o amor, e eu dizia para comigo que o amor era o único meio de descobrir um universo longínquo, como nos filmes, e de o transportar para o nosso.

«Mas havia também coisas que eu ignorava, coisas que nunca poderia saber - disse-me Janan uma noite em que chovia, sem tirar os olhos da cena do beijo no ecrã do vídeo. Depois de quatro ou cinco quilómetros de estrada escorregadia, depois de termos passado por quatro ou cinco camiões estafados, e quando, no ecrã, a cena do beijo cedeu lugar a um autocarro parecido com o nosso mas que rodava numa paisagem encantadora que de modo nenhum se parecia com a que nos rodeava, Janan acrescentara: - E agora estamos a ir para esse lugar desconhecido para nós.

Quando já não podíamos vestir a roupa tesa por causa do suor, da poeira, da sujidade, e se acumulavam na nossa pele, camada em cima de camada, os sedimentos da história de todos os povos que tinham agitado estas terras desde as Cruzadas, íamos, entre dois autocarros, fazer compras ao mercado da localidade onde o acaso nos tivesse levado. Janan comprava saias compridas de popelina que a faziam parecer uma professora primária de pro­víncia muito conscienciosa, e eu sempre as mesmas camisas que faziam de mim a pálida réplica do meu eu anterior... Depois, quando tínhamos a ideia de erguer a cabeça para vermos outra coisa que não fossem os Paços do Concelho, o monumento a Atatürk, a loja de electrodomésticos Arçelik, a farmácia e a mesquita, víamos, por cima das faixas de pano indicando a escola corânica e a próxima data de uma cerimónia de circuncisão colec­tiva, o elegante rasto branco traçado por um avião no céu de um azul cristalino, parávamos por um momento, com os sacos de plástico na mão, para contemplarmos amorosamente o céu, antes de perguntarmos a um empregado de cara e gravata desbotadas onde ficavam os banhos públicos.

Como os banhos públicos estavam sempre reservados para as mulheres da parte da manhã, era a minha vez de matar o tempo vagueando pelas ruas ou dormitando num café e, quando passava diante de um hotel, sonhava em dizer a Janan que era necessário passar pelo menos uma noite em terra firme, como toda a gente, num hotel, por exemplo, em vez de circularmos sem parar e dormirmos em bancos de autocarro. Acontecia mesmo eu falar­-lhe deste sonho, mas ao cair da noite Janan mostrava-me os troféus das investigações sistemáticas que empreendia durante o tempo em que era a minha vez de ir aos banhos: velhas colecções da Fotonovela, revistas para crianças ainda mais antigas, espécimes de pastilhas elásticas que eu não me lembrava de alguma vez ter mastigado, e uma travessa para cabelo cujo significado me esca­pava. «Explico-te no autocarro», dizia-me Janan, com aquele sorriso especial que lhe iluminava a cara quando descobria no vídeo um filme que já tinha visto.

Numa noite em que uma locutora de certa idade, séria e disciplinada, tomara o lugar no ecrã da televisão do habitual filme furta-cores que passava no vídeo, para nos informar de uma quantidade de tristes assassínios, dissera-me Janan: «Vou à procura da outra vida de Mehmet, mas nessa vida não existe Mehmet, mas outra pessoa.» Os reflexos vermelhos dos néons da estação de serviço por que passávamos a toda a velocidade reflectiam-se, como muitas outras perguntas, na minha cara.

- Mehmet não me disse muito sobre o homem que tinha sido na outra vida, falou-me apenas das irmãs, de uma casa gran­de, de uma amoreira, disse-me que, então, o seu nome era outro. Numa ocasião disse-me que gostava muito da Semana das Crian­ças quando era garoto. Lembras-te da Semana das Crianças, tu? - Os seus dedos compridos passearam-se pelas revistas amare­lecidas pelo tempo, metidas entre os cinzeiros e os nossos joelhos, e acrescentou, expressamente para mim, que tinha os olhos cravados nas revistas: - Mehmet tinha o hábito de me dizer que toda a gente voltaria um dia a estas revistas ilustradas. É por isso que eu as compro onde quer que vá. Estas páginas que acompa­nharam a infância dele... É o que descobrimos no livro. Com­preendes? Eu não compreendia tudo, e às vezes não compreendia nada, mas a sua maneira de falar dava-me a sensação de que per­cebia tudo.

« Mehmet, tal como tu - dizia-me Janan -, quando leu o livro compreendeu que toda a sua vida ia mudar, e foi até ao fim... Andava a estudar medicina, mas largou tudo para dedicar o seu tempo ao livro, à vida o segundo livro. Percebera que deveria renunciar a todo o seu passado para se tornar um homem totalmente novo... A tal ponto que cortou relações com o pai e com a família... Mas não foi fácil escapar-lhes. Explicou-me que tinha conseguido libertar-se de vez e entrar na vida nova graças a um acidente de viação... É verdade, os acidentes, muitas vezes, são uma nova partida... O Anjo aparece no instante mágico da partida. É então que podemos distinguir o sentido real desta trapalhada a que se chama vida. Só nessa altura podemos, então, voltar a casa...

Quando ouvia estas palavras dava por mim a sonhar com a minha mãe, que abandonara, com a minha casa, com o meu quarto, com a minha cama, com as minhas coisas e, entre tudo o que sonhava, procurava descobrir um lugar para Janan que, a meu lado, sonhava com uma vida nova. Com um sentimento de culpa calculado e racional, mas extremamente insidioso.

 

Em todos os autocarros que apanhávamos, o televisor estava instalado por cima do assento do motorista, e havia noites em que não falávamos um com o outro e mantínhamos os olhos cravados no ecrã. Como já não líamos os jornais havia meses, o ecrã aparafusado numa estante transformada em altar moderno - rodeado de caixas, de napperons de renda, de cortininhas de veludo, de madeira trabalhada, de amuletos, de contas azuis contra o mau-olhado, de decalcomanias e ainda de toda a espécie de ornamentos - tornara-se para nós a única janela aberta para o mundo. Além daquilo que víamos da janela do autocarro, é claro. Vimos filmes de karaté em que heróis saltadores e ágeis conseguiam assestar pontapés em plena cara a centenas de maus rapazes, e cópias locais do mesmo género interpretadas au ralenti por actores pesadotes; vimos também filmes americanos em que o principal personagem, negro, simpático e malicioso, conseguia enganar ao mesmo tempo a bófia, os bandidos e os ricaços ingé­nuos; filmes de aviação em que o jovem protagonista sedutor executava acrobacias em aviões ou em helicópteros; filmes de ter­ror em que almas do outro mundo ou vampiros aterrorizavam lindas raparigas. Na maioria dos filmes turcos, excelentes pessoas riquíssimas não conseguiam encontrar marido honrado para as suas filhas dotadas de excelentes maneiras; todas as perso­nagens - masculinas ou femininas - pareciam ter sido cantores em determinado momento das suas vidas; e equivocavam-se tanto e tão continuamente sobre as suas intenções mútuas que esta incompreensão acabava por se transformar numa espécie de compreensão. Estávamos tão habituados a encontrar em todos os filmes turcos as mesmas caras e os mesmos físicos nos papéis estereotipados, como o carteiro paciente, o cruel violador, a irmã feiosa de grande coração, o juiz de voz tonitruante, o pobre de espírito ou ainda a gorda avozinha cheia de bom senso, que no dia em que parámos num hotel e encontrámos o cruel violador e a irmã de grande coração a comerem sossegadamente a sua sopa de lentilhas no meio dos passageiros sonolentos de um autocarro, no restaurante Recordações da Beira-Rio, com as paredes decoradas com retratos de Atatürk, de actores de cinema, de campeões de luta livre e fotografias de mesquitas, verificámos até que ponto nos tinham levado à certa! Enquanto Janan me citava um a um, de entre as fotografias coladas na parede, os nomes das actrizes célebres que tinham sido desonradas pelo mau nos filmes que tínhamos visto recentemente, lembro-me de ter contemplado com um olhar distraído os outros clientes do garrido restaurante e de pensar para mim que éramos todos passageiros bebendo a nossa sopa na sala de jantar bem iluminada e glacial de um navio desconhecido rumando para a morte.

No ecrã tanta pancadaria, tantas portas deitadas abaixo, tantas montras e vidraças rebentadas, tantos aviões e automóveis desinte­grando-se à nossa vista, tantas labaredas a erguerem-se para os céus, tantas casas a desaparecerem nos incêndios, tantos exér­citos, famílias felizes, maus rapazes, cartas de amor, arranha-céus, tesouros enterrados sob braseiros; vimos o sangue a jorrar das feridas, dos rostos, das cabeças cortadas, e intermináveis cenas de perseguição em que centenas, milhares de veículos aceleravam uns atrás dos outros, se lançavam a toda a velocidade nas curvas para depois se deixarem abalroar com enlevo! Vimos dezenas de milhares de desesperados, homens ou mulheres, estrangeiros ou autóctones, com ou sem bigode, que se alvejavam sem tréguas! No final da primeira cassete e antes de ter começado o segundo filme no ecrã, Janan dizia-me: «Nem queria acreditar que o tipo se deixaria enrolar tão facilmente.» E quando o segundo filme terminava e no ecrã ficavam grandes manchas negras, ela acrescen­tava: «Se soubermos para onde vamos, diga-se o que se disser, a vida é bela.» Ou ainda: «Não acredito nisso, não me deixo iludir, mas gosto disso... Vou com certeza sonhar com casais felizes», murmurava ela, a meio caminho entre o sono e a vigília, com a cara ainda iluminada pelo final feliz do filme.

Ao cabo de três meses de viagens, talvez tenhamos visto mais de mil cenas de beijos. E, de cada vez que havia beijo, o silêncio caía nos bancos do autocarro, e pouco importava de que locali­dade vinha o carro ou para que vilória isolada se dirigia, pouco importava o tipo de passageiros, podia tratar-se de camponeses carregados de cestas de ovos ou de funcionários com malas de exe­cutivo. Reparava então na maneira como Janan juntava as mãos nos joelhos e, por um breve instante, eu sentia a necessidade de fazer um gesto, um pouco bruto talvez, mas decidido e elo­quente. Este gesto, de que não estava completamente consciente, nem nada que se parecesse, consegui fazê-lo numa noite chuvosa de Verão.

O autocarro mal iluminado ia meio vazio, nós estávamos sen­tados numa das filas do centro e, no vídeo, chovia numa paisa­gem muito longínqua e muito exótica. Estiquei instintivamente a cabeça para a janela, aproximando-a assim da de Janan, e vi que começava a chover. No mesmo instante, pousei os meus lábios nos de Janan que me sorria, tal como via fazer no cinema ou na televisão, ou como imaginava que devia fazer-se. E en­quanto ela se debatia, ó meu Anjo, beijei-a a ponto de lhe fazer sangrar os lábios, com todas as minhas forças, com todo o meu desejo e com toda a minha fúria.

- Não, não - repetia ela. - Tu pareces-te muito com ele, mas não és ele... Ele está no outro lado...

Aquela luz cor-de-rosa na cara de Janan era o reflexo do abo­minável cartaz da Türk-Petrol do fim do mundo, manchado de cagadelas de moscas, ou o da incrível aurora que banhava o uni­verso no ecrã? Há sangue nos lábios da jovem, dizem-nos os livros nas situações deste género, e, nas situações deste género, os heróis dos filmes derrubam as mesas, partem os vidros ou ati­ram com o carro contra uma parede. Quanto a mim, esperava em vão o gosto do seu beijo nos meus lábios. Atravessou-me en­tão o espírito uma ideia que me consolou: eu não existo, pensei, e, se não existo, que diferença é que isso pode fazer?

Mas o auto­carro pôs-se a estremecer com um novo ardor e eu senti-me mais vivo do que nunca. O sofrimento entre as minhas pernas tornou­-se intolerável, eu morria de desejo de me expandir, de explodir, de, por fim, me relaxar. O meu desejo tornou-se ainda mais pro­fundo, invadiu o mundo inteiro, um mundo novo de que ignorava tudo. Esperava, com lágrimas nos olhos, todo a suar, esperava sem saber o que esperava, quando tudo explodiu, nem muito depressa nem muito devagar, na alegria, e tudo se acalmou e desapareceu.

Ouvimos primeiro o formidável alarido, depois foi o silêncio que se segue a um acidente. Vi que o televisor tinha voado em esti­lhaços, assim como o condutor. Quando começaram os gritos e os gemidos, agarrei na mão de Janan e puxei-a para o chão, sã e salva.

Debaixo da chuva torrencial, vi que o nosso carro tinha sofrido muitos estragos: o condutor e mais dois ou três mortos. Mas o outro autocarro, o Diligente, que se dobrara ao meio ao bater contra o nosso infeliz motorista, antes de desabar para um campo lamacento em baixo, transbordava de mortos e moribundos. Descemos para o campo de milho onde caíra o autocarro, com prudência e curiosidade, como se entrássemos no centro obscuro da vida, e aproximámo-nos com uma espécie de fascínio.

Quando lá chegámos, uma rapariga de jeans ensanguentada da cabeça aos pés tentava arrancar-se por uma das janelas cujo vidro tinha rebentado. Agarrava ainda com uma mão a mão de alguém - tivemos de nos debruçar para ver -, era a mão de um rapaz. Conseguiu sair sem lha largar, dobrou-se, puxando pelo bra­ço. Chegámos a vê-lo: no autocarro capotado, o jovem estava preso numa amálgama de ferros niquelados e chapas pintadas e dobra­das como cartão. Morreu com os olhos cravados em nós e no meio de um universo escuro de pernas para o ar, afogado na chuva.

Na cara e nos olhos da rapariga de cabelo comprido, o sangue misturava-se com a chuva. Devia ser da nossa idade. Na cara dela, a que a chuva devolvia as cores, a expressão era mais a de criança espantada do que a de pessoa que acaba de se salvar da morte. Pobre rapariguinha molhada até aos ossos, fizeste-nos tanta pena! À luz dos faróis do nosso carro, ela olhou demorada­mente para o morto sentado no seu lugar. - o meu pai... - disse ela. - O meu pai vai ficar furioso. Largou a mão do cadáver, depois envolveu a cara de Janan com as mãos e acariciou-lha como se fosse a de uma sua irmã inocente que conhecia há séculos:

            - Anjo, acabei por te encontrar aqui - disse-lhe. – Depois destas viagens todas debaixo de chuva...

            Com o rosto ensanguentado virado para Janan, contemplava­-a com admiração, com saudade, com alegria.

- Esse olhar que me seguia constantemente, que me aparecia nos lugares mais inesperados para desaparecer logo a seguir, o que me levava a desejá-lo ainda com mais força, era então o teu - disse-lhe ela. - Lançámo-nos pela estrada fora, tu sabes isso, passámos noites e noites nos autocarros, fomos de cidade em ci­dade, sempre a reler o livro, só para apanharmos o teu olhar, meu Anjo, apenas para ver os teus olhos.

Janan sorriu. Estava surpreendida, hesitante, mas satisfeita, e também triste por causa da geometria secreta que havia no engano da rapariga.

- Sorri mais para mim - disse a rapariga de jeans mori­bunda. - Eu sabia que ele ia morrer, meu Anjo. Sorri para mim, para que eu possa ver mais uma vez a luz desse outro universo. Faz-me recordar o calor da padaria aonde eu ia nos dias de neve comprar um bolo, quando saía da escola, antes de voltar para casa. Faz-me recordar a alegria de mergulhar do alto do molhe nos dias quentes de Verão. Faz-me recordar o meu primeiro beijo, o meu primeiro abraço, a nogueira que eu subia até ao cimo, e aquela noite de Verão em que fui capaz de ir além de mim própria, a noite em que me embebedei com tanta alegria, a doçura do edredão de penas e o belo rapaz que olhava para mim com amor. Todas estas recordações existem nesse outro mundo que estou morta por alcançar, ajuda-me a ir para lá, ajuda-me, para que eu, com serenidade, possa resignar-me a esta sensação de que estou um pouco menos viva de cada vez que respiro.

Janan sorriu-lhe com ternura.

- Ah, vocês, os anjos! - suspirou a rapariga por entre as recordações e os gritos de morte que vinham do campo de milho. - Como são aterradores! Implacáveis e, no entanto, tão belos!

Como conseguem manter essa serenidade intemporal, como tudo o que a vossa luz toca, enquanto nós secamos, nos reduzimos a pó a cada objecto que tocamos, a cada palavra que pronunciamos, a cada recordação que evocamos. Era por isso que nós, eu e o meu infeliz amante, depois de termos lido o livro perscrutávamos o vosso olhar pelas janelas dos autocarros! Tratava-se do teu olhar, meu Anjo, porque vejo agora que esse era o instante único que o livro prometia, o momento de transição entre os dois mundos. Agora que já não estou aqui e ainda não estou lá, e que estou ao mesmo tempo aqui e lá, começo a compreender o significado de palavras como partida, paz, morte, tempo... Continua a sorrir­-me, Anjo, sorri para mim!

Durante um longo período, fui incapaz de me lembrar do que se passou em seguida. É exactamente o que acontece quando estamos alegremente embriagados e as ideias se nos embrulham na cabeça, de tal maneira que, no dia seguinte de manhã, dizemos para nós: «Foi aí que a fita do filme se partiu...» Em primeiro lugar, o som é que foi cortado, lembro-me, porque ainda conseguia ver a troca de olhares entre a rapariga e Janan. Mas, depois do som, foi certamente a vez de a imagem desaparecer, porque o que eu vi nesse momento não me ficou gravado na memória e parece ter-se dissipado sem que qualquer máquina o registasse.

Lembrava-me de ter ouvido a jovem de jeans pedir água, mas já não sabia como atravessámos o campo de milho, como chegámos à beira de um rio - mas seria um rio ou um pântano de águas turvas? -, e era incapaz de dizer donde provinha a luz azul que me permitia ver as gotas de chuva caindo na água estagnada e desenhando círculos concêntricos.

Um pouco mais tarde vi a rapariga dos jeans pôr as duas mãos na cara de Janan. Segredava-lhe qualquer coisa, mas não cheguei a ouvir o quê. Ou então as palavras que ela segredava não chegavam até mim, como acontece nos sonhos. Presa de um vago sentimento de culpa, decidi que deveria deixá-las sozinhas. Dei uns passos à beira do charco, enterrando-me numa lama argilosa. Um grupo de rãs, assustadas com os meus passos pouco firmes, saltou para a água, uma a seguir à outra, com plofes ruidosos.

Um maço de cigarros amarrotado navegou pela água até perto de mim; era um maço de Maltepe, atingido pela chuva que o fa­zia hesitar, baloiçar no mesmo sítio, e, depois, orgulhoso e seguro de si, retomava com brio a sua navegação rumo à terra das incertezas. No meu campo de visão, ainda obscurecido, não havia nada de claramente visível a não ser esse maço de cigarros e as silhuetas da rapariga e de Janan que, parecia-me, se deslocavam. Oh, mãezinha, mãezinha, beijei-a e vi a morte, dizia comigo; então ouvi a voz de Janan.

- Vem ajudar-me - dizia ela. - Quero lavar-lhe a cara, o pai dela não pode ver este sangue todo.

Peguei na rapariga por debaixo dos braços. Tinha os ombros frágeis e as axilas quentes. Fiquei a ver Janan a lavar-lhe a cara com água que tirava com as mãos em concha do charco onde vogava o maço de cigarros, a limpar-lhe com ternura as feridas da testa; observei avidamente a suavidade e a graça dos seus gestos, mas sabia que a ferida continuaria a sangrar. A rapariga contou-nos que a avó a lavava assim quando ela era pequena, e que então tinha muito medo da água, mas que agora, já crescida, gostava da água, e que estava a morrer.

- Tenho coisas para vos contar antes de morrer, ajudem-me a ir até ao autocarro - disse ela.

Em volta do carro capotado e dobrado em dois comprimia­-se uma multidão indecisa que lembrava a que se vê no final de uma festa louca e esgotante. Alguns andavam lentamente à volta do lugar, sem objectivo aparente, deslocavam talvez um cadáver, como se transportam bagagens. Uma mulher, ainda com o saco de plástico, abrira o guarda-chuva, parecia que estava à espera do autocarro. Os passageiros do nosso carro-assassino e alguns pas­sageiros do carro-vítima esforçavam-se por desencarcerar os pou­cos sobreviventes presos entre as bagagens e os mortos que estavam dentro do autocarro estraçalhado, e a deitá-los à chuva. A mão que a rapariga que ia morrer segurava ainda há pouco continuava no sítio onde tinha sido deixada.

A rapariga enfiou-se no autocarro, parecendo agir mais sob o impulso de um sentimento de dever e de responsabilidade do que por compaixão; pegou na mão com ternura.

- Era o meu namorado - disse ela. - Fui a primeira a ler o livro, que me enfeitiçou, e que também me assustou. Cometi o erro de lho dar a ler, e ele também ficou enfeitiçado, mas isso não lhe bastou, quis partir para esse país. Eu bem lhe expliquei que se tratava apenas de um livro, mas não consegui convencê­-lo. Amava-o. Então pusemo-nos a caminho, fomos de cidade em cidade, aflorámos as aparências da vida, tentámos descobrir a realidade que se escondia por detrás das cores, sem a encon­trarmos. Discutimos, e então deixei-o prosseguir sozinho a sua busca, voltei para casa dos meus pais e fiquei à espera dele. Acabou por voltar, mas já era outro homem. Contou que o livro tinha extraviado muitas pessoas, que tinha arruinado a vida a muitas outras, que era a fonte de todos os males. E jurava vingar­-se desse livro que causava tantas desilusões e destruía tantas vidas. Eu bem lhe disse que o culpado não era o livro, bem lhe expliquei que havia ainda outros grandes livros; o importante era que descobríssemos isso lendo-os, disse-lhe eu, mas ele não me ouviu. O fogo da vingança queimava-lhe o coração, como acon­tece a todos aqueles que sofrem uma decepção. Falou-me de um determinado médico, o doutor Fino, da luta que ele travava contra o livro, do grande combate em que se lançara contra as civilizações estrangeiras que causarão a nossa perda, contra todos esses novos produtos que nos vêm do Ocidente, da sua luta con­tra o Escrito... Fazia alusão a várias marcas de relógios, a objectos antigos, a gaiolas para canários, moinhos de café, roldanas de poços. Eu não percebia nada do que ele me dizia, mas amava-o. Ele já só tinha a vingança na cabeça, mas continuava a ser o ho­mem que eu amava com toda a minha alma. Por isso o acompa­nhava agora até uma cidade chamada Güdül, aonde ele devia ir, segundo me explicou, para participar numa reunião secreta de pequenos comerciantes, «para a defesa dos nossos objectivos», dizia ele. Os emissários do doutor Fino deviam encontrar-se aí connosco e, depois, levar-nos até ao doutor. Agora cabe-vos a vós ir em nosso lugar, para acabarem com a influência do livro, para porem termo a esta traição de tudo o que é a vida. O doutor Fino está lá à nossa espera. Nós somos dois jovens concessionários de fogões a carvão, completamente devotados à causa; Os nossos bilhetes de identidade estão no bolso do meu amigo. O homem que vos for procurar cheirará ao creme de barbear OP.

Cobriu-se-lhe de novo a cara de sangue, levou aos lábios a mão que continuava a segurar, acariciou-a e pôs-se a chorar. Janan pegou-lhe pelos ombros.

- A culpa também é minha, Anjo - disse a rapariga. – Eu não sou digna do teu amor. Deixei-me convencer pelo meu amante, fui atrás dele, traí o livro. Ele morreu sem poder ver-te, porque era ainda mais culpado do que eu. O meu pai vai ficar furioso, mas estou feliz porque vou morrer nos teus braços.

Janan jurou-lhe que não ia morrer, mas a morte da rapariga parecia-nos cada vez mais provável, uma vez que os moribundos nunca anunciavam que iam morrer nos filmes que tínhamos visto. No seu papel de anjo, Janan juntou a mão do rapaz à da rapariga, como nos filmes. Depois a rapariga morreu, de mão dada com o homem que amava.

Janan meteu a cabeça pela janela do carro, aproximou-se do jovem que continuava a observar o mundo de pernas para o ar, para lhe revistar cuidadosamente os bolsos. Com um sorriso de triunfo nos lábios, voltou para o nosso universo chuvoso, na posse dos nossos novos bilhetes de identidade.

Como eu amava Janan quando ela arvorava aquele grande sorriso satisfeito! Podia então ver as covinhas que se formavam dos lados da sua boca grande, no sítio onde os lábios cheios se juntavam aos dentes brancos. Que encanto aqueles dois triângulos que se formavam quando ela se ria!

Ela tinha-me beijado uma vez, eu, no que me tocava, tinha­-a beijado outra vez. Tentei beijá-la uma vez mais à chuva, mas ela recuou um passo.

- Na nossa nova vida tu chamas-te Ali Kara - disse-me ela, examinando os bilhetes de identidade que tinha na mão. - O meu nome é Efsun Kara. Temos a mesma cédula de famí­lia. - E arremedando o nosso professor de inglês, num tom pe­dagógico afectuoso e consciencioso, acrescentou com um sorriso: - O senhor e a senhora Kara dirigem-se à cidade de Güdül para participarem no congresso dos concessionários.

 

Tivemos que passar por duas cidades, mudar três vezes de autocarro, debaixo de intermináveis chuvadas de Verão, para alcançar a cidadezinha de Güdü1. Acabávamos de deixar a estação rodoviária de piso lamacento e dirigíamo-nos para os passeios estreitos da rua principal quando notei por cima das nossas ca­beças um céu estranho em que uma bandeirola convidava as crianças a seguirem o curso de Verão da escola corânica. Na mon­tra da loja dos monopólios do Estado e do Totobola, entre as gar­rafas de licores coloridos, três ratos empalhados sorriam-nos de dentuças arreganhadas. Havia fotografias coladas à porta da far­mácia, dessas que as pessoas prendem na botoeira quando vão aos funerais das vítimas de assassínios políticos. Por cima das datas de nascimento e de falecimento, as fotografias dos mortos lembraram a Janan as personagens «abastadas, mas de grande coração» dos velhos filmes turcos. Entrámos numa loja para comprar uma mala de plástico e camisas de nylon, para que pudéssemos passar por um casal de jovens e respeitáveis conces­sionários. Nos passeios estreitos por onde nos dirigíamos para o hotel, os castanheiros tinham sido plantados com uma regula­ridade surpreendente. E, à sombra de uma das árvores, podia ler­-se num cartaz: «Circuncisão à antiga, feita à mão. O laser não é utilizado.» «Eles estão à nossa espera», disse-me Janan. Prepa­rava-me para apresentar a cédula da defunta família Ali e Efsun Kara, mas no hotel da Boa Sorte o empregado da recepção, um homenzinho de bigode à Hitler, contentou-se em deitar-lhe uma olhadela rápida.

- Vieram para o congresso, não é verdade? Foram todos à sessão inaugural ao liceu. É tudo o que têm como bagagem? - perguntou-nos.

            - Todas as nossas bagagens arderam, e o autocarro e os pas­sageiros também - disse-lhe eu. - Onde é o liceu?

            - É verdade, senhor Ali, os autocarros ardem – respondeu o recepcionista. - O rapaz vai indicar-lhes o caminho.

            Janan dirigiu-se ao jovenzinho que nos ia levar ao liceu com uma doçura extrema, coisa que nunca fazia comigo:

            - Esses óculos escuros não te fazem ver o mundo negro? - perguntou-lhe ela.

            - Não senhora, porque eu sou o Michael Jackson! - respon­deu-lhe o garoto.

            - E o que diz a tua mãe? Essa camisola que ela te fez é muito bonita...

            - Ela não tem nada a ver com isso! - respondeu o rapaz.

            No tempo que demorámos até ao Liceu Kenan Evren, com o nome inscrito na fachada a letras de néon, como nas bailes nocturnas de Istambul, pudemos obter de Michael Jackson as seguintes informações: andava no sexto ano, o pai era empregado no cinema que pertencia ao proprietário do hotel; de momento, estava a trabalhar para o congresso. Aliás, toda a cidade estava a trabalhar para o congresso, mas havia pessoas que não queriam saber do congresso! Assim, o subprefeito civil tinha declarado: «Não tolerarei que se atente contra a reputação da cidade onde exerço as minhas funções!»

Entre as invenções expostas no refeitório do Liceu Kenan Evren, onde uma multidão se comprimia, pudemos ver a máquina-que­-retinha-o-tempo, uma placa de vidro mágica que transformava um televisor a preto e branco num televisor a cores, o primeiro detector - made in Turkey - de carne de porco nos diversos pro­dutos alimentares, uma loção de barbear sem cheiro, um alicate para recortar instantaneamente os cupões nos jornais, um aque­cedor que se ligava automaticamente logo que o seu proprietário passasse a soleira da porta para entrar em casa, e um relógio de cuco que garantia soluções categóricas, económicas e modernas para o seguinte dilema: presença do muezzin ou uso do altifalante, islamização ou ocidentalização? Duas estatuetas substituíam o cuco tradicional: no primeiro andar, numa varanda que lembrava uma galeria de minarete, surgia às horas das orações um minús­culo imã que gritava três vezes: «Deus é grande!» E, quando batiam as horas e as meias-horas, era um senhor distinto, de gravata, sem barba nem bigode, que afirmava do alto da mesma varanda: «Que felicidade ser turco, ser turco, ser turco!» Quando estávamos perto da máquina de conservar imagens, perguntámo­-nos se todas aquelas invenções eram fruto do trabalho dos alunos do liceu da região, como se afirmava. Não havia dúvidas de que os pais, os tios, os professores que se encontravam no meio da mul­tidão tinham qualquer coisa a ver com isso, com as suas ideias e os seus talentos de bricoleurs: por exemplo, centenas de espelhinhos de bolso tinham sido dispostos entre a jante e um pneu de automóvel de maneira a constituírem um labirinto de reflexos sucessivos. A luz e a imagem penetravam neste labirinto por uma pequena abertura. Logo que esta abertura se fechava, a infeliz imagem cativa via-se na obrigação de girar continuamente entre os espe­lhos. Quando nos apetecesse, podíamos colar o olho ao orifício e ver a imagem presa dentro da máquina, imagem essa que poderia ser um plátano, um mestre-escola de ar rabugento que tivesse ido visitar a exposição, um comerciante de frigoríficos gordo, um alu­no com a cara cheia de borbulhas, o funcionário do Registo Predial bebendo um copo de limonada, uma garrafa de iogurte líquido, o retrato de Evren pacha, o porteiro desdentado sorrindo para a máquina, um homem de cara patibular, o vosso próprio olho ou ainda Janan, bela e curiosa, de tez resplandecente apesar de tantas viagens de autocarro.

Tivemos oportunidade de observar muitas coisas mais, não a olhar para a máquina, mas à nossa volta, à medida que íamos vendo a exposição. Assim, vimos o senhor de gravata, casaco aos quadrados e camisa branca que acabara de tomar a palavra. A multidão dividia-se em pequenos grupos distintos que se obser­vavam uns aos outros, e a nós também. Uma garotinha de laça­rotes vermelhos no cabelo, agarrada às saias da mãe - uma senhora gorda de lenço na cabeça -, relia o poema que se prepa­rava para recitar. Janan aproximou-se de mim: trazia a saia verde­-pistácio de algodão estampado que tínhamos comprado em Kastamonu.

Ó, meu Anjo, como eu gostava dele, tanto, tanto, mas tu bem sabes! Bebíamos iogurte gelado, contemplávamos a luz poeirenta do entardecer no refeitório, sentíamo-nos cansados, sono­lentos, distraídos, numa atmosfera de musiquinha existencial e de lições das coisas. Havia também um aparelho parecido com um ecrã de televisão de que nos aproximámos para o examinar.

- Esta nova televisão representa o contributo do doutor Fino - disse-nos um homem de paPillon ao pescoço. Seria um franco­-mação? Li em qualquer parte que os franco-mações usavam sempre laço. - A quem tenho a honra? - perguntou-me ele, e examinou atentamente a minha testa. Talvez para evitar olhar para Janan mais do que o necessário.

- Ali Kara, Efsun Kara - apresentei-nos.

- Vocês são tão jovens! a facto de encontrarmos tantos jovens entre os empresários desiludidos reforça as nossas esperanças.

- Não é a juventude que nós representamos, caro senhor, mas a vida nova - começara eu a dizer-lhe quando se apresentou ao pé de nós um novo interlocutor, grande, fortalhaço, simpático, do tipo a quem as alunas do liceu podem perguntar o caminho com toda a segurança.

- Nós não estamos desencantados, a nossa fé é inabalável! - disse o recém-chegado.

Misturámo-nos com a multidão. A miudinha dos laçarotes vermelhos recitou o poema num murmúrio tão leve como uma brisa de Verão. Um jovem - bonito o bastante para desempe­nhar o papel de cantor nos filmes nacionais - falou da região, com uma minúcia muito militar. Evocou os minaretes seljúci­das, as cegonhas, a central eléctrica em fase de construção e as vacas leiteiras de alto rendimento. Quando um aluno do Liceu explicava aos visitantes o funcionamento das invenções alinhadas nas mesas do refeitório, o pai ou algum professor do rapaz vinham de imediato pôr-se à nossa frente cheios de orgulho. Com o copo de limonada ou o iogurte líquido na mão, andávamos de grupo em grupo, misturávamo-nos na multidão, cumprimentá­vamos, apertávamos mãos. Notei um leve cheiro a álcool, depois um perfume a sabão de barbear ap, mas donde vinham esses cheiros, de quem emanavam? Olhámos demoradamente para a televisão do doutor Fino. As conversas giravam sobretudo à sua volta, mas onde estava ele que não se via?

Quando caiu a noite, saímos todos do liceu e tomámos o cami­nho do restaurante, os homens à frente, as mulheres atrás. Nas ruas mal iluminadas da localidade reinava uma atmosfera de hostilidade latente. Sentíamo-nos observados das soleiras das portas das mercearias ou dos salões de cabeleireiro que ainda não tinham fechado, do café em que a televisão estava ligada, das janelas da subprefeitura em que as luzes ainda brilhavam. Entrá­mos no restaurante sob o olhar desconfiado de uma das cegonhas de que tinha falado o estudante bonito; espiava-nos do alto da torre da praça. Seria curiosidade, seria hostilidade?

O restaurante era um lugar que transbordava de boas intenções, com um aquário, vasos de flores e, nas paredes, as fotografias dos nossos grandes homens de Estado, de um dos nossos famosos sub­marinos que tinha soçobrado com toda a honra, de futebolistas com as fronhas de esguelha, naturezas mortas de figos roxos e peras amarelo-palha, e pinturas representando carneiros felizes. A sala encheu-se, num abrir e fechar de olhos, de pequenos comerciantes acompanhados pelas respectivas esposas, de professores e alunos do Liceu, da multidão de todos os que nos amavam e que tinham fé em nós, e eu tive a impressão de que já esperava esta reunião havia meses, que me preparara desde então para um serão deste género. Pus-me a beber com os outros, mas acabei por beber mais do que todos os outros. Sentado à mesa dos homens, com o copo de raki na mão, brindava com todos os que se sentavam a meu lado, à vez, discorria demoradamente, falava de honra, do sentido da vida que se perdera, de todas as coisas que perdêramos. Fazia-o tão-só por­que eles tinham sido os primeiros a abordar o tema: quando o meu vizinho, de convívio exuberante, sacou do bolso um baralho de cartas e me mostrou com orgulho o xeque que nelas estava dese­nhado em vez do rei, e o «discípulo» em vez do valete, e me ex­plicou demoradamente que já era tempo de distribuir este novo tipo de cartas pelos dois milhões e meio de mesas em que se joga às cartas nos cento e setenta mil cafés do nosso país, eu apoiei-o com tanto ardor que ficámos espantados, eu e ele.

A esperança es­tava ali presente, naquele serão. Na forma de um anjo? Era uma espécie de luz, disseram. E disseram-me ainda: de cada vez que respiramos, perdemos um pouco de nós próprios. Disseram­-me que recuperavam todas as coisas que tínhamos enterrado. Um deles mostrou-me um projecto de fogão. Outro disse-me: preci­samos de uma bicicleta que se adapte à nossa estatura e à confor­mação do nosso corpo. O senhor do laço tirou do bolso uma garrafa: o líquido que ela continha poderia perfeitamente substi­tuir a pasta dentífrica. Um velho desdentado falou-nos do seu des­gosto por já não poder beber, mas contou-nos um sonho que tivera: «Ele disse-nos para não termos medo, ele disse-nos que, se não tivermos medo, não desapareceremos!» «Ele» quem? De quem se tratava? O doutor Fino, o que conhecia o segredo fundamental da matéria, continuava sem aparecer; porquê? Na verdade, decla­rou alguém, se o doutor Fino tivesse encontrado esse jovem cheio de curiosidade, tê-lo-ia amado como ao seu próprio filho! De quem era a voz? Quando me virei, já o homem tinha desaparecido. Caluda!, disseram eles. É que era inútil estar a citar sempre o nome do doutor. Amanhã, quando o Anjo aparecer na televisão, dis­seram eles, vai haver muito tempo para discussões! Tudo isso, diziam eles, é culpa do subprefeito, do medo que ele quis criar, mas, no fundo, ele não está verdadeiramente contra nós! Vehbi Koç, o homem mais rico da Turquia, pode muito bem responder ao nosso convite e juntar-se a nós, disse alguém. Ao fim e ao cabo, não será ele o maior concessionário do país? Lembro-me de ter beijado pessoas - as que me cumprimentavam pela minha juven­tude, as que me abraçavam e me felicitavam pela minha fran­queza - porque eu lhes tinha falado do ecrã de TV nos autocarros, das cores e do tempo.

- O ecrã! - exclamou o gerente do armazém dos monopó­lios do Estado, um tipo simpático. - O nosso ecrã vai garantir­-nos a derrota de todos os que nos armaram esta ratoeira! O que o novo ecrã significa é uma vida nova!

As pessoas, à vez, vinham sentar-se a meu lado. Também eu mudava de lugar constantemente e falava-lhes dos acidentes, da morte, da paz, do livro, do momento único. Senti que estava a ir longe de mais quando pronunciei a palavra «amor»... Levantei-me para olhar na direcção do sítio onde Janan estava sentada, entre os professores e esposas que lhe faziam perguntas e a observavam. Vol­tei a sentar-me e disse: «O tempo é um acidente e, se estamos aqui, é por acidente, e se viemos ao mundo também foi por acidente.» Chamaram um lavrador, vestido com um casaco de cabedal, dizen­do-me que, sendo assim, era esse que eu devia ouvir. O homem não era muito velho, mas sufocava ruidosamente ao falar: «Ora essa! Ora essa!», e tirou de um dos seus numerosos bolsos aquilo a que chamava a sua «modesta» invenção. Era um relógio de bolso que indicava a hora em que nos sentíamos felizes e, nesse mo­mento, o relógio parava por si, de tal maneira que a nossa hora de felicidade podia durar eternamente. E, pelo contrário, quando estávamos infelizes, os dois ponteiros, o grande e o dos segundos, aceleravam freneticamente, e assim passava muito depressa o tem­po e as nossas preocupações acabavam num abrir e fechar de olhos... E à noite, dormindo tranquilamente com o relógio pousado na mesa-de-cabeceira, este pequeno objecto que tiquetaqueava pacien­temente na palma da mão do velho regulava sozinho o tempo subtraindo-o ao total das horas da nossa vida, de tal maneira que, quando nos levantávamos de manhã, não éramos mais velhos.

Eu murmurei «o tempo...», enquanto seguia com um olhar distraído o movimento vagaroso dos peixes no aquário. Alguém - uma sombra fugitiva, como são as sombras - se aproximou de mim: «Acusam-nos de desprezarmos a civilização», disse-me ele. «Na realidade, é precisamente ao contrário. Já alguma vez ouviu falar nos descendentes dos cruzados que vivem há séculos nas grutas de Ürgüp, na Capadócia?» Quem era afinal aquele peixe que se dirigia a mim quando eu falava com os peixes? Não tivera ainda tempo de me virar e já ele tinha desaparecido. Primeiro pensei que se tratava apenas de uma sombra, mas, ao reconhecer o cheiro penetrante do sabão para a barba OP, tive muito medo.

Deixei-me cair na cadeira e logo um tipo com uma bigodaça enorme começou a assediar-me com perguntas ao mesmo tempo que brincava nervosamente com a corrente de um porta-chaves: interrogou-me sobre a minha família e a minha parentela, pergun­tou-me em que partido votava, qual era a invenção que me tinha interessado mais, e qual seria a minha posição na sessão da manhã seguinte. Eu ainda tinha os peixes na cabeça e ia propor-lhe que bebesse mais um copo quando ouvi vozes, vozes, muitas vozes. O homem garantiu-me que já não tinha medo de ninguém, nem sequer do subprefeito que lhe colocava dificuldades por causa dos ratos empalhados que ele tinha na montra. Por que raio no nosso país só os monopólios é que podiam vender licores? Lembrei-me de algo que me assustou e, por medo, respondi-lhe a primeira coisa que me passou pela cabeça: se a vida é uma viagem, eu, que ando na estrada há seis meses - disse-lhe -, acho que aprendi qualquer coisa, desculpe que lhe diga; li um livro que me fez perder o meu universo e me pôs em busca de um universo novo. E o que descobri? Tive a sensação de que serias tu a responder a esta pergunta, meu Anjo! Calei-me por um instante e pus-me a re­flectir, meu Anjo, já não sabia bem o que dizia, como se acordasse de um sonho; e, de repente, pus-me bruscamente à tua procura na multidão e foi também bruscamente que me lembrei: o amor... Janan estava lá, entre os vendedores de fogões e de frigoríficos com as respectivas esposas e o tipo do laço; dançava com um aluno alto e magricela muito seguro de si, sob os olhares críticos dos profes­sores e respectivas filhas e dos velhinhos senis.

Sentei-me, acendi um cigarro. Se ao menos soubesse dançar! Uma valsa, como a dançam os recém-casados nos filmes! Bebi um café. Devia fazer-se tarde em todos os relógios, mesmo na­quele que marcava a felicidade. Outro cigarro... Aplaudiam-se os pares que dançavam. Mais um café... Janan voltou a ir sentar­-se ao pé das senhoras. Outro café...

Quando regressávamos ao hotel, fiz como todos os habitantes da cidade e todos os gerentes ou concessionários da região que iam de braço dado com as esposas: aproximei-me de Janan. Quem era aquele aluno do liceu? Donde o conhecia? A cidadezinha estava mergulhada na escuridão. A cegonha espiava-nos do alto da torre. O recepcionista do hotel acabava precisamente de nos entregar a chave do quarto 19, como se fôssemos marido e mulher, quando um homem de aspecto muito resoluto e seguro de si me barrou o caminho da escada com o seu corpo grande e suado:

- Senhor Kara, se tiver um minuto... - disse-me ele. Um bó­fia, disse para comigo, descobriu que a minha cédula de família foi herdada das vítimas infelizes de um acidente de viação. - Im­porta-se de falar um pouco connosco, se não for muito incómodo? - Tinha o ar de querer falar de homem para homem. Com que graça Janan se afastou, como estava elegante com a sua saia florida quando subia os degraus da escada, com a chave número 19 na mão!

O homem não era de Güdül e esqueci o nome dele logo depois de ele mo ter dito. Chamemos-lhe senhor Mocho, dada a hora tardia a que me interpelou; ou talvez o nome me tivesse vindo à cabeça por causa do canário da sala de espera. O passaroco sal­titava sem parar de uma trave para a outra dentro da gaiola.

- Ofereceram-nos de beber e de comer - disse-me o senhor Mocho -, mas amanhã vão querer que votemos. Já pensou no assunto? Passei a noite a discutir com todos esses gerentes, não só com os das redondezas mas também com todos os que se des­locaram dos quatro cantos do país. Amanhã pode haver proble­mas, incidentes. Já pensou nisso? Você é o mais jovem de nós todos. Por quem vai votar?

- Na sua opinião, por quem deveria votar?

            - Não pelo doutor Fino. Acredita em mim, irmão, permite que te trate assim; essa sua história arrasta-nos para uma aven­tura. Os anjos são capazes de cometer pecados? E nós seremos capazes de lutar contra essas forças que nos são hostis? Já é im­possível sermos nós próprios. Djélâl Salik, o famoso editorialista, compreendeu isso muito bem. Preferiu suicidar-se... Agora é ou­tra pessoa qualquer que escreve os editoriais com o nome dele. Eles estão por todo o lado, os americanos. Dá-se um pontapé nu­ma pedra e aparece um... É evidente que é uma coisa muito triste termos de admitir que já nunca mais poderemos ser nós próprios. Mas o único meio de se evitar a catástrofe é estarmos conscien­tes do perigo. Diz-se: os nossos filhos, os nossos netos, já não nos vão compreender. E então? As civilizações nascem, as civilizações desaparecem... O que se pode fazer? Achar que tudo está bem quando uma civilização está a construir-se, e, quando ela soçobra, sacar logo da pistola como um garoto com mau perder? Quantas pessoas se podem massacrar se uma nação em peso muda de iden­tidade? Como é que o Anjo pode tornar-se cúmplice de um crime? E, aliás, quem é esse Anjo? Esta é uma pergunta que eu lhe faço. Diz-se que colecciona fogões velhos, bússolas antigas, revistas para crianças, molas da roupa de pau, diz-se que detesta os livros e tudo o que é impresso... Nós esforçamo-nos todos por levar uma vida com sentido, mas, à mínima dificuldade, trope­çamos. Quem é que, entre nós, pode ser verdadeiramente ele próprio? Qual é o feliz eleito que pode ouvir sussurrar os anjos? Tudo isso não passa de especulações, de palavras ocas, para enganar papalvos. A situação vai tornar-se incontrolável. Não sei se já ouviu, parece que o próprio Vehbi Koç vai estar lá, amanhã. As autoridades, o Estado, o subprefeito não vão querer que eles levem isto avante. E os inocentes vão sofrer tanto como os culpa­dos! Por que foi que a demonstração do televisor do doutor Fino foi adiada para amanhã? Será que goza aqui de um tratamento privilegiado? Ele procura arrastar-nos para essa aventura. Parece que vai explicar-nos amanhã o escândalo da Coca-Cola. Isto é uma loucura! Não foi para isso que viemos ao congresso.

Preparava-se para me dizer ainda mais, mas um homem de gravata vermelha entrou na sala do hotel, demasiado pequena para se lhe chamar átrio. «Eles vão passar toda a noite a calcular os votos, é evidente...», murmurou o Mocho antes de se ir em­bora. Vi-o sair com outro concessionário e desaparecer nas trevas que envolviam a povoação.

Parei no fundo das escadas que Janan acabara de subir. Sentia-me febril, tremia das pernas, talvez por causa do café e do raki, tinha palpitações e gotas de suor perlavam-me a testa. Comecei a subir a escada mas mudei de ideias e dirigi-me rapidamente para a cabina telefónica num canto da sala; marquei o número, as linhas estavam sobrecarregadas, voltei a marcá-lo, mãezinha querida, estás a ouvir, vou casar-me esta noite, já a seguir, vamos casar-nos dentro de um instante, já estamos casados, mesmo ao cimo da escada, no quarto lá em cima, caso com um anjo, mãezinha, não chores, juro que um dia volto para casa com um anjo nos braços, mãezinha, não chores.

Por que nunca teria reparado no espelho que estava mesmo por trás da gaiola do canário? Reflectia-nos estranhamente en­quanto subíamos a escada.

Quarto número 19: era o quarto cuja porta Janan me abriu, de cigarro na mão; depois voltou para a janela aberta donde mi­rava a praça.

O quarto parecia um imenso cofre-forte de outra pessoa mas que se deixasse abrir com facilidade. Silencioso. Quente. Luzes coadas. Duas camas lado a lado.

As luzes pálidas da cidadezinha afloravam, pela janela aberta, o cabelo e o colo de cisne de Janan; não lhe via a boca donde subia uma nuvem de fumo impaciente e nervosa (ou seria apenas im­pressão minha?) para as trevas tristes do céu que os mortos, os insones e os que dormiam com um sono agitado na cidade de Gü­dül alimentavam desde há anos e anos com as suas respirações. Algures, em baixo, um bêbado deu uma gargalhada - era talvez um dos congressistas. Alguém bateu com uma porta. Vi Janan deitar a ponta do cigarro acesa pela janela, num gesto de ma­landro, e, como uma criança, seguir com os olhos o voo incerto do cigarro. Aproximei-me da janela, olhei, sem ver, para a rua e para a praça. Depois contemplámos longamente o que se nos oferecia ao olhar, como se se tratasse da capa de um livro novo.

- Também bebeste muito, tu, não foi? - perguntei-lhe.

- Bebi - respondeu Janan bem-humorada.

- Aonde é que isto tudo nos vai levar?

            - Queres tu dizer, esta viagem? - perguntou-me ela numtom alegre e apontando para a estrada que partia da praça para a estação rodoviária, passando pelo cemitério.

- Como será que isto tudo irá acabar, na tua opinião?

- Não sei - disse Janan. - Mas quero ir até ao fim. Não será melhor do que estarmos de rabo sentado?

            - Gastámos o dinheiro quase todo que havia na carteira - re­pliquei-lhe.

Os recantos sombrios da rua que Janan me tinha mostrado um momento antes foram iluminados de repente pelos faróis de um carro que desembocou na praça e aí estacionou.

- Nunca conseguiremos - disse-lhe eu.

- Tu ainda estás mais bêbado do que eu - disse Janan.

            Um homem saiu do carro, fechou-o à chave e dirigiu-se para o hotel, sem levantar os olhos para nós, sem mesmo dar por nós, e pisou sem contemplações a ponta do cigarro que Janan atirara da janela, como fazem todos aqueles que esmagam impiedo­samente a vida dos outros, depois entrou no hotel da Boa Sorte.

Caiu um silêncio prolongado, como se o encantador burgozi­nho de Güdül fosse uma cidade deserta. Dois ou três cães ladraram num bairro longínquo, depois caiu de novo o silêncio. De tempos a tempos, as folhas dos plátanos e dos castanheiros buliam sem restolhar, tocadas por uma brisa tão leve que nem se notava. De certeza que ficámos muito tempo especados à janela a olhar para a praça silenciosa, como crianças que esperam que aconteça qual­quer coisa divertida. A minha memória estava sem dúvida a pre­gar-me uma grande partida, mas, embora sentisse cada segundo a passar, era incapaz de dizer quanto tempo ali estivemos.

- Não, não me toques, por favor! Nunca nenhum homem me tocou! - disse Janan muito depois.

Como nos acontece muitas vezes, não só quando evocamos o passado mas no próprio instante que vivemos, pareceu-me por momentos que a situação que vivia e a cidadezinha de Güdül que contemplava da janela apenas existiam na minha imagi­nação. Talvez não fosse uma cidade verdadeira aquilo que eu es­tava a ver, mas a fotografia de uma cidade como as que se vêem nos selos da série «Paisagens da Turquia» emitida pelos serviços dos Correios. Tal como nos selos, aquela praceta dava-me a ideia de ser muito mais uma lembrança do que um lugar onde as pes­soas podem passear, flainar diante das montras poeirentas ou comprar um maço de cigarros.

Uma cidade fantasma, pensei. Uma cidade souvenir. Sabia que os meus olhos procuravam instintivamente o correlativo visual e indelével de uma recordação dolorosa que nunca mais poderia esquecer. Percorri com um olhar a praceta, o sítio ao pé das ár­vores onde fazia mais escuro, os guarda-lamas dos tractores que brilhavam sob uma luz misteriosa, as letras - algumas das quais ilegíveis - dos nomes da farmácia e do banco, as costas de um velho que caminhava pela rua e algumas janelas... Depois, como um amador apaixonado que examina a fotografia da praça de uma cidade com mais interesse pela localização do sítio onde estava o fotógrafo do que pelo resto, comecei a ver a minha própria ima­gem a uma janela do segundo andar do hotel Boa Sorte. Tal como nos genéricos dos filmes estrangeiros que víamos nos autocarros: primeiro um panorama geral da cidade, depois um bairro, depois um pátio, depois uma casa, depois uma janela... Eu olhava pela janela deste hotel miserável no fim do mundo, e tu, cansada, es­tendias-te toda vestida numa das camas, do lado da janela, e as imagens sucediam-se na minha cabeça e diante dos meus olhos: nós dois, a janela, o hotel, a praceta e a cidade, e todas as estra­das e todo o país que tínhamos percorrido, como se todas essas cidades e aldeias, todos os filmes, todas as bombas de gasolina e todos os passageiros de que tinha uma lembrança confusa se combinassem com a dor e com a carência que sentia no mais fundo de mim, e já não sabia se tal tristeza me vinha das cidades e de toda a sua velharia, se me vinha dos passageiros ou se era eu mesmo quem espalhava a minha própria melancolia por todas as terras do país ou mesmo pelos mapas geográficos.

O papel de parede violeta à volta da janela lembrava-me um mapa. No aquecedor eléctrico, a um canto do quarto, podia ler­-se a marca: Vesúvio. Pois bem, eu tinha conhecido precisamente o representante regional desta firma. A torneira do lavatório pin­gava gota a gota. Como a porta envidraçada do armário não fe­chava bem, reflectia-se nela a mesinha-de-cabeceira entre as duas camas e o candeeiro aí pousado. A luz coada pelo quebra-luz ilu­minava suavemente Janan, que adormecera vestida em cima da coberta estampada de folhas violeta.

Os seus cabelos castanhos estavam agora com uma cor de mogno. Como é que eu nunca tinha reparado naqueles reflexos ruivos?

Disse para mim mesmo que havia ainda muitas coisas nela em que eu não tinha reparado. O meu espírito estava profu­samente iluminado, tal como os restaurantes onde parávamos ànoite para engolirmos uma sopa, mas reinava nele a mesma de­sordem e, no meio de tal confusão, os pensamentos atravessavam­-me a mente com lassidão, mudando de velocidade e soprando com força, soprando suspiros fundos como os camiões fantasmá­ticos e sonolentos que passavam diante desses restaurantes, nos cruzamentos perdidos, e eu ouvia muito perto de mim a respi­ração da mulher dos meus sonhos, que dormia sonhando com outro.

Vai deitar-te ao lado dela, toma-a nos teus braços! É que, de­pois de tanto tempo juntos, os corpos desejam-se... Afinal quem é o tal doutor Fino? No momento em que, não aguentando mais, me virava para lhe contemplar as pernas lindíssimas, lembrei­-me dos irmãos que conspiravam no silêncio da noite e que me espiavam. Uma borboleta vinda desse silêncio voava em torno da lâmpada espalhando-se dolorosamente em cinza. Beija-a, lon­gamente, até ao instante em que os dois corpos se consumam de febre. Era mesmo música o que eu estava a ouvir ou era o meu espírito que tocava para mim o bem conhecido fragmento «o apelo da noite» a pedido dos ouvintes? Para falar verdade, como muitos rapazes da minha idade sabem, o apelo da noite, que serve como substituto do desejo sexual não satisfeito, con­siste em um tipo lançar-se pela rua escura na companhia de dois ou três malandros sem esperança, para soltar urros desesperados, para invectivar os transeuntes, em confeccionar bombas destina­das a fazer ir as pessoas pelos ares - talvez tu me compreendas, tu, meu Anjo -, em perorar a propósito da conspiração inter­nacional que nos condena a levar esta vida miserável. E acho que o palavreado deste género tem o nome de História.

Durante meia hora, talvez quarenta e cinco minutos, enfim, uma hora no máximo, contemplei Janan a dormir. Depois abri a porta, fechei-a à chave e meti a chave no bolso. A minha Janan ficava no quarto, eu era atirado, sozinho, para a noite.

Descer a rua, subi-la. Depois voltar ao hotel e apertá-la nos braços. Era só o tempo de fumar um cigarro, depois voltaria para o quarto e ia aninhá-la nos meus braços...

            Mas os conspiradores da noite atiraram-se a mim quando eu

ainda estava na escada.

            - É o Ali Kara, não é? - perguntou um deles. - Deu-se ao trabalho de fazer todo este caminho e ainda é tão jovem!

- Se quiser fazer-nos companhia - disse o segundo, mais ou menos da mesma idade e da mesma estatura do primeiro, mais ou menos com a mesma gravata estreita e o mesmo casaco preto -, poderemos dar-lhe uma ideia da balbúrdia que vai rebentar amanhã.

Brandiam na minha direcção os cigarros cujas pontas incan­descentes faziam lembrar o buraco do cano de uma arma e sor­riam com ar provocador:

            - Não queremos assustá-lo - acrescentou o primeiro -, queremos simplesmente avisá-lo para se pôr a pau.

            Adivinhei que eles continuavam com os debates pela noite dentro com o fito de conseguirem votos para o dia seguinte.

Saímos para a rua, onde a cegonha tinha desistido de estar à espreita, e passámos em frente das garrafas de licor e dos ratos empalhados da montra. Depois metemos por uma viela onde demos apenas alguns passos antes de entrarmos por uma porta que se abriu, e fomos recebidos por um cheiro forte a raki e a taberna. Sentámo-nos a uma mesa coberta com uma toalha plástica gordu­rosa. Depois de bebermos dois copos de enfiada - «Bota abaixo, que é bom para a saúde!» - fiquei a saber muitas coisas sobre os meus novos amigos, sobre a felicidade e sobre a vida.

O que me tinha abordado primeiro chamava-se senhor Sitki e vendia cerveja em Seydisehir. Explicou-me demoradamente que não havia qualquer contradição entre o seu modo de vida e as suas convicções religiosas. Porque a cerveja - bastava pensar um pouco nisso para se compreender - não era uma bebida alcoólica como o raki. Pediu uma garrafa de cerveja Éfeso, dei­tou-a para um copo e explicou-me que o gás fazia dela uma espécie de «limonada". O meu segundo companheiro não dava qualquer importância a esses desacordos, a esses escrúpulos, tal­vez porque comerciava. Esse era comerciante de máquinas de costura. Esse preferia lançar-se no âmago da vida, como os camio­nistas bêbados de álcool e de sono que, em plena noite, se enfei­xam cegamente nos postes eléctricos.

A paz! Era aqui que ela se encontrava, a paz, nesta cidade­zinha, nesta pequena taberna. Naquele instante, à volta da mesa partilhada por três fiéis amigos! No próprio âmago da vida... Re­flectimos sobre tudo o que nos acontecera e sobre tudo o que iria ainda acontecer-nos. Compreendíamos muito bem a importân­cia deste instante único entre o nosso glorioso passado e o nosso futuro miserável e assustador. Jurámos dizer sempre a verdade uns aos outros. Beijávamo-nos fraternalmente, dávamos grandes gargalhadas, com as lágrimas nos olhos. Exaltávamos o esplendor do universo e da vida. Erguíamos os nossos copos à saúde dos concessionários e dos organizadores bem acordados que estavam na sala. Era isso a vida, era ali que ela estava e não noutro lado, não no inferno nem no paraíso. Estava ali, no próprio momento, a vida em toda a sua glória. Quem poderia ser tão louco que afirmasse que não tínhamos razão? Quem poderia ser tão idiota que se metesse connosco? Quem tinha o direito de nos chamar miseráveis dejectos? Nós não tínhamos o desejo de viver em Is­tambul, em Paris, em Nova Iorque! Eles bem podiam ficar com os seus dólares, com os seus belos salões, os seus aviões, os seus

jornais a cores e mesmo os seus rádios e as suas televisões - nós tínhamos a nossa própria televisão! Além disso, nós tínha­mos qualquer coisa que eles não tinham: coração! Vê antes como a luz da vida abre caminho através do meu coração!

Lembro-me de, por um breve instante, ter caído em mim, ó meu Anjo! Se é tão fácil arranjar o filtro que nos salve do deses­pero, por que é que toda a gente não faz o mesmo? - pensei. Ei-lo que sai da taberna, aquele que é conhecido pelo nome de Ali Kara, que caminha na noite de Verão com os seus melhores amigos, que coloca a seguinte pergunta: porquê tantas misérias, tanta tristeza, tantas desgraças? Porquê? No segundo andar do hotel da Boa Sorte, o candeeiro que tinge de cobre os cabelos de Janan ainda está aceso.

Lembro-me de, em seguida, me ver num ambiente «Repúbli­ca-Atatürk-Selos Fiscais». Entrámos num grande edifício e pene­trámos até ao próprio gabinete do subprefeito. O próprio me beijou na testa! Estava do nosso lado! Explicou-nos que recebera ordens de Ancara e garantiu-nos que ninguém se atreveria a me­ter-se connosco no dia seguinte. Eu tinha atraído a sua atenção, ele tinha confiança em mim, pelo que podia ler o comunicado ainda impregnado de álcool que ele tinha mandado copiar numa máquina novinha em folha!

- Aos cidadãos da cidade de Güdül! Às forças vivas, a todos os pais e mães de família, aos nossos irmãos, às nossas irmãs! Aos jovens estudantes movidos pela fé da nossa escola corânica! Acon­tece que alguns indivíduos recém-chegados à nossa cidade se es­queceram de que eram nossos hóspedes! Quais as suas intenções? Insultar tudo o que é sagrado aos olhos da nossa cidade, desde há séculos profundamente arreigado - com as suas mesquitas, os seus mesdjit e as suas festas religiosas - à nossa religião e ao Profeta, aos xeques e ao monumento de Atatürk! Não, recusamo­-nos a beber vinho, não, jamais podereis obrigar-nos a engolir Coca-Cola! Só acreditamos em Deus! Os ídolos, os americanos e o Diabo jamais serão objecto da nossa adoração! Por que razão intrujões encartados e más cópias de Mary e Ali, entre eles Max Rulo, o bem conhecido agente judeu cujo único objectivo é ridicularizar o marechal Fevzi Çakmak, se reúnem na nossa pacífica cidade? Quem é o Anjo? Quem ousa fazê-lo aparecer na televisão para o cobrir de ridículo? Vamos ficar indiferentes perante estas insolências para com o nosso valoroso corpo de Bombeiros e para com o Hadji Cegonha que protege esta cidade há mais de vinte anos? Foi para chegarmos a este ponto que Atatürk escorraçou o exército grego para fora da Turquia? Se não pusermos no seu lugar estes insolentes que se esquecem que são visitas entre nós, se não dermos a lição merecida a estes descarados que cometeram o erro de convidar tais indivíduos, como poderemos amanhã ou­sar olhar-nos nos olhos? Concentração amanhã às onze horas na Praça dos Bombeiros! Vale mais morrermos com honra do que vivermos na desonra!

Reli o comunicado. Lendo-o ao contrário ou compondo um anagrama com as maiúsculas, poderíamos obter uma versão com­pletamente diferente? Não. Sua excelência o subprefeito disse-nos que os carros dos bombeiros tinham passado o dia a bombear água do rio. Era sempre possível - embora pouco provável ­que as coisas degenerassem no dia seguinte de manhã, embora, com aquele calor, a multidão pudesse ficar indiferente aos jactos de água, mas o presidente da câmara, por seu lado, tinha garantido aos nossos amigos a sua total colaboração; no caso de surgirem incidentes, seriam deslocadas de imediato da prefeitura unida­des da guarda para lhes porem termo. «Uma vez reprimidos esses incidentes, quando caírem as máscaras dos provocadores, dos inimigos da República e da Nação», acrescentou o subprefeito, «logo se verá se essas pessoas se atreverão a pintar os anúncios de sabonetes e os cartazes com mulheres em trajos menores! Ve­remos se esses bêbados, depois de se emborracharem no alfaiate, se atrevem a lançar injúrias contra o subprefeito e a cegonha!

Foi então que eles decidiram que eu, um rapaz destemido, de­veria fazer uma visita à alfaiataria. Depois de me terem dado a ler o «contracomunicado» redigido por dois professores da primária, membros semi-secretos da «Associação para a Promoção da Civilização», entregaram-me a um contínuo da subprefeitura en­carregado de levar o «jovem cavalheiro» ao alfaiate.

- Sua excelência manda fazer horas extraordinárias a toda a gente - disse-me, logo que saímos para a rua, o contínuo a quem todos chamavam Tio Hassan. Na noite azul-marinho, dois polícias à paisana tão furtivos como ladrões estavam a arrancar o pano re­ferente à escola corânica. - Nós não cruzamos os braços quando se trata da salvação do Estado e da Nação! - concluiu o Tio Hassan.

Na oficina do alfaiate vi tecidos, máquinas de costura e, num armário colocado entre dois espelhos, uma televisão e um vídeo. Dois jovens, apenas um pouco mais velhos do que eu, andavam à volta do televisor com chaves de parafusos e fios eléctricos. Um homem, sentado a um canto num canapé violeta, observando-os e observando-se a si próprio num dos espelhos, virou-se para nós e lançou um olhar interrogativo ao Tio Hassan.

- É o senhor subprefeito quem lho manda - disse-lhe o Tio Hassan. - Confia-o aos seus bons cuidados.

O homem sentado na poltrona roxa não era outro senão aquele que, depois de ter estacionado o carro, entrara no hotel pisando a ponta do cigarro de Janan. Sorriu-me amigavelmente e convi­dou-me a sentar. Meia hora depois estendeu o braço e carregou num botão para pôr o vídeo a funcionar.

Apareceu no ecrã a imagem de um ecrã de televisão e, neste segundo ecrã, um terceiro. Depois vi uma luz azul, qualquer coisa que fazia pensar na morte, mas a morte devia estar ainda muito longínqua. A luz passeou-se um longo momento por uma estepe tão vasta como a que eu tinha percorrido com Janan. Depois raiou a manhã, as primícias do amor, como se costuma dizer, e vi desfilar paisagens de calendários dos Correios. As ima­gens aludiam sem dúvida aos primeiros dias da criação do mundo. Que coisa magnífica emborrachar-me numa cidade desconhecida enquanto a minha amada dormia num quarto de hotel, encontrar-me numa alfaiataria na companhia de amigos misteriosos e sem ter de me colocar questões sobre o sentido da vida e vê-la assim revelada em imagens! Por que é que se pensa com palavras, mas se sofre por causa das imagens? «É isto que eu quero!», pensava eu, sem saber muito bem o que queria. Apareceu então uma luz branca no ecrã. Os dois jovens que se atarefavam atrás do televisor devem ter-se apercebido dela ao verem-na reflectida na minha cara, porque se debruçaram para o ecrã e ligaram o som. Bruscamente, a luz tomou o aspecto de um anjo. «Como eu estou longe!», disse uma voz. «Tão longe que estou a cada instante entre vós! Escutai-me agora com a vossa própria voz interior, falai em sussurro, imaginando que os vos­sos lábios são os meus.»

Também eu me pus a murmurar. Parecia um infeliz actor a dobrar um filme, esforçando-me, a partir de uma má tradução, por apresentar como suas as palavras de outro.

- É impossível fazer-te frente, ó Tempo! - disse com esta mesma voz -, enquanto Janan dorme e a manhã se aproxima! Mas posso continuar a cerrar os dentes e a aguentar!

Houve então um silêncio. Tinha a impressão de ver os meus próprios pensamentos a desfilar no ecrã; a partir daqui pouco im­porta ter os olhos abertos ou fechados, dizia para mim, visto que as imagens que se sucedem no meu espírito e as do mundo ex­terior são as mesmas. Voltei a falar:

- Deus criou o mundo quando desejou ver o reflexo dos seus atributos infinitos, quando desejou reproduzir a sua própria ima­gem que via no espelho. Assim foram criadas as manhãs na estepe, o céu azul brilhante, as costas rochosas varridas pelos mares ainda virgens, e a lua que nos faz medo quando a vemos à noite numa floresta, todas as imagens que vemos incessantemente na televisão e no início dos filmes no cinema. Naquele tempo só a noite existia no céu negro, tal como uma televisão que se liga de novo sozi­nha quando a corrente volta depois de um corte demorado e recomeça a descrever o mundo quando já toda a família dorme profundamente. Naqueles tempos a lua e a criação existiam, mas não havia ninguém para as ver. As coisas eram desprovidas de alma, como um espelho sem o seu banho de estanho. Contemplai mais uma vez este universo sem alma e que isso vos sirva de lição!

- É exactamente aqui que vai explodir a bomba, patrão - dis­se um dos rapazes, o que manejava o berbequim.

Era como se, depois de terem conversado, tivessem instalado uma bomba no televisor. Teria compreendido mal? Não, não, tinha percebido bem, mas tratava-se de uma espécie de bomba de imagens, que devia explodir no momento exacto em que o brilho deslumbrante do Anjo aparecesse no ecrã. Eu tinha a cer­teza de ter percebido bem porque, além da curiosidade que os pormenores técnicos de uma bomba de imagens me inspiravam, estava dominado por um forte sentimento de culpa. «É de cer­teza verdade!», pensava eu. E vim a saber como as coisas se pas­sariam: no decurso da reunião da manhã, quando todos os vendedores e concessionários estivessem concentrados nas ima­gens mágicas do ecrã e mergulhados numa discussão sobre os anjos, a matéria, a luz e o tempo, a bomba explodiria, doce e quente, como nos acidentes de viação, e o tempo, acumulado há anos naquela multidão ávida de viver, de combater e de cons­pirar, espalhar-se-ia violentamente pela cena e petrificaria tudo nos seus lugares. Pensei então para mim que não tinha vontade nenhuma de morrer de uma deflagração ou de um ataque car­díaco e que preferia partir durante um verdadeiro acidente de viação. Talvez porque pensasse que o Anjo me apareceria no momento do choque, para me murmurar ao ouvido o segredo da vida. Mas quando seria isso, meu Anjo, quando?

Continuava a seguir as imagens que se sucediam no ecrã: uma espécie de luz, desprovida de brilho, ou talvez fosse o Anjo, não tenho a certeza. Esta possibilidade de ver as imagens que se se­guiriam à explosão da bomba era como um bosquejo da vida depois da morte. Senti uma euforia tal à ideia de aproveitar esta oportunidade excepcional que me surpreendi a sonorizar as imagens que passavam no ecrã. Limitar-me-ia a repetir o que di­zia outro? Ou tratar-se-ia de um sentimento de fraternidade semelhante ao da união das almas no além?

- Quando o Sopro divino se comunicou ao universo, o olho de Adão pôde distingui-lo. Pudemos ver então a matéria tal como ela era, exactamente como as crianças podem vê-la, e não como num espelho não estanhado. Naquele tempo éramos crianças cheias de alegria, atribuindo um nome a tudo o que os nossos olhos viam e não separando o objecto do seu nome. Naquele tempo, o tempo era o tempo, o acaso era o acaso, a vida era a vida. Era a verdadeira felicidade, mas a felicidade desagradou a Satã e, como ele era Satã, concebeu a ideia da Grande Maquinação. Uma das principais peças desta conspiração chamava-se Gutenberg, e ele e os seus émulos - a que chamaram os impressores - reproduziram as palavras numa cadência que a mão laboriosa, os dedos pacientes e o cálamo minucioso jamais teriam conseguido manter, e as palavras, e mais palavras, e ainda mais palavras espalharam-se por todo o lado, como as contas de um colar cujo fio se partiu. Como baratas famintas e frenéticas, as palavras impressas invadiram as emba­lagens de sabonetes ou as caixas de ovos, enfiaram-se por debaixo das nossas portas. De tal maneira assim foi que o verbo e a maté­ria, dantes inseparáveis, viraram as costas um ao outro. De tal maneira assim foi que na noite de luar, quando nos perguntam o que significam o tempo, a vida, a tristeza, o destino e a dor, nós confundimos todas as respostas que outrora conhecíamos de cor. Tal como o estudante marrão que não dorme na véspera de um exame. O tempo é um grande ruído, dizia um louco. O acidente é um destino, dizia outro. A vida é um livro, dizia um terceiro. Tínhamos o espírito perturbado, como podeis ver, e esperávamos que o Anjo viesse segredar-nos todas as respostas ao ouvido.

O homem sentado na poltrona roxa interrompeu-nos:

- Acredita em Deus, meu caro senhor? - perguntou-me. Eu pensei um pouco antes de responder:

- Janan [N5] está à minha espera num quarto de hotel- declarei.

            - Aos olhos de todos nós, Deus é amor! Vai ter com ele ­ disse o homem -, mas amanhã vai barbear-te ao salão de cabe­leireiro Vénus.

Saí para a noite quente de Verão. Tal como o acidente, a bom­ba é uma miragem: nunca se sabe quando será a sua vez. Era mais do que evidente que nós, pobres vencidos que éramos, perdê­ramos o jogo do que se chama História e, presentemente, está­vamos reduzidos a lançar bombas

 

  1. Janan significa «bem-amada» e, na linguagem mística, significa «Deus».

 

durante séculos para nos con­vencermos de que éramos vencedores e para encontrarmos o gosto da vitória erguendo as nossas almas até ao sétimo céu com bombas colocadas nas caixas de bombons, nos volumes do Corão, ou nas caixas de velocidades, tudo isso por amor de Deus, dos livros, da história ou do mundo. Dizia para mim mesmo que um tal guião não era assim tão mau, quando avistei a luz do can­deeiro de Janan.

Entrei no hotel, subi ao quarto, oh, mãezinha, estava terrivel­mente bêbado. Estendi-me ao lado da minha Janan e adormeci, julgando que estava a apertá-la nos meus braços.

Quando acordei de manhã, fiquei muito tempo a ver Janan dormir. Liam-se-lhe na cara a mesma atenção e a mesma apreen­são de quando, sentada nos bancos dos autocarros, olhava para o ecrã onde passavam os vídeos. Erguia ligeiramente as sobran­celhas castanhas, como na expectativa de uma passagem impres­sionante de um filme. A torneira do lavatório continuava a pingar gota a gota. Um raio de sol empoeirado imiscuiu-se por entre as cortinas e tingiu as pernas de Janan de uma cor de mel muito suave, e ela murmurou no seu sono qualquer coisa pare­cida com uma pergunta. Quando se virou na cama, saí do quarto sem fazer ruído.

Senti na testa a frescura da manhã ao dirigir-me ao salão de cabeleireiro Vénus, onde já estava o homem que tinha encon­trado na véspera, o que pisara a ponta do cigarro atirado por Janan. Estava a fazer a barba, com a cara coberta de espuma. Quando me sentei na cadeira, senti com pavor o cheiro do creme de barbear. Os nossos olhares cruzaram-se no espelho e trocámos até um sorriso. Era evidente que se tratava do homem que deve­ria levar-nos até junto do doutor Fino.

 

No Chevrolet 61 de grandes asas que nos levava até ao doUtor Fino, Janan, no banco de trás, abanava-se nervosamente com um exemplar do Correio de Güdül, altiva como uma infanta. Instalado no banco da frente, eu contava as aldeias fantasma por onde passávamos, as pontes decrépitas e as povoações solitárias. O nos­so motorista, que cheirava a sabão de barbear OP, não era muito falador, entretinha-se a mudar de emissora para ouvir sem parar as mesmas informações e os mesmos boletins meteorológicos contraditórios que tanto previam chuvas na Anatólia Central como não faziam qualquer alusão a isso; a oeste, o interior encon­trava-se sob chuvas torrenciais, ou então o céu estava aí par­cialmente enevoado ou limpo. Fizemos seis horas de estrada sob um céu parcialmente enevoado, depois debaixo de chuvas dilu­vianas, chegadas direitinhas dos filmes de piratas ou das regiões dos contos de fadas. Depois de uma derradeira chuva torrencial que metralhou implacavelmente o tecto do Chevrolet, chegá­mos de súbito a uma região completamente outra, sempre como nos contos de fadas.

Calara-se a música melancólica dos limpa-pára-brisas. Neste universo geométrico e luminoso, o Sol estava prestes a desapa­recer no espelho retrovisor esquerdo. Ó terra transparente como o cristal, lúcida e tranquila, revela-nos os teus segredos! As ár­vores ainda cobertas de gotas de chuva eram árvores a sério. Os pássaros e as borboletas que atravessavam a estrada à nossa frente eram pássaros e borboletas comedidos que não se aproximavam demasiado do pára-brisas. Eu tinha vontade de fazer perguntas: onde estava o Ogre que assombrava este lugar fora do tempo? Por trás de que árvore se escondiam os anões cor-de-rosa e as bru­xas roxas? Estava prestes a comentar que não se viam nesta paisa­gem letras nem sinais, quando um camião nos ultrapassou silenciosamente no asfalto luzidio, com uma faixa na traseira onde podia ler-se: «Pense antes de ultrapassar!» Virámos à es­querda. Metemos por um caminho de terra batida, atravessámos aldeias perdidas que desapareciam no crepúsculo, vimos florestas sombrias e parámos finalmente diante da casa do doutor Fino.

A grande moradia de madeira lembrava aquelas velhas man­sões de província que, uma vez dispersa a família em virtude dos falecimentos, das migrações ou dos reveses da sorte, são transfor­madas em hotéis e baptizadas com nomes como «Alegria Palace», «Boas-vindas Palace», «Mundial Palace» ou «Conforto Pala­ce». Porém, nas redondezas, não se via qualquer carro de bom­beiros, nem máquina de rega, nem tractores cobertos de poeira, nem restaurantes «Bom Paladar». Um silêncio absoluto. A fa­chada do andar só tinha quatro janelas em vez das seis tradicio­nais nas construções deste género. A luz que saía da terceira janela tingia de um tom alaranjado os ramos mais baixos dos três plátanos plantados em frente da casa. Uma amoreira solitária mal se via no escuro. As cortinas drapejaram, uma janela bateu; baru­lho de passos, uma campainha soou, animaram-se sombras, a porta abriu-se. Quem nos recebia era o doutor Fino em pessoa.

Era um homem grande e bem-apessoado, dos seus sessenta anos, talvez mais, de óculos. Tinha um daqueles rostos de que, mais tarde, quando chegamos ao quarto, já não nos lembramos se tinha óculos ou não, da mesma maneira que não sabemos se certas pessoas, que no entanto conhecemos muito bem, usam bigode ou não. Tinha presença, o doutor Fino. Mais tarde, no nosso quarto, Janan disse-me: «Tenho medo», mas a mim pare­ceu-me mais intrigada do que assustada.

Jantámos todos juntos, instalados em volta de uma mesa muito comprida, iluminados por candeeiros a petróleo que projectavam as nossas sombras gigantes nas paredes. O doutor tinha três filhas. A mais nova, Rosina, com um ar sonhador e feliz, era ainda solteira embora já tivesse mais do que idade para se casar. A do meio, Rosabela, era menos parecida com o pai do que com o marido, médico, que, sentado à minha frente, res­pirava ruidosamente pelo nariz. A mais velha, a bela Rosamunda, estava divorciada havia algum tempo, a julgar pela conversa das suas duas filhas de seis e sete anos, extremamente bem-com­portadas. A mãe de todas estas filhas-flores era uma mulher pequena, habituada à chantagem sentimental; não só os olhos, não só o olhar da mulherzinha, mas todos os seus gestos, as suas maneiras, pareciam dizer: cuidado, hã, senão desato a chorar. Na outra ponta da mesa sentava-se o advogado da cidade, mas não posso precisar de que cidade. Falou-nos num litígio de terras, em que era questão de política, de cunhas e de homicídio. Pa­recia muito feliz por, tal como esperava e desejava, o doutor Fino o ouvir, manifestando, consoante o caso, o seu interesse, a sua aprovação ou desaprovação. Ao meu lado estava um daqueles velhotes que têm a felicidade de, nos últimos anos de vida, as­sistir ao dinamismo de uma família ainda numerosa, influente e poderosa. Os seus laços de parentesco com a família do doutor Fino não eram muito evidentes. O velhinho amplificava ainda mais a sua felicidade com um pequeno transístor que pusera ao lado do prato, como se se tratasse do pires da sobremesa. Vi-o, por várias vezes, de ouvido colado ao radiozinho. Talvez fosse duro de ouvido. «Não há notícias de Güdül», acabou por in­formar, voltando-se para o doutor Fino e para mim, com um sorriso que lhe deixou à mostra a dentadura, e acrescentou, como se se tratasse da conclusão natural da sua afirmação: «O doutor aprecia muito as discussões filosóficas e gosta muito de gente nova como o senhor. É espantoso como se parece com o filho dele, rapaz!»

Seguiu-se um silêncio bastante prolongado. Pareceu-me que a mãe ia rebentar em soluços. Nos olhos do doutor Fino vi passar um lampejo de cólera. Um relógio de pêndulo tocou algures, ding-dong!, lembrando-nos em nove toques que o tempo era fugaz e a vida breve.

Fui notando a pouco e pouco, à medida que percorria com os olhos os convidados, a mesa, os pratos servidos, que havia na casa sinais e vestígios de sonhos, de vidas ou de recordações pro­fundamente sentidas. Nas longas noites que eu e Janan passámos nos autocarros, quando o assistente do condutor, a pedido dos passageiros mais entusiastas, metia uma nova cassete no vídeo, éramos possuídos durante alguns minutos por um en­feitiçamento composto de cansaço, de hesitação, de um senti­mento de falta de vontade muito nítido, mas sem qualquer finalidade; deixávamo-nos arrastar por um jogo de que não conseguíamos compreender muito bem o sentido em termos de acaso e de necessidade e, no espanto de revi vermos um momento já vivido noutro banco de autocarro, com outro campo de visão, sentíamo-nos prestes a descobrir o mistério da geometria secreta e incalculável daquilo a que se chama vida; e precisamente no momento em que pensávamos poder penetrar o sentido profundo escondido por trás das sombras das árvores, da silhueta mal perceptível de um homem empunhando um revólver, das maçãs vermelho-vídeo e dos sons mecânicos que invadiam o ecrã - então, aí, dávamo-nos conta bruscamente de que, pois claro, já tínhamos visto o filme!

Este mesmo sentimento não me largou depois do jantar. Ouvimos durante algum tempo o transístor do velho senhor sintonizado com o «Teatro para Crianças» que eu nunca perdia quando era garoto. Rosina ofereceu-nos de uma caixinha de prata - exactamente igual à do Tio Rifki - guloseimas antiquadas, caramelos «Vida Nova» e bombons «Leão» recheados de coco. Rosabela serviu-nos o café e a mãe perguntou-nos se precisá­vamos de alguma coisa. Nas estantes de biblioteca e no aparador de portas envidraçadas amontoavam-se exemplares das fotono­velas que se podem encontrar por todo o país. Quando o doutor Fino pegava na chávena do café ou dava corda ao relógio de pêndulo, tinha um ar tão distinto e tão transbordante de afeição como os pais da família feliz representada nos bilhetes da lotaria nacional. Aliás, encontravam-se em todo o mobiliário da sala indícios daquele paternalismo requintado e daquela ordem lógica difíceis de qualificar: os cortinados com cercaduras bordadas com cravos e tulipas, o fogão a petróleo de um modelo há muito desa­parecido, os candeeiros de petróleo tão moribundos como a luz que forneciam. O doutor Fino pegou-me na mão para me mos­trar o barómetro preso ao muro num canto da sala, e disse-me para eu dar três pancadinhas - tac, tac, tac - no elegante mostrador de cristal lapidado. Foi o que eu fiz. A agulha deslo­cou-se e ele disse-me, sempre no mesmo tom paternal: «Amanhã vai haver de novo mau tempo.»

Na parede, ao lado do barómetro, estava, numa grande moldura, uma fotografia, um pouco antiga, segundo me pareceu: o retrato de um jovem. Foi Janan quem me falou desse retrato quando nos retirámos para o nosso quarto, porque eu nem sequer lhe tinha prestado atenção. Então, como fazem todos aqueles a quem a vida perturbou, que dormitam quando vêem um filme, que lêem um livro sem prestarem atenção ao que lêem, eu fiz­-lhe a pergunta: de quem se trata?

- Não vês que é o Mehmet! - disse Janan. Envolvia-nos a luz pálida do candeeiro a gás. - Ainda não percebeste? O doutor Fino é pai do Mehmet!

Lembro-me de ter então ouvido uns barulhos estranhos dentro da minha cabeça, semelhantes aos estalidos de um infeliz telefone público que não consegue digerir a ficha. Depois, as peças do puzzle ordenaram-se, e pude ver a verdade em toda a sua evi­dência, tal como o horizonte se aclara depois de uma tempestade, e senti mais cólera do que surpresa. Aconteceu como acontece, ou pode acontecer, a todos aqueles que estão a ver um filme há uma hora, pensando tê-lo compreendido, e, de repente, notam que são os únicos cretinos na sala que não perceberam nada do filme e ficam possessos de fúria!

- E qual era o nome anterior dele?

- Nahit - disse Janan acenando com a cabeça com ar enten­dido, como alguém que acredita na astrologia. - Nahit é o nome árabe do planeta Vénus, a estrela da tarde...

Preparava-me para dizer que, com um nome e um pai como aqueles, também eu gostaria de ser outra pessoa, quando reparei nas lágrimas que corriam pelas faces de Janan.

Nem sequer me quero lembrar do resto da noite. Vi-me na obrigação de consolar Janan, que derramava lágrimas por Nahit, aliás Mehmet, o que talvez não fosse assim tão terrível, mas além disso tinha de lembrar a Janan que Mehmet-Nahit não estava realmente morto, como sabíamos muito bem, mas que, simples­mente, tinha feito de conta que morrera num acidente de viação; que um dia haveríamos de o encontrar em qualquer lado, no coração da estepe, orientando a sua vida pela sabedoria que tinha encontrado no livro, passeando-se nas ruas maravilhosas do uni­verso maravilhoso da vida nova.

Embora esta ideia, a bem dizer, estivesse mais enraizada em Janan do que em mim, já que a mais pequena dúvida a este propósito que expressássemos a Janan fazia rebentar tempestades na alma da minha tão melancólica bem-amada, via-me obrigado a explicar-lhe demoradamente que estávamos no bom caminho: tínhamos conseguido esquivar-nos ao congresso dos gerentes e concessionários sem grandes aborrecimentos para nós, seguindo uma lógica secreta que parecia ser apenas fruto do acaso; tínhamos conseguido chegar, como ela podia ver, à casa em que o homem que procurávamos tinha passado a sua infância e onde havia abundância de pistas sobre ela. Os leitores que detectem o sarcasmo do meu tom dir-se-ão talvez que me tinham finalmente caído as teias de aranha dos olhos; que o feitiço que invadira todo o meu ser e me enchera a alma de luz tinha mudado de direcção, direi eu. Enquanto Janan era tão infeliz porque Mehmet-Nahit era considerado morto, eu estava triste porque percebia que as nossas viagens nunca mais voltariam a ser o que tinham sido.

No dia seguinte de manhã, depois do pequeno almoço - mel, queijo ricotta e chá - tomado com as três irmãs, fomos visitar o museu que o doutor Fino tinha criado no segundo andar da casa em memória do mais jovem dos seus rebentos – seu filho único - queimado vivo num terrível acidente de viação. «O meu pai vai apreciar muito que visitem o museu», dissera­-nos Rosamunda ao meter sem qualquer esforço aparente uma enorme chave numa fechadura que me pareceu espantosamente pequena.

A porta abriu-se num silêncio mágico. Reinava no quarto um cheiro a revistas velhas. A cama de Nahit. Uma luz pálida filtrava-se através das cortinas. As paredes estavam cheias de fotografias emolduradas de Mehmet - ou antes, do período nahitiano, infância e adolescência.

Presa de um estranho pressentimento, o meu coração pôs-se de repente a bater muito depressa. Rosamunda mostrou-nos, apontando com o dedo, os cadernos escolares - primária e li­ceu - de Nahit, os seus diplomas com notas excelentes: «Sótinha Muito Bons», acrescentou ela num sussurro. As chuteiras ainda enlameadas que o jovem Nahit calçava quando jogava futebol, os seus calções de suspensórios, um caleidoscópio made inJapan, encomendado à loja Jonqu'il de Ancara. Na penumbra do quarto, era a minha própria infância que eu, arrepiado, encon­trava ali, e tive medo, tal como Janan, quando Rosamunda abriu as cortinas e nos contou, sempre a sussurrar, que no tempo em que o seu amado irmão andava na Faculdade de Medicina tinha o hábito, nas férias grandes, depois de ter passado o dia agarrado aos livros, de abrir aquela janela para contemplar até de manhã, com um cigarro nos dedos, a amoreira que estava em frente.

Houve um silêncio. Depois Janan pediu a Rosamunda para nos mostrar os livros que Mehmet-Nahit lia naquela altura. «O meu pai achou que não se devia deixar os livros neste quar­to», começou ela por dizer. Depois, com o sorrisinho de quem não consegue descobrir o meio de se consolar na desgraça, acres­centou: «Tudo o que vêem aí era o que ele lia na infância.»

Mostrou-nos com um gesto as revistas ilustradas e as bandas desenhadas para crianças que enchiam um pequeno armário na cabeceira da cama. Não me quis aproximar muito porque tinha medo de me identificar ainda mais com a criança que dantes lia aquelas revistas ilustradas, e também porque tinha medo de ver Janan deixar-se arrastar pela emoção num sítio tão difícil para os nervos e desatar a chorar. Mas os títulos nas capas das revistas empilhadas, aquelas cores que me eram tão fami­liares, embora já desbotadas, e sobretudo a capa de uma revista ilustrada que eu acariciava num gesto instintivo depressa toma­ram conta da minha vontade.

Nesta capa, mesmo à beirinha de um abismo vertiginoso de rochedos escarpados, uma criança de dez anos agarrava-se com uma mão ao tronco de uma árvore cujas folhas tinham sido cuidadosamente desenhadas uma a uma, mas com o verde a pas­sar para o tronco por causa da má qualidade da impressão. Com a outra mão agarrava a de uma criança da sua idade, muito loura, que estava em risco de cair para o abismo, salvando-a assim de uma morte certa; lia-se o terror nas caras das duas personagens. Num plano mais recuado, via-se um abutre a voar, por sobre uma paisagem da América selvagem dada por cinzentos e azuis, à espera da queda e do sangue que ia correr.

Soletrei em voz alta, como fazia em criança, o título escrito na capa: Nebi no Nebrasca. E enquanto folheava as páginas reme­morava as aventuras contadas nesta banda desenhada, umas das primeiras obras do Tio Rifki.

O pequeno Nebi é encarregue pelo sultão de representar as crianças muçulmanas na Feira Universal de Chicago. Encontra ali um pequeno pele-vermelha de nome Ted que lhe conta as suas desgraças; dirigem-se juntos para o Nebrasca. Uns homens maus, brancos, que cobiçam as terras onde a tribo de Ted caça o bisonte desde há séculos, procuram habituar os índios ao álcool e, com essa finalidade, fornecem-lhes armas e whisky. Alguns jovens índios já estão prestes a desviar-se do bom caminho. A conspiração que Ted e Nebi irão desmantelar é aterradora: embebedar os pacíficos peles-vermelhas para os incitar à revolta, com vista a serem depois esmagados pelo exército federal e expulsos do seu território. O rico proprietário do hotel e do saloon cai pelo precipício abaixo ao tentar empurrar Ted, e as crian­ças acabam por salvar a tribo da armadilha que lhe tinha sido montada.

O romance intitulado Mary e Ali, que Janan folheava por­que o título lhe parecera familiar, relatava as aventuras de um miúdo de Istambul que visita a América: Ali chega a Boston a bordo de um barco a vapor no qual embarcara em Gaiata. Então, à cata de aventuras nos cais, conhece Mary, que chora baba e ranho em frente do Oceano Atlântico porque a sua madrasta a correu de casa; as duas crianças metem-se a caminho do Oeste, à procura do pai de Mary. Atravessavam as ruas de Saint Louis, que lembravam as ilustrações dos Tom Mix; passavam as flo­restas de branca folhagem do Iowa, onde o Tio Rifki colocara nos cantos mais escuros silhuetas de lobos, e atingiam por fim um paraíso ensolarado, deixando para trás os desperados, os ban­didos assaltantes de comboios e os peles-vermelhas que cercavam as caravanas. Neste vale verdejante e luminoso, Mary compreen­dia que a verdadeira felicidade consistia, não em encontrar o seu pai, mas em descobrir os valores tradicionais do Oriente, a paz, a resignação e a paciência, valores que Ali lhe tinha ensinado; movida pelo sentimento do dever, Mary voltava a Boston para viver junto do seu irmão. Quanto a Ali, dizia que «a injustiça e o mal estão presentes por todo o lado no mundo» e, lançando um último olhar à América do veleiro em que embarcava porque tinha saudades de Istambul, declarava: «O importante é poder­-se viver de maneira a conservar intacta a bondade natural do homem!»

Janan não parecia tão comovida quanto eu imaginara; parecia mesmo bastante alegre quando folheava as páginas donde se desprendia um forte cheiro a tinta que me fazia lembrar as noites frias e escuras dos invernos da minha infância. Disse-lhe que também eu lera aquelas revistas ilustradas quando era garoto. Esperando que ela não reparasse na ironia das minhas palavras, acrescentei que esse era apenas um dos pontos que tínhamos em comum, eu e o Nahit, aliás Mehmet. Acho que estava a comportar-me como aqueles apaixonados loucos de amor que foram rejeitados e que pensam que o objecto da sua paixão é insensível. Porém, o que eu não tinha mesmo vontade de lhe contar era que o autor-ilustrador que criara aquelas bandas desenhadas mais não era do que o Tio Rifki da minha infância. Naquela altura, o próprio Tio Rifki tinha mesmo feito questão de nos explicar por que sentira a necessidade de criar aquelas bandas desenhadas e aquelas personagens.

«Meus queridos meninos», escrevia ele numa nota que colocara num dos seus primeiros livros, «de cada vez que vos encontro à saída das escolas, numa carruagem de comboio ou nas ruas do meu modesto bairro, vejo que ledes as aventuras dos Tom Mix e dos Billy the Kid, que se encontram nas revistas de cowboys. Também eu gosto muito das aventuras dos cowboys ou dos rangers honestos, corajosos e leais. Por isso pensei que, se vos contasse a história de um petiz turco na América, na terra dos cowboys, isso talvez vos agradasse. Por outro lado, não tereis em consideração apenas per­sonagens cristãs, mas, graças às aventuras dos vossos valorosos compatriotas, amareis ainda mais os valores morais e nacionais que os nossos antepassados nos legaram. Se sentistes alguma emoção descobrindo que um garoto oriundo de um bairro pobre de Istambul sabe servir-se da sua arma com tanta rapidez como Billy the Kid e é tão honesto como Tom Mix, só vos resta espe­rardes pela saída das nossas próximas aventuras.»

Tal como Ali e Mary contemplavam as maravilhas que encon­travam no Oeste selvagem da América, Janan e eu examinámos durante muito tempo, em silêncio, com paciência e atenção, as personagens a preto e branco do universo desenhado pelo Tio Rifki, as suas montanhas escuras, as suas florestas aterradoras, as suas cidades fervilhantes de costumes e invenções estranhas. Nos escritórios de advogados, nos portos cheios de veleiros, em lon­gínquas estações ferroviárias, entre os pesquisadores de ouro, en­contrávamos pistoleiros de elite que enviavam as suas saudações ao sultão e ao povo turco, negros libertados da escravatura que se convertiam ao islão, chefes de tribos índias que se informavam sobre as técnicas utilizadas pelos turcos xamanistas no fabrico das suas tendas, e agricultores, e crianças de grande coração, tão puros como os anjos. Depois de algumas páginas de uma aven­tura sangrenta em que pistoleiros de gatilho rápido como o raio se trucidavam entre si e caíam como moscas, em que o bem e o mal mudavam tantas vezes de aspecto que as personagens já não sabiam o que pensar, e em que se confrontavam a ética do Oriente e o racionalismo do Ocidente, um dos heróis de grande coração tinha sido cobardemente atingido pelas costas e, antes de morrer de madrugada, tivera a intuição de que iria encontrar um anjo num lugar misterioso, situado na junção dos dois uni­versos, mas o Tio Rifk:i não tinha desenhado o anjo. Separei todos os exemplares de outra série de aventuras, Pertev e Peter: Pertev de Istambul encontra Peter de Boston; os dois miúdos tornam­-se amigos e pintam a manta na América. Mostrei a Janan as minhas cenas preferidas: ajudado por Peter, o pequeno Pertev consegue baralhar um batoteiro profissional que «depena» a população de uma cidade inteira graças a um sistema de espelhos da sua invenção; Pertev corre-o da cidade, com a ajuda das víti­mas que juram nunca mais tocar num baralho. Quando, numa localidade do Texas, jorra petróleo mesmo no meio de uma igreja e a população se divide a ponto de chegar a vias de facto e, pior ainda, de cair nas armadilhas que lhe armam os milionários do petróleo e os exploradores da religião, Peter consegue acalmar as cabeças das pessoas por meio de um discurso atatürkiano sobre a laicidade, a ocidentalização e as virtudes do ensino, coi­sas que Pertev lhe revelara. Afirmando que os anjos são moldados e amassados em luz e que a electricidade é uma espécie de anjo pelo facto dos milagres que realiza, Pertev dá um choque eléctrico ao jovem Edison, que na altura vendia jornais nos com­boios, choque esse que lhe deu a ideia da lâmpada.

Os Heróis dos Carris era a obra que reflectia melhor as paixões e as emoções do Tio Rifki. Neste livro, vemos Pertev e Peter ajudar os pioneiros do caminho-de-ferro que deverá ligar os Estados do Leste aos do Oeste. A construção desta via férrea. que deverá atravessar a América de uma ponta à outra era uma questão de vida ou de morte para o país, tal como para a Turquia dos anos trinta, mas, desde os proprietários da companhia de diligências Wells-Fargo até aos homens de mão da companhia de petróleo Mobil-Oil, aos pastores fanáticos que se opunham à passagem do caminho-de-ferro nos territórios das suas comunidades religiosas, aos países hostis à América - a Rússia, por exemplo -, eram numerosos os inimigos que se esforçavam por sabotar os esforços esclarecidos dos homens dos carris, incitando os peles-verme­lhas à rebelião, encorajando as greves ou incitando os jovens energúmenos a retalharem à faca os assentos das carruagens, tal como acontece hoje em dia nos comboios suburbanos de Istambul.

«Se o programa dos caminhos-de-ferro viesse a fracassar, o desenvolvimento do nosso país sofreria com isso, o acidente tornar-se-ia fatalidade! Temos de nos bater até ao fim, Pertev!», afirmava Peter, num «balão» da banda desenhada, com inquie­tude.

 

Como eu gostava daqueles enormes pontos de exclamação no fim das grandes maiúsculas que enchiam os balões! ATENÇÃO!, gri­tava Pertev a reter, e reter afastava-se num salto antes que a faca lançada por um mau atrás dele se lhe pudesse cravar nas costas; ATRÁS DE TI!, gritava reter a Pertev que, sem perder tempo a virar­-se, arrumava uma personagem hostil com um «gancho» no queixo. Acontecia também o Tio Rifki intervir directamente introduzindo entre os quadradinhos ilustrados pequenas «caixas» onde escrevia, com letras de pernas tão frágeis como as suas, palavras como BRUS­CAMENTE, MAS O QUE SIGNIFICA ISTO? ou DE REPENTE, e acres­centando um enorme ponto de exclamação que me ajudava a aprofundar-me ainda mais na narrativa, tal como tinha acontecido com Mehmet, outrora conhecido pelo nome de Nahit.

Não havia dúvidas de que este tipo de pontuação nos chamava a atenção, e talvez por isso tanto eu como Janan nos concentrá­mos nesta frase terminada por um grande ponto de exclamação: «Todas as coisas escritas neste livro as deixei para trás, bem longe de mim!», declarava um homem que se dedicara de corpo e alma à alfabetização, e dizia-o a Pertev e Peter, que tinham ido visitá­-lo à cabana para onde se retirara depois de ter verificado que a sua vida não passara de um fracasso.

Consegui recompor-me quando vi que Janan continuava alheia a estas páginas em que todos os americanos honestos eram louros e tinham sardas, em que todos os maus tinham a boca de través, em que todos diziam obrigado à mais pequena oportunidade, em que os abutres despedaçavam e engoliam os cadáveres, em que o suco dos cactos salvava da morte certa as pessoas que estavam a morrer de sede no deserto.

Em vez de me iludir pensando que poderia recomeçar a minha vida como Nahit, faria melhor, disse de mim para mim, se libertasse das suas ilusões esta Janan que, muito comovida, contemplava os cadernos escolares de Mehmet e a sua fotografia tipo passe no bilhete de identidade. No mesmo instante, como se o Tio Rifki, desenhan­do a palavra BRUSCAMENTE numa das suas pequenas caixas, fosse em socorro de uma das personagens a braços com toda a espécie de problemas e encurralada pelos inimigos, Rosina entrou no quarto para nos dizer que o seu pai estava à nossa espera.

Não tinha qualquer ideia do que iria acontecer-nos, era mes­mo incapaz de conceber um método que permitisse fazer com que Janan me amasse. Nessa manhã, no momento em que saía­mos do museu da época em que Mehmet se chamava Nahit, apossaram-se instintivamente de mim dois pensamentos: eu queria fugir, mas queria também tornar-me Nahit.

 

A possibilidade de escolher entre estas duas aspirações foi-me generosamente oferecida pelo próprio doutor Fino quando, mais tarde, durante um longo passeio pela sua propriedade, me propôs uma vida nova. É apenas um puro acaso o facto de os pais parecerem saber tudo dos filhos, como se fossem deuses com uma memória sem limites, ou como se dispusessem de registos. Na maior parte dos casos, o que eles fazem é projectar os seus desejos não satisfeitos nos filhos ou mesmo em estranhos que lhes façam lembrar os filhos.

Percebi que, depois da nossa visita ao museu, o doutor Fino queria dar um passeio na minha companhia com o único desígnio de ter uma conversa a sós comigo. Fomos por campos de trigo onde uma brisa imperceptível fazia ondular as espigas, passámos por macieiras carregadas de frutos ainda verdes; atravessámos terras em pousio onde alguns carneiros e algumas vacas pastavam a erva rala. O doutor Fino mostrou-me as galerias cavadas pelas toupeiras, chamou-me a atenção para os rastos deixados pelos javalis; explicou-me como, pelo bater das asas, se podiam reconhecer os tordos que se dirigiam para os pomares. Explicou-me muitas coisas, num tom didáctico, com uma voz paciente e quase afectuosa.

O doutor Fino, na realidade, não era médico, os seus camaradas de regimento é que lhe haviam posto esta alcunha, por causa da importância que ele dava às reparações mais simples, aos pequenos pormenores úteis, tais como a velocidade com que se devia rodar o manípulo de um telefone de campanha.

Ele próprio adoptara depois este sobrenome, porque gostava dos objectos, agradava-lhe examiná-los, porque, na sua maneira de ver, a descoberta das semelhanças entre eles era uma das maio­res alegrias da vida. Não tinha estudado Medicina, mas Direito, obedecendo ao desejo do seu pai que tinha sido deputado; exercera a profissão de advogado, mas, quando, por morte do pai, herdou as terras e os pomares que me mostrou com um gesto amplo, decidiu viver à sua maneira. Viver à sua vontade! Viver entre os objectos que ele próprio escolhera. A que estava habi­tuado e que conhecia bem. Tinha sido com essa finalidade que abrira uma loja na cidade.

Quando subíamos uma colina que o sol mal tivera tempo de aquecer, o doutor Fino garantiu-me que os objectos eram dotados de memória. Tal como nós, tinham a faculdade de gravar tudo o que lhes acontecia e de o guardarem na lembrança, mas a maio­ria deles não se dava conta disso. «Os objectos preocupam-se uns com os outros, entendem-se entre eles, cochicham, criam entre eles uma harmonia secreta, uma música a que chamamos o uni­verso», disse-me o doutor Fino, «e só as pessoas mais atentas têm consciência disso e podem ouvir isso.» Pelas manchas de calcário que me mostrou num ramo seco que apanhou do chão, podia ver­-se, explicou-me, que os corvos faziam ninho perto dali. Conse­guia mesmo dizer-me de que direcção soprara o vento que quebrara aquele ramo durante uma tempestade que acontecera duas semanas atrás.

Na sua loja na localidade vendia, ao que parece, mercadoria que mandava vir de Istambul e de Ancara e, também, que encomendava a toda a espécie de manufacturas situadas por toda a Anatólia: pedras de afiar inquebráveis, tapetes, fechaduras feitas à mão por serralheiros, mechas perfumadas para fogareiros a gás, frigoríficos de fabrico quase artesanal, chapéus feitos com os melhores feltros, pedras de isqueiro Ronson, puxadores para portas, fogões feitos de bidões de petróleo, pequenos aquários... enfim, tudo o que lhe vinha à cabeça, e também tudo o que tinha um sentido. Os anos que passara nesta loja que assegurava de maneira humana todas as necessidades essenciais do homem tinham sido os mais felizes da sua vida. E tinha sido ainda mais feliz quando o Céu lhe dera um filho varão, depois de três filhas. Foi então que me disse que o seu filho tinha a minha idade quando morrera.

Do sopé da colina chegava a gritaria de crianças que não podíamos ver. Quando o Sol desapareceu por trás das nuvens escuras e teimosas que se aproximavam a toda a velocidade, avistámos ao longe uns miúdos a jogar futebol num terreno pelado. Decorriam um ou dois segundos entre o momento em que pontapeavam a bola e o momento em que nos chegava o som. O doutor Fino disse-me que alguns daqueles garotos tinham cometido pequenos roubos. Com o declínio das grandes civilizações e a debandada da memória, os primeiros a perder o sentido da moral eram as crianças, ou seja, os jovens esqueciam o passado muito mais depressa e de modo menos doloroso do que os adultos, e sonhavam mais com tudo o que é novo, disse­-me ele. Acrescentou que aquelas crianças moravam na cidade.

Mas quando me falou do filho irritei-me. Por que será que os pais gostam tanto de se orgulhar dos filhos? Por que serão tão inconscientemente cruéis? Notei que os seus olhos por trás dos óculos - talvez por causa das lentes - eram anormalmente pequenos. Lembro-me de que o filho dele tinha os mesmos olhos.

O seu filho era muito inteligente, um rapaz extremamente brilhante. Aos quatro anos e meio sabia ler, era até capaz de ler o jornal ao contrário. Inventava jogos, de que ele próprio fazia as regras, ganhava ao pai no xadrez, bastava-lhe ler duas vezes um poema para o decorar. Eu bem sabia que eram histórias de um pai que perdeu o filho e que não era nenhum perito no xadrez, mas mesmo assim mordia o isco. Quando me contou como ele e Nahit montavam a cavalo, imaginei-me a cavalo ao lado deles; quando me disse que Nahit, em determinada altura da vida - nos seus anos de colégio -, se tornara um devoto muito praticante, imaginei-me durante o ramadão, a levantar-me com uma velha avozinha, antes de amanhecer, nas noites frias de Inverno, para comer antes do jejum obrigatório durante o dia. Pelo que me disse o pai, Nahit fazia isso. Também eu sentia um misto de raiva e dor contra a miséria, a ignorância, a estupidez à minha volta, também fui sempre animado por este sentimento. Ouvindo o doutor Fino, lembrei-me de que, tal como Nahit, eu era, apesar das minhas brilhantes qualidades, um jovem com uma vida interior profunda. Porém, numa assembleia, enquanto todos os outros, de copo ou de cigarro na mão, só pensavam em introduzir uma boa piada ou em chamar a si as atenções e o interesse, Nahit metia-se num canto e mergulhava em pensamentos comovidos e sensíveis que lhe. suavizavam a severidade do olhar; sim, no momento mais inesperado, ele captava as qualidades secretas de uma pessoa, mesmo a mais apagada, e travava amizade com ela, quer fosse o filho do porteiro do liceu ou o projeccionista um pouco poeta e um pouco louco da sala de cinema, esse mesmo que se enganava sempre de bobina. Mas essas amizades não significavam que ele renunciava ao seu próprio universo. Todos queriam tornar-se amigos dele, companheiros, enfim, pessoas próximas dele. Era honesto e leal, além de rapaz bonito, e mostrava sempre respeito pelos mais velhos e afecto pelos jovens.

Quanto a mim, continuava a pensar em Janan, pode dizer-se que não deixava de pensar nela, como um televisor que está sempre ligado no mesmo canal, mas começava também a vê-la de outro modo e, a mim, talvez começasse a ver-me de outro prisma.

- Mas, de repente, ele revoltou-se contra mim - disse o doutor Fino quando estávamos a chegar ao alto da colina - por­que tinha lido um certo livro...

Os ciprestes do alto da colina mexiam-se ao sabor de um vento que não trazia qualquer cheiro. Por trás dos ciprestes erguia-se um montinho de rochas e pedras. Primeiro pensei que se tra­tasse de um túmulo, mas quando lá chegámos deparámo-nos com grandes pedras de cantaria cuidadosamente talhadas. O dou­tor Fino disse-me que eram as ruínas de um antigo forte seljú­cida. Apontou-me com o braço para a encosta em frente da colina onde, aí sim, estava um montículo plantado de ciprestes, que constituía efectivamente um túmulo, além dos campos de trigo cintilantes, as alturas onde o vento soprava com mais força e que as nuvens de chuva tornavam mais sombrias. Apercebia­-se também uma aldeia ao longe. Tudo isso lhe pertencia, in­cluindo as ruínas do forte.

Todas essas terras transbordando de vida, os ciprestes, os amieiros, as macieiras e os pinheiros, tudo tão belo, o forte seljúcida, todos os projectos que o pai tinha arquitectado para ele, e, sobretudo, todas as mercadorias que enchiam a loja e que tão bem se harmonizavam com o resto: por que razão um jovem viraria as costas a tudo isso, e escreveria ao pai para o informar de que não queria vê-lo mais, e para lhe pedir para não o mandar seguir ou procurar, acrescentando que queria desaparecer para sempre? De quando em quando eu surpreendia uma certa expressão na cara do doutor Fino, e já não sabia muito bem se ele se queria vingar em mim e em todos os que eram como eu, e vingar-se do mundo inteiro, ou se era muito simplesmente um homem desiludido, imune a todos os argumentos e que havia muito tinha renunciado a este universo de desgraça. «E tudo isso por causa da conspiração!», disse ele. Estava a tramar-se uma am­pla conspiração contra ele, contra as suas ideias, contra os objec­tos a que consagrara a sua vida, contra tudo o que ele tinha de essencial, de vital para o país.

Pediu-me para eu prestar muita atenção às revelações que ele me ia fazer, e que eu deveria ter a certeza de que não se tratava de coisas de um velho decrépito enterrado numa aldeia perdida, nem dos fantasmas provocados pela dor de um pai que perdera o filho. Garanti-lhe que estaria atento e, de facto, ouvi-o com atenção, embora de quando em quando perdesse o fio à meada, talvez por­que estava a pensar demasiado no seu filho e em Janan, ou porque toda a gente teria feito o mesmo em semelhantes condições.

Começou por me falar da memória dos objectos; falou-me com uma convicção apaixonada do tempo preso dentro dos objectos, como se se tratasse de algo tangível. Tinha sido depois da desco­berta da Grande Maquinação que ele notara a presença de um tempo mágico, poético, indispensável, que nos era transmitido pelos objectos em que pegávamos, que acariciávamos, que utili­závamos, mesmo os mais simples, uma colher por exemplo, ou uma tesoura. E isto acontecia especialmente numa época em que os passeios tinham sido invadidos por concessionários que se pareciam todos uns com os outros e que expunham e vendiam nas lojas inodoras e incolores novas mercadorias sem originalidade, sem alma e sem brilho. No princípio, ele não tinha dado grande im­portância ao concessionário da Aygaz, que vendia botijas cheias de uma substância gasosa que liquefazia e que servia de combustível para os fogões a gás, essas maquinetas em que basta carregar num botão; também não desconfiara do concessionário dos electro­domésticos AEG que vendia frigoríficos de uma brancura de neve sintética. Pior ainda: quando apareceram representantes que ven­diam, em vez do nosso bom iogurte cremoso de antigamente, uma marca de nome Mis - que nos soava ao ouvido como Mijo-, quando começaram a aparecer os camionistas desabotoados e sem gravata que, nos seus camiões muito limpinhos e bem tratados, já não transportavam xarope de ginjas ou bebidas de iogurte, mas imitações baptizadas Mister TürkCola, e, finalmente quando Mister Coca-Cola em pessoa chegou ao mercado - um verdadeiro senhor, distinto e de gravata -, o doutor Fino, levado por um impulso estúpido, pensara mesmo em conseguir as licenças para vender, em vez das nossas boas velhas colas de resina, essa cola alemã UHU com o simpático mocho pintado no tubo e que tem a pretensão de colar tudo; ou ainda, para substituir a nossa argila, sabonetes Lux de perfume tão devastador como a sua embalagem. Porém, logo que colocou estas mercadorias na sua loja que até então levara uma vida tão serena quanto fora de moda, percebeu que já não se dava conta, não só da hora, como do tempo a passar. A presença daqueles produtos insípidos, uniformes, perturbara não só a serenidade do doutor, mas também a das suas mercado­rias, tal como os rouxinóis se sentem perturbados pelo chilreio desabrido do pintassilgo na gaiola ao lado. A coisa foi de tal monta que o doutor Fino desistiu de trabalhar como concessionário. Pouco lhe importava que a loja passasse a ser apenas frequentada pelos velhos e pelas moscas e, já que queria viver a sua própria vida e o seu próprio tempo, voltara à venda das mesmas mer­cadorias que os seus antepassados já tinham vendido durante séculos_ e que ele conhecia tão bem.

Tal como as pessoas que ficam chanfradas depois de beberem Coca-Cola, mas que não se apercebem disso porque toda a gente a bebe e fica louca, ele poderia ter acabado por se acostumar à Grande Maquinação e mesmo esquecê-la, bem como aos con­cessionários que eram os instrumentos de tal maquinação; tinha até mantido laços de amizade com alguns deles. Além disso, a sua loja e as suas mercadorias - ferros de engomar, isqueiros, fogões que não deitam cheiro, gaiolas, cinzeiros de madeira, molas da roupa, leques e sabe Deus o que mais - faziam frente à conspiração dos concessionários graças à harmonia mágica que todos aqueles objectos criavam entre eles. Outros além dele - um tipo em Konya, de gravata e cara patibular, um general na reserva em Sivas, concessionários desencantados, mas cheios de fé, de Trebizonda, de Andrinopla, mesmo de Teerão e, posso garantir, de Damasco e dos Balcãs - tinham-se rebelado contra a conspiração e tinham-se juntado a ele para formarem uma associação de concessionários desiludidos, criando o seu próprio sistema de vendas das suas mercadorias. Fora precisamente nessa altura que ele recebera umas cartas esquisitas do filho: «Não me mandes seguir ou procurar, desapareço para sempre!» Num tOm trocista, mas também com a cólera que isso lhe provocara, o doutor Fino citou-me as fórmulas desrespeitosas que o seu filho tinha utilizado.

Quando os poderes ocultos que tinham elaborado a Grande Maquinação perceberam que não podiam lutar contra a sua loja, contra as suas ideias e os seus gostos, tinham tentado cativar o seu filho com o objectivo de o abaterem, a ele, doutor Fino. «Eu, o doutor Fino!», exclamou com orgulho. Então, para inverter a situação, fez o que o filho lhe pedira para não fazer: mandou-o seguir. O homem que ele contratou para tal missão deveria mandar-lhe relatórios sobre todos os actos e gestos de Nahit. Como achasse que o trabalho de um só batedor era insuficiente, contratara um segundo espião, depois um terceiro, e também estes dois lhe enviavam relatórios... Tinha utilizado ainda outros... A leitura dos relatórios dos seus bufos deixava-o ainda mais convencido da realidade da Grande Maquinação, urdida por todos aqueles que queriam destruir o nosso país, roubar a nossa alma e aniquilar a nossa memória...

- Vai compreender melhor o que lhe conto quando ler toda essa correspondência - disse-me ele. - Temos de vigiar, espiar tudo o que se relaciona com eles, toda a gente que eles contac­tem!

Encarreguei-me desta tarefa gigantesca que, na verdade, in­cumbiria mais ao Estado. E hei-de levar a cabo esta tarefa, porque já são muitos os que, desencantados como eu, depositam total confiança em mim.

Toda a paisagem que se divisava do alto da colina onde nos encontrávamos, e que fazia lembrar um cartão postal panorâmico, estava coberta de nuvens cinzento-pombo. Todas as terras que a vista abrangia pertenciam ao doutor Fino. A deslumbrante pai­sagem ia desde a colina onde se encontrava o túmulo até se per­der ao longe em vibrações de um amarelo de açafrão muito pálido. «Lá adiante chove, mas a chuva não vai chegar aqui», disse o dou­tor Fino. Falava como um deus que, do alto de uma montanha, contempla a sua criação, a que por vontade própria atribuiu uma alma, mas havia troça na sua voz, como se zombasse de si mesmo, parecendo consciente do tom enfático com que me falara. Concluí que o filho dele não herdara nada, mas mesmo nada, deste humor tão subtil. Comecei a gostar do doutor Fino.         .

Enquanto raios finos atravessavam as nuvens, disse-me mais uma vez que tinha sido um livro que virara o seu filho contra ele. Um dia o filho tinha lido um livro e imaginara que o seu universo tinha mudado.

- Ali bey - disse-me -, você que também é filho de um comerciante e que ainda não tem sequer trinta anos, responda­-me: será possível, na nossa época, haver um livro que mude     completamente a vida de alguém?

Eu não respondi, limitei-me a observá-lo pelo canto do olho. - Nos nossos dias, que raio de filtro poderia provocar um tal feitiço?

Ele, com esta pergunta, não procurava apenas dar consistência ao seu raciocínio, mas, pela primeira vez, estava à espera de uma resposta minha. Calei-me, estava com medo. Pensei, por um ins­tante, que ele ia postar-se à minha frente em vez de continuar na direcção das ruínas do forte, mas de repente inclinou-se para co­lher qualquer coisa.

- Olhe o que encontrei - disse-me ele, mostrando-me o que tinha na palma da mão. - Um trevo de quatro folhas! - acres­centou sorrindo.

Para remediar os estragos causados pelo livro - e pela coisa escrita em geral- o doutor Fino reforçou os seus laços com um general na reserva em Sivas, com um tal Halis bei, de Trebizonda, com todos os seus amigos desiludidos que faziam ouvir as suas vozes em Damasco, em Andrinopla ou nos Balcãs. Foi assim que, para fazerem frente à Grande Maquinação, começaram a negociar apenas entre eles, a receber nas suas fileiras todos os confrades de coração despedaçado e a organizar-se, modesta, prudente e huma­namente, contra os sectários da Maquinação. E para quando chegasse o dia da vitória, «depois destes tempos tristes de esqueci­mento e de miséria, para não vivermos desarmados, como esses idiotas que perderam a memória - o mais precioso dos nossos tesouros -, e para restabelecermos o reino da nossa concepção do tempo que querem destruir», o doutor Fino pedira a todos os seus amigos que fizessem por conservar os objectos que lhes pareciam reais, que eram o prolongamento dos braços e das mãos, e que, como a poesia, completavam a alma: copos de chá de formato fino, lamparinas a óleo, colchões de penas, estojos de canetas, em resu­mo, todo e qualquer objecto «que nos ajude a sermos nós próprios». Assim, todos eles fizeram por conservar nas suas lojas - cada qual dentro das suas possibilidades - velhas máquinas de calcular, fogões, sabões sem corantes, mosquiteiros, relógios de pesos ou de pêndulo e, se se tratasse de mercadorias cuja existência nas lojas fosse proibida por esse terrorismo de Estado que se oculta sob o nome de «despachos municipais», guardavam-nos nas próprias casas, nas caves e até em esconderijos cavados nos seus jardins.

Como o doutor Fino estugava por vezes o passo e se afastava de mim, tive de esperar por ele quando desapareceu por entre os ciprestes que havia por trás das ruínas do forre. Mas quando o vi dirigir-se para uma colina escondida por um enorme matagal e pelos ciprestes, deitei a correr para o apanhar. Fomos por uma estreita vereda entre fetos e silvados, depois metemos por um caminho escarpado. O doutor Fino ia à minha frente, parando de vez em quando para que eu pudesse ouvir o que ele me dizia.

Uma vez que os instrumentos, as peças da Grande Maquina­ção se metiam connosco - consciente ou inconscientemente ­pela via do livro e da literatura, tinha ele dito aos seus amigos, devemos tomar medidas em consonância contra tudo o que é impresso. «Mas que literatura?», perguntava-me ele saltando de um pedregulho para outro com a agilidade de um escuteiro. «Que livros?» Ele tinha reflectido muito na questão. Guardou silêncio durante um grande bocado, como se quisesse mostrar­-me quanto tempo lhe levara essa reflexão e com que minúcia ele tinha pensado nela. Elucidou-me ao mesmo tempo que me ajudava a desembaraçar-me das silvas que se tinham prendido às minhas calças: «Não se trata apenas do livro que perdeu o meu filho. Todos os livros que são editados, todos, todos são inimigos do nosso tempo e da nossa vida de antigamente.»

A coisa escrita contra a qual ele lutava não era a que se escrevia à mão, a que era parte integrante da mão que pegava na pena, que enchia de felicidade o espírito que dava o impulso à mão e descrevia a tristeza, a curiosidade, as afeições da alma, e que iluminava o espírito. Ele também não era hostil aos livros que ensinam ao agricultor ignorante a lutar contra os ratos; que mostram ao viajante extraviado o caminho que deve seguir; que evocam as tradições dos antepassados aos que perderam a alma; que ensinam à criança ainda ignorante, por meio de aventuras ilustradas, o mundo da natureza e as maravilhas do universo; esses livros eram sempre indispensáveis, como já dantes o foram, e seria bom que se editassem ainda mais! Os livros a que o doutor Fino se opunha eram os que tinham perdido o brilho, a verdade, o valor, mas que pretendiam ser deslumbrantes, verídicos e sérios. Os livros que nos prometiam a serenidade e o encanta­mento do paraíso nos estreitos limites do nosso universo; eram todos esses livros escritos e editados em grande número pelos sequazes da Grande Maquinação - um arganaz passou à nossa frente como um raio e desapareceu - para nos fazerem esquecer a poesia e o encanto das nossas vidas. «A prova disto?», disse ele, olhando para mim desconfiado, como se fosse eu que lhe tivesse perguntado pela prova do que dizia. «A prova?» O doutor Fino galgava a toda a velocidade a vereda, entre as carvalhas magricelas e os rochedos manchados de excremento dos pássaros.

Para ter a prova, deveria ler os relatórios das investigações que ele mandara fazer aos seus agentes espiões em Istambul e em todo o país. Depois de ter lido esse livro, o filho dele perdera o norte: não só se desviara do pai e de toda a família - uma fanfarronada que se podia atribuir à sua juventude -, como fora acometido por uma espécie de «cegueira», por uma «obsessão da morte», que o haviam tornado cego a todas as riquezas da vida, isto é, «às simetrias secretas do tempo», a «todos os porme­nores das coisas».

- Será que isso é obra apenas de um livro? - perguntou o doutor Fino. - Não, esse livro não passa de um modesto ins­trumento utilizado pela Grande Maquinação!

Acrescentou que, mesmo assim, não subestimava a impor­tância do livro e de quem o havia escrito; e que, depois de eu ter lido os relatórios dos seus amigos e dos seus espiões, poderia verificar que esse livro e esse homem tinham sido manipulados, que não havia correspondência alguma daquilo com as intenções do autor, um pobre funcionário reformado, uma personalidade muito apagada que nem sequer tivera a coragem de defender o livro que tinha escrito.

- O tipo de pessoa de quem precisam aqueles que nos ino­culam a peste do esquecimento, a peste que esvazia as nossas memórias, e que nos inoculam todos os ventos que sopram do Ocidente! Uma pessoa fraca, apagada. Um zé-ninguém! Desapa­receu, foi aniquilado, varrido da face da terra!

O doutor Fino disse-me claramente que não sentia qualquer compaixão pelo autor, que tinha sido assassinado...

Sem trocarmos mais palavras durante algum tempo, subimos um caminho de cabras. Jorravam suaves relâmpagos das nuvens carregadas de chuva que continuavam a deslocar-se com lentidão, sem no entanto se aproximarem ou afastarem, mas não ouvía­mos os trovões, como se estivéssemos diante de um televisor ligado mas sem som. Uma vez chegados ao alto da colina, vimos não só as terras do doutor Fino, mas também a localidade, muito bem arrumada na planície em baixo, como uma mesa posta por uma dona de casa meticulosa, os telhados vermelhos das casas, a mesquita com o seu minarete um tanto filiforme, as ruas que se estendiam livremente e, no exterior do aglomerado, os campos de trigo e os pomares cuidadosamente delimitados.

- De manhã levanto-me para receber o dia antes que seja o dia a receber-me - disse-me o doutor Fino olhando a vista panorâmica. - O sol desponta por trás das montanhas, mas vê­-se pelas andorinhas que ele já se levantou muito mais cedo nou­tro lado. Às vezes venho até aqui ao seu encontro. A essa hora a natureza ainda está sonolenta, as vespas e as cobras ainda não andam saídas. Tanto eu como o universo fazemos perguntas: por que existimos, por que estamos aqui a essa hora, interrogamo­-nos sobre qual é a nossa finalidade, o nosso desígnio mais im­portante. Não são muitos os mortais que comunicam com a natureza para reflectir sobre estas questões. Os seres humanos tal­vez sejam capazes de pensar, mas só têm na cabeça algumas ideias miseráveis que os outros lhes retransmitiram e que eles pensam que são originais; não foram eles que as descobriram no espectá­culo da natureza. Ideias pequenas, apagadas, frágeis...

«Já antes de ter descoberto a Grande Maquinação vinda do Ocidente, compreendi que, para não nos deixarmos vencer, te­mos de ser fortes e determinados! - disse o doutor Fino. – As ruas melancólicas, as árvores pacientes, as luzes fantasmagóricas apenas mostravam indiferença por mim, de maneira que tive de pôr ordem nos meus assuntos, de gerir eu próprio o meu tempo, não me submeti à História e não me deixei dobrar pelos joguinhos dos que querem reinar sobre a História. Por que haveria de me submeter a isso? Tinha confiança em mim. E era porque tinha confiança em mim que os outros confiaram na minha vontade e na poesia da minha vida. Fiz tudo para os cativar, e consegui-o de tal modo que também eles foram capazes de des­cobrir o seu tempo. Criámos laços entre nós. Comunicámos uns com os outros utilizando códigos, mantendo uma correspon­dência secreta, como os apaixonados, fizemos reuniões clandes­tinas. Este primeiro congresso que organizamos agora em Güdül representa a vitória alcançada na sequência de um combate de vários anos, meu caro Ali bei, de uma acção planeada meticulosa­mente. Necessitámos daquela paciência do homem que cava um poço com uma agulha! E de uma organização construída com a minúcia de uma teia de aranha! A partir de agora, aconteça o que acontecer, o Ocidente já não pode desviar-nos do nosso caminho!

Depois de uma longa pausa, o doutor Fino contou-me as úl­timas notícias: três horas depois da minha saída de Güdül, na companhia da minha encantadora esposa, eclodiram incêndios na cidade. Apesar da ajuda dos representantes do Estado, não tinha sido por acaso que os bombeiros não haviam conseguido apagá-los rapidamente. E depois, entre os manifestantes, entre os vândalos manipulados pela imprensa, viam-se as mesmas lá­grimas, a mesma fúria que havia nos seus amigos, eles compreen­diam por instinto que tinham sido despojados da sua memória, da sua poesia, da sua alma. Já me tinham contado que quei­maram carros, que houve tiroteio? Que tinha sido morto um homem, um dos seus irmãos? O subprefeito, é claro, que mon­tara as provocações em conluio com a capital e com as organi­zações locais dos partidos, proibira a reunião dos concessionários com o pretexto de que era uma ameaça para a ordem pública.

- Mas já é tarde de mais - disse o doutor Fino. - Não vou capitular! Fui eu quem pediu um debate sobre os anjos. Fui eu quem reclamou uma televisão que reflicta a nossa alma, a nossa infância, fui eu quem mandou fabricar esse televisor. Fui também eu quem pediu para que fossem perseguidas e abafadas à nascença todas as iniciativas perniciosas. Como esse livro que me roubou o filho, por exemplo. Soubemos que, todos os anos, há centenas e centenas dos nossos jovens que ficam com a vida toda de pernas para o ar por causa de maquinações deste género: basta porem-lhes um livro nas mãos, dois no máximo, e o universo deles fica numa desordem completa. Pensei em tudo, eu. Não foi por acaso que não fui à reunião. E que essa reunião tenha servido para conquistar para a minha causa um jovem do seu gabarito também não foi um acaso. Tudo se está a compor, exactamente como eu tinha previsto... O meu filho tinha a sua idade quando o perdi num acidente de viação. Estamos a catorze de Julho. O meu filho morreu a catorze.

O doutor Fino abriu a mão larga e mostrou-me o trevo na palma. Pegou-lhe pelo caule, examinou-o atentamente, depois deitou-o ao vento que soprava do lado das nuvens carregadas de chuva, mas tão imperceptivelmente que eu só sentia a brisa pelo fresco que trazia. As nuvens cinzento-pombo é que não tinham mudado de lugar, como que indecisas. Erguia-se no horizonte, muito longe da localidade, um clarão amarelado. O doutor Fino explicou-me que ali, nesse momento, estava a chover. Quando alcançámos os rochedos sobranceiros à ravina, do outro lado da colina, vimos o céu a limpar por cima do cemitério. Um gavião que por certo tinha construído o ninho entre os rochedos escar­pados, impressionantes em certos sítios, voou quando nos aproxi­mávamos, aflito, e começou a desenhar uma curva ampla por sobre as terras do doUtor Fino. Com respeito, até com admiração, seguimos em silêncio o voo do rapace, com umas asas que pare­ciam paradas.

- Esta terra toda - disse-me o doutor Fino - é muito rica e tem a força suficiente para assegurar a perenidade do nosso amplo movimento, inspirado por uma única grande ideia, amadurecida ao longo dos anos. Se o meu filho tivesse tido a força e a vontade para fazer frente à Grande Maquinação, para não se deixar dominar por um simples livro apesar das suas brilhantes capacidades intelectuais, estaria hoje animado pelo sentimento de poder e de criatividade que sinto neste momento, quando olho à minha volta do alto desta colina. Sei que você está a experimentar hoje a mesma inspiração, que a sua ideia do futuro é a mesma que a minha. Percebi, desde o princípio, que as informações que me deram sobre a determinação de que deu provas na assembleia dos concessionários não eram de modo algum exageradas. E quando soube a sua idade, não hesitei, nem sequer achei necessário investigar o seu passado. Com a mesma idade em que o meu filho me foi raptado de maneira tão cruel e maquiavélica, você já tinha compreendido tudo, a ponto de querer participar nesta reunião. Conheço-o há vinte e quatro horas apenas, mas já me foi possível perceber que a sorte pode pôr um fim prematuro a um destino para fazer reviver a mesma vontade e o mesmo impulso noutro. Não foi sem razão que o deixei visitar o modesto museu que dediquei ao meu filho. Exceptuando a mãe e as irmãs, você e a sua mulher foram os únicos a terem lá entrado. Ali, naquele museu, você como que se encontrou com o seu próprio passado e, também, com o seu futuro... Quanto ao próximo passo a dar, basta-lhe olhar para mim, o doutor Fino, para perceber qual é: Sê meu filho! Toma o lugar dele! Continuarás a minha obra depois de mim! Sou já um homem de idade, mas as minhas paixões não esmoreceram. Quero ter a certeza de que este movimento vai continuar depois de mim. Tenho os meus conhecimentos no governo. Os meus homens continuam activos e a enviar-me relatórios. Continuo a mandar vigiar centenas de jovens que se deixaram ludibriar. Vou dar-te acesso aos meus dossiers. A todos, sem excepção. Mandei espiar os mínimos movimentos do meu filho, poderás ler tudo. São tantos, os jovens desencaminhados desta maneira! Não és obrigado a cortar relações com o teu pai, com a tua família. Também quero mostrar-te a minha colecção de armas. Diz que sim! Diz: sim, tenho noção das responsabilidades que assumo! Diz: não sou um rapaz degenerado, vejo tudo; estou ao corrente de tudo! Diz-me isso! Durante anos não tive um filho varão, e era muito infeliz; depois tive-o e roubaram-mo, e fui ainda mais infeliz; mas não haveria nada de mais terrível para mim do que não poder deixar esta herança a ninguém!

Ao longe, as nuvens pluviosas espaçavam-se e os raios de sol caíam numa chuva luminosa sobre o reino do doutor Fino, como projectores que iluminassem apenas uma parte do palco. Uma boa parte da propriedade - uma campina coberta de macieiras e de freixos, o túmulo onde, segundo ele me disse, estava enter­rado o filho, os terrenos áridos que rodeavam um curral - mu­dava rapidamente de cor e víamos uma luz em forma de cone a avançar rapidamente pelos campos, sem se preocupar com limi­tes e extremos, como um fantasma apressado, até se dissipar bruscamente. Do sítio onde nos encontrávamos víamos uma boa parte do caminho que tomáramos para chegar à colina; o meu olhar varreu a encosta rochosa da colina atrás de nós, o caminho de cabras, as amoreiras, as primeiras colinas, os bosquedos e as searas de trigo e, bruscamente espantado, como um passageiro que vê pela primeira vez a sua casa do alto de um avião, reconheci a casa do doutor Fino: situava-se no meio de uma clareira bastante grande rodeada de árvores e consegui distinguir que um dos cinco vultos minúsculos que se dirigiam para o pinhal e para a estrada era Janan; reconheci-a pelo vestido às flores em fundo encarnado que ela comprara recentemente. Não, não foi só pelo vestido, mas pelo andar, pela silhueta, pelo porte - ou nem isso -, reconheci-a pelos batimentos do meu coração. E de repente, lá muito longe, por sobre as montanhas, onde começava o esplêndido reino do doutor Fino, vi um extraordinário arco­-íris.

- Quando as pessoas contemplam a natureza - disse o doutor Fino -, encontram nela os seus próprios limites, as suas insuficiências, os seus medos, e, assustados com a sua própria fraqueza, atribuem-na à imensidão, à enormidade da natureza. Quanto a mim, vejo na natureza uma mensagem eloquente, que me interroga, que me lembra que devo conservar intacta a minha vontade, vejo nela um manuscrito que tenho de ler com resolução, sem medo nem concessões. Os grandes homens, tal como os grandes países e as grandes épocas, são os que conseguem acumular dentro deles uma força tão poderosa que está sempre prestes a explodir. Quando chega a hora, quando surgem as oportunidades, quando é escrita uma nova história, esta força age de maneira tão implacável, tão radical como o grande homem que ela empurra para a acção. E, então, também o destino passa à acção, com a mesma crueldade. Quando chegar esse dia, que importância podem ter os jornais, as ideias vigentes, o gás engarrafado, os sabonetes Lux, a Coca-Cola, os cigarros Marlboro, os assuntos sem importância, a moral mesquinha dos nosso infelizes irmãos enganados pelos ventos que sopram do Ocidente?

            - Eu poderia então ler os relatórios, senhor? - perguntei­-lhe.

Fez-se um longo silêncio. Nas lentes sujas e empoeiradas dos óculos do doutor Fino, o arco-íris reflectia-se, cintilante, em dois arco-íris simétricos.

            - Sou um génio - disse o doutor Fino.

 

Entrámos em casa. Depois de um almoço calmo comido em família, o doutor Fino levou-me para o seu gabinete de trabalho; abriu a porta com uma chave semelhante àquela com que Rosa­munda nos abrira a porta de Mehmet. Ao mostrar-me os cadernos que ia tirando dos armários, o doutor Fino afirmou-me que não tinha descartado a ideia de que a vontade que encomendara esses relatórios secretos e recolhera esses testemunhos poderia um dia materializar-se numa forma estatal. Como testemunhava o sis­tema burocrático que ele organizara com os seus espiões, o doutor Fino tinha efectivamente a intenção de criar um novo Estado no caso de levar a melhor sobre a Grande Maquinação.

De facto, entrei com facilidade no âmago do assunto, porque todos os relatórios estavam cuidadosamente classificados. Os informadores que o doutor Fino tinha posto no encalço do filho não tinham qualquer contacto uns com os outros, e tinham-lhes mesmo sido atribuídos nomes de código, que eram marcas célebres de relógios. Embora a maior parte desses relógios fosse produto do Ocidente, o doutor Fino considerava-os «nossos» porque marcavam o nosso tempo havia mais de um século.

O primeiro investigador, Zenith, redigira o seu primeiro rela­tório quatro anos antes, no mês de Março. Mehmet, que nessa altura ainda se chamava Nahit, era estudante da Faculdade de Medicina de Istambul, em çapa. Zenith realçava no seu relatório os resultados muitíssimo maus obtidos, desde o início do ano escolar, pelo estudante do terceiro ano Nahit, e resumia assim a sua investigação: «Os repetidos fracassos, nos últimos meses, do acima mencionado, devem-se ao facto de que ele sai muito pouco do lar de estudantes de Kadirga, de que nunca vai às aulas, de que não frequenta as clínicas e os hospitais.» A pasta deste infor­mador estava repleta de relatórios indicando de maneira deta­lhada as horas em que Nahit deixara a residência de estudantes para ir a esta ou àquela pizaria, a esta ou àquela churrascaria, a esta ou àquela leitaria, ao barbeiro, ao banco. De cada vez que saía, Nahit apressava-se a voltar à residência. E, no final de cada um destes relatórios, Zenith exigia um pouco mais de dinheiro ao doutor Fino para prosseguir as suas investigações.

Movado, que o doutor Fino contratara um pouco depois de Zenith, era provavelmente segurança na residência de Kadirga e, como a maioria destes funcionários, estava ligado aos serviços da polícia. Pensei para mim que este homem cheio de experiên­cia, capaz de seguir Mehmet hora a hora, redigira sem dúvida muitos relatórios do mesmo género destinados a alguns pais de família da província demasiado curiosos ou mesmo aos Serviços de Informação. Traçava, num estilo profissional sóbrio e fácil, o quadro do equilíbrio de forças políticas no interior da residência universitária. Conclusão: Nahit não tinha a mínima ligação com qualquer das diversas facções que se digladiavam na residência, isto é, dois grupos de extremistas religiosos, um deles ligado à confraria sufi dos nakshibendis, de um lado; e um grupo de esquerdistas moderados, do outro. Nunca houvera o mínimo contacto entre estes grupos e «o nosso jovem», que levava uma vida tranquila num quarto que partilhava com três colegas, sem­pre sozinho no seu canto. Não fazia mais nada que não fosse ler e reler o mesmo livro, sem nunca levantar a cabeça, como um estudante de teologia que decora o Corão, «se posso permitir­-me a comparação, caro senhor». Os administradores da residên­cia universitária - em quem Movado tinha total confiança do ponto de vista político e ideológico -, a polícia e os estudantes que partilhavam o quarto com ele afiançavam que o livro não era uma dessas obras perigosas que os islamitas ou os políticos decoravam. Movado fornecia algumas observações sobre um fenómeno a que parecia não ter dado grande importância: depois de ter lido o livro durante horas, sentado à mesa, o jovem ia pos­tar-se diante da janela, com um ar ausente. Indiferente às alusões e mesmo às piadas dos seus colegas no refeitório, limitava-se a sorrir ou nem sequer reagia. Também já não se barbeava todos os dias. Movado, baseando-se na sua experiência, observava ao seu empregador que as manias dos jovens - verem e voltarem a ver repetidamente o mesmo filme pornográfico, ouvirem milhares de vezes a mesma cassete ou pedirem todos os dias o mesmo prato de alho francês com carne picada, por exemplo ­eram sempre passageiras.

O facto de Omega, o terceiro agente, contratado no mês de Maio, se interessar menos pelos actos e pelos gestos de Mehmet do que pelo livro que este lia significava que teria certamente recebido instruções a esse respeito da parte do doutor Fino, o que indicava que, desde os primeiros meses, o doutor Fino tinha con­siderado que, se Mehmet - ou antes, Nahit - se tinha desvia­do do bom caminho, isso se devia ao livro.

Omega pusera-se a vigiar um certo número de livrarias e alfar­rabistas de Istambul - entre eles o alfarrabista que, três anos mais tarde, me venderia o livro. Depois de muita e paciente in­vestigação, Omega descobrira o livro em dois alfarrabistas; munido das informações fornecidas por estes, dirigira-se a um vendedor de livros em segunda mão. Os dados assim recolhidos tinham-lhe permitido chegar à seguinte conclusão: um certo nú­mero de exemplares - cento e cinquenta a duzentos -, ven­didos provavelmente na sequência do fecho de um qualquer depósito de livros a cheirar a mofo de um grossista que comprava os livros a peso, tinham ido parar às lojas do Mercado do Livro Velho e a outras bancas. O intermediário que comprava os livros ao quilo, tendo entrado em conflito com o sócio, fechara o ne­gócio e deixara Istambul. Era impossível encontrá-lo e, por con­seguinte, saber a identidade do primeiro fornecedor. A ideia de que teria sido a própria polícia a tratar da distribuição do livro fora aventada por um alfarrabista do Mercado: o livro, de início editado legalmente, teria sido confiscado por ordem do Minis­tério Público, sendo todos os exemplares transportados para um armazém da Direcção de Segurança; seguidamente, alguns livros teriam sido roubados por alguns polícias com problemas de di­nheiro - como acontece muitas vezes -, revendidos a alfar­rabistas que compravam livros a peso e, deste modo, repostos em circulação.

Omega, que parecia ser um homem muito consciencioso, ao não encontrar nas bibliotecas qualquer outro título do escritor nem o nome dele nas velhas listas telefónicas, tinha chegado à seguinte conclusão: «É bem sabido que muitos dos nossos com­patriotas nem sequer têm posses para o telefone, mas têm o des­plante de escrever livros. Permito-me, pois, sugerir que o livro pode ter sido publicado sob pseudónimo.»

Mehmet, que passara o Verão a ler e a reler o livro na residência universitária, no Outono empreendera investigações para descobrir as fontes utilizadas pelo autor. O agente que, na altura, o doutor Fino tinha encarregado de o seguir escolhera o pseudónimo de uma marca soviética de relógios de pulso e de pêndulo muito popular nos primeiros anos da República: Serkisof.

Ao ver que Mehmet estava constantemente mergulhado na lei­tura na Biblioteca Nacional de Beyazit, Serkisof começara por dar uma boa novidade ao doutor Fino: o jovem voltara a estudar, retomando assim uma vida de estudante como os outros. Depois, ao verificar que o jovem Mehmet apenas lia, na verdade, velhas revistas ilustradas para crianças como Pertev e Peter ou Mary e Ali, Serkisof abandonara a sua visão optimista. À guisa de consolação, adiantava a hipótese seguinte: o jovem talvez esperasse sair da crise que atravessava regressando às suas recordações de infância.

Segundo os seus relatórios, Mehmet, no mês de Outubro, visitara todos os editores do bairro de Babiali que tinham publi­cado noutros tempos ou que ainda publicavam revistas para crianças, assim como plumitivos tarimbeiros - como Nésati ­que em determinada época tinham trabalhado para essas revistas. Serkisof, convencido de que o doutor Fino mandava seguir o filho para saber quais eram as suas tendências ideológicas e polí­ticas, escrevia a propósito desses escrevinhadores: «Embora estes homens tenham a pretensão de que se interessam pela política e escrevam artigos sobre os assuntos políticos e ideológicos que estão na ordem do dia, estes pretensos polemistas não têm na verdade qualquer convicção política. A maioria escreve para ga­nhar dinheiro e, mesmo que não ganhem nada, para serrazinarem a cabeça das pessoas de quem não gostam.»

Vim a saber por dois relatórios - um de Serkisof e outro de Omega - que Mehmet se tinha dirigido numa manhã de Outono à Direcção do Pessoal da Companhia dos Caminhos-de-Ferro do Estado, em Haydar-Pasha. Dos dois investigadores - cada um dos quais ignorava a presença do outro -, Omega era o mais bem informado: «O jovem procurava, ao que parece, obter informações sobre um funcionário reformado», concluía.

Li por alto, rapidamente, as páginas dos relatórios bem orde­nados. Procurava com emoção os nomes do meu bairro, da minha rua, da minha infância. E quando descobri que, uma noite, Meh­met se embrenhara pela rua onde eu morava e que tinha parado para observar as janelas do segundo andar de um prédio, o meu coração começou a bater com muita força. Era como se esses homens que preparavam o mundo maravilhoso para onde, em breve, eu ia ser convidado a entrar tivessem decidido facilitar­-me as coisas escancarando aos meus olhos todos os seus talentos; o aluno do liceu que eu era na época nunca se tinha apercebido disso.

Pelas minhas conclusões, Mehmet tinha encontrado o Tio Rifki no dia seguinte. Ambos os detectives que então o seguiam tinham declarado que ele entrara nesse dia num prédio sito no número 28 da Rua do Choupo Prateado em Erenkoy, e que se tinha demorado ali cinco ou mesmo seis minutos. Mas nenhum deles conseguira descobrir a que porta do prédio ele tinha tocado, nem com quem tinha falado. Omega, o mais consciencioso dos dois, tinha pelo menos conseguido puxar pela língua do empregado da mercearia da esquina e obter informações sobre as três famílias que moravam no prédio. Na minha opinião, foi a primeira vez que o doutor Fino ouviu falar do Tio Rifki.

Nos dias que se seguiram à sua conversa com o Tio Rifki, Mehmet passara por uma crise que nem Zenith pôde deixar de notar. Movado tinha reparado que o jovem já não saía do quarto, que nem sequer ia ao refeitório, mas acrescentava que também não o tinha visto a ler de novo o livro. As suas saídas da residência uni­versitária eram irregulares, pareciam «sem finalidade» - notara Serkisof. Passara uma noite inteira a vaguear pelas ruelas por trás da mesquita do Sultão Ahmet e horas sentado num banco do parque, a fumar. Noutra noite, Omega viu-o com um saco de uvas na mão. O jovem tirava um bago do saco, examinava-o com a maior das atenções, como se se tratasse de uma jóia, metia-o na boca e mastigava-o muito devagar; assim passou quatro horas, até ter comido todas as uvas do saco, e depois voltou à residência. Já não se barbeava, já não cuidava do seu aspecto. Os detectives queixavam-se da irregularidade das saídas do jovem e aprovei­tavam para reivindicar um aumento de honorários.

Numa tarde de meados de Novembro, Mehmet foi de barco a Haydar-Pasha; dali tomou o comboio e saiu em Erenkoy, por onde andou a passear durante muito tempo. A acreditar-se em Omega - que nesse dia o vigiava -, o jovem circulara por todas as ruas do bairro, passara por três vezes à porta da minha casa - numa altura em que eu estava provavelmente lá – e depois, ao cair da noite, postara-se em frente do número 28 da Rua do Choupo Prateado. Manteve-se ali sem arredar pé durante duas horas, no escuro e debaixo de uma chuva miudinhà, a olhar para as janelas, sem acontecer o sinal que ele esperava - como opinava Omega - de um dos quartos em que as luzes estavam acesas; em seguida apanhara uma bebedeira de caixão à cova numa taberna de Kadikoy, depois voltara para a residência. Seguidamente, tanto Omega como Serkisof informavam que o jovem fizera o mesmo trajecto seis vezes. Serkisof, que parecia ser o mais desenrascado, acabara por identificar a pessoa que estava por trás da janela que Mehmet passava o tempo a vigiar.

O segundo encontro do Tio Rifki com Mehmet decorrera à vista de Serkisof. Este, de plantão no passeio em frente e, depois, empoleirado no murinho do jardim, pôde observar o encontro - Serkisof utilizava por vezes o termo «rendez-vous» - e, nos seus relatórios ulteriores, comentara-o várias vezes. Porém, o mais exacto era o que resultava das suas primeiras impressões, uma vez que estas assentavam mais nos factos e no que ele pu­dera ver com os seus próprios olhos.

De início, o velho e Mehmet sentaram-se em frente um do outro, cada qual na sua poltrona, tendo entre eles o televisor onde, na altura, decorria um filme de cowboys; ambos, durante sete ou oito minutos, não abriram a boca. A certa altura, a mu­lher do velho serviu-lhes café. Depois Mehmet levantou-se, começou a falar e parecia fazê-lo com paixão, até com fúria, gesticulando, a ponto de Serkisof pensar que o rapaz ia chegar a vias de facto com o seu interlocutor. O velho senhor, que se chamava Rifki bei, limitara-se, primeiro, a sorrir melancolica­mente; depois, como o jovem talvez tivesse subido de tom, também se levantou da poltrona e respondeu com a mesma impetuosidade. Depois, os dois sentaram-se nos respectivos lugares, seguidos pelas suas sombras fiéis que lhes imitavam os gestos na parede; tinham falado, à vez, tinham-se calado, tinham deitado olhares melancólicos à televisão, tinham voltado a falar. O velho senhor discorreu durante um bom pedaço, contentando­-se o jovem em ouvir, depois mais uma vez se calaram ambos e se viraram para a janela, sem notarem a presença de Serkisof empoleirado no murinho. De repente, porém, uma vizinha, uma verdadeira megera, viu Serkisof no muro e pôs-se a berrar a ple­nos pulmões: «Socorro! Diabos te levem, seu porco!» O detective viu-se obrigado, infelizmente, a abandonar à pressa o seu posto de observação, sem poder assistir aos últimos três minutos do encontro que ele considerava extremamente importante e que, nos seus relatórios seguintes, ligara a todas as espécies de organi­zações clandestinas e a hipotéticas conspirações internacionais, assim como a sindicatos do crime e da política.

A julgar pelo relatório seguinte, o doutor Fino exigira uma vigi­lância ainda mais rigorosa, pelo que os detectives mandaram ao doutor Fino uma chuva de relatórios. Nos dias que se seguiram ao seu encontro com o Tio Rifki, Mehmet dera a Omega a im­pressão de estar louco de raiva; a Serkisof parecera tristíssimo mas resoluto: comprara todos os exemplares do livro que conseguiu descobrir nos alfarrabistas e esforçou-se por distribuir «esta obra» por «todo o tipo de lugares na cidade», como a residência uni­versitária de Kadirga (relatório de Movado); nos cafés frequen­tados por estudantes (relatórios de Zenith e de Serkisof); nas paragens de autocarros, à entrada dos cinemas, nos cais de em­barque (Omega), e, em certa medida, conseguira-o. Movado, em particular, salientara a audácia com que o jovem se esforçava por influenciar os seus colegas da residência. O relatório indicava que Mehmet tinha também tentado reunir jovens à sua volta noutros meios universitários, mas vivendo sempre ele próprio em solidão, num mundo só dele; os seus esforços não foram coroados de êxito considerável. Continuei a ler, e tinha precisamente ficado a saber que ele conseguira convencer dois ou três estudantes a lerem o livro, estudantes que encontrara nas cantinas universitárias ou nas aulas a que voltara a assistir (certamente com este único objectivo), quando deparei com um recorte de jornal intitulado:

 

                                       HOMICÍDIO EM ERENK0Y

«(Agência Anatólia): Na noite transacta, por volta das 21 horas, Rifki Rail, antigo inspector da Companhia dos Caminhos-de-Ferro do Estado, sucumbiu às balas com que o alvejou um desconhecido. Quando a vítima se dirigia do seu domicílio sito no número 28 da Rua do Choupo Prateado para o café, o assassino disparou três vezes na sua direcção. O assassino, que não foi possível identificar, pôs-se imediatamente em fuga. Rifki Rail (de 67 anos de idade) teve morte imediata. No activo, exerceu diversas funções a diversos níveis na direcção da Companhia dos Caminhos-de-Ferro do Estado. Encontrava-se reformado com o cargo de inspector. A morte de Rifki Rail suscitou muitas emoções no seu meio, onde era muito estimado.»

Levantei a cabeça. Lembrava-me bem: o meu pai tinha entrado muito tarde nesse dia, e muito perturbado. No funeral, toda a gente chorava. Tinham corrido uns zunzuns, tinha-se falado de crime passional, de ciúmes. Ciúmes da parte de quem? Tentei febrilmente descobri-lo folheando com raiva os dossiers tão bem ordenados do doutor Fino; Serkisof, o meticuloso? Zenith, o menos competente? Ou Omega, o pontual?

Noutra pasta fiquei a saber que as investigações levadas a cabo pelos detectives contratados pelo doutor Fino, sabe Deus a que preço, tinham chegado a conclusões diferentes. Uma carta bastante curta, remetida por um dos agentes, de nome Hamilton Watch, o qual, segundo todas as probabilidades, trabalhava também para os Serviços de Informações, tinha fornecido ao doutor Fino os seguintes elementos:

Rifki Rail era mesmo o autor do livro. Escrevera-o havia doze anos. Tímido como todos os amadores, não tivera a coragem de o publicar com o seu nome verdadeiro. Os funcionários encar­regados da imprensa nos Serviços de Informações, que estavam sempre de ouvido atento às queixas dos professores e dos pais de família inquietos pelo futuro dos seus alunos e dos seus filhos, a ponto de os denunciarem, tinham percebido muito depressa que o livro desviava alguns jovens do bom caminho; descobriram a identidade do autor através da tipografia. E o competentíssimo procurador da República adstrito à imprensa fora encarregue do caso. Mandou confiscar de imediato, mas discretamente, todos os exemplares existentes no mercado, não lhe sendo necessário mover qualquer processo contra o autor, uma vez que, logo na sua primeira convocação ao Ministério Público, Rifki Rail, ins­pector na reforma da Companhia dos Caminhos-de-Ferro do Estado, declarara, num tom donde transparecia alguma satis­fação, que não se opunha à confiscação do livro. Assinara logo o auto de transgressão lavrado a seu pedido e nunca mais publicara nada. O relatório de Hamilton Watch tinha sido redigido onze dias antes da morte do Tio Rifki.

A julgar pela sua reacção, era evidente que Mehmet soubera muito depressa da morte do Tio Rifki. Segundo Movado, o jovem, «presa de uma ideia fixa», tinha ficado perturbado. Fechara-se no seu quarto e recomeçara a ler o livro de manhã à noite, com um fervor quase religioso. Mais tarde, tanto Serkisof como Omega, que finalmente o viram a sair da residência universitária, chegaram à mesma conclusão: as actividades do jovem não pareciam ter qualquer objectivo; um dia arrastava-se horas e horas pelas vielas do bairro de Zeyrek, no dia seguinte passava a tarde inteira nos cinemas pornográficos de Beyo glu. Serkisof reparou que, às vezes, saía a meio da noite da residência, sem no entanto descobrir aonde iria. Zenith tinha-o visto um dia «num estado lamentável»: cabelo desgrenhado, barba de vários dias, lançando aos transeuntes «um olhar de coruja». Já não frequentava os cafés de estudantes, nem os corredores da Faculdade onde até então tinha o hábito de ler o livro, cortara relações com toda a gente que conhecia. Não tinha qualquer trato com mulheres e não parecia fazer qualquer esforço para o estabelecer. Quando revistara o quarto de Mehmet na ausência deste, Movado, que trabalhava na administração da residência, tinha descoberto revistas com fotografias de mulheres nuas, acrescentando que semelhantes leituras eram habituais entre a maioria dos estudantes normais. Das investigações de Zenith e Omega - que trabalhavam não sabendo da existência um do outro - ressaltava que em determinado momento Mehmet se entregara à bebida. Na sequência de uma briga provocada por uma piada que lhe disseram na cervejaria dos Corvos Alegres, frequentada sobretudo por estudantes, tinha preferido ir beber nas tabernas rascas dos bairros mais distantes. A certa altura tinha tentado travar amizade com outros estudantes, ou com os clientes mais extravagantes que encontrava nas tabernas, mas não tinha conseguido. Mais tarde ganhara o hábito de se ir pôr diante dos alfarrabistas, sem dúvida à espera de que a sua alma gémea pudesse comprar e ler o livro. Procurara os raros jovens que antes tinha convencido a lerem o livro e encontrara-os, mas depressa se desentendeu com eles, o que, segundo Zenith, se devia ao seu mau génio. Omega tinha conseguido ouvir - embora de lon­ge - uma dessas discussões numa taberna de uma viela do bairro de Aksaray; conseguira ouvir «o nosso jovem» - que começava a não parecer assim tão jovem - a falar com entusiasmo do «universo do livro», de alcançar esse universo, de um certo «limiar de serenidade», do «instante incomparável» e do «acaso». Mas tratava-se por certo de um entusiasmo fugaz por­que - como salientava Movado - Mehmet, que se tornara incómodo para os seus amigos (caso ainda lhe restassem amigos) por causa da sua falta de asseio, do seu desleixo, do seu aspecto repugnante, já não lia o livro. «Na minha opinião, caro senhor», escrevera Omega, que parecia cansado das vagabundagens sem objectivo de Mehmet e das suas longas caminhadas que não levavam a lado nenhum, «este jovem anda à procura de alguma coisa que possa aliviar a sua tristeza, mas não sei muito bem o que procura ele, e acho que ele próprio também não o sabe.» o nosso jovem - que Serkisof seguia de perto -, num dos dias em que deambulava pelas ruas de Istambul, pareceu ter encontrado nas estações rodoviárias, ou melhor, nos autocarros de longo curso que percorriam o país, essa «alguma coisa» que deveria aliviar a sua tristeza e dar um pouco de paz à sua alma. Sem mesmo pegar numa mala, sem comprar bilhete, o que poderia pelo menos indicar um destino qualquer, Mehmet apanhava à sorte um dos autocarros que largavam da estação, como se o acometesse uma súbita inspiração, e Serkisof, depois de um instante de hesitação, apanhava o autocarro seguinte. Tinham viajado assim durante semanas, com um sempre a seguir o outro, sem saberem aonde iam ou para onde eram levados, de cidade em cidade, de terminal em terminal, de autocarro em autocarro. Os relatórios que Serkisof garatujava dentro dos autocarros, com o corpo todo aos tremeliques, exprimiam a magia dessas viagens sem finalidade aparente e a atmosfera de todas essas voltas confusas. Tinham visro viajantes que haviam perdido a rota e as bagagens, loucos que já não sabiam em que século viviam; tinham encontrado reformados que vendiam calendários, jovens briosos que iam fazer o serviço militar, e outros jovens que profetizavam o dia do Juízo Final. Nos restaurantes das estações rodoviárias, tinham comido na companhia de jovens noivos, de aprendizes nas oficinas de reparações, de jogadores de futebol, de vendedores de cigarros de contrabando, de assassinos a soldo, de professores da primária, de directores de salas de cinema, e tinham dormido apertados entre centenas de viajantes nas salas de espera, nos bancos dos autocarros; não tinham passado uma única noite no hotel, não tinham estabelecido um qualquer laço de amizade fosse com quem fosse. As suas viagens nunca tinham uma finalidade definida. Nem uma só vez!

«Tudo o que fazemos, caro senhor, é apear-nos de um autocarro para entrarmos noutro», escrevia Serkisof. «Estamos à espera de qualquer coisa, talvez de um milagre, talvez de uma luz, ou de um anjo, ou de um acidente, não sei bem, são estas as eventualidades que ocorrem à minha pena. Dir-se-ia que andamos em busca de um sinal que nos levaria a paragens desconhecidas, mas ainda não tivemos a sorte de as vislumbrar até agora. O facto de que, até ao presente momento, não tenhamos tido qualquer acidente é talvez o sinal de que um anjo vela por nós. Não sei dizer-lhe se o jovem continua a não reparar na minha presença, e também não sei se conseguirei aguentar isto até ao fim.»

Serkisof não tinha aguentado: uma semana depois de ter escrito esta carta de frases entrecortadas, durante uma paragem em plena noite, Mehmet deixara um prato de sopa a meio e sal­tara para dentro de um Boa Viagem Azul que estava a arrancar, e Serkisof, que na mesa ao lado mergulhava a colher numa sopa igual, teve de se limitar, aturdido, a vê-lo desaparecer. Depois terminara calmamente o seu jantar e, com toda a franqueza, con­fessara ao doutor Fino que perder o rasto de Mehmet não lhe fazia qualquer mossa. O que deveria fazer agora?

Assim, durante algumas semanas, nem o doutor Fino nem Serkisof, a quem ele pedira que continuasse o seu trabalho, pu­deram saber o que fazia Mehmet. Serkisof, durante seis semanas exactamente, isto é, até ao momento em que se viu diante de um cadáver que pensava ser o de Mehmet, matara o tempo nos terminais, nos escritórios de autoviação ou nos cafés frequentados pelos motoristas de autocarros; depois, arrastado pela intuição, começou a procurar o «nosso jovem» entre os cadáveres, onde quer que tivesse havido um acidente de viação. Pude perceber por algumas cartas escritas a bordo de diversos autocarros que o doutor Fino mandara outros «relógios» na peugada do filho. Uma dessas cartas tinha sido escrita no momento em que o autocarro em que se encontrava Zenith chocara contra uma char­rete puxada por um cavalo, e o coração tão pontual de Zenith parara de bater, na sequência de uma hemorragia: tinha sido a companhia de viação Chega Cedo que remetera ao doutor Fino a carta manchada de sangue que o desgraçado não pudera ter­minar.

Tinham sido necessárias quatro horas para que Serkisof chegasse ao lugar onde Mehmet conseguira, com brio, pôr termo à vida enquanto Nahit. Um carro Segurança-Expresso tinha cho­cado contra a traseira de um camião-contentor cheio de tinta de tipografia. Durante um longo momento ouviram-se os clamores vindos do autocarro coberto de uma pasta negra e luzidia que só desapareceu quando, cerca da meia-noite, se envolveu em laba­redas cintilantes que o consumiram. Serkisof declarava que não tinha podido «identificar realmente o infeliz Nahit, vítima das suas obsessões», e que as suas queimaduras o tinham tornado irreconhecível; a única prova de que dispunha era o seu bilhete de identidade milagrosamente poupado pelas chamas. Os sobre­viventes tinham declarado que o jovem ocupava o lugar número 37; se estivesse sentado no lugar número 38, ter-se-ia safado sem um arranhão. Ao saber que o passageiro do lugar 38 era um tal Mehmet, da mesma idade que Nahit, Serkisof seguira os seus passos até Kayseri, na esperança de obter algumas informações sobre os últimos momentos de Nahit, mas infelizmente não o encontrara. Como este jovem Mehmet, depois do terrível aci­dente, não voltara para casa dos pais que o esperavam com ansiedade, ficava claro que o acidente o tinha traumatizado profundamente, mas isso já não dizia respeito a Serkisof. Uma vez que o jovem que ele seguia há meses tinha falecido, esperava agora ordens e dinheiro para avançar noutras buscas, já que as investigações por ele realizadas revelavam que a Anatólia, e tal­vez mesmo todo o Próximo Oriente e os Balcãs, formigavam de jovens em estado de cólera que tinham lido o livro.

Depois da notícia da morte do seu filho e do regresso a casa do seu cadáver calcinado, o doutor Fino entregou-se todo à sua fúria; a morte do Tio Rifki não lhe acalmara uma raiva cujo alvo se tornara, agora, toda a sociedade. Nos dias que se seguiram ao enterro, realizado com a ajuda de um antigo oficial da polícia muito bem relacionado que se ocupava dos seus negócios em Istambul, o doutor Fino contratara mais sete novos agentes e também lhes atribuíra nomes de código de relógios. Além disso, travara relações com os «concessionários desencantados» e jun­tara-se-Ihes nos seus combates contra o inimigo comum, a Gran­de Maquinação. Começara por receber cartas a transbordar de queixas e lamentações. Estes comerciantes que, uns a seguir aos outros, se viam na obrigação de fechar os seus estabeleci­mentos por efeito da concorrência das grandes companhias internacionais na venda dos fogões, dos gelados, dos frigoríficos, da limonada e dos hambúrgueres, ou ainda na área da usura, des­confiavam dos jovens - não só dos que tinham lido o livro do Tio Rifki, mas também de todos os que liam livros esquisitos, estranhos e estrangeiros - e vigiavam-nos de perto. Nem sequer precisavam dos encorajamentos do doutor Fino, consideravam seu dever colocá-los sob vigilância, mesmo no respeitante à vida privada, e ficaram encantados por poderem escrever relatórios rancorosos e paranóicos sobre eles.

Eram esses relatórios que eu lia em diagonal enquanto comia o jantar que Rosina me servira num tabuleiro, dizendo: «O meu pai pensou que você preferiria não interromper o trabalho.» Per­guntava a mim mesmo se por acaso os bufos do doutor Fino te­riam detectado e posto sob vigilância um jovem que lera o livro numa cidade de província, num dormitório abafado, ou - como eu - num bairro afastado de Istambul. Folheava rapidamente as pastas, na esperança de encontrar uma alma gémea, e encontrei dois ou três incidentes muito curiosos e que me arrepiaram, mas não se pode dizer que se tratasse de almas gémeas.

Assim, depois de ter conhecido o livro, um aluno da Escola de Veterinária, cujo pai trabalhava nas minas de carvão de Zonguldak, tornou-se incapaz de fazer fosse o que fosse além das necessidades mais elementares - alimentar-se e dormir ­e dedicava todo o seu tempo à leitura do livro. Chegava a reler a mesma página milhares de vezes, pelo que, naturalmente, não lhe sobrava tempo para fazer mais nada. Um professor do liceu, um alcoólico que não escondia as suas tendências suicidas, ganhara o hábito - até aos dias em que os seus alunos se in­surgiram - de reservar os últimos dez minutos das suas aulas de Matemática para a leitura de algumas linhas do livro, que acompanhava com gargalhadas ruidosas e irritantes. Um jovem de Erzurum, estudante de economia, tinha coberto completa­mente as paredes do quarto da residência universitária com páginas do livro, o que provocara uma grande zaragata com os colegas que partilhavam o quarto com ele. Um deles afirmava que o livro continha blasfémias contra o Profeta; aí, o próprio chefe da administração da residência, meio cegueta, subira para cima de uma cadeira para, com uma lupa, tentar decifrar o que estava escrito entre a cornija do tecto e o cano do fogão. Fora assim que o artesão desencantado que comunicara esta notícia ao doutor Fino ouvira falar do livro. Eu, porém, fui incapaz de decidir se este livro, que tinha provocado tantas discussões - «Deve apresentar-se queixa, ou não, ao Ministério Pú­blico?» - e estragara a vida do jovem de Erzurum, era o livro do Tio Rifki.

O certo era que o livro, como uma mina perdida, continuava a fazer passar de mão em mão a sua centena de exemplares, graças a encontros fortuitos ou aos conselhos de leitores medianamente interessados, ou, pura e simplesmente, porque atraíra a atenção de um cliente num escaparate entre outros livros do mesmo gé­nero que exerciam a mesma influência mágica e despertavam em certos leitores uma onda de entusiasmo ou uma espécie de ins­piração. Alguns, a primeira coisa que faziam era isolarem-se com o livro mas, quando se achavam à beira de uma vaga depressão, conseguiam abrir-se de novo ao mundo e escapavam assim à ter­rível doença. Havia também aqueles que, mal liam o livro, eram acometidos por uma fúria brusca e ficavam perturbados. Esses acusavam os amigos, as pessoas chegadas, os seres queridos de não conhecerem o universo do livro, de não irem em busca desse universo, de lhe ficarem indiferentes; esses criticavam os outros implacavelmente porque não se pareciam com as perso­nagens do livro. Outra categoria de leitores consistia nos que tinham o dom de organizadores: mal acabavam de ler o livro, não dedicavam a vida ao texto, mas aos outros: cheios de energia, punham-se logo à procura dos outros que também já tinham lido o livro e, caso não os encontrassem - o que acontecia sempre -, davam o livro a ler a todos os que conseguiam aliciar e tentavam passar à «acção comum» com eles. No que consistia essa acção comum: nem estes activistas nem os que os denun­ciavam às autoridades faziam a mínima ideia do que fosse.

Nas duas horas seguintes fiquei a saber, pelos recortes de jornais cuidadosa e ostensivamente ordenados entre as cartas de denúncia, que cinco dos leitores inspirados pelo livro tinham sido assassinados pelos «relógios» do doutor Fino. Nada indicava qual era o relógio que cometera os crimes, nem quando tinham sido perpetrados, nem por instigação de quem. «Locais» breves recortadas de diversos jornais tinham sido classificadas cronolo­gicamente entre as cartas de denúncia. Sobre dois destes homi­cídios eram fornecidos pormenores. Uma das vítimas era um estudante da Escola de Jornalismo, que fazia traduções de no­tícias do estrangeiro para o jornal O Sol. A Associação dos Jorna­listas Patriotas tinha fingido que dava importância ao homicídio e proclamado que a imprensa turca jamais baixaria a cabeça perante o terror. Noutro caso, um empregado de restaurante tinha sido crivado de balas com as mãos cheias de garrafas vazias de iogurte líquido. A Liga dos Escuteiros Islamitas revelara que o «mártir» era um dos seus membros e declarara no decurso de uma conferência de imprensa que o crime tinha sido cometido pelos agentes da CIA e da Coca-Cola.

 

O prazer de ler, que tantas pessoas respeitáveis lamentam ter desaparecido da nossa sociedade, deve sem dúvida ser a musi­quinha que eu sentia emanar dos recortes de notícias breves e dos arquivos loucos e tão bem classificados do doutor Fino. Sen­tia nos braços a frescura da noite; uma música imaginária enchia­-me os ouvidos, e no entanto esforçava-me por decidir o que fazer para me comportar como um rapaz disposto a dar provas de po­der de decisão frente às coisas prodigiosas com que se depara na vida numa idade tão juvenil. Uma vez que tinha decidido tornar­-me esse jovem responsável, tomando o futuro nas mãos, tirei uma folha de papel dos arquivos do doutor Fino, para anotar todos os indícios que pudessem ser-me úteis.

Quando saí do quarto dos arquivos, sempre com aquela música nos ouvidos, sentia no mais fundo de mim até que ponto eram realistas e implacáveis tanto o universo como o pai de família imbuído de filosofia de quem eu era hóspede. Tinha também a sensação de estar a ouvir as vozes cáusticas, mas estimulantes, de um espírito faceto. Sentia a referver algures dentro de mim um sentimento de alegria, tão leve como a música que acompanha os espectadores à saída de um filme divertido e optimista. Não sei se estão a ver o que eu quero di­zer: a ilusão de sermos capazes de improvisar tão bem como o herói do filme todas aquelas boas tiradas, aquelas réplicas in­críveis...

«Concede-me esta dança?», estive quase a perguntar a Janan, que me observava com inquietação. Estava sentada a uma mesa no grande vestíbulo da entrada, na companhia das três Rosas, olhando para novelos de lã de todas as cores que se tinham derramado de um cesto de vime entrançado à mão e se espalhavam pela toalha como maçãs e laranjas bem maduras, frutos de uma estação de abundância e de felicidade. Ao lado dos novelos havia modelos para tricôs e bordados, desses que saem na revista A Mulher e a Casa que a minha mãe comprava antigamente, com muitos patinhos, gatinhos e cãezinhos em ponto de cruz, assim como talagarças representando mesquitas, acrescentadas sem dúvida pelo editor a pensar na mulher turca, já que tudo o resto tinha sido sacado de revistas alemãs da especialidade. Contemplei por um instante todo aquele colorido à luz do candeeiro a petróleo e disse para mim que as cenas da vida real que acabara de ler também eram assim, feitas de cores igualmente cruas. Depois virei-me para as duas filhas de Rosa­munda, que se aproximavam da mãe a bocejar, com os olhos pesados de sono, e que tão bem se associavam a este quadro de felicidade familiar. «O quê? A vossa mãe ainda não vos mandou deitar?», perguntei-lhes.

As raparigas, surpreendidas e ligeiramente assustadas, anicha­ram-se nos braços da mãe, o que me devolveu o bom humor.

Seria bem capaz de acrescentar, dirigindo-me a Rosina e Rosabela, que me observavam com olhos desconfiados: «Vocês são, tanto uma como outra, lindas e frescas flores!», mas limitei­-me a passar para a sala contígua, onde estavam os homens, e a dizer ao doutor Fino:

- Li a história do seu filho com muita tristeza, senhor.

- Reuni os documentos todos - disse ele.

            Na sala, bastante escura, o doutor Fino apresentou-me aos dois homens, de semblante também bastante escuro. Não, aqueles senhores não eram «relógios», não tiquetaqueavam; um deles era notário; quanto ao outro, não consegui fixar a sua profissão, como me acontece sempre em situações pouco claras, além de que estava sobretudo interessado em ouvir como lhes era apresentado pelo doutor Fino: um jovem muito sensato, sério, apaixonado, destinado a realizar grandes feitos, e era já um amigo muito chegado do doutor Fino; não tinha nada que fizesse lembrar aqueles jovens pretensiosos de cabelos compridos saídos dos filmes americanos; ele tinha confiança em mim, inteira confiança.. .

Com que rapidez eu me apropriei destas qualidades! Emba­raçado, não sabendo o que fazer das mãos e dos braços, assumi um ar reservado e modesto, o ar que convinha a um jovem como eu, e tentei mudar de assunto, assegurando-me de que eles nota­vam que eu tentava mudar de assunto.

- As noites aqui são muito calmas, senhor! - disse.

            - Só mexem as folhas da amoreira - retorquiu o doutor Fino. - Mesmo nas noites mais calmas, quando não corre a mí­nima brisa. Ouçam!

Apurámos o ouvido. A penumbra da sala arrepiava-me, era mais inquietante para mim do que o vago e longínquo ramalhar de uma árvore. O silêncio prolongava-se, e eu dizia de mim para mim que, desde a véspera, não tinha ouvido nesta casa outra coisa que não fosse as pessoas a sussurrarem.

O doutor Fino chamou-me de parte:

            - Nós vamos jogar uma partida de cartas - disse ele. - Que­ro que me diga o que prefere ver, meu rapaz: a minha colecção de armas ou de relógios?

- Gostava muito de ver os relógios, senhor - disse-lhe eu sem ter pensado muito.

Numa sala contígua ainda mais sombria, vimos dois velhos relógios de mesa com pêndulo que estralejavam como metra­lhadoras. Vimos também um pequeno relógio de pêndulo encastrado numa caixa de madeira trabalhada, que tocava uma musiquinha automática e a que se dava corda uma vez por semana, obra-prima da corporação relojoeira de GaIata, tendo­-me o doutor Fino declarado que havia os mesmos relógios nos apartamentos do harém, no palácio de Topkapi. Depois ficámos a saber, graças às palavras «À Smyrne» [N6] gravadas no mostrador esmaltado, onde tinha vivido o levantino Simon S. Simonien que fabricara e assinara o grande relógio de pêndulo, de caixa de nogueira esculpida. Soubemos também que o relógio Universal,

 

  1. Em francês no original.

 

que a nossa gente, logo que tem algum dinheiro, a primeira coisa que compra é um relógio!

O doutor Fino ia talvez continuar a discorrer, sempre num sussurro, mas um relógio de pêndulo inglês Prion, todo dourado e com mostrador esmaltado com ornamentos de rosas de rubis, e dotado de uma voz de rouxinol, pôs-se a tocar a melodia da velha canção Meu Escriba, cortando-lhe assim a palavra.

Enquanto os parceiros das cartas apuravam o ouvido à doce melodia do escriba que ia para Üsküdar, o doutor Fino segredou­-me:

- Já se decidiu, meu filho?

            No mesmo e exacto instante, à luz mortiça dos candeeiros a petróleo, apercebi pela porta aberta, nos espelhos dos aparadores da sala vizinha, a imagem cintilante de Janan e fiquei perturbado.

- Ainda tenho de trabalhar mais um pouco nos arquivos, senhor - disse-lhe eu, não tanto com a esperança de chegar a uma decisão mas para ver se evitava tomá-la. Passei para a sala contí­gua, sentindo em cima de mim o peso do olhar de Rosina, a me­ticulosa, de Rosabela, a febril, e de Rosamunda, que tinha voltado depois de pôr as filhas na cama. Tanta curiosidade e determinação nos olhos cor de mel de Janan! Tive bruscamente a sensação de que estava a cumprir coisas muito importantes, como deve acon­tecer com os homens que vivem com uma mulher muito bela e dinâmica.

Eu, no entanto, estava longe de ser um desses homens! Estava ali sentado, no meio dos arquivos do doutor Fino, com as pastas pejadas de relatórios abertas à minha frente, guardando ciosa­mente a imagem de Janan, ainda mais bonita nos espelhos do aparador; virava rapidamente as páginas na esperança de que o ciúme que não parava de crescer em mim me ajudasse a tomar uma decisão.

Não tive de procurar muito. Depois do funeral do infeliz jovem de Kayseri, que enterrara em vez do filho, o doutor Fino tomou ao seu serviço Seiko, o mais empreendedor e consciencioso dos seus «relógios». Seiko, no decurso das investigações que levara a cabo em Istambul - nos cafés, nos clubes estudantis e nos corredores das faculdades -, na esperança de encontrar pessoas que tivessem lido o livro, reparara em Mehmet e Janan na Escola de Arquitectura. Isso acontecera dezasseis meses antes, durante a Primavera. Mehmet e Janan amavam-se e reliam sem parar um livro, à revelia dos seus colegas. Apesar de Seiko os ter seguido e vigiado constante e discretamente durante oito meses, os apaixonados não tinham a mais leve suspeita disso.

Nesses oito meses decorridos entre a sua descoberta do jovem casal e a altura em que eu próprio li o livro e em que alguém disparou contra Mehmet ao pé da paragem de miniautocarros, Seiko enviara ao doutor Fino vinte e dois relatórios, a intervalos irregulares. Li e reli esses relatórios, até alta noite, com paciência e ciúme, tentando assimilar as conclusões envenenadas que tirava deles, graças à lógica fornecida pelos arquivos.

  1. O que Janan afirmara, contemplando a grande praça pela janela do quarto número 19 do hotel, em Güdül, contando-me a história de que nunca um homem lhe tinha tocado, não correspondia à verdade. Seiko, que tivera a possibilidade de os seguir e vigiar não só durante toda a Primavera mas também no Verão, concluíra que os jovens iam juntos para o hotel em que Mehmet' trabalhava e passavam longas horas no seu quarto. Eu já desconfiava disso, é claro, mas quando outra pessoa teste­munha uma coisa de que nós desconfiamos vagamente há muito tempo, e o escreve preto no branco, sentimo-nos ainda mais idiotas.
  2. Quando Mehmet pusera termo à sua existência enquanto Nahit, ninguém, incluindo Seiko, desconfiara da sua nova identidade e da nova vida que levava: nem o pai, nem a direcção do hotel onde ele trabalhava, nem a secretaria da Escola de Ar­quitectura.
  3. Tirando o facto de se amarem, os apaixonados não se entre­gavam a qualquer actividade «social» particular que pudesse atrair as atenções. Com excepção dos dez últimos dias de vigi­lância, nunca tinham tentado dar o livro a ler a ninguém. E não passavam o tempo todo a lê-lo. Foi por isso, aliás, que Seiko não investigou muito o que eles faziam com o livro. Mehmet e Janan não tinham o ar de dois estudantes como os outros, preparando o casamento. A amizade deles com os colegas era equi­librada, nos estudos trabalhavam bem, com um entusiasmo moderado. Não tinham contactos com qualquer grupo político e não manifestavam qualquer interesse especial por nada. Aliás, entre todos os jovens que haviam lido o livro, observara Seiko, Mehmet parecia ser o mais calmo, o menos apaixonado. De resto, talvez tivesse sido por isso que Seiko ficou tão surpreendido e tão satisfeito com o seguimento dos acontecimentos.
  4. Seiko invejava-os. Comparando os seus diferentes relatórios, notei de imediato que, para descrever Janan, ele utilizava uma linguagem muito cuidada e muito poética: «Quando lê o livro, a jovem franze ligeiramente os sobrolhos e o seu rosto toma uma expressão cheia de elegância e dignidade.» Ou ainda: «Depois, com um movimento muito dela, lançou o cabelo para trás das orelhas com um pequeno gesto...» «Quando lê o livro na fila da cantina da cidade universitária, avança um pouco o lábio superior e um brilho notável ilumina-lhe de repente os belos olhos, dando a sensação de que, de um momento para o outro, eles podem ficar marejados de lágrimas.» Que pensar destas frases surpreendentes: «Ao fim de meia hora, o rosto da jovem debruçado sobre o livro tornou-se tão doce, a sua expressão ficou tão estranha e tão diferente, caro senhor, que me pareceu por um momento que emanava uma luz mágica, não da janela, mas das páginas do livro que aquela criatura de cara de anjo estava a ler!»? À medida que Janan se tornava cada vez mais angélica, o jovem que a acompanhava, por contraste, tornava-se cada vez mais terra a terra: «Trata-se, pura e simplesmente, de uma história de amor entre uma jovem de boas famílias e um jovem sem um tostão, desprovido de personalidade, de antecedentes duvidosos, oriundo de uma família obscura...», «O nosso jovem é sempre mais prudente, mais ansioso, mais mesquinho...», «Talvez a jovem tivesse tendência para se abrir com os amigos, para se aproximar deles, talvez estivesse pronta para partilhar o livro com eles, mas o recepcionista reprime essas tendências.», «Certamente porque provém de uma família muito humilde, ele não ousa frequentar os meios sociais da jovem.», «Para dizer a verdade, não é fácil imaginar-se o que esta menina teria visto neste rapaz apagado e frio.», «Ele é demasiado arrogante e seguro de si para um vulgar empregado de hotel.», «É um desses tipos desenrascados que conseguem apresentar a sua falta de elegância e a sua incapacidade de comunicar como quali­dades.», «Um pedante calculista.», «No fundo, caro senhor, não há nada de notável nele.» Eu começava a achar Seiko sim­pático. Se ao menos ele conseguisse convencer-me... E conse­guiu convencer-me, sim, mas de uma coisa completamente diferente...
  5. Ah, como eles eram felizes! Depois das aulas, metiam-se numa sala de cinema de Beyaglu e, de mãos dadas, viam um fil­me que se chamava Noites sem Fim. Sentavam-se a uma mesa num canto da cantina, olhavam para as pessoas que passavam, conver­savam com um prazer evidente. Iam namorar juntos as montras de Beyaglu, apanhavam juntos o autocarro, sentavam-se sempre lado a lado nas aulas, davam juntos longos passeios pela cidade, entravam nos snacks e, sentados nos bancos altos do balcão, joelho contra joelho, olhavam-se nos espelhos enquanto comiam as suas sanduíches; e, de novo, mergulhavam na leitura do livro que a rapariga tirava da saca. E houve, sobretudo, aquele dia de Verão! Seiko seguira Mehmet a partir do momento em que este saíra do hotel e, quando o viu encontrar-se com Janan, que trazia um saco de plástico, teve logo a sensação de que descobrira uma nova pista, e pôs-se a segui-los de muito perto. Nesse dia, eles tinham tomado o barco para as ilhas dos Príncipes, tinham alugado lá uma barcaça e nadado ao largo, depois deram um passeio de ca­leche, comeram gelados e milho assado, e, de volta à cidade, subiram para o quarto da jovem no hotel. Era muito penoso ler aquilo... Também lhes acontecia terem discussões, pequenas questiúnculas, que Seiko qualificava de mau augúrio, mas, até ao Outono, não tinha detectado entre eles qualquer tensão grave.
  6. O homem que, nesse dia de neve do mês de Dezembro, tinha disparado contra Mehmet com a pistola que tirara da saca de plástico cor-de-rosa junto à paragem de autocarros era prova­velmente Seiko. Mas eu não tinha a certeza. O ciúme e o roncor tornavam plausível esta hipótese. Tentei reconstituir na memória a silhueta que vira, da janela, a fugir pelo parque coberto de neve, e calculei que Seiko andasse na casa das trinta anos. Para um rapaz de trinta anos, ambicioso, saído recentemente da Escola da Polícia, que aceitava um pequeno «gancho» privado para compor os seus fins de mês, esses estudantes de arquitectura não passavam de «snobes». Mas, então, que opinião teria ele de mim?
  7. Eu, para ele, não passava da infeliz vítima de uma cilada. Seiko chegara tão facilmente a esta conclusão que até tinha fi­cado com pena de mim. No entanto, tinha sido incapaz de con­cluir que a tensão que se instalara entre os namorados desde o Outono se devia ao desejo de Janan espalhar as ideias do livro. Fora sem dúvida por insistência de Janan que eles tinham deci­dido procurar alguém a quem dessem a conhecer o livro. Pas­saram algum tempo a observar os estudantes nos corredores da Escola, exactamente como os descobridores de cérebros exami­nam os CV's dos candidatos a lugares de quadros numa em­presa privada. Nada indicava por que motivos a sua escolha recaíra em mim. Porém, ao fim de um certo tempo, Seiko compreendera que era a mim que eles seguiam, que eles vigiavam, que era eu o tema das suas conversas. Depois acontecera o episódio da cilada que me armaram, e que se revelara mais fácil do que a própria escolha da presa. Tinha sido tudo muito sim­ples: com o livro na mão, Janan passara várias vezes perto de mim nos corredores da Escola. Nem sequer me lançara um sor­riso doce. O resto não foi mais do que um joguinho divertido. Notara que eu olhava para ela quando fazíamos fila na cantina; então pousara o livro em cima da mesa a que eu me sentava, como que para ficar com as mãos livres para procurar qualquer coisa no saco. Só uns dez segundos depois é que voltou a pegar nele com a sua mãozinha delicada. Depois, Mehmet e Janan, com a certeza de que o peixe tinha mordido o isco, colocaram o livro no escaparate de uma loja escolhida no percurso que eu costumava fazer, para que eu o visse quando voltasse para casa, dissesse: «Olha, é o tal livro!», e o comprasse. Tudo se passara exactamente como eles tinham planeado. No seu relato dos fac­tos, Seiko, ao referir a minha pessoa, observava com toda a jus­teza e alguma melancolia: «Um jovem sonhador sem nada de especial! »

Não fiquei vexado, porque ele utilizava a mesma expressão ao falar de Mehmet, isso deu-me até um certo reconforto e tive a coragem de colocar a pergunta: por que motivo, até então, eu não confessara a mim mesmo que tinha comprado o livro uni­camente para me poder aproximar daquela linda rapariga?

O mais insuportável para mim era a ideia de que, quando contemplava Janan com admiração, sem mesmo me dar conta de que estava a olhar para ela, no exacto momento em que o livro tinha pousado na minha mesa e depois levantara voo como um pássaro mágico e assustado, isto é, no momento mais encan­tatório da minha vida, Mehmet estava a espiar-nos, a mim e a Janan, enquanto Seiko nos espiava aos três de longe.

«O acaso que eu recebera com tanto amor, convencendo-me de que se tratava da própria vida, não passava afinal de um guião imaginado por outra pessoa!», disse de si para si o herói desen­cantado, e abandonou a sala para ir ter com o doutor Fino. Mas precisava ainda de fazer alguns cálculos, de proceder a uma investigação, isto é, tornar-se um pouquinho, também ele, um «relógio» .

Fiz tudo muito rapidamente; fiz uma lista de todos os jovens Mehmet que tinham lido o livro, jovens detectados nos quatro cantos da Anatólia pelos «relógios» laboriosos e pelos lojistas desencantados do doutor Fino.

Como Serkisof não fazia qualquer alusão ao apelido de Meh­met, vi-me confrontado com uma lista muito grande e, na ver­dade, não sabia muito bem o que fazer dela.

Apesar da hora tardia, tinha a certeza de que o doutor Fino estava à minha espera. Dirigi-me à saleta onde, ao som dos tiquetaques dos relógios, o doutor Fino costumava jogar às cartas com os amigos. Janan e as filhas dele já tinham recolhido aos seus quartos, os seus parceiros de jogo havia muito que tinham ido para as suas casas. O doutor Fino, mergulhado na leitura de um livro, estava enterrado numa grande poltrona, no canto mais escuro da saleta, como se quisesse proteger-se da luz dos can­deeiros a gás.

Quando se apercebeu da minha presença, pousou o livro marcando a página com um corta-papéis com cabo de marfim, e levantou-se, disse que estava à minha espera e que eu poderia descansar um pouco se tivesse os olhos muito cansados da leitura; mas que tinha a certeza de que tudo o que eu pudera ler e saber me tinha satisfeito: a vida não seria feita de acontecimentos surpreendentes e de porcarias? Mas ele tinha destinado a si mesmo a tarefa de pôr ordem no caos.

- As pastas e os índices foram preparados por Rosabela com a minúcia de uma rapariga que borda a ponto fino - disse-me ele. - Quanto a Rosina, como filha dedicada ao pai, ocupa-se com todo o prazer de toda a minha correspondência, é ela quem escreve as cartas aos meus caros e dóceis relógios, segundo as minhas instruções. Todos os dias, ao chá, Rosamunda lê-nos com a sua bela voz todas as cartas que recebemos. A maior parte das vezes trabalhamos nesta sala ou, então, na dos arquivos, onde você esteve a estudar os dossiers. Nos dias tépidos da Primavera e do Verão instalamo-nos numa mesa ao pé da amoreira. Para um homem amante da calma como eu, é uma verdadeira bem­-aventurança passar o tempo asssim.

Todo o meu intelecto se desunhava para encontrar as palavras certas que louvassem aquela vida tão cheia de serenidade, tanto amor e tanta devoção. Vi pela capa do livro que o doutor Fino pousara que se tratava de um dos volumes de Zagor. Saberia ele que o Tio Rifki, que ele mandara liquidar pelos seus homens de mão, tinha pensado, numa altura em que as suas obras não goza­vam de qualquer notoriedade, em fazer uma adaptação nacio­nalista deste romance ilustrado? Eu sentia-me incapaz de mudar de ideias ao pensar nestas coincidências.

- Poderia ver as suas armas, senhor? O doutor Fino, num tom afectuoso, fez-me o reparo amigável de que eu poderia tratá-lo por doutor Fino ou até por «pai»...

O doutor Fino mostrou-me uma Browning semiautomática, importada da Bélgica em 1956 pelo comando da direcção dos Serviços de Informações, e explicou-me que, ainda muito recen­temente, apenas os funcionários dos escalões mais altos da polícia dispunham deste tipo de arma. Contou-me depois como, uma ocasião, a Parabellum alemã, que se podia converter em espin­garda utilizando o seu estojo de madeira como coronha, ao ser manejada erradamente, se tinha disparado e a bala de nove milí­metros perfurara dois cavalos enormes, castrados, entrara na casa por uma janela e fora cravar-se no tronco da amoreira; só que era uma arma pesada e tornava-se difícil andar com ela. Se eu quisesse qualquer coisa de seguro e prático, ele aconselhava­-me a Smith- Wesson, em que a patilha de segurança estava fixada à coronha. Para evitar qualquer encravação, aconselhava-me tam­bém outro revólver, um Colt todo a brilhar que suscitava o entu­siasmo dos amadores de armas. No entanto, com essa arma, poderíamos sentir-nos demasiado americanos, demasiado cowboys. Por isso, centrámos as atenções numa série de Walthers fabri­cadas na Alemanha, assim como nas suas cópias feitas sob licença na Turquia, em Kirikkale. O facto de as qualidades desta arma terem sido postas à prova desde há tantos anos por tantos amantes do gatilho - fossem militares, guardas-nocturnos, polí­cias ou padeiros - nos corpos de tantos rebeldes, ladrões, sedu­tores, políticos ou vagabundos conferia-lhe, aos meus olhos, um interesse especial.

Depois de o doutor Fino me ter explicado que não havia qualquer diferença entre a Walther e a Kirikkale e me ter repetido várias vezes que estas pistolas faziam parte das nossas almas e dos nossos corpos, escolhi uma Walther de nove milímetros, que se podia transportar facilmente no bolso e que podia atingir o alvo a uma distância considerável. Evidente­mente, não precisei de insistir: o doutor Fino, num gesto que lembrava a paixão dos nossos antepassados pelas armas, ofereceu­-me a pistola de imediato, com dois carregadores, e honrou-me com um beijo na testa. Ia voltar ao trabalho, disse-me ele, mas eu tinha de ir dormir, descansar um pouco.

O sono era a última das minhas preocupações. Enquanto percorria os dezassete passos que separavam o armário das armas do nosso quarto de dormir, passaram-me pela cabeça dezassete cenários diferentes. Talvez os tivesse gravado num recanto do meu cérebro durante as muitas horas que passara a ler e, no último momento, tivesse feito deles uma síntese que conviesse à cena final. Vejo-me a bater três vezes à porta do quarto, que Janan fechara à chave, e a recapitular a obra-prima nascida da minha imaginação desencaminhada pela leitura de tão grande número de páginas e até tão tarde pela noite fora, mas já não me lembro que síntese era essa. É que, no próprio instante em que bati à porta, ergueu-se dentro de mim uma voz exigindo-me a senha, talvez porque pensasse que Janan ma poderia pedir, de maneira que a disse de imediato: «Longa vida ao nosso sultão!»

Quando Janan deu a volta à chave para me abrir a porta, com uma expressão no rosto meio triste, ou antes, meio grave, não, uma expressão completamente misteriosa, tive a sensação de ser um actor amador que esquece as frases que tem decoradas há semanas logo que se encontra sob as luzes do palco. Não era mui­to difícil de prever que um homem na posse das suas faculdades, ao ver-se numa situação destas, se deixaria guiar mais pelo seu instinto do que por algumas frases sem pés nem cabeça de que apenas se lembrava vagamente. Foi o que eu fiz; tentei pelo me­nos esquecer que não passava de uma presa caída na armadilha.

Como jovem marido regressado de uma longa viagem, pousei os lábios nos de Janan. E pronto, acabámos por nos encontrar em nossa casa, no nosso quarto, depois de termos passado por muitas provas. Eu estava apaixonado por ela, o resto pouco me im­portava. Se a vida nos reservasse algumas dificuldades, eu seria capaz de as resolver, eu que tinha feito todo aquele caminho com coragem! Os seus lábios tinham o perfume da amora. Ela e eu, colados um ao outro, devíamos alhear-nos das grandes ideias longínquas e vagas e de todos aqueles que, iludidos por essas ideias, tinham destroçado as suas vidas; devíamos alhear-nos dos imbecis respeitáveis e apaixonados que lutam por espalhar pelo mundo as suas próprias obsessões; daqueles que se esforçam por que nos compadeçamos dos seus sacrifícios; tínhamos de tapar os ouvidos ao apelo de uma vida inacessível e dogmática. Quando dois seres partilharam grandes sonhos, quando durante meses foram companheiros de viagem, dia e noite, cobrindo grandes distâncias, quem poderá impedi-los de esquecerem o mundo exterior, para lá das portas e janelas, apertando-se um contra o outro, Ó meu Anjo, e sobretudo tornarem-se verdadeiramente eles próprios, descobrirem o instante único da vida?

O fantasma de um terceiro...

Não, não, deixa-me pousar de novo os meus lábios nos teus porque esse fantasma, que já não passa de um nome nos relatórios de vigilância, já não ousa ser uma criatura de carne e osso. Ao passo que eu estou aqui, e sei que o tempo corre lentamente até se esgotar. Tal como essas estradas indiferentes que percorremos e que se estendem com serenidade, cheias de si mesmas, feitas de pedras, de asfalto e de calor nas noites de Verão a céu aberto, estendamo-nos aqui lado a lado, também nós, não percamos mais tempo... Peço-te, meu amor, sem perdermos tempo; vê, quando pouso as minhas mãos nos teus ombros tão belos, quando agarro nos teus braços magros e frágeis, vê como me aproximo tanto de ti, olha com que felicidade lenta nos aproximamos desse tempo sem igual com que sonham todos os passageiros de todos os autocarros! Quando apoio os lábios entre a tua orelha e o cabelo, ali onde a tua pele é quase transparente, quando a electricidade que emana do teu cabelo assusta os pássaros que levan­tam voo e me roçam pela cara e pela testa, enchendo o ar de um perfume de Outono, quando o teu seio se enrija como um pássaro teimoso que continua a bater as asas na palma da minha mão, olha como este momento inacessível se cria entre nós em toda a sua plenitude, posso vê-lo nos teus olhos, agora, não estamos aqui, nem estamos lá, nem nas paragens com que sonhaste, nem num autocarro de longo curso, nem num quarto de hotel mal iluminado, nem mesmo num futuro que só existe nas páginas de um livro. Agora estamos neste quarto, tu e eu, como num tempo que não conhece limites, tu e o teu suspirar, eu e os meus beijos aflitos, apertados um contra o outro, à espera de que se realize um milagre. O instante de plenitude! Aperta-me nos teus braços, minha alma, para que o tempo não corra mais, aperta­-me nos teus braços, peço-te, para que o milagre não acabe! Não, não me resistas, lembra-te! Lembra-te das noites que passámos nos assentos de autocarro, quando os nossos corpos escorregavam devagar um para o outro e os nossos sonhos se confundiam, e os nossos cabelos, lembra-te, antes de desviares os teus lábios, quan­do as nossas cabeças se encostavam ao vidro frio e escuro, quando contemplávamos o interior das casas iluminadas nas cidadezinhas que atravessávamos, lembra-te de todos os filmes que vimos, de mão dada, da chuva de balas, das loiras que desciam os degraus de uma grande escadaria, dos jovens actores ingénuos com ner­vos de aço que tanto te agradavam. Lembra-te de todos os beijos que contemplávamos em silêncio, como se estivéssemos a come­ter um pecado, como se quiséssemos esquecer um crime, e como sonhávamos com outro país. Lembra-te dos lábios que se aproxi­mavam, dos olhos que se desviavam do ecrã, lembra-te de como conseguíamos ficar imóveis quando as rodas do autocarro rola­vam sete vezes e meia por segundo. Mas ela não se lembrou de nada. Beijei-a uma última vez com desespero. A cama estava des­feita. Teria ela sentido o peso da Walther no meu bolso? Janan estava estendida na cama, com os olhos sonhadores postos no tecto, como se contemplasse as estrelas. Não pude deixar de lhe dizer: «Janan, não éramos tão felizes nessas viagens? Voltemos para os autocarros...»

A minha pergunta, evidentemente, era desprovida de lógica.

- O que estiveste a ler? - perguntou-me ela. - O que ficaste hoje a saber de novo?

- Um montão de coisas sobre a vida - disse-lhe eu utili­zando a linguagem das dobragens e o tom das séries televisivas. - Coisas extremamente importantes, pode dizer-se. Muitas pessoas leram o livro, e agitam-se com desespero, andam de um lado para o outro, não sei por onde... É tudo muito confuso, e a luz que jorra do livro é tão ofuscante como a morte. A vida, decididamente, é uma grande surpresa.

Tinha a sensação de que me era possível continuar neste tom. Se não podia fazer um milagre pelo amor, talvez o pudesse fazer pelas palavras, por essas palavras que agradam às crianças. Perdoa-me a ingenuidade, meu Anjo, perdoa-me o joguinho que fazia por desespero, porque, desde há setenta dias, era a primeira vez que podia aproximar-me tanto de Janan que estava estendido a seu lado; como sabem todos aqueles que leram alguma coisa, a imitação da infância é a primeira manha dos que, como eu, vêem fechar-se-lhes diante dos olhos as portas do paraíso do Amor. Uma noite em que caía uma chuva diluviana, entre Afyon e Kütahya, num autocarro em que a água entrava em torrentes pelas janelas e pelo tecto, tínhamos visto o filme Os Paraísos Artificiais, mas Seiko não me tinha dado a saber que Janan já o tinha visto um ano antes, de mão dada com o seu apaixonado, em condições bem mais calmas e agradáveis?

-Quem é então o Anjo? - perguntou-me ela.

                        - Parece que há uma ligação entre o Anjo e o livro. Nós não somos os únicos a sabê-lo. Andam outras pessoas além de nós à sua procura.

- A quem se revela ele?

- Aos que acreditam no livro. Aos que o lêem atentamente. - E então?

            - À força de ler e reler o livro, a pessoa transforma-se. Le­vanta-se uma bela manhã, e quem a vê exclama: olha, olha, esta rapariga, à luz que emana do livro, tornou-se um anjo! O que significa que o Anjo era uma rapariga. Mas, depois, a pessoa pergunta a si mesma como é que o anjo pode armar ciladas... Os anjos poderão pregar partidas de mau gosto?

            - Sei lá.

            - Eu também não. Também penso nisso, e procuro.

            Foi isso que respondi, Anjo, talvez porque tinha medo de me meter por zonas de perigo e de insegurança se dissesse que o único recanto de paraíso aonde me levara este longo périplo era esta cama onde me encontrava estendido ao lado de Janan. Mais valia deixar durar este instante único. Envolvia o quarto um leve cheiro a madeira de construção e também um cheiro muito fresco que lembrava o gosto da pastilha elástica e dos sabonetes de antigamente, que usávamos na nossa infância mas que agora já não porque as suas embalagens não são lá muito elegantes.

Eu, que era incapaz de mergulhar tão profunda e seriamente no livro como Janan, senti que a uma tal hora da noite podia fazer alusão a certos pontos. Disse portanto a Janan que a coisa mais aterradora do mundo era o tempo; sem nos darmos conta, tinha sido por isso que nos lançáramos nesta viagem, era por isso que estávamos sempre em movimento, em busca do momento em que o tempo parasse. O momento único era esta plenitude. Ao aproximarmo-nos dela, tínhamos podido verificar com os nossos próprios olhos os incríveis milagres dessa zona inima­ginável, na companhia dos mortos e dos que estavam a mor­rer. Nas revistas para crianças que tínhamos folheado de manhã, encontravam-se na sua forma mais infantil as sementes da sabe­doria do livro, e era tempo de utilizar essa sabedoria para o com­preender. Para lá disso não havia mais nada. O início como o termo da nossa viagem eram o lugar onde nos encontrávamos. O doutor Fino tinha razão: pululavam assassinos pelos cami­nhos e nos quartos sombrios. A morte infiltrava-se na vida atra­vés do livro.

Abracei-a, disse-lhe: meu amor, vamos ficar aqui, saibamos apreciar este quarto tão bonito, ora vê, a mesa, o relógio, o candeeiro, a janela. Todas as manhãs, ao acordarmos, poderemos contemplar, maravilhados, aquela amoreira. Ela está ali, olha, e nós aqui. Olha o caixilho da janela, os pés da mesa, a torcida do candeeiro. A luz e os cheiros, o mundo é tão simples! Esquece o livro. Ele também quer que nós o esqueçamos. Existir é ter-te nos meus braços. Mas Janan não queria saber.

«Onde está Mehmet?»

            Fixava o tecto com uma atenção intensa, como se quisesse ler nele a resposta à sua pergunta. Franzia os sobrolhos. A sua testa parecia ainda mais larga. Os seus lábios palpitavam, como se esti­vessem prestes a revelar-me um segredo. À luz cor de pergaminho que alumiava o quarto, a sua pele tingia-se de um cor-de-rosa que eu nunca lhe tinha visto. Depois de todas as viagens, depois de todas as noites passadas nos autocarros, bastara-lhe ter dormido um pouco, ter feito duas refeições regulares, ter passado um dia num ambiente calmo para que recuperasse as suas cores. Disse-lhe isto na esperança de que ela quisesse casar-se comigo, o que fazem certas raparigas que decidem bruscamente casar-se porque aspi­ram a uma vida ordenada e feliz.

- Acho que estou a ficar doente - disse-me ela. - Molhei­-me à chuva e devo ter apanhado frio. Tenho febre.

Como era bela, assim estendida, com os olhos fixos no tecto; e eu, deitado ao lado dela, contemplava com arrebatamento as cores do seu rosto, ao mesmo tempo que, com a pose profissional de um médico, lhe punha a mão na testa. Pousara ali a mão e não a mexia, como se tivesse medo que ela me escapasse.

Vinham-me à lembrança recordações de infância, descobria como tocar em alguém podia transformar completamente os lugares, as camas, os quartos, os cheiros, as coisas, mesmo as mais vul­gares. Passavam-me também pela cabeça outros pensamentos e outros cálculos quando ela virou ligeiramente a cara para mim, interrogando-me com os olhos; retirei a mão da testa dela e disse­-lhe a verdade:

- Tens febre.

            Então, bruscamente, veio-me à cabeça uma série de possibi­lidades até então inesperadas. Às duas da manhã desci à cozinha. Fervi água para um chá de tília que descobri num frasco, numa cafeteira que descobri na penumbra entre os fantasmas e os tachos de aspecto aterrador, e imaginei-me a explicar a Janan que o melhor remédio para os resfriados era meter-se debaixo dos cobertores abraçada a alguém. Mais tarde, quando procurava aspirina entre os medicamentos, na gaveta de um aparador que Janan me indicara, pensei para mim que, agora, não poderíamos deixar o quarto durante muitos dias no caso de eu também ficar doente. Uma cortina mexeu, pelo chão arrastaram-se umas pan­tufas. A sombra da esposa do doutor Fino surgiu à minha frente, logo seguida do seu invólucro carnal, com um ar nervoso, como sempre. Não há problema, minha senhora, disse-lhe eu, foi a Janan que, simplesmente, apanhou frio.

            Ela levou-me ao primeiro andar, tirou de cima do armário um cobertor pesado, meteu-o dentro de uma capa e disse-me: «Ah, a minha pequenina! É um anjo, toma cautela para nunca lhe fazeres mal!» E acrescentou uma coisa que nunca mais esque­cerei: disse-me que a minha mulher tinha um pescoço esplên­dido...

De volta ao quarto, pus-me a contemplar demoradamente o pescoço de Janan. Será que não tinha reparado nele até ao momento? Com certeza que sim, tinha reparado, era um pescoço que me agradava muitíssimo, mas visto assim parecia-me tão espantoso que, durante muito tempo, fui incapaz de pensar noutra coisa. Fiquei a vê-la beber o chá de tília, depois a meter­-se debaixo dos cobertores com o ar de criança bem-comportada, convencido de que «tudo ia correr bem».

Ficámos calados durante muito tempo. Com o nariz encostado à janela e as mãos em viseira nos olhos, eu observava o jardim. Os ramos da amoreira buliram ligeiramente, a nossa amoreira treme mesmo à brisa mais ligeira, meu amor. Silêncio. Janan também tremia. Como o tempo passava depressa!

O nosso quarto transformou-se rapidamente, tornou-se aquilo a que se chama «um quarto de doente», com um ambiente e um carácter especiais. Eu andava de um lado para o outro no quarto, sentia que a mesa redonda, o espelho, a mesinha-de-cabeceira se iam transformando a pouco e pouco em objectos muito próxi­mos, familiares. Bateram quatro horas no relógio. Queres sentar­-te aqui à beira da cama, ao pé de mim?, disse-me ela. Eu peguei-lhe nos pés por debaixo dos cobertores. Ela sorriu-me, disse que eu era muito bom. Fechou os olhos, fingindo que dor­mia, mas não, não fingia, já dormitava, estava mesmo a adorme­cer. Dormia? Sim, adormecera.

Voltei a andar de um lado para o outro no quarto. Olhei para o relógio, enchi o jarro de água fresca, sempre a olhar para Janan, incapaz de tomar uma decisão. Tomei uma aspirina, só para fazer alguma coisa. Quando ela abriu os olhos, voltei a pôr-lhe a mão na testa, para ver se tinha febre.

O tempo, que parecia avançar forçado pelas horas marcadas no relógio de pêndulo, parou por um momento; a bolha translúcida em que eu estava fechado rasgou-se e Janan sentou­-se na cama. De repente, surpreendemo-nos a falar com paixão de alguns ajudantes de motoristas dos autocarros. Um deles tinha-nos dito que, um dia, iria ocupar o lugar do condutor e que levaria o autocarro para paragens ainda não exploradas. Outro, muito falador, tinha-nos dito: sirvam-se, as pastilhas elásticas são grátis, são oferecidas pela Companhia à amável clientela, mas não mastigues muitas, irmão, porque contêm ópio, é para que os passageiros durmam profundamente e pensem que o seu sono repousado se deve aos bons amortecedores do carro e à perícia do motOrista que nunca ultrapassa outros veículos, em suma, à qualidade excelente da nossa Companhia e dos nossos autocarros. Havia outro - o que nós rimos, Janan, lembras­-te? -, que nos calhou duas vezes, em percursos diferentes; esse tinha dito: a primeira vez que os vi, meu irmão, adivinhei logo que tinham fugido juntos, mas agora, ao que vejo, parece que se casaram, os meus parabéns, minha irmã...

Queres casar-te comigo? À luz destas palavras, quantas cenas nós vimos! Quando os apaixonados, agarrados um ao oUtro, caminham sob as árvores, à noite, ou estão debaixo de um can­deeiro, ou dentro de um carro - no banco de trás, é claro -, e, atrás deles, vê-se a ponte sobre o Bósforo, ou então está a chover - influência dos filmes estrangeiros -, ou quando os jovens são deixados sozinhos, pelo velho tio indulgente ou por amigos cheios de boas intenções, ou ainda quando o jovem rico de boas famílias faz a pergunta à rapariga antes de se deixar cair de costas dentro da piscina... Como eu nunca tinha visto uma cena em que esta pergunta fosse feita a uma rapariga com colo de garça e num quarto de doente, não esperava que as minhas palavras despertassem em Janan um sentimento mágico, como nos filmes. Além disso, a minha atenção estava concentrada num mosquito desavergonhado que andava às voltas pelo quarto.

Olhei para as horas e fiquei preocupado; vi-lhe a temperatura e inquietei-me. Mostra a língua, disse-lhe; a língua dela era cor­-de-rosa e pontiaguda. Inclinei-me e agarrei-lhe a língua com os lábios. Ficámos assim por um instante, imóveis, meu Anjo.

- Não faças isso - disse-me ela. - És muito bom, mas não faças isso.

Adormeceu. Deitei-me ao lado dela, à beirinha da cama, escutando-lhe a respiração. Mais tarde, pouco antes do raiar do dia, pensei numa quantidade de coisas, repisei-as. Dir-lhe-ia, pensa bem, Janan, faço tudo o que for preciso por ti, Janan, vê lá se percebes até que ponto eu te amo... Uma quantidade de coisas deste tipo, todas na mesma ordem lógica... A certa altura pensei em inventar uma mentira para a levar de novo comigo para os autocarros, mas depois fiquei a saber aonde tinha de ir, e além disso, desde que tinha conhecido os «relógios» implacáveis do doutor Fino e passado a noite com Janan neste quarto, apercebi-me de que começava a ter medo da morte.

Tu sabes muito bem, Anjo, o pobre rapaz deitou-se ao lado da sua amada e perscrutou-lhe a respiração até ao amanhecer.

Contemplou o queixo regular e cheio de personalidade de Janan, os braços que lhe saíam da camisa de noite emprestada por Rosina, os seus cabelos espalhados pela almofada e a amoreira que, a pouco e pouco, surgia da penumbra.

Depois tudo se precipitou. Começaram a ouvir-se pequenos barulhos pela casa, passos discretos passaram em frente da porta do nosso quarto, o vento que voltara a levantar-se fez bater algures uma janela, uma vaca mugiu, um carro tossiu a pegar, depois bateram à porta. Um homem de certa idade, barbeado de fresco, com a maleta de médico na mão, com mais ar de médico do que era natural, entrou no quarto acompanhado por um cheirinho a pão torrado. Tinha os lábios muito vermelhos, como se tivesse acabado de beber sangue, e uma borbulha feia ao canto da boca. Não sei porquê, pensei que ele ia tirar a camisa de noite a Janan, a arder em febre, e pousar-lhe os lábios no pescoço e nas costas. Acabava ele de tirar o estetoscópio da horrível maleta e já eu tirava discretamente a Walther do esconderijo e saía do quarto, sem prestar qualquer atenção à mãe sempre ansiosa que continuava perto da porta. Saí da casa.

Evitando dar nas vistas, precipitei-me para as terras que o doutor Fino me tinha mostrado em visita guiada. Num lugar afastado, rodeado de choupos, onde tinha a certeza de que ninguém me veria, e donde o vento não levaria o eco, peguei na pistola e dei três tiros seguidos. Com as munições que me dera o doutor Fino, pude assim fazer um exercício de tiro tão breve que raiava a parcimónia e a desolação: das três balas que disparei a quatro passos do choupo, nenhuma atingiu o alvo. Lembro-me de ter hesitado durante muito tempo, esforçando-me desespera­damente por ordenar as ideias, com os olhos postos nas nuvens apressadas que chegavam de norte: os sofrimentos do jovem Walther!

Um pouco mais adiante erguiam-se os rochedos sobranceiros às terras do doutor Fino. Trepei-os, sentei-me lá em cima e, em vez de mergulhar em nobres pensamentos contemplando a majestade e a opulência do panorama, pensei no lamentável destino que seria o meu. Passei ali muito tempo, mas os anjos, os livros, as musas e os camponeses cheios de sabedoria que, nos momentos de desgraça, correm a ajudar as estrelas de cinema, os homens santos e os líderes políticos não se manifestaram em mim.

Só me restava voltar para casa. O médico louco de lábios escar­lates tinha bebido todo o sangue de Janan, tomava o pequeno­-almoço na companhia das jovens Rosas e da mãe. Quando me viu, o prazer de dar conselhos brilhou-lhe nos olhos:

- Meu rapaz! - disse-me ele. A minha mulher tinha apa­nhado frio, tratava-se de uma gripe danada, pior ainda, o cansaço, o esgotamento, o descuido podiam levar a uma anemia muito grave. O que tinha eu feito para lhe provocar um tal estado de cansaço? Andaria a tratá-la com pouco cuidado? As filhas e a mãe pousaram no jovem marido olhares de desaprovação. - Receitei­-lhe medicamentos bastante fortes - acrescentou o médico. - Tem de ficar de cama uma semana inteira.

Uma semana! Disse para mim que esses sete dias seriam mais do que suficientes, enquanto o médico caricatural desembaraçava finalmente o local depois de se ter empanturrado de macarrões com amêndoas a acompanhar o chá. Janan ainda dormia. Fiz a mala com as coisas que me pareciam indispensáveis, as notas que tomara e o meu dinheiro. Dei um beijo no pescoço de Janan e saí rapidamente do quarto, com a pressa do voluntário que corre em defesa da pátria. Disse a Rosina e à mãe que tinha um assunto urgente a tratar que não podia ser adiado e confiei-lhes a minha mulher. Elas garantiram-me que tratariam dela como se fosse a própria nora. Disse-lhes ainda que estaria de volta dentro de cinco dias, no máximo, e, sem lançar sequer um olhar para aquela terra de feiticeiras, de fantasmas e de bandidos que deixava para trás, nem para o túmulo do pobre rapaz de Kayseri que estava ali enterrado em vez do filho do doutor Fino, dirigi­-me para a povoação e para a estação rodoviária.

 

Eis-me de novo na estrada! Olá, velhas estações rodoviárias, autocarros desengonçados, olá, passageiros melancólicos! Sabem como é, quando de repente nos vemos privados do ritual de um hábito, por mais banal que seja, em que nos deixáramos enredar sem mesmo nos darmos conta: invade-nos a tristeza ao sentirmos que a nossa vida já não é o que era. Eu julgava que tinha escapado a esta melancolia dentro do velho Magirus que me levava para o resto da civilização, longe da cidadezinha de Çatik onde o doutor Fino tinha sub-repticiamente estabelecido o seu poder. Apesar de tudo, encontrava-me finalmente num autocarro, mesmo que ele avançasse a tossir, a espirrar, a gemer, como um velhinho sem fôlego nas estradas de montanha. Mas no coração do reino de conto de fadas que deixava para trás, Janan ardia em febre numa cama, num quarto em que a meiga que eu não tinha conseguido eliminar esperava sorrateiramente pela chegada da noite. Revi mais uma vez os meus papéis e os meus planos, na esperança de resolver o mais depressa possível os meus assuntos e regressar vitorioso para iniciar uma vida nova.

Por volta da meia-noite, quando abri os olhos, a meio ca­minho entre o sono e a vigília, e afastei a cabeça do vidro tre­mente do autocarro, pensei com optimismo que poderia talvez encontrar o teu olhar, ó meu Anjo, pela primeira vez. Mas como estava longe de mim a inspiração que poderia unir a pureza da alma e o segredo desse instante mágico! Sabia muito bem que não poderia ver-te de imediato de uma janela de autocarro. As planícies escuras, as ravinas aterradoras, os rios cor de mercúrio e as bombas de gasolina desertas, os painéis publicitários a que faltavam letras e que gabavam os méritos de cigarros ou águas­-de-colónia desfilavam pela minha janela, e eu só tinha na cabeça cálculos diabólicos, pensamentos egoístas e também o livro e a morte, e não via a luz alaranjada do vídeo, e não ouvia o res­sonar plangente do magarefe atormentado que regressava a casa depois de ter feito o seu massacre quotidiano no matadouro.

A cidadezinha empoleirada na montanha de Alacaelli - onde o autocarro me deixou ao romper do dia - tinha já ultrapassado não só a fronteira do Verão, mas também do Outono, e instalara­-se rapidamente no Inverno. No cafezinho onde entrei para es­perar pela hora de abertura das repartições, um aprendiz que lavava os copos e preparava o chá, e que parecia desprovido de testa, com uma cabeleira que lhe começava quase nas sobran­celhas, perguntou-me se eu também tinha vindo para ouvir o Xeque. Disse-lhe que sim, só para passar o tempo. Então o rapaz ofereceu-me um chá muito forte e fez uma pausa para partilhar comigo os prazeres de evocar os talentos do Xeque, que curava os doentes e tornava fecundas as mulheres estéreis, e ainda todos os milagres que ele obrava: torcia uma colher só com o poder do olhar, abria uma garrafa de Pepsi Cola com o simples contacto do dedo na cápsula.

Quando saí do café, o Inverno tinha-se ido embora mas, mais uma vez, o Outono fora escamoteado: começava um dia quente de Verão com as suas nuvens de moscas. Tal como os homens de­cididos e circunspectos que resolvem os seus problemas en­frentando-os de caras, dirigi-me directamente aos Correios e, preso de forte emoção, examinei atentamente os funcionários - machos e fêmeas - sonolentos, que liam o jornal, bebiam chá e queimavam o cigarrinho por trás dos guichés. Mas ele não estava lá. A empregada, com ar de irmã mais velha afectuosa, a quem fizera a pergunta revelou-se uma verdadeira bruxa: antes de me informar que o senhor Mehmet Buldum tinha acabado de sair para distribuir o correio, fez-me suar sangue - «Diz o senhor que são parentes? Qual é o vosso grau de parentesco? Quer esperar aqui por ele? Mas, caro senhor, estamos dentro do horário de trabalho, volte mais tarde.» -, a ponto de eu me ver obrigado a contar-lhe que era um amigo do regimento, que tinha vindo de muito longe - de Istambul - e que tinha amigos muito influentes na Direcção Geral dos Correios. E as­sim, com esta demora, Mehmet Buldum, que acabara de sair da estação dos Correios - havia um instantinho -, teve tempo de desaparecer nas ruas e nos bairros que eu percorri com deses­pero e cujos nomes confundia.

Perguntando sempre a toda a gente - bom dia, minha senhora, Mehmet, o carteiro, já passou? -, consegui perder-me nas ruelas estreitas dos bairros principais da cidadezinha. Um gato tricolor lavava-se preguiçosamente ao sol. Uma mulher jovem, bastante bonita, que arejava os lençóis e as fronhas na varanda, trocava olhares cúmplices com os empregados da câmara que estavam a encostar uma escada a um poste de electricidade. Cruzei-me com um garoto de olhos pretos que adivinhou imediatamente que eu era forasteiro: «Que é que quer?», disse-me ele empinando-se como um galo. Se Janan estivesse aqui, teria travado de imediato amizade com este reguila, teria metido habilidosamente conversa com ele e eu diria para os meus botões que estava apaixonado por ela, não só porque era bonita, irresistível ou misteriosa, mas porque era capaz de lidar tão facilmente com as pessoas.      

Instalei-me a uma mesa do café Esmeralda, no passeio, à sombra do castanheiro e do monumento a Atatürk. Um pouco mais tarde já estava a ler o Correio de Alacaelli: a farmácia Pinar tinha mandado vir de Istambul um novo remédio contra a prisão de ventre, produto dos laboratórios Stlops; o novo treinador transferido do clube Bolu-Sport e contratado pelo clube da juventude desportiva «Tijolo» de Alacaelli, que se preparava activamente para a nova temporada, tinha chegado na véspera. Eu chegara à conclusão de que devia haver uma fábrica de tijolos na região quando vi o senhor Mehmet Buldum a entrar na câmara municipal, resfolegante como um boi, com a enorme sacola ao ombro, e foi grande a minha decepção: aquele Mehmet, esfalfado, de gestos lentos, não tinha nada do Mehmet que Janan não conseguia esquecer. Portanto, chegava ao fim o meu trabalho na cidade de Alacaelli e, como tinha um montão de jovens Mehmet na lista, não me restava mais nada a fazer senão deixar entregue a si mesma esta modesta e pacífica povoação e partir o mais depressa possível. Mas o diabo tentou-me a que esperasse pela saída de Mehmet do edifício da câmara.

Quando ele atravessou a rua no seu passo curto e rápido de carteiro, para ir para o passeio à sombra, barrei-lhe o caminho chamando-o pelo nome; olhou para mim, aturdido; abracei-o, beijei-o nas duas bochechas e ralhei-lhe por não estar a conhecer o seu melhor amigo do regimento. Ele sentiu-se tão culpado que se sentou imediatamente à minha mesa e, deixando-se levar por este jogo impiedoso «tenta pelo menos adivinhar o meu nome!», lançou-se numa série de suposições. Ao cabo de um momento mandei-o calar, num tom severo, inventei um nome para mim e contei-lhe que tinha amigos bem colocados nos Correios, mas ele era um rapaz íntegro porque não se interessava absolutamente nada pelos Correios e pelas possibilidades de subida de posto. O calor e o peso da sacola fizeram-no transpirar, pelo que deitava olhares de gratidão à garrafa de limonada Budak que o em­pregado acabara de descapsular e servir, mas só pensava em li­vrar-se o mais depressa possível deste colega de regimento. Eu, talvez pela falta de sono, sentia qualquer coisa que se asseme­lhava à raiva e que fazia a minha cabeça andar agradavelmente à roda.

- Parece que leste um livro! - disse eu num tom muito sério, enquanto bebia o chá. - Soube que o tinhas lido e que por vezes o lias em público.

            Por um instante, a cara dele ficou mais cinzenta do que a cinza. Percebera muito bem do que se tratava.

            - Onde encontraste esse livro?

            Recompôs-se rapidamente: tinha sido um parente dele, hospitalizado em Istambul, quem descobrira o livro no escaparate de um alfarrabista; levado pelo título, pensando que se tratava de um livro sobre a saúde, comprara-o; como não se decidia a deitá-lo fora, guardou-o, tendo-o depois oferecido a Mehmet.

Momento de silêncio. Um pardal pousou numa das cadeiras vazias, depois voou para outra. Eu examinei o carteiro, que tinha o nome escrito na gola da farda, em letras pequeninas esmera­damente traçadas. Era talvez um pouco mais velho do que eu. Este homem, tal como eu, tinha encontrado no seu caminho o livro que perturbara o seu universo e mudara o sentido da sua vida; tinha sofrido um choque de que eu ignorava a natureza, mas eu não conseguia decidir se queria sabê-lo ou não. Tínhamos alguma coisa em comum, ele e eu, que fazia de nós privilegiados ou vítimas, o que me irritava muito. Como eu notasse que ele não pretendia minimizar a importância do assunto, livrando-se dele como tinha feito com a tampa da garrafa de limonada, imaginei que o livro ocupasse um lugar muito especial no seu coração. De que género de homem se tratava? As suas mãos eram notavelmente belas, com os dedos compridos e finos. Tinha uma tez que se poderia qualificar de delicada, um rosto expressivo e olhos amendoados que começavam a revelar o enervamento e até a inquietação do homem. Poder-se-ia dizer que ele, tal como eu, tinha sido apanhado na armadilha do livro? O seu universo teria sido virado de pernas para o ar? Também ele passaria noites em que a solidão que emanava do livro o mergulhava na tristeza?             - Não importa - disse-lhe eu. - Fiquei muito contente por te voltar a ver, mas está na hora do meu autocarro.

Perdoa-me a rudeza, meu Anjo, mas de repente senti-me capaz de fazer uma coisa que não estava prevista no meu plano: estive prestes a revelar ao carteiro a miséria do meu próprio coração, como quem exibe uma ferida, só para que ele me abrisse também a sua alma. Não que eu deteste estes rituais de desabafo que, nas bebedeiras, acabam em tristeza, em lágrimas e num sentimento de fraternidade não muito convincente - pelo contrário, adoro fazer isto com os amigos nas tabernas rascas do meu bairro. Mas, nesse momento, só queria pensar em Janan. Só desejava uma coisa: ficar sozinho e virar-me para o meu fantasma de felicidade conjugal vivido com Janan. Ainda mal me endireitara na cadeira e já o meu camarada de regimento dizia: - A esta hora não parte nenhum autocarro da cidade.

            Pois é, o homem não era estúpido! Satisfeito por me ter encrencado, acariciou a garrafa de limonada com as suas mãos finas e belas.

Hesitei um instante entre o desejo de sacar da arma e de crivar de balas a sua pele delicada e o de me tornar o seu melhor amigo, o seu confidente, o seu companheiro de acaso. Poderia também escolher uma solução intermédia, limitar-me a feri-lo no ombro, por exemplo, para logo a seguir me arrepender e o levar ao hospital; depois, à noite, ele - com o braço ao peito - e eu divertir-nos-íamos loucamente abrindo uma a uma todas as cartas da sua sacola.

- Não importa - acabei por lhe dizer. Pus com elegância o dinheiro da despesa na mesa, depois virei-lhe as costas e afastei­-me. Não conseguia descobrir a que filme tinha ido buscar esta cena, mas saí-me bastante bem.

Afastei-me naquela passada rápida de homem que tem assuntos importantes a resolver, com ar ganhador, porque ele estava sem dúvida a seguir-me com os olhos. Passei em frente do monumento a Atatürk, alcancei o passeio estreito e som­breado, dirigindo-me para a estação rodoviária. Dizer estação rodoviária era uma maneira de falar porque, no caso de haver um autocarro com a pouca sorte de ter de passar a noite nesta terreola rasca de nome Alacaelli - «Nesta cidade», tÍnha dito o meu amigo carteiro -, não se espere encontrar um abrigo para proteger o pobre veículo da neve e da chuva. Um tipo com ar muito digno, condenado a passar a vida a vender bi­lhetes numa espécie de gaiola, informou-me com um prazer evidente que não haveria qualquer autocarro antes do meio­-dia. Eu, é claro, não lhe disse por minha vez que a careca dele tinha exactamente a mesma cor alaranjada das pernas da linda rapariga que ilustrava o calendário da Good- Year que estava por trás dele.

Por que é que eu estou assim tão furioso, dizia para mim, por que me tornei tão resmungão, diz-me, meu Anjo. Não sei quem tu és, não sei nada de ti. Vigia-me pelo menos, aconselha-me prudência, para que eu não me deixe desencaminhar pela cólera, ajuda-me a pôr um pouco de ordem nas desgraças e nos azares deste mundo, como o infeliz pai de família que tem de lutar para proteger o seu lar! Ajuda-me a encontrar o mais depressa possível a minha ]anan, a arder em febre!

Mas a cólera que me dominava não se acalmava. Seria isto o que acontecia a um jovem de vinte e dois anos que ganhara o hábito de se passear com uma Walther no bolso?

Consultei as minhas notas e foi-me fácil descobrir a rua e a loja em questão: retrosaria Confiança. As toalhas bordadas à mão, as luvas, o calçado para crianças, as rendas e os rosários expostos com cuidado na pequena montra constituíam uma alusão à poesia de uma época passada que teria encantado o doutor Fino. Preparei-me para entrar na loja; quando vi o homem a ler o Correio de Alacaelli por trás do balcão, hesitei e arrepiei caminho: seriam os habitantes desta terreola todos tão convencidos ou seria impressão minha?

Fui sentar-me num café, com a leve sensação de derrota. Bebi uma limonada Budak tentando pôr a cabeça em ordem. Depois levantei-me e fui comprar à farmácia da Fonte uns óculos escuros que tinha visto na montra cheia de pó, quando passava no passeio abrigado pelas árvores. O laborioso farmacêutico já tinha recortado do jornal a publicidade do laxante e tinha-a colado ao vidro da montra.

Com os óculos escuros encavalitados no nariz, senti-me capaz de entrar na retrosaria Confiança, sentia que já fazia parte dos autóctones confiantes e convencidos. Em voz baixa, pedi para ver luvas. Era o que a minha mãe fazia sempre; nunca dizia: «Quero umas luvas de pele para mim», ou «luvas de lã número sete para o meu filho que está no serviço militar», não, dizia simples­mente: «Quero ver luvas!», o que provocava na loja uma pertur­bação que só lhe podia trazer vantagem.

Mas o meu pedido deve ter soado como música maviosa aos ouvidos do homem que, por todos os sinais, era ao mesmo tempo o patrão e o caixeiro. Com uma desenvoltura que lembrava a aplicação de uma dona de casa meticulosa, e revelando ao mesmo tempo uma ordem próxima da obsessão de classificar de um militar com ambições de chegar ao estado-maior, o homem fez­-me o estendal de toda a sua mercadoria, que tirava de saquinhos cosidos à mão, de gavetas e mesmo da montra. Devia rondar os sessenta anos; tinha uma barba de vários dias e uma voz cuja segurança não traía o seu feiticismo pelas luvas. Mostrou-me luvinhas de mulher, tricotadas numa lã fiada à mão, com fio de três cores diferentes para cada dedo; virou do avesso luvas de lã grossa, as preferidas pelos pastores, para me mostrar o bocado de feltro que reforçava a palma; no respeitante a todas aquelas luvas, que ele mandava tricotar às camponesas, não era utilizado qualquer produto químico para tingir a lã. As pontas dos dedos eram reforçadas, porque era aí que as luvas de lã se gastavam mais. Se eu desejasse um motivo florido no punho, deveria escolher um par tricotado em lã tingida unicamente com casca de noz e ornada de rendas. Ou então, no caso de preferir algo de muito original, teria de tirar os óculos escuros para examinar aquela maravilha cortada em pele de cão - dos cães da região de Sivas a que chamam kangals.

Eu examinei-as, depois voltei a pôr os óculos:

            - Senhor Orfano - disse-lhe eu (com efeito, era este o ape­lido que o homem utilizava nas cartas de denúncia que enviava ao doutor Fino) -, quem me manda é o doutor Fino, e ele não está nada contente consigo.

            - Mas porquê? - disse ele sem se perturbar, como se eutivesse simplesmente criticado a cor de umas luvas.

            - Mehmet, o carteiro, é um cidadão inofensivo. Por que quer prejudicá-lo ao fazer uma denúncia contra ele?

- Não é tão inofensivo como isso - contrapôs, e deu-me explicações a esse respeito no mesmo tom que utilizara ao mos­trar-me as luvas.

Segundo ele, Mehmet continuava a ler o livro e fazia-o de uma maneira que atraía as atenções. Era evidente que tinha na cabeça ideias tão negras quanto nefastas, ligadas ao livro e a todos os sortilégios que o livro tentava propagar. Um dia tinha sido apanhado a entrar em casa de uma viúva, sem mesmo bater à porta, com o pretexto de entregar uma carta. Outra vez tinha sido visto num café, encostadinho a um rapaz da escola comunal, fazendo de conta que lhe lia um romance ilustrado. Mas era uma banda desenhada, é claro, dessas que metem tudo no mesmo saco, bandidos, ladrões, canalhas, santos e marabutos. «Isto não é suficiente?», perguntou-me ele.

Guardei silêncio, incapaz de decidir.

- Se hoje em dia, nesta cidade - sim, ele disse «cidade» -, levar uma vida austera é considerado vergonhoso, se as senhoras que pintam as mãos com hena são desprezadas, a culpa é desse carteiro e da televisão nos cafés e de tudo o que ela nos traz da           América, e dos autocarros também. Em que autocarro vieste?

Disse-lhe.

- O doutor Fino é um grande homem, sem dúvida nenhuma - afirmou. - As ordens dele, as mensagens dele dão-me paz de espírito, graças a Deus! Mas, meu rapaz, diz-lhe para não me mandar cá mais ninguém. - Falava e arrumava a mercadoria. - Diz-lhe também que apanhei o carteiro a masturbar-se nas latrinas da mesquita Mustafa Papo

            - Ainda por cima com aquelas mãos tão bonitas! - disse­-lhe eu, e saí da loja.

Julgava que me sentiria melhor na rua mas, mal pus o pé na calçada cheia de sol, pensei com terror que ainda tinha de passar duas horas e meia naquela terreola.

Esperei, num estado de inconsciência, de esgotamento e, sobretudo, de sonolência, com o estômago a abarrotar dos copos de tília, de chá preto, de limonada Budak que embor­cava, com a cabeça cheia das noticiaÚnhas do Correio de Ala­caelli; com os olhos saturados dos tijolos dos paços do concelho, dos vermelhos e dos roxos do painel publicitário em plástico do banco agrícola, que apareciam para logo desaparecerem como uma miragem, os ouvidos a transbordarem de gorjeios de pássaros, de barulhos de geradores e de ataques violentos de tosse. Quando o meu autocarro finalmente chegou e descre­veu pomposamente uma curva à nossa frente, precipitei-me na direcção da porta para a abrir mas vi-me puxado e empurrado de todos os lados, afastado pelas pessoas - que, graças a Deus, não deram pela minha Walther! -, para dar passagem ao Xeque que descia do autocarro. A sua cara rosada iluminada pela luz divina, o ar grave e digno, como se sofresse por todos os que, entre nós, chafurdavam no pecado, mas claramente con­tentíssimo com a sua pessoa e com o interesse que suscitava, passava diante de mim em passadas lentas, baloiçando-se ligei­ramente. Para quê puxar da arma, disse para os meus botões ao sentir na anca o peso da Walther, e trepei para o autocarro sem me preocupar mais com os outros.

Enquanto esperava sentado no lugar número trinta e oito com a sensação de que o carro nunca mais partiria e que toda a gente acabaria por me esquecer, não pude deixar de observar as pessoas que tinham vindo receber o Xeque. Reparei também no rapaz do café perdido entre a multidão. Ao chegar a sua vez, o apren­diz de empregado pousou respeitosamente os lábios na mão do Xeque e preparava-se para a levar à testa quando o carro pa­rado estremeceu. Foi então que vi, entre as cabeças da multidão que ondulava como uma vaga, a do retroseiro desencantado. Furava por entre a multidão como um assassino decidido a matar um líder político, e, quando o nosso autocarro se afastava, adivinhei bruscamente que era para mim que ele se dirigia e não para o Xeque.

Já deixáramos a cidade muito para trás quando pensei que deveria esquecer tudo. O sol implacável não me largava o rasto, como um ás da vigilância a seguir-me, apanhando-me no lugar depois de cada árvore, depois de cada curva, assando-me a nuca e os braços, e eu ia repetindo: esquece tudo, deixa lá. Mas quando o autocarro avançava preguiçosamente e emitindo ruídos nasais por uma planície desolada e amarela, onde não se viam casas nem chaminés, nem árvores nem pedras, e os meus olhos, cansados pela falta de sono, eram encandeados pela luz ofuscante, compreendi que, em vez de esquecer tudo, era dominado ainda mais profundamente por um sentimento novo: as cinco horas que passara naquela localidade pela simples razão de que, na carta de denúncia, o retroseiro, falando do meu amigo carteiro, tinha afirmado que ele se chamava Mehmet, tinham bastado para de­finir, como direi?, a cor e o ritmo das minhas relações futuras com as pessoas que encontraria, as cenas que viveria, em todas as outras localidades aonde fosse, animado pelo espírito de de­tective amador. Assim, exactamente trinta e seis horas depois de ter deixado Alacaelli, quando esperava o meu autocarro em plena noite, numa cidadezinha, ou antes, numa aldeia, coberta de poeira e de fumo, uma fantasmagoria sem qualquer ligação com a realidade, e mastigava uma piza de queijo tanto para passar o tempo como para acalmar o rato que me roía o estô­mago, senti que uma sombra com más intenções se aproximava de mim. Tratava-se do retroseiro amador de luvas? Não. Da sua alma? Não. De um comerciante desencantado e enfurecido? Congeminava que talvez fosse Seiko quando a porta da retrete bateu com força, a aparição mudou de aspecto e o fantasma de Seiko vestido com um impermeável verde se transformou num homenzito vulgar, também de impermeável. E quando se lhe juntaram a mulher e uma filha exaustas, de lenços nas cabeças, carregadas com sacos de plástico, perguntei a mim mesmo por que tinha imaginado Seiko com um impermeável cinzento-esverdeado. Talvez porque tivesse reparado que, na multidão da estação rodoviária, o meu retroseiro usava um da mesma cor.

Noutra ocasião, a ameaça já não surgiu sob o aspecto do fan­tasma de Seiko, mas sob o de uma fábrica de moagem. Eu con­seguira saborear um sono profundo num autocarro que, por uma vez na vida, era silencioso, e depois dormir ainda como uma pe­dra noutro autocarro mais estável e com melhores amortecedores, e, de manhã, dirigira-me de imediato a essa moagem na espe­rança de obter resultados rápidos e para me encontrar lá com um jovem contabilista denunciado por um pasteleiro; tinha utilizado o mesmo estratagema, apresentando-me como seu amigo de re­gimento. Esta mentira, que sempre funcionara - já que os diversos Mehmet de quem andava à procura tinham todos vinte e três ou vinte e quatro anos -, deve ter parecido tão plausível a um operário coberto de farinha da cabeça aos pés que correu logo aos escritórios da direcção, com os olhos a brilharem de amizade, de fraternidade e de surpresa, como se tivesse feito efectivamente o seu serviço militar na mesma companhia que eu. Eu afastei-me um pouco para um lado e, não sei porquê, senti uma estranha ameaça no ar. Um tubo enorme de ferro, posto em movimento por um motor eléctrico, atravessava a moagem - que, a bem dizer, não passava de um grande entreposto ­

e girava por cima da minha cabeça emitindo barulhos inquie­tantes; os fantasmas esbranquiçados e assustadores dos operários, por vezes com um cigarro a luzir na boca, evoluíam com lentidão na luz pálida do entreposto. Notei imediatamente que os fan­tasmas me olhavam com hostilidade e falavam uns com os outros apontando para mim. Eu, porém, metido no canto onde me tinha refugiado, fazia de conta que não era nada comigo. Um pouco depois, no momento em que pressenti a aproximação do gigan­tesco comboio de rodados e logo a seguir o avistei entre as mu­ralhas de sacos de farinha, um dos fantasmas laboriosos veio ter comigo a coxear perguntando-me se eu estava a pensar em «vi­ciar os dados». O barulho impedia-o de me ouvir; tive de gritar para lhe explicar que nunca jogava aos dados. Ele respondeu-me que não se tratava de jogo nenhum, que estava simplesmente a perguntar-me que ventos me tinham levado até ali. Eu utilizei o mesmo tipo de linguagem para me explicar: que gostava muito do meu amigo do tempo da tropa, Mehmet, que era um tipo às direitas que gostava de uma boa piada e um amigo em quem se podia confiar. Quanto a mim, disse-lhe eu, percorria a Ana­tólia a vender apólices de seguros de vida e outros, e que me tinha lembrado de que ele trabalhava nesta moagem. O fantasma enfarinhado quis saber pormenores da minha profissão: se havia ladrões entre os tipos dos seguros, vigaristas miseráveis, maçó­nicos, homossexuais prontos a dar ao gatilho (acho que o barulho não me deixava perceber bem, dizia eu para os meus botões) e ainda outros inimigos da religião e da pátria sempre prontos a «lixarem um gajo». Tive de me explicar demoradamente. Ele ouviu-me; o seu olhar tornou-se amigável. Acabámos por con­cluir que era tudo a mesma coisa, em todas as profissões: havia cidadãos honestos neste mundo, como havia também sacanas e filhos da puta que não se sabe muito bem o que lhes vai na cabeça. Voltei a falar-lhe do meu amigo da tropa: por que estava a demorar tanto? «Olha, meu velho!», disse-me o fantasma ar­regaçando as calças e mostrando-me uma perna esquisita: «Meh­met Okur não é tão idiota que fosse para o exército com uma perna destas, percebeste?» Então, o que era que eu queria? Fui apanhado mais pela surpresa do que pela confusão, mas foi fácil desenvencilhar-me, embora também soubesse que a minha explicação não era muito convincente: devo ter confundido os nomes e os endereços, disse-lhe eu.

Tive a sorte de me raspar sem levar uma tareia e, mais tarde, ao devorar um delicioso folhado da região que se me derretia na boca, na loja de um dos nossos informadores na localidade, dizia de mim para comigo que o Mehmet Coxo não tinha nada o aspecto de ter lido o livro, mas a experiência já me ensinara que estávamos muito enganados se pensássemos que poderíamos julgar uma pessoa ao primeiro olhar.

Assim, por exemplo, na cidadezinha de Incir Pasa, com as suas ruas cheirando a tabaco, o jovem bombeiro cujo nome constava num relatório não era o único a ter lido ali o livro, toda a companhia de bombeiros desse município o tinha estudado com uma seriedade surpreendente. Celebrava-se o aniversário da libertação da cidade e o fim da ocupação grega, por isso tive a oportunidade, na companhia de algumas crianças e de um molosso muito dócil, de ver os nossos amigos bombeiros, de capacete onde tinha sido preso um minifogareiro a gás, desfilando em passo de corrida na praça, com as chamas a jorrarem-lhes da cabeça e cantando em coro: «Fogo, fogo, a nossa pátria está a ser pasto das chamas!» Em seguida abancámos à mesa em volta de um fricassé de cabrito. Os nossos amigos bombeiros, todos felizes da vida e todos pimpões nas suas camisas amarelas e vermelhas de mangas curtas, murmuravam-me de quando em quando algumas palavras do livro, talvez por brincadeira, talvez como um cumprimento à minha pessoa. Quanto ao livro, que eles depois me mostraram, encontrava-se por cima do assento do condutor do seu único carro, como se do Corão se tratasse. Teria sido eu que compreendera mal o livro, ou estes bombeiros, convencidos de que os anjos - e não um anjo solitário - desciam do céu nas noites brilhantes, deslizando por entre as estrelas, para inspirarem o cheiro a tabaco da cidade, e se manifestavam aos infelizes e aos aflitos com o objec­tivo de lhes mostrarem o caminho da felicidade?

Tirei o retrato na loja de um fotógrafo de uma cidadezinha; noutra, fui a um médico mandar examinar os pulmões; numa terceira, não comprei o anel que experimentei num ourives local, e, de cada vez que deixava esses lugares melancólicos e poei­rentos, com as suas casas sem reboco, sonhava que um dia vol­taríamos a eles, eu e a Janan, para gravarmos numa fotografia a nossa felicidade, para fazermos um exame cuidadoso aos cachos esplêndidos dos pulmões dela, para comprarmos o anel que nos uniria até à morte, e não para descobrirmos quem eram na realidade o fotógrafo Mehmet, o doutor Ahmet ou o ourives Rahmet, nem para avaliar a paixão com que eles tinham lido o livro.

Em seguida, dava uma volta pela localidade, censurava os pombos desavergonhados que sujavam o busto de Atatürk, deitava uma olhadela ao relógio, apalpava a Walther no meu bolso, e dirigia-me para a estação rodoviária, e era nessas alturas que tinha por vezes a sensação de ser seguido por homens maus, vestindo impermeáveis, por esse Seiko tão zeloso e por esses fantasmas dos «relógios». Aquela longa silhueta que se preparava para entrar no autocarro de Adana e que saiu quando me apercebeu não seria Movado, o dos Serviços de Informações? Sim, com certeza que era ele, tinha de mudar de destino imediatamente - o que eu fazia -, e então escondia-me nas retretes malcheirosas e, quando esperava desesperadamente vislumbrar o Anjo pela janela do autocarro da companhia O Rápido onde tinha conseguido enfiar-me discretamente no último minuto, sentia pesar sobre mim um olhar que me ar­repiava os cabelos da nuca; voltava-me e decidia que era Serki­sof, sentado lá atrás de tudo, vigiando-me com olhos pérfidos. Cheguei a um tal ponto que, no restaurante com mesas de fórmica onde paráramos a meio da noite, eu largava o copo de chá meio cheio e ia esconder-me nos campos de milho, onde contemplava as estrelas no céu azul-marinho; ou, se fosse du­rante o dia, entrava numa loja a sorrir e com um fato branco e saía de lá com um casaco roxo, umas calças de veludo e o sem­blante carregado. Aconteceu-me muitas vezes deitar a correr para a estação rodoviária, abrindo caminho por entre a multidão, perseguido por sombras inquietantes.

Depois de muitas voltas e contravoltas, lá me convencia de que tinha despistado os fantasmas que me perseguiam e que não havia razões para que os «relógios» desnorteados me crivassem de balas; então, os olhares hostis que antes não me largavam desa­pareciam como por encanto, substituídos pelos olhares com­preensivos de citadinos amigáveis, felizes por me verem no meio deles. Numa ocasião, para ter a certeza de que um certo Meh­met, que tinha ido ver o tio a Istambul, não era o nosso Mehmet, acompanhei até casa uma vizinha dele, uma honrada e faladora mulher que vinha do mercado. Nos sacos de rede e nos outros, que eu a ajudava a levar, as beringelas gordinhas, os tOmates alegres e os pimentões pontiagudos brilhavam ao sol enquanto a boa senhora gabava os méritos das pessoas que se põem à pro­cura de um colega da tropa sem se preocuparem com as esposas doentes que os esperam em casa e explicava-me que a vida era muito bela.

Talvez fosse verdade. Em Kara Çali, no jardim do restaurante O Bom Garfo, à sombra de um imenso plátano, saboreei um excelente deuner com um cheirinho bom a tomilho, tendo como acompanhamento um puré de beringelas. Um vento ligeiro, que tanto fazia que as folhas do plátano se mostrassem do direito como do avesso, trazia-me da cozinha o aroma da massa fresca, tão agradável como uma lembrança feliz. Perto de Afyon, numa cidadezinha bastante agitada cujo nome esqueci, os meus passos levaram-me - como acontece tantas vezes - até uma confeitaria onde descobri frascos de caramelos cor de clementina ou rosa­-velho e uma matrona tão redonda e lisa como os seus frascos; e, quando me virei para a caixa, uma versão de dezasseis anos da matrona, mais pequena e menos colorida, de mãos delicadas, boca minúscula, maçãs do rosto pronunciadas, olhos ligeiramente amendoados, uma beldade de miniatura oriental sem paralelo, levantou a cabeça da fotonovela que estava a ler e, coisa incrível, pôs-se a olhar para mim com um sorriso provocante, como fazem as mulheres libertas nos filmes americanos.

Uma noite, numa estação rodoviária com uma iluminação como que filtrada, lembrando a paz e o sossego das salas das moradias elegantes de Istambul, joguei às cartas com três jovens oficiais na reserva que acabara de conhecer. Jogámos a um jogo que eles próprios tinham inventado e a que chamavam «O Xá Enganou-se». Tinham recortado as cartas dos maços de cigar­ros Yenice, onde tinham desenhado xás, sultões, dragões, djinns, namorados, anjos, e cada um dos anjos, que faziam de jokers e simbolizavam as viagens e o afecto, representava, a julgar pelos gracejos amistosos que os alegres brincalhões trocavam entre eles, ou a filha dos vizinhos, ou o grande amor da adolescência, ou ainda uma estrela de cinema ou uma cantora de cabaré a quem só os ligava os fantasmas da masturbação, como parecia ser o caso do mais brincalhão deles. Atribuíram-me o quarto anjo e deram provas de bastante delicadeza não me perguntando o que ele simbolizava para mim, delicadeza de que são raramente inca­pazes os nossos próprios amigos mais inteligentes e compreen­sivos.

Entre as cenas de felicidade de que fui testemunha, houve uma que para mim foi especialmente penosa, numa altura em que era obrigado a ouvir as elucubrações dos informadores desen­cantados do doutor Fino quando andava à procura do verda­deiro Mehmet, no meio dos Mehmet de toda a espécie espalhados por todos os cantos perdidos, por trás de portas trancadas, de muros de jardim eriçados de silvas e cobertos de hera, no fim de caminhos tortuosos, ou quando só pensava em fugir dos ho­mens de impermeáveis bem reais e dos malévolos «relógios»imaginários nos terminais rodoviários e nos largos das locali­dades.

Havia cinco dias que eu saíra para a estrada; bebera raki que o editor de A Voz Livre de Çorum me oferecia em copos de chá para que eu compreendesse melhor os seus poemas e soubera que ele já não publicava extractos do livro no seu jornal, na rubrica «Casa e Família», porque percebera que isso não ajudaria a resolver o problema da linha férrea nem a acelerar a construção de uma linha Çorum-Amasya. Mais tarde, na cidade seguinte, depois de ter passado seis horas a seguir várias pistas e moradas, fiquei furioso quando descobri que o informador desencantado tinha inventado de uma ponta à outra um leitor do livro, que pusera a morar numa rua imaginária, com o único fito de sacar dinheiro ao doutor Fino, e tinha partido de imediato para Amasya, onde a noite cai muito cedo, já que a cidade se situa no vão de altas montanhas escarpadas. Já tinha identificado metade dos Mehmet da minha lista sem ter chegado a qualquer resultado, e a ansiedade que despertava em mim a imagem de Janan ainda a arder em febre na cama causava-me formigueiros nas pernas, de tal maneira que decidi apanhar o primeiro autOcarro para a costa do Mar Negro, logo depois de ter verifi­cado a última morada de que dispunha, sempre à procura do meu amigo do regimento, e de ter descoberto uma vez mais que não se tratava do nosso Mehmet.

Atravessei uma ponte sobre um rio que se chamava Rio Verde, de águas tmultuosas e absolutamente nada verdes, e entrei num bairro situado perto de vários túmulos cavados na encosta da montanha. Velhas e majestosas mansões indicavam que, noutros tempos, neste bairro que o pó acinzentara, tinham vivido pessoas ricas, quiçá paxás ou grandes latifundiários. Bati à porta de uma dessas vivendas e perguntei pelo meu colega de regimento. Dis­seram-me que, de momento, não se encontrava, mas que estava já de volta a casa, de carro, e convidaram-me a entrar. Lá dentro, fui testemunha de várias cenas de uma vida familiar de felicidade sem mancha:

  1. O pai, advogado, que se encarregava gratuitamente dos processos dos pobres, acompanhava à saída um cliente cujas des­graças o comoviam muito e tirava da sua esplêndida biblioteca uma recolha de jurisprudência que tencionava consultar.
  2. Quando a mãe, que conhecia bem o processo em questão, me apresentOu ao pai sonhador, à irmã de olhar descarado, à avó hipermetrópica e ao filho mais novo, embrenhado na sua colecção de selos - séries nacionais -, todos foram invadidos de alegria e me manifestaram aquela hospitalidade bem nossa que os via­jantes ocidentais descrevem.
  3. A mãe e a filha descarada submeteram-me educadamente a um verdadeiro interrogatório enquanto esperávamos que os folhados de cheirinho delicioso da Tia Süveyde ficassem bem tostadinhos, depois discutiram entre elas o romance de André Maurois Climats.
  4. O filho mais velho, muito trabalhador, que se chamava Mehmet e que passara o dia atarefado no pomar de macieiras, dis­se-me com toda a franqueza que não se lembrava de mim no ser­viço militar, mas, cheio de boa vontade, fez todos os esforços para encontrar temas que alimentassem a conversa, e conseguiu-o de tal maneira que tivemos a oportunidade de discutir os prejuízos enormes causados ao nosso país pelo abandono da política de ex­tensão da rede nacional dos caminhos-de-ferro e de encoraja­mento das cooperativas nas nossas aldeias.

Estas pessoas nunca devem fazer sexo, pensei para mim quan­do saí daquela vivenda abençoada pelos deuses e me vi perdido nas trevas da rua. Mal batera à porta deles e no próprio instante em que os vira, tinha logo percebido que o nosso Mehmet não vivia ali. Nesse caso, por que razão tinha passado tanto tempo lá dentro, deixando-me seduzir por aquelas imagens saídas direi­tinhas da publicidade ao crédito de habitação? Por causa da Walther, pensei, ao sentir a arma contra a minha anca. Inter­roguei-me sobre se não deveria dar meia-volta e ir descarregar as minhas balas de nove milímetros nas janelas respirando paz daquela moradia da felicidade; nem sequer se tratava de uma ideia que eu formulasse, mas mais de um cochicho destinado a adormecer o lobo escuro que estava à espreita na floresta negra do meu espírito. Faz ó-ó, lobo mau, faz ó-ó! Oh, sim, durmamos todos! Uma loja, uma montra, um anúncio publicitário. Os meus pés, tão dóceis como o cordeiro que tem medo do lobo mau, levavam-me não sei para onde. Mas para onde? Cine Prazer, Farmácia da Primavera, Frutos Secos-Avelãs-Pistácios da Morte. Por que é que aquele marçano me olha assim, de cigarro na mão? Depois uma mercearia, depois uma pastelaria, e eis-me contem­plando numa montra os frigoríficos Artchelik, os fogões Aygaz, os armários, as poltronas, os divãs, as panelas esmaltadas, os candeeiros, os fogões Modem e, quando me vi frente a frente com um cão de pêlo comprido irradiando felicidade - era um bibelô empoleirado num rádio Artchelik -, vi que já não poderia controlar-me por mais tempo.

Foi por isso que desatei a chorar baba e ranho, a meio da noite, meu Anjo, diante de uma montra da cidade de Amasya, entalada entre montanhas. Por que choras, pequenino, pergunta-se a uma criança. Ela chora por causa de um dói-dói muito fundo, mesmo no fundo dela, mas eu responderei que ela chora porque perdeu o seu afia-lápis azul, e pronto, era esse tipo de tristeza que me invadia quando olhava para as mercadorias na montra. Pouco faltou para me tornar um assassino, sem uma razão qualquer, e me condenar a viver com essa dor na alma para o resto dos meus dias. Quando for comprar pepinos assados à loja dos frutos secos ou quando vir o meu reflexo na montra de uma mercearia, e viver uma vida de felicidade entre os fogões e os frigoríficos, esta maldita voz assolapada vai fazer-se ouvir. O negro lobo mau vai arreganhar os dentes e dizer: és culpado! Quando já houve um tempo, meu Anjo, em que eu tinha fé total na vida e na neces­sidade de levarmos a bem a vida. E agora, preso entre Janan, em quem não podia ter confiança, e Mehmet, que deveria liquidar logo que o visse, a crer no que ela contava, as minhas únicas bóias de salvação eram a minha Walther e este sonho obscuro que os meus cálculos tortuosíssimos e dissimulados me prometiam. Desfilaram lentamente diante dos meus olhos, ao som longín­quo de um canto fúnebre, imagens de frigoríficos, de espreme­dores de laranjas e de mobiliário a crédito.

O tipo valente que, nos filmes da nossa terra, se interessa pelas desgraças dos garotos que fungam de desgosto ou pelas lindas mulheres de olhos marejados de lágrimas logo se manifestou e veio em socorro do reincidente que eu era:

            - Por que choras, pequenino, tens problemas, meu menino? - Não chores mais! - disse-me ele.

Aquele homem barbudo respirando sabedoria popular enca­minhava-se provavelmente para a mesquita ou, então, ia degolar alguém...

- O meu pai morreu ontem - disse-lhe eu.

O homem deve ter tido dúvidas:

- De que família és tu, rapaz? - perguntou-me. - Não és de cá, de certeza. Vê-se.

- O meu padrasto nunca nos deixou vir cá - disse-lhe, e pensei se não seria preciso acrescentar: «Meu bom senhor, vou em peregrinação a Meca, mas perdi o autocarro, pode emprestar­-me algum dinheiro?»

            Segui o meu caminho no escuro, simulando desespero, quando realmente estava a morrer de tristeza.

            No entanto, o facto de, sem qualquer motivo, ter inventado estas balelas deu-me um ânimo alegre. Mais tarde, senti-me ainda mais tranquilizado a bordo de um autocarro da companhia Confiança e Segurança, companhia esta que sempre me inspirou de facto confiança profunda, e segui pelo vídeo as aventuras de uma dama chique e elegante que lançava implacavelmente e sem hesitação o seu carro contra uns rapazes maus. No dia seguinte telefonei à minha mãe de uma mercearia, Mar Negro, que se en­contrava efectivamente nas costas do Mar Negro, para a informar de que tinha resolvido quase todos os meus assuntos e que contava voltar em breve para casa na. companhia da sua angélica nora. Se ela tivesse vontade de chorar, mais valia que fosse de alegria! Instalei-me numa pastelaria do Mercado Velho, peguei nas minhas notas e procedi a alguns cálculos, para ver se termi­nava o mais depressa possível com esta história.

O leitor do livro em Samsun era um jovem médico estagiário no hospital da Segurança Social. Ao primeiro olhar, percebi que não se tratava de Mehmet, talvez porque estivesse impecavel­mente barbeado, muito bem cuidado, com um ar de grande segurança; fosse como fosse, vi logo que não era ele. Ao contrário dos leitores que, como eu, tinham visto a sua vida subvertida pelo livro, este homem tinha arranjado maneira de o digerir, de o assimilar, sendo capaz de viver com o livro, com paixão, é certo, mas também com toda a serenidade. Odiei-o logo que o vi. Como era que o livro, que tinha posto o meu universo de pernas para o ar e mudado o meu destino, tinha podido dopá­-lo, a ele, como se se tratasse de vitaminas? Eu tinha a certeza de que morreria de curiosidade insatisfeita se não encontrasse res­posta para a minha pergunta, de maneira que abordei a questão perguntando ao médico, belo rapaz de ombros largos, assim como à sua enfermeira, uma morena de grandes olhos e traços do rosto pronunciados, cópia de terceira categoria de Kim Novak com o seu olhar langoroso, que livro era aquele que estava em cima da mesa, entre catálogos dos laboratórios farmacêuticos, arvorando um falso ar de Simposium Médico.            - Oh, o doutor adora ler! - cacarejou a Kim Novak, com­petente e autoritária.

            Ela saiu do consultório e o médico fechou a porta à chave. Voltou para a sua cadeira, sentou-se nela cerimoniosamente, como fazem os homens verdadeiramente maduros, e explicou, enquanto fumávamos «um cigarro entre homens»:

Em determinado momento da sua vida tinha sido atraído pela religião, por influência da família; quando era novo, fre­quentava a mesquita e cumpria o jejum do ramadão. Depois apaixonara-se por uma rapariga. Pouco tempo depois perdia a fé e tornava-se marxista. Uma vez ultrapassadas todas essas «tem­pestades», que o tinham marcado muito, sentira um grande vazio na alma. Mas tudo «voltara ao lugar» com a leitura do livro, que tinha descoberto na biblioteca de um amigo. Agora compreendia o lugar que a morte ocupa nas nossas vidas. Acei­tava a sua realidade, como se aceita a presença de uma árvore familiar num jardim, ou a de um amigo que se encontra na rua. Renunciara à rebeldia. Compreendia a importância que a sua in­fância tivera nele, aprendera também a rememorar e a amar as pequenas coisas do passado, a pastilha elástica, a banda dese­nhada, o lugar enorme que ocupam na vida os primeiros amores e as primeiras leituras. Sempre gostara, desde os mais verdes anos, dos autocarros melancólicos e loucos e sempre apreciara as paisagens selvagens do nosso país. Mais importante ainda: ele conseguira - graças ao poder da razão - agarrar a realidade do Anjo milagroso e acreditara nele com todo o seu coração. Graças a esta síntese, tinha compreendido que o Anjo viria buscá-lo um dia e que, com ele, alcançaria uma vida nova; que poderia, por exemplo, arranjar trabalho na Alemanha.

Debitou-me este discurso como se estivesse a passar-me uma receita para ser feliz, explicando-me como poderia tratar da doença. O médico levantou-se, com a certeza de que o paciente tinha percebido bem as suas instruções, não deixando ao doente incurável que eu era outra saída que não fosse a da porta. No momento em que eu saía por ela, ele acrescentou, como se me recomendasse engolir as pílulas após a refeição: «Eu sublinho sempre o que leio; faça o mesmo.»

Tomei o primeiro autocarro que seguia para sul, meu Anjo, quase em fuga. Nunca mais poria os pés nas costas do Mar Negro! Nunca poderíamos ser felizes lá, eu e Janan, pensava eu como se alguma vez tivesse havido nos nossos planos de felici­odade um projecto tão claro e nítido.

Desfilavam pelo espelho da minha janela aldeias mergulhadas na escuridão, currais sombrios, árvores imortais, bombas de gasolina melancólicas, restau­rantes desertos, montanhas silenciosas e lebres aflitas. Já vira tudo isto, pensava eu, e, no filme que passava no ecrã, foi muito depois de ter descoberto que o haviam tratado com perfídia que o rapaz de grande coração, cheio de boas intenções, pediu contas aos maus antes de despejar o carregador em cima deles. E, antes de os matar, ele interrogava-os um a um, obrigava-os a supli­carem-lhe que os poupasse, forçava-os a lamentarem amarga­mente o que tinham feito. Ele pensava em perdoar-lhes, hesitava, dando-lhes ainda tempo para cometerem nova traição, e era só depois de nós, os espectadores, termos decidido que o mau rapaz era um sacana que merecia a morte, que os tiros rebentavam no ecrã colocado por cima da cabeça do condutor. Nesse mo­mento virei-me para a janela; como uma pessoa que não aprecia os crimes nem as efusões de sangue, que considera de muito mau gosto, eu coloquei a mim mesmo a questão: por que foi que não perguntei ao belo médico quem eras tu, Anjo, quando ele me receitou a leitura do livro, e pareceu-me ouvir através do barulho dos tiros, do barulho do motor e das rodas, uma estranha melodia com estas palavras:

«Quem é o Anjo?», perguntava o jovem doente. «o Anjo?», repetia o médico. E com a convicção das pessoas muito seguras de si, estendia um mapa na mesa e, como se explicasse ao azarento doente as radiografias dos seus órgãos atingidos por doença incurável, dizia: aqui é o monte da Inteligência, aqui é a cidade do Instante Único; e aqui é o vale da Ingenuidade, e aqui é o ponto do Acidente, e ali, está a ver, é a Morre. Diga­-me, doutor, devemos enfrentar a morte com amor, como faze­mos com o Anjo?

Pela minha lista, faltava-me encontrar o gerente da casa da imprensa em Ikizler; ele era, com efeito, um dos leitores do livro. Depois de me apear do autocarro, fui vê-lo ao seu escritório, a meio da rua principal; pequenino e gordo, coçando-se com prazer por cima da camisa, de modo algum se poderia parecer com o grande amor de Janan. E eu, na minha qualidade de detective desenrascado e rápido, dez minutos depois já largava da cidade no primeiro autocarro que partiu. Numa localidade que alcancei, dois autocarros e quatro horas mais tarde, o meu novo suspeito local causou-me menos problemas: estava no cabeleireiro, mesmo em frente da estação rodoviária, tinha numa mão uma pazinha e, na outra, uma toalha alvíssima, ao lado do seu patrão que barbeava um cliente com mestria, e, com uma profunda tristeza nos olhos, olhava para os felizes passageiros que nós éramos a descermos do autocarro. Tive vontade de lhe gritar um pequeno poema: «Vem juntar-te a nós, irmão, partamos tu e eu para as paragens desconhecidas, vamos embora, tu e eu!», mas tinha de levar a minha investigação até ao fim, e antes que a musa que me inspirara estas rimas me abandonasse. Na cidadezinha seguinte onde cheguei uma hora mais tarde, considerando que o suspeito era de facto mais do que suspeito, vi-me obrigado a examinar as velhas gaiolas de pássaros, as lanternas de bolso, as tesouras, as boquilhas de pau-rosa, os leques e a Browning que o informador desencantado tinha escondido num poço, no pátio atrás da loja. Este concessionário de coração e dentes partidos ofereceu-me um relógio Serkisof para mostrar modestamente o seu respeito e a sua admiração pelo doutor Fino. Quando ele começou a contar-me como se encontrara com três amigos, depois da grande oração de sexta-feira, no reservado da pastelaria, para falarem do dia da Libertação, pensei para mim que não era só a noite que caía, mas que o Outono chegara bruscamente. Nuvens escuras e baixas invadiam-me o espírito quando um can­deeiro se acendeu na casa vizinha, e bruscamente, entre as folhas outonais, os ombros pesados e cor de mel de uma mulher semi­nua apareceram à janela, para logo desaparecerem, no espaço de um arrepio. Depois vi os cavalos pretos que galopavam no céu, meu Anjo, e monstros impacientes, bombas de gasolina, sonhos de felicidade, salas de cinema fechadas e ainda outros autocar­ros e outras pessoas e outras cidades.

No mesmo dia, depois de, não sei muito bem porquê, me ter sentido mais encorajado do que desiludido ao verificar que, mais uma vez, não se tratava do Mehmet que valia, falei de coisas e loisas com um vendedor de cassetes: da felicidade que a mercadoria proporcionava, do fim da estação das chuvas e da melancolia que emanava da cidadezinha aonde eu acabava de chegar, quando me afligi ao ouvir um comboio a apitar com tristeza. Tinha de abandonar o mais depressa possível aquela cidade de que nem sequer guardara o nome na memória e vol­tar para a doce noite de veludo para onde me levaria um auto­carro.

Estava a andar na direcção do barulho do comboio e da estação rodoviária quando me vi no retrovisor de uma bicicleta cintilante estacionada na beira do passeio. Com a minha arma bem escondida, com o meu casaco roxo novinho em folha, com o relógio Serkisof oferecido ao doutor Fino no bolso, com as minhas mãos desajeitadas, com as minhas pernas metidas nas jeans, vi as lojas a recuarem até desaparecerem e, na noite, apercebi uma tenda de circo instalada numa praça, com uma figura de anjo à entrada. O anjo era uma criatura estranha, um cruzamento entre a miniatura persa e as fotOgrafias das nossas estrelas de cinema, e no entanto o coração saltou-me no peito. Vejam, meus senhores, este rapaz não se contenta em faltar às aulas, fuma e até vai ao circo às escondidas...

Comprei um bilhete, passei pela entrada, onde havia um cheiro a mofo, a suor e a terra, instalei-me e fiquei à espera, decidido a esquecer tudo, na companhia de uns recrutas que tinham sido bastante idiotas para não regressarem ao regimento, de uns homens que estavam ali para matar o tempo, de uns velhos, de uns melancólicos, de algumas raras famílias com crian­ças que pareciam estar ali por engano. Sim, porque não se iam encontrar ali os extraordinários trapezistas, nem ursos a andarem de bicicleta, como eu tinha visto na televisão, nem mesmo malabaristas. Um homem fez aparecer - hop! - um rádio com uma capa de um cinzento sujo, o rádio desapareceu, transformou­-se em música. Ouvimos uma canção alia turca, uma rapariga que cantava a mesma canção apareceu e cantou ainda mais uma, com uma voz cheia de tristeza, depois foi-se embora. Os nossos bilhetes estavam numerados, pelo que íamos participar num sor­teio e tínhamos de esperar com paciência pela extracção - foi o que nos disseram.

A cantora voltou a entrar em cena, mas agora transformada em anjo, com os olhos desenhados em forma de amêndoa com lápis preto de carvão; vestia um biquíni muito pudico, do género dos que a minha mãe usava na praia de Süreyya. Vi que aquela peça que eu tinha tomado de início por uma parte esquisita do seu trajo, um lenço ou um xaile extravagante, mais não era do que uma cobra que ela enrolara ao pescoço e cujas pontas lhe caíam sobre os ombros delicados. Tratava-se de uma luz nova que eu nunca tinha visto. Ou seria que eu a esperava, a essa luz, ou que julgava que a esperava? Senti-me tão feliz por estar ali, debaixo daquele chapiteau, na companhia do anjo e da sua cobra, que me vieram as lágrimas aos olhos.

Depois, quando a mulher falava com a cobra, veio-me à cabeça uma coisa: acontece-nos apanhar de repente uma recor­dação longínqua há muito tempo esquecida e perguntarmos a nós mesmos por que fomos buscar uma coisa tão antiga, a ponto de ficarmos perturbados, e era isso, precisamente, que me estava a acontecer, mas, mais do que perturbação, o que eu sentia era uma grande serenidade. Um dia em que o meu pai e eu tínhamos ido visitar o Tio Rifki, dissera-nos ele: «Poderia viver fosse onde fosse, mesmo no fim do mundo, desde que passasse por lá um comboio, porque eu não posso imaginar a vida sem ouvir um comboio a apitar antes de adormecer»; pois bem, naquele momento eu imaginava facilmente que seria capaz de viver numa terreola como aquela e no meio daquela gente, até ao fim da minha vida. Nada é mais precioso do que a paz que o esquecimento nos dá. Eu remoía todos estes pen­samentos olhando para o anjo que falava amavelmente com a cobra.

As luzes baixaram, o anjo desapareceu de cena; quando as luzes voltaram, anunciaram um intervalo de dez minutos. Decidi sair, para poder misturar-me com os meus novos concidadãos, com aqueles com quem contava passar o resto dos meus dias.

Procurava passar entre as cadeiras de madeira quando reparei em alguém sentado à distância de duas ou três filas do pequeno círculo de terra a que chamavam palco; esse alguém lia o Cor­reio de Velha Vinha e o meu coração pôs-se a bater com muita força. Era Mehmet, o nosso Mehmet, o apaixonado de Janan, o filho supostamente morto do doutor Fino; lia o jornal, cru­zando a perna, esquecido do universo à sua volta, mergulhado naquela serenidade a que eu aspirava com tanta força.

 

Logo que saí da tenda senti uma brisa ligeira a aflorar-me a nuca, a percorrer-me o corpo, a arrepiar-me. Na noite, os meus futuros concidadãos transformaram-se em meus inimigos hostis. O meu coração continuava a bater com violência, senti o peso da arma na coxa, e era como se aspirasse, juntamente com o fumo do cigarro, todo o universo.

Soou uma campainha, dei uma olhadela para dentro do cha­piteau: ele continuava a ler o jornal. Voltei para a tenda com os outros espectadores e sentei-me três filas atrás dele. O «pro­grama» continuou. Senti vertigens. Lembro-me do que então vi, do que não vi, do que percebi, do que ouvi. Tinha os olhos e a mente fixos na nuca dele: uma nuca modesta, cuidadosamente barbeada, a nuca de um homem honrado e bom.

Muito mais tarde, acompanhei o sorteio: os números eram tirados de um grande saco roxo. O número vencedor foi anun­ciado. Um velhote desdentado saltou para o palco, com um ar encantado da vida. O anjo, sempre com o mesmo fato de banho mas, desta vez, com um véu de noiva na cabeça, felicitou-o. De­pois, um homem, o mesmo que vendia os bilhetes à entrada, entrou com um candeeiro enorme na mão.

- Meu Deus! Mas é a plêiade de sete ramos! - gritou o velho desdentado.

Pelos protestos de alguns espectadores que estavam atrás de mim, percebi que o mesmo candeeiro, que reaparecia todos os dias embrulhado na sua embalagem de plástico, era ganho sem­pre pela mesma pessoa.

O anjo, empunhando um microfone sem fio (que não lhe am­plificava a voz, sendo por certo um falso microfone), perguntou­-lhe: - O que sente? Que sensação lhe dá o facto de ter tanta sorte? Está muito emocionado?

- Estou muito emocionado e muito feliz. Deus vos abençoe a todos! - disse o velho para o microfone. - A vida é bela. Apesar de todas as preocupações, de todas as desgraças da vida, não tenho medo de ser tão feliz nem tenho vergonha disso!

Alguns espectadores aplaudiram.

- Onde pensa pendurar o seu candeeiro? - perguntou o anjo.

- É mesmo sorte - disse o velhote inclinando-se para o mi­crofone, como se este funcionasse. - Estou apaixonado, a minha noiva gosta muito de mim, eu gosto dela. Vamos casar em breve e vamos morar para a nossa casa nova. É lá que vamos pôr esta coisa de sete ramos.

Aplausos. Ouvi gritos de: «Beijo, beijo!» Toda a gente se calou quando o anjo deu um beijo ao de leve na bochecha do velho, que aproveitou o silêncio para se escapar com o candeeiro na mão.

            - Mas nós nunca ganhamos! - gritou uma voz colérica das filas de trás.

            - Silêncio! - disse o anjo. - Agora, ouçam bem.

            O mesmo silêncio estranho que se instalara durante o beijo envolveu de novo a assistência.

- Um dia, a sorte também lhes há-de calhar, não se esque­çam! Sejam pacientes, não culpem a vida e, sobretudo, não in­vejem os outros. Tenham paciência! Se aprenderem a viver amando a vida, descobrirão o que têm de fazer para alcançarem a felicidade! E então, quer tenham ou não descoberto o vosso rumo, eu vou aparecer-lhes! - Ergueu o sobrolho com ar ma­roto. - No fim de contas, o anjo do desejo está aqui todas as noites, aqui, na bela cidade de Velha Vinha!

Apagou-se a luz mágica por cima dela; acendeu-se uma lâmpada com luz crua. Eu saí, misturado na assistência, man­tendo uma certa distância da pessoa que seguia. O vento tornara­-se mais forte. A certa altura, o fluxo parou e eu vi-me dois passos atrás dele.

- O que achou do espectáculo, senhor Osman? - pergun­tou-lhe um homem de chapéu de feltro cinzento.

- Assim-assim - respondeu o outro e, com o jornal debaixo do braço, apressou-se para a saída. Uma vez que deixara de ser Nahit, por que não poderia renunciar ao nome de Mehmet, por que raio eu nunca pensara nisso, por que não considerei que ele poderia tornar-se Osman? E poderia eu tê-lo previsto? Pois bem, nunca tinha pensado nisso. Deixei-me ficar para trás, esperei que ele se distanciasse um pouco. Olhava com atenção para a sua silhueta magra, um pouco curvada. Com que então, era aquele o tipo por quem a minha Janan se apaixonara perdidamente. Continuei a segui-lo.

A Velha Vinha, de entre todas as cidades por onde eu passara, era a que tinha maior abundância de árvores ao longo dos pas­seios. Quando a luz de um candeeiro da rua incidia no objecto da minha perseguição, parecia-me vê-lo num palco mal ilumi­nado, e depois aproximava-se de um castanheiro ou de uma tília e desaparecia no escuro, num tumulto aflito de folhas e vento.

Atravessámos a praça, passámos pelo cinema Novo Mundo, pela pastelaria com as suas luzes de néon, pela farmácia, pela casa de chá, pelos Correios, e a camisa do objecto da minha perse­guição ia-se tingindo ora de amarelo-pálido e alaranjado, ora de azul e vermelho, depois metemos por uma alameda lateral. Quando reparei na perspectiva perfeita das casas de três andares, todas do mesmo modelo, dos candeeiros e das árvores a rama­lharem ao vento, estremeci com o mesmo arrepio que todos esses Serkisof, Zenith e Seiko deveriam sentir quando seguiam al­guém; por fim, para acabar com aquilo, estuguei o passo e apro­ximei-me da banal camisola branca da minha presa.

Depois ouviu-se um grande estrondo. Imaginando eu, por um momento, que talvez algum dos «relógios» também me se­guisse, tive medo e escondi-me num canto. Mas era apenas uma janela que tinha batido com o vento, estilhaçando-se o vidro, e o meu alvo, voltando-se, parou também. Disse para mim que Osman prosseguiria o seu caminho sem me ter visto mas, antes mesmo de eu ter tempo de soltar a patilha de segurança da mi­nha Walther, tirou a chave do bolso, abriu uma porta e desapa­receu dentro de uma das casas de cimento; fiquei no passeio, à espera, até que uma luz se acendeu numa das janelas do segundo andar.

Apercebi-me então de que estava sozinho no mundo como um assassino ou um candidato a assassino. Numa rua paralela, as mo­destas letras a néon do Hotel Repouso, também respeitosamente submetido à lei da perspectiva, oscilavam ao vento, prometendo­-me um pouco de paciência, um pouco de razão, um pouco de serenidade, uma cama e uma noite inteira para reflectir de novo sobre a minha vida, sobre a minha decisão de me tornar as­sassino e para pensar na minha Janan. Entrei, já não tinha alter­nativa, e pedi um quarto com televisão, mas só porque o recepcionista me perguntou se eu queria uma.

Entrei no quarto, carreguei no botão e, quando apareceu a imagem a preto e branco, disse para mim que tinha feito uma boa escolha: ia passar a noite na solidão do assassino em fúria na companhia dos meus amigos a preto e branco, em alegre conversa, amigos que sabem, estes sim, levar a cabo este tipo de trabalho, e com tanta frequência que já nem lhe dão grande importância. Aumentei um pouco o som. Ao cabo de um momento, quando uns tipos armados de pistolas começaram a berrar uns com os outros, quando os carros americanos lançados a toda a velocidade derrapavam nas curvas, senti-me muito melhor e fui capaz de me virar seriamente para o mundo do outro lado do vidro e para os castanheiros que, coléricos, se agitavam ao vento.

Eu estava em todo o lado e em lado nenhum ao mesmo tempo, tinha a sensação de me encontrar no centro inexistente do universo. Da janela do meu quarto de hotel, anichado nes­te centro e tão fascinante e desesperadamente morno, eu podia ver a luz do quarto do homem que tencionava matar. Não conseguia vê-lo, mas estava felicíssimo por saber que ele estava lá e por eu me encontrar aqui por toda a noite; aliás, os meus amigos da televisão já tinham começado a crivar-se mutuamente de balas. A luz apagou-se no quarto da minha futura vítima, e eu, muito rapidamente, adormeci ao som dos tiros, sem pensar mais no sentido da vida, no amor e no livro.

De manhã levantei-me, tomei banho, barbeei-me e saí sem desligar a televisão que estava a anunciar previsão de chuva para o país inteiro. Não tinha verificado sequer a minha Walther, nem mesmo ficara irritado ao ver-me no espelho, como faz qualquer jovem que se prepara para matar por amor de uma mulher ou por amor de um livro. Como meu casaco roxo, devia parecer­-me mais com um estudante universitário optimista que viaja de cidade em cidade durante as férias de Verão, andando de porta em porta a tentar vender as enciclopédias da República e dos homens ilustres. E um jovem estudante optimista não espera ter uma longa discussão sobre a vida e sobre a literatura quando bate à porta de um amador de livros na província? Eu sabia desde sempre que não poderia abatê-lo de imediato. Subi um lanço de escadas, carreguei no botão - por pouco não ia dizer: a cam­painha retiniu -, mas não, a campainha tinha um mecanismo eléctrico qualquer e começou a chilrear, imitando um canário. As últimas e mais caprichosas novidades acabam por chegar a qualquer lado, mesmo a cidades como a Velha Vinha, e os as­sassinos encontram sempre as suas vítimas, mesmo que tenham de ir até ao fim do mundo! No cinema, em situações deste gé­nero, as vítimas assumem uma atitude que implica a sua omnis­ciência e dizem de chofre: «Eu sabia que tu virias!»

Ficou estupefacto ao ver-me. Porém, não pareceu surpreen­dido com a sua surpresa. Tinha um rosto de traços regulares, embora menos regulares do que na lembrança que eu tinha guar­dado dele, ou que me comprazera a imaginar, mas não havia dúvida de que era um belo rapaz.

- Sou eu, Osman bey - disse-lhe. Fez-se silêncio.

            Depois, ambos nos recompusemos um pouco. Ele olhou para mim por um instante e depois para a porta, com embaraço, como se não tivesse qualquer intenção de me convidar a entrar, e disse: - Vamos antes sair.

Vestiu um casaco de cor parda que não era à prova de bala, saímos os dois e para umas ruas que faziam de conta que eram ruas. No passeio, um cão lançou-me um olhar desconfiado. No alto de um castanheiro, as rolas calaram-se. Olha, Janan, como eu e ele nos tornámos bons amigos! Ele era um pouco mais baixo do que eu e comecei a pensar que devia haver qualquer coisa na minha maneira de andar que era muito semelhante à dele, o que é o atri­buto pessoal mais óbvio de tipos como nós - isto é, a confluência da forma como os ombros sobem e descem e a maneira como a passada se desenvolve. Perguntou-me se eu tinha tomado o pe­queno-almoço. Havia um café na estação. Que tal um chá?

Comprou dois folhados quentinhos na padaria, depois parou na mercearia para comprar um quarto de libra de queijo kajar às fatias, embrulhado em papel de cera. Um pouco depois, o anjo do poster à entrada do circo saudou-nos com a mão. Entrámos no café, onde ele pediu dois chás; depois passámos pela porta das traseiras para o pátio ajardinado com vista para a estação, e sentámo-nos. As rolas, empoleiradas ora nos castanheiros ora nas goteiras do telhado, insistiam em cantar sem nos prestarem qualquer atenção. O ar fresco da manhã era agradável, reinava o silêncio, e, à distância, tocava uma música na rádio que mal se ouvia.

- Todas as manhãs, antes de começar a trabalhar, vou tomar o pequeno-almoço a um café - explicou-me ao mesmo tempo que desembrulhava o queijo. - Este café é agradável na Prima­vera. E também quando está a nevar. De manhã gosto de olhar para os corvos a passearem na neve do cais e para as árvores for­radas de neve. Outro café bom é o Pátria, na praça, um lugar espaçoso com um forno enorme que dá imenso calor. Fico lá a ler o jornal, ouço a rádio quando está ligada, e às vezes deixo­-me estar ali simplesmente sentado, sem fazer nada.

«A minha vida nova é ordenada, disciplinada, pontual.. Todas as manhãs saio do café antes das nove e regresso à minha secretária. Às nove horas em ponto já eu tenho o meu café pre­parado e já estou a trabalhar, a escrever. O que eu faço pode pa­recer simples, mas requer grande atenção. Passo a vida a rescrever o livro sem que me falhe uma única vírgula, uma única letra, sem mudar um ponto. Quero que fique tudo igual, perfeito, até ao último período e à última vírgula. E só se consegue isto se se tiver a mesma inspiração e o mesmo desejo do autor ao escrever o original. Outros podem chamar cópia ao que faço, mas o meu trabalho vai mais longe do que uma simples duplicação. Tudo o que eu escrevo é sentido, compreendido, como se cada frase, cada palavra, cada letra fossem uma descoberta minha. Trabalho das nove da manhã até à uma da tarde, arduamente, sem fazer outra coisa a não ser isso, e não há nada que me faça distrair do trabalho. Geralmente, trabalho melhor de manhã.

«Depois saio e vou almoçar. Há dois restaurantes nesta ci­dade. O do Asim tem tendência para estar sempre apinhado de gente. A comida no restaurante da gare do caminho-de-ferro é pesada, mas servem lá álcool. Umas vezes vou a um, outras vezes vou ao outro. E às vezes como um pouco de pão com queijo num café, e há dias em que, simplesmente, não saio de casa. Nunca bebo álcool ao meio-dia. Acontece fazer uma peque­na sesta, e é tudo. O mais importante é que, às duas e meia, já esteja de novo sentado a trabalhar. Trabalho ininterrup­tamente até às seis e meia ou sete. Se o trabalho estiver a correr bem, até posso ficar a trabalhar mais horas. Se alguém gosta da­quilo que está a escrever e se sente feliz com a sua vocação, não deve perder a oportunidade de escrever tanto quanto possa. A vida é curta, é assim que as coisas são, e o resto já sabes. Não deixes arrefecer o teu chá!

«Depois de um dia de trabalho, revejo com satisfação o que fiz, e volto a sair. Gosto de falar com umas quantas pessoas quando vou ler os jornais ou deitar uma olhadela à televisão. Pre­ciso disto porque vivo sozinho e faço tenção de continuar a viver sozinho. Gosto de conhecer pessoas, dar dois dedos de conversa, ouvir umas histórias, ou até mesmo eu próprio contar uma. De­pois, às vezes, também vou ao cinema, ou vejo um programa na televisão; há noites em que jogo às cartas na cafetaria, outras vezes volto para casa mais cedo e fico a ler os jornais.

- Estiveste no circo a noite passada - disse eu.

- Estas pessoas apareceram cá há um mês e foram ficando. Ainda há bastante gente que vai lá vê-los.

            - Aquela mulher - comentei -, por acaso até se parecia com um anjo, acho eu.

            - Não é anjo nenhum - disse ele. - Dorme com todos os matulões da cidade e com qualquer soldado que lhe pague. Topas?

Silêncio. A expressão «topas?» arrancou-me da poltrona ma­cia feita da raiva sarcástica que eu andava a saborear há vários dias com um prazer de bêbado, atirando comigo para uma ca­deira de madeira rija e desconfortável na qual me empoleirava com dificuldade, num jardim com vista para a estação dos com­boios.

            - Aquilo que vem escrito no livro - disse ele - já não me diz nada.

            - Mas passas o dia a rescrevê-lo - consegui ripostar.

            - Por dinheiro - admitiu, e fê-lo sem o mínimo ar de vitó­ria ou de embaraço, mas mais como se estivesse a desculpar-se por ter de dar uma explicação. Copiava o livro à mão, vezes e vezes sem conta, em cadernos escolares. Uma vez que trabalhava de oito a dez horas em média, copiando cerca de três páginas por hora, fazia à vontade, em dez dias, uma edição manuscrita de um livro de trezentas páginas. Havia pessoas que pagavam um preço «razoável» por este tipo de trabalho, como os notáveis da cidade, tradicionalistas, tipos que gostavam dele, que lhe admiravam o esforço, a convicção, a devoção, a paciência, ou que sentiam uma certa felicidade porque um tolo que se lançara naquele trabalho de forçado vivia com satisfação no meio deles... Mais, o facto de ele ter dedicado a sua vida a tão modesta iniciativa tinha criado à sua volta, inconscientemente - e ele disse isto com certa atra­palhação -, uma «lenda amável», que ele encarava com em­baraço. Eles respeitavam-no, vendo no seu trabalho um aspecto - ele próprio utilizou esta expressão - «um aspecto quase sagrado»... Tal como eu, ele utilizava muitas vezes esta expressão: «quase sagrado».

Dava-me todas estas explicações porque eu insistia, pres­sionava-o com as minhas perguntas, de outro modo parecia não lhe agradar muito falar dele. Depois de se ter referido com reconhecimento aos seus clientes, à boa-fé dos amadores que compravam as suas cópias manuscritas, ao respeito que eles lhe testemunhavam, concluiu: - De qualquer forma, estou a fornecer-lhes um serviço. Ofereço-lhes algo de verídico, um livro em que cada palavra é escrita à mão com convicção, por­que eu dedico-me de corpo e alma a este trabalho, com suor e sangue.

E eles pagam-me honestamente por um trabalho honesto. Afinal de contas, a vida é a mesma coisa para toda a gente...

Calámo-nos ambos. Comendo os bolos frescos e condimen­tados com as fatias de queijo ka!ar, pensei que a vida dele tinha finalmente estabilizado, que era uma vida, citando o livro, «rodando nos carris». Como eu, ele tinha-se feito à estrada que começava com o livro mas, através da sua investigação, das via­gens e aventuras repletas de morte, amor e desastre, tinha alcan­çado o que eu não conseguira; tinha encontrado a serenidade, o equilíbrio em que as coisas iriam permanecer estáveis durante anos. Eu olhava-o a dar dentadinhas cuidadosas no queijo e a saborear com visível prazer os últimos goles de chá, e dizia para mim que ele repetia dia após dia estes pequenos gestos da mão, dos dedos, da boca e do queixo. E a paz que este equilíbrio lhe dava também lhe garantia um tempo que parecia sem limites. Enquanto eu, infeliz e inquieto, remexia nervosamente as pernas por baixo da mesa.

A inveja fez crescer dentro de mim, a certo momento, o desejo de perpetrar algo de mau. Mas apercebi-me de uma coisa ainda mais terrível: se eu puxasse da minha arma e lha disparasse entre os olhos, mesmo assim não iria afectar este homem que tinha alcançado a serenidade do tempo eterno por força de tanto escre­ver; continuava o seu rotineiro caminho - embora numa forma diferente - no tempo imóvel. A minha alma atormentada e exausta lutava por chegar a algum lado, como um camionista que se esqueceu do percurso.

Perguntei-lhe muitas coisas. As suas respostas de «sim», «não», «naturalmente» eram tão curtas que percebi eu próprio, com toda a certeza, que já sabia as respostas. Ele estava satis­feito com a sua vida. Não estava à espera de mais nada. Ainda amava o livro e acreditava nele. Não sentia rancor em relação a ninguém. Tinha percebido o sentido da vida. Mas não conse­guia explicá-lo. Tinha, naturalmente, ficado surpreendido por me ver. Nunca pensou alguma vez ensinar fosse o que fosse a alguém. Toda a gente tinha uma vida própria, e, «na sua opi­nião», todas as vidas tinham o mesmo valor. Gostava da solidão, mas isto, só por si, não era o essencial, porque ele também gos­tava muito de companhia. Tinha amado muito Janan, sim, tinha­-se apaixonado, mas depois conseguira fugir dela. Não estava surpreendido por eu ter sido capaz de o encontrar. Encarregou­-me de transmitir a Janan as suas melhores saudações. Escrever era a única actividade da sua vida, mas não era a sua única ale­gria. Ele sabia que precisava de trabalhar, como qualquer pessoa. Olhar para o mundo, por exemplo, ver realmente o mundo como ele é, dera-lhe um grande prazer.

Uma locomotiva estava em manobras na estação. Observámo­-la. As nossas cabeças seguiam-lhe os movimentos: velha, can­sada, mas ainda enérgica, a locomotiva soprava, bufava, soltava nuvens grossas de fumo, barulhos de ferros e de tachos, tão dis­sonantes como uma filarmónica municipal.

Quando a locomotiva desapareceu por trás de um pequeno bosque de amendoeiras, velaram-se de melancolia os olhos do homem a quem eu me preparava para enfiar uma bala no cora­ção, na esperança de talvez encontrar com Janan a paz que ele encontrara ao copiar incessantemente o livro. Enquanto obser­vava a tristeza infantil dos seus olhos, compreendi por que razão Janan tinha amado tanto este homem e, apenas por esse amor, senti por um instante muito respeito por ela. Porém, depressa este respeito se transformou em ciúme e mergulhei nele como se me precipitasse para o fundo de um poço.

O assassino perguntou então à futura vítima por que se tinha decidido pelo nome de Osman, que era também o nome do as­sassino, na altura em que tinha resolvido unir-se ao esquecimento nesta obscura cidadezinha.

- Não sei - disse o pseudo-Osman, sem reparar nas nuvens de ciúme nos olhos do verdadeiro Osman; depois, sorrindo doce­mente, acrescentou: - Gostei de ti desde a primeira vez que nos vimos, talvez seja por isso.

Seguia com uma atenção que raiava o respeito a marcha da locomotiva a aproximar-se, fazendo o caminho inverso desde o pomar de amendoeiras. O assassino poderia jurar que a sua futura vítima, com os olhos fixos no brilho do sol na locomotiva, esque­cera neste instante o mundo em volta dele, mas não era nada disso.

Enquanto o dia ensolarado se sucedia à frescura da manhã, disse o meu inimigo: - Já passa das nove, hora a que me sento à mesa a trabalhar. Para onde vais agora?

Sabendo muito bem o que estava a fazer, ansioso, infeliz e sin­cero, mas não sem uma segunda intenção, implorei então a alguém com toda a sinceridade, pela primeira vez na minha vida: - Por favor, fica mais um pouco; vamos falar mais um bocado; vamos conhecer-nos melhor...

Ele ficou surpreendido e talvez até um pouco preocupado, mas tinha-me entendido: não que eu tinha uma arma no bolso, mas a minha sede de o conhecer. Sorriu com tanta indulgência que até o meu sentimento de estar em pé de igualdade com ele, assegu­rado pelo peso da Walther contra a minha anca, se desfez em pedaços. De tal maneira assim foi que o infortunado viajante - o qual, incapaz de atingir o coração da vida, apenas alcançara a fronteira da sua própria miséria - foi presa de angústia, ao ponto de perguntar ao sábio que encontrara nesta fronteira qual era o sentido da vida, do livro, do tempo, da escrita, do Anjo, de tudo...

Continuei a interrogá-lo sobre o que significava tudo isso, e ele insistia em perguntar-me o que entendia eu por «tudo isso». Foi aí que lhe perguntei qual era a questão primordial, para que, assim, eu lha pudesse fazer. Ele respondeu-me que devia haver um sítio onde não havia princípio nem fim, e que eu teria de o descobrir. Portanto, não haveria sequer uma pergunta que eu pudesse fazer-lhe? Não, não havia. Então, o que havia? Aquilo em que o ser humano podia tornar-se estava ligado à maneira como via as coisas. Às vezes havia silêncios e era necessário tirar deles as respectivas conclusões. Outras vezes, uma pessoa sen­tava-se e bebia chá e tinha uma conversa agradável num café, de manhã, como nós estávamos a fazer agora, olhando para a locomotiva e para o comboio e ouvindo o arrulhar das rolas. Talvez estas coisas não fossem tudo, mas não eram, de qualquer forma, pequenos nadas. Bom, mas então, não havia um sítio mais além, um novo reino a descobrir depois de toda aquela viagem? Se houvesse um sítio mais além, estaria no texto; mas ele tinha determinado que era fútil procurar fora do texto, na vida real, aquilo que se tinha descoberto no texto.

Afinal de contas, o mun­do era pelo menos tão imenso, tão incompleto, tão imperfeito como o escrito...

Fiz-lhe então a pergunta: neste caso, porque tínhamos sido ambos tão afectados pelo livro? Ele disse-me que isso era uma pergunta que só uma pessoa que não estivesse afectada pelo livro poderia fazer. O mundo estava cheio de pessoas assim, mas se­ria eu uma delas? Eu já não sabia que tipo de pessoa era. Eu era alguém que tinha prodigiosamente desperdiçado a própria essência da minha alma na estrada, com o único desígnio de que Janan me amasse, tentando localizar o tal reino novo, e tam­bém com a intenção de descobrir o meu rival, para o matar. Não lhe perguntei nada sobre isto, ó Anjo, perguntei-lhe quem eras tu.

- Nunca encontrei o anjo de que fala o livro - disse-me ele. - Pode ser que se contemple o anjo na hora da morte, na janela de algum autocarro.

Que bonito era o seu sorriso, tão impiedoso. Eu ia matá-lo. Mas não por enquanto. Primeiro tenho de falar com ele. Tenho de arrancar dele a forma de encontrar e restabelecer a essência perdida da minha alma. Mas a desgraça em que eu tinha caído não me ia permitir fazer as perguntas indispensáveis. A manhã da Anatólia Oriental, igual a tantas outras, para a qual a pre­visão do tempo na rádio era de parcialmente nublado com agua­ceiros, a luz brilhante na pacífica estação dos comboios, as duas galinhas a esgaravatarem distraidamente numa ponta da plata­forma, os dois jovens conversando e carregando caixas de soda que saíam precipitadamente de uma carruagem para o snack bar da estação, o chefe de estação que estava a fumar um cigarro - tudo isto marcava o dia à medida que ele ia progredindo na minha consciência, e de forma tão plena que não havia espaço livre no meu cérebro disperso para pensar numa pergunta con­veniente acerca da vida ou do livro.

Mantivemos o silêncio durante bastante tempo. Continuei a matutar nas perguntas que queria fazer-lhe. Quanto a ele, talvez pensasse na maneira de se furtar às minhas perguntas e à minha presença. Assim ficámos, imóveis e silenciosos, mais um bocado.

E o momento fatal chegou: ele pagou a conta, abraçou-me, bei­jou-me nas duas faces. Ficara tão feliz por ter voltado a ver-me! Como eu o odiava! Seria mesmo assim? Nada disso, até gostava dele. Mas por que haveria de gostar dele? Tinha a intenção de o matar.

Mas não aqui, não imediatamente. Para voltar ao seu ninho de ratos, àquela rua sujeita à ordem e à perspectiva, para ali reatar o seu trabalho de atrasado mental, tinha de passar necessaria­mente pelo cine-teatro. Eu, então, meteria pela via férrea, apa­nhá-la-ia no atalho, e matá-la-ia à vista do Anjo do Desejo de quem ele tinha falado com tanto desdém.

tinha que pôr-se a andar, esse sacana convencido! Estava furioso com Janan por se ter apaixonado por ele, mas bastou-me olhar de longe para o seu vulto melancólico e frágil para com­preender como ela tinha razão. Que indeciso o nosso Osman, ele que é o principal personagem do livro que estais a ler! E que lamentável criatura! No fundo, sabia muito bem que a razão estava do lado do homem que tanto queria odiar. Sabia também que ainda não era capaz de o matar. Fiquei umas duas horas sen­tado na cadeira de pau do café, com o olhar vazio, baloiçando nervosamente a perna, perguntando a mim mesmo que outras armadilhas o Tio Rifki pudera armar-me no decurso da minha vida nova.

Por volta do meio-dia voltei ao Hotel do Repouso, muito aba­tido, eu, um aprendiz de assassino nada desenvolto. O recep­cionista ficou muito contente por saber que o cliente de Istambul ia ficar mais uma noite no hotel; ofereceu-lhe logo um copo de chá. Foi assim que ouvi demoradamente as suas recordações do serviço militar, porque tinha medo de me ver sozinho no quarto. Quando a conversa se voltou para o meu lado, limitei­-me a dizer-lhe que tinha «um assunto a tratar», mas que ainda não tivera tempo de «fazer o que tinha a fazer».

Logo que entrei no quarto liguei a televisão. No ecrã a preto e branco, um vulto de pistola na mão avançava ao longo de um muro a preto e branco e, quase ao chegar à esquina, esvaziou o carregador no seu alvo. Pus-me a pensar se a Janan e eu não teríamos visto a versão a cores da mesma cena num dos nossos autocarros.

Sentei-me à beira da cama, esperando pacientemente que chegasse a cena de homicídio seguinte. Pouco depois, dei por mim a olhar pela minha janela para a janela dele. Lá estava ele a escrever, apesar de eu não conseguir perceber muito bem se a sombra que eu via era de facto a dele. Lá estava ele sentado a escrever com toda a tranquilidade, só para me angustiar. Sentei­-me e fiquei perdido a ver televisão durante muito tempo, mas quando me levantei já me tinha esquecido do que tinha estado a ver. Depois dei por mim a olhar de novo para a janela dele. Ele tinha atingido o ponto de serenidade no final da estrada, e eu estava fechado entre sombras a preto e branco que abriam fogo umas contra as outras. Ele tinha passado para o outro lado, ele «sabia», estava na posse da sabedoria da nova vida que a mim tinha sido ocultada; e eu não tinha nada para além da vaga espe­rança de que ainda poderia ter Janan.

Por que será que estes filmes nunca mostram a tristeza destes assassinos patéticos, mergulhados na sua angústia num qualquer quarto de hotel? Se eu fosse realizador, filmaria os cobertores desarrumados, o caixilho da janela com as rachas da tinta a sol­tar-se, as cortinas emporcalhadas, a camisola suja e engelhada do homem que se prepara para cometer um crime; espreitaria até para dentro dos bolsos do casaco roxo em que ele remexe sem parar, filmaria a sua maneira de se sentar à beira da cama, com os ombros descaídos, perguntando-se se não faria melhor mas­turbar-se para passar o tempo.

Passei algum tempo a organizar mesas-redondas com as mui­tas vozes que trotavam na minha cabeça, sobre os temas seguin­tes: por que é que as mulheres bonitas e sensíveis se apaixonam por falhados com a vida destroçada? No caso de conseguir tornar­-me um assassino, a marca do crime ficaria gravada nos meus olhos para o resto da vida e isso dar-me-ia o ar de um pensador melancólico ou a de um miserável? Alguma vez Janan me amaria verdadeiramente, nem que fosse com metade do amor que votava a este homem que eu me preparava para assassinar? Poderia eu fazer o mesmo que Nahit-Mehmet-Osman fez, ou seja, dedicar toda a minha vida à transcrição incessante do livro do Tio Rifki em cadernos escolares?

Quando o Sol desapareceu por trás da perspectiva das casas e a frescura da tarde e as longas sombras negras começaram a vaguear insidiosamente à volta das ruas como gatos, comecei a observar incansavelmente a sua janela. Não conseguia vê-lo, mas pensando que o via, foquei o meu olhar na janela e no quarto por trás dela, sem prestar a mínima atenção às pessoas que passavam na rua, tentando acreditar que conseguia realmente ver alguém lá dentro.

Não sei quanto tempo isto durou. Não tinha escurecido com­pletamente e a luz do quarto dele estava ainda apagada quando dei por mim na rua, debaixo da janela do seu quarto, a chamar por ele. Alguém apareceu na sombra por trás da janela e desa­pareceu logo que me viu. Entrei no prédio, subi as escadas numa fúria, a porta abriu-se sem eu ter feito chilrear a campainha; mas por um longo momento não consegui vê-lo lá dentro.

Entrei no apartamento. Um tecido verde de feltro tinha sido estendido na mesa. Em cima dele vi um caderno aberto, e o livro. Lápis, borrachas, um maço de cigarros, aparas de ta­baco, um relógio de pulso ao pé do cinzeiro, fósforos, uma chá­vena de café que tinha arrefecido. Ali estavam as ferramentas do ofício de um desgraçado condenado a escrever para o resto da sua vida.

Ele apareceu vindo algures do interior do apartamento. Eu comecei a ler o que ele tinha escrito porque estava relutante em olhar para a cara dele. «Às vezes falha-me uma vírgula», disse ele, «ou escrevo a letra ou a palavra errada. Aí eu percebo que estou a escrever sem convicção, sem "sentir" o que escrevo. Então, paro. Por vezes preciso de horas, ou mesmo de dias, para regres­sar ao trabalho com a mesma intensidade. Espero pacientemente que me venha a inspiração, porque não quero escrever uma única palavra de que não sinta o poder dentro de mim.»

- Ouve - disse-lhe eu friamente, como se estivesse a falar de outra pessoa qualquer e não de mim mesmo. - Não consigo ser eu próprio. Não consigo ser nada. Ajuda-me. Ajuda-me a tirar da cabeça este quarto, o livro, e o que estás a escrever, para eu poder regressar outra vez à minha antiga vida e poder VIver em paz.

Num tom de tipo maduro, que explorou a vida e o universo, disse que percebia muito bem o que eu queria dizer. O tipo, se ca­lhar, pensava que percebia tudo! Porque não o matei logo, naquele sítio e naquele momento? Muito simplesmente porque ele dis­se: - Vamos até ao restaurante da estação, lá podemos conversar.

Quando nos sentámos no restaurante, informou-me de que havia um comboio às nove menos um quarto. Quando eu par­tisse, disse ele, contava ir ao cinema; o que significava que játinha decidido livrar-se de mim havia muito.

- Quando conheci a Janan, já tinha desistido de fazer prosé­litos do livro - disse ele. - Como toda a gente, eu queria uma vida, mas com a única vantagem de ter lido o livro, e com a van­tagem também de tudo o que vivera para atingir o mundo cujas portas o livro me entreabriu. Mas a Janan inflamou-me. Prometeu que ajudaria a integrar-me na vida. Estava convencida da exis­tência de um jardim que eu lhe escondia, não lhe dizendo como sabia que esse jardim estava aquém ou além de mim. Pedia a chave para esse jardim com tanta convicção que eu fui forçado a falar-lhe do livro e, depois, a dar-lho. Ela leu o livro, releu-o, e releu-o de novo vezes sem conta. Eu fiquei seduzido pela sua devoção ao livro, pelo desejo apaixonado que tinha do mundo que ela aí descobria. Durante um certo tempo, esqueci o silêncio do livro, ou - como hei-de dizer isto? - a música interna do livro. Tal como nos primeiros dias depois de ler o livro pela primeira vez, em que era levado estupidamente pela esperança de ouvir a música nas ruas, ou em qualquer lugar longínquo, sei lá onde. A ideia de dar o livro a ler a outras pessoas foi dela. Quando tu o leste, e acreditaste nele, assustei-me. Estava prestes a esquecer o sentido do livro quando dispararam, graças a Deus...

Naturalmente, perguntei-lhe qual era o sentido do livro.

- Um bom livro é algo que nos lembra o mundo inteiro - disse ele. - Talvez cada livro seja assim, ou cada livro deva ser assim. - Fez uma pausa. - O livro é parte de qualquer coisa de que sinto a presença e a duração através do que o livro diz, mas sem existir no livro - acrescentou, mas eu percebi que não gostou muito da forma como se exprimiu. - Talvez seja alguma coisa que ressalta do silêncio e do mundo, mas não desse silêncio ou desse barulho em si. - Deve ter pensado que eu poderia pen­sar que estava a dizer asneiras, já que tentou explicar-se melhor uma última vez. - Um bom livro é um escrito que tenta contar as coisas que não existem, tenta descrever uma espécie de au­sência ou de morte... Mas é inútil pormo-nos à procura da terra prometida que se encontra para além das palavras, no exterior do livro e da escrita. - Explicou-me então que sabia isto por força de ter copiado o livro tantas vezes, e que o tinha compreen­dido bem: era inútil procurar a vida nova e a terra prometida para lá do livro, e que ele, se tinha sido castigado por tê-lo feito, merecera bem o castigo. - Mas o meu assassino não passava de um desajeitado; apenas me feriu no ombro.

Eu disse-lhe que o vira de uma janela da Escola de Taskisla quando esse homem o alvejara perto de uma paragem de mini­-autocarros.

- Todas as minhas viagens, as minhas expedições, os meus percursos de autocarro mostraram-me que havia uma maquina­ção contra o livro - prosseguiu. - Há um louco furioso que quer ver mortos todos os que se interessem seriamente pelo livro. Quem é ele e por que está a fazer isto, isso não sei. É como se ele estivesse a fazê-lo para fortalecer a minha determinação em não divulgar o assunto do livro a mais ninguém. Não quero cau­sar problemas a ninguém, nem fazer com que a vida de alguém se desencaminhe. Fugi de Janan. Eu não só sabia que nunca encontraríamos o reino que ela desejava, como tinha compreen­dido muito bem que, se ela ficasse comigo, poderia também ser apanhada pelo esplendor da morte que o livro irradia.

Eu falei-lhe então do Tio Rifki, o funcionário dos caminhos­-de-ferro, para o surpreender e lhe poder arrancar a informação que ele estava a esconder de mim. Disse-lhe que este homem poderia muito bem ser o autor. Mencionei que o tinha conhecido na minha infância, e que devorava as bandas desenhadas que ele criava. Depois de ler o livro, examinei novamente com aten­ção estas bandas desenhadas, por exemplo, Pertev e Peter, e pude verificar que muitos temas do livro já tinham sido tratados inicialmente nesse romance ilustrado.

- Isso desiludiu-te?

- Não - disse eu. - Fala-me do teu encontro com ele. O que ele me contou completou de uma maneira lógica a informação que eu recolhera nos relatórios de Serkisof. Depois de ter lido o livro milhares de vezes, tinha encontrado nele algumas reminiscências das bandas desenhadas infantis que lera em pequeno. Procurara então esses livros nas bibliotecas municipais, encontrara-os e, descobrindo as suas espantosas semelhanças, detectou a identidade do autor. Na primeira visita não pôde falar muito com o Tio Rifki, por causa da mulher, Nesse encontro, que tivera lugar à entrada, Tio Rifki tentou acabar com a conversa logo que percebeu que o jovem estranho que estava à sua porta tinha interesse no livro, respondendo com súplicas e dizendo que ele próprio já não tinha grande interesse no assunto. A comovente en­trevista que poderia ter acontecido ali à soleira daquela porta, entre o jovem admirador e o escritor de idade madura, não acon­teceu porque a mulher de Tio Rifki - a Tia Ratibe, intercalei eu - interferiu, tal como eu tinha feito, e puxou o marido para dentro batendo com a porta na cara desta visita não desejada.

- Fiquei tão desiludido, nem queria acreditar! - disse o meu rival, a quem eu não sabia se havia de chamar Nahit, ou Mehmet, ou Osman. - Durante uns tempos continuei a andar pelas redondezas, a espiá-lo à distância. Até que um dia arranjei coragem de novo e toquei à campainha.

Desta vez Rifki Rail foi mais compreensivo. Disse que já não tinha qualquer interesse pelo livro, mas que o jovem, já que tan­to insistia, podia ficar e tomar café. Perguntou-lhe onde raio éque o rapaz tinha adquirido e lido o livro que tinha sido publi­cado havia já tantos anos, e quis saber porque tinha escolhido este livro quando havia tantos livros fantásticos para ler; onde é que o jovem estudava, e o que pensava fazer da vida, etc., etc. - Embora eu lhe tenha pedido uma porção de vezes para me revelar os segredos do livro, ele não me levou a sério! - disse aquele que foi oUtrora Mehmet. - Mas ele tinha razão. Eu agora sei que ele não tinha qualquer segredo a revelar,

Ele, porém, como na altura não sabia disso, continuou a in­sistir. O velho explicou-lhe que tinha tido problemas graves por causa do livro, que tinha sido pressionado pela polícia e pelo promotor de justiça. - Tudo isso porque eu pensei que po­deria dar alguma diversão e entretenimento a uns quantos adul­tos, visto que também já tinha divertido e entretido os miúdos - disse ele. - E, como se não bastasse, o Tio Rifki, funcionário dos caminhos-de-ferro, prosseguiu dizendo: - Eu nunca iria permitir, naturalmente, que toda a minha vida fosse destruída por causa de um livro que escrevi para me divertir. - Mehmet­-Nahit, absorvido na sua raiva, não se apercebera na altura de como o velho se tinha tornado amargo quando explicou que tinha repudiado o livro e prometido ao promotor de justiça que não sairia outra edição da obra, nem escreveria mais nada deste gé­nero; mas agora, que ele já não era Nahit nem Mehmet, mas Osman, compreendia a mágoa do velho tão bem que ficava apa­vorado de cada vez que se lembrava da sua falta de tacto.

Como qualquer jovem confiante e apegado ao livro com pro­funda convicção, ele tinha acusado o velho escritor de irrespon­sabilidade, traição e cobardia. - Eu estava a tremer de raiva, gritando-lhe e insultando-o, mas ele foi sempre compreensivo e nem sequer se zangou. - A determinada altura, o Tio Rifki até já se punha de joelhos e dizia: - Tu próprio irás perceber isto um dia, mas poderás já ser velho de mais para te servir de alguma coisa...

- Agora percebi - continuou o homem que Janan amava até à loucura. - Mas não sei se posso ser útil a alguém, seja no que for. Além disso, acho que os assassinos a soldo daquele louco furioso que quer matar todos os leitores do livro me seguiam e mataram então o velho.

O assassino em potência perguntou à vítima potencial se cau­sar a morte de alguém seria um fardo insuportável para se car­regar o resto da vida. A vítima potencial não disse nada, mas o assassino em potência viu a tristeza nos olhos dele e receou pelo seu próprio futuro. Estavam a bebericar o raki num ritmo lento, como dois verdadeiros cavalheiros; e no meio de gravuras de comboios, de paisagens patrióticas e de fotografias de estre­las de cinema, sorria o retrato de Atatürk com a certeza de ter salvaguardado a República confiando-a à multidão que se embe­bedava na taberna.

Consultei o relógio. Faltava ainda uma hora e meia para a par­tida do comboio previsto por ele para se livrar de mim, e havia entre nós a sensação de que tínhamos falado e resolvido as coisas mais do que suficientemente; ou, como se diz nos livros, «tudo o que era preciso dizer, foi dito». Ficámos calados um bom pe­daço de tempo, como dois velhos amigos que não se sentem mal quando se faz silêncio entre eles; pelo contrário, considerámos aquele silêncio, pelo menos no que me toca, a forma mais elo­quente de diálogo.

Mesmo assim, hesitando entre admirá-lo a ponto de o imitar e o desejo de o matar para poder conquistar Janan, pensei por um momento em dizer-lhe que o louco que andava a matar o autor e os leitores do livro não era outro senão o seu próprio pai, o doutor Fino. Eu queria infligir-lhe esta dor, pela simples razão de me sentir oprimido, nada mais. Mas não lhe disse nada. Está bem, está bem, pensei para mim mesmo; era apenas para o ma­goar, porque já estava farto, mas nunca se sabe, é claro, e nunca devemos quebrar equilíbrios frágeis, como este que se instalara entre nós.

Ele deve ter ficado com uma vaga ideia dos meus pensa­mentos, ou, pelo menos, deve ter desconfiado de alguma coisa, por isso contou-me a história do acidente de autocarro que o tinha levado a desembaraçar-se dos homens contratados pelo seu pai para o seguirem. Pela primeira vez, sorria franca e aber­tamente. Tinha percebido logo que o jovem coberto de tinta preta sentado ao lado dele no autocarro morrera no acidente. Tinha tirado o bilhete de identidade desse jovem de nome Meh­met e, antes de o autocarro começar a arder, saíra. Quando o fogo se apagou, teve uma ideia brilhante. Meteu o seu próprio bilhete de identidade no bolso do corpo meio carbonizado e, movendo­-o para o seu próprio lugar, seguiu em frente para uma vida nova. Os seus olhos brilharam como os de uma criança quando me con­tava isto; mas, é claro, eu não lhe contei que já tinha visto aquela sua cara radiosa nas fotografias da infância guardadas no museu que o seu pai dedicara à sua memória.

De novo o silêncio, e mais silêncio, e ainda silêncio. Empre­gado, traga-nos umas beringelas recheadas...

Só para passar o tempo, já se sabe, começámos a falar por falar, abordando as nossas situações, isto é, as nossas vidas, ele com os olhos postos no relógio, eu com os olhos postos nele. Debi­távamos banalidades do género: pois, a vida é assim; no fundo, a história era muito simples, era um velhote maníaco dos cami­nhos-de-ferro que tinha horror dos autocarros e dos acidentes rodoviários, e que escrevia artigos para a revista da Companhia dos Caminhos-de-Ferro, e que resolvera publicar um livro estranho baseado nas próprias bandas desenhadas que inventava para as crianças. Depois, isto é, uns anos mais tarde, uns jovens cheios de boas intenções como nós, que tinham lido aquelas bandas desenha­das na infância, liam o livro e, convencidos de que as suas vidas se tinham transformado com isso, acabavam por ser eles próprios a transformá-las. A magia que havia no livro! O milagre que era a vida! Como fora que tudo isso tinha podido acontecer-nos?

            Mencionei uma vez mais que tinha conhecido o Tio Rifki na minha infância.

            - Não sei porquê, mas esta história parece-me muito estra­nha! - disse ele.

            Mas ambos sabíamos que nada era estranho. Era assim, e era mesmo assim que as coisas se passavam, ora aí está.

            - Isto é ainda mais verdade na cidade da Velha Vinha - dis­se o meu querido companheiro.

Isto deve ter mexido com a minha memória. - Sabes - re­pliquei, soletrando de propósito cada sílaba e olhando-lhe para a cara -, muitas vezes tive a impressão de que o livro era sobre mim, que a história do livro era a minha história.

Silêncio. Barulhos, suspiros de uma alma em agonia, uma taberna, uma pequena cidade, um universo. Barulhos de garfos e facas. Telejornais da noite. Mais vinte e cinco minutos.

- Sabes - continuei -, já descobri várias vezes caramelos «Vida Nova» em muitos sítios, durante a minha estada na Ana­tólia. Há muitos anos, também os havia em Istambul. E ainda se encontram em sítios remotos, no fundo das caixas de bombons finos e nos frascos de caramelos.

- Andas mesmo à procura da Causa Original das coisas, não andas? - disse o meu rival, que vivera uma abundância de cenas da outra vida. - Andas em busca de coisas que sejam puras, não corrompidas, claras. Mas não há gerador, não há causa primeira. É inútil procurar-se a chave, a palavra, a fonte, o original do qual nós somos meras cópias.

E assim, já não foi por eu querer muito a Janan, mas porque ele não acreditava em ti, ó Anjo, que eu decidi abatê-lo no cami­nho para a estação.

Ele continuava a falar a espaços para quebrar os silêncios que se instalavam entre nós sem sabermos porquê, mas, francamente, eu já nem sequer dava atenção ao que dizia aquele belo rapaz melancólico:

- Quando eu era miúdo, via a leitura como uma carreira séria em que a pessoa podia mais tarde trabalhar, uma profissão tão válida como outra qualquer.

«O Rousseau, que trabalhou como copista de música, sabia o que significava escrever vezes e vezes sem conta o que as outras pessoas tinham criado.

Pouco depois, já não eram apenas os silêncios que se quebra­vam, também tudo à nossa volta como que se fracturava em mil pedaços. Alguém tinha ligado a televisão e sintonizado a rádio para uma música intensamente melancólica sobre a paixão e a separação. Quantas vezes na vida um silêncio mútuo nos dá um tal prazer? Mehmet tinha acabado de pedir a conta quando um homem de certa idade se fez convidado para a nossa nessa e se virou para mim, olhando-me atentamente. Quando ficou a saber que eu era um colega da tropa do senhor Osman, e que eu próprio me chamava também Osman, para encetar a conversa, disse: - Cá na cidade gostamos muito do senhor Osman. ­

Depois continuou a falar, com certa prudência, informando Osman, como se lhe revelasse um segredo, sobre um cliente para uma cópia do livro. Adivinhei que o meu colega da tropa era suficientemente esperto para pagar uma comissão a esta espécie de agente literário e, mais uma e última vez, disse para mim pró­prio que não podíamos deixar de gostar sinceramente do Osman.

Eu imaginara que a cena da despedida se pareceria com o desenlace de Pertev e Peter - com o acrescento do barulho da detonação da minha Walther -, mas afinal estava errado.

Na aventura final da história ilustrada, quando os dois fiéis amigos, que tinham passado juntos por tantas aventuras e travado tan­tos combates, acabam por perceber que estão ambos apaixonados pela mesma rapariga - que, aliás, partilha do ideal comum -, decidem resolver amigavelmente o problema: Pertev, mais sen­sível e fechado, renuncia discretamente à rapariga, porque sabe que ela será mais feliz com Peter, mais optimista e mais aberto perante a vida, e, com acompanhamento de suspiros de leitores como eu, sempre com a lágrima ao canto do olho, os nossos he­róis despedem-se na estação dos comboios que antes tinham heroicamente defendido. Ao passo que, no nosso caso, tínhamos entre nós um intermediário que se estava positivamente marim­bando para os sentimentos e para as iras desta natureza.

Fomos os três para a estação, sem trocarmos mais uma palavra. Comprei o bilhete. Comprei dois bolos folhados iguais aos que tinha comido de manhã. Pertev mandou pesar um quilo daquelas famosas uvas brancas e enormes que eram especialidade de Velha Vinha. Enquanto eu escolhia algumas revistas para a viagem, ele foi à casa de banho lavar as uvas. Eu e o agente literário olhámos um para o outro. O comboio demorava dois dias a chegar a Is­tambul, disseram-me. Quando o Pertev voltou, o chefe da esta­ção deu sinal de partida com um gesto simples mas gracioso que me lembrou o meu pai. Beijámo-nos dos dois lados da face e eu entrei na carruagem.

O resto assemelhou-se mais aos filmes de suspense que eu e a Janan víamos com tanto prazer nos vídeos dos autocarros do que às histórias ilustradas do Tio Rifki. Este jovem em fúria que tinha decidido matar por amor arremessava o saco de plástico cheio de uvas molhadas e as revistas para um canto do compar­timento e, antes que o comboio acelerasse, saltava da carruagem por altura do extremo mais afastado da plataforma. Assegurando­-se de que ninguém o vira, seguiu à distância a futura vítima acompanhada pelo intermediário. Os dois falaram durante um bocado e, depois, caminharam calmamente pelas ruas tristes e desertas, antes de se despedirem em frente da estação dos Cor­reios. O futuro assassino observa a sua vítima a entrar no Teatro do Novo Mundo, e acende um cigarro. Nunca sabemos o que vai na cabeça do assassino quando acende um cigarro neste gé­nero de filmes, mas vemo-lo agora a atirar fora a beata, como eu fiz ainda agora, a esmagá-la com o pé, a comprar o bilhete para o filme Noites sem Fim, e a entrar no cine-teatro com passos deci­didos; mas, antes de entrar no hall, vemo-lo a verificar a casa de banho, para ter a certeza de que tem por onde escapar.

O resto é apenas uma sucessão de imagens, tão fragmentadas e díspares como os silêncios que haviam acompanhado a noite. Saquei da minha Walther, soltei a patilha de segurança e entrei na sala onde estava a passar o filme. Lá dentro fazia um calor húmido e o tecto era baixo. A minha silhueta com a pistola na mão apareceu no ecrã e o filme a Technicolor foi projectado no meu casaco roxo. A luz vinda do projector encandeou-me, mas, como o cinema estava praticamente vazio, localizei imediata­mente a minha vítima. Talvez ele tivesse ficado surpreendido, talvez não percebesse, talvez não me reconhecesse, talvez já esti­vesse à espera, mas continuou sentado.

- Conheces alguém como eu, dás-lhe um livro que tenhas a certeza que ele vai ler, e desencaminha-lo do curso da sua vida - disse eu, mais para mim do que para ele.

Para ter a certeza absoluta de que lhe acertava, disparei-lhe três vezes à queima-roupa no peito e na cara que não conseguia ver. Findo o trabalho ruidoso da minha Walther, anunciei aos espectadores sentados no escuro:

- Matei um homem.

            Enquanto saía da sala, sempre a deitar o rabo do olho para a minha silhueta no ecrã e para as Noites sem Fim, alguém começou a gritar «Projeccionista! Eh, machiniste!»

Apanhei o primeiro autocarro que deixava a cidade e, ao mesmo tempo que me colocava as questões que todos os crimi­nosos se colocam, perguntava também a mim mesmo por que raio se utiliza no nosso país a mesma palavra francesa, «machi­niste», para designar o funcionário que projecta os filmes e o que conduz uma locomotiva.

 

Durante a noite em branco que o assassino viveu, mudei duas vezes de autocarro e, numa paragem, olhei-me no espelho rachado da casa de banho. Ninguém vai acreditar se disser que o homem que eu vi no espelho se parecia muito menos com um assassino do que com o fantasma da sua vítima. Mas a paz inte­rior que esta vítima tinha conseguido à custa de escrever estava muito longe do homem na casa de banho, que um pouco mais tarde estava de novo a rodar num autocarro muito pouco pa­cífico.

De manhã cedinho, antes de voltar para casa do doutor Fino, fui a um cabeleireiro para fazer a barba e um corte esmerado de cabelo, para que pudesse aparecer em frente de Janan com a aparência de um jovem tão audacioso quanto optimista que, com o desígnio de fundar um lar feliz, tinha ultrapassado com êxito muitas aventuras e, até, enfrentado a morte. Quando cheguei à propriedade do doutor Fino, olhei pelas janelas da casa e imaginei Janan à minha espera na sua cama quentinha; o meu coração pôs-se a bater a dois tempos: Pat! Pat! E do alto de um plátano um pardal pôs-se a pipilar em contraponto.

Foi Rosina quem me abriu a porta. Não lhe olhei para a cara - talvez porque tinha abatido a tiro o seu irmão doze horas antes a meio de um belo filme -, não reparei na expressão de surpresa que apareceu nessa cara, não a vi levantar os sobrolhos com ar desconfiado, ouvi com distracção o que ela me dizia, entrei como se fosse em minha casa e fui direito ao quarto onde deixara Janan na sua cama de doente, ao nosso quarto. Abri a porta sem bater para fazer uma surpresa à minha amada. Mas quando vi que o quarto e a cama a um canto estavam vazios, compreendi o sentido do que Rosina me dissera na soleira da porta e que ainda continuava a dizer-me.

Janan tinha ardido em febre durante três dias, depois fi­cara boa. Quando se levantou, foi à cidade para telefonar para Istambul, falou com a mãe, e então, como não tivessem quais­quer notícias minhas, Janan decidira bruscamente voltar para casa.

Eu tinha os olhos fixos na amoreira resplandecente ao sol da manhã, no jardim atrás da casa, desviando-os de vez em quando para a cama com a colcha cuidadosamente alisada. O exemplar do Correio de Güdül que Janan utilizara para se abanar no carro que nos levara até casa do doutor Fino ainda estava em cima da cama. Uma voz dentro de mim dizia que Janan sempre soubera que eu era um miserável assassino e que nunca mais a voltaria a ver, de maneira que já não me restava mais nada a fazer senão fechar a porta e deitar-me em cima da cama que conservava ainda o seu perfume para derramar todas as lágrimas do meu corpo até ao momento em que adormecesse. Outra voz respondia-lhe: um assassino deve comportar-se como um assassino, manter o seu sangue-frio e nunca se deixar cair na desorientação. Janan estava certamente à minha espera em Nisantasl, em casa dos pais. Antes de sair do quarto, vi no peitoril da janela a melga que tão cruel­mente nos atormentara e pude, por fim, esborrachá-la com a mão. Tinha a certeza de que o sangue da melga que manchou a linha do coração da palma da minha mão era o sangue, tão doce, de Janan.

Pensei que seria bom para o nosso futuro a dois eu ver de novo o doutor Fino nesta casa, o coração da Contra-Maquinação, e ir depois encontrar-me com Janan em Istambul. O doutor estava sentado numa mesa perto da amoreira. Numa mão tinha um cacho de uvas, que comia com grande apetite, na outra tinha um livro donde desviava os olhos de quando em quando para os lançar para a colina que tínhamos subido juntos.

Com a placidez das pessoas que têm todo o tempo do mundo à sua frente, falámos da crueldade da vida, do poder secreto da natureza no destino do homem, da serenidade, da calma que a noção daquilo a que chamamos tempo inspira ao homem; foi mesmo dito que não era possível apreciarmos o gosto daqueles bagos madurinhos se não estivéssemos animados pela vontade e pela resolução. Falámos da consciência no seu mais alto nível e do desejo necessário e indispensável para atingirmos o próprio cora­ção da vida real, dessa vida em que não se encontra o mínimo vestígio de imitação. Interrogámo-nos sobre se o modesto ouriço­-cacheiro que passava ao pé de nós num restolhar de mato era a grande manifestação lúdica da grande ordem universal ou o resultado do acaso assimétrico. Matar um homem confere, sem dúvida, alguma maturidade, já que eu era capaz de juntar à admi­ração que, para minha surpresa, continuava a ter pelo doutor Fino um sentimento de compreensão e de tolerância jorrando-me do mais profundo da alma, como uma doença que se manifesta brus­camente. Foi por isso que quando ele propôs que eu o acompa­nhasse numa visita ao túmulo do seu filho, eu fui capaz de recusar, sem o ferir, mas com firmeza: a semana esgotante e ocupadíssima que eu acabara de viver tinha-me deixado verdadeiramente exausto; tinha de voltar o mais depressa possível para minha casa e, principalmente, recompor-me antes de tomar uma decisão sobre a enorme responsabilidade de que ele queria encarregar-me.

Quando o doutor Fino me perguntou se eu tivera a oportuni­dade de experimentar o presente que ele me oferecera, eu disse-lhe que tinha experimentado a Walther e que os resultados tinham sido perfeitamente satisfatórios para mim; lembrei-me então do relógio Serkisof que tinha no bolso havia dois dias. Disse-lhe que o relógio era a expressão do respeito e da admiração que um comerciante de coração despedaçado tinha por ele e pu-lo em cima da mesa, ao lado da taça das uvas douradas.

- Todos esses infelizes desiludidos, esses pobres diabos cheios de fraquezas - disse-me ao mesmo tempo que deitava um olhar de esguelha para o relógio -, com que paixão se agarram àqueles que, como eu, lhes prometem um mundo justo em que viverão com os objectos que mais prezam e a que estão habituados! Como são implacáveis as forças exteriores decididas a destruir as nossas vidas e as nossas recordações! Quando voltar para Istambul, e antes de tomar uma decisão, deve pensar na ajuda que poderá levar a essas pessoas cuja vida foi destroçada!

Antevi por um momento a possibilidade de encontrar Janan em Istambul o mais depressa possível e de a convencer a voltar para esta casa que era o próprio coração da Contra-Maquinação, para este ambiente de: «toda a gente é boa, toda a gente é feliz!»

Regressei imediatamente a Istambul, sempre de autocarro. Não contei à minha mãe, que me abriu a porta à hora da primeira oração da manhã, que tinha ido em busca do Eldorado; nem sequer lhe falei da sua angélica nora.

- Nunca mais voltes a abandonar assim a tua mãe - disse­-me ela ligando o esquentador e preparando-me um banho.

Tomámos o pequeno-almoço muito calmamente, entre mãe e filho, como dantes. Percebi que a minha mãe, como tantas outras mães cujos filhos se deixam enredar nas correntes políticas ou religiosas, guardava silêncio porque estava convencida de que eu me tinha deixado atrair por um dos numerosos focos de intrigas do nosso país, e que tinha medo de ficar a saber coisas terríveis se me fizesse perguntas e eu lhe respondesse. Quando os seus dedos ágeis e finos pousaram por um breve instante junto do doce de cornisos, reparei nas manchas escuras nas costas da sua mão e pensei para mim que tinha regressado à minha vida de antigamente. Tudo poderia recomeçar como se nada se tivesse passado?

Depois do pequeno-almoço instalei-me à mesa de trabalho e fiquei a olhar demoradamente para o livro aberto que tinha ali deixado. Não se pode dizer que o lesse; tratava-se mais de uma maneira de ordenar as minhas recordações e de sentir a minha dor.          Preparava-me para sair à procura de Janan quando a minha

            mãe me barrou a passagem:

            - Jura-me que voltas para casa à noite!

Jurei. Todas as manhãs, durante dois meses, tive de fazer esta

jura ao sair de casa. Janan, no entanto, encontrava-se em parte incerta. Fui a Ni_ant_1, calcorreei as ruas, fiquei plantado à espera diante do prédio, toquei à porta, atravessei pontes, tomei barcos, fui ver filmes, fiz não sei quantos telefonemas, mas não obtive qualquer informação.

Quando as aulas recomeçaram, em finais de Outubro, tentei convencer-me de que ela apareceria finalmente nos corredores da Escola, mas nunca apareceu. Passava os dias a percorrer aqueles corredores, para trás e para a frente; quando via uma silhueta que me lembrava a dela pelas janelas que davam para a passagem coberta, precipitava-me para fora da aula e ia atrás dela; às vezes entrava numa sala de aula vazia e ficava lá muito tempo a ver passar os transeuntes no caminho e nos passeios.

Quando chegou a época de se acenderem os fogões e os caloríferos, fui tocar à porra dos pais da minha colega «que perdera de vista», inventando um pretexto que me parecia muito habilidoso, mas, quando lhes estava a debitar as minhas balelas, tornei-me ridículo. Não só não me deram qualquer informação sobre o sítio onde pudesse estar Janan, como não lhes consegui sacar nenhum indício que me desse uma pista do seu paradeiro. No entanto, durante a visita que lhes fiz num domingo à tarde, estando a televisão a transmitir um jogo de futebol sem história e a derramar vagas de sons e cores, percebi que eles, pela maneira como tentavam obter de mim informações sobre os motivos da minha própria inquietação, sabiam muitas coisas que estavam a esconder-me. Todos os meus esforços para obter informações dos pais dela ou dos amigos - de quem soube os números pela lista telefónica - foram inúteis. Todas as conversas telefónicas que tive com os tios resmungões, com as tias demasiado curiosas, com as criadas prudentes e os primos ou primas trocistas leva­ram-me à mesma conclusão: Janan era estudante na Escola de Arquitectura...

Quanto aos seus colegas da Escola, acreditavam com firmeza nas histórias que eles próprios tinham inventado a respeito de Janan e também desse Mehmet que tinha sido ferido alguns meses antes na paragem dos miniautocarros: alguns estudantes contavam que alguém tinha disparado contra Mehmet num ajuste de contas entre passadores de droga que frequentavam o hotel onde ele trabalhava. Ouvi também, em sussurro, que ele tinha sido vítima de fundamentalistas fanáticos. Havia também os que afirmavam que Janan tinha sido mandada algures para a Europa, para continuar os estudos: estratagema a que recorrem as boas famílias quando as suas filhas se apaixonam por rapazes pouco fiáveis, mas bastou-me uma pequena investigação na secretaria para saber que não era nada daquilo.

Nem vale a pena falar das investigações e perseguições que levei a cabo, cada uma mais engenhosa do que a outra, dos planos arquitectados com o sangue-frio de um assassino, dos sonhos desesperados - a verdade era que Janan era impossível de encontrar. Não tinha qualquer notícia dela, não descobria a mínima pista. Repeti o semestre que tinha falhado, terminei o semestre seguinte. Não procurei contactar o doutor Fino nem os seus homens, e eles também não me procuraram. Ignorava se continuavam a assassinar pessoas. Com o desaparecimento de Janan, eles já não assombravam os meus sonhos ou os meus pesadelos. Chegou o Verão. Depois o Outono, com um novo ano escolar, que terminei, depois outro ainda. Depois fui fazer o meu serviço militar.

Dois meses antes de passar à disponibilidade, soube da morte da minha mãe. Concederam-me uma licença, e ainda cheguei a tempo do funeral. Passei a noite do enterro com os amigos, depois fui para casa, onde o silêncio dos quartos vazios me assustou. Estava a olhar para as frigideiras e tachos pendurados na parede da cozinha quando notei a voz familiar do frigorífico entrecortada de suspiros e gemidos. Estava sozinho na vida... Fui deitar-me na cama da minha mãe, chorei um pouco, depois liguei a televisão e instalei-me em frente do ecrã, como fazia a minha mãe, e durante muito tempo estive a ver os programas com resignação e também com um sentimento de felicidade, a felicidade de estar vivo. Antes de me ir deitar, tirei o livro do esconderijo, abri-o em cima da mesa e, na esperança de voltar a sofrer a sua influência, pus-me a lê-lo como se fosse a primeira vez que o fazia. Nenhuma luz me jorrou para a cara, não tive a sensação de que o meu corpo se separava da cadeira, mas senti uma profunda paz interior.

Foi assim que voltei a ler e a reler o livro, mas já não dizia para mim, de cada vez que o lia, que o vento poderoso vindo não sei donde varria a minha vida e a levava até paragens desconhe­cidas. Esforçava-me por apanhar a geometria secreta de uma história terminada havia muito, os pontos fracos de umas contas saldadas desde há muito, por escutar as vozes interiores que não pudera agarrar enquanto a vivia. Perceberam, não é? Antes mesmo de ter terminado o meu serviço militar, tornei-me um homem velho.

Foi assim que me virei para outros livros, mas sempre da mesma maneira. Não lia para reavivar o desejo de uma alma diferente da que se enroscava em mim no crepúsculo ou para me juntar com felicidade às alegrias que decorriam na outra face do universo, a que nunca se vê; nem mesmo, quiçá, para ir ao encontro de outra vida em que pudesse encontrar Janan; não, eu lia para poder enfrentar com sensatez e seriedade, como homem honrado, tanto o que me acontecia na vida como a ausência de Janan, uma ausência que eu sentia muito profundamente. Também não esperava receber do Anjo do Desejo um candelabro de sete braços para decorar a nossa casa. Com a noite já avan­çada, quando levantava a cabeça do livro que estava a ler com um sentimento de serenidade e de equilíbrio espiritual, dava-me conta do silêncio profundo que reinava no bairro e surgia­-me diante dos olhos a imagem de Janan adormecida ao meu lado numa daquelas viagens de autocarro que eu pensava que nunca mais acabariam.

Numa dessas viagens - que me acorriam à memória de cada vez que as evocava, e tão coloridas como um sonho paradisíaco -, reparara que a testa e as têmporas de Janan estavam molhadas de suor e que tinha os cabelos húmidos, por causa do aquecimento muito forte; quando lhe limpei cuida­dosamente as gotas de suor, com o lenço ornamentado com motivos de faianças de Kütahya que eu comprara na cidade do mesmo nome, surpreendi na cara da minha amada, graças aos reflexos da luz cor de malva da estação de serviço por onde estávamos a passar nesse momento, uma expressão de felicidade e de surpresa intensas. Mais tarde, quando nos sentámos a uma mesa do restaurante de uma área de serviço, ela mostrara-se muito alegre no seu vestido encharcado de suor, um vestido de algodão estampado de flores vendido nas lojas estatais, bebendo vários copos de chá; contara-me, sorrindo, que sonhara com o pai, que o beijava na testa mas, ao cabo de um momento, descobrira que não se tratava do pai, mas de um mensageiro vindo de uma região de luz. Quando sorria, Janan tinha o hábito de atirar o cabelo para trás das orelhas num gesto tão delicado que, de cada vez que ela fazia aquilo, uma parte do meu espíritO, do meu coração, da minha alma derretia-se e perdia-se na noite escura.

Parece que estou a ver alguns dos meus leitores a franzirem o sobrolho com tristeza, pensando que eu tento desenvencilhar­-me com o que subsiste dessas noites no meu coração, no meu espírito, na minha alma. Leitor paciente, leitor compreensivo, leitor sensível, chora por mim se puderes, mas não te esqueças de que o homem por quem derramas lágrimas é um assassino. Apesar disso, se existem determinadas condições que permi­tem sentir compreensão, simpatia, benevolência por vulgares assassinos, tal como são admitidas pelo Código Penal as circuns­tâncias atenuantes, peço que sejam anotadas no livro a que me sinto tão intimamente ligado.

Embora eu me tenha casado depois, sempre soube que tudo o que fizesse até ao fim da minha vida - um fim que eu sabia muito longínquo - teria que ver, de perto ou de longe, com Janan. Antes de me casar, e mesmo depois de a minha mulher se ter instalado à sua vontade no apartamento herdado do meu pai e deixado vago por morte da minha mãe, continuei a fazer longas viagens de autocarro na esperança de encontrar Janan. Pude verificar, durante essas viagens, que, ao longo dos anos, os autocarros se tornaram cada vez mais espaçosos, com um cheiro de anti-séptico a envolver o seu habitat, bastando carregar num botão para que as portas se abrissem e se fechassem silen­ciosamente, graças a um sistema hidráulico automático; que os motoristas já não usavam aquelas camisas manchadas de suor e os casacos fanados, mas vestiam fardas de pilotos de avião, ornamentadas de dragonas; que os seus assistentes com pinta de bandidos já faziam a barba todos os dias e já tinham apren­dido boas maneiras; que os restaurantes à beira das estradas eram mais bem iluminados e mais agradáveis, mas todos arranjados da mesma maneira, e que todas as estradas eram muito mais largas e mais bem asfaltadas. Pois bem, não só nunca encontrei Janan como não encontrei qualquer pista que me levasse a ela. Não queria encontrá-la mesmo a ela, já não pedia tanto, mas teria dado tudo pelo menor indício que me fizesse regressar às noites maravilhosas que tinha vivido com ela nesses auto­carros, encontrar, por exemplo, uma daquelas pessoas com quem Janan metia conversa num terminal, com um copo de chá na mão, ou mesmo sentir em mim um raio de sol que tivesse roçado a sua cara, para me sentir a seu lado nem que fosse por um brevíssimo instante! Porém, tal como as novas auto-estradas, com os seus painéis de sinalização, as suas luzes pestanejantes e os seus implacáveis cartazes publicitários, em que o asfalto cobre as nossas recordações de infância, também à minha volta tudo parecia decidido a desligar-se o mais depressa possível de todas as recordações, e sobretudo das minhas recordações em que entrava Janan.

Foi depois de uma destas viagens que me faziam entregar à melancolia que eu vim a saber o seguinte: Janan tinha-se casado e deixado o país. O vosso herói, assassino, casado e bom pai de família, regressava do seu escritório de arquitecto, na Direcção Municipal das Obras Públicas, de pasta na mão e, dentro da pasta, uma tablette de chocolate Chocomel para a filha, com o coração toldado por nuvens de tristeza, com uma expressão de cansaço marcada na cara, de pé no barco repleto que o levava para Kadikoy, quando se encontrou frente a frente com uma das colegas da Escola de Janan. «Quanto a Janan», disse a mulher extremamente loquaz depois de ter enumerado todos os casa­mentos contraídos pelas raparigas da sua turma, «casou com um médico de Samsun e instalou-se na Alemanha com ele.» Quando desviei os olhos, com medo de que ela continuasse a dar­-me más notícias, vi o nevoeiro, tão raro à noite, a descer sobre Istambul e o Bósforo.

            - É o nevoeiro? - perguntou a si mesmo o assassino. – Ou será a bruma silenciosa que invade a minha alma?

Não tive de investigar muito para saber que o marido de Janan era um elo homem, bem-apessoado, médico no hospital da Segurança Social em Samsun que, tendo lido o livro, e diferentemente dos outros, soubera assimilá-lo ao seu sistema digestivo, de maneira muito sã, e viver na serenidade e na felicidade.

Para impedir que a minha implacável memória repisasse nos tristes pormenores da conversa sobre a vida e sobre o livro que tivéramos - de homem para homem - no seu consultório no hospital, tantos anos antes, durante um certo tempo meti-me a beber, mas os resultados deste método não foram brilhantes.

Quando finalmente reinava o silêncio na casa, à hora em que, da agitação da vida quotidiana, apenas subsistia o carro dos bombeiros da minha filha, a que faltavam duas rodas, e o seu urso de pelúcia azul que fazia o pino e olhava para a televisão de pernas para o ar, voltava para a sala com o copo de raki que tinha preparado com cuidado na cozinha, instalava-me com dignidade ao lado do urso, ligava a televisão, baixando o som, escolhia a série menos agressiva, menos vulgar; com a cabeça enevoada, olhava para o ecrã, esforçando-me por distinguir as cores das nuvens que me enchiam o espírito.

Não tenhas pena de ti mesmo. Não imagines que a tua pessoa e a tua vida são únicas. Não fiques desolado por não ter sido devidamente apreciada a intensidade do teu amor. Ficai sabendo que em tempos li um livro, que estive apaixonado por uma rapariga, que vivi qualquer coisa de muito profundo. Não me compreenderam, desapareceram todos, que podem fazer agora? Janan está na Alemanha, Bahnhofstrasse, gostava de saber como está... O marido dela é médico... Não penses mais nisso. Parece que ele sublinha tudo o que lê nos livros, o médico bonito, o cretino... Não penses mais nisso. À noite volta para casa, Janan abre-lhe a porta, têm uma bela casa, um carro novo, dois filhos. Não penses mais nisso... O sacana do marido dela... Suponhamos que a Comissão de Estudos do município me manda à Alemanha, que nos encontramos uma noite no consulado, olá, então, és feliz, amei-te tanto, Janan. E agora? Ainda te amo muito, amo-te, estou pronto a largar tudo, a ficar na Alemanha, amo-te muito... Por ti, tornei-me assassino. Não, não digas nada... Estás tão bonita... Não penses mais nisso. Ninguém poderá amar-te como eu te amei...

Lembras-te daquela vez em que tivemos um furo? E da boda que fomos encontrar a meio da noite? Estavam todos bêbados... Não pensemos mais nisso.

Acontecia que, de tanto beber, adormecia; e quando, horas depois, acordava, espantava-me por ver que o ursinho azul, que estava de pernas para o ar quando eu me sentara no divã, estava agora no seu assento em frente do ecrã. Em que momento se partira o fio e eu tinha posto o urso direito na sua cadeirinha?

Por vezes, vendo distraidamente o clip de uma canção estran­geira, lembrava-me de ter ouvido aquele género de canção com Janan, sentados lado a lado no banco do autocarro, encostados ao de leve um ao outro, e eu podia sentir o calor do seu ombro frágil. Olha, olha para mim a chorar, vendo a melodia que dantes ouvimos juntos a jorrar em mil cores do ecrã... Outra noite ouvi chorar a miúda, tinha acordado, a mãe dormia; peguei nela, levei-a para a sala de estar, ela olhava para as cores que se suce­diam no ecrã e eu olhava com admiração para a sua mãozinha, uma cópia perfeita de uma mão de adulto nos mínimos porme­nores, nas linhas e nas curvas dos seus dedos e unhas, e reflectia no livro a que se chama Vida, quando de súbito a minha filha exclamou: «O homem fez puf!.»

Olhávamos com inquietação para a cara desesperada do desgraçado que, depois de ser terrivelmente espancado, estava agora banhado em sangue...

Os leitores sensíveis que seguem as minhas aventuras não devem sobretudo pensar que, lá porque eu bebia à noite, tinha desistido de viver, que também a minha vida fizera puf. Tal como a maioria dos homens que vivem neste canto do mundo, tornara­-me um homem despedaçado antes de chegar aos trinta e cinco anos, mas, mesmo assim, tinha conseguido recompor-me, de tanto ler, e pôr alguma ordem no meu espírito.

Lia muito, não só o livro que transformara a minha vida, mas também pilhas de outros livros. Mas quando lia não tentava dar um sentido profundo à minha vida, nem mesmo descobrir o aspecto admirável e tão belo da tristeza. Que mais se pode sentir senão amor e admiração por Tchékhov, esse russo tuberculoso, de tão grande talento, tão modesto? Tenho pena dos leitores que procuram dar uma dimensão estética às suas vidas inúteis, destroçadas, tristes, por meio de uma sensibilidade a que eles chamam tchekhoviana; aqueles que, por tanto se orgulharem das desgraças das suas vidas, querem tirar disso um sentimento de beleza e de grandiosidade; e detesto os escritores espertalhões que fazem carreira explorando a necessidade de consolação desses leitores. Era por isso que eu não conseguia ler até ao fim os romances e as novelas dos autores contemporâneos. Ah, o pobre homem que procura fugir da solidão falando com o seu cavalo! O aristocrata que chegou ao fim da linha e passa agora a vida a regar os vasos de flores a que dedica todo o seu amor! Ah, a personagem tão sensível que espera sabe-se lá o quê no meio dos seus móveis fora de moda: uma carta, ou uma antiga amante, ou a sua filha sem coração, que nunca irão aparecer! Os escritores que roubam as personagens a Tchékhov, voltando a desenhá-las com traços mais grosseiros, personagens essas que exibem constantemente as suas feridas e os seus sofrimentos, transfe­rindo-as para outros ambientes e para outras paragens, repetin­do-nos sempre a mesma ladainha: olhai para nós, olhai para as nossas dores, para as nossas feridas, vede como somos sensíveis, como somos delicados, como somos diferentes! O sofrimento tornou-nos muito mais sensíveis e requintados do que vós! Vós também quereis ser como nós, transformar as vossas misérias em vitórias, e mesmo em sentimento de superioridade, não é? Nesse caso, basta que tenhais confiança em nós, que vos convenceis de que os nossos sofrimentos são mais agradáveis do que os prazeres vulgares da vida...

Por isso, caro leitor, não te fies em mim, porque eu de modo nenhum sou mais sensível do que tu, não te fies nos meus sofrimentos, nem na violência da história que te conto. Con­vence-te, porém, da implacável crueldade da vida! Aliás, este brinquedo dos tempos modernos a que se chama Romance, a maior inovação da cultura ocidental, não é coisa para nós. Se o leitor ouve a minha voz a sair destas páginas como um disco riscado, não é porque eu lhe fale desde um domínio conspurcado pelos livros, tornado ordinário pelas ideias feitas, é antes porque não consegui desenvencilhar-me com este brinquedo estrangeiro.

Aqui vai o que eu quero dizer com isto: para esquecer Janan, para perceber o que me aconteceu, para sonhar com as cores da vida nova que nunca consegui alcançar, e para passar o tempo de maneira mais agradável e mais inteligente – não se pode dizer que tenha sido sempre assim -, tornei-me um rato de biblioteca, mas nunca me deixei levar por pretensões intelectuais. Mais importante ainda: nunca senti desprezo por aqueles que se deixaram levar por isso. Gostava dos livros, como gostava de ir ao cinema, de folhear os jornais e as re­vistas. Não o fazia porque desejasse tirar quaisquer vanta­gens disso ou porque considerasse a leitura um meio de chegar a determinados fins, ou ainda por me sentir superior aos outros, mais culto e mais profundo do que eles. Posso mesmo dizer que a minha transformação em rato de biblio­teca me tinha ensinado a modéstia. Gostava de ler livros, mas não gostava de os discutir com os outros (como o Tio Rifki, como vim a saber mais tarde). A leitura despertava em mim o desejo de falar, mas essa conversa passava-se mais entre os próprios livros dentro da minha cabeça. Notava por vezes que os livros que eu devorava uns a seguir aos outros nessa época cochichavam entre eles; que a minha cabeça se tornava assim um fosso de orquestra em que soavam de todos os lados os instrumentos musicais, e eu apercebia-me de que a minha vida só era suportável graças a esta música que me enchia a cabeça.

Assim, uma noite, no silêncio fascinante mas doloroso que reinava na casa quando a minha mulher e a minha filha adormeciam, quando pousava o meu olhar distraído mas cheio de admiração nas cores caleidoscópicas que brotavam da televisão, ao mesmo tempo que pensava em Janan, no livro que me permitira encontrá-la, na vida nova, no Anjo, no Acidente, no Tempo, pensei para mim que poderia fazer um florilégio com tudo o que esta música me murmurava sobre o amor. Sim, porque a minha vida tinha sido desencaminhada pelo amor quando eu era ainda muito jovem - notarás, leitor, que ainda sou bastante sensato para não pretender que isso se deveu ao livro -, por tudo o que diziam a esse respeito os livros, as revistas, a rádio, a televisão, a publicidade, os jornais e as crónicas dos jornais, os romances, e que tudo isto se gravou para sempre no meu espírito.

 

                                           O que é o Amor?

Amor significa submissão. O Amor é a causa do Amor. Amor é compreensão. Amor é Música. O Amor e o coração cheio de nobreza são a mesma coisa. Amor é a poesia da tristeza. O Amor é o reflexo no espelho da alma frágil. O Amor é efémero. Amor é nunca lamentar. O Amor é uma cristalização. O Amor é dar. O Amor é partilhar uma barra de pastilha elástica. Com o Amor nunca se sabe. Amor é uma palavra vazia de sentido. O Amor é chegar a Deus. Amor é um sofrimento. Amor é o en­contro com o Anjo. Amor é lágrimas. Amor é ficar à espera que toque o telefone. Amor é o universo inteiro. Amor é dar as mãos na sala de cinema. Amor é embriaguez. O Amor é um monstro. O Amor é cego. Amor é escutar a voz do coração. O Amor é um silêncio sagrado. O Amor é o tema das canções. O Amor é muito bom para a pele.

Recolhi todas estas pérolas sem chegar ao ponto de acreditar nelas, mas também sem me deixar imbuir por uma ironia que poderia devastar-me a alma; isto é, encarei-as exactamente como faço com as imagens da televisão: deixando-me enganar mas sabendo que estou a ser enganado, não me deixando iludir mas, ao mesmo tempo, desejando sê-lo. A partir da minha experiência limitada mas intensa, enumero agora as minhas próprias ideias a este propósito:

O Amor é a necessidade de abraçar com muita força alguém e de querer estar sempre a seu lado. É o desejo de esquecer o mundo exterior quando se abraça esse alguém. É o desejo de descobrir um refúgio seguro para a alma.

Como vêem, não consegui dizer nada de novo sobre o Amor, mas disse, mesmo assim, alguma coisa. E pouco importa que seja novo ou não! Contrariamente ao que pensam alguns cretinos pre­tensiosos, mais vale dizer alguma coisa do que ficar calado.

Por amor de Deus, por que deveríamos calar-nos, não abrir a boca? Por que ficar passivamente a assistir quando a vida passa esma­gando-nos as almas e os corpos, como um comboio que arranca lenta mas implacavelmente? Conheci alguém, um rapaz da mi­nha idade, que insinuava que mais valia guardar silêncio do que lutar contra toda esta violência, contra as forças do mal que nos agridem e despedaçam sem parar. Disse que ele o insinuava, porque na verdade nunca o afirmou abertamente. Contudo, sen­tado a uma mesa de manhã à noite, ele copiava e voltava a copiar num caderno, sensata e silenciosamente, as palavras de outro. Eu imaginava por vezes que ele não estava morto mas continuava a escrever, e tinha medo de sentir o seu silêncio a tomar conta de mim, a transformar-se num terror de pôr os cabelos em pé.

Esvaziei o carregador no peito dele, e na cara, mas tê-lo-ei matado de verdade? Disparei apenas três vezes, não via muito bem na penumbra da sala, a luz do projector encandeava-me...

Quando me convencia de que ele não estava morto, ima­ginava-o no quarto, a copiar o livro. Como esta ideia era insupor­tável para mim! Enquanto eu tentava criar um universo que pudesse consolar-me, com a minha esposa cheia de boa vontade, com a minha deliciosa filhinha, com a minha televisão, os meus jornais, os meus livros, o meu trabalho na câmara municipal, os meus colegas de escritório, os meus mexericos, os meus cafés e os meus cigarros, ele era capaz de se entregar a um silêncio absoluto. A meio da noite, eu pensava no silêncio a que ele consagrara a sua vida, cheio de fé e de modéstia, e quando o imaginava a copiar o livro, acontecia no meu espírito o maior dos milagres: sentia que, durante todo o tempo em que ele fazia esse trabalho, o silêncio punha-se a conversar com ele. Os se­gredos que eu não conseguia penetrar, mas que percebia graças às minhas aspirações e ao meu amor, estavam ali, naquele silêncio e naquela penumbra, e eu dizia de mim para mim que, enquanto o homem que Janan amava continuasse a escrever, o murmúrio autêntico que vem das profundezas da noite, inaudível para alguém como eu, poderia fazer-se ouvir.

 

Uma noite fui tão violentamente atingido pelo desejo de ouvir esse murmúrio que apaguei a televisão, e fui em silêncio buscar o livro à mesinha-de-cabeceira, sem acordar a minha mulher que se deitara cedo; sentei-me à mesa onde todos os dias tomávamos as nossas refeições diante da televisão, e pus-me a ler com um ardor novo. Lembrei-me de que tinha sido com este ardor que o lera pela primeira vez, muitos anos atrás, no quarto onde dormia agora a minha filha. O meu desejo de ver a mesma luz jorrar do livro e bater-me na cara era tão intenso que, por um breve instante, se reanimou no meu espírito o meu sonho de um mundo novo. Era um movimento ligeiro, uma impaciência, um arrepio, que talvez me pudesse desvendar o segredo do murmúrio, esse murmúrio que poderia levar-me ao coração do livro.

Tal como na noite em que eu lera o livro pela primeira vez, dei por mim a vaguear pelo nosso bairro. Naquela noite de Outono as ruas estavam escuras, os passeios molhados, eram raros os transeuntes, que regressavam a suas casas. Quando cheguei à estação ferroviária de Erenkoy, vi tudo nos seus lugares: as montras familiares das mercearias, os camiões vetustos, o velho encerado a cobrir as caixas de laranjas e maçãs empilhadas no passeio do lugar das frutas e legumes, a luz azul coada pela montra do talho, o enorme fogão à antiga da farmácia. No café, onde durante os meus anos de faculdade eu ia ver os jogos de futebol com os amigos do bairro, dois ou três jovens viam televisão a cores. À medida que avançava pelas ruas, podia ver as luzes do mesmo programa de televisão - umas vezes azuis, outras verdes, outras avermelhadas - a jorrarem através das cor­tinas das salas de estar das famílias que ainda não se tinham dei­tado; reflectiam-se nos plátanos, nos postes eléctricos molhados e no ferro das varandas.

Caminhando sempre com os olhos postos nas luzes das tele­visões coadas pelas cortinas entreabertas, parei em frente do prédio onde morava dantes o Tio Rifki e fiquei ali muito tempo a olhar para as janelas do segundo andar. Por momentos, fui invadido por um sentimento de liberdade e de aventura, como se Janan e eu acabássemos de nos apear de um desses autocarros que apanháva­mos à sorte. Pelas cortinas entreabertas, via uma parte da sala ilu­minada pelo ecrã, mas não vislumbrava a viúva do Tio Rifki, de quem apenas podia imaginar a silhueta sentada na poltrona. A sala ora se tingia de um cor-de-rosa berrante, ora de um amarelo cada­vérico, consoante as imagens que passavam pelo ecrã. Atingiu-me a ideia de que o segredo do livro e da minha vida se encontrava ali, naquela sala. Decidi-me bruscamente e trepei o muro entre o pas­seio e o jardim do prédio. Assim já podia ver a cabeça da Tia Ra­tibe e o ecrã da televisão. Estava sentada na sua poltrona, que fazia um ângulo de quarenta e cinco graus com a do defunto marido. Olhava para o ecrã, exactamente como a minha mãe, com a cabeça metida entre os ombros levantados, mas em vez de tricotar, como fazia a minha mãe, a Tia Ratibe sorvia o cigarro com todas as for­ças. Estive a observá-la durante muito tempo e lembrei-me de duas pessoas que tinham trepado antes de mim para o murinho, para espiarem o interior da sala.

Carreguei no botão da entrada do prédio onde estava marcado Rifki Ray. A janela do segundo andar abriu-se e eu ouvi a voz da Tia Ratibe:

- Quem é?

            - Sou eu, Tia Ratibe - disse-lhe recuando uns passos para ficar sob a luz do candeeiro. - Sou eu, Osman, o filho de Akif bey, dos caminhos-de-ferro.

            - Ah, é o Osman! - A Tia Ratibe recuou, premiu o botão,

a porta do prédio abriu-se.

            Recebeu-me na soleira da porta e, com um grande sorriso, beijou-me nas duas faces. «Baixa a cabeça», disse-me ela.

Incli­nei-me e ela cobriu-me o cabelo de beijos, aspirando com força, como me fazia na infância.

Este gesto trouxe-me à memória o desgosto que o Tio Rifki e ela haviam sofrido durante toda a vida: não terem filhos. Lembrou-me também que, depois da morte da minha mãe, isto é, havia sete anos, ninguém me tinha tratado como se eu fosse uma criança. Senti-me de repente muito à vontade ao entrar no apartamento, pelo que decidi dizer-lhe qualquer coisa antes de ela começar a fazer-me perguntas.

- Passei por aqui, Tia Ratibe, e como vi luz... Bem sei que já é tarde, mas apeteceu-me cumprimentá-la.

- Fizeste muito bem! - exclamou. - Põe-te à vontade, em frente da televisão. Eu não consigo pregar olho toda a noite, então fico a ver essas coisas. Olha, aquela mulher que está a escrever à máquina é uma autêntica cabra! Aquele ali, o jovem, vai ter muitos problemas, é o polícia. Aqueles vão fazer explodir a cidade... Faço-te chá?

A Tia Ratibe, porém, não foi logo tratar do chá. Ficámos os dois a ver televisão durante um bocado. «Olha-me só para aquela desavergonhada!», disse-me ela apontando para uma bela americana vestida de vermelho. A bela americana despiu metade da roupa, beijou um tipo, e seguiu-se uma longa cena de amor a que eu e a Tia Ratibe assistimos através das nuvens de fumo dos nossos cigarros. Depois eles desapareceram do ecrã, tal como as noites, os carros, as pontes, as armas, os bófias e as gajas. Não me recordava de ter visto aquele filme com Janan, mas as lem­branças dolorosas de todos os filmes que vimos juntos acorda­ram em mim.

Quando a Tia Ratibe saiu da sala para ir preparar o chá, senti a necessidade de descobrir uma coisa em casa dela, não sabia muito bem o quê; qualquer coisa que me permitisse desvendar o segredo do livro e da minha vida destroçada, de atenuar pelo menos a minha dor. O canário que dormitava na gaiola, a um canto da sala, seria o mesmo que esvoaçava, agastado, quando o Tio Rifki brincava comigo, quando eu era garoto, ou seria outro, comprado e mantido em cativeiro na mesma gaiola depois do desaparecimento dos outros? As fotografias primorosamente emolduradas de carruagens e de locomotivas continuavam nos seus lugares nas paredes. Porém, na minha infância tinha-as visto sempre à luz do dia e num ambiente de boa disposição, ouvindo as piadas do Tio Rifki ou esforçando-me por resolver as suas adivinhas e charadas, por isso me senti triste ao ver aquelas máquinas antiquadas à luz da televisão, a maioria das quais já devia estar na sucata havia muito, esquecidas nas suas molduras cheias de pó. No aparador havia um serviço de cálices e uma garrafa de licor de framboesa meio vazia, e, ao lado da garrafa, o alicate de obliterar os bilhetes com que o Tio Rifki me deixava brincar quando eu e o meu pai íamos visitá-lo, várias medalhas honoríficas dos caminhos-de-ferro e um isqueiro em forma de locomotiva. Pelo vidro de outra divisão do aparador viam-se miniaturas de carruagens, um cinzeiro de falso cristal e horários dos comboios abrangendo vinte e cinco anos. E também os livros: o meu coração bateu com mais força quando contei trinta volumes.

Tratava-se talvez dos livros que o Tio Rifki lia quando andava a escrever A Vida Nova. Arrepiei-me todo, como se tivesse final­mente encontrado uma pista tangível de Janan depois de tantos anos de andanças.

Estávamos a beber chá e a olhar para a televisão quando a Tia Ratibe me perguntou pela minha filha e quis saber algumas coisas sobre a minha mulher: que espécie de mulher era ela? Eu murmurava respostas vagas, sentindo-me culpado por não a ter convidado para o nosso casamento. Disse-lhe que a família da minha mulher morava na mesma rua que nós e, bruscamente, lembrei-me que tinha visto pela primeira vez a rapariga que iria ser minha mulher na altura em que descobrira o livro. De todas estas coincidências, qual era a mais importante e a mais sur­preendente? O facto de ter visto pela primeira vez a rapariga melancólica com quem casaria tantos anos depois, quando jantava com os pais à luz de uma lâmpada nua, diante da tele­visão, no apartamento fronteiro ao nosso, no próprio dia da mudança deles? Ou o facto de ter pensado nesta primeira coincidência quando, tantos anos depois de ter casado, sentado na poltrona do Tio Rifki, procurava descobrir a geometria secreta da minha vida? Lembrei-me de que na altura eu reparara que ela tinha cabelo castanho e que o ecrã da televisão era verde.

Deixei-me levar por doces pensamentos sobre a memória, o acaso e a vida. Eu e a Tia Ratibe comentámos os últimos mexericos do bairro, falámos do talho novo que tinha acabado de abrir, do cabeleireiro, de velhos filmes, de um amigo que tinha deixado o bairro quando ficou rico graças a ter ampliado a sapataria do pai e, depois, a ter aberto uma fábrica de calçado. Quando, no meio da conversa, concluíamos de vez em quando que a vida «não tinha ponta por onde se lhe pegasse», a televisão donde jorravam tiros, gritos de amor ardente, clamores e vociferações, o estrépito de aviões que se despenhavam ou bombas de gasolina que explodiam, parecia dizer-nos: «Apesar de tudo, o que faz falta é pôr tudo de pernas para o ar!»; Mas nós, eu e a Tia Ratibe, fazíamos de conta que não compreendíamos a mensagem.

Quando a noite já ia avançada e os gemidos, as divagações e os estertores de morte deram lugar no ecrã a um documentário sobre a vida dos caranguejos vermelhos da ilha de Christmas, no Oceano Índico, eu, o ás dos detectives, abordei com ela o assunto, passo a passo e com muitas precauções, avançando obliquamente como o sensível caranguejo da televisão, tendo o topete de afir­mar que «tudo era tão bom antigamente».

- A vida é bela quando se é jovem! - disse a Tia Ratibe, mas não encontrou nada de muito belo a dizer sobre os anos da sua juventude em que vivera com o marido - talvez porque eu lhe fazia perguntas sobre as histórias para crianças, a mentalidade dos ferroviários, os artigos e os romances ilustrados que o Tio Rifki escrevera.

- Com aquela mania de escrevinhar e de borratar o papel, o teu Tio Rifki estragou a juventude dele e a minha.

Em abono da verdade, diga-se que ela, nos primeiros tempos, até estava muito satisfeita com as actividades do marido; ele escrevia artigos para a Revista dos Caminhos-de-Ferro, furtando-se assim às longas viagens exigidas aos inspectores dos caminhos­-dê-ferro, e assim a Tia Ratibe não se via obrigada a ficar dias e dias sozinha em casa à espera dele. Não tardou muito, porém, que o Tio Rifki decidisse criar bandas desenhadas para a última página da revista, para que os filhos do pessoal ferroviário pu­dessem compreender a importância da via férrea na salvação do país. - É verdade que certas crianças gostavam muito disso, não era? - disse a Tia Ratibe sorrindo para mim. Contei-lhe então como eu, deliciado, lia estas aventuras e como conhecia de cor a série Pertev e Peter. Mas ela interrompeu-me.

- Ele deveria ter-se ficado por aí; não deveria ter levado o trabalho dele tão a sério - disse. Na sua opinião, continuou, o erro do marido, por causa do êxito daquelas histórias, tinha sido deixar-se convencer por um editor de dentes afiados do bair­ro de Babiali a publicar umas revistas com essas histórias. - De­pois disso, tinha de trabalhar dia e noite, chegava a casa cansado de uma viagem de inspecção ou da Direcção, e sentava-se logo à mesa para trabalhar até de manhã.

A revista, a princípio, vendia-se bem, mas quando chegou a moda dos romances históricos ilustrados, como Kaan, Karaoglan ou Hakan, em que os guerreiros turcos lutavam contra os bizan­tinos, o interesse pelos seus livros depressa desapareceu. - Pertev e Peter chegou a ter muito êxito, até nos deu algum dinheiro a ganhar, mas, é claro, quem se encheu foi o malandro do editor! - esclareceu a Tia Ratibe. Esse canalha pediu então ao Tio Rifki para se deixar dessas histórias de crianças turcas brincando aos cowboys e lutando contra os bandidos de caminhos-de-ferro na América, e que escrevesse bandas desenhadas no género de Karaoglan, Kaan ou A Espada de Adil que tinham tanto sucesso naquele tempo. - Nunca farei banda desenhada em que não se veja um comboio, pelo menos uma vez - respondera-lhe o Tio Rifki. Assim chegara ao fim a sua colaboração com o editor. De­pois disso, ele ainda continuou a fazer banda desenhada, falou em vão com outros editores, mas, magoado com a indiferença geral, abandonou tudo.

- Onde é que param agora essas aventuras inéditas? - per­guntei-lhe olhando à volta da sala.

Não me respondeu. Acompanhou durante um bom momento a penosa viagem da fêmea do caranguejo, semeada de tantos es­colhos: tinha de atravessar uma ilha inteira para pôr os ovos no momento mais propício da maré.

- Deitei tudo fora - confessou-me finalmente. - Armários cheios de desenhos, de revistas, de aventuras de vaqueiros, de livros sobre a América e os cowboys, e também os livros sobre cinema donde ele copiava as roupas, e ainda todos esses Pertev e Peter, e sabe Deus o que mais ainda. Era a eles que amava, não a mim...

- O Tio Rifki gostava muito das crianças.

- Sim, é verdade, gostava muito delas - disse. - Era um bom homem, gostava de toda a gente. Hoje em dia já não há homens como ele...

Derramou algumas lágrimas, talvez pelo remorso de ter deixado escapar duas ou três frases amargas sobre o marido. Ao mesmo tempo que observava os poucos caranguejos bebés que tinham tido a sorte de alcançar a praia sem se tornarem vítimas das ondas e das gaivotas, limpou os olhos e assoou-se com um lenço que, para meu grande espanto, tirara não sei donde, num gesto de prestidigitadora.

- Ao que se diz - sondou logo o detective com prudência - o Tio Rifki teria escrito um livro intitulado A Vida Nova que, aparentemente, foi publicado sob pseudónimo.

Ela interrompeu-me de imediato: - Quem te contou isso? Não é verdade!

Deitou-me uns olhos tão furiosos, soprou o fumo do cigarro com tanta força e raiva, fechando-se depois num mutismo cheio de cólera, que o ás dos detectives não pôde fazer mais nada senão meter a viola no saco.

Ficámos calados por um longo momento. No entanto, eu não conseguia decidir-me a sair, estava ainda à espera de que aconte­cesse finalmente alguma coisa, na esperança de que a simetria secreta da vida acabasse por se manifestar.

O documentário da televisão estava a chegar ao fim, e eu tentava consolar-me pensando que a vida de um caranguejo é ainda mais penosa do que a de um homem, quando a Tia Ratibe se levantou da poltrona com um movimento brusco e decidido e, pegando-me no braço, me levou para junto do aparador. «Olha», disse ela. Acendeu um candeeiro em forma de pescoço de cisne que iluminou as fotografias primorosamente emoldura­das daquela parte da parede.

Na grande escadaria da estação de Haydar-Pasha estavam uns quarenta homens vestidos da mesma maneira, de casacos, calças, gravatas e bigodes iguais, sorrindo para a objectiva. - São os inspectores dos caminhos-de-ferro - explicou-me a Tia Ratibe. - Estes homens estavam todos convencidos de que o desenvol­vimento do país dependia da rede ferroviária. - Apontou para um deles: - Este é o Rifki.

Era como eu o tinha conhecido na minha infância e como continuei a representá-lo durante anos na minha imaginação: um pouco mais alto do que a média, delgado, um homem bem­-apessoado com um ar um pouco triste. Feliz por estar com os outros, feliz por se parecer com eles. Sorria ligeiramente.

- Sabes, não tenho mais ninguém no mundo - disse a Tia Ratibe. - Como não fui ao teu casamento, ao menos aceita isto. - Meteu-me na mão uma caixa de prata para bombons que tirou do aparador. - No outro dia, na estação, vi a tua mulher e a tua filha. É muito bonita, a tua mulher! Espero que saibas estimá-la.

Eu olhava para a caixa de prata que tinha na mão. Não pretendo dizer que fui acometido de repente por um sentimento de impotência, porque o leitor talvez não acreditasse. Digamos antes que me fazia lembrar alguma coisa, sem eu saber muito bem o quê. As imagens da sala, da Tia Ratibe e a minha, redondas, achatadas, minúsculas, reflectiam-se no metal da caixa, polido como um espelho. Pode chamar-se mágico ao facto de se ver o universo, por um breve instante, não pelos buracos de fechadura que são os olhos, mas através da lente de uma outra lógica? As crianças despertas sentem-no intuitivamente, os adultos inteligentes riem-se disso. Mas metade do meu espírito estava num sítio, leitor, e a outra metade noutro diferente. Também lhes acontece, a vocês? Estamos prestes a recordar alguma coisa, mas, por qualquer razão desconhecida, desistimos de recordar, adiamos para mais tarde.

- Tia Ratibe - disse-lhe eu, esquecendo-me até de lhe agradecer. Apontei para os livros que estavam noutro comparti­mento do aparador. - Posso pedir-lhe estes livros emprestados?

- Que vais fazer com eles?

- Vou lê-los - respondi. Não lhe disse que também não con­seguia dormir de noite, mas porque era um assassino. - Leio muito à noite. A televisão cansa-me os olhos, não posso vê-la mui­to tempo.

- Está bem, leva-os - disse ela, com ar desconfiado -, mas tens de mos devolver depois de os leres. Não quero que o apa­rador fique vazio. O meu defunto marido passava o tempo a lê­-los.

Depois de ter visto com a Tia Ratibe um filme sobre os maus rapazes da Cidade dos Anjos a que chamam Los Angeles, uma história sobre milionários cocainómanos, estrelas de cinema falhadas - que nos davam a ideia de estarem mais inclinadas para a prostituição - e polícias zelosos, e em que seres jovens e belos se apaixonavam num ambiente de beleza e inocência de paraíso infantil, mas, mal viravam costas, diziam coisas horríveis e vergonhosas um do outro, voltei para casa já muito tarde, carregado com um grande saco plástico cheio de livros e, por cima dos livros, com a caixa de prata onde se reflectiam o universo, e os livros, e os candeeiros, e os álamos que perdiam as folhas, e o céu escuro, e a noite melancólica, o asfalto molhado e a minha mão que pegava no saco, o meu braço e o movimento das mi­nhas pernas.

Alinhei cuidadosamente os livros em cima da minha mesa de trabalho, a mesma que, quando a minha mãe era viva, se encon­trava num quarto das traseiras onde eu fazia os meus trabalhos de casa, primeiro da escola, depois da faculdade, e onde tinha lido pela primeira vez A Vida Nova. A tampa da caixa de bom­bons estava emperrada, não conseguia abri-la, de maneira que a pousei ao lado dos livros, acendi um cigarro e contemplei com prazer o conjunto. Estavam ali trinta e três livros. Livros de bolso como Os Princípios do Misticismo, A Psicologia da Criança, um Re­sumo de História Universal, Os Grandes Filósofos e os Grandes Már­tires, A Chave dos Sonhos Ilustrada e Comentada, e, na série dos grandes clássicos publicados pelo Ministério da Educação Na­cional e que eram por vezes distribuídos nos ministérios e nas administrações, traduções de Dante, de Ibn Arabi, de Rilke; an­tologias também: Os Mais Belos Poemas de Amor, História da Nossa

Pátria, traduções de Júlio Verne, de Mark Twain, livros de Conan Doyle com capas coloridas, e livros do género Kon-Tiki, Os Génios também Foram Crianças, A Última Gare, As Aves, Diz-me Um Se­gredo ou Mil e Uma Adivinhas.

Comecei logo a ler. E logo de início pude verificar que algumas cenas, certas expressões, certas imagens de A Vida Nova se inspiravam nestes livros ou, até, tinham sido directamente tiradas deles. O Tio Rifki aproveitara-se de todos estes livros quando escrevia A Vida Nova com o mesmo à-vontade e a mesma facilidade com que utilizava os materiais e os desenhos de revistas como Tom Mix, Pekos Bill ou O Ranger Solitário nos livros para crianças de que era autor e ilustrador. Eis alguns exemplos das fontes em que ele bebeu:

 

«Os anjos não puderam desvendar o segredo da criação do sucessor a que se chama o homem.»

 

IBN ARABI Fusus al-Hikam

 

«Éramos camaradas, companheiros de viagem, apoiámo-nos incondicionalmente uns aos outros.»

 

NESATI AKKALEM Os Génios também Foram Crianças

 

«[...] apartei-me da multidão para, solitário, me refugiar num quarto; e pus-me a pensar nesta gentilíssima. E, pensando nela, invadiu-me um sono doce, no qual me apareceu uma maravilhosa visão [...]»

 

DANTE Vida Nova

 

«Talvez estejamos aqui para dizer: casa, ponte, fonte, porta, cântaro, árvore de fruto, janela - pelo melhor: pilar, campanário... mas para dizer: compreende, oh, para dizer assim, com uma imensidade que nem as próprias coisas alguma vez acreditaram poder exprimir.»

 

RILKE Elegias de Duino

 

«Já não há casa neste sítio. No seu lugar, apenas ruínas. Ruínas sinis­tras, não das que são feitas pelo tempo, mas das que um qualquer sinistro violento deixa atrás de si.»

 

JÚLIO VERNE Famille-Sans-Nom

 

«Li um livro. Quando se lia, tinha a aparência de um livro enca­dernado. Mas quando não se lia transformava-se num tecido que era de seda verde... Depois, vi-me a estudar os números e as letras do livro e percebi pela caligrafia que o texto tinha sido escrito pelo filho do xeque Abdurrahman, cádi da cidade de Alep. Quando caí em mim, vi-me a escrever o capítulo que agora estais a ler. E percebi de repente que o capítulo escrito pelo filho do xeque e o capítulo que tinha lido em estado de transe eram os mesmos que o capítulo do livro que estou a escrever.»

 

IBN ARABI Kitâb al-Fatúhat al-Makkiyya

 

«O amor quase parecia tornar-se uma coisa tal, por excesso de doçura, que o meu corpo, que estava sob o seu inteiro domínio, muitas vezes apenas se movia como uma coisa pesada e sem alma.»

 

DANTE Vida Nova

 

«Pousei o pé nesta parte da vida aonde não podemos ir com a esperança de regressarmos.»

 

DANTE Vida Nova

 

Suponho que já se terá percebido que chegámos à parte do livro que eu qualificaria de «glosa». Durante meses, li e reli os trinta e três livros alinhados na minha mesa. Sublinhei palavras e frases no papel amarelecido. Tomei notas em cadernos, em bocados de papel. Fui a bibliotecas onde os empregados nos olham como quem quer dizer: «Que raio vem fazer aqui?»

Como muitos homens despedaçados que, em determinada altura, se lançam com ardor no turbilhão daquilo a que se chama vida, e que não encontram aí o que esperavam descobrir, eu com­parava imagens e expressões encontradas nas minhas leituras; distinguia os sussurros discretos que os textos cujos segredos conseguia decifrar trocavam entre si e classificava-os; construía novas conexões e, orgulhoso da complexidade desta rede que eu construía com a paciência do homem que empreende escavar um poço com uma agulha, esforcei-me por tirar vingança de tudo o que tinha falhado na vida. Quem repara com surpresa que, nos países muçulmanos, as bibliotecas estão cheias de livros onde abundam os comentários e as anotações manuscritas deveria, em vez de se espantar, olhar para as multidões de homens despeda­çados com quem se cruza nas ruas.

Ao longo de todo este meu trabalho, de cada vez que encon­trava no livrinho do Tio Rifki uma frase, uma imagem, uma ideia tiradas de outro escritor, ficava tão desiludido como o jovem romântico que descobre que a rapariga angélica dos seus sonhos não é absolutamente nada angélica. Mas depois, tal qual as vítimas do amor, quis convencer-me de que aquilo que antes não me parecia muito honesto era, no fundo, o sinal de um segredo mágico muito mais profundo e de uma sabedoria incom­parável.

Foi ao ler e reler, entre outros livros, as Elegias de Duino, que decidi que tudo poderia ser resolvido com a ajuda do Anjo. Não tanto porque o Anjo de Rilke me fizesse pensar no Anjo de que o Tio Rifki falava no seu livro, mas porque me lembrava com nostalgia das noites com Janan e do que ela me dizia sobre o Anjo. Muito depois da meia-noite, quando já tinham passado os últimos comboios de mercadorias que se dirigiam para leste, com os seus estalidos incessantes, no silêncio que caía sobre o bairro, eu desejava ouvir o apelo de uma luz, do frémito de uma vida de que gostaria de me lembrar; virei as costas à caixa dos bom­bons que reflectia a televisão ainda ligada, assim como a minha imagem a fumar e sentada à mesa pejada de cadernos e papéis, fui à janela e, pelas cortinas entreabertas, sondei a noite escura. A luz pálida dos candeeiros ou dos apartamentos do outro lado da rua reflectia-se nas gotas de água dos vidros.

Quem era esse Anjo de quem eu esperava o convite do fundo do silêncio? Tal como o Tio Rifki, eu não conhecia qualquer língua estrangeira, mas não dava importância ao facto de ser as­sediado por traduções aproximativas ou erradas, entremeadas de emoções fortuitas expressas numa linguagem obscura. Fui às universidades fazer perguntas a professores ou a tradutores que me receberam bastante mal, porque eu não passava de um ama­dor; arranjei endereços na Alemanha; escrevi cartas e, quando pessoas bem-educadas e correctas aceitavam responder-me, esfor­çava-me por me convencer de que caminhava a passos largos para o verdadeiro âmago de um segredo.

Na sua célebre carta ao seu tradutor polaco, Rilke escreve que o Anjo das Elegias de Duino está mais próximo dos anjos do islão do que dos anjos cristãos. O Tio Rifki tinha ficado a par disso pelo curto prefácio escrito pelo tradutor. Quando eu soube, por uma carta que Rilke remeteu de Espanha para Lou Andreas­-Salomé, que no ano em que começara a escrever as Elegias, o poeta lera o Corão «espantando-se sem parar», interessei-me durante um certo tempo pelos anjos do Corão, mas não encontrei aí nada do que tinha ouvido contar pela boca da minha avó, das mulhe­res do bairro ou de alguns pedantes meus amigos. O nome de Azrael, que nos é familiar graças às bandas desenhadas ou aos car­tazes que são utilizados nas aulas de história natural, não é men­cionado no Corão, onde apenas se fala no Anjo da Morte. Não consegui saber nada de novo sobre o Arcanjo Miguel e sobre o Arcanjo Israfel, o que irá tocar trombeta no dia do Juízo Final. Um correspondente alemão, a quem eu tinha perguntado se a des­crição que vem no início da trigésima quinta surata do Corão a propósito dos anjos «de dois, três, quatro pares de asas» era espe­cífica do islão, resolveu o problema enviando-me um dossier com­pleto de imagens de anjos cristãos que fotocopiara de livros de arte. Excluindo pormenores pouco importantes - o Corão admi­te uma hierarquia de anjos, os demónios que tomam conta do in­ferno, os «2ebanis» que também são anjos, e os anjos no Corão são intermediários entre Deus e as criaturas mais influentes do que na Bíblia -, entre os anjos do islão e os do cristianismo não havia grandes diferenças que pudessem confirmar as palavras de Rilke.

Concluí no entanto que o Tio Rifki, mesmo sem Rilke, quan­do dava a forma final ao seu livro devia ter-se lembrado de al­guns versículos da surata AI Takwir, que conta como o Livro «onde tudo está escrito» desce do Céu e como, entre as estrelas que deslizam e desaparecem no horizonte, entre a noite escura e o céu que empalidece, Gabriel aparece a Maomé. Mas isto pas­sava-se num tempo em que, de tanto ler, eu encontrava seme­lhanças entre tudo o que lia, e considerava que o pequeno livro do Tio Rifki emanava não só daqueles trinta e três livros mas de todos os outros que ele, o Tio Rifki, lera. À medida que as más traduções, as fotocópias, as notas que se amontoavam na minha mesa não só me falavam do Anjo de Rilke, como me explicavam também a razão por que os anjos eram belos, e me falavam da beleza perfeita, para além de tudo o que é acidental ou fruto do acaso, e também de Ibn Arabi, das qualidades do Anjo - muito superiores às do homem, que são limitadas pelo pecado -, da ubiquidade, da morte, da vida depois da morte, eu lembrava-me de ter lido tudo isso não só no livrinho do Tio Rifki, mas tam­bém nas aventuras de Pertev e Peter.

Pela Primavera, uma noite depois do jantar, vim a saber, por uma carta de Rilke que estava a reler pela enésima vez, que «mes­mo para os nossos avós, uma casa, um poço, uma torre familiar, as suas roupas, os seus trajos eram extremamente pessoais».

Lembro-me de ter olhado à minha volta sentindo uma vertigem deliciosa: centenas de anjos, negros ou brancos, olhavam para mim, não só da esquina da minha mesa de trabalho, de trás dos livros, mas de toda a espécie de sítios para onde a minha filha, que deixava em todos os lugares por onde passava uma enorme barafunda, os tinha levado, do parapeito da janela, dos aquecedo­res poeirentos, da pequena estante cambada, do tapete, e reflectiam-se na caixa de prata para bombons. Tratava-se das fotocópias a preto e branco das reproduções de pinturas angélicas, feitas al­gures na Europa uns séculos atrás. Disse para mim que as preferia aos originais.

            - Arruma os teus anjos - disse eu à minha filha de três anos. - Vamos à estação ver os comboios.

            - E também comprar caramelos?

            Peguei nela ao colo e fomos à cozinha, que cheirava a deter­gente e a carne assada, avisar a mãe de que íamos ver os com­boios. Ela levantou a cabeça do lava-louça onde estava a lavar os pratos e sorriu-nos.

Foi um prazer caminhar até à estação na doce frescura da Primavera, abraçado com força à minha filha. Imaginei como seria bom, no regresso a casa, ver os jogos de futebol na televisão, depois ver o filme de domingo à noite com a minha mulher. A pastelaria «A Vida», na praça da estação, já considerara findo o Inverno e, erguendo as vidraças, instalara a bancada de gelados e sorvetes. Mandámos pesar cem gramas de caramelos Mabel. Tirei o papel de um e enfiei -o na boca que a minha filha abria com impaciência. Dali fomos até à estação e passeámos no cais.

Às nove e dezasseis em ponto anunciou a sua chegada o expresso do Sul, primeiro com um barulho de motor que parecia subir das profundezas, do próprio coração da terra, depois as suas luzes iluminaram os encontros e os pilares de aço da ponte; pare­ceu acalmar-se quando entrou na estação e, com o barulho infer­nal da potência inexorável dos seus motores, num turbilhão de fumo e poeira, passou diante de dois humildes mortais que se abraçavam um ao outro com muita força. No meio do vozear inu­mano que o comboio deixava para trás de si, vimos passageiros estendidos nos bancos, nas carruagens resplandecentes de luz, outros encostados às janelas, outros ainda que penduravam os casacos, que conversavam, que acendiam o cigarro, todos incons­cientes da nossa presença; e o comboio deslizou, desapareceu a nossos olhos num instante. No silêncio e na leve corrente de ar que deixou atrás de si, contemplámos demoradamente a luz vermelha na traseira da última carruagem.

- Sabes para onde vai este comboio? - Foi num impulso que fiz a pergunta à minha filha.

- Para onde vai?

- Para Izmit, primeiro, depois para Bilecik.

- E depois?

- Para Eski_ehir, depois Ancara...

- E depois?

- Kayseri, Sivas, Malatya.

            - E depois? - disse a minha filha de cabelos castanhos­-claros, toda contente por repetir a sua pergunta, com um senti­mento de jogo e de mistério, com os olhos fixos no farol vermelho da última carruagem, agora quase invisível.

E o pai dela lembrou-se das estações onde pararia o comboio, esquecendo-se de algumas, mas aquelas de que se lembrava traziam-lhe à memória a sua própria infância.

Eu devia ter onze ou doze anos, a tarde chegava ao fim, eu e o meu pai tínhamos ido visitar o Tio Rifki. Enquanto os dois ho­mens jogavam ao gamão, eu, com o bolo seco que a Tia Ratibe me tinha dado na mão, tinha estado a observar o canário na gaiola, depois bati com o dedo no barómetro que nunca apren­dera a consultar. Tinha tirado uma das velhas revistas empilhadas nas estantes e mergulhado numa das aventuras de Pertev e Peter, quando o Tio Rifki me chamou e se pôs a interrogar-me, colo­cando sempre as mesmas perguntas de cada vez que íamos a casa dele.

- Diz-me o nome de todas as estações entre Yolçati e Kur­talan.

- Yolçati, Uluova, Kürk, Sivrice, Gezin, Maden... Enumerava-as todas, sem me esquecer de nenhuma.

- E as estações entre Amasya e Sivas?

Eu dizia-lhas de um fôlego, porque sabia de cor os horários que, na opinião do Tio Rifki, toda a criança turca inteligente deveria saber de cor.

            - Por que é que o comboio que parte de Kütahya com des­ tino a Usak passa por Afyon?

            Eu já sabia a resposta, mas ensinara-ma o Tio Rifki, não a tirara dos horários.

            - Porque, infelizmente, o Estado abandonou a sua política de redes de caminho-de-ferro.

- Última pergunta - disse o Tio Rifki com os olhos a brilha­rem de satisfação. - Vamos de Çetinkaya com destino a Ma­latya.. .

            - Çetinkaya. Demiriz, Akgedik, Ulugüney, Hasançelebi, Hekimhan, Kesikkoprü... - Neste ponto, eu parava.

            - E depois?

            Continuava calado. O meu pai, com os dados na mão, ana­lisava as peças no tabuleiro, procurando uma saída.

            - Depois de Kesikkoprü?

            Na gaiola, o canário recomeçou com o seu tiquiticri. Repeti, num último esforço: «Hekimhan, Kesikkoprü...», depois calei­-me, incapaz de me lembrar da estação seguinte.

            - E depois?

            U ma longa pausa. Sentia que estava prestes a chorar quando o Tio Rifki disse: - Ratibe, vai buscar um caramelo para ele, isso vai ajudá-lo a abrir-lhe a memória.

A Tia Ratibe deu-me caramelos e, como previra o Tio Rifki, no mesmo instante em que meti um caramelo na boca, lembrei­-me do nome da estação que se seguia à de Kesikkoprü.

Vinte e três anos depois, ali estava o cretino do Osman, com a linda filha ao colo, a olhar para o farol vermelho na traseira da última carruagem do Sud-Express, e, uma vez mais, sem conse­guir lembrar-se do nome da estação a seguir a Kesikkoprü. Esfor­cei-me por me lembrar. Para reavivar as minhas associações de ideias sonolentas e as fazer passar à acção, disse de mim para mim: que coincidências! 1. O comboio que acaba de passar chegará amanhã à estação de que não consigo recordar o nome. 2. A Tia Ratibe havia tirado os caramelos que me dera da mesma caixa de bombons em prata que acabara de me oferecer tantos anos depois. 3. Há um caramelo na boca da minha filha e um pouco menos de cem gramas de caramelos no meu bolso.

Caro leitor, foi tão bom ver o meu passado e o meu futuro a cruzarem-se num ponto de intersecção tão longínquo e sentir a minha memória anquilosar-se uma vez mais que fiquei com­pletamente imóvel na esperança de me lembrar do nome da estação.

- O cão! - disse a minha filha, ao meu colo, muito tempo depois.

Um cão vadio, porquíssimo, misérrimo, cheirava-me a bainha das calças, e uma brisa ligeira refrescava a noite sem pretensões que entretanto descera sobre a estação e todo o bairro. Voltámos logo para casa. No entanto, não me precipitei imediatamente para a caixa de bombons. Depois de a minha filha ser posta na cama, depois de eu a ter beijado, acarinhado, e de ter inspirado o seu perfume, depois de ter seguido na televisão os crimes e as cenas de amor da noite de cinema de domingo, e depois de a mi­nha mulher se ter também deitado, fiquei à espera, com o cora­ção acelerado, que as minhas recordações se acumulassem em mim e atingissem a densidade necessária.

Depois, «venham de lá essas associações de ideias!», disse o homem de coração despedaçado vítima de um livro e também do amor; e peguei na caixa de prata para bombons. Havia no meu gesto qualquer coisa que lembrava o gesto de um cabotino de teatro municipal, exibindo pomposamente o crânio de um pobre nómada yorük em vez da cabeça do chamado Yorick, mas não se tratava de comédia barata, a julgar pelo resultado. Como podia tornar-se dócil o enigma a que chamamos memória! lembrei­-me de repente.

Como já adivinharam certamente os leitores que acreditam no acaso e nas coincidências, assim como os leitores que acreditam que o Tio Rifki não era homem para deixar as coisas ao acaso e às coincidências, a estação em causa era a de Velha Vinha.

Lembrei-me ainda de outra coisa: vinte e três anos antes, quando, com os olhos postos na caixa de prata dos bombons, eu pronunciara as palavras «Velha Vinha», o Tio Rifki dissera-me: «Bravo!»... Depois lançara os dados e, ao obter um cinco-seis, arrebatara numa só jogada duas peças ao meu pai:

            - Akif, o teu filho é um rapaz muito inteligente! – afirmara então. - Sabes o que vou fazer um dia destes?

            Mas o meu pai, mais virado para as peças que o Tio Rifki lhe comera e para a solução a dar ao jogo, não lhe prestou atenção.

            - Vou escrever um livro - dissera então o Tio Rifki diri­gindo-se a mim. - E vou dar o teu nome ao herói.

            - Um livro como Pertev e Peter? - tinha eu perguntado com o coração a palpitar.

            - Não, um livro sem ilustrações. Mas vou contar a tua história.

            Fiquei calado, incrédulo. Não conseguia imaginar que livro serIa esse.

            - Rifki, não comeces outra vez a meter coisas na cabeça das crianças - dissera de longe a Tia Ratibe.

Esta cena teria realmente acontecido? Ou tratar-se-ia de um fantasma que a minha memória de grande coração, tão bem­-intencionada, acabava de inventar para me consolar, a mim, o pobre diabo de coração despedaçado? Pois bem, não era capaz de decidir o que seria. Tinha vontade de correr a casa da Tia Ratibe para lhe perguntar. Fui à janela, com a caixa de prata na mão e, olhando para a rua onde os transeuntes já iam sendo raros, per­di-me em reflexões. Pensei durante muito tempo, mas não pode­ria dizer se se tratava de pensamentos ou de delírios. 1. As luzes apagaram-se ao mesmo tempo em três apartamentos. 2. O cão vadio e miserável que vira na estação passava agora à minha porta, altivo como numa parada. 3. Nesta confusão mental, os meus dedos passaram à acção e, não sei como, abriram sem muito esforço - pronto, já está - a tampa da caixa.

Por um instante ainda pensei - confesso - que ia sair de lá algum talismã, anéis mágicos ou uvas envenenadas, como nos contos de fadas. Na caixa havia sete caramelos: da marca «Vida Nova», os caramelos da minha infância, desses que já nem sequer se encontram na província, nas mercearias ou confeitarias das terreolas mais longínquas. Em cada papel que os embrulhava podia ver-se o símbolo da fábrica: um anjo. Sete anjos no total, sentados educadamente no coração da letra V, esticando para o vazio, com elegância, as pernas perfeitas, entre vida e nova, lan­çando olhares de gratidão e sorrisos cheios de doçura a quem os tinha salvo das trevas onde tiveram que penar durante vinte anos.

Com muita atenção e cautelas, para não fazer mal aos anjos, tirei os papéis dos caramelos velhos que, com o tempo, tinham ficado duros como pedras. Em cada um dos papéis podia ler-se uma lengalenga, mas não se pode dizer que o texto me tenha dado grande ajuda para a compreensão do livro e do mundo. Um exemplo:

 

Para além da pradaria

Fica uma cimentaria

O que eu te peço doçura

É uma máquina de costura.

 

No silêncio da noite, pus-me a repetir estas lengalengas sem pés nem cabeça. Com medo de que o meu espírito se transviasse, entrei, com uma última esperança, no quarto onde dormia a minha filha. Na penumbra, abri devagarinho a gaveta de baixo do velho armário, procurei às apalpadelas e encontrei o estra­nho objecto de plástico multiusos da minha infância: de um lado régua, do outro corta-papel e, ainda, com uma lupa na extremi­dade arredondada. Depois, à luz do meu candeeiro de mesa, com a minúcia de um inspector das finanças examinando dinheiro falso, fiz um exame rigoroso aos anjos dos papelinhos de embru­lhar os caramelos. Não me fizeram pensar no Anjo do Desejo, nem nos anjos de quatro asas da miniatura persa, nem no Anjo que, há tantos anos, eu esperava ver surgir a cada instante à mi­nha frente durante as minhas viagens; também não se pareciam com as criaturas a preto e branco das fotocópias. Como se qui­sesse dar provas de competência, a minha memória lembrou-me somente que, na minha infância, havia garotos a vender esses caramelos nos comboios.

Estava prestes a concluir que a imagem do Anjo tinha sido roubada a uma revista estrangeira quando pensei no fabricante que, no entanto, estava a fazer-me grandes sinais com a mão:

 

«Ingredientes: glucose, açúcar, óleo vegetal, manteiga, leite e bau­nilha. Os caramelos "Vida Nova" são produzidos exclusivamente pela SA de confeitaria Anjo, 18, Rua Çeçekdere [N7], Eskisehir.»

 

No dia seguinte à noite apanhei um autocarro para Eskisehir. Aos meus superiores na câmara contei a história de um parente meu afastado e sem família que estava doente; à minha mulher disse que os meus chefes, todos uns atrasados mentais, me man­davam em serviço para cidadezinhas longínquas e perdidas. Perceberam, não? Se a vida não fosse uma história contada por um idiota, se a vida não fosse os gatafunhos sem pés nem cabeça de uma criança que descobriu o lápis - como faz a minha filha -, se a vida não fosse uma cruel sucessão de idiotices desprovidas de qualquer lógica, o Tio Rifki, quando escreveu A Vida Nova, devia ter introduzido uma espécie de lógica por trás de todos aqueles joguinhos que pareciam ser apenas fruto do acaso. Se assim fosse, o grande planificador tinha, por conseguinte, um objectivo preciso ao colocar o Anjo no meu caminho desde há tantos anos e, neste caso, um herói vulgar e despedaçado cmo eu, se chegasse a saber da própria boca do honrado confeiteiro a razão da presença de um anjo nos papelinhos dos caramelos de que tanto gostava na sua infância, poderia talvez encontrar uma consolação quando a tris­teza se apoderasse dele nas noites de Outono que ainda tinha para viver, falando do sentido da sua vida, em vez de discorrer sobre a crueldade das coincidências.

A propósito de coincidência: foi graças à aceleração dos meus batimentos cardíacos e não graças aos meus olhos que reparei: o motorista do autocarro Mercedes, do último modelo, que me conduziu até Eskisehir era o mesmo que, catorze anos antes, nos tinha levado, a mim e a Janan, para uma minúscula terreola de minaretes elegantes, perdida na estepe, e nos tinha deixado numa cidade transformada em pântano por causa da chuva que caía em bátegas.

 

7 Ribeiro florido (rur.).

 

Os meus membros, e todo o meu corpo, esforçavam-se por se acostumar ao conforto de que dispõem os autocarros de há alguns anos para cá: sistema de ventilação com o seu zumbido incessante, lâmpadas individuais colocadas nas costas dos as­sentos, assistentes do motorista vestidos como grooms de hotel, refeições com gosto a plástico em embalagens coloridas, servidas em bandejas ornamentadas pela sigla alada da empresa de trans­portes, guardanapinhos de papel. Agora bastava carregar num botão para baixar as costas do banco até aos joelhos do desgraçado que está no assento atrás de nós. Como todos os autocarros se tinham tornado «expressos», iam directamente de um terminal a outro sem pararem já nos restaurantes enxameados de moscas, e nalguns carros tinham mesmo instalado wc's fazendo lembrar a cadeira eléctrica e colocados em sítios onde deveria ser muito desagradável estar em caso de acidente. No ecrã da televisão estava sempre a aparecer publicidade aos veículos da empresa de autoviação que nos transportava pelo coração de asfalto da estepe; assim, o passageiro sonolento que olhasse para o televisor poderia ver-se a viajar de autocarro, a olhar para o televisor e a dormitar, e sentir como isso era agradável. A estepe selvagem e deserta que dantes víamos pelas janelas, Janan e eu, tinha-se «humanizado», tinham-na perfurado em toda a parte para cravarem os postes dos painéis de publicidade que gabavam uma marca de pneus ou de cigarros. E mudava incessantemente de cor, ao sabor dos vidros foscos que protegiam os passageiros do sol. Por vezes de um castanho lamacento, outras vezes de um verde de Meca, ou ainda de uma cor de petróleo que me fazia pensar em cemitérios. No entanto, quando nos aproximávamos dos segredos da minha vida destroçada e das longínquas terreolas esquecidas pelo resto da civilização, sentia que estava vivo, que respirava ainda com fúria, e que ainda era pasto - para utilizar um termo fora de moda - das chamas do desejo.

Suponho que já adivinharam que a minha viagem não termi­nou em Eskisehir. No número 18 da Rua do Ribeiro Florido, onde outrora se situavam os escritórios da fábrica da sociedade anóni­ma de confeitaria e de pastilha elástica Anjo, erguia-se agora um prédio de seis andares, servindo de lar de estudantes da escola dos imãs pregadores. Nos arquivos da câmara do comércio e da indús­tria de Eskisehir, um velho funcionário ofereceu-me um refresco de tília-limão Santi e, depois de ter passado horas a consultar registos e pastas, informou-me de que a Anjo SA tinha deixado a cidade vinte e dois anos antes para prosseguir as suas activida­des em Kütahya, onde estava registada na câmara de comércio.

Descobrimos a seguir que, em Kütahya, a SA tinha cessado as suas actividades ao cabo de sete anos. Se eu não tivesse tido a ideia de ir ao registo civil, sito no edifício da Câmara com a fachada em azulejo, e depois ao bairro chamado da Malaposta, não teria desco­berto que o fundador da SA Anjo, confeitaria e pastilha elástica, um tal Süreyya bey, tinha ido instalar-se, quinze anos atrás, em Malatya, cidade natal do marido da sua filha única. Soube tam­bém que a SA Anjo tinha vivido alguns anos de prosperidade em Malatya, e percebi que eu e Janan tínhamos descoberto os últimos caramelos desta marca nas estações rodoviárias.

Na época em que os caramelos «Vida Nova» tinham garan­tido, uma vez mais, uma clientela em Malatya e arredores, saiu um artigo no Boletim da Câmara de Comércio sobre a história da SA e dos seus caramelos consumidos outrora em toda a Turquia; tal como uma moeda cunhada pela última vez num Império em plena decadência, os caramelos tinham sido, numa certa época, utilizados como trocos nas mercearias e nas tabacarias. Alguns encartes publicitários com imagens de anjos tinham saído na revista Malatya Expresso; e as pessoas voltavam a trazer caramelos nos bolsos para fazerem os trocos, mas tudo tinha acabado bruscamente com a irrupção no mercado dos produtos de sabores a frutas, lançados com muita publicidade pelas grandes empresas internacionais, e que as belas actrizes de lábios carnudos saborea­vam sedutoramente na televisão. Lendo os jornais locais, fiquei a saber que as caldeiras, as máquinas e a marca registada tinham sido vendidas. Tentei saber, através de parentes do genro, onde estava Süreyya bey, o fabricante dos caramelos «Vida Nova», depois de ter deixado Malatya. A minha busca levou-me ainda mais para leste, para cidades longínquas, para aldeias perdidas, cujos nomes nem sequer constam nos mapas escolares.

Tal como aqueles que, antigamente, fugiam da peste para muito longe, Süreyya bey e a família tinham encontrado refúgio em longínquas cidades-fantasma, antes de desaparecerem completamente, como se também eles fugissem dos produtos multicores estrangeiros vindos do Ocidente que tinham invadido o país, qual epidemia, com a ajuda da publicidade e da televisão. Apanhei autocarros, apeei-me de autocarros, entrei em terminais, atravessei mercados, vagueei pelos registos civis, pelas câmaras municipais, por ruas perdidas, por praças ornamentadas por fontes, árvores, gatos e cafés. Durante um certo tempo, em cada cidade onde chegava, nos passeios de cada rua por que passava, em cada café onde parava para beber um chá, imaginava encontrar pistas de uma maquinação sem fim que ligava este lugar aos Cruzados, aos Bizan­tinos e aos Otomanos. Sorria aos putos reguilas que, tomando­-me por um turista, tentavam vender-me falsas peças bizantinas. Não protestava quando o barbeiro me despejava na nuca água­-de-colónia Yeni Urart, cor de urina, e não me escandalizava por ver numa dessas «feiras» que pululavam por todo o lado como cogumelos que o magnífico pórtico de entrada tinha sido reti­rado de ruínas hititas. Aliás, era preciso que a minha inteligência se tivesse amolecido muito para pensar que na tabuleta feita de um par de óculos do tamanho de um homem do «Oculista Cien­tífico Zeki» havia ainda pó deixado pelos cavaleiros das Cruzadas.

Por vezes, porém, sentia que todas as maquinações históricas conservadoras com a finalidade de tornar estas terras refractárias a qualquer mudança tinham falhado, e que os mercados, as mercearias de bairro, as ruas embandeiradas de roupa a secar, que,           catorze anos antes, nos tinham parecido, a mim e a Janan, tão indestrutíveis e imutáveis como as fortalezas seljúcidas, eram varridas e arrastadas pelos ventos que sopravam do Ocidente. No centro das cidades de província, aqueles aquários que dantes ocupavam o lugar de honra dos restaurantes e os enchiam de silêncio e serenidade tinham desaparecido de repente, assim como os peixes que lá nadavam, como se tivessem obedecido a uma ordem secreta. Quem tinha então decidido, no decurso dos últimos catorze anos, que as letras berrantes nos inúmeros painéis de vidro plástico haveriam de florir como as bardanas não só nas ruas principais, mas também nas ruelas poeirentas mais afastadas? Quem mandara cortar as árvores das praças? Quem ordenara que as balaustradas de ferro das varandas fossem todas do mesmo modelo, nas fachadas de betão que cercavam como muralhas a estátua de Atatürk? Quem aconselhara as crianças a apedrejarem os autocarros de longo curso? Quem tivera a ideia de perfumar os quartos dos hotéis com um anti-séptico mal­cheiroso? Quem distribuíra por todo o país os calendários em que manequins anglo-saxónicos se deixam fotografar com pneus entre as longas pernas? Quem decidira que os cidadãos deste país deviam olhar-se como cães de faiança para se sentirem em segurança em lugares novos que têm nomes como elevador, caixa de banco, sala de espera?

Eu tinha envelhecido antes da idade, cansava-me depressa, caminhava o menos possível. Fazia de conta que não reparava que o meu corpo se deslocava muito lentamente, arrastado que era pelas incríveis multidões onde desaparecia a pouco e pouco, e esquecia de imediato as caras dos transeuntes que me empur­ravam ou que eu próprio acotovelava, tal como esquecia os nomes dos advogados, dos peritos financeiros, dos dentistas que figu­ravam nos inúmeros painéis publicitários que corriam em torrentes por cima da minha cabeça. Não conseguia perceber como todas essas cidadezinhas inocentes, todas essas ruelas que pareciam saídas de uma miniatura e onde outrora Janan e eu passeávamos, com um sentimento lúdico e mágico, como no jardim secreto onde uma boa mulher nos tivesse deixado entrar, se tinham transformado em aterradores cenários de teatro, cópias exactas umas das outras, efervescentes de sinais de perigo e de pontos de exclamação.

Vi cervejarias e bares obscuros abertos nos lugares mais incríveis, pertíssimo de mesquitas ou de hospícios para velhos. Vi uma manequim russa, com olhos de gazela que, de mala na mão, ia de cidade em cidade e organizava sozinha desfiles de moda nos autocarros, nas salas de cinema ou em mercados, depois vendia os vestidos que expunha a mulheres de lenço na cabeça ou mesmo com véu. Reparei que os refugiados afegãos, que nos autocarros vendiam Corões do tamanho de polegares, tinham dado lugar a famílias russas ou georgianas que vendiam tabuleiros de xadrez em plástico, binóculos de teatro de mica, medalhas militares ou caviar do Mar Cáspio. Encontrei um pai à procura da filha, que talvez fosse o pai daquela rapariga de blue jeans morta de mão dada com o namorado no acidente da estrada que percorríamos numa noite de chuva, Janan e eu. Vi aldeias curdas fantasma, esvaziadas dos seus habitantes por causa de uma guerra nunca declarada e vi também unidades de artilharia que bombardeavam ao longe as trevas das montanhas rochosas. Numa sala de jogos de vídeo, onde se reuniam os ra­pazes que faltavam à escola, os desempregados e os génios incompreendidos locais para testarem os seus talentos, a sua sorte e a sua raiva, vi um jogo de vídeo em que, quando se atingia os vinte mil pontos, surgia um anjo cor-de-rosa ima­ginado por um japonês e desenhado por um italiano, um anjo que nos sorria com gentileza, como que a prometer-nos a sor­te, a nós todos, os azarentos que manejávamos os comandos na penumbra da sala poeirenta e com cheiro a mofo. Vi um homem de quem emanavam eflúvios inebriantes de creme de barbear DP decifrar sílaba a sílaba as crónicas póstumas do jor­nalista assassinado Djélâl Salik. Nas praças de cidadezinhas novas-ricas, onde as velhas moradias de madeira tinham sido demolidas e substituídas por prédios de betão, vi nos cafés futebolistas bósnios ou albaneses recentemente transferidos, bebendo Coca-Cola na companhia dos filhos e das belas esposas louras. Em tabernas miseráveis, em mercados onde se aperta­vam multidões, na montra de uma farmácia onde se reflectia o expositor da loja do outro lado da rua e onde estavam expostas fundas herniárias, nos pesadelos ou nos sonhos multicores em que mergulhava à noite em quartos de hotéis ou bancos de autocarros, vi passar sombras aterradoras que imaginava serem Seiko ou Serkisof.

Já que se trata de «relógios», devo dizer-lhes que antes de chegar a Son Pazar, que era o meu destino final, fiz um desvio pela longínqua cidadezinha de Çatik, que o doutor Fino queria tornar o coração do país. Mas também ali - fosse por causa das guerras, dos fluxos migratórios, de uma estranha perda de memória, das multidões, dos medos ou dos cheiros, ou fosse, como devem ter percebido pela minha maneira de me exprimir, por razões que não alcançava - encontrei a cidade mudada a um ponto tal que tive medo de estragar as recordações que Janan me tinha deixado, tal como o meu pensamento se transviava por entre os magotes de pessoas que pareciam deambular sem des­tino pelas ruas. Os relógios digitais japoneses alinhados na montra da farmácia provavam-me, tanto de forma material como simbólica, que a Grande Contra-Maquinação do doutor Fino e a organização dos «relógios» que trabalhavam para ele tinham desaparecido havia muito; pior ainda, os comerciantes de refrigerantes, de carros, de televisões e de gelados, que se suce­diam nos centros comerciais, exibiam nomes e ortografias estran­geiros.

No entanto fui à procura de um lugar fresco e sombreado que pudesse tornar-se um refúgio feliz para os sonhos do herói, azarado e estúpido, que procurava descobrir o sentido da vida nesta terra de amnésicos, para fazer reviver tudo o que se man­tinha em mim do rosto de Janan, do seu riso, de uma palavra que ela pronunciara; dirigi-me para a casa onde outrora tinham vivido as encantadoras filhas do doutor Fino, até à amoreira das minhas recordações de felicidade. Erguiam-se postes no vale­zinho, tinham levado a electricidade até ali, mas não havia nenhuma casa na vizinhança, apenas se viam ruínas e tinha-se a impressão de que não eram obra do tempo, mas consequência de uma série de catástrofes.

Quando vi um outdoor publicitário Akbank numa das colinas a que eu tinha subido com o doutor Fino, disse de mim para mim, com espanto, que tinha feito bem em matar o amante de Janan, esse que acreditara poder conseguir a paz da eter­nidade e desvendar o mistério da vida - chame-se a isso o que se quiser - copiando as mesmas frases dia após dia, ano após ano. Ao fim e ao cabo eu tinha poupado ao filho do doutor Fino este espectáculo tão pouco agradável, evitara que ele mor­resse sufocado no meio desta massa de letras e vídeos, que cegasse neste universo sem luz e sem brilho. A mim, porém, quem me libertaria desta terra de monstruosidades : crueldades mesquinhas envolvendo-me num véu de luz? Já. não tinha qualquer sinal, já não recebia qualquer apelo do Anjo de quem outrora penetrara a incrível e doce claridade no ecrâ da minha imaginação e de quem o meu coração ouvira as palavras. .

Os comboios para a cidade de Velha Vinha tinham sido suprimidos por causa da rebelião curda. O assassino não tinha qualquer intenção de voltar ao lugar do crime, nem mesmo agora, ao fim de tantos anos, mas para chegar à cidadezinha de Son Pazar onde, segundo as minhas informações, vivia com o neto Süreyya bey, o homem que tivera a ideia de baptizar os seus caramelos de «Vida Nova», tinha de atravessar à luz do dia toda esta região em que o PKK8 era poderoso. A julgar pelo que pude ver na estação rodoviária, aqui também já não havia muito para temer. Mas, para obstar a qualquer eventualidade, com medo de que alguém pudesse ainda reconhecer o assassino, escondi a cara por trás do jornal Milliyet durante todo o tempo em que estive à espera do autocarro.

Quando nos dirigíamos para norte, as montanhas, ao raiar a primeira claridade da aurora, perfilaram-se em toda a sua majes­tade no horizonte, e não sei se o silêncio que invadiu o autocarro se devia ao medo ou se todos nós estávamos com vertigens, de tantas voltas darmos nestas montanhas severas. De quando em quando éramos obrigados a parar pelos controlos que os mili­tares montavam, ou então para largar um cidadão que, com as nuvens por única companhia, ainda teria de ir a pé até à sua aldeola perdida, um desses lugarejos onde nunca passa sequer uma caravana e que nem as aves sobrevoam. Eu passava o tempo a contemplar com admiração as montanhas fechadas sobre si mesmas, e que se haviam tornado indiferentes por causa das crueldades a que assistiam há tantos séculos. (Para o leitor que leia esta frase erguendo o sobrolho não rejeitar com desprezo este livro que até agora vem lendo com tanta paciência, acrescentarei que mesmo os assassinos que conseguem esconder o seu crime têm direito a estes lugares-comuns.)

 

8 Partido comunista curdo.

 

Acho que a cidadezinha de Son Pazar não se encontrava na zona de influência do PKK. Poder-se-ia também dizer que se encontra fora de toda e qualquer influência da civilização con­temporânea: de facto, quando desci do autocarro, em vez de os meus olhos se depararem com as siglas e as letras berrantes dos cartazes publicitários louvando as virtudes de marcas de gelados, de frigoríficos, de cigarros ou de televisores que normalmente me recebiam nas praças de todas estas vilórias, dando-me a sensação de que estava a andar às voltas e a chegar sempre ao ponto de partida, vi-me mergulhado num silêncio mágico, como que saído directamente dos velhos contos esquecidos que nos falam de cidades pacatas e sultões felizes. Num cruzamento que devia ser a praça principal da cidade, vi um gato: lambia-se sem pressas debaixo do toldo tranquilo de um café e parecia felicís­simo da vida; vi ainda um talhante feliz diante do seu talho, um merceeiro despreocupado diante da sua mercearia, um vendedor de frutas e legumes sonolento e as respectivas moscas sonolentas diante do lugar da fruta; estavam todos sentados ao doce sol matinal, serenos e calmos à luz que tingia de ouro a manhã, sábios ao ponto de terem consciência da felicidade de estarem vivos, da bênção enorme que esta actividade tão simples constitui, e de que todos somos capazes. Quanto ao estrangeiro que acabava de desembarcar na cidade e que eles observavam pelo canto do olho, deixara-se enfeitiçar completamente por esta surpreendente cena de conto de fadas; imaginava que Janan, aquela que ele amara outrora até à loucura, ia aparecer na primeira esquina da rua, carregada de relógios velhos que datavam do tempo dos nossos avós e de uma pilha de velhas revistas, com um sorriso malicioso nos lábios.

Logo na primeira rua por onde entrei notei o silêncio que reinava no meu espírito; na segunda rua, os ramos de um salgueiro-chorão que pendiam até ao solo acariciaram-me a cara; na terceira, encontrei a criança mais bela do mundo, com pestanas imensas, e tive a ideia de lhe perguntar o caminho, tirando do bolso o papel onde tinha apontado o endereço. Não sei se o alfabeto do meu universo poluído lhe era estranho, ou se a criança, pura e simplesmente, não sabia ler, o certo foi que eu próprio, quando olhei para a morada que tinha conseguido arrancar a um administrador de bairro a duzentos quilómetros de distância para sul, verifiquei que era quase ilegível. Li-a em voz alta, sílaba a sílaba: «Rua Ziya Tepe», mas, antes mesmo de chegar ao fim, a cabeça de uma megera surgiu numa sacada: «É ali», disse ela, «olhe, é essa rua que sobe...»

 

Esta rua em declive deveria ser o fim de uma viagem que já durava há tantos anos, dizia de mim para comigo, quando uma carroça puxada por um cavalo, e a abarrotar de bidões, entrou por ela antes de mim. Transportava sem dúvida a água destinada a uma obra que ficava ao cimo da rua. Enquanto a carroça avançava com grandes solavancos, interroguei-me sobre a razão de aqueles recipientes derramando a água pelas bordas serem de zinco: não teriam ainda chegado a estas terras os recipientes de plástico? O meu olhar não se cruzou com o do carreteiro, demasiado absorvido no seu trabalho, mas com o do cavalo, e logo a vergonha me acometeu. A espuma enegrecia-lhe a crina, o animal tinha um ar desarmado e furioso: a carga pesava-lhe tanto que todo ele parecia ser apenas sofrimento. Por um instante revi­-me nos seus olhos cheios de tristeza e percebi que a sorte do bicho era pior do que a minha. No meio do barulho dos bidões chocando uns contra os outros, do chiar das rodas na calçada e do som dos suspiros que a minha vida miserável soltava subimos o declive da colina que dava pelo nome de Alto do Sentido das Coisas. A carroça entrou num jardinzinho onde os pedreiros cal­deavam a argamassa, e, com o sol já a desaparecer por trás de uma nuvem escura, entrei no jardim de sombras e mistério, um recinto fechado de muros muito altos, depois, na casa do criador dos caramelos «Vida Nova». Passei seis horas naquela vivenda de pedra, no meio daquele jardim.

O criador dos caramelos «Vida Nova», o tal Süreyya bey que deveria dar-me a chave dos mistérios da minha vida, era um desses octogenários capazes de fumar com volúpia dois maços de cigarros Samsun por dia, dando até a impressão de que isso funciona para eles como um elixir da longa vida. Recebeu-me como se um fosse um velho amigo do seu neto ou um amigo próximo da família, e depois, como se continuasse uma história que tinha começado a contar na véspera, falou-me demoradamente de um húngaro, espião nazi, que entrara um dia na sua loja em Kütahya; descreveu-me depois uma confeitaria em Budapeste; falou-me de umas mulheres que, nos anos trinta, se juntaram numa festa em Istambul e verificaram que tinham todas o mesmo penteado; enumerou os erros que as mulheres do nosso país cometiam para parecerem mais bonitas; explicou-me a razão por que o seu neto - que volta e meia entrava e saía ­nunca se tinha casado, dando-me muitos pormenores sobre os noivados rompidos. Pareceu ter ficado muito feliz por eu próprio ser casado e qualificou de patriótica a atitude de um jovem angariador de seguros como eu que tinha a coragem de fazer longas viagens e ficar longe da esposa e da filha com o único objectivo de participar na planificação do país, de alertar os seus compatriotas para todas as catástrofes iminentes e de os ajudar a tomar as medidas necessárias.

Apenas ao fim de duas horas consegui explicar-lhe que não era angariador de seguros e que me interessava pelos caramelos «Vida Nova». Ele agitou-se na poltrona, com a cara virada para a luz acinzentada que vinha do jardim umbroso, e perguntou­-me em tom misterioso se eu sabia alemão. «Schachmatt», disse ele sem esperar pela resposta, e explicou-me que se tratava de uma palavra europeia híbrida criada a partir da palavra persa «Schah» e da palavra «mate» que significa «morto» em árabe. Tínhamos sido nós quem ensinara o jogo do xadrez ao Ocidente. O combate travado nas nossas almas entre o preto e o branco, o bem e o mal estava representado nesse jogo como num campo de batalha. Mas o que tinham feito os ocidentais desse jogo? Do nosso vizir fizeram uma rainha; do nosso elefante fizeram um bispo, mas não era isso o mais importante. O mais grave era que eles nos tinham recambiado o jogo do xadrez apresentando-no­-lo como se tivesse saído do seu próprio espfrito, como uma vitória da noção universal do racionalismo. E, hoje em dia, tentávamos compreender as nossas sensibilidades utilizando a maneira de raciocinar deles, e pensávamos que era isso a «civilização».

Teria eu reparado - o neto dele por acaso reparara - que, actualmente, as cegonhas, quando vão para o Norte no princípio do Verão ou quando descem para o Sul, para África, no mês de Agosto, voam muito mais alto do que antigamente, em tempos mais felizes? Isso acontecia porque as cidades, as montanhas, os rios, os países que elas sobrevoavam lhes ofereciam um espec­táculo lamentável cujas misérias elas não queriam ver. Das ce­gonhas, de que falava com notório afecto, passou para uma trapezista, uma francesa de pernas de cegonha, que se exibira em Istambul cinquenta anos atrás; lembrou-se das feiras e dos circos de antigamente, e dos confeitos que ali se vendiam; não falava com muita nostalgia, mas com grande abundância de porme­nores e matizes.

Fiquei para almoçar, sentámo-nos à mesa, e Süreyya bey, enquanto bebia cerveja Tuborg fresquinha, contou-nos a história de alguns cavaleiros que, cercados no centro da Anatólia, no tem­po da Oitava Cruzada, tiveram de se refugiar nas grutas da Capa­dócia. Como se foram multiplicando ao longo dos séculos, os descendentes destes Cruzados tinham cavado passagens e desco­berto outras grutas, construindo aí cidades. Por vezes, um espião saía dessa zona de labirintos, onde nunca entrava a luz do sol, e onde viviam às centenas de milhares os descendentes dos últimos Cruzados; então o espião deles, disfarçado, entrava nas nossas cidades e nas nossas ruas, e pregava-nos a grandeza da civilização ocidental, com o objectivo de que os Últimos Descendentes dos Cruzados, os UDC, que já se tinham apoderado do subsolo do nosso território, pudessem sair tranquilamente das suas cavernas depois de terem minado os nossos pensamentos. Por acaso eu sabia que esses espiões eram chamados os OP e que havia um sabão de bar­bear com esse nome?

Teria sido o velho senhor quem me explicou como tinha sido uma catástrofe para o nosso país o gosto imoderado de Atatürk pelo grão-de-bico assado ou teria sido eu que o imaginei?

Também já não sei se foi ele quem me falou primeiro do doutor Fino ou se fui eu que fiz essa alusão por meio de associações de ideias. O erro do doutor Fino, disse-me ele, foi o de imaginar, como bom materialista que era, que se podia proteger a alma deposi­tando confiança nos objectos, conservando-os. Se isso fosse verdade, as feiras da ladra estariam banhadas em luz divina! Luz­-Lux. Havia tantas marcas que utilizavam estas palavras, apenas imitações, é claro, mas: candeeiros Lux, tintas Lux, etc. Quando o doutor Fino compreendeu que era impossível encontrar o Espírito e proteger as nossas almas pela mera utilização dos objectos, recorrera ao terrorismo. Ora, isso tinha sido de toda a conveniência para os americanos, é claro: a CIA, neste gênero de embrulhadas, é excelente! E, agora, no sítio onde dantes era a bela moradia dessa gente, apenas o vento uiva! As jovens Rosas tinham fugido, umas atrás das outras. E o filho tinha sido assassinado havia muitos anos. Quanto à sua organização, tinha sido desmantelada, e cada um dos membros assassinos se tinha proclamado senhor do respectivo feudo, como acontece sempre na queda dos grandes impérios. Era por isso que nesses territórios esplêndidos que o gênio colonialista, num golpe de mestre, denominara Próximo Oriente, os príncipes assassinos e ineptos que tinham proclamado a independência eram tão numerosos! Süreyya bey apontou o seu cigarro, não para mim, mas na direcção da poltrona vazia a meu lado, como que para sublinhar o paradoxo do que dizia: a autonomia desses territórios estava agora a chegar ao fim!

A noite caía sobre o jardim de grandes árvores, como sobre um cemitério, acentuando ainda mais o silêncio, quando o velho senhor abordou bruscamente o tema por que eu esperava havia horas. Estava a falar-me do missionário católico japonês que encontrara nos arredores de Kayseri e que tentava fazer uma lava­gem ao cérebro às pessoas que se encontravam no pátio de uma mesquita, quando mudou subitamente de assunto dizendo que não se conseguia lembrar de como tivera a ideia de dar o nome de «Vida Nova» ao seu produto, mas que, na sua opi­nião, o nome tinha sido bem escolhido, porque esses caramelos, durante muitos anos, tinham evocado às pessoas que viviam nes­tas terras uma sensibilidade nova, um gosto novo, e tinham­-lhes rememorado um passado desaparecido. Contrariamente a uma opinião muito espalhada, nem a palavra caramelo nem este género de confeito tinham sido importados de França, não se tratava de uma imitação. Afinal, a palavra kara (negro) era uma das palavras essenciais do vocabulário dos povos que viviam nes­tas terras há milhares de anos. Aliás, encontrava-se em mais de dez mil das lengalengas que tinha utilizado nos papéis de em­brulhar os «kara-méla» que produzira durante os seus trinta e dois anos de actividade.

- Muito bem, mas então o Anjo? - perguntou uma vez mais o infeliz viajante, o angariador de seguros cheio de pa­ciência, o desventurado herói.

À guisa de resposta, Süreyya bey recitou-me oito das suas dez mil lengalengas. E desses pequenos poemas surgiram os anjos, comparados a mulheres belíssimas ou a raparigas despreocupa­das, aureoladas de uma magia que vinha direitinha dos contos de fadas, cada vez mais querubinizados, mas já sem qualquer atracção para mim e sem que reavivassem uma só das minhas recordações; e assim os anjos surgiam e se afastavam de mim fazendo um sinalzinho com a mão.

Süreyya bey confessou-me que todas as lengalengas que aca­bara de recitar eram de sua autoria. Dos dez mil poemas que embrulhavam os caramelos «Vida Nova», sete mil eram dele. Durante a idade de ouro deste produto em que a procura tinha atingido proporções inauditas, chegara a escrever vinte poemas por dia. Anastácio, que mandara cunhar a primeira moeda bi­zantina, não tinha mandado gravar o seu retrato no verso das moedas? Süreyya bey contou-me que houve uma época em que os frascos que continham os seus caramelos tinham lugar fixo entre a balança e a caixa em todas as mercearias do país; que dezenas de milhões destes caramelos, gravados com o seu selo, tinham cir­culado nos bolsos das pessoas e tinham mesmo servido de moeda para os trocos. Explicou-me que nessa altura, tal como um im­perador que manda cunhar moeda, ele tinha usufruído de todos os prazeres que a vida, o poder, a riqueza, o êxito, as mulheres, a felicidade podem proporcionar. Era por isso, concluiu Süreyyabey, que um seguro de vida já não teria qualquer utilidade para ele. Para consolar o seu jovem amigo, angariador de seguros, po­dia revelar-lhe por que havia utilizado um anjo como imagem de marca para os seus caramelos: na sua juventude, quando fre­quentava as salas de cinema de Beyoglu, gostava dos filmes de Marlene Dietrich, especialmente de um que se chamava Der Blaue Engel. Este filme, que passou entre nós com o título de O Anjo Azul, tinha-se baseado na obra-prima do romancista ale­mão Heinrich Mann. Süreyya bey também tinha lido o romance, cujo título original era Professor Unrat. O professor, interpretado no filme por Emil Jannings, é um modesto professor de liceu. Um dia apaixona-se por uma prostituta. Ora, ela tem a aparência de um anjo...

O vento estaria a soprar com tanta força que fizesse restolhar com esta fúria a ramagem das árvores? Ou era o meu espírito que ouvia um furacão? Durante uma longa pausa fiquei «au­sente», como dizem os professores da primária indulgentes ao falarem dos alunos sonhadores a quem a inocência e a sem-razão desculpam. Vi passar diante dos meus olhos o fantasma des­lumbrante de luz da minha juventude, o dia em que li pela primeira vez A Vida Nova: era como um navio maravilhoso, inacessível a todos, brilhando com toda a sua luz, que se afasta e se perde na noite escura. No silêncio em que eu me fechara, sabia bem que Süreyya bey estava a contar a triste história do romance que lera e do filme que vira na sua juventude. Mas pouco adiantava sabê-lo, já que tinha a impressão de não ouvir nem ver nada.

Entretanto, o neto entrou na sala, acendeu o candeeiro, e no mesmo instante reparei em três coisas: 1. A suspensão presa ao tecto parecia-se exactamente com o lustre que, na Velha Vinha, o Anjo do Desejo do circo oferecia todas as noites ao feliz contemplado, acompanhando a entrega com conselhos incomparáveis sobre a vida. 2. Estava muito escuro na sala e havia jábastante tempo que eu não via o velho confeiteiro. 3. Ele tam­bém não me via, porque era cego.

            Ao leitor agressivo e irónico que, levantando os sobrolhos, se interroga sobre a minha inteligência e as minhas capacidades de observação por não ter reparado, durante as seis horas em que estive com ele, que o homem era cego, poderia fazer uma pergunta no mesmo tom agressivo: será que deu provas, o leitor, de atenção e inteligência em cada linha do livro que tem na mão? Poderia dizer-lhe, por exemplo: consegue lembrar-se dos pormenores da cena onde entra o Anjo pela primeira vez? Ou, então: poderá dizer-me, de imediato, como foi que o Tio Riflki se inspirou, em A Vida Nova, nos nomes das companhias de caminho-de-ferro que ele enumerava no seu livro Os Heróis dos Carris? Terá reparado nos indícios que me permitem afirmar que Mehmet pensava em Janan no momento em que eu o alvejava, na sala de cinema? Para todos os que, como eu, vêem a sua vida ficar bruscamente virada do avesso, a dor manifesta-se por uma raiva que tenta passar por inteligência. E é este desejo de ser inteligente que acaba por estragar tudo.

Mergulhado até então na minha tristeza, olhei pela primeira vez com uma espécie de respeito ou de admiração e, para ser franco, com uma espécie de inveja, para aquele velhote de quem descobrira a cegueira pela forma como olhava para o lustre por cima das nossas cabeças: ele era grande, magro, elegante, e em boa forma para a idade que tinha. Sabia utilizar as mãos e os dedos com destreza, o seu raciocínio era ainda muito vivo, e era capaz de conversar durante seis horas, sem deixar de ser interes­sante, com um assassino sonhador que ele teimava em tomar por agente de seguros. Ele tinha, ao fim e ao cabo, conhecido o êxito nos seus anos de juventude, anos esses que vivera na felicidade e com entusiasmo, e, embora o único objectivo da sua vida se tenha derretido na boca e no estômago de milhões de pessoas, e os seus seis mil poemas tenham acabado nos caixotes do lixo com os papelinhos de embrulhar os caramelos, tinha podido, graças ao seu êxito, adquirir uma visão optimista e sólida do seu lugar no mundo; além disso era capaz, já para além dos oitenta anos, de fumar com prazer os seus dois maços de cigarros por dia.

Süreyya bey, pelo meu silêncio, adivinhou a minha tristeza, graças a essa intuição própria dos cegos, e quis consolar-me: era assim a vida; havia o acaso, a sorte, havia o amor, havia a solidão, a alegria, a melancolia, havia a luz, havia a morte, mas também uma vaga felicidade; o que era necessário, sobretudo, era não esquecer; havia as informações da rádio que o seu neto não se es­quecia de ligar às oito da noite, e eu estava convidado a partilhar da sua refeição da noite.

Pedi desculpa, expliquei-lhes que tinha de estar em Velha Vinha no dia seguinte, que tinha lá à espera vários clientes para assinarem apólices de seguros. Saí então daquela casa, rapi­damente, passei pelo jardim, cheguei à rua. Na noite de Prima­vera um pouco fresca, indício de como eram frios os invernos naquela região, vi-me mais solitário ainda do que os ciprestes sombrios do jardim.

O que iria fazer a seguir? Já soubera tudo o que precisava - e também, sobretudo, o que não devia saber -, estava agora no fim de todas as aventuras, de todas as viagens, de todos os mistérios que tinha podido inventar para mim. O pedaço de vida a que podia chamar o meu futuro encontrava-se - como a ci­dadezinha de Son Pazar esquecida no sopé da colina - perdido nas trevas, à excepção da luz mortiça de candeeiros de rua, muito longe de algumas ruas bem iluminadas ao longe, das noites animadas, das multidões alegres. Quando um cão que estava a meter-se onde não era chamado se pôs a ladrar, comecei a descer a rua em declive.

Enquanto esperava pelo autocarro que deveria levar-me para longe deste cu-de-judas e devolver-me à algazarra da publicidade de bancos e cigarros, ao esfuziar das garrafas de limonada e dos ecrãs de televisão, dei umas voltas ao acaso pelas ruas. Agora que já não tinha a esperança nem o desejo de alcançar a compreensão e a unidade do mundo, do livro e da minha vida, encontrava-me no meio de imagens desordenadas que se sucediam ao acaso e não aludiam a nada. Durante algum tempo observei por uma janela aberta uma família reunida em volta de uma mesa para a refeição da' noite: estavam ali sentados, da forma que o leitor os pode imaginar. Fiquei a par dos horários das aulas de Corão num cartaz colado no muro da mesquita. No café, protegido por um toldo, pude verificar que, aqui, a limonada Budak resistia ainda a todos os assaltos da Coca-Cola, da Schweppes e da Pepsi­-Cola, mas isso não me interessou por aí além.

Na loja de bici­cletas em frente do café, observei demoradamente, debaixo do toldo, o mecânico a endireitar uma roda, sob as luzes da oficina, ao mesmo tempo que conversava com um amigo de cigarro na mão. Por que terei dito amigo? Talvez houvesse hostilidade e tensão entre eles. Aliás, tanto num caso como no outro, os dois não eram interessantes nem deixavam de o ser. Tendo em conta os leitores que possam considerar-me demasiado pessimista, acrescentarei que, na minha maneira de ser, como estava sentado à fresca debaixo de um toldo de café, preferia observar os dois homens do que não olhar para eles.

O autocarro chegou, e foi neste estado de espírito que aban­donei a pequena cidade de Son Pazar. Subimos montanhas escarpadas por estradas sinuosas, descemo-las, ansiosos, de ou­vidos atentos ao chiar dos travões. Tivemos de parar várias vezes a mando das patrulhas militares, para mostrarmos os papéis aos soldados e eles ficarem descansados. Quando deixámos para trás as montanhas, os soldados e os controlos de identidade, quando o nosso autocarro pôde finalmente acelerar, soltar-se, armar-se em maluco à vontade nas amplas planícies escuras, os meus ouvidos reencontraram no barulho do motor e no alegre esfuziar dos pneus as notas melancólicas de uma velha música familiar.

Talvez porque o autocarro fosse um dos últimos Magirus, sólidos, matacões e barulhentos, que Janan e eu apanhávamos dantes tantas vezes, talvez porque seguíssemos por uma estrada de asfalto danificado em que as rodas emitem um gemido tão especial ao rolarem as suas oito vezes por segundo; talvez porque os roxos e os cinzentos do meu passado e do meu futuro surgissem no ecrã do vídeo onde choravam uns amantes que se avaliavam mal um ao outro, num produto dos estúdios da Rua Yesilçam em Istambul - não sei, não sabia mesmo nada -, talvez porque, levado pelo instinto, me sentara no lugar número trinta e sete, na esperança de descobrir, na ordem secreta do acaso, o sentido que não conseguia encontrar na minha vida, talvez porque, inclinando-me sobre o lugar que ela deveria ter ocupado, avistei pela janela o veludo negro da noite que dantes nos parecia tão atraente e misteriosa como se nunca mais fosse ter fim, tal como o tempo, o sonho, a vida, como o livro; quando uma chuva ainda mais triste do que eu se pôs a crepitar nos vidros, deixei­-me embalar confortavelmente no meu assento pela música das recordações.

Paralelamente à tristeza que me submergia, a chuva redobrou de violência; por volta da meia-noite, transformou-se num ver­dadeiro dilúvio, puxada por um vento que sacudia o nosso au­tocarro, e por relâmpagos da mesma cor roxa que as flores da melancolia que desabrochavam no meu espírito. A água infil­trava-se pelos interstícios das janelas e molhava os bancos. De­pois de ter passado por uma estação de serviço que mal se via sob aquela tromba de água, e por aldeias transformadas em fan­tasmas de lama, o velho autocarro abrandou para meter para uma área de serviço. Quando as palavras de néon do painel - Res­taurante das Recordações de Soubachi - nos inundaram com a sua luz azul, o motorista extenuado anunciou: «Meia hora de paragem! Paragem obrigatória.»

Eu tinha a intenção de não sair do meu lugar para ver sozinho o filme melancólico a que chamava as minhas recordações, mas a chuva que se abatia no tecto do Magirus tornava tão pesada a tristeza profunda do meu coração que tive medo de não poder suportá-la. Deitei a correr, atrás dos outros passageiros que avançavam aos pulinhos, saltitando na lama, protegendo as cabeças com jornais ou sacos de plástico.

Pensei que me faria bem misturar-me com os outros, que comeria uma sopa, um leite-creme, que esses prazeres tangíveis me fariam mudar de ideias, que isso seria preferível a deixar­-me levar pela melancolia ao voltar-me para a parte da minha vida já passada; que me recomporia se orientasse o projector racional e desprendido do meu espírito para os anos que tinha ainda pela frente. Dei alguns passos, limpei o cabelo com o lenço, depois entrei numa sala profusamente iluminada que cheirava a gordura e a tabaco, e, ao ouvir uma melodia, fiquei perturbado.

            Lembro-me de que, como um cardíaco experiente que sente uma crise a chegar, me esforcei desesperadamente por tomar medidas que prevenissem o choque. É que não podia gritar-lhes que desligassem o rádio, que parassem essa melodia que Janan e eu tínhamos ouvido, de mãos dadas, logo a seguir ao acidente. Não podia gritar-lhes para arrancarem das paredes as fotografias de actores de cinema, porque Janan e eu tínhamo-nos rido tanto a olhar para elas, enquanto comíamos, neste mesmo restaurante. Como eu não tinha no bolso um comprimido de trinitrina contra as crises de tristeza, dispus no meu tabuleiro uma tigela de sopa, uma fatia de pão e um raki duplo, e instalei-me numa mesa a um canto. Quando mergulhei a colher na tigela escorreram lá para dentro lágrimas salgadas.

Não me deixeis sacar orgulho do facto de ser um homem com quem todos os leitores partilharão a dor, como fariam os escritores que imitam Tchékhov, deixai-me antes descrever-vos o meu sofrimento, como faria um escritor na tradição do Oriente, para retirar disso uma determinada moral. Resumamos: eu tinha querido distinguir-me dos outros, descrever-me como um ser à parte, com um objectivo completamente diverso do dos outros, o que, no nosso país, é um crime imperdoável. Não direi que este sonho impossível me tenha sido inspirado pelos romances ilustrados do Tio Rifki que lera na infância. Assim, repeti para mim mesmo a conclusão a que já chegara havia muito o leitor que quer tirar de cada história uma moral. Se A Vida Nova tinha exercido em mim uma tal influência, era sem dúvida porque as leituras da minha infância me tinham predisposto para isso. Porém, como todos os velhos autores de contos moralistas, eu não acreditava muito na moral que daí retirava. Assim, a história da minha vida tornava-se uma história individual, o que não atenuava minimamente a minha tristeza. Esta implacável con­clusão que se impunha a pouco e pouco ao meu espírito, já tinha chegado havia muito ao meu coração. Pus-me a chorar copiosa­mente por causa daquela música no rádio.

Reparando que o meu comportamento causava má impressão nos meus companheiros de estrada que sorviam a sopa ou devora­vam o Pila/, fui refugiar-me na casa de banho. Lavei a cara com a água tépida e turva que a torneira cuspia, conseguindo encharcar­-me a roupa, assoei-me vagarosamente e voltei para a minha mesa.

Quando olhei para os meus vizinhos pelo canto do olho, vi que aqueles que também lançavam olhadelas furtivas para mim.

Ficaram um pouco mais tranquilos acerca da minha pessoa. Nesse momento, um vendedor ambulante que me tinha vigiado atenta e demoradamente, aproximou-se de mim com um cestinho na mão e fixou os olhos em mim.

            -Não ligues! - disse-me ele. - Tudo passa! Toma, come este rebuçado de mentol, vai fazer-te bem!

            Pousou na mesa um saquinho de rebuçados de mentol «Ferah» .

- Quanto é?

- Não é nada. É um presente.

            Dir-se-ia um velhote generoso que oferece rebuçados a um miúdo que vê na rua a chorar. E eu acho que deitei ao velhote generoso o mesmo olhar culpado desse miúdo. Chamar-lhe velhote é uma maneira de falar, já que ele não devia ser muito mais velho do que eu.

- Hoje em dia estamos todos fodidos - disse-me ele. - O Ocidente papou-nos a todos, deu cabo de nós. Metem o nariz em toda a parte, até na nossa sopa, no nosso açúcar, até nas nossas cuecas, encostaram-nos à parede. Mas um dia, nem que seja daqui a mil anos, vamos acabar com esta maquinação, vamos tirá-los da nossa sopa, das nossas almas. E agora anda lá, chupa um rebuçado de menta. E não chores, isso não resolve nada.

Seria esta a consolação que eu esperava? Mas, como o miúdo que se deixa levar pela história que lhe conta o bom do velhote, eu fiquei a pensar durante muito tempo no que o homem me tinha dito. E lembrei-me de uma ideia expressa por Erzurumlu Ibrahim, e também pelos escritores do primeiro período do Renascimento, o que me deu outro motivo de consolação: tal como eles, disse para mim que a tristeza é uma substância negra e nociva, que se espalha do estômago até ao cérebro, e decidi prestar mais atenção àquilo que comia e bebia.

Miguei o pão na sopa, meti lá a colher, engoli delicadamente uma golada de raki, pedi um segundo copo, assim como uma fatia de melão. Como um velho prudente que se preocupa mui­tíssimo com tudo o que ingere, a preocupação pelo que comia e bebia tornou-se para mim uma boa diversão, até à hora da par­tida.

Dirigi-me para o carro e instalei-me num dos lugares da primeira fila. Já adivinharam, suponho: queria deixar para trás de mim o lugar número 37, que até então sempre fazia por esco­lher, assim como tudo o que estava ligado ao meu passado. Devo ter adormecido imediatamente.

Depois de ter dormido um sono longo e profundo, acordei quando o autocarro parou um pouco antes do amanhecer e en­trei numa dessas «áreas de descanso» recentemente abertas e que constituem um dos degraus modernos para se ascender à civi­lização. Senti-me um pouco mais reconfortado à vista das rapa­rigas de sorriso acolhedor que gabavam marcas de pneus para camiões, bancos ou a Coca-Cola; também me alegraram um pou­co as paisagens dos calendários, as cores variegadas das letras que me berravam as suas mensagens, e, no expositor envidraçado assinalado por um astucioso «self-service», os hambúrgueres rechonchudos transbordando do pãozinho e as fotografias de gelados de todas as cores, amarelos como botão de ouro, azul de sonho ou vermelho luzidio como o bâton para os lábios.

Servi-me de um café e fui sentar-me num canto. Sob as luzes potentes, vi em três ecrãs de televisão uma rapariguinha muito elegante que não conseguia deitar nas batatas fritas uma nova marca de ketchup contida numa garrafinha de plástico, e a sua mãe que ia ajudá-la. Havia na minha mesa uma dessas garrafas de plástico da mesma marca Gutelo. Na garrafa, letras doura­das prometiam-me que, se eu juntasse no espaço de três meses as cápsulas de trinta garrafas do mesmo ketchup que vem numas garrafas tão difíceis de abrir e que, uma vez abertas, deixavam escapar o seu conteúdo para os vestidos das rapariguinhas e se as enviasse para a morada indicada, teria direito a participar num grande sorteio e a passar uma semana na Disneyland da Florida no caso de ganhar o primeiro prémio. E no mesmo instante, no ecrã do meio, um futebolista marcou um golo.

Juntamente com todos os outros viajantes do sexo masculino da sala - os que faziam fila para os hambúrgueres e os que já estavam sentados às mesas -, eu seguia no ecrã o mesmo golo, desta vez au ralenti, e sentia um optimismo que não era de modo algum superficial, mas racional e aplicável à vida que a partir desse momento me esperava. Gostava de ver os jogos de futebol na televisão, preguiçar aos domingos em casa, beber um copo de vez em quando, levar a minha filha a ver os comboios à estação, experimentar as novas marcas de ketchup, gostava de ler, de falar de mexericos com a minha mulher e de fazer amor com ela, de fumar um cigarro, de me sentar em qualquer lado onde não me incomodassem a beber um café - como estava a fazer agora ­e de milhares de coisas mais. Se eu tivesse um pouco de cuidado com a saúde e vivesse, digamos, até à idade do confeiteiro Sü­reyya bey, dispunha de cerca de meio século para usufruir tran­quilamente de todos estes prazeres. De repente tive saudades da minha mulher, da minha filha, da minha casa. Imaginava as brincadeiras que faria com a minha filha quando chegasse a casa no sábado ao meio-dia, os bombons que iria comprar-lhe à pas­telaria perto da estação; e ao fim da tarde, enquanto ela brincasse no jardim, eu e a minha mulher poderíamos fazer amor, não com preguiça, mas com sinceridade e ardor, depois veríamos televisão, fazendo coceguinhas à nossa filha e rindo-nos os três como ma­lucos. Vi todas estas imagens a desfilarem lentamente diante dos meus olhos...

O café tinha-me deixado bem desperto. No silêncio profundo que reinava no autocarro quando estava prestes a amanhecer, o motorista e eu, sentado mesmo atrás dele, um pouco à direita, éramos os únicos que não dormíamos. Com um rebuçado de menta na boca, com os olhos bem abertos fixos na estrada recta e lisa que, como a vida que me restava viver, me parecia sem limites, eu contava os intervalos no traço branco médio e seguia com atenção as luzes dos camiões e dos autocarros que se cruzavam connosco de vez em quando; esperava o amanhecer com impaciência.

Em menos de meia hora distingui os sinais precursores da aurora pela janela à minha direita, o que significava que nos dirigíamos para norte. Primeiro, perfilou-se vagamente no escuro o limite entre o céu e a terra. Depois, esse limite começou a tin­gir-se de um vermelho sedoso que, sem iluminar a estepe, inva­diu o céu escuro de uma ponta à outra. Esta linha de demarcação avermelhada era tão fina, tão delicada, tão extraordinária que o infatigável Magirus se lançou rumo à escuridão como um cavalo louco que tivesse tomado o freio nos dentes e os passa­geiros que ele transportava ficaram cheios de um frenesi mecâ­nico desprovido de sentido. Ninguém notava isso, nem mesmo o motorista que tinha os olhos fixos no asfalto.

Alguns minutos depois, a luz débil que a linha do horizonte espalhava, agora de uma cor púrpura um pouco mais intensa, ti­nha iluminado os contornos das nuvens negras. Enquanto, nesta luz fraca, contemplava as formas esplêndidas que as nuvens tomavam, estas nuvens que durante toda a noite tinham despe­jado cá para baixo uma chuva sem tréguas, reparei numa coisa: como a estepe ainda estava mergulhada na escuridão, podia ver no pára-brisas o reflexo da minha cara e do meu corpo ligei­ramente iluminados pelas luzes de presença do interior, e podia ao mesmo tempo ver a faixa de luz de um vermelho mágico, as nuvens maravilhosas e, na estrada, as faixas brancas que se suce­diam incansavelmente.

Foi olhando para esses traços iluminados pelos nossos faróis que me lembrei do meu estribilho: quando, no autocarro cansado, as rodas giram à mesma velocidade durante horas e horas, quando o motor geme sempre no mesmo compasso e a vida se repete no mesmo ritmo, há um estribilho que se ergue do fundo da alma do passageiro esgotado, e que é reproduzido pelos postes eléctricos. O que é a vida? Um lapso de tempo. O que é o tempo? Um acidente. O que é um acidente? Uma vida. Uma vida nova. Era isso o que o meu estribilho me repetia. E eu perguntava a mim mesmo quando desapareceria o meu reflexo no pára-brisas e quando surgiriam na estepe a primeira silhueta de curral ou o primeiro fantasma, no instante mágico em que a penumbra no interior do autocarro fosse exactamente a mesma que a penumbra do exterior, quando, de repente, uma luz brilhante me encandeou.

E nessa luz, à direita do pára-brisas, vi o Anjo. Estava ao pé de mim, e no entanto estava muito longe. E compreendi: aquela luz profunda, fixa e potente estava ali para mim. Embora o Magirus avançasse a toda a velocidade na estepe, o Anjo não ficava nem mais longe nem mais perto. O brilho da luz não deixava que eu visse bem como ele era, mas percebi pela sensação de ligeireza e de liberdade que me tomava que eu o tinha reconhecido de verdade.

O Anjo não se parecia com o das miniaturas persas, nem com o dos papelinhos de embrulhar caramelos, nem com os anjos das fotocópias, nem mesmo com o Anjo de quem tanto gostaria de ter ouvido a voz sempre que sonhava com ele.

Por um breve instante quis dizer qualquer coisa ao Anjo, falar com ele, talvez por causa da vaga sensação de brincadeira e sur­presa que ainda não me tinha largado. Mas não consegui emitir o mínimo som e o medo invadiu-me. A sensação de amizade, de afeição, de afinidade era ainda muito forte em mim: esperava recuperar a paz e, repetindo para mim mesmo que era este o ins­tante por que esperava havia tantos anos, para acalmar o medo que ia crescendo dentro de mim tão depressa quanto o autocarro acelerava, desejei que este instante me revelasse os segredos do tempo, do acaso, do acidente, da paz, da escrita e da vida nova. Mas em vão.

O Anjo era cão implacável como magnífico e longínquo. Não porque quisesse sê-lo, mas porque era apenas uma testemunha e neste exacto momento não podia fazer mais nada. No meio da estepe ainda mergulhada na penumbra, ele via-me transtornado, aturdido, sentado no primeiro banco da frente do Magirus que fazia lembrar uma lata de conservas e avançava bamboleante na luz incrível do raiar do dia; e era tudo. Senti ainda mais a força insuportável desta crueldade e da minha confusão.

Quando me virei instintivamente para o condutor, vi a luz jorrando contra o pára-brisas com uma violência extrema. Ses­senta metros à nossa frente, um camião tentava ultrapassar outro e os dois aproximavam-se a toda a velocidade, com os faróis apontados contra nós. Percebi que o acidente era inevitável.

Lembrei-me então da serenidade que sentira depois do acidente que tivera uns anos antes, do sentimento de transição que então experimentara, como num filme au ralenti. Lembrei-me dos passageiros que já não estavam cá nem lá e que se moviam na beatitude como se partilhassem um tempo vindo do paraíso. Não tardou a que todos os passageiros que dormiam acordassem e que o silêncio da manhã fosse quebrado por exclamações de alegria e gritos inconscientes, no limite dos dois universos, como se des­cobrissem as eternas brincadeiras passadas num espaço que ignorava a gravidade; iríamos descobrir todos juntos, com estu­pefacção e emoção os órgãos internos sanguinolentos, os cor­pos despedaçados, os frutos espalhados, os pentes e os sapatos e os livros para crianças que sairiam das malas rebentadas.

Mas esta descoberta não a partilharíamos todos. Os que teriam a sorte de viver este instante único - o que se segue ao incrível estrépito do acidente - seriam os passageiros que fossem sentados nos bancos de trás. Mas eu, sentado mesmo à frente, com os olhos encandeados fixos, com pavor e pasmo, nos faróis dos camiões que se aproximavam, tal como havia escrutado a incrível luz que jorrava do livro, passaria de imediato para um mundo novo.

Vi que se tratava do fim da minha vida. E, no entanto, eu queria voltar para casa, não queria, mas de modo algum, passar para uma vida nova, não queria morrer, eu...

 

                                                                               Ornan Pamuk 

 

                      

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