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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A VIZINHA DO LADO / Barbara Delinshy
A VIZINHA DO LADO / Barbara Delinshy

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Num condomínio elegante nos subúrbios do estado de Connectici-it, três casais vêem a sua harmonia desfeita quando uma atraente - jovem vizinha, viúva há um ano, descobre que está grávida. Quem é o pai? Poderá ser um dos três maridos? Um a um os casais tornam-se misteriosos, fazem o balanço dos seus casamentos e da lealdade e confiança que talvez tennam dado como asseguradas. Em cada um dos casos, esta introspecção revela fraquezas, e para cada uma das mulheres a situação torna-se numa crise que as vai obrigar a tomar uma decisão, resultando a consolidação ou na dissolução dos seus casamentos. Recheado de emoção e surpresas, A Vizinha do Lado é uma engenhosa história de confiança, ciúme e luta para manter o amor vivo.

"O casamento é o ponto de partida para este livro - o que faz com que ele funcione, o que o ameaça e o que acontece quando a vida começa a interferir no dia-a-dia a dois".

 

 

 

 

Se lhes fosse dado escolher, Amanda e Graham teriam fugido. com trinta e trinta e seis anos respectivamente, a única coisa que queriam era casar. Mas o pai de Amanda insistiu que a sua filha única devia ter um grande casamento, a mãe não se fez rogada para lhe gastar o dinheiro e a família de Graham adorava festas.

Tiveram, por isso, um casamento em grande. Foi em Junho, no clube de golfe de Cape Cod onde o pai de Amanda era sócio. A cerimônia realizou-se de frente para um palco, com narcejas, andorinhas-do-mar e trezentos convidados. Guiados depois pelos noivos, que seguiam de braço dado, estes trezentos convidados atravessaram o décimo-oitavo green e deram a volta ao clube para o copo-d'água, servido no jardim. Era um local viçoso e verdejante, cheio de lilases e peónias e a cheirar a rosas. Foi muito mais apreciado pelos convidados da noiva, que queriam toda a pompa a que tinham direito, do que pelos do noivo, que só queriam divertir-se. Os brindes sucederam-se, a começar pelo do padrinho.

William O'Leary era o irmão mais velho a seguir a Graham, o mais novo de oito irmãos. De copo de champanhe na mão, lançou um sorriso com o olhar à mulher e aos quatro filhos antes de se virar para o noivo:

* Apesar de eu ser um ano mais velho do que tu, não foi fácil acompanhar-te, Graham O'Leary. Sempre foste melhor do que eu na escola. Sempre foste melhor do que eu no desporto. Eras sempre escolhido para delegado de turma e não sabes como às vezes eu me roía.

* Ouviram-se risos. - Mas agora não, porque sei uma coisa que tu não sabes. - O seu sorriso tornou-se malicioso. - Podes ter herdado a beleza e a inteligência da família, mas isso não significa muito à noite, às escuras. Desejo-te a ti e à Amanda tudo o que tive nestes últimos quinze anos. - Ergueu o copo. -Aos noivos! Que a vossa vida tenha doces segredos, risos e muito sexo.

Ouviram-se vivas, os copos tiniram e toda a gente bebeu.

Quando a agitação acalmou, Beth Fisher, uma das três damas-de-honor, elegantemente vestida de azul-marinho, aproximou-se do microfone e falou com suavidade:

* A Amanda esteve solteira durante muito tempo, à espera do homem certo. Costumávamo-nos lamentar as duas. Depois, eu conheci o homem da minha vida e a Amanda atirou-se ao trabalho, deixando o resto em suspenso. Não andava à procura quando viu o Graham pela primeira vez, mas é assim que acontecem algumas das melhores coisas da vida. - Ergueu o copo. - À Amanda e ao Graham! Que se amem para sempre!

Amanda não deixara nada em suspenso: desesperara de encontrar um homem em quem pudesse confiar o suficiente para amar. Nisto, numa insuspeita tarde de Agosto, procurou refugio do calor de Manhattan indo visitar a Greenwich a antiga directora da sua tese, e encontrou Graham de peito nu e suando enquanto plantava zimbros numa encosta perto da casa dela.

Havia seis homens a trabalhar. Amanda não fazia idéia da razão que a levara a sentir-se atraída por Graham e não por qualquer um dos outros.

Não. Não era verdade. Sabia muito bem. Ele era sedutor com o seu cabelo escuro, a barba cerrada, mais alto do que os outros e de músculos melhor torneados. Soube depois que não costumava cavar. Era o cérebro da operação. Mais tarde, Amanda insistiu que também isso a atraíra.

E como soubera do cérebro a trinta metros de distância? Os olhos. Haviam encontrado os dela por sobre aquela encosta escavada, sustentando o olhar de um modo que sugeria ou um descaramento total ou extrema confiança. Estes comportamentos não faziam parte da sua experiência com homens, mas eram igualmente excitantes. Passados pouco mais de quinze minutos do início da sua visita, bateu à porta com os planos paisagísticos para outra parte do jardim.

A interrupção foi deliberada. Admitiu-o desde o principio. Queria ser apresentado e conseguiu.

A irmã mais velha do noivo, MaryAnne O'Leary Walker, aproximou-se do microfone com um fato verde que lhe ficava melhor antes de ter os últimos três dos seus cinco filhos. Destemida e confiante, virou-se para Graham, que se encontrava rodeado de amigos, com um braço cingindo a sua noiva loura, envolta em rendas e pérolas brancas.

* Tinha doze anos quando tu nasceste - começou ela. - Mudei-te mais fraldas do que imaginas. Agora é a tua vez. - Ergueu o copo. - Que tenhas montes de bebês e de paciência!

* Muito bem, muito bem! - gritaram todos em coro. Os ecos foram diminuindo até uma outra dama-de-honor vestida de azul-marinho avançar para o microfone.

* Conheci a Amanda na universidade - disse Gail Wald em voz suave. - Éramos psicólogas em Nova Iorque, em escolas próximas uma da outra, quando o Graham ma roubou. Não sei se alguma vez lhe perdoarei. Mas a verdade é que o Graham tem sido um sorriso nos olhos da Amanda desde o dia em que se conheceram. E isso quer dizer muito num mundo onde às vezes não é fácil sorrir. É fácil conpreendê-lo quando se tem a nossa profissão. Aprendemos então a dar valor aos sorrisos e a perceber quais são os verdadeiros. Um, é o da minha amiga. - Erguendo o copo, virou-se para o sorridente casal.

* À Amanda e ao Graham! Pode ter sido tudo muito depressa, mas é a sério. A milhares e milhares de outros sorrisos e a uma vida cheia de saúde e prosperidade!

Amanda não costumava gostar que as coisas acontecessem muito depressa. Preferia de longe explorar, ponderar e planear. Quando saía com um homem, queria saber quase tudo sobre ele antes do primeiro beijo, pois estava realmente cansada. Vira o outro lado do casamento na sua própria casa muito antes de começar a ouvir os estudantes queixando-se dos pais, e não acreditava nada no amor à primeira vista. Desejo, talvez, mas não amor. O seu lado de terapeuta precisava defatos e argumentos.

A sua atração por Graham O Leary virou tudo de pernas para o ar. Transformou-a numa apreciadora de sushi quando saíram juntos pela primeira vez, um dia depois do seu encontro em Greenwich, e deixou-a de cabeça a andar à roda quando foram dançar na noite seguinte. Graham era incrível a dançar. Conduzia comfluidez e graça e ela, uma alma independente, deixava-se conduzir. Uma canção seguiu-se à-outra e depois à outra. Quando ele lhe dobrou a mão e a encostou ao coração, sentiu todo o corpo chegando-se ao dele.

Para Graham, foi um momento decisivo. Não queria uma mulher que condissesse com a imagem da mãe ou dos irmãos. Já experimentara. Desta vez, queria uma mulher que estivesse bem para ele. A maneira como Amanda se encaixou no seu corpo disse-lhe que era ela. E não se tratava de uma atração só física. Tinha trinta e cinco anos. Sabia o que era atração física e que Amanda não era só um corpo bem feito. Era uma senhora distinta e com classe, mas parecia sentir aquela centelha com tanta força como ele. A surpresa que lhe viu nos olhos quando a apertou, segundos antes de ela assentar no seu corpo, disse-lhe que Amanda não confiava com facilidade, mas que tinha confiança nele.

Lembrar-se-ia desse momento até ao dia em que morresse. Sentiu-se forte. Sentiu-se único. Sentiu que fazia falta.

Dorothy O'Leary, mãe do noivo, não ergueu o copo para brindar. Tinha o sorriso petrificado e os olhos vítreos. Estava de lado com o irmão e a família, afastada da festa, até o seu terceiro filho mais velho se aproximar do microfone. Foi só então que focou os olhos e suavizou as feições.

Peter O'Leary, padre jesuíta, tinha um carisma notável, que o cabeção só vinha reforçar. Depois de silenciar os convidados sem qualquer dificuldade, dirigiu-se aos noivos:

* O fato de terem escolhido casar aqui e não na igreja poderia preocupar-me se não tivesse passado tanto tempo convosco neste últimos meses. Se alguma vez houve uma relação certa, é esta. - Afastando-se do microfone, encaminhou-se para os recém-casados, pousou a mão no ombro de Graham e ergueu o copo. - O amor irradia do vosso rosto. Que seja sempre assim. Que tenham uma vida longa, que dêem mais do que recebem e que sirvam sempre o Senhor. - Fez uma pausa, deixou que uma centelha se lhe acendesse no olhar e rendeu-se à sua herança O'Leary. - Ah, sim, e que se reproduzam bem!

amanda não se deitava com alguém sem mais nem menos. Tivera dois namorados antes de Graham. Andara com cada um deles vários meses, ponderara bastante e rodeara-se de precauções antes de tirar

a roupa.

com Graham, foi tudo diferente. Ele sugeriu-lhe um passeio, o que pareceu uma excelente aventura a Amanda, que imaginou um dia bem passado. Mas Graham apareceu-lhe com sacos-cama, comida e a chave do chalé de um amigo, situado seis quilômetros no interior da floresta.

Nunca sequer se lembrou de dizer que Não era uma caminheira e nunca na vida tivera um saco-cama, pelo menos não daqueles que isolam o corpo do frio de uma noite passada na montanha.

Graham era capaz e organizado. Gostava de lhe explicar as coisas e fazia-o bem. Não tinha problemas em fazer-lhe perguntas quando conversavam sobre assuntos que ela conhecia melhor do que ele... e depois, havia o seu sorriso. Era descontraído, franco e suficientemente aberto para lhe marcar o rosto através da barba. Tudo somado, estar com ele era a coisa mais excitante que alguma vez acontecera a Amanda.

A montanha que subiram seguindo pelo trilho tinha uma vegetação luxuriante, regatos límpidos, trinados doces e vistas de cortar a respiração. Graham sabia para onde iam e caminhava com a perícia que demonstrara a dançar. Amanda entregou-se nas suas mãos, tal como o fizera nessa altura.

Não chegaram ao chalé. Mal acabaram de almoçar, ele estendeu-a num vale estreito e abrigado perto do trilho e fez amor com ela em plena luz do dia. Estavam suados, sujos e (pensava ela) cansados mas, uma vez que começaram, não conseguiram parar. Amanda pensou que, se não fosse ele, nem se lembraria de tomar precauções para não ficar grávida. Desejava-o de mais para se preocupar. Nada afaria recuar ao sentir-se tão mulher com ele dentro dela.

* A minha família é incorrigível - declarou Kathryn O'Leary Wood ao microfone. Os seus olhos tocaram por breves instantes em Megan Donovan, o amor de infância de Graham, sua primeira mulher e ainda uma amiga muito querida da família, antes de pousarem nos noivos. - Esta mensagem é minha e da Megan. Amanda, o meu irmão e' o maior. Além de ser um pão, é inteligente, sensível e especial. Mas parece-me que tu também és tudo isto. - Fez uma pausa e sorriu. Por isso, podemos esperar bebês lindíssimos, inteligentes, sensíveis e especiais. Desejo-te a ti e ao Gray toda a felicidade do mundo. - Os seus olhos semicerraram-se ao fitar Graham, três anos mais novo do que ela. - E olha, Graham O'Leary, esta é a última vez que te falo assim!

As palmas prolongaram-se, diminuindo apenas quando a dama de honor de Amanda chegou ao microfone. Era alta, magra e tímida. Olhando para o mar de rostos,   com seus sorrisos,   começou com suavidade:

* Não tenho filhos nem irmãos. Mas tenho um passado com a noiva. Conheço os pais e gostaria de lhes agradecer esta festa tão bonita. - Levantou o copo para Deborah Carr, de um lado da sala, e para William Carr, que se encontrava do outro, e esperou que os aplausos parassem antes de continuar. - Das pessoas que estão aqui, sou a que conheço a Amanda há mais tempo. Somos amigas desde o jardim de infância. A Amanda tem estado sempre comigo de uma maneira que só eu e ela sabemos. Sabe ouvir, pensa com clareza e é a mais leal das confidentes. Não me admira nada que seja tão boa com os adolescentes, os quais invejei muitas vezes. Agora, invejo o Graham.

Graham até se invejaria a si próprio, se isso fosse possível. Sabia como era estar num altar e olhar pela passagem entre os bancos floridos para trás dos convidados no momento em que a noiva aparecia. O que desconhecia era a sensação de ver tudo o resto completamente. desfocado. Não estava preparado para isso nem para o nó que se lhe formou na garganta e que lhe encheu os olhos de lágrimas.

Amava-a tanto e sentia-se tão privilegiado! Ela era inteligente, culta e sofisticada... tudo o que sempre admirara e achava que nunca fora, vindo da família que vinha. Mas apesar de todas as diferenças, ainda não tivera nenhuma discussão com Amanda. Gostavam da mesma mobília, da mesma comida, da mesma música. Queriam a mesma casa, a mesma família grande. Quando a vira a primeira vez. naquela encosta de Greenwich, tivera a sensação absurda e sentimental que a única razão do fim do seu casamento com Megan era que Amanda estava à sua espera.

Nesse dia, tudo o resto ficara defacto desfocado. Só a vira a ela caminhando na sua direcção pelo carreiro cheio de ervas. Quando o coração lhe dera um salto de um modo que sabia que seria permanente, deixara de resistir.

Concluindo o seu brinde, a dama-de-honor de Amanda fitou Graham.

* A minha amiga é preciosa. Toma bem conta dela, por favor.

* Ergueu o copo. - À vossa! Que a espera tenha valido a pena.

Ouviram-se suspiros e palavras de assentimento. Depois, foi a vez de uma voz profunda.

* Por falar em espera... - Malcolm O'Leary aproximou-se do microfone. O irmão O'Leary mais velho (que, juntamente com o segundo mais velho, James, era proprietário do armazém de ferragens do seu falecido pai e que tinha cinco filhos) ergueu o copo. - Tenho um conselho a dar ao meu irmão e à sua bonita noiva: mãos à obra, Amanda e Gray! Já estão atrasados.

Amanda e Graham comemoraram o seu primeiro ano de casados vendo uma casa. Já tinham inspeccionado outras, mas nenhuma tão grande, bonita, com uma localização tão elegante e que os entusiasmasse tanto como esta. O preço que pediam era alto, mas o trabalho de Graham, arquitecto paisagista, ia de vento em popa e até já contratara um assistente a tempo inteiro, e Amanda acabava de ser colocada no departamento de psicologia da escola da cidade onde ficava

a casa.

A cidade era Woodley. Próspera e limpa, situava-se num amontoado de colinas suaves no lado ocidental do Connecticut, a noventa e poucos minutos de Nova Iorque, e contava entre os seus catorze mil habitantes meia dúzia de directores executivos da Fortune, quinhentas empresas, numerosos médicos e advogados e uma lista de informáticos ligados à Internet que estava constantemente a aumentar.

A população era cada vez mais jovem. À medida que surgiam grandes casas em lotes de terreno arborizado ou que os residentes mais velhos se reformavam e se mudavam para o sul, as ruas da cidade viam cada vez mais gente nova.

A casa, com cerca de dez anos, era a primeira de quatro moradias vitorianas construídas em redor da praceta de um beco sem saída arborizado. Pintada de amarelo com uma faixa branca, com um alpendre largo que corria a toda a volta, uma graciosa sebe de estacas e lanternas a gás, era tão pitoresca como as suas vizinhas. e a beleza não acabava à porta. O vestíbulo, aberto e claro, tinha de um lado a sala de estar e do outro a de jantar, ambas com tectos em relevo, painéis de mogno e janelas altas. Na parte de trás da casa, a cozinha ampla tinha balcões de granito, chão de madeira e uma zona envidraçada para o pequeno-almoço. A escada com bancos nas janelas dos dois patamares levava aos quatro quartos do primeiro andar, um dos quais era uma luxuosa suite. Como se tudo isto ainda não chegasse, a agente imobiliária conduziu-os a mais dois quartos por cima da garagem.

* Escritórios - cochichou Amanda muito entusiasmada, quando a mulher se afastou para falar ao telemóvel.

Graham sussurrou.

* Podes dar consultas aqui?

* Claro. Podes desenhar planos paisagísticos aqui?

* Sem dúvida. - Os murmúrios continuaram. - Olha para a mata. Sentes o cheirinho dos lilases? Se não aqui, onde? Viste os quartos?

* São enormes.

* Excepto o que fica ao lado do nosso. Podia ser o dos bebês.

* Não, não. - Amanda tinha outra idéia. - Eu punha o berço no nosso quarto e fazia do outro um quarto de brinquedos. É perfeito para ler histórias antes de dormir.

* Então a Zoe e a Emma ficam do outro lado e o Tyler e o Hal ao fundo.

* Hal não - pediu Amanda. Era uma discussão que já vinha de longe. - Granam, Jr. E se forem como tu e os teus irmãos, vai haver asneira. É melhor ficarem mais perto.

* Hal - insistiu Granam. - E quero-os bem longe. Os rapazes fazem mais barulho, acredita. - Passando-lhe um braço à volta da cintura, estreitou-lhe as ancas. Os olhos ficaram-lhe mais pesados, a cor das faces mais quente e a voz mais profunda, uni sussurro. - Deitaste fora o diafragma?

O momento era tão intenso que Amanda mal conseguia respirar.

* Deitei.

* Vamos fazer um bebê?

* À noite. - Tinham decidido esperar um ano para se terem um ao outro sem interrupções, antes de as suas vidas mudarem inevitavelmente.

* Se esta casa fosse nossa, onde farias... - O sussurro dele enrouquecera.

* Na cozinha, no recanto do pequeno-almoço - murmurou ela.

* Assim, daqui a muitos anos, olharíamos um para o outro por cima das cabeças dos miúdos e teríamos o nosso segredo. E tu?

* No quintal. Na mata, longe dos vizinhos. Será uma repetição da nossa primeira vez.

Mas não era a primeira vez. Estavam casados havia um ano e tinham sonhos urgentes.

* Esta casa é perfeita, Gray. Este bairro é perfeito. Viste as casas nas árvores e os baloiços? São pessoas simpáticas com filhos. Temos dinheiro para viver aqui?

* Não. Mas vamos ter.

Comemoraram o segundo ano de casados com uma ida ao ginecologista de Amanda. Havia um ano que faziam amor sem usar nada e ainda não aparecera nenhum bebê. Após meses a não dar importância, meses repetindo um ao outro que era só uma questão de tempo, começavam a pensar se estaria tudo bem.

Depois de examinar Amanda, o médico declarou que ela era saudável e repetiu o veredicto quando Graham se lhes juntou. Amanda só se sentiu aliviada quando Graham lhe atirou um sorriso aberto e a puxou para si.

* Estava cheia de medo - disse ao médico com ar acanhado, agora que o pior fora posto de lado. - As pessoas contam histórias horríveis.

* Não lhes dê ouvidos.

* Isso é muito fácil de dizer. - Eram as cunhadas que lhe contavam as piores histórias. Que podia fazer? Não ia deixá-las a falar sozinhas... De resto, não diziam nada por experiência própria. Contavam histórias de amigas ou de amigas de amigas. Os O'Leary não tinham problemas a fazer bebês. Amanda e Graham eram a excepção.

O médico recostou-se na cadeira e entrelaçou os dedos sobre a barriga, num gesto paternal:

* Ando nisto há mais de trinta anos e sei o que são problemas. O único que vejo aqui é a impaciência.

* E não é natural? - perguntou Graham. - A Amanda tem trinta e dois anos e eu trinta e oito.

* Casados há dois anos, não é? A tentar que ela engravide há apenas um? Não é muito tempo. - Consultou as notas que escrevera. Podia ser stress, mas parecem felizes com o vosso trabalho, não é?

* E - responderam em coro. Fora mais um ano muito born.

* E gostam de viver em Woodley?

* Muito - retorquiu Graham. - A casa é um sonho.

* E os vizinhos também - acrescentou Amanda. - Seis crianças, com pais excelentes. Há também um casal mais velho... - Calou-se de repente e lançou a Graham um olhar aflito.

Ele cingiu-a mais.

* A June morreu há pouco tempo. Diagnosticaram-lhe cancro e faleceu seis semanas depois. Tinha só sessenta anos.

Amanda ainda não se recompusera do choque.

* Só a conheci há um ano, mas adorava-a. Eu e toda a gente. Era como uma mãe... melhor do que uma mãe. Podíamos falar-lhe de tudo, que ela ouvia e fazia as soluções parecerem simples. O Ben anda perdido sem ela.

* E o que dizia a June sobre a sua gravidez? - perguntou o médico.

Amanda não negou que discutira o assunto com ela.

* Para eu ter paciência, que acabaria por acontecer.

* Tinha razão - assentiu o médico. - Olhe, está mesmo muito bem. Tem tudo no sítio e um ciclo regular. Faz ovulação...

* Mas já passou um ano. Os livros dizem...

* Feche os livros - interrompeu ele. - Leve o seu marido para casa e divirtam-se.

No terceiro ano de casados, Amanda e Graham foram consultar um especialista a Manhattan. Na verdade, era o seu terceiro médico. O primeiro caíra em desgraça ao insistir que estava tudo bem... não que Amanda e Graham achassem que não, mas pensavam que era chegada a altura de fazerem alguns exames. Por isso, tinham ido consultar o segundo, um especialista em fertilidade, da região, que atribuíra o problema à idade.

* Está bem, mas o que fazemos? - indagara Graham. Ele encolhera os ombros.

* Não se pode fazer o relógio andar para trás. Amanda reformulara a pergunta.

* Como se tratam... casais mais velhos que querem ter filhos? Graham fitara-a, boquiaberto.

* Casais mais velhos? A média das nossas idades dá trinta e seis anos. Isso é ser velho?

Ela levantara uma mão, pedindo-lhe para deixar o médico responder.

* Há coisas que se podem fazer: a IA, a IIU e a ICSI. Se o resto falhar, temos a FIV.

* Traduza - pedira Graham.

* Sim, por favor - acrescentara Amanda.

* Ainda não leram nada sobre o assunto? - inquirira o médico.

* A maioria dos casais na vossa situação já o teria feito.

* Mas o último médico que consultámos insistia que estava tudo bem. Disse-nos que continuássemos a fazer o que estávamos a fazer e que não nos preocupássemos com nada - espantara-se Amanda.

* Querem um filho ou não? - Fora menos uma pergunta e mais uma afirmação, e nem sequer pronunciada com aspereza, mas tivera esse efeito.

* Não vale a pena perder mais tempo - dissera Graham, levantando-se.

Amanda concordara. Precisavam de alguém que os coinpreendesse e não que os julgasse.

* Consultem mais dez especialistas e ouvirão sempre a mesma coisa - replicara o médico, encolhendo os ombros. - As opções são inseminação artificial, inseminação intra-uterina, aplicação intra-óvulo dos espermatozóides e fertilização in vitro. Os processos vão encarecendo à medida que se passa de um para o seguinte. E as pessoas também vão envelhecendo e ficando menos capazes de conceber.

Quando Graham olhara para Amanda e inclinara a cabeça na direcção da porta, ela pusera-se logo ao seu lado. Por isso, encontravam-se em Nova Iorque no seu terceiro ano de casados. Parecendo compreensivo e competente, este último médico começou com uma série de exames, alguns dos quais eram, pela primeira vez, para ser feitos por Graham. Quando os primeiros resultados não mostraram nada de anormal, deu-lhes várias coisas para ler e uma pasta com instruções e gráficos. Garantindo-lhes que não esperava surpresas nos resultados dos exames que faltavam, mandou-os para casa, recomendando a Amanda que identificasse os períodos férteis registando a temperatura do corpo e a Graham que maximizasse a contagem de espermatozóides deixando passar pelo menos dois dias entre uma ejaculação e outra.

Brincaram com o facto no caminho de regresso a Woodley, mas o seu riso era tenso. Inevitavelmente, fazer amor deixou de ser um acto tão descuidado como era. O objectivo de terem um filho tornou-se mais importante do que o prazer. Os meses passavam e as apreensões cresciam.

Passaram calmamente o dia em que fizeram quatro anos de casados. Amanda convalescia de uma pequena cirurgia realizada por mais um médico. Desta vez era uma mulher, que dirigia uma clínica de fertilidade trinta minutos a sul de Woodley. Andava na casa dos quarenta, tinha três filhos com menos de seis anos e estava farta dos colegas que atribuíam a culpa daquilo que não conseguiam diagnosticar às emoções, como o médico de Manhattan acabara por fazer. Esta médica quisera que a tratassem pelo nome próprio, Emily, e não só lhes pusera perguntas que nenhum dos outros formulara como os mandara fazer exames diferentes. Fora assim que detectara um pequeno bloqueio numa das trompas de Amanda. Embora não tivesse a certeza de que era suficientemente grave para estar a causar o problema, aconselhara a sua limpeza, por precaução.

Amanda e Graham haviam concordado de imediato. Tinham esperado ter, por essa altura, três filhos: Tyler, Emma e Hal, nascidos em três anos consecutivos. Mas como as coisas estavam, a casa que haviam escolhido por ter muito espaço começava a parecer-lhes grande e silenciosa de mais. E embora tentassem não se deixar obcecar pela idéia, havia alturas em que pensavam se alguma vez teriam filhos.

Neste quarto aniversário de casados, não fizeram amor. Amanda ainda não estava em forma; aliás, mesmo sem a operação, não era a altura certa para terem relações sexuais. Foi, por isso, uma manhã de trocas de prendas e ternuras. Graham levou-lhe o pequeno-almoço à cama e deu-lhe uns brincos em forma de coração; ela disse-lhe que o amava e ofereceu-lhe um livro sobre arbustos exóticos. Depois, Graham foi trabalhar.

Na verdade, neste quarto aniversário de casados as boas notícias tinham a ver com o trabalho: O Design Paisagístico O'Leary ia de vento em popa. Graham alugara no centro de Woodley várias salas onde tinha dois assistentes a tempo inteiro e um gerente. Trabalhava para os três maiores infantários do oeste do Connecticut e tinha excelentes relações com três quintas em Washington e Oregon e outras de arbustos nas Carolinas. Duas das equipas de Will estavam sempre ocupadas a plantar para ele.

Amanda, por seu lado, fora nomeada coordenadora do departamento de psicologia das escolas de Woodley, o que lhe permitira modernizar um sistema ligeiramente antiquado, organizando programas para conhecer os alunos em situações não ameaçadoras como seminários, almoços e serviços à comunidade. Abrira a porta do consultório a sessões tanto de cinco como de quarenta e cinco minutos e comunicava com os estudantes por e-mail, se esta fosse a única maneira de eles conseguirem enfrentar um psicólogo. Conferenciava com outros psicólogos se os casos eram difíceis e com advogados em assuntos confidenciais. Formara e treinara uma equipa de crise.

Ela e Graham tinham a casa, o trabalho, os vizinhos e o amor. A única coisa que teria abrilhantado a comemoração do quarto ano de casados seria um filho.

A dois meses de fazerem cinco anos de casados, com Amanda sentindo-se mais um robô para produzir óvulos do que uma mulher, encontraram-se os dois para almoçar. Falaram do trabalho, do tempo e da variedade de sanduíches. Não falaram do que Amanda fizera de manhã (uma ecografia para medir os folículos) nem da actividade da tarde (Graham produziria esperma e Amanda seria inseminada artificialmente). O processo já falhara uma vez. Esta seria a segunda de três tentativas possíveis.

Um pouco mais tarde, Amanda encontrava-se deitada sozinha num quarto esterilizado da clínica. Graham fizera o seu papel e fora trabalhar. Ao passar pelo corredor, Emily espreitara e dissera-lhe olá. Depois de uma espera que lhe pareceu interminável, entrou no quarto uma técnica que Amanda não conhecia. Não devia ter mais de vinte e um anos e "técnica" era a palavra certa para a descrever. Não era simpática nem calorosa e Amanda estava muito nervosa para fazer mais do que uma tênue tentativa de conversa. Vendo que não tinha resposta, limitou-se a olhar para o tecto enquanto ela lhe injectava o esperma de Graham. A seguir, tornou a ficar sozinha.

Já conhecia o procedimento. Ficaria deitada durante vinte minutos com a pélvis inclinada para cima, de modo a dar uma ajudinha ao esperma. Depois, vestir-se-ia, iria para casa e viveria com o coração nas mãos durante dez dias, rezando para que desta vez fosse avante.

Mas nesse dia, deitada sozinha com o esperma silencioso de Graham, Amanda sentiu um baque no peito. Queria pensar que era qualquer coisa mística, um sinal de que um bebê iniciava nesse instante a sua vida intra-uterina de nove meses, mas não... sabia que o baque se devia ao medo.

 

Graham O'Leary cavava como se quisesse vingar-se, trabalhando até os músculos lhe doerem: precisava de se esgotar de cansaço. Invadia-o uma energia nervosa que não tinha para onde ir. Era terça-feira, o dia D. O período viria ou faltaria a Amanda. Esperava com todo o fervor que lhe faltasse, e só em parte porque queria um filho. A outra parte tinha a ver com o seu casamento. Estavam a sentir o peso de não conseguirem ter filhos. Crescia um muro entre eles. Já não havia a mesma intimidade. Sentia que ela se afastava.

Graham já conhecia a situação.

Gemendo com a injustiça, tirou uma pazada de terra do buraco. Quando baixou a pá de novo com toda a força, bateu numa pedra. Praguejando, endireitou-se. Às vezes parecia-lhe que só encontrava pedras. Rezava a história que as terras eram separadas umas das outras por muros de pedra. Pois apostava que eram construídos apenas para tirar as benditas pedras do caminho! Imaginava os proprietários de antigamente dizendo: "you amontoá-las perto das terras do vizinho." Mas tinham deixado algumas para trás.

Aborrecido, cravou a pá por baixo da pedra, fez força e içou-a. Afastado o estorvo, cavou ritmicamente pazada atrás de pazada.

* Ei!

Sabia muito bem como era o afastamento entre as pessoas. Já o vira em Megan, aumentando devagar, misteriosamente, chegando a um ponto em que já não fazia idéia do que ela pensava. com Amanda, conhecia a raiz do problema, mas nem por isso as coisas eram mais fáceis. Costumavam estar no mesmo comprimento de onda em tudo. Agora já não.

Gemendo e cavando mais fundo, recordou a discussão da semana anterior, quando sugerira que talvez ela ficasse mais descontraída e, portanto, mais capaz de engravidar, se passasse menos tempo na escola. Dissera-lhe (segundo pensara, em voz doce) que não precisava de orientar tantos programas. Havia mais quem o fizesse. Assim, poderia chegar cedo a casa uma ou duas tardes por semana, ler, cozinhar ou ver a Oprah na televisão.

Ela ficara fitla. Nunca mais lhe sugeriria nada assim.

* Gray.

Cerrando os dentes, levantou outra pedra. Era verdade que também trabalhava mais tempo, mas não era o corpo dele que tinha de criar um ambiente favorável ao crescimento de uma criança. Bem, mas nem se atrevia a dizer-lhe isto. Amanda sentir-se-ia logo criticada. Ultimamente, interpretava mal muito do que ele dizia.

* Ó tu!

Até tivera o descaramento de o acusar de estar ausente na segunda inseminação artificial... como se as coisas pudessem ser feitas sem o seu esperma! Voltara para o trabalho depois de o produzir, mas porque ela o mandara sair. Claro, agora argumentava que o que dissera fora que não precisava de ficar se isso o incomodasse.

* Graham!

Levantou a cabeça. O seu irmão Will estava de cócoras ao pé do buraco.

* Pensava que já te tinhas ido embora. -A equipa trabalhava das sete às três horas. Eram quase cinco.

* Voltei. Que estás a fazer?

Enterrando a pá na terra, Graham afastou do rosto o cabelo molhado.

* A criar um ambiente favorável para esta árvore - continuou, indicando o monstro em questão. Tratava-se de uma bétula de um metro, que seria o ponto central do pátio que projectara. Não servia qualquer árvore. Ainda perdera algum tempo à procura da que lhe convinha. - O buraco é importantíssimo. Tem de ser bastante largo e profundo.

* Eu sei - respondeu Will. - Por isso é que encomendei uma escavadora mecânica que chega amanhã.

* Pois, mas apetecia-me fazer exercício - replicou Graham com brusquidão, voltando ao trabalho.

* Tens notícias da Amanda?

* Não.

* Disseste que telefonava logo que soubesse.

* Então é porque ainda não sabe - retorquiu Graham. Mas estava aborrecido. Não falava com ela desde que saíra da casa, de manhã cedo. Se lhe viera o período, pelos vistos não queria dizer-lho, porque ele tinha o telemóvel no bolso, silencioso como uma pedra.

* Ligaste-lhe? - perguntou Will.

* Não. - Falou com voz pedante. - Liguei-lhe ontem à tarde e disse-me que estava a pressioná-la.

* Mal-humorada, ha?

Graham soltou uma gargalhada e tirou outra pazada de terra.

* Parece que é do Clumid. Mas, olha, também não é fácil para mim e nem sequer estou a tomá-lo. - Depois, murmurou entredentes: - Sinto-me um eunuco.

* Não tens razão para isso - afirmou Will. - Não perdeste o encanto. Como sabes, até tens fãs.

Graham parou, passou outra vez o braço pela testa e lançou um olhar de esguelha ao irmão:

* Pois é. - E continuou a cavar.

* É bonita.

* O marido é um informático ligado à Internet. Ainda não têm trinta anos e não sabem o que fazer ao dinheiro. Por isso, ele brinca com os computadores e ela observa os homens que trabalham no jardim. Se queres saber, acho tudo muito patético.

* Pois eu acho lisonjeiro.

Graham lançou-lhe outro olhar:

* Então fala tu com ela.

* Não posso. Tenho de ir para casa. O Mikey e o Jake têm jogo e eu sou o treinador. - Pôs-se de pé. - Não fiques muito mais tempo. Deixa alguma coisa para a máquina.

Graham ainda cavou um bocado, quanto mais não fosse para enterrar a idéia do jogo debaixo de um monte de terra. Estava exausto. Atirando com a pá para fora, içou-se do buraco e dirigiu-se à carrinha, verde-escura, de caixa aberta e com o logotipo da empresa pintado de lado a branco. Bebeu água de uma garrafa que tinha atrás, molhou a ponta de uma toalha e limpou o suor o melhor que pôde. Pouco depois, meteu os braços numa camisa de algodão e pôs-se a caminho de casa.

* É a sua vez - disse Jordie Cotter na borda da cadeira de braços mais funda do gabinete. Tinha quinze anos e era tão louro como os três irmãos mais novos, que Amanda conhecia não porque tinha a ficha de todos os estudantes, mas porque os Cotter moravam ao seu lado. Na verdade, nem tinha nenhuma ficha de Jordie, que nunca estaria no gabinete a jogar damas com ela se lhe passasse pela cabeça que aquilo era uma consulta. Oficialmente, fora ali discutir o serviço que prestaria à comunidade, uma vez que era ela que dirigia o programa. No entanto, era a terceira vez que aparecia. A mensagem não podia ser mais clara.

Grata por ter alguma coisa que a distraísse e lhe tirasse a idéia do bebê que poderia ser ou não ser, Amanda estudou o tabuleiro, naquele momento com cinco peças pretas e três brancas. As brancas eram dela, o que significava que estava a perder.

* Não tenho muitas opções - disse.

* Jogue.

Decidindo-se pelo menor dos males, Amanda jogou de modo a sacrificar apenas uma peça. Quando Jordie lhe comeu duas, susteve a respiração.

* Não tinha visto essa possibilidade.

Ele não sorriu nem cantou vitória. Só voltou a dizer:

* É a sua vez.

Ela estudou o tabuleiro. Quando ergueu o olhar para o rapaz, reparou na sua expressão séria.

Vá - insistiu ele. Quando ela o fez, ele comeu-lhe a última

peca, ganhou o jogo e recostou-se na cadeira. Continuava, no entanto, sem qualquer expressão de vitória. - Deixou-me ganhar de propósito?

* perguntou.

* Para quê?

Ele encolheu os ombros e desviou o olhar. Era um rapaz bonito, apesar de esgalgado (o que só mostrava que ainda estava a crescer), mas a T-shirt e asjeans estavam muito longe de ser desmazeladas, trazia o cabelo limpo e bem cortado e não tinha acne (de resto, não havia ali muitos estudantes com acne). Em cidades prósperas como Woodley, os dermatologistas tinham tantos clientes como os dentistas.

* Quando as pessoas querem ser amadas, ajuda perder - disse sem olhar para ela.

Amanda inspirou profundamente:

* Sei como é. Às vezes, quando andava na escola, faltava aos exames para não parecer marrona.

* Eu não o faria - replicou Jordie.

Amanda não acreditou nele. Bem, talvez não fosse por ter medo que lhe chamassem cromo. com Jordie, havia muitas possibilidades, incluindo o facto de existir alguma tensão em sua casa. De certeza que se passava alguma coisa. As notas tinham descido bastante e Jordie andava sempre com a expressão carrancuda que tinha naquele momento.

Os olhos dele encontraram os dela. Eram escuros e atentos.

* A minha mãe disse-lhe alguma coisa?

* Por causa das notas? Não. Nem sabe que temos falado um com o outro.

* Não temos falado... não é falar. - Olhou de relance para o tabuleiro. - Isto não é falar... é só melhor do que fazer os trabalhos de casa.

Amanda levou a mão ao coração:

* Ai! Isso dói!

* Não é por isso que tem estas coisas? Para nos fazer querer vir aqui?

* Para quebrar o gelo. Ele fungou.

* Como o Harry Potter? - indagou, indicando o livro pousado na secretária.

* Acho o Harry bestial.

* Os gêmeos também. - Os seus irmãos gêmeos tinham oito anos. - Digo-lhes que o Harry voa na mata com a vassoura e assim eles não andam atrás de mim. A nossa mata é bestial. E verdadeira. O Harry não. - Inclinando-se para a frente, começou a dispor as peças no tabuleiro. - Quanto ao serviço à comunidade, olhe, até trabalharia com os meus colegas se me achasse capaz, mas não acho.

* Porquê?

* Não sou bom a falar.

* Mas parece-me que falas com os teus amigos.

* Eles falam e eu ouço.

* Então aí tens - aprovou Amanda. - Trabalhar com os teus colegas também é ouvi-los. Eles precisam de se gabar e tu és um bom ouvinte.

* Pois, mas às vezes também quero dizer coisas.

* O quê?

Ele fitou-a com uma expressão de infelicidade.

* Que a escola é uma porcaria, que a minha casa é uma porcaria e que o basebol é uma porcaria.

* O basebol? Pensei que gostavas. - Viera do treino que, pelos vistos, não lhe agradara.

* Gostaria se jogasse, mas não jogo. Fico sempre no banco. Sabe a vergonha que isso é? com toda a gente a ver? com os meus pais a verem? Porque têm de ir aos jogos? Podiam faltar a alguns. A minha mãe passa a vida na escola. A Julie adora, mas que sabe ela? Só tem seis anos.

* A tua mãe faz muito pelas escolas.

* Sabe como isso me envergonha?

* Na verdade, não - retorquiu Amanda, correndo um risco calculado. - Os meus pais, sempre tão ocupados a discutir um com o outro, não tinham tempo nem energia para mim ou para a minha escola.

Jordie levantou um ombro.

* Os meus também discutem, só que o fazem quando pensam que não estamos a ouvir.

Amanda produziu um som descontraído, mas não falou. Aproveitando o momento para organizar as idéias, Jordie continuou numa direcção um tanto diferente, mas que claramente o preocupava.

* E mesmo que não ouçamos, vemos. A minha mãe quase já nunca sorri. Já não organiza coisas divertidas como dantes. Festas em que os nossos amigos todos dormem lá em casa, por exemplo. - Corrigindo-se: - Quer dizer, por mim, já não tenho idade para isso, mas é diferente com a Julie e os gêmeos. Às vezes éramos vinte. Tínhamos pipocas, pizas e vídeos e eu nem me importava que os miúdos me chateassem a mim e aos meus amigos, porque fazia parte, percebe?

O seu entusiasmo deu lugar a um silêncio taciturno e depois à revolta.

* Agora só enfia a cabeça na porta do meu quarto para meter o nariz onde não é chamada.

* Foda-se - disse uma voz aguda e nasal.

Amanda carregou o cenho para o papagaio verde-néon que se encontrava numa gaiola no canto da sala.

* Cala-te, Maddie. Jordie fitou a ave.

* Está sempre a dizer isso. Não sei como a deixam tê-la aqui.

* Ela só diz palavrões diante dos estudantes. É muito bem educada na presença do senhor Edlin ou dos outros professores.

À semelhança do jogo das damas, Maddie servia para quebrar o gelo. Havia alunos que iam lá todos os dias durante um mês dar-lhe gulodices até se sentirem à vontade para falar com Amanda.

* É uma ave boazinha - disse Amanda na direcção da gaiola.

* Amo-te - respondeu Maddie.

* Muda de idéias assim de repente? Ela é boa ou má?

* Boa, sem dúvida. As pessoas boas podem dizer coisas más quando estão zangadas. A Maddie aprendeu a praguejar com alguém que costumava enxotá-la com uma vassoura. Foi por isso que a adoptei. Conhece o som da cólera. Fica zangada quando vê gente revoltada, como te aconteceu agora ao falares do basebol.

* Não estava a falar de basebol quando ela praguejou - afirmou Jordie.

Pois não. Falava da mãe. Mas claro que o sabia, porque já estava de pé a pôr a mochila ao ombro. Falar dos pais era difícil para miúdos como Jordie. E era ainda mais difícil falar de sentimentos.

Jordie precisava de um terapeuta de fora, de alguém que não conhecesse a família. Mas para que isso acontecesse era necessário que ele ou algum dos pais tomasse a iniciativa. Por enquanto, isso não acontecia. Portanto, Amanda fazia questão de estar presente quando Jordie aparecia. Infelizmente, não podia obrigá-lo a ficar. Antes de ter tempo para dizer fosse o que fosse, já ele saíra porta fora, calcorreando o corredor vazio, de novo perdido nos pensamentos taciturnos que o assombravam.

Espera, apeteceu-lhe dizer. Podemos falar disso. Podemos falar das mães que discutem com os pais, dos teus sentimentos, do que andas afazer quando devias estar a estudar, do que pensas quando estás chateado. Não tenho que fazer. Posso falar. Posso falar o tempo que quiseres. Tenho de manter a cabeça ocupada.

Mas eleja desaparecera. À semelhança do que acontecera todo o dia, os seus olhos dirigiram-se à secretária e à fotografia de Graham. Numa moldura simples de ardósia, sorria-lhe através da barba aparada. Era um rosto em que várias mulheres já tinham reparado ao entrar no gabinete. Graham O'Leary também servia para quebrar o gelo.

Tinha de lhe telefonar. Ele devia estar à espera. Mas ela ainda não sabia nada e poderia só saber dali a muitas horas.

Além disso, parecia que ultimamente ela e Graham não faziam mais nada a não ser tentar ter um filho... como se sentia pressionada! Ele fizera o seu papel, de resto mais do que uma vez. O problema era o corpo de Amanda. Claro que ele não o dizia por estas palavras, mas também não precisava. Amanda sentia a sua impaciência.

Porém, que mais podia fazer? Seguira à risca as instruções de Emily: comera bem, descansara bem e fizera exercício da maneira mais saudável e normal, excepto naquele dia, em que estava a mexer-se o menos possível para evitar que lhe viesse o período.

Era um disparate, claro, O movimento físico normal não prejudicava uma gravidez normal. Nesta altura, no entanto, estava desesperada. Desde o almoço que não saía do gabinete e até estava a agüentar para não ir à casa de banho. Numa manobra de diversão, recostou-se no sofá, consultou o relógio e pensou em Quinn Davis. Eram cinco e meia. Dissera ao rapaz que estaria no gabinete até às seis, e assim faria.

As mensagens dele preocupavam-na. A primeira chegara-lhe de manhã por e-mail. Dizia: "Preciso de falar consigo, mas em particular. Pode ser? "

"Claro que pode ser em particular", respondera-lhe Amanda. "O que disseres ficará entre nós. É a lei. Estou livre à terceira hora. Que achas? "

Não aparecera à terceira hora, mas mandara outro e-mail durante a quarta: "Os meus pais têm de saber que falámos? "

"Não", respondera Amanda. "É confidencial. Só sabem se assinares uma autorização. Tenho meia hora livre depois das aulas, mas se precisares de ir ao treino de basebol, pode ser mais tarde. vou ficar aqui até às seis. Está bem? "

Não tivera mais notícias nem ouvira passos no corredor durante a conversa com Jordie, e estivera de ouvido alerta. Passava-se alguma coisa com Quinn. Dizia-lho o seu sexto sentido, e não tinha nada a ver com o facto de ele ter comunicado com ela por e-mail. Havia muitos alunos que o faziam, precisamente porque era mais pessoal. Amanda sugeria muitas vezes que se encontrassem e era freqüente nunca mais receber resposta. Nestes casos, não podia fazer nada além de manter os alunos debaixo de olho ou de mandar mais alguma mensagem. Não podia obrigá-los.

Mas com Quinn Davis, uma estrela, o caso era diferente. Além de ser delegado de turma, representante dos alunos e o melhor marcador da equipa de basquetebol no Inverno passado, era agora o menino-prodígio da equipa de basebol. Dois irmãos mais velhos, ambos líderes na escola secundária de Woodley, freqüentavam agora Princeton e West Point. Os pais, activistas convictos, saíam muitas vezes nos jornais em defesa de uma ou outra causa.

Amanda pensou se Quinn apareceria e o que diria. Talvez quisesse falar-lhe de algum colega que precisava de ajuda; sendo representante dos alunos, tinha o dever de identificar os problemas antes de estes explodirem. Aliás, estes representantes eram de facto responsáveis por cerca de um terço dos alunos que a consultavam regularmente. Mas duvidava que fosse esse o caso, visto que ele insistira que os pais não soubessem.

Amanda descalçou os sapatos e dobrou as pernas de lado. Estava esgotada emocionalmente, era um facto, mas também se sentia fisicamente cansada. Até se lhe formava um nó no estômago quando se atrevia a pensar que talvez fosse um sinal de gravidez. Em qualquer caso, ainda bem que o seu trabalho lhe permitia vestir-se à vontade. Permitia? Exigia. Os alunos tinham de ver nela uma profissional acessível, o que não era fácil para alguém como Amanda, cuja estatura baixa e caracóis louros e rebeldes a faziam parecer mais com vinte e cinco anos do que com trinta e cinco. O truque era um aspecto mais sofisticado, mas que não intimidasse.

A roupa daquele dia estava a calhar. Era uma blusa e umas calças cor de ameixa, ambas de uma malha macia.

Ouviu um barulho no corredor, um som abafado que podia ser um grito de angústia; depois, silêncio. Receando que fosse Quinn e que se passasse alguma coisa, deu um salto do sofá e foi à porta. O porteiro encontrava-se imóvel e alerta ao fundo do corredor, com a esfregona saindo de um balde com rodas.

* Oooolha o Johnny! - anunciou Maddie das profundezas do gabinete. Amanda soltou um suspiro.

* Senhor Dubcek. - Tinha o cabelo branco e andava curvado. Devia ter oitenta anos, mas recusava-se a reformar-se. Já ocupava aquele posto no tempo não só dos pais dos actuais alunos, como também dos avós, o que lhe conferia uma auréola de respeito. Nunca lhe chamavam Johann; tratavam-no sempre por senhor Dubcek... excepto Maddie, que não sabia o que era o respeito. Só sabia que o ancião lhe dava de comer, lhe limpava a gaiola e a levava todas as noites para o seu pequeno apartamento, na cave da escola.

* Estava a ver se ouvia vozes - disse o porteiro a Amanda em voz rouca. - Se estivesse alguém consigo, ter-me-ia ido embora. Não queria interromper.

* Não está aqui ninguém - sorriu ela. Mas o sorriso apagou-se quando sentiu qualquer coisa a escorrer. Como estava de pé, a gravidade cumprira o seu papel.

com o coração martelando-lhe no peito, atravessou o corredor até à casa de banho. Já sabia muito antes de fechar a porta e baixar as calças macias cor de ameixa. Nesse instante, assaltada por muitas emoções diferentes, entre as quais um profundo sentido de perda, deixou-se ir abaixo. Sentando-se na sanita, pousou os cotovelos nas coxas, escondeu o rosto nas mãos e desatou a chorar.

Devia ter ficado ali bastante tempo porque, quando deu por ela, ouviu bater à porta. O porteiro chamava em voz assustada:

* Senhora O'Leary? Está bem?

Senhora O'Leary! Ah, que ironia! Profissionalmente, sempre fora Amanda Carr. Apresentara-se assim ao porteiro quatro anos antes. Ao mesmo tempo, no entanto, apresentara-o a Graham, que estava a ajudá-la a montar o gabinete. A partir de então, fora sempre senhora O'Leary para o velho cavalheiro.

E que mal havia em ser senhora O'Leary? Num dia normal, nada. Tinha orgulho em ser casada com Graham. Sempre pensara que iria usar mais vezes O'Leary do que Carr assim que tivessem filhos.

Assim que tivessem filhos! Se tivessem filhos. Era precisamente por isso que agora não lhe parecia bem ser senhora O'Leary. Sem filhos, tinha direito ao nome?

As lágrimas voltaram a correr.

* Senhora O'Leary? - chamou de novo o porteiro. Fungando, limpou as lágrimas com as mãos.

* Estou bem - respondeu em voz fraca e nasal. - Saio já. Levantou-se da sanita, lavou as mãos e levou um papel molhado

aos olhos. Estava a começar a formar-se-lhe uma dor de cabeça por cima do direito, mas não tinha com que combatê-la. E também não se sentia minimamente com forças para dar resposta ao que quer que fosse que estava a atormentar Quinn Davis. Rezando para que o rapaz não aparecesse, voltou ao gabinete, retocou o rosto num espelho de mão, desligou o computador, fechou os ficheiros à chave, atravessou o corredor acenando para a figura distante do porteiro e saiu da escola.

Graham pensou em prolongar a viagem até casa. Podia parar dez minutos aqui e dez ali, dando mais tempo a Amanda para telefonar. Mas era muita tensão. Manteve a carrinha na estrada e o pé no acelerador.

O telemóvel do carro tocou. O coração bateu-lhe com mais força.

* Sim? - respondeu, tanto em torn de interrogação como de saudação. Mas não era Amanda e sim uma mulher que tinha uma agência imobiliária e o contratara para remodelar o jardim dos escritórios. O trabalho era pequeno, mas o potencial muito grande. A clientela era da classe alta. Se a mulher gostasse, recomendaria o seu trabalho e, embora tivesse muito que fazer, aceitava sempre mais. Nos últimos tempos, dada a tensão entre ele e Amanda, o trabalho era a sua salvação.

* Quando é que vem cá? - perguntou ela calorosamente. Guiando com a mão esquerda, abriu a pequena agenda preta com a direita.

* Está na lista. Devo ter o projecto pronto no princípio da semana. - Folheou a agenda, consultando as páginas. - Acha bem de hoje a oito dias? Às quatro horas?

* Perfeito. Na próxima terça-feira às quatro. Até lá.

Granam mal teve tempo de desligar quando o telemóvel tocou outra vez. O coração começou de novo a bater-lhe com força, mas ainda não era Amanda e sim o seu irmão Joe.

* Há novidades? Graham suspirou.

* Não. Estou a caminho de casa.

* A mãe queria saber.

* Aposto que sim. Olha, há alturas em que gostaria de não ter dito nada a ninguém.

* Nós perguntámos.

Era verdade. As perguntas tinham começado um mês depois do casamento e ainda não tinham parado. Se soubesse o que sabia hoje, teria dito que ele e Amanda não queriam filhos e que fossem todos dar uma curva. Ter a família inteira a saber o que estavam a passar era quase tão humilhante como masturbar-se para um frasco. Os homens O'Leary não tinham que fazer coisas assim. Bolas, Joe tivera recentemente o quinto filho, e Graham desconfiava que ele e Christine ainda não tinham fechado a loja.

* Está a começar a desesperar - continuou Joe, referindo-se à mãe, Dorothy. - Diz que quer ver os teus filhos antes de morrer.

* Só tem setenta e sete anos.

* Queixa-se que está a ficar fraca. Graham sentiu-se infeliz e impotente.

* Que mais quer que eu faça?

* Diz que é o seu último desejo.

* Joe, vá lá. Era só o que me faltava.

* Eu sei. Estou só a avisar-te. Não se cala com a Megan. Não era novidade.

* Pois, mas não é a Megan... não pode ser a Megan... não quero que seja a Megan - afirmou Graham. - Ajuda-me, Joe - pediu.

Lembra-lhe que estou casado com a Amanda. Se tiver um filho, será da Amanda. Olha, tenho uma chamada em espera - mentiu. Não podia continuar com aquela conversa. - Depois telefono-te.

Desligou sem pronunciar mais uma palavra e continuou a guiar num silêncio pensativo. O dia estava quase no fim. Não percebia porque não lhe telefonava Amanda. Mesmo que ainda não soubesse nada, podia ligar-lhe. Sabia que ele estava à espera.

Saindo da via rápida, continuou por estradas que agora conhecia tão bem como a palma da mão, o que lhe dava algum conforto. Adorava Woodley e a maneira como as ruas da cidade serpenteavam e subiam por encostas verdejantes. O mapa da cidade era como uma árvore: um tronco que saía da via rápida e se dividia no cimo da colina, estendendo-se em duas direcções; os ramos eram os edifícios públicos, os escritórios e as lojas e os galhos, as casas; na extremidade dos ramos havia largos como aquele onde vivia com Amanda.

Não havia na cidade nenhuma rua despida. Todas tinham pinheiros-brancos, faias e abetos ou bordos, bétulas e carvalhos. Subindo e descrevendo uma curva, passou por um campo de trílios vermelhos. Mais à frente, viu eritrónios amarelos e uma densa mata de loureiros-da-montanha com flores brancas perfeitas. Uma pessoa menos conhecedora não teria localizado as aráceas na sombra da berma, mas Granam sim. Aliás, distinguia à primeira vista os vários tipos de fetos, os líquenes e os musgos.

Aquelas matas tinham todas estas variedades, o que era um orgulho para Graham. A sua terra natal, onde ainda vivia grande parte da sua família, ficava apenas a quinze minutos para leste, mas as duas cidades eram mundos diferentes. Uma era habitada por boa gente da classe trabalhadora que sonhava viver na outra. Para Graham, o sonho realizara-se.

Pelo menos, uma parte. Ainda continuavam a tentar a outra, mas, se as notícias fossem boas, ficaria duplamente grato por morar onde morava. Tratando-se de sítios agradáveis para criar filhos, Woodley levava a palma aos outros todos.

O coração da cidade aninhava-se em volta da bifurcação da estrada, no cimo do outeiro. Faias, bancos de madeira e lojas tão acolhedoras no branco do Inverno como agora, em Maio, debruavam as três ruas que se cruzavam no centro. O ar cheirava aos pãezinhos de leite quentes e moles da padaria, à mistura escura e torrada do café e ao chocolate com recheio de fruta da loja de doces. Nas ruas laterais, cerca de uma dúzia de pequenos restaurantes serviam uma população de catorze mil pessoas, mas o mais atraente ficava na rua principal: estava na moda e servia o pequeno-almoço, o almoço e o jantar em mesas de ferro forjado dispostas numa esplanada envidraçada no Inverno e aberta durante o Verão. Várias portas à frente, depois de uma galeria de arte e de um antiquário, havia uma livraria com livros até ao tecto. Que pais em seu perfeito juízo iriam a outro lado, quando esta tinha sempre alguém só para contar histórias às crianças? Havia boutiques aqui e ali, uma farmácia cujo proprietário se interessava suficientemente pelos seus clientes para os aconselhar quando os medicamentos não deviam ser tomados em conjunto, uma loja de ferragens e uma de fotografia e, a última aquisição, uma casa de chá.

Algumas das lojas ocupavam os dois pisos que os fundadores da cidade tinham decretado ser a altura máxima, mas os primeiros andares também albergavam advogados, médicos, decoradores de interiores e outras profissões. O escritório de Graham ficava em cima de uma loja de artigos de casa que o recomendara a mais de um recém-chegado a Woodley.

Mas não parou no escritório nem no Woodley Misc, embora acabasse de vagar um lugar mesmo em frente. Há pouco tempo, teria corrido lá dentro a comprar um Almond Joy para Amanda, que adorava Almond Joys.

Mas não tinha paciência para dar à língua, que era o que acontecia quando ia ao Woodley Misc. Além disso, estava aborrecido por Amanda não ter dito nada, por não ter pensado nele, para variar. Estava aborrecido por ela não engravidar, ponto final.

O pensamento deixou-o sem ar. Sabia que era injusto, mas não se retratou mentalmente, o que o fez sentir-se ainda mais culpado.

Foi com um esforço deliberado que pousou o cotovelo esquerdo na janela aberta. Passando o pulso direito pelas costas do banco do passageiro, fez de conta que estava tudo bem, tudo no melhor dos mundos.

O torpor de Amanda diminuiu enquanto seguia para casa, abrindo caminho à compreensão da situação. Não haveria bebê. Outra vez. Nenhum bebê. Sentia-se vazia, estéril... frustrada, desconcertada, triste.

Desta vez, ela e Graham tinham tido muito cuidado, não se atrevendo a deixar-se levar pelo entusiasmo. No entanto, tinham falado em pendurar na véspera de Natal uma meia pelo bebê que ia nascer e em fazer um brinde diferente no Ano Novo. A confusão da festa dos O'Leary seria bastante mais fácil se estivessem para ter um filho.

Tirando do cabelo o gancho de tartaruga, abanou a cabeça para espalhar os caracóis e tentou descontrair, chamando a si pensamentos positivos. Tinha muito a agradecer, mais que muita gente. Para começar, uma casa lindíssima numa rua encantadora e cheia de árvores, num bairro elegante: um sítio perfeito para as crianças.

Só que ainda não tinha filhos.

Mas tinha três vizinhas, duas das quais amigas chegadas. A terceira, a jovem viúva de Ben, era muito metida consigo, mas as outras compensavam o facto com visitas ao jardim na Primavera, churrascos no quintal no Verão, festas para limpar as folhas no Outono e pizas ao domingo à noite no Inverno. Mas o mais importante eram as conversas de mulher para mulher ao telefone, nos degraus do alpendre ou à beira da piscina dos Cotter.

Apetecia-lhe ter uma dessas conversas agora. Qualquer das duas lhe diria como tinha inveja dela. Nenhuma tinha o tipo de carreira dela. Karen esfalfava-se a trabalhar e não recebia nem cheques nem respeito, e Geórgia, que ganhava bastante bem, era obrigada a estar fora da cidade e longe da família durante vários dias por semana.

Amanda não tinha um grande salário, mas o dinheiro não era o mais importante da sua carreira. Adorava o que fazia, e se fôssemos " pelo lado prático, a escola ficava a dez minutos de casa. Se ti3 " um filho, poderia trocar o lugar a tempo inteiro por um consultSo Ocuparia o tempo que quisesse e receberia os estudantes em casa. O escritório por cima da garagem tinha uma entrada própria. Seria oerfeito, caso tivesse filhos.

Até tinha um carro próprio para crianças, um SUV, de rigueur em Woodley Já o comprara havia quatro anos e começava a dar sinais de idade- nos últimos meses, tivera de lhe substituir o carburador, a susoensão e a bateria. Falavam em comprar um carro novo, mas achava um disparate, já que os meses passavam e não conseguia engravidar. O carro ronronou com satisfação quando saiu da rua principal e seguiu ao longo dos meandros suaves de um troço com árvores. Uma última curva e a rua sem saída ficou à vista.

A carrinha de Graham não estava parada à porta. Sem saber bem o que sentia, abriu as duas janelas e deixou-se acalmar pelo ar quente que atravessou o carro. Maio tinha apenas uns dias de idade e a natureza começava a despertar em volta das quatro casas A relva verde acabava de ser aparada, deixando marcas horizontais e um perfume no ar. As folhas dos grandes carvalhos que rodeavam a praceta tinham um suave torn de lima e as bétulas de casca fina e enrolada estavam carregadas de botões. O açafrão viera e partira tal como as flores das forsítias, mas ainda havia narcisos e as túlipàs começavam a desabrochar. Os lilases cresciam, altos e densos, nos alpendres. Embora ainda faltasse uma semana para desabrocharem completamente, os seus botões perfumavam o ar.

Amanda respirava todos estes cheiros enquanto virava para casa. A Primavera era a sua estação preferida. Sempre apreciara muito a frescura, o ar lavado, a sensação de nascimento.

Sensação de nascimento. Carregando no travão, pensou porque aconteceria sempre a mesma coisa. Havia muitas pessoas que viviam sem filhos. Conhecia até mulheres que escolhiam não ter filhos e a quem a vida corria muito bem. O problema era que ela queria, não conseguia e não sabia porquê.

Seria castigo por querer ter uma carreira? Por conservar o nome de solteira? Por ter atrasado a maternidade? Teria sido mais fácil engravidar dez anos antes, mas não estava preparada para ter um filho aos vinte e cinco anos. Na altura, nem conhecia Graham. E ainda acreditava que valera a pena esperar por ele.

A sua mãe era de outra opinião. Achava que havia muitas diferenças genéticas entre os dois, de mais para que ela engravidasse. Graham era alto, robusto e de olhos verdes, e ela baixa, magra e de olhos castanhos. Ele tinha o cabelo escuro e liso e o dela era encaracolado e louro. Ele tinha sete irmãos e ela era filha única. Ele era atlético; ela não.

Na opinião de Amanda, a mãe era uma snob e a sua teoria um disparate, mas isso não atenuava a dor que sentia. Tinham tido tantas esperanças desta vez! Graham ia ficar perturbado.

Devia ter-lhe telefonado. Havia coisas que era mais intimidante dizer cara a cara do que por telemóvel ou e-tnail. Poderia tê-los usado para lhe dar a notícia, partilhando o sofrimento e confessando o fracasso.

Ainda podia fazê-lo, mas não tinha coragem.

Desanimada por mais um fracasso, pegou na pasta e endireitou-se. De repente, um movimento no espelho-retrovisor chamou-lhe a atenção. Era a viúva, Gretchen Tannenwald, passeando ao longo dos canteiros acabados de arranjar. No Outono anterior, passara muitas horas a enterrar bolbos, trabalhando de costas para os vizinhos e isolando-se, mesmo quando os outros andavam por ali. Recebia as tentativas de aproximação dos vizinhos com respostas curtas. Amanda, que supostamente tinha alguma habilidade, tentara uma ou duas vezes falar com ela, mas Gretchen não era amiga de conversar. Custava acreditar que tivesse sido casada com o simpático Ben.

Pensando bem, talvez não. Gretchen devia ter metade da idade de Ben e era o oposto de June, mas ele precisara de uma mudança radical para se recompor.

Os homens da vizinhança compreendiam-no:

Vê-se que ela o idolatra - dissera Russ Lange, o romântico.

Que homem não gostaria?

Leland Cotter, o homem do "ponto-com", fora mais desabrido:

* E há alguma coisa para não gostar? Ela é uma brasa. Graham sugerira que Ben talvez adorasse a sua energia:

* Ela põe-no a viajar, a andar de bicicleta e a jogar tênis. com a June, levava uma vida mais tranqüila. A Gretchen abre-lhe novos horizontes.

As mulheres tinham-se mostrado menos generosas. Na sua opinião, aquele casamento servira apenas dois objectivos: sexo para Ben, dinheiro para Gretchen.

Claro que isso não explicava que Gretchen continuasse a morar na mesma casa, sem Ben. Amanda pensara que ela venderia a casa, pegaria no dinheiro e desapareceria. E no entanto, ali estava, com um vestido curto e ondulante, que a fazia parecer mais nova do que os seus trinta e dois anos.

Na verdade, o vestido dava-lhe um certo ar de grávida, o que fez Amanda ter um sobressalto.

Perturbada, virou-se para olhar pelo vidro de trás. A luz voltou a incidir no corpo de Gretchen, que estava de perfil, e realmente notava-se uma certa barriguinha. Era curioso, visto que Ben morrera havia um ano, tempo de mais para ter alguma coisa a ver com o assunto, e Gretchen fechara-se em casa desde a sua morte. De certeza que teriam reparado caso andasse com alguém. Que Amanda soubesse, os únicos homens que tinham estado dentro de casa com ela eram o canalizador, o carpinteiro e o electricista... e, por uma razão ou por outra, Russ Lange, Lee Cotter e Graham O'Leary.

Amanda estava virada a olhar pelo vidro de trás do carro quando apareceu a carrinha verde de Granam. com o coração aos saltos, esqueceu Gretchen e saiu do carro.

Como de costume, guiava descontraidamente, com uma mão no volante e outra fora da janela. Quando o conhecera, tinha um Mustang descapotável. Ficava tão bem com o vento batendo-lhe no cabelo, que caíra de quatro por ele. Observando-o agora, sentiu uma centelha do velho entusiasmo, do velho desejo, mas depois lembrou-se do que tinha para lhe dizer.

Graham abrandou ao aproximar-se e levantou a mão para acenar a Gretchen, que se virou. Depois, encostou ao lado de Amanda.

Deixando a porta do carro aberta, ela deu a volta na direcção da carrinha. Os olhos dele não se despregaram dos dela durante todo o trajecto, primeiro interrogando e depois sabendo. Visivelmente desiludido, encostou-se para trás.

* Veio-te o período.

Amanda sentiu-se grata por não ter de ser ela a pronunciar aquelas palavras.

* Há meia hora.

* Tens a certeza? Pode ser só um falso alarme.

Ela abanou a cabeça. Não era falso alarme. De resto, a moinha que sentia nos ovários era muito familiar.

* Se calhar devias fazer um teste.

* Para isso seria preciso que o período não tivesse vindo.

Graham deixou cair a cabeça. Depois, levantou-a, suspirou com ar cansado e abriu a porta da carrinha. com os olhos marejados de lágrimas, Amanda virou-lhe as costas e foi buscar as suas coisas. Depois, fechou a porta do carro e percorreu o caminho de pedra até à passagem entre a casa e a garagem. Graham já lá estava, encostado a um pilar, contemplando o jardim, que não só concebera como também plantara com as suas próprias mãos. Aliás, notavam-se os seus cuidados: o jardim já exibia uma dezena de tons de verde, apesar de a Primavera ainda mal ter começado.

O seu jardim era a inveja dos vizinhos... aliás, de toda a cidade, mas Amanda desconfiava que ele não estava a ver nada naquele momento. Notava-se a derrota na sua voz.

* Pensei que desta vez é que ia ser. Tinha a certeza. Amanda encostou-se a outro pilar:

* Eu também, tal como a médica. Foi tudo calculado ao segundo.

* Mas qual é o problema? - perguntou, frustrado. Apertando os braços contra o peito, Amanda respondeu.

* Não sei. Tinha oito óvulos, mais dois do que no mês passado. Ou seja, mais sete do que a maioria das mulheres. - A frustração também se apoderou dela. - Pensava que pelo menos um dos oito seria fertilizado. Oh, meu Deus, achei que a nossa vez tinha chegado.

Continuando a fitar o jardim, Graham murmurou com tristeza:

* Parece que a nossa vez passou ao lado. - Virou a cabeça. Os bonitos olhos verdes pareciam desafiá-la. - Que se passa?

Amanda sentiu o coração apertado. Não queria que fossem adversários; precisava de ter Graham ao seu lado.

* Não sei, Gray. E eles também não. Cerca de quinze por cento dos problemas de infertilidade não têm explicação. Também ouviste a Emily.

* Pois, que diz que sessenta por cento desses casais conseguem ter filhos naturalmente num prazo de três anos. Portanto, qual é o nosso problema?

Amanda não sabia.

* Faço tudo o que me dizem para fazer. Tiro a temperatura, asgento tudo, tomo o Clomid. Desta vez até fiz uma ultrassonografia rjara ter a certeza de que fazíamos a inseminação no dia exacto.

* Então porque não engravidaste?

Tentou convencer-se a si própria de que Graham estava desiludido com a situação e não consigo. Mesmo assim, sentiu-se atacada.

* Não sei.

* Esperámos muito tempo - afirmou ele. - Tinhas trinta anos guando nos casámos. Devíamos ter começado logo.

* E achas que um ano teria feito alguma diferença? Olha, Graham, jjgo sejas injusto.

* Quanto mais velha fores, mais difícil será. Foi o que nos disram.

* Hã-hã, um milhão de vezes. Aliás, o que nos disseram foi que taxa de fertilidade cai em flecha aos trinta, outra vez aos trinta e cino e depois aos quarenta. Por isso, se calhar já era tarde quando nos Asámos, tinha eu trinta anos. Se vamos fazer acusações, também gosfaria de saber porque esperaste tanto. Onde estavas quando eu tinha Vinte e três anos?

* Na costa noroeste do Pacífico, a aprender a minha profissão. Era uma resposta evasiva. Amanda sabia tudo desses anos, mas rtsistiu, pois sentia uma necessidade mórbida de partilhar a culpa.

* Andavas na ressaca por causa da Megan. Tinhas vinte e nove flos e apalpavas terreno. Não querias ficar preso. Escalavas montahas, descias rápidos e divertias-te muito com os teus amigos. Claro e teria sido melhor se nos tivéssemos conhecido e começado mais gdo, mas nessa altura não estavas interessado em casar e muito meOs em ter um filho.

Ele não respondeu logo. Os argumentos dela pareciam tê-lo acalado um bocadinho, o que era tranquilizador. Uma das coisas que ais a atraíra em Graham (depois do seu ar no Mustang) fora a sua caridade para se mostrar razoável. Sabia ouvir, o que era essencial para iguém com a sua profissão.

Sabemos o que poderia acontecer se nos tivéssemos coido nesses tempos - disse ele, de facto com muita sensatez.

Exactamente. - Amanda levou a mão ao peito. Sentia uma

rzinha entre os seios. Se fosse mais romântica, talvez pensasse que ra o coração despedaçado. - Por isso, não digas que a culpa é toda inha, por favor. Não tem sido fácil para mim. Às vezes, sinto que faço o trabalho todo e és tu que queres um filho.

Espera lá! - Ergue uma mão. - Estás a dizer que não queres?

Sabes muito bem que sim. É o que mais quero na vida, mas

foste tu que insististe desde o primeiro dia de casados... e é natural. Como poderia não ser? Graham fora criado a cinqüenta quilômetros dali. A família ainda vivia quase toda na mesma cidade. Encontravam-se com freqüência. - Tens sete irmãos e vinte e sete sobrinhos.

* Adoro crianças.

* Eu também, mas não sou uma égua parideira,

* Nota-se. - De repente, abriu-se um abismo entre os dois.

* O quê? - gritou ela. Diga-se que teve de reconhecer que ele acalmou.

Baixando a cabeça, coçou a nuca. Tinha os olhos cansados quando encontrou novamente os dela:

* Assim não vamos a lado nenhum. Não quero discutir. Amanda também não. Odiava aquele abismo e não queria sentir-se sozinha. Detestava a pressão a que se encontrava sujeita e o preço que estava a pagar. E sobretudo odiava sentir-se a única responsável pelo fracasso dos dois. Odiava sentir que a culpa era dela, que o problema estava no seu corpo.

De novo quase em lágrimas, esperou um momento antes de falar, mas a vontade de chorar permaneceu.

* Preciso que compreendas o que sinto - desabafou. - Faço tudo o que posso, tudo o que a Emily me diz para fazer. Talvez o problema seja ela...

* Não, não e não. - Graham voltou a inflamar-se num instante.

* Já é a quarta médica. E gostamos dela.

* Pois, mas não é ela que produz oito óvulos. De resto, não sabe porque é que esse teu esperma todo não consegue fertilizar nem um.

Ele pareceu surpreendido:

* A culpa não é minha.

* Eu sei, mas isto é difícil para mim, Gray. É difícil a nível emocional, porque estou sempre a ter esperanças que depois não dão em nada, e é difícil fisicamente, porque o tratamento põe-me os seios doridos, incha-me o estômago e faz-me suar... e não me digas que teria os mesmos sintomas se estivesse grávida, porque nesse caso não me importaria. É difícil até a nível profissional. Ultimamente, metade dos estudantes que me consultam parecem ser adolescentes grávidas.

Encostando as costas ao pilar e metendo as mãos nos bolsos das jeans, Graham esticou as pernas e comentou:

* Que ironia! Têm relações sexuais uma vez e... vuum... bebê instantâneo. E nós tentamos há quatro anos.

"Ironia" era uma palavra para descrever a situação mas, para Amanda, havia outras como "injustiça" e até "crueldade". E já que se falava de ter bebês, acrescentou:

* A Gretchen está grávida.

Ao princípio, Graham não respondeu. Estava perdido, talvez com pena de si próprio. Deus sabia com que intensidade também ela o sentia! Passado um momento, no entanto, levantou a cabeça com um ar espantado:

* A Gretchen do Benl

* Vi-a mesmo agora no jardim. - A imagem voltou-lhe à cabeça, luminosa como o dia. - Está grávida.

Graham teve uma expressão de indiferença:

* Também a vi. Não está grávida.

* Não a viste como eu. A luz tinha de lhe bater de um determinado ângulo.

Ele suspirou, fechou os olhos e rodou a cabeça:

* Deixa-te disso, Mandy. E um assunto de que já falámos muitas vezes. Vês mulheres grávidas em todo o lado, até onde não há nenhuma.

* Não é verdade. Agora que chegou a Primavera, as pessoas despem os casacos e mostram a barriga de grávida. Vejo-as no supermercado e no centro comercial. Vejo-as na farmácia, na biblioteca, na escola. - Percebeu que a voz se lhe tornava mais aguda, mas não conseguiu falar de outra maneira. - Juro que às vezes há alturas em que não percebo o que Deus quer. Estará a mandar-nos uma mensagem? A dizer-nos que não estava escrito?

Claro que o que queria era que Granam o negasse com rapidez e veemência.

Mas ele não o fez, limitando-se a olhá-la de sobreaviso:

* Não estava escrito o quê? Nós?

Amanda sentiu o mesmo medo que se apoderara dela da última vez que estivera na clínica. Estava a perder Graham. A vida separava-os.

* Os bebês nascem do amor. Fazem-se na privacidade de um quarto. O que estamos a fazer é uma imitação barata. O que as nossas vidas têm de mais precioso é um rodopio de consultas, comprimidos, tabelas e horários. Estamos a pagar bem caro, Graham. Já nem somos... divertidos.

Debulhou-se em lágrimas. Estava esgotada fisicamente e sentia-se tão sozinha que Graham não seria Graham se não se tivesse comovido. Aproximando-se, tomou-a nos braços e apertou-a contra si. Por um momento, aconchegada no seu abraço, cheiro a terra e solidez, Amanda recordou o que tinham perdido. Queria tudo outra vez. Queria.

Mas ele largou-a bem pouco depois. Virando-se de novo para o jardim, voltou a meter as mãos nos bolsos.

* Quanto à Gretchen... estás enganada. Pareceu-te por causa da luz. Não pode estar grávida. O marido morreu.

Amanda enxugou as lágrimas do rosto:

* Nem sempre é o marido o pai da criança. Graham virou-se para ela:

* Estás a falar de nós ou dela?

* Dela. Dela.

* Se está grávida, quem é o pai?

* Não sei. Mas sei o que vi. - com necessidade de ter razão mas, sobretudo, de fugir ao que estava a acontecer entre ela e Graham, desceu os degraus das traseiras em direcção ao caminho lajeado.

A voz de Graham seguiu-a:

* Já telefonaste à médica?

* Amanhã.

* Tentamos outra vez? - gritou.

Ela gritou para trás, sem deixar de descer:

* Não sei.

* Aonde vais? - berrou ele, agora com uma voz aborrecida.

Vou aqui ao lado perguntar ao Russ se sabe alguma coisa da Gretchen. Como passa o dia em casa, deve saber se ela tem alguém.

Afastando-se das lajes, Amanda atravessou um tapete de erva, evitou os ramos eriçados dos juníperos e dos teixos e meteu pela pequena mata de pinheiros que separava a casa dos Lange da sua. O forte cheiro a terra molhada e a seiva de pinheiro era um calmante natural. A dor que sentia nos ovários diminuiu, talvez por causa do movimento físico, talvez devido à distância de casa. Fosse como fosse, estava mais calma quando chegou aos degraus de trás dos vizinhos.

Começou a subir e desviou-se depressa quando a porta se abriu de repente. Allison Lange, de catorze anos feitos há pouco, cabelo conprido e escuro e pernas magrinhas, passou por ela como um furacão.

* Desculpe - disse a rapariga, rindo-se sem fôlego. Amanda segurou a porta antes que fechasse de novo.

* Está tudo bem?

Já ao fundo dos degraus, Allison atravessou o relvado de costas.

* Tudo, mas agora não posso falar. O Jordie precisa de uma ajudinha em álgebra. - Virando-se, correu para o quintal dos Cotter.

Jordie Cotter era o filho mais velho de Karen e Lee. Ele e Allison eram muito amigos desde a escola primária. Agora, caloiros no ensino secundário, continuavam os melhores companheiros do mundo, embora Allison fosse um ano mais nova, dois centímetros mais alta e mais dada aos estudos do que Jordie.

Amanda adorava Allison, que era muito simpática e aberta para uma rapariga da sua idade. Quanto a Jordie, era um osso mais duro de roer.

* Devia ir receber-te à porta, mas tenho de mexer este molho gritou Russell Lange da cozinha. Russ, alto e magro, de cabelo arruivado, despenteado e ralo, estava ao fogão, com os óculos pequenos, redondos e sem aros encavalitados a meio da cara do nariz. Tinha um avental por cima da T-shirt e dos calções e nada nos pés. Era mais ou menos assim que passava os seus dias, independentemente da temperatura exterior. Gostava de dizer que a grande vantagem de ser dono de casa era poder andar descalço, mas Amanda sempre desconfiara que ele detestava andar com os pés enormes apertados.

Russ era jornalista e revisor literário, que era de onde tirava a maior parte dos seus rendimentos, mas o seu grande prazer residia em escrever uma coluna semanal sobre pais e filhos. A mulher, Geórgia, directora da sua própria empresa, estava fora vários dias por semana, o que fazia de Russ o principal encarregado de educação das crianças. Pelo que Amanda pudera observar, tornara-se um pai digno de louvor. E também se tornara um cozinheiro de mão cheia.

* Que cheirinho delicioso! - comentou ela.

* Vitela à marsala com pouco vinho, dada a presença dos miúdos, embora me pareça que acabo de ficar sem a rapariga.

Tommy, de onze anos, tinha o mesmo cabelo preto e espesso da mãe e da irmã. Fazia os trabalhos de casa na mesa, mas meteu a sua colherada:

* A Allie disse que voltaria se pusesses mais vinho. Amanda apertou o ombro do rapaz:

* Que sabes tu de vinho?

* Só que a Allie gosta de beber.

* E onde o faz?

* Aqui - respondeu Tommy com uma expressão inocente. - Bebe do copo da mãe.

* Como está a tua mãe?

* Fixe. Telefona mais tarde. Amanda emendou a pergunta:

* Onde está a tua mãe?

* Em San Antônio. Volta amanhã. - O rapaz deslizou da cadeira. - Tenho de ir lá dentro, pai.

Russ levantou a comprida colher de pau.

* Se é para falar com o Trevor e o John pela Internet, nem penses. vou fazer chichi.

* Ah! - Russ fitou Amanda com uma expressão de sarcasmo:

* Mereci a resposta. Está bem, miúdo, mas despacha-te. Tens de acabar a composição. - Olhou para o rapaz até este desaparecer e voltou a mexer o molho, lançando a Amanda um sorriso de interrogação:

* Como estás?

* Já estive melhor. - Aproximou-se e espreitou para dentro da panela, onde o molho fervia com um aspecto tão delicioso como a vitela tostadinha que aguardava num tabuleiro, na boca ao lado. De repente, também por isso se sentiu culpada: nunca cozinhava nada de jeito. Graham era bom de satisfazer, bastavam-lhe bifes ou carne grelhada com batatas. Cozinhavam os dois quando comiam em casa, mas jantavam muitas vezes fora.

Naquela noite, no entanto, não tinha a certeza se conseguiria levar à boca uma garfada que fosse.

* Preciso da tua ajuda numa discussão que estou a ter com o Graham. Eu mantenho que a Gretchen está grávida e ele diz que não. Qual é a tua opinião?

Quase juraria que Russ corou. Depois, lembrou-se que talvez fosse do calor do fogão.

* Grávida? - repetiu ele. - Uau! Não sei de nada.

* Não reparaste no corpo dela?

A cor acentuou-se. Desta vez, não era do calor, pois não tinha os óculos nem um bocadinho embaciados.

No corpo dela?

Claro que reparara. Ele, Graham e Lee tinham reparado, e muito, no seu corpo.

Na barriga? - insistiu Amanda. - Não reparaste na mudança?

* Não. Não notei nada. - Mas não lhe disse que estava a fantasiar. - Grávida? Como?

Se a sua vida fosse diferente, Amanda teria soltado uma gargalhada:

* Como é costume, suponho. Não viste se alguém tem andado a visitá-la?

Russ continuou a mexer o molho.

* Não. Passo o dia inteiro sentado ao computador.

* Não é natural reparares nos carros que viram aqui para a rua?

* Dantes sim, mas cansei-me de ver o carteiro, a brigada de desinfestação e o moço das entregas. Já não me dou a esse trabalho. Mordeu o interior da bochecha com um ar pensativo.

* O que foi?

* Nada, estou a pensar no Ben, que adoraria ter um filho na sua idade.

Amanda desconfiava que todos os homens gostavam de ter filhos em qualquer idade. Era um sinal de virilidade. Isso incomodaria muito Graham?

* Os filhos do Ben não teriam ficado nada satisfeitos - disse ela. - Já foi difícil para eles aceitarem a Gretchen. Um bebê só viria esfregar sal na ferida. Mas não pode ser do Ben, é evidente.

* Tens a certeza de que está grávida?

* Pareceu-me.

* De quanto tempo?

* Cinco meses, talvez seis. - Depois de uma pausa. - Bem, foi o que me pareceu. Não sou exactamente uma especialista no assunto.

Russ ficou calado. Depois, perguntou com suavidade:

* Isto tem alguma coisa a ver contigo? Amanda espreitou o molho.

* Não. Se calhar preciso de aulas de culinária. Nunca fiz nada assim. Pode ser que a culinária seja a chave da fertilidade.

* Lar, doce lar?

- Dirigiu-se à porta. De repente, sentia-se culpada por ter abandonado Graham, que também estava a sofrer.

* Posso ir lá perguntar-lhe - ofereceu-se Russ. - Talvez o faça depois de dar de comer e de tratar dos miúdos. Haja algum tempo que não falo com ela. As pessoas não se encontram tanto no Inverno como no Verão, e o Verão já foi há oito meses. Além disso, passo a vida em casa a trabalhar, a tomar conta do miúdos e a namorar a minha mulher sempre que ela pára por aqui. - O telefone tocou. - Se a Gretchen estivesse grávida seria muito interessante.

Amanda saiu pela porta com uma mistura de sentimentos sobre o assunto. Mal chegara ao último degrau quando Russ pôs a cabeça de fora.

* Era o Graham. Diz que vás para casa. Tens um telefonema urgente.

Acenou com a cabeça e pôs-se a caminho na altura exacta em que Karen Cotter atravessava o relvado transportando um tabuleiro tapado com um papel de alumínio.

Karen, de altura e peso médios, raramente se dava ao trabalho de se maquilhar e costumava usar fitas para afastar do rosto o cabelo castanho. A nível físico, era mais apagada do que vistosa, mas isso pouco importava quando Amanda a conhecera, pois tinha uma energia que compensava de longe o que lhe faltava em brilho exterior. Nesse tempo, andava numa roda viva, entusiasmada com a organização de outra série de festas de beneficiência... mesmo assim, tinha tempo para uma ou outra noitada com Geórgia e Amanda. Havia já bastante tempo que não o faziam e não era por falta de interesse das outras duas. De cada vez que falavam em sair juntas, Karen tinha uma reunião, um filho doente ou uma dor de cabeça. Nos últimos tempos, tudo o que restava dos seus sorrisos eram as rugas, que a faziam parecer cansada e tensa.

* Amanhã há uma venda de bolinhos na escola - explicou. Ofereci-me para poupar trabalho ao Russ e fazer umas bolachinhas para o Tbmmy levar.

* És uma boa alma - respondeu Amanda, proferindo aquilo que era provavelmente a grande repetição do ano. Karen encabeçava a associação dos pais, era a mãe de serviço, a grande organizadora de vendas de beneficiência e coordenadora dos tempos livres. Como além disso tinha quatro filhos entre quinze e seis anos, era a mulher que Amanda conhecia que mais trabalhava. Enquanto mãe, só esperava ter metade da energia que Karen tinha... ou tivera. - Como vão as crianças? - perguntou.

* A asma dos gêmeos piorou por causa do pólen, mas de resto vai tudo bem. E tu? Como estás?

* Assim assim.

Karen ergueu as sobrancelhas, convidando à confidencia.

Amanda abanou a cabeça.

* Não deu nada.

* Oh, Mandy! Lamento muito.

* Eu também. Há pessoas que engravidam com tanta facilidade...

A propósito, tens falado com a Gretchen?

- Falado? Não muito. Dizemos adeus uma à outra quando nos cruzamos. De resto, mais nada. - Acho que está grávida.

Karen retraiu-se.

* Grávida? Não, não me parece. Não pode estar. Não anda com ninguém. Não vai a lado nenhum. Ainda continua de luto pelo Ben.

* Baixou a voz. - O que te faz pensar que está grávida?

* Vi-a há bocado e parecia. O peito dela sempre foi grande, mas tinha a barriga lisinha.

* Pois, como uma modelo. O Lee passa a vida a dizer-me para não me comparar com ela, mas como é possível? Os nossos homens babam-se todos quando olham para aquelas bandas. Atropelam-se uns aos outros na ânsia de a ajudar. Será porque é uma excelente conversadora? - Abanou a cabeça devagar. - Não me parece. - De repente, pareceu preocupada: - Nunca vi lá nenhum carro, mas podem ter estacionado na garagem.

"Talvez", pensou Amanda.

* Mas não te parece que teríamos visto um carro a entrar ou a sair?

* Se calhar não. Pode ser que estacione longe e se esgueire para dentro de casa. - Um tanto pálida, Karen insistiu: - A Gretchen não pode estar grávida. Não pode.

* Mandy! - berrou Graham através dos dois jardins.

* Tenho uma chamada urgente - explicou Amanda, dando um abraço rápido a Karen. Gostava muito daquela mulher, tão pouco apreciada por aqueles por quem mais fazia e em especial pelo marido, Lee.

Karen, porém, insistia que ele tinha as suas qualidades e Amanda não podia fazer nada a não ser dar-lhe o seu apoio, que naquela altura se resumiu a um abraço rápido. Graham parecia impaciente.

Teria corrido para casa se não sentisse outra vez uma moinha nos ovários. Não recebia muitos telefonemas à noite mas, na verdade, era tempo deles, devido à tensão dos exames que se aproximavam e das opções que tinham de ser escolhidas no final do ano. Depois, havia os traumas familiares do costume: violência doméstica, separação dos pais e até morte. Woodland não era excepção. Pelo contrário, a existência destes problemas numa população tão privilegiada até os tornava mais intensos.

Subiu os degraus das traseiras e entrou na cozinha. Graham estava encostado ao balcão, perto do telefone. A sua expressão dizia que não lhe agradara que ela tivesse virado as costas à conversa que estavam a ter; foi esta, pelo menos, a leitura da sua consciência culpada. Parecia perturbado. Mostrava-se indolente, o que era muito pouco dele, como se não soubesse o que fazer. Amanda juraria que não se mexera do mesmo lugar, remoendo o problema e esperando-a para continuarem a discussão.

Então? Está? - perguntou.

Amanda precisou de um minuto para perceber. Estivera a pensar na sua gravidez e não na de Gretchen mas, na verdade, fora nesse ponto que tinham interrompido a conversa.

* Ninguém sabe - respondeu, olhando para o papel que ele tinha na mão.

Graham estendeu-lho.

* A Maggie Dodd.

Maggie era a vice-directora da escola, mas o número escrito no papel era do gabinete do director. Amanda levantou o auscultador e marcou-o. Logo após um sinal de chamada, um homem atendeu em voz baixa:

* Está? Fala Fred Edlin.

* Fred, sou a Amanda Carr. A Maggie telefonou-me.

Vou passar-lhe o telefone. Ela explica-lhe. A voz de Maggie ouviu-se do outro lado do fio:

* Desculpe interromper o seu serão, Amanda, mas temos um problema. Houve um incidente hoje à tarde no treino de basebol com o Quinn Davis.

O estômago deu-lhe um nó. Sentiu-se culpada por não ter dado mais atenção ao seu e-mail, por não o ter procurado, por não ter ficado mais tempo na escola.

* O Quinn Davis? - repetiu, para que Graham pudesse ouvi-la. Ele devia conhecer o nome. O contrário é que seria difícil, pois viviam numa cidade cujo jornal semanal adorava heróis, que era actualmente o caso de Quinn. O facto de a sua família ser tão conhecida também dava uma ajudinha. O jornal mencionava um ou outro Davis todas as semanas.

* Ele e um grupinho de amigos apareceram embriagados no treino - continuou Maggie.

Amanda deixou escapar uma exclamação:

* Oh, não!

* Oh, sim. O treinador mandou-os logo para aqui. Não lhe telefonei mais cedo porque ainda demorámos algum tempo a apanhar os pais do Quinn, que estavam num debate público sobre os regulamentos das zonas protegidas e que não ficaram nada contentes por terem sido chamados. Estão na outra sala a discutir qual deve ser o castigo com o treinador e com o Fred. Precisamos da sua opinião. Os pais querem que o incidente seja abafado. Dizem que o filho faz muito pela escola para agora servir de exemplo. O problema é que a equipa toda viu-o bêbedo. Se não for castigado, que mensagem será transmitida aos outros?

Amanda sabia muito bem e não queria transmiti-la, nem a eles nem a Quinn, que tinha de ser responsável pelos seus actos, ainda por cima com a posição de destaque que ocupava.

Dito isto, porque quisera falar com ela? Que se passaria para se pôr a beber depois da escola?

* Os outros já foram castigados? - perguntou.

Enquanto Maggie a informava, Amanda não despregava os olhos dos de Graham, que estava a tentar ser paciente, mas sem grande sucesso. Cedera muitas vezes o passo às urgências dos estudantes, mas esta não era uma delas. Os seus olhos verde-escuros e intensos exigiam que lhe desse a mesma atenção. O conflito dava-lhe um nó no estômago. Havia uma crise em casa que precisava de ser solucionada. Graham queria que ela tratasse primeiro do seu problema.

Mas viera-lhe a menstruação. Não havia nada a tratar, nada mudaria este facto e não sabia que fazer a seguir. Detestava o que a medicação estava a fazer-lhe, detestava viver com todas as horas bem marcadinhas e detestava a agonia da espera, todos os meses. Odiava ir à clínica e sentir-se uma máquina que não estava a trabalhar em condições e odiava sentir-se de novo um fracasso. Estava farta. Não se sentia preparada para pensar no próximo passo.

Precisava de se sentir útil, o que conseguiria se trabalhasse com Quinn e os pais. Além disso, dado os recados que lhe mandara, queria ver o rapaz. O facto de ele estar com os pais ainda era melhor.

* Já vou aí - disse a Maggie.

Graham cerrou os dentes e desviou o olhar. Quando Amanda desligou, fitou-a com um ar de censura.

Tentando que ele compreendesse, explicou-lhe a situação:

* Os outros miúdos foram suspensos da equipa por uma época. Os pais do Quinn não querem que ele perca um jogo, quanto mais seis! O que me preocupa é porquê. Podem estar a pôr os pés à parede por razões que não têm nada a ver com o Quinn.

* São os pais - replicou Granam. - Devem ser livres de tomar a posição que quiserem.

* É verdade, mas alguém tem de tomar a posição que seja melhor para o rapaz.

* E a Maggie não pode fazê-lo?

* Precisam de um árbitro.

* Sabes o que é melhor para ele?

* Não. Não posso saber até chegar lá e ouvir as explicações.

* São pais com muito poder. Já conseguiram correr com alguns professores da cidade. Ambos lemos essas histórias. O Edlin e a Dodd podem estar a servir-se de ti para fazeres o papel da má. Vais colocar-te numa posição insustentável.

* Tenho outro remédio, Gray? O importante aqui é o Quinn.

* Agora à noite? Já? Não podem esperar até amanhã?

* Querem resolver o assunto agora. Os pais não querem que corram boatos.

* E nós?

* Não demoro.

Ele lançou-lhe um olhar de dúvida.

* A sério - insistiu ela, pegando na bolsa. Confiando em Graham como muitas vezes fazia, quanto mais não fosse porque ele saberia pôr-se rapidamente em contacto com ela se algum dos seus clientes lhe telefonasse, acrescentou: - Passa-se alguma coisa com o Quinn. Tentou apanhar-me esta manhã, mas desencontrámo-nos. Tenho de ver se posso ajudá-lo.

* Ele é um miúdo forte. Meu Deus, olha só as coisas todas que faz!

* Pode ser que essa imagem esteja a pesar-lhe. Tem dois irmãos mais velhos superestrelas, cujas pisadas deve seguir, e uns pais com egos do tamanho do Texas. Eu conheço-os. São ossos duros de roer. Não sabemos, Gray. Talvez a vida em casa seja um pesadelo para o rapaz.

* E tu sabes como é.

* Sei - admitiu Amanda, preferindo acreditar que ele não estava a fazer troça dela. - Mas a minha situação era diferente. Eu fui apanhada no fogo cruzado mas, neste momento, o Quinn é o fogo cruzado, a cruzada dos pais, e não é justo.

* Há muitas coisas que não são justas - murmurou Graham, voltando-lhe as costas. De repente, apeteceu-lhe falar do assunto, do que era justo e de quem merecia o quê, do que era preciso para as pessoas serem bons pais e do facto de que ela e Gray seriam os melhores pais do mundo. Queria falar das coisas que davam cabo de uma relação, da maneira de cortar o mal pela raiz e dos sonhos que estavam a desfazer-se em fumo.

Mas não tinha forças. Dantes, falar com Graham era tão natural como respirar. Agora, os pensamentos e os sentimentos tinham-se intensificado. E era preciso mais tempo do que o que tinha de momento, com um estudante a precisar dela.

* Não demoro - repetiu, saindo pela porta.

 

Amanda ainda mal se afastara quando Karen saiu da porta de trás da sua bonita casa vitoriana, branca com uma faixa cinzenta. Tinha na mão mais uma travessa de bolachas coberta de papel de alumínio, mas desta vez não era para a venda da escola. Destinava-se à viúva. Embora uma oferta de paz tivesse ficado bem, não era disso que se tratava, e sim de um suborno.

Karen queria informações. Tinha de saber se a viúva estava grávida e, se sim, de quem.

Russ reafirmara a sua ignorância. Karen torrara-lhe a paciência mas, se sabia alguma coisa, calara-se bem calado. Dissera-lhe que a primeira vez que ouvira falar da gravidez de Gretchen fora por Amanda e que, mesmo que fosse esse o caso, preferia não entrar em especulações quanto à identidade do pai, por uma questão de respeito para com Ben. Esquivara-se com tanta habilidade que Karen receava que a sua recusa em fazer deduções tivesse menos a ver com o querido Ben do que com a amizade que o unia a Granam e a Lee. Claro que ia protegê-los. Era coisa de homens.

A casa vitoriana de Gretchen Tannenwald, muito parecida com as outras três da rua sem saída, era azul-clara com uma faixa branca. Tinha o mesmo alpendre rodeando a casa, as mesmas luzes a gás, as mesmas janelas no sótão e os mesmos beirais. Ao contrário das outras, tinha um miradouro no telhado. Karen, Amanda e Geórgia haviam discutido muitas vezes o seu significado. Ben e June costumavam ir lá. Depois da morte de June, Ben subia algumas vezes sozinho. Os outros achavam aquele sítio calmo e um convite à contemplação. O facto nunca lá terem visto Gretchen, com ou sem Ben, era mais um ponto contra ela.

A casa era a quarta e última das que rodeavam a praceta, o que fazia de Gretchen a vizinha mais próxima dos Cotter. Foi num abrir e fechar de olhos que Karen atravessou de um jardim para o outro, enveredando depois pelo caminho de pedras que levava à porta das traseiras. Subiu os degraus e bateu, pensando nas muitas conversas que tivera com June naquele alpendre. Fora como uma mãe para as outras três mulheres. Fazia três anos que morrera. Karen tinha saudades.

Como ninguém respondeu, tocou à campainha, pôs a mão em pala por cima dos olhos e espreitou pelo vidro dividido em quadradinhos. Enquanto a cozinha de June tinha um certo ar rústico, com flores, fotografias e desenhos dos netos, a de Gretchen era de aço inoxidável e lustrosa. Na opinião de Karen, o mesmo se aplicava à própria Gretchen, que era distante, chique e reservada.

Já ia tocar outra vez à campainha quando Gretchen apareceu. Usava perneiras e uma camisa larga de homem com manchas de tinta. A sua expressão tornou-se de defesa quando viu quem estava à porta. As duas mulheres nunca tinham sido propriamente íntimas.

Atravessou a cozinha sem pressa e abriu a porta.

Karen estendeu-lhe a travessa:

* Bolachas de chocolate para comemorar a chegada de Maio. Gretchen olhou para a travessa com desconfiança e disse em voz

calma e tão reservada como tudo o que a rodeava:

* Que bon! - A verdade é que também poderia ter dito: "Porquê agora? Porquê a senhora? Porquê? "

Sentindo-se uma impostora, Karen encolheu os ombros:

* Tive de fazer várias fornadas para a venda de doces da escola e comprei ingredientes a mais. Fiz bolachas para os miúdos do Russ e para os meus. Como me sobrou chocolate e achei que não valia a pena guardá-lo, continuei a fazer.

* Ah - respondeu Gretchen, não parecendo nada convencida.

Karen lançou-lhes um olhar.

É um favor que me faz. Tenho tantas que nem sei o que lhes

de fazer. Se as tiver em casa, não pararei de comer e quem pagarão serão as minhas ancas. Não está de dieta, pois não? É tão magra! Era a desculpa perfeita para estudar a cintura da viúva. Karen não se intimidou para fazer, mas a camisa não deixava ver nada. Gretchen pegou na travessa.

Nunca tive de fazer dieta. Acho que tenho sorte.

Que inveja! Por mim, já fiz todos os tipos de dieta possíveis e

imaginários: Atkins, Pritikin, Weight Watchers, Jenny Craig. Sabe, nunca fui gorda, mas fico melhor com cinco quilos a menos. Faz ginástica?

Gretchen abanou a cabeça.

* Nem deve precisar. Tem um corpo atlético e mantinha o Ben em forma. Sabe, o Ben faz-me muita falta.

O telefone tocou e Gretchen foi atender, dizendo:

* com licença.

Karen ia-lhe espreitando a barriga mas, se havia alguma coisa, estava escondida pela camisa.

* Está? - disse Gretchen. Fez uma pausa, repetiu e acabou por desligar.

* Telemarketing! - perguntou Karen. - Pois, são horas disso. Mal uma pessoa se senta a jantar... rrrring... ei-los. Se não fosse o Jordie estar sempre a receber chamadas, poria uma gravação dizendo que não estou interessada. Podia fazer isso.

* Mas não era telemarketing - replicou Gretchen. - Não era ninguém.

* Isso também não é bon. Acontece-lhe muitas vezes?

Gretchen parou a pensar, abanou a cabeça e virou-se para pousar as bolachas no balcão. Ao encostar-se, a camisa revelou-lhe as formas.

* Ah! - murmurou Karen, erguendo o olhar um niquinho tarde de mais.

De resto, Gretchen não o negou. Bem pelo contrário, levou a mão à barriga. Se houvera alguma dúvida, deixara de existir. O volume da barriga era inconfundível.

Mesmo assim, Karen perguntou:

* Está...

Gretchen assentiu.

* De quanto tempo?

* Sete meses.

* Sete? - Karen apressou-se a fazer as contas: se estavam em Maio, então devia ter sido em Novembro. Não, Outubro. - Não parece grávida de sete meses. - Outubro... isso significava que o culpado tanto podia ser Graham como Lee. Graham refizera o jardim de Gretchen no Outono anterior e passara bastante tempo dentro de casa com ela, discutindo os planos. Russ também podia ser suspeito. Em Outubro, a mulher devia estar a trabalhar e os miúdos de regresso à escola. Só havia Karen para ver o que ele andava a fazer, mas fora um mês atribulado: os muitos acontecimentos a comemorar a abertura das aulas tinham-na obrigado a afastar-se de casa o dia inteiro.

* E isso é bom ou mau? - perguntou Gretchen.

* bon. Sem dúvida que bon. São menos problemas depois. Bem, também não deve ter nenhum problema. Grávida! Uau! - Calou-se, dando tempo a Gretchen para fazer algum comentário sobre o pai. Como ela não disse nada, Karen apontou para a camisa suja de tinta. - Está a pintar o quarto do bebê? - De azul e amarelo? Gretchen assentiu.

* Faz bem. É possível da primeira vez, quando não há mais pequeninos pendurados em nós. Adorei estar grávida da primeira vez. Depois foi mais difícil, sobretudo a última gravidez. Como o Lee não tinha muito jeito para andar com os rapazes a fazer isto e aquilo, fui obrigada a desdobrar-me, com uma barriga enorme. Ficamos sempre maiores a cada bebê. Os músculos perdem a tonicidade. Mas adoro ter a minha filha. Digam o que disserem, é diferente. A nível genético. Ha. sabe se é rapaz ou rapariga? Gretchen abanou a cabeça.

* É natural - tornou Karen. - Só começam a falar em amniocentese quando a mulher tem trinta e cinco anos. A Gretchen ainda é nova. Acho que só lhe fariam uma amniocentese se houvesse motivo para preocupações, como a possibilidade de transmissão de alguma doença congênita que houvesse na sua família ou na do pai do bebê. Calou-se de novo, mas Gretchen permaneceu em silêncio. - Foi... procurou a palavra com uma descontracção estudada - planeado?

* Não. Sem dúvida que não.

Bem, já era alguma coisa, embora não lhe dissesse o que queria saber.

* Mas quer o bebê?

* Oh, quero! Karen sorriu.

* Que lhe parece que o Ben diria?

* Ficaria satisfeito. Ele sabia que eu queria um filho.

* E o pai da criança? - Pronto! Até que enfim! E saíra-lhe com naturalidade, sem forçar!

Gretchen deixou a pergunta pairando no ar e arqueou as sobrancelhas, como se indagasse: "O pai da criança o quê? "

* Está contente? - explicou Karen.

* Não sabe. Oh, meu Deus!

* Vai dizer-lhe?

* Não sei bem.

* Não acha que devia saber?

* Não. Tem outras obrigações.

Karen não ficou nada contente. O tiro caía-lhe muito perto de casa.

* E nós que pensávamos que dormia sozinha! - brincou. Gretchen não esboçou o mínimo sorriso.

* E durmo - rematou com tranqüilidade.

Sem saber que responder, Karen limitou-se a acrescentar:

* Bem, espero que goste das bolachas. - Fazendo um gesto de despedida, saiu.

Mas não foi para casa. Atravessou o jardim em direcção ao de Russ, pensando que nunca tivera nenhuma vizinha tão antipática como Gretchen, que as pessoas não respondiam por monossílabos aos gestos amáveis e que aquela mulher devia ser culpada de alguma coisa.

Receando que essa "alguma coisa" tivesse a ver com o marido, Karen irrompeu pela cozinha dos Lange e tratou de dar logo as últimas informações a Russ, que felizmente estava sozinho.

* Está grávida de sete meses. Acaba de mo dizer.

* Sete? - perguntou ele, virando-se junto do lava-loiças, onde estava a lavar a louça. - Uau! E nós sem saber de nada!

* De resto, continuamos sem saber. Ela não diz quem é o pai. Nem uma pista, nada. De certeza que viste alguma coisa, Russ. Passas aqui mais tempo do que qualquer um de nós. Deves saber alguma coisa.

Russ levantou as mãos cheias de espuma, como para se distanciar da embrulhada:

* Eu não.

* Eu não quê? Não és o pai?

* Eu não, não sei de nada. - Empurrou os óculos com a parte de trás do pulso, voltou a mergulhar as mãos na água e começou a esfregar uma frigideira. - Não estou à espreita dos carros que passam. A sério, Karen. Tenho mais que fazer. Aliás, pode não ter sido aqui. Ela também sai.

* Mas nunca por muito tempo.

* Não demora muito, tempo. Karen não estava convencida.

* O Graham esteve a trabalhar lá no Outono. Foi muitas vezes a casa dela.

* O Graham ama a Amanda. Enganaste-te no alvo.

* Mas eles estão com problemas. Sabes, aquilo da infertilidade. As coisas estão tensas.

* Não a esse ponto.

* Então foi o Lee - disse Karen com o coração na boca. Quando Russ lhe lançou um olhar, baixou a voz. - Sabes muito bem que no ano passado andou com aquela técnica de higiene oral, e sabes que eu sei. Pode ter chegado a vez da Gretchen.

* Não me parece.

* Mas não tens a certeza.

* Não lhe perguntei, se é o que queres dizer. - Destapou o ralo do lava-loiças. A água com espuma formou remoinhos e desapareceu.

* A última coisa que soube foi que a técnica já pertence ao passado. O Lee jurou-me que se emendou. - Passou o lava-loiças por água limpa. - E não ia agora andar com a vizinha do lado, debaixo do nosso nariz.

* Porque não? A técnica de higiene oral também me tratou dos dentes.

* Sabes muito bem o que quero dizer, Karen.

* Mas se não é nenhum de vocês os três, então quem é?

* E eu sei?

* Deves ter alguma idéia - continuou Karen, que na verdade só estava interessada em saber que não era Lee. Pouco lhe importava quem fosse, desde que o seu marido ficasse de fora.

Russ fitou-a:

* Perguntaste-lhe cara a cara?

* Não pude. Ela não foi nada simpática. Levei-lhe bolachas e nem me agradeceu. "

* Devia estar em choque por teres lá ido. Convenhamos que as senhoras da vizinhança não têm mostrado uma grande amizade para ei com ela. ú

* Mas somos amáveis.

* Da amabilidade à amizade vai uma grande distância. - A Gretchen não é a June.

* E o que vocês lhe lembram todos os dias.

* Nunca dissemos isso.

* Não, por palavras não.

Karen coçou o nariz. O problema não estava só no facto de Gretchen não ser June. O mais grave era ter trinta e dois anos, contra os quarenta e três de Karen, e ser muito bonita comparada com ela. Gretchen era do tipo de mulher que atraía os homens, sobretudo os quarentões que não queriam ser quarentões. Lee tinha quarenta e sete anos e muitos antecedentes.

De repente cansada, deixou cair a mão.

* Bem, não vale a pena. Já percebi que não vais dizer nada.

* Não sei nada - insistiu Russ.

Karen não acreditava, mas sabia que aquele chão não daria mais uvas. E tinha o jantar no forno. Estava quase pronto e os miúdos deviam ter fome. Talvez Lee chegasse a casa a tempo de jantar com eles.

Caminhando de regresso a casa, quase teve esperança de que ele lhe telefonasse com mais uma das suas desculpas esfarrapadas: que estava à espera de um telefonema, que tinha uma reunião ou que era obrigado a levar a sua equipa de programadores principais a jantar, porque acabavam de cumprir este ou aquele prazo. Ele que a provocasse. Qualquer oportunidade para o enfrentar seria bem-vinda.

Lee era um gênio dos computadores. Ou melhor, Karen pensava que ele era um gênio porque a empresa ia muito'bem, mas na verdade não sabia se o sucesso se devia aos seus miolos ou aos miolos das pessoas que contratava. Não percebia nada de computadores e ele não a aconselhava a aprender, dizendo que, de contrário, acabariam por se tornar um casal de aborrecidos. Já trabalhava com computadores de manhã à noite e não lhe apetecia nada falar de negócios em casa.

Nos seus momentos de maior desconfiança, pensava se ele estaria a esconder-lhe alguma coisa. O que encontraria se pudesse ligar o seu computador e ler o e-maill Quando se sentia culpada, no entanto, achava horrível que tais idéias lhe passassem pela cabeça. Ele era seu marido e estavam casados havia dezassete anos. Na altura era que o confrontara com o caso da técnica de higiene oral, ameaçando separar-se, Lee debulhara-se em lágrimas e jurara que já tinha acabado, que a amava a ela, Karen, e que seria fiel.

Mas a técnica não fora a primeira. Já jurara o mesmo antes, faltando à palavra dada. Karen já não sabia no que havia de acreditar.

Entrou pela porta de trás e não encontrou ninguém na cozinha, onde a mesa estava posta e cheirava a lasanha de carne. Quando acabou de fazer a salada, já a filha, Julie, que tinha seis anos e era a sua pequena ajudante, andava atrás dela. Karen cortou fatias de pão e Julie colocou-as num cesto, pôs-se em bicos de pés e meteu-o no microondas.

Os gêmeos, Jared e Jon, tinham oito anos. Apareceram pouco depois com os cabelos igualmente desgrenhados e com idênticos ataques de alergia, o que lhes dava um certo ton nasal à voz. De resto, era muito possível que Karen não os percebesse mesmo que não falassem pelo nariz. Tinham uma maneira de comunicar um com o outro que era ininteligível para os demais. Não era bem uma língua diferente, mas uma espécie de murmúrio prolongado. Entendiam-se assim um com o outro desde que tinham aprendido a falar. Andavam sempre juntos e tinham a segurança que só crianças de oito anos podem ter. Embora Karen os levasse aqui e ali, lhes fizesse a comida, lhes limpasse os quartos e lhes comprasse a roupa, faziam-na sempre sentir-se supérflua. Era uma das razões por que apreciava tanto a companhia de Julie, que precisava dela e a adorava.

Jordie chegou ainda mal os três mais novos se tinham sentado. Karen espantou-se mais uma vez ao olhar para ele. Aos quinze anos, estava finalmente a espigar. De repente, parecia querer recuperar o tempo perdido. Já era mais alto do que ela. Entre isso e a mudança que a puberdade lhe imprimira nas feições, estava um homenzinho muito parecido com Lee. Mostrava-se apressado, como de costume, pegando no pão e comendo a lasanha como se estivesse atrasado. De certeza que tinha planos para a noite.

Estava a perdê-lo. Era evidente que ele queria estar em todo o lado menos ali, fazendo coisas que ela não pudesse ver, o que a punha nervosa.

Mas não podia obrigá-lo a ficar em casa. Os rapazes da sua idade precisavam de estar com os amigos, o que, no entanto, não significava que se sentisse bem por ele passar a vida fora de casa.

Perguntou-lhe como correra o seu dia e ele respondeu qualquer coisa que não se percebeu entre garfadas. Karen meteu-se com ele, dizendo-lhe que parecia os gêmeos, e estes protestaram de uma maneira perfeitamente articulada, porque assim o decidiram. Quando regressaram aos seus murmúrios, voltou-se de novo para Jordie mas, mal lhe fizera uma pergunta sobre o treino de basebol, Julie gritou. Tocara no tabuleiro da lasanha quente e queimara o dedo. Karen puxou-a para o lava-louças, segurou-lhe o dedo debaixo de água corrente, deu-lhe um cubo de gelo e voltou a sentá-la. Por essa altura, Jordie devorava a comida.

Disse-lhe para ter calma e ele respondeu-lhe que os amigos já estavam em casa de Sean. Karen perguntou-lhe para fazer o quê e ele respondeu-lhe que para ouvir um CD novo. Ela perguntou-lhe se já acabara o trabalho de casa e ele respondeu-lhe que o acabaria lá. Ela disse-lhe que estivesse em casa às dez horas e ele perguntou-lhe porquê com uma expressão horrorizada. Ela respondeu-lhe que no dia seguinte havia escola e ele disse-lhe que nunca ia para a cama antes da meia-noite e que por isso não era preciso voltar tão cedo. Insistiu que os pais de Sean estariam em casa, que ninguém ia a mais lado nenhum e que detestava que ela não confiasse nele.

Lee entrou então, de pernas compridas, ruivo, oh! tão bonito e elegante! com um sorriso jovial, perguntou o que é que discutiam.

Aborrecida com o marido por estar atrasado sem lhe ter dito nada e por lhe dar razões para andar sempre a pensar por onde andaria e depois aparecer com aquele sorriso inocente, cortou uma fatia de lasanha, pousou-a num prato e afastou-se da mesa para a aquecer no microondas. A conversa atrás dela tornou-se mais animada, o que lhe aumentou irritação. Passava os seus dias fazendo isto e aquilo para as crianças, que depois ficavam todas contentes quando viam Lee. Não era justo!

No entanto, tinha de reconhecer que ele sabia estar com os filhos. Ouvia-os, brincava e fazia de bonzinho da fita. Ela era a má. Quando regressou à mesa, não era que ele estava a dizer a Jordie que podia ficar em casa de Sean até às dez e meia, mas que era uma vez sem excepção? O sorriso que Jordie lhe atirou não era de desafio? A sua fiel Julie não estava sentada ao colo de Lee, passando-lhe um braço em volta do pescoço?

Pousando-lhe o prato à frente com brusquidão, Karen concentrou-se de novo no seu jantar, mas não se juntou à conversa. Limitou-se a escutar, aliás com pouca atenção. Tinha outros pensamentos na cabeça. Só via à frente a barriga de Gretchen. Quando teria Lee estado com ela? Claro que oportunidades não tinham faltado. Karen anotava sempre as reuniões que tinha no calendáriç que estava ao lado do telefone da cozinha. Lee sabia quando ela saía, onde estava e quanto tempo demoraria. Sabia também quando os miúdos não estavam e quando não haveria ninguém que pudesse vê-lo a correr para a porta ao lado. Houvera ocasiões (precisamente à noite, no escuro, quando nenhum vizinho poderia vê-lo) em que se desculpara com o trabalho para faltar a alguma festa ou espectáculo a que iam Karen e as quatro crianças Muitas dessas vezes, tinham-no encontrado em casa ao regressarem.

"Cheguei agora mesmo", dizia sempre com um grande sorriso, despenteando os gêmeos e apanhando Julie quando ela se atirava para os seus braços.

Bem, lá que chegara, chegara. O problema era de onde: do trabalho ou da casa de Gretchen?

Rangendo os dentes de uma maneira que o dentista lhe dissera para não fazer mas que não conseguia evitar, Karen levantou-se da mesa e levou o prato para o lava-loiças. Estava vazio. Comera tudo sem saborear nada. Passou-o por água, abriu a máquina e meteu-o lá dentro, jurando a pés juntos que se Lee fosse o pai do bebê de Gretchen, o caldo se entornaria de uma vez por todas. Dezassete anos de casamento que iriam por água abaixo. Seria o fim. Ponto final. Se ele fosse o pai da criança, Karen não queria voltar a dar-lhe de comer a dormir com ele e a lavar-lhe as meias. Se fosse o pai da criança, não queria voltar a pôr-lhe a vista em cima.

Sim, estava com as emoções à flor da pele. Depois dos serões que ele fazia, dos telefonemas que recebia mas que nunca identificava e das despesas do cartão de crédito que Karen não sabia explicar (nem podia perguntar, porque não era suposto vê-las, pois Lee insistia que pagar as contas era da sua responsabilidade), não conseguia ser objectiva. Não conseguia. Nesse momento, em carne viva devido a tantas infidelidades de Lee, só conseguia imaginar que o pai era ele, não podia ser outro.

O telefone tocou. Metendo na boca um último pedaço de pão, Jordie deu um salto.

* Olá - disse no torn profundo que a sua voz acabava de adquirir, dirigindo-se a quem quer que estivesse do outro lado da linha; a julgar pelo torn, provavelmente um amigo. Jordie ouviu, carregou o cenho e continuou a ouvir.

Admirada com o seu silêncio, Karen olhou de novo para o filho no momento exacto em que este empalideceu.

 

Sentada sozinha no quarto do hotel de San Antônio, Geórgia Lange só muito vagamente se apercebia do que a rodeava. Depois de passar tantas noites dos últimos anos em quartos de hotel, acabavam por se confundir todos. Normalmente, só tirava da mala a roupa amarrotada; por muito odioso que fosse viver assim, sempre era melhor do que pôr-se à vontade num sítio que não, era a sua casa. Havia uns tempos que lhe dava para fingir que o resto da casa que amava se encontrava do outro lado da porta. Sentia-se menos sozinha... até dar consigo à espera que Russ e os filhos chegassem, normalmente à hora em que o jantar estava pronto e a noite começava a assentar. Era quando pegava no auscultador e telefonava para casa.

Naquela noite, a linha deu ocupada durante as primeiras tentativas, o que significava que a filha estava pendurada ao telefone. Tão certo como dois e dois serem quatro, quando o telefone tocou por fim, Allison atendeu com voz apressada.

* Está?

* Olá, querida.

* Mãe - começou ela, na voz profunda que costumava usar para sugerir que estava a acontecer alguma coisa séria -, o Quinn Davis vai ser expulso da escola.

* O quê?

* Foi bêbedo para o treino de basebol. Os pais estão reunidos com o senhor Edlin, mas a Melissa... sabes, a namorada do Quinn... telefonou à Brooke, que me telefonou a mim e à Kristen, a dizer que vão expulsá-lo. Querem que eu fale ao Jordie, que talvez saiba alguma coisa, mas a Alyssa está a falar na outra linha. Espera um bocadinho

* Ouviu-se um clique e depois fez-se silêncio.

"Bêbedo?" Geórgia sentiu um arrepio. Allie regressou.

* Não podem expulsar o Quinn. É o delegado da turma.

* Estava mesmo bêbedo?

* Aos tombos.

* Porquê?

* Porque estava bêbedo? Porque se embebedam eles? Não sei. Mas se expulsarem o Quinn, podem expulsar qualquer um.

* É o que devem fazer. Onde esteve a beber? - Geórgia imaginou Quinn sozinho em casa, enquanto os pais andavam a lutar pela sua última causa. Pior, imaginou a sua garagem, onde o miúdo poderia embriagar-se. como os dois rapazes que destruíram tudo à sua volta e foram para a escola abrir fogo, de metralhadoras em punho. - Foi cerveja? Alguma coisa mais forte? Onde arranjou as bebidas?

* Oh, mãe, quando se quer, arranja-se sempre. Isto vai dar cabo da época de basebol. Quer dizer, estávamos prontos a ganhar...

* Allison, deixa lá o basebol. Que lhe deu para beber? A filha suspirou.

* As pessoas bebem, mãe. Não é a primeira vez que o Quinn bebe. Aliás, não é só álcool.

* Que mais é? - perguntou Geórgia, de respiração suspensa.

- Comprimidos.

* O Quinn não é um santo. Não é diferente de todos nós. j" - Mas tu não bebes, pois não? - Credo, não! Já falámos disso. Sabes muito bem que não. Mas os rapazes bebem. Olha, mãe, não devia ter falado em nada. Não é o fim do mundo.

* Não sei - respondeu Geórgia. Allison tinha catorze anos e era muito jovem para o ano que freqüentava. A maioria dos amigos tinha doze anos. Alguns já haviam feito dezasseis e até conduziam. - Gosa de estar aí. - A filha estava a crescer muito depressa. - Onde estãoteupai?

Lá em baixo. Não te preocupes. Ele sabe de tudo. Agora não

osso falar mais. Tenho de ir ver se o Jordie sabe mais alguma coisa. Queres falar com o pai?

Claro que queria. Sem dúvida. Primeiro o teu irmão.

* Está bem... Tommy! Adeus, mãe.

* Allie, depois telefona-me. Tens o número aí...

Mas o silêncio do outro lado disse-lhe que Allison já se fora embora. Dali a segundos, Tommy pegou no auscultador:

* Olá, mãe. Está tudo bem por aqui, mas estou a conversar com os meus amigos no computador. Por isso, não posso falar muito. Quando é que chegas?

* Amanhã à tarde. - Ou não sabia o que se passava com Quinn ou era novo de mais para se preocupar, o que talvez até fosse melhor. Eram coisas sobre as quais preferia falar-lhe em pessoa. - Como correu a escola?

* Bem, mas agora não posso falar. Conto-te amanhã, pode ser?

* Tens alguma coisa a contar? O que aconteceu? - Esperou, mas só conseguiu ouvir as teclas do computador. - Tommy?

* A escola é a escola, a escola é sempre a escola, mas não posso escrever e falar ao mesmo tempo e os meus amigos estão à espera, mãe.

* Estás preparado para o teste de matemática?

* Acho que sim. Já estarás aqui quando eu chegar da escola?

* De certeza que sim. Gosto muito de ti, Tommy. Tenho saudades.

* Eu também, mãe. Vemo-nos amanhã. Adeus. - Desligou mesmo na altura em que Geórgia ia perguntar por Russ. Fechando a boca, fitou o auscultador e marcou o número outra vez.

Quando Russ atendeu, sentiu-se logo aliviada. Ele era a sua âncora. Nunca poderia exercer a sua profissão se ele não estivesse em casa no seu lugar. Nem imaginava como seria se Russ saísse todos os dias para trabalhar e os miúdos passassem as tardes sozinhos. Se agora já estava preocupada, então ficaria desfeita.

* Russ - suspirou. - A Allison contou-me do Quinn. Estava mesmo embriagado? De dia? No meio da semana?

* Parece que sim - respondeu Russ calmamente.

* Não bate certo com a sua imagem.

* Pois não.

* A Allison esteve na mesma festa que ele há dois fins-de-semana. Não me sinto nada tranqüila.

* Ela está bem, Georgie.

* Ela compreende que o que ele fez é errado... doentio... perigoso?

* Há-de compreender. Por enquanto, ainda está tudo muito quente. Ninguém sabe ao certo o que aconteceu. De momento, são só boatos.

* Achas que a Allison bebe nessas festas?

* Vem para casa sóbria. Isso sabemos porque a vemos.

* Nem sempre. Às vezes vai para casa da Kristen ou da Alyssa. Não sabemos se os outros pais estão atentos a coisas destas. Já pensaste que são miúdos que daqui a pouco estão a tirar a carta? E se continuam a beber?

* Vou escrever um monte de artigos sobre os futuros condutores.

* Estou a falar a sério, Russ.

* Eu também. Não quero que bebam, mas há tantos que o fazem numa altura ou noutra que seria uma idiotice enterrarmos a cabeça na areia. Tu até concordas comigo. Sentes-te é muito longe.

* Sinto-me de mãos e pés atados. Gostava mais quando andávamos com os nossos filhos para cá e para lá. Assim sabíamos que chegavam sãos e salvos. Quem me dera que o tempo voltasse atrás!

* Não dirias isso se fosses o motorista de serviço - comentou Russ. - A minha vida vai ser muito mais fácil quando a Allie conduzir. Confio nela.

* Eu também - disse Geórgia. - É com os amigos que me preocupo.

* São bons miúdos.

* O Quinn também.

* Estás a fazer uma tempestade num copo de água.

Talvez, mas era difícil não estar encontrando-se a muitos milhares de quilômetros de distância. Era só terça-feira? Estivera em casa na véspera de manhã, mas a véspera de manhã parecia pelo menos uma semana. - O Tommy está preparado para o teste?

* Tão preparado como sempre. Verifiquei-lhe o trabalho de casa e estava tudo em ordem.

* Tinha muita pressa para desligar. Achas que queria esconder alguma coisa?

* Não. Está à conversa no computador. Deve pensar que pode contar-te tudo amanhã. A que horas chegas?

* Às três, mais coisa menos coisa.

* A casa? Ou vais primeiro ao escritório?

* A casa. - Sentia uma enorme vontade de estar em casa. Cada vez a sentia com mais freqüência e intensidade. - Não gosto desta vida, Russ. Estou a perder muita coisa.

* Eu controlo tudo.

* Eu sei, mas também quero estar aí.

* Foste tu que quiseste trabalhar. Não podes ter tudo.

Vindo de outra pessoa, aquele comentário poderia soar a falso, mas Russ disse-o com suavidade. De resto, era o primeiro a admitir que o facto de ela trabalhar lhe tirava um peso de cima dos ombros. Fizera muitos malabarismos a nível profissional quando era o único a sustentar a casa. Não tinha problemas em reconhecer que preferia a vida que levava agora.

Aliás, como não preferir? Estava em casa com os filhos, vivendo as suas alegrias e tristezas com uma intensidade que dantes lhe cabia a ela... e que agora lhe fazia falta.

* E que mais?

* Nada de especial.

* Os homens da relva apareceram?

* Hoje de manhã.

* As túlipas já abriram?

* As da Gretchen mais do que as outras. Ela tem muito jeito para as plantas.

Não duvidava. Gretchen também tinha um grande peito e uma má atitude, mas Geórgia não queria discutir nem uma coisa nem outra com Russ, que via os problemas de um ponto de vista masculino, quer se tratasse de Gretchen quer da bebida. Por agora, chegava.

* Mais alguma novidade?

* Desde ontem, não. É verdade, a Amanda não está grávida.

* Oh, meu Deus! Coitadinha! Deve estar muito desanimada.

* Pois está.

* Que vão fazer a seguir?

* Não sei. Não perguntei.

Geórgia teria perguntado, mas isso era porque ela e Amanda se tinham tornado boas amigas nos últimos quatro anos, discutindo freqüentemente o quê, o quando e o porquê. Era uma das maravilhas de ser mulher. Russ podia ser excelente a tratar das crianças e da casa, mas nunca seria uma delas.

* Amanhã pergunto-lhe - disse ela, pensando que aquela era outra razão para estar em casa. Fazia-lhe falta o convívio com os amigos. - E o Graham?

* Não sei. Daria um bom artigo... o lado masculino da questão... Já vou! - gritou. - Tenho de desligar, querida. you levar a Allie a casa da Brooke. Estão a fazer juntas um trabalho para História,

* Para História? A sério?

* Claro que vão falar do Quinn, mas não faz mal. Já you, Allieí Georgie, tenho de desligar.

* Então mais nada?

* Não. Vemo-nos amanhã.

* Que vais fazer depois de levares a Allie a casa da Brooke?

Ele suspirou.

* you ver as notícias... pode ser que tenha alguma idéia para o meu próximo artigo. Depois meto o Tommy na cama e you buscar a Allie- Olha, se ela tivesse carta podia ir e vir sozinha. Até amanhã, querida.

Geórgia só pousou o auscultador porque ele desligara. Por ela, teria continuado à conversa, mas os pequenos estavam com pressa para a despachar e Russ também. Como poderia não se sentir posta de lado?

Nem sempre fora assim. Havia pouco tempo, era o centro das suas vidas.

Tentou recordar essa época... sobretudo o lado negativo, para poder saborear agora o facto de estar sozinha. Tentou chamar a si a sensação de cansaço, desassossego e aborrecimento. Tentou relembrar a frustração das pilhas de roupa que tinha sempre para lavar, dos brinquedos para apanhar, das vezes que tinha de levar as crianças aqui ou ali, aulas de música, jogos de futebol. Tentou pensar na luta longa e difícil que travara consigo própria até admitir que precisava de mais alguma coisa que lhe preenchesse a vida além de tratar dos filhos.

Mas as desvantagens escapavam-lhe e só conseguia pensar no lado bom e agradável.

Dito isto, não voltaria atrás. Tinham passado sete anos desde que se estreara no mundo do trabalho e o crescimento da sua empresa não parava de a surprender. Se quisesse dar uma conferência sobre a chave do sucesso, não saberia que dizer. Provavelmente tivera sorte.

O sumo de legumes não era novidade. Havia anos que se conhecia, mas nunca ninguém lhe chamara Cerveja de Beterraba nem lhe dera uma apresentação cuidada, oferecendo cinco variedades além da beterraba, cada uma mais deliciosa do que a outra. Ao princípio, era uma indústria caseira instalada na cozinha comercial de uma empresa que servia refeições, e vendia apenas para algumas lojas da cidade. Agora tinha unidades de processamento nas duas costas, produtos vindos de uma dúzia de estados e meia dúzia de países e vendas em todas as cadeias de supermercados.

Chamavam-lhe feiticeira empresarial, mas não era. O negócio levantara vôo por si próprio e arrastara-a atrás de si. Era verdade que sabia fazer as coisas; a maternidade fora um bom treino. Mas começara com uma visão? Não. Dirigira o seu produto para as pessoas que trabalham fora de casa e ainda não percebia como conseguira chegar às mães e seus filhos.

No entanto, agora via a imagem completa. Um grande fabricante de produtos alimentares andava a rondá-la na esperança de comprar os direitos do seu produto e respectivo nome, e os números que sugeria eram de dar volta à cabeça. Uma quantia que pagaria os estudos das crianças e muito mais: férias durante anos, uma casa na praia e uma reforma muito confortável. Mas não pensava reformar-se, pois pouco passava dos quarenta. De resto, queriam que ela ficasse na qualidade de directora executiva. Fazia parte do contrato.

Não sabia se gostava da idéia, sobretudo numa noite como aquela. Sentia-se muito longe de casa, muito afastada das vidas do marido e dos filhos. Estava com eles todos os fins-de-semana, mas não era a mesma coisa. E falar com eles ao telefone todas as noites também não.

Fora muito longe. Toda a gente o dizia, e não se referia apenas à sua empresa. Sete anos antes, era uma mãe pouco cuidada, com o cabelo como calhava, escondia a barriga debaixo de camisolas largas e bebia sumo de cenoura para tentar ficar em forma, pois estava farta de se sentir humilhada no ginásio. Agora tinha dez quilos a menos, o cabelo curto e penteado, um guarda-roupa de fatos elegantes e maquiIhava-se todos os dias.

Oh, sim, fora longe, mas pagara caro.

Amanda esteve na escola durante duas horas. Quando desceu a rua de carro, já eram quase oito da noite. No caminho, ia pensando que afinal talvez não quisesse ser mãe, se isso significasse travar guerras como aquela a que acabava de assistir. Claro que ela e Graham seriam mais razoáveis do que os Davis e, esperava, compreenderiam melhor o seu filho e suas necessidades. Porque Quinn Davis tinha necessidades. Naquela noite, Amanda observara a fenda na sua couraça ao vê-lo sentado com um ar aborrecido, esfregando cada polegar no respectivo indicador, enquanto os pais discutiam por ele. Ao que parecia, não queriam ver aquele tique nervoso. Quando, no fim da sessão, Amanda se atrevera a sugerir-lhes (con delicadeza e em privado) que talvez fosse melhor ela falar com Quinn, tinham-se atirado a ela, afirmando que o seu filho estava muito bem.

O problema todo deixara-a cansada.

Estar com o período também não ajudava. Esgotava-a.

Mas já chegava. Inspirando profundamente, tentou libertar a tensão.

O ambiente ajudava. A escuridão emprestava uma grande serenidade à praceta. Brilhavam lampiões em cada passeio e saía das casas uma luz mais suave. Um ecrã de televisão aceso no rés-do-chão dos Lange denunciava a presença de Russ. Na porta ao lado e um andar acima, duas luzes em duas janelas, onde se viam duas sombras fazendo cabriolas, anunciavam que os gêmeos Cotter estavam nos seus quartos. Mais uma casa e... onde se encontrava a viúva? As janelas da frente estavam às escuras. Amanda só viu luz na parte de trás da sala quando chegou à frente de casa. Gretchen estava na biblioteca, como acontecia muitas vezes à noite.

Que faria ali? June costumava ler todos os bestsellers que lhe vinham parar às mãos, quer fossem de ficção quer de outra coisa qualquer. Pertencera a três círculos literários e contava muitas vezes as suas discussões a Amanda, Geórgia e Karen. Os dois filhos de June, que já tinham mais de quarenta anos, sabiam que o melhor presente que a mãe podia receber eram livros. Ben também o sabia e não se cansava de lhos oferecer.

Gretchen estaria a ler os livros de June? Duvidava muito. Sempre que Amanda mencionava um livro para tentar entabular conversa, Gretchen olhava-a com uma expressão de total desconhecimento.

Talvez andasse a ler livros sobre gravidez. Amanda poderia emprestar-lhe alguns.

Por falar nisso... olhou para sua casa e sentiu um nó no estômago. Quinn Davis fora uma distracção, mas agora chegara a casa e precisava de Gray. Precisava que a consolassem pelos adolescentes de dezasseis anos que não estavam à altura das expectativas dos pais e pelos adultos de trinta e cinco anos que não estavam à altura das expectativas dos sogros.

Além do lampião do passeio, só vinha luz da salinha que ficava por baixo do beirai da garagem, a metade de Graham do seu escritório em casa. Imaginou-o sentado ao estirador, com um pé apoiado na trave de um banco, o joelho dobrado e os cotovelos bem assentes, firmando a mão que traçava as linhas ao estreito raio de luz projectado por um candeeiro. O computador estava encostado à parede, à sua esquerda, mas era desnecessário. Só o comprara em atenção ao gestor e aos três assistentes que trabalhavam no escritório da cidade. Era do último modelo e estava completamente equipado. Tal como Graham, que sabia trabalhar com os programas CAD tão bem como qualquer recém-licenciado acabado de sair da escola de design. Quando podia escolher, no entanto, trabalhava à mão.

E de certeza que o faria naquela noite. Devia estar a precisar de consolo, qualquer consolo, viesse ele da mulher ou do trabalho.

Mas quem era ela para falar? Na verdade, também se refugiava no trabalho.

Era desgastante. Estavam a desgastar-se. Quando saiu do carro, nem a carícia do ar suave da noite batendo-lhe no rosto conseguiu aliviar-lhe a dor.

com um suspiro de cansaço, ergueu o olhar para o céu, tão bonito e estrelado, tão despido de respostas. Não sabia porque não podiam ter um filho. Tinham tanto a seu favor!

Endireitando a cabeça, já ia a entrar quando percebeu um movimento no alpendre da frente dos Cotter. A ponta de um cigarro lançava um brilho cor de laranja carregado. Era Karen.

Agarrando esta última manobra de diversão antes de enfrentar Granam, Amanda atravessou a praceta e seguiu o cheiro do cigarro até ao alpendre.

* Não digas nada - avisou Karen baixinho, iluminada por trás e quase completamente na sombra. - É só um.

Amanda parou no degrau abaixo:

* Ias tão bem! Já tinhas deixado de fumar!

* É só um. Tens novidades do Quinn?

Amanda teria preferido perguntar-lhe o que a levara a sentir necessidade de fumar, mas a terapeuta foi derrotada.

* Está sóbrio.

* Vai ser expulso?

* Expulso? Não, não. Fica suspenso da equipa durante o resto da época. - Não estava a divulgar nenhum segredo e sim a corrigir um boato. A verdade era do conhecimento público.

* Proibido de jogar basebol? É isso?

* É.

Karen fitou o vazio e disse baixinho:

* É o mesmo castigo dos outros dois. Se fosse eu, o Quinn teria sido punido com mais severidade. O nível de exigência é diferente quando se ocupa uma posição de liderança. As expectativas são maiores.

* Que diz o Jordie?

Karen levou o cigarro à boca e deu uma passa. A sua resposta seguiu uma faixa estreita de fumo.

* Pouca coisa. Pelo menos a nós. Saiu a correr mal soube do sucedido. Meu Deus, detesto esta idade!

* A nossa ou a deles?

* Neste momento, a deles. Odeio segredinhos. Nunca sabemos o que está realmente a acontecer.

* Achas que o Jordie bebe?

* Não, mas também diria a mesma coisa do Quinn. Por isso, sei lá! - Deu uma passa maior no cigarro. Se era para se acalmar, não deu resultado, porque a sua voz permaneceu tensa: - Olha, sei uma coisa: a Gretchen está grávida. Levei-lhe uma fornada de bolachas Vista de perto, não há dúvida.

Então não o imaginara. Amanda sentiu uma certa satisfação.

* De sete meses.

* Sete? Não me pareceu assim tanto. Karen fungou.

* De certeza que o bebê vai sair tão gracioso como ela. Amanda fez contas de cabeça.

* Se está de sete meses, foi em Outubro, na altura em que o carpinteiro andou por lá a substituir o tecto do alpendre.

* Exactamente - concordou Karen. - Depois do tecto, esteve a fazer prateleiras num dos quartos de hóspedes e a reforçar as traves por baixo da casa de banho principal, para instalar umjacuzzi. O canalizador e o electricista também lá estiveram a fazer as ligações.

* Uma ménage à troisl - brincou Amanda. Bem precisava de rir num dia daqueles. - E quem é o pai?

* Não sei.

* Perguntaste?

* Não me atrevi. - Quando deu outra passa no cigarro, nuvenzinhas de fumo ergueram-se-lhe dos lábios para o nariz. - Não somos precisamente grandes amigas. O meu marido, sim. É ele que passa a vida a correr até lá para limpar a neve, empilhar lenha ou colocar protecções nas janelas. Devia era manda-lo perguntar.

* Se calhar já sabe - respondeu Amanda, com o ar brejeiro com que ela e as outras duas mulheres costumavam expressar-se quando falavam dos seus maridos e de Gretchen. Era do conhecimento geral que a vizinha se dava bem com os seus homens.

Mas Karen, na defensiva, atirou:

* Porque dizes isso?

Amanda só respondeu passado um bocado:

* Estava a pensar se algum dos homens que esteve lá a trabalhar não teria dado um sinal ou feito um comentário... daqueles de homem a homem, implicando que andava com a Gretchen. Achas que vai mudar de casa?

Apaziguada, Karen tornou a pousar os cotovelos nos joelhos.

Por enquanto não. Disse-me que estava a decorar o quarto do bebê. Tinha a camisa toda suja de tinta.

Amanda imaginou o quadro. Faria a mesma coisa se estivesse grávida. Sonhara tantas vezes com a decoração de um quarto de criança que já nem conseguiria contá-las: uma cor aqui, outra acolá, um remate estampado, uma grande cadeira de baloiço. Fora supersticiosa o bastante para esperar, mas não lhe servira de nada. Talvez devesse decorá-lo mesmo. Se calhar não era mau algum sinal de empenho da sua parte. Podia pintar, comprar móveis, pendurar mobiles, encher as estantes de peluches... se sentisse o coração despedaçado ao passar por um quarto assim todos os dias da semana, seria pior do que estar sempre a ver uma divisão cheia de caixotes que deviam ter sido arrumados e deitados fora há muitos anos?

Eram caixotes que continham recordações das suas vidas antes do casamento. Em cada um deles estava escrito o seu nome ou o de Graham. Aqui não havia nenhuma fusão do casal. Metaforicamente falando, seria esse o problema?

Karen deu uma última passa no cigarro antes de o apagar na parte de baixo do degrau:

* A Geórgia deve chegar amanhã. Vamos ver o que dirá disto tudo.

* Deve estar preocupada com a possibilidade de a Allison beber.

* Refiro-me à Gretchen. De todos os possíveis suspeitos, o Russ é o que tem mais oportunidades.

Amanda teve vontade de responder que Russ respeitava muito Geórgia para a enganar, mas isso implicaria que Lee não respeitava Karen... o que até era verdade, mas não valia a pena esfregar-lho na cara. De resto, quem era Amanda para julgar os outros? Lee já tivera vários casos amorosos e passava muito tempo no jardim de Gretchen, isso era um facto. Mas Graham também lá estivera em Outubro... uma hora aqui e outra ali. Se havia uma lista de suspeitos, Amanda tinha de o incluir.

 

A casa estava silenciosa. Graham costumava ter música, normalmente suave, tipo Alison Krauss ou Darrell Scott, de quem muito gostavam, mas não se ouvia nada. E também não havia sinais de que tivesse comido. A cozinha estava impecável.

Dantes, não havia muito tempo, Amanda chegava tarde a casa e encontrava o jantar no fogão. Graham sabia como ela gostava daquela sensação de regresso ao lar. A sua vida antes dele tivera muito pouco de caseiro, o que a levava a apreciá-lo ainda mais.

Naquele momento, apetecia-lhe muito sentir-se em casa. Apetecia-lhe, sobretudo, ser acarinhada.

Mas ele não fizera o jantar.

Não importava. Não tinha fome.

O telefone tocou. Esperou um pouco. Podia ser que Graham atendesse do escritório. Como não o fez, foi atender quando tocou pela quarta vez.

* Está?

A cunhada, Kathryn, não esteve com meias medidas:

* O Gray telefonou ao Joe e ele ligou-me. Lamento muito, Amanda. Estás bem?

De momento, estava era aborrecida. Não percebia porque tivera Graham de telefonar tão depressa ao irmão.

* Estou.

* Vais ver que resulta da próxima. Três é a conta que Deus fez. Para Kathryn, sem dúvida. Tinha três filhos, três cães, trabalhava três dias por semana e gozava três semanas de férias. Amanda dejava-a. De resto, também invejava os outros O'Leary. Parecia para eles, a vida se encaixava sempre no sítio certo.

As coisas não eram assim tão fáceis para Graham e Amanda, que ainda nem conseguia pensar na próxima vez.

Não desanimes - dizia Kathryn. - Vais ver que terás o teu bebê. Os O'Leary nunca falham. Não estejas triste, querida. Mas não é só por isso que telefono. Não te esqueças de domingo. Combinámos às três. Está bem?

* Claro.

* Não tragam prendas. A mãe não quer prendas de anos.

* Eu sei.

* Trazes um pudim?

* E feito com uísque Paddy, de acordo com as instruções da tua avó. - Não se fazia pudim irlandês sem uísque irlandês. Amanda soubera-o logo da primeira vez que estivera com o clã O'Leary. Não se comia pudim irlandês (pelo menos não numa casa O'Leary) sem se fazer um brinde com Paddy.

* A mãe vai adorar - continuou Kathryn. - Foi ela que te deu a receita?

* Não, foi a MaryAnne.

* Ah! Está bem. A MaryAnne sabe fazê-lo. Não te esqueças de que não podes usar natas já batidas. Para ficar perfeito, tens de ser tu a batê-las. E devem ser frescas. Não podem ser de lata. Uma vez tentei, para simplificar, e acredita que se nota a diferença. Já fiz esse pudim aí umas cem vezes. Se tiveres dúvidas, telefona-me. Vemo-nos no domingo às três?

* Lá estaremos.

Amanda desligou, desejando de todo o coração que o aniversário da sogra fosse em qualquer fim-de-semana menos naquele. Não que Amanda não gostasse da família de Graham. Adorava as suas irmãs e irmãos, maridos e mulheres e filhos. O problema era Dorothy. Pondo de lado a exuberância de Kathryn (na verdade, a sua manipulação, pois fora ela que decidira quem levaria o quê), Amanda não tinha nada a certeza de que Dorothy ficasse satisfeita por ser ela a fazer pudim da família O'Leary.

Dorothy nunca aceitara Amanda. Era quase como se a culpasse por estragar o primeiro casamento de Orariam, embora este já tivesse chegado ao fim muito antes de os dois se conhecerem. Até o processo moroso que levara à sua anulação pela Igreja já terminara antes daquele dia em Greenwich.

Se Amanda fosse católica, talvez Dorothy reagisse de maneira diferente. Fora isso, ter um bebê O'Leary também ajudaria. Mas não estava a ser fácil.

Sentindo-se cansada e fraca, Amanda atravessou o vestíbulo às escuras em direcção à sala de estar e deixou-se cair no sofá mais próximo. Era fundo e almofadado, diferente dos móveis feitos por medida de que a mãe gostava, mas apaixonara-se por ele logo que o vira, quando ela e Graham tinham andado a comprar mobílias. A escolha do marido fora mais física: Graham andara de sofá em sofá, dando pulinhos e sentando-se de várias maneiras, para se assegurar do seu conforto. No fim, o acordo fora total.

Encostou-se para trás como ele fizera na altura e deixou-se afundar nas almofadas. Não acendeu a luz. A escuridão amparava-lhe os pensamentos como o sofá lhe amparava o corpo. Sentia-se esgotada tanto a nível físico como mental. Precisava de Graham. Só não tinha a certeza de que queria tudo o que o acompanharia naquele momento.

Quando ouviu a porta da cozinha a abrir-se, pensou com os seus botões que devia sentir-se grata por o marido se preocupar com ela o suficiente para sair do escritório mal a sentira regressar.

* Mandy? - chamou ele.

* Estou aqui.

Ouviu os seus passos abafados nos mosaicos da cozinha e depois no soalho do vestíbulo. Pararam no arco da sala de estar. Sabia que, se olhasse para trás, não veria mais do que umas polegadas entre o arco e a cabeça dele. Já o observara muitas vezes do sofá onde estava sentada naquele momento. Já o vira muitas vezes aproximando-se com desejo nos olhos que significava deitarem-se ali mesmo, no tapete

Tinham feito amor em quase todas as divisões da casa. Mas não rescentemente. Nos últimos tempos faziam-no na cama, de quarenta e em quarenta e oito horas, no período da ovulação, quando era mais provável que engravidasse.

De momento, não olhou para trás nem se mexeu.

Estás bem? - perguntou ele com tanta ternura que os seus olhos marejaram-se de lágrimas.

* Estou.

* Queres um chá?

* Não, obrigada. - Deixando rolar a cabeça na almofada, estendeu a mão a Graham. Não queria discutir. Amava-o.

Parecendo apreciar este gesto, ele pegou-lhe na mão e beijou-a enquanto se deixava cair no sofá, ao seu lado. Amanda sentiu os seus lábios quentes nos dedos.

* Estavas a trabalhar? - indagou ela, aconchegando-se e sentindo-se envolvida pelo seu calor.

Ele levou a mão ao coração e esticou as pernas:

* Tentei. Como não estava inspirado, fui dar uma volta. Cheguei mesmo agora e vi o teu carro.

* Não te vi. - Mas devia ter passado por ele ao descer a rua.

* Estive na mata. Atravessei o cemitério e não vi fantasmas. Costumavam brincar a propósito da mata, que começava atrás da casa dos Tannenwald e se estendia ao longo de hectares de área protegida. A zona não era rica apenas em abetos, carvalhos, bordos, bétulas e todos os tipos possíveis e imaginários de musgos e fetos. Tinha também muita história, a começar pelas pedras tumulares tão antigas que quase não conseguia decifrar-se o que diziam. Era por isso que Amanda e Graham gracejavam muitas vezes de forma irreverente, dizendo um ao outro que um dia os fantasmas daquela boa gente iriam atrás deles.

Em tempos, também houvera lá casas. Quem não soubesse, poderia facilmente cair no buraco de uma velha cave de pedra. E os mais audaciosos talvez tentassem escalar a única estrutura que permanecia de pé, uma torre construída com as mesmas pedras toscas que co punham os muros baixos espalhados pela mata. Tinha doze metros altura. Cada um dos seus quatro lados afunilados tinha uma largura três metros e meio na base e de um metro e meio em cima. As esca das que havia outrora no interior tinham desaparecido, ficando apenas um receptáculo escuro que abrigava folhas em vários estados de decomposição. Mas nada disto desanimava as pessoas. As paredes exteriores, inclinadas para dentro, dispunham de muitos apoios para os pés.

Teciam-se tantas histórias à volta da torre (dizia-se que tinha lá dentro animais mortos, pessoas mortas) como brejeirices sobre o cemitério, mas não havia factos que comprovassem nada. Ninguém sabia ao certo se fora construída pelos índios ou pelos primeiros colonos, tal como ninguém podia jurar que era assombrada. Tudo o que sabiam era que os que a escalavam não conseguiam descer. Acontecia vezes sem conta e não apenas com crianças. Era muito freqüente os bornbeiros terem de levar escadas para ajudar adultos a descer. O pior era que cada escalada e cada salvamento deixava as pedras mais periclitantes. Algumas tinham sido deslocadas por um tremor de terra recente e a estrutura fragílizara-se mais do que nunca, mas não havia nada a fazer. Os protestos eram tantos sempre que as autoridades sugeriam que se arrasasse a torre que estas acabavam por arquivar o assunto. O sentimento geral era que, se havia fantasmas, tinham todo o direito a ocupar aquele espaço.

Amanda esboçou um sorriso com os esforços de Graham para se mostrar alegre.

* A mata é arriscada à noite.

* Não mais do que a escola. Ficou tudo resolvido?

* O castigo do Quinn, sim, mas não os seus problemas. Porque ele tem problemas, Gray. Não foi um miúdo feliz o que vi hoje. Disse aos pais que gostaria de falar com ele, que até nos poderíamos encontrar fora da escola e que ninguém saberia que não estávamos a discutir qualquer coisa relacionada com a turma.

* Recusaram?

* completamente.

* Deve ser uma frustração para ti.

Pois é.

Chegou-a mais para si com o braço seguro sentindo-lhe as costas ela sentiu-se a apaixonar-se outra vez pelo seu tamanho, cheiro sensibilidade para consigo. Não havia tensão entre eles naquele momento. Nada no mundo os poria de mal um com o outro. Pareces cansada - disse ele com ternura.

* E estou.

* Às vezes penso que é comigo.

* O quê?

* Que não queres falar comigo.

* Porque dizes isso?

* Podias ter telefonado hoje à tarde. Estava à espera. - A voz permanecia terna, mas as palavras endureceram. - Não és a única interessada, sabes?

com os braços passados em volta das suas costas, Amanda afastou-se para o ver melhor, mas ele tinha o rosto na sombra.

* Interesse... Que palavra impessoal!

Inclinando-se ainda mais para trás, Graham encontrou o seu olhar.

* Foi no que se tornou: impessoal. Um projecto. Nunca esperei que se prolongasse tanto. Por esta altura, já devíamos ter filhos. Não percebo porque não temos.

De repente, tinham regressado ao ponto de onde haviam partido, mas agora ela estava mais cansada e mais na defensiva. Perdera a cabeça com os pais de Quinn e receava fazer o mesmo com Graham.

* Parece-me que tentámos descobrir. Que queres que faça?

* Que engravides. Não te disseram nada na última tentativa?

* O quê, por exemplo? - perguntou Amanda, virando-se para o fitar olhos nos olhos. - Se tivessem dito, não achas que te teria contado? Foi exactamente como das outras vezes. Fizeram-me uma ecografia, mediram-me os folículos dos óvulos e disseram que estava na altura. Parecia que corria tudo bem.

Graham levantou-se e dirigiu-se à janela. Regressou depois de olhar a escuridão durante um momento, mas desta vez para o sofá em frente. com um metro e meio de tapete persa e uma grande mesinha quadrada entre eles, sentou-se para a frente com os cotovelos apoiados nos joelhos.

* Só perguntei, Amanda. Sinto-me frustrado.

* Não perguntaste. Acusaste.

* Não é verdade. Se ouviste assim, o problema é teu.

* Não, o problema é nosso. - Virou a cabeça e fechou os olhos. Não queria pensar em nada.

* E a seguir? - indagou ele.

Amanda não respondeu. A idéia de começar outro ciclo, outra ronda de Clomid, outro mês de tabelas, temperaturas e ansiedade dava-lhe volta ao estômago.

* Disseram que talvez fossem necessárias três tentativas para a inseminação artificial dar resultado - observou Graham, parecendo tentar dominar a situação ao raciocinar em voz alta. - Ainda temos uma. Ainda temos o ICSI ou a F1V.

Noutra noite qualquer, Amanda poderia descrever em pormenor cada um destes procedimentos. Ela e Graham estavam dois especialistas na matéria. Naquele momento, no entanto, não suportava nem pensar no significado destas iniciais.

* Não - disse baixinho.

* Não o quê? Não à terceira tentativa?

Amanda não conseguia mexer-se. As pernas pesavam-lhe como chumbo e sentia o coração apertado:

* Não às três - afirmou em voz sumida. Houve um silêncio.

* Não às três? - alarmou-se Graham. - Explica lá isso melhor. Ela abriu os olhos, tentando encontrar uma justificação, mas as únicas palavras que lhe saíram foram:

* Estou cansada.

* Disto? De mim?

* De mim. Da vida que levo.

Queres desistir?

Não. Quero parar por um tempo. Preciso de descansar.

Agora? Meu Deus, Amanda, não podemos parar agora!

Durante um mês. Só um mês, Granam. Não vai fazer diferença

e talvez até ajude. Como quando tentamos perder peso e seguimos uma dieta tão rigorosa que parece que o corpo se fecha. Se interrompermos a dieta por um ou dois dias e comermos coisas completamente diferentes, o corpo dá um abanão e começa a perder peso outra vez.

* Desde quando percebes de dietas?

* Desde que tomo Clomid e engordei quatro quilos.

* Onde estão eles?

* Agora em lado nenhum. Perdi-os, mas tive de me esforçar.

* A Emily disse que podia ser?

* Não. Não fiz grande coisa. Só tive atenção ao que comia.

* Amanda, ou estás a ser seguida ou não estás. Devias ter-lhe dito.

Ela cruzou os braços.

* Está bem, digo-lhe amanhã. Mas se pensas que foi por isso que não engravidei, desengana-te. É verdade: a Gretchen está grávida. A Karen foi lá perguntar. Não me enganei. Aliás, sei o que vi.

Ele não reagiu.

* Demos voltas à cabeça a pensar quem seria o pai. Graham permaneceu em silêncio.

* Não vejo a tua cara - disse Amanda. - Estás chocado? Horrorizado? Preocupado?

* Preocupado? com quê?

* com o facto de alguém poder pensar que és o pai.

* O quê?

* Ela está grávida de sete meses. Ou seja, engravidou em Outubro. Nessa altura, andaste a trabalhar com ela.

* A planear o jardim.

* Estiveste dentro de casa.

* Nem acredito no que estás a insinuar - respondeu ele, depois de um silêncio.

Zangada por ele não se ter logo defendido com unhas e dem Amanda comentou:

* Se enfías o barrete,

Ele saltou do sofá num abrir e fechar de olhos.

vou esquecer o que disseste - respondeu a caminho da porta- vou esquecer e perdoar, porque quase compreendo porque o disseste. Cresceste numa casa onde os teus pais se enganavam um ao outro. O que ouvi agora mesmo foi a tua mãe a falar.

* A Gretchen está grávida - repetiu Amanda, incapaz de se calar. - Não o conseguiu sozinha. Por isso, de onde veio o bebê?

* Não faço idéia. Não sei com quem anda. Não vejo o que faz.

* Não anda com ninguém.

* Como sabes? Pode encontrar-se com alguém na cidade.

* Passa as noites em casa.

* E depois? Também se fazem bebês à luz do dia.

* Sabes muito bem o que quero dizer.

* Pois sei, mas não é preciso namorar com ninguém para engravidar. Pode acontecer em cinco minutos num corredor qualquer... um acidente de percurso, um acesso de paixão...

* Precisamente.

Houve um silêncio gelado, seguido de uma voz zangada perto do arco da entrada.

* Não sabes nada de nada, Amanda. Não sabes o que quer a Gretchen nem quem a quer a ela. Sabes lá se o bebê é do Ben, que pode ter doado esperma! Sabes lá se ela fez inseminação artificial! E foi-se embora.

Amanda não se mexeu. Logo que se fez silêncio, ouviu o eco das suas palavras e reconheceu que Graham tinha razão. Na verdade, fora falar. Crescera no meio de acusações, muitas delas verdades, haviam tido vários amantes, arranjados em retaliação d infidelidade um do outro. Não sabia até o momento quem dera o primeiro passo.   Pelo menos, não sabia a verdade. Ouvira imensas histórias, " como se cada indiscrição pudesse ser explicada por esse primeiro caso amoroso.

Se fosse a terapeuta dos pais, ter-lhes-ia sugerido que se divorciassem m Quando a confiança estava abalada ao ponto de ser irrecuperável, não havia lugar para o amor.

Mas não fora a terapeuta dos pais. Era sua filha e sentira a dor de cada batalha.

E agora acusava o marido de infidelidade, ainda por cima sem razão nenhuma! Graham era uma das pessoas mais leais que conhecia. Fora, de resto, uma das coisas que a atraíra para ele. Na sua vida toda, tivera uma única relação antes dela. Fora longa e monogâmica. Os O'Leary eram assim... outro ponto a favor de Graham. Os seus irmãos eram sólidos, generosos no que tocava a sinais exteriores de afecto e carinhosos. Nenhum deles se divorciara excepto Graham, e não por culpa sua. Amanda conhecia os factos do seu casamento com Megan, que era sua vizinha. Tinham sido amigos de infância. Ele fora sempre fiel enquanto tinham estado casados. De resto, ainda estaria casado se não fosse ela.

Mesmo sabendo-o, Amanda nunca pusera em dúvida o amor de Graham. Era o desejo que a preocupava. Conhecia as suas necessidades. Já fora o centro das suas atenções, embora não ultimamente, porque o que agora faziam na cama era deliberado e obedecia a ordens médicas. Não havia espontaneidade nem paixão despreocupada.

E do outro lado da rua, Gretchen Tannenwald... sozinha e às vezes tão parecida com Megan que era freqüente Graham e Amanda brincarem a esse respeito.

Era verdade que brincavam mas, com Gretchen grávida, talvez o palhaço fosse ela.

Censurou-se imediatamente. Não havia dúvida de que era a mãe a pensar. Mas como afastar tais idéias?

Onde estaria Graham? Foi ver à cozinha e lá acima, ao quarto, mas nada. Espreitou até no que deviam ser os quartos das crianças. Estavam vazios.

Uma parte dela queria ir lá fora. Graham devia ter-se refugiado no escritório.

Mas a outra parte precisava de se proteger da sua frieza. Entrando na salinha ao lado do quarto, estendeu-se no sofá, puxou uma manta até ao queixo, fechou os olhos e tentou não pensar em nada. Começou a respirar profundamente, encontrando o ritmo que não conseguira durante todo o dia. com o tempo, adormeceu no sofá.

Graham não a acordou. Na quarta-feira de manhã, no entanto, estava à sua espera na cozinha, com os lábios cerrados e as grandes mãos apertando a caneca do café. Uns olhos verdes e severos cravaram-se nela logo que entrou.

 

Antes que algum dos dois conseguisse dizer alguma coisa, o telefone tocou. Embora Amanda se encontrasse mais perto, foi Graham quem chegou primeiro ao auscultador.

* Está? - Passados segundos, o seu rosto iluminou-se. - Olá! Tudo bem?

Amanda enfiou as mãos nos bolsos. Conhecia aquela expressão e aquele ton de voz. Havia algum tempo que não eram para ela. Tinha saudades.

* Então? - perguntou ele, com os olhos já menos brilhantes. Virando-se, continuou em voz mais baixa: - Agora não... Sim... E se for à tarde? - Ouviu, baixando a cabeça. - Não posso. Tenho que fazer. À uma?... Está bem. - Desligou o telefone e virou-se. Havia um desafio nos seus olhos.

Quando percebeu que ele não ia dizer nada, Amanda teve vontade de lhe perguntar quem era, mas receou parecer desconfiada. E as desconfianças eram com a mãe, não com ela.

Por isso, ignorou o telefonema e disse:

* Devias ter-me acordado para me ir deitar na cama.

* Ainda bem que não foste. Estava aborrecido. Ainda estou. Não gosto que me acusem, Amanda, sobretudo de coisas assim. Eu não te engano.

* Eu sei.

* Pois olha que não parece.

* Desculpa.

* Falaste com o ton de voz da tua mãe. Juro que sim. Nunca te ouvi falar assim. Fiquei com medo. Não casei com a tua mãe, casei contigo. Não quero a tua mãe. Se vais ser como ela, temos um problema entre mãos.

* Já temos um problema - replicou Amanda, com as idéias mais arejadas depois de um bom sono. De resto, passara os factos em revista durante os poucos minutos que estivera na casa de banho.

* Pois é - murmurou Graham. - Infertilidade.

* Não. A maneira como lidamos com os factos. Foi o primeiro problema que tivemos de enfrentar juntos. Não estamos a dar conta do serviço.

* Eu estou. Tu é que queres dar à sola.

Ela inclinou a cabeça. Depois, inspirando profundamente, levantou os olhos.

* Não é dar à sola. Só não quero estar constantemente a pensar no mesmo. Temos de voltar a concentrar-nos em nós durante algumas semanas.

Ele observou-a. Amanda tentou identificar a sua expressão, mas não a conhecia. Tanto podia ser de cólera como de desilusão ou desdém.

* Não vou desistir de ter um filho, mas acho que precisamos de um período de descanso - apressou-se ela a continuar suavemente.

Graham levou as mãos às ancas:

* E que digo à minha família? Esperava poder anunciar boas novas na festa da minha mãe.

* Eu também. Mas não podemos. Francamente, sinto-me pior por nós do que por eles. Afinal de contas, a vida é nossa.

* Eles querem o bebê por nós.

* Pode ser, mas não são nós.

* Isso é que são. São eu. Não me vejo separado deles.

* Pois não, não vês - concordou ela. Ele pousou as mãos no balcão:

* Ou seja...

* Ou seja que nenhum de nós pode cortar com as suas origens. Não por completo. Se te pareci a minha mãe, não foi de propósito, Graham. Sabes muito bem o que penso dela.

Sei, mas também pensei que sabia o que pensas a meu respeito... costumavas confiar em mim.

* E confio.

* Acusaste-me de ser o pai do filho da Gretchen. Amanda suspirou:

* Desculpa. Estava zangada. Tenta entender as coisas do meu ponto de vista. Há meses que o sexo é trabalho para nós. Não é um disparate pensar que alguns homens que passam por isto tudo sejam tentados a irem divertir-se noutro lado.

* Não sou alguns homens. Sou teu marido. Ofende-me até que penses que sou capaz de te enganar.

* Já pedi desculpa.

* Sabes como me fizeste sentir?

De momento, só sabia que era ele que a fazia sentir-se traiçoeira e desleal.

* Não podemos ultrapassar isso, Graham? Meu Deus, não te faças de inocente.

* O quê? - indignou-se ele.

* Olha, já te pedi desculpa mais de uma vez, já te disse que confio em ti e tu não te calas. Se estás inocente, esquece.

Graham empertigou-se, com os olhos muito frios:

* Se? - Levantando as duas mãos, preparou-se para sair. - Já é de mais. - Atravessou a cozinha e bateu a porta antes de ela poder dizer fosse o que fosse.

Alguns minutos depois, sentada no seu quarto de hotel com um bule de café num tabuleiro pousado na secretária e uma chávena quente na mão, Geórgia ligou para casa. Imaginava o quadro quando o telefone tocou a primeira vez: Tommy devorando o leite com cereais, Allison quase engasgando-se com a torrada na pressa de atender e Russ ganhando-lhe aos pontos ao estender o braço de onde estava ao fogão, cozinhando ovos.

* Está? - disse ele.

Ela sorriu:

* Olá! Sabia que ias atender tu. Para quem são os ovos?

* Para mim. Não é que não tenha oferecido proteínas à nossa prole... Não - continuou para o lado -, de acordo com os estudos mais recentes, os ovos não matam ninguém, Allie. - Ouviu qualquer coisa que Geórgia não percebeu e soltou uma risadinha.

* Que disse ela? - perguntou Geórgia.

* Que esperasse uma semana. O próximo estudo dirá outra coisa. Miúda esperta!

* Miúda cínica, queres dizer - corrigiu Geórgia. - Que aconteceu ontem à noite?

* Nada de especial.

* E o Quinn? fr

* Muita conversa.

* Ela está bem?

* Claro.

* E tu? Passaste bem o serão?

* Passei. Não tinhas um pequeno-almoço de trabalho?

* Adiaram meia-hora. Mas ainda apanho o avião. Se houver problema, telefono.

* Talvez não esteja em casa. vou almoçar com o Henry. - Henry Silzer era o editor de Russ.

* Oh! Não sabia.

* Eu também não. Ligou-me ontem à noite. Teve uma vontade súbita de sair da cidade e de me proporcionar algum exercício. Adora almoçar na Inn.

Geórgia também:

* Que inveja! bom almoço! Posso falar com a Allie?

* Está a abanar a cabeça. Pronto, foi-se embora. Porque não pó- dês falar? - gritou. Depois de esperar um bocado, continuou. - Diz que está desgrenhada e que precisa de se ir pentear.

* Então o Tommy.

* Foi-se embora antes dela. Tinha a boca muito fechada. Espero que o arame não lhe tenha saltado outra vez do aparelho. É melhor ir ver. Volta depressa, querida. Boa viagem!

Ficando sem ouvir mais nada além do silêncio do quarto de hotel, Geórgia pousou o auscultador.

Karen fazia panquecas para o pequeno-almoço e misturou à massa uma chávena de mirtilos, não tanto porque estavam a bom preço no supermercado ou porque os filhos adoravam, mas porque Lee não gostava. O marido preferia as panquecas sem nada.

Também ela preferia homens fiéis! As pessoas nem sempre tinham aquilo que queriam.

* Onde está a cara? - perguntou Julie por trás dela, parecendo muito desconsolada ao olhar para as panquecas.

* Hoje não há cara - respondeu Karen. - Não tenho tempo.

* Agora nunca tens tempo.

* Claro que tenho. - O que não tinha era paciência. Não andava com disposição para dispor os mirtilos de modo a formar um rosto sorridente, com olhos, nariz e boca.

* Também não tiveste da última vez. Posso fazer isso?

* É um bocadinho difícil virá-las, mas está bem. Tenta. - Entregou a espátula à filha, pegou-lhe na mão e ajudou-a a virar umas poucas panquecas. - Boa! Agora come. Olha que a tua fica fria. Que é isso? - perguntou aos gêmeos, que estavam a pôr as mãos sujas de doce nos pratos um do outro.

* Estamos a trocar mirtilos - explicou Jared. - Os dele são mais azuis.

* E os dele maiores - acrescentou Jon.

* Cuidado! Que porcaria! Argh! - gritou, quando se entornou um copo de sumo. Pegando num pano, enxugou o liquido. Enquanto se sentava à mesa, olhou para Jordie, que tinha a cabeça enterrada na seccão de desporto do jornal. -Alguma coisa interessante? - perguntou.

Ele resmungou qualquer coisa que ela não percebeu.

Emitindo um som de frustração, regressou ao fogão. Lee entrou dali a pouco. Estava vestido para ir trabalhar, com um pólo e calças de ganga, mas mesmo assim mais elegante do que a maioria dos seus empregados. O cabelo, no entanto, revelava a sua necessidade de fazer parte do grupo: pintado havia pouco, estava mais louro do que ruivo. Lee pusera-lhe gel e penteara-o com os dedos.

* Bom-dia, bom-dia... bom-dia, bom-dia - saudou, passando pelos filhos a caminho da sua cadeira. Uma vez sentado, arrancou a secção de desporto a Jordie, que pegou logo no prato, levou-o para o lava-loiças e saiu.

Karen serviu-lhe café e pousou a chávena atrás do jornal com uma pancada seca.

* Querem mais panquecas? - perguntou aos gêmeos, que resmungaram qualquer coisa parecida com "não". Ou seja, tudo o que restava na frigideira era para Lee. Karen serviu-o e pousou o prato com outra pancada seca. - Jon, Jared, lavem-me essas mãos antes de saírem. Vamos pentear-te, Julie. - Fez um gesto na direcção da casa de banho.

Escovou o cabelo da filha, fez-lhe um rabo-de-cavalo e prendeu-o com uma fita azul, para dar com o cãozinho azul que tinha na camisa. Do fundo das escadas, gritou aos gêmeos que não se esquecessem de pôr nas mochilas uma muda de roupa para o passeio da turma.

* Tudo pronto? - perguntou a Jordie, que desceu e passou por ela a correr. - Até logo. - A única resposta que recebeu foi um gesto de cabeça, antes de o rapaz sair porta fora. - Até logo, mãe - murmurou entredentes. - bom pequeno-almoço, mãe. Espero que o dia te corra bem, mãe. - Sentindo uma onda de desespero, regressou à cozinha.

Lee estava absorto no jornal. Fitou-o muito aborrecida, pensando e caso se passasse alguma coisa com Jordan, a culpa era sua com o exemplo que dava. Lee pensava em Lee. Se queria uma secção do jornal servia-se, pouco lhe importando se alguém a tinha primeiro. Podia ser que fosse carinhoso e divertido com os filhos, mas só quando ]he convinha. Se queria silêncio, obtinha-o. Se queria sair, saía. Jordie começava a ser como ele.

Pegou na taça da massa que estava em cima do fogão, levou-a para o lava-loiças e despejou-a pelo ralo. A seguir, pousou-a com brusquidão e pôs a água a correr. Já estava cheia quando voltou com a frigideira e a espátula, que molhou e começou a esfregar.

* Aconteceu alguma coisa? - perguntou Lee.

* Não. - Esfregou com mais força.

* Que planos tens para hoje?

Não tencionava contar-lhos. Alguns estavam no calendário mas, se queria fazer o que não devia, que se preocupasse com os outros.

* Karen?

* O costume. - Passou a frigideira por água. - Vens jantar?

* Venho.

Já ouvira muitas vezes a mesma resposta convicta, mas Lee não tinha qualquer problema em mudar tudo à última hora. Os seus esforços para jantar em família não eram prioridade para ele. Pousando a frigideira no escorredor, Karen olhou para o prato dele por cima do ombro. Ainda tinha metade da panqueca.

* Não queres mais?

Ele espalhou pedaços de panqueca com o garfo:

* Gostava que fizesses a minha sem mirtilos. Sabes muito bem que não gosto.

Antes que ele pudesse dizer mais uma palavra, tirou-lhe o prato da frente e meteu-o no lava-loiças.

* O que tens? - perguntou ele. Por um momento, apeteceu-lhe dizer que nada. Era pacifista por natureza. Detestava ondas.

Nos últimos tempos, no entanto, andava a reparar em coisas que conhecia de ginjeira: Lee usando uma água-de-colónia nova para disfarçar o cheiro de alguma mulher ou demorando-se no ginásio na ter uma desculpa por chegar a casa com o cabelo molhado. Não jan tava com eles pelo menos uma vez por semana e não dera qualque explicação por chegar atrasado ao jogo de basebol dos gêmeos. andava mais contente e menos exigente a nível sexual. Eram duas coisas que só encaixavam se estivesse metido com alguém.

Só a idéia já era má, mas então se o caso fosse com Gretchen (a vizinha! ), a indignidade seria de mais para Karen.

Apertando o pano da louça, virou-se de frente para ele.

* A Gretchen está grávida. Sabes de alguma coisa?

* Que Gretchen? A nossa vizinha?

Karen conteve-se. Gretchen não era um nome vulgar. Não conheciam mais nenhuma Gretchen. Karen, pelo menos, não conhecia.

* A Gretchen está grávida? - perguntou Lee.

Parecia surpreendido de verdade, o que, no entanto, não dava a Karen nenhum conforto. Gretchen dissera que o pai não sabia e que tinha outras obrigações. Lee encaixava no quadro.

* Desde quando está grávida? - indagou ele, carregando o cenho.

* Desde Outubro.

* Uau! A sério? - Franziu as sobrancelhas para Karen. - Porque estás zangada?

* Não estou zangada, mas sim preocupada. Diz-me a verdade: tocaste-lhe?

* Eu? Ela é mulher do Ben.

* A Susan era mulher do Arthur. A Annette era mulher do Don. Além disso, o Ben morreu. A Gretchen está livre.

Ele empurrou a cadeira para trás e levantou-se.

* Estás a acusar-me, Karen?

* Não, estou só a perguntar.

* Pois olha, a resposta é não, não toquei na Gretchen. Que raio de idéia!

Karen teria pedido desculpa e deixado de ficar desconfiada se não houvesse cheirado a água-de-colónia. Mas mesmo fora isso, havia outros factos.

Estás sempre a falar dela, sempre a correr para lá não vá precisar de alguma coisa.

Vive sozinha e nós somos seus vizinhos Vocês tratam-na como a pária, quando o seu único crime foi casar com alguém a quem a primeira mulher tinha morrido. Não me parece que isso seja um crime. Sinto-me mal por ela e por isso ajudo-a. Há coisas que as mulheres não conseguem fazer sozinhas.

* Bebês, por exemplo. Ele levantou a voz.

* Por exemplo, pias que vertem ou sanitas entupidas. Oh, Karen, são coisas que também faço cá em casa. Achas que devia ser ela a fazê-las?

* Não pode chamar ninguém?

* Porquê, se tem vizinhos que podem ajudar? O Russ e o Graham também já a ajudaram. Vais fazer-lhes a mesma pergunta que me fizeste a mim?

* Não. É contigo que estou casada. É com os teus filhos que me preocupo.

* Os miúdos não têm nada a ver com isto.

Depois de pensar um pouco, Karen respondeu, medindo as palavras.

* Mas ficam aqui sentados a ouvir enquanto te babas com o quadro que ela tem na parede...

* Que queres? É lindíssimo.

* a ouvir-te dizer que é erótico e sedutor.

* Tal como metade do que passa na televisão - opinou ele. Não é bom falar disso à vontade para os miúdos saberem que podem contar-nos seja o que for? Não é o papel dos pais nos tempos que correm? "

Era. Mas Lee ia longe de mais com o quadro... tanto que não se distinguia bem onde acabava o quadro e começava Gretchen. Pelo menos, na cabeça de Karen.

* Olha, um de nós tem de ensinar aos nossos filhos que há paixão na vida - escarneceu Lee, parecendo um adolescente zangado de cabelo no ar.

Karen retraiu-se.

* Eu sou apaixonada.

* Por causas e não homens. Nunca tomas a iniciativa.

Era verdade. Sentiu um momento de culpa, mas controlou-se. Lee arranjava sempre maneira de lhe atribuir o problema a ela, mas desta vez não ia conseguir.

* Pois não - disse calmamente. - Nem preciso, porque tu chegas sempre primeiro. Ultimamente é que não, o que me faz pensar.

* Espero um sinal teu.

* Mas nunca esperaste. Chegavas a casa com duas coisas na cabeça: sexo e basebol. Gostava de descontrair tanto como tu ao fim do dia, mas o meu dia não acaba assim num abrir e fechar de olhos. Tenho milhões de coisas para fazer.

* Dá graças por não trabalhares.

* Eu trabalho - indignou-se ela.

* Sabes muito bem do que estou a falar.

* Não, não sei. Gostava que me desses valor pelo menos uma vez na vida. Tens uma vida muito boa, Lee. Faço por ti aquilo que não há muitas mulheres que façam pelos maridos. Se eu "trabalhasse", como dizes, terias bem menos. No entanto, pões tudo em risco com as tuas escapadelas.

* Já lhes pus ponto final - disse ele, empertigando-se. - Fiz-te uma promessa e tenho-a cumprido. Dei-te razões para desconfiar?

* Ultimamente não - mentiu, porque não queria desconcentrar-se. - Até isto da Gretchen, não.

* Não toquei na Gretchen.

Ela observou-o, cheia de vontade de acreditar nele, mas não se atrevendo. Já ficara mal tantas vezes! Gesticulando, Lee levantou a voz.

* É extraordinário! Seja o que for que eu faça ou diga, nunca ficas satisfeita! Não te contentadas nem que eu fizesse votos de castidade.

* Chiu! - Karen olhou para a porta.

* Raios, se me apetecer, grito! Os filhos deviam saber que os pais discutem. Deviam saber que as mães fazem acusações que têm de engolir, e tu vais engolir esta, Karen. Ouve bem o que te digo: vais engoli-la. Juro.

Saiu porta fora no momento exacto em que Julie entrou, de orelha murcha.

* Onde vai o pai?

* Trabalhar.

* Não me deu um beijo - protestou a criança em voz magoada. "Nem a mim", pensou Karen, desejando sentir-se magoada. Após anos de desenganos, no entanto, estava imune, o que era triste.

Logo que chegou à escola, Amanda não pôde deixar de reparar nos zunzuns que enchiam o ar. Reunidos em grupinhos, os estudantes lançaram-lhe olhares apressados quando saiu do parque de estacionamento. Como ainda ia absorta nas discussões domésticas, ao princípio pensou que eles conheciam os seus pontos fracos.

Não pode ter filhos.

Trabalha com os filhos dos outros porque não pode ter os dela.

Os que não podem ter filhos, vão para o ensino.

Mas claro que não era isto o que diziam.

* Muito bem - começou, aproximando-se de um grupo. Que foi que ouviram dizer?

Era um grupo de cinco rapazes, todos caloiros.

* O senhor Edlin chamou mesmo a polícia? - perguntou um.

* Não. A polícia não sabe nada do que se passou.

* Tanto faz, se ele vai ser expulso da escola - comentou outro.

* Ficará marcado para sempre.

* Ele não vai ser expulso - corrigiu Amanda. - Vai ser suspenso da equipa. Se fizer o próximo ano sem problemas, ficará com a ficha limpa.

* Os pais vão processar a escola - observou um terceiro.

* Não ouvi dizer nada. O senhor Edlin há-de falar no assunto na assembléia da primeira hora. Ele vai dizer-vos o que é verdade e o que não é.

* E o que é justo e não é?

* Também há-de falar nisso, está bem?

* Está.

Seguindo para dentro do edifício, pousou as suas coisas no gabinete. Tinha que telefonar' para a clínica a dar as más notícias. Também tinha que ligar a Graham, mas só a idéia de qualquer destas conversas chegava para lhe dar volta ao estômago.

No entanto, estes telefonemas teriam de esperar. Precisava de fazer outros: a Maggie Dodd, para se certificar de que nada mudara com respeito à situação de Quinn, e a outros orientadores das escolas da região, cujos estudantes podiam ter ouvido falar do que acontecera. Queria assistir à assembléia da primeira hora e depois tinha que voltar ao gabinete para atender um aluno durante a segunda. E tudo isto antes das dez horas. O resto do dia prometia ser assim movimentado, o que era uma bênção.

Enquanto Amanda acabava de atender o primeiro aluno e aproveitava os poucos minutos que tinha antes de aparecer o segundo para verificar se tinha alguma mensagem de Quinn no computador, Geórgia terminava o pequeno-almoço de trabalho no hotel do Texas, pegava nas malas e apanhava um táxi. Mal este avançara dois quarteirões, parou atrás de uma comprida fila de carros. Dali a minutos, tanto condutores como passageiros abriam as portas para espreitar a rua. Um dizia que houvera um acidente e outro que eram obras. Para Geórgia, tanto fazia desde que não perdesse o avião.

E enquanto Geórgia transpirava ao calor do Texas, Karen fazia os seus exercícios de rotina. Sabia-os de cor: primeiro vasculhava os bolsos das calças e depois os papéis da secretária, as pastas e as meias. Pegou nas contas recentes dos cartões de crédito e procurou despesas suspeitas, e verificou as contas do telefone em busca de números que não conhecia. Havia muito que ver: verdade seja dita, despesas e telefonemas mais estranhos do que aqueles que conhecia. Por onde começar?

Pagou em dinheiro e chegou cedo ao quarto, mas não se importava de esperar. Fazia parte do jogo. Sentia crescer o desejo a cada minuto que passava.

O quarto era daqueles novos escondidos no fundo de uma vereda ladeada de primaveras, mas tão gracioso como os que ficavam mais perto da Tnn, construída quase um século antes. Este estava decorado em tons de lilás e azul, com grandes cadeiras de verga cujas almofadas condiziam com os cortinados e a colcha. Tinha uma cama king-size com as rãzinhas da marca aninhadas perto da almofada e um jacuzzi enorme e envidraçado.

Era um sítio perfeito para uma escapadela. A recepção até ficava noutro local. Se alguém visse o seu carro estacionado atrás da Inn, pensaria apenas que estava a almoçar numa das muitas salinhas onde serviam refeições, o que lhe dava um álibi excelente.

Na verdade, era um sítio perfeito para uma escapadela, mas não a considerava apenas isso. Já andavam juntos havia vários meses. Então um caso amoroso? Sim, mas ainda mais. Uma relação. Gostava dela. Era essencial para a sua paz de espírito.

Bateram ao de leve na porta. Deu um salto da cama e foi abrir, sentindo qualquer coisa acelerar-se dentro de si quando ela entrou.

Beijou-a ainda antes de a porta se fechar e apertou-a contra os paingde madeira. Sabia a hortelã-pimenta. Mergulhou mais fundo, com von tade de chegar à sua essência, mas só a boca dela não era suficiente Abriu o fecho das calças e arregaçou-lhe o vestido curto até à cintura Ela não tinha calcinhas.

Sorrindo contra a boca dela, murmurou:

* Linda menina! - Penetrou-a longamente. Afastou então a cabeça, fechou os olhos e ficou quieto, concentrando-se no prazer que sentia. Era apertada, o que lhe agradava. Não tivera muitos homens na vida, o que também lhe agradava. Ela começou a soltar aqueles suspiros trêmulos que lhe anunciavam o desejo. Querendo ouvir mais, ele meteu a mão entre os dois e, acariciou-a até já não conseguir ficar quieto por mais tempo. Bastou uma única e lenta penetração. Ela gritou de prazer, segundos antes dele.

Passado algum tempo, despiu-a. Sem tirar os olhos do corpo dela enquanto se despia, abriu a cama e empurrou-a com doçura para os lençóis lilases. Quando a viu deitada, tocou-lhe. Tinha os seios cheios e a barriga arredondada. Gostava dela assim. Gostava de mulheres voluptuosas, com uma feminilidade antiga.

* És tão bonita! - murmurou contra um seio inchado. Aspirou-Ihe o perfume e chupou-lhe o mamilo até as coxas dela procurarem as dele. Sentando-se, encaixou-se nela e observou-a, pensando que nunca estivera com nenhuma mulher tão excitante. Ela voltou a gritar de prazer e ele continuou a observá-la. Havia sensualidade na maneira como arqueava as costas, virava o rosto para os lençóis e levava a mão ao seio.

Teve um prazer intenso. Depois, com o coração batendo acelerado, sorriu-lhe. Estendeu-se de lado e virou-a para si.

* Como te sentes? "

* Melhor.

* E o médico?

* Tudo bem.

* Não é o daqui da cidade, pois não?

* Credo, não! Não sou parva.

Ele sorriu e passou-lhe o polegar pelos lábios.

Pois não, não és. - Contornou-lhe a linha direita do nariz e a

curva suave da testa. Era loura e ele sempre tivera um fraquinho por louras. - Quanto tempo tens?

Não muito. Se não voltar depressa, podem reparar. Pensam que fui ao supermercado.

* E foste. Isto é um alimento.

Ela sorriu mas ele viu-lhe a pergunta estampada nos olhos ainda antes de ela a pronunciar.

* Falaste com ela?

* Que te disse da última vez que me fizeste a mesma pergunta?

* Que era uma situação delicada. Mas esta também é.

* Ela é minha mulher. Em termos cronológicos, chegou primeiro. De resto, não sou só eu e ela. Também há que contar com a família. Falarei com ela na altura apropriada.

* Que pode levar ainda algum tempo.

* Não. As coisas estão a aquecer. Vá lá, querida, não me pressiones. Já tenho disso que chegue em casa. Preciso que sejas o meu escape.

Ela penetrou-o com o olhar.

* Mas amas-me?

* Sabes que sim.

Ela estudou-o por um minuto e sorriu.

 

Pouco antes de o autocarro da escola aparecer, Amanda descreveu a curva e aproximou-se da rua sem saída. O seu dia de trabalho ainda não terminara; tinha de voltar à escola para mais duas reuniões de pais, mas os alunos já haviam saído e estava cansada. Esperava que aquele intervalo lhe retemperasse as forças.

Na verdade, esperava que Graharn estivesse em casa. Não falavam um com o outro desde que ele saíra intempestivamente naquela manhã. De cada vez que pensava nele, sentia um nó no estômago.

Viu logo do fundo da rua que a carrinha não se encontrava à porta.

O céu carregado de nuvens não escondia que as árvores estavam mais cheias, a relva mais verde e as túlipas mais altas do que no dia anterior. O mundo desabrochava. Ela não. Sentia-se parada, mesmo ao fim de três sessões de quarenta minutos com alunos, outras seis reuniões mais curtas e muitos e-mails.

Mas nenhum de Quinn. No entanto, falara com a mãe. Aliás, fora ela que tomara a iniciativa, mas Marjorie Davis não se mostrara mais receptiva do que na noite anterior.

"Todos os rapazes bebem, nem que seja uma vez", afirmara. "É próprio dos adolescentes. A escola exagerou muito. Não se meta mais. "

Não lhe saía da cabeça a imagem de Quinn esfregando os polegares, mas não podia fazer nada excepto se o rapaz a procurasse de livre vontade. Esta impotência, a forma como correra o dia e o facto de não estar grávida faziam-na sentir-se estéril em todos os aspectos.

Parecia, no entanto, que não era a única a quem a tristeza pesava. Karen esperava pelo autocarro da escola sentada no passeio da praceta, com os ombros descaídos. Já ia acenar-lhe quando o carro de Geórgia apareceu atrás dela, vindo do aeroporto e do Texas.

Amanda parou à frente de casa, encaminhou-se para a rua e esperou à entrada da casa dos Lange. Sentiu uma certa inveja quando Geórgia saiu do carro com o ar impecável de uma mulher de negócios, vestida de preto e branco, com o cabelo curto e escuro puxado atrás das orelhas, jóias simples mas elegantes e um andar confiante. Bem, na verdade Amanda tinha de reconhecer que não ficava bem de preto e branco. A sua tez era completamente diferente, tal como a natureza do seu trabalho. Precisava de cores quentes: verde-claro, amarelo ou vermelho, a sua cor preferida. De momento, estava com umas calças e uma blusa cor de pêssego. Era uma toilette de que gostava mas, ao ver Geórgia aproximando-se, não se sentiu nem por sombras arranjada como ela.

* Que bom aspecto! - exclamou quando Geórgia chegou junto dela. - Passaste meio dia num avião e continuas impecável. Que tal correu?

* Acho que bem. - Geórgia abraçou-a e apertou-a longamente.

* O Russ contou-me do bebê, Amanda. Foi uma pena!

* Pois foi - respondeu Amanda, grata pelo apoio da outra. Tendo crescido sem irmãos e com uns pais que não se davam bem, os amigos haviam sido sempre a sua muleta. Aliás, ainda eram.

* Que vão fazer a seguir?

* Não sei. Eu e o Graham precisamos de falar. Até agora, estamos muito perturbados. - Erguendo o queixo na direcção de Karen, começou a descer o passeio. - Já sabes do Quinn?

* Já - replicou Karen, acompanhando-a. - Quer dizer, nem a Allie nem o Russ me contaram muito. - Baixando a voz: - O Jordie joga basebol com o Quinn. Também esteve metido na confusão?

* Que eu saiba não.

* A Karen não parece com boa cara.

E não parecia. Se Geórgia estava de preto e branco e Amanda de cor de pêssego, Karen parecia uma toupeira desbotada.

* Sente-se frustrada - retorquiu Amanda entredentes, atravessando para o outro lado da praceta.

* Temos de voltar outra vez a Canyon Ranch, só as três. Passo a vida a dizer-lhe isso, mas responde-me sempre que anda muito ocupada. Fazia-lhe bem.

não me parece.

* Não me digas que é o Lee outra vez - murmurou Geórgia.

* O Lee, o Jordie, o Quinn, a Gretchen... Foram vinte e quatro horas nada fáceis.

* A Gretchen? - perguntou Geórgia. - Que se passa com a Gretchen?

Karen ouviu este último comentário e disse com secura:

* Nada que mais dois meses e outros dezoito anos não resolvam. Geórgia franziu as sobrancelhas.

* Não estou a perceber.

* O Russ não te contou?

* O quê?

* Que a Gretchen está grávida - continuou Karen. - Ah, não te contou! Significará alguma coisa?

* Estás a falar de quê? Amanda teve pena dela e explicou:

* A Gretchen está grávida. Descobrimos ontem.

* Grávida? - Geórgia olhou de uma para a outra. - Tinha a impressão de que não saía muito.

* E não sai.

* Vem alguém cá?

* Que tenhamos visto, não.

* Então quem é o pai?

* Aí é que está o busílis. Parece que ninguém sabe - respondeu Amanda.

* Alguém perguntou?

Eu estive perto, mas ela não se descoseu - tornou Karen. N[o entanto, fez algumas alusões. Disse que o pai não sabia e que tiha outras responsabilidades. Isto é, podia ser qualquer um dos nossos maridos.

Geórgia soltou uma gargalhada:

Os nossos maridos? Os nossos maridos não se iam meter com a Gretchen.

* Falam bastante dela - objectou Karen.

* Todos os homens falam - replicou Geórgia. - É da natureza do bicho falar das mulheres e fazer olhinhos às que são bonitas. Mas agir, isso é diferente. Para mais, estamos a falar de uma vizinha. Nenhum dos nossos homens seria assim tão estúpido. - Sentando-se no passeio: - Como reagiu o Lee quando lhe contaste?

* Pareceu espantado. Mas ajudou-a o mês passado quando o esquentador avariou. Na altura, estava grávida de seis meses. Como é possível que não tenha reparado em nada?

* Da mesma maneira que nós não reparámos - observou Amanda. - Basta esconder a gravidez com uma camisola grande ou uma camisa do Ben. Seja como for, tem uma barriga pequena para sete meses.

* Sete meses - repetiu Geórgia. - Portanto, foi em Outubro. Quem andou por lá nessa altura?

* O carpinteiro, o canalizador, o electricista... - começou Amanda.

* E o Russ - acrescentou Karen.

A reacção imediata de Geórgia foi de irritação. Porém, compreendendo a pressão a que Karen estava sujeita, resolveu mostrar-se paciente: Em vez de negar, soltou uma risadinha:

* Não há dúvida de que ele anda por aqui. - Olhou de relance para o seu carro, sozinho à frente de casa. - Ou devia andar. Ia almoçar com o editor. Devem estar na conversa.

* Perguntei-lhe duas vezes se sabia da Gretchen - comentou Karen. - Uma antes de falar eu com ela e outra depois. Jurou a pés juntos que não sabia de nada.

* Então tenho a certeza que não sabe - afirmou Geórgia. - Se Russ não lhe dissera que Gretchen estava grávida era porque não achava importante, porque não sabia quem era o pai ou porque algum dos outros lhe pedira segredo. Ora, também poderia ter sido Granam, que trabalhara com Gretchen no Outono e que não estava a atravessar propriamente um bom período com Amanda.

Lee era, claro, o único que já tinha um passado de mentiras, mas Geórgia não era má ao ponto de o lembrar a Karen. Em vez disso, comentou, grata ao ouvir o barulho do motor do autocarro da escola.

* O Russ acha que a coscuvilhice é para as mulheres. Orgulha-se muito de não o fazer e tem razão. Pensando bem, não há motivo nenhum para sabermos quem é o pai da criança. O problema é da Gretchen e não nosso.

* Esperemos que não - murmurou Karen quando o autocarro descreveu a curva. Era um grande caixote amarelo sobre rodas, brilhante e novo como todos os autocarros escolares. Transportava as duas pessoas mais próximas e queridas de Geórgia. Lembrava-se de esperar assim quando primeiro Allison e depois Tommy regressavam do infantário, do primeiro ano e a seguir do segundo. Agora já eram mais velhos. Freqüentavam respectivamente o nono e o quinto anos, mas a alegria de os ver chegar nunca desaparecia. Era o que lhe faltava quando não estava em casa.

Sacudindo a parte de trás das calças quando se levantou, obseryou a fila de janelas até ver o que lhe pareceu serem os filhos percorrendo o corredor central. Os travões chiaram e o autocarro parou. As portas abriram-se. Julie foi a primeira a sair, seguida pelos gêmeos. Depois surgiram Allison e Tommy, que abraçaram Geórgia, dizendo-Ihe como era bom ela ter chegado e exigindo alternadamente a sua atenção enquanto caminhavam para casa. Russ apareceu por fim, descendo a rua de carro, regressando atrasado do almoço.

Rodeada pela sua gente, Geórgia não pensou mais na gravidez de retchen. Só o faria mais tarde, à noite.

Gretchen estava à janela da sala de jantar, atrás das cortinas com [franzidos que começavam no parapeito, à altura das suas ancas, e acabavam ao nível dos olhos. Apesar dos ramos grossos do grande carvalho que tinha no jardim, via claramente as três mulheres conversando no passeio. Via-as sempre. Era como se tivesse um sininho na cabeça a avisá-la quando elas se juntavam, como se algum ser maldoso quisesse que visse o que estava a perder. Sempre quisera ter amigas e pensara que as encontraria ali quando casara com Ben. Estava enganada. "Dá tempo ao tempo", dizia-lhe Ben. "Não te conhecem. Será diferente quando te conhecerem. "

Mas não, não foi diferente nem enquanto Ben era vivo nem

quando morreu e ela ficou sozinha. Oh, apareciam de vez em quando, como Karen na tarde anterior, mas não havia verdadeira estima nem amizade. Talvez ajudasse se ela fosse sociável, mas nunca fora. Pior, sentia-se intimidada na presença daquelas mulheres, cada uma tão certinha à sua maneira. Tinham o seu grupinho e ela era uma estranha, um bichinho do mato com pouca instrução e educação.

"És a minha bela", costumava dizer Ben. Vindo dele, acreditava. Vindo dele, a beleza não tinha a ver só com o físico. Ben fazia-a sentir-se bonita por dentro.

Era um homem único. Mas Ben morrera e ela encontrava-se escondida atrás das cortinas da sala de jantar, invejando a amizade das vizinhas. Daria tudo para sair e ir ter com elas. Amanda, com a idade mais próxima da sua, parecia a mais simpática, mas que tinha Gretchen em comum com ela? Meu Deus, Amanda era doutorada! Geórgia e Karen, que já tinham estado grávidas, poderiam dizer-lhe que as contracções que sentia eram normais, que a dor que tinha na anca de cada vez que se levantava de uma cadeira acabaria por desaparecer, que ter um filho era a coisa mais maravilhosa do mundo e que quem tentasse dizer-lhe que não o conseguiria sozinha devia levar uni tiro.

Mas não podia ir ter com elas. Não seria bem-vinda. Queriam June e ela não era June. Queriam uma contemporânea de Ben, uma mulher mais velha, uma figura materna. Queriam uma mulher simpática, amável e sensata.

Queriam uma mulher feia, para quem os seus maridos não olhassem duas vezes, mas Gretchen não podia fazer-lhes a vontade. A beleza fora o que lhe permitira abandonar uma vida de miséria no Maine rural. A beleza era tudo o que possuía.

Bem, agora não só. Tivera Ben durante algum tempo e agora possuía a sua casa, o que estava dentro dela e uma carteira de acções. E tinha um bebê.

Sorrindo ao pensar nisso, passou a palma da mão pela barriga, muito devagarinho. O seu bebê. Todo seu. Um dia, não muito distante, também estaria lá fora no passeio, esperando o autocarro da escola. As vizinhas aceitá-la-iam então? Não sabia. Talvez nessa altura já nem lhe interessasse. Ao levar o bebê a passear, conheceria outras mães e travariam amizade. Desconfiava que seriam mais abertas. E de certeza que não se poriam ali à vista de todos, discutindo a identidade do pai da criança. Oh, tinha a certeza de que era o que estavam a fazer! O objectivo de Karen ao ir a sua casa na noite anterior não fora dar-Ihe bolachinhas. O que ela queria era saber com quem dormira Gretchen.

"Deixá-la ralar-se", pensou Gretchen, muito aborrecida. "Deixá-la afligir-se. E as outras também". Se não tinham lugar no coração para mostrar alguma simpatia, não lhes devia nada em troca. Elas que ficassem na dúvida sobre qual dos seus preciosos maridos fizera a criança.

Girando nos calcanhares, atravessou o vestíbulo em direcção à sala de estar. com cuidado para não perturbar o bebê nem os magoar aos dois, sentou-se no sofá, descalçou os sapatos e encolheu as pernas. O quadro estava pendurado na parede em frente. Concentrando-se nele deixou que a tensão a abandonasse.

La Voisine. Fora um presente de casamento de Ben, que o comprara numa galeria de arte em Paris durante a lua-de-mel Só por isso, cuparia um lugar especial no seu coração, mas na verdade adorava o quadro. Ficara com os olhos nele mal o vira pendurado na parede dá galeria, com a sua moldura trabalhada e dourada. O artista era um Jtre e ainda nem sequer morrera, mas captara uma cena contemporânea com os pastéis suaves e as pinceladas de içadas do nrev sionistas, transformando-a na pintura mais romântica, sensual e idílica

Que Gretchen já vira.

Retratava uma mulher cortando rosas de uma trepadeira que subia por uma escada, . O seu vestido era amarelo com delicados rendilhados gola e punhos; tinha o chapéu caído nas costas. Encontrava-se ao fundo de uma cerca de estacas que separava o seu jardim do observador A sua casa e as outras eram caiadas e tinham uma profusão de plantas trepando-lhes de lado. A rua estreita ia dar ao oceano.

O que daria tanta sensualidade ao quadro? Gretchen passava horas sentada à sua frente e ainda não encontrara nenhuma resposta definitiva. Não havia qualquer sugestão visível nem qualquer pedaço d nudez. A mulher tinha os seios cheios. Talvez fosse do seu peito, realçado pelos braços erguidos, mas também podia ser do rosado das maçãs do rosto ou do vermelho dos lábios, que esboçavam um sorriso. Qualquer das coisas lhe dava uma grande luminosidade. Se calhar era das madeixas louras que lhe haviam escapado do laço do chapéu e lhe emolduravam o rosto ou das gotinhas de suor que tinha no pescoço e na garganta. Gretchen maravilhava-se com o modo como o artista as pintará. Fora mais de uma vez até junto do quadro tocar nestes pontinhos luminosos, quase esperando sentir os dedos humidos.

O suor era sensual. Mas, na verdade, a sensualidade podia estar apenas no olhar distante da mulher.

Gretchen identificava-se com esse olhar distante. Era a expressão de uma mulher que passara a vida toda a sonhar com um determinado tipo de amor. Por algum tempo, vivera-o com Ben, que a fizera sentir-se tão sensual e luminosa como a mulher do quadro. Era um homem único.

Ainda pensara que havia outro como ele, mas enganara-se. Não fazia mal. O seu filho não precisava de um pai. Tinha uma mãe que o amaria, que podia sustentá-lo e que lhe ofereceria uma vida estável.

Os filhos de Ben não iam ficar contentes quando soubessem que estava grávida. Adultos, casados, com filhos e mais velhos do que ela, já estavam bastante zangados por Ben lhe ter deixado o que deixara. Agora iam ter mais um motivo para protestar. Haviam de querer saber quem era o pai. Iam sugerir que ela se metera com alguém antes de Ben morrer. Falariam de moral e chamar-lhe-iam leviana.

Era um insulto que já ouvira antes. Sentindo a tensão acumular-se, respirou profundamente e voltou a concentrar-se no quadro La Voisine.

Reservada. A mulher do quadro era assim. Reservada. Se calhar era com isso que Gretchen se identificava. Ben sempre lhe dissera que era reservada. E já o ouvira antes dele. Reservada... distante... ensimesmada. As pessoas viam-na muitas vezes assim.

Mas a palavra era um eufemismo para solidão e Gretchen sabia-o. Estava só desde os oito anos, quando o pai fora ter com ela à cama, à noite, e a mãe a acusara de o seduzir. Na verdade, definia o medo com o qual vivera muitos anos depois disso.

Mas acabara. Ben dera-lhe o seu nome, amor e segurança econômica. Gostava de pensar que também lhe dera aquele filho, e de facto dera, de uma maneira indirecta.

As reuniões de Amanda com os pais foram mais produtivas do que as que tivera antes com os estudantes. Durante a primeira, convenceu um casal a deixá-la falar com a filha, uma finalista que mostrava sinais de alguma tensão por ir para a universidade. Na segunda, persuadiu um casal acabado de se separar a procurar ajuda externa para o filho, um caloiro cujas notas tinham descido drasticamente desde a separação. O facto de observar a interacção dos pais em ambos os casos mostrara-lhe um pouco da situação familiar dos estudantes, o que contribuía para uma maior compreensão dos seus problemas. Sentia-se melhor quando saiu da escola, mas a sua autoconfiança evaporou-se quando chegou a casa e viu que Graham ainda não voltara. Deixara-lhe uma mensagem no gravador de chamadas, mas num ton de voz tão neutro que não conseguiu perceber o seu estado de espírito.

* Olá - dizia. - Estou a caminho de Providence. Um cliente novo telefonou-me de manhã. Está a construir um centro comercial e quer fazer um átrio ajardinado no meio. É capaz de ser um trabalho interessante. vou estar com ele uma ou duas horas e devo precisar de mais duas para voltar. Não esperes por mim para jantar. Posso chegar tarde. Até lá.

A mensagem fora deixada apenas meia-hora antes, o que significava que ele tinha razão. Regressaria tarde.

Havia também uma mensagem de Emily, em resposta à que

Amanda lhe deixara ao princípio da tarde.

* Olá, Amanda. Recebi a sua mensagem e sei que está desiludida, mas ainda não acabámos. Telefone-me amanhã para combinarmos o próximo passo.

Amanda apagou a mensagem. A última coisa que lhe apetecia era pensar em Emily ou na clínica. A última coisa que lhe apetecia era antever mais uma vez aquilo por que acabara de passar. Havia outras opções, como a adopção, por exemplo. Para isso, não precisaria de Emily, de Clomid, nem de técnicos impessoais. ",

Exausta, jantou uma tigela de cereais, foi para a salinha ao lado do quarto, estendeu-se no sofá, tapou-se com a manta e ligou a televisão. Passou grande parte das duas horas seguintes mudando de um canal para o outro, até que um programa sobre lobos e as suas crias lhe prendeu a atenção. Quando acabou, a sala estava às escuras. Desligou e deixou-se ficar quieta, esperando por Graham.

Eram quase dez horas quando a carrinha desceu a rua e parou na garagem. Amanda continuou às escuras de olhos abertos, escutando esperando, seguindo os seus movimentos primeiro na cozinha e depois no vestíbulo. Graan devia estar a ver a correspondência pousada em cima da cômoda. Não chamou nem disse olá.

Dali a pouco, subiu as escadas. Suspendeu a respiração quando ele percorreu o corredor e olhou-o de frente mal ele apareceu à porta. Ela estava na escuridão e ele tinha as costas iluminadas. Não conseguiu ver-lhe o rosto.

Ou ele também não viu o dela ou não quis falar.

Dez segundos depois, seguiu para o quarto. Ouviu-o na casa de banho. Ouviu-o meter-se na cama e apagar a luz.

Continuou imóvel.

* Alue? - chamou Geórgia da porta do quarto da filha. - Tens estado toda a noite ao telefone.

Allie levantou a mão e disse qualquer coisa que Geórgia não conseguiu perceber. Depois, desligou.

* Era a Alyssa.

* Por causa do Quinn?

* Não - respondeu, afastando o cabelo com o gesto do indicador e do polegar típico de todas as raparigas. - Do baile da escola. Mãe, vai haver uma festa durante toda a noite. Posso ir?

* Toda a noite? Nunca ouvi falar de nenhum baile assim. Que baile é?

* O dos caloros. Sabias que ia haver um.

* Pois sabia, mas parece-me que te recusavas a ir.

* Mudei de idéias. Vamos bastantes.

* com quem? Quer dizer, aos pares?

* Mais ou menos, mas não exactamente, percebes? Geórgia não percebia, mas desconfiava:

* Um grupo... misto mas não aos pares. Allison animou-se:

* Isso, e queremos passar a noite em casa da Melissa.

* Só raparigas?

* Não. Todos.

* Pensava que a Melissa e o Quinn eram namorados.

* E são. Mas os outros não.

* E os pais do Quinn deixam-no ir a uma festa que dura toda a noite depois do que aconteceu ontem?

* O que aconteceu ontem não tem nada a ver com nada. O treinador é que resolveu ter um ataque.

* Porque o Quinn estava bêbedo.

* Não estava nada. Tinha bebido um copo.

* Estava a cair de bêbedo. Foi o que disseste ontem à noite.

* Enganei-me. Posso ir, mãe?

* Não.

Allison compôs uma expressão desconsolada:

* Porquê? Vai toda a gente. Será uma humilhação se eu não puder ir.

* E a mãe da Alyssa está de acordo?

* Bem... ainda não, mas vai estar.

* Oh, percebi. Pois vai, se disseres que eu concordo. Mas não posso, Allie. Tens catorze anos. Ainda é muito cedo para festas durante toda a noite, sobretudo depois do que aconteceu ontem.

* Ninguém vai beber.

* Para quê passar a noite fora? Que mal há em vires para casa à meia-noite? Até podes vir só à uma. O pai ou eu vamos buscar-te.

Allison pareceu horrorizada:

* Vamos de limusina, Mãe. Não queremos pais metidos na história.

* E quem paga a limusina?

* Nós todos. Somos dez. Não dá muito a cada um. - O telefone tocou e ela agarrou-o logo. - Está? - Depois de ouvir, tapou o auscultador e disse a Geórgia: - Tenho de atender esta chamada.

* Já fizeste os trabalhos de casa?

* Quase. Acabo já. - Abrindo os olhos e falando com uma certa urgência na voz: - Por favor, mãe.

Sentindo-se dispensada por uma criança que não tinha idade para dispensar ninguém mas tentando respeitar o direito da filha à sua privacidade, disse:

* Está bem, mas nada de festas durante toda a noite. A limusina... talvez. Tenho de falar com o teu pai. Mas festas toda a noite, nem pensar.

Saiu do quarto e espreitou o de Tommy, que estava estirado na cama, dormindo a sono solto. Costumava conseguir pô-lo direitinho e entalar-lhe a roupa da cama, mas agora já era muito grande. Por isso, limitou-se a apagar a luz e foi procurar Russ.

Encontrou-o no escritório a terminar um artigo. Pousando-lhe o queixo no ombro, leu no monitor do computador: "O importante é reconhecermos que fomos derrotados. Às vezes, por mais farrapinhos que apanhemos no mundo, não remediámos o mal que fizemos. Temos de voltar ao princípio. Comece tudo outra vez, mesmo que esteja exasperada, mesmo que não tenha tempo, água quente ou detergente que chegue." Olhou-o de lado:

* Qual é o problema?

* Quando um lenço de papel vai para a máquina de lavar e se desfaz em cima da roupa - murmurou ele, continuando a escrever.

* É fácil - replicou ela. - Lava-se tudo outra vez.

"... lava-se tudo outra vez." Terminou com um floreado e sorriu-Ihe:

* Aprendi esta semana. Mais uma lição da vida. Vais para a cama?

* Estava a pensar nisso.

* Só me falta rever o artigo e mandá-lo por fax. Vai indo que eu não demoro.

Geórgia tomou banho, passou pó no corpo, escovou os dentes e o cabelo e hidratou o rosto ao de leve. Diminuindo a intensidade da luz do quarto, aproximou-se da janela e olhou para fora na altura em que a carrinha de Granam aparecia ao fundo da rua.

* Olá, minha linda - saudou Russ da porta. Fechando-a com cuidado, atravessou o tapete, cingiu-a por trás e aproximou a cabeça do seu pescoço.

* A Allie falou-te de algum baile da escola? - perguntou ela.

* Não - murmurou ele na sua nuca. - Ha... acho que sim.

* Quer ir a uma festa durante toda a noite. Russ virou-a:

* Chiu! - sussurrou, beijando-a. - Agora não. Agora desejo-te. Percebia-o e não ficou indiferente. Passando-lhe os braços pelo pescoço, aproximou a boca da dele e foi cedendo aos poucos até se encontrarem os dois nus na cama, com as pernas entrelaçadas. Russ sempre fora um amante ávido. Dezasseis anos de casamento não lhe tinham diminuído o desejo. Quanto ao dela, estava mais apurado. Geórgia gostava tanto da emoção de fazer amor com Russ como do acto físico em si. Gostava de sentir que aquele era o seu marido, a sua âncora, o seu lar. Gostava de o repetir para si própria.

Foram as suas boas-vindas. Ele foi fácil de satisfazer e ela não se importou por não ter prazer. Dali a minutos, Russ adormecia. Para Geórgia, vê-lo dormir, observar o seu sorriso, a descontracção do seu rosto e o relaxamento das suas pernas e braços compridos era tão satisfatório como um orgasmo.

Russ tinha um temperamento estável. Era calmo e sereno. Observando-o naquele momento, via tudo isto. Vivia satisfeito com a vida... tanto que às vezes pensava se sentiria a sua falta quando andava por fora. Ele dizia que sim, mas só quando ela lhe perguntava.

"Tiveste saudades minhas? ", indagava.

"Claro que sim. "

"Tenho que viajar outra vez na segunda-feira." Esperava sempre que ele dissesse que estava farto.

Mas por enquanto não dissera. Em vez disso, sorria:

"Eu não deixo a lareira apagar-se. "

"Não gosto de andar tanto tempo fora. "

"Mas adoras o que fazes. "

Era verdade, mas agora dava-se conta de que Russ também adorava o que ela fazia. Talvez sentisse a sua falta, mas aguentava-se muito bem sem ela. Adaptara-se perfeitamente ao governo da casa às decisões diárias que era preciso tomar, a ler o jornal na mesa da cozinha a meio da manhã ou a deitar-se no jardim com um papel e uma caneta. com os miúdos na escola durante todo o tempo, tinha liberdade e flexibilidade. Naquele dia, por exemplo, fora almoçar com o editor e voltara tarde. Aliás, Geórgia nunca o teria sabido se não tivesse regressado àquela hora.

Quantas coisas mais não saberia? Quantas vezes sairia sem ter de dar satisfações a alguém? Andaria com Gretchen? Passaria as tardes no conforto da sua casa? Pior ainda: ela passaria as tardes ali?

Não lhe parecia. De contrário, haveria sinais dela. Aliás, Russ desejava-a tanto quando regressava de viagem que era muito pouco provável.

Era o seu marido. Não a enganava.

Não de momento, pelo menos. Mas se continuasse a andar de um lado para o outro, como seria dali a cinco anos? Allison andaria na faculdade. Tommy já teria a carta de condução. E Russ? Quando estivesse mais livre dos deveres de pai e não tivesse coisas como bocados de lenços de papel para lhe preencher o tempo, sentir-se-ia só e aborrecido?

Não tinha bem a certeza.

Karen soltava sempre um suspiro de alívio quando a casa acalmava à noite. Julie já dormia havia uma hora e os gêmeos, que eram bastante piores no que tocava ao barulho, tinham finalmente caído para o lado. Jordie ainda estava acordado, mas eram só dez horas. Nem devia passar-lhe pela cabeça deitar-se às dez horas. Tinha a porta fechada, mas via-se luz por baixo.

Bateu ao de leve, abriu e espreitou. Jordie estava sentado no chão com as costas encostadas à parede, os joelhos dobrados e os headphones na cabeça. Não levantou o olhar. Era óbvio que não a ouvira.

Grata por aquele momento, examinou-o. Bonito, desde o princípio que saía a Lee. A adolescência estava a pô-lo mais comprido do que largo, o que significava que era esgalgado e magro. Tinha as mesmas feições marcadas do pai: queixo quadrado, nariz direito, olhos azuis. O cabelo espesso também era o mesmo. O de Jordie era ruivo e cornprido, o de Lee louro e aos picos. Karen não gostava de nenhum destes estilos, mas o cabelo era a menor das suas preocupações. Jordie carregava muito o cenho. Estava a fazê-lo naquele momento.

Ergueu os olhos, fitou-a por um instante e libertou um ouvido:

* O que foi?

* Estava só a ver-te. Já é tarde - sorriu ela.

* O pai já chegou?

* Ainda não.

* Onde está?

* No escritório. Andam a mudar os ficheiros e as máquinas para o espaço novo. Teve de ficar a vigiar. Pensei que já tinha explicado ao jantar.

* Mas porque demora tanto?

* Não sei. Deve haver muita coisa para mudar.

Jordie fez um ar de quem não engolia aquela... Karen, de resto, também não, mas que podia fazer? Para álibi, era plausível. Sabia que Lee tomara conta de um espaço novo, deixado livre por um pequeno escritório de advogados. Havia semanas que se queixava do barulho e do pó.

* Já lhe telefonaste? - perguntou Jordie.

* Não. Suponho que quanto menos o incomodar, mais cedo chegará a casa. Queres alguma coisa de especial dele?

* Eu? Não. - Voltou a pôr os headphones. Ela levantou a voz.

* Jordie?

Carregando o cenho, tirou outra vez os headphones.

* Está tudo bem com o Quinn?

* Bem? Foi suspenso da equipa durante este ano.

* Está a aguentar-se bem?

* Claro. O Quinn aguenta-se sempre bem.

* Estás zangado comigo?

* Não.

Esperou que ele continuasse. Passava-se alguma coisa, mas não podia obrigá-lo a falar. Por isso, disse:

* Está bem, volta lá à tua música. Fizeste os trabalhos de casa?

* Fiz.

* Boa-noite.

Jordie voltou a pôr o headphones.

Sentindo-se inútil, recuou e fechou a porta. Devia ser Lee a falar com ele. Os rapazes da sua idade precisavam do pai, mas Lee não tinha jeito para falar. Lee só tinha jeito para brincar.

De novo no quarto, arranjou-se para dormir, apagou a luz e escancarou as janelas da frente. Depois deitou-se e deixou-se ficar às escuras pensando onde estaria Lee, tentando distinguir o ruído do seu carro. Ouviu a carrinha de Graham, que tinha um som característico. Ouviu um grilo e estalinhos na mata, atrás das casas. Andavam por ali criaturas da noite. Se humanas se animais, não sabia.

O Miata de Lee desceu então a rua. Por um instante, imaginou-o estacionando perto da mata, atravessando para casa de Gretchen, voltando a sair, metendo-se no carro e dando a volta. Bem, a mata era grande e os sons que ouvira não tinham nada a ver com o resto. No entanto, dada a lista de telefonemas duvidosos feitos do seu telemóvel, supunha que Lee sabia ser tortuoso.

Virando-se, puxou o lençol e fechou os olhos.

Lee ficou lá em baixo durante algum tempo. Quando subiu, arranjou-se e meteu-se na cama.

* Karen? - sussurrou, como fazia sempre para verificar se ela estava acordada e se sabia a que horas ele chegara.

Como ultimamente fazia, Karen permaneceu calada.

 

Graham já saíra da casa de banho quando Amanda lá entrou na manhã seguinte. A divisória do chuveiro estava molhada e as toalhas de lado. Abriu o armário com o coração nas mãos, receando que ele tivesse pegado nas suas coisas e feito as malas, e sentiu um grande alívio quando viu tudo no sítio.

Tomou duche, vestiu-se, maquilhou-se e penteou-se, achando que eleja teria saído de casa quando estivesse pronta e pensando no que isso a fazia sentir. Quando desceu, no entanto, encontrou-o encostado ao balcão da cozinha, com os pés cruzados. Apesar da pose, não havia nele um pingo de descontracção. Tinha os nós dos dedos brancos em volta de uma caneca de café, o cabelo húmido e os olhos ensombrados.

* Olá - saudou ela com um sorriso cauteloso.

* Ontem à noite não vieste para a cama. Já são duas noites seguidas.

Agüentando a insinuação, Amanda respondeu:

* Adormeci e tu não me chamaste. - Acordara várias vezes por si própria, cismando, esperando, receando. Precisava de um sinal dele dizendo-lhe que não a culpava por não terem filhos. Precisava de um sinal dele dizendo-lhe que a amava e que nem sonhava em arranjar outra mulher.

De momento, porém, só queria paz entre eles. A tensão começava a extravasar. O ambiente estava tão parecido com aquele em que crescera e tão diferente do que pensava viver com Graham que já não conseguia agüentar.

* Como correu a reunião? - perguntou.

* Bem. Falaste com a Emily? - O ton de voz era tenso. Pelo vistos, pouco lhe importava que houvesse discussão.

* Falei. Disse-lhe que telefonava daqui a um mês.

* E ela?

* Respondeu-me que estava bem.

* Concordou que descansasses um mês?

* Compreendeu o que estou a sentir.

* Então concordou? Não podia mentir:

* Não. Por ela, faria já a terceira tentativa, mas disse que não fazia mal esperar um mês.

* Estou com ela quanto a fazermos já a terceira tentativa. Só a idéia chegava para pôr a cabeça de Amanda a zumbir.

* Não posso, Grahan. Já não posso. Preciso de um descanso.

* Por ti? Ou por nossa causa?

* Por mim. - Na verdade, começava a ser a segunda opção. Grahan também o sabia. Abanou a cabeça e desviou o olhar, bebeu o resto do café e pousou a caneca no lava-loiças.

* Hoje à tarde vou outra vez a Providence. Talvez chegue tarde. Dantes, não era permitido haver serões duas vezes seguidas, mas

agora eram cada vez mais freqüentes. Sobretudo naquele dia, era um azar. Amanda precisava de jantar com Graham para poderem conversar os dois.

Mas ele não disse mais nada. Saiu para a garagem, deixando a porta fechar-se atrás dele. Amanda seguiu-o dali a um instante, abriu-a e viu a sua carrinha recuando da garagem e afastando-se.

Sem saber o que pensar ou fazer, deixou-se ficar até ver o autocarro da escola descendo a rua. Logo que voltou a partir com dois Lange e quatro Cotter a bordo, avançou uns passos e interceptou Geórgia no passeio.

Bastou um olhar para que Geórgia a pegasse pela cintura.

* Tens tempo para um café?

Amanda abanou a cabeça.

Tenho de ir para a escola. Só preciso de um ombro amigo. O dela era bon. Sendo casada havia três vezes mais anos do que ela, Geórgia era uma espécie de modelo a seguir. Amanda queria uma longevidade assim para si e Graham.

É o bebê que está a pôr-te em baixo?

* O bebê de quem? - perguntou Amanda pouco secura. - O meu ou o da Gretchen?

* O teu... para já - sorriu Geórgia.

* É, está a pôr-me muito em baixo. Eu e o Graham andamos de candeias às avessas.

* De candeias às avessas?

* Não concordamos um com o outro. Nunca era assim.

* Não concordam em ter um filho?

* Na maneira de continuar a tentar. E sobre a Gretchen. Fiz uma coisa horrível, Geórgia. Insinuei que talvez fosse ele o pai.

* A sério?

* A sério - admitiu Amanda em ton de censura. - Ando aqui a tentar convencer os estudantes a não fazerem acusações de que possam arrepender-se e depois sou eu que as faço. Sei muito bem que não é ele o pai, mas não seria humana se não pensasse que ele deve odiar tanto como eu aquilo em que o sexo se transformou para nós. Era tão bon! Agora é receitado e programado. As regras e os regulamentos ditam onde, quando e com que freqüência. Que falta de espontaneidade! E o Graham gosta de espontaneidade. É verdade que não é pessoa para andar a enganar-me, mas não conheço o funcionamento masculino. Ou se calhar conheço. O desejo é uma coisa importantíssima para os homens. Pulsões físicas. Atracções momentâneas. Talvez o Graham se tenha deixado arrastar pela paixão quando andou a trabalhar com a Gretchen no Outono passado. Alguma vez te disse que a primeira mulher dele se parece com ela?

* Não.

* O cabelo da Megan é mais castanho dourado do que louro, mas as feições são muito semelhantes... rosto em forma de coração, pele de porcelana, olhos afastados. A mãe tornou-se o mais irlandesa possível quando casou com o pai, mas era de origem escandinava.

* A Gretchen também é?

* Parece. Falando racionalmente, sei muito bem que o Graham não ia andar com ela. É cem por cento monogâmico.

* O Russ também, mas confesso que pensei nisso ontem à noite, A Karen tem razão. Ele passa o dia aqui. É um maltrapilho, mas se me sinto atraída por ele, pode acontecer o mesmo com a Gretchen.

* O Russ não é um maltrapilho.

* Não é exactamente o George Clooney.

* Tens razão. Está mais dentro do normal. Gosto do ar dele.

E atraente.

* Pelo menos mais do que o electricista - comentou Geórgia.

* O Nathan tem setenta e três anos e um enfísema. Não consigo imaginá-lo com a Gretchen. Que pensas dos outros?

As quatro famílias da praceta recorriam todas aos serviços das mesmas pessoas quando era preciso reparar alguma coisa.

* O canalizador casou-se no Verão passado e só tem olhos para a mulher. O carpinteiro é cristão da cabeça aos pés. Não estou a ver nenhum deles com a Gretchen. - Abanou a cabeça.

* Ou seja... ficamos com o Lee.

* O que é uma possibilidade.

* Mas ele não começou vida nova? Amanda lançou-lhe um olhar de dúvida:

* Pois, mas o que faço em relação ao Graham? Preciso de uma pausa. Pedi-lhe um mês. Mas como o convenço?

* Como convencerias os teus clientes?

* Dir-lhes-ia para falarem. Mas logo que penso em falar com o Graham, fico desorientada. - Não conseguia imaginar Geórgia assim. Gostaria de ter metade da sensatez da amiga. - É deprimente. Amo o Graham e sempre fui capaz de falar com ele, mas agora é diferente. Há alturas em que não consegues falar com o Russ?

* Há. Quando temos outras coisas para fazer, quando ele tem prazos a cumprir ou quando andamos os dois com pressa. Como esta semana. Olha o caso do Quinn: passou-me completamente ao lado. Agora é passado e já ninguém quer falar no assunto. Acabou mesmo?

Por agora, acho que sim.

O álcool preocupa-me muito.

* A Allie é sólida.

* O Quinn também.

Amanda calou-se, pensando no que poderia dizer.

* Talvez não como pensávamos.

* Sabes mais?

* Só que tem problemas. - Não podia adiantar mais sem quebrar o sigilo profissional. - Tu e o Russ já devem ter falado nisso.

* Pois já. De um modo geral, pensamos o mesmo.

* Há coisas sobre as quais não se sintam à vontade para falar um com o outro?

* Sobre o irmão dele. Aquilo não é muito claro. Tem um negócio de automóveis em Michigan e vive muito acima do que seria razoável para um vendedor de carros, mas de cada vez que o digo o Russ vai aos arames. Diz que o irmão é dele, que lhe tem afecto e que não temos nada a ver com a maneira como paga o que compra. Se calhar não temos. Dá graças por os irmãos do Graham não terem nada a esconder.

* Isso é verdade. Gosto muito dos irmãos do Graham. O problema é a mãe.

* Quando é a festa de anos?

* No domingo. Se não fosse este último revés, até estaria toda contente por os ver. E se não conseguirmos ter filhos, Geórgia? Se a família já não nos larga agora, como será se não tivermos filhos?

* Não te preocupes. Há outras maneiras de ter filhos.

* A adopção, por exemplo. Devíamos pensar nisso.

* Qual é a opinião do Graham?

* Acha que é prematuro discutir o assunto. Acha que primeiro devemos esgotar todas as possibilidades. Só tenho medo que, nessa altura, já seja tarde...

Geórgia evitava viajar ao fim-de-semana sempre que possível mas desta vez não tinha outro remédio. Os executivos da empresa que andava a namorar a dela queriam visitar a fábrica da Florida e só podiam fazê-lo no sábado.

Matando dois coelhos com uma cajadada, programou para sexta-feira um dia de reuniões com a gerência de Tampa. As visitas seguiam sempre o mesmo plano; Geórgia era a alma da empresa e uma perfeccionista; ou seja, queria as coisas bem feitas a todos os níveis. Não caía na tentação de querer controlar tudo. Tinha pessoal para isso. No entanto, como a sua presença física era importante, tentava visitar cada escritório e fábrica uma vez por mês.

Só tinha avião ao fim da tarde de quinta-feira e ainda ia passar pelo escritório de Danbury, mas demorara-se com os filhos antes de os meter no autocarro e depois pusera-se a conversar com Amanda, que, por fim, se fora embora deixando-a com os pressentimentos terríveis que tinha de cada vez que viajava: terroristas abrindo fogo enquanto esperava pelo avião ou o avião despenhando-se. Já ia entrar para deixar Russ animá-la quando o leiteiro desceu a rua, com a camioneta chiando devido à idade. Havia semanas que não ouvia aquele som. Lembrava-lhe um tempo mais simples e seguro.

Havia anos que os Lange e os Cotter lhe compravam os lacticínios, mas Pete costumava aparecer ao fim da manhã. Geórgia ficou admirada ao vê-lo tão cedo e ainda mais quando parou primeiro em casa de Gretchen. Pete saltou da camioneta com o cesto de metal e

correu para a porta.

O leiteiro. Era uma possibilidade interessante. Andava na casa dos quarenta e tinha família, mas parecia muito ansioso. No caso dos Lange e dos Cotter, costumava meter a factura na caixa das traseiras, mas entrou na casa de Gretchen e demorou uns minutos. Geórgia deixou-se ficar até ele voltar a aparecer e só depois entrou na cozinha. Russ estava sentado à mesa, escondido atrás do jornal.

Não sabia que a Gretchen comprava da leitaria - disse Geórgia.

Ele baixou um canto do jornal:

* Hmm?

* Desde quando é que a Gretchen se abastece na nossa leitaria?

* Há algum tempo. Veio cá uma vez pedir-me o telefone. Porquê?

* Esteve lá um bocado. Se calhar é o Pete. Russ revirou os olhos.

* Porque não o Pete? - indagou Geórgia.

Russ arqueou as sobrancelhas e estudou-a por cima dos óculos.

* O Pete faz entregas durante todo o dia. Não tem tempo para andar a brincar com as clientes. Aliás, ainda não vinha à Gretchen em Outubro. Ela só pediu o telefone em Janeiro.

Geórgia ficou pensativa:

* Lembras-te muito bem.

* Pois lembro - respondeu ele, pouco humilde. - Estive a mostrar-lhe as coisas excelentes que o Pete nos traz e tirei do congelador o que restava do gelado do Natal. Como ela disse que já devia saber a mofo, deixei-a provar.

* Esteve a comer gelado aqui, na nossa cozinha?

* Demorou-se dois minutos. Estava a nevar. Não fez mais nada excepto desabotoar o casaco. Acho que era do Ben... por causa do tamanho. - Continuou a fitá-la por cima dos óculos, desafiando-a a insinuar fosse o que fosse.

Em vez disso, ela deu-se conta do seu ar adorável, com o cabelo todo despenteado e a aliança na mão de dedos compridos que segurava o jornal. Optando por confiar e acreditar, aproximou-se, beijou-Ihe a cabeça onde havia menos cabelo e apertou-lhe o ombro.

Karen passou a manhã de quinta-feira reparando os livros da biblioteca da escola primária. Como a maioria das tarefas voluntárias, esta não exigia muito a nível intelectual. Dava graças por ter outras mães a trabalhar com ela. Falavam disto, daquilo e daqueloutro. Nada de transcendente, mas chegava para se entreter e não pensar noutras coisas.

Ela e Lee mal se falavam. Lee indignara-se e declarara-se profundamente ofendido com a sua insinuação de que era o pai do filho de Gretchen. Nessa noite, até fora direito à casa de Gretchen perguntar quem era o pai. Depois, contara a Karen que ela não quisera revelar o nome.

Mas Karen não estivera em casa de Gretchen. Não sabia o que fora dito ou feito. No entanto, se não andava com Gretchen, então andava com mais alguém. Isso apostava.

Ao regressar da escola ao meio-dia, sentou-se nos degraus da frente a absorver o calor do sol, excelente antídoto para o frio que sentia a nível emocional. Nisto, o carteiro desceu a rua de jipe, estacionou, inclinou-se de lado para vasculhar o saco, pegou na correspondência e saiu.

Meteu a correspondência dos O'Leary na caixa do correio e fez o mesmo para os Lange. Entregou a Karen a dos Cotter, perguntou-lhe como estava, comentou que os lilases estavam quase em flor e, despedindo-se, continuou na direcção da casa dos Tannenwald.

Estava Karen a verificar as cartas que tinha no colo quando o carteiro saudou Gretchen, que desceu ao seu encontro. Envergava calças e uma túnica muito bonita e tinha nos pés o que pareciam ser sandálias italianas. Qualquer uma das três peças podia ter sido comprada na Saks ou na Neiman Marcus. Karen não fazia compras em nenhuma destas lojas, nem para si nem para os filhos. Mas Lee já lá comprara artigos caros e não para si. Depois de ver as despesas no extracto do cartão de crédito, verificara as etiquetas da roupa que ele tinha no armário. Procurara botões de punho novos e claro que não encontrara, pois era coisa que os jovens executivos não usavam. De resto, também não vira nenhuma carteira nova.

Havia alguém que estava a ganhar com isso. Gretchen traria algum colar debaixo da túnica, brincos por baixo das ondas do bonito cabelo louro ou uma pulseira escondida no pulso? Segurava um envelope enquanto falava com o carteiro. A pulseira podia ter-lhe deslizado para o cotovelo.

O carteiro era mais baixo do que Gretchen e mais redondinho do que devia ser um homem que passava o dia para cima e para baixo com o saco às costas. Claro que não andava sempre a pé. Regra geral, ia de carro de caixa do correio para caixa do correio, inclinando-se para fora da carrinha. Porque andaria agora a pé? Podia ser que estivesse com mais tempo ou que quisesse apanhar sol e fazer exercício. Mas também podia ser que quisesse Gretchen.

Durante alguns minutos, sorriram e tiveram uma conversa que Karen não conseguiu perceber. Gretchen entregou-lhe o envelope e recebeu um mais grosso e outra correspondência. Quando uma carta caiu ao chão, Gretchen baixou-se mas o carteiro apanhou-a primeiro, estendeu-lha, sorriu e voltou para a carrinha.

O carteiro. A desarmonia física entre os dois não punha a hipótese de lado. Karen já vira muitas mulheres altas com homens baixos. Já vira muitas mulheres magras com gorduchinhos. Gostos não se discutem.

Lee, por outro lado, era um pedaço de homem. Mesmo com o cabelo no ar, entrava pelos olhos dentro. Ele e Karen faziam um lindo par no dia do casamento. Depois, com os filhos e o trabalho, a vida complicara-se e os casos amorosos de Lee tinham deixado as suas marcas. Faziam-na sentir-se mal e pouco atraente.

Girando nos calcanhares, entrou em casa e fez uma sanduíche de manteiga de amendoim e batatas fritas. Queria lá saber que engordasse! Precisava de qualquer coisa que a reconfortasse.

A sanduíche ajudou-a apenas de raspão. De volta ao carro, dirigiu-se para casa da pessoa encarregada de tratar da festa que a cidade dava todos os anos em honra dos seus finalistas. Karen e ela iam trabalhar juntas durante várias horas, elaborando a lista das lojas com as quais podiam contar para os donativos. Depois, Karen regressaria a casa a tempo de esperar o autocarro da escola.

A precisar de mais consolo do que o proporcionado pela sanduíche, resolveu tentar falar com Amanda, que a animava sempre muito

Queria conversar com ela sobre o carteiro e, já agora, especular quanto ao conteúdo dos envelopes que entravam e saíam da casa ao lado. Imaginava que Amanda estaria interessada. Afinal de contas, se Lee não era o pai, então talvez fosse Graam.

Amanda abanou a cabeça logo que Karen a interceptou quando saía do carro ao fim da tarde, incluindo o carteiro na lista dos suspeitos.

* O Dominic? Não me parece que tivesse coragem, e muito menos desejo de engravidar a Gretchen.

* Por causa do ar dele?

* Porque a mãe é o centro da sua vida.

* Como sabes?

* Falei com ele. Um dia estava cá fora e ele apareceu. Estava tão em baixo que lhe perguntei o que se passava. Vive com a mãe, que é praticamente inválida. É ele que toma conta dela. Nesse dia estava muito abatido porque ela precisava de arranjar os dentes e ele não tinha dinheiro. A única alternativa era arrancar-lhos, o que o preocupava.

* Um bom filho! - murmurou Karen. Pousando as mãos nas ancas, olhou em volta. - O Graam sabe alguma coisa?

* Não me parece.

* Perguntou à Gretchen?

* Que eu saiba, não.

* O Russ perguntou e o Lee também. O Graam não tem curiosidade em saber?

Por um instante, Amanda ficou em silêncio. Depois, disse com suavidade:

* Karen, o pai não é o Graham. Se não perguntou, é porque não acha importante.

* Eu diria que é.

* Está bem. O que souberam o Russ e o Lee?

* Nada. Não quis dizer quem é o pai. Talvez diga ao Graham. - Baixando a voz: - Oh, olha! Está ali.

Gretchen deu a volta à casa com a mangueira na mão. Quando olhou na sua direcção, Amanda disse-lhe adeus com a mão. Gretchen acenou-lhe com a cabeça, virou costas e começou a regar os canteiros.

* Não foi lá muito simpática - murmurou Karen. - Está a brincar connosco.

* Se calhar não se sente à vontade.

* Porque o pai da criança é um dos nossos maridos?

* Não. Porque estamos juntas e ela não é nossa amiga.

* E de quem é a culpa? - perguntou Karen, levantando a mão para acenar ao rapaz dos jornais, que descia a rua de bicicleta com o cesto cheio de exemplares do semanário local. - Olá, Davey - gritou. Depois, virando-se para Amanda: - Trabalhei com os pais no bazar de Natal do ano passado.

* Olá, senhora Cotter - respondeu Davey, parando em frente da casa da viúva e esperando de jornal na mão que Gretchen atravessasse o relvado.

* Ele pode ser louro e adorável, mas não creio que seja um suspeito - murmurou Amanda, que no entanto estava absorta na contemplação da viúva. Quando Gretchen sorria como naquele momento, irradiava dela um grande calor. E timidez. Nunca reparara nisso.

O rapaz seguiu na sua direcção com um pé rasando o alcatrão e estendeu um jornal a cada uma delas.

* Não tenho visto os teus pais - comentou Karen. - Estão bem?

* Muito bem, obrigado.

* Dá-lhes cumprimentos meus.

* Serão entregues. - Foi-se embora, atirando com mão hábil um jornal para os degraus da frente dos Lange. Depois, afastou-se.

Por uma questão de hábito, Amanda desdobrou o jornal e ficou sem ar ao ler o título da primeira página.

 

ESTRELA DE BASEBOL SUSPENSA DEPOIS DE INCIDENTE com BEBIDAS ALCOÓLICAS, dizia o título. O artigo prosseguia, descrevendo em pormenor os acontecimentos de terça-feira.

* Oh, não! - murmurou Amanda baixinho.

Karen desdobrara o jornal e estava a ler o mesmo artigo.

* Bem, é uma notícia.

* Assim não. Nem sequer vem na página desportiva. Que exposição lamentável!

* Quando se é uma estrela, apanha-se tanto o bom como o mau. Amanda só pensava em Quinn Davis esfregando os polegares e os indicadores no gesto nervoso da reunião da noite anterior. Na verdade, não tinha nem a calma nem a confiança que parecia. Um rapaz equilibrado não aparecia embriagado no treino de basebol. Depois da veemência com que os pais tinham tentado varrer a sua falta para debaixo do tapete, esta exposição na primeira página não ia cair-lhes bem. E nem queria pensar como Quinn reagiria.

Ainda mal entrara na cozinha quando o telefone tocou. Era Maggie Dodd, que estava tão preocupada como ela por causa do artigo. Sim, tinham andado a fazer perguntas aos responsáveis da escola, mas ninguém entrara em pormenores. Ao que parecia, quem fornecera os pormenores fora o treinador de basebol, os membros da equipa e os amigos de Quinn.

Ela e Amanda estavam a falar das possíveis conseqüências quando Maggie lhe pediu para esperar e foi atender outra chamada. Quando regressou, notava-se a tensão na sua voz.

* Eram os pais do Quinn. Estão possessos por lhes mancharem o nome do filho desta maneira.

Amanda concordava, em parte, com o comentário bastante cru de Karen sobre a situação. Havia quatro anos que lia o Woodley Weekly, que já publicara inúmeros artigos de primeira página elogiando um ou outro Davis. Agora era o reverso da medalha, inevitável em alguns aspectos. De certa forma, era apenas uma notícia.

Por outro lado, sendo psicóloga, preocupava-se com Quinn.

* Vou telefonar-lhes - sugeriu a Maggie. - Se me deixarem, vou lá falar com eles.

Mas não deixaram.

* Seria uma perda de tempo, senhora Carr - disse o pai de Quinn. - Podia ter-nos ajudado no outro dia, mas não está do nosso lado.

* Não se trata de tomar partido - argumentou Amanda. - Trata-se de fazer o que é melhor para o Quinn. Estou preocupada. Ele viu o artigo?

* Claro que sim. Nem podia ser de outra maneira. Os amigos têm estado a telefonar-lhe. Os nossos amigos têm estado a telefonar-nos.

* Ele está bem?

* Não, mas não é da sua conta.

* É sim. É o meu trabalho. Tem a ver comigo. Queria muito falar com ele.

* Nós falamos. Obrigado. - E desligou.

Amanda sentia-se impotente no caso de Quinn e queria falar com Graham, que costumava ser sensato e garantir-lhe que estava no bom caminho ou fazer alguma sugestão. E poderiam assim discutir um assunto neutro.

Por um instante, pensou que o seu desejo se realizara, pois Graharn telefonou-lhe pouco depois de ter conversado com o pai de Quinn.

* Olá - disse ele com cautela. Notava-se que estava na carrinha falando para o altifalante do telemóvel.

* Olá. Onde estás? - perguntou-lhe, como fazia muitas vezes, pensando se ele estaria a uma distância de dois, dez ou vinte minutos. Desta vez, no entanto, a sua voz foi tão cautelosa como a dele, o que deu à pergunta um certo ton de desconfiança.

A voz dele reflectiu-o. Endureceu e fechou-se à discussão.

* Vou a caminho de Providence e já estou atrasado. Ela fez uma pausa.

* Agora vai ser assim todos os dias?

* Não sei. É um bom trabalho. Ajuda a passar o tempo enquanto estás na escola.

* Não passo as noites na escola.

* Foste para lá a correr na terça-feira.

* Era importante.

* isto também é. - Praguejou. Amanda ouviu uma buzina e depois a voz zangada de Graam. - Aquele filho da mãe meteu-se à minha frente a cento e cinqüenta à hora.

* Não costumas andar assim tão depressa.

* Estou atrasado.

* O dia correu-te mal? - Tive muito que fazer. Que grande conversa!

* A que horas chegas?

* Dez, onze.

* Está bem. Boa reunião.

* Obrigado.

Amanda desligou, pensando nas coisas que podia ter dito... que devia ter dito para o fazer falar mais. Mas aquele Graham era um estranho para ela. Não sabia como reagiria às coisas que podia dizer. Nem sequer sabia como lhe sairiam as coisas que podia dizer. Se calhar fora melhor nem tentar abrir-se.

Talvez o sexo o fizesse. Sempre tinham comunicado muito bem a nível físico.

Porém, nos últimos meses não.

O período estava a passar e recusava-se a pensar nos aspectos clínicos do sexo. Talvez a paixão tivesse agora a sua oportunidade.

Era, pelo menos, o que pensava quando, mais tarde, tomou um banho de espuma, passou uma loção perfumada no corpo, vestiu uma das camisas de noite um tanto indecentes que Graham lhe comprara nos seus tempos mais ousados e deitou-se na cama de casal. Como sinal de paz, era bem visível.

Nervosa, deixou-se ficar às escuras, consultando o relógio muitas vezes a partir das dez horas. Já passava das onze quando Graham chegou. Ouviu-o subir as escadas e esperou que entrasse no quarto, mas ele dirigiu-se à salinha e ligou a televisão. À meia-noite, Amanda foi até à porta e espreitou para dentro. Estava a dormir.

"Acorda-o! ", gritava-lhe uma parte dela. Mas não podia. Se estava com um humor como o que mostrara ao telefone, não seria receptivo à sedução, o que a faria sentir-se ridícula e mais rejeitada do

que nunca.

Por isso, voltou para o quarto e ficou às escuras tentando afastar os pensamentos tristes. Só adormeceu por pura exaustão.

Na manhã seguinte, já estava acordada às seis e meia, quando Graham entrou no quarto. Encaminhou-se para o armário, tirou roupa lavada, despiu aquela com que tinha dormido, atirou-a para o cesto e foi à casa de banho. Amanda ouviu o chuveiro e, por uma fracção de segundos, pensou em ir ter com ele... mas perdeu a coragem.

* Olá, linda - saudou Maddie quando Amanda entrou no gabinete.

* Olá, linda - respondeu Amanda, indo direita ao computador para enviar um e-mail a Graham. "Estás aí?" Sabia que era uma abordagem cobarde mas, se dava resultado com os mais reticentes dos seus alunos, talvez também funcionasse com ele.

Depois de uma sessão com um estudante e de passar dez minutos percorrendo os corredores à procura de Quinn, recebeu a resposta"Estou aqui. Que se passa? "

"Precisamos de falar", escreveu. Depois de enviar a mensagem passou trinta minutos na sala dos professores a falar com a professora de Inglês de Quinn. O rapaz estivera de manhã na aula, com o ar mais despreocupado do mundo. Estudara? A professora não tinha a certeza. Estavam a trabalhar o Rei Lear e tinham passado a aula a ver um vídeo.

A resposta de Graham estava à sua espera quando regressou ao gabinete: "Está bem. Fala. "

"Estás zangado? ", escreveu.

Seguiu-se outro e-mail logo que ele teve tempo de receber, ler e responder à sua pergunta: "Estou. O nosso casamento não devia ser assim. "

"O nosso casamento tem sido o máximo", replicou ela, sublinhando "máximo" e escrevendo a palavra a negrito. "Este é o nosso primeiro problema. "

"Referes-te ao bebê ou à confiança? "

"Às duas coisas", escreveu ela. Ainda mal começara a ler uns relatórios quando chegou a resposta.

"Mas a confiança não tem nada a ver com o bebê. "

"Tem sim senhor. "

"Como? "

Pensou na maneira de responder enquanto vagueava pelos corredores durante um intervalo. Estabelecera alguns dos seus melhores contactos com os estudantes durante estes passeios. A visibilidade era importante e a disponibilidade também.

Mas desta vez, embora visse Quinn, não teve sorte. O rapaz estava a rir com os amigos e parecia bem. Não olhou para ela, mas era natural que quisesse evitar o que não conseguia encarar.

E ela? Orgulhava-se de ser mais velha e sensata do que os estudantes, mas evitar Graham não era uma grande prova de maturidade.

Por isso, regressou ao gabinete e expôs-lhe o seu grande medo: "E se não pudermos ter filhos? Posso confiar que vais querer continuar casado comigo? "

* Amo-te - disse Maddie.

Sorrindo com tristeza, Amanda deu uma gulodice ao pássaro:

* És uma querida.

* Gulodice, querida? - perguntou a ave.

* Gulodice, querida - respondeu, dando-lhe outra e regressando para junto do computador.

A resposta de Graham não se fez esperar: "Que pergunta tão insultuosa! ", replicou, sublinhando "tão" e escrevendo a palavra a negrito.

"Mas sei que queres muito ter filhos. E a tua família também. A tua família é tudo para ti. Eu não sei se sou. "

"Estamos outra vez a falar de opções? "

"Não. Sou eu que preciso de consolo. Não ando a sentir-me muito feminina. "

"Pois eu não ando a sentir-me lá muito masculino. E não me ajuda ver-te a dormir na salinha. Faz-me sentir que não sou desejado. "

"Quem dormiu na salinha ontem à noite? ", escreveu ela, enviando-lhe outra mensagem logo a seguir: "Estou farta de e-mails. Não me entendas mal, não estou a acusar-te. É que não sei o que sentes. "

"Sinto-me rejeitado. "

O coração partiu-se-lhe. "Jantamos hoje à noite? vou buscar bifes e uma salada e podemos falar. "

Enquanto esperava pela resposta, recebeu outro estudante e almoçou no bar com um grupo de calouros que estava a orientar num projecto de serviço à comunidade. A seguir, passou trinta minutos inquietos no gabinete, escrevendo apontamentos sobre as sessões que tivera nessa manhã. Graham só depois disso respondeu ao seu convite.

"Tu não falas. Acusas e foges. "

"Foi o que aprendi". Quase apagou o que escrevera. Podia acusar os pais quanto quisesse, que isso não ajudaria o seu casamento. Nalguma altura teria de ser responsável pelas suas acções. Dito isto, o que escrevera ajudava a explicar por que fazia o que fazia. Por isso, acrescentou: "Ajuda-me a mudar, Graham. "

A resposta veio num abrir e fechar de olhos: "vou jantar a casa. "

Graham tentou não pensar na palavra "divórcio" mas, tendo-se separado uma vez, a palavra fazia parte do seu vocabulário. Se o casamento com Amanda não desse certo, seria um vencido a dobrar. Pertencendo à família a que pertencia e tendo uma educação religiosa, seria um golpe emocional de que talvez nunca mais recuperasse.

De resto, era ridículo pensar em divórcio. Amava Amanda. Estavam numa altura difícil e mais nada.

Quem lhe dera saber o que fazer! Tudo nela lhe dizia que a mulher queria ficar sozinha. Portanto, deixara-a a paz. Se queria dormir sozinha, tudo bem. Estava a dar-lhe espaço. Não gostava, mas não via outra hipótese. Não ia humilhar-se arrastando-se atrás dela, sobretudo se ela andava a repensar o casamento. Se calhar queria pôr-lhe um ponto final, como Megan. Talvez fosse um fracasso como marido. Talvez fosse um fracasso como homem.

Que dissera ela? Que estava farta de e-mails porque podia haver mal-entendidos? Ultimamente, era a história da sua vida no que dizia respeito a Amanda. Podia falar sobre tudo e mais alguma coisa com os irmãos sem se preocupar com o que cada um pensava, mas todas as palavras contavam com a mulher... não só contavam, como saíam agressivas. Havia tanto em jogo!

Agora tinham um encontro marcado. Conversariam ao jantar. Gostaria de fazer um curso rápido sobre a maneira de comunicar com a mulher. Gostaria de ser melhor no casamento.

Era bom no trabalho. E tinha até de mais. Se Amanda estivesse grávida, teria recusado o trabalho em Providence. Apesar de ser muito atraente e um desafio profissional, ia ocupar-lhe muito tempo.

Mas como Amanda não estava grávida, até dava graças por andar atarefado. Assim, trabalhou no escritório até tarde e depois foi para casa. O facto era que queria Amanda que, de resto, ainda não chegara.

Quase lhe apeteceu voltar para o escritório. Não queria parecer muito ansioso nem abrir-se à desilusão se ela não sentisse o mesmo que ele. Mas adorava aquela casa e tinha que fazer.

Estava a lavar a carrinha quando Jordie Cotter se aproximou:

* Quer ajuda?

* Claro que sim. - Graham atirou-lhe um pano: - Limpa bem em volta dos faróis, onde a sujidade costuma entranhar-se. Já tirei grande parte com a mangueira, mas verifica. Hoje não há jogo? - Os pais da comunidade assistiam em peso aos jogos de basebol das tardes de sexta-feira. Graham também ia muitas vezes ao campo, sobretudo agora que conhecia os jogadores através de Jordie.

A boca do rapaz perdeu o sorriso.

* Hoje foi só treino. O jogo realizou-se ontem. Perdemos.

* Por muito?

* Doze-três. Graham fez uma careta.

* Ai!

* Tudo porque não temos o Quinn - acusou o rapaz. - O Edlin devia ter pensado nisso quando o castigou. A Amanda concordou com a suspensão?

Graham não queria comprometer Amanda nem de uma maneira nem de outra.

* Não sei. Mas tinha de se fazer alguma coisa. Não se pode aparecer embriagado no treino. Então a equipa está muito desfalcada?

* Está. - Jordie limpou os piscas com um certo esforço. - Caíram mais pedras da torre.

* Eu sei. Estive lá no outro dia. - Ele e Jordie tinham pela mata um grande amor que partilhavam praticamente desde que Graham e Amanda se haviam mudado para aquela casa. com dez, onze e até doze anos, Jordie fora muitas vezes sentar-se com Graham na base da torre. Juntos, tinham especulado sobre a sua origem e criado várias teorias fantásticas.

Havia já algum tempo que não iam à mata na companhia um do outro, mas Graham já vira Jordie ir para lá sozinho mais do que uma vez.

* Acha que vai cair? - perguntou o rapaz.

* Até agora não caiu.

* Sabe do bebê da Gretchen?

Esfregando a sujidade entranhada no painel dos comandos, Graham respondeu:

* Por acaso sei. Soube num dia destes.

* Que acha?

* Acho óptimo.

* Sim, mas com quem é que ela esteve? Quem é o pai?

* Isso agora... não sabemos com quem é que a Gretchen anda.

* Não anda com ninguém. Ouvi a minha mãe dizer que acha que é o meu pai.

Graham parou e olhou para ele.

* Ouviste-a dizer a quem?

* A si própria. Ela fala sozinha quando está zangada. Sabe, anda a resmungar de um lado para o outro. Ouvi-a hoje de manhã quando estava a fazer as camas. Os meus pais discutiram no outro dia. Ela não o acusou directamente, mas quase. Acha que é ele?

* Não - retorquiu Graham, como devia. Jordie conversava com ele como não falava com muitos adultos, provavelmente porque Graham era sempre honesto. Mas era do pai de Jordie que estavam a falar e ainda não se provara nada. - Ele ama a tua mãe.

* Não foi isso que o impediu de fazer fosse o que fosse das outras vezes - murmurou Jordie. Nesse momento, Graham deu-se conta de que o rapaz que ia com ele para a mata já era um homenzinho.

Encostado à parte de trás da carrinha, Jordie examinou a casa da viúva. Está a olhar para nós, sabe?

* Não, não sabia.

* Põe-se na sala de jantar a espreitar por cima das cortinas.

* Se calhar sente que estás a olhar para ela.

* Que quer ela de nós?

* O mesmo que toda a gente quer de um vizinho. Ou de um bairro.

Um pequeno BMW vermelho desceu a rua. Jordie fitou-o de relance e ficou extasiado:

* Oh! Uau! - exclamou. - Olhe aquele carro!

Graham viu um miúdo que parecia muito novo para ter carta conduzindo um carro que de certeza não comprara.

* Quem é?

* O Alex Stauer. Tenho de ir. - Estendeu o pano a Graham e partiu a correr. Segundos depois, já estava no banco de trás do carro, que deu meia volta e desapareceu.

Graham estava a observá-lo quando Lee Cotter encostou o automóvel.

* Era o meu filho? - gritou pela janela.

* Era - respondeu Graham, regressando ao trabalho. Lee estacionou e foi ter com ele.

* Que máquina!

* Conduzida pelo Alex Stauer. Não é um dos que foram suspensos da equipa com o Quinn?

* É.

* E então os pais acharam por bem dar-lhe um prêmio de consolação?

* É o carro da mãe, que tem uma pancada - explicou Lee, com um sorrisinho muito familiar.

* Como sabes? - perguntou Graham, que logo a seguir levantou a mão. - Não respondas. Não quero saber para não dizer nada se me torturarem e me chegarem lume aos tomates.

Lee soltou uma risadinha e depois continuou, já com um ar sério

- Por falar nisso, agradeço-te que não admitas à tua frente conversas sobre mim e a viúva. - Graham lançou-lhe um olhar inocente e ele explicou: - A Karen anda numa aflição. Acha que sou o pai da criança.

* E és?

* Achas que ia dizer-te para dar uma arma aos carrascos? - perguntou Lee. - Fica do meu lado. Das outras vezes, mostrava à Karen que a amava tendo filhos com ela, mas da última vez que o fiz, acabámos com três.

* Podias ter parado nos gêmeos. Lee fez uma careta:

* Houve uma coisinha depois dos gêmeos. Tive de a convencer mais um bocadinho.

Graham sentiu uma certa repulsa:

* A Karen merece melhor.

Lee deu uma risadinha.

* Todas as mulheres merecem, mas... olha, é assim. Ela tem casa e filhos e fazemos férias duas vezes por ano. A vida até nem lhe corre nada mal. Fazes isso? Pedes à Amanda que convença a Karen a não andar em cima de mim?

Graham não ia fazê-lo. Mesmo que aprovasse o comportamento de Lee, e não aprovava, tinha coisas mais importantes para discutir com a mulher.

A caminho de casa, Amanda parou no centro de Woodley para ir buscar comida. Comprou dois bifes no mercado da carne, uma alface fresca, um tomate enorme, três pimentos, um vermelho, um amarelo e um verde, e os ingredientes necessários para o vinagrete de framboesa preferido de Graham. Quando entrou na rua sem saída, limitou-se a dar uma vista de olhos a Gretchen, que estava outra vez a regar plantas, e a acenar a Karen, que se encontrava no alpendre. Os seus olhos cravaram-se em Graam, tão bonito e adorável a puxar o lustro à carrinha que até se sentiu embaraçada. Ele fitou-a quando saiu do carro.

* Queres ajuda? - perguntou.

Ela abanou a cabeça, sorriu-lhe de passagem e entrou. Pôs a mesa com a louça de porcelana, os copos de cristal e os talheres de prata que lhes tinham oferecido no casamento. Passou os bifes por água, enxugou-os com umas palmadinhas e dispô-los numa travessa. Fez a salada e depois o molho. Estava a caminho da casa de banho para se refrescar e mudar de roupa quando o telefone tocou.

Atendeu com medo de que fosse uma chamada de trabalho para Graam, o que seria muito inconveniente naquela altura.

* Está? - disse em voz apressada.

* Amanda? Fala a Maggie. Temos um suicídio.

 

Suicídio. Amanda ficou sem ar.

* Quem? - perguntou. Mas já sabia. O rosto de Quinn apareceu-lhe à frente. Quando Maggie o confirmou, suspirou profundamente. Fechou os olhos e levou o punho à testa, como se isso pudesse apagar as imagens que via à frente, mas não foi poupada.

* Enforcou-se na sala dos cacifos - continuou Maggie.

O guarda deu com ele lá antes, depois do treino da equipa, e disse-lhe que devia ir para casa. O Quinn pediu-lhe para o deixar ficar a fazer os trabalhos de casa, porque era onde se concentrava melhor. O senhor Dubcek teve pena dele depois de tanto barulho por causa da suspensão e deixou. Foi-se embora tratar dos seus afazeres e, quando regressou uma hora mais tarde, encontrou o Quinn. Ainda tentou reanimá-lo, mas já era muito tarde.

Muito tarde. As palavras ecoavam com uma finalidade que a gelou até aos ossos. Para ela, não conseguir engravidar era uma espécie de morte, mas nada como aquilo. Quinn Davis já estava completamente formado e era um ser humano que vivia e respirava. Tinha um nome, um rosto, personalidade. Era viável no mundo e, dadas as suas proezas atléticas e aptidões de liderança, um membro produtivo da comunidade.

* Morreu - sussurrou Amanda. A impotência até lhe doía.

Sabia que ele não era o que parecia, mas nunca imaginei uma coisa assim. Tem a certeza de que foi propositado?

* Sem dúvida. Deixou cartas aos pais e à namorada.

 

Amanda suspirou outra vez. O suicídio era terrível.

* Sentir assim tanta dor...

* Não sabíamos, Amanda. Nenhum de nós sabia. Mas agora tenos de pensar. As pessoas conheciam-no e gostavam dele. Até os que não eram seus amigos vão ter um choque. Para muitos deles, é o primeiro contacto com a morte.

A psicóloga era Amanda. Sabia do que Maggie estava a falar e devia ter sido ela a dize-lo. Mas o seu estado era de choque.

* As conseqüências... - conseguiu murmurar Amanda. Era a preocupação. Um medo extremo, a depressão profunda, até suicídios fingidos. Um pesadelo para a psicóloga de uma escola. Este pensamento fê-la cair em si. - Quem sabe o que aconteceu? - perguntou a Maggie.

* A família e os amigos. Dois estavam à espera dele em casa quando telefonámos. Já devem ter contado aos outros. Não tarda, toda a gente saberá. Que fazemos?

Amanda ainda soltou mais um suspiro atordoado antes de afastar a imagem de Quinn e de se concentrar nos que tinham ficado.

* Reúna a equipa de crise. É para isso que serve. - Enquanto falava, tirou a agenda da pasta que pousara numa cadeira da cozinha e consultou a lista e os números de telefone. - Temos que nos encontrar para discutir o assunto. Os estudantes que não souberem hoje à noite, saberão amanhã. O Fred pode ficar?

* Vai ficar. Manda toda a gente para o seu gabinete. A cabeça de Amanda funcionava agora a todo o vapor.

* Há uma psicóloga a quem gostaria de telefonar. Dirigiu um seminário sobre o suicídio nas escolas a que assisti no Outono passado e não vive longe de Woodley. É sempre melhor os miúdos estarem com pessoas que conhecem numa altura destas, mas ela é uma pessoa muito calorosa e receptiva. Prefiro tê-la por perto. vou telefonar-lhe depois de falar com os outros.

* Que posso fazer?

* Ligue aos directores dos departamentos e diga-lhes para telefonarem aos respectivos professores. Se estiverem amanhã na escola... digamos... às nove horas, poderemos contar-lhes o que se passou na reunião de hoje à noite.

* A que horas vem para cá?

Amanda consultou o relógio pendurado na parede e só então viu espalhados no balcão os preparativos para o jantar romântico e de reconciliação com Graam.

Mas morrera um estudante. A crise não podia ser pior. Ele teria de compreender.

Eram quase seis horas.

* Dê-me uns minutos para telefonar à equipa de crise. Pode ser às sete?

Ainda mal começara a telefonar quando Graam subiu os degraus das traseiras. Foi ter com ele à porta, recusando-se a ver o ramo de flores silvestres que apanhara naquilo a que chamava o seu "esconderijo pessoal", ao fundo do jardim.

* Acabo de receber um telefonema. O Quinn Davis suicidou-se. Graham baixou a mão, esquecendo as flores, e empalideceu.

* Matou-se? - perguntou, incrédulo.

Amanda assentiu, sentindo-se atingida pela realidade.

* Enforcou-se, Gray. Na sala dos cacifos da escola. Graham ainda não acreditava.

* O Quinn Davis?

* Era inteligente - começou ela, enumerando todas as razões para a tragédia nunca ter acontecido -, bonito, atlético e simpático. Tinha tudo para viver. O seu único pecado foi ter bebido, e nem sequer houve polícia pelo meio.

Graham passou a mão pelo cabelo e suspirou, dizendo adeus ao optimismo e à esperança, à semelhança do que Amanda fizera quando soubera do sucedido.

* Mas toda a gente sabia da expulsão da equipa - comentou, tentando perceber. - E o jornal fez tanto espalhafato! Dizia-se que ele vivia para basebol, que respirava basebol. Matou-se por causa de seis jogos ? Os seis jogos eram assim tão importantes no cômputo geral? Lembrar-se-ia desses seis jogos quando jogasse na faculdade? Ou depois, a nível profissional?

Amanda levou a mão à barriga. Sentia um nó no estômago.

* Havia mais qualquer coisa, mais profunda. Se tivesse podido falar com ele, talvez soubesse o que era, mas agora é tarde. O Quinn morreu.

* Oh, Mandy - disse Granam, tomando-a nos braços. - Não te culpes.

Ao princípio, não disse nada. Era tão bom ser abraçada, voltar a ser o centro da ternura de Graham, que se deixou ficar saboreando o seu calor até a culpa tomar conta dela outra vez. Baixou os braços e recuou.

* O Quinn é... era um líder. O problema agora é que ninguém faça dele um herói e tente imitá-lo.

* Isso não tem sentido.

* O suicídio não tem sentido. - Cruzou os braços. - É um absurdo. Nós a tentar a todo o custo trazer uma criança ao mundo e uma outra criança mata-se assim. Não é justo, Graan.

* Há muita coisa que não é - murmurou ele, passando por ela, pousando as flores e ficando parado de costas, com as mãos apoiadas no balcão. De repente, Amanda sentiu vontade de falar de tudo, de quem merecia o quê, do que era preciso para as pessoas serem bons pais e de como ela e Graan seriam os melhores pais do mundo. Apetecia-lhe falar das coisas que podiam dar cabo de uma relação e da maneira de as cortar pela raiz. Apetecia-lhe falar dos sonhos que pareciam desfazer-se em fumo.

Mas não havia tempo. Tinha de fazer mais telefonemas e de participar numa reunião. Participar? Dirigir. A maneira como o liceu de Woodley ia lidar com a crise era da sua responsabilidade, o que a fazia sentir um peso tremendo.

* Desculpa o fracasso do jantar - disse ela.

Ele não se virou.

* Deixa lá. De qualquer maneira, tenho de trabalhar.

* Não sei quando voltarei. - Eu também não.

* Não vais trabalhar aqui?

* Não, vou para o escritório Concentro-me melhor.

* As pervincas são lindíssimas.

* Foi só uma lembrança. Quase conseguimos.

A última frase bateu-lhe em cheio. Tinha tantos significados que, se ousasse pensar neles, ficaria completamente deprimida. Era mais fácil concentrar-se nos telefonemas que tinha de fazer.

* Pode ser mais tarde? - perguntou, enquanto levantava o auscultador.

* Claro. - Mas não parecia convencido.

Embora compreendesse a crise, Graham estava sentido com Amanda, que lhe virava as costas numa altura em que precisava dela. Sim, sabia que não havia tragédia maior do que a morte. Sim, sabia que poderiam conversar mais tarde. Sim, sabia que não estava a ser razoável.

Mas uma coisa era a razão e outra o coração. Sentia-se rejeitado mais uma vez.

Zangado, esperou que o carro de Amanda desaparecesse, atravessou a rua, deu a volta ao jardim e encaminhou-se para a porta das traseiras de Gretchen Tannenwald. Não viu as oliveiras que plantara, nem o emaranhado tapete de juníperos ou os cornisos. Nem sequer viu as pedras toscas que usara para formar um caminho em volta da casa. Decidido, bateu à porta e tocou à campainha, sossegando apenas quando a viu aproximando-se.

Gretchen não lhe sorriu.

* Já estava a ver que faltava alguém - disse, abrindo a porta.

Ele entrou na cozinha: - Não percebo.

* O Russ e o Lee estiveram cá.

* Pois, a pergunta é cada vez mais premente por aqui. Por mim, não preciso de saber. Vai tudo bem?

* Vai.

* É preciso fazer alguma coisa?

Depois de pensar um bocado, Gretchen encolheu os ombros:

* Não, agora não. Café? Coca-cola?

* Não, obrigado. Não posso demorar. Já me arrisquei muito ao vir aqui. Ainda podem ver-me. - Estava a pensar em Karen, mas Lee também não hesitaria em passar palavra se fosse do seu interesse.

* Se não exijo nada a ninguém, porque há-de ser assim tão importante? - perguntou Gretchen.

* Porque a confiança é frágil. - Graham baixou a cabeça e cocou a parte de trás do pescoço. A seguir, suspirou e voltou a erguer o olhar. - Bem, não sei o que disseram os outros mas, por favor, se for preciso é só gritar.

Ela assentiu, comprimindo os lábios.

Graham fitou-a um último minuto, recordando-lhe o pacto. Depois, pescando as chaves nos bolsos dasjeans, desceu os degraus a correr, voltou a percorrer o jardim e a atravessar a rua, entrou na carrinha e dirigiu-se para a cidade.

Karen observou Graham saindo de casa de Gretchen. Verdade seja dita, não achava que Graham andasse com ela. Estava convencida de que era Lee. Mas porque fora a correr para sua casa logo que Amanda saíra?

O que significaria tudo aquilo? Graham teria sabido alguma coisa? Nisto, o telefone tocou. Levantou o auscultador, mas Jordie já atendera noutra extensão. Estava alguém a falar com ele... não propriamente a gritar nem a chorar, mas numa grande perturbação, tanta que nem reconheceu a voz. No entanto, teria de ser muito tapada para não perceber a mensagem.

* O Quinn fez o quê? - perguntou no meio da conversa.

* Matou-se, senhora Cotter. Encontraram-no na escola.

* O quê? - gritou.

* Estava inconsciente - disse Rob Sprague, agora já suficientemente calmo para ela lhe reconhecer a voz. Rob fazia parte da equipa de basebol. Como Jordie. E como Quinn.

* Tomou comprimidos? - indagou ela.

* Calmantes. O pai anda sempre a tomá-los. Uns amigos nossos foram a casa dele e estavam lá quando a polícia chegou. Vamos todos para lá agora, Jordie. Queres que vá buscar-te?

Karen não acreditava. Mesmo apesar da bebedeira, mesmo apesar do artigo do jornal, nunca imaginaria que Quinn Davis estivesse perturbado ao ponto de se matar.

* Jordie? - perguntou Rob.

Karen estava a pensar que se um rapaz como Quinn fizera uma coisa daquelas, então o filho, que era muito mais vulnerável, podia... quando ouviu um som atrás de si. Parado à porta, com o rosto da cor da cinza e os olhos assombrados, Jordie parecia tão perdido que ela pegou no auscultador.

* Temos de verificar se é verdade. Pode ser só um boato. Jordie já estava a abanar a cabeça mesmo antes de ela acabar de falar. Quando engoliu convulsivamente, a maçã de Adão subiu-lhe e desceu-lhe no pescoço, como se fosse grande de mais.

* Porque haveria o Quinn de se matar? - perguntou ela. - Era feliz. Era uma estrela.

Jordie voltou a abanar a cabeça, agora com os olhos vidrados.

Ela aproximou-se sem saber muito bem o que havia de fazer. Se fosse mais novo, abraçá-lo-ia. Mas havia anos que ele não o permitia. Por isso, limitou-se a estender a mão para lhe tocar no rosto.

Ele recuou e desviou o olhar, carregando o cenho e parecendo estar a tentar entender. Depois, encaminhou-se para a porta.

* Aonde vais? - perguntou ela. Ele não respondeu.

Karen seguiu-o até à garagem.

* Jordie, vamos fazer uns telefonemas. Vamos tentar saber tudo, verificar esta história.

Mas ele já montara na bicicleta de dez velocidades com a qual não queria que o vissem nos últimos tempos, porque só tinha duas rodas em vez de quatro, e começou a afastar-se.

* Que digo se o Rob voltar a telefonar? - perguntou ela. - Para onde vais?

A voz dele foi arrastada pela brisa quente da tarde.

* Para casa do Quinn.

Geórgia seguia ao volante do seu carro de aluguer. Regressava do aeroporto de Tampa, onde fora buscar os dois representantes do seu potencial comprador. Um era vice-presidente e o outro director executivo. Ia levá-los ao hotel antes de um jantar de trabalho. No dia seguinte, passaria o tempo em reuniões e visitas às instalações. Nisto, o telemóvel tocou.

* Está?

* Mãe, o Quinn matou-se. - Allison parecia muito assustada.

* Ele fez o quê? - perguntou Geórgia, mais alarmada pelo ton de voz da filha do que pelas suas palavras. Os miúdos... os adolescentes. empregavam a palavra "matar" em muitos sentidos.

* Cortou os pulsos. Foi o senhor Dubcek que o encontrou. Já era tarde para fazer fosse o que fosse.

Geórgia começou a tremer:

* Estás a falar a sério?

* Estou. A Brooke telefonou-me mesmo agora. Parece que estava tudo... Mas morreu, mãe. O Quinn morreu.

* Meu Deus! - murmurou Geórgia. Incapaz de se concentrar na estrada, ignorou a existência dos dois homens que estava a tentar impressionar e encostou o carro. - Oh, Allie, nem acredito! Mas porquê?

* A Brooke diz que foi por causa do artigo do jornal.

* Que artigo? - indagou Geórgia, sentindo-se outra vez de fora.

* A suspensão dele foi o artigo de fundo do Woodley Weekly de ontem. A Brooke diz que ficou tão envergonhado que não conseguiu suportar, mas a Melissa diz que os pais é que não conseguiam suportar. Falou com ele ontem à noite ao telefone e eles estavam constantemente a entrar e a sair do quarto, ameaçando com internatos e acções judiciais. -A voz embargou-se-lhe: - Morreu. Nunca mais o vejo.

* Começou a chorar.

* Tem calma, querida - disse Geórgia, sentindo o corpo da filha tremer através do telefone. - Vai passar, vai passar.

* Não vai nada - soluçou a rapariga. - Ainda hoje à tarde o vi. Estava a falar com a Kristen e a Melissa no corredor quando ele se aproximou para perguntar a que horas a Melissa ia ao cabeleireiro. Matou-se quando ela estava a cortar o cabelo. Suponho que quis certificar-se de que ela não andava por ali. Deixou-lhe uma carta de amor, dizendo-lhe que a culpa não era dela. Mas se a amasse de verdade, não o teria feito. Como pode alguém... matar-se, mãe?

Como responder, sabendo que ela confiaria cegamente nas suas palavras?

* A maioria das pessoas não o faz, querida. Não sabemos o que se passou com o Quinn. Só sabemos que não era tão forte como pensávamos. Querida, o teu pai está contigo?

* Foi a casa dos Cotter tentar saber mais alguma coisa - fungou Al lison.

* Falaste com o Jordie?

* Não, Isto é terrível. Não sabes como é terrível.

* A morte é terrível.

* Não. Para o Jordie. - A voz animou-se-lhe. - Sabes, na terça-feira passada, quando o Quinn se embebedou, estiveram a beber vodca. Foi o Jordie que arranjou a garrafa.

* Oh, meu Deus!

* Mas não podes dizer a ninguém. Jura que não dizes. O Jordie nunca mais me falava se soubesse que te contei. Mas percebes como é terrível?

Geórgia nem imaginava a culpa que o rapaz devia estar a sentir.

* Percebo. Onde está ele agora?

* Foi para casa do Quinn. Está lá a equipa toda. Mãe, que faço? "Para já, o teu pai que vá para o pé de ti", apeteceu-lhe gritar.

Nem acreditava que Russ a tivesse deixado sozinha, mesmo por pouco tempo. Allie precisava de colo, de afecto.

Precisava da mãe... era disso que precisava. O problema não era só a morte de Quinn, mas toda a questão da mortalidade. Claro que Allison sabia que as pessoas morriam. Perdera dois avós nos últimos anos, avós que conhecera e que amava. Mas Quinn era da sua idade. A morte dele levá-la-ia a pensar na sua. Era assustador para uma adolescente de catorze anos que começava a desabrochar. A vida sorria-Ihe. Tinha sonhos.

* A primeira coisa que tens a fazer é ir buscar o teu pai e dar-lhe um abraço - começou Geórgia. - Diz-lhe que precisas dele junto deu.

* Mas you a casa do Quinn?

* Hoje não. Só se as outras também forem. Os pais do Quinn devem estar em estado de choque. Não devem querer muita gente à volta deles.

* O que vai acontecer a seguir?

* Os pais devem estar a organizar o funeral... Allison gritou quando ouviu a palavra "funeral".

Por muito que quisesse, Geórgia não tinha maneira de a proteger da situação. Seria uma experiência que a faria crescer.

* Deve haver um velório. Cumprimentarás então os pais do Quinn. - Geórgia levantou o braço para ver as horas. - Ouve, querida, ainda consigo avião hoje à noite. Vai buscar o pai enquanto eu trato das coisas. Telefono logo que souber a que horas chego.

* Está bem.

* E vê se o teu irmão não precisa de nada.

* Está bem.

* Amo-te, querida. Daqui a pouco estou aí.

* Eu também gosto muito de ti, mãe.

Geórgia tinha os olhos marejados de lágrimas quando desligou. Só então, pela primeira vez em minutos, se lembrou dos passageiros. Os seus olhos dirigiram-se ao homem que tinha à direita e depois ao que ocupava o banco de trás. De repente, pensou em tudo o que estava em jogo. Tinha de os impressionar com a eficiência dos escritórios do sueste, mas também consigo própria. Devia comportarse como una profissional e não como uma mãe aflita.

Mas não havia nada a fazer.

* Não posso ficar - declarou. - Tenho uma emergência em casa. Não acontece muitas vezes, mas quando acontece não há volta a dar-lhe.

* Um dos seus filhos perdeu um amigo? - perguntou o vice-presidente.

* Suicidou-se - explicou, sentindo um sobressalto ao ouvir as suas próprias palavras. - A minha filha está muito perturbada.

* O seu marido não está com ela? - indagou o outro.

* Está, mas eu também devo estar. - Meteu a mudança e o carro arrancou. - Deixo-vos no hotel e telefono ao meu gestor para me substituir amanhã. Ele mostra-vos tudo. - Espreitou pelo retrovisor.

* Mas viemos falar consigo e não com o seu gestor - protestou o vice-presidente. - A senhora é uma parte essencial do pacote.

Pacote. Que palavra impessoal! Geórgia não era um pacote. Era uma mãe. Sim, era presidente de uma empresa mas, de momento, essa constituía a menor das suas preocupações. Bem, não ia dize-lo às suas visitas... pelo menos não assim de rompante.

Enquanto guiava, cismava na resposta. Por fim, disse:

* Não é a primeira vez que nos encontramos. Já sabiam quem sou, como falo, que aspecto tenho. Já verificaram a minha vida, se devo dinheiro, se tenho cadastro. A família é outra coisa. Uma questão de prioridades. Sim, o meu marido está em casa com os meus filhos, mas não há na vida muita coisa pior do que a morte. Se não posso estar com os meus filhos nesta altura, então não presto para nada. - Por sso - rematou, detestando o trabalho como nunca detestara -, sei que vieram de muito longe para falar comigo, mas tenho que me ir embora, desculpem.

Amanda chegou a casa perto da meia-noite. Emocionalmente esgotada, meteu-se na cama e chegou-se as costas de Graham. Sentiu que ele estava acordado, mas não falou. Ela também não. Falara durante horas e o dia seguinte não seria melhor. Amanda não se permitiu pensar nos seus problemas nem que, no mês anterior, se preparava por esta altura para começar a tomar Clomid. De momento, só queria saborear o calor do corpo dele.

No entanto, não dormiu bem. O dia seguinte ia pô-la à prova como nunca. E o seu estômago não se esquecia disso, pois tinha contracções nervosas de vez em quando.

Levantou-se às cinco e meia da manhã de sábado. Graham estava na casa de banho quando saiu do duche. Tinha o cabelo despenteado e os olhos cansados, mas era uma visão adorável de pé com os boxers, ombros largos e corpo comprido e esguio e nada no olhar a não ser uma grande compreensão.

* Como estás? - perguntou com doçura. Ela começou e enxugar-se com a toalha.

* Cansada.

* Como vai ser hoje?

* Os professores ficaram de estar na escola às nove. Quero falar com eles para lhes contar exactamente o que aconteceu e dizer-Ihes o que devem ou não explicar aos miúdos. A Ann Kurliss, a tal psicóloga, vai expor-lhes o que as crianças estão a sentir e como é que os professores devem agir. As portas estarão abertas todo o dia e os professores revezar-se-ão. Dissemos-lhes os sinais a que devem ter atenção nos miúdos que aparecerem. A equipa de crise estará a postos para tratar dos que estiverem especialmente perturbados.

* Que se diz a uma criança numa altura destas?

* Não muito. Sobretudo ouve-se. - Pondo a toalha de lado, pegou na roupa interior. - É preciso que exprimam livremente os seus medos. Temos de os deixar fazerem o seu luto. Eles far-nos-ão saber as suas necessidades. Temos de ouvir e de nos adaptar o melhor possível.

* Quando é o funeral?

* Na segunda de manhã. A freqüência às aulas vai ser facultativa durante todo o dia. - Pegando noutra toalha, esfregou o cabelo.

* Pensei que não ia haver aulas - observou Graham.

* Houve quem pusesse essa hipótese - respondeu ela, baixando a cabeça, enrolando a toalha à volta do cabelo e endireitando-se. Sentia-se mais fresca. Mais forte. Falar com Graham, sentir nele um aliado... era muito importante. - Passámos imenso tempo a discuti-la. Os estudantes de Woodley sabiam quem era o Quinn, mas nem todos o conheciam. São miúdos que não vão necessariamente ao funeral. Tivemos medo de lhe dar um estatuto de herói se fechássemos a escola. Dada a maneira como morreu, não podemos fazê-lo. - Começou a maquilhar-se.

* Sabe-se porque se matou?

* Não.

* Os pais não disseram nada?

* Não.

Graham sorriu com tristeza.

* Não devemos acusá-los. São quem são. Já houve muitos miúdos que passaram pior e não se suicidaram. - O sorriso desapareceu-Ihe. - Quem pode dizer se agiríamos melhor?

* Eu - retorquiu Amanda, observando-o pelo espelho enquanto se pintava. - Nós agiríamos melhor.

* Achas que sim?

* Tu não?

* Dantes achava, mas não temos andado a fazer um bom trabalho. Assustada com o rumo da conversa, Amanda insistiu:

* Temos sim. Estamos a fazer uma pausa.

* Não devíamos fazer mais do que isso?

* Às vezes, em situações de crise, é tudo o que podemos fazer.

* Estamos em crise?

Amanda fechou a tampa da máscara e disse:

* Estamos. - Cravando os olhos nos dele. - Temos de falar, mas agora não posso, e se o dia for como receio que seja, também não poderei à noite.

* Porque vais ficar na escola até tarde? E amanhã?

* De manhã devo ir para lá e à tarde é a festa da tua mãe.

* Ainda queres ir?

* Claro que sim.

* Vais estar esgotada.

* Não.

* Falas sempre em distanciar-te emocionalmente do teu trabalho, mas parece que não está a dar resultado.

* Pois não - admitiu, porque não queria discutir. - Mas se não agora, quando? Isto é temporário.

* Ainda bem que desistimos do bebê - disse ele, regressando ao quarto. - É uma complicação a menos.

Ela seguiu-o.

* Não desistimos. Estamos a fazer uma pausa. Uma pausa, mais nada.

Ele imobilizou-se, levou as mãos às ancas e baixou a cabeça. Passado um minuto de silêncio, respirou fundo e ergueu o olhar.

* Queres que te faça um café antes de saíres?

* Quero, obrigado.

* Graam decidira passar o dia no escritório. Como era sábado, estaria sozinho, o que significava que se concentraria melhor no trabalho.

Andava a desenhar os planos preliminares para o projecto de Providence e sentia-se ansioso por se perder nele. Esta fase criativa era a parte de que gostava mais.

Naquele dia, no entanto, só o absorveu até cerca do meio-dia. O pensamento começou a vaguear-lhe e não se acalmava. Sentia-se inquieto e impaciente. Não via nada de novo ou empolgante aparecendo no ecrã do computador, o que era um golpe para o seu ego profissional. Insatisfeito, desligou a máquina às duas, permaneceu no escritório apenas o tempo suficiente para verificar os outros projectos que os seus assistentes tinham entre mãos e foi para casa. De caminho, fez uma paragem para comprar uma dúzia de pés de impaciens.

Pouco depois, envergando uma T-shirt toda enxovalhada, calções e botas de trabalho, levou as flores para o jardim e começou a plantá-las. Passada uma hora, quando já estava suado devido ao calor do sol, Russ apareceu com duas cervejas e sentou-se na relva.

Graham bebeu um grande gole. A cerveja estava fresquinha.

* Os miúdos? - perguntou, levando a cerveja gelada à têmpora.

* O Tommy está em casa de um amigo e a Allie na escola. Russ apontou para os canteiros. - Quem devia fazer isso eram os empregados do Will. Plantar é com eles.

* Isto não é plantar. É fazer jardinagem, que é pessoal e terapêutico. Além disso... - olhou na direcção da mata - não estou lá grande coisa para o escritório.

* Pois, aquilo do Quinn não é nada agradável. Graham assentiu e bebeu outro gole.

* E a Amanda? Aguenta-se? - perguntou Russ.

* Está cansada, mas é o seu trabalho. Como tem andado a sentir-se fora do seu elemento, isto até é bon.

* Fora do seu elemento... referes-te ao bebê? Ele fez que sim com a cabeça.

* E à minha família... até a mim. - Lançando a Russ um olhar constrangido. - Desculpa a lamúria, mas não consigo deixar de pensar no assunto. Sinto que... - Calou-se, carregou o cenho e tentou pôr o dedo onde a ferida doía mais. - Sinto que estou sempre a tentar fazer o que é melhor e que passo a vida a ser derrubado pela mesma coisa.

* Que coisa?

Graham encolheu os ombros. Não precisava de expor a alma... nem o ego, a Russ. Eram amigos, sim, mas aquilo tinha a ver com a sua privacidade.

No minuto seguinte, no entanto, as palavras saíram-lhe.

* O meu primeiro casamento. Sabes o que se passou?

* Só sei que houve um divórcio amigável. Graham perguntou com cautela:

* A Amanda não te contou mais nada?

* Disse-me que ela é amiga da família, mas só para explicar o facto de a tua ex ter vindo um dia a tua casa entregar um presente de anos da tua mãe para ti. Claro que perguntei mais - confessou -, mas a Amanda não se descoseu. Afinal, que mulher gosta de falar da primeira esposa do marido?

* A Megan é mais do que uma boa amiga - esclareceu Graham.

* Vive mesmo ao lado da minha mãe.

Russ carregou o cenho.

* Que estranho para uma ex-mulher! Desde quando? - perguntou com verdadeira curiosidade e inocência.

Assim era mais fácil falar. Graham não precisava de se defender de nada, visto que Russ estava completamente às escuras.

* Desde sempre. A Megan e a família eram nossos vizinhos. Crescemos juntos. Fora os meus irmãos, é a amiga que tenho há mais tempo. Brincávamos e estudávamos juntos. Começámos a namorar logo que soubemos o que isso queria dizer. Namorámos durante o liceu e a faculdade. Toda a gente partia do princípio que casaríamos e foi o que aconteceu logo no primeiro fim-de-semana depois de nos formarmos.

* Uau! - exclamou Russ com um sorriso assombrado. - Então porque não durou?

* Durou seis anos. Depois, disse-me que era lésbica. Russ soltou uma exclamação, admirado.

* Uau! Não é nada fácil para um homem ouvir isso! A maneira como o disse fez Graham dar uma risadinha.

* Acredita que não!

* E não tinhas percebido?

* Na altura do casamento, não. Tínhamos ido para faculdades diferentes. Ela teve um quarto com a namorada durante os últimos dois anos e eu pensei que eram só amigas.

* Mas ela também era tua namorada.

* Sem dúvida que sim.

* Era boa? - perguntou Russ numa voz de homem para homem.

* Estás a tirar apontamentos? - inquiriu Graham, só meio a brincar.

* Claro que não. Gostava de saber o que sente um homem sobre a fertilidade... mas é pessoal. Sou um curioso crônico.

Dito assim, como podia Graham resistir?

* A Megan era boa quando queria. Havia alturas em que se mostrava indiferente e pensei que todas as mulheres eram assim. - Até Amanda. com ela, a química funcionara sempre... tentar ter filhos é que estragara tudo.

* Sabendo como era, como pôde levar o casamento por diante?

* perguntou Russ, obrigando Graham a voltar a concentrar-se em Megan.

* Muito facilmente. E não posso culpá-la por isso. Em parte, queria casar comigo. A sua vida seria mais fácil. A família nunca aceitaria o que ela era. Casar comigo satisfaria toda a gente.

* Toda a gente menos ela. Percebeste alguma coisa antes de ela pedir o divórcio?

* Sabia que estava a afastar-se. Sentia-o. Já não partilhava as coisas. Tinha uma livraria pequenina na cidade e passava lá cada vez mais tempo. Se calhar teria continuado a viver assim, se eu não tivesse levantado o problema.

* O problema da homossexualidade?

* O problema dos filhos. - Graham soltou uma gargalhada e desviou o olhar. - É irônico, não?

* O quê?

* Está a acontecer o mesmo entre mim e a Amanda. Parece que tenho sempre problemas com as mulheres de cada vez que falo em filhos.   Voltou a olhar para Russ. - É como o beijo da morte.

* Não, com a Amanda não. Ela também quer filhos.

* Quer mas é fazer uma pausa. Sabes como me sinto? Russ pareceu horrorizado.

* Quer fazer uma pausa? Nada de sexo?

* Não é isso - replicou Graham. Depois, pensando melhor. Mas também pode ser. Sabes o que estes tratamentos fazem à espontaneidade?

* Imagino.

* Pois pega no que imaginas e multiplica por dez... mas olha que não é para o jornal, Russ. Eu é que preciso de desabafar.

* De acordo.

* Tudo muito rígido. Tudo com tabelas. Tudo agendado segundo a temperatura do corpo e a altura do mês... e nem é bom falar das situações em que é preciso esperma para a inseminação artificial... depois, nada de bebê. - Franziu o cenho. - Sinto-me tão viril como quando a Megan me disse que era lésbica.

* Mas se a Amanda quer fazer uma pausa de tentar ter filhos, o sexo não é melhor?

* Deveria ser, mas desde essa altura que não paramos de discutir. - Calou-se, embaraçado. - Não devia contar-te isto.

* Que o teu casamento não é perfeito? E qual pensas que é?

* O teu.

* Estás a brincar? Alguma vez te contei que a Geórgia chegou a pensar em deixar-me?

* Não acredito.

* Mas é verdade. Foi antes de nos termos mudado para aqui. Estava a construir a minha vida profissional, não muito bem, andava insatisfeito comigo próprio e quem pagou foi ela.

* Como?

* Andava irritado, impaciente e exigente. Criticava tudo, ninharias.

* Que disse ela?

* Que eu não estava a ser justo. Que o contrato não era aquele. Que acabara de encontrar o namorado do liceu e que ele era tudo o que eu não era na altura.

Graham endireitou-se.

* Disse-te isso?

* com todas as letras. Mas também me disse que me amava e que queria que o nosso casamento continuasse.

* Meu Deus! - exclamou Graham. - Não te preocupaste com o namorado do liceu? - Ficaria desfeito se Amanda lhe dissesse qualquer coisa assim.

* Foi um aviso, que percebi a tempo.

* Nunca te preocupas com o que pode fazer quando anda por fora?

* Com homens? Não. Confio nela.

Apeteceu-lhe perguntar-lhe se a confiança era mútua e se Geórgia se preocupava com o que ele fazia quando ela andava por fora. Estava a pensar em Gretchen, mas o bom-senso disse-lhe para não ir por aí.

* Todos os casamentos são postos à prova - observou Russ.

* Pois, postos à prova. - Graham inclinou a garrafa e bebeu outro trago. Depois, endireitando a cabeça, pensou no desafio. - Agora só vê à frente o problema do Quinn. Foi uma altura má. Vem tudo ao mesmo tempo.

* Não há alturas boas para a morte.

Graham suspirou, pôs a garrafa na terra e girou-a até ficar sozinha de pé. A seguir, pousou os cotovelos nos joelhos e passou as mãos pelo cabelo.

* Mas é outra coisa em que pensar. Outro balde de água fria. Quer dizer, quando penso em sexo, lembro-me de como tem sido... bom - continuou, por lealdade para com Amanda. Na verdade, durante os segundos que durava o orgasmo, esquecia tudo e só ficava o prazer. - Mas o seu único objectivo é gerar um filho. Temos de ultrapassar o problema.

* Comecem tudo de novo - aconselhou Russ.

* Temos de voltar à mesma sensação.

* Estabeleçam prioridades. A Geórgia está sempre a falar nisso. Estabeleçam prioridades.

Quais eram as prioridades de Graham? O sexo, Amanda, filhos e o trabalho, não necessariamente por esta ordem.

Então por que ordem?

Amanda vinha em primeiro lugar. Sem ela, nenhuma das outras três coisas funcionava. Queria fazer sexo com Amanda. Queria ter filhos de Amanda. Claro que podia conceber jardins, átrios de centros comerciais, parques de estacionamento e até passeios sem Amanda. Mas para quê? Que faria com o dinheiro se não o gastasse com Amanda e os filhos?

Amanda era o denominador comum de todas as suas prioridades, o elo do qual tudo dependia.

Sim, detestava vê-la alheada. Quando ela se metia na sua concha e o deixava de fora, recordava tudo o que sentira quando Megan anunciara que era lésbica: inadaptação, humilhação, impotência. Se Amanda não era capaz de o compreender, se não conseguia aplicar o que sabia para perceber de onde ele vinha, se não podia estabelecer prioridades e colocá-lo em primeiro lugar, se não lhe dava o benefício da dúvida no que tocava ao filho de Gretchen, então o seu casamento não tinha salvação possível.

Dito isto, que ninguém o acusasse de não ter tentado.

Quando Amanda regressou após um dia comprido na escola e uma tarde ainda mais comprida no velório, Graham fez-lhe uma chávena de chá e preparou-lhe um banho. Estava quase a dormir ainda antes de pousar a cabeça na almofada, mas ele abraçou-a... e gostou. Pela primeira vez em semanas, não ficou zangado por não haver paixão. Pela primeira vez, gostou de estar presente para Amanda... quer ela soubesse quer não.

 

Amanda não sabia que, pela primeira vez em semanas, dormira nos braços da pessoa mais importante para ela. A nível inconsciente, devia ter sentido o calor do seu abraço, mas não deu por ele no plano racional. Estava completamente exausta. Passara horas a ouvir histórias da boca de estudantes enlutados, demasiado jovens para as contarem. No entanto, o suicídio de um amigo abria uma caixa de Pandora de culpa. Um aluno confessou ter copiado num exame, um outro ter espreitado a mãe e o amante e outro ainda de ter snifado cocaína: qualquer uma destas indiscrições parecia, aos olhos do perpetrador, bastante pior do que aparecer embriagado no treino de basebol, e no entanto, Quinn Davis fora castigado e acabara por morrer por causa disso. Amanda não se cansara de tentar diferenciar as situações, repetindo que o castigo de Quinn não levara à sua morte. Mandara vários estudantes para os directores espirituais da equipa de crise, mas o peso das suas histórias ficara com ela.

Atormentada até no sono, acordou nos braços de Graham pensando que ele estava na cama com ela porque tinha a consciência pesada, porque se sentia culpado. Num abrir e fechar de olhos, deu consigo a pensar outra vez como a mãe.

Lutando consigo própria, levantou-se da cama enquanto Graham ainda dormia e fez o pudim para a festa da sua mãe. Preparou café e pousou o jornal de domingo na mesa. Quando ele acordou, já ela ia tomar duche para regressar à escola.

Ao vê-la partir, Graham pensou se, inconscientemente, não teria dormido até tarde de propósito. Era melhor dormir do que encarar o mal-estar que se instalara entre eles.

Era, claro, uma atitude cobarde, e nada do que planeara depois de falar com Russ. Envergonhado, jurou ser mais interveniente. Só à tarde, no entanto, esteve com Amanda o tempo suficiente para terem uma conversa séria, mas nessa altura não conseguiu fazê-la falar.

* O pudim está com bom aspecto. Obrigado por o teres feito - tentou.

Ela sorriu com delicadeza.

* Não tens de quê.

Pouco depois, voltou à carga.

* Pensei em telefonar à mãe hoje de manhã, mas achei melhor não. É melhor dar-lhe os parabéns de viva voz.

* Tentei ligar-lhe da escola - disse Amanda. - Como estava a tomar banho, deixei-lhe uma mensagem.

* És melhor nora do que eu sou filho.

* Não é isso. Estou só desesperada.

* Desesperada? Outro sorriso delicado.

* Para fazê-la gostar de mim.

* Ela gosta de ti.

Amanda lançou-lhe um olhar que significava que ele sabia muito bem que estava a mentir. Sem saber como reagir, ficou calado.

A chegada a uma festa O'Leary era uma experiência física, com gritos, abraços, palmadinhas nas costas e saudações entusiasmadas. Amanda fora incluída no ritual desde o primeiro dia. Graham avisara-a dessa primeira vez. Mesmo assim, sentira-se sufocada, mas adorara.

Nunca vivera aquela algazarra em criança. Adorara as manifestações genuínas de afecto, os sentimentos à flor da pele.

Continuava tudo na mesma. Naquele dia, a diferença estava nela. Pondo de parte a morte de Quinn, que já era um grande peso, a presença física da família de Graham... da prolífica família de Graham. recordava-lhe o problema da gravidez que não existia. Sorria, ria, abraçava e era abraçada, mas ouvia pensamentos e imaginava palavras. Parecia-lhe que toda a gente sabia, que toda a gente a culpava, visto que a dificuldade em ter filhos não podia ter origem em Graham.

Determinada, mergulhou nas festividades, guiada pela mão de uma criança ou outra de uma sala para a outra. Sempre se sentira atraída pelos bebês que começavam a andar, o que queria dizer que os pequenos com quem brincara nos seus primeiros anos de casada tinham agora seis, sete e oito anos. Adoravam-na e era natural. Mais do que os outros adultos, estava sempre pronta a ler-lhes histórias, jogar cartas ou cair nas suas partidas.

* És uma tia fantástica - disse-lhe uma sobrinha, pendurando-se nela e sorrindo-lhe com a boca desdentada. - Não quero que tenhas filhos. Gosto de te ter só para mim.

Que responder? Nem imaginava. O pudim fez sucesso, mas os elogios foram dirigidos a MaryAnne que, verdade seja dita, organizara a festa. Se Dorothy sabia que fora Amanda que fizera a sobremesa, não se descoseu, pois não falou nele das duas vezes que Amanda foi ter com ela para conversar. Pelo contrário, falou do Clube de Jardinagem, da Sociedade Histórica ou até de Megan, tudo assuntos sobre os quais sabia que ela não ia querer falar.

Mesmo assim, Amanda mostrou-se impecavelmente delicada. Sorriu, assentiu e fez várias perguntas. Dorothy, por seu lado, não fez

uma única. Por fim, a conversa entre elas acabou por esmorecer.

Da segunda vez, foi Malcolm Leary quem veio em seu socorro. "

- Desculpa, mãe, mas vou roubar-te a minha cunhada. Joseph, anda falar com a tua avó - ordenou a um dos sobrinhos. Depois, passou o braço comprido pelos ombros de Amanda e afastou-se com ela.

* Onde está o Graham? - perguntou ela. Mal o vira a tarde toda.

* A jogar vôlei no jardim de trás. Ainda bem que a mãe tem um jardim grande. Precisávamos dele quando éramos pequenos e ainda mais agora. Como estás?

* Muito bem - sorriu Amanda.

* Não é o que diz o Gray, que me contou que este último revés tem sido muito duro para ti. Sentimo-nos todos muito mal, Amanda. Sei que queres muito ter um filho. Imagino a tua frustração.

Amanda duvidava.

* Hei-de engravidar qualquer dia.

* Falaram-me de um tipo excelente em D. C. Trabalha com mulheres que não conseguem engravidar. Acho que tem o consultório cheio, mas conheço a irmã dele, que vive em Hartford. Bastaria uma chamada dela para ele te atender. Que dizes?

Tentando controlar-se, Amanda respondeu.

* Já falaste com o Graham?

* Já e ele disse-me para não tocar no assunto mas, olha, Amanda, se não conseguem descobrir o problema, talvez seja melhor consultares outra pessoa. Tenho todo o gosto em telefonar.

* Obrigada, Malcolm, mas estamos a trabalhar com uma médica excelente.

* Bem, se mudares de idéias, diz. O Graham está mortinho por ser pai.

Pouco tempo depois, ouviu as mesmas palavras, desta vez da boca de Megan Donovan, a primeira mulher de Graham. Uma das poucas pessoas estranhas à família convidadas para a festa, conhecia todos os O'Leary e era tratada de igual para igual.

Verdade seja dita, Megan era sensível à situação. Chegava sempre mais tarde, saía mais cedo e não dava muito nas vistas por deferência para com Amanda. Naquele dia, deu-lhe um abraço caloroso, disse-lhe que estava muito bonita e, ao contrário de Dorothy, perguntou-lhe pelo seu trabalho. Amanda, por sua vez, quis saber como ia a pequena livraria de Megan, que lutava para sobreviver contra a concorrência das grandes cadeias e das lojas on-line. Megan respondeu com conhecimento de causa e de uma maneira suficientemente interessante para Amanda pensar, e não pela primeira vez, que gostava muito dela. Passado um bocado, Megan baixou a voz e falou no problema dos filhos.

* O Gray diz que não está a acontecer nada.

* Ainda não - volveu Amanda com um sorriso. - Mas há-de acontecer - rematou, esperando que a conversa ficasse por ali.

Mas Megan voltou à carga.

* Deve ser difícil para os dojs. Sei como o Gray quer ter filhos. Foi o que marcou o princípio do fim do nosso casamento. Eu passava a vida a adiar, a debitar razões para esperarmos. Por fim, as desculpas esgotaram-se.

* A situação é diferente connosco.

* Posso ajudar? - perguntou Megan. Amanda arqueou as sobrancelhas, divertida.

* Acho que não.

* Quer dizer, se o problema for doar óvulos ou alugar o útero durante nove meses...

Amanda seguia calada no carro. Tinha uma enorme dor de cabeça, um nó no estômago, os músculos doridos de tantos sorrisos a contragosto e um sabor horrível na boca.

Graham também estava em silêncio, mas a ferver por dentro. Amanda sentiu-o logo que ele deixou para trás a rua da mãe. Ainda não tinham percorrido dois quarteirões quando ele disse:

* Detestas assim tanto a minha família? Ela fitou-o.

* Não. Porquê?

* Fizeste imenso esforço para ser agradável. Entrava pelos olhos dentro.

Amanda olhou através do pára-brisas. Havia tantas coisas que queria dizer, que queria gritar! Nem sabia por onde começar.

* Que tem a minha família, Amanda?

* Nada.

* Então porque te custa tanto estar com ela? Estás com uma dor de cabeça. Vejo-o nos teus olhos. A minha família faz-te dores de cabeça? Porquê? Por causa do barulho? Da algazarra? Dos risos? Pensei que gostavas.

* Adoro, mas sinto-me diferente.

* Olha, sei que a minha mãe não é a pessoa mais calorosa do mundo...

* Mas é - interrompeu Amanda. - É calorosa com toda a gente menos comigo.

* Estás aborrecida porque ela não te agradeceu o pudim. Amanda virou-se então para ele.

* Estou aborrecida com muitas coisas. A menos importante é, se calhar, que ela não me tenha agradecido. Fiz o pudim enquanto tinha coisas muito mais sérias na cabeça e ela foi mal-educada. Não achas que foi má educação?

Ele tentou não dar importância ao assunto.

* A minha mãe já tem uma certa idade. Não é moderna nem flexível. Sabíamos antes de casar que ela não seria fácil, mas não está pior do que sempre foi.

* As minhas necessidades mudaram. Quero mais dela. Preciso do seu apoio.

* Por causa do bebê? Ela não pode dar-te apoio, Amanda.

* Se calhar não, mas tu podes. - Como que a implorar. Onde te meteste toda a tarde? Deixaste-me sozinha a discutir por que não podemos ter filhos, de quem é a culpa e o que vamos fazer. Sabes que a Megan se ofereceu para ser mãe de aluguel?

* Que querida! - comentou Graham.

* É a tua ex-mulher! - gritou Amanda. - Olha que telenovela tão bonita! Uma coisa é uma irmã ou uma mãe, mas uma ex-mulher?

Aliás, recuemos um passo: que a leva a pensar que o problema está no meu útero? Porque é que toda a gente pensa que o problema sou eu? A Emily não é da mesma opinião. Aliás, até acha que o problema tanto pode estar em ti como em mim. Disseste-lhes isso? Ou disseste-só que passo a vida a perder bebês... como se fosse um jogador que está sempre a deixar cair a bola no jogo de basebol da família?

Impressionada com o ton furioso da sua voz, calou-se.

Seguiram em silêncio durante algum tempo.

Quando recuperou o domínio sobre si própria, continuou mais calma.

* Não detesto a tua família. É que quando estou com eles, perco-te.

* Não me perdes - troçou ele.

* Nunca estás comigo. Passas a vida a falar com um irmão, a brincar com um sobrinho ou a dar conselhos de jardinagem a alguma irmã ou cunhada. Ou a conversar com a Megan.

* Já cá faltava essa - resmungou Graham. - Por amor de Deus, Amanda, a Megan é a minha melhor amiga! Conheço-a desde sempre. Depois de nos separarmos, continuámos amigos. Gosto de a ver. E gosto de ver a minha família.

Amanda calou-se outra vez.

* Queres que vá eu sozinho a partir de agora? Ela fechou os olhos. Graham não estava a perceber.

* Não.

* O que queres?

O que queria era que ele a engravidasse. Queria que ele a visse como se ela fosse o centro do seu universo. Dantes era assim. Na festa, no entanto, nem olhara para ela.

* Fala, Amanda.

* Quero que me ajudes a sentir-me menos isolada. Fica comigo e não vás para outro lado como se tivesses vergonha de mim. é tu a dizer ao Malcolm que o homem que parece que é tão bom com as mulheres estéreis pode não ser o melhor no nosso caso, visto que não sou estéril. Toma o meu partido. Ajuda-me. Apoia-me. - Parou para respirar e fitou-o. - Melhor ainda, diz-lhes para se meterem na sua vida O problema é só nosso. Ninguém tem nada a ver com isso... e não me digas que se preocupam connosco, porque sei muito bem que sim mas isso não me torna a vida mais fácil. Toda a gente me diz que queres muito ter um filho, como se me bastasse estalar os dedos. Sei que queres um filho. Não preciso que mo digam. Onde está o respeito pela privacidade dos outros? Discutem-se assim publicamente os assuntos pessoais?

* A tua família era assim. A minha nunca foi.

* Se calhar devia. Era bom que lhes mostrasses que ocupo o primeiro lugar na tua vida. A não ser que não.

Ele lançou-lhe um olhar zangado.

* Isto agora é uma corrida para ver quem chega primeiro? Amanda abanou a cabeça. O seu olhar gelara-a. Nunca pensara

receber um olhar daqueles.

* É - decidiu ele. - O que queres é que eu escolha... tu ou a minha família.

* Nunca. Só quero que te portes como meu marido.

* Estou a tentar, estou a tentar. Faço o melhor que posso numa situação difícil, mas os teus ciúmes da Megan e da minha família não ajudam nada. De resto, os teus ciúmes da Gretchen também não. Queres que me porte como teu marido? Pois porta-te como minha mulher. Confia em mim.

Quando regressaram a casa, Gretchen encontrava-se no jardim da frente borrifando as túlipas. A água adquiria as cores do arco-íris com os últimos raios de sol. O quadro era idílico. De repente, Gretchen parecia encarnar tudo o que estava mal nas suas vidas.

Mas como falar nisso sem discutir? Graham não sabia. Por isso, seguiu Amanda para dentro de casa e respeitou o seu aparente desejo de silêncio.

Amanda acordou na segunda-feira de manhã com uma ligeira dor de cabeça e uma sensação de pavor. Tentou invocar pensamentos positivos, mas não havia muitos a ter na manhã do funeral de um adolescente. Aceitou a proposta de Graham para tomar duche antes dele e agradeceu-lhe quando acabou e deu com ele estendendo-lhe a toalha. Gostou que ele não lhe espreitasse o corpo e a fitasse no rosto e não estava assim tão absorta a pensar no que o dia lhe reservaria ao ponto de não reparar na sua preocupação. Graham perguntou-lhe o que podia fazer para ajudar e concordou prontamente quando ela lhe sugeriu que levasse umas dúzias de donuts para a sala dos professores, para aqueles que chegassem mais cedo.

Depois, vestiu um fato.

* Tens alguma reunião? - perguntou ela. Às vezes, vestia fato quando ia encontrar-se com algum cliente, mas havia muito tempo que não o fazia.

* Tenho um funeral. Quero que saibas que estou lá atrás.

Não compreendeu de imediato o que ele estava a dizer. Depois, mesmo sem querer, debulhou-se em lágrimas.

* Então? - Puxou-a para si. - Queria que te sentisses melhor. E sentia. Fora estóica e corajosa durante aquela difícil prova, não desanimando nem nas alturas em que a dúvida a assaltara, em que pensara que poderia talvez ter evitado a morte de Quinn se o houvesse encurralado no corredor e arrastado para o gabinete ou se tivesse insistido mais com os pais. Fora forte na escola, agüentando o peso dos que contavam com o seu ombro. Agora Graham oferecia-lhe o seu. Ao fazê-lo, levara-a a baixar as defesas e a chorar.

Não combateu as lágrimas. Pelo contrário, passou-lhe os braços em volta do pescoço e esperou que a agonia passasse. Então, recuando, fitou-o nos olhos de um verde insondável.

* Obrigada. - Pousou-lhe um beijo nos lábios. Sentindo o primeiro sinal de verdadeiro desejo desde havia muitos meses e não tendo nem tempo nem conhecimentos para lidar com a situação, recuou, lançou ao espelho um olhar horrorizado e voltou à casa de banho para retocar a maquilhagem.

O serviço religioso teve lugar na igreja com o campanário branco situada no centro da cidade. Se alguém teve dúvidas pelo facto de o defunto se ter suicidado, não se notou nada. Havia uma abundância de flores e muitas fotografias de Quinn. Os estudantes estavam sentados uns com os outros, embora houvesse muitos pais presentes. Obrigada a permanecer junto do corpo de professores, Amanda avistou Graham apenas uma vez. Quando saiu da igreja, já se fora embora.

A sua imagem acompanhou-a durante todo o dia e foi um consolo. Embora o ambiente na escola fosse deprimente, só apareceram no gabinete de Amanda alguns alunos lacrimosos. Os amigos mais chegados de Quinn tinham faltado às aulas e regressado à casa dos Davis depois do enterro. Por respeito para com Quinn, haviam-se cancelado treinos desportivos e um jogo de lacrasse.

Às três horas, os autocarros partiram, deixando a escola num silêncio espectral. Os poucos retardatários que haviam ficado para trás encontravam-se sentados no chão em grupos pequenos. Amanda sentou-se no fundo da alta escadaria de pedra durante algum tempo, e aproximaram-se duas raparigas para falar com ela. Não disseram muito. Ao que parecia, só queriam estar perto de uma adulta que talvez estivesse mais à vontade com a morte.

Amanda deixou-se ficar até elas se irem embora. Depois, regressou ao gabinete e sentou-se. Fred Edlin apareceu a agradecer-lhe e a felicitá-la pela maneira como funcionara a equipa de crise.

* Escreva o que lhe digo: todas as escolas do país deviam ter um sistema assim - afirmou ele.

Amanda agradeceu-lhe. Na verdade, com a publicidade feita às tragédias nas escolas, já havia muitas que tinham equipas de crise. Nem o conceito era novo nem o que fizera merecia ser documentado.

Além disso, não queria aplausos. A única coisa que queria era ajudar os estudantes que lhe cabia ajudar. O facto de a equipa ter funcionado dava-lhe uma grande sensação de alívio. A morte de Quinn ainda estava muito fresca... e era muito pessoal para que a psicóloga Amanda sentisse uma grande satisfação.

* bom trabalho - gritou Maddie logo que o reitor saiu.

* Obrigada - disse Amanda, tirando um pitéu do saco arrumado debaixo da gaiola. Maddie arrebatou-lho da mão mal ela lho estendeu.

* Gulodice, querida. Amanda sorriu com tristeza:

* É tão fácil contentar-te! Deve ser por isso que é tão bom ter um animal de estimação. És bom de contentar. Pouco complicado. Sem disfarces. - Virou-se ao ouvir passos no corredor.

* Oooooolha o Johnny! - anunciou Maddie. De facto, o senhor Dubcek apareceu à porta. Estivera no funeral com um fato castanho e largo de mais, mas voltara a vestir a camisa e as calças verdes com que trabalhava. Tinha o sofrimento estampado no rosto.

* O dia correu bem, senhora O'Leary? - perguntou na sua voz rouca.

* Bem. O choque começa a passar. Ainda vai ser preciso algum tempo para a realidade assentar... a finalidade da morte. - Ia continuar a trabalhar com os professores, procurando sinais de alerta nos alunos com mais dificuldades em enfrentar a situação. Tinham uma lista e todos concordavam que, desta vez, era melhor serem mais intervenientes.

A testa enrugada do ancião carregou-se ainda mais.

* Cinqüenta anos a trabalhar aqui e nunca me tinha acontecido uma assim. Tivemos alunos a vomitar, a desmaiar e a cair desampara- dos no chão. Tivemos ataques... sabe, epilépticos. Tivemos miúdos que morreram em desastres de carro e um num de avião. Tivemos miú- dos que se suicidaram em casa. Mas nunca aqui. Não devia tê-lo dei- xado ficar. Devia tê-lo mandado para casa.

Amanda sorriu com doçura. Compreendia a culpa.

* Se o Quinn estava decidido a matar-se, teria encontrado outra maneira de o fazer. Se o tivesse mandado para casa, talvez se matasse na mata. Teria demorado muito mais tempo a encontrá-lo.

* Mas se eu tivesse voltado logo a seguir, poderia salvá-lo. Foi o que disse o pessoal da ambulância.

* Acredite que tenho andado às voltas com as mesmas perguntas. Se o tivesse arrastado para aqui em vez de lhe enviar um e-mail, se tivesse comunicado a minha preocupação à administração ou ao treinador, se tivesse dito aos pais que ele estava num sofrimento que podia ser perigoso... mas não sabíamos. Não fazíamos idéia. Era a última coisa que esperávamos de um rapaz que tinha tanto a seu favor.

O empregado comprimiu os lábios e abanou a cabeça.

* Que pena! Que desperdício terrível! - E regressou ao corredor.

* Foda-se! - praguejou Maddie.

* Tens toda a razão - respondeu Amanda com um suspiro.

Ficou na escola até às cinco, sobretudo atendendo chamadas de pais que estavam preocupados com os seus filhos e sem saber bem a melhor maneira de lidar com eles. Um dos professores de Quinn também apareceu, interrogando-se, procurando sinais, pensando se não poderia ter agido de maneira diferente.

Depois, fechou o gabinete e foi para casa. Sentiu-se reconfortada ao ver a carrinha de Graham e ainda mais com o que viu ao atravessar para a cozinha. No jardim de trás, sobre um tapete de relva, recortava-se a mesa de ferro forjado e as suas duas bonitas cadeiras contra um fundo de abetos e pinheiros. Estava posta com individuais e guardanapos, copos de vinho e castiçais.

Comovida, entrou na cozinha. Graham lia as instruções de uma caixa de arroz pilaf. Os bifes que eram para ter comido na sexta-feira à noite estavam no balcão.

* Achei que podíamos tentar outra vez - explicou ele. Pousou a caixa do arroz, abriu o frigorífico, tirou uma garrafa de vinho, Encheu dois copos e estendeu-lhe um. - Já há algum tempo que não bebemos.

Amanda assentiu. Nos meses anteriores, quando estava ansiosa e queria engravidar e lia imensas histórias na Internet, recusava-se a tocar qualquer bebida remotamente alcoólica. - Serviu-me de muito! - murmurou, erguendo o copo. - À vida - disse Graham.

Depois de tudo o que se passara, Amanda não poderia ter-se exprimido melhor:

* À vida. - Brindaram. Ele bebeu e deixou o vinho impregnarl-se-lhe nas papilas gustativas enquanto inspirava o bouquet. - Pareces melhor - comentou Graham. - Não me sinto tão vulnerável. - Tiveste muitos problemas depois do funeral? Ainda um tanto melancólica, respondeu: - Não, com os miúdos não, mas alguns pais preocupam-me. Acham-se tão inteligentes e sabichões! Houve uma mãe que veio falar comigo depois do funeral e só me disse mal dos pais do Quinn. Insistiu comigo que nunca nenhum filho dela tentaria contra a própria Vida. Quando lhe respondi que há crianças que se suicidam em todas as famílias, negou. Aposto que não se mostrará receptiva se a filha quiser falar do Quinn. E a miúda irá ter com os amigos, que têm tantas respostas como ela.

- Mas reconfortar-se-ão uns aos outros, não achas? - Acho. Ajuda muito estar com outras pessoas que sentem o ; mesmo que nós, mas gosto de pensar que é bom terem à mão pessoas como eu. Não é que tenha respostas, mas sou adulta e eles podem chorar no meu ombro.

Graham franziu o sobrolho.

* Precisas de descansar.

* Descanso no próximo fim-de-semana. Estar disponível para os alunos também me ajudou a mim. Sinto-me tão mal como eles.

* Tens de marcar fronteiras, afastar-te um bocadinho.

* Num caso destes, é difícil. Nem imagino como estão os pais do Quinn.

* Eu imagino - comentou Graham, parecendo de repente desesperado. - Deve ser qualquer coisa como o que senti quando tiveste a menstruação a semana passada. Perdemos um bebê. Todas as esperanças, sonhos e planos que tínhamos foram-se por água abaixo.

Amanda teria escolhido outras palavras. O quadro pintado por Graham era muito vivo e cru.

* Tentaremos outras vezes - replicou baixinho.

* Tu ficas muito contente por esperar.

* Não, contente não. Isso nunca.

* Vais querer recomeçar tudo daqui a um mês?

* Querer não quero. - O que queria era conceber um bebê da maneira normal. - Mas fá-lo-ei.

Ele levantou uma mão.

* Olha que se é por mim, não te sacrifiques. Um filho é um compromisso para toda a vida. Se não queres, diz.

* E depois? - inquiriu de chofre. Não era sua intenção, mas havia dias, semanas, meses que a pergunta a atormentava. Tê-la-ia retirado quando viu o frio do seu olhar, mas precisava tanto de saber a resposta como os adolescentes precisavam de saber por que motivo a

morte acontece.

* Não queres filhos? - indagou ele, parecendo magoado. - Fizeste tudo só por mim?

* Já te disse que quero. Mas que acontece se não os tivermos? Ele pareceu baralhado.

Amanda continuou. A dura prova dos últimos dias esgotara-a o suficiente para não dar atenção às conseqüências.

* Que acontece se não tivermos filhos? Como te sentirás?

* Não ter filhos não é opção. Ainda não consigo pensar nisso.

* Eu consigo. Passo a vida a pensar nisso. Nem consigo dormir com a preocupação. E se não conseguirmos? Que vai ser de nós? Vais culpar-me? Vais culpar-te a ti? Que pensará a tua família? Que dirão? Afastar-me-ão mais do que já estou? Queres muito um filho? É necessário para o teu equilíbrio? Tem a ver com a virilidade? Podemos tentar mais uma vez a inseminação artificial e depois a proveta, mas se mesmo assim eu não engravidar, que acontecerá a seguir? Vais continuar a querer-me ou preferirás tentar com outra pessoa? - Respirou fundo e engoliu em seco. - Estou sempre a pensar nisto, Gray. São perguntas que não me saem da cabeça.

Ele não falou. Amanda estudou a sua expressão, tentando perceber o que ele pensava, mas era um mistério. A sua boca era uma linha direita e não se compreendia se estava zangado ou simplesmente perturbado. Tinha os olhos verdes escuros e muito abertos... pasmados, mas Amanda não conseguia determinar se o marido se sentia encurralado ou apenas surpreendido com as suas perguntas. Quanto ao seu silêncio, tanto podia significar que não sabia as respostas como que sabia e não queria dizer.

Nisto, bateram à porta da cozinha e deram os dois um salto. Amanda olhou depressa para trás e viu Gretchen Tannenwald.

Verdade seja dita, Graam não se precipitou para a porta. Aliás, nem se mexeu. Foi Amanda quem abriu.

Que ouvira Gretchen? Estaria ali havia muito tempo? Pensando nisso, Amanda aproximou-se da porta com cautela. Quanto mais perto chegava, mais via que acontecera alguma coisa.

Abriu com civismo, mas a intuição feminina notou-se-lhe na voz preocupada.

* Aconteceu alguma coisa?

* Aconteceu - respondeu Gretchen em voz trêmula. - Preciso do Graham.

 

Preciso do Graham.

Todos os piores receios de Amanda subiram de repente à superfície. Naquele instante, convenceu-se que Graham não só era o pai da criança como que ele e Gretchen estavam perdidamente apaixonados. O facto de os olhos de Gretchen, os seus grandes olhos azuis, se terem dirigido de imediato para Graham, tornava tudo ainda mais plausível. Parecia desesperada.

Desesperada? Amanda caiu em si. Desesperada não. Assustada.

Graham adiantou-se:

* Que se passa?

* Eu... ha... acho... sei que entraram na minha casa - explicou Gretchen em voz monótona, claramente preocupada em dominar o medo. - Houve estragos. Cheguei agora a casa e vi. Não sei se ainda está alguém lá dentro.

Um assalto. Amanda teria rido de alívio se não estivesse espantada. Não havia assaltos em Woodley e muito menos numa rua daquelas, com gente sempre a entrar e a sair.

* Roubaram alguma coisa? - perguntou Graham, também ele admirado.

* Estragaram uma obra de arte do Ben... minha. Não liguei o alarme, porque sabia que estavam aqui, assim como os Lange e a Karen Cotter. Nem... nem sequer fechei a porta de trás à chave. Só fui comprar fruta. Não demorei mais que trinta minutos.

Amanda também estava em casa havia cerca de meia-hora e não vira nada de anormal ou de estranho na rua quando passara de carro. Mas claro que o assaltante podia ter vindo da mata.

Graam saiu porta fora, afastando Gretchen para passar.

* vou ver.

Quando Gretchen se preparou para o seguir, Amanda prendeu-lhe o braço e sentiu-o tremer:

* Pelo sim pelo não, deixe-o ir sozinho. Gretchen engoliu em seco:

* Se calhar não devia. Podem fazer-lhe alguma coisa. Eu devia chamar a polícia.

Mas estava muito abalada para fazer fosse o que fosse e era o marido de Amanda que podia correr perigo. Por isso, puxou Gretchen para dentro da cozinha e fez o telefonema. Deu à polícia as informações necessárias e saíram as duas para a rua. Foram esperar para o passeio, à vista da casa de Gretchen, mas em segurança, do outro lado da praceta. Graham já saíra havia tempo suficiente para Amanda começar a preocupar-se.

Julie Cotter brincava nos degraus da sua casa com uma boneca e os gêmeos percorriam a praceta com as lambretas. Nenhum dos três parecia achar estranho que Amanda estivesse no passeio com Gretchen Tannenwald. Além de um aceno de Julie, as crianças prestaram-lhes pouca atenção.

Amanda ainda pensou em mandá-los para dentro. Ali expostos, dariam uns excelentes reféns caso aparecesse algum louco, mas achou que era uma idéia absurda. Além disso, ela estava ali e Gretchen também. Seriam cinco contra um.

Mas claro que o número não interessaria se estivesse armado.

* Desculpe por ter ido incomodar - disse Gretchen, encostandose tanto a Amanda que, pelos vistos, também pensara a mesma coisa.

* É que não sabia o que havia de fazer.

* Nem pense nisso - respondeu Amanda com simpatia. - Os vizinhos são para estas coisas. Roubaram alguma coisa?

* Não sei. Vi o quadro no vestíbulo e saí a correr. Se calhar podia ter telefonado logo à polícia, mas só queria pôr-me a salvo.

* Eu teria feito o mesmo.

* Se tivesse telefone no carro... mas não tenho.

* Fez bem - garantiu-lhe Amanda, cada vez mais preocupada. Já via Graam jazendo numa poça de sangue, depois de ter sido atacado por um gatuno escondido num armário. Por outro lado, era possível que estivesse apenas a verificar a casa toda. Afinal de contas, conhecia-a bem. Já lá estivera. Tinham lá estado os dois muitas vezes, convidados por Ben e June.

Gretchen levou as mãos esguias à boca. Era mais alta do que Amanda, mas parecia desamparada, apesar da altura e do volume da barriga. Observando-a, sentiu uma onda de inveja quase palpável.

Decidida a ignorá-la, perguntou.

* Que tipo de estragos houve? Tinta?

* Retalharam o quadro todo - disse Gretchen por baixo das mãos.

Amanda voltou a ver Graham ferido.

* Meu Deus!

* Tenho recebido telefonemas que atendo e ninguém fala. Pensei que era um dos filhos do Ben, mas não me parece que fossem destruir uma coisa que o pai adorava. E não estou a vê-los escondidos na mata à espera que eu saísse de casa.

Estivera várias vezes com eles e, embora a sua idade fosse mais próxima da de Graham e Amanda do que a de Ben, preferia-o de longe. Tinha um ar descontraído, tal como June. Os filhos eram mais tensos.

com toda a atenção concentrada na casa, Amanda deu um salto quando sentiu calor na anca.

* Julie! - exclamou, respirando de alívio e pousando a mão na cabeça da criança. - Que susto!

* Aconteceu alguma coisa? - perguntou Julie.

* Acho que não - retorquiu Amanda o mais descontraidamente possível.

Porque estás aqui?

Estamos à espera do Graham. - Passando o braço pelos seus ombros, apertou-a e depois largou-a. A mensagem, claro, era que Mie devia dar meia volta e regressar ao alpendre.

* Posso ficar à espera contigo?

* Não costumas ajudar a tua mãe a fazer o jantar?

* Já está pronto. Perguntei-lhe se podia ler-me uma história, mas disse-me que não podia. Não percebo porque não - acrescentou Julie, sentida. - Está sentada sem fazer nada.

* Se calhar está a pensar - disse Amanda com descontracção, embora pudesse imaginar os pensamentos de Karen. O mais provável era que uma boa parte deles tivessem a ver com a mulher que esperava à sua esquerda. - Deve precisar de ser salva. Vai salvá-la, querida.

Julie torceu o nariz.

* Vai dizer-me para ir brincar com a Samantha. - Era a boneca, que estava muito bem sentada nos degraus da frente dos Cotter. - É o que diz sempre. Onde está o Graham?

* Em casa da Gretchen.

* Porquê?

* Está a fazer-lhe um favor.

Julie lançou a Gretchen um olhar curioso. Temendo que as perguntas começassem a ficar um tanto embaraçosas, Amanda sentiu-se aliviada quando a criança se foi embora, dizendo:

* Oh, está bem.

* Sabe falar com ela - comentou Gretchen sem despregar os olhos da casa.

* É fácil falar com ela - replicou Amanda, murmurando: Onde se meteu o Graham?

* E onde está a polícia? - acrescentou Gretchen.

A resposta às duas perguntas chegou no minuto seguinte. Graham saiu pela porta da frente da casa de Gretchen ao mesmo tempo que um carro da polícia virava a esquina.

Aliviada, Amanda correu para ele. Gretchen seguiu atrás dela.

* Não está ninguém lá dentro - anunciou ele quando se encontraram no passeio, acenando para o carro da polícia. - Vasculhei tudo. Os únicos estragos que vi foram nos quadros.

* Nos quadros? - perguntou Gretchen, parecendo mais assustada do que nunca. - Não foi só o do vestíbulo?

* Esse e mais dois da sala de estar.

Gretchen desatou a correr e galgou os degraus da frente. Graham seguiu-a, praguejando baixinho. Não querendo ficar para trás, Amanda entrou pela porta da frente, passou pelo quadro pendurado no vestíbulo, que agora tinha um golpe no meio, e avançou para a sala de estar.

Gretchen fitava o quadro da parede com o punho apertando o coração. As lágrimas deslizavam-lhe pelas faces pálidas. Amanda olhou para a outra tela que fora estragada e a diferença era espantosa. O quadro La Voisine estava muito pior do que os outros. Fora retalhado com maldade, deixando quase irreconhecível aquela mulher que Amanda sabia ter uma beleza de cortar a respiração.

Os polícias chamaram da porta da frente.

* Por aqui - gritou Graham. Quando apareceram por baixo do arco da sala de estar, cumprimentou os dois homens pelo nome, apertou-lhes as mãos e apresentou-os. Amanda conhecia-os de vista, mas nunca falara com eles. O mais velho, Dan Meehan, andava na casa dos cinqüenta e era muito descontraído. O companheiro, Bobby Chiapisi, devia ter menos vinte anos e, claro, era muito mais novo na polícia. Trazia a farda tão impecável como o comportamento.

Mostrando-lhes La Voisine, Graham contou o que sabia.

* Credo! - exclamou Dan. - Isto é de alguém que estava muito zangado. Portanto, é este quadro e os outros dois. - Virou-se para Gretchen. - Mais alguma coisa?

Gretchen não fez qualquer esforço para enxugar as lágrimas do rosto. Parecia fraca... "destruída" foi a palavra que surgiu na cabeça de Amanda, que não conseguiu deixar de ter pena dela.

* Não sei - sussurrou Gretchen, sentando-se no sofá sem tirar os olhos do quadro uma única vez.

 

Não vi nada quando andei a verificar a casa - volveu Granam -, mas só procurei o que era óbvio. Não havia nada tombado nem espalhado pelo chão. A Gretchen vai ter de verificar se falta alguma coisa.

* Não me demorei quase tempo nenhum - lamentou-se em voz monocórdica.

* Quanto tempo? - perguntou o polícia mais novo, pegando na caneta e no pequeno bloco de notas.

* Vinte minutos, talvez trinta. Dan olhou Amanda e Graham.

* E ninguém viu nada?

Estavam a abanar a cabeça quando Karen surgiu à porta da sala de estar. Julie e os gêmeos seguiam-na de olhos esbugalhados.

* Que aconteceu àquele quadro? - indagou, apontando para trás, mas ficando sem ar ao olhar para a frente. - Meu Deus!

* Foi um assaltante - explicou Dan. - É a senhora Cotter, não é? - Quando Karen assentiu, continuou: - Mora aqui perto?

* Ao lado.

* Viu alguém a entrar ou a sair nesta última hora?

* Só a Gretchen. - Não despregava os olhos de La Voisine. Que coisa!

Geórgia e Russ apareceram atrás dela.

* Porque chamaram a polícia? - perguntou Russ, segundos antes de também ele dar com os olhos no quadro. Graham aproximou-se para lhes explicar enquanto Dan se ajoelhava à frente de Gretchen. Tinha um ar tão patético e só sentada no sofá com o rosto sulcado de lágrimas que Amanda decidiu sentar-se ao seu lado.

* Quer ir ver se falta alguma coisa? - sugeriu o polícia. Gretchen abanou a cabeça.

* A única coisa que tenho de valor são os brincos e o anel, e nunca os tiro. - Os brincos eram de diamantes cujo tamanho e forma condiziam com a pedra preciosa de uma elegante aliança.

* Tem dinheiro em casa?

* Não. - Mudando de idéias: - Tenho, mas não me interessa o dinheiro. Podem levar o dinheiro. Mas porque fizeram isto?

* Faz idéia de quem possa ter sido? - Gretchen abanou a cabeça. - Quem tem a chave de casa?

* A porta não estava fechada à chave.

* Algum namorado?

* Não.

* O pai da criança?

* Não.

* Não o quê? - insistiu ele com delicadeza.

* O pai do bebê não faria uma coisa destas.

* Quer dizer-nos o seu nome...

* Não é preciso - interrompeu Gretchen com calma e determinação.

Sentindo-se pouco à vontade, Amanda perguntou ao polícia:

* Não podem procurar impressões digitais?

* É o que vamos fazer. - Lançou um olhar ao companheiro. Bobby Chiapisi afivelou uma expressão consternada.

* Se havia impressões digitais em algum puxador, já devem ter desaparecido. Já passou por estas portas metade da vizinhança.

Era verdade. Allison e Tommy também tinham aparecido e, antes que alguém pudesse dizer muito mais, Lee surgiu atrás deles.

* Perdi alguma coisa? - Depois, viu o quadro. - Oh, meu Deus! A sua repulsa pareceu sincera a Amanda. Mesmo assim, gostaria

de saber onde estivera e com quem.

Dan Meehan pôs-se de pé e endireitou-se.

* É importante que a senhora Tannenwald verifique o resto da casa para ver se tocaram em mais alguma coisa. Se calhar é só alguém que tem qualquer coisa contra obras de arte.

* Era a única coisa da casa que me interessava - murmurou Gretchen.

Sem saber que dizer, Amanda pousou-lhe a mão no braço.

* O melhor que posso sugerir é que fale com a companhia de seguros - observou o polícia, cheio de pena.

Pela primeira vez, Gretchen olhou-o de frente.

* Podem substituir-me o quadro? - perguntou, parecendo revoltada. Amanda sentiu orgulho. Qualquer um perceberia que o quadro tinha um grande valor sentimental para ela.

Não - respondeu o agente. - Mas mandam cá investigadores e um avaliador. Receberá dinheiro para comprar um novo.

Amanda olhou de relance para o rosto de Gretchen e disse ao polícia com calma e firmeza:

* Não me parece que queira um novo. Este tinha um significado especial. Quem o fez, roubou-lhe isso. O melhor que pode sugerir continuou, usando as suas palavras - é que a polícia descubra o culpado e lhe pergunte porque fez o que fez.

O agente pareceu entender a mensagem.

* Sim, senhora O'Leary. É o que tentaremos fazer. Vamos patrulhar o outro lado da mata e perguntar se alguém notou alguma coisa de estranho. Destacaremos mais efectivos para esta zona. Faremos o que pudermos.

* Obrigada - agradeceu ela.

Amanda foi a última das mulheres a ir-se embora. Os polícias continuavam lá dentro com Gretchen, Granam e Lee. Os outros tinham dispersado. O único miúdo à vista era Jordie, que observava os acontecimentos de pé no alpendre, com o braço em volta de um poste. Apesar da presença ostensiva do carro da polícia, a rua estava calma.

Logo que Amanda se aproximou do passeio onde estavam as amigas, Karen perguntou:

* Porque demoraste tanto?

* Andei pela casa com a Gretchen para ver se faltava alguma coisa. Tive pena dela. Se fosse eu, não quereria fazê-lo sozinha. Depois de alguém ter estado na minha casa, nem pensar. Não foi nada agradável.

Karen arqueou uma sobrancelha:

* Estar na casa dela?

* Saber que esteve lá alguém com uma faca. - Tentou pôr-se no lugar de Gretchen. - Em que terá tocado? Que pensará? Estará escondido aqui perto? Tencionará regressar?

* E a roupa interior? - comentou Geórgia. - Já viste se ele andou a abrir gavetas e a mexer em tudo? Até me sinto suja só de pensar nisso.

* O termo que usei foi "violação" - tornou Amanda, pensando nas palavras que trocara com Gretchen enquanto verificavam a casa.

Karen mostrou-se menos compreensiva.

* Se tem um alarme, devia tê-lo ligado.

* Tu ligas o teu? - perguntou Geórgia.

* Não, por causa dos miúdos, que ficariam fechados ou não poderiam entrar. - Voltou-se de novo para Amanda. - E então? Faltava alguma coisa?

* Não. A Gretchen acha que nem subiram as escadas. Disse que lhe parecia que estava tudo na mesma. Não podem ter estado lá dentro muito tempo. Ela saiu só um bocadinho. - Não estava frio, mas Amanda encolheu-se toda. Não interessava se não gostava muito de Gretchen: nenhuma mulher deveria ter de enfrentar semelhante situação. Ia ser um desafio dormir naquela casa. - Não me saem da cabeça os bocados da tela pendurados em todas as direcções. Quem fez aquilo deve ser doente.

* Ela tirou-o da parede? - indagou Geórgia.

* Não. O Graham perguntou-lhe e ela disse que o faria mais tarde.

* Por mim, não you sentir falta do quadro - comentou Karen.

* É um problema a menos. Quem pensam que foi? Não me parece que tenha sido por acaso.

* Pois não - disse Geórgia. Amanda concordou.

* Quem entrou naquela casa tinha uma missão. O quadro era o alvo.

Então não foi roubo - cismou Geórgia -, o que significa que

niiem o fez tem razões de queixa dela. - Lançando a Karen um olhar de soslaio: - Temos-te debaixo de olho.

Dantes, teriam rido às gargalhadas. Teriam estado em sintonia, feriam feito equipa, sobretudo no que tocava à bonita, jovem e loura esposa de Ben.

Naquele momento, no entanto, Karen não sorriu.

* Ah-ah - disse sem humor. - Viram a maneira como o Bobby Chiapisi olhava para a Gretchen?

* Ele não olhou para ela... - replicou Geórgia.

* Precisamente. Não olhou para ela. Parecia que queria estar em todo o lado menos ali.

Geórgia carregou o cenho:

* Achas que ele e a Gretchen... - Abanou a cabeça. Amanda concordou.

* Já o vi na cidade. Ela não estava a evitá-la. É sempre assim rígido, formal e pouco à vontade.

* É da mesma idade e solteiro - observou Karen. - Está sempre no centro da cidade a orientar o trânsito nos cruzamentos. Ela pode tê-lo visto e acabado por combinar um encontro. - Arqueou as sobrancelhas. - Ele não fez parte dos representantes da polícia que estiveram no funeral do Ben?

* Talvez - volveu-lhe Amanda, que não se lembrava bem.

* A esquadra é pequena - acrescentou Geórgia à laia de assentimento.

Karen pareceu satisfeita com a possibilidade.

* E então foste lá acima com ela? - perguntou, virando-se outra vez para Amanda.

* Fui.

* O quarto é bonito? Amanda pensou por um instante:

* Bonito? Sim, bastante. Sedutor? Não. Geórgia voltou ao problema do intruso.

* Achas que ela devia ficar hoje sozinha?

* Perguntei-lho - retorquiu Amanda. - Perguntei-lhe se não tinha alguém com quem ficar, um parente ou uma amiga, mas ela disse que não.

* Em minha casa não fica ela - afirmou Karen. - A ajuda entre vizinhos é uma coisa, mas tê-la a dormir debaixo do meu tecto seria um suicídio.

Houve um silêncio pesado.

Karen fez um gesto com a mão, como se quisesse apagar as palavras.

* Oh, valha-me Deus! Que saída infeliz! Não pensemos no assunto.

Mas como não pensar? Nessa manhã, tinham ido as três assistir ao funeral de um rapaz de dezasseis anos. O vandalismo era o menos. Parecendo concordar, Geórgia acrescentou:

* A Allison está muito abalada. Em casa, anda sempre atrás de mim. - Lançando um olhar ao alpendre dos Cotter: - E o Jordie?

Karen seguiu-lhe o olhar:

* Anda muito calado. - Baixou a voz. - vou ver se consigo falar com ele. - Dirigiu-se para casa mas, antes de ter sequer chegado aos degraus, Jordie desapareceu no interior. Ela parou, hesitou e seguiu-o mais devagar.

* Falando de problemas... - murmurou Geórgia. - A mãe e o filho não se dão bem. Em parte, é por causa da idade. Mas porque é tão difícil com eles?

Amanda não respondeu logo. Não gostava de analisar os amigos e, na verdade, desde o Natal que não observava os Cotter em acção dentro da sua própria casa.

Mas confiava em Geórgia e gostaria de trocar idéias com ela. Por isso, encaminhou-se na direcção da casa dos Lange. Geórgia seguia ao seu lado quando chegaram ao passeio.

* Acho que há tensão no ar - começou. - As coisas não andam bem entre a Karen e o Lee e não escapa nada aos miúdos.

A Karen disse-te alguma coisa? - perguntou Geórgia.

* Não, mas ouviste-a falar.

Parece mais amarga, sem sentido de humor. Não ri, não tagarela, não se entrega.

* Só desconfia.

* Dantes não era assim - disse Geórgia, ratificando as lembranças de Amanda. - Isto deve ser pior do que das outras vezes. Achas que o Lee é o pai do bebê da Gretchen?

* Não sei. - E não sabia mesmo. - A Gretchen não teve nenhuma reacção especial quando ele apareceu. Eu estava de olho nela e vi. De resto, também não reagiu ao Bobby. Não me parece nada que seja ele.

* Se calhar não - retorquiu Geórgia. Chegadas à frente da sua casa, sentaram-se no passeio lado a lado. - Mas dá-me que pensar, sabes?

* O Bobby?

* O Russ. Ando muito por fora. Oh, não acho que se tenha metido com a Gretchen. Não me parece que se sinta assim tão sozinho.

Ainda não.

* Ele adora-te - protestou Amanda.

* Eu sei, mas há um limite. Vi uma parte de um artigo que escreveu sobre a solidão da mãe ou do pai que fica em casa. Tinha-o imprimido e deitado fora, mas sem o dobrar ou amarrotar. Parecia que queria que eu o visse.

* Entregou-o no jornal?

* Não. Nesse caso, mostrar-mo-ia. Foi o que combinámos. Ele mostra-me sempre os artigos que têm a ver connosco.

* Porque o deitou fora?

* Boa pergunta. Porque revela de mais? Porque não é muito masculino? Só sei que ainda bem que vim para casa mais cedo.

* As coisas complicaram-se com o teu comprador por teres deixado os representantes dele em Tampa?

* Complicaram, mas valeu a pena. A Allison precisava de mim. O Tommy também, porque conhecia o Quinn o suficiente para se sentir triste, chocado ou com medo... ou seja lá o que for que sente não interessa. O facto é que está sempre a dizer que gosta da minha presença.

Amanda admirava Geórgia, que não precisara de estudar psicologia para compreender a família e as suas necessidades, além de ser uma mulher de negócios muito bem sucedida. Mesmo naquele momento, ao fim do dia, tinha um ar impecável e chique, com a blusa e as calças feitas por medida e o cabelo penteado, curto e liso.

Amanda trabalhava a nível local. O mundo de Geórgia era muito mais vasto. Embora não o desejasse para si, sentia um grande respeito pelas capacidades da amiga.

* A tal empresa vai comprar a tua?

* Os advogados andam em negociações. O meu diz que vão avançar um número. O problema é se consigo viver de acordo com as suas condições. Querem que fique por mais três anos, fazendo praticamente o que tenho estado a fazer, mas recebendo um salário. Ou seja, viajaria tanto como até agora, e não sei se quero. Apetece-me parar de uma vez.

* E se lhes comunicares isso?

* Talvez já não queiram fazer negócio. Devem pensar que dirijo a empresa sozinha e que ela cairia por terra sem mim. É um elogio, mas uma patetice. A empresa sobrevive muito bem sem mim. Querem-me lá porque sabem que eu não ficaria de braços cruzados se as coisas corressem mal e tentam prender-me até que alguém da sua organização aprenda os ossos do ofício. Só não sei se quero ser a professora.

* E se não fizerem negócio? Tens outros compradores em vista?

* Há dois, mas é este que eu quero. É uma boa empresa. Se não fechar negócio, tenho de começar tudo outra vez, e não me apetece nada. Por outro lado, se vender a empresa para não andar sempre por fora e depois voltar às mesmas viagens de sempre, só que agora às ordens dos outros, é pior a emenda que o soneto.

Conhecendo bem aquele sentimento, Amanda sorriu com tristeza.

* A vida é muitas vezes assim."

* - Estás a falar dos filhos?

* - Em parte.

* E do Graham?

Amanda assentiu e olhou para o outro lado da rua, na direcção da casa de Gretchen. A noite caía, era o desfecho de um longo dia.

* Continuam sem falar?

* Estamos a começar.

* E o sexo?

Amanda lançou-lhe um olhar rápido:

* Não tens mesmo papas na língua. Geórgia enlaçou-a e retorquiu baixinho:

* Contigo não. Preocupo-me mais contigo e com o Graham do que com os outros. Tu ouves todo o dia os problemas das pessoas. E quem ouve os teus?

* Tu.

* Estou a ouvir.

com o crepúsculo projectando sombras azuis, Amanda sentiu-se menos exposta do que à luz do dia e foi-lhe mais fácil falar.

* Ele abraça-me à noite. Sinto um calor delicioso. Fico acordada a pensar que somos velhinhos procurando conforto. Só que não somos velhos e queremos mais.

* Se querem, qual é o problema?

Amanda tentou traduzir o que sentia por palavras.

* É como se houvesse um bloqueio. Parece que ficamos tensos mal pensamos em sexo. É como se o sexo fosse um reflexo condicionado.

* Mas não foi sempre assim.

* Credo, não! - exclamou Amanda com veemência. - Adoro o corpo dele. Põe-me a cabeça a andar à roda. - Os seus olhos voltaram a atravessar a rua no momento em que os homens saíram da casa e pararam a conversar no alpendre. Gretchen acendera as luzes. Amanda examinou Graham. - Olha para ele: alto, moreno e bonito. Há alguma coisa mais... mais atraente? Adoro aqueles olhos... o sorriso... a barba.

* Uma vez o Russ tentou deixar crescer a dele - observou Geor gia com ternura. - Coitado! Achou que ia ficar muito bem e ela cresceu toda em tons diferentes. Reconheço que a do Graham é bonita.

* E o corpo - continuou Amanda, que seguia lançada nas confidencias. - O Graham sabe fazer amor. Pensa em mim e é delicado Parece que pressente as minhas necessidades e lê o meu estado de espírito. Sabe dar prazer a uma mulher. - Calou-se e soltou o ar: - Ele é assim. E eu respondo-lhe e sou quem quero ser.

* Parece perfeito.

* Era até ao ano passado. Agora, quando fazemos amor, não somos nós. Nem sequer somos quem queremos ser. Fazemos os movimentos e pronto.

* Continuam a pensar no bebê.

* Este mês não - atirou Amanda com determinação. - Por mim, não penso nem conto. Arrumei a tralha toda e quero-a bem longe da minha vista. Não you tirar a temperatura, nem tomar cornprimidos, nem correr para a clínica. - Soltando um suspiro: - Mas parece que não interessa. Estamos emperrados, é como se tivéssemos esquecido a maneira de dar prazer um ao outro. Parece que falta

essa... essa...

* Entrega? Era isso.

* Sim.

* Porque olham para o quadro todo e pensam no que vai acontecer?

* Sim. - Sorriu com gratidão. - Obrigada por compreenderes.

* Tento. É difícil para mim meter-me na tua pele. Tive filhos quando quis. - Houve um movimento na rua quando os quatro homens desceram o passeio na direcção do carro da polícia. Baixando a voz, Geórgia perguntou: - Não pensas a sério que o Graham ande metido com a Gretchen, pois não?

Amanda ouviu as palavras que Geórgia não disse.

Porque foi a ele que pediu ajuda? Pensei nisso mas, no seu luar faria a mesma coisa. O Graham é calmo e mantém a cabeça fria em situações destas.

Não respondeste à minha pergunta - insistiu Geórgia,

Não, acho que não é ele o pai da criança.

* Então quem é?

* Ela não diz - observou Russ uma hora mais tarde. - Não fala.

Os três homens jogavam basquetebol no jardim dos Lange, à luz de uma fieira de lâmpadas montadas no telhado da garagem. Graham roubou a bola a Lee e fintou Russ quando este tentou bloquear-lhe a aproximação ao cesto. Apontou, lançou e a bola entrou direitinha.

* bom lançamento - disse Lee, apanhando a bola de novo e driblando um pouco.

Russ empurrou os óculos com o antebraço e observou os outros de mãos nas ancas.

* Até me admira como os polícias não insistiram. É natural que quisessem saber quem é o pai da criança. Vivemos numa época de violência doméstica.

* Fala por ti - respondeu Lee, preparando-se para lançar. Graham roubou-lhe a bola com facilidade, driblou para mais longe, aproximou-se, saltou e encestou. Depois, passou a bola a Russ.

* Bem, ela não diz quem é o pai - continuou ele, apanhando-a mas não se mexendo -, mas se entraram em casa dela e destruíram o quadro que lhe tinha sido oferecido pelo marido... que ela adorava, que venera até hoje... pode muito bem ser que o pai da criança ande verde de ciúmes.

Lee apontou para a bola:

* Vais ficar aí a falar? Não jogas?

Graham tentou não sorrir. Russ não era um atleta, Envergava a camisola e os calções largos de nylon próprios do basquetebol e estava suado e despenteado. Entre isso e a sua altura, quem o visse pensaria que era a estrela da equipa. Na verdade, apreciava muito mais a camaradagem do que o jogo em si. À chamada de atenção de Lee, passou a Graham.

Graham driblou a bola sem sair do lugar. Gostava daquele bum bum, bum rítmico. Sempre gostara. Transportava-o de novo à infância, quando jogava horas a fio com os irmãos. Era um som normal, previsível, controlável.

Abrindo o braço para se proteger de um ataque de Lee, perguntou:

* Quem quereria ver o quadro destruído? - Desviou-se, driblando à volta do jardim. -Aposto que um dos filhos do Ben, que não lhe ligavam nenhuma quando ele era vivo e que foram muito desagradáveis quando morreu. Até me admira como não impugnaram o testamento. - Fez pontaria, lançou... e a bola bateu no aro.

Lee foi buscá-la.

* Era o que eles queriam, mas consegui convencê-los a não fazerem nada. - Apanhou-a, lançou-a e ela entrou.

Graham voltou a dominá-la. Atrás dele, Russ perguntou a Lee:

* Falas muito com eles?

* De vez em quando. São simpáticos. Costumávamos falar de acções e obrigações quando vinham visitar o Ben e a June.

* De que lado está o advogado? - indagou Graham. Preparou-se para o lançamento, fez pontaria e saltou com um punho vitorioso no ar quando a bola entrou.

Lee agarrou-a.

* O Deeds? - Fingiu atirar a bola a Russ, que pôs as mãos no ar para nada. Depois, virou-se, encestou e Graham apanhou a bola. O Deeds está do lado dos irmãos, mas não lhe deve interessar nada ir a tribunal. Não saberia que fazer.

* Então que achas? - inquiriu Graham ao ritmo daquele reconfortante bum, bum, bum. - Parece-te que algum dos filhos seria capaz de estragar o quadro?

* Em pessoa? Não.

Mas é possível que tivessem contratado alguém?

* Talvez.

Podes perguntar-lhes?

Lee soltou uma gargalhada.

* Para quê? Está feito, está feito. Acabou.

Graham atirou-lhe a bola com mais força do que teria atirado se ele houvesse mostrado um niquinho de compaixão. Lee apanhou-a e Graham não se admirou. O outro tinha os reflexos de uma raposa.

* E se não foram eles? - perguntou Graham. - E se foi alguém que a seguir pode entrar nas nossas casas quando as nossas mulheres estiverem sozinhas?

Lee levou a bola à anca e parou a fitar Graham de olhos nos olhos. Não disse nada.

Graham ficou horrorizado.

* Por amor de Deus, porque não te divorcias? Se não gostas dela, põe-te a andar. Deixa-a em paz. Deixa-a refazer a vida.

* Porquê? Estou bem assim. Temos uma casa e uma família. Ainda há bons momentos.

* E quando os miúdos saírem de casa? - indagou Russ. Penso nisso muitas vezes. Mais sete anos, e seremos só os dois, eu e a Georgie. Que farás quando ficares sozinho com a Karen?

* Ha... - Lee fez um passe rasteiro na direcção do cesto. Nunca ficarei sozinho com a Karen.

Graham sentiu-se tão revoltado que deixou a bola saltar rumo à escuridão.

* Está bem. Esquece a Karen. E tu? És feliz vivendo assim?

* Sou. Sustento-a e ela anda ocupada, o que me deixa livre para fazer o que quiser.

* Então a chave é a liberdade?

* Para mim é. Não consigo viver sem liberdade. A Karen sabe e aceita.

* E os teus filhos?

* Os meus filhos adoram-me.

"Ainda por muito tempo? ", pensou Graham. Ouvira Jordie. Talvez lhe tivesse amor, mas também notara nele muita amargura. Nenhuma criança deveria ter de viver assim. Não na sua casa. Por mais críticas que tivesse a fazer à mãe, não havia nada a apontar-lhe nesse aspecto. Os pais amavam-se muito. Graham queria dar o mesmo ambiente aos seus filhos.

E se não tivermos filhos? perguntara Amanda. Que vai ser de nós? Se tentarmos mais uma vez a inseminação artificial e depois a proveta, mas se mesmo assim eu não engravidar, que acontecerá a seguir? Vais continuar a querer-me?

O problema era que Amanda estava a ver apenas um lado da medalha. Graham podia muito bem virar o bico ao prego e perguntar-lhe o que faria ela se não tivessem filhos. Os médicos não sabiam se o problema era dela. Apesar de tudo o que a sua família passava a vida a repetir com a melhor das intenções, o problema podia muito bem estar nele. Nesse caso, talvez fosse ela a virar-lhe as costas. Aliás, até lhe parecia que já começara a fazê-lo.

Era uma idéia inquietante.

Se estivessem sozinhos, contaria a Russ o que pensava e ele animá-lo-ia, fá-lo-ia sentir-se melhor. Mas com Lee era diferente. Graham não estava nada interessado em partilhar assuntos pessoais com ele.

Perdendo a vontade de jogar, disse de repente:

* Tenho de me ir embora. - E desapareceu na escuridão.

 

Apesar da nuvem escura que não largava Gretchen, o dia de terça-feira amanheceu soalheiro e quente. O cheiro a Primavera pairava no ar. De pé logo de madrugada, levou vários dos primeiros lilases para perfumar a cozinha. Apanhara uma braçada de túlipas vermelhas, amarelas e cor-de-rosa e dispusera-as em vasos pela casa toda, menos na sala de estar, onde não entrava desde que a polícia se fora embora na noite anterior. Em compensação, ligara o alarme e fora limpar o quarto de cima a baixo. Lavara toda a roupa que era lavável e separara a que tinha de ser limpa a seco. Apesar de estar convencida de que não entrara ninguém no quarto, não queria arriscar. Custara-lhe muito limpar a sujidade da sua vida para permitir que agora voltasse nem que fosse só uma manchinha.

Estava a pensar nisso sentada numa cadeira de balanço, no alpendre. Passava pouco das sete e meia da manhã. Os pássaros chilreavam nas árvores e relvados, as abelhas zumbiam nos rododendros e ouviam-se sons vindos das janelas abertas das cozinhas. Geórgia deu a volta à casa com o braço em volta dos ombros de Allison, num gesto que Gretchen teria dado tudo para receber da mãe aos catorze anos. Lee abriu a porta da garagem, entrou com Julie e começou a andar de um lado para o outro fazendo muito barulho.

Em casa dos O'Leary estava tudo em silêncio, como acontecia muitas vezes. Graham dissera-lhe que andavam a tentar ter um bebê e Gretchen torcia por eles. Gostaria que tivessem um filho da idade do dela. Seria uma ponte.

Como por transmissão de pensamentos, Amanda apareceu na garagem. Envergava uma camisa e calças da cor do aipo e tinha um ar atraente e maneirinho que Gretchen nunca tivera. Abriu a porta do carro, meteu a pasta lá dentro e, em vez de entrar, encaminhou-se para a rua. Gretchen, que pensava que ela ia ter com Geórgia e Allison, sentadas no passeio, ficou espantada quando a viu encaminhar-se na sua direcção.

O coração bateu-lhe com mais força. Amanda mostrara-se simpática no dia anterior, mas não havia razão para regressar. Teria sido mandada por Graham? Mas porquê?

* Olá - saudou Amanda do passeio, aproximando-se.

* Olá - respondeu Gretchen.

* Como está?

* Bem.

Parou no fundo dos degraus.

* Sente-se menos abalada?

* Sinto.

* Conseguiu dormir?

* Um bocadinho. Liguei o alarme. - Fez uma pausa, esperando que Amanda anuísse, dissesse alguma coisa simpática e se fosse embora, mas não, ficou no degrau de baixo com a mão no corrimão, observando os canteiros de flores. Sendo assim, Gretchen perguntou-lhe:

* Quer um café ou alguma coisa?

Amanda sorriu-lhe:

* Não, obrigada. Já bebi de mais. Tenho de ir andando para a escola.

* Então... - que grande idéia! -... umas túlipas? Andei a apanhar algumas, mas ainda há muitas. Leve um ramo para a escola.

* Oh, não é preciso!

* A Amanda não tem túlipas.

* Pois, é estranho, considerando a profissão do meu marido.

* Não estava a criticar - apressou-se Gretchen a dizer. A última coisa que queria era ofendê-la. - O seu jardim tem outras flores igualmente bonitas. Se calhar as túlipas iam enchê-lo muito. Adoro o seu jardim.

* Obrigada. Também gosto muito do seu - sorriu Amanda.

* O seu marido tem muito talento. - Olhou para o outro lado da rua na altura em que Granam apareceu na garagem, encaminhando-se a passos largos para a carrinha e acenando na direcção delas.

Gretchen continuou com as mãos no regaço e deixou que fosse a outra a responder. Observando Amanda vendo o marido a entrar na carrinha e a recuar para a rua, sentiu uma grande onda de inveja.

* Tem muita sorte com ele.

Quando a carrinha desapareceu na esquina, Amanda voltou a fitá-la.

* E a Gretchen tem sorte por ir dar à luz. Também gostaríamos de ter filhos, mas está a demorar. - Dirigiu o olhar para a sua barriga.

* Como se tem sentido?

* Gorda - replicou Gretchen.

* A gordura é formosura quando se está grávida.

* Não parece.

* Para mim, a gravidez é o estado mais bonito da mulher. Gretchen não precisava de ser amiga de Amanda para lhe adivinhar os pensamentos.

* Deve custar-lhe ver-me assim.

Em lugar de responder, Amanda subiu dois degraus e encostou-se ao corrimão.

* O bebê mexe-se muito?

* Muito, sobretudo à noite. Essa foi a parte pior ontem, porque eu adormecia, acordava com um pontapé e lembrava-me do que tinha acontecido.

* Não faz idéia de quem possa ter sido o vândalo? Gretchen abanou a cabeça. Precisando de pensar noutra coisa,

olhou na direcção do jardim de Amanda.

* Tem louro-da-montanha. Eu não, e gosto muito. Havia imensos onde nasci.

* No Maine?

* Sim. Não se nota no meu sotaque?

* Só muito de vez em quando - respondeu Amanda com un sorriso. - Uma palavra aqui e ali.

* Tento que não se note.

* Porquê? É um sotaque bonito. É exactamente de onde? Gretchen pareceu incomodada:

* De um sítio pequeno. Um lugarejo sem nome, insignificante de mais para vir no mapa.

* Se tivesse pedido ao Granam, de certeza que ele lhe plantaria louro-da-montanha.

* Ele sugeriu. Parece que o louro-da-montanha gosta de solo ácido e dar-se-ia bem com as minhas coníferas, mas eu não quis. Quando Amanda lhe lançou um olhar de interrogação, explicou: - Más lembranças.

* Lamento muito.

Gretchen não devia ter dito nada.

* Foi há muito tempo. Bem, não há muito tempo, mas parece. Seja como for, è passado.

Calou-se e desviou o olhar. No momento seguinte, no entanto, ouviu a voz de Ben dizendo-lhe que as vizinhas iam gostar dela quando a conhecessem. Amanda dera o primeiro passo ao atravessar a rua... e Gretchen estava desesperada por dar largas ao seu medo. Se a encontrassem morta na cozinha, pelo menos a polícia saberia onde procurar.

* A minha família não era nada boa - desabafou. - Aconteceram coisas horríveis. Quando me vim embora, não disse a ninguém para onde ia. Às vezes receio que tenham descoberto.

Amanda franziu as sobrancelhas:

* Não foram ao vosso casamento?

* Oh, não! - respondeu ela. - Foi uma das razões por que casámos em Paris. - O rosto de Amanda exprimiu ou surpresa ou dúvida. Resignada, Gretchen acrescentou: - Sei que pensam que o Ben falou comigo num impulso, mas não foi assim. Planeámos tudo. Sah'arn°s que os filhos dele não iam ficar contentes e não comparece'arn a° casamento se os convidássemos e eu não queria que a minha família estivesse presente.

Amanda subiu outro degrau.

* Acha que quem retalhou o quadro foi um deles?

* Não sei, mas continuo a receber telefonemas silenciosos. Não me parece que sejam os filhos do Ben e não tenho mais inimigos... excepto a minha família. - Examinou Amanda à procura de sinais de repulsa. - É horrível dizer uma coisa destas, não acha?

Mas Amanda parecia mais preocupada do que com repulsa.

* Já ouvi pior. Se comunicar à polícia, eles verificam.

* Pois, mas se o fizerem a minha família saberá onde estou. Quer dizer, se são eles que fazem os telefonemas, então já sabem. Mas pode ser que não, e nesse caso não quero que descubram.

* Estou a ver. - Ainda preocupada, perguntou: - Quanto aos telefonemas... não aparece no seu telefone o número de quem ligou?

* Não. O Ben não se interessava nada por essas coisas.

* Mas é um aparelho de instalação muito fácil. Compre um hoje.

* Olá, Amanda! - gritou Julie Cotter, atravessando o relvado a correr. - Tenho uma bicicleta nova.

* Tens? - perguntou Amanda, passando o braço pelos ombros da pequena.

* O meu pai vai montar-lhe rodinhas, mas não arranja ferramentas que dêem.

* Isso é mau.

* Posso ficar aqui contigo?

* Mas só um bocadinho. Tens de ir para a escola e eu também. Queres mostrar os teus dentes à Gretchen?

Virando-se de frente para ela, a criança arreganhou os dentes o suficiente para se ver um grande intervalo à frente.

* Caíram-te dois dentes? - perguntou Gretchen. A pequena assentiu.

* Muito bem.

* Vais ter um bebê?

* you.

* A minha mãe diz que tem de ter um pai. Gretchen engoliu em seco.

* Agora tem-me só a mim.

* A minha mãe diz que tem de ter um pai.

* E tem. - Achando que esta seria a única maneira de satisfazer a criança, Gretchen preparou-se para a pergunta seguinte.

Mas Julie só ergueu para Amanda um olhar de adoração.

* Se puderes aparecer mais tarde, talvez consigamos montar a bicicleta mais depressa.

Amanda lançou a Gretchen um olhar conspirador.

* Olha, vamos fazer uma coisa: se o teu pai não conseguir, pedimos ajuda ao Graham, que é melhor nessas coisas do que eu. Está bem?

* Está bem.

* Agora vai. O autocarro deve estar a chegar. Julie partiu a correr e Amanda virou-se para Gretchen.

* Telefona-me se houver algum problema?

Gretchen dissera que sim, partindo do princípio que a pergunta fora uma formalidade, se bem que amável. Não estava à espera de precisar de ajuda logo nessa tarde, que foi quando surgiu o problema seguinte.

Por infelicidade, Amanda estava na escola e Graham a trabalhar quando a campainha tocou. Saindo da cozinha, espreitou por cima das cortinas da sala de jantar. Estavam dois carros estacionados à frente de casa. Eram ambos de modelos suficientemente recentes para não pertencerem a nenhum membro da sua família.

Era um homem e uma mulher, que não reconheceu. De resto, só abriu porque a porta de dentro estava fechada à chave.

Senhora Tannenwald? - perguntou a mulher. - Somos da companhia que fez o seguro das obras de arte do seu marido.

Das minhas obras de arte - corrigiu Gretchen. - Não vos chamei.

* Pois não. Recebemos um telefonema do senhor David Tannenwald, que gostaria de ter uma estimativa dos estragos. - David era o mais novo dos dois filhos de Ben, mas mesmo assim dez anos mais velho do que Gretchen.

* Não percebo para quê. Os quadros são meus. - Vindo-lhe à cabeça outra idéia. - Como soube do vandalismo?

* Não sei. Só sei que nos ligou. Também recebemos um telefonema do seu advogado, Oliver Deeds, que achou que devia fazer-se uma avaliação.

* Queremos ver os estragos, tirar fotografias e fazer-lhe algumas perguntas - acrescentou o homem.

Gretchen não queria que, sobretudo aquelas pessoas, entrassem na sua casa, mas tinha os seguros todos na mesma companhia e não lhe apetecia arranjar problemas. Além disso, se vissem os estragos com os seus próprios olhos, poderiam comunicá-los a David Tannenwald e Oliver Deeds, que ela não estava nada interessada em ver à frente.

Portanto, ia deixá-los entrar para verem os quadros. Mas como não era parva e aprendera a não confiar, disse:

* Podem identificar-se?

A mulher pareceu aborrecida.

* Somos da Companhia de Seguros Connecticut.

Gretchen não falou, mas também não se aproximou do trinco. Deixou-se ficar à espera até que, por fim, a mulher resmungou e vasculhou a carteira e o homem meteu a mão no bolso. Só lhes abriu a porta depois de ter examinado as suas identificações

Deu um passo atrás e deixou-os entrar. Falando o menos possível, mostrou-lhes o quadro do vestíbulo e os outros dois da sala de estar. Examinaram La Voisine durante algum tempo.

* Que estranho! - comentou a mulher. - Era o menos valioso dos três.

* Sim, mas o que tinha mais significado para mim.

* Não podemos indemnizar um valor sentimental.

* Não lhes pedi nenhuma indemnização.

* Então não vai pedir? - perguntou o homem.

* Não sei. Se calhar you. O meu marido tê-lo-ia querido. Foi para isso que fez o seguro.

O homem levantou a máquina fotográfica e focou.

* Quem mais os viu? - Disparou.

* A polícia e os meus vizinhos.

* Não, antes - especificou a mulher. - Quem mais sabe da sua existência? - Ouviu-se um clique e depois outro.

Gretchen pareceu confusa.

* Mas... quem quer que tivesse entrado aqui nos últimos dois anos.

* Pode dar-nos uma lista?

* Não. No funeral, estiveram aqui dezenas de pessoas que eu nem conhecia. - Recuou quando o homem lhe indicou que queria fotografar o quadro do ângulo onde estava. Depois de tirar vários instantâneos, virou-se para o outro quadro da sala, menos danificado.

* Está bem - disse a mulher, suspirando. - Comecemos pelas visitas mais freqüentes. Pode enumerá-las?

* Porquê?

* Porque pode ajudar-nos a perceber se tem direito a indemnização.

Gretchen estava a começar a ficar com a pulga atrás da orelha. Sim, examinara as suas identificações, que pareciam verdadeiras, mas havia alguma coisa que não batia certo.

* Não percebo. Os quadros estavam no seguro e foram danificados. Interessa quem foi o autor dos estragos?

* Muito - informou-a a mulhef. - Se foi a senhora, não lhe devemos nada.

* Se o quê?

* Se foi a senhora...

Gretchen ficou horrorizada.

Eu? E ia destruir uma coisa que adorava?

* Não sei o que faria ou deixaria de fazer.

Adorava este quadro. Foi a melhor coisa que o meu marido

me deixou. Nunca lhe faria nada. Fico doente de cada vez que o vejo.

* Só estamos a tentar perceber se tem direito a indemnização. Gretchen enfureceu-se.

* O melhor é irem-se embora.

* Este processo é necessário. Se formos embora, alguém terá de vir no nosso lugar. Faz parte do processo.

* O melhor é irem-se embora - repetiu, sem saber que mais havia de dizer.

Chegou-lhes da porta o som de alguém a pigarrear.

* Posso?

Gretchen olhou e viu Oliver Deeds parado debaixo do arco. Trabalhava no escritório de advocacia contratado por Ben e fora o executor do seu testamento. Da altura dela, envergava um fato escuro e uma gravata indefinida, mas não era isso que o fazia parecer mais velho do que os quarenta e tal anos que Gretchen sabia que tinha. Para começar, era quase completamente grisalho e tinha uma madeixa rala destacando-se do resto do cabelo e atravessando-lhe a testa. Depois, estava sempre pálido e com o ar de ter imenso trabalho. Os olhos pareciam tensos e tristes. As olheiras e os lábios ligeiramente curvados para baixo ensombravam-nos ainda mais. Quando sorria, até ficava bonito, mas raramente sorria.

Naquele momento, não sorria.

* Há algum problema? - perguntou em voz calma.

* Há - respondeu Gretchen porque, afinal de contas, era o seu advogado. - Estes senhores são da companhia de seguros, mas não os chamei. Pode dizer-lhes para se irem embora?

A mulher pareceu reconhecê-lo.

* Dr. Deeds - começou em voz resignada -, estávamos só a tentar explicar que é o procedimento normal.

Mas Gretchen virara-se e observava o fotógrafo.

* Essa ultima fotografia que tirou não foi dos meus quadros acusou.

* Só quero apanhar o enquadramento.

* Acabaram-se as fotografias. Saiam, por favor. - Lançou um olhar suplicante a Oliver Deeds.

* E se eu fosse pela casa com ele? - sugeriu o advogado.

* Não. Esta casa é minha. Não anda ninguém por ela a não ser eu. Já viram os quadros, tiraram fotografias e têm o relatório da polícia. Agora, a companhia de seguros que se arranje. Quero que se vão todos embora. - Esperou muito direita durante um minuto e depois passou por eles em direcção à porta. Foi então que viu Amanda estacionando em frente de casa.

Tremendo de fúria, saiu porta fora, desceu o passeio e atravessou a rua.

Amanda acabava de sair do carro quando viu Gretchen avançando para ela com um ar de poucos amigos. Por uma fracção de segundo, viu-se a discutir por causa de Graham. Mas o marido não estava e os três carros estacionados à frente da casa dela sugeriam outra coisa.

* Não os chamei - disse Gretchen, tão zangada que até estava com mais sotaque do Maine. - Não têm o direito de estar aqui.

* Quem? - perguntou Amanda.

* Os avaliadores da companhia de seguros e o advogado do Ben. Pedi-lhes para saírem, mas fazem de conta que não ouvem.

Aliviada por o problema não ter nada a ver com Graham (e envergonhada por o ter pensado), Amanda disse:

* Venha. - E dirigiu-se à casa de Gretchen. Fora um dia de doidos na escola, com pais continuando a telefonar por causa dos filhos no seguimento do suicídio de Quinn e professores pedindo orientação quanto à maneira de lidar com os seus alunos. A um nível mais pesai Jordie faltara a uma entrevista. Caminhando com Gretchen, Anianda sentiu-se útil.

Aliás, sentia-se cada vez mais a cada passo que davam. Quando chegaram, pareceu-lhe que Gretchen adquirira uma força nova. O cornpanheirismo entre mulheres era muito gratificante.

Reconheceu Oliver Deeds de imediato. Vira-o entrar e sair depois da morte de Ben. Estava a conversar com os dois funcionários da cornpanhia de seguros.

Gretchen pigarreou e levantaram os três a cabeça.

Sentindo que fazia parte de uma equipa, Amanda disse:

* Parece-me que a senhora Tannenwald lhes pediu para se retirarem.

* É uma amiga? - perguntou a mulher.

O advogado respondeu no lugar de Amanda:

* Uma vizinha. Amanda O'Leary, não é?

* Sou. - Admirou-se por ele se lembrar dela. Tinham-se conhecido no funeral, onde Amanda era apenas mais uma entre muita gente.

* Vão sair - disse ele a Gretchen. Os funcionários da companhia de seguros encaminharam-se para a porta.

* Têm os cartões de identificação da companhia? - perguntou-lhes Amanda, estendendo a mão. Quando os recebeu, passou-os a Gretchen, que pegou neles mas com a atenção virada para o advogado.

* Eles disseram que o David lhe telefonou. Mas como soube?

* Um dos seus vizinhos ligou-lhe. Amanda soube logo qual.

* O Lee Cotter - observou, com um certo torn de desagrado. Só quando pronunciou o nome lhe ocorreu que Gretchen talvez não sentisse por ele desagrado e sim alguma coisa positiva. No entanto, ao estudar o seu rosto, não notou nada.

* Porque havia o Lee de telefonar ao David? - perguntou Gretchen a Oliver.

* Para lhe contar o sucedido. Queria saber se ele ou o irmão ti veram alguma coisa a ver com o assunto. O David ficou muito abor recido.

A julgar pela sua atitude, também Gretchen.

* E tiveram?

* Não - declarou Oliver. - Não fariam nada contra si.

* O David disse à companhia de seguros que talvez tivesse sido eu a danificar os quadros.

* A se'rio? - perguntou Amanda, estupefacta. - É óbvio que não falou consigo. Não estava aqui para ver a sua expressão quando tudo aconteceu. - Consternada, foi pôr-se à frente de La Volsine. Era doentio, mas houve alguma coisa que lhe prendeu a atenção, alguma coisa parecida com as manchas de Rorschach. Vistas de um certo ângulo, as facadas pareciam seguir um certo padrão, embora não conseguisse interpretá-lo.

Atrás dela, Gretchen disse ao advogado:

* Por isso é que aqueles dois andavam a tirar fotografias de outras coisas. Queriam encontrar provas contra mim.

* Mas agora acabou-se - afirmou Oliver. - Garanto-lhe. O Lee também contou ao David que está grávida. Devia ter-me dito.

* Porquê, se não tem nada a ver com a herança?

* Sou o executor testamentário. Tenho o dever de olhar por si. Fiquei espantado quando o David me contou. Era bom que tivesse sabido o que dizer.

* Sobre o quê? - indagou Gretchen. - O David também não tem nada a ver com o assunto.

Amanda lançou-lhes um olhar na altura em que Oliver baixou a cabeça e afastou a madeixa de cabelo da testa. Depois, suspirou, levantou-a e dirigiu os olhos tristes primeiro para Amanda e depois para Gretchen.

* Podemos falar a sós? - perguntou baixinho.

* Tenho toda a confiança na Amanda - replicou Gretchen. Após um momento de silêncio e parecendo ganhar alento com a força dela, Oliver começou:

- Está bem. O David e o Alan não receberam bem a notícia da gravidez. Acham...

* Acham que eu andava com alguém antes de o Ben morrer terrompeu Gretchen, completando a frase. - Não me admira, mas diga-lhes que se enganam. Diga-lhes que se não param de me acusar, processo-os.

* Baseando-se em quê?

Não sei. O advogado é o senhor. Difamação, calúnia, qualquer coisa. Tenho dinheiro para isso. Se mancharem o meu bom nome, não tenho nada a perder.

Amanda queria voltar a examinar o quadro. A maneira como fora retalhado tinha qualquer coisa que começava a formar-se na sua cabeça; era como ver animais nas nuvens. No entanto, estava fascinada por este lado de Gretchen, que parecia vulnerável mas determinada e totalmente sincera. E depois o assunto interessava-lhe muito.

* Anda com o pai do bebê? - perguntou Oliver.

* Não tem nada a ver com isso.

* Seria bom se pudesse indicar-lhes um nome. Gretchen abanou lentamente a cabeça.

Abandonando o assunto, Oliver disse com mais delicadeza.

* Esqueça o David e o Alan. Tem razão. Ninguém tem nada a ver com isso a não ser a Gretchen... e eu, visto que o Ben depositou a sua confiança em mim e me escolheu para seu advogado. Precisa de alguma coisa?

* Não. - Gretchen continuava com a voz firme, mas Amanda sentiu nela uma certa vacilação. - Estou bem.

O advogado estudou-a por um instante e abandonou também este assunto.

* Bem, diga-me se precisar. Posso tirar da herança o dinheiro de que necessitar.

* Estou bem - repetiu ela.

Ele comprimiu os lábios e assentiu. A caminho da porta, pareceu lembrar-se dos quadros. Parou, olhou para trás e observou os dois que tinham sido retalhados na sala de estar.

* Quer que contrate um detective privado para investigar quem fez isto?

* Não.

* Quer que fale com a polícia?

* Não é necessário. Não suspeitam de mim.

* Eu também não. Só pensei que uma voz masculina talvez pudesse ajudar.

* Ela já tem uma - interrompeu Amanda, avançando por fim.

* O meu marido conhece os agentes que estiveram aqui e vai pedir-Ihes que não ponham o assunto de lado.

Os olhos de Oliver pareceram estranhamente vazios.

* Então está bem. Mas se a Gretchen precisar de alguma coisa, tem a herança à disposição.

Mal saiu pela porta, Gretchen virou-se para Amanda.

* Tenho a herança à disposição? É mentira. Quem a tem à disposição são os filhos do Ben. O Oliver até me processava se eles quisessem. - Produziu um som de desagrado, fez um gesto com a mão e virou-se. No momento seguinte, voltou-se de novo. - O Ben disse-me que podia confiar no Oliver. Nem pensar! Já mostrou de que lado está. Nem morta lhe pediria ajuda.

Já estava pálida mas, de repente, empalideceu ainda mais, levou a mão à barriga, endireitou-se e respirou fundo.

Amanda, que vivera e respirara gravidez nos últimos quatro anos, sentiu o seu incômodo.

* Que se passa?

Gretchen sentou-se devagar no sofá e esfregou com delicadeza os músculos que sustentavam o bebê, enquanto respirava com regularidade.

* Que foi? Gretchen respirou fundo.

* Umas ligeiras contracções. A médica diz que são normais. Pronto, estou melhor.

* Tem a certeza? Quer que vá buscar água ou alguma coisa?

Não, obrigada. Já fez muito. - Pondo-se de pé, dirigiu-se à cozinha.

Estaria a mandá-la embora? Amanda sentiu a velha hostilidade da sua parte. No entanto, pensando melhor, seria hostilidade, uma distanciação menos negativa ou simples alerta? Dada a inexistência de relações com as vizinhas, era natural que Gretchen estivesse alerta.

Querendo certificar-se de que ela estava bem, Amanda seguiu-a até à cozinha. Entrou na altura em que Gretchen enchia um copo de água no distribuidor da porta do frigorífico, mas a sua atenção foi despertada pela mesa da cozinha, coberta de papéis e livros.

* O que é isto? - perguntou.

Gretchen pousou o copo no balcão e apressou-se a juntar os papéis.

* Nada. - Parecia mais atrapalhada do que misteriosa. Mas Amanda vira uma coisa que a surpreendera.

* Parece francês.

* Queria aprender - explicou Gretchen de passagem, transferindo os livros e os papéis para o balcão. - Adorei a língua quando estive em França com o Ben. Mas não é fácil. - Pegou no copo, bebeu um gole e pareceu lembrar-se da presença de Amanda. - Quer alguma coisa? Água... ou sumo de ananás?

* Não, tenho de ir para casa. Preciso de escrever uns relatórios. Gretchen acompanhou-a à porta da frente.

* Hoje de manhã comprei um aparelho para identificar as chamadas. Ainda não tive nenhuma, mas foi uma boa idéia.

* Mal não faz.

* Obrigada por ter vindo.

* Ainda bem que pude ajudar. Não era justo três contra uma. Sente-se bem?

Gretchen assentiu e abriu a porta.

* Obrigada mais uma vez.

 

Amanda sentia-se muito orgulhosa de si própria ao atravessar a rua. A ajuda dada a Gretchen fazia-a sentir-se bem em vários aspectos. Estava ansiosa por contar a Graham.

Mas isso foi antes de ele telefonar a dizer que chegaria tarde por razões que afinal eram mentira.

 

Quando Amanda atravessou a rua, Karen encontrava-se num canto do alpendre, escondendo um cigarro atrás da coxa. Observou-a com curiosidade. O que se passaria? Quanto mais pensava nisso, mais inquieta se sentia. Deu uma última passa no cigarro, apagou-o na parte de baixo do corrimão do alpendre, atirou-o para os arbustos e começou a descar os degraus.

* Mãe? - chamou Julie da janela do quarto.

* you só a casa da Amanda e já venho, meu amor - disse Karen.

* E a nossa tarte?

* Venho já - repetiu Karen. Que lhe teria dado para sugerir à filha que fizessem uma tarte? Bem, estavam a vender no supermercado uns mirtilos tão bonitos que ela, estúpida como era, pensara que a família iria apreciar uma tarte caseira. Julie sim, tal como os gêmeos. Quanto a Jordie, provavelmente tanto lhe faria. Parecia um morto-vivo desde a morte de Quinn. E Lee? Lee gostava tanto de tarte de mirtilos como de panquecas de mirtilos; ou seja, nada.

Mas o marido ia fazer serão. Fora o que dissera, e ela nunca saberia se era verdade ou mentira. Bem podia examinar o extracto do telemóvel, que este não lhe diria onde ele estava quando fazia uma chamada. Não vira o número de Gretchen no extracto e o telefone de sua casa não fazia a relação das chamadas locais. Talvez ele lhe ligasse do escritório, e era por isso que fazia serão. O sexo ao telefone efa muito apreciado. Passava a vida a ler artigos sobre o assunto. No Que lhe dizia respeito, tanto era traição uma coisa como a outra.

Mas ainda bem que não estava em casa, porque tinha vários telefonemas a fazer para pedir ajuda aos pais na preparação do almoço dos finalistas. Não teria tempo para Lee. De resto, mal tinha tempo para fazer uma tarte. E de certeza que não tinha tempo para ir a casa de Amanda, mas não podia deixar de o fazer.

Amanda estava a pousar um saco de compras e a correspondência na mesa da cozinha quando Karen galgou os degraus e abriu a porta das traseiras.

* Olá, Karen - disse com um sorriso.

* Estiveste outra vez em casa da Gretchen? - perguntou, esforçando-se por parecer descontraída. Amanda, no entanto, desconfiava que ela estava tudo menos descontraída. Rugas profundas desciam-lhe do nariz aos cantos da boca.

* Estive.

* Vi lá muita gente. Alguém que eu deva saber? Amanda tirou do saco uma alface e um pimento.

* Não. Dois dos carros eram dos avaliadores da companhia de seguros. O outro pertencia ao Oliver Deeds. Vieram por causa dos quadros.

* Mas porque veio buscar-te? Amanda guardou os legumes no frigorífico.

* Não está habituada a tratar com pessoas assim. Precisava de apoio moral.

* A companhia de seguros tem a ver com a investigação?

* Só por causa do pedido de indemnização.

* Ah, então quer dinheiro! - comentou Karen. - Ou seja, parece que o valor sentimental do quadro era só conversa fiada. Sendo assim, quem terá cometido o crime?

Amanda tirara do saco um molho de espargos e parou com ele na mão.

* O quê?

* Bem, não seria a primeira a estragar qualquer coisa pessoal para receber a indemnização.

Os avaliadores da companhia de seguros tinham sugerido o

mesmo, mas a intuição de Amanda dizia-lhe que não era verdade. Po1 dia criticar Gretchen por se aproximar mais dos vizinhos do que das vizinhas, mas não achava que fosse falsa.

* Oh, Karen, a Gretchen não fez nada disso. Nem sequer foi ela que telefonou à companhia de seguros. Foi o David Tannenwald, depois de o Lee lhe dizer.

* O Lee? - perguntou Karen, alarmada. - Porque havia o Lee de telefonar ao David?

Amanda abanou a cabeça, encolheu os ombros e tirou um molho de brócolos do saco.

* E então? - continuou Karen. - Sabem alguma coisa? Há suspeitos?

* Ainda não. O Graham telefonou-me e disse-me que falou com a polícia. Não houve mais assaltos na cidade e as pessoas do outro lado da mata não viram ninguém estranho.

* O quê? - atirou Karen. - Quer dizer que o vândalo atacou do nosso lado? Daqui?

Amanda tentou acalmá-la.

* Não. Só quer dizer que não há pistas.

* E as impressões digitais?

* A polícia tirou-as, mas houve muita gente a tocar nas portas, i - Qual é a reacção da Gretchen?

* Por não haver suspeitos? Não está nada contente.

* Vai insistir?

* Insistir com a polícia? Acho que não. Está destroçada por causa do quadro.

* Pensas que irá mudar-se?

* Por causa disto? - adrnirou-se Amanda. - Não falou em nada.

* Em que fala então?

* No bebê - replicou Amanda, a quem parecia que era um assunto positivo.

Mas Karen também lhe atribuiu uma carga negativa.

* Fala do bebê sabendo o que tens passado? Que egoísmo! E continuas a ir lá? Estiveste em sua casa três vezes em dois dias. Porquê? Gostas dela?

Arrumando a hortaliça no frigorífico, Amanda tentou verbalizar o que sentia.

* Não desgosto. Nunca desgostei. Nunca falei muito com ela. Achava-a distante.

* Estão a ficar amigas? - perguntou Karen, como se fosse alta traição.

Amanda compreendia Karen. Se fosse casada com Lee, talvez reagisse da mesma maneira. Mas era casada com Granam, que nunca a enganara. Enveredando pelo caminho que a mãe nunca tomaria, Amanda partia do princípio de que não acontecera nada entre ele e Gretchen.

* Não tenho a certeza se somos amigas, mas é possível que tenha mais que se lhe diga do que pensávamos.

* Pois, rouba maridos, por exemplo.

Amanda estava a pensar no facto de ela andar a aprender francês. A idéia de que o fazia no seu tempo livre era bastante diferente da noção de que passava a vida sentada a ver televisão.

Mas não queria contar a Karen, porque não lhe apetecia que ela também nisso encontrasse um lado negativo. Por isso, limitou-se a dizer:

* A Gretchen é um ser humano, uma mulher. Passou muito e se calhar o nosso apoio é importante.

Karen produziu um som de desdém.

* E achas que não está a armar-se em vulnerável?

* Porquê?

* Porque talvez queira aliadas. Meu Deus, Amanda... não farias a mesma coisa se estivesses no seu lugar? Há melhor maneira de desarmar a esposa do que aproximar-se dela?

Amanda ficou atônita. Sim, queria ser compreensiva, mas não gostou muito da reacção de Karen.

* Que comentário tão cínico! - avisou o mais airosamente que conseguiu.

* Bem, continua sem dizer quem é o pai da criança. Para quê tanto mistério? Se fosse qualquer um, era natural que dissesse.

Amanda tirou do saco uma toalha e guardanapos de papel.

* Não sei. Pode ter as suas razões. Talvez esteja a proteger alguém.

* Precisamente.

* Karen, pode ser alguém que nem conhecemos. Sabes lá as circunstâncias em que o bebê foi concebido! - Fez uma pausa, pensando no que Gretchen dissera da família. Teria calado alguma coisa? O certo era que também não ia contá-lo a Karen. - Talvez esteja a guardar segredo para se proteger. Na verdade, sabemos que a ameaçaram.

Karen fez a expressão de quem não engolia o argumento.

* Se fosse a ti, tinha cuidado com ela.

* Por outro lado, se me aproximar, talvez ela confie em mim reflectiu Amanda, pegando no grande saco castanho do supermercado.

* E talvez também te conte mentiras. Amanda dobrou o saco e suspirou:

* Bem, sinto que devo mostrar-lhe alguma compreensão. Afinal de contas, não pediu que lhe destruíssem o quadro.

* É porque queres agradar ao Graham?

* Não. É por mim. Tenho-me sentido uma inútil, como se não controlasse nada. com a Gretchen, parece-me que faço alguma coisa, que domino alguma coisa. Dou uma mão, ajudo. É bom, sabes? Pensou em Quinn. No seu caso, sentira-se completamente impotente. Depois, lembrou-se do filho de Karen e da entrevista a que faltara nesse dia. Entrevista? Não, encontro. Era mais informal, calmo e confidencial. - Como está o Jordie? - perguntou com simpatia.

* Bem - retorquiu Karen, mas as rugas do seu rosto ficaram mais marcadas. A voz tinha um tom que ia além da simples tagarelice.

* Porque perguntas?

* Ele era amigo do Quinn. Houve muitos deles que quiseram falar comigo. Está a ser difícil voltarem à rotina.

* O Jordie está bem. Perturbado mas bem.

Ao telefonar de Kansas City um pouco mais tarde, Geórgia percebeu que Allison estava abatida logo que ouviu a sua voz. Ainda nessa manhã estivera com a filha em casa. Tinham conversado muito e bem. Dados os acontecimentos da semana anterior, no entanto, imaginou mil situações.

* O que foi, querida? Aconteceu mais alguma coisa?

* Tive uma discussão com o Jordie, que diz que voltámos todos à nossa vidinha e que parece que não aconteceu nada. Mas que havemos de fazer, mãe? Não nos esquecemos do Quinn e continuamos a falar nele, mas temos aulas e outras coisas. Não podemos estar sempre a falar na morte.

* Disseste-lhe isso?

* Disse e ele respondeu-me que sou insensível. Sou?

* Não. És uma das pessoas mais sensíveis que conheço.

* O Jordie parece que anda no ar. Às vezes falamos com ele e não nos ouve. Achava o Quinn o máximo. Mas ele matou-se... Uma pessoa que é o máximo mata-se assim?

* Não.

* Sou a primeira a dizer que o Quinn era um bom amigo. Era inteligente e um grande jogador de basebol, mas não era perfeito. Fungando: - Só que... como metê-lo na cabeça do Jordie?

* Já tentaste dizer-lho com toda a franqueza?

* Já, e respondeu-me que não sei o que estou a dizer. Depois virou-me as costas e foi-se embora. Quer dizer, estamos todos a sofrer e ele vai-se embora. Como posso ser sua amiga se não está presente quando preciso dele? Não é para isso que são os amigos? Para estarem presentes nas alturas difíceis?

Eu diria que sim - concordou Geórgia, sentindo mais do que uma pontada de culpa. Queria estar presente para Allison, e não só enauanto mãe. A filha estava a ficar uma mulher. Geórgia queria que fossem amigas. E, no entanto, já se encontrava longe outra vez.

O pai diz que os homens têm um orgulho muito próprio e que tenho de me aproximar aos poucos, mas não percebo o que quer dizer. E se não percebo, como posso fazê-lo?

* Fala com a Amanda.

* Como, se ela agora passa a vida em casa da Gretchen?

* Não passa a vida - disse Geórgia.

* Está bem, mas ainda há pouco foi lá. Isso quer dizer que agora já podemos estar com a Gretchen?

Ouvindo a filha, Geórgia sentiu-se culpada.

* Sempre puderam estar.

* Nunca gostaste dela.

* Nunca a conheci bem. Se calhar é esse o objectivo da Amanda. Ainda bem. A Amanda é boa nessas coisas. Vai falar com ela, querida. Ela ajuda-te com o Jordie.

* Gostava que estivesses aqui.

Geórgia também. Desta vez, tinha o advogado com ela. Estavam a ultimar os termos do contrato. Talvez conseguisse fechar negócio dentro de uma semana, desde que concordasse permanecer ao leme da empresa. No que lhe dizia respeito, era a parte mais complicada. Se recusasse, teria de regressar ao ponto de partida e encetar negociações com outra empresa. Depois do tempo e do esforço que investira, era uma perspectiva que não lhe agradava nada.

Gostava que estivesses aqui.

Geórgia teve a mesma sensação de sempre, e só saíra de casa nessa manhã.

* Eu também. Mas é por pouco tempo, Allie. Volto amanhã à noite. Chama o teu pai, querida. Quero falar com ele.

* Olá - disse Graham.

O coração de Amanda deu um salto.

* Olá. Nunca mais telefonavas! Vens para casa? - Estava a fazer o jantar, ansiosa por falar com ele. Sentia uma necessidade de Graham que não tinha nada a ver com o facto de precisar que ele a consolasse por não engravidar ou por não ter conseguido evitar o suicídio de um estudante. Tinha a ver com o futuro, o futuro dos dois. Já não conseguia olhar para uma parede vazia.

* Não, na verdade vou na direcção oposta. - O entusiasmo desvaneceu-se.

* Para Providence outra vez?

* Não, Stockbridge. - Projectara lá o parque de um museu naquela Primavera. Os planos tinham ficado tão bem e eram tão bonitos que já se encontravam emoldurados na parede do escritório, por cima da garagem.

* Pensava que já tinhas acabado - comentou Amanda.

* Eu também, mas querem discutir os meus honorários.

* Aprovaram-nos. Está no contrato.

* Eu sei, mas dizem que os extras lhes esgotaram o orçamento e que não têm dinheiro. Portanto, you expor o meu caso numa reunião com a administração.

Graham não foi para Stockbridge, embora o resto fosse verdade. Os directores do museu andavam realmente numa roda viva por causa dos seus honorários, que incluíam não só os planos do parque e do edifício como também a sua execução pela equipa de Will, com a supervisão de Graham. Pondo de lado a qualidade dos seus serviços e da obra em si, Graham investira muito tempo, e fora precisamente o que dissera aos administradores numa conferência telefônica nessa tarde.

Não. Ia jantar com o irmão, Peter, mas Amanda andava tão às avessas com a sua família que preferia não dizer nada. De resto, também preferia que o resto da família não soubesse que iam encontrar-se. Por isso, escolhera um sítio neutro, um restaurante que ficava a uma hora de viagem para cada um deles. Peter concordara em não dizer nada mesmo sem saber do que se tratava. Era uma pessoa muito especial. Independentemente de ser seu irmão, fora essa a razão que levara Graham a procurá-lo.

Encontraram-se no parque de estacionamento, abraçaram-se e entraram. Sentaram-se num compartimento do fundo e pediram os dois rolo de carne e uma cerveja. Depois, conversaram disto e daquilo até sentirem os estômagos aconchegados.

* Tenho de falar contigo por causa da nossa família. Não sei que fazer - começou Graham.

* Por causa dos filhos? - perguntou Peter, sensível como sempre.

Graham deu largas à frustração que acumulava havia semanas.

* Não se calam com isso. Passam a vida a fazer perguntas e a dizer que a mãe gostaria muito que eu tivesse um filho, como se estivesse a deixá-la ficar mal de propósito. Fazem sugestões e mais sugestões sobre o que devíamos fazer, como se estivéssemos sentados de braços cruzados, como se a nossa médica não prestasse.

* Estão preocupados e tentam ajudar.

* Pois, mas não ajudam. Estou a ter problemas com a Amanda. Já houve muitos casamentos estragados por causa da interferência da família. Estamos a passar por um período difícil. A Amanda já anda tensa por causa do bebê. E agora sente-se pressionada. Acha que tomo partidos.

* E tomas? - A pergunta de Peter era a mesma que Graham se fizera a si próprio dezenas de vezes nos últimos dias.

* Não sei. Não quero, mas se ela se sente pressionada pela família, imagina o que eu sinto. É pior comigo. Vocês são o meu passado, as minhas raízes. Significam imenso para mim. Respeito muito as vossas opiniões, mas sou casado com a Amanda, que é o meu presente e o meu futuro. - Mais uma vez, ouviu o eco das palavras dela: "E se não tivermos filhos? Que será de nós? "

* Não pareces convencido, Gray - comentou Peter. Graham abriu a boca para negar, mas as palavras não lhe saíram

Então pensou no que lhe ia realmente na alma. Por fim, desviando o olhar e com uma sensação de medo, admitiu:

* Estou preocupado. Este problema dos filhos afastou-nos. Não sei se há remédio.

* É assim tão mau?

* Não. Mas foi sempre tão bom! Não sei se haverá volta. - Amas a Amanda?

Olhou para Peter.

* Amo.

* Porquê?

* Porquê o quê?

* Que amas nela?

Graham recostou-se, pensando por onde havia de começar. Sem querer, lembrou-se da primeira vez que a vira, seis anos antes, naquela encosta de Greenwich. Recuou àquele tempo num abrir e fechar de olhos:

* É pequenina, delicada... tão feminina! - Atrapalhado, apressou-se a acrescentar: - Não é que a Megan não fosse, mas a Amanda é feminina de uma maneira diferente. Por ser pequena, sinto-me grande, masculino. - Fora uma das primeiras coisas que sentira. Dada a sua história matrimonial, era mais importante para ele do que para qualquer outro, e pouco lhe importava o que pensassem. Recordando a colina de Greenwich, sentiu-se reconfortado. - Tem um ar maneirinho e frágil, umas pernas bonitas, uns caracóis adoráveis...

* Isso são aspectos físicos - observou Peter.

* Não completamente - discordou Graham. - A atitude também conta. Ela puxa o cabelo para ficar penteado e fofo, mas não há nada que o mantenha no lugar. Adoro. É como aquele traço rebelde que tenta domar, mas não consegue, por mais que se esforce.

Manifesta-se noutras coisas? - sorriu Peter.

Orgulhoso, Graham devolveu-lhe o sorriso.

Não tenhas dúvidas. Dantes íamos muitas vezes passear para as montanhas. A Amanda passava a vida a tropeçar nas pedras, mas levantava-se a rir. Era a mesma coisa quando íamos fazer canoagem. Virava a canoa muito mais do que os outros, mas nem por isso desanimava. Atrapalha-se muito, mas é aventureira. Gosta de experimentar coisas novas. Adoro esta sua maneira de ser. Depois há o lado sensível, sabes? No trabalho.

* Já a vi com os sobrinhos - replicou Peter. - Sempre teve um jeitinho especial. Mas nunca a vi em acção na escola.

* Eu sim - volveu Graham, recordando essas alturas com nitidez. - É como se soubesse com exactidão o que há-de fazer e dizer, conforme a situação. Alguns miúdos precisam de uma abordagem subtil e outros de uma aproximação mais viva. Ela consegue transmitir o que é correcto, mesmo que não diga muito. - Graham nunca deixava de se maravilhar com isso. - Tem conhecimentos acadêmicos, mas também é inteligente e sensata. Adoro. - Lembrou-se de outro pormenor. - Da primeira vez que a vi, tinha uma fita vermelha a prender-Ihe o cabelo atrás. Não se via bem, só um clarão de vez em quando.

* Sorriu. - Adoro vê-la de vermelho.

* Uma mulher de armas - riu Peter.

Mas Graham já voltara de novo à encosta da colina. Nesse dia, não fora na fita vermelha, no cabelo louro, na forma do corpo ou na altura que reparara primeiro. Franzindo o sobrolho para a chávena de café, tentou verbalizar os pensamentos.

* Acho... - começou devagar, porque era estranho dize-lo em voz alta -... acho que a primeira coisa que me atraiu foi a maneira como olhou para mim. Éramos muitos a plantar arbustos, mas ela olhou para mim. Pondo de lado uma certa satisfação masculina, senti-me especial, único. Á Amanda fez-me sentir assim muitas vezes.

Ergueu o olhar para ver se Peter estava a rir-se. Will talvez se tivesse rido, tal como Joseph ou Malcolm, mas Peter parecia sério e pensativo.

* Disseste que "costumavam" passear nas montanhas e andar de canoa. Já não é assim?

* Há algum tempo que não.

* Porquê?

* Não temos oportunidade. Andamos cheios de trabalho. Além disso, temos medo de fazer qualquer coisa que a impeça de engravidar

* Sentiu a testa a enrugar-se. - De momento, não há nada que controle mais as nossas vidas. - Estudou Peter, esperando em silêncio que o padre o elogiasse, mas este disse:

* Ter filhos é apenas uma parte da relação.

* Vai dizer isso ao Mac, ao James, ao Joseph ou ao Will. Vai dizer isso à MaryAnne e à Kathryn.

* Se quiseres, vou. Sabes muito bem que faço tudo o que puder para ajudar, Gray.

Sabia. Por isso quisera falar com Peter. Não era um assunto fácil de abordar com os irmãos.

* Sei que me amam, que querem ver-me feliz e que não fazem por mal, mas só pioram a situação. Não tive de passar nada disto quando estive casado com a Megan. Vocês conheciam-na e ela já era da família antes de casar comigo. A Amanda é tão diferente... de vocês e da Megan! Como não nos sentimos automaticamente à vontade quando estamos juntos, fico dividido entre a Amanda e a minha família. Como encontro o equilíbrio?

Peter não respondeu. Parecia estar a pensar.

* Se tivermos filhos, então não há problema - continuou Graham.

* E se nunca tivermos? Culparão a Amanda? Mantê-la-ão à distância? Deixar-me-ão viver com isso? Porque de contrário... se continuarem a martelar na mesma tecla... acabam por me encurralar. Não quero ter de escolher entre eles e a Amanda.

* Compreendo - assentiu Peter. - Que queres que faça? Que fale com eles?

* Não, a não ser que toquem no assunto.

* E que faço então?

Diz-lhes que sosseguem. - Depois, dando largas a tudo o que pensava havia semanas. - Diz-lhes que se metam na sua vida.Diz -lhes que já sou crescido, que sei combater a infertilidade melhor do que eles, que quero filhos e que a sua insistência só piora a situação. Diz-lhes que a melhor ajuda que podem dar é fazer a Amanda sentir-se uma de nós. Ah, sei lá, Peter! Diz-lhes o que quiseres. Eles Ouvem-te.

* E a mãe?

* Eu entendo-me com a mãe - retorquiu Orariam. Não sabia como, mas logo se veria. Dito isto, só tinha mais um pedido a fazer ao seu irmão padre, mas era provavelmente a razão mais premente que o levara a procurá-lo. - Diz-me que não faz mal se não tivermos filhos.

* Oh, mas terão filhos. Se não forem biológicos, será por adopção.

Não era isso. Graham especificou:

* Diz-me que não faz mal se eu e a Amanda não tivermos filhos nossos.

* Claro que não faz mal. Se não tiverem filhos, foi Deus que assim o quis. - Depois de uma pausa, baixou a voz. - É o meu ponto de vista. E o teu?

Amanda estava a escrever relatórios na secretária do escritório por cima da garagem quando o telefone tocou.

* Está?

* Queria falar com o Graham O'Leary.

* Não está. Quem fala, por favor?

* Stuart Hitchcock, de Stockbridge. Queria agradecer-lhe por ter falado connosco hoje à tarde. Estive sempre do seu lado e ele defendeu bem a sua posição. Gostaria de lhe ter dado uma resposta quando telefonou, mas sete dos dez membros da administração tinham planos para a noite e a reunião acabou às seis. Vamos reunir-nos outra vê? para a semana. Pode dizer-lhe que, se tivermos dúvidas, lhe telefonaremos nessa altura?

Amanda disse que sim. Se não estava em Stockbridge, onde andaria o marido?

 

Quando Graham chegou a casa na terça-feira à noite, Amanda já não queria saber onde estivera. Ouviu-o entrar, mas sentia-se muito confortável no sofá da salinha, tão confortável quanto é possível no meio de uma guerra muito privada. Apesar de saber que devia levantar-se e pô-lo perante a situação, estava muito zangada, desiludida e assustada.

O melhor que conseguiu fazer foi apontar o recado de Stuart Hitchcock e mostrar-lho na manhã seguinte, ao pequeno-almoço. Ele leu-o e ficou durante uma silenciosa eternidade com os olhos postos no papel que o condenava. Por fim, levantou a cabeça.

Verdade seja dita, o seu ar era culpado.

* Estive com o Peter - explicou baixinho. - Tinha de falar com ele e achei que tu não ias gostar.

Talvez se enganasse. De todos os irmãos O'Leary, era em Peter que tinha mais confiança. Mas o problema não residia aí. Não era isso que a fazia sentir-se tão abatida.

* Mentiste.

* Não me pareceu que tivesse outra opção.

* Tens sempre outra opção - insistiu ela. Quando se tratava de serem sinceros um com o outro, tinham essa opção. O problema dos filhos era outra coisa.

Ele não disse nada. Ficou parado, parecendo em conflito consigo próprio, tal como ela. Uma parte de Amanda queria abraçá-lo, dizer-Ihe que não fazia mal, que compreendia e que o amava na mesma.

A outra parte não queria pôr a alma a nu sem ele manifestar primeiro o que sentia.

Quando lhe pareceu que ele não ia dizer-lho, observou:

* Se o problema é a confiança, isto não ajuda nada.

* Confiança? Valha-me Deus! Outra vez a Gretchen?

* Não, outra vez o-que-significamos-um-para-o-outro. Ainda não me disseste o que sentirias se não conseguíssemos ter filhos.

De repente, pareceu desesperado.

* Teremos filhos. De uma maneira ou de outra, teremos.

Amanda não sabia o que queria dizer "de uma maneira ou de outra". Quanto à sua expressão de desespero, talvez fosse porque não queria dar uma resposta mais honesta, o que não a fazia sentir-se melhor.

* Tenho de ir andando - disse, pondo a pasta a tiracolo. Entre esse instante e o momento em que ela saiu, Granam teve

mais que tempo para dizer: "Espera. Vamos conversar. Venha o que vier, quero viver contigo o resto dos meus dias. Nunca, mas nunca olharia para outra mulher." Mas não o fez.

Amanda mergulhou de cabeça no trabalho, ajudada por um rodopio de telefonemas de pais. Fora três entrevistas com alunos, passou quase toda a manhã a atender chamadas. Uma mãe estava preocupada com a descida das notas da filha já perto do fim do ano e outra queria saber se era natural o filho finalista andar a fazer teatro em casa. Uma inquietava-se com a má influência dos amigos do filho e outra comunicou-lhe que ia divorciar-se do marido e que a filha estava muito perturbada. Muitos telefonaram ainda por causa do suicídio, pois queriam certificar-se de que a escola permanecia vigilante.

Amanda mostrou-se sempre muito profissional até Allison Lange aparecer à porta. A manhã estava a chegar ao fim. À semelhança de tantos estudantes que procuravam a sua ajuda, parecia hesitante.

No seu caso, porém, Amanda ficou logo alerta. Tinha com Allison um envolvimento pessoal que não se verificava com os outros estudantes. Além disso, sabia que ela e Jordie eram muito amigos e nue o rapaz estava a sofrer. Enviara-lhe outro e-mail de manhã, mas não recebera resposta.

Portanto, puxou Allison para dentro do gabinete e fechou a porta.

* Olá, linda - disse Maddie. Amanda foi mais directa.

* Estás com ar de quem precisa de uma amiga.

Allison não sorriu. Parecendo pouco à-vontade, olhou para o papagaio.

* A minha mãe está sempre a dizer-me que devia falar consigo. Era para ir lá a casa ontem à noite, mas ter-me-iam visto. - Os seus olhos encontraram os de Amanda antes de se desviarem de novo. Aproximou-se da gaiola. - Quer dizer, ninguém saberia do que eu ia falar, mas ter-me-ia sentido muito culpada.

* Amo-te - disse-lhe Maddie.

* Culpada? - perguntou Amanda, juntando-se a ela ao lado da gaiola.

* Por falar do Jordie.

Amanda puxou uma comprida madeixa de cabelo para trás da orelha de Allison e pousou-lhe a mão no ombro com suavidade.

* Também ando preocupada com ele. Parece-me que está a... lutar com muita coisa.

* Muita coisa - repetiu Allison, olhando-a de frente e parecendo aliviada por Amanda também ter reparado, como se isso a autorizasse a desabafar. - Já mal consigo falar com ele. É como se fosse uma pessoa diferente. Fala pouco e vira-se contra mim quando lhe pergunto o que se passa. Porta-se como se não quisesse que ninguém se aproxime dele. - Fez uma pausa e imobilizou-se. - E não está cá hoje.

Isso explicava porque não respondera ao e-mail de Amanda.

* Está doente?

Allison falou ainda mais baixinho.

* Hoje de manhã não estava. Veio no autocarro connosco e saiu ao mesmo tempo que toda a gente. Vi-o entrar. Mas agora faltou à aula de matemática. Ninguém o vê desde a primeira hora.

* Ninguém?

* Perguntei aos nossos amigos todos. Não sabem dele. O Jordie tem andado tão estranho com eles como comigo.

* E tu? Tens idéia de onde possa estar? A rapariga abanou a cabeça.

O seu primeiro pensamento foi que Jordie adoecera e o tinham mandado para casa. Era a explicação mais positiva e seria fácil confirmá-la ligando para a enfermeira da escola.

Por outro lado, se isso não tivesse acontecido e Allison soubesse, ficaria ainda mais inquieta. Resolveu, por isso, deixar o telefonema para mais tarde e tentar reconfortar Allison.

* Deve estar no gabinete da enfermeira - disse com confiança.

* Ou esteve... se calhar já foi para casa.

Allison abanou a cabeça.

* Não, já telefonei. Duas vezes, para o caso de estar na casa de banho. Não atendeu ninguém.

* Pode ser que tenha ficado cá até a enfermeira conseguir contactar a mãe. - Calou-se. Allison era tão perspicaz e minuciosa como Geórgia. - Não me digas que já foste ao gabinete da enfermeira...

A expressão culpada da rapariga disse-lhe que sim.

* Fui só até à porta e não consegui ver para dentro. A campainha tocou e não me atrevi a ficar.

* Onde devias estar agora?

* Na sala de estudo. Amanda preencheu um bilhete.

* Dá-o ao vigilante, para não arranjares problemas.

* Que digo se alguém me perguntar porque estive aqui? - inquiriu Allison.

Amanda já estava habituada à pergunta. Os estudantes gostavam dela, mas não queriam ser vistos no seu gabinete.

Neste caso, no entanto, o mais fácil seria alegar uma versão simplificada da verdade.

* Os teus amigos sabem que somos vizinhas e que a tua mãe está fora. Diz que falaste com ela ontem à noite e que te pediu para me dares um recado.

Allison pegou no bilhete.

* Que vai fazer quanto ao Jordie?

* Primeiro, vou falar com a enfermeira.

* E se ele não estiver lá?

* Tento em casa. Pode ser que tenha chegado entretanto.

* E se não?

* Ligo aos pais.

* Não quero que arranje sarilhos por minha causa. É que... preocupa-me a outra coisa.

Amanda assentiu. A outra coisa também a preocupava.

A "outra coisa" era, claro, o suicídio de Quinn. Jordie era amigo de Quinn, embora fossem muito diferentes. Quinn fora um aluno brilhante; Jordie era assim-assim. Quinn fora uma estrela da equipa de basebol; Jordie costumava aquecer o banco. Quinn fora representante dos alunos; Jordie era um caloiro indiferente. Para Amanda, se havia alguém que pudesse imitar Quinn, esse alguém era Jordie.

O rapaz não se encontrava no gabinete da enfermeira, que nem o vira.

E não estava em casa. Isto é, se estava, não atendeu o telefone.

Amanda pediu a Maggie Dodd que averiguasse discretamente se ele se achava algures na escola, mas sem alertar os outros para o problema. Procuraram no vestiário dos rapazes, nos bastidores do anfiteatro e em todas as secções da biblioteca.

Enquanto Maggie continuava a busca, Amanda tentou o telemóvel de Karen, mas só conseguiu deixar-lhe uma mensagem. Aconteceu-lhe o mesmo quando ligou para o trabalho de Lee.

Imaginando um banho de sangue em casa, cancelou o que tinha a fazer nas próximas horas, meteu-se no carro e dirigiu-se à praceta. Não viu nenhum dos carros dos Cotter, o que significava que estavam fora e não mortos dentro de casa. Aliviada por esse lado, mas imaginando um pesadelo de coisas que Jordie poderia fazer contra si próprio, procurou ajuda.

Graham não estava, mas Russ sim... ou devia estar. Viu o carro estacionado junto da garagem e encontrou a porta das traseiras aberta, mas não lhe respondeu quando entrou na cozinha e o chamou. Chegou mesmo a ir ao seu escritório, mas nada. Restava Gretchen. Pensando apenas que queria alguém do seu lado caso se tivesse passado alguma coisa horrível, atravessou a rua e tocou à campainha.

Gretchen pareceu satisfeita ao vê-la, se bem que intrigada.

Estava Amanda a explicar-lhe a situação, quando Russ apareceu atrás dela. Como envergava a T-shirt e os calções do costume e parecia tão enxovalhado como sempre, Amanda nem ligou muito à sua presença. A prioridade do momento, de resto, não era saber se ele andava metido com Gretchen. Era Jordie.

Russ foi com ela a casa dos Cotter. Tocaram primeiro à campainha e depois bateram. Vendo que não aparecia ninguém, Amanda tirou a chave do esconderijo que Julie lhe mostrara e abriu a porta.

* Jordie? - chamou do vestíbulo. - Jordie? Sou a Amanda!

O silêncio era total. Lançando a Russ um olhar assustado, apressaram-se os dois a vasculhar a casa. Não havia tempo a perder. Se Jordie tivesse feito alguma coisa, a diferença entre a vida e a morte podia ser uma questão de minutos.

Não encontrando nada no rés-do-chão, subiram ao primeiro andar. Procuraram no quarto de Jordie e depois no de Lee e Karen. Verificaram os quartos dos gêmeos e de Julie e todas as casas de banho. Espreitaram os armários, o sótão e a cave.

Quando chegaram ao jardim de trás, Gretchen foi ter com eles. Estavam juntos a discutir onde poderia estar metido o rapaz quando Karen apareceu. Saindo do carro, deixou a mão na porta.

* Que se passa?

Amanda aproximou-se, esforçando-se por parecer calma.

* O Jordie não está na escola. Apareceu à primeira hora, mas depois foi-se embora. Procurámos na escola toda. Pensei que talvez estivesse aqui.

Karen parecia pálida, mas era difícil dizer se estava mais do que de costume. Fitou Amanda sem expressão, depois Russ, quando se lhes juntou, e por fim Gretchen.

Amanda não sabia o que pensar da sua reacção. Depois do que acontecera na semana anterior, teria ficado aterrorizada se Jordie fosse seu filho. Mas Karen parecia sem acção, e Amanda não percebia se era porque estava assustada e não sabia o que fazer, se era porque não entendia tanta agitação.

Sentindo-se culpada com a possibilidade de se ter precipitado, explicou:

* Tentei telefonar-te a ti e ao Lee. Deixei mensagens. Estava preocupada.

* Porquê? - perguntou Karen.

* A morte do Quinn não foi nada fácil para o Jordie.

* Mas o Jordie era só um dos amigos do Quinn - respondeu Karen no mesmo torn amorfo. - Porque partes do princípio de que a sua morte o abalou mais do que aos outros? Porque pensas o pior? Porque saíste da escola e vieste aqui?

* Karen, é o teu filho, o meu vizinho. Conheço-o. Estou preocupada.

Karen lançou um olhar a Russ e Gretchen e voltou a fitar Amanda. Já menos amorfa, parecia quase zangada.

* Não há razão para preocupações. - declarou. - O Jordie está bem. Tem encarado muito bem a morte do Quinn. Já falei com ele sobre isso.

Se Jordie estava bem, Karen encontrava-se numa fase de negação. Apostava.

Russ também, a julgar pelo tom de desafio que lhe perpassou a voz.

* Sabes onde está?

* Por acaso sei. com o Lee. - Tirou as chaves do carro da ignição e fechou a porta.

Amanda ficou pasmada.

* Num dia de aulas? O Lee foi buscá-lo? Disse a alguém na escola?

Karen encaminhou-se para casa.

* Não sei. Não estava lá. Mas se não encontram o Jordie na escola, então é porque está com o pai.

* Tinham combinado?

* Tinham. O Jordie precisava de falar. - Continuou a andar por uns segundos e, de repente, virou-se com uma expressão de horror. Os seus olhos voltaram a fixar os outros dois antes de se fixarem em Amanda. - Não puseste a escola toda à procura dele, pois não?

* Não.

* Ah, graças a Deus! Só nos faltava que toda a gente pensasse que ele está à beira de se suicidar, quando afinal corre tudo bem. Continuou a andar para casa. - vou telefonar ao Lee. Tenho a certeza de que disse a alguém da escola, mas é o costume. Trabalhei lá o tempo suficiente para saber como estas coisas funcionam mal. - Depois, rematou por cima do ombro: - O Jordie está bem. Podes dizer lá na escola que está bem.

Jordie não estava com o pai, mas foi só depois de uma hora e quatro cigarros que Karen o soube, pois não conseguia falar com Lee. As boas notícias eram que podia ter a certeza de que o marido não estava com a viúva, dado que a vira com os seus próprios olhos na altura em questão. As más notícias eram que Jordie desaparecera.

* Onde se meteu? - perguntou Lee, zangado.

* De certeza que está com os amigos - disse Karen. Tinha de ser. Não era a primeira vez que Jordie desaparecia com os amigos sem dizer nada aos pais. Nunca o fizera no horário da escola, mas era um sinal de que estava a crescer, a ficar mais ousado, desafiador e rebelde. Estava com os amigos. Sem dúvida que sim,

* A Amanda verificou? - inquiriu Lee. - Viu se faltavam mais miúdos?

* Acho que sim.

* Achas? Não perguntaste? Seria a primeira coisa que eu teria perguntado.

* Mas não perguntaste nada porque não estavas no escritório. Onde te meteste?

* Fui almoçar.

* Até que enfim, a verdade! - resmungou Karen.

* Não percebo o que queres dizer.

Queria dizer que ele era cego para as necessidades dela e dos filhos e que não se dava conta do preço que todos eles estavam a pagar por causa da sua guerra privada. Queria dizer que quando o cartão de crédito de um homem casado é usado para pagar os honorários de um obstetra que a sua esposa não consultou, é porque alguma coisa se passa. Mas não era altura para discussões. Havia coisas mais importantes.

* Estou preocupada com o Jordie. vou começar a telefonar aos amigos.

* Depois diz-me alguma coisa.

Karen concordou, mas só pôde fazer as chamadas dali a uma hora. Teve de esperar que Julie e os gêmeos chegassem no autocarro da escola. Só então os amigos de Jordie que não tinham treino iriam para casa... isto é, se fossem para casa.

Conseguiu contactar alguns, que não sabiam dele e que pensavam que Jordie adoecera e fora para casa.

Karen teve visões horríveis, uma das quais que a polícia o prendera e o metera na cadeia. Era um absurdo, claro. Ninguém sabia da faca.

Já muito assustada, voltou a telefonar a Lee.

* Tenho um mau pressentimento.

* O que é freqüente. Passas a vida preocupada.

* Agora é diferente. O Jordie tem andado estranho.

* É um adolescente e os adolescentes reagem assim.

* E se não for isso? E se for outra coisa?

Ouviu um silêncio prolongado, um praguejar resmungado, um suspiro resignado.

* Está bem, vou já para casa. Vai telefonando, sim? Ele tem de estar nalgum lugar.

Amanda não podia ficar de braços cruzados. Não achava que Jordie estivesse com Lee nem que Karen soubesse dele. Já trabalhara com pais que se recusavam a admitir que os filhos tinham problemas graves. O grande exemplo eram os pais de Quinn Davis.

Perseguida por semelhante pensamento, Amanda fez as suas investigações com a maior discrição possível. Sem grandes ondas e com um ar descontraído, perguntou a um ou outro amigo, ao treinador de basebol e ao professor de Espanhol, e soube que Jordie estivera na escola até às dez da manhã e que ninguém o vira desde então. Quando esgotou todas as hipóteses, eram quase cinco da tarde.

Resolveu telefonar a Karen, que atendeu logo, aflita.

* Sou eu - disse Amanda. - Já apareceu? Sentiu-se-lhe a frustração na maneira como respirava.

* Não. - A seguir, confessou: - Afinal não se encontrava com o Lee. Devo ter feito confusão. Achamos que está com os amigos.

Amanda não achava nada e sentiu-se apavorada.

* Já telefonaste à polícia?

* À polícia? Para quê?

* Para comunicar o desaparecimento do Jordie.

* Ainda não passou tempo suficiente para o considerarem desaparecido.

* À luz da lei, até pode ser que tenhas razão, mas vivemos numa cidade pequena e a polícia sabe do caso do Quinn - retorquiu Amanda. - Talvez...

 

* Não é a mesma coisa - atalhou Karen. - Não tem nada a ver. Jordie não fez isso, nunca o faria. O Jordie não.

Amanda suavizou o tom de voz.

* Eu sei, mas há outras maneiras de exprimir a dor. Se estiver perturbado e sem conseguir pensar direito...

* Para que martelas na mesma tecla, Amanda? Estás aí toda aflita e ele só deve ter saído com os amigos. Nesse caso, podes ter a certeza de que não se encontra em Woodley. Se está na companhia dos amigos, devem andar às voltas em Darien, Greenwich ou até Manhattan. Telefonar à polícia daqui só serve para envergonhar o Jordie quando a notícia vier escarrapachada no jornal da próxima semana. Olha o que aconteceu ao Quinn. Temos de reconhecer que foi o artigo que o levou a matar-se. Se não tivesse sido humilhado publicamente, ainda estaria vivo. Para que insistes na polícia? Não percebo o que queres.

Amanda ficou atônita. Não lhe parecia que uma simples sugestão fosse "insistir". No entanto, era evidente a aflição de Karen. Por isso, retorquiu com calma:

* Estou preocupada com o Jordie.

* E eu agradeço-te, mas não te esqueças do que se passou contigo. Como não conseguiste salvar o Quinn, sentes-te culpada. Culpada e... e assustada. Estás a fazer uma tempestade num copo de água. Eu compreendo, Amanda, mas o Jordie está bem. Digo-te que está bem.

Mesmo assim, Amanda não podia fingir que não se passava nada. Sim, , sentia-se culpada por não ter ajudado Quinn, mas havia muito mais em jogo com Jordie. Além de serem vizinhos, conhecia-o e já o Seguira a nível profissional. Talvez estivesse a imaginar um problema maior do que existia, mas visto que o pior cenário possível se concreta com Quinn, não conseguia ficar de braços cruzados.

Saiu da escola logo que acabou de falar com Karen. Uma vez no carro, não teve dúvidas a quem precisava de telefonar. Não interessava que tivesse saído de casa de manhã num repente nem que não tivesse falado todo o dia com Graham. O marido gostava muito de Jordie e tinha com ele uma relação que não passava por Karen e Lee. A sua opinião era muito preciosa para Amanda.

Não estava no escritório, mas conseguiu contactá-lo pelo telemóvel. Depois de lhe explicar a situação, perguntou-lhe:

* Achas que não tenho razão para me alarmar?

Para seu grande alívio, Graham não se mostrou nem por sombras tão descontraído como Karen e Lee.

* Claro que tens. Conheces o Jordie e eu também. Se a Karen e o Lee não estão preocupados, deviam estar. Eu estaria, se fosse o meu filho.

Amanda sentiu um aperto no coração. Num abrir e fechar de olhos, imaginou-se com o seu bebê nos braços, viu-se passando-o a Graham e notando a luz no seu olhar.

Fez um esforço para afastar a imagem.

* Não percebo a Karen. Como pode ficar à espera sem fazer nada?

* Não é só ela. O Lee também. Talvez achem que não saber é melhor do que saber o pior.

Amanda compreendia e, de certa forma, identificava-se com semelhante comportamento. Não reagira assim com Graham algumas vezes? Não era uma das razões por que não o enfrentara, não insistira com ele, não o obrigara a responder às suas perguntas?

* E se o pior puder ser evitado? - indagou, forçando-se a concentrar-se de novo em Jordie. - vou para lá agora. Talvez consiga convencê-los a fazerem alguma coisa. Se fosses o Jordie e estivesses a passar um mau bocado, onde estarias?

* De certeza que não estava com os amigos - retorquiu Graham. - O Jordie não, porque só marginalmente faz parte do grupo. Não o imagino a ir desabafar com os amigos, a não ser que exista outro grupo que desconhecemos por completo.

"Perdedores", pensou Amanda.

* Perdedores - continuou Graham. - É um termo cruel, mas são os que talvez admirassem o Jordie.

Amanda conhecia a população escolar e sabia quem emparceirava com quem.

* Não tenho visto o Jordie com ninguém a não ser os colegas do costume. Bem, mas para onde irias se estivesses no seu lugar e andasses perturbado? - Se fosse ela, sabia para onde iria: para a mata. O rapaz dissera-lhe que gostava de passear na mata, que lhe agradava a escuridão e o mistério, o silêncio, a paz.

Em vez de arriscar uma hipótese, Graham replicou:

* vou a caminho de uma entrevista em Danbury, mas a intuição diz-me que devia dar meia volta e ir ter contigo a casa.

Amanda tê-lo-ia abraçado se estivesse com ele. Sempre tinham funcionado bem a este nível. Graham preocupava-se quando havia razões para se preocupar. Era uma das suas facetas que mais lhe agradava.

* O Jordie pode estar muito bem e, nesse caso, divertir-nos-emos mais tarde com toda a situação. Mas prefiro prevenir que remediar. O suicídio do Quinn ainda está muito fresco... não quero correr riscos com o Jordie... e por favor não me digas que a minha profissão me obriga a manter as distâncias. Neste caso, não conseguiria.

* Eu sei - retorquiu Graham com ternura. - É uma das coisas que adoro em ti.

Os olhos marejaram-se-lhe de lágrimas. Só passados alguns minutos logrou sussurrar:

* Obrigada. - Teria precisado ainda de algum tempo para lhe dizer mais mas, nessa altura, começaram a perder o sinal. Ouviu Graham ao longe dizendo-lhe que se encontrariam em casa, e o sinal de fim de chamada apareceu no ecrã do telemóvel.

Seguiu em frente, tão ansiosa por ver o marido como por falar com Karen e Lee. Quando chegou à praceta, o único sinal de que havia alguma coisa que vagamente não estava bem era o céu carregado de nuvens sobre a vegetação luxuriante de Maio. Os gêmeos Cotter andavam de trotineta à volta da praceta e Julie pedalava a sua bicicleta nova com rodinhas. Em casa dos Lange, Tommy lançava a bola contra a porta da garagem enquanto Russ fazia as vezes de treinador.

Amanda estacionou e encaminhou-se na sua direcção. Russ foi ter com ela e encontraram-se a meio caminho entre as duas casas.

* Há novidades? - perguntou, baixando a voz para que o filho não ouvisse.

* Por enquanto não. - Lançou um olhar à casa dos Cotter. Parecia tudo calmo.

* Há bocado, em casa da Gretchen, deve ter-te parecido estranho encontrares-me lá - murmurou Russ, pondo-se de costas para o filho e baixando a cabeça. - Fui só perguntar-lhe como se sentia e tu apareceste. Não estive lá dentro mais do que cinco minutos.

* Olha para mim, Amanda! - gritou Julie. Fitaram-na os dois. Continuando a pedalar mas com os olhos muito abertos postos no passeio à sua frente, a pequena tirou as mãos do guiador durante uma fracção de segundo. Depois, agarrando-o de novo, levantou a cabeça com uma expressão de triunfo.

* Boa! - exclamou Amanda. - Muito bem! - Baixou a voz.

* És o pai da criança?

* Não.

* Então não tenho razões para questionar a tua presença. De resto, aí trata-se de vida. Neste caso não. - Olhou para a porta da frente dos Cotter com um ar aflito. - Preocupam-se tanto com as aparências...

* Se fosse eu, chamaria o exército.

* Tu, o Gray e eu. you lá ver se consigo alguma coisa. - Apertando-lhe o braço, pôs-se a caminho. Deu a volta para a porta das traseiras e entrou. Karen estava ao telefone e Lee encostado ao balcão, de braços cruzados e com os pés à frente um do outro.

Amanda fitou-o e arqueou as sobrancelhas. Ele abanou a cabeça, com os lábios cerrados.

* Faz idéia de onde possa estar? - perguntava Karen. Depois otlviu, suspirou e pareceu zangada. - Se ele aparecer, pode dizer-lhe para me telefonar? - Passados uns segundos, desligou e virou-se para Atnanda. - Não está no treino de basebol, mas é normal. Diz o regulamento que não se pode jogar nos dias em que se falta às aulas. Encostou-se à parede, levando as pontas dos dedos à boca.

* Alguma pista? - inquiriu Amanda, dirigindo-se a Lee.

* Nada. - Desencostou-se do balcão e pegou nas chaves. - you dar uma volta.

* Onde? - indagou Karen, alarmada.

* Onde o idiota do meu filho possa estar. - Saiu, batendo a porta.

No silêncio que se seguiu, Karen baixou a mão. Tinha uma expressão furiosa.

* A culpa é dele. Os miúdos percebem. O Jordie já tem idade para compreender o que o pai anda a fazer. Talvez não ande metido com a Gretchen, mas anda com alguém. - Voltou a levar as pontas dos dedos à boca, sustentando o olhar de Amanda.

* O Jordie sabe com quem? Karen encolheu os ombros.

* Achas que ia fugir por causa disso?

* Ele não fugiu - respondeu Karen por entre os dedos que, no entanto, Amanda bem via que tremiam.

Aproximando-se, pousou-lhe a mão no braço.

* Chama a polícia.

* Não.

* Podem procurá-lo.

* Não precisamos da polícia, que não tem nada a ver com o assunto. Se a chamarmos, as coisas não terminam por aqui.

* Porquê? - perguntou Amanda. Haveria mais alguma coisa que não soubesse?

* Por nada - apressou-se a dizer Karen. - Só acho que é um exagero chamar a polícia.

* Se partirmos do princípio que saiu da escola às dez, há quase oito horas que ninguém sabe dele.

* Daqui a pouco tem fome e há-de aparecer. Estou a fazer empadão de carne, que ele adora.

* Mãe? - ouviu-se lá de fora. Segundos depois, Jared encostou o nariz ao vidro. - O Jon veio contra mim de propósito.

* Diz-lhe para te pedir desculpa. Jared virou-se e gritou:

* A Mãe diz que tens de pedir desculpa. - Baixou a voz para um torn normal. - Temos fome. Não jantamos?

* Está quase pronto.

* Se o Lee anda de carro, you procurar a pé - decidiu Amanda.

* A pé onde?

* À mata.

* Não me parece que o Jordie fosse para lá. Amanda discordava, mas não queria discutir.

* De qualquer forma, mal não faz. Tenho o telemóvel no bolso. Ligas-me se ele aparecer?

Subitamente lacrimosa e hesitante, Karen engoliu em seco:

* Achas que ele fez alguma coisa, Amanda?

* Não, mas penso que está a sofrer.

* Algum dos outros miúdos desapareceu?

* Não sei, talvez, mas eu quero é encontrar o Jordie.

* Estás mais preocupada com ele do que com os outros? Amanda pensou por um momento e fez que sim com a cabeça.

* Tem um peso grande em cima. Tu própria o disseste, Karen. Deve saber o que se passa entre ti e o Lee e já é crescido o suficiente para entrar em conflito consigo próprio.

* Conflito?

* Tomar ou não partidos, rezar para que as coisas se componham entre ti e o Lee mas não acreditando nisso, sentindo-se frustrado e impotente...

Karen encolheu-se.

* Achas que é um suicida em potência?

* Não, mas acho que gostaria de ir verificar à mata antes de escurecer. Ou seja, temos cerca de duas horas. Queres vir?

Karen abanou a cabeça.

Se descobre que eu estava tão preocupada ao ponto de ir atrás

dele, fica possesso. Não. Fico aqui a fazer mais chamadas. - Voltando as costas a Amanda, pegou no telefone.

Amanda regressou a casa para vestir umasjeans e um blusão. Por muito quentes que estivessem os dias em Maio, à noite arrefecia. De resto, parecia que ia chover.

Enfiou o telemóvel no bolso e saiu de casa mesmo quando Graham apareceu. Ao vê-la, saltou da carrinha num abrir e fechar de olhos e juntou-se-lhe sem pronunciar uma palavra. Parecia saber exactamente para onde ela ia. Acertando o passo, atravessaram os jardins entre a casa de Karen e a de Gretchen e embrenharam-se na mata.

 

Caminharam durante vários minutos sem falar. Amanda seguia atrás de Graham. O carreiro era estreito mas bem definido. O que quer que tivesse lá crescido já havia sido pisado, restando pouco mais do que as agulhas e folhas que tinham caído no Outono anterior. O solo, húmido depois da neve do Inverno e da chuva da Primavera, abafava o som dos passos.

com o ar pesado absorvendo os vários ruídos, a floresta parecia fantasmagórica, de tão silenciosa. O tecto de nuvens foi-se adensando à medida que passavam por copas sempre-verdes e ramos carregados de folhas e rebentos. Amanda quase imaginava a floresta suspendendo a respiração e esperando que acontecesse alguma coisa, o que a fez sentir-se ainda mais apreensiva.

Até os esquilos estavam calados; não faziam barulho nem tagarelavam como de costume. Se comunicavam uns com os outros em cima do musgo ou subiam e desciam das árvores, faziam-no em silêncio. As aves esvoaçam lá em cima. Atestava-o o roçagar das folhas e um ou outro trinado, também abafado: não silencioso mas apenas abafado pelo ar pesado. Afinal de contas, era a época do acasalamento.

Amanda pensava nisso enquanto seguia Graham, com o seu passo seguro, a barba de lenhador bem aparada e o corpo firme. Envergava um pólo e umas calças de ganga. Adorava vê-lo assim. Estava ao ar livre, no seu elemento. Embora a apenas noventa minutos de Manhattan e a dez do centro de Woodley, a floresta constituía um mundo à parte. O medo que sentia por Jordie não lhe entorpecia os sentidos.

Apesar das nuvens carregadas e do ar parado, sabia que a floresta estava viva. Queria acreditar que era um bom sinal para o rapaz.

* Jordie! - chamou Graham. Depois, falou mais baixinho por cima do ombro. - Ele está sempre a falar da torre.

* Se estiver aqui, é lá que o encontraremos - assentiu ela. O facto de ter sido considerada um sítio perigoso não ia detê-lo.

* Pelo contrário, até a torna mais atraente e misteriosa - concordou ele, estacando de repente. Amanda foi contra o marido e agarrou-se à parte de trás do cinto das suasjeans. Graham levou as mãos em concha à boca. - Jordie! - Tentaram ouvir mais do que o eco. Chamou outra vez, dirigindo a voz para a esquerda e para a direita, mas não houve resposta. - Mesmo que esteja aqui, não vai responder murmurou.

* Isso não quer dizer que não queira ser encontrado. Graham lançou-lhe por cima do ombro um olhar de compreensão,

preocupação... e ternura. Depois, deu-lhe a mão e continuou a andar. O carreiro começou a subir. O declive era suave mas notava-se bem. Amanda teve de estugar o passo e até de dar corridinhas para o acompanhar. Andava menos do que ele, mas já estava habituada.

* Isto lembra-me o monte Jefferson - observou ela, grata por ter alguma coisa que a distraísse da preocupação com Jordie. - Recordas-te? Começou a nevar e tivemos de voltar a correr para o chalé.

* Tropeçaste quase todo o caminho. Caíste que te fartaste. Andaste imenso tempo cheia de nódoas negras.

* Mas conseguimos. - Deixou-se embalar pela lembrança. Tenho sentido a tua falta, Gray.

Num único movimento fluido, ele virou-se, abraçou-a, apertou-a contra si, beijou-a na boca, largou-a e, continuando de mão dada, recomeçou a caminhar. Amanda ficou com a cabeça a andar à roda. No momento seguinte, porém, lembrou-se da razão que os levara a correr pela mata com a noite caindo cada vez mais depressa.

* Jordie! - chamou Graham outra vez. - Jordie!

* E se tiver atentado contra si próprio? - perguntou Amanda.

* Nessa altura pensaremos nisso.

* Falei com ele. Graham apertou-lhe a mão.

* Também me pareceu. Quando foi a última vez?

* Fez ontem uma semana.

* Antes do Quinn.

* Sim.

Ele apertou-lhe a mão com mais força, animando-a em silêncio. Estavam na floresta havia cinco minutos e teriam de caminhar mais dez até à torre. Continuaram a avançar com a mesma sensação de urgência, atentos ao menor ruído.

Amanda correu para o lado de Graham quando a largura do carreiro o permitiu:

* Há tanto tempo que não passeamos a pé! Porquê, Gray?

* O trabalho, a preocupação... - Lançou-lhe um olhar. Aguentas-te?

* Agüento. - Eram as palavras que costumavam trocar quando andavam nas montanhas.

* Quer dizer, a nível físico - explicou com intimidade. Amanda percebeu logo no que ele estava a pensar. Já não tinha o período e, pela primeira vez em meses, não ia tomar nada para aumentar a produção de óvulos.

A sua preocupação agradou-lhe tanto como a suavidade da sua voz.

* Melhor - disse, embora estivesse a ficar ofegante. - É como se recuperasse o meu corpo. - Sentiu um pingo no braço e depois no nariz. -Ai, ai.

* Pois é. Está a começar a chover. Jordie! - chamou. Frustrado, murmurou: - Onde raio se meteu?

* Está ali a torre - exclamou Amanda, avistando a parede de pedra cinzenta que se alongava como um obelisco através dos ramos mais macios e flexíveis. Embora eterna e forte na lenda da região, notava-se nela o passar do tempo. Tinha pedras rachadas e caídas, em grande parte por causa do tremor de terra do ano anterior. A torre continuava de pé, mas as paredes inclinadas, estreitando-se para cima, mostravam protuberâncias e depressões.

Amanda tropeçou na raiz de uma árvore. Se não estivesse de mão dada com Graham, teria caído.

* Cuidado - disse ele, apertando-a mas sem abrandar.

* Estás a vê-lo?

A voz dele tremia por causa do movimento.

* Não é deste lado. Se estiver aqui, está do outro.

* E se atentou contra a vida? - repetiu Amanda. Tinha medo... muito medo... de dar a volta à torre e encontrar uma corda...

* Não penses nisso. - Graham puxou-a para trás dele quando o carreiro voltou a estreitar.

A chuva caía, pingando das árvores. Graham soltou-lhe a mão e desatou a correr. Ela imitou-o mas sem olhar em frente. Não tentou ver nada a não ser as costas de Graham. Era uma situação a que também estava habituada, e se alguma feminista da linha dura lhe pedisse satisfações por gostar de andar assim atrás do marido, responderia à dita feminista que ela não conhecia a alegria de seguir Graham. Era um homem coordenado, gracioso e ágil para uma pessoa com um metro e noventa e dois de altura e oitenta e seis quilos de peso. Movia-se com uma segurança que lhe dava confiança, quer corressem contra o tempo quer tentassem ultrapassar inquietantes imagens de Jordie do outro lado da torre.

O caminho inclinava para a direita e descrevia a curva. Amanda não precisava de espreitar para saber que o edifício se agigantava. Sentia o seu tamanho, ouvia a chuva caindo nas pedras do alto. Tinha a camisa molhada. Madeixas de cabelo escapavam-lhe do rabo-de-cavalo e encaracolavam, rebeldes, com a humidade.

Chegaram a uma clareira. A torre erguia-se a seis metros deles. com cerca de três metros e meio na base, estreitava até menos de metade no alto. Rodeava-a uma espécie de vedação de placas de contraplacado. O objectivo era impedir o acesso, mas não funcionava muito bem como barreira, pois estava dobrada nuns sítios e partida noutros. Se Jordie a galgara, não fora o primeiro.

* Jordie! - chamou Graham, avançando até ao fundo. Estacou olhou para cima e recomeçou a caminhar, desta vez mais devagar.

Amanda seguia ao seu lado com a cabeça inclinada para trás. Também o vira. O alívio que sentiu por ele estar vivo arrefeceu quando viu a sua situação precária. Estava sentado num declive no alto da torre, envergando uma T-shirt e umas calças de ganga todas sujas. Mal se via recortando-se contra o cinzento do crepúsculo. Tinha as pernas penduradas, dando uma ilusão de conforto que as mãos contradiziam, agarradas à pedra dos dois lados das ancas. Tanto podia cair para dentro da torre oca, tombando de uma altura de doze metros, como para a frente. com as pedras a ficarem molhadas, corria o perigo de escorregar por acidente.

* Meu Deus, Jordie! - exclamou Graham, com a respiração mais pesada agora que tinham parado. - Não sabes o susto que nos pregaste! Os teus pais andam à tua procura. Estão aflitos. - Falando entredentes, disse a Amanda: - Telefona-lhes.

Ela tirou o telemóvel do bolso e marcou o número com os dedos trêmulos. Como não aconteceu nada, observou-o mais de perto.

* Não tenho rede. Não acredito.

Graham soltou uma exclamação de frustração.

* A culpa é nossa - observou, sem tirar os olhos do rapaz. Votámos contra a instalação de uma antena aqui em cima. - Ergueu a voz: - O tempo não está a melhorar, Jordie. Achas que consegues descer?

Não ia ser fácil. Amanda sabia-o, mas primeiro queria que Graham tentasse uma abordagem de homem para homem. Se estivesse inclinado a descer, talvez o fizesse mais facilmente se fosse um homem a pedir-lho.

Claro que querer descer era uma coisa, ser capaz outra muito diferente. Rezava a lenda que ninguém descia da torre pelo seu pé. Era sempre preciso ajuda.

Jordie não se mexeu. Aos olhos de Amanda, começava a confundir-se com as pedras.

* Está vivo? - sussurrou, horrorizada.

* Oh, está! - retorquiu Graham. - Pestanejou. - Levantou a voz - Como subiste? Pela parte de trás? Podemos convencer-te a descer?

Amanda viu-o abanar a cabeça quase imperceptivelmente.

* Porquê? - gritou Graham. - Anda lá! Não ganhas nada em ficar aí.

Jordie fez que sim com a cabeça.

Amanda e Graham prenderam a respiração quando Jordie pôs a mão debaixo da perna e ficaram imóveis ao vê-la surgindo com uma pistola pequena.

* Onde arranjaste isso? - berrou Graham

Jordie não respondeu nem, de resto, apontou a arma em qualquer direcção. Limitou-se apenas a pousá-la no colo, indicando-lhes que, afinal, tinha poder sobre eles.

* É do Lee - murmurou Amanda. - A Karen falou nisso. Levantou a voz. - Não a uses, Jordie. Não é necessário. Não há nada assim tão mau.

Sem discutir, Jordie continuou a fitar a floresta.

Amanda aproximou-se de Graham. Apesar da camisa molhada, o seu corpo irradiava calor. Desta vez, no entanto, não perdeu tempo a recordar outras alturas em que procurara assim o seu calor. Engoliu em seco.

* Como o fazemos descer?

* Não fazemos. Não se vê nada e as pedras estão muito escorregadias. Terão de ser os bombeiros.

* vou a correr.

* Eu vou. Corro mais depressa. Fica aqui e tenta que ele fale. Sabes fazê-lo melhor do que eu. - Os seus olhos encontraram os dela. Levou-lhe os dedos aos lábios, seguiu-os com os olhos por um segundo e foi-se embora.

A sua ausência foi súbita e visceral. Amanda sentiu-a nas entra nhas. Erguendo o olhar para Jordie, teve de se esforçar para o distin guir das pedras. A chuva, típica da Primavera, caía sem cessar mas com leveza. Afastando do rosto as madeixas molhadas, aproximou-se

* Tentei falar contigo hoje - gritou. - Mandei-te vários e-mails

* Onde foi o Graham? - perguntou Jordie com voz desconfiada

* Dizer aos teus pais onde estás. Passaram o dia preocupadíssimos.

* Sim, está bem - murmurou ele.

Talvez não o tivesse ouvido se não estivesse à espera. Jordie tinha problemas com os pais... não era preciso uma psicóloga para o perceber. Amanda tinha a vantagem de conhecer Karen e Lee. E também sabia como era crescer no meio de discussões e sentir um frio no estômago de cada vez que entrava pela porta da casa que devia ser para ela um porto de abrigo.

* Eles amam-te. - A chuva caiu de repente mais forte e as suas palavras não chegaram tão longe. Pondo as mãos em pala por cima dos olhos, esforçou-se por elevar ainda mais a voz. - Porquê a torre, Jordie? Queres mesmo passar a noite aí em cima?

Ele não respondeu.

* Fala comigo. - Era crucial. Ele precisava de desabafar, praguejar e dar livre curso aos seus medos. Amanda conhecia as suas origens familiares e o problema com Quinn, mas tinha de estar mais perto dele. Queria sentar-se ao seu lado.

Avançando, trepou por um buraco da vedação e encaminhou-se para o lado da torre onde as pedras formavam degraus.

* Não suba - avisou Jordie.

* Não posso falar contigo daqui de baixo - replicou ela, verificando a firmeza da pedra com a mão e o pé. O granito estava escorregadio, mas os seus sapatos tinham uma boa aderência. Limpou as folhas molhadas das solas e subiu para o primeiro degrau. Agarrou-se à pedra de cima com as duas mãos, equilibrou-se e trepou mais dois degraus. Um pé escorregou. Parou por um minuto, esperando que o coração acalmasse, e avançou.

Se subir, salto - ameaçou Jordie.

Não falou na arma, o que era bomn.

De momento, não o via, pois o rapaz encontrava-se do outro lado da torre. De resto, entre a chuva e a escuridão, tinha dificuldade em ver até as pedras. Mas podia tacteá-las. Eram as mãos que a conduziam.

Levantou o pé esquerdo para o degrau seguinte, encontrou rochas às quais agarrar os dedos e içou-se. A inclinação da torre dava uma ajuda no que dizia respeito à gravidade. O pé direito deu com a saliência seguinte. As mãos fecharam-se-lhe sobre apoios de pedra à direita e à esquerda. Foi subindo, com o coração batendo mais veloz a cada degrau que deixava para trás.

* Amanda? - chamou Jordie, parecendo querer saber onde ela estava e não conseguir decidir se o que sentia era medo ou cólera.

* Se saltares, posso cair e ficarás com a minha morte na consciência. - Na verdade, podia cair de qualquer maneira. O solo afastava-se cada vez mais. Era um pensamento arrepiante.

* Se estiver morto, tanto faz - retorquiu ele.

* Tu não queres morrer. - Tinha de acreditar nisso. - A vida tem muitas coisas boas.

Ele não respondeu.

Amanda continuou a subir, respirando mais depressa e ignorando o medo que sentia. Estranho, quanto mais alto chegava, mais fácil era encontrar pedras para se agarrar. Bem rezava a lenda que os deuses da torre prendiam e puxavam as pessoas para cima. Estava mais do que disposta a acreditar nela. O pé escorregou-lhe outra vez, mas como agora estava mais alto, era mais perigoso. Gritou, preparou-se para a queda e, por milagre, recuperou o equilíbrio. Um pouco mais acima, quase escorregou de novo quando tacteava em busca de um apoio e o seu sapato soltou uma pedra. Mais uma vez não caiu, mas

ouviu a pedra batendo na rocha durante a queda e o som não a tranquilizou nem um bocadinho.

Mais ou menos a meio do caminho, chegou ao ponto a partir do qual não havia regresso possível, a partir do qual, segundo a lenda, não poderia voltar para trás mesmo que quisesse. Ao atingi-lo, pensou que talvez houvesse duas razões para isso: ou a atracção irresistível pela aventura ou o mais puro terror. Por ela, sentia sem dúvida este último Não olhava para baixo e só levantava a cabeça para procurar apoios Assaltada pelo pavor, pensou que era uma imbecil, que devia ter esperado pelos bombeiros e que ia morrer com toda a certeza. Mas Quinn morrera e Jordie tinha uma arma. De resto, já era tarde para voltar atrás. Impossível para ela a nível físico. Não tinha outro remédio senão continuar a avançar, procurando apoio atrás de apoio, subindo cada vez mais alto.

* Jordie? - chamou em voz trêmula quando percebeu que estava a aproximar-se do fim da subida. Recusava-se a pensar na altura a que estava e na queda que daria. - Estás aí, Jordie?

O som de desdém que ouviu vinha de um local que não ficava muito mais alto:

* Para onde quer que vá?

Aquele desdém era tão revelador como a ameaça de saltar em lugar de disparar. Amanda queria acreditar que ele percebera que cometera um erro e que não sabia como havia de corrigi-lo.

Continuou a fincar um pé depois do outro até tocar com as mãos no vazio. Sentiu um nó no estômago e ficou atordoada por uma fracção de segundo. Talvez até tivesse soltado um gemido, mas o som da chuva abafou-o.

* É doida - comentou Jordie.

Amanda trepou mais e disse com voz aguda:

* Sou eu e tu. - Agarrando-se ao círculo de pedras da última fila, levantou os pés de modo a conseguir passar-lhe por cima e descansar as pernas. A seguir, ficou sem saber o que fazer. Tinha os joelhos a tremer e o estômago às voltas. Era uma idiota por ter feito aquilo!

Jordie devia ter notado o pânico na sua voz, porque disse:

* Há uma plataforma no interior, a cerca de meio metro. Amanda passou uma perna para dentro e procurou às cegas, cada

vez mais baixo, até tocar com o sapato na plataforma. Não era muito larga' mas Parecia sólida. Passou a outra perna com cuidado e imobilizou-se. Depois, debruçou-se e foi-se aproximando de lado com cuidado, até chegar a Jordie.

Apesar da luz fraca, viu que estava molhado até aos ossos... e que já não empunhava a arma. Era um alívio. Para mais, como a visibilidade era mínima, não conseguia ver o solo, o que lhe permitiu fingir que se encontravam apenas a um metro do chão. Passou uma perna com cuidado e escarranchou-se na rocha.

* O Graham vai-me matar - observou, porque foi o primeiro pensamento que lhe veio à cabeça. - Estas pedras são traiçoeiras, e eu não gosto de coisas traiçoeiras. - com o fôlego que lhe restava, perguntou: - Onde tens a arma?

Jordie não respondeu.

* Ainda dispara por acaso.

* Sei manejá-la.

* Não tenho dúvidas. - O que não disse foi que qualquer atrasado mental podia apontar uma arma ao coração, disparar e revelar ao mundo o que sentia. Não, não ia dar-lhe idéias.

* Não devia ter vindo aqui.

Ouviu-se uma rocha a rachar e as pancadas de outra pedra caindo. Imaginando que, se caíssem pedras suficientes devido ao seu peso, a torre podia desmoronar-se e enterrá-los vivos, Amanda comentou num tomn de voz ligeiramente histérico:

* Não queria que te sentisses sozinho. - Reposicionou as mãos, i pousando uma à frente e outra atrás de si. Não aumentou muito a adefrência ao granito molhado, mas sentiu-se um tanto mais segura.

* Como sabe o que sinto? - perguntou Jordie. - Eu sou eu e a Amanda é a Amanda.

* Pois, mas é o meu trabalho.

* Lê os pensamentos?

* Sinto-os. - Passou um minuto em que deixou assentar a sua resposta. - É por causa do Quinn?

Calado, Jordie olhou a chuva e a escuridão que se adensava.

* O Quinn precisava de ajuda - continuou ela.

* E eu ajudei-o - retorquiu Jordie com azedume. - Dei-lhe a vodca. Ele disse que a queria para uma festa e eu pensei que se referia ao fim-de-semana. Achei uma óptima idéia. Por isso, disse-lhe que o meu pai tem uma garrafeira na cave e que não ia dar pela falta de uma garrafa. Levei uma para a escola.

* E sentes-te culpado por isso.

Jordie replicou, numa torrente de palavras zangadas.

* Se não lha tivesse dado, ele não se teria embriagado, e se não se tivesse embriagado não teria sido castigado, não teria vindo nada no jornal e ele não se teria matado.

* Oh, Jordie, não foi só o artigo do jornal. Foram outras coisas.

* Pois, os pais, por exemplo. Pelo menos estavam juntos. Era impossível não perceber a sua alusão.

* Os teus pais estão juntos.

* Mas passam a vida a discutir. Se isso é estar junto, não quero.

* Todos os casamentos têm os seus espinhos.

Ele fitou-a. Apesar da luz fraca, distinguiu a sua incredulidade.

* Eles odeiam-se.

Amanda sentiu-se recuar no tempo. Os anos que passara afligindo-se com a relação dos pais não lhe tinham dado respostas. Por fim, aprendera a distanciar-se, embora fosse mais fácil fazê-lo a nível intelectual do que emocional.

* Quer se odeiem quer não, amam os filhos. Duvidas? Em lugar de responder, Jordie virou-se, encolerizado.

* Porque esteve ele com a Gretchen?

Ouviu-se um arranhar vindo de baixo, um estremecimento minúsculo e o que parecia o som de um monte de pedras pequenas rolando pela torre.

Amanda suspendeu a respiração e não se mexeu nem disse nada até voltar a ficar tudo em silêncio. Mais uma vez, imaginou-se a si e a Jordie caindo aos trambolhões como as pedras.

"Onde está o Graham? ", gritou em silêncio. Sentia-se cobarde, mas não lhe interessava. "Porque demora tanto? "

* Não respondeu à minha pergunta - insistiu Jordie.

* Não sabia que tinha estado com a Gretchen - conseguiu ela dizer. - Tens a certeza?

* Não seria a primeira vez que engana a minha mãe. E não me diga que não é verdade. Ouço-os discutir. Até lhe digo nomes, se quiser.

* Ele disse que esteve com a Gretchen?

* Não, mas a minha mãe acha que sim. Fica tão zangada que até me assusta.

Pareceu-lhe sentir qualquer coisa a tremer, as pedras a assentar. O estômago deu-lhe uma volta.

* Estou preocupada com essa arma, Jordie. Se a enfiaste no cinto e ela dispara por acidente quando estas pedras se mexerem outra vez...

* Não interessa.

* Isso é que interessa - insistiu. Fitando Jordie, que era um ponto de referência mais estável do que a escuridão que a assaltava quando fechava os olhos, inspirou fundo e devagar. Era preciso que o rapaz continuasse a falar até chegar ajuda. - A tua mãe assusta-te como?

* Parece outra quando fala com ele. Não me interessa o que a Amanda diz. Ela odeia-o e a culpa é da Gretchen. Devia ter-se mudado quando o Ben morreu. Não tinha razão nenhuma para ficar e, se tinha, que se metesse na sua vida em vez de deixar o meu pai, o Graham e o Russ andarem atrás dela. Se não andasse a seduzi-los, nada disto teria acontecido.

* Nada disto o quê?

* As discussões dos meus pais. Havia discussões antes, mas nada assim.

* Isso é como dizer que o Quinn se matou por causa do artigo do jornal. As coisas não são assim tão simples.

Jordie ficou sentado com o queixo firme, parecendo resistir até as palavras lhe saírem pela boca fora.

* Então porque se matou?

* Estava muito perturbado. Não tinha ninguém com quem falar Sentia-se pressionado para ser bem sucedido. Foi de mais.

* Toda a gente é pressionada para ser bem sucedida. Por isso é que temos notas na escola.

* Ele sentia-se pressionado para ser o melhor.

* Por causa dos irmãos?

* Talvez.

* Mas ele era o melhor.

* Sentia-se pressionado para continuar a ser. A pressão aumentava e ele queria ser o melhor. Fingia ser confiante e seguro, quando não se sentia nada assim por dentro.

Jordie ficou pensativo.

* Então matou-se por não ser perfeito? E nós todos, que estamos longe de ser perfeitos?

* O Quinn também estava longe de ser perfeito, mas sentia-se tão pressionado para atingir a perfeição que desesperou e desistiu. O seu maior problema foi que o desespero roubou-lhe toda a força. Mas tu ainda és forte, Jordie... ainda lutas. O Quinn desistiu. Não era forte.

* Claro que era. Nunca poderia ter sido todas as coisas que foi se não fosse forte.

* Delegado de turma? Jogador de basebol? A vida é cheia de opções, Jordie. Nada disto implicava opções difíceis. Quando teve de enfrentar uma a sério, tomou o caminho errado. A morte nunca é opção quando se é jovem e com saúde. Não, quando se tem a vida à frente. Não, quando as pessoas nos amam.

* Não é assim tão simples - murmurou Jordie, olhando de repente para o carreiro.

Amanda ouviu o mesmo som que ele, passos abafados que se aproximavam. Segundos mais tarde, os raios de luz de grandes lanternas convergiram lá em baixo.

* Merda! - murmurou Jordie.

* Amanda? - chamou Granam, dando a volta à torre. - Amanda?

* Estou aqui - berrou para baixo. A única coisa que via dele ra o impermeável amarelo, e mesmo assim só quando os raios das

outras lanternas lhe atravessavam o corpo. De repente, os raios virararn-se para cima, atingindo-os em cheio nos olhos. Levantou a mão instintivamente para se proteger dos clarões e o movimento fez as pedras mexerem-se. Agarrando-as, gritou:

* Baixem as lanternas!

As luzes formaram um jogo de luz e sombra no chão.

* Jordie? - chamou Karen, muito aflita. Lee falou logo a seguir.

* Que fazes aí em cima, Jordie?

* Desce - pediu Karen. - Vamos falar. Vamos resolver tudo. Ouviram-se mais passos no bosque e outra voz.

* Os bombeiros estão a caminho. - Era Russ. - Aguenta-te, Jordie. Já vêm aí.

* A Amanda está com ele - disse Graam. - vou subir.

* Não - gritou Amanda. - Não, Gray. Não é seguro. Caíram pedras quando subi. Se caírem muitas mais, temos um problema grave.

* De qualquer forma, já tenho um problema grave - murmurou Jordie.

Amanda agarrou-lhe o pulso.

* Se fores, também you. - Queria lá saber que ele estivesse embaraçado por ter lá em baixo toda a gente de quem gostava! Não ia

deixá-lo morrer por uma questão de vergonha. Não, com ela a ver.

* Não está a perceber - sussurrou Jordie em voz rouca. - Não posso descer. Matam-me quando descobrirem o que fiz.

* O vodca? Ninguém vai culpar-te por causa disso. Não obrigaste o Quinn a beber.

* Não é o vodca - retorquiu, quase em pânico. - A Gretchen. Fez-se luz no espírito de Amanda. Viu as marcas de uma faca formando as palavras preferidas do seu papagaio: "Foda-se".

* O quadro!

* Sim, o quadro - confirmou Jordie. - Não suportava aquele quadro. Não a suporto a ela. Quero que se vá embora. Os meus pais ficariam bem se ela desaparecesse.

Não era tão simples como isso. Amanda sabia o caos que a desconfiança gerara entre ela e Graham, ainda por cima sem razão nenhuma, o que não era o caso dos Cotter. Lee andava com alguém; se não era com Gretchen, era com outra pessoa qualquer. O seu casamento já era conflituoso antes da chegada de Gretchen. O mais certo era não se endireitar se ela se fosse embora.

Caíram mais pedras e Amanda sentiu as outras a abanarem. O coração bateu-lhe com mais força. Ficou à espera de sentir mais algum movimento, mas não.

Lá em baixo, Graham praguejou.

* Ela tem razão - disse-lhe Russ. A sua voz mal chegava lá acima. - Não subas. Não é seguro.

* Gray? - chamou Amanda.

* Estou bem - resmungou ele. A atenção de Amanda voltou-se de novo para Jordie.

* Não devia ter feito nada, mas estava furioso e os telefonemas não a assustaram - continuou, com o mesmo desespero.

* Telefonemas?

* Era só para a assustar, mas não resultou. Que estúpido fui! Estúpido! Estúpido!

Amanda sentiu-lhe a tensão do corpo através do pulso que segurava. Deu-lhe um abanão.

* Estúpido não. Revoltado. Mas não faz mal. Tens direito a revoltar-te, se bem que não contra a Gretchen. Podes revoltar-te contra os teus pais, que discutem para resolver algumas coisas e que te perturbam. Sei como é. Vivi o mesmo com os meus pais. Repetia para mim própria que não podia dizer nada porque só ia piorar a situação. Por isso, meti-me na minha concha e andava calada e mal-disposta, o que os tornava a eles mais infelizes e aumentava a minha revolta. Levei anos a perceber que tinha o direito de me sentir revoltada. Só passado muito tempo dei autorização a mim própria para me sentir revoltada.

Jordie ouvia enquanto a chuva continuava a cair.

* E depois?

Dei largas à minha revolta e disse o que pensava.

* As coisas entre eles melhoraram? Não, mas eu senti-me melhor.

Havia mais movimentações lá em baixo, mais raios de luz, mais gente chegando.

Está cá metade da cidade - observou Jordie, consternado.

Não. Devem ser só quatro homens, que são os necessários para transportar uma escada de comprimento suficiente para chegar até nós.

Vai aparecer no jornal, como no caso do Quinn.

Só vão saber que subimos para aqui e ficámos presos.

* Não quero descer. Não posso. Sei que esteve gente da companhia de seguros em casa da Gretchen. Se não forem eles a apanhar-me, será a polícia.

Aliviada por ter ajuda à mão, Amanda falou com calma.

Descansa. Havemos de pensar em alguma coisa.

Como por exemplo pedir à Gretchen para esquecer que ficou com o quadro estragado? - fungou Jordie.

Não, mas pode ser que ela compreenda porque o fizeste.

A polícia já está metida no assunto.

Não estará se ela se recusar a levar a acusação por diante.

Então só tenho de responder perante os meus pais - fungou

ele.

E achas que não se sentirão um bocadinho culpados? Pensa nisso, Jordie. Pensa no que sentiste com o vodca e o Quinn. Uma vez passada a cólera inicial, os teus pais vão pensar como tu. Tens de falar com eles. Tens de lhes dizer o que sentes. Talvez os ajudes, Jordie.

Pensa nisso.

Ouviram-se vozes. O alumínio arranhou a pedra quando a escada foi lançada. Houve um movimento, mais arranhões e ajustes e o cimo da escada assentou na pedra, do outro lado de Jordie. Amanda prendeu a respiração, com medo de que o seu peso fizesse a parte de cirna da torre cair para dentro. Mas aguentou-se.

* Não tens nada de que te envergonhar, Jordie - gritou Karen.

* Nada de nada. Às vezes acontecem coisas de que não temos culpa.

* Todos cometemos erros - acrescentou Lee.

Mas foi a voz calma e muito concentrada de Graham que tocou Amanda.

* Aguenta-te, querida. Aguenta-te por mim.

O seu coração inchou e apertou-se. Sentiu lágrimas quentes através da chuva, mas não havia tempo para se deixar embalar pela emoção. A escada rangeu com o peso do primeiro bombeiro.

* Que faço? - perguntou Jordie a Amanda.

* Eles amam-te - replicou ela, apertando-lhe o pulso. A escada rangeu e as extensões dançaram.

* Vai dizer-lhes que falámos na escola? - perguntou Jordie, apressado.

* Não - volveu-lhe Amanda, sentindo que devia selar o pacto entre os dois enquanto ainda estavam sozinhos. - Disse-te que era confidencial. De resto, falaste muito mais aqui do que na escola. É isso que deves contar aos teus pais.

* Sobre a Gretchen? Vão dar urros!

* Não, se lhes disseres porquê. Não, se explicares.

* É muito fácil para si.

Pois, tinha razão. Na verdade, havia algum tempo que expressava pouco os seus pensamentos e sentimentos. Pregar aos outros não custava nada.

* É uma prova de força, Jordie - retorquiu, pensando que poderia substituir o nome dele pelo seu. - Uma atitude de adulto. Soltando-lhe o pulso, pegou-lhe no queixo e obrigou-o a olhar para ela.

* Tu és forte, um lutador, um sobrevivente. Sei que consegues ultrapassar isto, Jordie. - Sustentou-lhe o olhar até uma voz de homem falar a um escasso metro deles.

* Olha, Jordie, vou agarrar-te a perna e guiar-te o pé até à escada.

Ele começou a abanar a cabeça, mas Amanda apertou-lhe mais o queixo.

* Sim - sussurrou com firmeza. - O Quinn era um cobarde. Tu não. Mostra-lhes que não és, Jordie. Suplico-te que lhes mostres.

Por um momento, pareceu que queria discutir. No instante seguinte, no entanto, descomprimiu. Não fez exactamente que sim com a cabeça, mas ela notou a sua concordância. Largando-lhe o queixo, segurou-lhe o braço até ele ter os dois pés na escada. Jordie fitou-a uma última vez.

* Vai - disse ela. - Eu desço a seguir.

Viu o bombeiro atrás de Jordie, muito perto para que ele não caísse ou saltasse. Desceram juntos um degrau e depois outro e outro. Afastaram-se um metro e a seguir dois. Já começava a imaginar-se fora da mata quando ouviu o barulho de pedras caindo e sentiu um movimento... que não parou tão depressa como os outros.

 

Por um segundo, oscilando para trás e para diante no granito escorregadio, Amanda imaginou Graham sentindo uma dor indescritível ao vê-la morrer.

Mas não morreu. com o coração galopando-lhe dentro do peito, aguentou-se até a pedra se imobilizar. Em baixo, houve uma algazarra de vozes. Passou um minuto até conseguir coordenar as idéias o suficiente para baixar o olhar na direcção do jogo de luzes e pensar como estaria Jordie. Não via a escada.

* Como está ele? - berrou.

* Bem - respondeu Graham, parecendo mais perto do que era possível estar.

* Gray? - gritou.

* Na escada, atrás de ti, querida. Estás ferida?

* Não, só apavorada.

* Vais ter de voltar ao sítio onde estavas.

* Não é seguro. As pedras estão soltas.

A voz dele chegou-lhe de um ponto mais próximo.

* Não há outra hipótese. - Gritou para baixo. - Apontem a luz para eu poder vê-la. - Depois, outra vez com suavidade. - Anda devagar. Isso, querida. Isso.

Desesperada por chegar onde ele estava, que era sem dúvida um local mais seguro, começou a recuar. Tinha os olhos postos nas mãos, encharcadas e frias de medo.

* Continua - encorajou-a Graham de tão perto atrás de si que ela começou a chorar. - Continua.

Sentiu-lhe a mão na perna, guiando-a com cuidado.

* Devagar. isso... mais um bocadinho... vou pousar o teu pé na travessa de cima. Inclina-te para a frente e passa a outra perna, querida. Calma... isso mesmo.

Amanda obedecia, grata por ter alguém a dar-lhe instruções. Chorava baixinho, tremia, sentia-se cansada, fraca e dorida... e continuava com medo, agora também por Graham. Quando pousou os dois pés na escada, ele guiou-a degrau após degrau até poder rodear-lhe o corpo. Foi só então que se atreveu a largar o granito e a agarrar-se à escada com as duas mãos.

Graham apertou-se contra ela e pousou-lhe o queixo na curva do ombro, abraçando-a longamente. A sua respiração aqueceu-lhe o ouvido.

* Sossega. Não chores, Mandy. Vamos descer.

com medo de que o menor movimento deslocasse mais pedras, recuaram devagar, descendo um degrau de cada vez. A escada alargou quando chegaram à extensão seguinte, e voltou a alargar um pouco mais abaixo, mas Amanda só muito vagamente tinha consciência de alguma coisa que não fosse a voz de Graham no seu ouvido. De resto, nem ouvia as palavras, escutava apenas o tom, que lhe deu força para continuar a mexer as pernas e a aguentar-se até ele tocar no chão e a erguer nos seus braços. Graham levou-a para a orla da clareira, para longe da torre, e os outros reuniram-se à sua volta. Pousou-a na terra molhada, aconchegou-a no impermeável e apertou-a contra si, embalando-a com mãos trêmulas.

Amanda não se mexeu. Estava muito cansada e satisfeita. A chuva não era problema, uma vez que já estavam encharcados. Não era preciso dizer nada.

Russ apareceu a dizer que Jordie partira uma perna no final da descida, mas que felizmente não tinha mais nada. Dali a pouco, voltou para lhes contar que o rapaz estava numa maca e que iam levá-lo. Passado algum tempo, foi perguntar-lhes se não precisavam de nada.

Nessa altura, Graham ajudou Amanda a levantar-se. Não, não precisavam de nada. Sim, estavam bem.

Na opinião de Amanda, a palavra "bem" era talvez muito moderada para definir como se sentiam. Jordie estava são e salvo e evitara-se uma tragédia. Sabia quem danificara o quadro de Gretchen e, embora não fizesse idéia de quem era o pai do bebê, sabia com toda a certeza quem não era: Graham. Cingida ao seu coração sob a protecção do seu braço, não tinha quaisquer dúvidas.

Atravessando a floresta de regresso a casa, Amanda sentiu a ligação mental que a atraíra tanto para Graham desde o início. E também sentiu a química, que voltara do laboratório, onde estivera enredada entre culturas de tecidos, análises ao sangue, testes e medicamentos, para lhe fazer o coração galopar dentro do peito e sentir aquele arrepio até aos ossos que nunca abandonara a sua relação até todos estes elementos se intrometerem. Sabia-lhe bem concentrar-se no que a atraía enquanto regressava à chuva... era bom apertar-se contra Graham e deixar que o seu calor voltasse a fazer parte dela.

Quando surgiram da mata, os bombeiros iam com Jordie a caminho do hospital. Uma vozinha dizia a Amanda que fosse ver quem fora com ele, quem ficara com as outras crianças e como estavam todos.

Ignorou a vozinha. Graham preenchia-lhe o coração e os sentidos. De uma forma egoísta, não pensou em mais nada.

Ainda mal tinham fechado a porta da cozinha atrás de si quando ele a içou para o balcão e lhe agarrou o rosto. O seu beijo foi sôfrego e disse-lhe que o marido sentia o mesmo que ela... mas já o sabia muito antes de os seus lábios se tocarem. Amanda saboreou-o e retribuiu-Ihe, agarrando-se-lhe primeiro ao cabelo e depois aos ombros.

* Amo-te - sussurrou ele, baixando os lábios para o pescoço dela. Ao mesmo tempo, puxou-lhe asjeans e tentou abrir o fecho. Estava molhado e resistiu, mas isso não o deteve, pois conseguiu enfiar a mão dentro das calças.

Amanda ficou de cabeça perdida ainda antes de ele chegar aonde queria. Quando lhe tocou, não resistiu. Teve um orgasmo que parecia não acabar. Ainda estava a senti-lo quando ele começou a afastar-lhe as cuecas. Lançou mãos à obra, despindo-o a ele. Amanda teria explorado melhor o seu sexo se não sentisse tanta necessidade de o ter dentro de si. A penetração foi mágica. Suave e rápida, criou réplicas do orgasmo que tivera, provocou-lhe num segundo. O dele foi quase tão potente como o seu. Uma, duas, três penetrações profundas e apertou-a com mais força, gritando de prazer.

Mas a erecção permaneceu. Passando-lhe os dedos pelo cabelo, Graham beijou-lhe outra vez os lábios. Para Amanda, foi uma união. Tinha saudades dos seus lábios inclinados sobre os dela, da sua língua sondando e do mordiscar dos seus dentes. Tinha saudades de lhe sentir a língua no pescoço e nos seios. Graham afastou-lhe o impermeável dos ombros, tirou-lhe a camisola por cima da cabeça e desembaraçou-a do sutiã. Amanda gemeu quando Graham meteu um mamilo na boca e, sentindo-se em fogo, apertou-se contra ele ao senti-lo chupar com mais força.

Graham começou então outra vez, acariciando-a por dentro enquanto usava as mãos por fora. Voltaram a ter prazer ao mesmo tempo, um incendiando o outro de uma maneira que nenhum dos dois conhecia.

O despertar foi mais lento, houve um regresso mais vagaroso à realidade, um abraço mais longo.

* Tens frio? - perguntou ele, num sussurro rouco. Ela abanou a cabeça.

* Mas estás molhada.

Não o podia negar, embora as palavras fossem uma provocação. Quando ele se inclinou para trás com a barba perpassada por um sorriso de malícia, ela apertou-lhe mais os braços em volta do pescoço.

* Seca-me - murmurou.

Aproveitando um intervalo, foi até à janela e telefonou-lhe. Ela atendeu logo. Estava à espera.

* Hoje à noite não posso.

Ela fez uma pausa e respondeu, desiludida:

* Não podes mesmo?

* Não. Sou preciso aqui. Não posso sair.

* Disseste que isso não ia acontecer.

* E também disse que era uma situação delicada. Agora é mais.

* Porquê?

* Complicações. Aconteceram coisas...

* Que coisas?

Ele passou a mão pelo cabelo. Estava muito cansado para entrar em pormenores.

* Tivemos um problema sério hoje à noite. Estou a apanhar os cacos. É importante.

* Pensei que eu é que era importante.

* E és. - Depois, sentindo-se culpado por não sentir nenhuma reacção no corpo ao pensar nela, continuou em voz mais suave: - Já falámos disso, querida. Tu és importante, mas há prioridades.

* O tempo está a esgotar-se. Se as coisas continuam assim, o bebê vai nascer.

* Não insistas. Hoje não. Estou exausto.

* Mas sinto-me pressionada. E tu?

Apeteceu-lhe dizer que não. Apeteceu-lhe ameaçá-la de que negaria a paternidade caso não o deixasse em paz. Raios, nem tinha a certeza absoluta de que o bebê fosse dele. Ela era fresca e apreciava muito rapidinhas.

Depois dos acontecimentos, no entanto, não estava com disposição para ameaças. O medo amolecia.

* Telefono-te amanhã - disse ele.

* Como sei? - perguntou ela, num tom que o faria pensar duas vezes mesmo que estivesse interessado nela naquela altura, coisa que não estava. Não ia mergulhar de cabeça numa relação que não queria. Se o filho não fosse dele, não lhe devia nada.

* Olha, nem respondo. Agora não posso falar. Adeus. - Desligando, afastou-se da janela e voltou a concentrar-se nos problemas domésticos.

Geórgia planeara chegar a casa a tempo do jantar, mas acabar sair do avião e de ligar o telemóvel quando Kuss telefonou. Estacou ainda dentro do terminal, escutando o que acon ecera. Passado o choque inicial, recomeçou a andar cada vez mais epressa. Se tinha alguma dúvida quanto ao que queria quando o avião aterrara, já não existia.

Queria estar em casa.

Karen teria permanecido no hospital se não estivesse preocupada com os outros filhos. Allison ficara com eles e já se encontravam na cama quando chegou a casa, mas estavam acordados e a precisar e colo. Karen tranquilizou-os, aconchegou-lhes os cobertores e deuum beijo de boas-noites. Depois, desceu à cozinha e lig°u P3 °te e fone pousado ao lado da cama de Jordie. Lee atendeu:

* Está?

Sou eu. Como está ele?

* Muito bem. vou passar.

Houve um momento de silêncio e depois ouviu-se uma voz abatida.

* Olá.

* Então a perna? - perguntou com a maior descontracçao que conseguiu arranjar. - Está bem. - Dói?

* Dói.

Deram-te alguma coisa para as dores?

* Deram.

* Ainda bem. Deves estar cansado.

* Um bocadinho.

* Jordie? - Não sabia por onde começar. Havia tanto a dizer!

* Amanhã de manhã vou para casa - replicou ele, pondo ponto final na discussão antes que esta começasse. Karen não sabia se ele não queria falar porque estava cansado, com dores ou perturbado, porque Jordie era Jordie ou porque Lee se encontrava presente.

* Eu sei, querido - respondeu ela.   vou aí buscar-te. Só quero que saibas que te amo.

Ele ficou calado.

* Jordie... - Os olhos marejaram-se-Ihe de lágrimas. Era o seu filho, que se portara mal, mas ocorreu-lhe de repente que ela e Lee não andavam a fazer muito melhor figura. Querer a família intacta era uma coisa, e outra completamente diferente fazê-lo à custa da paz de espírito dos filhos.

* Eu sei, mãe - sussurrou, com a voz embargada.

* Temos de falar - murmurou Amanda um pouco depois. Fizera amor com Graham no duche e outra vez na cama. Agora estava deitada com o rosto no seu ombro, a mão pousando-lhe no peito, a barriga encostada à sua cintura e a perna enrascada na dele.

* Depois - murmurou Graham quase sem mexer os lábios. Tinha os olhos fechados. As pestanas escuras repousavam-lhe na pele bronzeada.

* É importante falar e deixámos de o fazer.

* Mas não por esta razão - sussurrou com um ligeiro sorriso de esguelha.

Ela tocou-lhe na boca. Os seus lábios firmes juntaram-se para lhe beijar as pontas dos dedos, mas foi tudo. Estava exausto. O peito subia-lhe e descia-lhe a um ritmo regular, mas não mexia as pernas nem os braços.

* Porquê? - indagou ela.

Ficou calado e imóvel durante tanto tempo que Amanda pensou que adormecera. Costumava cair no sono depois de fazerem amor. Ela não. Fazer amor estimulava-a. Numa altura em que devia estar esgotada por causa da sua aventura com Jordie, sentia-se, pelo contrário, fresca que nem uma alface.

* A vida - murmurou ele.

* A vida o quê?

* Intrometeu-se e fomos apanhados. Houve outras coisas... Respirou fundo, virou a cabeça na almofada e abriu os olhos. - Queres saber a resposta à tua pergunta? Amo-te. Se não tivermos filhos biológicos, será de outra maneira.

Ela estudou-lhe a expressão. O seu olhar era directo. Viu nele uma honestidade inconfundível.

Pressionada pelo seu braço, pousou a cabeça, encostando-lhe um ouvido ao coração e tentando acertar a respiração pelo seu ritmo.

* E se as coisas se intrometerem outra vez?

* Não deixamos.

* Se não percebemos o que estava a acontecer, como saberemos se voltarem a surgir?

* Agora já temos experiência. Este foi o nosso primeiro grande teste a sério.

* Desculpa ter-te acusado de andares com a Gretchen. É que de repente apareceu grávida... e eu sem conseguir ter filhos. Depois, projectaste-lhe um jardim tão bonito mais ou menos na altura em que deve ter ficado grávida... - Ele não respondeu e ela levantou a cabeça. Graham tinha os olhos outra vez fechados. - Quem achas que é o pai?

* Não sei - murmurou ele.

* Pensas que pode ser o Lee?

* Hmm.

Amanda sabia que "hmm" significava "talvez" e pensou em todas as conseqüências, à luz da conversa que tivera com Jordie no alto da torre.

* Bem, se è o Lee, pelo menos pode evitar que ela processe o Jordie por lhe ter destruído os quadros, não te parece?

Gretchen esperou até quinta-feira de manhã para fazer o telefonema. Sabia o número de cor. Apesar de só ter ligado mas   uma dezena de vezes, estudara o número muitas mais, durante os meses horríveis que se haviam seguido à morte de Ben. Nessa ocasião, fora um apoio para ela. Tinha o seu número ao lado do da polícia. Recorrera a ele quando não sabia como resolver alguma situação. Oliver Deeds fora uma fonte de estabilidade, tal como Ben desejara. Claro que o marido não podia adivinhar a reacção dos filhos ao testamento, nem que Oliver ia andar a dançar de um lado para o outro.

* Fillham e Marcus - atendeu a recepcionista em voz cantante.

* Queria falar com o doutor Oliver Deeds.

* Quem fala, por favor?

* Gretchen Tannenwald. - Respirou fundo, afastou o olhar e ficou à espera.

Ele atendeu prontamente, como de costume. A sua especialidade eram imóveis. Vivia e respirava contratos e formulários.

* Gretchen?

* Sim - confirmou, apressando-se a debitar o discurso que ensaiara e tentando parecer convincente e forte. - Não vou roubar-lhe muito tempo. Só queria dizer-lhe que descobri quem estragou os meus quadros. Como é uma pessoa que conheço, nãovou levar a acusação por diante. Agradeço-lhe que o comunique à companhia de seguros e que diga ao David e ao Alan.

Houve um silêncio.

* Está a dizer-me que vai retirar o pedido de indemnização?

* Não apresentei nenhum pedido, nem telefonei. Foi o Oliver que o fez.

* Mas tem direito ao dinheiro.

* Para que me serve o dinheiro se não posso substituir o quadro?

* Dinheiro é dinheiro e vai ter um bebê. Precisa de algum?

* Não.

* Pode contar comigo.

* Não.

Ele ficou calado. Gretchen queria acreditar que o surpreendera, mas era patético. Oliver conhecia-a melhor do que os filhos de Ben e devia saber que o dinheiro não lhe importava.

* Então quem deu cabo dos quadros? - perguntou ele.

* Não interessa.

* Foi alguém com quem anda?

* Olhe, estou grávida. Não ando com ninguém.

* Oh, estava só a pensar... Gretchen...

* É tudo. Só queria que soubesse. Adeus, Oliver.

Granam continuava deitado e era quase meio-dia. Já nem se lembrava da última vez que ficara até tão tarde na cama. Claro, também já não se lembrava muito bem da última vez que tinham feito amor. De resto, ainda não acabara. Virando a cabeça na almofada, deu com as madeixas louras de Amanda, que tinha as costas nuas aninhadas no seu corpo também nu. Sentia o braço dormente devido ao peso da sua cabeça, mas não tinha mais nada dormente. Vendo-a assim tão perto, sentiu uma onda de desejo.

Tinham dado parte de doentes. Os dois. Não era a primeira vez, mas havia anos que não o faziam.

Virando-se de lado, puxou-a para si com um suspiro de satisfação. A paixão acalmara-lhe a necessidade. O que sentia agora era o prazer mais vagaroso do calor que se acumulava à medida que o sangue percorria o seu caminho.

Ela respirou fundo, olhou por cima do ombro e virou-se.

* Olá - saudou com um suspiro sonolento que acabou num sorriso.

* Olá - respondeu ele, beijando-lhe o nariz.

* Mmm. Há meses que não me beijas o nariz.

* Há meses que não estás tão bonita. - Parecia ter cerca de vinte anos. Não que tivesse alguma pancada por mulheres mais novas... Bem, se calhar tinha. Sem dúvida que adorava a frescura de Amanda.

Ela fechou os olhos com uma expressão sonhadora e abriu-os quase logo de seguida.

* Telefonaste aos Cotter?

* Telefonei há bocado. O Jordie está bem. Passou a noite no hospital. Querem levá-lo a uma consulta hoje de manhã.

* Uma consulta? A um psiquiatra?

* Fiquei com essa impressão.

* Quem te disse? A Karen ou o Lee?

* A Karen. O Lee não estava. Devia andar a tratar disso.

* Ou na boa-vai-ela, como de costume.

* Estava muito preocupado. Olha que não fingiu enquanto vocês os dois estavam em cima da torre.

Quando a ouviu conter a respiração, percebeu que Amanda estava a recordar o que passara, mas de certeza que a situação não a apavorara mais a ela do que a ele. Ao vê-la lá em cima, tivera uma primeira reacção de cólera, mas passara depressa. Fora ela que ficara com Jordie enquanto ele corria a buscar ajuda. Sabia do que o rapaz precisava.

* Fizeste bem - disse com ternura. Ela suspirou.

* Foi... redenção. - Cocou-lhe a barba com as pontas dos dedos. Depois, pousando-lhe a palma da mão no rosto, passou-lhe o polegar pelos lábios. - A Karen e o Lee têm decisões a tomar.

* Nós também. - Não lhe apetecia falar de Karen e Lee. Aliás, não lhe apetecia falar de nada... só queria sentir-se apaixonado, irresponsável e leve. Era divertido. Havia muito tempo que não o faziam. Tivera saudades. - Estou com fome. Temos alguma coisa boa em casa?

* Por acaso - começou, pensativa - podes escolher vários pratos: frango, bife ou eu. Se preferires frango ou bife, tenho de os descongelar. Eu... estou pronta.

Ao chegar-se a ela, Graham viu que era verdade. Já estava dentro dela quando o telefone tocou. Deixá-lo tocar!

Geórgia desligou com ar preocupado.

* Eles estão bem?

* Estão - afirmou Russ. - Podes acreditar que sim. E não vás tocar-lhes à campainha. Precisam de estar sozinhos. Sabê-lo-ias se tivesses estado aqui ontem à noite. Que susto!

Geórgia só conseguira chegar às dez. Por essa altura, o drama já terminara. Quer dizer, o da mata. O que tinha a ver com o futuro da sua empresa estava num impasse.

O telefone tocou. Vendo o número do seu advogado, atendeu:

* Sim, Sam?

* Nada feito. A Geórgia é parte do negócio. Querem que fique na empresa por mais dois anos. Nisso, estão dispostos a ceder.

* Dois anos em vez de três.

* Já é alguma coisa. E é um elogio.

* Os elogios não me servem de muito quando estou a três horas de casa de avião e os meus filhos precisam de mim - replicou Geórgia, massajando os músculos do fundo das costas. Estava farta de fazer e desfazer malas, de andar a arrastar a bagagem nos aeroportos, de correr de uma porta para a outra por causa da correspondência entre aviões e de se apertar entre outros dois passageiros quando só havia um lugar livre no meio. Isto tudo sem contar com a exaustão a nível emocional, a tensão e preocupação com o que se passava em casa e as sessões a longa distância com Allison, que estava a crescer muito depressa, e com Tommy, que em breve chegaria a essa altura da vida. E depois havia Russ, as necessidades dele e as dela e o medo do que aconteceria se as separações continuassem por tempo indeterminado. Nunca, nem nos seus sonhos mais loucos, imaginara estar ali a discutir negócios enquanto o seu adorável marido vasculhava um cesto de roupa saída da máquina de secar, procurando a outra meia de um dos pares que Tommy usava para jogar futebol (eram meias brancas às riscas vermelhas, excepto nos pés, que ficariam para sempre cinzentos devido à terra do campo, a não ser que ela as pusesse em lixívia). Mas haveria lixívia em casa? Vira pacotes de sumo na despensa. E lixívia?

Desatou a rir. Não sabia que mais havia de fazer.

Russ fítou-a, intrigado.

* Qual é a piada? - indagou Sam. Ela levou a mão ao rosto.

* Nenhuma. - Baixando a mão, respirou tão fundo que até levantou os ombros. - Bem - continuou para o telefone, enquanto sustentava o olhar admirado do marido -, cá vai: quero poder ir ao supermercado comprar lixívia para as meias dos meus filhos ficarem como novas. É assim tão horrível?

* Não - retorquiu Sam. - Mas não sei. A nível legal...

* Essa é a parte mais fácil - interrompeu Geórgia, surpreendendo-se ao sentir-se invadida pela calma. -A resposta é não. Se for para continuar a andar de um lado para o outro, não há acordo. Posso trabalhar a partir daqui e estarei sempre contactável por telefone, mas as viagens acabaram-se.

* Assim pode não se fechar negócio.

* Arranje outro. Não quero continuar.

Quando saiu para trabalhar na sexta-feira de manhã, Amanda sentia-se tão forte como Geórgia. Passar o dia com Granam fora um verdadeiro tônico, sobretudo devido ao tipo de dia. Não fora intelectual. Não se embrenharam em discussões sobre confiança e comunicação, não tocaram no tema desconfiança, nem de longe falaram da família de Graham e evitaram qualquer assunto relacionado com bebês.

O dia fora... divino. Não se deram ao trabalho de se vestir, porque passaram pouco tempo fora do quarto. Ouviram duas mensagens, mas não atenderam o telefone. Beijaram-se. Tocaram-se. Fizeram amor vezes sem conta e passaram horas em silêncio, a dormitar. Tomaram duche juntos. Tiraram pizas do congelador, aqueceram-nas e comeram-nas na cama. Dançaram no quarto ao som de Doe Watson, corpo contra corpo, nus.

Fora sexo puro, como no princípio, outra vez novo e físico. A paixão lavara tudo o que se intrometera entre eles. Os dois sozinhos, apenas com a harmonia dos seus corpos. Tinham começado de novo.

Fora uma fuga incrível ao mundo. Amanda tê-la-ia repetido naquela manhã se não fosse a voz da responsabilidade. Tinha reuniões marcadas e Graham precisava de trabalhar. com o fim-de-semana à porta, um dia de trabalho não custava muito.

De resto, passou o dia a interrompê-la. Enviou-lhe e-mails de hora a hora, telefonou-lhe duas vezes antes do almoço e duas depois, e estava à espera à porta com as malas feitas quando Amanda chegou a casa às quatro horas.

 

Por uma fracção de segundo, voltou a sentir um medo irracional, mas alguma coisa no seu sorriso (não o sorriso irreverente à O'Leary, mas o sorriso íntimo à Graham) fê-la recuperar a confiança. Deixou-a ir à casa de banho... e pronto. Dali a cinco minutos, seguiam para norte na sua carrinha.

A pousada chamava-se Frog Hollow. Ficava na vilazinha de Panamá, na fronteira norte de Vermont e, embora nova, já era muito conhecida. Os quartos eram todos diferentes uns dos outros, mas tinham um tema comum: sapos. No parque luxuriante, havia laguinhos e carreiros. Além dos doces habituais, a lojinha do outro lado da rua vendia Almond Joys.

Amanda não imaginava nada de mais ideal para uma escapadela. Só tinha duas reclamações. A primeira era que, apesar da qualidade da comida, não havia serviço de quartos, o que significava que eram obrigados a vestir-se e sair do quarto. A segunda, que a aborrecia porquanto a distraía, era a mania que Graham tinha de fazer frrribbit de cada vez que tocava em algum assunto mais sério.

Fê-lo quando falaram do que Amanda pensava sobre Quinn.

- Frrribbit - disse ele.

- Isso é muito irreverente - avisou ela, embora reconhecendo que aligeirava o assunto.

Fê-lo outra vez quando conversaram sobre o muito que gostavam do seu trabalho, o que lhes permitia mergulharem nele quando as coisas não iam bem em casa.

- Frrribbit - disse ele.

- Gostas de coisas verdes, já sei.

Fê-lo ainda outra vez quando discutiram a família de Graham.

- Frrribbit - disse ele.

- Já lhes respondeste assim? - perguntou com uma sobrancelha arqueada.

E outra vez quando falaram quem seria o pai do filho de Gretchen, se não era Lee.

- Frrribbit - disse ele.

- Não me parece - replicou ela, com um ar tão grave que foi ele quem riu. Amanda tentou defender-se. - É um problema, Gray. Este bebê tem sido o catalisador de muitas dúvidas. Quero saber quem é o pai. Tu não?

Prendendo-a pelo cotovelo, içou-a para o seu colo.

- Não quero pensar nisso. Não é uma prioridade neste momento. Nem a minha família, o teu trabalho e o meu, o Jordie ou o Quinn. É verdade que temos de falar. Parece-me que não compreendi cornpletamente o que sentiste quando o Quinn morreu nem como se sente uma filha única numa sala cheia de irmãos como os meus. Não entendo bem porque se sentem todas tão ameaçadas pela Gretchen, mas é bom que tentes explicar. No entanto, queres saber a conclusão? Nada disso interessa. O que interessa somos nós. Foi isso que perdemos de vista. - O verde dos seus olhos aprofundou-se. - Sabes do que gostei mais em ti?

Sem conseguir falar, Amanda limitou-se a abanar a cabeça.

- Da diferença que te separava de mim. Não queria mais do mesmo, Mandy. - Puxou a barba. - Porque pensas que a deixei crescer?

Era uma pergunta interessante. Nunca a tinham discutido. Também nunca a analisara, e Deus sabia que analisava quase tudo. Limitara-se a aceitar a barba de Graham, elegante contributo para a sua beleza.

- Por desafio?

- Não, a resposta é mais simples. Quis parecer diferente deles. Quis trilhar caminhos diferentes. - Sustentou o seu olhar. - Ainda quero.

Amanda acreditou e não desperdiçou nem mais um minuto do fim-de-semana pensando na pressão exercida pela sua família. O momento de descompressão foi, no entanto, de curta duração. Ainda mal se tinham posto a caminho de casa no domingo à tarde quando o telemóvel de Graham tocou. Era Peter a dizer que Dorothy tivera um acidente vascular cerebral.

Amanda nem pôs a hipótese de ficar em casa. Dorothy era a mãe de Graham e tratava-se de uma emergência. Queria estar ao lado dele.

Graham seguiu em frente, voltando pela estrada que tinham percorrido na sexta-feira. No limite sul de Vermont, tomou por uma via rápida que ia dar a leste de Woodley. O telefonema acabara com toda a alegria e irresponsabilidade, e Graham ia ficando mais tenso à medida que se aproximavam. Telefonou a Will, que lhe disse que Dorothy tivera o AVC de madrugada, soube por Joseph que a mãe estava consciente e lúcida, e foi Malcolm quem lhe contou que a primeira pessoa a encontrá-la fora Megan.

Sem saber que responder, Amanda ficou calada. Não podia dizer a Graham que correria tudo bem, porque não sabia. Tudo o que podia fazer, e que fez, foi dar-lhe a mão, lembrando-lhe sem palavras que estava ao seu lado.

Chegaram ao hospital a meio da tarde. Graham estacionou. Meio a correr, meio a andar, percorreram o átrio na direcção do elevador. Graças às indicações pormenorizadas de MaryAnne, sabiam para que lado virar quando chegaram ao sexto andar, se bem que, no caso contrário, lhes tivesse sido difícil não verem os O'Leary reunidos à porta de um determinado quarto.

Malcolm foi ao seu encontro.

- Ela está bem. Aliás, até impaciente. Quer sair daqui, mas nem pensar enquanto não fizer uma data de exames e, mesmo assim, vai precisar de ajuda. Perdeu o equilíbrio. Descai para a esquerda. Desconfiam que houve uma lesão desse lado, mas sem gravidade.

- Sem gravidade - repetiu Graham com cautela.

- Sem gravidade - confirmou MaryAnne, aproximando-se. Teve sorte.

Amanda não precisava de gostar da sogra para se sentir grata. O alívio de Graham foi evidente.

- O que provocou o AVC? - perguntou.

- Não sabem - respondeu Mac. - Os exames são para isso. Pode ser só por causa da idade.

- Quer dizer que haverá outros? Reunindo-se-lhes, Peter replicou:

- Vai ser medicada para diminuir esse risco.

- O que talvez seja mais fácil de dizer do que de fazer - resmungou Graham.

Até Amanda sabia como Dorothy detestava tomar comprimidos. Mac agarrou-lhe o braço.

- Olha, não terá outro remédio. Anda. Vai ficar contente por te ver. Já perguntou por ti.

Ao entrar no quarto, Amanda não conseguiu deixar de ter pena de Dorothy. Parecia perdida no meio do branco dos lençóis do hospital. Mesmo que não tivesse sido grave e o seu estado não inspirasse grandes cuidados, via-se que o susto fora tremendo. Confirmava-o a maneira como a mão lhe tremia quando a estendeu para Graham.

Ele tomou-a nas suas e deu-lhe um beijo na face.

- Estás com muito bom aspecto para alguém que acaba de me tirar dez anos de vida.

- Onde estavas? - perguntou Dorothy em voz aguda e infantil.

- Não estavas em casa. Telefonaram-te imensas vezes. Ainda bem que o Will tinha o número do teu telemóvel!

Amanda imitou Graham. Debruçando-se, depositou um beijo no rosto de Dorothy.

- Olhe que é verdade. Está com melhor aspecto do que nós nos sentimos. Viemos o caminho todo preocupadíssimos.

Dorothy lançou-lhe um olhar de relance e voltou a fitar Graan.

- Querem que fique aqui. Não posso.

- Mas tem de ser. E preciso fazer exames.

- Os exames matam. Mataram o teu pai.

- Não, mãe. O pai morreu com um cancro.

- Foi o exame. Se não tivesse feito aquele...

- Se não o tivesse feito, morreria na mesma, e só mais tarde saberíamos porquê. Não morreu por causa do exame.

- Acredita no que quiseres. Eu fico na minha.

- Mas fazes mal, mãe. Só vais conseguir ficar mais preocupada. Os exames não matam.

- Para ti é muito fácil - resmungou ela. - Não és tu que os vais fazer. Pelos vistos, também não posso ir para casa sozinha. Dizem que preciso de ajuda. Não posso pedir às minhas filhas que fiquem comigo. Têm as famílias delas. A minha cunhada sofre da anca e nem conseguiria subir os degraus de fora, quanto mais as escadas de dentro! Eu até pediria à Megan... que o faria sem hesitar... a esta hora ainda estaria no chão se a Megan não tivesse ficado preocupada por eu não ter ido buscar o jornal... é tão boa rapariga!... mas tem a loja. Portanto, quem me ajuda?

- Contratamos alguém. Dorothy pareceu horrorizada.

- Uma estranha? Nem pensar!

- E se fosse uma enfermeira? - sugeriu Amanda com suavidade. - Algumas até cozinham e limpam a casa. Podia ser.

- Então arranje uma para si - resmungou Dorothy. - A sua geração é que precisa de mimos, não a minha.

- Mãe, a Amanda tem razão.

- Ela trabalha e quer alguém para limpar a casa e cozinhar. Se não trabalhasse, podia ser ela a fazê-lo.

- O trabalho dela é importante - volveu Graham. - Ajuda as crianças. Porque havia de desistir disso para ficar em casa?

Amanda viu a armadilha, mas Dorothy também não perdeu tempo a disfarçá-la.

- O problema é que ajuda os filhos dos outros. Apareceu uma enfermeira do outro lado da cama.

- Vamos, senhora O'Leary? - Virando-se para Graham e Amanda, explicou: - Vai fazer uma TAC.

Dorothy lançou a Graham um último olhar desesperado. Percebendo que ele não a salvaria, cerrou os dentes e deixou-se transportar.

Graham passou grande parte da noite ao telefone com os irmãos, discutindo o que seria melhor para Dorothy. Os exames não mostravam grande coisa e far-lhe-iam mais nos dias seguintes. Dorothy continuava a pôr os pés à parede no que respeitava aos exames e à idéia de contratar alguém para a ajudar em casa. Mostrava-se tão reticente que puseram a hipótese de se revesarem para olhar por ela.

Sentada na cozinha a ouvi-lo falar, Amanda sussurrou.

- Eu posso ir ajudá-la todos os dias depois da escola. - Ele lançou-lhe um sorriso agradecido e abanou a cabeça.

Sentiu-se posta de parte, mas a culpa não era dele. O facto era que Dorothy não queria a sua ajuda. Talvez tolerasse a ajuda das filhas e das mulheres de Mac, James, Joe ou Will. Pelo que ouvia da conversa, sabia que estavam a discutir esta possibilidade. E também sabia, pelas respostas de Graham, que nenhum dos seus irmãos a considerava uma ajudante a ter em conta. Ninguém ignorava os sentimentos de Dorothy. Graham podia negar, mas todos sabiam.

Achando melhor ficar calada, Amanda deu consigo a reviver as inseguranças de que se desembaraçara no fim-de-semana. Era como se algum micróbio tivesse sobrevivido à lavagem dos últimos dias e estivesse agora a criar raízes e a começar a crescer. Se Graham o percebeu, não tocou no assunto. Esteve sempre embrenhado nos problemas familiares até ao fim do último telefonema, altura em que foram os dois para a cama.

Abraçou-a com o mesmo amor que Amanda sentia nele desde que descera da torre, mas agora o silêncio não era suficiente. A paixão não bastava para matar o micróbio. Era real. Amanda precisava que ele o admitisse. Se a vida se intrometera entre eles nos últimos dois anos e se o problema da gravidez era o factor principal, a família de Graham ocupava o segundo lugar.

Estava cansada de se sentir uma impostora. Queria dizer-lho.

Mas não disse. Não pronunciou uma única palavra. Dorothy estava doente e Graham preocupado. Não era altura para discussões.

Na segunda-feira de manhã, Karen tinha a mesma opinião. Não era altura para discussões. Não era conflituosa nem nos seus melhores dias, e não estava definitivamente nos seus melhores dias. Jordie estaria engessado durante seis semanas e andaria no psicólogo durante muito mais tempo. Os gêmeos, que tinham percebido que se passava alguma coisa mas que não sabiam o quê, falavam consigo próprios mais do que nunca. E Julie não a largava. Se Karen estava na cozinha, Julie também. Se ia pôr roupa a lavar, Julie seguia-a. O único tempo livre que tinha era quando a filha estava na escola e, nessa altura, andava atarefada em reuniões de uma ou outra comissão.

Amanda e Graham haviam-se arredado... e porque não? Tinham-se um ao outro. Bem podiam esquecer que o resto do mundo existia. Mas Karen não. Quando não estava na escola comportando-se como se nada tivesse acontecido, não fosse alguém pensar o contrário, era obrigada a encarar a indignidade em casa. Já nem conseguia descer a rua sem rezar para não dar de caras com Gretchen, fitando-a com pena ou desdém. E agora tinha tanto a ver com Jordie como com Lee.

Karen desembaraçara-se da faca com os comprometedores bocados de tinta. Embrulhara-a, escondera-a num saco de lixo e deitara-a fora. Gretchen não ia apresentar queixa. No entanto, mesmo que Jordie tivesse confessado, não havia provas.

Agora, porém, havia a arma. Russ deixara-a lá de manhã, metida num envelope almofadado endereçado a Lee. Não tinha nada com isso, mas não conseguira resistir a apalpá-lo. E percebera o que era.

A porta da cozinha abriu-se e Lee entrou, deixando-a fechar-se atrás de si.

Recebi o teu recado. Disseram-me que era urgente.

Karen tirou a pequena pistola do bolso muito devagar. Empunhando-a ao nível da cintura, apontou-a a Lee, que carregou o cenho e deu instintivamente um passo para o lado. Ela seguiu-o com o cano da arma, sentindo um estranho poder.

Que estás a fazer com isso? - perguntou sem tirar os olhos da arma.

O Russ trouxe-a hoje de manhã. Acho que é tua.

- Não tenho nenhuma pistola. Ela inspirou e continuou:

- Vi-a na tua gaveta.

Agora revistas as minhas gavetas? - explodiu ele, como Karen sabia que faria. Lee era muito bom a fugir com o rabo à seringa.

Mas recusou-se a cair na armadilha. Sabia o que havia de dizer, já treinara muito a resposta.

Sou eu que dobro e arrumo as tuas cuecas. Às vezes passo as menos usadas para a frente. A arma esteve lá no fundo durante muito tempo. Não foi um bom sítio para a guardar, Lee. Era demasiado óbvio. O Jordie não teve de procurar muito para a encontrar.

Percebendo que não valia a pena negar, Lee fez um ar aborrecido.

Olha, era o sítio que estava mais à mão caso aparecesse algum intruso a meio da noite. Além disso, como sabes que era esta a arma que o Jordie tinha?

- Porque a tua não está no sítio. Não a encontrámos depois de o Jordie ter descido e não a tinha com ele quando o despiram no hospital. Pensei que lha tinhas tirado, mas afinal foi o Russ.

Os olhos de Lee voltaram a pousar na arma.

- Baixa isso. As armas podem matar.

Karen assentiu. Engolindo a histeria, continuou.

- Esta podia ter morto o nosso filho. Tive outro pesadelo ontem à noite.

Ele estendeu uma mão.

- Dá-ma.

- Ainda não.

- Que mais queres?

- Dar-te uma palavrinha.

- Vá, dá lá a palavrinha - suspirou ele, de novo aborrecido, como se fizesse a vontade a uma criança.

Chegados a este ponto, Karen costumava recuar. Era Lee que tinha conhecimentos de alta tecnologia e uma empresa de sucesso. Era ele o esperto, o inteligente, o sabichão. Não podia competir com isso.

Mas era mãe, facto com que também ele não podia competir. Talvez a arma lhe desse coragem ou talvez tivesse sido humilhada vezes de mais, mas não ia recuar. Tinha uma palavrinha a dizer sobre o casamento. Aliás, três palavrinhas.

- Mentira. Traição. Violência. Ainda aborrecido, Lee suspirou.

- Não há violência no nosso casamento. Por aí, não tens pernas para andar.

- É subtil e silenciosa, mas existe. É de tal forma que afecta tudo nesta casa. De tal forma que não consigo pensar direito.

- Vai ao psiquiatra. Já te disse que pago.

- Não adianta. Não posso continuar assim, Lee. Já não agüento as outras mulheres, os serões e a revolta.

Ele suavizou a voz de um modo tão familiar!

- Estás a imaginar coisas.

- Não. - A arma que tinha na mão lembrou-lhe que a situação era grave. - Vi os extractos de conta. Não sou eu que imagino que andas a pagar as consultas de um obstetra, porque o nome dele vem escarrapachado nos extractos, e mais de uma vez. As consultas que pagas todos os meses não são minhas.

- Andaste a revistar-me a secretária? - inquietou-se.

"Pronto, desabafei", pensou com medo. Lee podia desculpar-lhe o facto de ter visto alguma coisa na gaveta quando arrumava as cuecas, mas nunca lhe perdoaria andar a vasculhar-lhe a secretária. Sempre confiara nela. Agora, nunca mais nada voltaria a ser como dantes.

Mas a sua vida nunca mais voltaria a ser como dantes. As duas últimas semanas tinham-se encarregado do assunto. Sentia os velhos receios... de ficar sozinha, sem Lee, de não ser ninguém, de viver sem dinheiro. Eram argumentos fortes que a tinham mantido presa a Lee quando devia ter-se separado, e que ainda poderiam fazê-lo.

Mas não podia recuar. Não podia.

- Andei - disse de sopetão -, e não tentes virar o bico ao prego e fazer de mim a má da fita, porque desta vez não consegues nada. Não acredito no divórcio. Aterroriza-me, e tu sabes. É por isso que te deixei sempre pedir desculpa e jurar que estava tudo acabado entre ti e as tuas amantes, mas as coisas não estão bem entre nós e o veneno espalhou-se. Conseguia viver com a situação quando era só eu, mas agora também afecta os nossos filhos.

- Os nossos filhos estão bem - resmungou ele.

- Lee! - exclamou Karen, incrédula. - Olha o Jordie! Já pensaste bem no que quase lhe aconteceu? A ele e à Amanda? E vê o que fez à Gretchen, que não teria feito se não passasses a vida a falar no quadro. Não o teria feito se não houvesse pensado que andavas metido com ela.

- A culpa é tua - acusou Lee. - O Jordie seria cego se não notasse os teus ciúmes e a tua desconfiança.

Tendo chegado a um ponto em que já não era possível recuar, Karen fitou-o, pensando que ele parecia um idiota chapado com o cabelo louro assim aos altos.

- Os meus ciúmes e a minha desconfiança são o resultado das tuas mentiras e traições.

Ele levantou a mão.

- Não tentes atirar a culpa para cima de mim.

- Quase perdemos o Jordie! - berrou ela. - Isso não te gela até aos ossos? - Tentou dominar-se. Amanda não gritaria em semelhante situação. E Geórgia também não. Manter-se-iam calmas. Falariam com convicção, mesmo tremendo de medo. - Nem respondas - prosseguiu, como elas o teriam feito. - Não quero respostas. Só quero que pegues na tua malinha. Os miúdos chegam daqui a uma hora. Não quero ver-te aqui nessa altura. A expressão dele esvaziou-se.

- Que dizes?

Karen engoliu em seco. Mesmo que lhes custasse, Amanda e Geórgia não arredariam pé se soubessem que tinham razão.

- Pega na tua malinha e põe-te a andar.

- Estás a falar a sério?

Ela assentiu.

- Vá lá, querida - replicou ele, fazendo menção de se aproximar.

Ela levantou a arma.

Lee parou, fitou a arma e levantou os olhos para ela.

- Mas esta é a minha casa.

- Já não é - respondeu ela muito depressa, lutando contra a força do hábito. Sabia que era o melhor a fazer. - Se for preciso, vou a tribunal. Tenho cópias dos extractos e o nome de um bom advogado. Põe-te a andar, Lee.

Ele levantou as duas mãos num gesto conciliador.

- Não estás em ti. Vais buscar coisas que aconteceram no passado e pensas no Jordie em cima da torre. Ficaste paralisada, e eu também. Agora já não estamos e a realidade começa a atingir-nos.

- Não é só o Jordie.

- Claro que não. Todos passamos por maus momentos. Tu estás a atravessar um e não consegues pensar com lucidez.

- Estou a pensar com muita lucidez.

- A vida atrapalha-se toda quando há um susto como aquele que vivemos com o Jordie.

Karen inspirou com calma, dando-se conta de que estava cansada de ser manipulada por Lee.

- Põe-te a andar - repetiu com deliberação. - Não me interessa para onde vais, desde que seja longe daqui.

- Mas porquê? Ela nem pestanejou.

- Já são mulheres a mais. Tu andas com alguém, Lee. Pouco me importa se é a Gretchen ou outra qualquer. Já estou farta de viver assim.

Ele pareceu à beira de negar. Mas desta vez Karen tinha provas e viu no seu olhar que ele o percebera. Nisto, a discussão acalmou.

- Sou fraco, Karen. Cometo erros, mas não significam nada.

- Ela está grávida?

- Não interessa. O importante és tu e os nossos filhos.

- Porque não acredito em ti? - perguntou Karen.

- Porque estás zangada.

- Não - replicou ela, admirada por se sentir tão pouco ferida.

- Nós não somos importantes para ti. Se fôssemos, não nos magoarias desta maneira.

- Mas ela não significa nada para mim - insistiu ele. - De qualquer forma, acabou. Já é passado. Aprendi a minha lição quando vi o Jordie em cima da torre.

Karen não acreditou. Lee já antes jurara corrigir-se, e mais do que uma vez. Não lhe restava nenhuma credibilidade aos seus olhos.

- Vai fazer as malas. Já.

Ele ficou calado. Depois, com curiosidade.

- Ou o quê? Dás-me um tiro?

- Na verdade, vou levar a pistola ao Russ, que há-de saber a melhor maneira de me desembaraçar dela. - Baixou-a, mas não amoleceu. Sentia-se revoltada por ter sido o alvo da infidelidade de Lee durante tantos anos. E a revolta deu-lhe coragem. - Não preciso de pistolas. Tenho outra arma. Se não pegares na tua malinha, se não te fores embora... se não me deres uma boa pensão, direi aos nossos filhos o que fizeste. Tu ama-os, Lee, não o nego. Ama-os e eles amam-te... até o Jordie, que neste momento deve odiar-nos tanto como nos ama.

O contrato é este: vais-te embora, concordas com um divórcio amigável, e continuas com o amor dos teus filhos. Se me arranjares problemas, também tos arranjarei a ti.

Um jogo. Como não era jogadora, o momento tornava-se especialmente difícil para ela. Nunca se atrevera a desafiar Lee assim, nem quando ele admitira relacionamentos passados... Uma parte dela queria as velhas desculpas, o velho fingimento. Uma parte dela queria que ficasse tudo na mesma. Era mais seguro. Não implicava a mudança nem tantos riscos. O inferno que conhecia podia ser melhor do que o que desconhecia.

As infidelidades passadas só tinham dito respeito a ela e a Lee. Desta vez, os filhos tinham sido afectados, o que tornava as coisas diferentes.

Amanda saiu cedo da escola na segunda-feira à tarde e foi visitar Dorothy. Não dissera nada a Graham. Não o fazia por ele, mas por ela. Esperava que Dorothy percebesse os seus esforços e os levasse em conta.

O corredor encontrava-se de novo ocupado por uma horda de O'Learys. Desta vez, por vários netos empunhando pequenos presentes e cartões de melhoras desenhados por eles próprios. Entravam e saíam em grupos do quarto da avó.

As crianças saudaram Amanda com mais entusiasmo do que qualquer outra pessoa. Ela abraçou-as, beijou-as e perguntou a Sheila, a esposa de James:

- Como está a Dorothy?

- Benzi nho. Puseram-na de pé e obrigaram-na a andar. Aguenta-se bem, mas tem medo de cair outra vez.

- Fizeram mais exames?

- Fizeram. Foi um acidente vascular cerebral superficial. Não há lesões graves. Até o equilíbrio já está melhor.

Amanda aproximou-se da porta na altura em que saíam do quarto os dois filhos mais velhos de Will. Ignorando o nó que sentia no estômago, entrou.

Dorothy tinha os olhos fechados.

- Olá. Os miúdos cansaram-na? - indagou Amanda com suavidade.

Ela abriu os olhos, viu Amanda e olhou para a porta.

- O Graham?

- Não pôde vir. Tinha uma reunião com um cliente em Litchfield. Vim saber como está.

Dorothy fez um gesto na direcção do corredor e fechou outra vez os olhos.

- Eles dizem-lhe.

- Já disseram - replicou Amanda. - Parece que as notícias são boas. Que alívio! - Vendo que a outra não respondia, Amanda observou os desenhos pousados na mesinha ao lado da cama. - Tem aqui uns cartões muito bonitos!

- Tenho uns netos muito queridos.

- Pois tem. com sorte, ainda virão mais.

Dorothy abriu os olhos. A acusação estampada neles contrastava com a imobilidade do resto do seu corpo.

- O Mac disse-me que desistiram de tentar. Não é assim que se fazem bebês.

- Não desistimos. É só uma pausa.

- Eu nunca fiz nenhuma. Nunca quis. Amava o meu marido. Fazer filhos não era uma tarefa aborrecida.

Amanda não gostou da insinuação, mas não queria discutir. Por isso, sorriu, assentiu e replicou.

- Antigamente era mais fácil. Às vezes penso se não será alguma coisa no ar.

- O Jimmy diz que o Graham anda frustrado.

- Eu também. Tanto eu como ele queremos ter filhos.

Os olhos de Dorothy dirigiram-se de novo para a porta. Desta vez, sorriu.

- Olá, Christine. - Era a mulher de Joseph. - Não precisavas de vir. Tens tanto que fazer!

Ignorando o subentendido, Christine piscou o olho a Amanda antes de se virar para a sogra.

- Mas arranjo sempre um bocadinho para a visitar. Como vai, mãe?

Amanda foi afastada do horizonte de Dorothy num abrir e fechar de olhos. Ainda tentou participar na conversa sobre o trabalho de Christine, que organizava festas, mas a atitude de Dorothy foi tão óbvia e antipática que não ficou muito mais tempo. Reflectindo nisso ao sair do quarto, até culpou Christine, que podia ter-lhe perguntado pelo seu trabalho à frente de Dorothy. Desconfiava que o teria feito se ela fosse Megan.

"Não vás por aí", disse com os seus botões. "Isto não tem nada a ver contigo e com o Graam. "

O problema era que, de uma certa maneira indesejada e dolorosa, ainda tinha.

Graham sentiu-o nessa noite, apesar dos seus esforços para o disfarçar. Amanda fez-lhe um jantar delicioso, complementado com vinho e bolo de morango, que ele adorava, depois contou-lhe as novidades: Geórgia resolvera não alinhar no jogo do comprador e esperava o veredicto e Karen expulsara Lee de casa. A seguir, disse-lhe que fora muito bom voltar à escola depois do fim-de-semana que tinham passado juntos e que sentia que tinha um segredo só dela, que lhe pusera um sorriso nos lábios durante todo o dia e que a ajudara a suportar o ambiente pesado que pairava nos corredores.

Mas houve uma coisa que não disse. Graham só soube que ela estivera no hospital depois de um telefonema de Peter.

- Porque não me contaste? - perguntou, inquieto com o seu silêncio. Tinham combinado que falariam. O fim-de-semana também fora para isso.

 

Ela encolheu os ombros, desagradada consigo própria.

- Mais valia não ter ido. Amanda Cair falha redondamente outra vez.

- Oh, Mandy! A minha mãe já não é nova. Não te esqueças de que está amargurada e assustada

- Eu sei, mas é difícil. Se calhar devia começar a tratá-la por

mãe. Talvez gostasse. É que parece-me tão... forçado. Ela não é miI; nha mãe, é tua.

A frase não lhe saiu da cabeça durante toda a noite. Amanda dis( "Ela não é minha mãe, é tua", e não acrescentara mais nada. Não

lhe exigira que tomasse partido nem lhe pedira nada que tivesse a ver com Dorothy. Sabia que ela estava doente e parecia disposta a desculpar a sua frieza.

O comportamento da mãe não era novidade, mas Graham levantou-se na terça-feira de manhã sem conseguir pensar noutra coisa. A frase: "Ela não é minha mãe, é tua", passara agora a ser, na sua cabeça: "Ela não é problema meu, é teu". Sentia-se feliz por ter recomeçado tudo com Amanda. Parecia-lhe que tudo aquilo de que gostava nela era novo, real e forte. De resto, o seu papel fora fundamental e esI tava a esforçar-se tanto como ele. No que dizia respeito a Dorothy, no entanto, não podia fazer grande coisa. Dera o primeiro passo muitas vezes, antes de desistir. "Agora não", pensou. Nunca transplantaria um sicómoro no pino

do Verão, por muito importante que fosse para o êxito de um projecto. : Os sicómoros precisavam tanto de humidade como Dorothy de mimos. O AVC podia não ter sido grave, mas a altura era de inquietação

para ela. Dias melhores viriam. A caminho de ir visitá-la a meio da tarde, decidiu esperar.

Dorothy não era da mesma opinião.

 

- Olá, mãe - disse Graham, entrando no quarto. Chocara com Mac no elevador e sabia que os outros tinham ido para casa jantar. Eram quase seis horas. Os restos do jantar de Dorothy, que não comera tudo, estavam no tabuleiro. Ligara a televisão muito baixinho, mas tinha a cabeça virada na almofada e olhava pela janela. Ia ser um momento de calma... pensava ele. Ainda mal chegara à cama... e ainda mal ela se virará e sorrira, quando Will entrou de rompante.

- Fartei-me de te buzinar. Estava duas carrinhas atrás de ti disse a Graham. - Olá, mãe. Como vai isso?

- Melhor, agora que tenho aqui os meus filhos - respondeu Dorothy, parecendo mais forte ao fim de outro dia. - Às vezes, sinto-me sozinha. Será sempre assim a partir de agora?

Will lançou-lhe um olhar de soslaio.

- Pelo que me contou a minha mulher, houve grandes engarrafamentos aqui o dia todo.

- O Mac disse-me a mesma coisa - acrescentou Graham, querendo evitar que ela os fizesse sentir culpados. - Pensava que o descanso estava a saber-te bem.

- Não. Gosto da minha família ao pé de mim. As tuas filhas foram adoráveis - disse a Will, acenando com a mão magra na direcção da vitrina pendurada na parede. - Estiveram aqui sentadas imenso tempo a fazer desenhos.

Graham foi ver melhor.

- Ah, olha a avó na cama! E tem uma enfermeira ao lado. Era difícil não reparar na grande Cruz Vermelha escarrapachada na touca, embora nunca tivesse visto nenhuma enfermeira de touca. E muitas máquinas e... quem mais? Dorothy enumerou as visitas:

- A MaryAnne, a Sheila, uns primos e a tua mulher, Will. Graham esperou que continuasse. Viu um punhado de rabiscos amarelos que só podiam ser os cabelos de Amanda, que sabia ter estado lá. Mas Dorothy ficou calada.

- Esta parece a Amanda. Esteve cá? - perguntou, como por acaso.

- Talvez, não sei bem.

Will tentou disfarçar o deslize.

- Estás tão medicada que se calhar baralhaste-te.

Graham ficou aborrecido com Will e com Dorothy, mas deixou passar. "Agora não", repetiu para si próprio.

- Ainda bem que a Amanda pôde vir. Não tem sido fácil na escola - comentou.

- Ainda o suicídio? - indagou Will.

- Isso e a época. O fim do ano aproxima-se e há muitos problemas.

- Não devia incomodar-se - observou Dorothy. - Estão cá os outros todos.

- Não é nenhum incômodo para ela. - Lançou um rápido olhar de aviso a Will. - Está tão preocupada contigo como nós.

- Mas é diferente - replicou Dorothy, com uma ligeireza espantosa para uma pessoa que estava tão fraca. - Não tem ligações, percebes?

- Não está casada com um O'Leary há tempo suficiente - brincou Will.

Mas Graham ficou ofendido.

- Que ligações, mãe?

- Sabes muito bem, querido. Os outros têm filhos. com ela é diferente.

- Se é diferente com ela, também devia ser comigo. Achas que é?

- Gray - murmurou Will -, agora não. Graham respirou fundo. Will tinha razão. Mas Amanda merecia mais.

Em consideração pelo irmão, falou em voz baixa e calma, mas não deixou passar.

- A Amanda está a tentar, mãe. Quer ajudar. Quer fazer parte de nós.

- Mas não faz - volveu Dorothy com o mel escorrendo-lhe da voz. - Sempre foi diferente, o que não significa que não possamos dar-nos bem. Agora que penso nisso, acho que esteve aqui. Tem muito jeito para as crianças, que se portaram muito bem.

Graham apertou os lábios.

- Os meus filhos adoram a Amanda. Vai ser uma mãe fantástica. Teve vontade de o matar.

- Acredito que sim - retorquiu Dorothy, fechando os olhos. Graham olhou para Will e articulou.

- Cala-te!

- O quê? - perguntou-lhe Will, espantado, também sem produzir nenhum som.

- Oh, não te zangues com o Will - ralhou Dorothy. - Só está a tentar ajudar. Protege-la tanto! Parece que é feita de porcelana.

- Por favor, mãe - avisou Graham.

Deitada numa cama de hospital, no entanto, Dorothy devia ter sentido o poder da sua situação, porque continuou.

- Percebo porque o fazes. Ela tem qualquer coisa de frágil. Também nisso sempre foi diferente de nós. A Megan não. É forte.

- Não vás por aí, mãe.

- Hoje de manhã trouxe-me cassetes e um leitor de cassetes para me distrair. Pensa em tudo.

- Mãe.

- É uma pessoa incrível. Nunca compreendi o que aconteceu entre vocês os dois.

- Eu disse-te o que aconteceu - afirmou Graham.

- Gray - alertou Will.

Mas Graham já não agüentava. Se a mãe estava boa e forte e tinha a língua afiada o suficiente para lhe menosprezar a mulher em nome da ex-mulher, também podia ouvir o que ele tinha a dizer.

- A Megan é lésbica.

Dorothy continuou como se não fosse nada com ela.

- Graças à Megan, a livraria vai de vento em popa. Um sucesso. Também gosto muito da sócia, a Brooke. Já te disse que se mudou para casa da Megan?

- A Brooke é a companheira dela, mãe. Vivem juntas. A Megan deixou-me, mãe. Aceita.

Dorothy nem pestanejou.

- Aceito se tu aceitares, mas continua a ser difícil. Sobretudo agora, com isto tudo.

- Tudo o quê? - perguntou Graham, embora soubesse a resposta.

- O bebê.

Will tocou-lhe no braço, mas Graham não ia ficar calado. Preferia outra altura, mas havia coisas que tinham de ser ditas. Se Dorothy já estava boa para o espicaçar, também o estava para ouvir umas verdades.

- Eu não queria um filho da Megan.

- Percebo porque o dizes.

- Não, mãe, acho que não percebes. Não queria um filho da Megan porque sempre fomos bons amigos e nunca funcionámos como casal, o que seria desastroso para um filho. A Megan fez-me um favor ao acabar com o casamento.

- Não digas isso.

- É verdade. O que tenho com a Amanda é muito melhor. Não

somos apenas velhos amigos cujas famílias queriam tanto ver-nos juntos que nem pensámos em mais nada.

- Estavas muito sozinho - volveu-lhe Dorothy. Graham não a

contradisse.

- É verdade, mas andei com imensas mulheres antes da Amanda e nenhuma delas fez fosse o que fosse por mim. A Amanda era tudo o que eu queria. Não acabei por ficar com ela por acaso. Escolhi-a.

Embora um tanto desconcertada, Dorothy estava longe de se deixar ficar.

- E agora obriga-te a escolher outra vez.

- Perdão?

- Obriga-te a escolher: ou ela ou nós. Graam ficou atônito.

- Claro que não. Quem está a fazer isso és tu.

- Não sou só eu - indignou-se Dorothy. - Somos todos. O Mac sabe que ela não tem razão, tal como a MaryAnne, a Kathryn e...

- Mãe, já chega - interrompeu Will.

- Pões-te do lado dele? Ouves o que diz?

- Que ama a mulher.

- E isso é só para começar. - Zangado, deitou cá para fora tudo o que lhe ia na alma havia tempo de mais. - Digo que estou com a Amanda para toda a vida. Digo que ela é a única mãe que quero para um filho meu. Digo que optaremos pela adopção se não tivermos filhos biológicos e que cortaremos relações se esta família não os receber de braços abertos. - Levou a mão ao pescoço, cujos músculos tensos pareciam de aço. - Bem, de qualquer maneira, vou pôr-me a andar murmurou. Virou-se para a porta e estacou ao ver Amanda, que acabava de chegar. No momento seguinte, no entanto, estava de novo em movimento. - Anda, querida - disse, estendendo-lhe a mão. - Vamos embora.

Amanda deu-lhe a mão mas não se mexeu. Os seus olhos passaram do seu rosto zangado para a expressão alarmada de Will e para o ar estupefacto de Dorothy. Não chegara mais de dois minutos antes, mesmo no meio da discussão, e ouvira o suficiente para amar e respeitar Graham mais do que nunca e para saber que a sua relação com a família estava em jogo.

- Mandy - rosnou ele. Vamos!

- Espera - sussurrou. Soltando-lhe a mão, voltou a entrar no quarto de onde saíra uma hora antes. Depois de lançar um olhar a Will, dirigiu-se à sogra. - Estava lá em baixo no bar. Sabia que o Gray vinha e quis fazer-lhe uma surpresa. Do outro lado da rua, há um restaurante italiano onde fazia tenções de jantarmos. O Graham tem andado preocupado consigo e comigo e sente-se muito pressionado.

- Não tinhas nada que te pôr a ouvir - acusou Dorothy.

- Não ouvi nada que não soubesse. Sei que o Graham adora a família e também sei que me adora a mim. Sempre o amei por isso. Seria um pecado obrigá-lo a escolher.

- Eu não o obrigo a escolher.

- Nem eu - limitou-se a dizer Amanda. - Gosto muito que venha de uma família tão grande. Aceito-a e quero que ela me aceite a mim.

- E aceitamos - afirmou Will. Amanda atirou-lhe um sorriso triste.

- Acho que querem e que tentam. Mas também acho que andam todos com pezinhos de lã no que respeita à Megan. - Virou-se para Dorothy. - Gosto da Megan. Considero-a uma mulher fantástica. Quero acreditar que irá à nossa casa levar livros da livraria quando tivermos filhos, mas o Gray tem razão. Ela precisava de espaço e ele tinha outras necessidades. Só quero satisfazê-las, e lamento muito se por acaso sou diferente daquilo que desejava.

- Não se trata só da Megan - atirou Dorothy. - O problema também são os filhos. O Graham tem andado muito infeliz nestes últimos meses.

- Eu também. Não tem sido divertido.

- Não acha que isso quer dizer alguma coisa?

- Meu Deus, mãe! - murmurou Will.

Amanda não vacilou. Tinha a resposta na ponta da língua.

- Quer. Quer dizer que a vida nem sempre é divertida. Se perguntar ao Graham... - sorriu com ternura - ele dir-lhe-á que é o mesmo que arrancar ervas daninhas e explicar-lhe-á que quanto mais arrancar mais saudáveis serão as suas plantas, porque as ervas daninhas roubam-lhes os nutrientes. No nosso caso, as ervas daninhas são os pequenos desentendimentos que se intrometem quando estamos a tentar ter um filho ou a dar-nos bem com a família e não conseguimos. Os desentendimentos roubam os nutrientes de um casamento. Por isso, temos andado a tentar livrar-nos deles. Acredito que o Graham me ama. - Como poderia ser de outro modo, depois do que acabara de ouvir?

- E também acreditas que a Megan é passado para ele? - indagou Dorothy, com muitas dúvidas.

Mais uma vez, Amanda não hesitou.

- Acredito. Por isso, resta a família. Não lhe peço para escolher. Nunca o faria, mas se não consegue aceitar-me, será o Gray quem mais sofrerá. Visto que o amamos, não podemos evitá-lo?

Graham demorou tempo a acalmar.

- É insuportável - resmungou, atravessando o átrio. Amanda teve de estugar o passo para o acompanhar.

- A tua mãe tem as suas manias, com que tu não te conformaste. É difícil para ela.

- É mal-educada e mal-agradecida. Preconceituosa. Se pensa que os nossos filhos vão querer estar com ela... se pensa que vamos deixá-los estar com ela...

- Claro que vamos - cortou Amanda, sentindo a dor de quatro anos tentando fazer filhos no singular, quanto mais no plural! - Há-de acabar por cair em si. E a tua mãe e não está bem, Gray.

- Estava muito bem para discutir - fungou ele. - Mas a culpa é minha - continuou, abrandando o passo por fim. - Já devia ter posto os pontos nos is há muitos meses... anos. - Carregou com raiva no botão de chamada do elevador. - Desculpa. Deixei-te ficar mal. Amanda deu-lhe o braço.

- Disseste o que precisava de ser dito. Obrigada.

A porta do elevador abriu-se. Já levava algumas pessoas. Entraram os dois e viraram-se para a frente, adiando a conversa até ao rés-do-chão. Em lugar de falar, Graham deu-lhe a mão.

- Vamos jantar? - perguntou, parecendo quase tímido.

- Acho melhor Não temos nada em casa.

- Comida italiana?

- Parece-me bem. , Ele calou-se, fitou as suas mãos dadas e ergueu uns olhos vulneráveis para ela.

- Disseste aquilo da confiança a sério? Ela assentiu. "? Graham estudou-a por mais algum tempo. O verde dos seus olhos foi-se aprofundado à medida que se ia sentindo mais seguro.

Amanda admirou-se por ter podido afectar-lhe a segurança e deu graças pelo seu regresso. Graham O'Leary era um homem fantástico.

Quando a fitava assim, esquecido das pessoas que passavam por eles como se fossem estátuas no meio do átrio, iria com ele até ao fim do mundo.

Respirando fundo, puxou-a para o seu lado e passou-lhe o braço pelos ombros. Atravessaram o átrio e saíram do hospital.

Regressaram à praceta duas horas mais tarde, cada um no seu carro. Mas o facto de estarem separados fisicamente não significava que não pudessem falar. Seguiam conversando ao telemóvel. Nisto, Graham abrandou.

- A noite está escura - comentou, pensativo. - Se há lua, está escondida atrás das nuvens, que não podemos ver porque não há lua. Então como sabemos o que existe no céu?

- Não há estrelas - respondeu Amanda do carro. - É também por isso que não vemos nada.

- Tens razão. Mas vejo luzes cá em baixo. Os Lange estão em casa. A Geórgia também?

- E talvez para sempre.

- Os Cotter também, mas não se nota muito. Não há sombras a dançar nas janelas nem crianças às cambalhotas. Achas que vão sair-se bem da crise?

- Não sei, depende da Karen e do Lee. Ela diz que sim e que o Lee não vai fazer ondas. Pudera! com tantas provas de infidelidade! Sabes, está a viver com a amante grávida.

- Pelo menos não é a Gretchen. Por falar nela, tem a casa às escuras.

- Espera - observou Amanda, quando o carro se aproximou.

- Espera... Olha ali luz no fundo da sala de estar. Que faz ela na biblioteca até tão tarde?

- Estuda - retorquiu Graham.

- Francês?

- Muitas coisas. Está a fazer um curso por correspondência para ter um grau acadêmico.

Amanda travou ao imaginar os livros que vira em cima da mesa.

- Como sabes?

A voz de Graham chegou-lhe com nitidez.

- Ela disse-me.

- E porque não me disse a mim? - Em vez disso, que fizera Gretchen? Tentara esconder os livros.

- Sente-se intimidada na tua presença. Vá, Mandy, não te ponhas já toda eriçada.

- Não estou zangada. Bem, talvez um bocado. Se quer ser minha amiga, para quê esconder-me isso?

- Tu não o farias, mas ela não tem a tua segurança - retorquiu ele, virando na direcção da garagem.

Amanda estacionou ao seu lado. Quando saiu do carro, já lhe passara a irritação. Os ciúmes não tinham lugar na sua relação com Graham, que era leal e que a amava. Não tinha razões para desconfiar de ninguém, incluindo Gretchen.

Ainda não estavam em casa havia cinco minutos quando o telefone tocou. A primeira coisa que veio à cabeça de Amanda foi que Dorothy piorara depois da sua visita. A julgar pela sua expressão alarmada, Graham devia ter pensado o mesmo.

- Está? - disse, correndo a atender.

Amanda observou-o, procurando sinais enquanto ele ouvia a voz do outro lado do fio. Depois, lançou-lhe um olhar rápido, mas continuou com a mesma expressão alarmada.

- Quando? - perguntou, tenso. - De certeza?

Ao chegar-lhe aos ouvidos uma voz aguda, o coração começou a bater-lhe com mais força. Nunca se perdoaria se o que dissera à sogra a tivesse feito piorar... ou houvesse provocado outro AVC, desta vez mais grave. E, pensou com medo, Graham talvez também não vou já para aí. - Desligou e voltou-se para Amanda: A Gretchen está a perder sangue. Tem medo de ficar sem o bebê.

Por um instante, sentiu-se sem acção. Precisou de algum tempo para perceber. Gretchen? E telefonava a Graham?

Pensando melhor, não. Ela não telefonara a Graham. Ligara para a casa deles e falara com Graham, porque fora ele que atendera o telefone. Tal como fora ele que trabalhara com ela e conquistara a sua confiança o suficiente para Gretchen lhe contar que andava a fazer um curso por correspondência. Tal como fora ele que se mostrara pronto a ajudar, quando Amanda e as outras mulheres lhe tinham virado as costas.

- Temos que a ajudar - prosseguiu ele. - Estamos aqui e não temos filhos para tomar conta. Ela confia em nós. Não tem mais ninguém.

Afastadas as suspeitas, Amanda respondeu com amizade.

- Vamos no meu carro. - Entregou-lhe as chaves e voltou a sair porta fora. Graham levaria o carro até junto delas. Apressou-se a atravessar a rua. Gretchen já se encontrava à porta. A luz do lampião acentuava-lhe a palidez.

Falou em voz sumida e trêmula:

- Estava bem. Muito bem. Depois levantei-me, senti uma dor e vi o sangue.

Rodeando-lhe a cintura com um braço, Amanda conduziu-a na direcção do carro que se aproximava.

- Telefonou ao médico?

- Disse-me para ir ao hospital. Desculpe incomodá-los. Devem ter mais que fazer. É que não sabia a quem mais pedir ajuda.

- Está com dores?

- Contracções - disse mais alto. - Mas é muito cedo. O bebê ainda é pequeno. - Enquanto Graham recuava, apertou o braço de Amanda e prosseguiu num sussurro apressado. - O Graham não é o pai. Nunca, mas nunca houve nenhum romance entre nós. Tem sido um amigo, mais nada. Como estava zangada, não disse.

- Eu sei. - Amanda abriu a porta de trás.

- O Russ e o Lee também não. Nunca faria uma coisa dessas a nenhuma de vocês. - Dobrando-se, fechou os olhos.

Amanda levantou a mão, indicando a Graham, que saia do carro para ajudar, que ficasse onde estava. Quando Gretchen começou a respirar com mais calma, sentaram-na no banco de trás. Amanda instalou-se ao seu lado, dando-lhe a mão para apertar de cada vez que sentia uma dor.

Graham ia depressa. Só havia um hospital na zona, que ele e Amanda conheciam de olhos fechados. Era onde ficava a clínica de fertilidade. Só a idéia já foi suficiente para Amanda sentir um nó no estômago. com determinação, concentrou-se em Gretchen.

- Não vou perder o bebê, pois não? - sussurrou Gretchen a determinada altura.

- Não, se estiver nas nossas mãos. Passado um minuto, perguntou:

- É possível viver com sete meses e meio, não é?

- Claro que sim - volveu-lhe Amanda.

- Mas será pequeno. E se não estiver completamente formado? E se houver lesões cerebrais ou nos pulmões?

- Não pense nisso - implorou Amanda, que havia ainda pouco tempo pensara o mesmo. Não estivera grávida, mas imaginara estar. E preocupara-se, mesmo só imaginando. Por isso, sabia muito bem o que Gretchen sentia.

- Porque virá tão cedo? - murmurou Gretchen. - Passar-se-á alguma coisa?

Amanda tranquilizou-a o melhor que pôde, embora se tratasse de um cego a guiar outro cego.

- Talvez o bebê esteja impaciente. - Tentou pensar noutras possibilidades. - Ou então já está pronto. Se calhar fez mal as contas. - Mas isso não explicava o sangue.

- Não fiz não. Sei quando fiquei grávida. - Recostando-se, sussurrou: - Já perdi tanto! Não posso perdê-lo.

- Chegámos - anunciou Graham, virando para o hospital e dirigindo-se à entrada das urgências.

Num abrir e fechar de olhos, o pessoal de serviço abriu a porta, ajudou Gretchen a sair e sentou-a numa cadeira de rodas. O seu ginecologista, que era o de Amanda, embora não na parte da infertilidade, passou-lhe o braço pelos ombros e disse-lhe que ia correr tudo bem.

Afastada no meio da precipitação, Amanda sentiu uma grande melancolia. Quando Graham apareceu ao seu lado, entreolharam-se. Não pronunciaram uma palavra, mas a mensagem era evidente: Devíamos ser nós. Devíamos ser nós.

Gretchen abandonou-se aos cuidados do médico. Confiara nele desde o princípio, em grande parte porque irradiava confiança, como fazia naquele momento, apesar das perdas de sangue. A confiança, no entanto, não o levou a agir mais devagar. Gretchen entrou e foi logo preparada. Levaram-na de cadeira de rodas para uma sala de operações e deram-lhe uma anestesia epidural. Depois, fizeram-lhe uma cesariana. Visto que não tinha companheiro, Gretchen não fizera os cursos Lamaze e não saberia como respirar correctamente.

O cortinado impedia-a de ver o que se estava a passar, mas como o obstetra era mais alto, Gretchen vigiava-lhe os olhos. Calmos e competentes, pareceram preocupados durante um ou dois minutos, mas talvez fosse da sua imaginação. Dali a pouco, os olhos sorriram e ouviu-se o choro inconfundível de um bebê.

- É um rapaz, Gretchen, e parece-me muito saudável - anunciou o médico. - Ouve-se bem. Ora escute o rapazinho.

Para Gretchen, era o som mais maravilhoso do mundo. Sem saber se havia de rir ou chorar, fez as duas coisas; ou seja, quando lhe levaram o bebê, mal conseguiu vê-lo através das lágrimas. Mas viu o suficiente: um rostinho retorcido, um corpo minúsculo e pernas e braços magrinhos mas com os dedinhos todos. Depois, tiraram-lho, explicando-lhe que iam examiná-lo, limpá-lo e aquecê-lo numa incubadora até determinarem se havia efeitos secundários devido ao nascimento prematuro.

Gretchen queria saber o que isso significava. Mas primeiro, agora que ele estava em boas mãos, precisava de ter a certeza que ia viver.

- Viver? - repetiu o médico com um olhar de malícia. - Ainda está para nascer a doente que vai morrer-me nas mãos por causa de uma hemorragia de nada. Já parou. Agora vamos cosê-la. Viver? Descanse que vai viver muito tempo com o seu rapaz.

Gretchen gostou do que ouviu. Fechou os olhos, sentindo algum desconforto no corpo mas poucas dores, e descontraiu.

Amanda e Graham estavam a espreitar pelo vidro do berçário dos prematuros quando o bebê de Gretchen chegou, embrulhado em cobertores. A enfermeira levantou-o nos braços e articulou as palavras. Amanda sentiu arrepios e exclamou:

- Um rapaz! Que bon!

Graham apertou-lhe a mão que segurava dentro do bolso das calças.

- Dirias o mesmo se fosse uma rapariga.

Amanda estava encantada.

- Olha para ele, tão pequenino!

- Está bem? - perguntou Graham à enfermeira que, dados os fios brancos que tinha no cabelo e o à-vontade com que segurava o bebê tinha, com toda a certeza, muita experiência a ler lábios.

Ela levantou o polegar e levou-o ao pediatra que esperava no fundo da sala.

Amanda observou-o até o médico lhe tapar a vista. Depois, examinou os outros prematuros. Os bebês que nasciam naquele hospital com problemas graves eram transferidos para outros hospitais maiores, o que significava que os que estavam ali eram pequenos mas saudáveis. Viu uma touca cor-de-rosa e outra azul e três fitas amarelas. Uma incubadora tinha um letreiro que dizia TIMOTHY. Um coelho de peluche empoleirava-se numa outra.

- Então? com quem é parecido? - perguntou Graham.

- Não é contigo - replicou Amanda. - Já imaginei um bebê teu um milhão de vezes. E já vi outros bebês OLeary. Este não é.

- Se calhar saiu à Gretchen.

- Não. Os genes O'Leary são dominantes. Os bebês têm todos a mesma expressão.

- Mas este é prematuro.

Amanda levantou a cabeça. Ou ele estava a pô-la à prova ou a provocá-la.

- com quem achas que se parece? - perguntou.

- com o Ben.

- Bem, a careca é a mesma - comentou, soltando uma risadinha. Calaram-se. A excitação da noite, a alegria pelo nascimento de um

bebê, foi-se esvaindo aos poucos. Amanda não precisava de olhar Graham para perceber que ele sentia o mesmo. De pé junto do vidro do berçário, sabendo que aquele devia ser o seu bebê, sentiu o regresso do vazio. Graham teria a mesma sensação? Ao olhar para aqueles bebês nas suas incubadoras, pensaria nas mulheres que os tinham dado à luz? Pensaria que casara com uma que não prestava? Pensaria...

Ao perceber que estava prestes a cair na velha armadilha, estacou de repente. Era perigoso deitar-se a adivinhar. A imaginação já lhe pregara uma grande partida. Não podia tentar adivinhar nem imaginar. Precisava de saber.

- Que sentes? - perguntou baixinho.

Ficou calado por um momento. Depois, meteu as mãos nos bolsos de trás.

- Inveja.

Era uma resposta honesta. Sentia o mesmo.

- E que mais?

- Determinação. - A firmeza do seu queixo demonstrava-o. Se tentarmos uma vez, só mais uma vez, vamos conseguir. - O seu perfil era forte... sim, determinado. Os olhos que a fitaram, no entanto, diziam mais alguma coisa. - E medo. Não é uma palavra bonita, mas é verdade. Não me apetece muito começar tudo outra vez. Não quero perder o que conquistámos nestes últimos dias.

- Olha quem eles são! - exclamou uma voz amável. Emily, a sua especialista, percorria o corredor na sua direcção.

Amanda sorriu, mas não disse nada. Graham também não. Emily inclinou a cabeça para o berçário.

- Estão a tentar ficar ansiosos outra vez?

- Não - respondeu Amanda. - É que está aqui o filho de uma vizinha nossa. Há aqui algum seu?

Emily apontou para o meio da sala.

- Aqueles três de fitas amarelas atadas aos puxadores. Três gémeos-proveta, duas raparigas e um rapaz. São muito pequenos, mas estão bem. - Desviando o olhar dos bebês, encostou o ombro ao vidro do berçário. - A desvantagem do vosso problema é que não sabemos a causa. A vantagem é que, como não a sabemos, podemos tentar muitas coisas. A mais simples é aumentar a dosagem de Clomid.

Amanda não ficou muito entusiasmada com a idéia. A dosagem mais baixa provocara-lhe calores e mudanças de humor e fizera-a inchar. E, segundo os exames, dera resultado. Na verdade, produzira muitos óvulos. O problema era que não tinham sido fertilizados.

Além disso, uma dosagem mais forte de Clomid aumentava o risco de hiperestimulação dos ovários e de desenvolvimento de quistos. Portanto, teria de ser vigiada de muito perto, quase diariamente. Se lhe aparecesse um quisto grande, teria de ser operada.

- Podemos continuar com o Clomid e acrescentar uma injecção de HCG no décimo quinto ou décimo sexto dia do seu ciclo - propôs Emily. - Desencadearia a ovulação.

- A ovulação não é o meu problema - disse Amanda.

- Pois não, mas coordenaria a libertação de óvulos dos folículos. Uma espécie de consolidação do poder de fogo, por assim dizer. Ou então podemos fazer inseminações múltiplas... quer dizer, inseminá-la artificialmente todos os dias ou duas vezes por dia. Também podemos tentar o Humegon, ou sozinho ou com a HCG.

Amanda estremeceu. As injecções de Humegon eram dolorosas. E como o medicamento provocava uma diminuição dos níveis de progesterona, era preciso aplicar injecções de progesterona depois das de Humegon... e tudo isto antes das de HCG. Não era nada agradável. E parecia que os efeitos secundários ainda eram piores.

- Podemos tentar a inseminação intra-uterina ou passar directamente à FIV - sugeriu Emily. - O que quero dizer-vos é que têm muitas opções.

Amanda não queria opções. Queria um bebê. Olhando para Graham, percebeu que era o que ele também pensava.

- Espero ver-vos aqui outra vez - continuou Emily. - Que dizem?

Graham não pronunciou uma palavra. Os seus olhos pousados nos dela pareciam dizer-lhe que concordaria com o que decidisse. Mais, pareciam dizer-lhe que estava com ela, o que lhe deu confiança.

Amanda sorriu-lhe, suspirou e virou-se para Emily.

- Já descansei. Estou pronta.

Gretchen quase não dormiu. Estava muito agitada para dormir. E também muito desconfortável, à medida que a anestesia deixava de fazer efeito. Mas só tomou um analgésico muito fraquinho. Não queria ficar entorpecida. Queria sair da cama o mais cedo possível para ir ao encontro do seu bebê, que só a tinha a ela. Se estivesse a sofrer, queria estar com ele.

Quando perguntou, disseram-lhe que estava bem. Houve uma enfermeira que até o levou ao quarto e a deixou pegar-lhe, mas só por pouco tempo. O seu leite não subira. De resto, ele ainda não conseguia mamar. Depois de chorar a bom chorar ao nascer, agora dormia como um anjinho.

Mas certificou-se de que respirava. Tocando-lhe na boca, no nariz e no rosto, sentiu o seu calor. Roçou-lhe com os lábios na moleirinha. Pousou-lhe a mão ao de leve no peito pequeno e sentiu o movimento. Tocou-lhe na palma da mão e os dedinhos fecharam-se à volta dos dela.

Estava um tanto amarelo, mas parecia que era normal nos bebês prematuros. Não tinha nem um cabelinho e não conseguia ver-lhe a cor dos olhos, mas de certeza que era o bebê mais bonito do mundo. Segurá-lo nos braços fazia-a debulhar-se em lágrimas. Sentia uma emoção tão forte que, ao princípio, até se admirou.

- É a maternidade - disse Amanda quando passou a visitá-la ao meio-dia com um molho de balões. - Pelo menos, é o que ouço dizer. Já tem nome?

- Ainda não. - Escolhera nome para uma rapariga, mas não para um rapaz. Passara a vida a adiar, pensando que talvez a vida desse uma volta e tivesse alguém cujo nome pudesse dar ao bebê. Gosto muito de Benjamin, mas acho que os filhos do Ben iam ficar possessos.

- Faça o que quiser - replicou Amanda.

Gretchen gostou de a ouvir e sentiu-se grata por ela a ter ido visitar. Não devia ser fácil nem para ela nem para Graham.

- Não lhe custa muito vir aqui?

- Não. Adoro bebês. Vir aqui lembra-me quanto.

- Há-de ter o seu bebê. É muito boa pessoa.

- Essas duas coisas nem sempre estão ligadas - observou Amanda. Depois, levantou o queixo. - Mas havemos de ter. De uma maneira ou de outra, havemos de ter. É como diz o Graham citando Ralph Waldo Emerson: "Adote o ritmo da natureza. O seu segredo é a paciência. "

Gretchen deixou as palavras assentarem. Acalmavam.

- Há-de ter o seu bebê - repetiu.

- Por agora, é a Gretchen que tem o seu. Contei à Geórgia e ao Russ, que ficaram todos contentes. Quer que diga a mais alguém?

- Não. Não tenho ninguém. - Olhou para a porta e o coração deu-lhe um salto. Oliver Deeds entrava com um ramo de rosas.

 

Gretchen não queria Oliver Deeds ali, porque ele lembrava-lhe que Ben morrera e que os seus filhos (os seus enteados, por mais absurdo que fosse) não pensariam duas vezes se pudessem pô-la fora de casa só com a roupa que vestia quando o conhecera. Agora tinha um bebê, mas não achava que isso mudasse o que quer que fosse. Aquelas pessoas que diziam tanto ao seu bondoso Ben tinham o coração empedernido.

- Tenho de ir - disse Amanda, tocando-lhe no braço. Gretchen sentiu-se a entrar em pânico.

- Não vá. Fique, por favor.

- Não posso. Tenho de voltar para a escola. Precisa de alguma coisa?

Gretchen abanou a cabeça.

- Obrigada pelos balões.

- Não tem de quê. - com a intimidade de uma amiga chegada, acrescentou: - Depois telefono.

Gretchen assentiu, agradecida, sentindo os olhos marejarem-se-Ihe de lágrimas e um calorzinho por dentro. Quisera uma amiga e não havia melhor do que Amanda.

Mas ela foi-se embora e Oliver, o advogado dos pés à cabeça, de fato escuro e olhar tenso, ficou e deu um passo em frente.

- Os balões são bonitos. Foi muito simpático da parte dela. Gretchen limpou as lágrimas do rosto.

- Sente-se bem?

- Sinto. Foram a Amanda e o Graham que me trouxeram ontem à noite.

- Eu sei. Passei por sua casa hoje de manhã. O Russell Lange viu-me parado à porta e contou-me a novidade. Devia ter telefonado.

- Sei tomar conta de mim.

- Parece que lhe fizeram uma cesariana, não foi?

- Fazem a tantas mulheres! Eu sei tomar conta de mim. E do meu bebê.

Pensativo, Oliver desviou o olhar. Quando voltou a fitá-la, caiu-lhe na testa uma madeixa de cabelo.

- Vi-o. Mostraram-mo. É um bonito rapazinho. Gretchen permaneceu calada.

- Ouça... - começou ele, mas ela recuperou a voz e interrompeu.

- O bebê é meu. Tenho dinheiro que chegue. Posso tomar conta dele. Se o David e o Alan fizerem ondas por eu ter um filho, pode dizer-lhes que lhes darei troco.

- Não farão ondas. Não deixarei.

- E também não preciso da sua ajuda. - Não podia contar com ele, que aparecia e voltava a desaparecer no momento seguinte. Os amigos verdadeiros não eram assim.

- Gretchen, deixe-me explicar. Ela sustentou o seu olhar.

- Não há nada a explicar.

- Não a abandonei, mas a Gretchen era uma cliente. Não devia ter feito o que fiz. Foi muito pouco ético da minha parte.

Pouco ético? Chamava ao seu bebê pouco ético? Chamava pouco ética à ternura, à delicadeza, ao carinho... à paixão que mostrara por ela? Se ele era assim, não queria vê-lo à frente.

Oliver devia tê-lo visto estampado no seu rosto. Ou isso, ou pouco lhe importava. Olhou para o ramo que tinha na mão, carregou o cenho e avançou apenas o suficiente para o pousar na mesinha. A seguir, voltou para junto da porta. Já pensava que se ia embora assim, sem mais uma palavra (e nesse caso chamaria uma enfermeira para deitar fora as flores que lhe levara), quando ele se virou.

- Já escolheu o nome?

- Já. - Decidiu-o naquele mesmo instante. - Benjamin.

- É um nome muito grande para um rapazinho tão pequeno. Benji não era. Tratá-lo-ia por Benji. Nunca conheceria o Ben de Gretchen, mas cresceria na segurança do seu lar. Amanda tinha razão. Alan e David não contavam. Gretchen tinha o direito de fazer o que muito bem lhe apetecesse. Era senhora do seu nariz. E agora tinha amigos. Não precisava de Oliver. Pela primeira vez na vida, tinha amigos.

Graham recusava-se a pensar em Emily, na clínica, comprimidos, mudanças de humor ou masturbação. Recusava-se a pensar em fazer um filho. Pela primeira vez, compreendia os amigos que tinham esperado muito para ter filhos, de modo a terem as esposas só para si. Claro que era uma atitude egoísta, mas que homem não gostava de ser o centro das atenções de uma mulher? Graham gostava. Gostava de jantar com Amanda e fazia tudo para chegar a casa com bastante antecedência. Gostava de a ver fazer o jantar. Gostava de a ajudar a fazê-lo.

Gostava de estar com ela, ponto final. Amanda era linda; sentia orgulho quando o viam com ela. E inteligente; agora que estavam a falar mais outra vez, adorava ouvi-la contar coisas do seu trabalho, perguntar-lhe pelo dele e voltar a querer saber pormenores.

Adorava a intimidade, que permaneceria muito depois de os filhos terem crescido e saído de casa. Quando pensava na velhice, via-se a si e a Amanda no alpendre da casa de férias dos seus sonhos. Talvez estivessem sentados em cadeiras de balanço, talvez nos degraus largos de madeira, gozando o pôr do Sol. Caminhariam à beira-mar e parariam para procurar estrelas cadentes no céu.

Tinham perdido esta intimidade durante algum tempo. Adorava tê-la de novo. com Emily que não os largava, o importante era não a perderem outra vez.

À semelhança de Graham, Amanda não queria pensar em Emily, na clínica, comprimidos, tabelas, calendários e ansiedades, e a época do ano ajudava. Como faltava menos de um mês para acabarem as aulas, andava atarefadíssima, reunindo com pais e alunos. Pondo-lhe em cima as reuniões com os professores, os projectos de serviço à comunidade, as conversas com os finalistas do ano seguinte... e a vontade de chegar a casa às quatro de modo a ter muito tempo para Graham, não lhe sobrava vaga para pensar no próximo passo.

Dorothy foi para casa na quinta-feira, e Amanda achou que deviam ir visitá-la. Graham preferia deixar a mãe pensar por mais um tempo, mas como Amanda se recusava a que ele se afastasse da família, arrastou-o com ela.

Depois, havia Gretchen. Foram buscá-la ao hospital no sábado e levaram o bebê para casa muito bem preso na alcofa que Gretchen comprara meses antes. Amanda devia ter mantido uma certa distância emocional... devia, mas era difícil com um recém-nascido por perto. Só os cheiros do berço novo de madeira, do pó de talco, da loção e das toalhitas já chegavam para a fazer morrer de desejo de ter um filho.

Devia manter as distância, mas não conseguia. Sentia uma atracção irresistível pelo bebê, em parte porque Gretchen não era muito mais experiente do que ela, o que as tornava uma espécie de cúmplices. Por outro lado, também era verdade que qualquer mãe se atrapalharia com um bebê pequenino, nascido seis semanas antes do tempo. Amanda mudava-lhe as fraldas, ajudou a dar a Benji o seu primeiro banho e embalava-o quando Gretchen caía morta de cansaço. Mas não era a única a sentir aquela atracção. Russ ia vê-lo e Geórgia deixava-se ficar horas a fio. As crianças da vizinhança tocavam à campainha para ver o bebê. Até Karen estava curiosa.

- Não consigo perceber com quem se parece - dizia. Parecia precisar de uma desculpa para ficar com ela ao lado do berço.

Amanda não via qualquer necessidade de desculpas. Karen era uma pessoa muito carinhosa. Sendo uma mãe tão experiente, era natural que gostasse de estar com um recém-nascido... qualquer recém-nascido.

Na verdade, havia meses que Karen não andava tão calma. com Lee fora de casa, o azedume fora diminuindo e estava a voltar a ser a mulher que Amanda conhecera. Decidida a ter uma vida independente com os filhos, alugara uma casa de férias para a semana que se seguia ao fim das aulas. Amanda achava a sua atitude muito corajosa.

- Não vejo que seja parecido com ninguém - respondia Amanda, estudando o bebê.

- Se o pai não é nenhum dos nossos homens, então quem é? perguntava Karen.

Amanda tinha a sua teoria, mas esperou que Gretchen se sentisse suficientemente à vontade para confiar nela. De certa forma, aconteceu ao contrário. Na semana seguinte, Amanda estava presente quando Oliver Deeds voltou a aparecer. Se a recusa de Gretchen em recebê-lo não chegasse para se desconfiar que a sua relação não era só profissional, a maneira como olhou para o bebê disse tudo.

Graham também reparou. Estava com Benji ao colo quando Oliver apareceu à porta. Via-se que acabava de sair do escritório em tudo menos nos olhos tristes, embaraçados e indefesos.

Era a primeira vez que o via tão de perto. Tentou procurar Gretchen para lá de Amanda, tentou arranjar um sítio para pousar os presentes que levara, tentou olhar para o chão, as escadas ou a porta, mas acabou sempre a observar o recém-nascido.

- Quer pegar nele? - perguntou Graham. Amanda apressou-se a tirar-lhe os embrulhos das mãos. Antes de ter tempo para dizer que não ou, de resto, outra coisa qualquer, tinha nos braços o bebê, aconchegado numa manta.

Oliver corou.

- Eu... nunca peguei num bebê. - No entanto, pôs os braços na posição adequada e se o recém-nascido sentiu que estava ali um aprendiz, não o mostrou. Tinha os olhos fechados e a pele sedosa. Pensava que ia ficar mais tempo no hospital. Sendo prematuro e isso...

- Examinaram-no de cima a baixo - explicou Amanda. Como é saudável, acharam que estaria melhor aqui.

- Mas é tão pequeno! - observou Oliver. O bebê abriu os olhos e ele sussurrou, nervoso: - Ele vê-me?

- Só muito vagamente. Vê sobretudo formas.

O bebê uniu os lábios e agitou o punho na sua direcção. - Vai chuchar no dedo - comentou Graham.

- Eu também chuchava - observou Oliver, levantando a cabeça muito depressa e corando ainda mais. Porém, não tentou explicar o que dissera. Virou-se de novo para o bebê. - Não pesa muito.

- Dois quilos e trezentos - disse Gretchen das escadas. Viraram-se todos.

Houve um momento de silêncio. Oliver falou então, com o orgulho na voz:

- É muito bonito.

Gretchen assentiu mas ficou onde estava, apoiada ao corrimão.

- Come bem?

Ela voltou a fazer que sim com a cabeça.

- Está a dar-lhe de mamar?

- Estou. Agora preciso dele. - Lançou a Amanda um olhar tanto de exigência como de súplica.

Cheia de cuidados, Amanda tirou o bebê dos braços de Oliver e levou-o a Gretchen, que subiu as escadas sem mais uma palavra.

Os olhos de Oliver seguiram-na. Amanda não pôde deixar de reparar na ternura que espelhavam. Já a vira muitas vezes nos olhos de Graham para não saber o que significava. Estava ela a tentar encontrar a melhor maneira de abordar o problema, quando Graham disse sem rodeios:

- Onde esteve estes meses todos? Oliver nem tentou negar.

- Às escuras - replicou, com os olhos tristes de novo. - Só soube que estava grávida quando foi dos quadros.

- Então... fez o trabalhinho e desapareceu?

Oliver carregou o cenho. A maçã-de-adão dançou-lhe acima do nó de uma gravata que podia ser cinzenta, verde, castanha ou cor de burro quando foge.

- É que não era assim tão simples.

- Porquê?

- Ela era a mulher do Ben, viúva recente e estava sozinha e vulnerável. Além do mais, uma cliente. Eu não devia sentir-me atraído por ela.

- Mas sentiu - disse Amanda, tão irritada como Graham. O problema da identidade do pai fora uma grande preocupação nas últimas semanas. Se Oliver tivesse aparecido mais cedo, teria poupado muito sofrimento a toda a gente.

- Pensava que o que sentíamos era recíproco - defendeu-se ele.

- Pensava que as coisas não seriam tão graves se recuasse e ela tomasse a iniciativa. Mas também não me telefonou.

- Claro que não o faria - retorquiu Graham. - A Gretchen não tem segurança nenhuma quando se trata dos membros do sexo oposto.

Oliver olhou-o de frente.

- Eu também não.

Gretchen desceu minutos depois de Oliver se ir embora. Não precisara nada de dar de mamar ao bebê. Só quisera tirá-lo a Oliver. Sentando-se com cuidado nos degraus de baixo, pousou-o no colo. Benji tinha os olhos nela, mas os dela observavam Amanda e Graham, tentando perceber se estavam desiludidos. Tudo o que viu, no entanto, foi amizade.

Amanda foi sentar-se no degrau abaixo.

- Devia ter-nos dito.

- Não podia. Tinha de ser ele.

- O que aconteceu?

Como começar? Não quisera que acontecesse, não o planeara.

- O Oliver passou aqui muito tempo depois da morte do Ben. Era ele que conhecia os trâmites legais e que sabia entender-se com o Alan e o David. E ajudava-me noutras coisas. Eu nem sabia verificar um extracto bancário! Nunca tive dinheiro para isso antes do Ben. Era uma atada, não era? - perguntou, olhando de relance para Graham.

- Também já fui assim - respondeu ele.

- Ainda é - acrescentou Amanda com um sorriso de ternura.

- Sou eu que verifico os extractos.

Gretchen sentiu-se um pouco melhor.

- Foi uma noite, só uma noite. Esperei que telefonasse depois, mas nada. Talvez devesse ter-lhe telefonado eu, mas tinha a certeza de que não estava interessado. Não queria magoar-me.

- Também já fui assim - observou Amanda, lançando um olhar rápido a Graham, mas sem adiantar mais. Virou-se de novo para Gretchen. - Pensou em telefonar-lhe no Inverno?

- Cem vezes... mil vezes. Mas perdia sempre a coragem. - Tocou na face do bebê, que virou a cabeça procurando-lhe o dedo. Ainda estive com ele algumas vezes por questões profissionais e não me pareceu que quisesse mais alguma coisa. Nessa altura, a gravidez não se notava. E quando começou a notar-se, escondia-a debaixo de uma camisola.

- Ama-o? - perguntou Amanda. Gretchen já fizera dez vezes a mesma pergunta a si própria.

- Na altura, pensei que sim. Achei que tinha qualquer coisa de místico... que o Ben escolhera o homem que iria tomar conta de mim.

- Se as suas palavras já lhe pareciam patéticas a ela, imaginava o que pensariam Amanda e Graham! Acrescentou depressa: - Quer dizer... não é que precise de um homem para tomar conta de mim... - Baixou a voz. - Só que não sabia.

- O facto de saber coloca-a numa posição de força - replicou Graham, atravessando a sala para se juntar a elas.

Gretchen não compreendeu e olhou de um para o outro.

- Agora a Gretchen está mais forte - explicou Amanda. - Podia falar com o Oliver para perceber o que ele quer... para ver se vale a pena.

Gretchen hesitou.

- E se ele disser que não vale?

- Não dirá - comentou Graham. - Está interessado.

- Como sabe?

- Sei.

- Vimos como olhava para o bebê.

- Se for só pelo bebê, então não. - Precisava de alguém que a amasse.

Pensando melhor, não, não precisava. Queria. Era diferente.

- Nunca saberá se não arriscar - rematou Graham.

"É a vida", reflectiu Amanda durante um dos raros momentos em que se permitia pensar no tratamento seguinte. "Dar hipóteses. Arriscar. "

Aprendera uma lição: o mais importante é não deixarmos que o que queremos estrague o que já temos. E ela tinha Graham. Bastava-Ihe olhar para Karen, com quatro filhos e uma estrada espinhosa à frente, para perceber a sorte que tinha. Bastava-lhe olhar para Gretchen, que podia ou não ser amada por Oliver, para dar ainda mais valor ao seu casamento. Sempre sentira que Graham era especial. E percebia que não se enganara a cada dia que passava.

Graham não se cansava de Amanda. Pensara que a paixão se acalmaria depois dos primeiros arremedos a seguir à crise com Jordie, mas era significativo que tivesse continuado após a discussão com Dorothy e que houvesse crescido com o prazer de ver Gretchen e o seu bebê.

Amanda mostrara a sua fogosidade nas últimas semanas. Era de perder a cabeça. Entrava pela porta e ele desejava-a. Descia a rua de carro e ele desejava-a. Na verdade, bastava-lhe telefonar a dizer que ia descer a rua para ele a desejar.

- Incrível - murmurou-lhe junto à garganta, depois de mais um acesso de paixão contra a máquina de secar roupa. Ela chegara a casa, despira a camisola que sujara com café e fora direita à zona de lavagens. Que mais podia fazer senão segui-la?

- Nem me disseste olá - ralhou, com as pernas em volta da sua cintura e os tornozelos cruzados. Embora já tivessem tido prazer, não o largava.

- Dás-me volta à cabeça - disse ele, agarrando-lhe o rosto. Amanda tinha os lábios húmidos e rosados e a face quase tão delicada e macia como a do bebê que vivia do outro lado da rua, mas o que mais o atraía, sempre, eram os seus olhos. Isso não mudara e duvidava que alguma vez mudasse. Quando o contemplavam assim, como se fosse o centro do universo, ficava de cabeça perdida. - Já te disse que te amo?

Ela sorriu, indolente.

. Mas podes dizer outra vez.

- Amo-te. Adoro amar-te. Adoro estar sozinho contigo. Parece novo.

- É. Perdemos e voltámos a achar.

- Mas melhor. - Acreditava nisso. Haviam sobrevivido a uns tempos bem espinhosos. Tinham ficado aprovados no exame ao casamento. Meteu as mãos entre a máquina de secar e o fundo das suas costas. - Se calhar devíamos continuar mais algum tempo.

- O quê? - perguntou Amanda, ainda indolente, ainda sorrindo e observando-lhe a boca.

- Se calhar devíamos esperar mais um mês antes de... tu sabes.

- Hesitou em pronunciar sequer a palavra.

Ela abanou a cabeça com lentidão.

- Disse que precisava de um mês, não de dois.

- Mas digo eu. Quero dois.

- Isso é porque gostas de fazer amor quando te dá na gana.

- É porque tenho medo - desabafou, só percebendo nesse instante. - Tu não?

O sorriso desapareceu-lhe dos lábios. Respirou fundo.

- Claro que tenho medo. Tenho muito medo de que aconteça a mesma coisa, só que será pior, porque é a nossa ultima tentativa. Se fracassar, teremos de tentar outras coisas.

- Não estou a falar só em ter filhos. Estou a falar de nós.

- Eu sei, mas não há como evitar - replicou Amanda, agora muito séria. - Podíamos esperar mais três meses ou mais três anos. No fim, só teríamos mais dificuldade em sermos pais. Tu queres um filho e eu também.

- Podemos adoptar uma criança e já não nos sentiríamos pressionados. De certeza que depois ias engravidar.

- Por enquanto não. Ainda não é tempo de seguir para a adopção.

Ele inclinou a cabeça para trás.

- Meu Deus, não me apetece nada. Amanda esfregou-lhe a testa no pescoço.

- Porque todo o processo é muito frio. - Levantou a cabeça, segurou-lhe o rosto com as mãos, obrigou-o a olhar para ela e falou em voz sedutora: - Temos de o aquecer. Posso fazer isso. Não precisas da Playboy para nada. Eu trato disso. - Metendo a mão entre os seus corpos, tocou-lhe onde ainda estavam unidos. Num abrir e fechar de olhos, Graham desejou-a outra vez.

- Tratas? - perguntou ele em voz rouca.

- Podes crer que sim.

Decidiram-se por um aumento da dosagem do Clomid, uma injecção de HCG e inseminações múltiplas. O acordo a que chegaram com Emily foi que lhe telefonariam quando Amanda tivesse o período e que passariam pela clínica um ou dois dias depois para receberem instruções sobre os medicamentos a tomar e quando e para uma conversa preparatória.

Amanda nem olhou para o calendário. Não precisava. Era muito regular. Teria a menstruação na quarta-feira, telefonaria a Emily na quinta e passaria pela clínica na sexta. Depois, partiria com Graham, que reservara quarto para outro fim-de-semana, desta vez numa pousada na costa do Maine. Estavam determinados a concentrar-se na sua relação, embora seguindo as instruções de Emily. Fariam tudo juntos, desde as ecografias às tabelas das temperaturas, testes de ovulação e produção ou injecção de esperma.

Das outras vezes, ficava sentada na cadeira durante quase todo o dia, não fosse fazer algum movimento que lhe provocasse a menstruação. Agora, desafiava-a a vir. Marcaria o início de uma nova tentativa. Pensando que quanto mais cedo melhor e decidida a apressá-la, não parou desde que chegou à escola de manhã até aos últimos minutos antes de ir para casa. Só se deteve porque viu Jordie Cotter à porta do gabinete. Ainda tinha a perna engessada, mas já podia pôr o pé no chão. Tinha uma canadiana debaixo de um braço e uma mochila a tiracolo no outro.

- Olá, beleza - disse Maddie da gaiola.

- Olá - saudou Amanda com ternura. - Entra.

- Ia sair?

- Tenho sempre tempo para ti. - Fez-lhe sinal para entrar. Não falavam um com o outro desde a noite em que tinham estado na torre.

- Penso muito em ti. Como vai isso?

- Assim assim. - Avançando, indicou o gesso com o queixo.

- Como não posso jogar, não aqueço o banco. Por esse lado, tudo bem. Mas há coisas esquisitas.

- Esquisitas? Referes-te ao teu pai? - Não era a favor de meias palavras quando os factos não podiam ser mais óbvios. Os miúdos percebiam logo.

- Sim, ao meu pai. Vai lá a casa muitas vezes. Até é amoroso com a minha mãe. A Julie acha que vão reconciliar-se.

- E tu?

- Não. - Ficou pensativo. - Aconteceram coisas de mais. Às vezes penso que tenho culpa.

- Nem penses nisso.

- Eles dizem-me o mesmo e que há anos que tinham problemas.

- Julgo que é verdade. Seja como for, têm razão. O que aconteceu entre eles não foi culpa tua.

- A Gretchen continua muito zangada?

- Não. Não é rancorosa. Nem pensa nisso. Está muito feliz com o filho.

- Mas o quadro ficou estragado.

- Há-de arranjar alguma coisa para o substituir. Jordie assentiu e disse baixinho:

- Espero que sim. - Coxeou na direcção da porta. -A Maddie está muito calada.

Amanda sentou-se no canto da secretária com as mãos nas ancas.

- Não tem motivos para dizer palavrões. Estás muito calmo. Vai tudo bem com o terapeuta novo?

Ele parou.

- Tudo. Mas ele não é a Amanda.

- Que elogio!

Jordie virou-se. Os seus olhos encontraram os dela e desviaram-se. Segundos depois, obrigou-os a fitarem-na.

- Devo-lhe muito. O que fez naquela noite foi fantástico. - Referia-se ao tempo que tinham passado juntos em cima da torre.

- Fiz o que tinha de fazer. Foi tanto por ti como por mim.

- Por causa do Quinn? - Quando ela assentiu, continuou: Tenho saudades dele.

- Temos todos.

- Nunca esquecerei as datas. Sabe, de quando morreu e isso. Fez ontem quatro semanas que bebeu a garrafa do meu pai. Parece que já foi há um ano.

- Faz quatro semanas hoje - corrigiu Amanda com doçura.

- Não, foi numa terça-feira. Lembro-me muito bem de onde estava quando me telefonaram a dizer que fora apanhado. Foi o primeiro de uma série de acontecimentos em cadeia.

Amanda não respondeu. Jordie tinha razão: o incidente acontecera numa terça-feira. Como se baralhara assim? Quereria dizer alguma coisa?

Devia ter-se notado no seu rosto, porque Jordie apressou-se a perguntar:

- Sente-se bem?

Tinha palpitações no coração.

- Sinto. - Por força do hábito, visto que tinha a cabeça longe dali, perguntou: - Queres boleia para casa?

- Não. O meu pai vem buscar-me.

Amanda deu graças, porque não ia directamente para casa. Oh, claro que tinha testes de gravidez em casa, mas queria um novo.

Comprou três. Cada um deles era de um laboratório diferente e tinha um modo ligeiramente diferente de usar, mas todos podiam ser feitos a qualquer hora no primeiro dia em que não viesse a menstruação, com uma precisão que rondava os noventa e nove por cento.

Tremia toda quando chegou a casa e estragou uma tira ao usar o lado que não era. Ficou portanto com duas. Usou a primeira, esperou cinco minutos e deu positivo. com medo de acreditar, usou a segunda, esperou os dois minutos indicados nas instruções e viu duas linhas magentas. Estava grávida.

Pousou as tiras lado a lado no lavatório da casa de banho, lavou as mãos, pegou no telemóvel e marcou o número do escritório de Graham.

- Sou eu - disse quando ele atendeu. - Vem já para casa.

Ele ficou imediatamente assustado.

- Que se passa?

Engoliu em seco e tentou dominar-se. Queria que ele visse as tiras com os seus próprios olhos, que sentisse incredulidade, surpresa, êxtase. Apeteceu-lhe gritar: "Conseguimos!" Graham também confundira os dias. Não sabia como o tinham feito os dois.

- Nada. - com cuidado para não se notar que a voz lhe tremia, disse: - Quero só mostrar-te uma coisa.

- Boa ou má?

- Boa.

- Pequena ou grande?

- Graham! Anda para casa.

O carro dele virou para a praceta dez minutos depois. com o coração aos saltos, foi ter com ele à porta, pegou-lhe na mão, subiu as escadas, levou-o à casa de banho e apontou para as tiras. Ele fitou-as e depois a ela. Aproximou-se com curiosidade, examinou uma e a seguir a outra e viu as caixas. Esbugalhou os olhos.

- Meu Deus! - murmurou entredentes, virando-se para ela, agitado. - Conseguimos?

Amanda assentiu.

- Mas hoje...

- Ontem! - gritou ela, incapaz de conter a alegria por mais tempo. - Fizemos mal as contas. A menstruação devia ter vindo ontem.

- Estás grávida!

- Estou grávida! - Naquele momento, o melhor de tudo era o brilho do seu olhar.

Ele pegou-lhe e levantou-a no ar, andou à roda e apertou-a com tanta força que ela pensou que ia rebentar de alegria. Ao pousá-la, baixou-se para o seu rosto.

- Quando foi?

- Numa das cem vezes que fizemos amor nestas duas semanas.

- Mas não sentiste nada. Nem um sinalzinho. E a intuição feminina?

Ela desatou a rir.

- E eu podia sentir fosse o que fosse? Dessas vezes todas, só te senti a ti. Só a ti.

O que queria dizer alguma coisa.

 

 

                                                                  Barbara Delinsky

 

 

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