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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ABRE O TEU CORAÇÃO / James Patterson
ABRE O TEU CORAÇÃO / James Patterson

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ABRE O TEU CORAÇÃO

 

TAL COMO SEMPRE

A Sam e eu estamos sentadas numa praia quase deserta no Lago Michigan, um pouco a norte do Hotel Drake, em Chicago. O Drake está repleto de recordações muito preciosas para ambas, e jantamos na nossa mesa preferida de antigamente. Esta noite preciso de estar com a Sam, porque faz hoje um ano que, bem, aconteceu tudo aquilo que não devia ter acontecido - faz um ano que o Danny morreu.

- Foi precisamente neste sítio que conheci o Danny, Sam. Há seis anos, em Maio.

A Sam é uma pessoa que sabe ouvir e tem uma maneira linda de manter o olhar preso ao meu e está sempre interessada naquilo que tenho para dizer, mesmo quando estou a ser uma chata, como agora. Desde os meus dois anos que sempre fomos a melhor amiga uma da outra, talvez até antes disso. Por isso mesmo toda a gente nos chama uma dupla amorosa, o que é demasiado delico-doce para o nosso gosto. Mas acontece que essa é que é a verdade.

- Sam, estava um frio de rachar nessa noite em que o Danny e eu nos conhecemos, e eu estava com uma constipação horrível. Para piorar ainda mais as coisas, o meu antigo namorado, aquela besta do Chris, tinha-me posto fora do nosso apartamento.

- Esse animal desprezível, repugnante - concordou Sam.

- Nunca gostei do Chris. Sabias?

- E foi então que aquele rapaz simpático, o Danny, passou por aqui no seu jogging e me perguntou se eu estava bem. Estava eu a tossir e a chorar, num estado desgraçado. Respondi-lhe: Achas que estou com ar de quem está bem? Mete-te mas é na tua vida. Se pensas que vou na tua conversa, estás muito enganado. Põe-te a milhas! "

- E soltei uma gargalhada de desprezo, parecida com as da Sam.

- Foi assim que arranjei a alcunha que ele me deu, Milhas. Seja como for, o Danny voltou a passar por aqui na segunda volta da sua corrida. Disse que se ouvia a minha tosse a três quilómetros de distância, lá em baixo na praia. E trouxe-me um café, Sam. Subiu a correr desde a praia com um café quente para uma perfeita desconhecida.

- Sim, mas uma desconhecida muito bonita, temos de admitir. Parei de falar e a Sam abraçou-me.

- Tens passado por tantas coisas. É horrível e injusto. Quem me dera ter uma varinha de condão e fazer com que tudo te corresse bem.

Tirei do bolso das calças de ganga um envelope dobrado e amarrotado.

- O Danny deixou isto para mim. No Havai. Faz hoje um ano.

- Continua, Jennifer. Desabafa. Esta noite quero ouvir tudo o que tens para me contar.

Abri a carta e comecei a ler. Já começava a sentir um sufoco no peito.

Querida, maravilhosa, fantástica Jennifer.

Tu é que és a escritora, e não eu, mas senti que tinha de tentar passar para o papel as emoções que a tua notícia incrível despertou em mim. Sempre pensei que não seria possível fazeres-me ainda mais feliz, mas estava enganado.

Jen, neste momento sinto uma talfelicidade que até me custa acreditar que seja verdade. Sou, sem dúvida, o homem mais feliz do mundo. Casei com a melhor de todas as mulheres, e agora vamos ter o melhor dos bebês. Como é que eu poderia não ser um bom pai, com tudo isto a meu favor ? Hei de ser. Juro.

Amo-te oje ainda mais do que ontem, e não imaginas o quanto te amava ontem.

A mo-te a ti e ao nosso feijãozinho

Danny

As lágrimas começaram a rolar-me pela cara.

- Pareço uma criancinha. Sou uma pateta.

- Não, és uma das mulheres mais fortes que conheço. Perdeste tantas coisas e ainda continuas a lutar.

- Sim, mas estou a perder a batalha. Estou a perder. Já não aguento mais, Sam.

Então a Sam puxou-me para mais junto de si e abraçou-me. E, pelo menos nesse momento, tudo ficou melhor - tal como sempre

 

AS CARTAS

O meu apartamento de três assoalhadas ficava num edifício construído antes da Guerra, em Wrigleyville. O Danny e eu tínhamos adorado tudo nele - as vistas da cidade, a proximidade do centro de Chicago, a maneira como o tínhamos mobilado. Eu cada vez passava lá mais tempo, metida na toca, como diziam os meus bons amigos. Também diziam que eu tinha casado com a minha profissão, que era um "caso perdido", desesperadamente viciada no trabalho, a nova solteirona" e um desafio romântico, - só para citar alguns dos epítetos que me dirigiam por brincadeira, e que melhor recordo. Infelizmente, todos eles eram verdadeiros. E eu ainda poderia acrescentar mais uns tantos à lista.

Andava a fazer um esforço para não pensar no que tinha acontecido, mas era difícil. Durante vários meses depois da morte do Danny, tinha constantemente este pensamento terrível e obsessivo: Não consigo respirar sem ti, Danny.

Mesmo após ano e meio tinha de me obrigar a não pensar no acidente e em tudo o que acontecera a seguir.

Por fim, tinha começado a sair com outros homens - com o Teddy, um editor do Trib, muito alto e magro; o Mike, com a mania do desporto, e que conheci num jogo dos Cubs; o Corey, um encontro casual e que foi um horror. Detestava estes encontros, mas a minha vida tinha de continuar, não é? Tinha muitos amigos: casais, mulheres solteiras, alguns rapazes que eram apenas amigos. A sério. É verdade. Dizia a toda a gente que estava tudo bem comigo, o que era quase sempre mentira, e os meus amigos verdadeiros sabiam muito bem disso.

Os melhores amigos de todos, a Kylie e o Danny Borislow, estavam sempre disponíveis para mim, vezes sem conta; eu gostava imenso deles e devo-lhes muito.

Bem, seja como for, o prazo limite para eu entregar aquela minha maldita crónica para o Tribune já terminara havia três horas e eu estava desesperada. Já tinha atirado três ideias para o cesto do papel para reciclar e estava mais uma vez com a mente em branco. A maior dificuldade para escrever uma crónica com graça para um jornal é que, entre Mark Twain, Oscar Wilde e Dorothy Parker, tudo o que havia de interessante para dizer já foi dito, e melhor do que eu alguma vez seria capaz.

Então lá me levantei do sofá, pus a tocar uma música de Ella Fitzgerald e regulei o ar condicionado para uma temperatura bastante fresca. Bebi um gole de café da chávena que trouxe do Uncorrirzon Ground. Soube-me tããão bem. Há sempre uma esperança nas pequenas coisas.

Depois pus-me a andar na sala de um lado para o outro, vestida com o meu equipamento de escritora: um dos fatos de treino do Danny, da MichiganU. e as minhas peúgas vermelhas da sorte que uso quando escrevo. Segurava um cigarro Newport Liglt, o mais recente de uma série de maus hábitos que adquirira nos últimos tempos. O Mike Rokyo disse uma vez que somos apenas tão bons quanto foi a nossa última crónica, e é essa verdade que me persegue. Isso e a minha editora anoréctica de vinte e nove anos, a Debbie, que já tinha trabalhado como jornalista para um tablóide de Londres e que só usa Verrace e Prada e óculos TIIorgenthal Frederics.

A verdade é que eu me interesso realmente por esta crónica. Esforço-me por ser original, por vezes saio-me bem e consigo entregar o trabalho a tempo, sem falhar.

Por isso não atendera o telefone, que tinha tocado durante horas, constantemente. Até já por várias vezes o tinha amaldiçoado.

É difícil produzir algo criativo três vezes por semana, cinquenta semanas por ano, mas, é claro, é esse o trabalho que o Trib me paga para eu fazer. E, no meu caso, esse trabalho faz parte integrante de mim.

É engraçado a quantidade de leitores que me escrevem dizendo que tenho uma vida fantástica, que gostariam de poder trocar com a minha - espera lá, será que posso aproveitar esta ideia?

O súbito barulho atrás da minha cabeça foi a Sox, a minha gata de um ano com malhas castanhas e amareladas, que derrubou de uma prateleira o livro The Devil in the LYhite City. O que assustou a Euphoria, que estava a dormitar em cima da máquina de escrever em que F. Scott Fitzgerald supostamente escreveu Tender Is tbe Nigbt. Ou algo parecido. Quem sabe se Zelda, a mulher dele, também a usou para escrever Save Me the Last Yaltz?

E quando o telefone voltou a tocar, atendi.

Quando percebi quem era, senti um choque. Relembrei uma antiga imagem de John Farley, um amigo de família lá do Lago Genebra, no Wisconsin. A voz do pastor da igreja vacilou ao saudar-me e tive a sensação estranha de que ele estava a chorar.

- É a Sam - disse ele.

 

Agarrei no auscultador com as duas mãos.

- O que se passa?

Ouvi-o engolir em seco antes de falar novamente.

- Ai, não sei como te hei-de dizer isto, Jennifer. A tua avó teve uma crombose. Não está bem.

- Oh, não! - exclamei, e de imediato dirigi os meus pensamentos para o Lago Genebra, uma localidade de veraneio a cerca de hora e meia a norte de Chicago. Foi no Lago Genebra que passei a maior parte dos Verões da minha infância, algumas das melhores épocas da minha vida.

- Ela estava sozinha em casa, por isso ninguém sabe ao certo o que aconteceu - continuou. - Apenas que está em coma. Podes vir até cá, Jennifer?

A notícia apanhou-me de surpresa. Ainda dois dias antes tinha falado com a Sam. Tínhamos brincado a propósito da minha vida amorosa e ela ameaçara mandar-me uma caixa de biscoitos de gengibre anatomicamente semelhantes a Figuras de homens. A Sam é uma comediante, sempre foi.

Demorei cinco minutos a mudar de roupa e a atirar algumas coisas para dentro de um saco de viagem. Demorei um pouco mais a agarrar a Euphoria e a Sox para uma viagem inesperada.

Logo depois já eu seguia disparada no velho Jaguar a subir a Addison Street, para apanhar a I-94 no sentido norte. O Jagrrar Vanden Plas de 96 é um carro azul-escuro que é uma categoria e era o nosso orgulho e alegria, tanto para o Danny como para mim.

É lindo e tem uma particularidade pouco habitual: possui dois depósitos de gasolina.

Tentava pensar em tudo menos na Sam. A minha avó era a única pessoa que me restava, a minha única família.

A Sam era a minha melhor amiga desde a morte da minha mãe, quando eu tinha doze anos. O casamento dela e do avô Charles era daqueles que me fazia a mim e a toda a gente desejar qualquer coisa que eles já tivessem vivido. O meu avô não era um género de homem muito receptivo, mas, uma vez quebradas as barreiras, era fantástico. O Danny e eu tivemos uma trabalheira para organizar uma grande festa para comemorar as suas bodas de ouro no Drake. Duzentos amigos aplaudiram de pé quando o meu avô de setenta e um anos inclinou o corpo da Sam e a beijou apaixonadamente na pista de dança.

Quando o avô Charles se aposentou, deixando a carreira de advocacia, ele e a Sam começaram a passar mais tempo no Lago Genebra do que em Chicago. Algum tempo depois, já não recebiam tantas visitas. E estas ainda diminuiram mais depois da morte do meu avô, há quatro anos, e de ela se ter mudado permanentemente para a casa do lago. Quando isso aconteceu, as pessoas disseram que a Sam não ia sobreviver muito tempo.

Mas sobreviveu. E tem passado muito bem - até agora. Cerca das 8h 15m cheguei à estrada 50 direção oeste e apanhei-a até à estrada 12, uma secundária com duas vias que vai dar à NN. O Centro Médico de Lakeland fica apenas a uns minutos de distân cia e procurei preparar-me.

- Falta pouco, Sam - murmurei

 

As coisas más acontecem às três de cada vez, ia eu a pensar quando cheguei ao Centro Médico de Lakeland. Depois procurei afastar esse pensamento. Não penses nisso, Jennifer.

Saí do carro e comecei a subir em direcção à entrada principal. Recordei-me de que muitos anos antes tinha ali estado para me retirarem um anzol que ficara preso mesmo acima da sobrancelha. Tinha então sete anos e foi a Sam quem me levou lá.

Assim que entrei tentei orientar-me, entrando no serviço de Cuidados Intensivos em forma de U, com quartos para os doentes nos três corredores. A enfermeira-chefe, uma mulher magra na casa dos quarenta e com óculos de aros cor-de-rosa, indicou- me o quarto da minha avó.

- Estamos muito satisfeitos por ter vindo - disse-me. - A propósito, gosto muito das suas crónicas. Todos nós gostamos.

- Obrigada - respondi, com um sorriso. - É muito amável. É bom ouvir isso.

Atravessei rapidamente o corredor até ao quarto da Sam. Abri a porta de correr e entrei.

- Oh, Sam - murmurei assim que a vi. - O que te aconteceu? Foi horrível ver os tubos nos seus braços e todo o arsenal de equipamentos médicos com aqueles sinais sonoros. Mas pelo menos a Sam estava viva. Embora parecesse mais pequenina e com o cabelo mais branco, e tão frágil como um sonho.

- É a Jennifer - sussurrei. - Agora já aqui estou. Estou mesmo ao pé de ti. - Peguei na mão dela. - Sei que consegues ouvir-me. Agora sou eu que faço a conversa toda. Vou continuar a falar até que abras os olhos.

Alguns minutos depois, ouvi a porta deslizar atrás de mim. Voltei-me e vi o Reverendo John Farley. Tinha o farto cabelo branco despenteado, o sorriso trémulo. Ainda era um bonito homem, embora já curvado.

- Olá, Jennifer - murmurou, e recebeu-me com um abraço caloroso.

Saímos para o corredor e de repente lembrei-me do quanto ele fora tão amigo dos meus avós.

- É bom vê-lo. O que é que lhe disseram da Sam? Ele abanou a cabeça.

- Bem, ainda não abriu os olhos, e isso não é bom sinal, Jennifer. Tenho a certeza de que o Dr. Weisberg poderá dizer-te muito mais amanhã. Tenho estado aqui quase todo o dia, desde que soube.

Depois entregou-me uma chave.

- É para ti. A chave de casa da tua avó.

Voltou a abraçar-me, dizendo em voz baixa que precisava de ir dormir um bocado antes que também ele desse ali entrada como doente. A seguir foi-se embora e eu entrei novamente no quarto da Sam. Ainda não conseguia acreditar que isto tinha acontecido.

Ela sempre fora tão forte, raramente adoecia, era sempre ela quem cuidava de toda a gente - especialmente de mim. Fiquei sentada durante um grande bocado a ouvir a sua respiração, a olhar para o seu rosto tão bonito, a recordar todas as vezes que eu tinha vindo ao Lago Genebra. A Sam sempre me fizera lembrar a Katharine Hepburn, e tínhamos visto juntas todos os seus filmes, embora ela negasse veementemente qualquer semelhança entre as duas.

Sentia-me tão assustada! Como é que podia perder a Sam agora? As lágrimas começaram novamente a correr-me pela cara.

- Merda! - exclamei baixinho.

Esperei até conseguir controlar-me um pouco e então aproximei-me dela. Beijei-lhe as duas faces e fiqùei a olhar para o seu rosto. Continuava na esperança de que abrisse os olhos, que falasse. Mas não o fez. Ai, por que razão isto estava a acontecer?

- Vou voltar para a tua casa. Panquecas para o pequeno-almoço

- sussurrei. - Venho ver-te amanhã de manhã. Estás a ouvir-me? Venho ver-te de manhã. Antes de mais nada, e bem cedinho.

Uma das minhas lágrimas caiu na face da Sam, mas apenas lhe escorreu pelo rosto.

- Boa noite, Sam.

 

Pouco ou nada recordo do regresso do Centro Médico de Lakeland até à Knollwood Road, no Lago Genebra. De repente encontrei-me ali, na casa da minha avó, que senti incrivelmente familiar e segura.

Um século a servir de estacionamento para os carros tinha des gastado a relva sob um velho carvalho no pátio lateral, onde arrumei oJaguar. Desliguei a ignição e permaneci um ou dois minutos sentada, na esperança de me sentir melhor antes de entrar em casa.

À minha esquerda, o relvado descia até à linha da costa. Via o longo pontão branco sobressaindo da superfície do Lago Genebra, vítrea e iluminada pelo luar. A água servia de espelho ao céu salpicado de estrelas.

À minha direita encontrava-se a velha casa de cor branca, reves tida de madeira e com alpendres a toda a volta, erguendo-se à altura de dois pisos assimétricos com quartos acrescentados à construção original e com janelas salientes sobre o telhado. O lar, doce lar dos meus avós. Conhecia todos os cantos e recantos da casa e a vista de cada alpendre e de cada janela.

Desapertei o cinto de segurança e saí do carro para o ar húmido de Verão. E foi então que chegou até mim a fragrância dos lírios casa blanca. Eram os nossos preferidos, meus e da Sam - o deleite do jardim, onde tínhamos passado tantas noites sentadas no banco de pedra a sentir o aroma das flores, a contemplar o céu.

Era aqui que ela me costumava contar histórias sobre o Lago Genebra - como ele congela de leste para oeste, o que aconteceu quando estavam a escavar o solo para construir o campo de golfe e descobriram um cemitério.

A Sam sabia histórias a respeito de tudo e ninguém sabia contá-las como ela. Foi isso que fez de mim uma escritora. Aqui mesmo, nesta casa, e a Sam foi a minha inspiração.

Subitamente, senti-me destruída. Não sustive mais as lágrimas que até aí conseguira reprimir. Deixei-me cair de joelhos no chão de pedra da zona de estacionamento. Murmurei o nome da Sam. Tive o pensamento horrível de que ela poderia nunca mais voltar a esta casa. Não conseguia suportar essa ideia.

Sempre me considerei uma pessoa forte, e agora isto. Parecia que alguém estava empenhado em destruir-me. Pois bem, tal não ia acontecer.

Não sei quanto tempo ali fiquei, no parque de estacionamento. Levantei-me, abri o porta-bagagem, pus o saco de viagem ao ombro e dirigi-me para casa com os gatos. Estavam a miar nas suas caixas de transporte e preparava-me para os soltar quando vi uma luz acender-se numa casa a cerca de cem metros mais abaixo, na direção da margem. Um segundo depois a luz apagou-se.

Tive a sensação de que alguém estava a observar-me. Mas quem é que sabia que eu estava ali?

Nem mesmo a Sam.

 

A casa da Sam era para mim o melhor local do mundo, o mais são, e sempre o mais seguro - seja como for, até esta noite.

Agora tudo parecia desabar. A cozinha estava às escuras, por isso liguei o interruptor. Depois pousei as gatas e abri as portas das caixas.

Elas deram um salto para fora como cavalos de corrida a sair da barreira. A Sox é uma mistura de gata de rua com uma pequena dose de siamesa ruidosa. A Euphoria é toda branca, tem o pêlo comprido, olhos verdes e uma natureza tranquila. Quando fui dar de comer às duas, as minhas mãos ainda tremiam devido à sobrecarga emocional.

A seguir percorri todas as divisões, que permaneciam inalteradas. Um soalho de madeira dura polida, com as tábuas presas por meio de pregos de cabeça quadrada. Uma quantidade caótica de plantas de interior enchendo completamente a janela de sacada da sala de jantar. Uma vista espantosa sobre o lago. Livros espalhados por toda a parte. Bel Canto. O livro de memórias da rainha Noor. A Sbort History of Nearly Everytbing.

E os artefactos que a Sam e eu adorávamos: pinças de gelo antigas, do tempo em que parelhas de cavalos transportavam blocos de gelo para Milwaukee e para Chicago; velhos sapatos para a neve; pinturas das macieiras silvestres que rodeavam o lago e da antiga estação de caminho-de-ferro.

Soltei um longo suspiro. Esta é que era à minha verdadeira casa, mais do que qualquer outra, principalmente agora que o Danny partira do nosso apartamento em Chicago.

Subi com o saco de viagem para o meu quarto", com a sua vista sobre o lago.

Ia a pousar o saco no toucador quando vi que ele já estava ocupado.

O que é isto?

Estavam ali uns doze maços de envelopes, provavelmente num total de cem, talvez mais. Todos eles numerados e dirigidos a mim.

O meu coração começou a bater com força quando calculei de quem eram as cartas. Durante anos, tinha pedido à Sam que me contasse a sua história. Queria ouvi-la e gravá-la para que os meus próprios flhos a ouvissem. E agora aqui estava ela. Ela saberia o que ia acontecer-lhe? Ter-se-ia sentido doente?

Nem me dei ao trabalho de me despir. Enfiei-me nas dobras macias dos cobertores e pus no colo uma pilha de cartas.

Olhei para o meu nome, escrito a azul. A letra tão familiar da Sam. Depois voltei o primeiro envelope e, cuidadosamente, abri-o.

A carta que continha estava escrita num papel lindo, no tom de linho branco.

Respirei fundo e reparei que estava a tremer quando comecei a ler.

 

Querida. Jennifer,

Acabaste de partir, depois do nosso último fim-de-semana a duas" e tenho o coração repleto de ti. Na realidade, decidi escrever-te isto quando estávamos a despedir-nos junto ao carro. Foi uma ideia que me surgiu.

Estava a olhar-te nos olhos e fui surpreendida por um sentimento tão intenso que causava dor física. Pensei na proximidade que há entre nós, que sempre houve, e como seria uma pena, quase uma traição à nossa amizade, se não te contasse algumas coisas sobre a minha vida.

Por isso tomei uma decisão, Jen, a de te contar segredos que nunca antes contei a ninguém.

Alguns são bons; outros poderás achar, bem, acho que chocante. é a palavra certa.

Estou agora no teu quarto, a olhar para o lago, a beber uma caneca daquele chá de hortelã muito intenso, de que ambas gostamos, e sinto-me feliz ao imaginar-te a ler estas cartas, umas tantas de cada vez, da mesma maneira como estou a escrevê-las. Consigo ver o teu rosto enquanto escrevo, Jennifer. Consigo ver o teu

sorriso.

Neste preciso instante, estou a pensar no amor: aquele amor ardente e louco que nos faz sentir o peito a vibrar e o coração a bater com toda a força. Mas também naquèle amor mais estável que vem de conhecermos profundamente o outro e de nos darmos a conhecer. O que havia entre ti e o Danny.

Acho que acredito nestes dois tipos de amor; ambos sentidos em simultâneo e pela mesma pessoa.

Neste momento deves estar a pensar por que razão estou a falar do amor. Estás a enrolar o cabelo com os dedos, não estás?

Não estás, Jennifer?

Quero, preciso, de falar contigo sobre o teu avô e eu, minha querida. Por isso aqui vai.

Nunca amei verdadeiramente o Charles.

 

Agora que já escrevi aquela frase difícil e tu tiveste de a ler. Por favor observa com atenção esta velha fotografia a preto e branco que prendi à carta com um clipe. Foi tirada no dia em que o rumo da minha vida mudou para sempre.

Lembro-me que foi numa manhã húmida, no mês de Julho. Sei que havia humidade porque o meu cabelo ficou todo encaracolado, com aqueles estúpidos caracóis à Shirley Temple que eu na altura detestava. Vês os frascos de boticário do lado de dentro da montra que está atrás de mim? Eu estava em frente da farmácia do meu pai, com os olhos semicerrados por causa do sol. Tinha um vestido azul pálido. Repara na minha pose com as mãos nas ancas e o sorriso tranquilo. Era assim que eu era. Confiante. Um pouco avançada para a época. Ingénua. Cheia de potencial para ser o que eu quisesse. Ou convencida disso.

Eis o que estava a pensar nessa ocasião.

A minha mãe tinha morrido alguns anos antes e nesse Verão era eu que estava a tomar conta da loja. Mas no ano seguinte ia deixar o Lago Genebra, para ir para a Universidade de Chicago e eventualmente ser médica. Isso mesmo, tencionava ser obstetra. E sentia-me orgulhosa de mim mesma porque me esforçava para conseguir realizar esse sonho.

Depois de esta fotografia ter sido tirada, entrei atrás do meu pai na loja acanhada e pouco iluminada. Varri o chão de madeira com

um produto de limpeza que evita que o pó se levante e coloquei os jornais em cima do irradiador, junto à porta.

Estava a passar uma esponja pelo balcão de mármore onde servíamos refrigerantes, quando a porta se abriu e voltou a fechar-se, batendo com estrondo.

Poderia dizer com exatidão que toda a minha vida mudou naquele instante, com aquele estrondo!

Ergui o olhar, mal-humorada, e os meus olhos ficaram presos aos de um jovem lindíssimo. Num instante, reparei em todo ele: estava coxo, e perguntei a mim mesma por que razão; usava roupas caras, o que provavelmente queria dizer que estava a passar férias junto ao lago, era um veraneante; olhava-me intensamente - como um tiro certeiro ao coração.

Continuámos de olhos nos olhos enquanto ele se dirigiu lentamente até ao balcão e se sentou num dos bancos giratórios. Visto de mais perto, não era de uma beleza convencional. Tinha o nariz um pouco largo demais e as orelhas um bocado salientes. Mas o cabelo era negro como o azeviche e tinha uns olhos azuis-escuros e uma boca bonita. Foi precisamente isto que pensei. Ainda hoje me lembro.

Anotei o que pediu para almoçar. Depois obriguei-me a mim mesma a voltar-me de costas e preparei-lhe um sanduíche de ovo com alface, sem cebola e com uma dose grande de maionese no prato.

Espevitei o lume da cafeteira, sentindo os olhos dele em mim. Quase conseguia sentir vapor a sair da minha nuca.

Nessa manhã tinha imensas coisas para fazer.

Havia caixas para desempacotar com elixir para os dentes, pasta dentífrica, espuma para a barba, e o meu pai ainda me tinha pedido que o ajudasse nas medições para preparar os produtos das receitas médicas.

Mas eu permanecia ali colada ao balcão, porque o rapaz não se ia embora. E, para dizer a verdade, eu também não queria que ele fosse.

Finalmente, afastou o prato e pediu mais um café.

- És muito bonita, sabias? - perguntou, enquanto eu lhe deitava mais café na chávena. - Acho que já nos encontrámos.

Talvez num sonho que sonhei? Ou talvez eu esteja tão desejoso de te conhecer, que quaisquer palavras me saem da boca.

- Sou a Samantha - consegui articular. - Nunca nos vimos

antes

Ele dirigiu-me um sorriso resplandecente.

- Olá, Samantha. Sou o Charles - respondeu, estendendo-me a mão. - Queres fazer um favor a um militar? Janta comigo hoje.

Quem é que podia recusar?

 

Nessa noite, o Charles e eu jantámos na Estalagem do Lago Genebra, um local maravilhoso e elegante, onde tu e eu ainda fazemos almoços de duas e três horas. Eu nunca tinha lá entrado e fquei deslumbrada com a grandeza, as luzes, a classe. (Lembra-te de que tinha apenas dezoito anos.) Havia um tremeluzir de velas, um tinido de copos, criados silenciosos que serviam pratos magnífcos, e sempre a trazerem mais vinho - e também champanhe.

O Charles parecia ter muito mais de vinte e um anos e eu sentia-me fascinada com tudo o que ele dizia e com tudo o que não disse nessa noite. Depois de muito ter insistido com ele, contou-me que fora atingido por uma bala na Sicília e mencionou também um ferimento mais profundo, sobre o qual me falaria um dia.

Achei irresistível esta promessa de intimidade futura vinda do Charles.

Aos dezoito anos, eu era muito impressionável. Era uma rapariga de uma cidadezinha e estar com o Charles abria-me um mundo muito mais vasto, que me intrigava. Como poderia não ser assim?

Jen, tens de compreender que, durante a guerra, a vida era sentida como algo de muito valioso. O irmão da Gail Snyder tinha sido morto em Pearl Harbor, o meu tio Harmon tinha ficado ferido, e quase todos os rapazes que eu conhecia se encontravam a lutar além-mar. (Digo rapazes, porque o eram quase todos eles, e para mim a guerra foi sempre isso - um lugar para onde os rapazes são enviados para morrer.) Parecia milagre o Charles ter regressado à pátria e termo-nos conhecido nesse Verão.

Saímos todas as noites durante um mês e meio e geralmente ele também aparecia para almoçar. Recuperei a minha vitalidade e comecei a divertir-me mais do que alguma vez o fizera.

O Charles conversava com desenvoltura sobre todos os países da Europa onde já tinha estado e encantava-me cantando canções populares americanas com um sotaque francês. De vez em quando estava de mau humor, mas na maior parte do tempo tudo me parecia um sonho tornado realidade. Ele era tão bonito e tinha um espírito tão vivo, e era herói de guerra.

Então, numa noite de luar junto ao lago, o Charles murmurou que me amava e sempre o faria: estava tão convicto disso que me convenceu. Quando me propôs casamento, nove semanas depois de termos saído pela primeira vez, eu quase subi às nuvens. Dei um grito, e ele interpretou-o como um sim. Então beijou-me com ternura e enfiou-me no dedo um anel com um diamante talhado em esmeralda. Ai, senti-me a rapariga mais feliz do mundo!

Casámos no fim de Setembro, num dia em que o Sol tão depressa brilhava intensamente como logo a seguir desaparecia por detrás das nuvens de algodão cinzento. A luz alternada era como que um pano que descia entre os actos de uma peça de teatro; e a própria festa do casamento parecia uma deslumbrante produção da Broadway. Eu estava louca pelo Charles. Tudo me parecia um sonho, mas um sonho maravilhoso.

A cerimónia teve lugar no Country Club do Lago Genebra. Nós não éramos sócios e o meu pai não tinha possibilidades de pagar um copo d'água daqueles, mas os Stanford tinham e pagaram, por isso deixámos a maior parte das decisões ao critério dos meus futuros sogros.

Mas o meu pai tinha chegado a um acordo com a sr.a Sine, que trabalhava na cidade e me fez um vestido de seda branca lindíssimo. Era subido até ao pescoço, abotoado atrás com dúzias de botões e ainda mais botóes nas mangas até aos punhos, e tinha uma saia comprida e ampla que me chegava aos pés.

Tu conhece-lo bem, Jen, porque o usaste quando casaste com o Danny.

Ainda tenho tudo na memória. O country club, todos os nossos convidados, o Charles com o seu cabelo negro liso penteado para trás, a postura muito direita. O meu pai levou-me até ao bonito noivo. Foi um juiz do Supremo Tribunal do Illinois que celebrou o casamento. Timidamente, lá pronunciei os votos solenes, com toda a minha convicção.

O Charles e eu trocámos as alianças e a seguir ele ergueu-me o véu e beijou-me. Houve brindes e aplausos, e toda a gente saiu do edifício do country club e se espalhou pelos relvados. Junto à margem do lago tinham sido armadas tendas brancas, que ondulavam com a brisa. Foi servido o melhor banquete que o dinheiro pode comprar, enquanto uma conhecida banda de música tocava Benny Goodman e Glenn Miller.

Metade dos convidados tinham modos delicados e vestiam roupas confeccionadas em Chicago e Nova Iorque; os meus amigos e a minha família levavam os seus melhores trajes domingueiros e sentiam-se um pouco retraídos. Mas o champanhe fez a sua magia. Dançámos sobre a relva, e grandes bandos de gansos em migração atravessavam o céu. As minhas amigas rodopiavam à minha volta à medida que o Sol ia descendo no horizonte e diziam-me que todas me invejavam. Compreendi o que queriam dizer e tive de concordar.

Tudo era absolutamente perfeito, Jennifer.

Ou eu assim acreditava nessa noite gloriosa, a noite do meu casamento junto ao nosso lindo Lago Genebra.

 

Li apenas algumas cartas, conforme me tinha sido pedido. Depois adormeci vestida, sem dúvida a sonhar com a Sam, no passado e no presente. Acordei com uma vaga sensação de pavor, como se tivesse sido sacudida por um pesadelo horrível, uma fantasia não da minha escolha.

Demorei um momento para localizar as paredes de tom verde-maçã e a manta macia de rriodir sobre as minhas pernas, mas depois percebi. Estava em casa da Sam. Era suposto sentir-me aqui segura e protegida, e também feliz. Sempre fora assim no passado.

Senti um peso no peito - a Sox, num sono profundo. Tinha acabado de afastar a gata quando um grito agudo e arrepiante atravessou as finas vidraças da janela do meu quarto. Estaria alguém a ser assassinado lá fora? É claro que não - mas que barulho horrível era aquele?

Dei um salto até à janela, afastei a cortina e espreitei para o pátio da frente. Era de manhã cedo.

Não conseguia ver grande coisa pela janela, quase só sombras e pedaços de neblina que vinham do lago. Uma fila de casas com ripas, estendendo-se para sul. A seguir vi e ouvi um homem a gritar com a exuberância de um miúdo de dez anos. Ia a atravessar o relvado de uma casa a cerca de cem metros, na direcção da linha de água.

O homem que ia a correr atravessou o relvado com rapidez e agilidade, transpôs todo o comprimento do pontão de aspecto frágil e pintado de branco e, sem abrandar o passo, mergulhou na água pouco profunda do lago.

Que belo mergulho. E que cena tão estranha para ainda tão cedo de manhã.

Fiquei a observá-lo um ou dois minutos, à medida que ele se afastava a nadar em estilo livre uente, até desaparecer na neblina. Nadava bem, de forma graciosa, e ao mesmo tempo vigorosa. Fez-me lembrar o Danny. Também nadava muito bem.

Voltei costas. Já estava desperta, por isso despi a roupa do dia anterior e enfiei umas calças de ganga lavadas e uma swedtsbirt azul do Cubs, que estavam ao de cima no meu saco de viagem. Peguei nas cartas da Sam, que tinham caído para o chão. Lembrei-me da frase: Nunca amei verdadeiramente o Charles." Ainda não conseguia aceitar essa ideia. Eu tinha amado tanto o meu avô! Como era possível que a Sam não o tivesse amado?

Desci para a cozinha de carvalho-ouro tão familiar, onde começara tantas das minhas manhãs de Verão. Fiz café e telefonei para o hospital para saber da Sam e para me certificar de que o médico dela podia receber-me mais tarde, durante a manhã. A Sam continuava estável. Mas ainda não abrira os olhos.

Abri e fechei as portas dos armários da cozinha tão minha conhecida, preparando o meu pequeno-almoço: cereais, sumo de laranja, uma chávena de café, tostas de trigo integral com manteiga doce. Dei de comer às gatas - e espreitei para ver se o nadador já tinha voltado. Não tinha. Talvez tivesse sido fruto da minha imaginação.

Enquanto bebia lentamente o resto do café, ia observando o Lago Genebra. Meu Deus, como era bonito! O nevoeiro da manhã já tinha levantado um pouco. E o que eraaquilo? O nadador estava a içar-se para o pontão e a sacudir a água do corpo com os lados das mãos. Reparei numa coisa que não tinha visto antes. Estava nu.

Bem, tinha um corpo decente, fosse ele quem fosse. Obviamente, ele também gostava do seu corpo. Narcisismo masculino típico, para não dizer irreflexão.

- Grande traste! - resmunguei.

Talvez dez minutos mais tarde, o Jaguar ronronava suavemente debaixo do carvalho. Pousei no banco ao meu lado um grande ramo de flores acabadas de colher. Fiz-me à estrada para ir ver a Sam. Tinha algumas perguntas para lhe fazer.

 

Consegui poupar alguns minutos aos quinze que demoraria habitualmente para chegar ao hospital. Assim que cheguei, encaminhei- me para os Cuidados Intensivos. As visitas já estavam a juntar-se ao pé da sala das enfermeiras, mas eu dirigi-me a um dos médicos. O Dr. Mark Ormson pediu desculpa, mas disse-me que eu tinha de esperar. O médico da Sam estava a examiná-la nesse momento.

Havia uma máquina de café na sala de espera, numa esquina. Inseri as moedas e estava a pensar que precisava de ver a Sam, mas não precisava de mais café.

Pelo canto do olho, vi um homem com cerca de setenta e cinco anos, bronzeado, com uma barba bem aparada. Ele acenou-me, depois levantou-se de uma das cadeiras de plástico ligadas umas às outras e dirigiu-se a mim. Era Shep Martin, o advogado da Sam e seu vizinho no lago.

Sentámo-nos, e quando ele começou a falar da Sam, era óbvio que estava tão admirado e chocado com o estado dela como todas as outras pessoas pareciam estar.

- Há quarenta anos que gosto imenso da sua avó. Sabe, foi precisamente aqui neste hospital que a conheci.

O Shep contou-me uma história que me fez sentir arrepios a percorrerem-me as costas e o pescoço.

- Uma noite há cerca de quarenta anos, Jennifer, eu encontrava- me fora da cidade quando soube que o meu pai tinha sofrido um acidente de automóvel. Cheguei ao hospital na manhã seguinte e deparei-me com uma mulher que nunca tinha visto sentada ao lado do meu pai, gravemence ferido. A mulher estava a segurar a mão dele. Fiquei sem saber o que dizer.

Felizmente, a Sam foi a primeira a falar. Explicou que tinha ido visitar uma amiga na noite anterior. O seu avô estava fora. Ela ia a passar pelo quarto do meu pai quando uma enfermeira saiu. A enfermeira pensou que ela era a minha irmã, Adele. Agarrou-a por um braço e levou-a para junto do meu pai, dizendo O seu pai está a chamar por si ".

O meu pai estava semiconsciente, ou pior. Nunca se apercebeu de que a Sam era uma estranha e ela deixou que ele pensasse assim. Ficou toda a noite com o meu pai - só porque ele precisava de alguém.

Quando Shep terminou a sua história, ouvi alguém chamar o meu nome e fiquei um pouco sobressaltada.

Voltei-me e vi um médico que estava de pé à entrada da sala de espera. Era Max Weisberg, louro e barbeado de fresco, vestindo um equipamento verde e segurando um registo à sua frente. O Max é um pouco mais velho do que eu, mas conheço-o do lago, desde que éramos miúdos.

A sua expressão estava desoladoramente séria quando se dirigiu até mim e me estendeu a mão.

- Jennifer, ainda bem que veio. Pode entrar agora, para ver a sua avó.

 

A caminho do quarto da Sam, Max Weisberg cespondeu a quase todas as minhas perguntas mais prementes, mas depois disse-me que fosse puxar por ela. Ainda levava nos braços as flores colhidas de fresco quando cheguei ao pé da cama da Sam e me baixei para que ela pudesse cheirá-las.

- Olá, é a Jennifer. Aqui estou para te massacrar. Hei-de con tinuar sempre a insistir até me dizeres para parar - comecei.

- Toda a gente da cidade tem perguntado por ti. Querem que fiques boa imediatamente, se não antes. Sentimos muito a tua falta, Sam. A propósito, estou a falar pela cidade inteira... Mas mais do que qualquer outra pessoa, sinto saudades tuas.

Descobri um sítio bom para pôr as flores, no peitoril da janela junto à cama.

- Recebi as tuas cartas. Era difícil não as ver, não era? Aproximei-me e toquei-lhe no rosto, depois dei-lhe um beijo.

- Obrigada por partilhares as carcas comigo. Prometo que não vou lê-las todas de uma vez, embora tivesse vontade.

Olhei fixamente para a cara da Sam. Pensava que conhecia tudo sobre a minha avó, mas era evidente que não. Ela ainda era tão bonita, de uma beleza autêntica. Os meus olhos recomeçaram a chorar e senti uma dor no meio do peito. Por um momento, Fquei sem fala. Gostava tanto dela! Ela e o Danny eram os meus melhores amigos, os únicos que realmente amara. E agora tinha de acontecer isto.

- Deixa-me concar-te a ti uma história - disse eu, por fim.

- Isto remonta a quando eu tinha qua: ro ou cinco anos. Costumávamos ir de Madison para o lago uma meia dúzia de vezes cada Verão. Essas alturas junto ao lago é que eram para mim o Verão.

Lembras-te, Sam? Quando nos vínhamos embora, no final de cada visita, ficavas no alpendre e exclamavas "Adeus, gosto muito de todos vós". E eu debruçava-me da janela do carro e respondia "Adeus, avó, também gosto muito de ti!" O que não sabes é que eu ia a repetir essa frase durante todo o caminho de regresso a casa: "Adeus, avó, gosto muito de ti. Adeus, gosto muito de ti." Gosto mesmo, Sam. Consegues ouvir-me? Gosto tanto de ti! E recuso-me a dizer-te adeus. "

 

Detestava ter de deixar a Sam, mas tinha combinado um almoço e não queria faltar ao encontro. Deixei o parque de estacionamento do hospital e pouco depois já seguia pela rua principal da cidade.

O Lago Genebra parece uma aldeia de brinquedo, só que em tamanho natural, e raramente encontrei alguém, com exceção de grandes cínicos, que não ficassem encantados com ela. A rua larga e movimentada encontra-se ladeada de restaurantes muito simpáticos e bonitas lojas de antiguidades, tendo por fundo o lago resplandecente.

Parei nos semáforos e fiquei a observar as pessoas que caminhavam pelo passeio, em grupos alegres, tal como nas minhas recordações de Verões recentes. Era assim que eu costumava andar com o Danny. Ai Dany, Danny, quem me dera ter-te aqui!

Estacionei em frente do que fora a antiga farmácia do meu bisavô e entrei nesse espaço fresco. John Farley estava sentado à minha espera, num dos pequenos compartimentos forrados de cabedal vermelho, ao fundo da loja. Aparentava grande vitalidade, com o seu farto cabelo branco, e trazendo uma camisa desportiva e calças de caqui.

Levantou-se quando me viu.

- Estás linda como o diabo! - exclamou, sorrindo.

- Isso é sério; vindo de um perito em Inferno - respondi, sorrindo pela primeira vez nesse dia.

Enquanto que muitos sacerdotes parecem ter aprendido as lições da vida através dos livros, o John mantinha-se tão a par da

realidade como um bom psicoterapeuta de Chicago. Pedimos tostas de queijo e batidos de chocolate a uma adolescente que não fazia ideia de que eu estava a ver o balcão através de um filtro antigo cor de sépia, recordando a descrição da Sam de quando conheceu ali o meu avô.

- Que tipo de homem era o meu avô? - perguntei ao John depois de nos terem trazido o almoço.

- Era um óptimo advogado, que aldrabava no jogo do golfe, e um bom chefe de família. Era o que podíamos chamar um homem respeitável.

- Foi precisamente aqui que o Charles e a Sam se conheceram

- disse eu. - A menos de três metros de onde estamos sentados. O John deve ter notado em mim uma sombra de tristeza. Estendeu os braços e pegou nas minhas mãos.

- Quando penso no teu avô, o que me vem logo à ideia é que ele não suportava sujar a roupa, Jennifer, mas estava sempre lá fora no pátio a alisar a terra com o ancinho ou a remover pedras para ajudar a tua avó. Ou a empilhar lenha ou a tentar reparar o automóvel. Entretanto, ela cuidava dele. Cozinhava aquilo de que ele gostava. Dava-lhe ânimo. À sua maneira, eram dedicados um ao outro.

Acenei afirmativamente e perguntei a mim mesma se ele iria contar-me toda a história.

- E a Sam? Que espécie de mulher era?

John Farley esboçou um sorriso deslumbrante.

- A tua avó é a pessoa mais forte que eu conheço. Tenho a certeza de que vai safar-se bem, Jennifer. É uma vencedora.

 

Nessa tarde estava eu de novo em casa da Sam, e tentava não me deixar abater pelos acontecimentos. Estava a pensar fazer um dos famosos bolos loucos" da Sam e depois comê-lo codo sozinha. O enorme carvalho em frente da casa lançava uma ténue sombra pelo pátio. Tal como sempre. Um casal passeava pelo carreiro que circundava o lago; barcos à vela sulcavam a água, arrastados pelas suas velas coloridas.

Um homem idoso de faces rosadas estava sentado numa cadeira de rodas à beira da água e atirava uma bola de ténis verde par um cão castanho arraçado de terrier. De todas as vezes o cão ia buscar-lhe a bola. Por fim o homem viu-me e, como fazem sempre as pessoas por aqui, acenou-me.

Acenei-lhe também e vim para dentro. Voltei para o alpendre da frente trazendo um grande copo de limonada e um maço de cartas da Sam.

Havia agora tantas coisas que gostaria de saber acerca da Sam e do meu avô. Nunca amei verdadeiramente o Charles. Seria verdade? Seria possvel? Que outros segredos encerrariam aquelas cartas?

Acomodei-me numa cadeira de balanço de verga, desatei o maço e dei o cordel à Sox, que o levou para os arbustos para dar cabo dele.

Então, com a brisa a passar-me pelo cabelo, comecei a ler a história de quem foi realmente a minha avó.

As primeiras cartas eram notas sobre o jardim da Sam, a sua opinião sobre uma crónica provocadora que eu tinha escrito sobce o desastre na estação dos correios de Chicago. Alguns comentários sobre o Presidente Clinton, que a Sam adorava e com quem estava muito desapontada.

A seguir apanhei o fio da história da sua vida - e a Sam mais uma vez me atingiu com uma bomba. Safa, ainda mal tinha recuperado da primeira!

 

Esta pode ser a pior das cartas que vou escrever.

O Charles e eu passámos a lua-de-mel em Miami, como sabes. Ficámos no Fontaineóleau, um velho hotel maravilhoso na Collins Avenue, mesmo sobre a praia. Mas o Charles sentiu-se infeliz todo o tempo que lá estivemos: Queixava-se de que os empregados do hotel eram demasiado servis, a comida demasiado requintada, a areia demasiado arenosa. Para dizer de forma mais suave, ele encontrava defeitos em tudo.

E principalmente em mim.

Na terceira noite que lá passámos, logo a seguir ao jantar, estávamos na varanda do nosso quarto, a ouvir o oceano bater contra o molhe. O Charles já tinha bebido um bocado.

Eu procurava arranjar assunto de conversa.

- Gostei de conhecer aquele casal da Carolina do Norte. Ainda nos divertimos um bocado, não achas?

O rosto dele toldou-se como uma tempestade súbita. Olhou-me nos olhos.

- Se alguma vez te opuseres a mim, se me irritares seja por que motivo for, se alguma vez fores enfadonha ou palerma, deixo-te imediatamente.

E, erguendo a mão direita, deu-me uma bofetada. Com toda a força. Violenta. Acho que foi a primeira vez que alguém me bateu.

A seguir o Charles foi para dentro, deixando-me na varanda, completamente destroçada. Fiquei lá sentada durante bastante tempo, a ouvir a rebentação do Oceano Atlântico, ou talvez fosse o sangue a martelar-me nos ouvidos. Queria vomitar, voltar imediatamente para casa, mas como é que podia?

Jennifer, sentia-me aniquilada e terrivelmente confusa. Compreendes? Tinha deixado a minha casa, todos os meus amigos, para poder ficar com o Charles. Nessa época as coisas eram muito diferentes, sobretudo para as raparigas de cidades pequenas. As mulheres não se divorciavam, nem mesmo que os maridos lhes batessem.

Nessa noite da nossa lua-de-mel, eu cresci; vi o nosso futuro juntos e senti que pouco poderia fazer para o modificar. Mas houve uma coisa que fiz. Antes de deixarmos Miami, disse ao Charles que, se ele voltasse a bater-me, eu o deixaria de imediato e que não queria saber das consequências. Toda a gente havia de saber que ele era um canalha e um cobarde.

Após a lua-de-mel, o Charles e eu mudámo-nos para um apartamento em Chicago. Mas as coisas ainda não estavam muito bem entre nós. Quando se tornou advogado, o teu avô entrou para a firma da família. Pouco depois nasceu a tua mãe, a seguir a tua tia Val. Contudo, Jennifer, eu vivia para os Verões, quando voltava sempre ao Lago Genebra.

Mas temia os fins-de-semana, quando o Charles voltava de Chicago. Vinha sempre de mau humor, embora raramente me levantasse a mão. Era egoísta e gostava de me depreciar em frente dos filhos e dos amigos. Mas cuidava de nós para que nada nos faltasse e acabou por cumprir a promessa que me tinha feito de me contar o segredo obscuro do seu passado. O que nunca me contava era os segredos do seu presente, as namoradas que tinha em Chicago e onde quer que fosse.

Lamento ter de te contar isto, mas querias saber a minha história.

 

Minha querida,

Deixa que te conte outras coisas sobre o teu avô, para que possas compreender como é que ele se tornou no homem que era. O marido, até o avô.

Imagina o Charles a contar-me aquilo a que ele chamou pecados do pai, acontecimentos que moldaram a sua vida - e a minha. Foi três anos depois de termos casado. A tua mãe estava deitada no berço no quarto ao lado e era uma criança que gostava muito de dormir. O Charles e eu estávamos na cama, e ouvíamos lá fora a chuva e o barulho dos carros no piso molhado, iluminando-nos os rostos com os faróis quando passavam pela nossa janela, no apartamento de Chicago.

Foi nessa noite lúgubre que o Charles fnalmente me contou o acontecimento que ia transformar a sua vida. Sucedeu quando ele tinha apenas dezesseis anos e é uma história inacreditável.

Os pais do Charles tinham dado uma festa na sua imponente casa para o filho mais velho, Peter, que acabara de terminar o secundário. Era depois do jantar e os convidados tinham-se retirado para a biblioteca, para tomarem café. O Peter estava a abrir os seus presentes e o Charles, dirigindo-se ao pai, fez um comentário irreflectido, dizendo que parecia que era sempre o irmão mais velho que tinha as melhores coisas.

O Arthur Stanford ficou furioso. Voltou-se para o Charles, cha mou-lhe ingrato. Depois disse que já era altura de ele saber a verdade. Nem sequer és nosso filho. És adoptado! gritou-Lhe o pai. Tal e qual assim, em frente de todos e da família. A festa acabou, e, no silêncio delicado que se seguiu, o Charles subiu as escadas a correr e foi para o quarto. O pai foi atrás dele. Quando chegaram ao patamar de cima, o Charles gritou: Não é verdade! Eu sei que não é verdade! "

O Arthur Stanford já tinha acalmado um pouco. Acredita em mim, Charles, não sou teu pai. Sou teu tio. O teu pai é o meu irmão Ben. Ele engravidou uma pobre rapariga sem eira nem beira."

É mentiiira! balbuciava o Charles, num lamento. Então vai perguntar ao teu pai", respondeu-lhe o Arthur. De qualquer modo, já era altura de o conheceres. Da última vez que ouvi falar dele, estava a trabalhar no Murray Tap. É um bar em Milwaukee." Então, Arthur Stanford baixou o tom de voz. A Caroline e eu ficámos contigo. Sempre procurámos dar-te amor, Charles. Fazemos o possível.

Nessa noite, quando tinha apenas dezesseis anos, o Charles foi para a estação do caminho-de-ferro de Wabash-Adams Street. Comprou um bilhete de um dólar e apanhou a linha North Shore para Milwaukee.

Dentro do nosso quarto, Jennifer, as luzes dos faróis dos carros iluminavam o rosto do Charles e eu via os seus olhos incendiados por uma dor horrível. O meu coração compadeceu-se. Mesmo não tendo conseguido perdoar completamente tudo o que me fez, pelo menos compreendi o que tinha acontecido para o deixar tão revoltado, e por vezes cruel.

O Charles continuou a sua história e algumas das palavras eram tão vívidas que ainda hoje as recordo.

Contou-me que a viagem de comboio durou duas horas. A expressão do tio uma pobre rapariga sem eira nem beira" continuava a martelar-Lhe a cabeça. Era meia-noite quando chegou à Michigan Street. Havia ali perto duas fábricas de cerveja e no ar pairava o cheiro abafado dessa bebida.

Pediu que lhe indicassem o caminho e depois seguiu para leste até encontrar a Murray Avenue. Quase passou sem notar pelo local que procurava.

Cá fora não havia nenhuma tabuleta na fachada, só uma janela suja à esquerda da porta, iluminada por um anúncio da cerveja Miller Higl" Life. O Charles empurrou a porta que rangia e entrou num bar mais escuro do que a noite lá fora. Havia um balcão comprido, sobre o qual pairava uma espessa camada de fumo.

Alguns homens, trabalhadores das fábricas de cerveja, que cheiravam a malte bafiento, ergueram os olhos para o observar. Ninguém disse uma palavra ou pareceu importar-se com ele.

Quando os seus olhos se habituaram à escuridão, o Charles subiu para um banco mais retirado. Ficou sentado na sombra, a reparar em codos os pormenores: os copos dos dados em cima do balcão, alguns operários a jogar para ganharem bebidas, um letreiro a anunciar um uísque barato:

ESPECIALIDADE DA CASA, PANtHER PISS.

Ele olhava sobretudo para o empregado do bar, um homem de aspecto rude com cicatrizes na cara mas com traços inequívocos dos Stanford: o nariz aristocrático, ligeiramente curvo, as orelhas salientes. O Charles contou-me: O amor que senti por ele era quase doloroso. "

Enquanto o observava, viu o pai a enganar um freguês no troco e a contar anedocas ordinárias sobre mulheres, o que o fez corar.

Por fim, o pai limpou o balcão com um trapo gorduroso, inclinou a cara sobre a do Charles e soltou um riso de escárnio. Põe-te a andar, miúdo. Sai antes que eu te dê um pontapé no cu e vás parar ao lado de lá do rio. "

O Charles abriu a boca, mas não conseguiu falar. Esse momento terrível arrastou-se. A cara ardia-lhe, mas não conseguia dizer uma palavra.

Maricas", disse o pai, rindo muito alto. O miúdo é um maricas. Agora desaparece daqui para fora! "

A tremer de emoção, o Charles desceu do banco e saiu do bar. Nunca disse ao pai quem era, não pronunciou uma palavra. Nem nessa altura, nem nunca mais.

Perguntei ao Charles: Como é que pudesce vir-te embora sem falares com o teu pai?" A voz dele ficou fraca, como se lhe custasse responder. Disse que quando olhou para a cara do pai viu os olhos do Arthur, a mesma frieza de sentimentos. E percebeu que o pai nunca o amara e nunca viria a amá-lo.

Encontrei-o com tanta facilidade, comentou o Charles. Por que razão é que ele nunca me encontrou a mim"

Nessa noite abracei o teu avô, Jennifer. Compreendi que eu era a única pessoa que lhe tinha amizade, fosse o que fosse que ele entendesse por isso. Mas quando lhe pousei a cabeça no meu peito e Lhe afaguei o cabelo, apercebi-me de mais uma coisa. Compreendi o motivo que o levara a casar comigo. Eu era uma pobre rapariga sem eira nem beira. O nosso casamento fora um acto de desafio, a maneira de o Charles se vingar da família Stanford.

Eu tinha vinte e dois anos, mas senti que a minha vida acabara.

Como num filme, via mentalmente a triste história da Sam com o meu avô. Por muito que eu o tivesse amado, havia alguma coisa que batia certo. Embora ela me tivesse pedido que lesse as cartas a pouco e pouco, eu queria saber mais. Como é que ela conseguira viver todos aqueles anos com o Charles?

Estava sentada na cozinha e tinha acabado de abrir o envelope da carta seguinte quando, pelo canto do olho, fui surpreendida por um movimento, bem como pelo som de passos lá fora, na relva.

Um homem contornava a parte lateral da casa. O mais estranho era que eu tinha a sensação de que o conhecia, mas não sabia de onde. Saí para o alpendre principal, para ver o que ele queria.

Tinha o cabelo castanho claro, com uma onda ligeiramente despenteada e um caracol rebelde que saltava para a testa. Os olhos eram muito azuis.

- Olá - disse ele.

- Olá - respondi, hesitante.

Ele devia ter perto de quarenta anos e vestia calções de caqui, uma T-sirt Notre Darne e trazia umas sandálias muito estranhas, como usam os velhotes.

De repente fez-se um elique. Da última vez que o tinha visto, ele estava completamente despido. Era este o nadador do grito de guerra.

- Jennifer? - perguntou, deixando-me um tanto desconcertada.

Estava a pensar como é que saberia o meu nome, quando ele se apoiou no corrimão e começou a subir para o alpendre da frente.

- Quem é você? Eu conheço-o?

- Ai, desculpe. Sou o Brendan Keller. Estou em casa do meu tio Shep, quatro casas abaixo desta. Ele disse que a encontrou no hospital. Brendan Keller. Não se lembra de mim?

Acenei negativamente com a cabeça. Depois acenei afirmativamente. Já me lembrava. O Brendan Keller e o meu primo Eric tinham feito parte dos meus primeiros Verões no Lago Genebra. Eram os irmãos que nunca tive. Houve um ou dois Verões em que eu os seguia para toda a parte. Eles chamavam-me Scout, o nome da miúda do livro To Kill lIockingbird.

Mas não me lembrava de ter visto o Brendan Keller desde que

era pequena.

- Há quanto tempo! - exclamei, estendendo-lhe a mão. Acabámos os dois sentados sob o alpendre da Sam, a conversar e a beber chá gelado. A conversa girou quase toda à volta das nossas recordações do Lago Genebra. Ele sabia que eu escrevia crónicas para o jornal, e consegui saber que ele era médico.

- O Eric e eu chamávamos-te Scout. Eras muito desenvolta para dez anos. Acho que deves mesmo ter lido To Kill a Vlockingbird.

Ri-me e baixei os olhos, embaraçada por algo que não conseguia bem controlar. Ele seguiu o meu olhar.

- Estás a olhar para os meus sapatos.

- Não, eu.

Esboçou um sorriso.

- São do meu tio. Ouve, a propósito do Shep. Ele disse-me que no Lions Club de Fontana está a decorrer a festa da lagosta. Se te agradar, estás convidada.

Abanei a cabeça, quase sem pensar.

- Não. Desculpa. Hoje não me dá jeito. Tenho de escrever a minha crónica. Estou atrasada.

- E se eu mudar de calçado? Tenho sapatos clássicos bem bonitos. Ou tênis? Ou posso ir descalço.

Sorri.

- Não posso. Desculpa. Tenho um prazo para cumprir. é sério. O Brendan levantou-se e pousou o chá.

- OK. Bem, eu moro mesmo ali em baixo. Espero que nos encontremos por aí. Brendan Keller.

- Scout - retorqui, com um sorriso.

Murmurámos uma despedida e disse-lhe adeus com a mão, enquanto ele voltava em direcção à casa do tio. A minha disposição mudara, já não estava pensativa. Pus de parte as cartas da Sam e entrei em casa.

Nessa tarde trabalhei um bocado, e por uma ou duas vezes pensei no festival de lagosta em Fontana, a decorrer sem mim. Por fim preparei uma salada para o jantar, perguntando a mim mesma por que raio tinha teimado em comer sozinha.

Mas sabia o motivo. O Danny.

E o nosso feijãozinho".

 

Nessa noite voltei a ter o sonho com o Danny, aquele que eu mais detestava, o sonho em que eu era o Danny mas ao mesmo tempo era eu própria e estava a observá-lo.

É sempre o mesmo.

O Danny está a fazer. surf na costa norte de Oahu, numa das praias mais bonitas que existe. Há dias aí em que as ondas são das maiores do mundo, e noutros dias o oceano está liso como um espelho.

A parte pior é que neste dia o Danny está sozinho. Devia estar de férias comigo, mas no último momento tive de ficar em Chicago para fazer um trabalho importante para o Tribune. A opção de ficar é minha.

E então lá está ele, à espera da onda. E depois já vai lá em cima. O problema é que a crista da onda sobe mais depressa do que ele esperava. De repente é arremessado até ao fundo do mar, a uns seis metros de profundidade. O Danny não consegue ver qual o sentido ascendente, qual o descendente. Lembra-se de uma regra básica: uma mão para cima, a outra para baixo; tentar sentir o fundo ou o ar.

Em seguida é lançado novamente contra o fundo do mar, e a força da onda é inacreditável. Sente um martelar nos ouvidos e a água entra-lhe pelo nariz. O corpo é sacudido e enrolado. As pernas estão paralisadas. Terá feito alguma fractura? Sente um ardor horrível nos pulmões.

Então o Danny desiste de tudo... excepto de mim e do bebé...

Grita: jennifer jennifer, socorro . Por favor ajuda-me, jennifer

Acordei do sonho no meu velho quarto em casa da Sam. Estava coberta de suores frios e o coração batia como doido. Como é que podia pôr o passado para trás das costas, se o Danny estava sempre nos meus sonhos? Cheguei tarde, quando fui ter com ele ao Havai. Tudo o que aconteceu foi por minha culpa. Tudo.

 

Fiquei na cama mais um bocadinho, até que ouvi alguém gritar lá fora. Por fim levantei-me rapidamente e afastei as cortinas da janela.

Lá estava ele, mas pelo menos esta manhã trazia um fato de banho. Vi-o dar um mergulho perfeito do pontão para o lago. Vê se cresces! ", murmurei, mas depois pus-me a pensar quando é que me tinha tornado tão rabugenta.

Tomei ducha, vesti as calças de ganga da véspera e uma T-sirt de softball do Tribune e prendi o cabelo num rabo-de-cavalo. Saí para a manhã perfumada de Verão. Precisava de estar ao ar livre e longe dos meus pesadelos.

Há cerca de duzentos pontões brancos idênticos a toda a volta do Lago Genebra, que tem um perímetro de quase quarenta e dois quilómetros. Cada um dos pontões mede dois metros e meio de largura e cerca de nove metros de comprimento, e quase todas as casas próximas da margem possuem um. Em Novembro, os pontões são retirados e ficam fora do lago durante o Inverno; quando chega a Primavera, são pintados e colocados novamente na água.

Fui com a minha caneca de café até ao fim do pontão da Sam, onde observei os patos-selvagens e as gaivotas que picavam subitamente sobre as presas, tratando do seu pequeno- almoço. No Wisconsin há uma grande abundância de peixe, sobretudo percas, algum bacalhau e trutas. Foi também aqui que nasceu o partido republicano, mas igualmente o democrata William Proxmire, responsável pelos assuntos fiscais, o tal que instituiu o prêmio Golden Fleece, para ser atribuído a entidades governamentais que desperdicem o dinheiro dos contribuintes. Muito interessante.

Lá adiante no lago, vi o Brendan Keller a nadar no seu vigoroso estilo livre em que já reparara na manhã anterior. Enquanto o observava, ele começou a dirigir-se na minha direcção. Aproximava-se cada vez mais, até que chegou precisamente ao pontão da Sam e se içou para fora da água. Em seguida, sacudiu-se como fazem os cães.

- E! ", lá - exclamei.

- Devias enfiar um fato de banho e vires nadar, Scout. A água está uma maravilha. Não estou a exagerar.

- Não posso - respondi, num tom que a mim própria pareceu pateta. - Já tenho coisas combinadas.

- Trabalho ?

Sorriu enquanto sacudia a água do corpo com as mãos em cutelo, como já o vira fazer antes.

- Vou agora visitar a Sam - respondi. - E estava a pensar escrever um artigo sobre os dinheiros mal gastos pelo governo. O cérebro não pára, sabes como é.

- Já comeste?

- Estou a tomar o café do pequeno-almoço - retorquiu, erguendo a caneca.

- Podes tomar um pequeno-almoço muito melhor. Agora não me venhas dizer que não. Sei fazer umas panquecas de mirtilo, que são de cinco estrelas. E num instante. Confia em mim, está bem?

Confiar nele? Abri e fechei a boca, mas estava cansada de tartamudear respostas. E não estava com vontade de argumentar, nem de discutir.

Por isso fiz o que me pediu. Confiei na sua habilidade para fazer panquecas de mirtilo de cinco estrelas.

dezenove

E num instante.

Justamente quando seguia junto à linha de água com o Brendan, perguntei a mim mesma o que estava a fazer. Mas onde estava o mal? E, para ser franca, estava com fome e soava-me muito bem aquela coisa das panquecas de mirtilo de cinco estrelas.

A casa do Shep Martin era nova, mas muito acolhedora. A cozinha tinha janelas altas e clarãbóias, balcões irrepreensivelmente limpos e chão de madeira dura. Estava música a tocar, jazz acústico (Stagger Lee, interpretado por uma voz fabulosa). E as panquecas eram excelentes. Nem pegajosas, nem queimadas, nem secas. Mesmo boas.

Infelizmente, começou a sentir-se um certo clima de conscrangimento entre nós. Ele disse que tinha ido ao sítio do Trib, para reler on-line algumas das minhas crónicas. Tinha fcado sensibilizado com a minha história acerca da criança raptada e rira à gargalhada com o meu artigo Com quem é que você preferia encalhar numa praia de uma ilha deserta? Com a sua cara-metade, ou com o seu gato? "

Acenei um gesto de concordância amável, mas não dei grande resposta. Começava a sentir-me um bocadinho desconfortável comigo mesma. Não queria continuar ali, mas não sabia como fazer uma saída airosa.

Quando estávamos a acabar as panquecas, o Brendan contou-me què era radiologista e vivia em South Bend, no estado de Indiana. Respondi laconicamente que isso era ótimo.

Ele abanou a cabeça, pareceu perplexo.

- Não costumo falar a meu respeito - afirmou. - Acho que todo este ar fresco está a ter influência em mim. Estou com uma licença sabática. Estar muito tempo sentado na penumbra a olhar para radiografias dá-nos vontade de sair cá para fora aos gritos, em busca da luz do sol.

Eu tinha-me demorado mais do que tencionava. Tinha planejado comer e vir-me embora. Por fim agradeci ao Brendan o pequeno-almoço e dirigi-me à casa da Sam. Foi tudo o que consegui fazer para não correr.

Caminhei no sentido leste, percorrendo os cem metros do carreiro que subia desde a margem do lago, até chegar ao início do relvado fronteiro da casa da Sam.

As gatas saudaram-me com os seus miaus e subimos em direção à casa, pelo atalho junto aos canteiros de plantas vivazes da minha avó. A Sam fazia tantas coisas, e tão bem! Talvez exceto ter encontrado o marido certo. E só Deus sabia o que ainda estava para vir daquelas cartas.

Ela plantara noventa metros de arbustos prodigamente floridos, ao longo de toda a propriedade, quase desde o lago até à estrada. O canteiro encontrava-se já no auge da florescência veranil. As roseiras com flores em tons de rosa velho e vermelho estavam resplandecentes; as íris agitavam as pétalas como em voos de pequenos pássaros.

Então reparei que estava mais alguém no jardim, um homem, e dei por mim a sorrir.

- Então? - exclamei.

 

- Henry! Que bom vê-lo! - saudei o homem alto e seco que estava a tirar ferramencas de jardinagem de uma pequena camioneta.

O cabelo dele era um semicírculo branco como a neve em volta de uma cabeça calva, os seus olhos vivos brilhavam e ele movia-se com mais agilidade do que seria de esperar num homem com cerca de setenca e cinco anos.

- Jennifer, tinha esperança de encontrá-la. Ontem, por um momento, senti a sua falta no hospital. Está tão bonita!

O Henry deu-me um beijo e um abraço caloroso.

Contei-lhe o que me tinham dito quando falei de manhã para o hospital - que a Sam continuava na mesma. Ele acenou afirmativamente e vi a dor que lhe ensombrava os olhos. Lembrava-me de todas as vezes que o tinha visto com a Sam a tratarem do jardim com todo o esmero.

O Henry Bullock tinha feito um estágio em Wisley, em Inglaterra, e ocupava o lugar de mestre de jardinagem no Lago Genebra. Tinha uma paixão obsessiva pelo que fazia. Mas orgulhava-se sempre de dizer que a Sam tinha muito jeito. E era uma ótima colaboradora".

- Quase me deu uma coisa também, quando a encontrei caída no chão da cozinha - contou-me, abanando a cabeça como se nem se quisesse lembrar.

- Foi o Henry que a encontrou? - perguntei, surpreendida.

- Fui - respondeu, limpando os olhos com um lenço. - Quem me dera que a Sam pudesse ver como está o canteiro dela esta manhã.

Meu Deus, a dor dele fez regressar a minha. Abracei-o de novo e murmurámos certezas de que a Sam em breve estaria de volta. O Henry sempre pareceu fazer parte da nossa família.

Pouco depois, o barulho de uma máquina impediu-nos de continuar a conversa. Joseph, um dos filhos do Henry, tinha começado a cortar a relva no jardim da frente. Despedi-me e galguei os degraus até ao alpendre.

No meu relógio eram vinte para as nove e calculei que ainda tinha tempo para ler mais algumas cartas antes de ir ver a Sam.

 

Querida Jennifer,

Apetece-me divagar um pouco sobre a importância da segunda oportunidade, e até da terceira. Um dia estava eu a dar uma ajuda na biblioteca, quando caiu uma marca das páginas de um romance. Na verdade, era uma nota escrita à mão, uma citação atribuída ao Padre Alfred D'Souza. D'Souza escreveu: Durante muito tempo me pareceu que a vida estava quase a começar, a verdadeira vida. Mas havia sempre algum obstáculo no caminho, algo que tinha de ser feito antes, algo para acabar de tratar, tempo ainda para ser servido, uma dívida para ser paga. E então a vida começaria. Por fim compreendi que estes obstáculos eram a minha vida. "

Jennifer, era isso que eu sentia enquanto seguia a minha vida. Sei que sempre mostrei boa disposição, mas por dentro era assim que me sentia.

Tinham passado mais de vinte anos desde que eu jurara que havia de dar a mim mesma uma segunda oportunidade e ainda não o tinha feito. Tinha criado duas flhas maravilhosas. Tinha preparado uns dez mil jantares, feito umas trinta mil camas, cheFiado um grupo de crianças escuceiras, colaborado com a associação de pais e professores e tinha-me esforçado por desempenhar da melhor maneira o meu papel de esposa de um advogado. Mas tinha-me resignado com o casamento com o Charles e sabes que mais? Já não acreditava na possibilidade de uma segunda oportunidade.

Aquela pequena citação comoveu-me.

E talvez me tenha preparado para um dos momentos mais importantes da minha vida.

Eu tinha apenas quarenta e três anos, mas estava casada havia quase vinte e seis. As minhas filhas já eram adultas e eu sentia que o meu espírito definhava como um inseto apanhado numa teia de aranha, num canto de um quarto escuro. Jennifer, eu nunca tinha estado realmente apaixonada. Dá para acreditar?

Três semanas depois de ter lido aquela citação na biblioteca, encontrei alguém. Não vou dizer o verdadeiro nome dele, Jennifer. Nem mesmo a ti.

Dei-lhe o nome de Doc.

 

Querida, jennifer,

Se isto te atordoa a ti, imagina como me atordoou a mim. VRRUUM! Que estonteamento!

Deixa-me contar-te como tudo aconteceu. Na verdade, o Doc e eu já nos conhecíamos havia anos, mas na noite em que comecei a conhecê-lo realmente foi num jantar interminável a favor da Cruz Vermelha, no Hotel Como. Calhou ficarmos sentados à mesma mesa e, quando nessa noite começámos a conversar, já não nos apetecia parar. Nem consigo descrever, mas senti-me logo resplandecer. E também voltava a sentir algo. Acho que a eletricidade entre nós até me esticou os caracóis até às pontas do cabelo. Era capaz de ter ficado a conversar com ele a noite toda, até de manhã. Até brincámos a respeito disso.

É claro que o Charles nunca notou nada.

Lembro-me perfeitamente da roupa que o Doc vestia nessa noite: um fato de linho bege, camisa azul e gravata em tons de azul, pintada à mão. Ele era esbelto e alto, com um farto cabelo louro raiado de prata, sem dúvida o homem mais bonito que se encontrava na sala (aos meus olhos, pelo menos). Durante o jantar, falou-me dos astros e em particular de um cometa que em breve ia atravessar o nosso pedaço de universo e não voltaria a ser visível nos próximos duzentos anos. Tinha conhecimentos sobre todos os assuntos e era um apaixonado pela vida, que eu amava e que havia muitos anos não saboreava.

Tínhamos muitos interesses comuns, mas mesmo independentemente da tal electricidade, senti-me muito bem ao pé dele. De imediato. Ele gostava de ouvir e, por alguma razão, senti que podia estar confiante de que ele me aceitaria tal como era. Jen, seja como for, nessa noite senti-me bem. Pela primeira vez em vinte e cinco anos quase me senti novamente eu própria. Consegues imaginar o que isso é? Na verdade, espero bem que não.

Devo dizer-te por que motivo nunca até hoje tinhas ouvido falar do Doc. Este não é o seu nome verdadeiro, mas assentou-lhe perfei tamente porque ele tem mesmo ar de doutor e eu adorava tratá-lo por um nome que era apenas nosso. Era um dos nossos segredos, - um dos muitos, como depois viria a suceder.

Nesse Verão vimo-nos várias vezes, por acaso e propositadamente por acaso, e acho que já estávamos um bocado apaixonados antes mesmo de estarmos suficientemente cientes para o admitir. Acho que fui eu que me apaixonei primeiro, mas ele não demorou muito para se apaixonar também, e com a mesma intensidade que eu.

Jennifer, eu sei do imenso desgosto que ainda sentes pelo Danny. Compreendo perfeitamente. E ninguém poderá dizer-te por quanto tempo é que o vais sentir. Mas quero dizer-te uma coisa muito importante. Abre o teu coração ao amor. Digo-te isto do mais fundo de mim mesma, minha querida, doce, inteligente Jennifer. É por essa razão que te estou a escrever estas cartas.

Por favor abre o teu coração ao amor, ele é a melhor coisa que há na vida.

Agora pára de ler. Pensa no que te disse. Estas cartas não são apenas sobre a minha vida; são também sobre a tua.

 

NOVO AMOR

Estava a acomodar-me ao maravilhoso fluxo e refluxo da vida no Lago Genebra e estava a gostar mais disso do que alguma vez imaginara.

Os amigos da Sam revezavam-se para estar junto dela sempre que eu não estava. Se eu quisesse, podia ter ido jantar todas as noites a casa de algum deles. Sob muitos aspectos, era como se estivesse ali a passar as férias de Verão. Exceptuando, é claro, o fato de a Sam se encontrar doente e de eu não saber se ela ia melhorar.

Um dia, ao início da tarde, estava sentada na cozinha, com o meu computador portátil ligado à Internet por meio de um cabo preto muito antiquado. A minha caixa de correio electrónico estava a abarrotar de mensagens dos meus leitores, muitos dos quais dizendo que sentiam a minha falta e que esperavam que eu estivesse bem.

Adoro esta ligação com os meus leitores. É uma das melhores coisas que tem o meu trabalho. Na verdade, dependo disso para conservar o meu emprego. Se os leitores reagem emocionalmente ao que escrevo, compram o Trib. Por isso, cerca de uma hora antes, a minha editora e eu tínhamos concordado que eu passava a escrever dali do Lago Genebra; 750 palavras por crónica, três crónicas por semana, como sempre. Só que de uma maneira completamente diferente.

Abri o programa de processamento de texto e estava às voltas com as ideias, mas os meus pensamentos continuavam dirigidos para a Sam. E pensava na minha mãe, que devia estar ali, mas não estava. A minha mãe, que não devia ter morrido, mas tinha. E pensava no Danny, é claro. Ele estava sempre no meu pensamento, ou não muito longe dele. E então parei de pensar no passado. Tinha de fazer isso.

Umas pancadinhas na porta das traseiras, protegida por uma dupla porta de rede, despertaram-me dos meus pensamentos. Fui à porta e dei de caras com o Brendan Keller. Não o tinha visto durante alguns dias e fiquei admirada ao vê-lo ali.

- Podes vir brincar cá para fora? - perguntou, com um sorriso

- Está bem - respondi, provavelmente para surpresa de ambos. Então, e antes que algum de nós mudasse de ideia, desci os degraus. Ao fim e ao cabo, não estava com disposição para escrever, ou melhor, para ficar a olhar para um monitor em branco.

- Batido espesso com dose dupla de chocolate - disse Brendan e eu soube imediatamente a que é que ele se referia.

- Do Daddy Maxwell - respondi, sorrindo.

O pequeno restaurante Arctic Circle do Daddy Maxwell é uma casa da localidade com a forma de um iglô e paredes de estuque branco, que poderíamos classiFcar no nível mais elevado imediatamente abaixo da alta cozinha. Tem toldos com riscas azuis e o que lhe falta em classe tem, sem dúvida, em qualidade de comida. Fica a pouco mais de três quilómetros da Knollwood Road e pusemo-nos lá em três minutos.

Nada parecia ter mudado desde que éramos miúdos e adorávamos lá ir. Escolhemos uma mesa junto à janela e voltámos a nossa atenção para a Marie, a mais recente e empertigada empregada de mesa do Daddy Maxwell. Ela tomou nota do pedido e desapareceu na cozinha.

Menos de dez minutos depois estava eu a olhar para o prato do Brendan, do outro lado do meu hambúrguer vegetariano. Ele tinha escolhido o prato do dia. E um batido espesso de chocolate. O prato do dia era uma omeleta de aspecto esplêndido, feita com três ovos e recheada com cebola grelhada, e acompanhada de calóricas, batatas fritas e uma dose grande de queijo Cheddar.

- Tu és zédico - comentei.

- Só se vive uma vez - justificou-se, sorrindo. - Mostra coragem, Jennifer. Prova só. A omeleta e o batido.

Ri-me, estiquei o garfo até ao prato dele e levei à boca um bocadinho de omeleta ainda a fumegar. A seguir comi mais um

bocadinho.

E bebi um gole do batido de chocolate.

Então o Brendan mandou vir também uma omeleta e um batido

para mim.

- Tu até estás demasiado magra - comentou, o que foi uma das observações mais simpáticas que ouvira ultimamente.

Prolongámos o jantar e depois o café. Sentia-me surpreendida por estar a divertir-me. Fomos falando um ao outro dos acontecimentos mais importantes das nossas vidas, ao longo dos últimos vinte e cinco anos. Contei-lhe algumas coisas acerca do Danny, mas ele já sabia. O Brendan contou-me que estava divorciado havia um ano e meio; a sua ex-mulher tinha tido um caso com um colega, no seu escritório de advogados.

- Parece que a minha belle Michelle se envolveu num caso amoroso lá no escritório. Viciada no trabalho, isso é que ela é, acima de tudo.

Acenei compreensivamente, mas logo depois lembrei-me de que o Danny me tinha chamado viciada no trabalho e tivera razão. Senti uma onda de tristeza. O Brendan notou e tocou-me na mão. Eu disse-lhe que estava bem. Pensativa, retirei a mão. Talvez não estivesse tão bem como isso.

- Tenho de voltar para casa - disse-lhe.

- Com certeza - respondeu. - Vamos.

Quando já estávamos no carro, disse ao Brendan que tinha outro prazo de entrega quase a acabar e se calhar ia ficar a trabalhar pela noite dentro.

- Estou a ver - respondeu, com um sorriso. - Estás a pôr-me a andar.

- Não, não, nada disso. Apenas, olha, põe-te a andar. O que lhe provocou uma gargalhada.

Despedimo-nos na zona de estacionamento no pátio da Sam e fui imediatamente fazer uma corrida de vinte minutos pelas ruas tortuosas que rodeiam Knollwood. Ainda peso os mesmos cinquenta e nove quilos que pesava na faculdade e queria manter esse peso, apesar de o Brendan ter dito que estava demasiado magra.

Pensei um pouco nele enquanto corria. Ele era muito divertido. E sem dúvida inteligente. Também sabia ouvir quando eu falava, o que muitos homens não sabem. Mas tinha de haver ali algum segredo, algum problema, qualquer coisa. O que estaria ele a fazer ali no lago? Ainda a refazer-se do divórcio? A verdade é que era demasiado jeitoso e atraente e simpático para estar ali sozinho.

Quando cheguei a casa meti-me debaixo do chuveiro, deixando que a água quente me batesse na cabeça tão cheia de pensamentos. Depois vesti uns calções e um top de alças, preparei um chá gelado e levei algumas das cartas da Sam para o alpendre das traseiras.

Sentei-me no chão de pernas cruzadas e, enquanto ainda dispunha de luz solar, abri mais um envelope com o meu nome escrito em letra bem desenhada.

 

Querida Jen,

Quando eras pequenina, e tão encantadora e amorosa que eras o meu ai Jesus, costumavas chorar sempre tanto quando chegava o fim do Verão! Todos os anos. Até que inventei um plano para te ajudar.

No último dia das férias do Verão, entregava-te um grande frasco de maionese Hellmann's e mandava-te lá abaixo à margem para levares a praia contigo, para Madison.

Eu sabia que ias recordar e apreciar essas pedrinhas cinzentas e pretas, lisas e do tamanho do teu punho, que encontravas quando caminhavas descalça pelos bancos de areia. E os seixos claros e arredondados lançados para a praia pela água. E, é claro, havia a areia e a água límpida e fria do Lago Genebra. Era fascinante observar-te a tentares enfiar todo o teu Verão dentro de um frasco de maionese.

Ao longo de uma manhã do final de Agosto, tiveste de fazer várias tentativas - Avó Sam, já está cheio?" - mas por Fim descobriste que a melhor maneira de conseguires era pondo primeiro no frasco as pedras maiores. A seguir os seixos, e as conchas haviam de ir encaixar-se nos espaços entre as pedras.

Quando o frasco já estava cheio até ao cimo, ainda deitavas lá para dentro um bocado de areia, que apanhavas com a tampa.

E no final, quando parecia já não haver espaço para mais nada, mergulhavas o frasco no lago e enchias a tua praia, até ao cimo. Que menina esperta!

E eu dizia-te, Jennifer, que viver a vida era como meter a praia dentro de um frasco. O mais importante não era enfiar tudo lá dentro; era em primeiro lugar prestar atenção às coisas mais importantes - as pedras lindas e grandes, ou seja, as pessoas e as experiências mais preciosas - e depois acomodar à sua volta o que não tinha tanta importâncía.

Se assim não fosse, havia o risco de o melhor ficar de fora. Tenho pensado nas pedras grandes e no quanto as minhas prioridades têm mudado ao longo dos anos. O que dantes era mais importante para mim era agradar às outras pessoas; o teu avô e a minha sogra, para citar duas. Ir a jantares e ter a casa suficientemente limpa e arrumada para passar na inspeção militar de um Sir Charles, para citar mais duas.

Agora que procuro agradar a mim própria, as minhas prioridades melhoraram. As pessoas que amo. A minha saúde. Em cada dia, tirar o melhor partido de tudo. O ator Danny Kaye costumava dizer: A vida é uma tela em branco. Encham-na de toda a cor que puderem. Gosto desse pensamento. Mais importante, tento viver a minha vida o mais possível de acordo com esse pensamento.

Quase todas as manhãs me levanto bem cedo, para poder observar o nascer do Sol. Coloco flores em botão em muitas caixinhas que disponho a toda a volta da casa, para poder ver as flores a desabrochar por toda a parte. Dou aos gaios azuis amendoins inteiros, porque eles gostam muito de receber os seus alimentos embrulhados como presentes e nunca me canso de os observar a tentarem prender no bico mais de um amendoim de cada vez. Leio livros bons, picantes, e quando não consigo dormir sou capaz de acender a lareira e ficar a ver na T v reposições de Law and Order.

E uma coisa que adoro fazer. Uma vez por mês, preparo uma grande travessa de massa com molho de tomate e convido os meus amigos que vivem sós para virem jantar. Eles apreciam a companhia e a refeição feita em casa. Fartamo-nos de rir e quando regressam a casa não vão a falar mal de mim durante o trajeto de automóvel!

E, caso estejas a pensar nisso, fica a saber que o Doc vem sempre a esses jantares. Os outros não sabem que ele é o Doc.

 

Querida Jen,

Aqui vai uma coisa divertida, para nos rirmos as duas. Acabei de chegar a casa, depois de ter passado a tarde na cidade, e reparei que a bainha da minha saia estava presa ao cós das cuecas e andei assim todo o tempo. Fui à mercearia, à loja de ferragens, ao Daddy Maxwell - sempre com aquela cauda. Ninguém me disse nada. Que linda figura Então, aqui está um pensamento de que gosto muito, Jen, e que demorei algum tempo a entender. Se olhamos para trás e nos rimos de alguma coisa que aconteceu, então também podemos rir-nos disso na própria altura.

As coisas raramente são tão graves como parecem a princípio. Relaxa, rapariga! Tens muito sentido de humor nas tuas crónicas para o Chicago Tribune. Mas parece-me que podias rir um pouco mais na vida real. Li algures que o riso liberta para o cérebco uma substância química benéFca. Faz-nos sentir melhor e é de graça!

 

Ri-me com a carta da Sam, mas depois parei de rir. As lágrimas rolavam-me pela cara. Sentia tanto a falta dela, era uma dor quase insuportável. Visitá-la duas vezes por dia no hospital não bastava. A leitura das suas cartas fez-me desejar ouvir o som da sua voz, nem que fosse só mais uma vez. Precisava de conversar com a Sam sobre algumas coisas.

Como, por exemplo, quem era o Doc? Eu conhecia-o? Ele ainda era vivo e, se era, não ia visitá-la ao hospital? E já o teria visto lá?

Lembrei-me de quando tentava meter o Lago Genebra dentro do frasco de maionese, quando tinha cerca de cinco anos. Mas o facto de a Sam, não só se lembrar disso, como lhe dar um tão grande signiFicado, deixou-me muito abalada, até sufocada.

Caminhei até ao lago e dei com o pé numa bela pedra preta com algumas saliências ásperas. Trouxe-a para casa e coloquei-a em cima da pilha cada vez mais alta da correspondência para a Sam, na mesa de centro.

Mesmo à direita do meu portátil, que zoava baixinho, à espera que eu começasse a escrever.

Espera-te um dia de trabalho, Jennifer.

A primeira coisa que fez foi apagar a crónica que começara de manhã. Tinha uma ideia nova, mas durante um bocado não sabia por onde começar.

Por fim, escrevi:

Da última vez que vi a minha Avó Sam na sua casa do Lago Genebra, foi quando nos despedimos no final de um belo fim-de-semana por ocasião do Dia do Trabalhador.

A Sam estava com um ar saudável e feliz, mas quando me abraçou tive a sensação de que tinha qualquer coisa em mente, mas não sabia como me dizer. O momento passou e não Ibe perguntei nada sobre o assunto.

Entrei no carro e dei uma buzinadela de despedida quando c- eguei à estrada. Como é que havia de saber que da próxima vez que visse a minha avó ela estaria em coma e que talvez nunca mais pudesse voltar a falar comigo ?

Enquanto burilava a minha crónica, o dia transformou-se em noite. À uma da manhã ainda eu estava a escrever e a reescrever sobre a sorte que tinha por a Sam ter passado ao papel os seus pensamentos, para que eu os lesse. Quantos dos meus leitores tinham a mesma sorte? Quantos de nós conhecemos as verdadeiras histórias dos nossos pais e dos nossos avós? Quantos de nós partilhamos com os nossos filhos as histórias das nossas vidas? E eles perdem bastante com isso, se o não fizermos. O que somos nós, senão as nossas histórias?

Escrever a crónica era como desfazer uma camisola de lã. Eu puxava um pensamento e as palavras soltavam-se numa linha fluente e desembaraçada. No primeiro rascunho ultrapassei completamente o limite das 750 palavras e tive de fazer cortes e voltar a escrever e tornar a cortar.

Quando o trabalho ficou tão bom quanto me era possível, terminei-o convidando os meus leitores a contarem-me histórias sobre os seus entes queridos. Já estava a imaginar a quantidade de e-mails que ia receber, as histórias que teria o privilégio de ler, os segredos de família que seriam compartilhados comigo.

Às duas da manhã, quando já quase não via nada de tanto olhar

para o monitor, carreguei na tecla ENVIAR. Um milésimo de segundo depois já a minha crónica estava na caixa de correio electrónico da Debbie, no Trib.

Então fui para a cama e as minhas lágrimas correram até à almofada. Não estava triste, nada disso. É que era maravilhoso sentir algo tão intenso e ao mesmo tempo encontrar as palavras certas para o descrever.

O que somos nós, senão as nossas histórias?

 

Acordei entusiasmada e com uma certa sensação de felicidade. A minha crónica estava escrita, ficara o melhor de que era capaz e tinha o dia livre. Iuuupi!

O meu fato de banho azul ainda estava dentro do saco, desde que o enfiara lá dentro, em Chicago. Vesti o fato de uma só peça e com decote redondo e, rapidamente, despachei as pequenas tarefas que tinha a fazer. Então fiz algo completamente inesperado. Fui procurar o Brendan.

A casa do tio dele brilhava ao sol da manhã e a luz reflectia-se em todas aquelas vidraças. Por detrás da casa, o lago estava calmo e cintilante.

Bati à porta da cozinha, mas não obtive resposta. Por fim pus as mãos em concha para proteger os olhos da luz e espreitei pela janela.

Senti-me um pouco desapontada, acho eu, por o Brendan não estar lá e eu querer ir brincar.

Então vi-o através da janela da sala e quando olhei mais de perto fquei estupefacta. O Brendan estava de joelhos no meio da carpete, com as mãos juntas.

Estava a rezar

 

Muito constrangida, voltei costas, afastei-me do alpendre e atravessei o relvado de forma a não ser vista. De repente a porta da cozinha abriu-se e bateu, mesmo atrás de mim. Virei-me e vi o Brendan, que vinha ao meu encontro. O, não! Apanhada!

- Olá, Jen. Pareceu-me ouvir alguém bater. Queres ir nadar?

- perguntou.

- Hum, claro - respondi.

Lançou-me um sorriso; era lindo, embora ele nem tivesse a noção disso. Então gritou-me um desafio pateta que tinha a ver com uma lesma e deu uma corrida até ao lago.

E eu agi instintivamente: fui a correr atrás dele. Atravessei o relvado e a seguir os nove metros do pontão pintado de branco e quando cheguei à extremidade atirei-me para a água. Sem sequer me deter para ganhar coragem.

Mergulhei até ao fundo do lago, voltei à superfície e comecei a nadar atrás do Brendan, que se dirigia para um flutuador a cerca de cinquenta metros de distância. Nadei a toda a velocidade, para ver se lhe ganhava. Mas o Brendan nadava muito bem e foi ele quem venceu.

- Então quem é que é uma lesma, minha lesma? - perguntou-me, com um sorriso.

Ficámos os dois apoiados à bóia, balançando no rasto de um barco a motor bastante barulhento, que atravessava o lago a toda a velocidade. Semicerrei os olhos e, através das pestanas molhadas, olhei para o Brendan. Sei nadar bem, mas o facto de ter começado a fumar recentemente não ajudou o meu tempo e além disso o estilo livre do Brendan é incrível.

- Podias ter-me deixado ganhar. Ou teres chegado com menos vantagem.

Ele encolheu os ombros.

- Neste país as pessoas sobrevalorizam as vitórias. O que interessa é que soube bem.

- Acho que tens razão. E as manhãs no lago são subvalorizadas. A temperatura da água estava perfeita e sabia-me bem o calor do sol na cara e nos ombros.

- Começo a recordar-me bem de ti, Scout. Eras vaidosa e muito convencida.

Estaria a falar a sério? Eu devo ter-lhe deixado uma imagem errada.

- E ainda sou - retorqui, deitando-lhe água para a cara.

- Olha lá - continuei -, acho que tive uma ideia. O Brendan pareceu momentaneamente confuso.

- Para outra crónica?

 

- Queres ir andar de barco à vela? - perguntei.

- Tu ? Andares de barco à vela ? Não estás assoberbada de trabalho?

- Na verdade, acabei há pouco de escrever um dos meus melhores artigos.

- Champanhe! - exclamou Brendan.

- Vamos com calma.

Eis o que eu começava a descobrir acerca do Brendan. Ele

tinha-se tornado uma pessoa realmente encantadora: interessante, divertido e nada egocêntrico, pelo menos assim me parecia. Não só me incitava a falar da Sam tanto quanto eu sentia necessidade, como era atencioso de outras formas. Por exemplo, arranjou-me sanduíches para o nosso passeio inesperado e trouxe-me um boné de pala comprida para eu me proteger do sol. Foi, de facto, amoroso.

Imediatamente constatei que os anos que o Brendan passara enFado em Indiana não haviam comprometido a sua perícia de marinheiro. Em dez minutos, preparou o barco do tio e conseguiu afastá-lo do ancoradouro à primeira tentativa.

O barco à vela, com o fundo chato e pesado, era rápido e

instável, o que eu já sabia porque era idêntico ao do meu avô; lembrava-me de todos os Verões que passara a atravessar os treze quilómetros de comprimento do lago, de um lado para o outro a toda a velocidade, nesse barco com perto de cinco metros de comprimento. O Brendan tratou da vela grande enquanto eu fazia descer a quilha corrediça para dentro de água e me encarregava da bujarrona; os nossos movimentos pareciam sincronizados, como se já estivéssemos habituados a velejar juntos.

Estava um dia fantástico para andar ali na água. Uma brisa fresca soprava sob o céu enevoado e o ar estava a uma óptima temperatura de vinte e três graus.

O Brendan fazia comentários acerca das bonitas casas históricas que se alinhavam ao longo da margem. Havia já tanto tempo que não as via, que tinha a sensação de estar a vê-las pela primeira vez. Os pensamentos aprazíveis foram abruptamente interrompidos pelo ronco de uma mota de água, quando dois adolescentes começaram a descrever círculos à nossa volta, inundando-nos o barco. Deitei mão à corda da bujarrona e o Brendan deslocou-se rapidamente para o lado mais alto, mas era tarde demais.

O barco voltou-se, despejando-nos para a água.

- Estás bem? - ouvi perguntar, quando consegui chegar de novo à superfície.

- Estou. E tu?

- Sim. Não te preocupes. Consegui ver o número da chapa de matrícula do sacaninha.

Ri-me, enquanto o Brendan endireitava o barco e me ajudava a subir lá para dentro. Daí a pouco já íamos novamente a navegar, ensopados mas, de resto, perfeitamente bem. O resto da tarde foi muito agradável. Atravessámos os estreitos, passando pelo Country Club do Lago Genebra e pela Blac Point, uma casinha, de veraneio com treze quartos de dormir e aspecto excêntrico, construída no final do século XIX. Quando já tínhamos a pele da cara ressequida do sol e do vento, regressámos a Knollwood Road para mudar de roupa.

O Brendan tinha-me convidado para jantar.

E eu tinha aceitado.

 

No meu armário tinha precisamente o vestido certo: um vestido preto de linhas simples, que fazia sobressair a minha pele rosada pelo sol. Isto não é um encontro amoroso, dizia para mim mesma enquanto me maquiava, mas com discrição. É um encontro de amigos. Dois velhos amigos que se encontram para conversar.

- Uau! Olha para ti! - exclamou Brendan, quando me veio buscar para... fosse lá o que fosse.

- E olha para ti! - respondi.

Ele vinha de calças de ganga de linha direita, camisola azul de caxemira, sapatos de pala sem meias e bronzeado.

- Estás com ar de quem passa a vida na praia, sem trabalharcomentou, piscando o olho.

- Também estás com óptimo aspecto.

- É dos sapatos clássicos - brincou.

Jantámos no terraço voltado para o lago da Frent Country Inn, com uma vela a tremeluzir na mesa, entre nós os dois, e a água do lago a bater de encontro às estacas. Ainda estávamos a comer o peito de pato estufado com arroz selvagem quando o Brendan disse qualquer coisa a respeito da família dele e me perguntou pela minha. Contei-lhe que ambos os meus pais já tinham morrido.

- Somos só a Sam e eu.

- Lamento já não teres pais. E tudo o mais que te tem acontecido.

- É assim. Seja como for, cá estamos nós novamente no lago.

Quando chegou a altura de servirem o café, já tínhamos mudado para assuntos mais ligeiros. Dissemos piadas e rimos e ainda continuávamos em tal sintonia, que fiquei surpreendida. Tinha pensado que a nossa conversa ia ter momentos mortos, mas isso quase não tinha acontecido. E quando aconteceu, foi sobretudo porque eu estava demasiado ha defensiva.

Então o jantar chegou ao fim e eram horas de voltar para casa. Foi nessa altura que me dei conta de que o nosso encontro para jantar não era um simples encontro de velhos amigos. E de que era, sem dúvida, o melhor que eu tivera nos últimos tempos.

 

Certamente não fora planejado assim, mas o Brendan e eu tínhamos passado quase todo o dia juntos. E agora, um momento embaraçoso junto à porta principal da casa. Estávamos tão

próximos, que eu conseguia sentir o cheiro da água-de-colónia dele. Tenho de parar já com este disparate, disse para mim mesma. Por ambos.

Sustive a respiração quando essa noção me atravessou a mente. A seguir travei qualquer fantasia que pudesse levar ao tipo de problema que não estava capaz de enfrentar. Recuei um passo, afastando-me do Brendan.

- Bem, podia convidar-te para vires tomar um café, mas tenho de começar a escrever a minha crónica para amanhã.

- Está bem - respondeu.

Mas sentou-se nos degraus do alpendre, sem dar mostras de querer ir-se embora.

- Vem comigo nadar no lago, ou senta-te aqui fora para apanhares só um pouco mais de ar. O que quiseres. Mas não vás trabalhar esta noite. Não tens necessidade disso. Vá lá, Jenny. Relaxa!

As palavras Jenny, relaxa picaram-me um bocadinho. Mas também fiquei impressionada com a sua escolha. A Sam tinha escrito quase a mesma coisa numa das suas cartas.

- Está bem - respondi. - Mas não voltes a tratar-me por Jenny". Era assim que o Danny me chamava.

- Desculpa. Então conversa comigo, Scout. Quase não me falaste dele.

- Qualquer dia falo. Talvez. Mas hoje não. Falarei do Danny quando me sentir capaz. Do Danny e de outras coisas.

Ele pareceu confuso, ou perturbado.

Sentei-me nos degraus do alpendre, ao lado do Brendan.

- O que é? - perguntei.

- Ah, não é nada. Só queria contar a alguém que deixei hoje o meu emprego - proferiu finalmente, com um trejeito do lábio inferior. - Deixei-o hoje.

- Deixaste o teu emprego? - perguntei, espantada. - Porquê? O que aconteceu, Brendan?

- Nada de especial. Tenho passado demasiado tempo a olhar para sombras em chapas de plástico. Estava a pensar que chegou a altura de tratar de outras prioridades.

E olhou-me de um modo directo que me atraiu e me prendeu. Afastei o olhar, pensativa. O luar projectava no lago um brilho pálido. Ouvia- se o coaxar dos sapos, no meio dos arbustos. Estávamos sentados muito juntos. Demasiado juntos.

- Tenho mesmo de ir para casa - disse eu, pondo-me de pé.

- Obrigada por este dia. Foi divertido.

O Brendan também se levantou. Era fisicamente imponente e era atraente. Inclinou-se e deu-me um beijo na testa - o que, estranhamente, me agradou.

- Boa noite, Jennifer. Também gostei muito.

Pouco depois já estava deitada, na cama onde dormira durante anos, ali no lago. Estava a olhar para o tecto e na minha cabeça havia um turbilhão de pensamentos estranhos e contraditórios. O Brendan e eu passámos uma noite muito agradável, pensei. E ficanos por aqui. Porquê? Porque sim.

Abri mais uma carta da Sam.

 

Jennifer,

A princípio, entre mim e o Doc não aconteceu nada que valha a pena contar. Quase não nos tocávamos, nem sequer um olhar prolongado quando nos víamos na cidade. Era complicado. A mulher dele morrera alguns anos antes, mas eu era casada e tinha filhas, embora já crescidas. O Doc ainda tinha filhos em casa. Nesse primeiro Verão houve um momento digno de nota, e que se tornou para nós numa referência.

Numa noite em que o teu avô tinha ido jantar com os amigos a Medinah, fora de Chicago (ou pelo menos foi o que o Charles me disse), o Doc usou alguns conhecimentos para podermos ir ao Observatório Yerkes. Nessa altura o Yerkes era um observatório estritamente científico, albergando o maior telescópio refractor do mundo, e não estava aberto ao público. À noite não estava lá ninguém.

Então, imagina nós os dois a atravessar sorrateiramente os relvados muito bem tratados, de vez em quando de mãos dadas, em direcção ao complexo de edifícios de Yerkes, com as suas três cúpulas gigantescas recortadas no céu de uma noite de Verão. Depois subimos a escadaria larga e entrámos nos átrios de mármore mais bonitos que eu já vira.

O Doc tinha uma lanterna e seguimos o foco luminoso pelas escadas acima até chegarmos a uma porta que dava para a cúpula maior. Fiquei estupefacta com o seu tamanho interior, com um perímetro semelhante ao de um recinto desportivo. Ao centro, encontrava-se um telescópio que, através de uma abertura na cúpula, apontava para o céu-cobalto mais além.

- Observa isto, Samantha. Não vais acreditar - disse ele.

- Estás preparada?

- Acho que sim - respondi, não muito convicta.

Ele puxou uma alavanca, e o chão onde nos encontrávamos, numa extensão de mais de vinte metros de largura, começou a elevar-nos. Num instante alcançámos o ponto onde podíamos de facto olhar pela ocular fixa do telescópio.

Era sexta-feira, o início do fim-de-semana, e eu sabia que o

Charles em breve regressaria de Chicago. Contudo, o Doc e eu tivemos a coragem de permanecer no interior da cúpula durante mais de uma hora. As estrelas eram ofuscantes, como se o universo estivesse a apresentar uma exibição só para nós. Ele falou sobre o facto de o que nós estávamos a ver no céu ter acontecido centenas de anos antes, e depois o Doc confessou que havia já muito tempo que desejava secretamente estar assim completamente a sós comigo.

- Também eu o desejava - admiti. Desejava, rezava, fantasiava, quase todos os dias desde o jantar da Cruz Vermelha.

Beijámo-nos sob todos aqueles biliões de estrelas cintilantes. Depois beijámo-nos de novo, num beijo mais demorado e mais intenso. Nem mais. Ali estávamos nós, duas pessoas a apaixonarem-se, mas separadas pelo meu casamento, pelas nossas famílias, mas principalmente pelos filhos dele, que ainda viviam em casa do Doc.

Por fim ele levou-me até à esquina da Knollwood Road, e não me beijou uando eu saí do carro, embora, meu Deus, eu tanto desejasse que ele o fizesse. Entrei em casa e vi que o Charles estava a dormir. Eu tinha esperanças de não ter de inventar uma mentira, i mas afinal nem precisava de me ter preocupado.

Despi-me sem fazer barulho e quando me enfiei entre os lençóis

olhei para o rosto do Charles. Para minha surpresa, não me sentia i culpada pela aventura que tivera com o Doc nessa noite; mas tive um pensamento interessante. Pensei se o Chàrles iria notar algo diferente em mim na manhã seguinte. Iria notar que, enquanto ele dormia, eu me tornara feliz ?

 

Quando atendi o telefone junto à cama, ainda eram só vinte para as sete da manhã e tive uma surpresa para a qual não estava preparada. Ouvi a voz do Brendan.

- Acorda, Jennifer. O lago está à nossa espera.

Não tinha a certeza do que estava a fazer, mas comecei a sorrir e depois vesti o fato de banho. Sentia-me novamente criança e era uma sensação boa. Sentia-me livre.

Lá fora, juntei-me ao Brendan numa corrida ligeira, que depois passou a corrida a sério até ao lago. Por fim ambos soltámos aquele grito de guerra meio-maluco que ele costumava dar, e que de facto fazia todo o sentido. Àquela hora, a água estava muito fria, mesmo gelada.

- Ainda nem são sete horas - balbuciei, enquanto dava uma braçada firme e friorenta, nadando de bruços ao lado dele.

- A hora ideal para vir tomar banho. Tenho um novo mantra: Viver cada dia desde o romper da aurora, até já não conseguir manter os olhos abertos nem mais um segundo. "

Tudo bem. Não é possível pôr defeitos nessa filosoFia, principalmente porque o estado de espírito dele era contagioso. Nadámos até ao pontão da Sam e içámo-nos lá para cima. Ele sacudiu a água e depois deitou-se de costas. Eu fiz o mesmo e, deitados lado a lado, olhámos para o céu da manhã. Que estava perfeita, de facto.

- Faz-nos lembrar os cempos antigos - disse eu.

- Ou, quem sabe, os futuros - murmurou.

Eu estava consciente de que o meu lado direito, do ombro ao tornozelo, estava encostado ao lado esquerdo do Brendan. A pressão fazia o meu corpo vibrar, mas não me movi.

Quando ele voltou a cara para mim, evitei o seu olhar. Então ele pousou a mão na minha cintura e puxou-me ainda mais para junto de si. Eu não estava à espera, mas o calor que me atravessou o corpo quase derreteu o meu fato de banho.

E então o Brendan beijou-me os lábios. Um beijo longo e bom, um ótimo beijo.

E eu beijei-o também.

E nenhum de nós disse uma palavra, o que era exactamente a coisa mais acertada a fazer.

 

Desde a manhã do beijo, o Brendan e eu passávamos cada vez mais tempo juntos. Para ser completamente sincera, eu sabia o que isto era: um romance de Verão, agradável e efémero. E ele também o sabia, estava certa disso. Ainda nem tínhamos feito nada", como se costuma dizer.

O Brendan e eu começávamos quase todas as manhãs com um banho no lago; a seguir revezávamo-nos na preparação do pequeno-almoço, às vezes incluindo o seu tio Shep no ritual. E visitávamos a Sam todos os dias, da parce da manhã; depois eu costumava lá ir outra vez, por volta das sete horas. Conversava sempre com a Sam, por vezes durante várias horas seguidas. Contava-lhe o que ia acontecendo na minha vida e fazia-lhe perguntas relacionadas com as cartas.

Um certo dia estava eu do lado de fora do quarto da Sam, enquanto o Brendan Keller, na qualidade de médico, conferenciava com o Dr. Max Weisberg. Quando me encontraram no corredor, o Brendan trazia uma expressão grave. Mas viu que eu estava a olhar e desviou a cara.

Admito que estava à espera de notícias animadoras. Talvez porque o facto de andar a ler as cartas da Sam e, mentalmente, ouvir a sua voz e vê-la com tanta nitidez, me levasse a pensar que ela ia melhorar, tinha de melhorar. Mas agora, o pensamento que me ocorreu foi: Ela não vai ficar boa. Vejo isso nos olhos deles. Só não querem dizer-me.

- Ela é uma mulher forte - aFirmou Brendan, pondo a mão no meu braço. - Tem-se aguentado muito bem, Jen. Talvez haja uma razão para isso.

Quando deixámos o hospital, o Brendan procurou animar-me.

Agradava-me o facto de ele ser sensível às minhas preocupações e também tinha a sensação de que devia ser um bom médico. Mas por que motivo teria deixado o emprego?

- Que tal irmos dar um passeio de carro? - perguntou.

- Vai ser divertido.

Bem, estava um dia formidável para passear. Então, com um CD a tocar muito alto os maiores êxitos de James Taylor, Aretha Frank1in e Ella Fitzgerald, tomámos a estrada que circunda Chicago e fomos até South Bend, Indiana, onde chegámos pouco antes do meio- dia.

O Brendan piscou-me o olho e disse que eu ia gostar muito de uma coisa. Um amigo dele era um dos treinadores dos Notre Dame Figbting Irisb e tinha-nos convidado para assistir ao trabalho de preparação da equipe no campo de treino. Sentámo-nos de pernas cruzadas no relvado aparado, enquanto uma dúzia de jogadores da primeira categoria treinavam os seus lances. Ver futebol americano na televisão foi coisa que nunca me entusiasmou, mas o desporto sente-se muito mais quando presenciado de perto.

A velocidade da ação ao nível do solo era incrível, tal como o estrondo violento do embate dos capacetes e dos protectores dos ombros.

Assistir ao treino dos Blue and Gold foi uma maneira surpreendentemente agradável de passar a tarde, talvez porque era a equipe do Brendan. Também foi divertido ver onde ele vivia, embora não tenha querido mostrar-me a sua antiga casa, nem mesmo o apartamento para onde se mudara depois do divórcio. É uma zona de desgraça, completamente proibida; eu ficaria demasiado envergonhado, disse ele. E então voltámos para o Lago Genebra sem ver a casa dele. Um bocado estranho, pensei, mas também não tem grande importância.

No dia seguinte ao da nossa aventura com o Notre Dame, fiz uma surpresa ao Brendan. Levei-o ao Observatório Yerkes. Estava sempre a estabelecer paralelos entre ele e eu e a Sam e o Doc " portanto tinha de lá ir. Fomos de dia e havia uma multidão de pessoas em volta do recinto da cúpula maior, mas mesmo assim era um local mágico.

Durante todo o tempo pensei no que aquele sítio significava para a Sam e para o Doc. imaginava: Mas afinal, quem é o Doc? Da próxima vez que falar com a Sam, ela vai ter de me desvendar o seu segredo.

Houve outra manhã em que tratei de tudo para ir com o Brendan dar um passeio no barco-correio, um ferry- boat de duplo convés que percorre a linha da costa, fazendo a entrega da correspondência nas casas que ficam junto ao lago. Nessa mesma tarde vimos dois filmes disparatados no pequeno cinema da cidade, um a seguir ao outro. E também tínhamos mais um hábito. A última coisa que fazíamos à noite, depois de eu ter ido ver a Sam, era darmos um longo passeio a pé pela vereda que circunda o lago.

Estar com o Brendan dava-me, de facto, a sensação de um romance de Verão à moda antiga: breve, irresistível e provavelmente um bocado idiota, mas, mesmo que o fosse, ambos parecíamos senti-lo da mesma maneira. Eu tinha a impressão de que o Brendan, além do mais, precisava desse romance, e também de que se continha, que tinha a preocupação de não deixar que as coisas se tornassem demasiado sérias.

Até lhe chamei a atenção para isso, quando seguíamos no barco- correio de Hank Mischuk.

Mas o Brendan limitou-se a rir.

- Eu sou um livro aberto, Scout. Tu é que és a mulher misteriosa.

E depois um dia aconteceu a coisa mais estranha. Não entreguei a minha crônica! Foi a primeira vez que o fiz, ou melhor, não fiz. Pedi desculpa à Debbie e prometi escrevê-la rapidamente, mas por dentro sentia-me exultante. Alguma coisa estava a mudar. Talvez eu estivesse a viver cada dia desde o romper da aurora, até já não conseguir manter os olhos abertos".

Nessa manhã contei tudo à Sam no hospital e, apesar de ela não ter dito uma palavra, senti que sabia o que ela queria que eu fizesse a seguir. Era o que a própria Sam faria.

 

Ao fim da tarde desse dia, o Brendan e eu estávamos sentados na extremidade do pontão da Sam. Eu agitava os dedos dos pés na água. O Brendan também.

Já era altura de eu lhe contar alguns dos meus segredos. Queria fazê-lo. Estava preparada.

- Aconteceu ao largo de uma praia, em Oahu - comecei, com voz fraca e baixa. - O Danny gostava de luzes brilhantes e de cidades grandes, por isso se tivesse sido ele a escolher teríamos ido passar as férias a Paris, ou talvez a Londres. Decidimos ir para o Havai porque fui eu que quis.

Suspirei, depois sustive a respiração.

- No último instante dei por mim envolvida numa história horrível acerca de um rapto. E então o Danny foi à minha frente. Dois dias mais tarde eu partiria de Chicago. Ao fim da tarde desse dia, ele foi dar uma volta, sozinho, é claro.

O Brendan olhava-me atentamente enquanto eu ia falando com certa dificuldade.

- Não precisas de fazer isso, Jennifer - disse ele, por fim.

- Preciso, sim. Tenho de o fazer. Preciso de deitar cá para fora e quero fazê-lo, Brendan. Quero contar-te. Não quero continuar a ser uma mulher misteriosa.

Ele acenou afirmativamente e pegou na minha mão. Algo acontecera entre nós os dois nas duas últimas semanas; eu tinha adquirido uma confiança no Brendan que nunca imaginara. Ele era meu amigo. Não, era mais do que isso.

- Estava um belo fim de dia na praia a norte de Oahu, um local chamado Kahuku. Li todos os registros meteorológicos. O Danny despiu a T-sbirt e correu para as ondas, que eram altas, mas ele era um bom atleta, nadava muito bem. Adorava tirar o melhor partido de tudo. Uma das suas frases preferidas era Vamos em frente, Jenny! ". Estava sempre a meter-se comigo, a dizer que eu tinha de ser mais corajosa.

Sentia as lágrimas a correrem-me pela cara, mas não queria chorar. Não em frente do Brendan.

- Ele era tão bom, tão carinhoso... e havia tantas coisas que ainda queria fazer... - a minha voz fraquejava. Não sabia se conseguiria terminar o que tinha começado. - E eu gostava tanto dele... vejo em pormenor tudo o que aconteceu no Havai. Este pesadelo horrível, que tenho tantas vezes. Há ano e meio que vejo o Danny a morrer e a tornar a morrer. E a chamar por mim. A dar o último suspiro e a chamar pelo meu nome.

Detive-me, para cobrar o ânimo. Apercebi-me de que estava a agarrar a mão do Brendan com toda a força.

- A culpa foi minha, Brendan. Se eu tivesse ido para o Havai quando devia, o Danny estaria hoje vivo.

O Brendan segurou-me a mão.

- Pronto, pronto - murmurou, com a sua voz suave e gentil.

- E ainda há mais - acrescentei, tão baixo que mal me ouvia.

- Quando regressei a Chicago, não conseguia parar de chorar e de pensar no que tinha acontecido. A Sam foi para a minha casa, para me fazer companhia. Cuidou tão bem de mim, Brendan!

Não consegui falar por um momento. Mas, ao fim e ao cabo, já tinha chegado até aqui.

- Eu estava na casa de banho. Senti uma dor aguda e caí no chão, dobrada sobre mim mesma. Gritei e a Sam foi a correr. Viu imediatamente que eu tinha tido um aborto. Amparou-me e chorou comigo. Perdi o bebé. Perdi o nosso bebê, Brendan. Estava grávida e perdi o nosso feijãozinho,

 

O Brendan icou muito tempo a amparar-me, no pontão. Mas eu ainda tinha de ir desejar boa noite à Sam, por isso meti-me no " carro e fui até ao centro médico, cerca das vinte e trinta. O Brendan ofereceu-se para me acompanhar, mas eu disse-lhe que me sentia bem. Levei à Sam rosas do seu jardim.

- Sam, acorda. Olha - disse-lhe -, tens de ver as tuas rosas. E preciso de falar contigo.

Mas ela não teve qualquer reacção. Nem conseguia ouvir-me, acho eu.

Coloquei as flores num jarro de faiança no peitoril da janela e ajeitei-as de modo a compor melhor o ramo.

Depois voltei-me para a Sam.

- Estás a perder tudo. Estão a acontecer muitas coisas, Sam.

Ela estava macilenta e abatida, com mau aspecto. Eu nunca me tinha sentido tão preocupada com a ideia de a perder. De cada vez que via a Sam, ficava com medo que fosse a última. Cheguei uma cadeira para junto da cama.

- Tenho um segredo para te contar. Sam, há no lago uma pessoa de quem gosto. Estou a fazer um esforço para não gostar demasiado. Mas ele é tão meigo; é espirituoso, no bom sentido. E até é um belo pedaço de homem. Eu sei, eu sei que nunca se encontram todas estas três qualidades num só homem.

Dei à Sam um momento para absorver as notícias. E

- Vou chamá-lo Brendan. Ah, ah. Porque esse é o nome dele. Também podia chamar-lhe Doc. Ele é médico.

Lembras-te de que eu costumava andar sempre atrás do Brendan Keller para toda a parte, quando era miúda? Pois bem, ele já não é um garoto. E eu conFio inteiramente nele, Sam. Contei-lhe o que aconteceu com o Danny e com o bebê. Não sei se ele gosta de mim ou não. Quero dizer, ele gosta de mim, mas sempre com alguma reserva. E acho que eu também. Já estás baralhada? Eu estou.

Por Fim parei de tagarelar e peguei numa das mãos da Sam. Fiz aquele jogo de simulação em que pensamos numa coisa e fingimos que outra pessoa está a ouvir os nossos pensamentos.

Preciso que conheças o Brendan, Sam. Podes fazer isso por mim? Só desta vez.

 

- Tu sabes que é completamente irreal, esta vida no lago que estamos a viver este Verão - afirmou Brendan, com um sorriso.

Vínhamos de regresso de um jantar na Estalagem do Lago Genebra, na noite do dia seguinte. A chuva caía torrencialmente, alagando tudo. Estive quase para pedir ao Brendan que desviasse o carro para a beira da estrada.

- A ideia foi tua: todos os momentos, desde o nascer do Sol até já não conseguir manter os olhos abertos. Foram as tuas palavrasdisse-lhe eu.

Quando chegámos à casa da Sam, atravessámos a correr o pátio encharcado para nos protegermos debaixo do alpendre da frente. Abri a porta com um sacão.

- Fica aqui. Vou buscar toalhas - e entrei à frente dele. Estava a meio caminho do armário das roupas de casa, quando a luz de um candeeiro de mesa tremeluziu e se apagou. Senti um cheiro a queimado. Ib!

Com a anca, empurrei a cadeira de braços para a afastar da parede e vi no canto uma coisa branca e inerte.

Era a Eephoria.

Algo de errado se passava com ela.

- Brendan, vem depressa! - chamei.

Num instante, ele já estava ao meu lado. Pegou cuidadosamente na minha gata e colocou-a ao meio da carpete. Ò que vi deixou-me mal disposta. O pêlo em volta da boca da Eepóoria estava chamuscado e ensanguentado. Então percebi que ela não estava a respirar.

- Meu Deus, o que Lhe aconteceu?

- Parece que mordeu um fio eléctrico - respondeu Brendan. Colocou dois dedos na parte superior da prega interna da pata esquerda traseira.

- Ela está muito mal, Jennifer. A pobrezinha já quase não tem pulsação.

Eu adorava aquela bichinha desde que a salvara do canil e gatil municipal, logo a seguir à morte do Danny. Para mim, a Euhoria não era apenas uma gata. Eu gostava muitíssimo dela. Agarrei no braço do Brendan.

- Por favor! Podes fazer alguma coisa por ela?

Ele inspirou fundo.

- Está bem, ouve. Quando eu disser, faz pressão neste sítio exacto. Cinco vezes.

Então voltou-a de lado. Ela não fez qualquer movimento, não emitiu qualquer som.

Ele abriu-lhe a boca e inclinou-se para ajustar a boca dele à dela. Soprou cinco vezes para dentro dos seus pulmões.

- Agora! Faz pressão, Jennifer.

Pressionei o lado esquerdo da caixa torácica da Eupóoria, massajando-lhe o coração, ao mesmo tempo que rezava. Então o Brendan fez-me sinal para parar. O meu coração palpitava, batia como louco.

Inclinou-se sobre ela e voltou a soprar-lhe para a boca. Fff Estava a fazer tudo o que podia. A agir como médico, mesmo à frente dos meus olhos.

Então vi acontecer um milagre. Senti a Eupborid voltar à vida, nas minhas mãos. Ela estremeceu e tossiu. A seguir abriu os seus belos olhos verdes e olhou para mim. Tinha os olhos repletos de amor. Estava a respirar espontaneamente.

Por fim pôs-se de pé, um pouco cambaleante, e disse: Miau!

Agarrei-a só com um braço e dei-lhe um beijo. Passei o outro braço em volta do pescoço do Brendan e beijei-o. Abracei-o com toda a força, quase esmagando a Euboria entre os dois.

- Salvaste a minha pequenina - sussurrei.

O Brendan sentou-se sobre os calcanhares, com uma expressão de grande satisfação no rosto. E então disse uma coisa maravilhosa.

- Tens de saber que te amo, Jennifer. Acabei de dar um beijo da vida a um gato.

Espantada, olhei-o nos olhos. O Brendan acabara de dizer: Amo-te.

 

Ultimamente vinha-me à ideia, com alguma frequência, que o Verão estava a passar demasiado depressa. Estávamos mais uma vez na nossa hora mágica" - o momento do dia em que mais gostávamos de estar no pontão da Sam. O Brendan e eu estávamos sentados lado a lado, a balançar os pés, encostados um ao outro. Notei que ele estava a olhar fixamente para a outra ponta do lago, perdido nos seus pensamentos, onde quer que fosse que eles o levassem.

- Estás bem? - perguntei. É claro que sabia que estava. Como poderia não estar bem?

- Eu. uhm. - respondeu. E depois não disse mais nada.

- Tu estás sem palavras? Não posso acreditar. Não acredito. Tu... uhm... o quê? - brinquei.

Mas ele, estranhamente, não alinhou na brincadeira. O que se passava? Teria chegado a altura de o Brendan também me confdenciar alguns segredos? Já teria confiança sufciente em mim?

- Tenho de te contar uma coisa, Jennifer.

Virei-me um pouco, desencostando o ombro do dele. Agora conseguia ver melhor a sua cara. Ele desviava os olhos.

- Não vais dizer-me que ainda estás casado? - perguntei, mas não gostei de ouvir as minhas próprias palavras.

Ele olhou para mim.

- Estou divorciado, Jennifer. O problema não é esse... É que, quando nos encontrámos há umas semanas, não fazia ideia nenhuma de que isto ia acontecer. Quem é que poderia? Não imaginava que existisse alguém como tu.

- Que pena, amigo. Lamento muito.

Mas o Brendan não achou graça. Quando muito, pareceu preocupado. Não era ele. Então percebi. Estava mesmo apaixonado por

mim

- Mas. - começou.

Tive o pressentimento de que não ia gostar daquele mas. Tinha

tanta certeza disso, que senti um calafrio.

- Mas o quê? - perguntei

Ele não respondeu logo à minha pergunta e continuei a sentir um nó no estômago. Fosse o que fosse que se passava, não era coisa boa. O Brendan não queria, ou não conseguia, olhar-me frontalmente e isso nunca antes acontecera.

- Brendan, o que se passa?

Ele suspirou.

- Isto vai ser difícil. Acho que vou ter de começar pelo princípio.

- Tudo bem - concordei. - Mas conta-me o que se passa.

Ele mostrou-me o pulso.

- Já alguma vez te mostrei isto, Jennifer?

Era um relógio Rolex muito bonito. É claro que eu já antes tinha reparado nele, mas o Brendan nunca me falara do relógio.

- Um pouco extravagante para a tua maneira de ser - comentei.

- Foi-me oferecido por um amigo que morava ao meu lado, em Indiana. Chamava-se John Kearney. O John era professor universitário, em Notre Dame. Um tipo muito, muito fixe. Com quatro flhas. Costumávamos ir juntos aos jogos de futebol, jogávamos ténis uma vez por semana. Quando ele tinha cinquenta e um anos, foi ao médico por causa de uma tossezinha e voltou com uma radiografia que apresentava uma grande mancha no pulmão.

Ele mostrou-ma. Quando vi a película, levei o John à Clínica Mayo, onde eu tinha feito estágio. Arranjei-lhe um óptimo cirurgião. Oncologista. Jennifer, seis meses mais tarde, o John pesava cinquenta quilos. Já não conseguia comer, nem sair da cama. Tinha dores permanentes e não apresentava quaisquer melhoras.

O Brendan olhou-me nos olhos. Senti-me emocionada com a profundidade da sua tristeza. Eu já tinha passado por isso; talvez ainda estivesse a passar.

- Eu ia levar o John para mais uma sessão de radioterapia, mas ele recusou terminantemente. Disse-me o seguinte: Por favor pára com isto, Brendan. Gosto muito de ti e sei que fazes por bem. Mas eu já tive uma vida boa. Tenho quatro filhas encantadoras. Não quero continuar assim. Por favor deixa-me morrer. "

Pedi-lhe desculpa e abracei-o, e depois ambos chorámos. Eu sabia que o John tinha razão. Não podia mudar aquilo que já tinha feito, mas a maneira como encarei os procedimentos agressivos que por vezes os médicos tomam, porque podemos fazer assim, mudou para sempre.

Quando o John morreu, deixou-me este relógio - continuou o Brendan. - O que ele significa para mim é qualidade do tempo, tirando dele o melhor partido. Por isso, quando interpretei a minha própria TAC no princípio do Verão, decidi fazer o que é melhor para mim. Lamento muito tudo isto. Não tenho palavras para te dizer o quanto lamento. Não gosto muito de melodramas, principalmente quando se trata de mim. Estou a morrer, Jennifer.

Acho que fiquei em estado de choque durante um ou dois segundos. Ouvi o Brendan dizer a minha TAC", mas não tenho bem a certeza de ter entendido o que se seguiu. Mas depois ele falou e ouvi-o com toda a clareza.

- Não há nada que se possa fazer por mim. Acredita, já verifiquei todas as possibilidades.

Senti uma dor incrível no íntimo do meu peito, ou talvez no lugar onde o meu coração costumava estar. Estava estonteada e com náuseas e não conseguia acreditar realmente naquilo que sabia ter acabado de ouvir. Tudo à minha volta, no pontão, parecia indistinto e irreal. A água onde tinha os pés, o meu próprio corpo, a mão do Brendan pousada na minha. De repente, estendi o braço e agarrei-o com toda a minha força. Beijei-lhe a face, a têmpora. Sentia-me tão incrivelmente triste e vazia.

- Conta-me qual é o problema - pedi, por fim.

- Pois bem, chama-se glioblastoma multiforme, Jennifer. Um nome comprido para um tumor maligno que tenho aquiapontou para a parte posterior da cabeça e para a parte lateral, mesmo atrás da orelha esquerda. Explicou que já tinha estudado o seu caso vezes sem conta, consultado especialistas em lugares distantes, até em Londres, e chegava sempre à mesma triste conclusão. - O único tratamento para esta forma de cancro está em experiência, e é extremamente radical - contou-me. - A cirurgia é um pesadelo. O risco de paralisia é muitíssimo elevado. Além do mais, é provável que nem consigam remover todas as células. Este tipo de cancro costuma recidivar, mesmo com radioterapia e quimioterapia.

As lágrimas corriam-me pela cara, e sentia-me vazia.

- Não pode ser verdade - murmurei.

- Não sabia como havia de te dizer, Jennifer. Ainda não sei.

Puxou-me para si e deixei-me ficar nos seus braços. Quando voltou a falar, fê-lo em voz baixa e compassada.

- Sinto muito, muito, Jennifer - estava a consolar-me a mim.

- Desculpa.

- Oh, Brendan - sussurrei. - Como é que isto pode estar a acontecer?

- Algum tempo com qualidade. Era tudo o que eu queriaproferiu, num suave murmúrio. - Foi por isso que decidi passar aqui um último Verão. E então encontrei-te de novo, Scout.

O Brendan e eu ainda nem tínhamos ido para a cama e agora talvez eu entendesse porquê. Foi uma das poucas coisas que compreendi nessa altura.

- Esta noite não quero ficar sozinha - disse, encostada à sua cara. - Está bem?

Então ele dirigiu-me aquele seu sorriso incandescente.

- Eu não queria ficar sozinho já há trinta e quatro noites.

- Mas quem é que está a contá-las?

- Eu - respondeu.

Peguei na mão do Brendan e beijei- a.

- Estavas - emendei.

Pareceu que passámos do pontão para a cama sem sequer tocarmos o solo. Abraçámo-nos assim que entrámos a porta, balançando-nos na soleira. Beijámo-nos demoradamente e por fim admiti para mim mesma que realmente adorava os beijos do Brendan. Depois despimo-nos desajeitadamente e tombámos na cama do meu quarto.

- Acho que a minha história lamecha resultou - gracejou ele.

- Chiu. Nada de piadas.

Mas ele não conseguiu resistir.

- Scout? És mesmo tu? - perguntou, fazendo-nos rir a ambos. Na verdade, eu gostava imenso de me rir com ele, gostava do facto de ele conseguir fazer-me rir.

Pus as mãos no seu cabelo farto e beijei-o vezes sem conta. Adorava a sensação da sua pele roçando a minha. Adorava o seu cheiro. Toquei nos caracóis macios do seu peito, depois as minhas mãos desceram pelo seu corpo, percorrendo-o todo. Estava a acolhê-lo em pleno, a apreendê-lo. Queria consumi-lo, e fi-lo de todas as formas que fui capaz. Já não conseguia negar por mais tempo os meus sentimentos. Não queria.

Ternamente, o Brendan beijou-me os seios, a concavidade da minha garganta, a minha boca, as minhas pálpebras; depois recomeçou tudo. Eu estava completamente perdida. Ele era tão gentil e tão bom! Murmurava o meu nome, fazendo deslizar as mãos pelo meu corpo. Sabia tocá-lo de uma forma maravilhosa, provocando-me pele de galinha.

- Tu és linda sem roupa, ainda mais bonita do que eu imaginava. Soube-me tão bem ouvir isso, eram as palavras certas. Duvido que ele soubesse o quanto eu precisava de ouvir essas palavras. Havia um ano e meio que não ia para a cama com ninguém.

- Tu também és - respondi.

- Sou bonito?

- És, pois.

Não escondemos nada um do outro; não houve timidez, e só um pouco daquele nervosismo de uma primeira vez. Era como se isto desde sempre estivesse destinado a acontecer. Talvez esta fosse mesmo a verdade. Algum tempo depois descansávamos nos braços um do outro, segredando. Eu não conseguia deixar de olhar fixamente para os olhos espantosos do Brendan.

Todos os meus receios desapareceram, todas as incertezas e dúvi das. Por fim deitámo-nos de lado, voltados um para o outro, tão aconchegados que não havia espaço entre os dois. Eu tinha as pernas enganchadas em volta da cintura dele, com os seus joelhos dobrados entre os meus.

Foi assim que dormimos.

Quando acordei, ainda estava nos braços do Brendan. Tive de admitir que gostava de estar assim.

- Scout? - sussurrou, e eu dei-lhe um murro no braço.

- Vês, ainda és uma maria-rapaz.

- Como é que podes dizer uma coisa dessas, depois desta noite?

- Tens razão. És uma maria-rapariga. Sem dúvida uma rapariga. Não, és uma mulher linda, Jennifer. Fazes-me tão feliz!

Abracei-o com força, e nesse momento o romper da aurora" entrou por entre as cortinas.

Quase como numa deixa, os olhos do Brendan abriram-se completamente e lá estava aquele seu sorriso espantoso.

- Aqui vamos nós! - exclamou.

Como é que eu podia dizer que não?

Sem vestirmos os fatos de banho, corremos para o pátio como garotos. Um bando de patos assustados levantou voo no meio da neblina que se erguia do lago, quando corremos ruidosamente sobre o pontão. As tábuas ressoavam e estalavam sob os nossos pés descalços.

Lançámos o grito quando mergulhámos no lago límpido como o cristal.

Como se tudo no mundo estivesse certo, em vez de terrivelmente, terrivelmente errado.

Fui visitar a Sam nessa manhã e tive de lhe contar tudo. No passado a Sam teria dito Estás demasiado entusiasmada. Acalma-te, Jennifer". Mas eu não podia acalmar; não havia tempo. E então conversámos, ou antes, conversei eu, durante mais de uma hora.

- Sam, já não sinto nenhum peso na consciência e não estou muito interessada em analisar porquê. Talvez seja por o Brendan estar doente. Tenho de tentar fazer alguma coisa. O que achas, Avó? Preciso da tua ajuda. Já estás a descansar há demasiado tempo.

Mas a Sam nada tinha para me dizer e isso era terrivelmente triste e frustrante. Durante toda a minha vida, sempre pudera contar com ela.

Mais tarde, nessa manhã, tive um encontro com o Max Weisberg. Precisava de uma segunda opinião e não era sobre a Sam. Queria falar com o Max acerca do Brendan.

Segui os aromas encantadores de macaroni frito e café que vinham do bar do hospital, uma sala estilo cafeteria com mesas de fórmica e cuja vista dominava o parque de estacionamento. Enchi de açúcar e café um copo descartável, depois voltei-me e vi o Dr. Max sentado a uma das mesas junto à janela.

Já o tinha encontrado tantas vezes ao longo das últimas semanas, que ele quase perdera o seu ar intimidance. Na verdade estava com um aspecto muito jovem, sentado do outro lado da sala, com toda a simplicidade. Com o cabelo louro cortado à escovinha muito espetado, enquanto acabava rapidamente a tosta de centeio e o café.

- Hum! - exclamei.

- Estás preocupada com alguma coisa. O que se passa?

Resumi o que o Brendan me contara na noite anterior, que ele tinha um tumor cerebral muito grave, com um péssimo prognóstico, e que preferira passar um Verão em grande em vez de tentar qualquer tratamento radical.

- Quando é que deixas de fumar? - perguntou-me Max, quando eu terminei.

- Max. Agora não. Por favor. Além disso, já praticamente deixei de fumar. Até ontem.

- Mas tens de deixar - afirmou, com um suspiro. - Ouve, não vou mentir-te. O glioblastoma multiforme cerebral é um horror. O Brendan tem toda a razão, quanto a isso. A cirurgia é arriscada; o tratamento tanto pode resultar, como não. O Brendan está a par de tudo isto.

- Max, há alguma coisa que se possa fazer? Há alguma hipótese de ele sobreviver, com uma qualidade de vida decente?

- Se ele sobrevivesse à cirurgia, se sobrevivesse ao tratamento, teria trinta por cento de possibilidades de viver por mais dois a cinco anos. Mas, Jennifer, ele podia submeter-se à cirurgia e ficar completamente paralisado. O Brendan manteria a capacidade de raciocinar, mas não de falar ou de fazer o que quer que fosse. Acredites ou não, estou a subestimar os riscos.

Não queria começar a chorar à frente do Max, mas às vezes ele tinha uma maneira tão brusca de expor os problemas médicos!

- Não sei o que fazer. Estou a ficar maluquinha. Não pode ajudar-me?

- Lamento - respondeu Max. - A minha especialidade é neurologia.

Olhei para ele, as lágrimas começaram a correr-me pela face e, para meu espanto, ele mostrou-se compadecido.

- Desculpa. Mas foi um golpe duro, mesmo para mim. Meteu a cabeça entre as mãos e pousou os cotovelos na mesa.

- Deixa-me dizer-te isto de uma maneira mais correcta, Jen. A sensação que eu tenho é de que o Brendan resolveu aproveitar da melhor maneira o tempo que lhe resta. Optou por passar um belo Verão contigo. Tem sorte em poder passá-lo contigo e tenho a certeza de que ele está ciente disso. Por outras palavras, acho que fez uma opção muito inteligente. Lamento sinceramente - acrescentou, pegando na minha mão. - Não mereces isto, Jennifer. Nem o Brendan.

Enquanto seguia no carro de regresso à casa da Sam, fui a pensar numa série de coisas que o Dr. Max Weisberg tinha dito. Estacionei por baixo do carvalho, descalcei os rrzocassins e dirigi-me para o pontão do Shep. O Brendan estava no lago, a nadar. Tinha um ar vigoroso, não o de uma pessoa doente, e muito menos de um doente terminal. O meu estômago começou a revolver-se.

Ele viu-me e acenou-me. Depois chamou-me.

- Vem para aqui, a água está fantástica. E te também estás fantástica.

- Não, vem tu para aqui - respondi, batendo com a mão na madeira do pontão. - Senta-te aqui ao meu lado. Estou a guardar-te um lugar. O ontão está fantástico.

O Brendan veio a nadar na minha direcção. Com um movimento ágil, içou-se para fora da água. Depois passou o braço por detrás de mim e beijou-me.

- Agora não - pediu, depois de me beijar.

- Agora não, o quê? - perguntei.

- Não vamos falar sobre isso agora, Jen.

Olhou-me nos olhos, franzindo o olhar por causa do sol.

- Seria desperdiçar um dia tão bonito - continuou. - Temos tempo para falar de coisas sérias.

Óptimo. Então preparei o almoço e servi-o no amplo alpendre dianteiro da casa da Sam: salada de frango com uvas brancas sobre pão integral de oito cereais, batatas fritas e chá gelado. Lá em baixo, a luz do sol bailava no lago e o aroma das rosas da Sam saturava o ar. O Henry estava a trabalhar no jardim; parecia que estava sempre ali.

  1. estava um dia fantástico, não era? O rapaz certo, a rapariga certa, só o timing estava errado. Durante todo o almoo não consegui evitar a sensação de que ia sucumbir e desatar a chorar, mas consegui dominar-me. Talvez o Brendan já estivesse habituado à ideia da sua morte, mas eu não estava.

Ele estava a impermeabilizar o pontão do Shep e o trabalho já ia a meio, por isso o Brendan foi continuá-lo a seguir ao almoço. Eu estava a levantar a mesa, quando encontrei um papel dobrado debaixo do meu prato. Li o seguinte:

 

JENNIFER,

ESTÁS FORMALMENTE CONVIDADA PARA JANtAR NA RESIDENCIAL. POR VOLTA DAS 19H00.

VEM COM TODO O TEU ENCANTO.

BRENDAN

 

Um coro de sapos a coaxar acompanhou-me enquanto atravessava o relvado, ao anoitecer, e me dirigia para oeste pelo caminho que contorna o lago. Estava uma noite magnífica, com o céu límpido e uma brisa fresca. Fui de calças pretas, top sem costas com um casaco de malha preto e levava sandálias. Queria estar bonita para o Brendan e achei que estava com uma aparência razoável. Não sou uma beldade, mas arranjo-me bem.

Havia numa clareira junto ao lago uma pequena residencial ligada a um pátio com o chão empedrado. Vi bifes a marinar e uma garrafa de vinho tinto e o Brendan a atiçar o carvão do churrasco, fazendo erguer faúlhas no ar.

Ele beijou-me, e beijava bem. Os seus beijos permaneciam nos lábios.

- Ocasião especial - proferiu, entregando-me um copo de vinho. - Hoje faço anos.

- Ohhh, Brendan. Que coisa! Por que é que não me disseste? Sei que fiquei muito vermelha e senti-me pessimamente.

- Não queria nenhum espalhafato - respondeu, encolhendo os ombros. - Não é um aniversário especial. Não tem zeros.

Fiz as contas. Ele completava quarenta e um anos. Aena. quarenta e um. Bati com o meu copo no dele.

- Feliz aniversário! - exclamei, abstendo-me da ladainha habitual dos parabéns.

- Estou muito feliz por estares aqui - respondeu. - É um feliz aniversário.

Os pirilampos traçavam letras cursivas de néon no ar da noite, enquanto eu mexia a salada e o Brendan punha os bifes a grelhar. Havia um leitor de CDs na residencial, e pouco depois Eva Cassidy evocava a noite como só ela sabe fazer. O Brendan convidou-me para dançar. Peguei-lhe na mão e imediatamente senti o sangue a afluir-me à cabeça. Ele envolveu-me nos seus braços e dançou comigo descalço na relva. Tudo tão simples, mas eu adorei. À voz de Eva seguiu- se a de Sting, no leitor de CDs personalizado do Brendan.

Ele dançava bem, muito coordenado, mesmo assim descalço na relva. Sabia conduzir, ou seguir, e tinha os pés tão ligeiros que me dava a sensação de sermos um só. Flutuávamos sobre o relvado, com as caras encostadas. Foi muito agradável, direi mesmo magnífico. Combinávamos na perfeição.

- Os bifes estão a queimar-se - murmurei, quando a Toni Braxton começou a cantar Unbrea My Heart.

- Não tem importância - respondeu Brendan.

- És um verdadeiro Príncipe Encantado, sabias? Bonito, espi rituoso, sensível para um adepto de futebol.

Ele sorriu-me.

- Que pensamento tão simpático para um aniversariante.

- Depois de comermos, tenho um presente realmente bom para ti. Toda a tarde pensei nisso.

- Então devias saber que eu fazia anos.

- Estou a improvisar - respondi, sorrindo.

Então, primeiro jantámos e bebemos um vinho delicioso oriundo de uma zona qualquer do Estado de Washington. Dua. garrafas. Dançámos ao som deJill Scott e de Sade e a seguir... bem, afinal era o aniversário dele.

A residencial estava toda decorada com móveis forrados de chita e tinha uma cama enorme com vista sobre o lago. Foi nela que o Brendan e eu fizemos amor até já não conseguirmos manter os olhos abertos, Ele era um autêntico Príncipe Encantado, em todos os sentidos que eu poderia imaginar. Até no seu aniversário.

Também me recordo de outra coisa muito agradável. Mesmo antes de adormecer finalmente, cantei os parabéns ao Brendan. Fi-lo do fundo do coração, e ele cantou comigo, também do fundo do coração.

Acordei na residencial, com uma ligeira dor de cabeça por causa do vinho que bebera, seguida de um estremecimento de medo quando me apercebi de que estava sozinha. Pela altura do Sol, calculei que uma parte da manhã também já se fora. Reuni as minhas roupas e, para meu alívio, encontrei um bilhete em cima das sandálias.

Queridda Jen,

Eu tinha razão, tu és o máximo. tenho um pequeno assunto a tratar em Chicago. Nada de importante. Encontraremo-nos logo à noite? Espero que sim. Mal posso esperar para voltar a ter-te nos meus braços. Já sinto saudades tuas. Espero que sintas o mesmo em relação a mim.

Beijos do

Brendan

Agarrei o bilhete junto ao peito e atravessei rapidamente três relvados nas traseiras de casas, vestida com as roupas pretas da véspera. A Euboria e a Sox saudaram-me ao cimo das escadas do alpendre da Sam, meneando-se por entre as minhas pernas e queixando-se do atraso do pequeno-almoço.

Quando estava a pedir-lhes desculpa, surgiu uma carrinha vermelha na zona de estacionamento. O jardineiro da Sam saltou da cabina. Vi que o Henry estava muito agitado. O que seria?

- Jennifer, toda a gente tem andado à sua procura - exclamou.

Nesse momento ouvi o telefone tocar lá dentro. A Sam, não! pensei.

- Um momento, Henry! - gritei-lhe. - Telefone! Abri de repente a porta das traseiras e atrapalhei-me com o auscultador antes de conseguir encostá-lo ao ouvido. Imediatamente reconheci a voz do Dr. Max, que soou frágil e tensa. O que não era habitual nele.

- A Sam acordou - informou-me. - Vem já para aqui.

Segui no Jaguar a toda a pressa pela estrada nacional 50, meti travões para virar à direita para a 67 e avancei rapidamente. Todos os meus pensamentos estavam centrados na Sam, por isso não reparei que o Henry ia atrás de mim. Só quando a sua carrinha de caixa aberta parou ao meu lado no parque de estacionamento do hospital e o Henry rodou a manivela para abrir a janela.

- Ela foi...

- Desculpe, Henry, o quê? - respondi, muito alto. - Não ouvi o que disse!

- A Sam já não está nos Cuidados Intensivos. Está no primeiro andar. Sala 21 B.

- Obrigada! - gritei. Depois ocorreu-me um pensamento: o Henry. seria o Doc? Ele tinha criado dois filhos sozinho. Podia até ter um doutoramento. Lembrava-me de ter ouvido qualquer coisa sobre isso.

Mas logo a seguir já eu ia demasiado ocupada na minha corrida e, sem muita delicadeza, acotovelando as pessoas para abrir caminho por entre a aglomeração que se encontrava no átrio do hospital. Subi pelas escadas de salvação, dois degraus de cada vez. Fui encontrar o novo quarto da Sam na extremidade de um corredor de linóleo reluzente. Abri a porta de vaivém. Até tinha pensado numa piada para lhe dizer: Já era tempo de voltares à vida! Mas não cheguei a dizer-Iha.

Senti-me desanimada. A Sam estava deitada na cama, absolutamente imóvel. Tinha os olhos completamente cerrados. O Dr. Max estava debruçado sobre ela, a verificar os seus sinais vitais. Meu Deus, cheguei demasiado tarde.

- O que aconteceu? - perguntei. - Vim o mais depressa que pude.

O Max voltou-se e viu-me.

- Vamos conversar lá fora. Vem comigo.

- Ela voltou a entrar em coma, não foi?

Ele ergueu uma mão para me impedir de me aproximar.

- Não, Jennifer. Ela já não está em coma. Mas esta é uma boa altura para eu te explicar certas coisas.

Fomos mais uma vez para o gabinete dele, uma sala quadrada e bege, com móveis pré-fabricados e caixas para correspondência interna penduradas nas paredes. Tal como fizera umas semanas antes, o Max levou-me para a sua cadeira giratória e depois sentou-se no rebordo da secretária, à minha frente.

- Ela está apenas a dormir - afirmou finalmente. - Já esteve acordada. Tentámos encontrar-te. Ninguém atendeu o telefone.

- Mas já saiu de coma? - perguntei.

- O estado de coma não é repousante - continuou, como se eu não lhe tivesse feito uma pergunta. - Mesmo estando inconscientes, as pessoas continuam a preocupar-se com coisas como dar de comer ao cão, regar as plantas que têm em casa, se terão ou não deixado as luzes acesas. É bom para o doente poder ser tranquilizado; foi por isso que impedimos que o hospital transferisse a Sam para o St. Luke, em Milwaukee. Queríamos que os seus amigos, especialmente tu, conversassem com ela.

- Transferi-la? É a primeira vez que oiço falar disso.

- Eu sei. Olha - e o Max fez um gesto com a mão, como que a dizer para eu não pensar nisso -, não havia necessidade de te falar no assunto. Há por aqui muitas pessoas que gostam imenso da Sam.

Quando acabei de digerir tais novidades, o Max explicou que o pai dele fazia parte da administração do hospital. Eles os dois tinham puxado uns cordelinhos para que a Sam pudesse permanecer no Lago Genebra. O Dr. Max continuou a sua explicação, dizendo que o Centro Médico de Lakeland não era suficientemente grande para acolher doentes por períodos prolongados.

- A Sam saiu do estado de coma, mas o acidente vascular pode ter- lhe deixado sequelas físicas ou psicológicas.

- E deixou? - perguntei. - Vá lá, Max, diga-me a verdade.

- Ela consegue falar, mas nem sempre com muito sentido. Está fraca. Vamos deixá-la cá ficar por mais algum tempo. Depois vai precisar de paciência e de muitos cuidados.

O Max estava a olhar-me fixamente, mas porquê? De repente, percebi o que ele estava a ver. Rímel esborratado por baixo dos olhos, o cabelo amassado pelo sono e vestida com as roupas amarrotadas da noite anterior, às dez da manhã de um dia de semana.

Contudo, mantive-me como se nada fosse.

- Quero ver a Sam. Posso?

- Certamente. Eu só queria preparar-te.

O Max voltou comigo ao quarto da Sam, depois foi-se embora e eu aproximei-me silenciosamente da cama dela. Toquei-lhe ao de leve no braço. De repente, as pálpebras da Sam abriram-se e eu assustei-me. Mas os olhos dela cintilavam, enquanto me olhava de alto a baixo.

- Jennifer - proferiu, e depois sorriu. - A minha menina está aqui.

Irrompi num pranto e abracei-me ao pescoço da Sam. Era tão incrível, tão inacreditável sentir os braços dela em mim, ouvir novamente a sua voz! Eu já quase tinha desistido da esperança de poder voltar a conversar com ela.

Deu-me umas palmadinhas suaves nas costas, tal como costumava fazer desde os meus dois anos de idade. Eu gostava tanto da Sam que era demasiado assustador pensar que ia perdê- la. Tanto desejara vê-la de novo, conversar com ela, e agora isso estava a acontecer.

Ajeitei-lhe a almofada e sentei-me na beira da cama.

- Por onde tens andado? - perguntei-lhe, num sussurro.

- Tenho estado aqui. Pelo menos, foi o que me disseram.

- Conta-me - pedi-lhe. Esta era uma das nossas expressões habituais. - Conta-me com quem é que tens andado a encontrar-te em Chicago. Conta-me lá essa história do lago.

- Bem, era... estranho - respondeu, franzindo os lábios.

- Não sei onde é que eu estava... mas conseguia ouvir coisas, Laura.

Mau! Laura era o nome da minha mãe.

A Sam prosseguiu, ignorando o seu engano.

- O danado daquele elefante ali quase me pôs doida. Mas quando as enfermeiras entravam, fartavam-se de falar das Flhas. Disso eu gostava!

Traduzi o melhor que pude. O elefante" tinha de ser o ventilador. Falar das filhas ? Quem é que ia perceber uma coisa dessas?

- Eu disse filhas ? Queria dizer.

- Médicos? - alvitrei.

- Isso mesmo. Sabia que havias de perceber. Eu tentava falar contigo, Jennifer. Conseguia ouvir-te, mas a minha voz... - apontou repetidamente, sem palavras, para a boca. - Não saía nada.

Assenti com um movimento de cabeça, porque também a minha voz me pregou uma partida. Então abraçámo-nos mais uma vez. Na dúvida, o melhor é dar um abraço. Conseguia sentir-lhe as costelas através da bata, as mãos tremiam-lhe e as palavras baralhavam-se, mas tudo bem. A Sam estava viva. Estava novamente a conversar comigo. Era isto que eu desejara e por isto que rezara.

A Sam quis que eu conversasse mais um bocado, por isso assim fiz, e acabei por lhe contar mais do que tencionara acerca do Brendan e de mim. Ela ouviu, mas não disse quase nada. Eu perguntava a mim mesma se estaria realmente a seguir-me.

Depois olhou para mim com os seus olhos azuis brilhantes e o que disse despedaçou-me o coração.

- Quero morrer em casa.

* Confusão entre as palavras filhas, e médicos, respectivamente em inglês daughters" e doctors,

O meu alívio por ver e falar com a Sam esmoreceu um pouco, e mais ainda enquanto seguia no carro de volta a Knollwood Road, mais para o fim da tarde. Precisava de telefonar aos amigos dela, mas também começava a Ficar preocupada com o Brendan. O que estaria ele a fazer em Chicago? O tumor ter-se-ia agravado? Por que razão saía agora do Lago Genebra? Além do mais, estava desejosa de Lhe contar o que acontecera com a Sam.

Não gostava de estar afastada do Brendan, percebi nessa tarde. Na verdade, detestava; e isso era mau sinal.

Quando cheguei ao caminho que dá acesso ao jardim, virei o Jaguar e fui estacionar à frente, debaixo do carvalho. Nos últimos minutos, os meus medos tinham-se condensado numa dor de cabeça. Estava localizada mesmo atrás do meu olho esquerdo.

Assim que entrei em casa, tomei dois comprimidos analgésicos. Depois dirigi-me à casa do Shep, para ver se o Brendan já tinha voltado. Mas a casa estava às escuras. Não estava lá ninguém. O Brendan ainda deve estar em Chicago. Ai Parece que não estou boa. A verdade é que sentia muito a falta dele. E também estava preocupada com ele. Apenas uma preocupação comum, neurótica, de uma rapariga da cidade.

Arrastei-me novamente até à casa da Sam e não sabia o que havia de fazer de mim. Mas depois soube. Levei para o alpendre um maço dàs suas cartas. Mais do que nunca, queria ouvir as suas histórias.

O que aconteceu entre ela e o Doc? Quem era ele? Ela alguma vez me contaria toda a verdade? O Doc seria o John Farley? Seria o Henry? Ou até o tio do Brendan, o Shep? Ou seria alguém que eu nem conhecia?

Tinha acabado de me sentar na minha cadeira de balanço preferida quando o céu escureceu sobre o lago. O ar estava denso de ozono e a trovoada iminente alimentava um desejo premente de ler as cartas. A ilusão patética ataca outra vez, tal como num romance de Bront.

Precisava de saber no que tinha dado a história da Sam e do Doc. Acho que desejava um final feliz. Quem não deseja? Mas ultimamente notara que os finais felizes dificilmente se encontram.

Fosse como fosse, comecei a ler.

 

Queridajennifer,

Havia alturas em que a saudade que eu sentia do Doc era insuportável. Podes calcular. Por vezes arrastava-se durante meses. Aqui tens o que aconteceu a seguir. Todos os Verões havia dez dias que ainda eram mais angustiantes. Era quando o Charles ia para a Irlanda jogar golfe com os amigos e não sei que mais é que eles lá faziam, embora ouvisse certos rumores. Enquanto ele estava fora, eu só pensava no Doc. Não conseguia evitar que assim fosse e talvez nem o desejasse.

Recordo-me especialmente de um sábado de manhã, em Agosto de 1972. O Charles estava em Kilkenny e eu tinha ficado no Lago Genebra.

Sozinha, como de costume.

A parte traseira do meu jipe estava carregada de vedações para impedir a entrada dos veados, quando parei para pôr gasolina. Nesse Verão o rapaz que estava a trabalhar na estação de abastecimento era o jovem Johnny Masterson e ele tinha acabado de atestar o meu depósito quando o Doc surgiu do lado oposto das bombas.

Assim que o vi, o meu coração começou a bater como doido. Isto acontecia sempre, em parte talvez porque tínhamos tantos segredos, mas principalmente porque estávamos profundamente apaixonados. Entreguei ao Johnny uma nota de dez dólares, e enqùanto ele foi buscar o troco o Doc saiu do carro e aproximou-se do jipe. Meu Deus, ele era tão bonito, Jennifer, com um sorriso que aqueceria qualquer coração. E aqueles olhos dele!

- Faz-me um favor, Sammy - pediu-me. - Não me recuses isto. Segue- me quando eu sair daqui.

Segui o Doc durante cerca de dezesseis quilómetros pela Estrada 50, depois ele entrou na estrada nacional. Quando chegámos ao Alpine Valley Relort estacionei o carro ao lado do dele e entrei para o lugar ao lado do condutor. Era isto o que o Doc queria? Pois bem, também eu.

Caí logo nos seus braços.

- Tenho tido tantas saudades tuas. Meu Deus, não sei quanto tempo mais é que vou aguentar isto - confessei.

Quando o Doc falou, fez vibrar todas as células do meu corpo.

- Bem sei que já nos fartámos de falar neste assunto, Samantha. Talvez isto seja errado, mas já não quero saber. Tenho cinquenta anos. Amo-te mais do que tudo no mundo. Quero estar a sós contigo. Por favor diz-me que vens comigo. Agora, Samantha.

Jennifer, foi como expirar depois de ter passado anos a suster a respiração. De repente, chegara o momento. Tudo o que eu tinha a fazer era agarrá-lo. Aquilo com que sonhara mas em que não ousara acreditar podia acontecer.

- Sim - murmurei, junto ao rosto do Doc. - Vou contigo. E já. Antes mesmo de poder mudar de ideias.

 

Jennifer,

Mais ninguém sabe disto, só tu.

O Doc e eu Fcámos muito tempo abraçados naquele parque de estacionamento. Provavelmente, estávamos a tentar controlar o nervosismo. Eu não fazia ideia do sítio para onde íamos, mas pouco depois estávamos a caminho.

Fomos abraçados durante todo o percurso, e uma quantidade de pensamentos diferentes atravessavam a minha mente. E se fôssemos apanhados? Que significado é que isso ia ter nas nossas vidas? O Doc e eu conseguiríamos passar juntos um fim- de-semana inteiro?

Já íamos com oito horas de viagem quando, à luz dos faróis,

apareceu um letreiro que dizia BEM-VINDOS A COPPER HARBOR, MICHIGAN.

- É aqui - disse Doc.

Agarrei-lhe a mão com força, depois aconcheguei-me a ele e beijei-o. Era ali, muito bem. Como registo, Copper Harbor é uma localidade que fca na extremidade da Península Keweenaw, no Michigan, e que se encontra rodeada em três lados pelo Lago Superior. É um local espantosamente bonito. O ar estava fresco em Agosto e eu só levava calções e uma blusa sem mangas. O Doc despiu o casaco e envolveu-me os ombros com ele.

- Chama-se Raptor Lodge e é muito pequeno e muito especial

- disse-me. - Há muito tempo que queria trazer-te aqui.

Ri-me

- E eu queria vir contigo, para onde quer que fosse. Mas isto é lindo.

Caminhámos até ao edifício principal e fizemos o registo. Tenho a certeza de que estávamos com um ar muito apaixonado, e de facto estávamos, Jennifer. De modo geral não gosto de ver os casais muito enrolados um no outro, mas não consegui evitar isso, nem o Doc.

Da portaria dirigimo-nos para o nosso quarto e eu não conseguia desprender-me dele. A noite estava vívida, com pios de mochos e silvos e ligeiros estalidos quando qualquer animal passava pelo meio da vegetação rasteira. Para mim nada importava a não ser o Doc e estar junto dele e o que ia acontecer a seguir. Em toda a minha vida, só tinha estado com o Charles e vê lá o resultado que deu.

Por fim vimos o nosso bangaló, numa clareira atapetada de caruma e iluminada pelo luar. De repente fiquei com a boca seca, enquanto o Doc se atrapalhava com a chave. Também me tremiam as pernas. Então ele lá abriu a porta e puxou-me para os seus braços.

- Finalmente - proferiu, com um sorriso.

Beijámo-nos e começámos a tirar as roupas um do outro. O Doc ia-me beijando e tocando de modos que eu nunca antes experimentara. Se isto te está a incomodar, passa para a carta seguinte, mas para mim foi maravilhoso. Sentia-me derreter nos seus braços, e todas as minhas dúvidas sobre mim mesma se iam desvanecendo. Sentia-me sensual e desejada, bonita, e até bastante boa na cama. Nunca soubera que podia ser assim, porque nunca sentira nada que se aproximasse de algo tão bom. Sentia-me viva e livre e desejável. Sentia-me mulher e estava a adorar cada momento.

Por fim, o Doc agarrou-me a cara entre as mãos e olhou-me profundamente nos olhos.

- Não fazes ideia de como és bonita, pois não? - perguntou, parecendo espantado com a minha simplicidade.

- Não - respondi -, não faço ideia nenhuma. Só agora, que

te encontrei

jennifer,

Tenho mais alguns detalhes saborosos que não partilharei contigo, mas essa noite com o Doc foi tudo o que eu desejava que fosse e muito mais ainda. Acordei nos braços dele e, que me lembre, pela

primeira vez senti que estava onde devia estar.

- Bom dia, Samantha - murmurou ele. - Continuas tão bonita como me lembro de estares na noite passada.

Para o Doc eu era a Samantha - só para ele.

Ficámos no nosso bangalô durante quase todo o tempo dos dois dias seguintes. Na verdade, não queríamos estar em mais lugar nenhum. Para nós era tudo tão novo, e a exploração era, digamos, tão agradável! Na segunda noite, acordámos sobressaltados com o toque do telefone.

Agarrei-me ao braço do Doc e fiquei um pouco trémula. Ninguém sabia que estávamos ali. O Charles ter-nos-ia descoberto?

- Muito bem. Obrigado - respondeu Doc, ao telefone. Fiquei ainda mais baralhada. Não percebia por que motivo ele estava a sorrir, tendo sido acordado de um sono profundo a um quarto para as duas da manhã.

- Veste-te, Samantha - pediu-me, agarrando também nas suas roupas. - Vais gostar de uma coisa. Em parte, foi por isso que viemos para aqui.

Jennifer, imagina só. Tenta imaginar o que nós fizemos naquela noite.

Percorremos de carro uma distância relativamente curta, depois fomos a pé e por fim sentámo-nos num grande pedregulho arredondado, com vista para o Lago Superior. Eu tinha as pernas flectidas, com os braços em volta dos joelhos. O Doc passou-me o braço por detrás das costas, e a única coisa entre nós e o Canadá era a vasta extensão espelhada do lago. Pouco faltava para as três da manhã.

Enquanto olhávamos, à medida que os nossos olhos se abriam cada vez mais, estendeu-se no horizonte uma faixa incandescente de luz verde, que depois se desviou lentamente mais para cima, até que se transformou numa cortina transparente que resplandecia acima da água. A orla dessa cortina apresentava uma cintilação avermelhada, a seguir brilharam como que véus em tons de roxo e azul, e o céu parecia tremer e oscilar.

- Alguém deitou na água uma bebida bem forte - consegui balbuciar. - Ou então estou com alucinações.

O Doc riu-se.

- É uma aurora boreal. A maior parte das pessoas conhecem o nome, mas não fazem ideia de como é. Agora, nós já fazemos. Não é extraordinário?

Foi um momento inesquecível. Todo o céu se movia, e quando a cortina ondulante passou mesmo sobre nós, pontos de luz brilhantes rodopiavam como espigas. O Doc explicou que a aurora boreal era na verdade uma corrente de electrões providos de energia pelo vento solar, que colidiam com átomos de gás.

- O impacto faz com que o gás emita luz. A cor da luz depende do tipo de gás. As luzes verdes e vermelhas são oxigênio, as azuis e roxas são hidrogênio e hélio. O sódio é amarelo. É como luzes de néon sem as lâmpadas. É o néon no seu estado natural.

- Obrigada por isto - sussurrei, abraçando-o.

O Doc estremeceu.

- Só tratei do que era preciso para acordarmos e podermos assistir.

- Não deixes que isto acabe - murmurei-lhe ao ouvido. E não acabou. Nessa noite, o Doc e eu fizemos amor em cima de um rochedo, sob um céu cheio de estrelas. Jennifer, foi como que uma experiência extracorporal, uma experiência extraordinária, e recomendo vivamente néon em estado natural, a todos aqueles que ainda tenham um pouco de romantismo.

Mesmo que não tenham a certeza de que ainda existe néon.

Querida jennifer,

Chegou a manhã de domingo e eu acordei com uma sensação de tristeza e de medo. Queria deixar o Charles. Examinando o seu rosto, via o Doc a dormir, com o seu farto cabelo louro, apenas com alguns laivos de prata. Memorizei todos os pormenores da sua fisionomia, detestando ter chegado a esse ponto. Ao momento de coligir as minhas recordações.

- Estou acordado - murmurou. - Estava apenas a pensar de olhos fechados.

- Em quê?

- Ah, em tudo o que fizemos este fim- de-semana. Em ti. Tu ainda és melhor do que a aurora boreal.

Não me lamentei; nem uma palavra, nem um olhar. Mas o Doc percebia.

- Não estejas triste, Samantha. Tivemos o melhor de todos os fins-de-semana.

- Quero ficar contigo. Não quero que nos separemos nunca mais. Acho que não vou aguentar.

- Tu lês o meu pensamento - respondeu ele. - Mas eu há ano. que pensava nisso. Esta nossa vida, separados um do outro, pode ser um sofrimento horrível. Quando a Sara estava doente, quando já sabíamos que ela ia morrer, prometi-lhe que educaria os nossos filhos de uma maneira que ela aprovaria. E quanto a ti, terias de te divorciar do Charles, e ele certamente não ia aceitar, não achas ?

Pousei um dedo sobre os lábios do Doc, não porque não quisesse ouvir o que ele tinha para dizer, mas porque via a dor que isso lhe causava.

- Quando estiveres pronto, estarei à tua espera. Há mais uma coisa que tem de ser dita, portanto vou dizê-la. Amo-te muito. Sinto que me salvaste a vida.

- Amo-te, Samantha.

Meu Deus, como gostei de ouvir aquelas palavras!

Estava meio atordoada quando nos despedimos dos donos da pousada, o Sr. e a sr.a Lundstrom, e essa sensação de atordoamento continuou durante grande parte do caminho de regresso ao Lago Genebra. Lembro-me de que fui todo o caminho a segurar a mão do Doc.

Então chegámos ao parque de estacionamento do Alpine Valley Relort. Que grande desilusão, que momento tão doloroso! Ficámos muito tempo abraçados no carro do Doc, como se estivéssemos a abraçar a própria vida.

- Tenho de me ir embora, Samantha - disse ele, por fim.

- Já estou com saudades tuas e ainda nem te foste emboramurmurei. - Por favor, sente também saudades minhas.

- Que coisa tão bonita que disseste. Adoro a tua humildade. Então beijámo-nos mais uma vez e esperei que não fosse a última. Fiz um esforço tremendo para não berrar como uma criança nos seus braços. Mas não chorei.

O meu jipe estava onde o tinha deixado. Entrei e tudo aquilo em que tocava me parecia irreal. Buzinámos à despedida e entrei na estrada nacional. Deixei que ele fosse à frente, mais depressa.

Enquanto regressava sozinha ao Lago Genebra pensei na aurora boreal, mas também na possibilidade de perder o Doc e como é que eu aguentaria isso. Fui todo o caminho a chorar.

Coitada da Sam!

Uma chuva empurrada pelo vento obrigou-me a deixar o alpendre e entrar na casa já a escurecer. A solidão da Sam, a inesperada tristeza da sua vida, não me largaram enquanto fechava as janelas e enxugava as gotas de chuva dos peitoris. Pensava na sua despedida do Doc, o que fez dirigir os meus pensamentos para o Brendan. Onde é que ele está Com este tempo terrível. A cover torrencialmente e ele a conduzir debaixo de chuva.

Coloquei as restantes cartas da Sam na prateleira da lareira, ao lado do velho relógio de mármore e foi então que algo me ocorreu. O prazo para eu entregar a minha crónica terminava às dezoito horas e eu esquecera-me completamente disso.

Instalei-me no acolhedor sofá de veludo azul, liguei o portátil e abri o meu ficheiro de ideias para dias de chuva. Nenhuma delas merecia 750 palavras, mas depois de algumas horas o meu cérebro brotou uma boa ideia.

Era de facto tão boa que perguntei a mim mesma por que motivo demorara tanto tempo para me ocorrer.

Peguei no telefone e marquei um número que sabia de cor.

- Debbie, é escusado - comecei. - Presentemente não estou a fazer um bom trabalho para o Trib e não estou a ser justa para com os meus leitores. É difícil de explicar. Tão difícil, que nem sequer vou tentar.

Contei à minha editora que lamentava muito, mas tinha de meter uma licença. Mas não lhe disse o motivo. Não desejava a compaixão da Debbie, e não queria ter de me explicar nem dizer o que se passava com a Sam e com o Brendan.

Quando desliguei o telefone, senti uma crise de ansiedade. Era como se estivesse à beira de um precipício a olhar para a escuridão e para o vazio.

Ainda precisava de visitar a Sam nessa noite, mas lá fora a chuva alagava tudo, obscurecendo o lago e até as árvores junto à casa. Ia quase a chegar ao pé do. Jaguar quando uma buzinadela me chamou a atenção. O Brendan! Ele vinha ao volante do seu jipe preto, pelo caminho alagado que passava pela parte posterior das casas.

Abriu a janela lateral e sorriu e tudo lhe perdoei.

- Jeeeennifer! Voltei. A chuva foi horrível, todo o caminho desde Chicago.

Fiquei tããão satisfeita ao ver o rosto sorridente do Brendan! Aqui está a explicação, Debbie o sorriso dele. Virei-me para a esquerda e pousei um cotovelo, protegido por um impermeável amarelo a pingar, na janela aberta.

- Olá, amigo, importa-se que eu entre para ao pé de si? Tenho novidades. A Sam saiu do coma.

 

- Vais adorá-la. A Sam é muito mais interessante quando está consciente - disse eu ao Brendan, quando seguíamos a caminho do hospital. - E acho que ela vai gostar de ti. Ou, pelo menos, fingir que sim.

O Brendan riu-se.

- O que é que te deu? - perguntou.

- Ah, acabei de saber uma história triste, mas depois vi a tua cara sorridente. Uma justaposição estranha, mas interessante. Também meti uma licença. Agora posso passar o dia na praia sem fazer nada, como tu.

Satisfeitos, o Brendan e eu batemos com as palmas das mãos um no outro.

Chegámos ao quarto da Sam, e... o que era aquilo? Do tecto pendiam dúzias de balõezinhos festivos e serpentinas e, nas mesas e superfícies disponíveis, todo o espaço era partilhado por cestos de fruta embrulhados em celofane e arranjos florais garridos. Obviamente, tinha-se espalhado por todo o Lago Genebra e, quem sabe, pelo resto do Wisconsin e do Illinois, que a Sam estava consciente. Perguntei a mim mesma se algum dos arranjos de flores ou dos balões seriam do Doc.

Ela estava vestida com uma bata do hospital, com riscas azuis, e continuava com uma cor acinzentada, mas tinha o cabelo penteado e sorriu quando me viu. Estava desperta e quase parecia a Sam habitual.

- Olá. Olá, Jennifer. E quem é esse rapaz tão jeitoso? perguntou.

- É o Brendan. Já te falei nele, mas se calhar não te lembras. É muito bonito, não é?

O Brendan aproximou-se e estendeu-lhe a mão.

- Olá, Samantha! - exclamou, deixando-me estupefacta. Não fazia a menor ideia de onde é que isso vinha. Samanta? Tal como nas cartas. Era como o Doc Lhe chamava sempre.

- Eu não o conheço? - perguntou Sam. - É muito parecido com... ah, sabe com quem.

- Com o meu tio Shep? Calculo eu.

- Esse mesmo. Claro que sabe.

O Brendan girou a manivela da cama da Sam para a elevar um bocado, depois levámos duas cadeiras para junto dela. A Sam começou a contar- nos o seu dia, num discurso ligeiramente fragmentado. Mas depois dirigiu o olhar para o Brendan. Parecia novamente um pouco confusa.

- Estou bem - disse-me, piscando o olho.

A seguir olhou de novo para o Brendan.

- Ouvi dizer que é um bom médico, Brendan. Então, por que razão desistiu? Como é que pode deixar alguém tão especial como a Jennifer, sem ir à luta?

Vi o Brendan inclinar a cabeça para trás como se tivesse levado um murro no nariz, mas logo a seguir refez-se lindamente.

- É uma boa pergunta, não é? É o que tenho perguntado a mim mesmo.

Os meus olhos estavam ligados aos da Sam. Não sei como, ela tinha ido direita ao âmago da questão. Trás! Muito obrigada, Sam!

- Como disse, Samantha, sou médico. Somos, na maioria, pessoas muito lógicas. Talvez, por vezes, demasiado lógicas para o nosso bem. Quero apreciar a vida que me resta, seja qual for o tempo que nos resta, entende? Não quero desperdiçar nem um segundo dela. Nem um segundo. Isso faz algum sentido para si?

A Sam olhou-o fixamente nos olhos e acenou afirmativamente.

- Parece-me uma filosofia bastante razoável - declarou.

- Difícil de argumentar.

- Obrigado - respondeu Brendan.

- E então? - perguntou Sam, dirigindo o olhar para mim, depois novamente para o Brendan.

- Então? - perguntei, com um sorriso corajoso. Os olhos da Sam fixaram-se então no Brendan.

- Lute! - incentivou, com voz fraca. - Foi o que eu fiz.

 

Os dias seguintes foram possivelmente os melhores e os mais memoráveis da minha vida. Eu tentava viver cada dia desde o nascer do Sol até já não conseguir manter os olhos abertos. Subitamente, isso fazia todo o sentido para mim. Tive imenso tempo para poder aproveitar a companhia da Sam e do Brendan.

O Brendan era uma pessoa ponderada, que gostava de pensar bem nos assuntos, mas também gostava de rematar os seus melhores pensamentos dizendo uma graça, geralmente da sua autoria, e que ia ao encontro da maneira como eu via o mundo. Eu estava a descobrir que ele possuía uma natureza extremamente generosa e pródiga. Não era demasiado protector, mas estava sempre pronto a ajudar-me quando eu precisava dele.

Sempre que o olhava nos olhos, ou mesmo quando o via à distância, não conseguia deixar de pensar no desperdício sem sentido, terrível, disparatado, que era o facto de ele estar para morrer. Queria discutir com ele a sua decisão, mas não conseguia arranjar argumentos. Era demasiado inteligente, demasiado simpático; além disso, teria sido desperdiçar o tempo que tínhamos para estarmos juntos. Os segundos preciosos do nosso Verão.

Íamos nadar todos os dias, mesmo quando estava a chover. Visitávamos a Sam, por vezes três vezes por dia, e ela e o Brendan tornaram-se amigos. De facto, tinham muitas coisas em comum. O Brendan e eu dávamos grandes passeios a pé e jantávamos juntos todas as noites. Não comíamos muito durante o dia, mas o jantar era sempre especial.

Exceptuando as tais panquecas de mirtilo, o Brendan não era um grande cozinheiro, embora garantisse que poderia vir a ser um cozinheiro medíocre se dedicasse mais tempo a praticar. Por isso era eu que cozinhava; ele encarregava-se de pôr a mesa e de arrumar tudo no final da refeição. Quando estava a fazer esses trabalhos, usava a T-sirt de salva- vidas da Cruz Vermelha, que eu adorava ver-lhe.

Gostávamos muito de dançar ao som de um CD preferido, ou simplesmente da rádio. Adorava que ele me enlaçasse, estar bem junto dele, ouvi-lo cantarolar canções como Sometbing to Tal About. Ou Do You I Zerrzember, de Jill Scott, ou Sweet BabyJarnes, Tle Logical

Song, Bad to the Bone, Let's Spend te Nigt Togetber. Dúzias de outras músicas roc e baladas, não fazia grande diferença.

Eram as nossas canções, as canções do nosso Verão. Num domingo à noite o Brendan adormeceu antes de mim, por

isso peguei num dos últimos maços de cartas da Sam e fui para a cozinha. Tinha contado as cartas recentemente, havia 170. A mais comprida tinha perto de vinte páginas; a mais curta, só um parágrafo. Já tinha lido pelo menos três quartos do total. O legado da Sam para mim. Em breve acabaria de ler todas.

Sentei-me à mesa da cozinha, sob a luz intensa de um candeeiro de tecto, e li o registo seguinte da minha avó.

Queridajennifer,

Depois de o Doc e eu termos regressado de Copper Harbor, a nossa separação ainda foi pior do que eu imaginara. Muito pior. O que queria dizer que estávamos profundamente, intensamente apaixonados. Mas isso já eu sabia. Nesse Outono, no decorrer de um telefonema já noite tardia, chegámos a uma conclusão inevitável: tínhamos de nos encontrar novamente.

Mas então tivemos de esperar meses e quando o Charles planejou ir outra vez jogar golfe (ou fosse lá o que fosse) em Junho, eu também fiz os meus planos. Até escolhi o nosso destino: a cidade de Holland, na costa leste do Lago Michigan.

Tal como fizéramos antes, o Doc e eu encontrámo- nos no parque de estacionamento, em Alpine Valley. Abraçámo-nos e beijámo -nos e rimos como adolescentes entusiasmados com um jogo.

Depois fizemo-nos à estrada. Era uma viagem de dez horas, que incluía duas de carro e a seguir quatro horas no Badger, um ferry-boat a vapor que por si só já valia como umas mini-férias. Eu não queria voltar a separar-me do Doc. Íamos os dois encostados à amurada, a observar os motores do barco que nos levavam para longe das nossas vidas reais, deixando atrás um longo rasto. Tomámos chocolate quente no restaurante de bordo e vimos pela primeira vez um filme juntos (A Pantera Cor-de- rosa), no cinema minúsculo do barco. Quando chegámos a terra, íamos com a pele ruborizada e de coração alegre. Estávamos tão apaixonados e o nosso fim-de-semana ainda foi melhor do que o primeiro. O Neil Diamond ainda não tinha escrito Sarrze Time, Next Yedr, mas o Doc e eu já estávamos a viver essa história.

Jennifer, vou resumir um pouco esta descrição para referir só os pontos altos, e também os baixos.

No Verão seguinte o Charles foi para fora em Julho e mais uma vez o Doc e eu fizemos planos para a altura da partida dele. Fomos de automóvel em direcção ao norte, mas depois o Doc surpreendeu-me. Tinha alugado uma casa flutuante em La Crosse, no Wisconsin, uma localidade onde convergem três rios: o La Crosse, o Black e o Mississipi. Seguimos a nossa rota e hora e meia mais tarde aportámos à cidadezinha de Wabasha, no Minnesota. Celebrámos com faisão assado acompanhado de feijão com passas, crepes doces e tarte de maçã com conhaque. Provavelmente a nossa melhor refeição. A seguir, zarpámos para a marina de La Crosse e ancorámos para passar a noite. Ficámos num beliche duplo, por baixo do convés superior. Na manhã seguinte tomámos duche no convés, gritando sob o jacto de água. A seguir juntámo-nos a uma pequena frota com todo o tipo de embarcações imagináveis, na festa anual do rio. Havia orquestras que tocavam até muito tarde, em barcos, e fogo-de-artifício e crianças felizes por toda a parte. Principalmente o Doc e eu. Durante quatro dias senti-me no céu e não queria voltar à terra. Mas, é claro, tinha de o fazer.

O plano para o nosso quarto encontro anual era uma viagem encantadora à cidade de Nova Iorque, pela qual ansiei ao longo de nove meses. Reservámos um quarto no Plaza, com vista para o Central Park; tínhamos bilhetes para dois espectáculos na Broadway, lugares de camarote para o Estádio Yankee e reservas para restaurantes. Seria o nosso melhor encontro até então.

Quando estávamos no átrio do aeroporto O'Hare, uns clientes do Charles que tinham reservado bilhetes para o mesmo voo para Nova Iorque viram-me e chamaram-me. Quase desmaiei e a seguir fquei toda vermelha.

O Doc estava a folhear o New York Times, apenas a uns metros de distância, quando me viu cumprimentar os Hennessey e inventar uma história acerca de uma visita a uma amiga, num outro voo. Percebeu o que se passava e afastou-se. Assim que pudemos, reunimo-nos de novo. Decidimos desistir de Nova Iorque e dirigimo-nos ao carro dele. Eu tinha o coração completamente destroçado.

- Desta vez meteste-nos numa boa alhada - comentou o Doc, ligando a ignição.

- Eu limitei-me a mentir aos Hennessey - respondi. - Eles vão contar ao Charles. Devíamos voltar já para casa.

O Doc acenou afirmativamente, fez marcha-atrás para sair do lugar de estacionamento e dirigiu o carro em direcção à saída do aeroporto. Estava uma manhã tão bonita, prometendo um dia óptimo. Que pena! O meu cérebro zumbia com a dor da desilusão enquanto avançávamos lentamente no meio do trânsito, na rampa de saída do parque de estacionamento.

- Sabes - comecei -, tenho outra ideia.

O Doc sorriu de orelha a orelha.

- Eu sabia que havias de ter, Samantha. Nem penses que te ia levar a casa.

 

É claro que os Lundstrom ficaram admirados quando, já noite, chegámos à portaria da pousada, mas também ficaram satisfeitos por nos verem e tinham um quarto. Assim que nos entregaram a chave, o Doc e eu

dirigimo-nos pelo trilho já familiar e iluminado pelo luar, fervilhando com os sons dos bosques. Estava desejosa de voltar a encontrar-me nos braços do Doc. Já tínhamos desperdiçado meio dia.

Vou lembrar-me disto para o resto da vida. No momento em que dávamos a volta numa curva do caminho, uma sombra surgiu ruidosamente da vegetação e apareceu-nos à frente. Não sei o que era, mas era maior do que um cavalo e tinha um cheiro horrível. Essa coisa zurrou para nós! Acho que também a assustámos. O Doc e eu Fcámos imóveis, enquanto o animal atravessou ruidosamente o trilho e se dirigiu pela encosta abaixo.

- Era um alce - afirmou Doc, pegando finalmente nas nossas malas e na lanterna.

Fomos rapidamente para o bangalô. É claro que não conseguimos dormir. E já muito tarde na Noite do Alce, acabámos por nos rir ao pensar que tínhamos escapado por um triz em O'Hare. Então fzemos um plano para termos a certeza de que tal não voltaria a acontecer. A partir desse dia, passávamos os raros fins-de-semana possíveis na Península Superior, no Michigan. O Mike e a Marge Lundstrom tornaram- se grandes amigos nossos e o bangalô de Copper Harbor, com a sua lareira de pedra rústica no quarto e a vista para o Lago Superior, tornou-se o nosso esconderijo.

No Lago de Genebra nunca ninguém soube do nosso segredo, Jennifer. Nunca ninguém suspeitou do Doc e de mim, da nossa vida dupla.

E tu não te atrevas a contar.

Também não fales disto em nenhuma das tuas crónicas. Ou, queira Deus que não, num livro.

 

Querida Jen,

Isto aconteceu há quatro anos, mas eu não conseguia explicar-te o que senti. Só agora.

Era uma noite fria de Março e uma neve macia caía em Chicago, abundantemente. O vento, como é natural, uivava como um animal ferido. O teu avó e eu estávamos a preparar-nos para irmos deitar-nos, quando ele me pediu que fosse comprar uma garrafa de anis. Estava com dificuldade em fazer a digestão e achou que o licor lhe acalmaria o estômago. Já anteriormente resultara.

Eu sempre atendera às necessidades do Charles e cuidava dele o melhor que podia, dada a maneira como ele me tratava. Tive de me apressar, porque a loja devia estar quase a fechar. Então lá saí, apesar da neve e do vento. Sam, aquela com quem podemos contar, era como o Charles me chamava às vezes, pensando sempre que estava a ser mais simpático do que condescendente.

Quando regressei vinte minutos depois, o teu avô estava morto na cama.

Jen, ele estava tal como o tinha deixado; com o pijama azul preferido, de Henri Bendel, um charuto lIacdnudo ainda aceso no cinzeiro, e o televisor ligado a transmitir o noticiário da noite. Ainda me sinto chocada quando penso na rapidez com que ele morreu. O ataque cardíaco deve tê-lo atingido como um rebentamento de um pneu que atira com o carro contra um poste telefónico. Destruição total, num instante.

Nenhum de nós sabia que ele tinha o coração em mau estado. Mas o Charles nunca tivera cuidado com o que comia ou bebia ou fumava, ou principalmente com a maneira como passava a noite, até tarde. Jennifer, apesar de tudo o que te contei nestas cartas, nós tivemos filhas e netos e compartilhámos muitas, muitas coisas. Quando olhei para ele em repouso, vi o rosto do jovem que conhecera tantos anos antes. Um rapaz espirituoso que combatera numa guerra, que não fora amado pelos pais, e tinha lutado muito para conseguir o seu lugar no mundo. Lembrei-me do compromisso que assumira nessa época, do amor que quisera dedicar ao Charles, e certamente teria dedicado.

Que tristeza. Mas, simplesmente, há histórias que são tristes.

 

Na manhã seguinte tive uma conversa longa e emotiva com a Sam, sobre o meu avô e sobre o Doc. Foi a melhor conversa que tivemos desde que ela tinha saído de coma e cada dia parecia mais ela própria.

- Ontem à noite li mais algumas cartas - contei-lhe, pouco depois de chegar. - Estou a fazer como me pediste, só umas quantas de cada vez. Ontem à noite li o que escreveste sobre a morte do avô Charles. Fez-me chorar. Tu choraste? Na carta não disseste.

A Sam pegou-me na mão.

- Claro que sim. Podia ter amado tanto o Charles, mas ele não me deixava dar-lhe esse amor. Era, em muitos aspectos, um homem inteligente, mas noutros era muito teimoso. Acho que ele sentia uma mágoa tão grande por causa do pai e do tio, que nunca mais conFiou em ninguém. Na verdade não sei, Jennifer. Sabes, o Charles não queria contar-me a história dele.

Os meus olhos encheram-se de lágrimas. Tudo isto era tão triste de ouvir!

- Ele sempre foi bom para mim, Sam.

- Bem sei, Jennifer. Bem sei.

- Ele tinha mau gênio e era sempre preciso cumprir as regras de comportamento do avô Charles, em Chicago e mesmo aqui, no lago.

A Sam sorriu finalmente.

- Ah, não precisas de me falar das regras de bom comportamento do Charles. Conheço-as de cor. E também sei tudo sobre o

seu temperamento

Olhei para os seus olhos, tentando compreender todas as coisas.

- Então, por que razão não o deixaste?

A Sam limitou-se a sorrir.

- Acaba de ler as cartas e depois voltaremos a falar. Lembra-te de que elas não são apenas sobre mim, também são sobre ti, minha querida.

Tive de me rir.

- Com que então, as regras da Sam?

- Não são regras, Jennifer. Apenas um caminho diferente que eu segui. O meu lado das coisas.

- E não vais dizer-me quem é o Doc, ou vais?

- Não vou dizer-te, Jennifer. Lê as cartas. És capaz de adivinhar.

 

O Brendan e eu quase todas as noites íamos nadar um bocado ao anoitecer. Nessa noite apareci com um fato de banho azul de competição, da Seedo, debruado a vermelho, parecendo mesmo uma campeã de natação, que não era. O Brendan tinha uns calções pretos não demasiado largos nas pernas e que lhe assentavam muito bem.

- Estás mesmo giro - disse-lhe. - Será sexista dizer isto? Ora, que importa!

- Tu é que estás linda - respondeu. - És uma mulher esplêndida, Jennifer.

Já havia bastante tempo que não ouvia um elogio assim, e quase começava a acreditar que era verdade. É claro que gostava de ouvir coisas simpáticas a meu respeito. Quem não gosta? Talvez a Cameron Diaz esteja farta de ouvir elogios, mas eu não.

- Um espanto, Jen. Podias ter ido para actriz de cinemacontinuou.

- Não te entusiasmes - respondi. - Se calhar é melhor ficares por aí.

- Desculpa, mas é o que sinto. A opinião de um homem. Haverá outros que possam olhar para ti e achar, ah, sei lá...

- Estás a ficar muito entusiasmado.

- Porque estou a olhar para a rapariga mais bonita do mundo. Abanei a cabeça.

- Não, Brendan. Estás a exagerar. Recua um pouco. Mas não demasiado.

- E se eu disser do lago? A mais bonita do lago? Encolhi os ombros, sorri.

- Talvez. A que está no lago neste momento, porque ele está quase deserto.

- Está bem, Fca assente: a rapariga mais bonita do lago! E então o Brendan soltou o que foi talvez o grito de guerra mais alto que já soltara até então. Quase pareceu um grito de dor. E partiu em direcção à água, um passo à minha frente.

Só um passo.

- O último a chegar à bóia! - gritou, voltando-se para trás.

- O último a chegar à bóia, o quê?

- É o maior perdedor do mundo!

- Que exagero

- É o maior perdedor do Lago Genebra! Isso podemos nós ver agora no nosso campo de visão!

- Aqui vamos nós!

Atirámo-nos para a água e começámos a dar braçadas frenéticas. Sentia-me bem e pensava que não ia perder por uma margem tão

grande como habitualmente, o que, é claro, já seria para mim uma enorme vitória. Momentos mais tarde estendi o braço para agarrar o flutuador. Para minha surpresa, o Brendan agarrou-o uns segundos depois de mim. Sacudi a água da cara e do cabelo.

- Não é justo! Deixaste-me ganhar! - gritei.

O Brendan olhou-me nos olhos. Estava a sorrir, mas havia algo mais naqueles olhos.

- Não, jennifer, não deixei.

 

No dia seguinte chovia como o diabo e o Brendan desapareceu durante várias horas. Ele começava a preocupar-me, tenho de admitir. Receava que alguma das vezes pudesse não voltar, que ficasse muito mal ou que desmaiasse enquanto conduzia, qualquer coisa má. A chuva tinha abrandado, passando a um leve chuvisco, quando cerca das quatro horas entrou com o carro no jardim.

Não consegui ficar à espera dele, por isso corri lá para fora à chuva e beijei-o através da janela aberta. Estava tão feliz por ver o Brendan!

- Onde foste? - perguntei. - Acordei por volta das sete e já não estavas.

- Tinha uma consulta médica em Chicago. Estavas a ressonar. Achei melhor deixar-te dormir.

Fiz uma careta.

- Eu não ressono.

- Não, claro que não - e lançou-me um sorriso dos dele. Não o deixei mudar de conversa.

- O que disse o médico?

O Brendan pestanejou, era evidente que estava a compor o que ia

contar-me.

- O tumor aumentou - afirmou, por fim. - Não é uma boa notícia. Mas também não é uma grande surpresa.

Depois tapou o lado esquerdo da cara com a mão. Tamborilou com os dedos no malar.

- Estou a perder alguma mobilidade, Jennifer. A minha cara está a ficar dormente. Não consigo sentir e, rta zona.

Passei-lhe a mão pelo malar.

- Lamento. Também não consigo sentir a tua mão. Mas adoro que me toques. Adoro tudo em ti, Jennifer. Não te esqueças disso.

Ao sair do jipe, o Brendan fez um esforço para se firmar nas pernas. Quase caiu. Senti-me atordoada e de repente compreendi quão difícil devia ter sido o seu dia. Contudo, ele sorriu e depois tocou-me na face.

- Preciso de dormir um pouco. Acho que vou para a casa do Shep. Até logo, Jen.

- Estás bem? - perguntei. Queria dar- lhe o braço, ajudá-lo, mas receava que ele não gostasse.

- Claro que estou. Apenas cansado. Estou bem. Só preciso de dormir um pouco.

Eram só quatro da tarde, mas também fui deitar-me com o Brendan. Queria estar ao lado dele, senti-lo, fazê-lo sentir que eu estava ali com ele. Por dentro estava paralisada, talvez a ter pela primeira vez a consciência de que ia perder o Brendan e a sentir o que isso seria, e a detestar esse sentimento.

- Obrigado - murmurou. - Cansado.

A seguir adormeceu.

O Brendan dormiu em sobressalto. Por diversas vezes cerrou os punhos. Cerca de quinze minutos depois, abriu repentinamente os olhos e pareceu confuso.

- Ah, Jennifer. Parece que passei pelo sono, ahn? Ou melhor, que caí que nem uma pedra.

Perguntei-lhe se sentia alguma dor e respondeu pedindo-me que fosse ao casaco dele buscar um frasco de comprimidos. Quando voltei, a cama estava vazia e ouvi-o vomitar na casa de banho. Já começava a ficar muito assustada. Não estava preparada para isto. O Brendan repetira-me por diversas vezes que podia piorar repentinamente, mas eu preferira não acreditar nisso.

- Jen, o Percocet vai deixar-me completamente atordoadodisse, quando veio da casa de banho. - Vou ficar logo a dormir. Vai para casa. Por favor. Faz isso por mim. Amo- te muito. E tu és a rapariga mais bonita do mundo, não é só do lago. Vai para casa e fica lá por um bocado.

Isto era um pouco estranho, mas eu não podia, ou não queria, discutir com ele. Beijei-o na testa, na cara, depois suavemente nos lábios.

- Isso senti - afirmou, sorrindo.

Então voltei a beijá-lo.

E mais outra vez.

Na verdade, não queria parar de o beijar nunca.

 

Toda a noite tive um mau pressentimento. O Shep tinha voltado para a sua casa em Chicago, por isso eu ia ver como estava o Brendan de duas em duas horas. Depois acabei por adormecer na casa da Sam. Ele tinha deixado bem claro que nessa noite não me queria ao pé dele. Senti que tinha de respeitar isso.

Quando acordei, era manhã e estava sozinha no meu antigo quarto. O sol queimava, através das cortinas finas, e os meus pensamentos imediatamente se dirigiram para o Brendan. E o que pensei foi: o Brendan vai morrer em breve. E não havia nada que eu pudesse fazer.

Fiquei à espera de ouvir o seu grito de guerra, mas depois lembrei-me. Tinha-o deixado em casa do Shep, atordoado com analgésicos. Levantei-me rapidamente e vesti a primeira roupa limpa que encontrei: calças de caqui ainda por engomar e uma T- shirt branca. EnFiei os pés sem meias nuns ténis e desci para a cozinha.

Olhei pela janela. Nem sinal de um homem nu a gritar. O jipe celuzia no jardim. Tudo bem, o Brendan estava lá. Talvez eu pudesse, ao menos, preparar-lhe o pequeno-almoço. Dirigi-me à casa do Shep.

Entrei pela porta das traseiras, que não estava fechada à chave, e chamei pelo Brendan enquanto ia dando uma vista de olhos às divisões do andar de baixo. Como não vi sinal dele, subi rapidamente até ao seu quarto, nas traseiras da casa. O quarto estava vazio. A cama estava feita, com uma bonita colcha de algodão branco.

Demorei um momento a entender. O Brendan não estava em casa. As coisas dele também não estavam lá.

Abri a porta com rede que dava para o terraço de cima e que o Brendan recentemente pintara e impermeabilizara. De lá do alto, perscrutei o pátio e até mais além. O Brendan não se encontrava à vista em lado nenhum.

O pânico tomou conta de mim e tentei dominá-lo. Talvez o Shep soubesse onde ele estava. Desci as escadas a toda a pressa, com os ténis a arrastar na madeira do soalho polido e corri a cozinha com o olhar, à procura do telefone.

Foi então que vi um conjunto de pistas, obviamente deixadas para mim. Estavam ceunidas sobre o balcão da cozinha, laminado de branco. Os objectos estavam presos uns aos outros: um envelope branco comprido, um conjunto de chaves de automóvel, um cartão de uma empresa com uma gravura de um pássaro vermelho.

O cartão era da Cardinal Transport, uma empresa de táxis local. As chaves eram do jipe.

O envelope estava dirigido a mim. Quando lhe peguei, senti lá dentro qualquer coisa solta a deslizar. Rasguei uma das extremidades e caiu-me na palma da mão o relógio de pulso do Brendan. Senti o coração na garganta.

Também lá estava uma carta.

 

Queridajennifer,

Pouco passa das cinco da manhã e estou à espera do táxi que me vai levar ao aeroporto. Sabes, sinto-me mais só do que possas imaginar. Sei que vais ficar magoada por me despedir de ti assim, mas peço-te que dês atenção ao que tenho para te dizer antes de fazeres um julgamento final. Estou a escrever enquanto ainda sou capaz. Há coisas que quero dizer-te enquanto ainda consigo dizê-las. Quero minimizar a tua dor, se me for possível. Acredito que esta é a melhor maneira, a única maneira para mim.

Lembras-te de quando éramos crianças, como vivíamos o Verão? No princípio de Maio já eu começava a sentir uma certa expectativa de que os dias fossem ficando mais compridos e esperava que nesse Verão o sol se mantivesse a pairar no céu e irrompesse até ao outro lado. Seria como acontece nas regiões do Norte, em que há luz do dia durante todo o Verão. Então chegava Junho e os dias tornavam-se realmente mais longos. Mas a seguir ao 4 de Julho, a escuridão voltava a afirmar-se e tínhamos de aceitar a dualidade da luz e das trevas.

Foi desta mesma maneira, Jennifer, que eu tive esperança, e rezei, para que tivéssemos mais tempo para fazer tudo aquilo que queríamos fazer juntos. Queria passar contigo um Verão interminável. Mas a escuridão acaba sempre por voltar, não é? É uma realidade da vida.

Se sei alguma coisa, é isto: o facto de estarmos juntos foi a melhor de todas as coisas que podia ter acontecido e quero que esse sentimento de autenticidade permaneça intacto e belo. Gosto muito de ti. Adoro-te, Jennifer. Com toda a sinceridade. Tu inspiras-me. Espero de todo o coração que me perdoes esta atitude e que compreendas quão insuportavelmente difícil é para mim deixar-te esta manhã. Sem o nosso banho no lago. E as panquecas de mirtilo de cinco estrelas. Isto é a coisa mais difícil que já fiz na vida! Mas acredito do fundo do coração que é aquilo que devia fazer.

Amo-te tanto que até esse pensamento me causa dor. Por favor, acredita nisto.

És a minha luz, o meu Verão interminável.

 

O ADEUS AO LAGO GENEBRA

Quando acabei de ler a carta do Brendan, custava-me a respirar e as lágrimas corriam-me pela cara. Não conseguia deixar de pensar que, de certo modo, era eu que tinha a culpa de ele se ter ido embora. Tal como era culpa minha o facto de o Daniel estar sozinho quando morreu no Havai. EnFiei o relógio dele no meu pulso. Depois telefonei para o escritório do Shep, em Chicago. Disse à secretária que precisava mesmo de falar com ele. Por Fim ouvi ao telefone a voz familiar e tranquilizante do Shep.

- Shep, o Brendan foi-se embora - consegui articular.

- Eu sei, Jen. Falei com ele esta manhã. É melhor assim.

- Não, não é - respondi. - Por favor diga-me o que se passa. O que é que ele está a fazer?

O Shep tossiu em seco e hesitou, depois contou-me algumas das coisas que o Brendan tinha dito na carta. Que ele não queria que eu o acompanhasse na fase final da doença. Que me amava e lhe custava muito ter de deixar-me. E que o Brendan estava assustado.

- Tenho de o ver. Não posso terminar assim. Não aceito isso. Shep, se for preciso vou aí ao seu escritório de Chicago.

Ouvi o Shep suspirar fundo.

- Acho que sei como se sente, mas o Brendan obrigou-me a prometer que não lhe contava. Dei-lhe a minha palavra.

- Shep, preciso de o ver outra vez. Será que eu não tenho uma palavra a dizer? Não está certo o Brendan ter tomado esta decisão sem mim.

Houve um silêncio do outro lado da linha e receei que o Shep me desligasse o telefone. Por fim, falou.

- Eu prometi-lhe. Você está a colocar-me numa situação sem saída. Que raio, Jennifer... Ele vai a caminho da Clínica Mayo.

Não conseguia acreditar no que ouvira.

- O que disse? Ele vai para o hospital?

- A Mayo é o lugar indicado para este tipo de problemasrespondeu Shep. - Ele vai ser operado amanhã de manhã.

 

O meu estômago dava voltas, cal como acontecera um ano e meio antes, quando fui ao hospital de Oahu para ver o corpo do Danny. Só agora me encontrava no meu carro, à volta com as mudanças, não só literalmente como em sentido figurado, dirigindo-me para sul a toda a velocidade pela estrada I-94, até à bifurcação. Então tomei a I-294, em direcção a O'Hare.

Telefonei à Sam do telemóvel, explicando o que podia, e ela disse-me que eu era a melhor lutadora que conhecia e que tinha orgulho em mim. Então começámos as duas a chorar ao telefone, tal como em tempos passados.

Tenho a certeza de que as pessoas olhavam fixamente para mim quando embarquei no avião para Rochester, no Minnesota. Ia com a expressão tensa e perturbada e tinha os olhos inchados e muitíssimo vermelhos.

Pouco depois de hora e meia mais tarde, já ia ao volante de um automóvel alugado, em direcção à Clínica Mayo. Ia ver o Brendan, esperava, e ele estava precisamente onde eu o queria: num dos melhores hospitais oncológicos do mundo.

 

Uma porta giratória de vidro depositou-me no átrio verde e fresco do edifício principal do hospital St. Marys, na Clínica Mayo, um recinto espaçoso com paredes altas de mármore e colunas dispersas. Era aí que o Brendan ia ser operado. Dirigi-me à recepção, expliquei quem era e pedi que me indicassem onde era o seu quarto.

Disseram-me que o Dr. Keller tinha feito a sua inscrição de manhã cedo. Ficaria no Joseph Building até às seis da manhã do dia seguinte, para ser submetido a exames médicos. Não se encontrava ali.

A tremenda desilusão deve ter-se reflectido no meu rosto, porque a recepcionista de vinte e tal anos abriu um dossier de três argolas. Percorreu uma lista com o dedo e depois olhou para mim.

- Ele disse que havia a possibilidade de vir cá alguém. Fiquei sem saber o que dizer.

- Pois bem, eu vim. Aqui estou.

- O Dr. Keller está na Colonial Inn, número 114 da Second Street, em Southwest.

Informei-me do percurso e pouco depois já ia a caminho no carro alugado. Os minutos passavam a correr, enquanto eu estava presa no trânsito da hora de ponta. Por fim consegui desembaraçar-me daquela confusão, com que não contava em Rochester. Uns momentos mais tarde encontrava-me na Colonial Inn e tremia como varas verdes.

Encontrei o quarto 143 e bati à porta. Não obtive resposta.

- Brendan, por favor - pedi. - Fiz toda esta viagem. Sou a Jennifer... a rapariga mais bonita do Lago Genebra!

A porta abriu-se lentamente e o Brendan surgiu à minha frente, com o seu metro e oitenta e oito de altura. Mantinha os mesmos ombros largos e o aspecto robusto. Tinha os olhos tão azuis como o céu do Norte num dia de Julho. Abriu os braços e acolheu-me neles.

- Olá, Scout! - murmurou. - A rapariga mais bonita de Rochester, no Minnesota.

- Estava furiosa contigo - confessei fìnalmente, ainda abraçada ao Brendan.

- E agora? Como re sentes agora, Jennifer?

- Com o teu encanto, estás a fazer com que isso me passe.

- Não notei que estava a encantar-te - respondeu.

- Eu sei. Faz parte da tua personalidade. É algo que vem dos teus olhos azuis.

Ficámos um ou dois minutos a balançar- nos abraçados à entrada da porta, depois soltámo-nos. Foi só nessa altura que as pálpebras

do Brendan baixaram e os seus movimentos se tornaram visivelmente mais lentos e um pouco trémulos; seria da medicação, ou do tumor? Sentámo-nos no sofá e despenteei-lhe a onda do cabelo. - Estás satisfeita agora?

- Estou.

- Meu Deus, como senti a tua falta! - exclamou, e beijámo-nos. Então o Brendan recostou-se para trás e fcou a olhar para o

tecto. Parecia muito distante.

- Queres que te conte como está tudo programado? - perguntou.

Acenei afirmativamente. Acho que isso significava que o Brendan sabia que eu ia fcar.

Pousou a mão no meu joelho.

- Tenho de estar no hospital às seis da manha. Em ponto. O Adam Kolski vai operar-me às sete. Ele é muito bom. - Muito bom?

- É mesmo bom. Quase um deeeeus - respondeu. E, de repente, lá estava aquele seu sorriso magnífico. - É claro que consegui o melhor de todos.

- Antes assim! - repliquei. E então, por fim, lá estava aquele meu sorriso.

- Quero prevenir-te, depois de amanhã vou estar como se um canhão me tivesse lançado de cabeça contra um muro de tijolo. Se cudo correr bem. Espero que continues a gostar do meu encanto, dessa coisa especial que os meus olhos têm.

- Gosto de tudo em ti - respondi. - E sobretudo gosto que tenhas tomado esta decisão.

O Brendan beijou-me de novo e senti-me derreter.

- Vamos sair daqui - disse-me. - Vou mostrar-te Rochester. E, podes crer, isto é um encontro amoroso.

 

Um encontro amoroso. Essa era outra expressão engraçada e que me fazia lembrar de tudo o que era tão bom entre mim e o Brendan. Possuíamos a mesma energia, a mesma paixão por uma quantidade de coisas, interesses comuns; partilhávamos um sentido de humor meio pateta; e é tão difícil encontrarmos alguém que seja a pessoa certa para nós! Meu Deus, às vezes isso pode parecer im possível. Para algumas pessoas é impossível.

Eu fui a conduzir e o Brendan dava-me as indicações. A cerca de cinco ou seis quilómetros do hotel, perto do hospital, ele pediu-me que estacionasse onde encontrasse um lugar. Na verdade, a rua secundária onde nos encontrávamos estava surpreendentemente apinhada para uma noite de dia de semana.

- O que há aqui, afnal? - perguntei.

- O Bar do Stephen Dunbar - respondeu Brendan. - Era aqui que costumávamos relaxar quando eu era interno. É onde quero levar-te para o nosso encontro amoroso.

- Um bar? - estranhei. - O Bar do Stephen Dunbar? Ele acenou afirmativamente.

- Acho que esta noite não devo beber - respondeu Brendan.

- Mas sem dúvida acho que devemos dançar.

Lá dentro, o bar estava com meia lotação, uma frequência simpática e agradável, e alguns pares dançavam uma balada de que eu gosto, dos Red Hot Chili Peppers: Under tbe Bridge.

O Brendan tomou-me imediatamente nos braços.

- Gosto desta canção - sussurrou ao meu ouvido. E começámos a dançar. - E adoro dançar contigo.

- Obrigado pela Jennifer - continuou a sussurrar. - Ela é a mulher perfeita. Tudo o que sempre desejei na vida.

Parecia-me uma oração.

- Uma vez vi-te a rezar, na cozinha - confessei.

- Era precisamente esta oração - respondeu, piscando-me o olho. - Tenho-a rezado todo o Verão.

Dançámos todos os slows que tocaram na jukebox e até dançámos devagar algumas das músicas mais rápidas. Eu não queria separar-me do Brendan, nem por um minuto.

- O que há de melhor do que isto? - perguntou ele. - Um encontro com a minha amada, na cidade onde estudei, num dos meus lugares favoritos.

Sentia-me tão inacreditavelmente próxima do Brendan, tão apaixonada por ele, que parecia impensável o que ia passar-se na manhã seguinte. Não queria que isso acontecesse, mas tinha os olhos rasos de lágrimas.

- Não sejas tão querido - pedi-lhe.

- Nada de lágrimas - respondeu, limpando-me os olhos.

- Não embaraça e não arde nos olhinhos - riu-se, parafraseando um anúncio de champô para crianças; depois ficou ligeiramente atrapalhado com a sua própria piada. O Brendan conseguia rir-se sempre. Em qualquer ocasião. Acerca de tudo, até disto.

Continuámos a dançar, ao som de uma velha canção de Smokey Robinson and the Miracles.

- Depois de já tudo isto ter passado, vamos viajar - afirmou.

- Nunca fui a Florença, nem a Veneza. China, África, há tantas coisas para ver por esse mundo, Jen.

Recomecei a chorar.

- Não consigo evitar. Não costumo ser tão sentimental.

- É, estamos mais ou menos numa ocasião sentimental. Beija-me outra vez. Continua a beijar-me. Até à hora da operação. Assim, beijámo-nos novamente. Mas por fim voltámos para a Colonial Inn, onde pensei que o Brendan ia cair a dormir. Mas não o fez.

- Todos os dias desde o romper da aurora. - começou.

até já não conseguirmos manter os olhos abertos nem mais um segundo - completei.

Por volta das três da manhã adormecemos finalmente nos braços um do outro, com os dedos entrelaçados e a minha cabeça apoiada no seu peito. Lembro-me de ter pensado: Era assim que devia ser. Precisamente assim. Por nuitos e muitos anos.

E então o despertador começou a tocar.

 

O Brendan inclinou-se até mim e beijou-me os lábios. Já se tinha levantado e já estava vestido.

- O romper da aurora - afirmou. - Estás pronta para um banho no lago?

- Não digas piadas agora, nem mesmo piadas boas. Está bem, Brendan?

- As hipóteses que tenho de sobreviver três anos com o glio blastoma multiforme são inferiores a...

Cortei-lhe a palavra.

- Está bem, podes dizer piadas. As piadas fazem bem - cheguei-me para o outro lado da cama e beijei-o. - Amo-te.

- Também te amo. Provavelmente desde a primeira vez que te vi junto ao lago. Eras, e ainda és, a rapariga mais bonita do mundo. Do mundo. Ouviste?

- Ouvi - respondi, com um sorriso. - É claro que essa é apenas a tua opinião.

- Bom argumento. Mas acontece que neste assunto sou eu que tenho razão.

Eu estava convencida, naquela altura, de conseguir controlar as minhas emoções. Por isso não estava à espera que algo tão simples me transtornasse. Reparei que as mãos do Brendan tremiam muito quando se inclinoú para apertat um par de sapatos novos, que pareciam os seus ténis de corrida da Nike, mas não eram. Em vez de atacadores, estes sapatos apertavam com tiras de velcro. O Brendan já não conseguia apertar o. Atacadore do. sapato.

Ele ergueu os olhos e viu que eu estava a observá-lo.

- Gosto destes sapatos - afirmou.

Uma imagem atravessou-me a mente: o Brendan a nadar no lago com braçadas vigorosas, numa manhã de Verão. Agora já não conseguia apertar os sapatos. Sofri por ele. O Brendan sabia o que o esperava: as dores, as náuseas do pós-operatório, a possibilidade muito concreta de não resistir à operação.

Abracei-o.

- Vai dar tudo certo - disse-lhe. Tinha de o dizer. Menos de vinte minutos depois, o Brendan e eu saímos do hotel para a luz esbatida da manhã. Ele ficou de pé em silêncio, apoiando um braço no tejadilho do carro, e continuava com um aspecto saudável. Estava a assimilar um letreiro de néon que piscava num café, depois uma igreja de pedra rústica do lado oposto da rua, como se estivesse a memorizar cada detalhe mundano.

- Um snac-bar bonito, uma igreja bonita, uma rapariga muito bonita - afirmou.

A seguir entrou para o lugar ao lado do condutor. De uma maneira um tanto hirta. Ouvi o estalido do seu cinto de segurança, quando o Brendan o prendeu para a viagem da sua vida.

- Vamos, beleza. Temos hora marcada em Samarra, ou num lugar parecido.

Por uma das poucas vezes desse Verão, ambos permanecemos calados quase todo o tempo. A viagem àquela hora tão cedo demorou apenas cinco minutos desde o Colonial até à garagem subterrânea do St. Marys. Um elevador levou-nos até ao rés-do-chão. Daí seguimos por um corredor envidraçado para o Joseph Building, que era onde o Brendan daria entrada e seria preparado para a cirurgia.

O Brendan parou e pousou as mãos nos meus ombros. Inclinou-se para mim e olhou-me nos olhos.

- Acho que já esgotei as minhas piadas, Jennifer. Importas-te que te diga mais uma vez que te amo?

- Não. Por favor. Continua a falar. Não te vás embora.

- Amo-te tanto, Jennifer! É importante para mim que, aconteça o que acontecer, saibas que foste fantástica, fabulosa. Ajudaste-me a ser forte, mais do que imaginas. Fizeste tudo o que alguém poderia fazer, e ainda mais... Jennifer?

- Eu sei - articulei, por fim. - Entendi. - Abracei-o ainda com mais força. Tinha os olhos bem fechados, mas mesmo assim as lágrimas rolavam-me pela cara.

- Estás a fazer-me chorar - consegui dizer, finalmente.

- Uf? Pois é. É porque eu também estou.

Olhei para os seus olhos e vi que ele estava quase tão destroçado como eu. Inclinou-se para a frente e beijou-me na cara, depois nos olhos, fnalmente nos lábios. Adorava a maneira como ele me beijava, adorava tudo nele. Não queria deixá-lo ir.

- Nunca temos tempo suficiente, pois não? Acho que tenho de ir. Estou atrasado, Jennifer.

Assim que chegámos ao quarco piso, a enfermeira encarregada das admissões, uma mulher corpulenta com os braços cheios de sardas, procurou num monte de papéis. Depois chamou um auxiliar, que apareceu com uma cadeira de rodas. Foi então que o pensamento que eu ainda não tinha sido capaz de enfrentar tomou conta da minha mente. Podia não voltar a ver o Brendan. Isso podia acontecer.

- Amo-te - disse-lhe. - Vou ficar aqui à espera. Vou ficar à tua espera precisamente onde estou agora.

- Amo-te, Jennifer - respondeu. - Quem é que não amaria a rapariga mais bonita do mundo? De uma maneira ou de outra, até depois.

Sorriu, com aquele seu sorriso maravilhoso, e ergueu os dois polegares para me fazer sinal de que tudo ia correr bem, enquanto o auxiliar o levava pelo corredor fora até ao bloco operatório. Então o Brendan soltou um dos seus famosos gritos de saltar-para-o-lago.

Bati as palmas e ri-me.

- Adeus! - exclamei. - Adeus!

O Brendan voltou-se para trás e sorriu mais uma vez.

- Adeus! - gritou ainda, no momento antes de desaparecer da minha vista.

Adeus ?

Não permitar que seja um adeur.

Deixei-me escorregar para um acadeira estofada da sala de espera do hospital e comecei a imaginar a operação a decorrer seis pisos abaixo de mim, quando o Shep chegou com os pais do Brendan, que eu ainda não conhecia.

- Ele não queria que viéssemos - disse a sr.a Keller. - Está a querer poupar-nos sofrimento. Pelo menos, acha que sim.

- Sempre foi assim - afirmou o pai do Brendan. - Uma vez fez uma fractura na mão, na escola, e só nos disse quando já estava quase curado. A propósito, sou o Andrew. E esta é a Eileen.

Todos nos abraçámos. E então a mãe e o pai do Brendan irromperam num choro. Vi como amavam o filho e isso sensibilizou-me.

O resto do dia foi-se arrastando num longo tormento. Eu olhava constantemente para o relógio de pulso do Brendan, mas parecia que os ponteiros não se moviam. O pai dele dizia piadas, o que não me surpreendeu. Aquela de que mais gostei foi: Como é que reconhecemos se um fanático do computador é extrovertido? Se ele olhar para os norsos sapatos.

Outras visitas do hospital entravam e saíam da sala de espera, algumas a chorar, a maioria com uma expressão preocupada. O televisor tremeluzia, com imagens infindáveis de notícias do CNaC e do ESPN.

Enquanto esperávamos, perguntava a mim mesma se o Shep seria o Doc. Mas ele não tinha criado os Flhos sozinho. Portanto, não era o Doc; a não ser que a Sam me tivesse enganado.

Por volta das quatro da tarde saí por um bocado da sala de espera. Fui dar uma volta a pé até ao Peace Garden, no complexo de St. Marys, um quarteirão de edifícios cheio de flores garridas e com uma estátua de São Francisco. Ouvi um concerto de carrilhão, com os sinos a tocarem uma bonita interpretação de Anzdzing Grace. Ajoelhei-me e rezei pelo Brendan. Depois telefonei à Sam e contei-lhe todos os acontecimentos do dia.

Por fim, voltei para a sala de espera. A minha cronometragem foi excelente. Dez horas depois de ter dado ao Brendan um beijo de despedida, apareceu um médico jovem de cabelo escuro e cara de querubim. Anunciou que o seu nome era Adam Kolski. Não parecia ter idade para ser cirurgião, e muito menos praticamente um deeeeus ".

Procurei ler-lhe o rosto, mas as minhas aptidões jornalísticas não estavam a funcionar bem nesse dia.

- As coisas correram tão bem como se podia esperar - disse o Dr. Kolski. - O Brendan sobreviveu à cirurgia.

 

As visitas tinham autorização para ver os doentes nos Cuidados Intensivos apenas durante alguns minutos. Uma pessoa de cada vez. Depois de os Keller e o Shep já terem ido, entrei eu. O Adam Kolski foi comigo, para ver como estava o seu doente.

- Ele está melhor do que aparenta - avisou-me. O Brendan estava inconsciente. Tinha a cabeça envolvida por ligaduras e o rosto estava negro e azulado. O Dr. Kolski explicou que o Brendan tinha sido entubado e que as máquinas podiam mantê-lo vivo, se fosse caso disso.

Ele tinha um tubo no nariz, outro na garganta; um dreno ligado a um saco, debaixo da cama; e, nas veias, estava a receber soro com uma solução salina e sedativos. Tinha eléctrodos por todo o corpo, que enviavam registos dos seus sinais vitais para diversos monitores; num dos braços, uma braçadeira insuflável para medir a tensão arterial enchia-se e esvaziava-se automaticamente.

- Está vivo - murmurei. - É o que importa agora.

- Está vivo - disse o Dr. Kolski, dando-me umas palmadinhas no ombro. - Ele fez isto por si, Jennifer. Contou-me que você merece isto e muito mais. Fale com ele. Você pode ser o remédio de que o Brendan necessita neste momento.

Então o Kolski saiu do quarto e fquei sozinha com o Brendan. Tirei o relógio que ele me tinha dado e prendi-o cuidadosamente ao seu pulso, logo a seguir à pulseira de plástico com o nome dele. Apertei-Lhe os dedos e aproximei a minha cara da dele.

- Estou aqui - disse-lhe, desejando que ele ouvisse a minha voz. - Sabes, adorei cada minuto que passei contigo este Verão.

Mas adoro especialmente este.

 

Tive a sensação de que os meus preciosos cinco minutos com o Brendan tinham passado em cinco segundos. Estava a segurar a mão dele, quando fui afastada por uma enfermeira educada mas Firme, que me mandou novamente para a sala de espera.

Os pais do Brendan e o Shep queriam que eu fosse jantar com eles, mas eu estava desfeita, física e emocionalmente. Não era capaz de sair logo de ao pé do Brendan. Quando eles se foram embora, afundei-me numa cadeira e deixei correr as lágrimas. Tinha conseguido conter-me durante quase todo o dia, mas agora não havia razão para isso. Tinha a cabeça cheia de todo o tipo de pensamentos e de vozes. O Brendan podia morrer em breve. As pessoas bem intencionadas podiam dizer-me Jennifer, ainda és muito nova. É natural que escejas triste, mas a vida continua. Não feches o teu coração ao amor,

Não o fechei, eu amava o Brendan! Não fechara o coração, mas vejam só onde ele me tinha levado. Enxuguei a cara com lenços de papel, depois olhei para as filas de cadeiras vazias, iluminadas por uma luz branca e dura. Para lá da janela ouvia-se o gemido da rua com a passagem de um pequeno fluxo de ttáfego. Sentia-me tão só no hospital!

Os minutos passavam lentamente. Por fim, passou uma hora. Podia ter telefonado outra vez à Sam, mas já era muito tarde.

Finalmente, procurei no fundo da mala e agarrei no último maço das suas cartas. Desatei o cordel vermelho e gasto e dispus os envelopes em forma de leque. O meu nome dançava ao longo deles, na sua caligrafia precisa e nítida.

Fui à máquina comprar uma chávena de café e deitei-Lhe vários pacotes de açúcar. A seguir abri um envelope.

- Preciso de ouvir a tua voz, Sam - proferi.

Na noite branca e interminável da sala de espera do hospital, comecei a ler a última parte da sua história.

 

Querida Jen,

Eis o que aconteceu - tudo mudou num instante. Numa patética tarde quente de Agosto o Doc bateu-me à porta da cozinha e, no momento em que o vi, o meu coração começou a bater com toda a força. Fiquei espantada e talvez até receosa. Jennifer, ele nunca tinha aparecido assim na minha casa.

- Passa-se alguma coisa? - perguntei. - Estás bem? O que aconteceu?

- Vem dar uma volta comigo - foi tudo o que respondeu.

- Agora? Assim, sem mais nem menos?

- Sim. Estás muito bem assim, Samantha. Tenho uma surpresa para ti.

- Uma surpresa boa?

- A melhor que podia dar-te. Há muito tempo que esperava por isto.

Fosse o que fosse que ele tinha em mente, eu não estava para ir com o fato-macaco sujo e os tamancos de jardinagem. Por isso pedi-lhe que entrasse e subi para me mudar. Um quarto de hora depois, apareci com um bonito vestido de linho azul, o cabelo arranjado e até com batom.

Quando me viu, o Doc sorriu.

- Meu Deus, estás um espanto! - exclamou.

É claro que, para ele, eu também estaria um espanto se lhe aparecesse vestida com um saco do lixo e uma caçarola na cabeça. Disse-lhe isso e ambos rimos, porque era verdade.

Então agarrou-me as duas mãos.

- Samantha, hoje muda tudo.

- E não vais dizer-me o que é que muda hoje?

- Não, prefiro mostrar-te.

Ele não estava só entusiasmado, estava muito misterioso, Jen, o que tornava tudo ainda mais engraçado. É evidente que eu também estava entusiasmada só de o ver assim, de olhar para o seu rosto e de ver como estava feliz.

E sabes uma coisa? Gosto mesmo de surpresas!

 

Jennifer, Jennifer, Jennifer,

Durante toda essa semana estava a decorrer na aldeia o Venetian Festival, com todo o seu aparato, e as ruas encontravam-se apinhadas de turistas que tinham vindo para a festa anual do fim do Verão, junto ao lago. O Doc estacionou num parque municipal, a um quarteirão a norte da Main Street, e meteu uma quantidade de moedas no parquímetro. Parecia que íamos para a feira e aparentemente ficaríamos lá durante um bom bocado.

- É esta a surpresa? - perguntei. - Porque eu já sabia que estava a decorrer o festival.

- Isto é apenas o ponto de encontro - respondeu ele. - Não sejas tão presunceird.

Esta era uma das palavras preferidas do Doc, se é que é uma palavra.

As crianças gritavam na montanha-russa, o ar cheirava a pipocas e a algodão doce, e de repente ocorreu-me que estava a passar por um momento que pensava que nunca iria acontecer. Ali estávamos nós, o Doc e eu a andarmos de mãos dadas no centro de Lago Genebra. Ergui os olhos para ele com uma expressão interrogativa.

- É esta a tua surpresa? Porque é, de facto, uma grande surpresa. Será que saímos da toca?

O Doc contou-me que acabara de deixar o filho mais novo na Universidade Vanderbilt.

- O ninho está vazio. O Sr. Mãe acabou. Estou livre.

De repente, puxou-me para os seus braços e beijou-me em frente de Deus e de toda a gente que se encontrava no Lago Genebra. O seu beijo continha tanto amor, que me saltaram as lágrimas aos olhos.

Ele olhou-me de frente.

- Pergunto a mim mesmo se alguma vez alguém terá vivido um amor como o nosso, Samantha. Sabes, duvido que sim.

- Acho que, em parte, é isso que o torna tão especial respondi.

O calor do sol sabia-me bem no rosto, o ar estava fresco e eu balançava nos braços do Doc, sentia-me viva de uma maneira que nunca antes tinha sentido. Isto era ainda melhor do que os nossos fins-de-semana em Copper Harbor, porque era a primeira vez que estávamos absolutamente livres. Sentia-me nas nuvens, Jennifer, mas os meus pés ainda estavam no chão quando chegámos ao Library Park.

Encontrámos um banco vazio junto ao paredão do lago. Assistimos ao lançamento à água do barco I. ady oftbe Lae, dos estaleiros Riviera, e o Doc comprou cachorros quentes e cervejas na barraca dos Veteranos. Ficámos lá até depois do pôr do Sol, para ver o desfile dos barcos iluminados e o fogo-de-artifício de encerramento.

E isto é que é espantoso. Seria ultrajante se não fosse tão divertido. Durante todo esse dia o Doc e eu falámos com pessoas que conhecíamos e nenhuma delas notou que estávamos resplandecentes. É claro que percebi porquê. Simplesmente não lhes passava pela cabeça que pudesse existir um romance entre nós os dois. Como o mundo pode ser estranho e retrógrado, às vezes! Há tantas pessoas que desistem do amor, apesar de o amor ser a melhor coisa que lhes pode acontecer.

Voltei-me para o Doc e disse-lhe quanto o amava e que não conseguia imaginar uma surpresa melhor. Ele puxou-me mais para si.

- Anima-te, Samantha. O nosso dia ainda não acabou.

 

O carro do Doc ronronava de satisfação quando viemos embora do festival, saindo da periferia da cidade. Eu não fazia ideia do que ia acontecer. Só quando chegámos ao parque do Observatório Yerkes. Estava em silêncio e tudo o que eu conseguia ouvir era o cancar dos grilos e talvez o som do sangue a pulsar nos meus ouvidos.

O Doc tirou do banco traseiro um cobertor de lã de xadrez e, tal como tínhamos feito anos antes, atravessámos o relvado em frente do imponente edifício, correndos em bicos de pés. Um amigo do Doc tinha nos deixado uma chave numa fenda entre dois tijolos do muro. Subimos os três lances de escadas que conduzem à cúpula maior e penetrámos na escuridão.

- Estás preparada para isto? - perguntou-me.

Sorri e senti-me capaz de fazer o que quer que fosse.

- Há anos que estou preparada - respondi.

Ele usou um ponteiro luminoso para encontrar uma alavanca que estava a cerca de metro e meio abaixo da ocular do telescópio. A seguir accionou as manivelas e os guinchos que abriam a cúpula, descobrindo uma vasta faixa de céu.

- Olha para aquilo, Samantha. Olha só. É uma maravilha.

- Oh, meu Deus! - foi tudo o que consegui dizer naquele momento, porque estava suspensa.

O Doc fcou de pé atrás de mim, com as mãos nos meus ombros, enquanto espreitávamos pela maior lente refractora do mundo. Parecia que estávamos a contemplar o paraíso. O céu estava deslumbrante, no mínimo. Eu não sabia para onde havia de olhar primeiro, mas os meus olhos foram atraídos para um globo vermelho às manchas, do tamanho de uma moeda de prata de um dólar.

- É Marte - disse Doc.

Ele contou-me que Marte e a Terra estavam em oposição nessa noite, com as órbitas alinhadas de tal modo que a Terra se encontrava entre Marte e o Sol. Apontou para áreas polares cobertas de gelo, para manchas escuras formadas por neblinas e para o que podia ter sido uma tempestade de poeira que tivesse varrido a superfície do planeta, sob o seu céu rosado e enevoado.

- Da última vez que Marte esteve tão perto da Terra, os homens das cavernas ainda estavam a tiritar de frio na Nova Guiné, à espera que alguém descobrisse o fogo - afirmou.

A seguir o Doc abriu o cobertor no chão de madeira dura e levou-me para lá. Sentámo-nos, com os ombros encostados. Eu sabia que algo de bom estava para acontecer, mas não fazia ideia do que pudesse ser.

- O que é? - perguntei, num murmúrio.

- Tenho estado à espera do momento certo - respondeu.

- Disseste que gostavas de surpresas, Samantha.

 

- Samantha, sou um homem de sorte - afirmou Doc com uma voz muito suave. - Encontrei-te um bocado tarde, mas amo-te mais do que tudo no mundo e estás aqui nos meus braços.

És absolutamente a minha melhor amiga, a minha alma companheira, a minha conFdente, o meu grande, grande amor. Não gosto nada quando não estás ao pé de mim. Ainda não consigo acreditar que te encontrei, ou que tu me encontraste a mim, naquele horrível jantar da Cruz Vermelha. Não consigo mesmo, Samantha, e

agora aqui estamos nós.

Eu ainda não sabia onde é que aquilo ia dar, mas o meu coração começava a bater descontroladamente. Desde que o conhecia, o Doc sempre me tinha dito, às vezes de um modo muito bonito,

O que sentia por mim, mas nessa noite ainda era mais especial, mais apaixonado, mais comovente, mais meigo, o que, na minha opinião, é uma coisa boa. Mostrou-me uma pequena caixa, e eu fiz incidir sobre ela o foco de luz do ponteiro.

- Abre-a - pediu.

Assim fiz e os meus olhos abriram-se de espanto. Lá dentro estava um anel com uma saFra rodeada de maravilhosos diamantes pequenos. Fiquei com a respiração suspensa e não pela razão que tu pensas. Anos antes, uma única vez, eu tinha apontado precisamente para aquela peça na montra da joalharia Tiffany, em Chicago. Na altura tinha gostado imenso dela, mas agora provocou-me lágrimas. Não conseguia acreditar que o Doc se lembrava e que estava a oferecer-me.

- Amo-te muito, mais do que tudo... - afirmou, enfiando-me o anel no dedo. - Queres casar comigo, Samantha?

Abri os olhos de espanto, Jennifer. O rosto do Doc encontrava-se emoldurado pelo céu e pelas estrelas lá no alto. Abracei-me a ele com toda a força. Confesso que nunca esperara isto, nunca ousara pensar que isto pudesse acontecer.

Mal conseguia falar.

- Também te amo a ti mais do que tudo. Tenho tanta sorte por te ter encontrado. É claro que quero casar contigo. Seria louca se não quisesse.

E então proferi o verdadeiro nome do Doc, vezes sem conta, enquanto as estrelas nos olhavam cá em baixo e tudo no universo parecia incrivelmente perfeito.

 

Eu tinha adormecido depois de ler a última carta espantosa da Sam. Quantas perguntas tinha para lhe fazer quando voltasse ao Lago Genebra! Ou talvez até quando tornasse a telefonar-Lhe do hotel. Por que razão ela não tinha casado com o Doc? O que lhes tinha acontecido?

Acordei com alguém a abanar-me suavemente o braço, a chamar pelo meu nome. A luz da manhã filtrava-se através do vidro espesso da janela da sala de espera. O Adam Kolski encontrava-se inclinado sobre mim.

- Bom dia, Jennifer. Podíamos ter-lhe arranjado um sítio meLhor para dormir.

- Está tudo bem com o Brendan? - perguntei imediatamente

- Dormiu toda a noite, tal como você. Não posso prometer nada, mas ele consegue mexer os dedos dos pés - afirmou o médico. - Sabe o nome dele e sabe o seu. Na realidade, está a chamar por si.

Isso fez-me arrebitar e levantar de imediato.

- Posso vê-lo?

- É claro que sim. Foi por isso que vim chamá-la. Quero que converse com o Brendan. Preciso de saber se ele efectivamente a conhece. Venha comigo.

Kolski, o próprio deeeus, abriu a porta de correr do pequeno quarto do Brendan, nos Cuidados Intensivos.

- Só cinco minutos - afirmou.

Consegui ver o Brendan por detrás do Dr. Kolski, quando penetrei no quarto. Tinha na mão direita um toalhete enrolado. Tirei-lho e enFei a minha mão na dele.

- É a Jennifer - murmurei. - Estás pronto para o nosso banho matinal no lago?

Não houve qualquer resposta por parte do Brendan, o que não me surpreendeu mas também não me fez sentir reconfortada acerca da sua situação. Não fazia ideia das lesões que ele podia ter sofrido durante a operação.

- Estou aqui. Só queria que soubesses. E tu também estás aqui. Estava a balbuciar um pouco, mas não me importava, e duvidava que isso fizesse grande diferença para o Brendan. Se é que ele conseguia reconhecer a minha voz.

Então, quando estava de pé ao lado da cama dele, aconteceu um milagre, ou pelo menos assim pareceu. O Brendan apertou a minha mão, foi uma pressão muito ténue, mas que me causou arrepios no corpo. Baixei a cabeça.

- Estou mesmo ao pé de ti, Brendan. Não tentes falar. Eu falarei pelos dois. Estou aqui, meu amor.

- És mesmo tu?

A minha cabeça disparou e olhei novamente para o Brendan. Meu Deus, ele tinha falado.

- Estou aqui - repeti, com a voz a estalar de emoção. O Brendan tinha falado. - Consegues sentir a minha mão? Sou eu que estou a apertar a tua.

- Não consigo ver-te - respondeu, num murmúrio rouco.

- É porque os teus olhos estão fechados, de tão inchados. Ficou calado durante um longo momento e pensei que tinha adormecido outra vez.

- Eu pensava que não... seria capaz - disse Brendan, por fim. Eu conseguia perceber que ele estava a fazer um grande esforço para não chorar, mas então as lágrimas irromperam dos seus olhos completamente fechados.

- Vai ficar tudo bem connosco - disse.

De repente senti que se apoderava de mim um sentimento avassalador de humildade, mas também de amor por este homem. Era o Brendan que estava a confortar-me a mi. Estava ali para me apoiar, mesmo agora, a seguir àquela terrível operação. A sua voz parecia vir de muito longe, mas era o Brendan, sem dúvida o meu namorado. E ele queria conversar.

- Eu estava a pensar. tu sentada no pontão. a proteger os olhos do sol com a mão... a olhares para mim... não larguei esse pensamento.

Olhei para o rosto do Brendan, sentindo um grande amor por ele. E então aconteceu outro milagre. Ele abriu uma pequenina nesga dos olhos. E fez um esforço para esboçar um sorriso, estranho e semidrogado.

Foi apenas o melhor sorriso que eu já vira na minha vida.

- Amo-te tanto! - sussurrei. - Oh, meu Deus, como te amo!

- Não discutas comigo... eu amo-te ainda mais.

E nesse momento percebi algo que parecera impossível: o Brendan ia viver.

 

Ao longo das semanas seguintes, tudo na vida parecia incrivelmente precioso e tinha mais significado para mim. De repente tornara-me uma presença assídua na Clínica Mayo e no Centro Médico do Lago Genebra. A única coisa que me faltava era um uniforme de voluntária dos hospitais.

A recuperação do Brendan foi lenta e lancinante, mas ele continuava a recuperar dia após dia, semana após semana. Era um dos doentes preferidos do fisioterapeuta, em parte porque todos os dias usava um chapéu engraçado diferente, em parte porque andou lá durante três semanas sem que soubessem que ele era um médico conceituado, mas principalmente porque tem uma maneira de ser cativante.

E então, numa manhã chuvosa de Outubro, fomos chamados ao gabinete do Dr. Adam Kolski, no edifício St. Marys. O deeeus mostrou-nos algumas radiografias, e depois, inesperadamente, disse ao Brendan que podia ir para casa. O seu problema já estava controlado.

- Você também pode voltar para casa, Jennifer - afirmou Kolski, dirigindo-me um sorriso fora do comum.

No dia seguinte, o Brendan e eu voltámos para o Lago Genebra. A caminho do Wisconsin, eu ia agitada de excitação e talvez até com os nervos um bocado abalados. Íamos ver a Sam. Ela já tinha voltado para casa e havia mais uma coisa. Quando lhe telefonei e lhe contei as novidades sobre o Brendan, a Sam disse que queria que conhecêssemos o Doc.

 

O início de Outubro era uma época do ano de que eu nunca gostara, porque o Sol desce no horizonte cada dia um pouco mais cedo. Mas sentia-me feliz por este Outubro em particular. Tinha tantas coisas que me faziam sentir grata! O Brendan e a Sam, e agora ia conhecer o Doc.

E de repente lá estava a casa da Sam, mesmo à nossa frente. Vi a velha carrinha do Henry estacionada no jardim. Hum!

O Brendan saltou do Jaguar e inspirou profundamente o ar do lago.

- Sam! - chamei em voz alta. - Chegámos. Tens companhia.

Então o Brendan soltou um dos seus gritos de guerra, não propriamente com o volume habitual, mas suficientemente ruidoso para espantar alguns pássaros dos ramos das árvores que pendiam sobre nós.

- Que tal uma corrida até ao lago? - perguntou, com um sorriso.

Eu sabia que ele ainda se encontrava um bocado fraco, mas estava com bom aspecto e o seu famoso sorriso resultava na perfeição.

Quando a Sam não respondeu, esgueirei-me para o interior escuro da casa, para ir procurá-la. Chamei pelo seu nome em todas as divisões onde entrei, subindo o tom de voz à medida que os meus passos soavam pelos soalhos de madeira dura. Nessa época o medo apossava-se de mim com muita facilidade. Tinham acontecido demasiadas coisas más, ou talvez os últimos acontecimentos tivessem sido demasiado bons.

- Jen - ouvi Brendan chamar, do alpendre. - Ela está cá fora. A Sam está ali em baixo, ao pé do lago.

Com o coração aos saltos, numa alegria quase infantil, voltei a descer as escadas ruidosamente e irrompi pela porta das traseiras. Vi que a Sam tinha disposto cadeiras debaixo da árvore frondosa e não estava sozinha.

Ao seu lado, à sombra, estava sentado um homem. Tinha na cabeça um boné dourado com um V, provavelmente de Vanderbilt, o que de repente fez todo o sentido do mundo.

- Doc - proferi, com a respiração suspensa. - Eu devia ter calculado.

 

Desci o relvado em declive o mais depressa que pude, direita aos braços estendidos da Sam. Senti que era justo estar novamente ali. Logo a seguir a Sam voltou-se para o Brendan e deu-lhe um longo abraço. Era como se sempre tivessem sido grandes amigos.

Então virou-se para o homem dos seus sonhos.

- Quero apresentar-te o Doc - disse-me. - Este é o John Farley - acrescentou, dirigindo-se ao Brendan. - De facto, é doutor. Em Filosofia, pela Faculdade de Teologia de Vanderbilt. Tudo se está a compor lindamente, Jennifer. Às vezes, a vida faz destas coisas.

Meu Deus, o Reverendo John Farley é que era o Doc, e ele e a Sam formavam um par tão jeitoso! Adorei vê-los assim juntos. Fez o meu coração exultar.

Instalámo-nos os quatro debaixo da sombra inconstante de um velho carvalho silvestre.

- Uau! - exclamei, sem conseguir deixar de esboçar um sorriso de cada vez que a Sam e o Doc, isto é, o John, trocavam carícias e olhares.

Abracei o Brendan e ele murmurou-me ao ouvido.

- Concordo contigo, uau!

Tudo estava a compor-se muito bem, tive de admitir. Um bocado mais tarde estávamos os quatro em grande agitação na cozinha da Sam. O Doc descascava batatas, conseguindo tirar-lhes a pele espantosamente fna e formando caracóis intactos. O Brendan alternava entre tirar a casca às ervilhas e comê-las. Eu ia sujando tudo à minha volta com a farinha.

- Todos para fora da minha cozinha. Deixem os cozinhados para os profissionais! - exclamou Sam, por fim.

Rimo-nos e seguimos alegremente para a sala de jantar. Quarenta minutos mais tarde, ajudámos a Sam a pôr a refeição na mesa. Carne assada, batatas doces, cebolas e ervilhas, biscoitos caseiros. Durante o jantar fiz ao John Farley uma pergunta que andava para fazer.

- Pediu à Samantha que casasse consigo. Sam, disseste que serias louca se não aceitasses - desviei o olhar da cara da Sam para a dele. - Então, o que aconteceu?

A Sam olhou para o Doc.

- Bem - respondeu ele -, primeiro convenci-a a casar; mas depois convenci-a a não casar.

A Sam riu-se.

- Ele apenas apresentou algumas perguntas e questões muito acertadas. Como o facto de algumas pessoas intrometidas, aqui da zona, começarem a fazer perguntas e a dar opiniões e a fazer julgamento. Haviam de dizer piadas sobre nós os dois, chamando-nos The Thorn Birds. Achei que não ia gostar muito disso. Estávamos habituados à nossa privacidade. Também podia ser prejudicial para a congregação do John. E foi então que ele teve uma óptima ideia.

Ele inclinou a cabeça para a Sam.

- Eu disse: e se não contássemos a ninguém? E se guardássemos o nosso amor só para nós? Conversámos sobre o assunto e foi o que decidimos fazer. Ao fim e ao cabo, connosco tudo fora sempre diferente.

A Sam estendeu o braço e pegou na mão do John.

- O Doc e eu casámos há dois anos, num domingo de Agosto, em Copper Harbor, no Michigan. Ninguém sabe disso, excepto vocês os dois.

Brindámos com os nossos copos em volta da mesa.

- À Sam e ao Doc! - exclamámos o Brendan e eu.

- Ao Brendan e à Jennifer! - exclamaram eles.

 

* Romance de Colleen McCullough, cujo título em português é Pássaros Feridos. (NT)

 

A Sam tornou a dar-me um grande abraço, assim como o Doc. Ambos abraçaram o Brendan. Depois sentámo-nos e ficámos a contar histórias antigas ao longo das duas horas seguintes. Assistimos ao cair da escuridão sobre o lago e o Doc falou-nos das estrelas, e duvido que o Stephen Hawking tivesse feito melhor. Sentia-me tão feliz e recordo cada momento dessa noite no Lago Genebra. Recordá-la-ei para sempre.

Porque menos de três semanas depois, aconteceu algo realmente terrível.

 

Como disse a Sam, às vezes a vida faz destas coisas.

No início de Novembro estava eu sentada no velho sofá de veludo azul da sala da Sam. O Brendan segurava uma das minhas mãos e o Doc segurava a outra.

- Vai ficar tudo bem - murmurou Doc, pousando no peito a mão trémula. - Ela permanece intacta nos nossos corações. A Sam está em paz.

Quase de minuto a minuto, ouvia-se a ponta de mais um chapéu-de- chuva a bater no chão de madeira do alpendre, a seguir o gemido da porta a abrir-se e entrava mais um dos amigos da Sam, juntamente com uma lufada de vento húmido. Em breve a casa estava cheia de pessoas do Lago Genebra e de Chicago e até de Copper Harbor, todas elas com uma expressão penosa por se encontrarem naquela ocasião impensável.

Ao olhar à minha volta, via em todo o lado alusões à Sam. Nos olhos azuis de bebê do meu primo Bobby, nos grupos de fotos de família penduradas nas paredes, no rosto estriado de lágrimas da minha tia Val, quando estava a olhar pela janela a superfície irregular de um lago varrido pela chuva. Era tão triste e quase inacreditável que a pessoa que em vida atraíra tanta gente já não estivesse connosco.

Por fim, o Doc debruçou-se sobre mim.

- Se estiveres preparada, acho que devemos começar. A Samantha não gostaria de deixar as pessoas à espera. E nós também não.

Quando o Doc começou a falar sobre a sua Samantha, embora sem revelar o seu incrível segredo, encostei a cara ao ombro do Brendan. O Doc estava ali cheio de coragem, tão eloquente, e mais comovedor do que alguém na sala pudesse imaginar. Entretanto, perpassavam-me a mente as mortes de outras pessoas que eu amara: a do avô Charles, a da minha mãe, a do Danny. O Brendan am parava-me com ternura e eu ouvia o Doc e depois outros amigos da Sam, cada um deles relatando uma história carinhosa ou uma recordação especial.

Seguiu-se uma pausa.

- Agora tu, Jen - sussurrou-me Brendan. - Chegou a tua vez.

 

Não gosto de falar em público ou de estar no centro das atenções, mas senti que tinha de me levantar e falar. Tratava-se da minha avó, da minha Sam. Ao avançar para a frente da sala, sentia a cabeça atordoada como se estivesse prestes a desmaiar.

Fiquei de pé com as costas voltadas para o lago, e tendo à minha direita uma fotografia da Sam a preto e branco, uma das minhas preferidas. Olhei para todos os rostos tristes, mas expectantes, dos amigos da minha avó. O Brendan dirigiu-me um sorriso encorajador. O Doc piscou-me o olho e por fim acalmei.

Eis o que eu disse:

- Por favor ajudem-me a aguentar. Não sou boa nisto, mas há coisas que tenho de dizer. Quando era criança e adolescente, era nesta casa, com a avó Sam, que passava as minhas preciosas férias de Verão.

Comecei a sufocar da primeira vez que pronunciei o seu nome. Mas depois não quis saber se chorava ou não e prossegui com firmeza.

- Nós as duas fomos sempre, desde o início, a melhor amiga uma da outra. Havia entre nós um clique, uma química, víamos o mundo da mesma maneira, ríamos e chorávamos pelos mesmos motivos. Eu amava-a mais do que ninguém e tinha uma enorme admiração por ela.

À noite, deitada, sempre lhe contei os meus pensamentos mais íntimos: a Sam sentada ao meu lado, com a mão sobre a minha, no escuro. Há crianças que têm medo da escuridão, mas eu gostava imenso, pelo menos quando estava com a Sam.

É um bocado isso que sinto agora. Não posso ver a Sam, mas sei que ela está aqui.

Não há muito tempo, tinha-me apartado da vida porque, bem, acho que não conseguia suportar a dor de viver plenamente. Foi a Sam que, carinhosamente, conseguiu tirar-me da minha concha e afastou o meu véu de tristeza. Foi a Sam que me mostrou o caminho para voltar a encontrar o amor. A Sam levou-me até ao Brendan, que amo apaixonadamente.

Mas há um segredo que não cheguei a partilhar com a Sam, por isso vou contar-lhe agora. Minha querida Sam, Samantha, tenho algo maravilhoso para te dizer. O Brendan e eu vamos ter um bebê. O teu primeiro bisneto. "

Então comecei mesmo a chorar, mas sabia que também estava a sorrir. Olhei directamente para o Doc e ele estava radiante. Tal como o Brendan.

- Conseguem todos ver o rosto da Sam, não conseguem? A maneira como está resplandecente, a maneira como está a restar atenão, como se cada um de nós fosse a pessoa mais importante do mundo.

Neste momento, quase não consigo acreditar que ela nunca verá o nosso bebê, que não descobrirá uma maneira qualquer de o conseguir.

Mas também pergunto a mim mesma se ele ou ela irá ter o cabelo com aqueles maravilhosos caracóis que tinha a Sam. Ou os seus olhos azuis reluzentes, ou a sua espantosa capacidade de amar tantas pessoas, de ter tantos amigos sinceros. Mas disto tenho a certeza. O nosso filho ou a nossa filha há-de saber tudo sobre a bisavó, há-de saber como ela era uma pessoa incrível. Tenho todas as histórias da Sam para lhe contar. Sei exactamente quem era a minha avó e isso é um verdadeiro tesouro.

E, quer seja rapaz ou rapariga, não interessa, o nome do nosso bebê será Sanz. "

 

Nessa tarde, os amigos e familiares da Sam contaram histórias sobre ela durante horas; alguns amigos mais chegados, e alguns não tão chegados, ficaram até noite bem tarde e cada história parecia um pouco melhor do que a precedente. É claro que eu tinha mais histórias do que ninguém. Tinha as cartas da Sam. Só que não podia contar a qualquer pessoa demasiado daquilo que eu sabia. Esse era um segredo entre o Doc, o Brendan e eu.

O tio do Brendan veio ter comigo antes de sair. O Shep debruçou-se sobre mim e beijou-me a face.

- Quis ficar à espera, até que as coisas sossegassem um bocado - disse ele. - Você esteve tão bem, Jennifer. Gostei imenso daquilo que disse sobre a sua avó. A Sam pediu-me que lhe entregasse isto. Tenho-o tido guardado no meu escritório de advocacia.

Peguei num envelope branco cor de linho que o Shep me estendeu. Seria mais uma das suas cartas? O que teria ela agora para me contar? Mais um segredo misterioso?

Abri o envelope. Depois retirei dele uma única página e comecei a ler.

Minha querida Jennifer,

Creio que esta é a nossa última conversa, e não te atrevas a ficar triste. Isso nunca foi o nosso género. Quando há cinquenta anos o teu avô e eu comprámos a casa do lago, ela estava a precisar de muitas reparações e erguia-se num terreno pedregoso, mas tinha uma das melhores vistas do lago. Guardo tantas recordações boas desse lugar, tal como tu! Ainda estou a ver-te, e à tua mãe, enroladas no sofá em frente da lareira, enquanto eu preparava um dos meus jantares. A Valerie deu à luz o Bobby no andar de cima, no quarto virado a oriente, e tanto tu como o teu primo deixaram no chão da cozinha marcas de esquis de gelo, que nunca mais desapareceram. (É claro que eu sabia que vocês tinham feito isso.) Recordo todos os Verões que passámos no alpendre da frente, mas acima de tudo recordo os tempos que passei contigo, Jennifer. Sempre foste a minha mais-que-tudo".

Estou a olhar para o lago neste momento, enquanto escrevo. O Inverno não demorará muito a chegar; os ramos das árvores hão-de cintilar cobertos de gelo e a neve soprará sobre o lago como uma fina cortina de renda. Mal consigo esperar que isso aconteça.

Mas também já estou ansiosa que chegue a Primavera. Os pontões pintados de fresco voltarão a ser colocados no lago, o jardim sacudirá a neve e as plantas perenes reaparecerão. E o que estou a pensar é que a palavra erene é uma designação errada. De vida longa seria mais correcto, porque as perenes não vivem para sempre. Nem mesmo as vistosas como eu. É por isso que me estou a preparar para o futuro, hoje.

É evidente que estou a ter em conta todos aqueles que amo, mas para ti tenho um presente especial. Na verdade, ele encontra-se dentro do envelope desta carta. Usa-o bem, sei que assim farás.

Jennifer, o meu coração está repleto e a minha vida também. Isso é algo muito bom. Tenho o meu Doc. Tenho-te a ti e tu tens o Brendan. Não podia sentir-me mais feliz. Que mais poderia alguém desejar?

Recebe todo o meu amor, e lembra-te de que és a minha melhor amiga, és a minha mais-que-tudo,

Sam

Dentro do envelope deslocou-se um pequeno peso, que o fez soltar-se da minha mão. Curvei-me para o apanhar de novo e dele escorregou uma chave de latão atada a uma etiqueta redonda de cartão por meio de uma fita vermelha já puída.

Apanhei a chave e olhei para a etiqueta.

Num dos lados, a Sam tinha escrito: 23 Knollwood Road, a casa agora é tua, jennifer.

No outro lado havia uma pequena inscrição. Olhei para o que a Sam escrevera. As últimas de todas as suas palavras para mim.

O amor nunca morre.

 

IMAGENS PARA A SAM

O Brendan e eu ajeitamo-nos no sofá em frente da pequena câmara de vídeo, último modelo da Sony, já preparada para o nosso primeiro filme caseiro.

Estamos no nosso novo apartamento em Chicago, com vista para o Lago Michigan, e sentimo-nos entusiasmadíssimos. Este é um momento importante nas nossas vidas, o início de uma fase nova e promissora. Pelo menos, parece que assim pensamos.

- Estás pronta? - pergunta Brendan. - Muito bem, vou ligá-la.

Levanta-se de um salto e liga a câmara de vídeo. Ultimamente, anda cheio de vitalidade (a tal remissão), aliás não é só ele.

- Começa tu, Jen. Nunca te faltam as palavras.

- Olá, Samantha - digo eu, fazendo um sorriso idiota para a câmara. - Esta é a mamã, quando tinha trinta e cinco anos e não se importava de dizer a idade.

O Brendan está ao meu lado, com a cabeça encostada ao meu ombro.

- E eu sou o teu papá, muito orgulhoso e muito feliz, desde há catorze dias e cerca de onze horas.

- Gostamos muito, muito de ti, meu amor - prossigo eu -, e umas duas vezes por ano.

- Talvez mais de duas vezes - interrompe Brendan. - Como vês, a tua mamã e o teu papá são actores frustrados. E também se nota que falam muito e não dizem nada.

- Vamos filmar-nos a nós próprios para tentar dar-te uma ideia de quem somos, como somos, em que pensamos e, é claro, do quanto te amamos.

Olho para o Brendan e ele retoma o fio, que tínhamos mais ou menos ensaiado.

- Para que tu, quando já fores velhinha e fraquinha como nós os dois, ou como eu, pelo menos, possas ver estas gravações e saber quem nós éramos. Não achas fixe?

- E como éramos patetas.. - prossigo. - Mas também quanto apreciamos ter-te a ti como nossa filha. Neste momento estás a dormir, e dormes sempre muito, muito bem.

O Brendan começa a bater palmas e mostra à Sam o seu sorriso de estrela de cinema.

- Viva! Muito bem, Samantha. Continua assim! Linda menina! Dorme bem

Agora é a minha vez.

- Samantha, tens os olhos azuis mais lindos, um sorriso maravilhoso, tal como o teu papá... e nenhum de nós consegue cansar-se de te admirar.

- Também és careca como uma bola de bilhar, mas a mamã veste-te de cor-de-rosa, por isso vê-se que és uma menina muito menineira - graceja Brendan com doçura, como é seu hábito.

- E agora aqui vai um docinho muito interessante - digo eu.

- Quando nasceste, no momento em que vieste ao mundo, olhaste em volta como um passarinho curioso que pela primeira vez espreita para fora do ninho. Olhaste directamente para mim, observaste-me bem, e depois olhaste para o papá, observaste-o bem, e a seguir dirigiste-nos a ambos um sorriso resplandecente. Ora, supostamente, e segundo o médico presente, tu ainda não conseguias sorrir nem ver-nos, mas nós não acreditamos nisso.

- O médico sou eu e não acredito nisso - afirma Brendan.

- Já te disse que és careca como um ovo?

- Já disseste, sim. Agora vamos começar pelo princípio desta história maravilhosa, pelo início de tudo, Samantha. Vou contar-te por que razão tens o teu nome. É um bonito nome e uma história ainda mais bonita. E tu, Sam, és o seu final feliz.

Então fico calada por um momento, e não digo isto, mas penso: o amor nunca morre, Sam.

 

                                                                                            James Patterson  

 

                      

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